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1. Introdução
Esse autor, a partir de Hobbes, defende que o conceito atual de poder está li-
gado ao surgimento das cidades e do Estado moderno. Aponta a correspon-
dente correlação com a noção de soberania e a proposição de que todo poder
para uns implica em despoder para outros, contendo, em si, a própria contra-
dição. A relação de poder, então, deste ponto de vista, é sempre de domina-
ção-submissão, cujo elemento principal é o medo e a certeza de que todos
temem a mesma coisa, a segurança do medo dos outros, o medo que procura
superar-se a si mesmo (Lebrun, 1984:48).
Em contraposição à concepção do poder como soberania, Foucault ado-
ta o conceito de disciplina, situando o poder como “um conjunto de relações”
dentro do corpo social, onde obrigatoriamente não seja necessária a oposição
dominação-submissão. Partindo da crítica de que a “teorização formal acadê-
mica de poder deriva de uma noção de soberania”, relativa “a um sujeito ori-
ginário cuja vontade é poder”, Foucault procura quebrar esta concepção
mecânica advinda, segundo ele, da relação com o modo de organização feu-
dal, que determinava um contato distante e pontual com o poder, propondo
uma visão que insere o poder “no corpo social mais que acima dele” (Clegg
1997:31). Nos cursos do Collège de France em 1975 e 1976, Foucault fez, de
forma veemente, esta contraposição entre a noção do poder soberano e a de
poder como disciplina. Em suas aulas naquele período, desenvolveu as idéias
de que o poder não se desenvolve e se exerce nas formas do direito e da lei,
não é algo que se toma ou se troca, não se constrói a partir de interesses, de
uma vontade, de uma intenção, não tem sua origem no Estado, portanto não
é dedutível e inteligível mediante a categoria jurídico-política da soberania
(Foucault, 2000:251). É uma desconstrução da noção hobbesiana do poder,
com desdobramentos importantes para a construção de uma teoria das orga-
nizações: “Em vez do tríplice elemento prévio da lei, da unidade e do sujeito
— que faz da soberania a fonte de poder e fundamento das instituições —
creio que se há de tomar o tríplice ponto de vista das técnicas, sua heteroge-
neidade e seus efeitos de submetimento, que fazem dos procedimentos de do-
minação a trama efetiva das relações de poder e dos grandes aparatos de
poder. A fabricação de sujeitos mais que a gênese do soberano: esse é o tema
geral” (Foucault, 2000:51).
Na nossa opinião, estes conceitos não são excludentes, mas falam de
formas diferentes de expressão do poder, na verdade, de dimensões distintas
de poder na macro e na microrrealidade social, formas explícitas e implícitas
onde a autoridade e a legitimação se fazem através de dispositivos diferen-
tes, mecanismos legais e/ou formais na estrutura hierárquica, ou na institu-
cionalização normatizadora das condutas e das práticas. Outra coisa não
estão dizendo McKinlay e Starkey (1997:10), por exemplo, quando afirmam
que “ao contrário do que diz Foucault, o poder monárquico não foi totalmen-
te substituído durante o iluminismo. Os poderes monárquico e disciplinar
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Weber (1991:20-1) vai marcar um outro campo de reflexão no debate das or-
ganizações quando defende que a ação social pode se orientar por uma “or-
dem legítima”. O que garante o cumprimento da ordem é o fato de possuir
legitimidade, e esta depende de uma “atitude interna” — baseada na tradi-
ção, no afeto, na racionalidade, no estatuto legal ou em princípios religiosos
— ou de suas “conseqüências externas”, em função de interesses ou expectati-
vas do grupo. Em qualquer dos casos, será decorrência de um acordo compar-
tilhado ou de uma relação de imposição-submissão. De todas as formas, a
ordem terá de partir de uma autoridade legítima. Weber é o teórico da autori-
dade e vai inspirar os autores que, como Hall (1984), afirmam que a obediên-
cia é resultado mais comum nas relações de poder do que o conflito.
