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Universidade Federal do Paraná

Programa de Pós-Graduação em Direito


Teoria do Estado
Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca
Aluno: João Antonio T. Fachinello

Texto: FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo:


Martins Fontes, 1999. Capítulos, 1, 2, 3 e 11.

Aula de 7 de janeiro de 1976

Foucault inicia sua aula de 7 de janeiro de 1976, no Collége de France,


caracterizando tal instituição como um organismo de pesquisa. O motivo de se estar
ali, para Foucault era muito mais que uma simples aula, era uma prestação de
contas por meio de declaração pública sobre a pesquisa desenvolvida. Era também
um tipo de apelo ou ao menos uma tentativa de despertar os alunos para com a
pesquisa. Nesse sentido, nas palavras do autor:

“Portanto, não considero estas reuniões de quarta-feira como atividades


de ensino, mas antes como espécies de prestações de contas públicas de um
trabalho… nessa medida, igualmente considero-os inteiramente livres para fazer,
como o que eu digo, o que quiserem“. (FOUCAULT, 1999 p. 3)

Para começar a discorrer sobre o assunto de sua pesquisa, Focault faz


uma breve respectiva de suas pesquisas e trabalhos anteriores, dentre eles citados
pelo autor como: a história do procedimento penal, a evolução e institucionalização
da psiquiatria, a história da sexualidade etc, sempre demonstrando que o que ele
produz não é imutável e nem um dogma e sim um caminho que pode ser seguido ou
não, modificado ou até mesmo negado completamente por aqueles que o ouvem.

Sobre o tema a ser tratado, Foucault situa sua pesquisa como resultado
de um certo período, muito limitado, que é aquele que teram acabado de viver, os
dez ou quinze, no máximo vinte últimos anos, período no qual se podem notar dois
fenômenos.

O primeiro deles, segundo Foucault, “foi um período caraterizado por


aquilo que poderíamos chamar de eficácia das ofensivas dispersas e descontínuas.”
(FOUCAULT, 1999 p.8)

Para explicar esse fenômeno o autor considera a estranha eficácia do


funcionamento da instituição da psiquiatria, dos discursos da antipsiquiatria,
aplicados à inicial análise ao marxismo e à teoria de Reiche. Também notou que nos
últimos anos vinha cresciam as críticas às instituições engessadas e hierarquizadas.

Assim conclui a análise dessa primeira fase:


“Portanto, eu diria isto: nos últimos dez ou quinze anos, a imensa e
prolífera criticabilidade das coisas, das instituições, das práticas, dos discursos;
umas espécie de friabilidade feral dos solos, mesmo, talvez sobretudo, os mais
familiares, os mais sólidos e mais próximos de nosso corpo, de nossos gestos de
todos os dias; e isso que aparece. Mas, ao mesmo tempo que essa friabilidade e
essa espantosa eficácia das criticas descontinuas e particulares, locais, descobre-
se, por isso mesmo, nos fatos, algo que talvez não estivesse previsto no inicio: seria
0 que se poderia chamar de efeito inibidor próprio das teorias totalitárias, quero
dizer, em todo caso, das teorias envolventes e globais. Não que essas teorias
envolventes e globais não tenham fornecido e não forneçam ainda, de urna maneira
bastante constante, instrumentos localmente utilizáveis: o marxismo, a psicanálise
estão precisamente aí para prová-Io. Mas elas só forneceram, acho eu, esses
instrumentos localmente utilizáveis com a condição, justamente, de que a unidade
teórica do discurso fique como que suspensa, em todo caso recortada, cindida,
picada, remexida, deslocada, caricaturada, representada, teatralizada, etc. (...)
Primeira característica do que aconteceu durante estes quinze anos: caráter local da
crítica, o que não quer dizer, creio eu, empirismo obtuso, ingênuo ou simplório”.
(FOUCAULT, 1999, p.10)

No segundo fenômeno ou autor nota que existe uma grande


mutabilidade do que seria o saber ou a real verdade, momento esse que ele chama
de “reviravoltas do saber”. Isso traz à tona novamente os chamados “saberes
sujeitados” que podem, para o autor, dois significados. Em primeiro, seriam blocos
de saberes históricos que estavam presentes e disfarçados no interior dos conjuntos
funcionais e sistemáticos, e que a critica pode fazer reaparecer pelos meios, e claro,
da erudição. Em segundo, seriam justamente os saberes que estavam
desqualificados como saberes não conceituais, como saberes insuficientemente
elaborados: saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo
do nível do conhecimento ou da cientificidade requeridos. Também se refere como o
saber das pessoas (do médico, e não o saber médico). O acoplamento paradoxal
entre “os saberes sepultados da erudição e os saberes desqualificados pela
hierarquia dos conhecimentos e das ciências” (FOUCAULT, 1999, p. 12) conferiu à
crítica sua força e contundência. Nessa intercessão entre saberes, avultou-se o
“saber histórico das lutas”, em que “jazia a memória dos combates, aquela
precisamente, que até então tinha sido mantida sob tutela” (FOUCAULT, 1999, p.
13). Foucault chama de genealogia “o acoplamento dos conhecimentos eruditos e
das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico
das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais.” (Foucault, 1999, p.13). E a
genealogia, nesse sentido, “Trata-se, na verdade, de fazer que intervenham saberes
locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teoria
unitária que pretenderia filtra-los, e hierarquizá-los, ordená-los em nome de um
conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída
por alguns”, ou seja, ele deixa claro que não se trata de retornos positivistas a uma
forma de ciência mais pura e exata e sim de uma anticiência que vem a se opor
contra as opressões que um conhecimento totalitário e detidos por poucos provoca.
É exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado
cientifico que a genealogia deve travar o combate.
A genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos
saberes na hierarquia do poder próprio da ciência, uma espécie de empreendimento
para dessujeitar os saberes históricos e torná-Ios livres, isto e, capazes de oposição
e de luta contra a coerção de um discurso teórico unitário, formal e científico.
Continua o autor:

