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Conectando historiografias:
a escravidão africana e o Antigo Regime
na America portugtesa'
Silvia Hiinold Lara
Durante rnuito tempo, ao menos urna parte dos estudiosos da História do Brasil
tendeu a pensar a "colônia" como uma hornogeneidade temporal e geográfica. Do
ponto de vista bistoriográkico, essa concepco unvoca da colônia parece ter surgido
do desdobrarnento das propostas do Instituto Histdrico e Geogiifico Brasileiro e,
especialrnente, da primeira e grande História geral do Brash, publicada pot Varnhagen
em 1854.1 Para esse auto; a aço colonizadora portuguesa havia gerado uma nação
independente e o Brash surgia como o tesultado de urn "caminho colonial", que teth
sido percorrido sob a tutela de Portugal. Sern estabelecer uma ruptura radical entre o
aritigo e o moderno, como em outras interpretaçoes contempor.neas, Varnhagen em-
preendeu uma avallaço politica da passagern do tempo e tratou de opor ao moderno
0 colonial.
Ainda que negasse a idéla de tuna ruptura corn a Independência e que sua obta
tenha uma abordagem emineritemente polIrica e administrativa, esse autor foi o pri-
Este texo apresenta resultados de utna pesquisa mais ample, que conta corn o financiamento do Consetho
Nacional de Desenvovixnento Ciencifico e Tecnológico - CNPq.
2
Publicada iniclslmente em 1854, a Hi#6i.iagera/do Brarilfoi posterlormente acrescida de urn tomo especi-
fico sobre "a história da iodependência do Brash", cujos originals perniarseceram inéditos ate a publicacao
póstuma cm 1917. Uma breve snas interessante anlise da obra de Vsrnhagen pode see encontrada em José
Honórlo Rodrigues. HfrId,ia da MsIdna do Brad A histotiografla conservadora. So Paulo: Ed, Nacional, INL,
1978-1988. p.13-27. A respeito do Instituto Histddco e Geogthflco Brasileiro, ver, entre outtos, Manoel Luis
Salgado Guimarges. 0 IHGB e o projeto de uma hlstória nacional. Exudes Histdricos, v.1, p.5-27, 1988; e Lilia
M. Schwaccz. 0 eipetdcido das rafas. Cientistas, instieuicocs e questao racial no Brasil, 1870-1930. Sgo Paulo:
Comparthia das Letras, 1993. cap.4.
22 MoDos DO Govnrt
CONOCrANDO H1sTotuocd(Ar/,s,., 23
)
) meixo a expo± solidarnente tat oposição.3 Os debates posterior's sobre a ava1iaço do
frouxido nas relaç6es socia.is e nas insdtuicôes (corn dificuldades para o desetivolvi-
) legado histórico ou politico do perlodo da dominaço poreuguesa ou ate mesrrio sobre rnento das relaçôes interpessoais e, portanto, do Estado), onde h6 repuisa pelo traba-
) os litnites temporais que separavarn este xnornento do perIodo pós-Indeperidêrtcia Iho regular, pelas atividades "'ixeis" - utna civi]iaaço tradicional, na qual predomina o
) acabaram, de cetto modo, consolidando esse principlo interpretadvo.
corpóreo, o patriarcalismo, a regional e o paroquial. Dc certo modo, a persistência
Essa concepção tornou-se hegemôthca nas décadas de 1880 e 1890, quando as dessas raizes do Brasil teve dois- moment os significativos que impeliram a sua própria
propostas vitotiosas dos abol1c1on1staunJgtas ta emrecorrer0p
superacto: 1808, quando a vinda da Famflia Real assinalota "novas tempos" e "os
do veihos padröes c loniais" se viram pela primeira vez arneaçados; e 1888, que marcou
Y trabatho livre dos hnigrantes. Nos d.iscursos• da elite nesse perIodo, apesax das nuanças "o Lim do predotninio agrário no Brasil'- momenta denbminado pelo autor de "nos-
programádcas, era cjuase consensual a oposiçao entre dois universos irreconcilatyexs, sa revolução".4
que opunham a escravido a liberdade, o arcaico ao moderno, o colonial ao nacional. Tal caracterlzaçiio, que associa a "vida colonial" a "escravido" e a outras caracte-
- "escravo" passou a set diretamente associado ao "negro", a "escravjdo" a "barbrie", risticas problematicas, no interior de balizamentos cronológicos rrnixcados pelo
o "traba.Lho livre (ou assalariado)" a CCjyffi
" Tais verdades consolidaram-se em imbricamento dos eventos de 1808 e 1888, também esteve presente nas obras de Gil-
termos politicos e passaram a estar presentes na mator parre das interpretag6es berto Freyre (nutria verso monarquista noscilgica e coriservadora) e de Coin Prado
) historiograficas, como se fossem "naturals".