A distribuição de poder nas relações sociais depende da “probabilidade
de impor a própria vontade” (Weber, 1991:33), de modo que a uma imposição
corresponde uma obediência. Diz-se haver disciplina quando a obediência é
imediata e está estruturada independentemente das estratégias e instrumentos
de dominação que interfiram no momento da ação, significando que já houve
internalização da ordem.
Assim, para Weber, a disciplina é essencial para o exercício do poder
burocrático e está relacionada também à eficácia das normas e regras, pois
disto também depende o grau com que as ordens serão internalizadas. Neste
ponto, verifica-se uma aproximação entre Foucault e Weber, o que também
defende Motta (1986:75), que considera a disciplina uma estratégia funda-
mental ao “funcionamento burocrático”.
Para Foucault, mesmo quando não vivemos em instituições totais, a “insti-
tucionalização” de nossas vidas é total. Para o autor, as prisões lembram fábri-
cas, escolas, acampamentos militares e hospitais, os quais, por sua vez, lembram
prisões. Por isso tudo é que Burrell (1997) considera que as proposições de Fou-
cault e Weber acabam, de alguma forma, confluindo, na medida em que o modo
de dominação “burocrático” pensado por este último é o mesmo modo de domi-
nação “disciplinar” do primeiro (Burrell, 1997:25). Foucault radicalizaria, se-
gundo Burrell, o conceito da “gaiola de ferro” que a racionalidade instrumental
cada vez mais presente nas sociedades ocidentais — expressão da visão pessi-
mista de Weber sobre os rumos da “civilização” — representaria para a liberda-
de dos homens.
quanto a um curso comum de ação” (Lafer, 1994:8). Esta visão de poder retor-
na à Antiguidade grega e propõe uma outra alternativa à identificação com so-
berania, isto é, a representação moderna de dominação-subordinação, que,
para a autora, é derivada da perspectiva histórica de Estado absoluto e gover-
nos totalitários. Dessa forma, também rompe com a relação de “mando e obedi-
ência”, introduzindo a possibilidade do “consentimento” (Arendt, 1994:34).
Esse modo de entender o poder pressupõe que ele existe na medida em
que emana do grupo e que este seja capaz de permanecer unido; é “a própria
condição que capacita este grupo a pensar e agir em termos de meios e fins”,
não se caracterizando, portanto, como um objetivo a ser alcançado ou um
meio a ser apropriado (Arendt, 1994:41).
Nesta concepção, a comunicação é essencial e o que faz a intermedia-
ção do poder é o discurso que, ao mesmo tempo que possibilita o debate, base
do agir em conjunto, permite a visibilidade do poder, porque o expressa no
espaço da aparência e cria a esfera pública (Fredo, 1995:117). Deste modo, é
“no domínio público, aquele espaço que quando existe e não está obscureci-
do, tem como função (...) iluminar a conduta humana, permitindo a cada um
mostrar para melhor e para pior, através de palavras e ações, quem é e do que
é capaz (...). A palavra, no processo de geração de poder, tem para Hannah
Arendt, não só a dimensão de comunicação, mas também (...) a de revela-
ção” (Lafer, 1994:I e XI). A palavra, portanto, identifica o sujeito e não ape-
nas a ação, é o “quem” em detrimento do “quê”, e isto se torna mais claro
quando os sujeitos estão reunidos, e é esta luminosidade e transparência que
se evidencia na esfera pública (Arendt, 1987:192-3). O poder não é uma enti-
dade, mas uma potencialidade, e só existe, “enquanto palavra e ato não se di-
vorciam (...), quando as palavras não são usadas para velar intenções mas
para revelar realidades, e os atos, não são usados para violar e destruir, mas
para criar relações e novas realidades” (Arendt, 1987:212).
No pensamento arendtiano, “o poder corresponde à capacidade huma-
na de não só agir, porém de agir em conjunto. O poder nunca é propriamente
de um indivíduo, pertence a um grupo e permanece em existência apenas en-
quanto o grupo prossegue unido (...) No momento em que desaparece o gru-
po, do qual o poder se originou a princípio (potestas in populo), sem um povo
ou grupo, não há poder” (Arendt, 1994:36).