“A reativação dos saberes locais (...) contra a hierarquização cientifica do


conhecimento e seus efeitos de poder intrínsecos, esse é o projeto dessas
genealogias em desordem e picadinhas. Eu diria em duas palavras o seguinte: a
arqueologia seria o método próprio da analise das discursividades locais, e a
genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim
descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem.” (FOUCAULT, 1999,
p.15 - 16).

O autor indica, contudo, para mudanças nessa conjuntura. Quer dizer


que, em comparação com a situação que conhecemos cinco, dez ou ate quinze
anos atrás, as coisas talvez tenham mudado. O autor apresenta um certo risco de
esses novos saberes serem colonizados pelo discurso unitário. E logo faz um
contraponto, sobre a vontade de continuar, tendo em vista que esse fenômeno de
colonização parece ainda não ter chego. Na verdade, as coisas são tais que esses
fragmentos de genealogia que foram feitos continuam aí, cercados de um silêncio
prudente. O silêncio, ou melhor, a prudência com que as teorias unitárias evitam a
genealogia dos saberes talvez fosse, pois, uma razão para continuar. Poderíamos,
em todo caso, multiplicar assim os fragmentos genealógicos como outras tantas
armadilhas, questões, desafios, como vocês quiserem. Mas, sem dúvida, é otimista
demais, a partir do momenta em que se trata, afinal de contas, de urna batalha - de
urna batalha dos saberes contra os efeitos de poder do discurso cientifico -, tomar o
silencio do adversário como prova de que lhe metemos medo. Agora, o problema
não é dar um solo teórico contínuo e sólido a todas as genealogias dispersas, mas
tentar precisar ou delinear o que está em jogo nesse pôr em oposição, nesse pôr em
luta, nesse pôr em insurreição os saberes contra a instituição e os efeitos de saber e
de poder do discurso científico. E o autor comenta:

“O que está em jogo é determinar quais são, em seus mecanismos, em


seus efeitos, em suas relações, esses diferentes dispositivos de poder que se
exercem, em níveis diferentes da sociedade, em campos e com extensões tão
variadas. Grosso modo, acho que o que está em jogo em tudo isso é o seguinte: a
análise do poder, ou a análise dos poderes, pode, de urna maneira ou de outra, ser
deduzida da economia?” (FOUCAULT, 1999, p. 19).

Autor encontra um ponto comum entre a concepção jurídica e liberal do


poder politico e a concepção marxista, que seria justamente o economicismo na
teoria do poder. Na teoria clássica do poder, o poder é aquele, concreto, que todo
individuo detém e que viria a ceder, total ou parcialmente, para constituir urn poder,
urna soberania política. Haveria uma operação jurídica de troca contratual. De outro
lado, no marxismo, teríamos na ideia de poder o conceito de "Funcionalidade
economica", na medida em que o papel essencial do poder seria manter relações de
produção e, ao mesmo tempo, reconduzir uma dominação de classe que o
desenvolvimento e as modalidades próprias da apropriação das forças produtivas
tornaram possivel. Neste caso, o poder político encontraria na economia sua razão
de ser histórica.

Pergunta o autor se o poder está sempre numa posição secundária em


relação à economia? E sempre finalizado e como que funcionalizado pela
economia?

A partir do momento em que tentamos nos libertar dos esquemas


econômicos para analisar o poder, encontramo-nos imediatamente em face de duas
hipóteses maciças: de uma parte, o mecanismo do poder seria a repressão e em
segundo lugar, o fundamento da relação de poder é o enfrentamento belicoso das
forças.

Afirma o autor a existência de dois esquemas de análise de poder: o


esquema contrato-opressão, que é, o esquema jurídico e o esquema guerra-
opressão, no qual a oposição pertinente não é a do legitimo e ilegítimo, mas a
oposição entre luta e submissão.

O poder tem a incumbência de defender a sociedade, deve-se ou não


entender que a sociedade em sua estrutura política é organizada de maneira que
alguns possam se defender contra os outros, ou defender sua dominação contra a
revolta dos outros, ou simplesmente ainda, defender sua vitória e perenizá-la na
sujeição?

Aula 14 de janeiro de 1976

Foucault, ao propor um ensaio da aula 14 de Janeiro de 1976, busca


fazer uma análise crítica “da guerra como princípio eventual de análise das relações
de poder”, ou seja, de como a utilização desse mecanismo embasa todo o esquema
político e jurídico das sociedades.

