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O Brasil no espelho do Paraguai

Francisco Alambert

A revolução de 64 começou na Guerra do Paraguai.

Glauber Rocha
A. relações entre o Brasil e seus vizinhos sul-americanos ao longo
do século XIX e início do século XX marcaram-se por tensões, diferenças
exaltadas e violências consumadas. No campo geopolítico, as tensões se
acirravam à medida que íamos definindo nossas fronteiras, tanto ao norte
(com a disputa pelo controle dos rios amazônicos) quanto ao sul (com a
questão platina e os conflitos intermitentes com o Uruguai, a Argentina e o
Paraguai). No campo ideológico, as diferenças traduziam-se numa guerra de
idéias assentada na defesa brasileira de sua "civilização" imperial e escravista,
vista em oposição às "outras" nações americanas, já então formalmente re-
publicanas e antiescravistas.
Nosso liberalismo sonhava ser a diferença, a particularidade significa-
tiva diante do modelo liberal-revolucionário europeu que nossos "bárbaros"
vizinhos meramente copiariam. No Brasil, conforme Roberto Schwarz es-
creveu em ensaio conhecido: "impugnada a todo instante pela escravidão, a
ideologia liberal, que era a das jovens nações emancipadas da América, des-
carrilhava".1 Não éramos apenas uma "idéia fora do lugar" diante do modelo
liberal europeu, mas fundamentalmente diante de nossos vizinhos america-
nos. Desse modo, seria impossível pensar qualquer conjunto de identidade
"americana".
Se a imagem que um país constrói de si está relacionada à diferença
que impõe em relação a imagens de outras nações, então o "outro" do Brasil
foi toda a América Latina. Mas, dentro do mundo sul-americano, num deter-
minado momento do século XIX, nosso "oposto" foi o Paraguai, contra o
qual fizemos uma guerra que era uma luta por territórios, por hegemonia, mas
antes de tudo, uma guerra pela identidade afetada pela iminente derrocada
de nosso império escravista e seu modelo de "civilização".

Roberto Schwarz, "As idéias fora do lugar", em Ao vencedor as batatas (São Paulo: Duas Cidades,
1981), p. 15.
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A Guerra do Paraguai representou no campo da cultura (no sentido das sombra que se projeta nas obscuras relações entre o Brasil e o resto da
ideologias, das representações e das identidades), o momento em que o América Latina, ou, dito de outra forma, da idéia de Brasil construída em
mundo imperial-escravista enfrentou sua mais forte crise externa e interna. oposição aos outros estados de herança colonial que lhe são contemporâ-
Sobre a república guarani foram atirados exércitos, mas também idéias e neos. Sensibilidades que não se encontram entre historiadores e especialistas
imagens que buscavam transferir ao outro as mazelas que nossa realidade perceberam isso com imensa clareza na capacidade de propor problemas.
nos impunha, o "mal-estar" de nossa "civilização", para falar com Freud. O A artista plástica Regina Silveira reconheceu e interpretou a questão em
Paraguai, bárbaro, incivilizado, autoritário, atrasado aos olhos da cultura da duas obras. Na primeira, sob o crivo da ironia e da perplexidade questio-
corte, serviria então para nos salvar de nossas próprias condições e definir a nadora, elaborou uma espécie de painel intitulado to be continued..., uma
imagem civilizada que tanto buscávamos. No espelho do Paraguai - usado montagem caótica onde figuras, mitos, emblemas e sinais característicos da
como metáfora da situação latino-americana - construiu-se um dos elemen- história e da cultura de toda a América Latina são apresentados na forma de
tos de nossa "identidade nacional". um quebra-cabeça. Não há resposta à vista nem mesmo trilhas a seguir por
Em seu livro Ordem e progresso, Gilberto Freire elaborou ampla pes- entre o caos dos símbolos, apenas a constatação de uma impossibilidade
quisa biográfica com pessoas nascidas entre 1850 e 1900.0 sociólogo des- que a própria história, personagem e fundo da obra, nos legou. Diante dela,
cobriu que para a formação desses homens e mulheres foi importante a a única pergunta, a pergunta essencial aliás, é a constatação da impossibili-
presença rotineira de brincadeiras infantis inspiradas na Guerra do Paraguai. dade que a própria artista sintetiza: "Na verdade, eu não sei o que é América
Nessas brincadeiras, criava-se a idealização de soldados como heróis nacio- Latina".3
nais.2 Mais do que nossa historiografia possa ter pensado (pois de fato nun- Não vemos por onde puxar o fio da meada, mas sabemos, e a artista
ca pensou), a Guerra do Paraguai entranha-se de maneira efetiva na também, por onde começar a desatar os nós. Numa obra de 1994 intitulada
composição ideológica nacional. A imagem das crianças e da infância atém- O paradoxo do santo, Regina Silveira nos apresenta um desses nós, justa-
se a ela, perpassa os anos, chega a todos que, num momento ou noutro, mente o que principia na Guerra do Paraguai. Na obra, a artista contrapõe
cantaram eu fui no Itororó... Quando lutávamos contra a "barbárie" uma pequena figura de Santiago a cavalo - nada menos que o proclamado
paraguaia, uma das justificativas "civilizacionais" vinha da idéia de que faría- patrono da América espanhola - a uma sombra projetada na parede da
mos um bem ao inimigo, revelando-lhe justamente sua condição de civiliza- escultura que Brecheret, nosso escultor modernista por excelência, fez do
ção em estado de infância, já que, para nossos ideólogos do Império, éramos duque de Caxias. É desnecessário comentar o impasse que o paradoxo e o
então um povo "adulto". Mas vencida a guerra contra as "crianças" guaranis, jogo da sombra e da projeção instalam entre presente, passado, história,
passados muitos anos e muitas mudanças políticas, sociais, econômicas, pa- memória e modernidade.
rece que a idéia do "Brasil criança", do "país do futuro", foi a que mais O presente ensaio organiza-se em torno da seguinte questão: como um
impregnou-se entre nós. A memória da guerra poderia não ser nomeada, evento histórico pôde funcionar ao mesmo tempo para demarcar o futuro
mas convertia-se em "cultura". das relações tensas entre o Brasil e o resto da América Latina e ainda servir
Os motivos e as conseqüências que produziram a Guerra do Paraguai como base fantasmagórica no processo de constituição da idéia de "cultura
- a que aconteceu entre 1864 e 1870 e a Guerra das Letras, dos Documen- brasileira"? Uma das respostas possíveis seria que a busca da diferença diante
tos, das Interpretações que se lhe seguiram - condicionaram (mais do que as da América do Sul foi um dos caminhos pelos quais desenhou-se a imagem
diferenças "lingüísticas", "culturais" ou relativas à colonização hispânica) a do Brasil como cultura "originar. Trata-se, portanto, de analisar as cons-

