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ARTIGOS
Criptomoedas: do
fetichismo do ouro
ao hayekgold
PAULO NAKATANI * E GUSTAVO MOURA DE CAVALCANTI MELLO **
1. Introdução
No primeiro livro de O capital, Marx ilustra claramente o fetichismo do dinhei-
ro ao tratar do entesouramento como uma das consequências do desenvolvimento
do mundo das mercadorias. Demonstra ele aí que “a circulação se torna a grande
retorta social, na qual lança-se tudo, para que volte como cristal monetário. E não
escapam dessa alquimia nem mesmo os ossos dos santos nem a res sacrosanctae,
extra commercium hominum”1 (Marx, 1985, p.112).
O dinheiro se torna cada vez mais fetichizado a partir do desenvolvimento do
modo de produção capitalista e, sob o domínio do capital, vira a principal forma
de expressão da riqueza como um fetiche, inclusive disfarçando o capital. Em
suas diversas modalidades de existência,2 e desde os seus primórdios, a riqueza
autonomizada como dinheiro assumiu as mais variadas formas de moedas e mer-
cadorias cuja materialização máxima ocorreu sob a forma de moedas de ouro,
desde a Antiguidade.
Entretanto, a diversidade de moedas e de padrões monetários, assim como
a contradição fundamental entre o seu conteúdo nominal (seu nome) e o seu
conteúdo real (a quantidade de ouro), abriu caminho para a sua substituição por
representantes, signos de valor. A história das moedas é extremamente rica na
descrição dessas contradições e nos problemas criados por elas. A desvalorização
decorrente do desgaste natural das moedas e de falsificações no processo de sua
cunhagem foi discutida e criticada desde Nicole Oresme (2004), em 1355, até os
dias atuais, junto com os problemas de controles e determinações sobre o “valor
das moedas” nacionais. Em 1526, Nicolau Copérnico (2004) escrevia “Sobre a
moeda”, um pequeno texto que trata de uma proposta de “reforma monetária”,
em que destaca a variedade de nomes e padrões monetários, cujos problemas
derivavam não só da desvalorização e das falsificações, como também da enorme
confusão que se originava dessa coexistência.
De modo a se reduzirem os custos de circulação e com vistas ao incremento
da segurança, com a intensificação das transações mercantis foram desenvolvidos
3 Esses certificados eram títulos de dívida que passaram a funcionar como meio de circulação e meio
de pagamento, como se fossem dinheiro. Sempre que os certificados eram resgatados pelo ouro
em depósito, inicialmente com ourives e/ou comerciantes de dinheiro, eles eram cancelados.
4 Aqui está também a origem do que Marx chamou de capital bancário fictício. Atualmente, pode-se
fazer uma analogia entre os depósitos de ouro e os depósitos à vista nos bancos. “Na medida em
que o banco emite notas, que não são cobertas pela reserva metálica guardada em seus cofres, ele
cria signos de valor que constituem para ele não apenas meios de circulação, mas também capital
adicional, ainda que fictício, no valor nominal dessas notas sem cobertura. E esse capital adicional
proporciona-lhe lucro adicional” (Marx, 1986, p.69, grifos nossos).
5 O Riksbank, da Suécia, fundado em 1668, e o Banco de Londres, fundado em 1694, são considerados
os primeiros Bancos Centrais. Este último, cuja origem é privada, passou a exercer gradativamente,
a partir de leis reguladoras, as funções de financiador do governo, de emissor monetário e guardião
das reservas, e posteriormente de redesconto e de emprestador de última instância. Foi estatizado
em 1946. A maior parte dos países capitalistas criaram seus Bancos Centrais na primeira metade
do século XX (Freitas, 2000).
6 Trata-se, segundo Prado (2013, p.139), de “uma forma de valor que ‘não’ possui valor, pois ape-
nas o representa”; ao apresentar tal categoria, o autor estabelece uma analogia com o conceito
de capital fictício, “uma representação nominal de capital inexistente”, pois “mesmo não sendo
efetivamente real, o capital fictício é negociável como se o fosse, ou seja, ele ‘circula normalmente
como valor-capital’” (p.148).