O mapa conceitual aqui então proposto, foi dividido em duas partes. A


primeira abrange de uma forma mais genérica como se dá essa relação entre poder,
direito e verdade, quais simplificações surgem a partir desse contexto político e
como podemos prever algumas consequências desse triângulo. Na segunda parte,
no entanto, a proposta é trazer, de forma mais explícita, os dois métodos tratados
por Foucault (soberania e dominação) e as precauções do método propostas por ele
para alcançarmos o método de dominação em detrimento ao de soberania.

O ponto departida de sua análise foi o triângulo da política liberal, no


qual o poder está no topo, intermediado pelo Direito e pela verdade em sua base. A
ideia central é de que o poder precisa dessa legitimação jurídica de uma dada
verdade para própria ratificação.

Em nossa sociedade, múltiplas relações de poder perpassam,


caracterizam, constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem se
estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação,
um funcionamento do discurso verdadeiro. Não há exercício do poder sem uma
certa economia dos discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e
através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos
exercer o poder mediante a produção da verdade.

O poder não para de questionar, de nos questionar; não para de inquirir,


de registrar; ele institucionaliza a busca da verdade, a profissionaliza, a recompensa.
Temos de produzir a verdade como temos que produzir riquezas. E de outro lado,
somos igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma.
Trata-se do discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide, veiculando ele
próprio, efeitos de poder.

Para Foucault o poder deve ser analisado como uma coisa que circula,
ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está localizado
em um local especifico, nas mãos de alguns, ou apossado como uma riqueza ou
bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os
indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder
e também de exercê-lo; jamais são o alvo inerte ou consentidor do poder, são
sempre seus intermediários.

Essa teoria e a organização de um código jurídico centrado nela


permitiram sobrepor aos mecanismos da disciplina um sistema de direito que
mascarava os procedimentos dela, que apagava o que podia haver de dominação e
de técnicas de dominação na disciplina e, enfim, que garantia a cada qual que ele
exercia, através da soberania do Estado.

Em outras palavras os sistemas jurídicos, sejam teorias ou códigos,


permitiram uma democratização da soberania, a implantação de um direito público
articulado a partir da soberania coletiva, no mesmo momento, na medida em que e
porque essa democratização da soberania se encontrava lastrada em profundidade
pelos mecanismos da coerção disciplinar. De uma forma mais densa, poderíamos
dizer o seguinte: uma vez que as coerções disciplinares deviam ao mesmo temo
exercer-se como mecanismo de dominação e ser escondidas como exercício efetivo
do poder, era preciso que fosse apresentada no aparelho jurídico e reativada,
concluída, pelos códigos judiciários, a teoria da soberania.

O poder se exerce, nas sociedades modernas, através a partir do e no


próprio jogo dessa heterogeneidade entre um direito público da soberania e uma
mecânica polimorfa da disciplina.

O discurso da disciplina é alheio ao da lei; é alheio ao da regra como


efeito da vontade soberana, portanto, as disciplinas vão trazer um discurso que será
o da regra; não o da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra natural,
insto é, da norma. Elas definirão um código que será aquele, não da lei, mas da
normalização. Se referem necessariamente a um horizonte teórico que não será o
edifício do direito, mas o campo das ciências humanas.
Atualmente, o poder se exerce ao mesmo tempo através desse direito e
dessas técnicas, que essas técnicas da disciplina, que esses discursos nascidos da
disciplina invada o direito, que os procedimentos de normalização colonizem cada
vez mais os procedimentos da lei, é isso que pode explicar o funcionamento de uma
“sociedade de normalização”.

Aula de 21 de janeiro de 1976


A teoria da soberania é o ciclo do sujeito ao sujeito, o ciclo do poder e
dos poderes, o ciclo da legitimidade e da lei. A teoria da soberania pressupõe o
sujeito: ela visa fundamentar a unidade essencial do poder e se desenvolve sempre
no elemento preliminar da lei.

Não procurar uma espécie de soberania doente dos poderes, ao


contrário, mostrar como os diferentes operadores de dominação se apoiam uns nos
outros, remetem uns aos outros, em certo número de casos se fortalecem e
convergem, noutros casos se negam ou tendem a anular-se. (p. 39)

Em vez da tríplice da lei, da unidade e do sujeito, Foucault entende que


é necessário adotar o ponto de vista tríplice das técnicas, da heterogeneidade das
técnicas e de seus efeitos de sujeição, que fazem dos procedimentos de dominação
a trama efetiva das relações de poder e dos grades aparelhos de poder. (p. 39)

A questão principal objeto de estudo de Foucault é como, desde quando


e por que se começou a perceber ou a imaginar que é a guerra que funciona sob e
nas relações de poder. O aparecimento do exército como instituição, que, no fundo,
não existia como tal na Idade Média. É somente na saída da Idade Média que se vê
emergir um Estado dotado de instituições militares que vieram se substituir à prática
cotidiana, global da guerra, e a uma sociedade eterna perpassada por relações
guerreiras.

A organização jurídica, a estrutura jurídica do poder, dos Estados, das


monarquias, das sociedades, não têm seu princípio no ponto em que cessa o ruído
das armas. A guerra não é conjurada.

