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qual alguém me perguntou por que Nelson Rodrigues não trabalhava com temas
políticos. Pego de surpreso pela pergunta, logo percebi que o que o sujeito queria era
acusar Nelson de reacionário. Então, respondi que os temas que Nelson trabalhava
eram profundamente políticos, na medida em que o dramaturgo lidava
fundamentalmente com aquilo que move o homem em direção às outras pessoas: o
desejo.
Política é uma palavra que se refere às ações públicas, às relações entre indivíduos que
visam à vida em coletividade; que procuram uma relação em sociedade. E o primeiro
núcleo social ao qual pertencemos é a família. É neste primeiro núcleo que nos damos
conta de que é necessário respeitar normas de conduta e de relacionamento. É ali que
percebemos que os desejos devem ser controlados em função do bom funcionamento
daquela pequena sociedade. E, se os limites dentro deste núcleo forem respeitados, se
os desejos individuais passarem por um filtro que seleciona aqueles que podem vir à
tona, os que podem ou não podem ser revelados, então a sociedade será preservada e,
provavelmente, a cidade em torno daquela família também poderá receber estes
indivíduos e colocar esta família em relação com outras famílias.
Entretanto, Nelson não trata do bom relacionamento familiar. Uma família saudável
não é um bom ingrediente para a construção teatral. É numa fala do Peixoto, de
Bonitinha, mas ordinária, que Nelson sintetiza a boa fonte dramática:
É sobre esta idéia que Nelson vai construir sua obra. Sobre o desejo que se sobrepõe à
contenção, à ordem. É a desmedida grega adaptada à nossa época cristã pós Freud. É
o desejo, entendido como algo irrefreável que se constitui em erro trágico que leva ao
desequilíbrio e, conseqüentemente, à desgraça do indivíduo frente ao núcleo social. É
quando a família começa a apodrecer que a tragédia rodriguiana se inicia.
1
Teatro completo. Volume 4 – tragédias cariocas II. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2004.
2
Texto que Nelson escreveu sobre sua obra, publicado no primeiro número da revista Dionysos, editada
pelo então Serviço Nacional de Teatro em outubro de 1949 e republicado, em 1998, na revista Folhetim nº 7
editada pelo Teatro do Pequeno Gesto.
transgressão a uma ordem social comum. Criam, inclusive, uma atmosfera surreal na
intenção de dar concretude teatral, realidade ao drama. Nelson as chama de peças
desagradáveis “porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir
o tifo e a malária na platéia”3. Portanto, longe de querer fazer da podridão familiar um
exemplo retórico e moral, ela aqui é uma ação que nos leva a refletir sobre os limites
do desejo e sobre o prazer da transgressão.
Assim, retorno àquela questão do pernambucano que me fez buscar, agora, sete anos
depois, uma dimensão política na obra de Nelson: toda intimidade tornada ação é
política porque leva o indivíduo a uma decisão em relação a outro indivíduo e interfere
no destino tanto daquele que age quanto na vida de todos em torno dele. A tragédia
rodriguiana é, portanto, política porque insere o indivíduo na dimensão do limite entre
o desejo e a preservação de valores éticos e morais. E a família em Nelson é o lugar
onde este limite adquire visibilidade.
Antonio Guedes
julho de 2005
3
In Teatro desagradável.
4
Se o espaço permitisse, falaria ainda de Boca de ouro, que apresenta uma figura mitológica que é
construída através de um relato que varia de acordo com o estado de ânimo de D. Guigui e dimensiona a
influência do bicheiro no âmbito da cidade.