2 3
Cf. Gilberto Freire, Ordem e progresso (Rio de Janeiro: José Olympio, 1962). Cf. também "Regina Silveira devora e subverte arquitetura e história." Entrevista ao jornal O Estado de S.
Ricardo Salles, Memórias de guerra. Guerra do Paraguai e narrativa nacional, mimeo., 1997. Paulo, "Caderno 2", 8 set. 1998, p. D12.
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truções e os artifícios ideológicos que estão no fundo do debate cultural e sidade, exercício da honra, defesa da civilização contra a barbárie. Passou a
político ocasionado pelo mais decisivo momento, ao lado da abolição da ser também um passeio da civilização, um ajuste de contas que reporia no
escravidão, do Segundo Reinado e suas conseqüências para a vida cultural lugar as coisas que a América do Sul vinha confundindo. Tudo poderia ser
brasileira posterior. Serão abordados três momentos em que se apontam as muito simples, ainda que se demonstrasse, dependendo da ocasião, que tudo
contradições desse processo: a obra de Machado de Assis, no momento em tinha um ar de solenidade civilizatória e obrigação cívica. Francisco Solano
que comenta ou encena questões ligadas à Guerra do Paraguai; o discurso López representa a negatividade total, o antiexemplo do caminho "liberal-
crítico dos positivistas, na virada do século; e a análise crítica esboçada pelo monárquico" a ser trilhado. Suas atitudes, ou aquilo que se imaginava serem
jovem Monteiro Lobato. suas convicções, deveriam funcionar como um espelho invertido. A mentira
no poder inventa ações políticas que nosso cronista se esforça em ridiculari-
zar para mostrá-las ainda mais ameaçadoras, ainda mais dignas de uma res-
i posta em armas. É esse o presente que o ditador bárbaro de uma bárbara
nação sem imperador oferece aos seus:
O tema da Guerra do Paraguai na obra de Machado de Assis ainda é
um campo quase inexplorado.4 Ele se entranha na obra do autor, em suas O cavaleiro paraguaio convoca as multidões, prepara as manifestações públicas, fala-
lhes a linguagem da liberdade e do valor. Tudo se extasia, tudo aplaude; corre uma
crônicas, poesias, contos e romances. Observar a maneira com que nosso
faísca elétrica por todos os peitos; uma centelha basta para inflamá-los. Ninguém
maior escritor acompanhou e refletiu sobre as questões da guerra permite- mais hesita; todos vão depor no altar da pátria o óbolo do seu dever - os homens o seu
nos compreender a formação de um ideário cujos traços principais são, a sangue, as mulheres a sua honra.5
princípio, a oposição radical entre a sonhada "civilização brasileira" e a cul-
tura paraguaia ou latino-americana. Nesse sentido, Machado, assim como Ora, não é exatamente o mesmo que faz Machado no campo de cá?
outros escritores de sua época (destacando-se o visconde de Taunay), fun- Suas crônicas não funcionam exatamente assim, convocando uma particular
ciona como uma espécie de ideólogo do império. Mas como tudo se move "multidão" restrita ao mundo da corte, da opinião que pesa e que, no final
ardilosamente na obra do escritor, podemos acompanhar também o início de das contas, é quem vai decidir a sorte da contenda? Sua linguagem irônica e
uma reflexão crítica que apontará na saga bélica nacional os indícios das indignada, apelativa aos valores pátrios, não quer funcionar como "centelha"
contradições que efetuaram a construção da idéia de Brasil que se erigiu nos para inflamar nossos ânimos guerreiros? Seu desejo não é exatamente poder
anos posteriores. um dia dizer algo como: contribuí com minha parte de escritor, "ninguém
Em suas primeiras crônicas de juventude, contemporâneas ao conflito, mais hesita"? Não seria tão absurdo ver López como o seu "Outro", como o
tudo era otimismo e possibilidade de redenção. A guerra era desejo, neces- Paraguai era o "Outro" do Brasil. Era melhor matá-lo logo, tão grande e
ameaçadora era sua presença para que a identidade pudesse se ver livre.6
Prontamente, a guerra, segundo Machado, deixa de ser uma temerida-
4
Cf. Brito Broca, "A Guerra do Paraguai", em Machado de Assis e a política (São Paulo/Brasília: de para se tornar orgulho, desejo escondido no inconsciente nacional, na
Polis/INL, Fundação Pró-Memória, 1983); Raimundo Magalhães Jr., "Machado de Assis e a
Guerra do Paraguai", em Machado de Assis desconhecido (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1955); Humberto Peregrino, A Guerra do Paraguai na obra de Machado dè Assis (João Pessoa:
Departamento Cultural da Universidade Federal da Paraíba, 1969), Coleção Ensaios Contempo- 5
Machado de Assis, Crônicas (1864-1867) (Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores, 1946),
râneos, n. 3. Explorei mais detidamente esse tema em minha tese de doutoramento Civilização publicada em 24 out. 1864.
e barbárie, História e cultura: representações culturais e projeções da Guerra do Paraguai nas 6
"Depois de Aguirre, passa-se a López. Mata-se o dois de paus e arma-se a cartada ao rei de copas.
crises do Segundo Reinado e da Primeira República (São Paulo: FFLCH-USP, 1998), mimeo. É esse o pensamento de um epigrama publicado no último número da Semana Ilustrada: 'joga-
Uma parte desse trabalho foi publicada em Maria Eduarda M. C. Marques (org.), A Guerra do se agora no Prata,/Um jogo dos menos maus:/0 López é o rei de copas/O Aguirre é o rei de
Paraguai, 130 anos depois (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995). paus"', 24 jan. 1865, ibid., p. 299.
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alma de homens e mulheres, no "ventre das mães", que não pode ser repre- Era o golpe final, dirigido certeiro no coração do problema brasileiro.
sado: "Todos desejam a entrada das forças libertadoras"7; "Todos os espíri- Agora, os súditos da corte escravista podiam tomar para si a tarefa de liber-
tos estão voltados para o sul. A guerra é o fato que trabalha em todas as tar os "escravos" paraguaios... Nossos escravocratas recebiam da pena po-
cabeças, que provoca todas as dedicações, que desperta todos os senti- ética o mais cobiçado presente: ganhavam o direito de ser os libertadores
mentos nacionais".8 "Todos" juntos com "todos". O fruir a guerra deve ser dos "escravos" dos outros ao mesmo tempo que podiam continuar a ser
experimentado como êxtase coletivo, como glorificação dos mais altos ide- escravizadores em sua própria nação. O transe marcial, agora mais do que
ais civilizatórios. Suas agruras se consubstanciam nos símbolos da força e do antes, seria o curativo de uma ferida aberta. O bom sono estava salvo com
saber - em fogo, em luz - para alcançarem a "Justiça", a "Liberdade". Por essa guerra redentora.
um momento a guerra torna-se a religião da nação em comunhão e o escritor O teatro de guerra compôs o palco ideal para que Machado lançasse,
seu capelão. Para a expressão de tais sentimentos, agora claramente extre- ou resumisse, idéias centrais para a formação do espírito bélico, o que no
mados, a lírica seria o lugar mais apropriado: caso poderia não ser, como quer Faoro, uma apologia do exército como
instituição salvadora nacional, mas certamente é uma defesa da guerra em
[...] nome de determinados ideais de "civilização".10 O Paraguai, o mais estranho
Então (nobre espetáculo, só próprio dos países dessa estranha América que rodeava ao longe o mundo da rua do
De almas livres!) então rompem-se os elos
Ouvidor, tão bem retratado por Machado, deu-lhe o mote para exercer o
De homens a homens. Coração, família,
Abafam-se, aniquilam-se: perdura
papel de publicista do Império, ainda que esse personagem não lhe caísse
Uma idéia, a da pátria [...] bem. Seu "testemunho" distante dos casos e razões da guerra diz muito des-
Basta isso? Ainda não. Se o império é fogo, se lugar onde repousava a "opinião pública" nacional - vale dizer, da corte -
Também é luz: abrasa, mas aclara. e deve também dizer bastante (esse é um assunto que os estudiosos do autor
Onde levar a flama da justiça, ainda estão por abordar mais firmemente) sobre a formação política e ideo-
Deixa um raio de nova liberdade. lógica do grande escritor.
Não lhe basta escrever uma vitória,
Lá onde a tirania oprime um povo; Mas o cronista Machado de Assis se encaminhou para a ficção, se fez
Outra, tão grande, lhe desperta os brios; contista ao mesmo tempo que a guerra chegava a seu fim. Em contos como
Vença uma vez no campo, outra nas almas; "Um capitão de voluntários" ou "Uma noite", por exemplo (assim como no
romance laia Garcia), a guerra funciona como plano, fundo e situação im-
Era justamente a batalha das "almas" que estava em processo, uma portantes no quadro pintado pela narrativa. Neles, o tema da Guerra do
guerra contra a apatia, o desinteresse, a indecisão e a dúvida. Uma batalha Paraguai assume novos timbres, que trazem sutis inflexões à abordagem,
pela idéia do Brasil diferente e superior ao resto da América. Os últimos realinhando a reflexão para outros campos.
versos funcionam como o tiro de misericórdia, mortífero, contra qualquer Vejamos como o tema se apresenta agora em um desses contos. "Um
resíduo de indecisão marcial: capitão de voluntários" trata de um homem que resolve partir para a guerra

