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CRISE AGRÁRIA NO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA:

fugindo da aparência na busca da essência


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José Sidnei Gonçalves

1 - AGRONEGÓCIO COMPETITIVO E IMENSA como continua a corroer as bases do modelo a


EXCLUSÃO SOCIAL: os argumentos dos montante, fazendo despencar no precipício da
extremos estão certos 1 exclusão levas inteiras de lavradores e pecua-
ristas que não encontraram alternativas para
A mídia nacional, nos últimos meses, sobreviver à derrocada de uma produção sub-
vem sendo assaltada pelas notícias da violência metida à expansão capitalista numa economia
no campo e pelos confrontos retóricos entre for- globalizada.
ças antagônicas como a União Democrática Ru- Não há como negar essas duas cons-
ralista (UDR) e outras facções de proprietários de tatações axiomáticas da realidade brasileira dado
terra e pelo Movimento dos Sem Terra (MST) e o sucesso dos agronegócios capitalistas cons-
outros movimentos sociais de luta pela reforma trastando com a catástrofe das iniqüidades so-
agrária. Afora as demonstrações de extremismo ciais. Assim sendo, ambos os extremismos estão
que beiram (e o que é pior chegam às vias de fa- cobertos de razão e seus argumentos centrais
to) o conflito armado, a sociedade civil vê-se são irrefutáveis, não havendo qualquer possibili-
bombardeada por argumentos que mais confun- dade de as partes poderem chegar a uma posi-
dem que esclarecem a realidade. Esse debate ção consensual sem que se abram mão de prin-
sobre os vários episódios envolvendo o recrudes- cípios. E, nesse sentido, há que se ter claro que,
cimento da crise agrária neste limiar do novo mi- nos marcos da sociedade democrática submetida
lênio, na verdade, traz à tona uma questão que ao Estado de Direito, é saudável o radicalismo na
se perpetua há mais de 500 anos pela opção do defesa de princípios não sendo permitido, nesse
desenvolvimento sem rupturas estruturais nas caso, em qualquer hipótese, pensar que qualquer
pseudomorfoses da economia brasileira, que foi das partes abra mão de seus argumentos, mes-
industrializada mas continua presa à economia mo porque tanto teórica como empiricamente a
agrária, pois, na verdade, sofreu um processo de realidade comprova que eles estão corretos.
agroindustrialização. Dados os extremismos en- Como que axiomáticas, essas consta-
volvidos no debate, tem-se focado duas consta- tações da realidade conduzem a um impasse,
tações empíricas que são aparências inegáveis, qual seja, como encontrar alternativas que rom-
quais sejam: pam com a lógica do aprofundamento dos confli-
1) o absoluto sucesso do desenvolvimento dos tos que conduzem ao absurdo do conflito armado
agronegócios no Brasil formando uma das a- que, por mais doloroso que seja aceitar, é como a
griculturas mais evoluídas e competitivas do humanidade tem resolvido esse impasse no de-
mundo, tanto assim que nações desenvolvidas correr dos séculos. Lógico que as autoridades
erguem barreiras protecionistas para impedir a vão apegar-se às leis, mas nunca poderão defen-
conquista de seus mercados pelos produtos der sua aplicação em nome da justiça, uma vez
brasileiros dos agronegócios. Esses produtos que haverá sempre uma parte injustamente per-
nacionais têm elevado grau de inovações tec- dedora. Muitas vezes, as notícias conduzem à
nológicas embutidas, sendo superiores em profunda perplexidade, pois descontados os de-
qualidade e produtividade; satinos promovidos por ambos os grupos sociais
2) a absoluta insustentabilidade do atual grau de contendores, proprietários de terras e os sem
desigualdade social, econômica e de renda terra, o Estado de Direito não encontra mecanis-
que vigora na sociedade brasileira que abriu mos de encaminhar a solução do problema, aca-
uma “vossoroca” que, não apenas se alarga bando, mais uma vez, pela postergação de sua
em dimensão e aprofunda-se em amplitude, solução, como tem sido a história brasileira há
mais de 5 séculos. Mais à frente, essa questão,
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Engenheiro Agrônomo, Doutor, Pesquisador Científico do “varrida para debaixo do tapete”, emergirá com
Instituto de Economia Agrícola da Agência Paulista de
Tecnologia dos Agronegócios.
igual ou maior força.

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Tal como nas grandes epidemias de da economia agrária brasileira tem sido marcada
saúde pública, como a recente luta contra a pela predominância dos marcos teóricos desen-
pneumonia asiática ou a necessidade de supera- volvidos para a economia norte-americana. Não
ção de uma nova doença que ataca lavouras, co- há qualquer demérito nisso, afinal, ao lado de es-
mo o cancro cítrico, deve-se buscar na ciência a pecificidades históricas irrefutáveis, pode-se en-
procura por alternativas. Para isso, há que fugir contrar imensas similaridades entre essas agri-
das aparências irrefutáveis e procurar, na essên- culturas, iniciando-se pelo fato que tanto o Brasil
cia da questão, caminhos que conduzam a antí- como os Estados Unidos da América são econo-
dotos contra o agravamento dos conflitos sociais. mias continentais, ou seja, qualquer que seja a
Dessa maneira, há que internalizar novos ele- opção de desenvolvimento econômico, os agro-
mentos ao debate da economia política agrária, negócios se transformarão, mas continuarão a
indo mais além da repetição de argumentos que ser o setor econômico fundamental do ponto de
desde há muito já se aceita como verdadeiros e vista do emprego e da renda. Dessa maneira, en-
que, por isso mesmo, não devem ser manipula- quanto único setor econômico capaz de dar conta
dos para fazer verdades plenas as postulações da territorialidade característica de economias
das partes, mesmo porque nesse plano existiriam continentais, as estratégias de desenvolvimento
duas verdades, o que coloca numa encruzilhada nacional para abrangerem toda amplitude do es-
a economia política, enquanto ciência. Essa é a paço econômico vinculam-se a opções de desen-
tentativa deste ensaio, que tentará fugir do lugar volvimento da agricultura. Dessa maneira, as-
comum dos dois argumentos basilares dos con- sumindo sem qualquer constrangimento a in-
tendores, os quais, desde logo, assume-se como fluência do desenvolvimento da agricultura norte-
irrefutáveis. Se assim o são, não podem ser anta- americana para o desenvolvimento da agricultura
gônicos, ou seja, deve haver algo mais profundo brasileira, seja no plano institucional, no plano
a discutir que a distribuição de terras e dos bene- tecnológico ou ainda no plano conceitual, há que
fícios da terra. Afinal, como escreveu há mais de se verificar com mais profundidade o que é essa
um século, o maior dos pensadores alemães, agricultura norte-americana, em termos de opção
Karl Marx: “se a essência e a aparência das coi- por modelos de desenvolvimento agrário, que
sas se confundissem, irrelevante seria a ciência ”. configuraram a atual realidade da maior agricultu-
ra mundial.
A economia agrária brasileira surgiu
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2 - LAVOURA BRASILEIRA : espelho do su- nos anos 40s como resultado direto da influência
cesso competitivo da lavoura do texas3 da escola norte-americana, em especial aquela
voltada para a discussão do desenvolvimento
A construção teórica dos pensadores econômico, como as teorias de Theodore W.
Schultz sobre as transformações da agricultura
2
Desde logo, para se evitar confusão, faz-se aqui uma di-
desenvolvidas nos anos 30s em diante. Essas
ferenciação nítida entre agropecuária e agricultura, sendo concepções tiveram influência direta no pioneiro
a agropecuária concebida como a produção primária das da economia agrícola brasileira, Ruy Müller Pai-
lavouras e criações e a agricultura tomada no sentido se-
torial mais amplo, qual seja, agropecuária mais agroindús- va, como se pode depreender de sua tese sobre
trias a montante e a jusante do campo, mais agroserviços o algodão no sudoeste brasileiro, defendida no
em todos os elos das cadeias de produção dos agronegó- Texas College, em fevereiro de 1941. A preocu-
cios. Assume-se assim, aqui, mais um axioma basilar de
Karl Marx, para quem, “as transformações econômicas pação fundamental de Müller Paiva era com a
são o motor da história”. transformação técnico-agronômica da produção
3
Denomina-se aqui de “lavoura texana”, a produção de setorial, tanto nesse texto4, como nos demais que
grãos e fibras do Meio Oeste dos Estados Unidos da acabaram por conceber sua idéia de moderniza-
América (EUA), um verdadeiro milagre da ciência agronô-
mica que acabou transformando aquilo que os ingleses
ção da agricultura brasileira que prevaleceu he-
denominavam “deserto inabitável das américas” na mais
4
importante estrutura mundial produtora de grãos e fibras. A pergunta fundamental de Ruy Müller Paiva, um pesqui-
Similar ocorrência técnica, sob condições históricas distin- sador da agronomia do algodão que se enveredou pela
tas, pode ser atribuída à expansão dos grãos e fibras no economia agrícola, era investigar o porquê a lavoura nor-
Cerrado Brasileiro, as denominadas terras ácidas. Isso te-americana, em plena guerra, enviou multidões de ho-
pode ser verificado na leitura do próprio ideólogo da mo- mens para as frentes de batalha e ao mesmo tempo au-
dernização da agricultura brasileira que, em 1960, consi- mentou a produção. A modernização dos processos pro-
derava a fronteira agrícola brasileira esgotada quando o dutivos era a resposta mais evidente para esse desempe-
Brasil Central ainda era um grande vazio produtivo. nho setorial.

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gemônica na economia agrícola brasileira duran- no de Safra para a Agricultura Familiar? Exata-
te décadas, em especial, no apogeu do processo mente o mesmo preceito de política agrícola,
de transformação ensejado nos anos 60s e 70s. decalcado da cartilha de Ruy Müller Paiva5.
A internalização do uso de insumos modernos Mais ainda, em que consistem esses
como fertilizantes e agroquímicos e a intensifica- planos de safra? Os instrumentos de política con-
ção do uso de máquinas nas lavouras consubs- tinuam a guardar similaridade com os mesmos
tanciariam um processo de mudança no campo defendidos nos anos 40s e 50s, aplicados primei-
que liberaria mão-de-obra que seria absorvida na ramente pelo Governo de São Paulo no final dos
expansão urbano-industrial. Para isso, Müller Pai- anos 50s e início dos 60s e adotados nacional-
va já nos anos 40s e 50s defendia o crédito sub- mente da metade dos anos 60s em diante, até
sidiado (por ele denominado crédito facilitado) e seu apogeu na primeira metade dos anos 70s.
os preços mínimos (por ele denominados preços Tanto assim que, a crítica mais contundente cen-
remuneradores) como instrumentos de política tra-se exatamente na “falta de crédito”, tomada
agrícola capazes de impulsionar a modernização quase que literalmente pelos segmentos descon-
da agricultura. Essa linha hegemônica de pensa- tentes e/ou excluídos como falta de política agrí-
mento da economia agrícola brasileira, ainda pre- cola. Ora, a similaridade é tamanha que, mesmo
valece na maioria das equipes que tratam do te- a área governamental criada para formular e
ma, permeando muitas análises ainda no mo- aplicar políticas especiais para a agricultura fami-
mento atual. liar, que engloba os “barrados no baile” da mo-
De fato, a modernização da agricultura dernidade, os excluídos do campo, baseia-se
foi efetivada com a adoção das políticas de crédi- exatamente nos mesmos pressupostos instru-
to subsidiado nos anos 60s em diante, lastreada, mentais. Destaque-se que nas políticas econômi-
ainda, na pesquisa pública capaz de criar, prin- cas brasileiras, todos os governos federais, inclu-
cipalmente, as variedades e cultivares que res- sive o atual até o momento, praticam preponde-
pondessem aos insumos e máquinas introduzi- rantemente, os instrumentos. Mais ainda, toda a
dos. Desde logo, há que se reconhecer, mais retórica dos Planos de Safra rende-se a apenas
uma vez, o irrefutável sucesso desse processo um grupo de produtos, as cadeias de produção
de modernização das lavouras brasileiras, crian- de grãos e fibras, com algumas novidades para
do uma capacidade competitiva comparável à outras mercadorias, mas sem fugir desse núcleo
das principais nações do mundo ocidental. Entre- central.
tanto, cumprido seu papel de transformar as la- A própria imagem de divulgação desse
vouras brasileiras, o crédito subsidiado foi aban- fato está associada ao despejar de colhedoras de
donado nos anos 80s em diante e, a despeito milho e soja em caminhões nos campos do su-
disso, houve um crescimento ainda mais consis- cesso. A própria época de divulgação atende às
tente das lavouras brasileiras nas décadas se- vicissitudes da sazonalidade, para que haja tem-
guintes. Assim, as explicações para esse suces- po para plantar a maior área da safra de grãos e
so devem estar mais além do que as políticas de fibras, que é a safra das águas. E as notícias das
crédito dos anos 60s e 70s, embora, não se pos- vendas crescentes da agroindústria de máquinas
sa negar sua relevância preponderante nessa agrícolas reforçam a confiança na “nova supersa-
quadra histórica em especial. Mas, antes de en- fra”, sendo que a que se encerrou superou a
trar com maior profundidade nesse debate, o que magnífica barreira das 120 milhões de toneladas
exige uma visão de amplitude estrutural distinta,
há que se pontuar que todas as medidas de polí- 5
Por essa razão, tem-se que colocar o Engenheiro Agrô-
ticas para as lavouras são tributárias do legado nomo Ruy Müller Paiva no seu lugar merecido, como um
das idéias de Ruy Müller Paiva. As políticas agrí- dos pensadores que mais influenciaram o desenvolvimen-
to nacional, forjando o aparato ideológico que sustentou a
colas dos anos 80s, 90s e seguintes, inclusive as modernização da agricultura e criou uma instituição, o Ins-
tomadas pelo Governo neste ano, têm o mesmo tituto de Economia Agrícola em setembro de 1943, ou se-
desenho da concepção desenvolvida nos anos ja, completa 60 anos. Trata-se, na verdade, do criador da
ciência econômica aplicada à análise setorial no Brasil, or-
40s. Afinal, quais os instrumentos do Plano de ganizando-a para pensar o desenvolvimento agrícola den-
Safra 2003-2004? O crédito facilitado e os preços tro do processo de desenvolvimento econômico, que sur-
mínimos, que nem sempre atendem ao requisito giu em 1941, muito antes da pretensa primazia da análise
industrial como motor do surgimento desse ramo do pen-
de preços remuneradores. E do denominado Pla- samento no Brasil.

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de grãos e fibras6 em muito pouco tempo um rio, para as mesmas cadeias de produção de
sonho que pareceria inatingível na metade dos grãos e fibras inseridas no Plano de Safras do
anos 90s. Interessante salientar que o Ministério MAPA, traz uma contradição em si mesma, qual
do Desenvolvimento Agrário (MDA) traça para a seja, se obtiver sucesso implica, de forma inexo-
agricultura familiar exatamente o mesmo de- rável, na reprodução da moderna lavoura capita-
senho traçado pelo Ministério da Agricultura, lista de grãos e fibras submetida aos desígnios
Pecuária e Abastecimento (MAPA). Para os mes- da escala para ganhos de eficiência e compe-
mos grãos e fibras (milho, feijão e arroz, somados titividade. Tome-se uma alimento típico do brasi-
à mandioca), numa leitura quase de uma política leiro, o feijão, produto para o qual sequer há tran-
dirigida para os que ainda não são, mas serão sação internacional relevante, cujo acesso é po-
agriculturas empresariais. Isso porque, em sínte- pularmente sinômimo de necessidade pela po-
se, se for bem sucedido em termos de incremen- pulação, em especial a mais carente, público alvo
to de renda, certamente o agricultor atendido pelo do Programa Fome Zero. A pobreza brasileira, à
MDA passará a constar do MAPA7. parte das zonas rurais nordestina e amazônica,
Essa política de desenvolvimento agrá- está concentrada nos grandes centros urbanos.
Assim, o não acesso aos alimentos representa
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Interessante verificar, para as cadeias de produção de um problema de renda, decorrente do desempre-
grãos e fibras, a ocorrência da generalização de um pa- go e da baixa remuneração urbanos e/ou da in-
drão tecnológico do ponto de vista agronômico já domina- capacidade de gerar condições de sobrevivência,
do nos anos 80s, ou seja, representa a generalização de
padrão agrário já internalizado no final dos anos 70s, o como as populações ribeirinhas amazônicas e do
qual não teve inovação tecnológica substantiva a que pos- semi-árido nordestino. Para a imensa maioria
sa ser atribuída a característica de ruptura paradigmática.
Os gradientes de produtividade dos grãos e fibras para a
dessas famílias, o mecanismo mais consistente
metade dos anos 80s mostravam uma enorme amplitude de erradicação da fome é a adoção de políticas
de rendimento dessas lavouras com poucos pioneiros sociais compensatórias para permitir o acesso
situando-se nos patamares mais elevados enquanto que,
a base praticava rendimentos mais baixos. Desse período
aos alimentos. Assim, desde logo, é meritória a
para frente ocorre um progressivo crescimento dos planta- decisão do Governo Federal de enfrentar a luta
dores com maiores rendimentos e queda proporcional para solucionar essa chaga social absolutamente
daqueles com baixos rendimentos, o que leva a aumento
nas médias de rendimento. No momento atual, há a con- inaceitável para as condições brasileiras. Entre-
centração nos gradientes de maior rendimento impulsio- tanto, os impactos das políticas para a agricultura
nando a média observada para cima. Nesse processo, a familiar, nos moldes apresentados, podem ser
distribuição de rendimentos que nos anos 80s mostrava
uma elevada concentração nos baixos rendimentos, na pífios, além de poder em encarecer e reduzir a
realidade atual, revela que essa concentração é elevada abrangência do programa contra a fome.
nos altos rendimentos, com que a média geral cresce. Se Por que a política para a agricultura
de um lado essa aceleração do processo de adoção de
tecnologia resulta na maior competitividade setorial, de familiar, centrada no exemplo do feijão, mostra-se
outra incrementa o tamanho das lavouras revelando sua incompatível, e até mesmo antagônica, com os
face concentradora de terra ao ser tributário do avanço da
mecanização, em especial, nos cerrados do Brasil Central.
objetivos do programa contra a fome? Para se
As unidades de produção de menor área do Sudeste, combater a fome urbana ou de regiões com bai-
principalmente, as paranaenses, gaúchas e paulistas per- xas possibilidades de produção suficiente, deve-
dem competitividade e aquelas, sem alternativas, são fa-
gocitadas no processo. Essa é a dinâmica recente das se mobilizar os instrumentais de sucesso da agri-
cadeias de produção de grãos e fibras. De símbolos da cultura brasileira. Assim, para uma mesma quan-
modernidade tecnológica nos grãos e fibras, os lavradores tidade de recursos disponíveis, quanto menor o
do Sudeste (SP, PR e RS) passaram a exemplo do atraso.
Muitos que detinham competência tecnológica e tiveram preço final pago pelo consumidor, maior a quanti-
acesso ao financiamento da maquinaria, para fugir das dade de alimentos adquirida e consumida. Feijão
deseconomias de escala de suas pequenas e médias mais barato é mais feijão no prato poderia ser o
propriedades no Sudeste, migraram para o Brasil Central,
onde passaram a ser grandes lavradores. Essa migração lema. Afinal, como produz feijão, uma lavoura
é compatível com a consolidação da moderna lavoura de modernizada nos padrões capitalistas, esse co-
escala.
mo os demais grãos8? Para uma produtividade
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Por essa razão é que este autor aponta, há décadas, a de 600kg/ha em cultivo de sequeiro, o custo de
absoluta desnecessidade da divisão entre esses ministé-
rios, pois do ponto de vista dos instrumentos e dos objeti-
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vos, fazem exatamente a mesma coisa. A política de ter- Essas condições são decorrentes de observações do au-
ras, implantada pelo Instituto Nacional de Colonização e tor na realidade do Sudoeste Paulista na safra das águas
Reforma Agrária (INCRA), esta sim justificaria um Ministé- 2002-2003, mais precisamente para a cidade de Itabe-
rio de Terras, nunca de um Ministério do Desenvolvimento rá-SP, que representa a principal região produtora paulista
Agrário nos moldes de atuação realizados. do produto.