A verdade é uma verdade que só pode se manifestar a partir de sua


posição de combate, a partir da vitória buscada, de certo modo no limite da própria
sobrevivência do sujeito que está falando. (p. 45)

Temos um discurso histórico e político e é nisso que ele é historicamente


arraigado e politicamente descentralizado que tem pretensão à verdade e ao justo
direito, a partir de uma relação de força, para o próprio desenvolvimento dessa
relação de força, excluindo, por conseguinte o sujeito que está falando da
universidade jurídico filosófica e falando do direito e procurando a verdade. (p. 46)

Trata-se, antes, de impor um direito marcado pela dissimetria, de fundar


uma verdade vinculada a uma relação de força, uma verdade-arma e um direito
singular. (p. 46)
A guerra que se desenrola assim sob a ordem e sob a paz, a guerra que
solapa a nossa sociedade e a divide de um modo binário é, no fundo, a guerra das
raças.

Outra raça no fundo não é aquela que veio de outro lugar, não é aquela
que, por uns tempos, triunfou e dominou, mas aquela que, permanente e
continuamente, se infiltra no corpo social, ou melhor, se recria permanentemente, no
tecido social e a partir dele.

Aparece nesse momento um racismo de Estado: um racismo que uma


sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre os seus próprios elementos, sobre
seus próprios produtos; um racismo interno, o da purificação permanente, que será
uma das dimensões fundamentais da normalização social.

Aula de 17 de março de 1976

Na aula de 17 de março Foucault fala sobre o surgimento de uma nova


forma de poder, na verdade, sobre novas tecnologias do poder que surgem a partir
da metade do século XVIII. Foucault chama de biopoder, a biopolítica, o que não se
contrapõe às tecnologias da disciplina do corpo, mas que coexiste.

Nos séculos XVII e XVIII as técnicas de poder são centradas no corpo,


no individual, se realizam a partir de treinamentos, exercícios, a vigilância, a
hierarquia, a inspeção, os relatórios. Foucault fala sobre a soberania clássica, em
que os súditos não tinham direito a vida ou a morte, ele é simplesmente neutro,
porque o soberano pode tirar a sua vida na hora que quiser, o soberano tem o
“direito de fazer morrer ou de deixar viver”.

A partir da metade do século XVIII surge essa nova tecnologia do poder


que se integra à anterior (disciplina do corpo), ela não é disciplinar, pois não se
dirige ao corpo do homem, mas à sua vida; mas não à uma vida específica, e é
exatamente esse o refinamento desta nova técnica. A nova tecnologia se instala e
se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em
corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada
por processos de conjunto que são próprios da vida – como o nascimento, a morte,
a vida. Surge então um elemento novo, um “corpo múltiplo”: a população. A
população passa a ser um problema político, científico, biológico, um problema de
poder; é passível de análise, possui fenômenos coletivos em que é possível
estabelecer constantes, observar fenômenos em série. Para tal, a biopolítica irá
implantar mecanismos, como previsões, estimativas, estatísticas; estes mecanismos
possibilitaram a otimização do estado da vida, ou seja, a partir deles foi possível
regulamentar a vida. A biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos
aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração.

Aquém do grande poder absoluto, dramático, sóbrio que era o poder da


soberania e que consistia em poder fazer morrer eis que aparece agora, com essa
tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a população enquanto
tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder continuo, científico, que é o poder
de “fazer viver”. Agora aparece um poder que é de regulamentação e que consiste,
ao contrário do anterior, em fazer viver e deixar morrer. Isso porque o que poder tem
domínio não é a morte é a mortalidade.

A partir dai surge o poder de “fazer viver” e “deixar morrer”, e a morte é


desqualificada, não é mais um ritual, uma cerimônia que todos participam, ela passa
a ser privada, segundo Foucault, ela é quase uma vergonha, e a transformação nas
tecnologias do poder deixam de lado a morte e passam a prestar atenção na
mortalidade. Para ilustrar essa passagem ele fala sobre a morte de Franco, um
ditador sanguinário que tinha o direito absoluto de fazer morrer, mas que morre
nessa nova morte privada, em um tempo em que o poder faz o indivíduo viver
mesmo além de sua morte.

É uma tecnologia que visa, portanto, não o homem individual, mas, pelo
equilíbrio global, algo como uma homeostase: a segurança do conjunto em relação
aos seus perigos internos.

Resumidamente, a tecnologia disciplinar do corpo é centrada no corpo,


produz e procura efeitos individuais, gera força, utilidade, docilidade do corpo; a
tecnologia regulamentadora da vida é centrada na vida, produz efeitos de massa, na
população, procura controlar eventos, suas probabilidades e efeitos, tem como
objetivo o equilíbrio global e age através da previdência. Apesar de suas diferenças,
elas não se excluem e atuam ao mesmo tempo. Para mostrar isso Foucault fala
sobre a cidade operária, em que as tecnologias do corpo e da regulamentação
coexistem; os corpos são controlados com a localização das famílias, dos indivíduos
em suas casas e cômodos individuais, a biopolítica regulamenta os comportamentos
da população para garantir a longevidade, com regras de higiene, a casa própria e
etc.