Quebre as duras algemas que roxeiam


Pulsos de escravos. Faça-os homens.9

escravocrata como campeão da liberdade. Por ocasião da questão anglo-brasileira, Machado teria
7
24jan. 1865, ibid., p. 327. publicado um "Hino Patriótico", identificado por J. Galante de Sousa, que, em uma de suas
8
21 fev. 1865, ibid., p. 327. estrofes inflamadas, diz: "Nação livre, é nossa glória/Rejeitar grilhão servilj/Pareça a nossa
9
"A cólera do Império", em Obra completa (Rio de Janeiro: José Aguilar, 1997), vol. III, p. 299. memória/Salva a honra do Brasil", ibid., pp. 298-9.
10
Já vinha de antes essa pulsão patriótica em versos, bem como essa representação do Brasil Raymundo Faoro, Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio (São Paulo: Nacional, 1976).
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quando se descobre traído pela mulher e pelo melhor amigo. Entretanto, "a Magalhães Júnior notou que essa posição crítica, posta na boca de
causa foi complexa",11 como se diz já no fim da narrativa, e que pode ser "X", esse julgamento quase iconoclástico diante das antes sagradas razões
tomado como metáfora das causas e das resoluções da própria guerra (e, do conflito, poderia explicar-se pelas razões e conseqüências da guerra que,
por extensão, das motivações que animaram o próprio escritor). No início, anos depois de seu término, podiam ser melhor balanceadas, como a posi-
um primeiro narrador, que logo se retirará, nos dá notícia de que a história a ção da Argentina que "enriquecera com os fornecimentos ao nosso exército
seguir será um relato escrito por outro narrador, este também um dos prota- e à nossa esquadra, obtendo as vantagens e nos deixando os ônus".14
gonistas da trama. Simão de Castro nos contará um episódio de sua vida. É uma explicação bastante convincente e, de certa forma, diz algo do
Um episódio que envolve amizade, amores ilícitos, traição, abandono, moral sutil ceticismo que tomou nosso escritor nos anos posteriores àqueles em
ambígua, guerra e morte. "X" era seu melhor amigo (só na última linha do que escrevia seu evangelho bélico em versos e crônicas. Entretanto, são ainda
textoficamossabendo seu nome: Emílio). Mais velho, "X" vivia maritalmente os temas íntimos e domésticos que surpreendem e dirigem os saltos narrati-
com Maria, uma baiana que "fora educada no Rio Grande do Sul", "um vos, as mudanças de atitude. O narrador e Maria aproximam-se, envolvem-
modelo de graçasfinas",mulher que "tinha em si o fogo e o gelo".12 A prin- se, separam-se. O marido descobre tudo. Não se revolta, não enfrenta nem
cípio, o narrador nos insere nas circunstâncias das relações estreitas entre os o amigo traidor nem a mulher adúltera, não se sabe se por amizade e amor,
três personagens, que logo formarão um trágico triângulo amoroso. por bondade ou por vergonha. Seu castigo, para todos e para si, é ir à guerra
Antes, porém, o tema da guerra é introduzido, proporcionando-nos -justo ele, que acreditava ter sido melhor a aliança com López... O esforço
tanto uma outra situação quanto uma posição diferenciada diante do evento. de guerra não é mais do que a máscara ideal para o destino das identidades
Nesse conto o tema da hesitação, da apresentação de diferentes atitudes e em crise: "lá fora torno a ser o que sou, e, na campanha, serei o que devo
opiniões sobre o conflito bélico, a par do conflito amoroso, dá o tom particu- ser".15 Assim, "alguma coisa mais particular que o patriotismo",16 como diz o
lar. Vemos Maria dedicada a recolher donativos para a guerra. A isso res- narrador numa passagem, conduz a sorte do voluntariado e desmascara su-
ponde ceticamente "X", declarando que tais ações não são mais que tilmente a honra patriótica.
"fantasias" passageiras. Do ceticismo à dúvida, vai se operando uma trans- O amálgama histórico entre uma guerra de sentido duvidoso e os dile-
formação nas certezas quanto ao caráter civilizador do conflito - até mesmo mas morais e regras subsumidas da ordem social brasileira formam o fundo
quanto à posição que o país deveria assumir diante de seus supostos aliados. de uma tela pintada com cores de tragédia. "X" morre em combate. Maria
É o que se vê num diálogo surpreendente entre "X" e seu amigo, que sucede morre em Curitiba, quando regressava dos anos que passou no Rio Grande
aquela impressão de ceticismo: do Sul à espera (ou não, pois nunca são claros seus motivos) do retorno do
homem com quem viveu. Também morrera uma filha que tivera antes de
- [...] a Guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as guerras, mas palavra, conhecer "X" (não sabemos ao certo em que circunstância). O amigo fica só
não entusiasma. A princípio, sim, quando López tomou o "Marquês de Olinda", com seus "remorsos", até que, ao embarcar para a Europa, "logo depois da
fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora, francamente, acho que tínha- proclamação da república"17 (seria um monarquista?, chora-se também a
mos feito muito melhor se nos aliássemos ao López contra os argentinos.
morte do império?), deixa para outros os relatos do episódio terrível. Tudo
- Eu não. Prefiro os argentinos.
- Também gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com López.
na vida da corte, em seu teatro de bons modos e hipocrisia, compõe uma
- Não; olhe, eu estive quase a alistar-me como voluntário da pátria. tragédia dissimulada, uma guerra não declarada. A Guerra do Paraguai esta-
- Eu, nem que me fizessem coronel não me alistaria.13