Jiior (numa versao progressista e ate revolucionria).' Se, em Sergio Buarque de
) Foi assim que a "colôiaia" começou a set ideutificada como uma unidade temporal Holanda, 1808 e 1888 aparecein como' marcos cronológicos equilibrados, em Gilberto
relativairiente homogénea, coma se mats de três séculos de histórla pudessern set resu- Freyre o mundo da casa grande e da senzala 56 termina em 1888 (e, mesmo assim, para
midos etu urna dnica expresso. Tratava-se de urn passado a set esquecido, superado; dar continuidade a seus equivalentes urbanos dos sobrados e dos mocambos). Em
quando muito, urn passado em que se loca1iavam as origens de certos males que Caio Prado Jt'inior, é o final, do sCculo XVIII e especialmente 1808 que predomina,.
assolayam o Brasil.
embora a "heranca colonial" so possa set suplantada corn a realizaçao da revoluço
) c
No século XX, a oposico entre a mundo arcaico e colonial da escravidão e o brasileira - nico modo do alcançar a plenitude da naçao. -
outro moderno e civilizado, do trabaiho livre, continuou a set a base da ret1exo histó- Esses marcos cronol6gicos - e sobretudo os significados que des carregain -
rica sobre o Brash. Precedendo o "nacional", a colônia passou a see vista como o em- tambérn aparecem nas obras da chamada Escola de So Paulo.' Preoc.upado em estu-
brio do naço, mos foi esta iltima que the deu inteligibilidade e sentido. Creio que se daro momenta crucial de urna "reforma de base" reaiizada no passado, coma obsetva
possa situar no cixcuito intelectual existente entre as obras de Gilberto Freyre, Sérgio Richard Graham,' esse conjunto de trabaihos densos e originals ptoduzidos no inlcio
Buarque de Holanda e C2iO
Pralo Junior a consoidaçao definitiva desse paradigma,
)
dos marcos cronológicos e concepçoes a ele correspondentes. Para no nos estender-
) mos demasiadarnente, é possivel recuperar vrios desses elernentos em RaIes
do Brcjsil. S&glo Buarque dc Holanda. P.dr/e.r do Bnui/. 8.ed. Rio de Janelto: José Olymplo, 1975.
) Nas polatidades que articulam os sete capftulos desse livto magistral, a cMlizaçao Re(ito-me, aqui, cspecialmente as obras clissicas de Gilberto Freyre. Casa grands a senala. 19.ed Rio do
Janeiro: José Olympia, 1978,c Sobradare yeaneber. 7,ed. Rio de Janeiro: José Olyrnpio, 1985; ede Cola Prado
rural (no-agrIco1a, para set flel a formuJaço do autor) é caracterizada pot tuna socie- J/inior. BtiolçaobolOica do Bras/I. 9,ed, Sao Paulo: Brasiliense, 1975, e Farma;lIo do Bras/I eoniess?pordneo. Med. SSo
dade sern coeso social, na qual esto presentes fortes traços de personaiisrno e de Paulo: Btasiliense, 1977.
A expresso designs cspecialmentc os trabaihos clâssicos de Florestan Fernando,, Octavio Ianni, Fernando
Heneiquc Cardoso, Emilia Viotti do Costa e Paula Beiguelman. Vet, entre outros, Florestan Fernandes. A
i/stegraç3o do negro na saciedade de classes. Zed. So Paulo: Atica, 1978; Oct/vi lanni. As metamefoses do escravo. Sao
Para uma avalioc5o da fortuna crltica a respcic do obra de Varnhagen, vet Nib Odália.