A tecnologia regulamentadora da vida tem como objetivo “fazer viver”, e


é através dessa ideia que a medicina se torna um saber-poder, o saber técnico da
medicina e da higiene agem como efeitos regulamentadores sobre a população e o
corpo e se tornam uma técnica política de intervenção.

Em outros termos, os mecanismos disciplinares de poder e os


mecanismos regulamentadores de poder, os mecanismos disciplinares do corpo e
os mecanismos regulamentadores a população, são articulados um com o outro. A
norma é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se que disciplinar quanto a uma
população que se quer regulamentar.

O que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi a emergência


desse biopoder. Foi nesse momento que o racismo se inseriu como um mecanismo
fundamental do poder, tal como se exerce nos estados modernos. A emergência de
um motivo (o racismo) para poder matar (fazer morrer) enquanto que “deixa viver” –
como se pensava antes, no paradigma da sobernia. O racismo se torna um
mecanismo fundamental do poder, pois ele é a forma de fragmentar a população,
ele permite uma relação positiva em que para viver é preciso que você faça morrer,
nesse caso, a morte se torna aceitável.
No continuo biológico da espécie humana, o aparecimento, distinção e
hierarquia das raças, bem como a qualificação de certas raças como boas e de
outras como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo
biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da
população, uns grupos em relação a outros. Em resumo, de estabelecer uma
censura que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como
sendo precisamente um domínio biológico. A morte do outro não é simplesmente a
minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a
morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, do anormal), é o que vai
deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura.

O racismo que significa a aceitação de se tirar uma vida, na medida em


que “ a morte do outro é um fortalecimento biológico”, através da teoria de Darwin,
de como o evolucionismo se torna o motivo das guerras. O nazismo é o exemplo
perfeito para essa nova forma de poder, que converge as tecnologias do poder e da
regulamentação, em que o racismo é levado ao seu extremo, ele justifica não só
matar o outro, mas expõe também sua própria população à morte e dessa forma
sobrariam somente aqueles que são superiores.

Nessas condições, compreende-se como e por que, os estados mais


assassinos são, ao mesmo tempo, também os mais racistas. Não é simplesmente a
destruição das outras raças que é o objetivo do regime nazista. Isto é uma das faces
do projeto sendo a outra face expor sua própria raça ao perigo absoluto e universal
da morte.

Por fim, analisa também as sociedades de regime socialista, afirmando


que também nestes se encontra o racismo, uma vez que o tema do biopoder
também foi retomado. E põe, ao final, a pergunta: Como se pode fazer um biopoder
funcionar e ao mesmo tempo exercer os direitos da guerra, os direitos do assassínio
e da função da morte, senão passando pelo racismo?

Texto: ESPÓSITO, Roberto. Bios: biopolítica e filosofia. Lisboa:


Edições 70, p. 29-115.

1. O Enigma da Biopolítica
1.1 Bio/política

O autor dá início ao texto destacando que a noção de biopolítica se


instalou no centro do debate internacional e abriu uma nova fase da reflexão
contemporânea. Desde que Foucault repropôs e requalificou o conceito todo o
quadro da filosofia política se modificou. Não saíram de cena as categorias
clássicas, mas seu efeito passou a estar cada vez mais desprovido de uma real
capacidade interpretativa.
Em poucas palavras, direito e política aparecem cada vez mais
envolvidos em qualquer coisa que excede a sua designação habitual, para fora da
dimensão do seu aparelho conceitual. Esta turbulência é justamente o objeto da
biopolítica.

O conceito de biopolítica aparece atravessado por uma incerteza, uma


inquietação, que o impede de qualquer conotação estável. Também questiona o que
se deve entender por bios e como há de ser pensada uma política que lhe seja
diretamente dirigida.

A política penetra diretamente na vida, entretanto, a vida tornou-se outra


coisa por si só. E então, se não existe uma vida natural que não seja, ao mesmo
tempo, também técnica. O que fica claro, no entanto, é a sua determinação
negativa, o que não significa. A política sofre um deslocamento do seu objeto. Por
um lado, se esmoronam as distinções modernas entre público e privado, de outro,
somem as outras fontes de legitimidade, a própria vida se instala no centro de
qualquer processo político.

Entende-se por biopolítica a política em nome da vida e biopoder como


uma vida submetida ao comando da política.

Os conceitos de biopolítica são entendidos em três blocos diferentes e


sucessivos: o organicista, o antropológico e o naturalístico.

O primeiro bloco teve lugar na Alemanha nos anos 20 e entende o


Estado como forma vivente, possuidora enquanto tal de institutos e impulsos
naturais, um conjunto integrado de homens que se comportam como um único
indivíduo. O discurso gira em torno da configuração biológica de um Estado-corpo
soldado pela relação harmônica entre os seus órgãos. Tal como um corpo, sua
saúde pública é ameaçada por doenças, formações cancerosas que levam à
anarquia e à dissolução. No sentido dos futuros desenvolvimentos totalitários é a
referência biopolítica àqueles parasitas que infiltrados no Estado organizam-se em
prejuízo dos demais cidadãos. Contra estes males, necessário formar médicos do
Estado, capazes de restituir a saúde.