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produção de feijão é de R$60,00/saca, ou seja, lhadores assalariados, a proposta para a agricul-


R$1,00/kg. Para uma produtividade de tura familiar é inconsistente, além de não sig-
1.200kg/ha em cultivo de sequeiro, o custo de nificar solução adequada para os próprios agricul-
produção de feijão é de R$48,00/saca, ou seja, tores familiares, pois só terão sucesso, se mu-
R$0,80/kg. Para uma produtividade de darem de lado, tornando-se lavradores empresa-
3.600kg/ha em cultivos irrigados, o custo de pro- riais.
dução de feijão é de R$38,00/saca, ou seja, Isso nos remete, em retorno, à discus-
R$0,63/kg. são do processo de desenvolvimento da agricul-
Mais informações a considerar, o la- tura brasileira. Todos os argumentos apresenta-
vrador de 600kg/ha planta em média 3,5 hectares dos sintetizam um dado padrão agrário de produ-
(1,5 alqueires paulistas) colhendo, portanto, se ção centrado nos desígnios da escala, sustenta-
tiver enorme sucesso, 35 sacas de feijão. O la- do no uso de insumos, máquinas e outras técni-
vrador de 1200kg/ha planta em média 10 hecta- cas modernas. Esse padrão está implantado na
res (4 alqueires paulistas), obtendo colheita de agricultura brasileira com absoluto sucesso. Para
200 sacas. O lavrador de 3600kg/ha, cultiva em a soja já se tem produtividade superior à norte-
média 100 hectares de feijão, obtendo 6.000 sa- americana, e o Brasil é um dos maiores exporta-
cas do produto. Assim, como os consumidores dores mundiais. Para o milho, que denomina-se
estão nas cidades e nas grandes metrópoles, tão plantios comerciais, como lavoura principal, o de-
importantes quanto os custos de produção são os sempenho e a capacidade de resposta segue na
custos de transação. Ora, para buscar o feijão na mesma tendência, inclusive na presença do milho
roça, exige-se lote mínimo de 150 sacas (carga brasileiro no mercado internacional com volumes
de 1 caminhão) e estrada boa, para redução cada vez mais significativos. Atualmente, para o
tanto do custo do frete quanto da “homogeneiza- algodão, há semelhante situação. Para o arroz e
ção” da carga. Assim, os custos de transação são o feijão existe enorme capacidade de resposta a
inversamente proporcionais aos volumes produ- preços. Noutras palavras, para os grãos e fibras
zidos, sem considerar as diferentes qualidades enquanto lavouras de elevada eficiência de esca-
de produto, pois o feijão irrigado, colhido me- la, estão internalizadas na agricultura brasileira,
canicamente, é muito mais homogêneo, logo, os as condições de elevado incremento de produ-
seus custos finais colocados nas gôndolas dos ção, se os preços relativos forem vantajosos.
supermercados são, proporcionalmente, ainda Ressalte-se que preços vantajosos são preços
mais vantajosos. Mas, desconsiderando os cus- efetivamente praticados nas transações comer-
tos de transação para efeito das compras gover- ciais em economia aberta, inserida num mercado
namentais9, com menor burocracia e melhor qua- globalizado, quais sejam, contabilizando as políti-
lidade do produto, no caso do feijão de alta tecno- cas ativas de incentivo às exportações das na-
logia, pode-se consumir 58,7% mais feijão com o ções desenvolvidas, tais como o financiamento
dispêndio da mesma soma de recursos gover- das aquisições dos produtos nesses países11. Es-
namentais, o que permitiria atender a muito mais sa agricultura produtora de produtos primários e
gente10. Dessa forma, tendo claro que a questão de bens intermediários de baixo valor agregado,
do não acesso aos alimentos, por grande massa associando ganhos em escala com alta produtivi-
da população urbana, é uma questão de deman- dade que além dos grãos e fibras pode-se verifi-
da e não de oferta, não apenas para os desem-
11
pregados, como para os urbanos de renda insufi- Isso faz das políticas macroeconômicas de câmbio e de
juros, os mais poderosos instrumentos de competitividade
ciente, e também para a imensa massa de traba- da agricultura brasileira, pois o câmbio impacta diretamen-
te os preços relativos quando expressos em moeda brasi-
9 leira, dado um preço internacional e um dado patamar do
Mesmo que o Governo Federal não adquira diretamente o
câmbio. Além disso, comprando produtos como o trigo, a
produto, preferindo distribuir recursos para que as famílias
juros de 4 a 6% ao ano e prazos de até 420 dias, pode-se
atendidas comprem seu feijão, alguém vai realizar essa
internalizar o trigo no Brasil, processar e comercializar o
operação de levar o produto da região de produção para a
produto final em até 60 dias, aplicar os recursos no merca-
região de consumo.
do brasileiro a juros elevados que representam ganhos fi-
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Igual raciocínio pode ser feito para a mandioca, principal nanceiros palpáveis que, em última instância, significam
alimento nordestino, pois pela estrutura de produção e de produtos estrangeiros mais baratos no mercado interno. O
custos é muito mais barato levar a farinha de mandioca de único antídoto para juros altos nesse caso, seria manter,
Paranavaí (PR) para abastecer o sertão nordestino, que ao mesmo tempo, o câmbio alto para encarecer o produto
produzir esse produto em condições não competitivas no estrangeiro pois, caso contrário, os impactos podem ser
Nordeste. deletérios.

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car no açúcar e álcool, no suco cítrico e no papel as na capacidade de ampliação das vendas ex-
e celulose nada mais é que o padrão texano de ternas brasileiras. No plano interno, a securitiza-
lavouras. ção de recebíveis para financiamento das safras
Essa agricultura do Texas, típica dos por venda antecipada e mecanismos consisten-
belts, associa lavouras mecanizadas com uso tes de seguro da renda seriam suficientes para
intensivo de insumos, produzindo uma dada com- garantir a expansão da produção. Isso porque,
moditty enquanto produto, com elevado padrão mais que as bases criadas pela política de crédito
de uniformidade, com preços cadentes pelo cons- subsidiado nos anos 60s e 70s, na verdade, com
tante incremento da produtividade. Essencial- o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND)
mente, a renda líquida deve crescer com incre- do Governo Geisel que internalizou a moderna
mentos de quantidades produzidas que levem a agroindústria de máquinas e da química agrícola,
quedas de custos de produção por unidade mais ao mesmo tempo em que ampliou as bases da
significativas que as reduções de preços, ou seja, agroindústria processadora, completa-se o pa-
trata-se de lavoura cujos ganhos em escala de- drão de industrialização da 2ª Revolução Indus-
terminam as rentabilidades dos empreendimen- trial no final dos anos 80s. Dessa maneira o II
tos. Em economias continentais essa agricultura PND, em termos de reflexos na dinâmica econô-
texana é fundamental para o desenvolvimento mica brasileira, foi tão ou mais importante que o
nacional, não apenas para sustentar enquanto Plano de Metas de Juscelino Kubstcheck. As su-
bens intermediários outras cadeias de produção, persafras das décadas de 1980 em diante tem
como o complexo carnes, em especial, de suínos como explicação para a expansão da produção,
e aves, como também para fornecer esses bens mesmo na ausência dos subsídios ao crédito ru-
no mercado internacional. Pela extensão cultiva- ral, a engrenagem das cadeias de produção a-
da e pelo volume produzido, o tamanho dessa groindustriais. O Brasil internalizou esse padrão
lavoura no Brasil deve ser sustentado, e mesmo de desenvolvimento industrial pela ponta, pos-
ampliado, pela importância no emprego, na renda tando-se num patamar de possuir uma das mais
e na geração de divisas. Para algumas dessas competitivas estruturas produtivas mundiais12.
grandes lavouras como a de cana, laranja, pinus
e eucaliptus (e mesmo o algodão do caroço para
a pluma), pela necessidade logística da realiza- 3 - TERCERIZAÇÃO NO MODELO TEXANO:
ção do primeiro processamento na origem, o in- obtenção de ganhos de escala em lavou-
cremento de renda e de emprego são ainda mais ras de tamanho médio
significativos. Tem-se aí todo o panorama do su-
cesso da agricultura brasileira, eficiente e compe- Antes de inserir na discussão o que se
titiva, tal qual se verifica no Texas, e atualmente denomina modelo californiano de lavouras, há
até mais consistente que lá, e que deve ser esti- que se discutir em que condições o modelo texa-
mulada e mantida como absolutamente impres- no, no qual a prevalência da escala, pela genera-
cindível para o desenvolvimento nacional. Se o lização da mecanização, determina a área de la-
Brasil incrementar a agregação de valor, interna- vouras e com isso o tamanho das propriedades.
lizando elos subsequentes da cadeia de agrega- Desde logo, há que ser frisada uma diferença
ção de valor, multiplicará renda e emprego. fundamental entre os coeficientes técnicos de-
Entretanto, não está no Texas o padrão terminadores dos índices de mecanização entre
capaz de romper com o aprofundamento das de- as lavouras norte-americanas e as lavouras brasi-
sigualdades no campo. Para perseguir esse obje- leiras. Essa diferenciação decorre diretamente
tivo não é preciso criar estruturas governamentais
12
para realizarem o que as tradicionais já realiza- Para explicar isso de forma consistente não é necessário
recorrer aos modelos desenvolvidos em Harvard (EUA)
ram com insofismável sucesso. Para a lavoura por Davis & Goldberg no seu trabalho sobre o conceito de
brasileira centrada no modelo texano, os instru- agribusiness datado de 1957. Basta verificar a análise de
mentos de políticas governamentais mais impor- Ignácio Rangel, brilhante economista brasileiro que, na
sua tese sobre desenvolvimento econômico apresentado à
tantes são o câmbio, os juros e a ação comercial Comissão Econômica para a América Latina, no Chile, em
contundente buscando acordos bilaterais e multi- 1954, já propunha analisar a agricultura com base na ma-
laterais capazes de reduzir os impactos das po- triz insumo-produto de Wassily Leontief, demonstrando co-
mo as transformações agroindustriais alteram a dinâmica
líticas protecionistas norte-americanas e européi- econômica.

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das condições climáticas peculiares a cada reali- ca brasileira desenhada para a agricultura familiar
dade, o que inclusive determina distintas possibi- que, ao invés de fortalecê-la, pôde conduzí-la à
lidades técnicas de rotação de culturas. Nos Es- ainda maior perda de expressão.
tados Unidos, o inverno rígido acaba conduzindo Mas, só a grande propriedade rural é
a decisão sobre o tamanho da patrulha de máqui- incompatível com a obtenção de ganhos em es-
nas disponíveis, tomada com base na máxima cala gerando a produção competitiva de grãos e
capacidade de realizar o plantio e a colheita num fibras? Do ponto de vista gerencial e agronômico
espaço reduzido de tempo. a resposta é negativa, ou seja, há como dese-
Noutras palavras, tanto os períodos de nhar-se propriedades de tamanho médio com
plantio como as épocas de colheita são condicio- elevado padrão de mecanização. Mas, isso só
nados pelas variáveis climáticas com grandes mostra-se possível sob dadas condições estrutu-
amplitudes sazonais com a concentração de ope- rais. A escala do empreendimento deriva da es-
rações mecanizadas num curto espaço de tem- trutura de capital fixo na medida em que o mes-
po, gerando a necessidade de máquinas capazes mo determina a capacidade de produção. Um tra-
de obter alto rendimento operacional, permitindo tor traçado, os equipamentos e as máquinas
o plantio de toda área planejada. Daí uma imensa complementares já representam um determinan-
frota de mais de 4,6 milhões de tratores, resul- te de dado tamanho de lavouras. Para grãos e Trator + Colhedeira,
tando em coeficiente médio dado em ha/trator fibras surge a colhedora que amplia, ainda mais, no caso dos grãos e
muito baixo, indicando elevada mecanização. Na a dimensão econômica, consistente com o pa- fibras, o que amplia a
realidade brasileira, não apenas os períodos de drão da maquinaria. Pelo bloco de investimento
necessidade de
plantio e colheita são muito mais amplos, como exigido na aquisição dessa maquinaria, com o
as possibilidades de rotação de culturas são maio- tamanho da área de lavoura que resulte na de- investimento/crédito.
res, permitindo que, com coeficientes médios em preciação mais eficiente do capital fixo, minimi-
menor demanda por termos de ha/trator iguais ao triplo do verificado zando o custo médio por unidade de produto,
tratores nos EUA nos EUA, seja possível concretizar padrões de cristaliza-se unidades produtivas com enorme ca-
mecanização semelhantes. Essa é uma vanta- pacidade de lavourar terras, ou seja, torna o pa-
gem competitiva expressiva para a lavoura de drão próprio para grandes espaços plantados
por isso que nem todo grãos e fibras brasileira em relação à concorrente com grãos e fibras.
proprietário precisa norte-americana, qual seja a depreciação mais Essa lavoura de escala produzindo
eficaz do capital fixo. Com isso, submetidas à re- grãos e fibras com elevada produtividade numa
ter o seu, e alguns pe
gras de livre concorrência plena e a políticas ma- realidade de alta composição orgânica do capital, COMPOSIÇÃO
quenos e médios que croeconômicas próximas, livres de protecionismo, tem ainda duas características fundamentais que ORGÂNICA DO
têm prestam serviços para a mesma produtividade das lavouras, a pro- impactam de forma decisiva no tamanho do em- CAPITAL.
para outros dução brasileira preponderará na disputa nos preendimento. A primeira é que se trata de produ-
mercados. tos “rurais” com baixo valor unitário, encaminha-
Portanto, não é sem razão que o Brasil, dos para a agroindústria processadora, com o
com as conquistas da estabilidade e com as polí- que as margens unitárias absolutas de rentabili-
ticas governamentais da metade dos anos 90s dade dos lavradores são reduzidas exigindo vo-
em diante, tenha realizado expressivo avanço na lumes cada vez maiores para aumentar a renda
produção e inserção mundial nas cadeias de pro- líquida, ou seja, há uma relação direta entre a ESCALA E LUCRO
dução de grãos e fibras. Entretanto, se essa é escala do empreendimento e a renda líquida total
RENDA
uma vantagem competitiva, há que se compreen- obtida. Pela mesma razão, esse equilíbrio, literal-
der que esse mesmo coeficiente favorável de mente, sucumbe às “anormalidades” de preços e PREÇO e CLIMA
mecanização conduz a uma pressão para áreas de clima, com o que falta no Brasil o necessário SEGURO da renda
de lavoura também muito maiores em tamanho, instrumento de seguro da renda para sustentar a ESTABILIDADE
mas você não vai explicar
refletindo-se em propriedades muito maiores, ou estabilidade desse padrão produtivo. O seguro desse padrão produtivo
a concentração de terrasseja, essa vantagem representa um estímulo à para esse universo de empreendedores rurais é TAXA DE JUROS
concentração da terra e praticamente exclui a
só por essa via, não é isso? mais importante que o preço do dinheiro nos
mesma possibilidade de eficiência para os pe- mecanismos de crédito e custo financeiro, sendo
quenos e médios lavradores na produção de que esse tende a cair em regimes institucionais
grãos e fibras. Esse argumento reforça, ainda que conduzam à maior estabilidade da renda. A
mais, a preocupação com os resultados da políti- segunda, decorre do elevado bloco de investi-