A.rformas domeo#o, Paulo: DiEd, 1962; Fernando Henaique Cardoso. Capitalbino e e.rcravidao no Bras//meridional. Sbo Paulo: DiEd,
Ensaios sobre o pensameoto hlstoriográco do Vatrthagen e Oliveira Vianna,
1997; Astor Antonio Diehl. Sao Paulo: Editota Unesp, 1962; EmIlia Viotti da Costa. Da .re,rala dee/in/a, Sbo Paulo: Difel 1966; e Paula Beiguelman. FormaçJe pc/li/ca
.4 c,,fr,,pa h/rio rc,, brasi/qjra do IHGB no: an,: 1930, P55,0 Fwulo: Editor" tie Braid. Sao Paulo: Pioneira, 1967.
Universidade do Passo Pundo, 1998; e Arno Wehling.
} dade national. Rio do Janeiro: Nova Ftonteira, 1999, Egd4 b/:iddq, metvd,ia: Varahagen e a con:irnço tie ide nil- CE Richard Graham, Brazilian slavery re-examined. A review article. fmernalof Seda/H/rterj, v.3 ti.4, p.431-
)
53, 1970.
24 M000s DU GovanR
) CoNacr0o ftrsroaxooa,u's... 25
)
) dos anos 1960 acabou pot constxuir uma matriz interpretativa Para o momento da
) "transiço" do trabaiho escravo Para o trabaiho Jivre. Apesar das diferenças entre os capltulo é examinar alguns desses movimnentos historiográflcos, mostrar a amplitude
) autores, essa escola acabou tarnbérn pot definir uma cronologia Para a transiço do das mudanças interpretadvas que eles trouxeram e propor caminhos analiticos que,
Brash "colonial e arcaico" Para o Brasil "capitalista e rnoderno". As ariálises sobre a estabelecendo conexôes entre novos camnpos investigadvos, possarn oferecer suges-
mudança na natureza da exploraco do tma'atho alargararn-se Para o terreno da toes Para a continuidade das pesquisas histdricas.
)
periodizaço, conformando uma leitwa do passado colonial que o associava direta-
) merite a experiênoia da escravido.
) Mas foi sobretudo a ênfase nas análises inacroestruturais, que matcaram os anos
) 1970, que acabou pot cristajizar a irnagem da "colônia" como urn todo homogneo. A parth da década de 1980, os estudos sobre a escravidâo dos africanos e seus
Nos debates marxistas dessa época, a expresso "Brasil colonial" passou paticamente descendentes no Brasil passaxam par transformaçOes que redimensionaram a aborda-
a desconsiderar diversidades 'politicas, geográflcas, populacionais, econôinicas e cro- gem do tetna. Questionando as amarras esttuturais de paradigmas explicativos fixadog na
nológicas. Privilegiando o debate conceitual, muitos empreenderaméJjses nas qunis década de 1960, virios pesquisadomes enfatizaram a necessidade de procurar Qutras pets-
) exam referericiados lado a lado documentos dos sCculos XVII e XIX ou que diziam pectivas de ani1se. Ao criticar 0 enfoque estritatnente macroeconôm.ico e a ênfasc no
) respeito a Bahia, no Rio de Janeiro ou ao MaXanhO.' caráter violento e inexorável da escmavido, observaram que o resultado da maior parte
) Nasanálises histói-icas, predorninou a abordagern quase exclusivamente econômi- da pxoduco sobre o tema era uma história que, mesmo scm o desejat, apolava-se
ca, e a oposiço entre colônia e metrópole tornou-se urn elemento central, adquirindo xiurna óptica senhorial que era, inevitavelrnente, excludente. Recuperando movimentos
significados sistêniicos. Embora as perspectivas analIticas privilegiassem a escravidho e ambiguidades que antes poderiam parecer surpreendcntes, valorizararn a experiência
Para caracterizar a sociedade ou o modo de produço que haa se formado nas Amé- escrava, que passou a set analisada corn base em outros parmetros. Asaim, os valores
) e as açOes dos escravos foram incorporados comno eletnentos irnportantes Para a corn-
ricas, a dimensão "colonial" era necessarjamente Invocada Para deflnir o fib condutor
) e explicativo da histórja. Em xFiuitos trabalhos, a idéia de uma "unidade nacional" ainda preenso da própria escravido e de suas tmansformaçoes?