A visão parsoniana do poder também dissocia-se dos conflitos de interes-
ses e, em particular, da coerção e força, ligando-se mais à autoridade e à busca
de consenso e metas coletivas. Por isso, Steven Lukes encontra aspectos algo si-
milares — na discussão específica do poder, é claro — entre os dois autores.
Para Parsons (apud Lukes, 1980:24), “o poder, então, é a generalizada capaci-
dade de assegurar o desempenho de obrigações por parte de unidades, num sis-
tema de organização coletiva, quando as obrigações são legitimadas com
referência ao seu impacto sobre metas coletivas e onde, no caso de recalcitrân-
cia, há um pressuposto de imposição de sanções de qualquer que seja a agência
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Figura 1
Um mapa conceitual do poder
Figura 2
Interesses
Conflitos Controle
A TRAMA DO PODER
organização. Habermas (1987) diria que os atores têm, “às suas costas”, um
mundo da vida que invade a racionalidade instrumental do sistema.
Para Parsons (1967:64), a ação dos atores orienta-se para fins correla-
cionados a valores compartilhados no espaço social, visto como um sistema
integrado, determinando a ordem normativa do sistema, que, por sua vez, vai
orientar a ação dos atores. Quanto mais institucionalizada for esta ordem
normativa, e isto ocorre nas organizações, mais eficaz será para direcionar os
interesses dos atores. Desta forma, o ator “busca seu próprio interesse” den-
tro do sistema “mas só pode alcançá-lo, conformando-se em certo grau com a
definição institucionalizada da situação” (Parsons, 1967:66). As instituições
fornecem as “pautas que definem o essencial da conduta legitimamente espe-
rada das pessoas, enquanto estas desempenham papéis estruturalmente im-
portantes no sistema social” (Parsons, 1967:207), de modo que os interesses
individuais e grupais, além de se estruturarem de acordo com a “situação real
em que as pessoas atuam” também dependem da definição coletivamente
construída da situação (Parsons, 1967:209).
Pagès e outros (1987) fazem uma criativa combinação da abordagem mar-
xista, reconhecendo o antagonismo capital/trabalho como definidor do campo
de interesses na organização, mas, ao mesmo tempo, se utilizam da psicanálise
para entender ou tentar explicar por que os indivíduos “aderem” de forma “vo-
luntária” à organização, fazendo seus os objetivos organizacionais, mesmo quan-
do estes vão contra seus interesses mais fundamentais. Para esses autores, “o
indivíduo está ligado à organização hipermoderna não apenas por laços mate-
riais e morais, por vantagens econômicas e satisfações ideológicas. A estrutura in-
consciente de seus impulsos e de seus sistemas de defesa é ao mesmo tempo
modelada pela organização e se enxerta nela, de tal forma que o indivíduo repro-
duz a organização, não apenas por motivos racionais, mas por razões mais pro-
fundas que escapam à sua consciência. A organização tende a se tornar fonte de
sua angústia e de seu prazer. Este é um dos aspectos mais importantes do seu po-
der. Seu domínio está na sua capacidade de influenciar o inconsciente, de ligá-lo
a ela de forma quase indissolúvel, com mais força e de toda maneira diferente
que no caso da empresa clássica” (Pagès et alii, 1987:144).
Defendemos a idéia de que duas definições opostas de controle têm muita for-
ça explicativa na teoria das organizações: os conceitos de controle vertical e de
controle em rede.
O controle vertical é o que vemos mais facilmente: formas evidentes de
controle. O controle vertical tal qual nasce nos exércitos e nas grandes buro-
cracias asiáticas, séculos antes de Cristo. Comando, supervisão, observação
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t poder, controle e conflitos são categorias com muita força explicativa para a
compreensão das organizações de saúde; entendemos que controle e confli-
to podem ser trabalhados como manifestações mais fenomênicas ou superfi-
ciais das configurações do poder na organização, ou seja, fazer da observa-
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