14
1
Raimundo Magalhães Jr., "Machado de Assis e a Guerra do Paraguai", cit., p. 55.
' "Um capitão de voluntários", em Obra completa (Relíquias de casa velha), cit, p. 694. 15
"Um capitão de voluntários", cit., p. 693.
l2 t6
Ibid., pp. 690-1. Ibidem.
"Ibid., pp. 688-9. iJ
Ibid., p. 685.
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va aqui. O teatro da guerra não era mais que uma extensão do teatro social. 11
A hipocrisia e a ilusão que o cronista e o poeta Machado de Assis viam no
Paraguai era a mesma que o contista via inteira nos jogos da corte brasileira. Os ideólogos positivistas ligados à Igreja Positivista do Rio de Janeiro
Ir ou não à guerra, escolher participar de um evento político nacional, é foram os mais duros críticos do envolvimento do Brasil na guerra e suas
um tema que leva ao problema da decisão e seus motivos. Aqui, Machado conseqüências, travando verdadeiras batalhas pelos jornais para denunciar a
parece encenar a questão do deslocamento do político para o privado, numa incúria do império, à qual opunham seu projeto republicano de inspiração
resolução bem típica daquilo que Roberto Schwarz, pensando a obra do comtiana. De fato, e a rigor, a luta contra a herança da Guerra do Paraguai
escritor ao mesmo tempo que o movimento das idéias e sua efetivação no iniciou-se com eles, o que nos permite supor que a transposição do esquema
Brasil, chamou de "idéias fora do lugar". Afinal, Machado parece proble- positivista para o Brasil produziu pelo menos um aspecto novo: o universalismo
matizar a ausência efetiva, entre nós, de uma relação substanciosa entre os dos positivistas pensava a América Latina como um todo. Nessa visada,
acontecimentos de caráter nacional e o engajamento político dos "cidadãos" resolver a questão pendente da guerra era fundamental para a efetiva reto-
(vale dizer, aqueles poucos a quem a cidadania era permitida). É como se mada de um projeto republicano de integração latino-americana. Os
nos mostrasse que aqui não existe essa relação de substância, e as decisões positivistas foram apóstolos dessa união, na qual caberia o Brasil inteiro, ao
políticas funcionam no terreno privado como um fim em si mesmas.18 contrário de propostas integracionistas oriundas do século XIX, como a que
Assim, no primeiro momento, a partir do conflito com o Paraguai, Ma- professou o escritor francês Charles Expilly ou o geógrafo anarquista Elisée
chado contribuiu para criar imagens e estereótipos que vieram para ficar, que Reclus.19 Assim, colocaram em jogo uma outra visão do ideal civilizacional,
se incorporaram à ideologia brasileira. No segundo, encenou discretamente pautado em seus princípios universalizantes, mas também numa interpreta-
a crítica desse mesmo processo que ajudou a iniciar. Uma chave cujos des- ção negativa do papel da guerra na constituição da nacionalidade brasileira.
dobramentos poderiam ser contra-ideológicos. Dessa forma, iniciou tam- Com isso, talvez tenham ensaiado abrir - como disse Alfredo Bosi comen-
bém a crítica necessária para a compreensão do lugar e das conseqüências tando outro aspecto pouco conhecido da militância positivista - "as trilhas
da Guerra do Paraguai na vida cultural brasileira. Não era pouco. que sulcam o processo civilizatório".20
Se a Belle Époque européia terminou com uma guerra, a nossa come- Em um artigo intitulado "Pela fraternidade sul-americana e especial-
çou com uma. No que se seguiu, na construção de nossa "modernidade", a mente Brazil-Argentina", Raimundo Teixeira Mendes, vice-diretor da Igreja
guerra permaneceu como fantasmagoria. Por isso, a Guerra do Paraguai e os Positivista do Rio de Janeiro, comenta um incidente ocorrido em 25 de maio
conflitos inerentes à sua interpretação se fizeram presentes sempre que tive- de 1910, no qual "um grupo de moços exaltados" teria arrancado a bandeira
mos que nos defrontar com os impasses da "modernidade", em todos os brasileira do "Café Paulista", na cidade argentina de Rosário de Santa Fé.
seus campos e sentidos. Como em Machado, as interpretações flutuaram
entre essa possibilidade de reconhecimento do "país profundo" com seu
contrário, a idealização do Brasil como nação original - e por isso, tudo 19
Duríssimo crítico da monarquia e do escravismo brasileiro, Expilly sonhava com a constituição
podia ser aceito, mesmo, ou principalmente, diante da América Latina, nos- de uma nova "civilização latina" que incluiria indígenas e africanos no sul da América do Sul a
partir do Paraguai (para ele a mais progressista das nações latino-americanas), unindo, a princí-
so oposto metaforizado pela imagem demonizada do Paraguai cujo futuro pio, as províncias argentinas, o sul, o sudeste (até São Paulo) e o Mato Grosso, no Brasil, além do
posterior a guerra reforçou. Uruguai. Cf. C. Expilly, Le Brésil, Buenos Aires, Montevideo et le Paraguay devant Ia civilization
(Paris: E. Dentu, 1866). Já Reclus esboçou o projeto de uma federação na zona equatorial, unindo
a região amazônica brasileira e andina. Cf. E. Reclus, "Le Brésil et Ia colonization, I et II", em
Revue des Deux Mondes, Paris: tomo XXXIX, 15 jun. e 15 jul., 1862; "Les republiques de
18
1'Amérique du Sud - leurs guerres et leurs projets de civilization", em Revue des Deux Mondes,
Cf. John Gledson, Machado de Assis: ficção e história (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986). Ver tomo LXV, 15 out. 1866.
do mesmo autor, "Introdução", em Machado de Assis, A Semana: crônicas (1892-1893) (São 20
Alfredo Bosi, "A arqueologia do Estado-Providência: sobre um enxerto de idéias de longa dura-
Paulo: Hucitec, 1996). ção", em Dialética da colonização (São Paulo: Companhia das Letras, 1992), p. 304.
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Como resposta, um grupo de brasileiros atacou o consulado argentino no Procurando responder à guerra de fatos e contrafatos, cujo objetivo era
Rio Grande do Sul. Detectando o clima de violência e rivalidade entre os proclamar o silêncio pelos erros do império escravista em nome da unidade
dois países, o artigo positivista aproveita para atacar as "encenações milita- da pátria, que se alastrou pelo século XDC, os positivistas afirmam agora: "O
ristas". E conclui destacando o lugar chave da Guerra do Paraguai nesse verdadeiro culto dos antepassados prescreve a confissão de suas culpas e
clima, ressurgindo no presente como um trauma não resolvido: "o dia de hoje erros".24
só poderá ser de regozijo para os brasileiros, como para a Humanidade, A "verdade histórica", e não mais a "verdade dos fatos" como antes,
quando ele [o Brasil] assimilar a cabal reparação do crime que a Guerra do agora assume um sentido negativo. O passado não exposto da guerra contra
Paraguai constitui".21 o Paraguai assombra, dirige e desestabiliza o presente. Fazia-se necessário
Os positivistas tocavam as feridas abertas e retomavam as críticas de, combater esses efeitos. O primeiro deles era a possibilidade sempre cres-
por exemplo, Charles Expilly, com relação ao alto preço que pagaria o Brasil cente de conflitos com a Argentina. Por isso, publicam uma série de artigos
por ter mantido a escravidão. Em outro artigo, "Pela fraternidade universal", com o título "A confraternização Brasil-Argentina". Nesses artigos é formu-
sutilmente provocando os "contemporâneos", diz: lada uma incisiva pergunta: "o que lucrou a Humanidade com a Guerra do
Paraguai?". A resposta vem certeira:
[...] cumpre-nos, porém, neste solene momento, respeitosamente lembrar que - há
meio século - a América, o Ocidente, a Humanidade, ansiosamente aguardam a inau- [...] os prejuízos foram imensos, sob todos os aspectos e especialmente sob o aspec-
guração da realização dessas esperanças regeneradoras, mediante a sincera repara- to moral. É dessa guerra nefanda que data a recrudescência do espírito militante que
ção dos maiores crimes e erros de nossos antepassados e contemporâneos, quando - tem perturbado até hoje a evolução pacífico-industrial do povo brasileiro e dos povos
a par com a escravidão da raça africana - rematarão as atrocidades praticadas contra sul-americanos. Os quadros que tentam celebrá-la hão de despertar em nossos des-
as ingênuas tribos selvagens, senhoras do continente colombiano, pelo monstruoso cendentes o horror que hoje nos acusaria a contemplação de uma cena de antropofagia
aniquilamento da mais americana talvez das nações americanas [...]22 ou de um navio negreiro! [...]25