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PADRÃO
TECNOLÓGICO
FORMAÇÃO mentos para formar e manter atualizado o capital tal fixo, determinando elevada composição orgâ-
BARREIRAS À
FINANCEIRIZADA fixo investido na maquinaria exigindo uma inser- nica do capital e com isso um nível de escala
ção definitiva do empreendedor no sistema finan- consistente com base em grandes áreas de la- ENTRADA
DO TERRITÓRIO
ceiro como gerente de negócios. Essa, talvez, vouras, funciona como eficiente “barreira à entra- TEMPO MÉDIO
e tenha sido a resultante mais importante do crédito da” para novos empreendedores. Essa é a razão SOCIALMENTE
REPRODUÇÃO AM- subsidiado dos anos 60s e 70s, qual seja a inser- pela qual muitos assentamentos fundiários, im- NECESSÁRIO
PLIADA DO CAPITALção definitiva da produção do campo na lógica do plantados com assistência técnica adequada, e
EFICIÊNCIA
mercado financeiro, criando gerentes de negó- até com capital fixo adequado, acabam sendo
cios rurais numa ruptura com o velho e ultrapas- inviabilizados no tempo face ao seu desempenho GERENCIAL
sado padrão agrário focado na reprodução da inferior à media de um padrão agrário que cada GLOBAL
mercadoria, ou seja, assume-se definitivamente a vez mais aprofunda sua eficiência gerencial glo-
face da reprodução ampliada do capital, onde o bal. Cite-se o exemplo das reportagens recentes
dinheiro é aplicado na produção de mercadorias enfocando os assentamentos da Fazenda Itama-
para, na venda, propiciar a obtenção de mais di- rati13, onde alguns conjuntos de sistemas de ir-
nheiro. rigação por “pivot central“ estão sucateados pelo
SUPREMACIA DAS Reforçando essas características que, desuso e outros com uso abaixo da potencialida-
por
GRANDES LAVOURAS si mesmas, conduzem à supremacia inexorá- de. As matérias jornalísticas divulgadas colocam
vel da competitividade das grandes lavouras, há que a produção de milho e soja irrigados caiu a
INDIVIDUALISMO
que se adicionar outra, integrante da formação um terço daquela obtida na mesma área antes de
PATRIMONIAL cultural, representada pelo apego ao patrimonia- concretizar-se os assentamentos, e que aproxi-
lismo. As visões dos agentes envolvidos nos de- madamente 277 famílias continuam sem renda
nominados conflitos agrários são exatamente tendo, pelo menos, 3 refeições diárias com renda
iguais no seu sentido patrimonial postando, de media mensal de R$330,00/mês. Ademais, para
um lado, proprietários de terra buscando preser- aprofundar a constatação de ineficiência, a repor-
var seu patrimônio fundiário e, de outro lado, os tagem assevera que a energia que move os sis-
sem terra lutando pelo acesso à terra enquanto temas de irrigação em uso é paga pelo governo
patrimônio. Portanto, um elemento cultural de estadual.
união desses segmentos sociais que se configu- A conclusão óbvia, numa leitura da a-
ram como contendores políticos é a visão patri- parência detectada nos indicadores mostrados
monial da terra, sendo pouco representativas as nas reportagens é pela ineficiência, ineficácia e
postulações descoladas desse objetivo. Mais ain- inefetividade da reforma agrária no modelo de
da, esse apego ao patrimonialismo fundiário aca- assentamentos fundiários. Mas, é preciso mais
ba sendo reforçado pelo individualismo enquanto que apontar essa constatação, buscando explica-
valor arraigado de ambos os segmentos sociais ção para o fato. É preciso destacar o que é um
fazendo com que, salvo em raras realidades de pivot central e qual a decorrência técnica envol-
segmentos sociais com culturas específicas,
ocorra a impossibilidade de estruturas comunitá- 13
Essas informações estão numa extensa e interessante
rias e/ou coletivas, consistentes num espaço de reportagem de Luiz Maklouf de Carvalho, publicada em O
tempo mais longo. Em síntese, cada indivíduo Estado de São Paulo na edição de Domingo, dia 6 de julho
de 2003, destacando a crise de sustentabilidade envolven-
luta pelo seu patrimônio, tanto os que o detêm do a Fazenda Itamarati em Ponta Porã (MS), que teria si-
defendendo-o, como os que não têm, lutando do o modelo vendido para o Presidente da República co-
para ter acesso. mo “modelo eficiente de reforma agrária”, onde uma gran-
de e conhecida estrutura de lavoura moderna foi dividida
Esse individualismo patrimonial, arrai- recebendo 1.143 famílias de assentados numa área de 23
gado nas amplas camadas sociais do campo bra- mil hectares que corresponde à metade da fazenda origi-
sileiro, consiste num obstáculo importante para nal. Na terça feira, 08 de julho de 2003, o mesmo Jornal
volta ao assunto no editorial “o modelo de reforma agrária
estruturar-se alternativas menos estimuladoras vendido a Lula”. A diferença dos resultados produtivos
da concentração da terra para a produção de entre os 23 mil hectares que foram destinados à “reforma
grãos e fibras no modelo texano. Isso porque a agrária” e os outros 25 mil que continuam sendo proprie-
dade e administração do Itamarati Agropecuária é ressal-
inserção competitiva, num dado processo, só po- tada pelo articulista, que chama atenção para o sucatea-
de ser realizada com sucesso, se executada pela mento de estruturas de “pivot central” destinadas aos as-
ponta da base técnica. Noutras palavras, da ótica sentados. Ressalte-se que ambas as estruturas são ban-
cadas pelo dinheiro público, a empresarial e o assenta-
empresarial, a eficiência de dado padrão de capi- mento, mas com resultados muito diferentes.

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vendo a decisão de adotá-lo como tecnologia. cepção de projeto e não da reforma agrária en-
Cada conjunto desse sistema de irrigação girató- quanto processo, pois equívocos de avaliação
rio irriga 116 hectares e desde logo exige técni- desse conteúdo também ocorrem em profusão
cas de manejo de água e solo sofisticadas para para empreendimentos empresariais mal conce-
se evitar problemas como a salinização do solo. bidos e mal dimensionados, ainda que, também
A própria dimensão de 116 hectares já conduz à executados às expensas do dinheiro público14.
necessidade de uso comunitário de cada apare- Mais um exemplo, verifique-se o epitá-
lho pois, a existência de 1.143 famílias assenta- fio do algodão brasileiro do Planalto Meridional ALGODÃO DA
das em 23 mil hectares implica numa área média (São Paulo e Paraná), velho modelo de sucesso MÉDIA E
de 20,12 hectares por família, ou seja, quase 6 baseado na pequena e média propriedade e no PEQUENA
famílias por conjunto de irrigação. Mais ainda, a arrendatário familiar, propalado em artigos cientí-
PROPRIEDADE
eficiência da logística de manutenção implica que ficos de renomados “brazillianistas agrários” nos
os vários conjuntos sejam gerenciados em bloco. anos 70s como ícone da demonstração cabal da COORDENAÇÃO
Outra determinante é a unidade de de- capacidade de uma nação em desenvolvimento VERTICAL arcaica
cisão técnica, pois a ocupação dos 116 hectares, em estruturar produção competitiva baseada na ABERTURA DO
de um mesmo conjunto, deve ter planejamento ciência agronômica nacional que, nos anos 90s, MERCADO E
unificado para ser consistente, exigindo, mais sucumbiu à abertura do mercado brasileiro em
CRISE
uma vez, o desapego ao individualismo patrimo- pleno processo de globalização. Essa então “mo-
nial. Outro ponto é que se trata da produção de derna” cotonicultura, apesar de calcada em coor-
milho e soja, ou seja de produtos de baixo valor denação vertical arcaica, entra em crise e prati-
unitário, com ganhos crescentes à escala e em camente desaparece, exigindo a plenitude da
que a concorrência na realidade brasileira exige internalização do modelo americano de produção
elevada eficiência. Aí está o exemplo no qual, mecanizada do cotton belt para fazer ressurgir a
face ao individualismo patrimonial arraigado, a produção brasileira. Tem-se aí o mais duro exem-
estrutura de capital fixo forja uma realidade de plo em que as transformações econômicas fazem
inexorável sucateamento dos projetos que não a história, na medida em que a agronomia su-
encontraram mecanismos de convivência com os cumbiu à economia de maneira contundente e
ditames dos ganhos de escala, típicos das lavou- arrasadora15. Dessas colocações pode-se con-
ras competitivas de grãos e fibras. Assim, tal co-
14
mo vem sendo argumentado neste ensaio, não A própria reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, a
despeito da qualidade e seriedade das informações e
se trata de um retrato da ineficiência da reforma depoimentos colhidos para a realidade da Fazenda Itama-
agrária, mas de uma concepção equivocada de rati, ficou devendo uma coluna sobre o fracasso do mes-
política agrária, pensada como se a questão se mo personagem e da mesma empresa, na tentativa da
produção de algodão de fibra longa, motivo de divulgação
resumisse ao mero embate entre os “Davis” e os entusiástica da imprensa nos anos 80s, com realce para a
“Golias” fundiários, bastando jogar pedras certei- importação de material genético egípcio e de máquina de
beneficiamento de algodão (algodoeira) dotada de desca-
ras para derrubar o gigante. roçadeira de rolo (própria para algodão de fibra longa) ao
O “pivot central” do porte dos instalados invés da tradicional descaroçadeira de serras que é a mais
na Fazenda Itamarati, enquanto conjunto de irri- usada no algodão nacional. Desde logo, essa aventura fi-
nanciada com recursos públicos no bojo do Plano Nacio-
gação, definem o tamanho mínimo da lavoura a nal de Desenvolvimento Rural (PNDR) e do Plano Nacio-
ser plantada, qual seja, 116 hectares. Nesse pa- nal de Desenvolvimento Agroindustrial (PNDA) resultou
drão de capital fixo, acaba por determinar o mí- num rotundo fracasso e, em termos de totais de valores
governamentais aplicados, não fica devendo muito aos
nimo de fragmentação possível enquanto unida- dispêndios totais com os assentamentos realizados na
de econômica e operacional. Com base nesse quase metade da Fazenda Itamarati.
perfil de tecnologia e na escolha dos grãos e fi- 15
As análises clássicas da escola de economia agrícola
bras como atividade econômica a ser implantada, norte-americana estão estampadas em inúmeros artigos,
dentre os quais destacam-se os de Ayer & Schuh e mes-
na realidade brasileira, o projeto de assentamen- mo as colocações de T. W. Schultz, em excelentes artigos
to já nasceu com um mal congênito que, se não científicos publicados no auge do período de moderniza-
tratado com esmero, levaria à perda de vigor do ção da agropecuária nos anos 60s e 70s, demonstrando
que, para aquelas condições, houve a ocorrência de políti-
empreendimento. Esse problema congênito qua- cas governamentais convergentes de pesquisa e desen-
se sempre é exacerbado pela cultura do indivi- volvimento e de crédito subsidiado. Esses artigos ganha-
dualismo patrimonial que conduz ao sucateamen- ram a dimensão de referências quase lendárias de reco-
nhecimento da competência intelectual e institucional da
to da iniciativa. Assim, trata-se de erro de con- ciência nacional. Nos anos 90s, a abertura de mercado

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MODELO TEXANO cluir em síntese que, no modelo de “texano de la- para a sustentação do médio (e talvez do peque-
DE LAVOURAS GLO vouras” em economias globalizadas, as ineficiên- no) lavrador de grãos e fibras, conferindo-lhes
cias quanto à escala são punidas de forma exem- possibilidades dos ganhos em escala observados
BALIZADAS,
plar com a derrocada econômica. nas grandes lavouras empresariais. Esse proces-
INEFICIÊNCIAS DE Não existiria então alternativas para so de terceirização da prestação de serviços, for-
ESCALA LEVAM À permitir a inserção de lavouras de grãos e fibras mando um conjunto de empresas especializadas
DERROCADA no padrão de competitividade atual, incorporando no fornecimento de serviços de mecanização,
ganhos em escala sem impulsionar a concentra- permitiria isolar o capital fixo do empreendimento
ção da terra em níveis exacerbados que concen- de cultivo, com o incremento da contratualização
tra terra e renda? Do ponto de vista econômico, já no processo produtivo.
que essa questão encontra-se solucionada do A empresa terceirizada de prestação
ponto de vista agronômico, trata-se de desenvol- de serviços poderia usufruir da maior amplitude
ver mecanismos de “securitização” do capital fixo dos períodos de plantio e de colheita, além da
da propriedade rural. O que determina a escala no possibilidade de prestar serviços de pulverização
modelo texano de grãos e fibras é a maquinaria seja para controle de ervas daninhas ou seja para
que move o processo produtivo, o que na realida- controle de pragas e doenças. Com os modernos
de brasileira, pelas vantagens derivadas da pos- conjuntos para plantio direto na palha teriam ain-
sibilidade de obter-se elevado padrão de meca- da a seu favor a dimensão continental do território
nização constitui-se no elemento determinante da brasileiro e, se melhorassem sua estrutura para
grande área de lavouras. Entenda-se aqui que não ganharem mobilidade espacial teriam a seu favor
se trata de buscar opção de ampliação da área de a redução dos impactos da sazonalidade sobre a
lavouras para um pequeno ou médio lavrador que demanda de serviços. O adequado acompanha-
tenha acesso à maquinaria mas não tenha terra mento do andamento da safra, desde os primei-
suficiente. Para esse lavrador o arrendamento, em ros movimentos de decisão de plantio, permitiria
especial de terras de pastagens impulsionando a acoplar a oferta de serviços para um arco de
integração lavoura-pecuária poderia ser solução, grãos e fibras, pois há diferenças na melhor épo-
essa opção está disponível mas não deixa de ca de semeadura entre essas culturas vegetais
representar a consolidação da grande lavoura de em cada região, sendo que algumas podem ter
escala enquanto empreendimento individual, ainda mais de uma safra. Na colheita, existe uma situa-
que o pagamento da renda da terra seja um custo ção similar quando se visualiza a gama de cultu-
que aposta contra sua rentabilidade. ras e a amplitude do espaço geográfico brasileiro.
Trata-se de forjar mecanismo no qual Essa prática de prestação de serviços
empreendimentos individuais de áreas de lavou- especializados de mecanização não é novidade
ras médias e até pequenas, cultivando grãos e fi- na lavoura brasileira de grãos e fibras16, existindo
bras, possam obter ganhos em escala compatí- de forma ainda pouco desenvolvida em pratica-
veis com as grandes lavouras competitivas. Des- mente todas as zonas produtoras desses dois
carte-se a opção pela qual pequenos e médios elementos agrícolas, sendo que em algumas re-
lavradores, detentores de máquinas, possam ser giões esse processo está muito mais avançado.
fornecedores permanentes de serviços de meca-
nização a outros lavradores, nos momentos em 16
Interessante frisar que essa proposta, de certa maneira,
que houvesse excedente de capacidade opera- está contida numa análise do engenheiro agrônomo Ro-
cional de serviços de máquinas, uma vez que berto Rodrigues, que num texto datado do final dos anos
70s, mostrava a sua preocupação com a incapacidade dos
isso se mostra uma solução de alcance limitado pequenos fornecedores de cana de adotarem os padrões
para a magnitude exigida pela realidade brasilei- tecnológicos vigentes nas usinas e nos grandes fornece-
ra. O estímulo à estruturação de empresas pres- dores do complexo sucroalcooleiro paulista. A preocupa-
ção do então líder dos fornecedores de cana era com o
tadoras de serviços de mecanização poderia ser desaparecimento desses fornecedores numa realidade em
uma opção de políticas governamentais dirigidas que o Estatuto da Lavoura Canavieira havia sido transfor-
mado em letra morta pela realidade frente à expansão da
cana própria das usinas. Propunha, naquela época, o atual
VELHA CONTONI- com eliminação das barreiras tarifárias ao algodão estran- Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a for-
geiro, associada a “guerra fiscal” destruíram os pilares da mação de cooperativas de prestação de serviços, centra-
CULTURA “velha cotonicultura moderna” e acabou permitindo a
das, em especial, no fornecimento de serviços de mecani-
NOVA COTONICUL- emergência de uma “nova cotonicultura moderna”, reafir- zação a seus cooperados, como parte do que denominou
mando que, na história do desenvolvimento capitalista, o tripé cooperativista de sustentação do fornecedor de
TURA “tudo que parece sólido também se desmancha no ar”.
cana.