11 Tratava-se de criar “um sistema de pagamento eletrônico baseado em provas criptográficas em vez
da confiança, permitindo que duas partes interessadas quaisquer pudessem transacionar diretamente
entre si sem a necessidade da sanção de uma terceira parte” (Nakamoto, 2008).
12 “O público pode ver que alguém está enviando um montante [de bitcoins] para outra pessoa, mas
sem a informação ligando essa transação a alguém” (Nakamoto, 2008).
13 Que foi projetado para ter um tamanho máximo de um megabyte, o que equivale a cerca de sete
transações por segundo. Essa limitação serviria para evitar a proliferação de transações falsas
(spams) e para permitir a sua verificação por computadores domésticos, de modo a preservar a
descentralização do sistema.
14 A despeito da sofisticação do sistema, ele está longe de ser inexpugnável. Ao contrário, já foram
relatadas inúmeras fraudes; só para citar algumas: a) desaparecimento de US$ 31 milhões da car-
teira da Tether, a empresa que gere a moeda virtual USDT, em 21 de novembro de 2017; b) roubo
de mais de R$ 15 milhões em criptomoedas da Youbit, empresa sul-coreana de compra e venda de
criptomoedas, em abril de 2017, e de 17% de suas divisas digitais, em dezembro do mesmo ano, o
que resultou em sua falência, e repercutiu sobre as cotações de outras criptomoedas nos mercados
asiáticos (o bitcoin, por exemplo, caiu 15%; ver: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/20/inter-
nacional/1513760990_056377.html); c) roubo de US$ 60 milhões da plataforma de mineração
NiceHash, em 6 de dezembro de 2017; d) em julho de 2017, US$ 32 milhões foram roubados da
empresa Parity, em ethereum; e) roubo de 120 mil bitcoins (equivalente a US$ 72 milhões) da casa
de câmbio Bitfinex, em agosto de 2016; f) roubo de 19 mil bitcoins da carteira da Bitstamp, uma
espécie de bolsa de criptomoedas, que correspondia a US$ 5,1 milhões em janeiro de 2015; g)
roubo de US$ 473 milhões em bitcoins da MtGox, que à época, março de 2014, concentrava mais
de 70% das transações em bitcoins de todo o mundo; h) ainda em seus primórdios, em agosto de
2010, o desenvolvedor do Bitcoin Core, Jeff Garzik, percebeu que um hacker realizou uma transação
de 184 bilhões de bitcoins em apenas um bloco. Cabe destacar o roubo de US$ 101 milhões em
ethereum em junho de 2016, que fez com que o criador e CEO da Ethereum, Vitalik Buterin (que
tinha apenas 19 anos quando criou a criptomoeda, em 2015), reiniciasse o sistema, retrocedendo
no tempo para o momento antes do roubo. Com essa alteração na própria blockchain, tida como
definitiva e inexpugnável, abalou-se a noção de que as criptomoedas são imunes aos desígnios
de qualquer tipo de autoridade monetária. Para esses e outros roubos, ver, por exemplo: https://
portaldobitcoin.com/os-maiores-roubos-de-criptomoedas/.
15 Diga-se de passagem, uma das alegadas vantagens das criptomoedas, um suposto barateamento dos
custos de transações graças ao seu caráter descentralizado, parece não se sustentar, ao menos no
curto prazo. De acordo com estimativas de Malmo (2015), uma transação com bitcoins gastava, em
2015, cinco mil vezes mais energia elétrica do que uma transação com cartão de crédito, e gastava
diariamente, em média, o equivalente da eletricidade consumida por 1,5 família norte-americana.
Ou ainda, segundo Roberts (2017), a “mineração de bitcoins já está consumindo mais energia
computacional do que o consumo anual [de eletricidade] da Irlanda”. E, sob o atual padrão tec-
nológico, esse gasto tenderia a aumentar fortemente com o passar do tempo. Ademais, da maneira
como está constituído, o sistema do bitcoin pode realizar no máximo o irrisório número de sete
transações por segundo, enquanto o sistema do cartão de crédito Visa pode chegar hoje a 56 mil
transações por segundo.