) continuou a set projetada Para a "colônia", construindose uma história que era do Muitos estudos voltatam-se ento para a anilise das pradcai coddianas, costumes,
"Brash" colonial, no dos domfnios portugueses na America; que era da Nacao, no de enfreritamentos, resistências, acómodaçOes e solidariedades, modos de vet, viver,pensar
sujeitos históricos mi1tiplos, desiguais e diferentes. For 1830, e agir dos escravos. Procurando incorpomar as visOes escravas da escravido, as diversas
a oposição que separava
raclicaimente o arcajco-escrav1stacoJo do modernocapjajjstanacjon conitjnuou monograflas, teses e livros produzidos tins iMtimas décadas tm discutido os significados
) de certo modo a sex a base das reflexôes bistóricas das lutas escravas e das muitas esferas da vida dos cativos que florescerarn sob o dominio
sobre o perfodo colonial ate bern
) pouco tempo atrás. escravista. Além das relaçoes entre os senhores e seus escravos, erifocarn-se tambCm
) Nos ülthnos vinte anos, esse quadro se tmansforrnou de forma significariva, a partir aquelas que mantinharn corn seus cornpanheiros de cativeiro, corn outros serihores,
de alguns desdobramentos historiográficos asshnétridos, rican todos ligados cliretamente corn ex-escravos e pessoas livres pobres, invesigando laços familiares e de compadrio
aos estudos sobre o perlodo da dominaçao portuguesa na America. 0 objethro deste ou prificas econôrnicas que estiveram na base de muitas estratégias de so-brevivência
e de projetos de liberdade durarite a escravidão e depois dela.
)
Taiscatactedsca5 so marcanes sobredo 005 ttos em qua preece a
sobre os modo5 thsxss3o 6dcu, como nos debates
de produçso no "&asil colonial". Para alguns exemptos, ver Tho A. Sandago. (Oeg) Para uma abordagem mais detaihadadesse terna, vet Silvia Huriold Lara. Escravido no Brash: balanço
c.iloniai En.raici. Rio de Janeiro: Pallas, 1975 J. R. do Amaral La A,dWca
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CONCCrANOO uus'roIuOGttAtb\S... 21
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africanos no
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Eduardo Spiller Pea, Ojogn do face. A astücia escrava (recite cos senhores e a lei no Curitiba provincial, no an/disc do experiência do cadvos e ex-escravos podem 5cr colhidos 0105 trabsihos do Sidney Chaihoub.
j Curitiba: Acs Quotro Veotas, 1999. Companhia dos Letras, 1998; Robert W Slenes. Na
14 C/dade Febri/. Core/core epidemim na cone imperial. Sic Paulo:
Vet, pot exemplo, Manolo Garcia Florentixio, Em cotta, negran usna histótia do trlfico ntléndco de escravos Reis negro! no Brasil escravisla. Hlstótia do fasts do coroacbo do eel
senala, unra fist...; e Marina do Mello e Souza. tambCm a segundo edlcbo revisada e anipliada do Joao
entre a Africa e o Rio de Janeiro, sCculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995; eLuix Felipe Congo. Belo Horizonte: Editors UFMG, 2002. Vex
) do .Alencastro. 0 frata do: v/von/es. Formaçbo do Brash no Adbntico Sul, sCculos XVI e XVIL Sao Paulo: Sao Paulo: Companhia dos Letras, 2003.
José Reis. Robe/lie escrava no Bras/I.