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A questão é que a sua potencialidade de expan- namentais. Aos incrédulos da eficácia da terceiri-
são é imensa, desde que exista uma decisão zação é relevante salientar que essa possibilida-
governamental direcionada para a formação des- de de acesso aos ganhos em escala, pela forma-
se empresário especializado na prestação de ser- ção de inúmeras e eficientes prestadoras de ser-
viços de mecanização. Os instrumentos funda- viços de mecanização, representa uma solução
mentais para isso estão disponíveis não apenas adotada nas plantações de cana da Austrália,
pela existência de uma rede disseminada e inter- uma nação produtora de açúcar das mais compe-
ligada de comunicação eletrônica senão, em ní- titivas no cenário mundial. No Brasil, essa alter-
vel nacional, com certeza em todas as principais nativa de política agrária, no mínimo, poderia ser
zonas produtoras de grãos e fibras brasileiras. muito mais consistente que as últimas propostas
Dessa maneira, por exemplo, nas “salas de agro- de plano de safra que vêm sendo adotadas para
negócios” do Banco do Brasil poderiam ser ofer- a agricultura familiar de grãos e fibras, reproduzi-
tadas, não apenas informações de mercado, co- das como mero decalque daquelas formuladas
mo informações de um sistema de oferta e de- para a agricultura empresarial.
manda de serviços de máquinas com acesso a
bases municipais, regionais, estaduais e nacio-
nais. Mais ainda, esses sistemas de serviços po- 4 - MODELO CALIFORNIANO: renda e empre-
deriam ser estimulados a adotarem mecanismos go em lavouras familiares produtoras de
certificadores de qualidade numa ação articulada qualidade
com organizações da produção (sindicatos, coo-
perativas, associações) e com as estruturas públi- A produção de qualidade corresponde
cas de suporte aos lavradores como a extensão a característica fundante do modelo california-
rural pública e mesmo privada. A democratização no17, na medida em que estruturalmente consiste
de informações dos agromercados e das previ- na diferenciação de produtos na propriedade ru-
sões de plantio e estimativas de safras acopladas ral. Isso não significa que no modelo texano não
a esses sistema redutor dos impactos da exclusão esteja presente a exigência de qualidade, apenas
digital no campo formariam expectativas orienta- que a lavoura de escala prioriza a uniformidade
doras das decisões tanto dos prestadores de ser- em grandes volumes que conduza à ganhos de
viços como de seus lavradores demandantes. rendimento agroindustrial. Enquanto bens inter-
A consistência dessa política governa- mediários a serem manipulados na definição de
mental estruturadora e reguladora desse merca- produtos finais, mesmo os produtos destinados à
do de prestação de serviços de mecanização pa- alimentação humana como os sucos cítricos, re-
ra lavouras de grãos e fibras seria alcançada pela sultam de formulações estruturadas a partir de
decisão firme de estruturar esse segmento de blends em cujas composições, na maioria das
serviços nos agronegócios brasileiros com o fi- vezes, são usadas ingredientes de várias origens
nanciamento dirigido para empreendedores que como é o caso dos sucos cítricos brasileiros e
se dispusessem a investir na constituição de sul-africanos em parcela dos produtos finais para
empresas, ao mesmo tempo em que os financia- consumo na Europa. Para produtos finais indife-
mentos de custeio para os lavradores incluiria renciados como a ração animal, e mesmo o óleo
estímulos à contratação desses serviços com ta- vegetal, cujas diferenças estão na qualidade do
xas favorecidas de custo do crédito. Aos possí-
veis críticos que acreditam que com as bênçãos 17
Denomina-se aqui modelo californiano o processo de
UTO REGULAÇÃO produção de lavouras com base na diferenciação de quali-
do mercado auto-regulável, a ordem natural das
DOS MERCADOS dade para homenagear Josué de Castro, o brasileiro sím-
coisas solucionaria o impasse da crise agrária, ou bolo da luta contra a fome, referência mundial na discus-
e ainda que a medida proposta seria paliativa, co- são desse tema nos anos 50s e 60s, que de forma pionei-
mo negação da postura passiva como se tudo já ra, destacou a especificidade da agricultura da Califórnia
CRISE AGRÁRIA no contexto da agricultura norte-americana destacando
estivesse escrito nas estrelas, torna-se relevante sua diferença em relação ao Meio Oeste, no seu clássico
apresentar resposta prévia. Aos primeiros é im- Geografia da Fome, publicado na primeira metade dos
anos 50s. Erroneamente costuma-se atribuir esse nome à
portante lembrar que nada no contexto mundial, regiões de agricultura moderna e rica, como muitos cha-
em termos de agricultura moderna, emergiu da mam a Região de Ribeirão Preto em São Paulo de a Ca-
ordem natural. Todo avanço foi construído com lifórnia Brasileira, que pela sua característica estrutural,
tanto na cana como na laranja está mais para o Texas ou
base em estímulos explícitos de políticas gover- Flórida que para a Califórnia.

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processo agroindustrial ou na formulação, como cesso em que se busca preservar no produto a


as margarinas, tanto o milho como a soja utiliza- essência das características intrínsecas presen-
dos são grãos indiferenciados. tes no produto rural confere especificidade à
No modelo californiano, a diferenciação organização nesse elo da cadeia de produção e
pela qualidade é um elemento inerente e deter- reflete-se na própria estrutura de coordenação
minante do processo biológico de produção rural, vertical que deve ser compatível com a harmonia
com essa característica intrínseca do produto exigida nesse processo19. Na produção de com-
acompanhando toda a cadeia de produção da
roça à mesa do consumidor. Um elemento funda- da diferenciação de produtos pela qualidade é a regra que
mental da definição da qualidade está na própria permeia toda a cadeia de produção, o que é radicalmente
distinto do processo exigente de uniformidade como ocor-
decisão de escolha do material genético, que de- re no caso das commodities. Outra distinção fundamental
fine tanto características intrínsecas, sabor e co- a ser feita, que tem originado muita confusão em análises
loração como extrínsecas, época de colheita (que sobre esse processo de diferenciação, corresponde ao
fato de que produtos diferenciados na origem, submetidos
determina a sazonalidade) e formato do fruto. A a processos de produção e pós-colheita que mantêm suas
manifestação plena dessas características, além caraterísticas intrínsecas de qualidade, não podem ser
de submetidas a determinantes edafo-climáticos, tomados como sinônimos de produtos orgânicos, que se
caracterizam pelo uso de técnicas de produção diferencia-
está associada às técnicas culturais praticadas das, sem uso de agroquímicos por exemplo, mas que não
pelo lavrador. Os determinantes edafo-climáticos necessariamente significa que sejam produtos diferencia-
podem ser corrigidos, mas dificilmente alterados dos na origem quando colocados à disposição do consu-
midor. O produto orgânico é um produto diferente porque é
na sua essência e, ainda que tenham sido obti- obtido por processo de produção específico, mas não é
dos avanços expressivos no controle de variáveis necessariamente um produto diferenciado na origem, nem
é o único modelo de diferenciação de produtos nas lavou-
naturais, são eles que definem vantagens de ori- ras. Uma commodity pode ser um produto orgânico com
gem expressivas para produtos de determinadas certificação para tal, em escala agroindustrial, como a
regiões. Isso não significa uma atitude passiva produção de açúcar orgânico em larga escala. Assim a
produção orgânica pode ser realizada dentro da lógica da
diante de limites naturais, ao contrário, significa grande lavoura de escala, por se referir a processos espe-
superar algumas variáveis limitantes como o uso cíficos de produção submetidos a alguns preceitos agro-
de irrigação e adubação controlada para produ- nômicos, mas que nem por isso representam um limite do
ponto de vista da qualidade intrínseca de diferenciação de
ção de frutas frescas em climas desérticos, para produtos, podendo obter-se a uniformidade típica de
obter a manifestação dos efeitos benéficos de commodity na produção orgânica. Desse modo, a produ-
outras variáveis. As técnicas culturais também ção orgânica não representa uma ruptura com a essência
estruturadora da grande lavoura capitalista, podendo ser
afetam diretamente a qualidade, como o diferen- absorvida pelo processo.
cial entre métodos de colheita de café influenciam 19
Talvez o exemplo mais contundente dessa distinção que
diretamente a qualidade da bebida. Para essas aqui se pretende fazer entre produtos orgânicos e produ-
variáveis intrínsecas não há processo de trans- tos diferenciados na origem seja o da produção de açúcar
em São Paulo que, ao internalizar de forma plena as ban-
formação posterior capaz de alterar a condição deiras das reivindicações dos movimentos ecológicos,
essencial do produto colhido. vem demonstrando nas últimas décadas, como uma mo-
Outro aspecto do impacto da qualidade nocultura pode adaptar-se de forma progressiva às exi-
gências ambientais, na medida em que resolveu a amea-
na definição de elementos importantes dessas ça do desastre da vinhaça, reciclada como fertilizante im-
cadeias de produção está no contínuo apelo à portante na própria produção de cana, pelo realização da
busca da oferta de produtos diferenciados na ori- maior experiência de controle biológico do mundo, no caso
da broca da cana controlada por microhimenóptero (mos-
gem, ou seja, em cujos processos de beneficia- quinha como inimigo natural), pela intensificação do cultivo
mento no pós-colheita é destacado, como carac- mínimo como plantio direto na palha, pela reciclagem do
bagaço para co-geração de energia, pelo uso da ponta de
terística altamente valorizada pelo consumidor, o cana e da levedura de fundo de dorna na alimentação de
fato de que o produto já nasce sob a égide da bovinos confinados, pelo plantio de alimentos nas áreas
seleção rigorosa, de que emerge da planta como de renovação da cana, pelo aumento sistemático do nú-
mero de cortes da mesma cana, planta que era de 3 no
produto diferenciado e que esses elementos se final dos anos 60s, atualmente é de 8 em média (existem
mantêm até chegar ao consumidor18. Esse pro- talhões com até 14 cortes). Esse processo vai ser apro-
fundado pela colheita mecânica que irá reduzir a poluição
das queimadas que infestam as regiões canavieiras
18
A primeira diferenciação que deve ser destacada é que paulistas de maio a novembro. Tudo isso com mais que o
esses produtos ou mantêm-se sem processamento algum dobro da produtividade por unidade de área, crescente de
até seu consumo, como no caso das frutas e olerícolas, ou 38t/hectare para mais de 80t/hectare, com maior teor de
são submetidos a processamentos muito especiais que sacarose e estupendo crescimento do rendimento agroin-
destacam elementos como sabor e aroma, como seria o dustrial. Mas existe a outra face, o menor uso de mão de
exemplo da torrefação de cafés especiais. Assim, a busca obra e a exigência de pessoal com qualificação cada vez

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Por isso começar pelo conceito de commodity. Mercadoria, uniformidade,
tempo médio socialmente necessário, necessidade da escala, modernização,
73
composição orgânica do capital, reprodução ampliada do capital.

modities, a exigência de uniformidade da matéria mo a uva Itália e a uva Rubi, com colorações
prima é condição determinante do rendimento diferentes. Mais ainda, há a uva sem semente e a
agroindustrial, sendo os custos, por unidade, uva com semente. Logo, na produção diferencia-
definidos pela produtividade por unidade de área. da na origem, o elemento que determina o pro-
Na produção de produtos diferenciados cesso produtivo é a obtenção de qualidade supe-
na origem, desde logo rompe-se com a uniformi- rior na diversidade de produtos20.
dade como fator limitante, uma vez que definido o Outra característica fundante dessa la-
padrão um elemento fundamental é exatamente voura de produtos diferenciados na origem está a
ampliar a singularidade não apenas com maior intensificação do uso do solo. Seja, desde logo,
porcentagem de produtos de padrões superiores realçado que os formidáveis ganhos de produtivi-
(e não médios), pois há diferenciação de preços dade dos plantios nacionais de grãos e fibras re-
derivados dos graus de excelência dos produtos. presentam significativo incremento na intensidade
De outro lado, há que se compor uma cesta de do uso do solo, em especial nos manejos rotacio-
produtos, qual seja, mesmo sendo uma mesma nados de mais de uma lavoura anual. Há que se
mercadoria como fruta, na verdade têm-se fru- reconhecer de fato esse estupendo avanço da
tas, pois numa mesma espécie, para vários pe- lavoura brasileira. Entretanto, a intensificação do
ríodos do ano, tem-se variedades diferentes que uso do solo na lavoura de produtos diferenciados
têm características intrínsecas distintas. Isso po- na origem é mais radical e apresenta especifici-
de ser visto nos diferentes cultivares de tangeri- dades muito acentuadas. De um lado, na sua
nas, uns mais precoces, outros mais tardios do maioria, ou são lavouras perenes como as frutas
ponto de vista da sazonalidade, mas com sabo- e o café, ou são necessárias estruturas físicas
res e aromas diferenciados. Essa diversidade en- perenes, compostas de estufas, irrigação por go-
riquece a cesta de frutas ofertada, contrastando tejamento, canteiros, canais de drenagem, para
com a pobreza varietal da uniformidade, que in- lavouras intensivas com sucessivas safras anuais
clusive, teria concentração sazonal inadequada. como as olerícolas e as flores. Essa perenidade
Por outro lado, não há apenas uma fru- estrutural, por si mesma, configura um elemento
ta, ou seja, apenas uma espécie de frutas, uma diferenciador da coordenação vertical pois, a de- diferenças na natureza
vez que a qualidade da cesta de frutas está exa- cisão de investimento e de plantio não pode ser da
tamente relacionada com a diversidade de espé- alterada em conteúdo e em dimensão por um pe- COMPOSIÇÃO DO
cies na mesma época e em épocas distintas de ríodo largo de tempo. Isso ao contrário de um la- CAPITAL FIXO
um mesmo ano. Assim, ao lado das tangerinas vrador de commodities, cuja estrutura produtiva e
deve-se destacar as bananas, as maçãs, as uvas de capital fixo não apenas permite intercambiar
e os pêssegos. Verifique-se que para uma com- entre grãos e fibras distintos em função das ex-
modity o correto é referir-se à soja, oleaginosa pectativas dos agromercados, como alterar de
genérica, mas para as frutas, enquanto produtos forma expressiva a dimensão da área cultivada
diferenciados na origem, o correto é referir-se no total em cada ano.
plural, ou seja, não existe a uva, mas as uvas, Nas lavouras produtoras de commodi-
pois, mesmo nos dois grandes grupos em que se ties em escala, os períodos de ajustes são anuais
costuma dividir as variedades dessa fruta, há di- o que permite reversibilidade de decisões em pe-
ferenciações, como a uva comum, na mesma va- ríodos mais curtos, ainda que dentro de cada
riedade a Niagara, tem-se a rosada e a não rosa- safra essa decisão seja concentrada em dado
da, e nas uvas finas, uma imensa amplitude co-
20
Definições similares poderiam ser feitas para as oleríco-
maior gerando uma barreira à entrada e frustando as opor- las e as flores que, para cada espécie, poderia ser desen-
tunidades da imensa massa da população que está à volvida argumentação mostrando como a qualidade intrín-
margem do sistema educacional. Assim, o açúcar orgânico seca diferenciam variedades da mesma espécie e como a
converte-se em um elemento do portifólio de produtos riqueza das respectivas cestas derivam exatamente da di-
ofertados pela grande agroindústria, organizada com base versidade de espécies ofertadas em cada época do ano.
na grande lavoura de escala. Noutras palavras, um produ- Uma salada qualitativamente rica decorre exatamente da
to diferenciado na origem pode ser também, mas não diversidade de verduras e legumes que a compõe, ao
necessariamente, um produto orgânico e, um produto or- mesmo tempo em que arranjos de flores com beleza
gânico, mesmo sendo um produto diferenciado na origem, singular utilizam mais de uma espécie de flor e plantas
pode ser, também, um produto de lavouras de escala. Em ornamentais, para com figurar uma obra de arte singular,
síntese, o fato do produto ser orgânico não significa, ne- pois cada arranjo é um determinado arranjo e, ainda que
cessariamente, que o mesmo constitua um produto que possam guardar semelhanças entre ambos ou vários, é
não é oriundo das grandes lavouras de escala. possível ao consumidor escolher.