Vale observar, aqui, além da referência à escravidão e da substituição Tudo é dito em nome da moral e dos altos valores da humanidade:
do termo "negro", tão marcado pelo passado escravista, por um mais honro- 'Toda a guerra provém sempre do atraso moral e mental dos beligerantes".
so "africano", e o emprego do termo "continente colombiano", usado repe- Entretanto, as coisas mudam defiguraquando se pensa em territórios e pro-
tidas vezes no lugar de América Latina. Isso demonstra a ênfase na questão priedades:
americana e na utopia da constituição de um campo comum de afinidades e
interesses na América do Sul. Tal preocupação se justificava na medida em Porém as mesmas reflexões demonstram que o erro cometido pelo Brasil e Argentina,
que eles acreditavam que as rivalidades entre Brasil e Argentina poderiam impondo arbitrariamente os limites que quiseram à nossa irmã a República do Paraguai,
mortalmente vencida, não comportaria, infelizmente, agora, reparação direta alguma.
redundar em outro conflito23 derivado da questão da dívida paraguaia, que
Com efeito, os supremos interesses da Humanidade não consentem que se pretenda
fazia rondar fantasmagoricamente a hipótese de anexação do Paraguai pelo anular o fato consumado há quase meio século, e nas desgraçadas condições em que o
Brasil ou pela Argentina, caso não houvesse indenização. foi, para submeter as questões de limites ao arbitramento.26
Em "Paraguai-Argentina-Brasil", os positivistas afirmam que dentre
todas as guerras "fratricidas", a Guerra do Paraguai teria um papel especial,
uma vez que opôs "quatro povos irmanados biológica e sociologicamente". 24
Jornal do Comércio, 25 set. 1912, edição da manhã, seção "Ineditorial".
25
Raimundo Teixeira Mendes, A confraternização Brasil-Argentina, a independência da nossa
irmã a Rep. do Paraguai, e o cancelamento da sacrttega dívida resultante para esta, da guerra
21
Publicado no Jornal do Comércio, 25 maio 1910. fratricida entre ela e o Brasil (Rio de Janeiro: Sede Central da Igreja Positivista do Brasil, Jornal
22
Jornal do Comércio, 19 ago. 1912, p. 4. do Comércio, 1912), pp. 27-8.
23 26
"Ainda pela fraternidade universal", em Jornal do Comércio, 18 set. 1912. Ibid.,p. 11.
316 Francisco Alambert 0 Brasil no espelho do Paraguai 317

Agora, "desde que não é possível ressuscitar os aborígines e restituir- Outro momento que suscita a retomada do debate sobre a guerra e sua
lhes os territórios usurpados", resta reocupar os territórios e as identidades herança é a proposta de construção de um monumento em homenagem a
arruinadas através dos princípios civilizados ocidentais, ou seja, positivistas. Riachuelo:
A combalida imagem do Paraguai, desgastada pelos anos de abominação a
que foi submetida pelo esforço em justificar a guerra é colocada em novos [...] Foi com a escravidão que se elaborou o passado brasileiro. Ainda na própria
termos, ou, pelo menos, termos que remontam à caracterização que dela execranda guerra, cuja glorificação descabida ocasiona estas linhas, fez-se sentir a
faziam autores como Expilly e Reclus: a "República do Paraguai é a mais influência da nefanda instituição. Pois, como é sabido, foram libertados escravos para
servirem no exército. E quem se lembraria hoje de propor que se erigisse um monu-
americana das nações ocidentais [...] tão ibérica como a argentina ou a bra-
mento à escravidão como fator importante na constituição do povo brasileiro?30
sileira".27
As fontes nacionais nas quais se baseiam as idéias positivistas sobre a Como podemos ver, os positivistas faziam perguntas inconvenientes.
situação da América são conhecidas. Numa outra coleção de artigos, Mas é certo também que tais perguntas eram muito melhores do que suas
publicada em 1910, "Pela fraternidade universal, e especialmente sul-ameri- respostas, no mais das vezes meramente doutrinárias. Seus princípios, como
cana", além de Benjamin Constant, José Bonifácio é recuperado como críti- é sabido, eram as idéias de Comte, que via a grandeza futura da humanidade
co de primeira hora da guerra. Com a autoridade do político imperial, o como resultante da fusão da "raça branca" com as "raças" italianas e ibéri-
discurso positivista conseguiu alcançar um tom ainda mais forte em suas crí- cas, britânicas e germânicas, negra, amarela, etc. Essa utopia integracionista
ticas.28 Um novo cânone de personagens históricos vai se formando com a seria o "progresso" e o futuro da "civilização". Mas, por força das condições
cruzada positivista. Autores e depoimentos antes silenciados, como o do nacionais esboçadas anteriormente - a escravidão, o militarismo e a Guerra
deputado e escritor Cristiano Otôni,29 ou restritos aos críticos estrangeiros do Paraguai, momento-chave onde todas as distorções nacionais se irmana-
passam a fazer parte da edificação de uma espécie de contra-história do
ram contra qualquer desejo de união americanista -, o Apostolado, indepen-
conflito sul-americano.
dente de sua doutrinação, acabou por revisar fortemente uma parte da história
Vai ficando claro que a crítica positivista, nesse caso específico pelo que envolveu o fim da monarquia e o início de uma sociedade civil, machucada
menos, desconcerta a memória da nação vitoriosa, indispõe-se com a saga de saída por uma guerra de sentido obscuro. Por tudo isso, os positivistas
guerreira nacional, legitima os sentimentos negativos em relação ao conflito tiveram a capacidade de nos alertar para as dificuldades do caminho que o
e, por conseguinte, a imagem da nação estável e justa forjada em oposição à passado nos legou para que chegássemos a qualquer estágio considerável de
América Latina "bárbara" e retrógrada. Nesse processo, põe em questão "civilização" e "justiça". Um de seus artigos conclui-se assim, em tom de
até mesmo a glorificação do militarismo que se acoplou à república, do qual, pergunta inquietante: "a política sem ideais do Império fez com que fosse o
como se sabe, os próprios positivistas foram adeptos. Governo brasileiro o último a abolir a escravidão africana; a mesma política
continuada pela República reserva ao Governo brasileiro a triste sorte de ser
o último a abandonar o regime militar. E a isso chama-se Pátria?".31
27
Ibid., p. 14. Seria necessária uma abordagem teórica incisiva para que se pudesse
28
Raimundo Teixeira Mendes, Pela fraternidade universal, e especialmente sul-americana: a explicar efetivamente a situação do positivismo brasileiro diante desse proje-
propósito de mais uma comemoração da desgraçada guerra travada entre os quatro povos to americanista esboçado. Para nossos fins e limites resta dizer que se pode
irmãos, brasileiro, argentino, uruguaio, de um lado e paraguaio, de outro (Rio de Janeiro: Typ.
do Apostolado Positivista do Brasil, 1910), p. 3. encontrar, ainda antes de se iniciarem os "famosos anos vinte", que substi-
29
"Passou, por certo, no tempo, que o nosso inimigo, uma ou duas vezes, em seguida a sérios
reveses, esteve disposto a negociar a paz [...] E que a grande dificuldade era a pretensão de depô-
lo, a ele López, estipulada pelos aliados. [...] A campanha nos foi uma enorme calamidade, não
30
compensada por glória militar equivalente, nem por aumento de segurança em nossa fronteira", Raimundo Teixeira Mendes, Pela fraternidade universal, cit., p. 4.
31
citado em artigo publicado no Jornal do Comércio, 25 maio 1911. Jornal do Comércio, 10 dez. 1906.
318 319
Francisco Alambert 0 Brasil no espelho do Paraguai