16 A primeira negociação envolvendo o bitcoin ocorreu na segunda metade de 2009, a uma taxa de
1 BTC = 0,0007 dólar, que seria o seu custo estimado da produção, considerando a capacidade
computacional e a energia então exigidas para tanto.
17 Por exemplo, se o custo de impressão de uma nota de US$ 100 fosse de US$ 1, a senhoriagem
seria de US$ 99, pois o agente emissor poderia comprar mercadorias e serviços ou pagar dívidas e
empréstimos no valor nominal da nota impressa. Atualmente, a senhoriagem é estimada por meio
de uma taxa média de juros que incide sobre os títulos da dívida pública, pois a criação de dinheiro
em todo o mundo é efetuada através dos registros de operações contábeis entre o sistema bancário
e o resto da economia.
20 A lista das pessoas e empresas que o aceitam como meio de circulação ou meio de pagamento
pode ser consultada em: https://coinmap.org/#/world/29.53522956/-19.33593750/2. Por exem-
plo, recentemente uma construtora brasileira, a Valor Real (!) Empreendimentos Imobiliários,
passou a aceitar pagamento em criptomoedas em imóveis do Programa Minha Casa Minha Vida.
Ver: http://www.infomoney.com.br/mercados/bitcoin/noticia/7144657/construtora-brasileira-acei-
ta-pagamento-criptomoedas-imoveis-minha-casa-minha-vida.
21 O moderno sistema de crédito foi capaz de ultrapassar todas essas exigências do processo de
circulação das mercadorias-capital.
22 O entesouramento sob a forma de dinheiro metálico ou mesmo de notas bancárias, além de servir
como uma forma de acumulação de riqueza, também exercia um papel importante na regulação
da quantidade necessária de dinheiro para a realização do valor das mercadorias no processo de
circulação do capital. Cada vez que o compartimento de circulação de mercadorias exigia mais
dinheiro, uma parte do dinheiro entesourado era desentesourado, entrando no processo de meta-
morfose da riqueza. Todo o dinheiro excedente, desnecessário à circulação, voltava aos tesouros
particulares dos possuidores de riqueza, bancos, empresas ou famílias.
23 “O dinheiro como tal já é potencialmente valor que se valoriza, e como tal é emprestado, o que
constitui a forma de venda dessa mercadoria peculiar. Torna-se assim propriedade do dinheiro criar
valor, proporcionar juros, assim como a de uma pereira é dar peras. E como tal coisa portadora
de juros, o prestamista de dinheiro vende seu dinheiro. Mas isso não é tudo. O capital realmente
funcionante se apresenta, conforme se viu, de tal modo que proporciona o juro não como capital
funcionante, mas como capital em si, como capital monetário” (Marx, 1986, p.294).
26 A esse respeito, cabe recordar Herbert Marcuse (1998, p.132): “O conceito de razão técnica é
talvez em si mesmo ideologia. Não só a sua aplicação, mas já a própria técnica é dominação
metódica, científica, calculada e calculante (sobre a natureza e sobre o homem). Determinados
fins e interesses da dominação não são outorgados à técnica apenas ‘posteriormente’ e a partir de
fora – já se inserem na própria construção do aparelho técnico”.
27 Cf. Ben Gliniecki (2014).
o ouro e a prata não possuem apenas o caráter negativo de objetos supérfluos, sem
utilidade prática; suas qualidades estéticas fazem deles a matéria natural do luxo,
do adorno, da suntuosidade, da roupa domingueira, em resumo, a forma positiva
da superabundância e da riqueza. Aos nossos olhos, eles aparecem como a luz
virginal arrancada às entranhas da terra: a prata refletindo todos os raios luminosos
em sua mistura original, o ouro refletindo apenas a mais elevada potência da cor, o
vermelho. Ora, o sentido das cores é a forma mais popular do sentido estético em
geral. A conexão etimológica dos nomes dos metais preciosos com os nomes das
cores, nas diferentes línguas indo-germânicas, foi demonstrada por Jacob Grimm.