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RELAÇÃO CAPITAL TRABALHO
período e torna-se irreversível até o final do mes- no caso do café de qualidade que é colhido sem
mo. Nas lavouras diferenciadas na origem, não derriça no pano. Por tudo isso, não apenas a la-
há espaço para a decisão de reversibilidade, sem voura de produtos diferenciados na origem é
grandes prejuízos, em períodos menores que 5 a mais intensiva em mão-de-obra, como exige
10 anos, dependendo da lavoura. Exatamente mão-de-obra treinada e parte fundamental dela
por isso, por não permitirem a reversibilidade da permanente, o que conduz à menor relação capi-
decisão de plantio a cada safra, é que estrutural- tal-trabalho, gerando mais emprego por unidade
mente não há como organizar as cadeias de pro- de área e emprego com maior qualificação, e
dução dessas lavouras, de forma sustentável no conseqüente maior remuneração e qualidade de
tempo, com os mecanismos de coordenação ver- vida.
tical das cadeias de produção realizados em mer- A argumentação até aqui centrada nas
cado aberto, tal como no modelo das commodities. lavouras, pode dar a entender que na pecuária
Nessas cadeias, a contratualização é um ele- essa questão não esteja posta. Entretanto, pode-
mento estratégico para o sucesso de médio e se fazer a construção de uma argumentação de
longo prazos da inserção competitiva. Assim, não similar profundidade e conteúdo com base nos
apenas trabalham com produtos perecíveis, o conceitos de criação intensiva e criação extensi-
que define a exigência de rapidez no escoamento va21. Na produção do denominado “boi verde”,
e consumo, como com produtos de alto valor enquanto animal herbívoro que transforma pasto
agregado, refletindo-se em enormes magnitudes em carne (ou leite), tanto na sua versão do sis-
das perdas se não houver realizado esse consu- tema de produção orgânico como no sistema de
mo em tempo hábil. E são perdas de monta e ir- produção tradicional, ambos a pasto, ainda que
reversíveis. possam ser incrementados os indicadores de ani-
Aprofundando, ainda, a distinção des- mais por unidade de área, trata-se de criatório ex-
sas lavouras de qualidade em relação às lavou- tensivos a pasto, sem a adoção de processos de
ras de escala, em termos de intensificação do confinamento em todas as etapas produtivas. Es-
uso do solo, há que se destacar a verticalização ses criatórios envolvendo a cria, recria e engorda,
radical do uso do solo por plantios adensados. Os permitem diversas possibilidades de combinação
adensamentos de plantios de frutas e cafés são sendo a cria e a recria essencialmente a pasto, e
técnicas amplamente dominadas nas diversas re- apenas a engorda com a alternativa de realizá-la
giões dos agronegócios brasileiros, com cafezais com animais a pasto ou confinados. Nos siste-
que, no limite, atingem até 10 mil plantas por hec-
tare, ou seja, em média 1 planta por metro qua- 21
Desde logo, deve-se evitar confusão e equívocos sérios
drado. Não há necessidade de imaginação fértil, derivados da interpretação ideológica do uso dos concei-
mesmo para aqueles impregnados de cultura es- tos de intensivo e extensivo na produção animal. Na ver-
dade, a presença de criação extensiva, em hipótese algu-
sencialmente urbana, para entender que uma ma, pode ser tomada como prova de que a propriedade
planta de café por metro quadrado (na verdade que a pratica é uma propriedade improdutiva. Aliás, pe-
uma árvore com saia aberta) produz reduzido es- cuária brasileira a pasto vem acumulando excepcional in-
cremento de produtividade e de qualidade nas últimas dé-
paço entre plantas e, com isso, as máquinas que cadas. A diferenciação aqui feita entre criação extensiva e
podem transitar de forma livre nesse espaço são intensiva, é que na primeira tem-se a plenitude da criação
aquelas movidas a força humana, em especial na a pasto e na segunda da criação confinada em granjas, a
primeira menos verticalizada no uso do solo e a segunda
colheita. Assim, desde logo, há um limite natural com elevada verticalidade do uso do solo. Para efeito de
que condiciona a mecanização de processos. argumentação utiliza-se os sistemas de produção puros,
Mais ainda, na colheita, nem todos os frutos fi- extensivos a pasto e granjas intensivas, embora existam
experiências intermediárias. A discussão quanto a proprie-
cam maduros ao mesmo tempo, o que exige a dade ser produtiva não se relaciona com seu sistema de
colheita fruto a fruto no tempo determinado pela criação e, se é verdade que a criação intensiva neces-
fisiologia da planta, retirando-se em cada “panha” sariamente produz coeficientes, levados uso do solo, que
a configuram como propriedade produtiva, é pertinente
aqueles frutos que atingiram o ponto de matura- dizer que uma propriedade de criação extensiva de boví-
ção, deixando para as próximas aqueles ainda deos a pasto, tem todas as condições de praticar coefi-
cientes que a configurem como propriedade produtiva. E
“verdes”. E não se trata de submeter o fruto ao na pecuária bovina paulista, por exemplo, com seu reba-
processo de violenta movimentação física na co- nho de 14 milhões de animais para uma área de pastagem
lheita e transporte com máquinas, como no caso de 10,5 milhões de hectares, na média, não há como iden-
tificar improdutividade na criação bovina. Ela ocorre como
das frutas, e nem em contato com o solo, como exceção, não como regra.

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mas a pasto, que são inexoráveis na pecuária pecuária bovina exatamente por gerarem mais
competitiva brasileira, a própria baixa dimensão renda e emprego por unidade de área, embora
da renda líquida por hectare que define a capaci- ambas cumpram a função social da propriedade.
dade de reprodução das famílias pecuaristas já As estruturas rurais produtoras de pro-
conduz à necessidade de fazendas médias ou dutos de qualidade diferenciada na origem, por
grandes para que garantam padrões de vida conseguinte, podem ser viáveis em empreendi-
compatíveis com a qualidade de vida urbana22. mentos de tamanho pequeno e médio, a depen-
A pecuária intensiva pode ser pensada der da padrão de renda líquida que se pretenda
em termos das granjas avícolas e suinícolas, obter na atividade econômica das lavouras ou
principalmente as de corte que podem cumprir das criações, ou das produções mistas de ambas
papel similar ao das frutas e olerícolas nas lavou- na mesma propriedade rural. Em síntese, a bus-
ras. Estruturalmente, os ganhos em escala são ca da qualidade determina a possibilidade de alta
determinados pelos “integradores”, em especial eficiência em empreendimentos com escala com-
no que diz respeito à genética animal e à ração. patível com a pequena e média propriedade. Ain-
A construção da estrutura das granjas pode ser da que similares, é forçoso reconhecer que nas
uma barreira à entrada relevante, e existem gran- lavouras de frutas frescas, flores, olerícolas e café
jas com elevado grau de automação. Entretanto, esse fato é mais determinante que nas criações
é possível conceber um conjunto de granjas de em granjas automatizadas. Ressalte-se que há
tamanho médio, mesmo que intensamente auto- possibilidade de sucesso de grandes empreen-
matizadas, trabalhando mediante contratos com dimentos nessas cadeias de produção, mas eles,
as estruturas frigoríficas de integração. Essa é ainda assim, teriam o condão de multiplicar o em-
uma prática corrente no complexo avícola brasi- prego em níveis muito superiores às lavouras e
leiro e, granjas avícolas (e mesmo suinícolas) às criações, das produções em escala. Os ga-
sendo estruturas intensivas quanto ao uso do so- nhos em escala, nessas cadeias de produção de
lo e ocupam propriedades de dimensões peque- qualidade, realizada na origem, se dão de forma
nas23. Desse modo, diferenciam-se do modelo da nítida no elo de pós-colheita ou de pós-engorda,
em associação com aqueles que se obtêm esca-
22
Para o leite, a logística de pós-ordenha determina uma la na preparação e fornecimento dos insumos
O capital e a questão escala mínima para os criatórios, em torno de 500 litros (biológicos ou agroquímicos), da maquinaria e
da Escala dia para ordenhas mecânicas seguidas de resfriamento, dos equipamentos.
com o que se reduz o custo do transporte para as usinas
de beneficiamento, realizado em dias intercalados. A A concepção de cadeia de produção
intensificação da genética do rebanho com animais de permite visualizar no espaço da territorialidade
maior produção diária em pequenas propriedades, por unificada rururbana (rural e urbana ou campo e
outro lado, leva à necessidade de produção de capineiras
e à compra de maior volume de insumos para arraçoa- cidade cuja distinção perdeu sentido econômico
mento. Dessa maneira, há sempre a definição da escala relevante), como se configuram as “linhas de
mínima para viabilidade da produção leiteira, a não ser
que se agregue valor com produção de lácteos artesanais.
montagem dos produtos finais”. Desde os anos
De qualquer maneira, face ao fluxo de renda diária pela 60s, as análises dos fluxos de comercialização da
venda do produto, que confere maior liquidez ao leite em economia agrícola tradicional apresentavam esse
relação à carne, definidos os parâmetros da escala eco-
nômica na produção rural e os níveis de logística adequa- processo com base no que se pode denominar
dos, do ponto de vista da rentabilidade econômica compa- “modelo do carretel”, no qual de um lado se pos-
tível com os padrões de vida atualmente possíveis para o tam uma imensa gama de agropecuaristas dis-
brasileiro de classe média, propriedades especializadas
em criatórios de bovinos leiteiros tendem a ter dimensão persos que ofertam seus produtos a estruturas de
necessária de 4 a 5 vezes menor que a com criatórios de atacado que se concentram progressivamente
bovinos de corte. O próprio ritmo diferenciado dos fluxos para, a partir de determinado ponto, retomar a
da entrada de renda já definem essa distinção, sendo um
diário, e no máximo mensal e o outro irregular, com ten- desconcentração do produto com a maior ampli-
dência a anual. tude da rede varejista e atingir na outra ponta,
23
As granjas avícolas e suinícolas tendem em dimensão e uma imensa gama de agentes, agora de consu-
estrutura de integração e intensidade de uso do solo, a
serem organizadas de forma similar às lavouras de cultivo
protegido em estufas, cuja rentabilidade e sucesso eco- em termos de desperdícios de recursos e de perdas de
nômico estão condicionados pelo planejamento da produ- volume produzido final. Tanto na pecuária como na lavou-
ção, definido com base nos contratos de venda antecipa- ra, em geral, o conceito de orgânico não correlaciona-se
da, uma vez que qualquer disfunção nesse sistema, aí sim com o conceito de escala de produção no sentido de de-
desenhado como uma linha de produção biológica nos terminar o tamanho do empreendimento, podendo haver
moldes da agroindústria, pode acarretar enormes perdas pequenas e imensas produções orgânicas eficientes.

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midores dispersos. Esse entendimento não foge mercado, pela força dos supermercados, o con- A determinação da
muito das configurações atuais, dependendo do sumidor expressa-se como agente importante na frente pra trás nas
desenho de cada estrutura de mercado. Entretan- definição dos padrões de preço e de qualidade cadeias produtivas.
to, alteraram-se de forma drástica as característi- nos agromercados. E esses mesmos supermer-
cas e os perfis dos agentes envolvidos. Surge a cados acabam tornando-se poderosos oligopsô-
grande agroindústria processadora, a agroindús- nios que, para reduzirem seus custos de transa-
tria de alimentos e as grandes redes de super- ção, operam com marcas próprias e acordos de
mercados, ou seja, emerge a grande empresa, compra submetendo as estruturas agroindustriais
enquanto oligopsônio na compra e oligopólios na que, no efeito dominó do ajuste para trás, acaba
venda, onde poucos compram de muitos e ven- irradiando esses padrões de preços e de quali-
dem para poucos, mas que no final, têm que atin- dade ao universo de agropecuaristas.
gir a muitos. Exatamente aí está a novidade vital Essa revolução na estrutura de merca-
da moderna estrutura de mercado das cadeias de dos e no processo de formação de preços, prin-
produção dos agronegócios, os supermercados, cipalmente no caso de produtos perecíveis, aca-
que só sobrevivem com amplos segmentos de bam gerando a constituição da grande empresa
consumidores fidelizados, passando a ser o ele- no segundo elo das cadeias de produção em
mento crucial na “democratização” dessas estru- diante. As lavouras e criações de produtos dife-
turas de negócios. renciados na origem enquadram-se nesse dese-
Em outras palavras, tendo sido elimi- nho, com os ganhos em escala concentrando-se
nados da maioria das cadeias de produção as no segundo elo da cadeia de produção em dian-
figuras deletérias dos “atravessadores” que ex- te. A primeira razão está na necessidade de ge-
ploravam os agropecuaristas, entendidos como renciar o fenômeno da complementaridade das
“caipiras” indefesos do sertão brasileiro, tal como épocas de colheita, que para manter volumes
denunciava o famoso Relatório Klein & Sacks na médios mensais com baixa amplitude de variação
metade dos anos 50s, há atualmente a vigência sazonal, exige empresa com capilaridade capaz
da “ditadura do consumidor”24. Além disso, as de fazê-la presente em várias zonas de produção
oportunidades de negócios são amplificadas pela complementares na oferta de dada espécie. A
“democratização das transações” pela revolução segunda razão está no fato de que as quantida-
das comunicações que forjaram os pilares defini- des individuais, mesmo se de um grande agrope-
tivos do mercado nacional globalizado, com pos- cuarista, nunca será suficiente para atender o ta-
sibilidades múltiplas de fontes de abastecimento manho da demanda do porte de redes de super-
de vários produtos25. Nessa nova estrutura de mercados. A terceira razão está na otimização da
logística de pós-colheita (packing houses, arma-
24
Interessante lembrar que Ignácio Rangel, no seu clássico zenagem e transportes com temperatura e at-
Inflação Brasileira, no início dos anos 60s, já asseverava mosfera controlada no caso das frutas e oleríco-
que o processo de desenvolvimento econômico iria revo-
lucionar a estrutura de mercados, eliminando de forma de-
las). No conjunto, essas razões convergem para
finitiva a dicotomia da formação de preços à época exis- a redução dos custos de logística e dos custos de
tente entre os preços dos produtos brasileiros com rele- transação, que impactam para baixo o preço final
vante importância do mercado internacional na formação
de preços e entre aqueles em que o movimento dos pre- da unidade adquirida na gôndola dos supermer-
ços é determinada totalmente no mercado interno. Dessa cados.
análise emergiu nos anos 80s uma ampla literatura em tor- A constituição das modernas cadeias
no da divisão dos produtos da agricultura entre exportá-
veis e domésticos, que sustentou anos de debate, mas de produção de qualidade diferenciadas na ori-
que atualmente está simplesmente esquecida, pois foi tor- gem ainda não apresentou no Brasil a plenitude
nada irrelevante no processo de desenvolvimento. Esse
paradigma superado no plano teórico, se é que teve con-
bou-se o velho dilema entre o feijão velho e o feijão novo,
sistência, a não ser empírica, talvez nunca entendida a
sendo que o ano todo tem-se feijão novo nas gôndolas
contento, às vezes retorna de forma implícita em alguns
dos supermercados paulistanos, oriundos em cada época
argumentos de que a oferta de alimentos é insuficiente e
de distintas regiões produtoras brasileiras. Esse aspecto é
às margens de comercialização exageradas, quando isso,
relevante para conformar o equívoco dos que propugnam
se detectado no plano empírico, mostra apenas o estado
as políticas de erradicação da fome, o Programa Fome Ze-
arcaico da estrutura de mercado em questão.
ro, como uma ação de estímulo à produção. Essa ação
25
Exemplo mais marcante dessa integração do mercado tem sentido em comunidades localizadas do Nordeste e
brasileiro, enquanto um amplo mercado nacional de di- da Amazônia, mas nenhum sentido para a esmagadora
mensões continentais, está na cadeia de produção de um maioria dos excluídos das cidades. Ainda no Nordeste e
alimento básico, o feijão, que pela complementaridade de na Amazônia, o abastecimento desse alimento não pode
safras é produzido praticamente o ano inteiro. Assim, aca- deixar de levar em conta a complementaridade das safras.

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do desenvolvimento setorial. Dessa maneira, no boas práticas comerciais em transações com pe-
capitalismo tardio brasileiro e nos agronegócios recíveis envolvendo oligopsônios poderosos, rela-
esse processo caracteriza-se como de desenvol- cionando-se com uma base de lavradores disper-
vimento incompleto, tendo internalizado o padrão sos em zonas de produção distantes umas das
da 2ª Revolução Industrial nos fins da década de outras. Para aumentar a instabilidade, na maioria
1970 e virada dos anos 80s apenas para as ca- das vezes, o mecanismo de venda que prevalece
deias agroindustriais das “commodities”, próprio nessas transações é o da venda em consigna-
do modelo texano de agricultura. Esse viés indus- ção, inclusive nas exportações, como é o caso
trialista da linha de montagem tem, inclusive, pre- das frutas e olerícolas. Sem regulação das boas
judicado experiências importantes para a implan- práticas de comércio e rígida fiscalização, esse
tação de núcleos de excelência do modelo cali- sistema de transação pode gerar perdas signi-
forniano de agricultura. Os padrões estruturais ficativas para o elo mais fraco, os fruticultores e
são outros, como também são distintos os pa- olericultores. Dessa maneira, não há a mínima
drões institucionais tanto no plano privado como possibilidade de estruturação de um segmento de
no plano público. Desde logo, nessas cadeias de cadeias de produção dessas mercadorias com
produção de qualidade diferenciada na origem, a base na visão estreita de mercado auto-regulável.
sustentabilidade exige mecanismos de coordena- Também, não há espaço para ações calcadas na
ção vertical que reduzam drasticamente as insta- prática do velho Estado produtor. Há que se er-
bilidades de mercado, logo não há espaço para o guer essa institucionalidade como elemento ala-
florescimento pujante desse segmento produtivo vancador da geração de emprego e renda nos
vital com base na regulação a mercado. Essas agronegócios brasileiros, pois nesse aspecto o IMPORTANTE
cadeias de produção operam em just in time com Brasil engatinha e vive o sonho de um dia ser co-
colheita e consumo ajustando-se de forma instan- mo o Chile, quando seu desejo é mais compatível
tânea em tempo real, dada a dificuldade de esto- com a pujança da Califórnia.
ques expressivos para todas as espécies26. As lavouras de produtos diferenciados
Por outro lado, numa situação na qual na origem correspondem a estruturas de produ-
a grande vantagem competitiva a ser construída ção que floresceram em economias nacionais
deriva da territorialidade inerente a uma econo- que atingiram elevado desenvolvimento humano
mia continental, com diversidade de zonas de que, em síntese, correspondem às sociedades
produção e riqueza de espécies ofertadas, a re- que, nos seus respectivos processos de trans-
gulação da qualidade constitui-se num papel in- formação, ergueram economias de altos salários.
delegável do Estado. Além disso, também reforça Essa é a realidade vivida nas economias capita-
o papel regulador do Estado à necessidade de listas desenvolvidas. Muito se tem escrito sobre
estabelecer legislação competente, bem como da as políticas protecionistas das “nações” capitalis-
fiscalização eficaz para garantir a prevalência de tas que são potências econômicas industriais e
agroindustriais como os Estados Unidos da Amé-
26
rica e a União Européia. Debate-se o alto nível de
Interessante lembrar um aspecto da estrutura de merca-
FODA!!! do mundial de frutas frescas. Mais de dois terços da tran-
subsídio inerente a essas políticas que não se
sações relevantes concentram-se em 4 frutas: banana, la- restringem à proteção do produto nacional nos
ranjas (de chupar incluindo tangerinas), maçã e uva. To- respectivos mercados ao subsidiarem a venda
das podem ser produzidas com enorme sucesso no Brasil,
mas em nenhuma delas o Brasil tem papel relevante. O externa desses produtos, mas pouco se tem da-
Brasil é apenas o maior produtor mundial de sucos cítricos do atenção à realidade de seus consumidores.
e, se é verdade que de cada 10 copos de suco cítrico Pelo sucesso dessas políticas há excesso de
consumido no mundo 5 vem de pomares brasileiros, para
exportar o suco cítrico nacional, obtendo pouco mais de oferta para um consumidor já satisfeito de suas
US$1,2 bilhão anuais, colhe-se safras em torno de 18 mi- necessidades vitais, abastecido na plenitude por
lhões de toneladas de laranjas. Já o maior exportador de derivados de commodities. Para o padrão de ren-
produtos cítricos do mundo, a Espanha, colhe algo em tor-
no de 9 milhões de toneladas de tangerinas e obtem cerca da desse consumidor a parcela de dispêndios do
de US$2,4 bilhões nessas exportações. Mais um aspecto, orçamento familiar com a alimentação básica é
esse mercado internacional de frutas frescas é dominado
por 4 grandes empresas transnacionais, que se abaste-
reduzida, e estando satisfeito no fundamental,
cem em diversos países, utilizando-se da complementari- busca algo mais, sofisticando hábitos de consu-
dade hemisférica para estruturarem estratégias de abaste- mo com exigências cada vez maiores de padrões
cimento em escala mundial, além de dominarem toda lo-
gística das cadeias de produção.
de qualidade mais rígidos. As imagens da África

