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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito


Edições Uberlândia e Belo Horizonte

ANAIS:
ARTIGOS COMPLETOS

BELO HORIZONTE
2011

 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

 
Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em
C749a Direito (1. : 2010 : Belo Horizonte ; Uberlândia, MG)
Anais : artigos completos / I Congresso da Associação
Mineira de Pós-Graduandos em Direito. – Belo Horizonte :
AMPD : Pergamum, 2010.
3392 p.

Congresso realizado em Uberlândia – 29/04/2010 e


Belo Horizonte – 14/05/2010
ISBN: 978-86-430-3003-5

Inclui bibliografias

1. Direito – Congressos 2. Direito – Estudo e ensino


I. Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
II. Título

CDU: 34(061.3)

 

 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

COMISSÃO ORGANIZADORA

Presidência: Nara Pereira Carvalho


Vice-Presidência: Maria Clara Oliveira Santos
Carolina Pereira Lins Mesquita
Felipe Magalhães Bambirra
Gustavo Silveira Siqueira
João Paulo Medeiros Araújo
José de Magalhães Campos Ambrósio
Marcelo Maciel Ramos
Nathália Lipovetsky e Silva
Pedro Henrique Cordeiro Lima

COMISSÃO CIENTÍFICA

Presidente: Prof. Dr. Brunello Stancioli (UFMG)


Carolina Pereira Lins Mesquita
Felipe Magalhães Bambirra
Gustavo Silveira Siqueira
João Paulo Medeiros Araújo
José de Magalhães Campos Ambrósio
Marcelo Maciel Ramos
Maria Clara Oliveira Santos
Nara Pereira Carvalho
Nathália Lipovetsky e Silva
Pedro Henrique Cordeiro Lima

 

 
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APRESENTAÇÃO

A AMPD

A Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito (AMPD) é uma


associação sem fins lucrativos que tem como finalidades o fomento, a produção e a
divulgação da pesquisa jurídica, assim como a representatividade dos interesses dos
Pós-Graduandos em Direito do Estado de Minas Gerais.
Fundada no espírito de cooperação, integração e solidariedade entre os
Programas de Pós-Graduação em Direito de Minas Gerais, a AMPD fomenta o
debate e as reivindicações de melhorias nas condições de ensino, pesquisa e extensão
assim como a elevação da produção intelectual e sua divulgação.
Associação pioneira no Brasil, a AMPD foi fundada em 2007 por iniciativa de
discentes do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais e da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais.
Sua primeira coordenadoria executiva foi composta por membros desses dois
programas de Pós-Graduação junto com discentes da Faculdade de Direito Milton
Campos.
A atual coordenadoria executiva, à frente da Associação desde março de 2009,
tem recebido a colaboração de pós-graduandos de diversos programas de Minas
Gerais. Em 2011, objetivam-se ampliar parcerias e, para além de acompanhar o
desenvolvimento da pós-graduação, auxiliar no incremento e na expansão da
pesquisa jurídica do estado.

 

 
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Edições Uberlândia e Belo Horizonte

I CONGRESSO DA AMPD

O I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito, Edições


Uberlândia e Belo Horizonte consistiu na concretização de um longo e árduo trabalho,
iniciado meses antes, com o único objetivo de proporcionar a todos um ambiente
adequado à divulgação da pesquisa acadêmica de Pós-Graduação no país.
Para nós, foi uma honra ter contado com a expressiva participação obtida em
nossa primeira realização, já marcada pelo sucesso: na Edição de Uberlândia,
contamos com 60 trabalhos de mais de 80 autores. Em Belo Horizonte, por sua vez,
foram mais de 150 trabalhos aprovados, com autores vindos de diferentes partes do
Brasil.
Temos por evidente que a integração da pesquisa jurídica nacional e a
oportunidade de intercâmbio entre pesquisadores de todo país contribuem
sobremaneira para o aprimoramento da pesquisa jurídica no Brasil.
Nesse espírito, saudamos a todos que, conosco, abraçaram o ideal de
excelência na pós-graduação.
A todos, o nosso sincero agradecimento!