A segunda vaga de interesse pela temática biopolítica registra-se na


França dos anos 60. Esta nova teoria parece ser consciente da necessidade de uma
reformulação semântica em favor de uma declinação neo-humanística mais
domesticada. Define-se a biolpolítica como uma tentativa de explicar a história da
civilização com base nas leis da vida celular e da vida biológica mais elementar, não
pretende uma conclusão naturalística, mas sustenta a necessidade de que a própria
política incorpore elementos espirituais capaz de governar as potencias naturais da
vida em função de valores metapolíticos.

A terceira onda dos estudos biopoliticos teve lugar no mundo anglo


saxônico. Enquanto a política moderna assume a natureza como o problema a
resolver, ou o obstáculo a ultrapassar, por meio da constituição da ordem política, a
biopolítica americana vê nela a sua própria condição de existência: não só a origem
genética e matéria-prima, mas também única referência reguladora. Usam os
conceitos biológicos e as técnicas de investigação biológica para estudar, explicar,
prever e às vezes prescrever o comportamento político.

1.2 Política, natureza, história

O autor ressalta que Foucault nunca fez referência às interpretações da


biopolítica que o precedem, seu ponto de contato reside na insatisfação com o modo
como a modernidade construiu a relação entre política, natureza e história. Em
meados dos anos setenta, Foucault inicia uma teoria complexa e radical em nada
comparável com as teorizas precedentes. Por trás da sua perspectiva, está em
primeiro lugar a genealogia nietzschiana, pois dela deriva a capacidade de
desmontagem e de reelaboração conceitual que confere a originalidade do seu
trabalho.

O fim da época moderna não é pensado por Foucault como um ponto


que interrompe o percurso histórico, mas como uma alteração de sua trajetória,
produzida por um diferente tipo de olhar. Este olhar é identificado no discurso da
soberania, sempre baseado em duas entidades distintas, o conjunto dos indivíduos
e o poder, que entram em relação entre si nas modalidades definidas por um
terceiro elemento, constituído pela lei. A ratio comum das filosofias modernas é a
ideia de que os sujeitos de direitos preexistem ao poder soberano que eles próprios
instituem e por conseguinte também os direitos que deste modo mantem nos seus
confrontos. O resultado é uma espécie de relação de soma zero, quanto mais
direitos menos poder.

Ao sustentar o normativismo e decisionismo, Kelsen e Schmitt não mais


repetem este mesmo contraste tipológico que opõe a vertente da lei e a do poder. É
pela ruptura deste quadro que trabalha Foucault, reconhecendo o paradigma
soberano pelo seu real mecanismo de funcionamento que é o da sujeição dos
indivíduos a um determinado ordenamento ao mesmo tempo jurídico e político.

Ao suposto reencontro entre lei e soberania substitui-se assim aquele


entre potencias rivais que disputam o uso dos recursos e do comando em razão de
diferentes caracteres raciais. Não é o direito que dirime a guerra, mas a guerra que
adota o direito para consagrar as relações de força que ela definiu. Esta
identificação do caráter constitutivo da guerra, não como pano de fundo, mas como
origem e forma da política, inaugura um horizonte analítico que pode ser medido até
hoje. Este conflito contém uma indicação que tem a ver diretamente com o tema de
fundo do texto, remete a vida tomado no seu aspecto biológico, é este o objeto, em
conjunto do sujeito, do com flito e, portanto, da política. O corpo é uma realidade
biopolítica

Enquanto durante muito tempo a relação entre política e vida se coloca


de forma indireta, a partir de certa fase as barreiras se desfazem e a vida irrompe
diretamente nos mecanismos e dispositivos dos governos dos homens. O que está
em causa já não é a distribuição do poder ou a sua subordinação à lei, o tipo de
regime ou o consenso que recolhe, mas qualquer coisa que a precede porque diz
respeito à sua matéria prima. A análise de Foucault redescobre a bios a força da
qual estas precedem e para a qual se dirigem. A bios que Foucault contrapõe ao
discurso do direito e aos seus efeitos de domínio configura-se como legitimadora do
poder soberano.

Segundo Espósito, Foucault afirma o propósito da noção da vida não um


conceito científico, mas um indicador epistemológico que permite a classificação e a
diferenciação cujas funções produzem efeitos sobre as discussões científicas, mas
não sobre o seu objeto Biopolítica não remete apenas, ou predominantemente, para
o modo em que desde sempre a política esteve aprisionada, limitada, comprimida,
determinada pela vida, mas também e, sobretudo, para aquilo em que a vida é
agarrada, desafiada, penetrada pela política.

Para Foucault, a vida não pertence nem à ordem da natureza nem à da


história, mas inscreve-se na margem móvel do seu cruzamento e da sua tensão. O
significado da biopolítica tem de procurar-se nesta dupla posição da vida, que a
coloca simultaneamente no exterior da história, como seu limite biológico, e o interior
da historicidade humana, penetrada, pelas suas técnicas de saber e poder.

1.3 Política da vida

Qual é o efeito da biopolíitica? Chegando a este ponto, Espósito afirma


que Foucault parece bifurcar-se em direções divergentes que chamam à colação
outras duas noções, desde o princípio implicadas no conceito de bios, mas situadas
nos extremos da sua extensão semântica: a de subjetivação e a de morte.