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e mesmo de algumas regiões européias do anti- os níveis de exclusão do campo e das cidades
go Leste Europeu não têm a ver com a realidade configuram um amplo contingente de pessoas
do consumidor da Europa Comunitária, e são colocadas à margem dos benefícios do desen-
exatamente esses, juntos com os norte-america- volvimento que atingiu padrão elevado para seg-
nos, os maiores compradores mundiais. Mesmo mentos expressivos da sociedade brasileira. E a
nas oportunidades que se abrem no Oriente inserção nesse padrão faz-se pela ponta, ou seja,
Médio e Sudeste Asiático, nas nações emer- pelo patamar mais elevado da base técnica e não
gentes sem agricultura relevante, a diferencia- pela sua base inferior. As tentativas de reprodu- TESE
ção pela qualidade é condição de sucesso na ção do modelo de grãos e fibras nos assenta-
busca de inserção competitiva. mentos rurais correspondem, salvo exceções, em
Assim, essa agricultura de produtos di- fracassos anunciados. As políticas públicas para
ferenciados na origem realmente pode ser cons- a construção da agricultura com menores indica-
truída no Brasil com base em pequenas e médias dores de concentração de terra e de renda no
propriedades intensivas no uso do solo. Entretan- campo, para serem efetivas, devem aprofundar o
to, não há qualquer possibilidade de sucesso do desenvolvimento dos agronegócios, internalizan-
mero transplante do modelo da agricultura de do a produção de qualidade diferenciada na ori-
commodities. Trata-se de outra agricultura, ba- gem. Assim, estará gestando efetivamente a no-
seada não na máquina, mas no homem, pois o va classe média rural buscada como base de um
capital intelectual é o mais importante capital novo padrão agrário, intenso na geração de
produtivo, não sendo o capital fixo que determina trabalho e de renda.
sua sustentabilidade econômica. Para realizá-la Afinal, como são as transformações SERÁ?
há que proliferar um amplo segmento de lavrado- econômicas que movem a história, é a escala TESE!
res profissionais com alta capacidade de apreen- que determina a estrutura de produção e não a
são da relação água, solo e planta, fundamental estrutura de produção que determina a escala. O
na configuração da excelência na produção de Estado brasileiro atuou de forma decisiva na
qualidade intrínseca. Mais ainda, esse capital in- construção dos modernos agronegócios de grãos
telectual de qualificação, também diferenciada e fibras, sendo essa a face do sucesso inequívo-
com orientação convergente na dedicação ao ne- co das políticas agrícolas brasileiras. Entretanto,
gócio, realizará tratos culturais com o esmero do se nesses segmentos as políticas governamen-
tratamento planta a planta para não dizer fruta a tais têm, atualmente, papel restrito na determina- O CRÉDITO
fruta. Essa é a face inexistente como padrão ge- ção da dinâmica setorial, sendo que mesmo no GOVERNAMENTAL
neralizado na lavoura brasileira, que envolveria financiamento da safra o crédito oficial se revela NÃO É MAIS
as frutas frescas, olerícolas frescas, flores e os minoritário, na construção da agricultura produto- MAJORITÁRIO?
cafés especiais, dentre outras cadeias de produ- ra de qualidade na origem é indispensável a ne-
ção. A política cafeeira brasileira, por exemplo, cessidade de políticas públicas ativas, não ape-
com a pujança de uma nação que ocupa, ainda, nas nas ampliação das lavouras e criação desse
um quarto do mercado mundial, deveria estar to- perfil estrutural, como na regulação da qualidade
talmente voltada para a concretização de uma de produtos e processos, na regulação das boas
cafeicultura familiar de qualidade. Somente essa práticas comerciais e no exercício de uma legis-
IMPORTANTE! revisão na política cafeeira teria impactos estrutu- lação conseqüente que leve à produção planeja-
rais mais pronunciados que todas as políticas de da, como os programas integrados de frutas. Es-
assentamento de fortalecimento da agricultura fa- sa é a prioridade realmente efetiva de política es-
miliar realizadas nos últimos anos. trutural para os agronegócios. Importante salien-
Na busca de um padrão agrário menos tar que pelos desdobramentos da ordem natural
excludente, do ponto de vista social, essa é a das coisas, com a concentração de beneficiários
prioridade nacional latente. Decerto não resolve a dos incentivos fiscais em algumas regiões brasi-
questão social dos atuais “excluídos do campo”, leiras, realiza-se a expansão desses segmentos
integrantes dos atuais “sem terra”, mas talvez, da agricultura seguindo, de forma aprofundada,
numa visão estrutural de médio prazo pudesse os mesmos procedimentos concentradores de
ser solução para seus filhos. A questão funda- terra e renda utilizados na construção do atual
mental nesse debate, na maioria das vezes, tem modelo de sucesso dos grãos e fibras.
sido colocada em um segundo plano, qual seja, Ressalte-se que é possível expandir la-

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vouras de produtos com diferenciação de quali- nordestinos, nos arrozais maranhenses, nos ca-
dade na origem com base em grandes empre- fezais paulistas e, no momento atual, nos cana-
endimentos. Essa concentração de privilégios, viais paulistas, nas florestas plantadas capixabas,
sim, resulta de políticas públicas, e nada indica nas plantações de grãos e fibras do Brasil Cen-
para a mudança. Mais à frente, poderá ser mais tral, a cada novo eldorado da agricultura itineran-
um si revelador de oportunidade perdida, como te brasileira, floresce a riqueza com base em
refere-se ao si derivado da realização da reforma explorações calcadas na grande propriedade ter-
agrária massiva nos anos 50s e 60s, antes da ritorial. A cada nova fronteira de expansão, inves-
modernização do campo dos anos 70s em dian- timentos públicos erguem estruturas e transfor-
te27. O desenvolvimento da agricultura brasileira mam o nada na manifestação de imensas fortu-
que, se fosse efetuado a partir de prévia reforma nas baseadas na propriedade da terra. No pas-
agrária, poderia forjar outra resultante social eco- sado, o ouro branco e o açúcar do nordeste fez a
nômica no campo e na cidade, se essa reforma pujança pernambucana de Olinda e Recife. No
agrária, no período, tivesse como associada de apogeu do café no Vale do Paraíba, como ouro
forma complementar, a políticas agrícolas que negro nos alforjes de imensas fortunas, ergue-
não concentrassem benefícios em poucos. Hoje, ram-se os majestosos casarões de Bananal que
essa argumentação perdeu sentido, dado que in- chegaram a ter moeda própria. Os barões do ca-
felizmente o si não faz parte nem pode refazer a fé de Ribeirão Preto emergeram no cenário eco-
história, pois como diz o ditado camponês: “não nômico e político brasileiro a partir de seus mares
adianta chorar o leite derramado”. de café. O café do Norte do Paraná ergueu sua
Nova Londres, sua Londrina, com grandes cafe-
zais e agora, os imensos “pivots centrais” irrigam
5 - NOVOS CAPITALISTAS AGRÁRIOS DES- de Rio Verde nas imensas plantações de grãos e
TRUINDO AS BASES DE QUATRO SÉCU- fibras do Brasil Central. A marca de todos esses
LOS DE LATIFÚNDIO: distinção entre processos é a concentração da terra e da renda
grandes empreendimentos e grandes lati- nos ciclos de expansão da fronteira agrícola,
fúndios concretizando a base empírica que sustenta o
argumento recorrente nas análises da crise agrá- TESE
Não há como fugir à comprovação his- ria brasileira, repetido à exaustão, de que a histó-
tórica de que, regra geral, a história da agricultura ria da agricultura brasileira, na sua base estrutu-
brasileira tem sido a história da hegemonia plena ral, constitui-se a história de quatro séculos de
da grande propriedade territorial. Em todos os latifúndio28.
ciclos econômicos, no passado nos canaviais Não há como contestar esse axioma. A
própria colonização brasileira deu-se com base
27
Isso não significa que em zonas específicas da agricultu- no sistema de capitanias hereditárias, pelo qual
ra brasileira não possam ser tentados assentamentos fun-
diários produtores de grãos e fibras, mas o que se quer
28
pontuar é que, nos anos 50s e 60s, caso tivessem sido Mantém-se aqui a alusão ao tempo histórico de quatro
realizados os assentamentos fundiários nos moldes dos séculos de latifúndio para fazer referência a um clássico
atuais, como era pouco expressivo o contingente dos de- da economia agrária brasileira, correspondente brilhante,
nominados “lavradores modernos”, todos partiam de con- livro de mesmo nome, escrito por Alberto Passos Guima- TESE: A
dições similares de competição em termos de domínio da rães. Na verdade, o conceito de latifúndio estava ligado à RECRIAÇÃO DO
base técnica. E essa base técnica envolve mais que ado- concepção de que no Brasil o processo de colonização
ção de técnicas agronômicas, incluindo técnicas geren- teria reintroduzido o feudalismo, fundamentalmente, com FEUDALISMO
ciais e técnicas de negócios que formam a complexidade base em práticas de coerção extra-econômicas de domi-
desse padrão agrário. Ressalte-se que não bastaria haver nação humana, como o trabalho compulsório, típicos de
realizado a reforma agrária, pois muitos dos atuais “sem relações feudais de produção. Também há mais de 4 sé-
terra” eram proprietários de terra que deixaram suas ter- culos de latifúndio, quase cinco séculos, para atualizar a
ras, exatamente, por não terem acompanhado a evolução periodização histórica. Entretanto, esse debate já é uma CELSO FURTADO E
desse processo que impôs uma enorme seletividade etapa vencida na economia agrária brasileira, a partir, em
A TEORIA DA dentro de um processo de diferenciação crescente que, especial, da contribuição de Celso Furtado, no seu clássi- A REFUTAÇÃO
em razão do desenho das políticas públicas centradas no co Formação Econômica do Brasil, para a quem a coloni-
DIFERENCIAÇÃO crédito subsidiado distribuído a mercado, exacerbou os zação brasileira deu-se sob a égide do capital comercial.
DE LÊNIN índices de concentração fundiária. Além da política agríco- Entretanto, de uma forma ou de outra, todos os pensado- A ACUMULAÇÃO
la funcional com a concentração, caso o processo tivesse res concordam quanto ao pecado original de existência de
partido de um contigente de proprietários muito mais mecanismos de coerção extra-econômica não típicas da PRIMITIVA DE
amplo, não apenas o ritmo da concentração mas sua sociedade capitalista, cuja perenidade histórica marca o CAPITAL E SEUS
resultante poderiam ser outros. De outro lado, os que autoritarismo e dominação da relação patrão-empregado
buscassem as cidades não o fariam sem eira nem beira. no Brasil, no campo e na cidade. EXPEDIENTES
SOFISTICADOS
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dividiu-se o território brasileiro em faixas paralelas ção e acumulação de riquezas ao capitalismo


que iam do Oceano Atlântico a um meridiano mercantil: o comércio do açúcar e o comércio de
imaginário determinado pelo Tratado de Tordesi- escravos29. O registro histórico do recuo de José
lhas, que havia dividido o mundo entre as nações Bonifácio de Andrada e Silva, personagem rele-
responsáveis pela expansão marítima: Portugal e vante do processo da independência brasileira,
Espanha. A cada capitania estava associado o de conhecidas posições anti-escravistas e que se
domínio quase pleno de um aquinhoado da colô- curvou à força da oligarquia agrária, revela a for-
nia portuguesa. As bases da colonização lusitana ça política, social, econômica e mesmo militar
no Brasil, já na sua origem, assentam-se na terri- desse segmento social no Brasil Colonial e no
torialidade das grandes extensões de terra. Mais Brasil Imperial.
tarde o sistema de sesmarias configuraram a fa- A Proclamação da República não rom-
ce agrária desse processo, conformando imensas peu com a predominância da grande propriedade
faixas de terra, divididas a partir de marcos geo- territorial, mas representou uma mudança funda-
gráficos que emergiam em destaque no relevo, mental nos mecanismos de acesso à terra, como
que foram objetos de cessão a poucos beneficiá- decorrência da aplicação da Lei de Terras de
rios, quase sempre recrutados na órbita da estru- 1850, que instituiu a compra, e não a concessão DA CONCESSÃO
tura social da elite brasileira em formação, en- pública, como instrumento de acesso à proprie- PÚBLICA À
quanto oligarquia agrária. A Lei de Terras de dade da terra. Essa distinção é fundamental para COMPRA
TESE: A LEI DE 1850, não apenas viria a legitimar a posse como, o entendimento do caráter da propriedade da ter-
TERRAS E A ao produzir a metamorfose da riqueza, originou ra que, de forma progressiva, forjou-se no campo
METAMORFOSE DA na verdade a pseudomorfose da elite, ao gerar a brasileiro no período republicano, e que formaram
riqueza patrimonial centrada na propriedade da a marca das novas expansões da fronteira agrí-
RIQUEZA terra para substituir o sistema arcaico e em ruí- cola nacional. As expansões da fronteira agrícola DÁ A ENTENDER
nas, calcado na riqueza patrimonial e baseado no no período republicano deram-se sob a égide do QUE A GRILAGEM
domínio sobre o trabalho compulsório de negros mercado de terras, com a democratização da NÃO FEZ PARTE
africanos, para cá trazidos feito escravos. possibilidade de acesso para os agentes econô-
DO PROCESSO
Esse processo marcou a agricultura micos que tivessem capacidade de acumulação
brasileira no ciclo do açúcar nordestino e no início de capital suficiente para pagar “os preços da ter-
do ciclo cafeeiro paulista, ou seja, do século XVI ra”30. Esse “preço da terra” cria um vínculo jurídi-
TESE: A GRANDE ao final do século XIX. A grande propriedade terri-
PROPRIEDADE torial escravocrata, das casas grandes e das sen- 29
Interessante destacar a brilhante contribuição de Luiz Fe-
TERRITORIAL zalas, não apenas formaram a base da economia lipe Alencastro no desvelar da formação econômica do
Atlântico Sul que unia, e não dividia o Brasil da África que
ESCRAVOCRATA nacional, como em três séculos e meio determi- enquanto territórios coloniais, eram a base do unitário e
naram o domínio incontestado da oligarquia agrá- indissociável movimentos de acumulação centrados nos
ria no cenário político brasileiro, passando por fluxos comerciais de açúcar e de escravos. Em seu livro O
PERFEITO!
Trato dos Viventes, esse autor desvela, de forma magis-
todo período colonial e todo período imperial. tral, a epopéia do aristocrata fluminense Salvador de Sá e
Mesmo os mais importantes movimentos de con- Benevides, parente de Men de Sá que foi Governador
testação do Poder Central, como a Revolução Geral do Brasil e de Estácio de Sá, fundador do Rio de
Janeiro e membro destacado da oligarquia agrária produ-
Farroupilha dos estanceiros gaúchos, mantinham tora de açúcar que, décadas antes da Batalha de Jaboa-
identidade de interesse com a aristocracia impe- tão do Guararapes que é tida como marco histórico da
rial na manutenção da escravidão e do domínio vitória sobre os invasores holandeses da região nordestina
produtora de açúcar, forma uma armada e invade a Ango-
sobre o acesso à terra. O resultado do acordo la na África, tomando Luanda, ferindo de morte o domínio
que solucionou esse conflito dá provas cabais holandês nas transações comerciais do circuito econômico
desse fato. A própria unidade territorial brasileira, do Atlântico Sul. Como decorrência dessa derrota, num
ponto estratégico para a dominação comercial, deu-se
fator que diferencia de forma nítida a evolução da posteriormente a derrota no plano político.
América portuguesa da América espanhola, ex- 30
Essa face do capitalismo de transformar em mercadorias
plica-se em muito pela união em torno do interes- aquilo que não significou produto de trabalho algum é dis-
se de manter a escravidão como elemento es- cutida de forma consistente por Karl Polanyi no seu clássi-
co A Grande Transformação: As origens de nossa época.
sencial à grande propriedade agrária produtora A terra, por pressuposto, não deveria ter preço e logo não
de açúcar. Na verdade, o comércio internacional poderia ser adquirida. Entretanto, essa não é a percepção
do Atlântico Sul que unia o Brasil à África tinha no mundo real da estrutura agrária brasileira no qual os
proprietários de terra justificam seu domínio sobre um bem
dois produtos que permitiram expressiva produ- natural com base no pressuposto de que o mesmo foi