Companhia das Letras, 2000,
) 30 MOODS on GOVEBNAR
CONISCTANOO HISTORIOGRAMAS. 31
) ---- - --- ---
autores mostraram a existência de poderes concorrentes entre si, que lutavarn pela cia entre os diversos poderes na rnetrópole e nas Leas colonials, tenias clássicos como
) obtenço de terms, tftulos, offcios e privilégios cornerciais. 0 estudo do rnodo comb Sc a adrninlstraçao colonial, que antes apareciam secundariamnente em obras de caráter
) enlacavarn Os interesses piiblicos e particulates, poderes locals e centrals, economia e geral, ganharam historicidade e passaram a set- examninados em comijunturas especfficas
polidca, hierarquizacao social e acumulaço de riquezas transformou a viso ate ento e na relacao corn as dinamicas itnperiais.3' Do mestno tnodo, as telacôes entre a econo-
vigente sobre os modos de governar o reino - também o Ixnpério pox mia e a politica começaram a set analisadas de modo a integrar o papel das redes de
Tais concepcöes também se desenvolveramn na historiografla brasileira, sobretudo parentesco e de dlientelagern no controle dos mercados e na acumulaço de niquezas.38
) a pardr dos anos 1990, e a história poiftica, que ate ento ha'via passado pradcamente Tais caracteristicas deixaram de set encaradas como "anornaijas" e pass.ram a set dis-
) incólume pot aquele movimeneo de transformaçoes, começou a mover-se corn veloci- cutidas como modos importanres do ordenamento econôrn.ico e da concentraçao de
) dade. Novas abordagens sobre as relaçôes de poder no !nundo colonial começaram a riquezas nas areas colonials e mnetropolitanas.
sutgir. As pesquisas sobre as formas de governar e sobre o funcionatnento das diver- Em segundo lugar, mas simultarieamente, a dualidade Brash-Portugal, que havia
sas insdtuiçôes que agregavarn e davam consistência as redes hierárquicas que ligavam presidido boa parte de nossa producâo bistoriográfica, pôde ganhar outras dimensôes
horizontal e verticairnente a sociedade colonial foram se desenyolvendo em conexo e conectar-se a outras regiôes do ImnpCrio. As Izocas at1nticas passaram a set compre-
) corn estudos realizados para outras Leas do Impexio portuguCs.' Aos poucos, os ne- endidas também a partir de suas conexes corn os mercados asiaticos, e os snecanis-
) xos imperiais das politicas metropolitanas e das dinmicas colonials foram se irnpondo nios do poder podiamn set agora estudados na sua dirnenso imperial. Em vários send-
) nas anJises, fazendo que eventos "brasilefros" pudessern set analisados em conexo dos, näo se trata mais de pressupor uma separaco irredutivel entre Portugal e o Brash,
corn outros ocorridos na Africa ou na lnc]ia.' nern de considerar uma "realidade" colonial que, desde o inIcio, como uma semerite a•
Essa atnpliaco na perspectiva das análises históricas é bastante importante em germinar, se contrapunha ao domfrilo rnetropolitano. Ganhando tivanças temnporais e
tetmos historiograflcos. Elas significani, em primeiro lugar, que a aniuise das relaçôes perspectivas mais amnplas, a história do perlodo colonial deixou de set concebida como
)
de poder no universo colonial ultrapassou a visão liberal que impunha uma avaliaçâo a prirneira etapa da formacao da naço e desvinculou-se do paxadigrna que havia se
) depreciativa do que ento era notneado como "ineficiência", "desgoverno" e "caos cristallzado nos anos 1960-1970.