turram o binômio "civilização-barbárie" por "modernidade-brasilidade", fru- Se a Primeira República durasse muito mais do que durou, o trauma
tos desse ataque revisionista. Em 21 de março de 1916, mais ou menos na histórico estaria resolvido a partir de sua substituição pela "ideologia da cul-
mesma época em que os positivistas faziam sua pregação, era lançado na tura brasileira".33 Porém, as crises foram se sucedendo ao longo dos anos
Bahia um requerimento pedindo a abolição dos festejos de Tuiuti e Riachuelo.32 vinte e início dos trinta, o que, vez por outra, fazia o temor da guerra voltar a
Especialmente, era também esse o momento em que os Institutos Históricos assombrar o mundo dos vivos e o silêncio dos mortos. É como se os autores
e a Revista do Brasil voltavam a se interessar pelo tema da Guerra do percebessem, questionando a herança da guerra, esse drama que acomete
Paraguai. Um documento como esse pode nos mostrar como de fato a bata- as "classes militares" e as opõe "às classes civis", bem como cria tensões
lha sobre os sentidos da guerra penetrou o século e permaneceu presente, dentro dessas mesmas classes, e propusessem uma saída conciliadora para
como uma sombra, durante a construção do sentido da "cultura brasileira". tentar esvaziar as contradições. Seja como for, a Guerra do Paraguai era
O texto do requerimento, aqui reproduzido em parte, é o seguinte: ainda um pesadelo de difícil despertar, um trauma muito longe de ser
equacionado no inconsciente da nação.
Há mais de nove lustros que o Paraguai e o Brasil mantêm os mais amistosos desígnios
nas suas relações internacionais. Relembrar, portanto, em meio de públicas solenida-
des os atos de guerra havidos entre os dois povos irmãos [...] ofende aos intuitos e
destoa dos ditames de uma sã política racional orientada para a confraternização dos III
povos [...] E, considerando um nobilíssimo dever cívico render homenagens aos que
no passado souberam amar e sentir a Pátria Brasileira, quer nos campos de batalha, Do mesmo modo como Machado de Assis percebera que depois da
quer nas outras esferas da atividade humana, pedimos designe o Governo da Repúbli-
Guerra do Paraguai os relógios andavam mais depressa - ou seja, a moder-
ca um dia para que anualmente se prestem, em todos os recantos do País, públicos
preitos de amor e gratidão aos que, na paz e na guerra, honraram o nome brasileiro. nização batia definitivamente às portas do Brasil —,34 Monteiro Lobato pare-
Para esse dia de culto cívico lembramos o 26 de janeiro, aniversário da "capitulação da ce ter percebido as transformações no tempo que a ordem do progresso sob
Campina do Taborda", glorioso epílogo da luta defensiva sustentada durante 24 anos, o capitalismo impunha após o fim de outro conflito, a Primeira Guerra Mun-
em prol da integridade do pátrio território, pelos guerreiros heróicos do indígena dial de 1914-1918. Talvez nenhum outro intelectual de sua época tenha dado
Felippe Camarão, do negro Henriques Dias e dos brancos André Vidal e Fernandes
tanta atenção ao tema da modernização e aos impactos do progresso capita-
Vieira, representantes denodados das três raças constitutivas de nosso povo.
lista na estrutura econômica, política e cultural brasileira quanto ele.35 Por
isso mesmo, o tema da Guerra do Paraguai não poderia deixar de aparecer
Os autores sabiam bem o que pretendiam, e propunham uma reade- em suas preocupações.
quação do jogo da memória histórica, substituindo o culto da guerra pela Em 1921, mesmo ano em que aparecem a novela Os negros e a cole-
celebração do país das três raças irmanadas. Tal proposição visava reavaliar tânea de contos Cidades mortas, Lobato reúne vários escritos dispersos e
a história de uma tragédia nacional (que no caso nasceu de uma vitória),
formulando um novo mito que fala à memória e substitui a lembrança do
belicismo escravista pela ideologia do caráter "cordial" brasileiro (que então
33
se afirmava). Assim, seria possível "irmanar mais intimamente os membros Penso aqui à maneira crítica de Carlos Guilherme Mota, Ideologia da cultura brasileira (São
Paulo: Ática, 1978).
das classes militares entre si", bem como "estreitar ainda mais os laços de 34
Gazeta de Notícias, 6 ago. 1893. Cf. Machado de Assis, A Semana: crônicas (1892-1893), cit.,
fraternidade que os prendem às classes civis". John Gledson (org.), p. 29.
35
O papel específico de Lobato, com seus avanços e ambigüidades, na formação intelectual moder-
na brasileira tem sido objeto de muitos estudos recentemente. Cf. Tadeu Chiarelli, Um jeca nos
Antônio Costa Ferreira et alii, Requerimento ao presidente da República (Venceslau Brás) vernissages (São Paulo: Edusp, 1995); Vasda B. Landers, De Jeca a Macunaíma: Monteiro
pedindo a abolição dos festejos comemorativos pela vitória brasileira nas batalhas de Tuiuti e Lobato e o modernismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988); Carmen L. Azevedo,
Riachuelo. São Félix, Bahia, 21 jan. 1916. 2f., impresso com assinaturas autografadas. O docu- Mareia Camargos, Vladimir Sacchetta, Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia (São Paulo:
mento encontra-se na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional. Editora SENAC São Paulo, 1997).
320
Francisco Alambert 0 Brasil no espelho do Paraguai 321

reflexões e os publica no volume intitulado A onda verde. Nele, encontra-


o exaltamento das virtudes guerreiras, revigoram, na vitória, a mentalidade
mos surpreendentes abordagens do tema da Guerra do Paraguai e sua rela-
bélica enfraquecida nos anos de paz", impondo a "todas as almas uma idéia
ção com a formação da sociedade brasileira. Trata-se de uma reflexão que,
suprema de vingança".40 É à instituição estatal, pensada em oposição ao
embora contemporânea de trabalhos como os de Batista Pereira ou dos
povo livre, que é creditada a montagem exclusiva desse circo de horrores:
ideólogos da guerra dos anos 20, se choca radicalmente com a maneira com
que as heranças e conseqüências do conflito vinham sendo abordadas.36
[...] pois os povos não fizeram a guerra. Eles são vítimas da guerra, porque são
Lobato soube ver melhor do que qualquer outro de seus contemporâneos os vítimas do monstro Estado. O monstro empolga-os e a partir da escola organiza a
impasses nos quais o país transitava e sua íntima relação com um fato do mentira viva de que se alimenta e em que se rebolca. Mentira alemã de um lado,
passado. mentira francesa de outro, mentira inglesa, mentira italiana, mentira em todos os
idiomas, sob todas as formas.41
O presente de Monteiro Lobato era o tempo da Primeira República e
das conseqüências da modernização estimulada pelo café nos ritmos da vida
nas franjas dos centros urbanos. Ele soube ver e aproximar desse quadro a A Primeira Guerra Mundial deu o mote para que Lobato colocasse o
grande tragédia européia de então: a Primeira Guerra Mundial. Como era Brasil no rol das línguas dos Estados que mentem. A Guerra do Paraguai, a
uma máquina de pensar paralelos, exemplos e soluções, irá se pôr a refletir Grande Guerra do século XIX sul-americano, era nossa mentira ainda pul-
primeiramente sobre o papel da guerra no destino das civilizações. Um dos sando num mundo de muitas mentiras bélicas, um mundo que se esforçava
textos do livro apela a um problema freudiano. Ele se pergunta: quem afinal é por sobreviver ao fim da era dos impérios. E a porta de entrada na nossa
o "pai da guerra"?37 Grande Guerra foi o episódio de Uruguaiana.
Para nosso liberal exaltadíssimo, o pai da guerra era o Estado, o "para- Uruguaiana foi tema de uma espécie de resenha incluída no livro. A
sita" que sugava as forças de liberdade que emanavam do povo. A guerra idéia de pensar o episódio e sua importância para a sociedade brasileira foi
era seu meio mais terrível de existência e perpetuação, pois se atem ao mun- sugerida a Lobato pela leitura de trechos do diário de André Rebouças, que
do na medida em que se constitui num infernal círculo vicioso onde tanto a àquela época vinha sendo publicado por Yan de Almeida Prado na Revista
vitória quanto a derrota não se diferenciam, pois não podem sanar as chagas do Brasil, fundada e dirigida por Lobato desde 1916.42 O ressurgimento do
criadas, mantendo "vivida a mentalidade guerreira".38 Trilhando esse cami- diário de Rebouças teve um peso decisivo no debate sobre as conseqüênci-
nho, Lobato se aproxima da famosa interpretação de Walter Benjamin quan- as da guerra nos projetos civilizadores brasileiros. Como um observador
to ao caráter estetizante da guerra,39 especialmente na forma que lhe deu o menos preso do que Taunay aos "mistérios" da natureza, como alguém mais
nazismo (que antes já havia promovido a estetização da política), responsá- afinado com a maquinaria da modernidade (em sua acepção fundadora: a
vel por sua permanência e reprodução: "a apoteose dos heróis, a apresenta- bélica), era muito mais difícil para Rebouças enxergar a guerra como metá-
ção estética de todos os crimes, o embelezamento sistemático da carniçaria, fora, idealizá-la como um espetáculo exclusivo de nobreza. A realidade lhe
assolava as quimeras.
36
Antônio Batista Pereira, Civilização contra barbárie (São Paulo: Rossetti&Camara, 1928). A
obra de Batista Pereira resume todos os argumentos favoráveis ao império brasileiro no momen- 40
to em que a discussão sobre os sentidos da Guerra do Paraguai ganhou destaque nos anos 20, com Monteiro Lobato, "O pai da guerra", cit, p. 53.
41
a aproximação da crise da Primeira República. Ibid., p. 57.
42
37
Monteiro Lobato, "O pai da guerra", em A onda verde e o presidente negro (São Paulo: Brasiliense, Todo um estudo ainda está por ser feito, analisando a presença da Guerra do Paraguai na fase dos
1951), pp. 53-8. anos 20 da Revista do Brasil. Por ora, fica apenas indicada a particularidade do tema no ideário
38 da revista, coisa que pode ser notada se arrolarmos, além da publicação do Diário de Rebouças, a
Ibid., p. 53.
39
Cf. Walter Benjamin, "Teorias do fascismo alemão"; "A obra de arte na época de sua publicação de textos como: Mário Bulhões Ramos, "O bailado sobre o cadáver de Solano López",
em Revista do Brasil, São Paulo, nov. 1923, ano 8, vol. 24, n. 95; ou, agora, pela editora da
reprodutibilidade técnica", em Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e histó-
revista, dirigida por Lobato, Alfredo D'Escragnolle Taunay, Dias de guerra e de sertão (São
ria da cultura. Obras escolhidas de Walter Benjamin (São Paulo: Brasiliense, 1986), vol. 1.
Paulo: Edição da Revista do Brasil, 1920).
322 Francisco AJambert 0 Brasil no espelho do Paraguai 323