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co e cultural representado na apreensão efetiva


CITAÇÃO PARA los de latifundiários, mesmo com a concessão
de que o acesso à terra resulta do trabalho, se equivocada de “latifúndio moderno” corresponde
A TESE
não daquele personagem em específico, de seus a um equívoco histórico que obscurece a com-
antepassados. Nas regiões mais dinâmicas, o nú- preensão da realidade brasileira. Por certo, no
mero de proprietários de terra que atuaram di- denominado agronegócio de sucesso coexistem
retamente na acumulação de capital e com esse proprietários de terras adquiridas, que são a par-
resultado adquiriram terras é elevado. cela majoritária, e proprietários de terras oriundas
Não se pretende aqui desconhecer o de heranças familiares que tiveram origens nas
fato de que, em muitas regiões brasileiras, em es- concessões do período imperial e mesmo algu-
pecial nas aberturas das fronteiras agrícolas no mas remontam ao período colonial. Mas, em
período republicano, não houveram ações esta- qualquer desses casos, na quadra atual, são de
tais de cessão de direitos de propriedade, antes forma reconhecida, empresários capitalistas que
não tituladas, a novos proprietários. E também, obtiveram sucesso na agricultura, sendo inapro-
não constitui interesse esconder a realidade do priado, do ponto de vista histórico e estrutural,
fato de que, em muitos casos, estiveram presen- discutir esse processo, ainda que apenas no es-
tes mecanismos de grilagem e de processos não paço da luta política, colocando-os num mesmo
convencionais, para não dizer ilegais, nas ações grupo monolítico a que se denomina latifundiá-
de distribuição dessas terras de domínio público. rios, que de modo algum podem ser referência
AS DIFERENTESO que se quer aqui pontuar é que isso não repre- correta para caracterizar todos os grandes pro-
GEOGRAFIAS senta toda a realidade de acesso à terra no perío- prietários de terra. Assim, nem todo grande pro-
DA EXPANSÃO do republicano que, em especial no Sudeste do prietário de terra é latifundiário, e mesmo nem
DA FRONTEIRA Brasil, se deu de maneira majoritária por compra. todo latifúndio, entendido como terra improdutiva,
Aceito isso, o fundamento jurídico de acesso à tem origem na transmissão sucessiva de heran-
AGRÍCOLA NO
terra por compra, altera-se a essência da discus- ças que remontam às sesmarias e mesmo às
BRASIL são da propriedade da terra nos locais em que is- capitanias hereditárias. A análise das transforma-
so ocorreu. A alusão ao latifúndio, às sesmarias e ções da história da agricultura brasileira, na sua
ao regime de capitanias hereditárias, se de um profundidade estrutural, mostra ser esse argu-
lado reforçam o sentido histórico da prevalência mento inconsistente com os fatos.
da grande propriedade no Brasil, de outro são A famosa expansão do café na região
referências históricas muito distantes para sus- de Ribeirão Preto já representa, na sua essência,
tentar o debate da crise agrária na quadra atual uma ruptura definitiva com o passado da agricul-
dos conflitos do campo brasileiro. Isso, em espe- tura brasileira, forjada com base naquilo que o
cial para aqueles que obtiveram acesso à terra, cientista político Fernando Henrique Cardoso,
por aquisição a partir da acumulação prévia de muito apropriadamente denominou de burguesia
capital, ensejada na condição de trabalhadores agrária. A estruturação do núcleo hegemônico da
para outros proprietários de terra, por eles pró- elite que se formou com a expansão cafeeira
prios ou por seus antepassados. paulista deu-se no primeiro momento com o do-
Esse processo corresponde à esma- mínio do capital comercial que conformaram “os
gadora maioria dos empresários rurais atuantes agronegócios do café”. Tratava-se de interesses
nas cadeias de produção que são a face mais ní- mais amplos que os limites dos cafezais, com a
tida do sucesso que, atualmente, se denomina configuração de empresas produtoras da rubiá-
forma acertada, na agricultura brasileira. Essa é a cea associadas a outros interesses, inclusive o
condição predominante do contingente que res- capital internacional. A Companhia Agrícola Fa-
ponde pelas supersafras recentes, inclusive a zenda São Martinho, da família Silva Prado, esta-
atual que atingiu a marca histórica de 120 mi- va, desde início, vinculada à busca da inovação
lhões de toneladas de grãos. Simplesmente taxá- tecnológica como suporte da lavoura moderna,
tendo um dos seus membros, o Conselheiro An-
tônio Prado, presente na estruturação da bases
“comprado”. Como o capital investido na sua compra, ao
menos na primeira aquisição, é produto acumulado de institucionais da moderna economia brasileira. Na
trabalho e não diretamente derivado da exploração de tra- hegemonia urbano industrial brasileira, que fez
balho alheio, cria-se uma justificativa jurídica e moral para valer de forma decisiva sua supremacia ideológi-
a defesa da propriedade da terra, nem sempre levada em
consideração pelos analistas da crise agrária. ca pós 1930, presta-se reverências efusivas, de

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fato merecidas, a Irineu Evangelista de Souza, o A grande propriedade cafeeira estrutu-


Visconde de Mauá, pela sua luta pela industriali- rada como agronegócio de grande empresa, ain-
zação, mas com certeza Antônio Prado, que não da assim muito distante do conceito de latifúndio,
ostentou título de nobreza, é o mais importante só existiu nesse padrão na região de Ribeirão
personagem histórico do final do Império, conce- Preto, uma vez que as demais regiões como a de
bendo e implantando as bases da agricultura mo- São Carlos e outras organizaram, nos períodos
derna no Brasil, criando as novas instituições e de expansão, cafezais de propriedades menores.
implantando os paradigmas empreendimentos do Dessa maneira, aquilo que se conhece
maior negócio de economias continentais: os como grande propriedade de café na virada do
agronegócios. século XIX para o século XX, que pertencia à
O Conselheiro Antônio Prado está as- elite paulista, os denominados barões do café,
sociado à criação dos institutos de pesquisa a- era uma condição particular de Ribeirão Preto. A
gronômica no Brasil, com a importação de cére- crise de 29, que afetou duramente a economia
bros austríacos e de outras nações européias, cafeeira, mostraria a face de capital comercial
desde a estruturação da pesquisa geológica pau- das principais lideranças, em especial dos Silva
lista para descobrir terras roxas, para ampliar ca- Prado que organizaram a Companhia Agrícola
fezais, datada de 1886, até a busca de novas téc- Imobiliária e Colonizadora (CAIC), junto à Com-
nicas agronômicas, formada em 1887. Essa con- panhia Paulista de Estradas de Ferro. Essa em-
cepção forjou a “geração de engenheiros” com a presa privada não apenas se envolveu no reta-
estruturação do curso de agronomia, como enge- lhamento de inúmeras fazendas cafeeiras, como
nharia, em 1896. Mais ainda, com a necessidade a própria Companhia Agrícola Fazenda São Mar-
de produzir-se até dormentes para a expansão tinho e a Dumont Cofee Company, vendidas a
ferroviária, criou-se a base da ciência florestal, um imensa legião de antigos colonos que passa-
ainda na entrada do século XX. Esses exem- ram a se dedicar ao plantio de algodão, como
plos, que mostram compromissos contemporâ- estruturou o avanço para o Oeste Paulista na tri-
neos de fatos similares ocorridos nos Estados lha da expansão ferroviária como na Alta Paulis-
Unidos da América e com os institutos politécni- ta, também vendendo lotes de pequenas proprie-
cos da Alemanha, consubstanciam uma ruptura dades a quem tivesse capital acumulado para
estrutural com a agricultura até então praticada comprar terras. A Companhia Imobiliária do Norte
no Brasil, lançando os pilares do que no mo- do Paraná (Cia Norte) procedeu da mesma ma-
mento atual se denomina moderna lavoura. neira no avanço da colonização daquela fronteira
Desse fato deriva, também, a razão da manu- agrícola, que passou a ser a nova frente de ex-
tenção da liderança brasileira no mercado inter- pansão do café nos anos 40s em diante, vindo a
nacional do café. liderar a produção nacional nos anos 60s e início
Entretanto as plantações de café não dos 70s.
configuram o único negócio dos Silva Prado, na Nesse processo duas vertentes condu-
medida em que eram proprietários da Companhia zem à criação da pequena propriedade fundiária,
Paulista de Estradas de Ferro, fundaram o Banco uma derivada da nova forma de ocupação da
de Comércio e Indústria (COMIND) em associa- fronteira agrícola, com base na venda de lotes de
ção com capital estrangeiro. O Conselheiro Antô- terra com financiamentos de juros baixos e de
nio Prado, o monarquista da família que tinha ain- prazos longos, e outra decorrente do retalhamen-
da em Martinho Prado seu ramo republicano, foi to e liquidação patrimonial das antigas grandes
Ministro do Império ocupando diversas pastas en- fazendas de café afetadas de forma profunda pe-
tre as quais a da agricultura e atuou na criação da la crise cafeeira, passando a ser um negócio
Bolsa de Café de Santos. Mais ainda, a concep- menos rentável que a indústria e os bancos das
ção de agronegócio é reforçada pelo fato que as cidades que prosperaram, para onde foi carreado
plantações de café dos Silva Prado, já na virada o capital obtido na liquidação imobiliária. A verifi-
do século, era gerenciada na forma de uma em- cação da estrutura fundiária dessas regiões, no
presa, a Companhia Agrícola Fazenda São Mar- momento atual, revela que as mesmas passaram
tinho, similar a outras como a Dumont Cofee por um expressivo processo de reconcentração
Company, adquirida pelo capital inglês do pai de fundiária, em especial nas regiões onde desen-
Santos Dumont, Henrique Dumont. volveu-se o complexo sucroalcooleiro e em ou-

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tras onde predominou os cultivos mecanizados os proprietários de terras que não obtiveram aces-
de soja nos anos 70s e 80s31. Entretanto, há que so aos benefícios das políticas públicas32. A
se diferenciar, de forma nítida, esse processo da questão que se coloca é que muitos dos que não
idéia antiga de latifúndio, na medida em que o tiveram acesso às políticas de modernização
mesmo se deu pela crescente diferenciação dos acabaram excluídos do campo e por isso, os ven-
empreendedores mais dinâmicos para, em mo- cedores do processo de diferenciação não po-
vimentos típicos da expansão capitalista, forma- dem arcar agora com a “culpa” de terem obtido
rem grandes empreendimentos. êxito.
Essa reconcentração fundiária deriva, Esse processo de reconcentração exa-
em muita medida, do processo de modernização cerbada da terra foi nítido tanto nos canaviais
agropecuária iniciado em São Paulo nos anos paulistas como na expansão da soja paranaense,
50s e ampliado, ganhando dimensão nacional da que acabou erguendo uma das bases produtivas
metade dos anos 60s em diante. Trata-se da ple- de lavouras mais eficientes do campo brasileiro.
nitude do processo de generalização horizontal No final dos anos 70s, havia nessas regiões pro-
nas regiões mais dinâmicas da lavoura brasileira dutivas o “locus” da modernidade da agricultura
do padrão produtivo das lavouras de escala, típi- brasileira, com indicadores de produtividade
co dos grãos e fibras mas que envolvem também crescentes, consistentes e com uma inserção
a cana e a laranja para a agroindústria. Esse competitiva sustentável. Na realidade dos anos
crescimento do tamanho das áreas agricultadas 80s, apenas o cultivo da soja foi implantado com
por cada lavrador consiste numa decorrência ine- mecanização plena do processo produtivo, em
xorável da mecanização intensa das operações especial do plantio e da colheita. Nas demais la-
produtivas, aliadas ao uso de outros insumos co- vouras, como a cana, laranja, café e algodão a li-
mo fertilizantes e técnicas avançadas. Mais uma mitação da possibilidade de mecanizar a colheita
vez, esse processo de diferenciação foi derivado acabou por gerar uma exacerbação da amplitude
de um desenho das políticas agrícolas baseadas sazonal de demanda de mão de obra, com picos
no crédito subsidiado distribuído ao mercado. As- concentrados nas colheitas. Essa modernização
sim, aqueles que conseguiram diferenciar-se fo- parcial pela maquinaria, se de um lado gerava
ram compelidos a buscarem internalizar ganhos um problema social grave pela formação de le-
de escala compatíveis com a sustentabilidade de giões de “bóias frias” que perambulavam pelo in-
sua posição competitiva num processo capitalista terior das zonas de produção na procura de
que se revelou profundamente excludente para trabalho, de outro era um obstáculo à plena
pressão por ganhos de escala que implicaria em
31 maior concentração da terra. A expansão sem
Esse processo foi denominado pelo grande amigo e ines-
quecível mestre José Jorge Gebara, de processo de fago- crédito subsidiado dos anos 80s em diante,
citose, numa alusão ao mecanismo de fusão celular em derivada da dinâmica do complexo agroindustrial
que uma célula absorve a outra, na sua brilhante e pionei-
ra análise sobre a evolução da agricultura do município
que se consolidara no início dessa década a
canavieiro paulista de Sertãozinho (SP), antigo berço do partir da internalização das agroindústrias de
café que se converteu em moderno núcleo produtor de insumos e máquinas pela execução do II Plano
açúcar. Mas, é preciso qualificar o fato de que os perso-
nagens, agora grandes proprietários de terras, são outros, Nacional de Desenvolvimento da era Geisel,
foram colonos, na maioria imigrantes italianos que traba- liderou o aprofundamento da busca de eficiência
lharam anos nos cafezais, acumularam algum capital,
32
compraram pequenas propriedades de terra e numa ex- A adoção do crédito subsidiado a mercado como princi-
pansão produtiva sem precedentes algum diferenciaram- pal instrumento da política agrícola sustentadora do pro-
se e, adquirindo terras de vizinhos e mesmos outras fa- cesso de modernização agropecuária dos anos 60s em
zendas, tornaram-se grandes proprietários de terras. diante, na medida em que revelou uma nítida e intensa
Exemplo disso pode ser dado na família Biagi, que em concentração nos grandes tomadores, concentração essa
1928 comprou 28 hectares de terra e nesse processo de caracterizadora do acesso aos elementos da política de
expansão atingiu o domínio sobre mais de 40 mil hectares, modernização ensejada, produziu como corolário um apro-
formando-se uma das maiores estruturas agroindustriais fundamento da concentração da terra e da renda no cam-
paulistas. Ressalte-se que importante número desses no- po. A crítica contundente dessa funcionalidade das políti-
vos proprietários de terras que obtiveram suas proprieda- cas de crédito com a concentração de terra e de renda
des por compra no pós 1930 ainda mantêm-se na agricul- está presente no clássico de Luiz Carlos Guedes Pinto,
tura, em especial nas áreas em que ou conseguiram con- que, com profunda acuidade, analisou esse processo
viver com a fagocitose típica da grande lavoura canavieira ocorrido nos anos 60s e 70s. Essa política de crédito rural
ou se localizavam em zonas onde a pressão canavieira concentrado exacerbou os efeitos já claramente orienta-
não se manifestou em toda sua plenitude, permitindo pra- dos para os ganhos em escala via mecanização de pro-
ticar outras atividades. cessos, típicos das lavouras do modelo texano.