 

 
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SUMÁRIO

PREFÁCIO – Alexandre Walmott Borges ............................................................ 19

1 CIDADANIA, CRIMINALIZAÇÃO E PRÁTICAS PUNITIVAS .............. 21


1.1 A INFLUÊNCIA DA CO-CULPABILIDADE NA DOSIMETRIA DA
PENA NO DIREITO BRASILEIRO – Adriana Cordeiro Galvão ........................ 22
1.2 A NECESSIDADE DE ESPECIAL PROTEÇÃO DA DIGNIDADE
SEXUAL DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES À LUZ DO CONCEITO
DE VULNERABILIDADE – Clarissa Bahia Barroso França ................................. 47
1.3 AS GARANTIAS PROCESSUAIS DO RÉU NO PROCESSO PENAL
DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO - Rafael Arouca Rosa .............. 75
1.4 APLICAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES NA
DOSIMETRIA DA PENA: A SÚMULA 231 DO SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA E A FIXAÇÃO DO QUANTUM APLICÁVEL – Anna do
Prado Valladares de Andrade.......................................................................................... 88
1.5 CIDADANIA ATRÁS DAS GRADES: VIOLÊNCIA E GÊNERO NO
SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO - Talita Tatiana Dias Rampin................... 116
1.6 DIREITO PENAL DO INIMIGO: DA NEGAÇÃO DO
GARANTISMO PENAL ÀS TESES LEGIMIMADORAS – Joaquim Manoel
Alves Cardoso.................................................................................................................... 151
1.7 O REGIME PRISIONAL ABERTO NA HISTÓRIA DAS PENAS
PRIVATIVAS DE LIBERDADE NO BRASIL – Andreza Lima de Menezes..... 183
1.8 OS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA IRRELEVÂNCIA
PENAL DO FATO NO CONTEXTO DA TEORIA DO DIREITO PENAL
MÍNIMO – Thiago Barbosa de Oliveira....................................................................... 221
1.9 PRISIONEIROS DO ESTADO, DA SOCIEDADE OU DO
MERCADO? UMA ANALISE DA PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS
FRENTE AO SURGIMENTO DAS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO E
 

 
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ASSISTENCIA AOS CONDENADOS (APAC) – Fabrício Vargas Hordones e


Israel Andrade Alves ........................................................................................................ 231
1.10 RESPONSABILIDADE PENAL E CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
NA PERSPECTIVA FUNCIONALISTA: UM PARALELO ENTRE AS
DOUTRINAS DE CLAUS ROXIN E GÜNTHER JAKOBS – Frederico
Gomes de Almeida Horta................................................................................................ 249

2 DIREITO, AUTONOMIA PRIVADA E PESSOA...................................... 288


2.1 A AUTONOMIA PRIVADA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS: A
NECESSÁRIA CONCILIAÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS NA PÓS-
MODERNIDADE – Fernanda Sabrinni Pereira e Juliana Chioca Lopes
Marteleto ............................................................................................................................ 289
2.2 A INADEQUAÇÃO ÉTICO-JURÍDICA DOS CRITÉRIOS LEGAIS
DE DELIMITAÇÃO DOS EMBRIÕES HUMANOS APTOS A SEREM
UTILIZADOS EM PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO – Daniel
Mendes Ribeiro e Carolina Penna Nocchi .................................................................... 305
2.3 A NATUREZA JURÍDICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DOS DEVERES ANEXOS
PROVENIENTES DA BOA-FÉ OBJETIVA – Ricardo Padovini............................... 328
2.4 A RELAÇÃO ATUAL ENTRE DIREITO CONSTITUCIONAL E
DIREITO CIVIL – Sarah dos Reis Campos................................................................ 348
2.5 A RESPONSABILIDADE CIVIL E OS REFLEXOS DA
CONFIANÇA – José Humberto Souto Júnior ........................................................... 365
2.6 ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO ESTADO SEXUAL DO
TRANSEXUAL REDESIGNADO – Walsir Edson Rodrigues Júnior e Layla
Maria Fabel Gontijo ......................................................................................................... 394
2.7 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O TRATAMENTO DAS
SITUAÇÕES DE "DESACORDO MORAL RAZOÁVEL": O CASO DA
UTILIZAÇÃO DAS CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS – Nathália de
Lima Catão......................................................................................................................... 435
2.8 PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E A LEI
DE BIOSSEGURANÇA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ADI 3510-0 DF
– Aline Rose Barbosa Pereira e Mariana Alves Lara.................................................... 467
 