O pesadelo de Rebouças fez Lobato acordar para as fantasmagorias como disse Marisa Lajolo, "as cidades moitas de Lobato não morreram de
da guerra e sua presença e peso na constituição do Brasil moderno. morte natural".46 Na literatura adulta lobatiana esse processo de análise da
Uruguaiana e a Guerra do Paraguai, vistas pelo olhar ambíguo e doloroso de decadência, simbolizada pelo colapso imposto à tradição e ao estilo de vida
Rebouças, levaram Lobato a esboçar uma violenta e satírica reflexão sobre rural, baseia-se numa crítica ao progresso compreendido como predador do
história, memória, guerra e patriotismo, onde a idéia da estetização da guerra modelo social erigido em torno da sociedade agrícola e provinciana. Seus
como fator de manipulação política e manutenção do estado de violência na contos querem encenar em seu movimento a passagem de um Brasil pré-
sociedade, desenvolvida em "O pai da guerra", é retomada: capitalista para uma ordem capitalista acelerada e implacável, centrada no
mundo urbano-industrial.
Foi de ontem a Guerra do Paraguai; seus veteranos ainda vivem por aí ao léu, às Em "Voluntários da pátria", entretanto, não são apenas essas as razões
dezenas; no entanto, parece um fato de priscas eras - tão rapidamente o Brasil
do quadro desolador. Sua forma aproxima-o tanto da narrativa ficcional quan-
evoluiu daí para cá, aos pinotes. Uruguaiana está na história devidamente estilizada
ao sabor do paladar patriótico. Tem isso a história de generoso: estiliza os fatos,
to da crônica ou da impressão de testemunho. A narrativa se inicia através de
descasca-os dos realismos dolorosos, desfigura-os num sentido estético. É o meio da uma cena de composição pictórica, lembrando um quadro de Almeida Júnior
humanidade poder ver-se com bons olhos [...]43 ou de outro de nossos retratistas daquele mundo destroçado, tão ao gosto
naturalista de Lobato:
Nesse ponto, o texto e a fluência ensaística das idéias fazem o crítico
de arte empedernido e mal-humorado se encontrar com um surpreendente Foi lá que vimos, uma tarde, sentado num mocho de três pernas, à porta dum casebre,
esse velho cujo cadáver ali passa na rede com rumo ao cemitério. De bruços num
crítico da história e das mentiras do Estado modernizador brasileiro - seja o
porretão de cego, atentamente ouvia ler notícias da Grande Guerra a um menino
Estado monárquico de antes, seja o republicano de sua época. Para fixar a descalço, de cócoras à soleira da porta.47
imagem dessa mentira, Lobato aproxima-a da cor azul, para ele a maior
ilusão da natureza. A montanha de longe pode evocar a estabilidade tranqüi- Nesse texto, a razão da decadência, simbolizada pelo velho cego, não
la do azul de safira, mas de perto é só "aspereza, precipício, perambeira, está diretamente ligada às forças econômicas e ao rolo compressor do pro-
bossoroca, mata híspida tramada de cipós e arranha-gato. E não é azul". O gresso, mas a um fato do passado que fantasmagoricamente reaparece no
crítico da história deve proceder com a mesma aproximação destemida, ne- presente. Ao ouvir o nome "Curupaiti", pronunciado pelo ancião como mur-
gar o azul dos grandes homens e de seus feitos, buscando o "colorido da múrio em resposta às histórias do desenrolar da Grande Guerra, o narrador
grisalha suja das coisas contemporâneas".44 percebe estar diante de um veterano soldado da Guerra do Paraguai, que
Esse projeto de "descolorir" a história é consubstanciado num esboço vagava quase como mendigo, apenas "roendo a meia pataca do soldo". Seu
literário chamado "Voluntários da pátria".45 O início desse "conto" é marca- nome era Pedro Alfaiate. Representante de um passado que já então havia
do pelo que já foi descrito em mais de uma oportunidade como a "obsessão" se tornado história oficial, ele era a memória semiviva, a contra-história que
de Lobato com a idéia de "decadência", de suas "cidades mortas". Mas, ainda podia ser encontrada para ser consultada, como um livro: "um velho
soldado é sempre um livro interessante, rico de incidentes, pitoresco e não
43
Monteiro Lobato, "Uruguaiana", em A onda verde e o presidente negro, cit., pp. 95-6.
raro heróico".48
44
"Cinco anos de guerra foram suficientes para desenvolver entre nós o germe do militarismo, o
qual, senhoreando-se da situação, fez uma República para uso e gosto dos militares. Do ponto de
vista humano, bem como do ponto de vista imperial, prosseguir na guerra foi um desastre.
Uruguaiana deveria ter sido um ponto final. O fazê-la vírgula, deu com o Império em terra. Que 46
Marisa Lajolo, "Monteiro Lobato, o mal-amado do modernismo brasileiro", em Contos escolhi-
grande ciência, na política, a ciência da pontuação! [...]", ibid., p. 99.
43 dos (São Paulo: Brasiliense, 1996), p. 9.
Monteiro Lobato, "Veteranos do Paraguai", em A onda verde e o presidente negro, cit., pp. 35- 47
Monteiro Lobato, "Veteranos do Paraguai", cit, p. 35.
40. 48
Ibid., p. 36.
324 Francisco Alambert 0 Brasil no espelho do Paraguai 325