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fundamento da busca de eficiência que se con- ras agrícolas do Sudeste. Nos cerrados há que
substanciaria em ganhos crescentes à escala, se “construir” o solo na medida em que, sendo
agora com movimentos consistentes de moderni- terras ácidas e com pouco fósforo, exigem a cor-
zação da colheita do milho, do algodão e recen- reção prévia dessas deficiências para que se ob-
temente da cana, reduzindo de forma progressiva tenha sucesso. Por outro lado, há a necessidade
os diferenciais de amplitude da sazonalidade do de estruturar os conjuntos de irrigação e o co-
uso de mão de obra, tendo como resultado a mi- nhecimento de técnicas mais sofisticadas de ma-
nimização consistente dos problemas sociais de- nejo de solo e água, como as de cultivo mínimo.
rivados do fenômeno social denominado “bóia Os lavradores do cerrado enfrentam, desde logo,
fria”33. a barreira à entrada do capital acumulado para
A mecanização da colheita que vem estruturar o solo e a base produtiva, entretanto,
crescendo de forma consistente no movimento mesmo que a preços reduzidos, obtêm o acesso
recente de aprofundamento da competitividade à terra, mediante compra. Por esses motivos, os
da lavoura de escala, por esse prisma, amplia o empreendedores das lavouras de escala dos
nível de exclusão social, na mesma medida que, cerrados integram-se à mesma condição daque-
isolada, livra-se do estigma da exploração intensa les que, no Sul-Sudeste, não se constituem em
dos trabalhadores, em especial nas operações de proprietários de terra para que possam ser en-
colheita. Forjou-se assim, amplo segmento de quadrados como latifundiários.
empreendedores capitalistas que, tendo durante É fundamental, dessa maneira, realizar
vários momentos do século XX, obtido acesso à a adequada distinção histórica e factual dos diver-
propriedade da terra, diferenciaram-se no pro- sos segmentos, e da lógica da dinâmica econô-
cesso de modernização e constituíram estruturas mica antagônicos, que possam estar encobertos
produtivas compatíveis com os padrões de efi- sob a classificação genérica de grandes proprie-
ciência necessários à inserção competitiva numa tários de terra. Se do ponto de vista da distribui-
economia globalizada. Resta ainda, para fechar o ção fundiária esse fato não tem significado estru-
argumento a respeito desse segmento diferencia- tural importante, essa nova categoria de grande
do de empreendedores rurais que compraram propriedade agrária tem significado cultural e ju-
terras e desenvolveram potenciais produtivos, in- rídico radicalmente distinto. Na medida em que a
serir os capitalistas produtores de grãos e fibras terra não foi recebida como doação, mas adquiri-
do Brasil Central. Em primeiro lugar, há que se da pelo resultado do trabalho, e que o capital pro-
ressaltar a especificidade da lavoura dos cerra- dutivo deriva do domínio de técnicas avançadas
dos, pois, nessas condições, não há a acumula- e da construção da base do capital fixo que forja
ção produtiva da exploração da madeira e da uma elevada capacidade de produzir, não há co-
fertilidade natural do solo decorrente da derruba- mo não diferenciá-los na análise da realidade
da da floresta, como era a realidade das frontei- agrária, mesmo porque, em sociedades de eco-
nomia capitalistas, enquanto empreendimentos
33
Interessante pontuar, que nessas lavouras de escala as geradores de emprego e de riqueza vinculados à
lideranças sindicais pressionadas pela possibilidade técni-
ca da mecanização crescente e quase absoluta de todos amplas cadeias de produção, cumprem a função
os processos operacionais de cultivo, literalmente perde- social da propriedade. Para esse segmento de
ram capacidade e poder de reivindicação. As lideranças sucesso dos agronegócios brasileiros é funda-
políticas mais expressivas, que estiveram na linha de
frente da luta em defesa dessas categorias, como no caso mental, não apenas por razões jurídicas e cultu-
dos canavieiros paulistas, perderam sua base de apoio rais, mas por relevantes motivos sociais e eco-
eleitoral e não se elegeram nas últimas eleições. Mais
ainda, depois de um período turbulento de greves conflitu-
nômicos, dar-lhes a segurança patrimonial con-
osas nos anos 80, o movimento sindical de trabalhadores sistente com o ritmo da manutenção dos investi-
rurais numa postura similar àquela adotada pelos sindica- mentos, que é do interesse de toda sociedade
tos de metalúrgicos, que já foram a vanguarda do moder-
no sindicalismo brasileiro, trocaram a luta por avanços nos
brasileira34. Avançar na solução da questão agrá-
direitos trabalhistas por posturas de defesa do emprego.
34
Os explorados organizam-se para lutar pelo direito de Noutras palavras, com certeza, nem toda grande proprie-
continuarem a serem explorados, numa completa inversão dade é um latifúndio e nem todo latifúndio é uma grande
de valores e objetivos das estratégias de lutas de classes. propriedade. Basta verificar o desperdício de recursos pro-
Cortar cana, por exemplo, é um trabalho árduo e fatigante, dutivos das pequenas chácaras de lazer, criadas em lo-
típico de trabalhadores com reduzida qualificação formal, teamentos à orla das grandes represas hidroelétricas. A
mas, sendo o único ofício que sabem executar, lutam para existência de latifúndios e sua detecção exige mudanças
manterem uma vaga possibilidade de sobrevivência. Essa fundamentais em toda legislação agrária, rompendo com
é a face perversa desse processo. os conceitos definidos nos anos 60s quando da edição do

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ria, por qualquer mecanismo de políticas públi- nos últimos anos, os quais não se sustentam na
cas, não pode significar a penalização dessa face realidade. O principal deles é a pretensa contra-
de eficiência da agricultura. dição entre a grande lavoura e a carestia, con-
substanciada na oferta e nos preços dos alimen-
tos para as populações urbanas. Em função de
6 - À GUISA DE CONCLUSÃO: crise agrária e haverem detectado “insuficiência de oferta”, de-
agricultura fende-se a necessidade de produzir mais alimen-
tos para barateá-los, o que se revela um contra
A exacerbação dos conflitos agrários, senso. A fome, onde ela existe, não resulta da
no momento atual, na verdade, reflete a face pe- falta de comida, mas da falta de renda. Assim,
rene de uma crise estrutural da economia e da não há, em medidas produtivistas de aumento da
sociedade brasileira, cuja solução vem sendo oferta, qualquer capacidade de solução para o
postergada a mais de 5 séculos em uma propor- problema anacrônico da fome. Dada a renda dis-
ção que perpassou praticamente toda história da ponível que conforma dado tamanho da deman-
nação brasileira, na medida em que surgiu no da efetiva, um aumento substantivo da produção
Brasil Colônia, ampliou-se no Brasil Imperial e de alimentos como mandioca, feijão e arroz resul-
aprofunda-se no Brasil República. Desse proces- tará exatamente no efeito contrário a médio pra-
so histórico, de persistente crise agrária, emer- zo, uma vez que provocará prejuízos para os
gem na realidade brasileira contemporânea duas lavradores, que arcarão com os custos do “ex-
constatações empíricas que se destacam não cesso de oferta”, com acúmulo de excedentes
apenas pela sua elevada expressão como pelo invendáveis, que refletindo-se em preços desesti-
caráter de contradição que guardam entre si. É muladores, provocarão redução de plantio na sa-
inegável o sucesso competitivo alcançado por fra subseqüente. A atuação governamental de
segmentos relevantes dos agronegócios nacio- “enxugamento do mercado” poderá levá-lo a cus-
nais que fazem do Brasil do presente uma nação tear estoques pagando sobrepreço, gerando
de expressiva capacidade de produção de bens enorme irracionalidade fiscal. Essa discussão da
essenciais, em especial para o mercado de inelasticidade da oferta agrícola já é uma questão
commodities, projetando-se no futuro muito pró- superada na realidade brasileira, no plano teórico
ximo, ao largo de pouco mais de uma década, da economia nos anos 60s, e no plano da reali-
segundo estudo da Organização das Nações dade, em toda década de 199035.
Unidas (ONU), à uma posição na qual o Brasil
assuma a condição de maior produtor mundial de 35
No plano da teoria econômica, essa discussão está su-
grãos e fibras. De outro lado, esse sucesso con- perada, em especial graças à contribuição de Ignácio
vive com enorme grau de exclusão social, em Rangel no início dos anos 60s, com sua acurada discus-
são contra os argumentos relativos à inelasticidade da
especial no campo brasileiro, dando uma estrutu- oferta agrícola. Para esse, que é um dos maiores pensa-
ra de iniquidade da distribuição de renda, propi- dores da economia e da questão agrária brasileira, a
ciando que nessa nação, com elevada capacida- solução para a questão da alimentação seria resolvida
pelo lado da renda. Afinal, a “demanda cria sua própria
de de ofertar alimentos, ocorra realidades de fo- oferta”, exatamente o contrário dos economistas conser-
me, situação que afeta, em maior ou menor grau, vadores, presos ao equívoco conceitual perpetrado pela
expressiva parcela da realidade nacional. Essas aceitação sem exitação da Lei dos Mercados de Say,
perpetuada pela sua aceitação por David Ricardo, vulgari-
contradições exacerbadas conduzem a conflitos zada pelo equivocado axioma: “toda oferta cria sua própria
que ameaçam o tecido social. demanda”. Isso implica em aceitar a não existência de
crises de superprodução e também a impossibilidade de
Num primeiro momento é relevante tra- “excedentes estruturais”, originários da presença de exce-
tar de alguns argumentos que permeiam a dis- dentes de produção e fome na mesma realidade como é o
cussão, e que vêm sendo apresentados como ra- caso do Brasil. Com a pretensão de estarem realizando a
crítica do modelo brasileiro, alguns pensadores, na verda-
zões justificadoras de algumas políticas públicas de, reforçam sua consistência, pois se o problema exige
mais comida, deve-se utilizar a plenitude da capacidade
técnica nacional para concretizar sua solução. No final dos
Estatuto da Terra, para que seja montado um panorama anos 60s, o economista Afonso Celso Pastore, num traba-
consistente da realidade agrária nacional, para sobre esse lho de excepcional qualidade teórica e empírica, depois
quadro, desenhar as políticas fundiárias necessárias à am- transformado em livro, comprova e prova que a produção
plificação das oportunidades no campo brasileiro, levando agrícola responde a preços, enterrando de forma definiti-
à distribuição mais equânime dos frutos do desenvolvi- va, no plano teórico e empírico, os argumentos dos defen-
mento. sores das teorias sobre a existência da inelasticidade da
oferta agrícola. Nos anos 90s em diante, mais propriamen-

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Em função de que o problema da fome dos esperados só se consubstanciam no comba-


não decorre da pretensa existência de inelastici- te à fome de comer, exigindo complementarida-
dade da oferta agrícola, não há qualquer propósi- des para se combater o pior tipo de fome, a fome
to que justifique o denominado Plano de Safra de cidadania. Em outras palavras, essa medida
para a Agricultura Familiar, nem na sua versão só se justifica na emergencialidade, dado que
2003-2004 nem em outros desenhos anteriores. não basta alterar a condição de exclusão, do ex-
Nessas cadeias de produção de grãos e fibras de cluído faminto para o excluído alimentado, para a
baixo valor unitário, nas quais inclui-se também a solução consistente da questão da iniquidade. Há
mandioca, os custos médios (de produção e de que se abrir o horizonte das oportunidades para
transação) são cadentes em função do incremen- esses segmentos sociais. E para o universo da
to de escala, o que em outras palavras significa exclusão social brasileira, essas oportunidades
que a capacidade de resposta da lavoura empre- não virão de um genérico “espetáculo do cresci-
sarial permitiria ampliar de forma significativa a mento”, se não houverem medidas estruturais
amplitude dos beneficiários e dos benefícios, da- que os façam atores, e não meros espectadores,
dos os preços menores ao consumidor. As ações desse espetáculo.
contra a fome devem, portanto, atuar do lado das A idéia de um espetáculo de cresci-
despesas públicas com políticas objetivas de ren- mento na agricultura, dentro de uma economia
da, atendendo tanto os que não têm renda para capitalista, mostra-se consistente com as neces-
se alimentarem como aqueles que têm renda in- sidades nacionais, e é exatamente sobre esses
suficiente36. São políticas criadoras de demanda pilares, que se assentam as possibilidades da
capazes de estruturar uma consistente ampliação construção de mecanismos efetivos de supera-
do consumo. Entretanto, trata-se de política pú- ção da condição de exclusão social que abrange
blica compensatória que encontra limites fiscais e parcela expressiva de brasileiros. Ademais, em
objetivos quanto à sua amplitude, cujos resulta- uma economia continental como a brasileira, tam-
bém não resta qualquer dúvida que essa inclusão
te na segunda metade dos anos 90s, ocorrem demonstra- social deverá ser responsabilidade da inclusão de
ções inequívocas de queda consistente dos níveis de importantes contingentes na dinâmica do desen-
preços agrícolas, com o progresso técnico beneficiando
largas faixas de consumidores. Entretanto, isso é possível
volvimento dos agronegócios. Mesmo porque,
porque os consumidores se expressam pela sua renda, dada a realidade de exclusão expressa na qualifi-
sua liberdade configura-se como concreta no tamanho de cação formal e profissional dos excluídos, essa
sua renda, e assim, quem não tem renda suficiente numa
sociedade capitalista tem liberdade “real” insuficiente,
situação os coloca em posição de dificuldade
ainda que todos sejam ”iguais” perante a lei, segundo o frente às perspectivas de emprego que se abrem
ideário liberal. Concretamente só são iguais cidadãos de com exigências de habilidades cada vez mais
rendas iguais, pois estão submetidos aos mesmos fatores
limitadores de escolha, que numa sociedade capitalista, se sofisticadas. Essas dificuldades no trabalho rural
expressa de forma monetária. A inconsistência da Lei de são de amplitude menor, sendo também menos
Say, demonstrada por Malthus, Lei essa ignorada por onerosas as políticas compensatórias capazes de
Marx que a considerou uma teoria infantil de um Say e
indigna de um Ricardo, marcou a economia até o século enfrentar os obstáculos a transpor para concreti-
XX, com a demonstração definitiva de que consistia num zar a inclusão social.
equívoco, realizada por Keynes.
As políticas públicas para o agronegó-
36
Ressalte-se que para segmentos expressivos de agricul- cio brasileiro devem, portanto, abranger uma am-
tores, em especial dos bolsões de miséria do semi-árido
nordestino e dos confins amazônicos e, mesmo dos encla- plitude maior de prioridades e instrumentos para,
ves de miséria rural como o verificado nos dois contrafor- realmente, concretizarem os objetivos de inclusão
tes da Serra de Paranapiacaba do Alto Vale do Ribeira social desejados. Sem desconsiderar os efeitos
Paulista, não há qualquer possibilidade de sucesso numa
concorrência aberta com a denominada lavoura em- tópicos de tratamento de casos que confirmam a
presarial, mesmo na produção de alimentos básicos para regra ao mostrarem-se distintos em termos de di-
o mercado local. Para esses segmentos de lavradores nâmicas locais específicas que devam ser aten-
familiares, mais consistente que um Plano de Safras da
agricultura familiar de commodities, seria adotar-se o didas, há que se ter claro que é estratégico para
modelo de ajuda direta, praticado nas agriculturas euro- a nação brasileira a manutenção da dinâmica de
péias e norte-americanas. Seria uma política de renda
mínima para o campo, nos moldes da concepção defendi-
desenvolvimento dos agronegócios, mesmo para
da de forma consistente pelo atual senador Eduardo Mata- as grandes lavouras de escala do denominado
razzo Suplicy e que já foi praticada no Município de Cam- modelo texano de produção. Para essas cadeias
pinas (SP) na gestão do então Prefeito Magalhães Teixei-
ra (Grama).
de produção, a fronteira do emprego para ampliar

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as possibilidades de oferta de trabalho, e com A questão crucial para isso gerar resul-
isso incorporar mais gente aos benefícios do de- tados é que essa opção exige mais que um com-
senvolvimento, não está na lavoura familiar de plexo de políticas públicas estruturais ativas. A
commodities, mas na agregação de valor pela tarefa de construção da base estrutural dessa
agroindústria e pelas criações integradas de pe- agricultura de qualidade só poderá ser realizada
quenos e médios animais. Ainda que estruturada por políticas de Estado, desenhadas em pressu-
a prestação de serviços de máquinas, o que re- postos distintos dos até agora realizados e que
duziria o ímpeto concentrador de terra e de renda são de recortes mais complexo que as que gera-
nessas lavouras, o espaço para incluir amplos ram as produções mecanizadas das lavouras em
segmentos sociais no campo, dentro da lógica de escala. Nessas lavouras de qualidade o capital
inovações gerenciais e tecnológicas presentes intelectual é mais relevante que o capital fixo. E
nessas cadeias de produção, é muito reduzido. mais, não há como gerar resultados previsíveis
Daí, não haver razão para persistir no erro de no curto horizonte histórico de mandatos gover-
querer estruturar a agricultura familiar, que no ca- namentais, mesmo que duplicados por reeleição.
pitalismo deveria ser feita em moldes empresa- Esse processo exige tempo o que exatamente
riais que lhe são inerentes, como mero decalque não se pode exigir de segmentos que esperam
da chamada agricultura empresarial, notadamen- sua vez há muito tempo e que, pela condição
te em se tratando de lavouras. Desses pivots dramática na qual foram lançados pela história,
centrais, por certo, não jorrarão rios de oportuni- enfrentam no dia a dia a luta pela sobrevivência
dades de sucesso, mostrando-se um equívoco digna. Há que ser construída essa alternativa,
de desenho de engenharia das políticas públicas. ainda que para essa parcela da população pe-
Também, não há como deixar de frisar se de maneira mais cruel o vaticínio keynesia-
que não há incompatibilidade estrutural na nação no do que a longo prazo todos estarem mor-
continental brasileira, entre enfrentar a exclusão tos. Para muitos esse longo prazo apresenta-
social no campo e ao mesmo tempo apoiar o se como o agora inadiável. Mas o agora pode
avanço da grande lavoura empresarial de escala. consumir-se no nada se encaminhado para o
Se não houver outra razão existente, que seja acirramento sistêmico dos conflitos. Entretan-
aceito o argumento da necessidade de estruturar- to, é preciso eliminar o cipoal de obstáculos,
se fontes de receitas públicas para financiar as abrindo picadas que, no saber sertanejo, são
políticas estruturais com base na plenitude da início de caminho.
competitividade dessas cadeias de produção.
Resta fundamentalmente, entretanto, enfrentar
de vez a necessidade de internalização plena das
lavouras de qualidade do padrão californiano.
Essas políticas no Brasil, desde logo, envolve-
riam toda a política cafeeira, onde o país é líder
no mercado mundial e poderia ampliar essa lide-
rança com a oferta de ampla variedade de cafés
de qualidade. Isso, inclusive, internalizando os
elos da torrefação e de preparo de produtos fi-
nais, competindo com cafés diferenciados pelo
sabor e qualidade da bebida, com os famosos
cafés de Hamburgo que fazem da Alemanha um
dos maiores exportadores mundiais do complexo
cafeeiro. Numa concepção mais ampla, envolve-
ria as frutas e olerícolas frescas, formando uma
cesta de frutas de inigualável qualidade e diversi-
dade. Ancoradas na qualidade, produzir frutas
não é plantar pomares nem produzir cafés é am-
pliar cafezais. Há que se pensar na totalidade das
cadeias de produção orquestrando interesses e
harmonizando conflitos.

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