 
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2.9 PROTEÇÃO DA PESSOA: DIREITOS DA PERSONALIDADE OU


LIBERDADES JURÍDICAS? – Edgard Audomar Marx Neto ................................ 492
2.10 RESPONSABILIDADE CIVIL NA CIRURGIA PLÁSTICA: UMA
ANÁLISE DA CONDUTA DO PROFISSIONAL – Graziella Ferreira Alves.... 509
2.11 VIVÊNCIAS PESSOAIS DO CORPO E INTEGRIDADE FÍSICA –
Laís Godoi Lopes e Mariana Alves Lara ....................................................................... 523

3 DIREITO, CONTRATOS INTERNACIONAIS, GESTÃO


EMPRESARIAL E REGULAÇÃO ECONÔMICA ......................................... 542
3.1 A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO EM AUXÍLIO DE POLÍTICAS
ECONÔMICAS: A REVISÃO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E
DA RESOLUÇÃO BACEN 2827/2001 – Izes Augusta da Silva Siqueira e Livia Vilas
Boas e Silva .......................................................................................................................... 543
3.2 A ATIVIDADE REGULATÓRIA ESTATAL E OS REFLEXOS DA
ATUAÇÃO DOS CARTÉIS NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA
COLETIVIDADE: DA EFICÁCIA FORMAL À EFICÁCIA MATERIAL
NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA – Daniela Almeida
Campos............................................................................................................................... 571
3.3 A LEI 11.101/2005, A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E A
NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE CERTIDÕES NEGATIVAS
FISCAIS PARA A RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Mariana Mendes Monteiro
de Godoi e Ricardo Padovini Pleti................................................................................. 604
3.4 DILUIÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DAS SOCIEDADES EM
CONSÓRCIOS EMPRESARIAIS – Camila Chamas Falcão ................................... 631
3.5 O PODER REGULAMENTADOR DO DNRC FACE À
EXIGÊNCIA DE CNDS PARA ALTERAÇÃO DO CONTRATO SOCIAL
E CANCELAMENTO DE REGISTRO – Otávio De Paoli Balbino .................... 657
3.6 PLANO DE RECUPERAÇÃO RECUSADO E DECRETAÇÃO DE
FALÊNCIA – Liliane Dantas Correa de Morais ......................................................... 677
3.7 PODER DE DELIBERAÇÃO DOS CREDORES NA ASSEMBLÉIA
DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL – Juliana Brandão de Melo Horst .................... 694

 

 
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3.8 RESPONSABILIDADE DE COOBRIGADOS NA RECUPERAÇÃO


JUDICIAL DE ACORDO COM A NOVA LEI DE FALÊNCIAS – Cárita
Martins Pellegrini Carizzi................................................................................................. 738
3.9 SPED E EMPRESA VIRTUAL – Flávia Regina Napoles Fonseca .................. 751
 

4 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA.................................... 770


4.1 A ADOÇÃO DA TEORIA DO RISCO ABSTRATO PARA
RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR DANO AMBIENTAL – UMA
EXIGÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO – Sérgio Rubens Birchal
Becattini e Tatiana Costa de Figueiredo Amormino ................................................... 771
4.2 A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE CIDADANIA PARA A
LEGITIMAÇÃO DA AÇÃO POPULAR – Márcio Marçal Lopes......................... 802
4.3 A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE 1988: AS LUZES DA RIBALTA
PROJETADA SOBRE O CIDADÃO – Humberto Magno Peixoto Gonçalves.. 819
4.4 A COR INEXISTENTE – Bernardo Pessoa de Oliveira ............................... 833
4.5 A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA
DEMOCRACIA NA PERSPECTIVA INTERAMERICANA – Camilla
Capucio............................................................................................................................... 849
4.6 A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, COMO EXERCÍCIO DA
CIDADANIA – Rodrigo Batista Coelho e José Antônio Remédio ......................... 869
4.7 A JUSTIÇA COMO HIPÉRBOLE - O PROGRAMA NACIONAL
DE DIREITOS HUMANOS E O PROJETO CONSTITUINTE DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – David Francisco Lopes
Gomes ................................................................................................................................ 889
4.8 A INEXIGIBILIDADE DOS DIREITOS DE TERCEIRA
GERAÇÃO NOS DIAS ATUAIS – Natália Freitas Miranda................................... 904
4.9 A INTERVENÇÃO FEDERAL COMO CONDIÇÃO DE
POSSIBILIDADE DA DEMOCRACIA NO DF – João Gabriel Pimentel
Lopes .................................................................................................................................. 920
4.10 A POLÍTICA DA JUSTA MEMÓRIA DE PAUL RICOEUR – Luiz
Philipe Rolla de Caux ....................................................................................................... 944
 