Tais elementos só são compatíveis ao preço de uma certa violência que


submete um ao domínio do outro – que condiciona a sua sobreposição a uma
necessária “subposição”. Como se os dois termos de que é formado (a vida e a
política) não podem se articular senão numa modalidade que a mesmo tempo ao
justaponha.

Biopolitica é antes de mais nada aquilo que não é soberania.. Não só a


biopolítica é uma coisa diferente de soberania como entre as duas passa uma
censura nítida e irreversível. A biopolítica incide sobre o controle dos corpos em
lugar da apropriação da terra e dos seus produtos, opondo-se, portanto, à mecânica
de poder que transcreve a teoria da soberania. Enquanto para o regime soberano a
vida não passa de resíduo, na biopolítica é a vida que acampa no centro de um
cenário de que a morte é apenas o limite exterior ou o necessário contorno. Para
captar seu conjunto a semântica afirmativa que conota o novo regime de poder é
divida em três categorias a de subjetivação, imanentização e produção.

Quanto ao primeiro, alude àquela modalidade de governo dos homens


que passa por uma relação entre pastor e rebanho. No coração de tal processo está
a prática da confissão à qual o autor confere uma importância especial pois é o
canal através do qual se produz o processo de subjetivação daquilo que no entanto,
continua a ser o objeto do poder.
A conduta do governo teorizada e praticada sob a forma de Razão de
Estado traduz e determina a progressiva deslocação do poder do exterior para o
interior, dentro das fronteiras daquilo sobre o que se exerce. A arte do governo induz
um duplo movimento de imanentização e pluralização. O poder já não se reporta a si
próprio, mas a vida daqueles que governa, mas para fazer isto, precisa recolher e
satisfazer todas as solicitações que aparecem. O poder soberano também está em
defender e desenvolver a vida. Assim, desenha-se o caráter afirmativo que Foucault
parece atribuir à biopolítica.

1.4 Política sobre a vida

Não satisfeito com a própria reconstrução, Foucault considerando-a


inadequada a esgotar o problema, pois não responde a uma pergunta decisiva, se a
vida é mais forte que o poder como o resultado da modernidade é o da produção em
massa da morte?

Diminuído o equilíbrio constituído pela ordem soberana, na sua dupla


vertente de poder absoluto e de direitos individuais, a vida ter-se-ia tornado o único
terreno de exercício de um poder, entretanto sem fronteiras.

A supremacia do biopoder sobre o direito soberano aparece quando ao


homem é fornecida técnica e politicamente a possiblidade de fabricar vida, tem
assim a possiblidade ultrapassar qualquer soberania humana. Esta é a potencial
fratura do discurso foucaultiano, no centro, continua a estar a relação entre
soberania e biopolítica. Mas não é só a questão da relação da modernidade com o
seu antes, mas também com o seu depois, o totalitarismo.

Foucault conclui que a razão do fascismo e do nazismo nos


desconcertar tanto é que utilizam em larga medida as ideias e procedimentos da
nossa racionalidade política.

2. O paradigma da imunização
2.1 Imunidade

Espósito entende ter encontrado no paradigma da imunização a chave


interpretativa que parece escapar a Foucault.

No paradigma imunitário, bios e nomos, vida e resultam ser os dois


componentes de um único, incindível, conjunto que só adquire sentido a partir da
relação entre eles. A imunidade não é apenas a relação que liga a vida ao poder,
mas o poder de conservação da vida. Ao contrário de tudo o que pressupõe o
conceito de biopolitica (entendido como resultado do encontro em certo aumento se
dá entre os dos elementos componentes) deste ponto de vista não existe um poder
externo à vida, assim como a vida não se dá nunca fora das relações de poder.
Olhada nessa perspectiva, a política não é senão a possibilidade, ou o instrumento
de conservar viva a vida.
A imunização é uma proteção negativa da vida. Ela salva, assegura,
conserva o organismo individual ou coletivo a que é inerente – mas não de uma
maneira direta, imediata, frontal; submetendo-o, pelo contrário, a uma condição que
ao mesmo tempo lhe nega, ou reduz, a força expansiva.

O elemento de novidade que Espósito introduz no debate, naquela que


parece ser a primeira elaboração sistemática do paradigma imunitário, tem a ver, por
um lado, com uma simetria contrastante com o conceito de comunidade, ele próprio
relido à luz do seu significado originário, por outro lado, com sua específica
caracterização moderna.

A imunização, mais do que um aparelho de defesa sobreposto à


comunidade, é uma engrenagem sua interna.

O fato de que a política se preocupe sempre, de uma ou de outra


maneira, em defender a vida não significa que só a partir de certo momento, que
coincide justamente com a origem da modernidade, essa necessidade auto-
seguradora tenha sido reconhecida não já simplesmente como um dado, mas, por
um lado, como um problema e, por outro lado, como uma opção estratégica.

Para que a vida possa ser conservada tem de ser ordenada por
processos artificiais capazes de subtrair seus riscos naturais.

2.2 Soberania

A concepção de soberania é entendida por Foucault como a primeira e


mais influente figura imunitária que o antigo poder assume. A soberania não está
nem antes nem depois da biopolítica, atravessa todo o seu horizonte, fornecendo a
mais potente resposta ordenativa ao problema moderno da autoconservação da
vida. Para proteger a vida tem de proteger-se da dissipação que a ameaça. O direito
da natureza é a liberdade que todo o homem tem de usar o seu poder como
entenda.