administrativo", Na temitativa de compreender a lógica da distribuiço e da concorr6n-
lado, os estudos sobre a escravido, centrados, sobretudo, no século XIX, e, de Isso significa dizer basicamente que, de urn lado, nao se pode deixar de olhar
)
tro, aqueles sobre o perfodo colonial, que Se ampliararn para abarcar urna mithtde de para os governados; de outro, é necessário considerar que as relaçöes de poder sao,
temas, mas cujo interesse pela escravidâo tern permanecido relativatnente restrito, tarnbém e necessariamente, relaçôes de dominacao. Assim, poderernos, pot exem-
Creio não set exagerado dlizer que, de certo modo, a his toriografia brasileira plo, verificar como aqueles que "nao tinharn poder" (do ponto de vista das represen-
) mais recente sobre o perlodo colonial tern se voltado para o estudo das camadas taçôes do Antigo Regime) se apropriavam de instituiçes e rnecanisrnos da politica e
) dorninantes. Cada vez mais conhecernos os modos de governar; os homens bons, do governo, pata faze-los funcionar de algurn modo na direçao de seus objetivos e
murido dos letrados e as formas de icr e sentir, os poderes locals, a nobreza e as elites interesses. Em vez de simplesmerite ficarmos presos a certas oposicaes, procurando
)
coloniais, mas continuamos a saber pouco sobre a história social dos séculos XVII e decidir se as irmandades OU os terços negros e pardos cram mecanismos de acomo-
XVIII. Scm düvida aigurna, ha estudos sobre revoltas populates, sobre quilombos e daçao ou resistência, pot exemplo, poderernos investigar como tais insdtuices
movirnentos indIgerias, mas sâo trabaihos esparsos, que ainda no chegam a consti- rnesmo servindo a interesses senhoriais e xnetropolitanos - funcionavam como irn-
) tuir urn campo de investigaco." portantes canals de preservacão c expressäo de valores e anseios dos africanos e de
) Na malor parte das vezes, esses traballios tern dado continuidade a questôes seus descendentes, livres ou escravos." Poderernos tambérn nos perguntar como e
postas pot tradiçôes historiográficas dliferentes. 0 estudo das revoltas colonials, pot de que modo a ação dos governados impôs limites e levou os governantes a transfor-
)
exemplo, lida mais corn questoes advindas das leituras nadvistas ou da história das mar seus modos de governar... As frigas e os quilombos, pot exemplo, fizeram que
idéias e dos cori-iportamentos das elites, do que estabelece relnçôes corn a movimen- senhores e autoridades colonials aprimorassem os tnecanismos de controle sobre a
tação das carnadas populates e, sobretudo, corn as reivindicaçôes dos negros e mula- escravaria, criassem riovos cargos e oflcios no n(vei local (como no caso dos capi-
) tos livres e libertos. Enquanto ISSO, os estudos sobre alforria e quilombos estào atre- taes-do-mato) e alterassern o sistema de colaboracão entre as forças militates priva-
) lados a questoes mais gerais dos estudos sobre aescravidão, como a reiaco entre os das e pblicas.
) projetos de liberdade dos escravos ou a influência das divisôes étnicas no interior Ao inesmo tempo, é preciso lembrar que o "governo" tatnbém foi pensado
das comunidades escravas, deixando muitas vezes de lado a possibilidade de perisar como dominacao no perlodo colonial. A questao não era exterior ao mundo metro-
os significados da experiência desses homens e muiheres que conseguiram obter a politano ou colonial - ao contrário: basta-nos lembrarmos dos vários textos que
) discutiam o governo do senhor sobre seus escravos. Letrados e autoridades da admi-
liberdade na sociedade colonial - tao diversa em relaçao as dinmicas oitocentistas.