 
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4.11 ANÁLISE DA PROTEÇÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS E HUMANOS E SEUS REFLEXOS NO BRASIL –
Rainner Jerônimo Roweder ............................................................................................. 962
4.12 CIDADANIA E DEMOCRACIA: DA TRAJETÓRIA SÓCIO-
POLÍTICA DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA DIRETA NA
ANTIGUIDADE CLÁSSICA À ALEGÓRICA DEMOCRACIA
PARTICIPAVA BRASILEIRA – Renata Cristina Macedônio de Souza ................ 978
4.13 CONFERÊNCIA LIVRE DOS PRESOS: RECONHECIMENTO E
PARIDADE PARTICIPATIVA – Noelle Coelho Resende ..................................... 1005
4.14 DIREITOS HUMANOS-FUNDAMENTAIS E A
JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS – Décio de Abreu e Silva
Júnior e Nathália Lipovetsky e Silva............................................................................... 1032
4.15 DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA
ENQUANTO REALIDADE INDISSOCIÁVEL – Carla Patrícia Pereira
Queiroz............................................................................................................................... 1058
4.16 DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA: UMA VISÃO
CONTEMPORÂNEA – Anna Cristina Oliveira Cabral e Ciro Antônio da
Silva Resende ..................................................................................................................... 1078
4.17 LIBERDADE E SEGURANÇA: UM CONFLITO ENTRE
DIREITOS FUNDAMENTAIS? – João Andrade Neto........................................... 1095
4.18 O PROCESSO ADMINISTRATIVO E A DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA – Shirlei Silmara de Freitas Mello e Estanislau Correia
Almeida Junior................................................................................................................... 1132
4.19 PÓS-MODERNIDADE E RACIONALIDADE: A
FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS COMO ELEMENTO
CONCRETIZADOR DA DEMOCRACIA – Ricardo Rocha Viola ...................... 1165
4.20 QUAL CIDADANIA? – PEQUENAS REFLEXÕES PARA UMA
TEORIA DO RECONHECIMENTO – Gabriel Rezende de Souza Pinto .......... 1202
4.21 REAJUSTE PLANO DE SAÚDE: CONFLITO ESTATAL – Marlus
Keller Riani ........................................................................................................................ 1222
4.22 SOCIOLOGIA JURÍDICA NAS RUAS: A EXPERIÊNCIA DA
FACULADADE DE DIREITO DA UFMG – Luiza Oliveira Guedes ................. 1243

 
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5 FUNDAMENTOS INTER E TRANSDISCIPLINARES DO DIREITO . 1255


5.1 A “BARRA DE TERRA” E A “BARRA DE SAIA”: OBSESSÃO,
CONQUISTA E MORTE EM SÃO BERNARDO – Natália Silva Teixeira
Rodrigues de Oliveira....................................................................................................... 1256
5.2 A GUARDA DE ANIMAIS DOMÉSTICOS COMO UMA NOVA
PERSPECTIVA DO DIREITO À PROPRIEDADE DE SEMOVENTES:
UM RELATO DA CONSTRUÇÃO DO DIREITO ANIMAL DA FAUNA
DOMÉSTICA NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE-MG – Nathalie
Santos Caldeira Gomes .................................................................................................... 1277
5.3 A INFLUÊNCIA DA FRANÇA NA BELLE ÉPOQUE TROPICAL: A
MODA FRANCESA E A SOCIEDADE BRASILEIRA NO INÍCIO DO
SÉCULO XX – Gabriela Barbosa ................................................................................. 1313
5.4 APRENDER DEIXAR LIVRE – Rosana Ribeiro Felisberto ....................... 1329
5.5 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS E
PERSPECTIVAS DA IMPLANTAÇÃO DE UMA PAIDEIA JURÍDICA NA
ESCOLA – Angélica Barroso Bastos e Valéria Cássia Dell’Isola.............................. 1348
5.6 LENÇO NO PESCOÇO, FUZIL NO BOLSO: UMA ANÁLISE DA
CRIMINALIDADE E DO DIREITO PENAL A PARTIR DE
MALANDROS CANTADOS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA –
Jéssica Oníria Ferreira de Freitas .................................................................................... 1366

