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Andréa Bardawil1
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É importante pensar a linha de fuga como “uma ruptura que não se constitui por meio de uma
contradição, e sim por meio de uma invenção intempestiva, a criação inusitada, com aquilo que
faz surgir a história e seus contornos” (PELBART, 1993: 80).
Junto a isso, uma advertência: o que determina a política de criação de
territórios, nos dias atuais, não é essa subjetividade flexível, tão a duras penas
conquistada, tampouco a liberdade de criação que a acompanha, e sim “a
identificação quase hipnótica com as imagens de mundo veiculadas pela
publicidade e pela cultura de massa”. (ROLNIK, online: 4).
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“A dança produz um espaço do corpo que implica forças e se alimenta de tensões.” (GIL,
2001: 59).
A experiência estética não é algo que se constitui a priori, no ato da
criação, cabendo ao artista dá-la ao público no momento da execução da obra,
e sim algo que se dá em relação, no tempo presente do aqui e agora, no
encontro, considerando, ainda, que a potência desse encontro será
determinada pela capacidade de mobilização de afetos ali investida.
Ao refletir sobre questões pertinentes à amizade de forma tão profunda e
consistente, Foucault nos apresenta uma estética da existência, ou seja, a
existência pensada como uma obra de arte. O pensamento que produz uma
existência como obra de arte não se constitui mais em formas determinadas
nem em regras coercitivas, e sim em regras facultativas, ao mesmo tempo
éticas e estéticas. Deleuze referiu-se a esta última fase do pensamento
Foucaultiano como fase do “pensamento-artista” (DELEUZE, 1992: 123).
Noções como “cuidado de si” e “ascese” ganham nova dimensão em seu
trabalho, quando desenvolve uma noção de política como recusa das formas
impostas de subjetividade, indicando o trabalho do indivíduo sobre si (ascese),
como possibilidade de resistência ao poder subjetivante. Ao reconhecer no
homem o incessante movimento de construir-se a si mesmo, Foucault vê o
homem como um “animal da experiência”, e aponta a experiência como algo do
qual sempre se sai transformado (ORTEGA, 1999: 51).
Ortega, ao comentar a ética da amizade proposta por Foucault, destaca a
importância de que as relações em jogo se constituam como agonísticas,
opondo-se à ideia de um antagonismo essencial, reforçando que uma relação
de amizade não implica nem em unanimidade consensual nem em violência
direta.
Relações agonísticas são relações livres que apontam para o desafio
e para a incitação recíproca e não para a submissão ao outro. O
poder é um jogo estratégico. A nova ética da amizade procura jogar
dentro das relações de poder com um mínimo de dominação e criar
um tipo de relacionamento intenso e móvel que não permita que as
relações de poder se transformem em estados de dominação. (...) A
amizade encontra-se além do direito, das leis, da família e das
instâncias sociais, representando uma alternativa às formas de
relacionamento prescritas e institucionalizadas. (ORTEGA, 2000: 89).
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“A dança compõe-se de sucessões de micro-acontecimentos que transformam sem cessar o
sentido do movimento. A toda a transformação de regime energético corresponde uma
modificação do espaço do corpo.” (GIL, 2001: 66).
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Ao defender que as relações de poder estão presentes em todas as relações humanas,
quaisquer que sejam elas, Foucault esclarece que essas relações são móveis, reversíveis e
instáveis. O bloqueio dessas relações, quer seja por um indivíduo ou grupo social, tornando-as
imóveis e fixas, impedindo sua reversibilidade, constitui um estado de dominação (FOUCAULT,
2006: 276).
alegria é a prova dos nove!”. (ANDRADE, 1970: 18). Antídotos que se
apresentam sempre à mão, contra o espírito de gravidade sobre o qual o
Zaratustra nietzschiano11 nos preveniu, e igualmente eficiente contra o
fundamentalismo das verdades absolutas.
Deleuze sentencia que “criar é diferente de comunicar”, sinalizando que a
comunicação já está empobrecida, penetrada pelo dinheiro. Uma saída
possível para escapar do controle talvez seja, portanto, criar vacúolos de
silêncio, de não-comunicação, a partir de onde possamos, enfim, ter algo a
dizer (DELEUZE, 1992: 217).
Negri, por sua vez, ao falar sobre o trabalho imaterial, traz-nos o conceito
de “trabalho afetivo”, onde a produção, a troca e a comunicação estão
geralmente associadas ao contato humano, seja ele real ou virtual (NEGRI,
2006). Tal como acontece nos serviços de saúde e na indústria de
entretenimento, as ações são centradas na criação e na manipulação de
afetos. Os produtos gerados no trabalho afetivo são intangíveis, como o
sentimento de conforto, bem-estar ou a excitação, por exemplo. Mas o que o
trabalho afetivo produz antes de tudo são redes, formas comunitárias,
biopoder.
A ação instrumental da produção econômica une-se à ação comunicativa
das relações humanas. E afirma mais: é justamente nesse caso, quando a
produção é enriquecida até o nível de complexidade da interação humana,
onde a comunicação não fica empobrecida.
A cooperação se mostra, portanto, totalmente inerente ao trabalho. Eis o
que merece nosso olhar mais apurado: “o aspecto cooperativo do trabalho
imaterial não é imposto e organizado de fora, como ocorria em formas
anteriores de trabalho, mas a cooperação é totalmente imanente à própria
atividade laboral” (NEGRI, 2006: 314).
Não se trata, portanto, de tentarmos ingenuamente escapar dos
processos de captura de subjetividade a que todos estamos sujeitos, sem
exceção, considerando que numa sociedade de controle não estamos imersos
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“(...) E, quando vi o meu Diabo, achei-o sério, metódico, profundo, solene: era o espírito de
gravidade – a causa pela qual todas as coisas caem. Não é com a ira que se mata, mas com o
riso. Eia, pois, vamos matar o espírito de gravidade! (...)” (NIETZSCHE, 1994: 58).
em um “dentro”, do qual possamos sair, fugir. Tudo é fora, tudo é vertigem,
tudo é fluxo, tudo é contágio, e, portanto, afeto e composição.
Não se trata também de produzirmos uma grande quantidade de ações,
cada vez mais eficientes e marcadas pela gratuidade, a fim de nos
constituirmos numa resistência efetiva contra tudo aquilo que nos degenera – o
Sistema, o Império, o Tempo, o Capitalismo e todo o resto. Sem pretender
qualquer apologia ao marasmo e à letargia, considero prudente desconfiar um
pouco das urgências, das pressas irremediáveis que nos solicitam a
competência a qualquer custo. A eficiência consome o tempo, e nos impede de
habitá-lo.
Pelbárt nos indaga sobre questões que se formam a partir dos processos
de desterritorialização que estão na ordem dos tempos atuais:
ANJOS, Moacir dos (2005). Local/Global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. (1998). Diálogos. São Paulo: Ed. Escuta.
FOUCAULT, Michel (2006). Outros espaços. In: FOUCAULT M.. Ditos e Escritos III -
Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense
Universitária.
GIL, José (2001). Movimento Total - O corpo e a dança. Lisboa: Ed. Relógio D’água.
MELO NETO, João Cabral (1994). Obra completa: volume único. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar.
SOUSA, Edson Luiz André de (2007). Uma Invenção de Utopia. São Paulo: Lumme
Editor.