Em seu célebre ensaio sobre Nicolai Leskov, Walter Benjamin também duras penas construídos desde a ironia cínica do primeiro Machado de Assis.
relacionou a perda de experiências narráveis e transmissíveis aos horrores Essa espécie de Jeca Tatu destroçado de Lobato era a contraprova da
da Grande Guerra de 1914. Segundo Benjamin, o soldado que voltava das historiografia e da memória cívica nacional, o testemunho definitivo que os
batalhas constitui um dos tipos arcaicos fundadores do "reino narrativo". positivistas procuravam mas não podiam encontrar, pois seu olhar só via os
Mas a guerra da técnica, que imita da esfera da produção de massas a capa- documentos oficiais, os depoimentos solenes. A cantiga infantil do "Itororó",
cidade industrial de matar, matou também no soldado sobrevivente aquelas celebrizada na memória das crianças, como identificou Gilberto Freire, tam-
experiências narráveis cujo caráter exemplar era o fundamento de sua sabe- bém é confrontada pela fala do velho cego, onde horror e tristeza se unem ao
doria.49 O velho soldado narrador de Lobato pertence a essa categoria. heroísmo inútil. Na lembrança do Alfaiate, tudo era "terrível" e "triste", fazen-
Porém, sua experiência trágica de guerra antecede em décadas a experiência do com que a façanha fundadora da nacionalidade perdesse todo sentido.
bélica da guerra total européia à qual Benjamin se refere como marco. Tam- Nesse ponto, a história de Pedro Alfaiate é interrompida e a narrativa
bém nesse sentido a Guerra da Tríplice Aliança antecipa as guerras do sécu- toma outro rumo. O narrador imparcial cede lugar a outro que apresenta sua
lo XX. defesa do "verdadeiro tipo do herói humilde, que o é sem saber". A ele
Pedro Alfaiate tem muito o que contar, mas tudo o que pode narrar de contrapõe um outro personagem, de cuja identidade nada sabemos. Esse
sua experiência subordina-se a uma tragédia que se inscreve mais na ordem novo soldado é o oposto daquele porque escondia-se na enfermaria durante
do inenarrável que na categoria das experiências exemplares. Por isso, a os combates, só sabia da guerra através da "janela do hospital". A covardia
escassez de testemunhos, lendas e fábulas de homens comuns sobre a Guer- e o cinismo eram sua marca, por isso "era incapaz de dar às suas narrativas
ra do Paraguai não deve ser creditada apenas ao fato concreto de que a uma impressão belicosa". A anteposição entre o heroísmo do homem sim-
imensa maioria das tropas era formada por analfabetos, escravos, etc. O ples e desse outro, cuja facilidade em esconder-se dos conflitos pode signi-
fato de que um acontecimento de tal magnitude na vida de milhares de pes- ficar tratar-se de alguém com certa patente e favores, é evidente e bastaria
soas tenha deixado pouquíssimas marcas na memória coletiva é sintomático para encerrar a nota. Mas o herói e o desertor sobreviveram. O primeiro
desse estado de empobrecimento e falta de sentido construtivo dessa expe- destroçado, o segundo sem demonstrar qualquer crise de consciência por
riência em nossa vida cotidiana desde então. seus atos "antipatrióticos". A "pátria", a "nação" pela qual lutou o voluntário
De fato, é o horror que cerca tudo. Passado e presente, ligados pela verdadeiro abandonou-o na miséria das cidades mortas, também elas aban-
aproximação da guerra que encerrou o século XIX brasileiro e da que ini- donadas, velhas e cegas aos olhos do progresso que fazia história empilhando
ciava o século XX, a saber: a Grande Guerra européia e sua conseqüência seus derrotados.
na América, em especial no mundo do interior, em guerra contra o progresso O velho soldado que Lobato flagrou vagando pelas cidades mortas
e a "modernidade" que engendrara ambos os conflitos. Por isso a aproxima- seria a última esperança de negar a Guerra do Paraguai como ato de reden-
ção da técnica da batalha do passado e do presente é apresentada como ção que separaria a "civilização" brasileira da "barbárie" latino-americana
continuidade e paralelo. A descrição das trincheiras do Paraguai feita pelo simbolizada por Solano López. Seu destino mostrava que a "barbárie" esta-
veterano cego se aproxima assombrosamente das famosas lutas de trinchei- va entre nós mesmos. Entretanto, desde então a versão "heróica" do conflito
ras da Primeira Guerra Mundial. seria contada pelo covarde sobrevivente. Sua figura tornar-se-ia responsá-
Deixar falar a memória do homem simples era a estratégia lobatiana vel pela perpetuação do belicismo no interior da república. Através de seu
para dinamitar os discursos da boa guerra e a força do heroísmo cívico a discurso, a guerra seria definitivamente içada a símbolo do orgulho pátrio, a
elemento de definição da idéia de Brasil que se inscreveria no século XX.
49
Vimos que o debate sobre o significado da Guerra do Paraguai para a
Walter Benjamin, "O narrador - Considerações sobre a obra de Nicolai Leskov", em Magia e
técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas de constituição do ideal do Brasil civilizado - a "Guerra das Letras" que antece-
Walter Benjamin, cit., vol. 1, p. 198. deu e ultrapassou a guerra do campo de batalha -, com suas contradições e
326 Francisco Alombert 0 Brasil no espelho do Paraguai 327

ambigüidades,firma-separa além do momento em que nasce, sedimentando- Bibliografia selecionada


se como uma referência constante para a reflexão sobre o "caráter" brasilei- ALAMBERT, Francisco. Civilização e barbárie, história e cultura: representações culturais e
ro - e, por conseguinte, sua "cultura" própria - e sua relação com a América projeções da Guerra do Paraguai nas crises do Segundo Reinado e da Primeira República.
Latina, ao mesmo tempo que, mais ou menos explícito, perpassa diversos São Paulo: FFLCH-USP, 1998. Mimeo.
momentos em que se tentou pensar o Brasil e suas possibilidades civilizadas ALBERDI, Juan Bautista. "El império dei Brasil ante Ia democracia de América: colección de
e civilizadoras. Do binômio antitético "civilização-barbárie" passamos, com artículos escritos durante Ia Guerra dei Paraguay contra Ia Triple Alianza." El Diário, edição
a república e os projetos modernizadores, para outro binômio, agora anco- especial, Assunção, 1919.
Assis, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1997.
rado nas oposições "moderno-passado", "progresso-atraso", sem que seus
BETHELL, Leslie. The Paraguayan War(1864-1870). Londres: Universidade de Londres, 1996.
conteúdos tenham se modificado significativamente. Pois a violência, o cinis- Bosi, Alfredo. "A arqueologia do Estado-Providência: sobre um enxerto de idéias de longa
mo ético, o preconceito, se associam, fazem parte dos despojos de nossos duração". Em . Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras,
"bens culturais", no sentido de Benjamin,50 e, em larga medida, deram-nos o 1992.
sentido de nosso caminho para a civilização, seja lá o que isso queira dizer COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do
entre nós. Monteiro Lobato via-se diante da ausência de acumulação de um Império. Campinas/ São Paulo: Editora da Unicamp/Hucitec, 1996.
legado crítico sobre as questões relativas à Guerra do Paraguai, na medida DONGHI, Túlio Halperin. Historia Contemporânea de América Latina. Madri: Alianza Editorial,
1996.
em que as formas de utilizá-la para justificar a formação da nação brasileira e
GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
de sua cultura, a forma dos interesses das classes dominantes, foi ela também LOBATO, Monteiro.A onda verde e O presidente negro. São Paulo: Brasiliense, 1951. pp. 53-8.
vencedora de todas as batalhas de que participou. MARQUES, Maria Eduarda M. C. (org.). A Guerra do Paraguai, 130anos depois. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1995.
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1978.
S ALLES, Ricardo. Memórias de guerra Guerra do Paraguai e narrativa nacional. 1997. Mimeo.
SCHWARZ, Roberto. "As idéias fora do lugar". Em . Ao vencedor as batatas. São
Paulo: Duas Cidades, 1981. p. 15.
TAUNAY, Alfredo D'Escragnolle (visconde de). Dias de guerra e de sertão. São Paulo: Revista do
Brasil, 1920.

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"Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje
espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo,
como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais [...] Nunca houve um monu-
mento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie", cf. Walter Benjamin,
"Sobre o conceito da história", em Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e
história da cultura. Obras Escolhidas de Walter Benjamin, cit., vol. 1, p. 225.

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