) Ficarnos, rnuitas vezes, presos a auto-representacao da sociedade do Antigo Re- t,istraçao imperial refletiarn tanto sobre o meihor modo de continuar a manter seu
gime, que considerava o "povo" como algo genético, equivalente a todos aqueles domlnio sobre genres e regiôes tao diversas quanto sobre a necessidade de reformas
) que nao tinham cabedais nern nobrea ou se rebelavam contra os poderes institul- e equilIbrios necessários para a continuidade do domInio senhorial. Nesse sentido,
dos. Ora, muitos estudos tern mostrado que os motins "populates" no Antigo Regi-
me nern sernpre eram efetivamente "populates" - no sentido que damos a essa pala-
vra hoje em dia,.. Pot isso, precisarnos it além das relaçôes entre a nobreza e o rei,
entre a cabeça e os mernbros do corpo polItico, para lidar também corn aqueles que ° Desde os estudos clássicos dejulita Scrano e Cola BoscH, a bibliografia tern discutido or as irmandades
constitufam instruxnentos do dominlo colonial ou espacos de tesisténcia das comunidades negras no Novo
) cram considerados exciuldos da po]Itica. Mundo, Certarnente cram as doss coisas ao mesmo tempo, arnorrecendo tensôes mas também servindo
como canal de Identidades e solidariedades carte homens e mulheres africanos e afro-descendentes. Cf. Julita
Scarano. Davaç3o ea:araeidña. Sao Paula: Ed. Nacionsl, 1976. p.79-95; e Caio Botchi. 0: /ego: a apodar. Irmanda-
des leigas e polldca colonlzadora em Mines Gerais. Sio Paulo: Adcs, 1986. p.168-76. Russell-Wood considers
que as Irniandades, iinlcas advidades comuniti,rias permitidas aos hornens de cot na America portuguesa,
39
Vet, pot exernplo, Roneldo Vainfas. A baretia dos India:. Catolicismo e tcbeldia no Brasil colonial. So Paulo: rornararn-se ountamente corn as tercos de pardos e negros) urn porta-vos dos aspiracôes a demandas dos
) Companhia das Letras, 1995; e Carla Maria J. Anastasia. I/aim/c: a-abe/des. Violência coletiva nas Minas na negros e mulatos livres (A. J. R. Russell-Wood. The BIaait Man in S/avarj andfreedom. New York: St. Martin's
primeira meesde do sécula XV1II. Bela Horizonte: Editora C/Atte, 1998. Press, 1982. p.93).
)
36 Moms Di! GovstAa CoNJzcralloo IJsroluooa,W1As... 37
)
no deixa de set interessarite observar como os temas da legitimidade da escravido o poder se distribula em várias direçôes? Como relacioriar as disputas entre as elites
indLgena ou africana tern sido abordados a parth de uma pérspectiva que busca locals, colonials e metropolitanas corn relaçao ao controle dos escravos? Quais os
mais exaniinar o encatninhamento do pensamento aritiescravista do que estabelecer significados da escravizaç.o dos africanos num mundo errs que a escravidão dos
) a re1aco entre esses debates e os tnodos como a legitimidade do próprio poder era mndios era questionada pela legislacao rnas praticada em muitas regiôes? Como cram
) concebida naquele perlodo. Inversamerite, a suiálise sobre as idéias polldcas do Anti- apreendidos os significados da presenca dos negros, das culturas africanas nurn mundo
go Regime portuguCs deixa de lado freqüentemente o tema da escravidão, como se em que o racisrno airida no havia deitado rafzcs? -
sua existência no reino e nas conquistas nâo fosse fundamental para a dinmica das Certamente ha estudos que vm se desenvolvendo nessas direçaes e que procu-
relaçôes sociais no Império portuguès. -Ngo seria o caso de tentar aproximar essas ram responder a muitas das questoes em aberto. Aos poucos vern se consolidarido
5.)
duas perspectivas de análise? urn grupo de pesquisadores voltados para a história da escravidao africatia nos sécu-
) Scm diivida algurria, o txáfico atlântico de escravos tornou-se urn negócio cen- los XVII e XVIII, corn destaque para aqueles voltados para o estudo das irmaridades
tral na economia imperial portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Airida que houves- nëgras, das condiç6es de alforria em diferentes conjunturas e das diferenças étnicas
) se urn nümero significativo de escravos e libertos de origem africana cm Portugal, na escravaria. Esse rnovimetito tern sido refoxçado pot pesquisas sobre temas
capaz de surpreender muitos viajantes europeus que estiveram em Lisboa, pot exern- correlatos, como no caso dos estudos sobre o cativeiro indigena,42 fazendo que uma
plo, o impacto da escravido no reino foi bern diferente nas conquistas - e sobretu- perspectiva arialldca centrada nos sujeitos e preocupada corn as relacöes entre cuitu-
do na America portuguesa, onde a maior parte da populaco era constitulda pot ras diversas Se consolide cada vez mais." Assirn, creio que o quadro composto pebos
africanos e seus descendentes (escravos, forros ou livres). Assim, mesmo que a natu- dois conjuntos historiográficos aqul descdtos vern se abteratido.