(Ver a sua História da língua alemã) (Marx, 1982, p.111, tradução modificada com
base em Romano, 2004, p.16)28
Nem mesmo isso pode ser dito do fetichismo próprio às criptomoedas, que
repõe o fetichismo do ouro como mero simulacro. Seus eventuais méritos tecno-
lógicos e técnicos são forçosamente subsumidos à febre especulativa, aguda em
particular nos contextos como o atual, marcado por imensas massas de capital
sobreacumulado e por uma reprodução ampliada claudicante, em escala mundial.
Longe de serem uma saída para as contradições do capitalismo contemporâneo, as
criptomoedas são, a um só tempo, seu produto e alimento. Mais temível do que a
esfinge, não basta decifrar o enigma dessas formas sociais tresloucadas; enquanto
não se superar os seus fundamentos, seguiremos sendo devorados.29
28 Ao que comenta Romano (2004, p.16): “Sob o mecanismo e o intelecto impiedoso, existem corpos
vivos, almas que sentem e vibram com o belo e o verdadeiro. Corpos que, se pudessem, envergariam
cosméticos com muito luxo, enfeites, suntuosas roupas domingueiras. Almas que se desdobrariam
no devaneio dos sonhos despertados pelos cinco sentidos, em todas as artes. Mas o capitalismo
impede a festa somática e anímica. Ele produz o seu oposto”.
29 Como se disse alhures (Nakatani e Mello, 2018), “a deificação do ouro, que conduziu ao extermínio
e à escravidão e ao suplício de milhões ao longo da história do capitalismo, e que nalguns lugares
continua catalisando conflitos militares, genocídios, e submetendo multidões a condições aviltantes
de trabalho; tal deificação, dizíamos, ressurge aqui como farsa, uma pseudonostalgia, uma ode ao
fetichismo, que assume as formas mais tresloucadas de manifestação”.
Resumo
As vertiginosas flutuações na cotação do bitcoin e de outras criptomoedas,
sobretudo a partir da segunda metade de 2016, estimularam amplos debates aca-
dêmicos e midiáticos em torno de sua natureza e de suas perspectivas num futuro
próximo: trata-se rigorosamente de moedas? Possuem potencial de suplantar as
moedas nacionais ou mesmo de usurpar do dólar o estatuto de dinheiro mundial?
Seriam ativos meramente especulativos? Neste artigo, tais questões serão consi-
deradas à luz da crítica marxiana da economia política, em particular da análise
marxiana sobre o dinheiro e suas distintas determinações. Além de lançar luz
sobre a atual configuração do dinheiro e sobre algumas salientes características do
capitalismo contemporâneo, que em meio às sucessivas crises de sobreacumulação
catapulta a sua dimensão financeira, pretende-se retomar a crítica de Marx ao
fetichismo do dinheiro como chave para compreender a existência e a dinâmica
de produção das criptomoedas.
Palavras-chave: criptomoedas; fetichismo; capitalismo contemporâneo; Marx.
Abstract
The dizzying fluctuations in the price of bitcoin and other cryptocurrencies,
especially since the second half of 2016, have stimulated broad academic and
media debates about their nature and prospects in the near future: are they strictly
currencies? Do they have the potential to supplant national currencies or even to
usurp the world money statute from the dollar? Was it a merely speculative asset?
In this article, such questions will be considered in the light of the Marxian critique
of political economy, in particular the Marxian analysis of money and its various
determinations. In addition to shedding light on the current configuration of money
and on some salient features of contemporary capitalism, which amidst successive
crises of over-accumulation catapults its financial dimension, it is intended to re-
take Marx’s critique of money fetishism as a key to understand the existence and
dynamics of cryptocurrencies production.
Keywords: cryptocurrencies; fetishism; contemporary capitalism; Marx.