O que está em jogo ou em constante perigo de extinção é a vida


entendida na sua textura material. É por isso que a razão e o direito convergem num
mesmo ponto definido pela exigência da conservação. O assomo inicial da
autoconservação está condenado ao fracasso, para poder salvar-se é preciso sair
constituir um ponto de transcendência que receba ordem e proteção. A
conservação passa pela alienação daquilo que se deve conservar. Por isso, o
estado político não pode ser visto como prossecução do estado natural, mas como
seu reverso negativo.

Também não significa dizer que na era moderna a categoria da vida se


substitua à do Estado, pelo contrário, à política justamente que confiada a tarefa de
salvar a vida. Todo organismo tem um sistema imunitário natural, comprovada a sua
insuficiência é substituída por uma imunidade induzida. Este segundo dispositivo
imunitário é destinado a proteger de uma proteção ineficaz e até perigosa,
justamente, a soberania.
Por trás da sua narrativa autolegitimadora, torna-se evidente a real
função biopolítica desenvolvida pelo individualismo moderno, a efetivação da
autonomia do sujeito que foi na verdade o ideologema imunitário através do qual a
soberania moderna desenvolveu a sua missão de proteção da vida. A soberania não
é o não ser em comum dos indivíduos.

2.3 Propriedade

A mesma dialética negativa que une – separando-os – os indivíduos e a


soberania invadem todas as categorias político-jurídicas da modernidade em
resultado inevitável da sua declinação imunitária. Isto é válido para a categoria da
propriedade, sua inerência constitucional ao processo de imunização moderna
resulta ainda mais pronunciada do que no referente ao conceito de soberania. A
noção de propriedade indica uma intensificação qualitativa de toda a lógica
imunitária.

No centro desta passagem conceitual está a obra de John Locke,


também nela o que está em jogo é a conservação da vida. O direito de propriedade
é consequência, mas também pré-condição factual da permanência em vida. A vida
é ao mesmo tempo interior e exterior à propriedade. É interior do ponto de vista do
ter, como parte dos bens que cada qual tem como dotação, mas é também o todo
do sujeito, se for olhada do ponto de vista do ser.
O raciocínio de Locke se desenvolve em círculos cujo centro é uma
referencia imediatamente biológica. Como o trabalho é uma extensão do corpo,
assim, a propriedade é uma extensão do trabalho. O corpo é o lugar primeiro da
propriedade porque é o lugar da propriedade primeira. O ponto de passagem situa-
se no caráter privado da apropriação. É próprio o que não é comum, o que não é
dos outros.

Locke estabelece um duplo limite ao aumento da propriedade, a


obrigação de deixar aos outros o necessário à sua conservação e a proibição de
apropriar-se daquilo que não é possível consumir. A partir do momento que os bens
tornam-se comutáveis em dinheiro a propriedade priva começa a emancipar-se do
corpo do qual parece depender. Há a ruptura entre propriedade e trabalho, uma
desmaterialização da propriedade, inaugurando um percurso inevitável de
desapropriação. É a deriva lógica que marca todas as categorias biopolíticas.

2.4 Liberdade

O terceiro invólucro imunitário da modernidade é construído pela


categoria da liberdade. Como já para a soberania e a da propriedade, e de maneira
talvez ainda mais vincada, a sua sorte histórico-conceitual é expressiva do processo
moderno geral de imunização, no duplo sentido de que reproduz os seus
movimentos e potencia a sua lógica interna.

Isto pode parecer estranho em referência a um termo evidentemente


carregado de sentidos constitutivamente refratários a qualquer tonalidade defensiva
e até orientados no sentido de uma abertura sem reservas à mutabilidade dos
acontecimentos. Mas é justamente em relação a essa largueza de horizontes que é
possível medir o processo de restrição e também de secagem semântica que
assinala a sua história posterior.

No momento em que a liberdade seja entendida não já como um modo


de ser mas como um direito a ter qualquer coisa de seu – justamente o pleno
domínio sobre si próprio em relação aos outros – já se perfila aquela acepção
privativa, ou justamente negativa, destinada a caracteriza-la de maneira cada vez
mais exclusiva. Quando este processo se conjuga com as estratégias
autoconservadoras da sociedade moderna, a rotação e o esvaziamento da antiga
liberdade comum no seu oposto imune serão completos.

A liberdade, é certo, não é apenas defesa contra as ingerências alheias;


é também ato subjetivamente determinado, mas justamente no sentido de que se
permite ao sujeito permanecer tal, não se dissolver: é o direito subjetivo que
corresponde ao dever biológico natural de se manter vivo nas melhores condições
possíveis.

Que isso seja alargado a todos os outros indivíduos, de acordo com o


preceito de eu ninguém pode tirar ou lesar a vida de outro ou quanto contribua para
a conservação de sua vida, não altera a lógica estreitamente imunitária subjacente a
toda a argumentação, ou seja, a redução da liberdade a instrumento de conservação
da vida entendida como a propriedade inalienável que cada qual tem de si próprio. É
a própria cultura do indivíduo que produz qualquer coisa que ultrapassa em termos
do processo vital no seu todo.

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