reza das relaçôes sociais e das instituiçôes de governo nas col6nias pudesse seguir a Mas é preciso mais. A aproximacao entre os estudiosos da escra-vidâo e do perIo-
mesma sintaxe da metrópole, no podemos ignorar as diferenças entre elas: a pre- do colonial não é apenas uma questao de passar a estudar o terna numa outra crono-
sença maciça de escravos e de libettos nas conquistas possula uma forca disruptiva bogia ou de incluir mais urn item na pauta de quest6es acercada. 'v-ida nas Conquistas.
que precisa set levada em conta e set mais bern investigada. Como espero ter apontado, ha elementos interpretativos e teóricos importantes que
Tais questôes, no entarito, não tern sido colocadas pela bibliografia dedicada a podem beneficiar os dois lados se a aproximacäo se fizer pot meio dos problernas
escravidão. Majoritariamente conduzidas no universo das fontes oitocentistas,4' as históricos que ordenam as pesquisa. Se os estudos sobre os inodos de governar so
pesquisas sobre o tema acabaram criando generaliracoes que parecem se esquecer tern a ganhar se passarern a incorporar em suas reflexOes as açôes e Os valores da-
) das alteraçöes ctuciais que separam a Monarquia brasileira do XIX do mundo colo- queles que aparentetnente cram exciuldos das redes do poder, tatnbém as pesquisas
nial do Antigo Regime. Quais seriam as especiflcidades das telaçôes entre senhores e sobre a escravidao seräo beneficiadas se vobtarem a olhar mais cuidadosamente para
escravos nurna sociedade em que as hierarcjuias sociais erani tao marcadas e em que
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4 Além da obra dejohn Montalto, Negro: da terra, vet tanibem Nadia Fatage. As mu,ralha,r dos seutoes. Os povos
A presenca tnaciça de estudos voltados para a o perfodo oirocendsta pode set fadilmente verificada em indigenas no Rio Branco a a co1onizaco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Anpocs, 1991; Angela Domingues.
) arrolamentos bibliogrficos sobre o tema, como cm Lula Claudia Barcelos. at al. (Org.) Eseraviddo # re/apies ,Qsuanda as bid/os cram vassalos. CalonlzaçSo e eelsçaes de poder no forte do Brasil na segunda metade do século
eizdth #o Brasil, Cadastto da produc5o intelectual (1970-1990). Rio deJaneito Centro de Estudos Afro-Asia-
XVIII. Iisboa CNCDP, 2000; a Maria Regina Celestino Alineida. Metamoafoses ind(gena:. Identidade a cultura
ticos, 1991, Urn panorama dos rrabalhos recerites sobre a escravidSo no perlodo colonial pode see e7contra- ass aldelas colonials do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Amquivo Nacional, 2003
-)
5
do na coletlnea organizada pot Maria Beattiz Nizza da Silva (Org.) Bras/I. Coloaka,ao escravidio Rio de 43
As dlferencas étnicas a cultumais entre os africanos teazidos coma escravos a entre des e os aqui oascidbs
Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Dentre as obras recenternente publicadas, ver, pot exemplo, Mariza de Carva- rem sido cada vet mais exploradas pela bibilografla sabre a escravidgo no Brasil, no sfculo XIX. Para urn
) tho Soares. Dove/os da ar. Identidade étnica, reigiosidade e escrcwid5o no Rio de Janeiro, século XVIII Rio de
panorama das questoes abertas Poe essa perspectiva para o peelodo colonial, vet A. J. R. Russell-Wood.
Janeiro: ClviliraçSo Brasileita, 2000; Eduardo Franca Paiva. Escravidijo em/verso cultural aa coli#ia Minas Ge-
Array/s do cia prisma aflicano: uma nova abordagein so estudo da diaspora afeicana no Brasil colonial. Tempo,
mis, 1716-1789. Bela Horizonte: Editora UFMG, 2001.
v.12,p.11-50,2001.
38 Moaas na Govrnp.