6 MATRIZES E HISTÓRIA DA CULTURA E DO PENSAMENTO


JURÍDICOS ....................................................................................................... 1411
6.1 A ABORDAGEM SISTEMÁTICA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NA VISÃO DE CLAUS WILHELM CANARIS – Victor Alves Pereira e
Juliana Ferreira Hodniki................................................................................................... 1412
6.2 A AUTONOMIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO EM HABERMAS E
LIMA VAZ – Victor Hugo Criscuolo Boson .............................................................. 1438
6.3 A CENTRALIZAÇÃO DO PODER NA FIGURA DE UM HOMEM:
NAPOLEÃO – Henrique José da Silva Souza ............................................................ 1455

 
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6.4 A CONSTRUÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE ADEQUADO


AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO A PARTIR DAS
CORRENTES GNOSIOLÓGICAS NOMINALISTA, IDEALISTA E
REALISTA – Felipe Dalla Vecchia ............................................................................... 1477
6.5 A IDÉIA DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL NO PENSAMENTO DO
MARQUÊS DE SADE – Joyce Karine de Sá Souza.................................................. 1501
6.6 A INDEPENDÊNCIA, A CONSTITUINTE, A CONSTITUIÇÃO:
RELEITURAS – David Francisco Lopes Gomes e Hermano Martins
Domingues......................................................................................................................... 1522
6.7 A REFORMA PROTESTANTE COMO MARCO NA MODERNA
NOÇÃO DE DIREITOS HUMANOS – Maria Cristina Brugnara Veloso........... 1546
6.8 ANÁLISE DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO DA
RESPONSABILIDADE CIVIL – Wander Pereira.................................................... 1559
6.9 AS MANIFESTAÇÕES DA VIOLÊNCIA NAS MINAS
SETECENTISTAS: UMA ANÁLISE HISTÓRICA JURÍDICA DA GÊNESE
DA CRIMINALIDADE E SUAS REPERCUSSÕES NA ADMINISTRAÇÃO
DA JUSTIÇA MINEIRA – Renata Esteves Furbino e Thiago Augusto Vale
Lauria ................................................................................................................................. 1582
6.10 AS ORIGENS MEDIEVAIS DA DEMOCRACIA MODERNA – Maria
Cristina Brugnara Veloso................................................................................................. 1596
6.11 CÓDIGO COMERCIAL DE 1850 COMO UMA EXPRESSÃO DE
UM MOVIMENTO MODERNO NUM CONTEXTO ARCAICO – Silvia
Tamberi Alvarenga............................................................................................................ 1609
6.12 COLONIALISMO E O RETORNO AO ÉDEN – Joana Faria Salomé.... 1645
6.13 CONFLITOS E CORRUPÇÃO: A JUSTIÇA NAS MINAS
SETECENTISTAS – Isolda Lins Ribeiro .................................................................... 1687
6.14 CONSTITUCIONALISMO, DIVERSIDADE E TEORIA DO
DISCURSO: ERHARD DENNINGER, ROBERT ALEXY E A QUESTÃO
MULTICULTURAL – Alexandre Garrido da Silva e Ilmar Pereira do Amaral
Júnior .................................................................................................................................. 1712
6.15 DA NATUREZA AO ESPÍRITO: A CONSCIÊNCIA GREGA DA
JUSTIÇA A PARTIR DA VALORIZAÇÃO DO HUMANO – Felipe
Magalhães Bambirra ......................................................................................................... 1747
 
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6.16 FORMAÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO PRIVADO BRASILEIRO –


Isabela Guimarães Rabelo do Amaral............................................................................ 1769
6.17 IDÉIAS E MOVIMENTOS: UM DEBATE SOBRE A JUSTIÇA
ELEITORAL NO BRASIL - Gustavo Silveira Siqueira e João Andrade Neto ..... 1802
6.18 LAICIDADE COMO PRINCÍPIO DE UM ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO – Marília Freitas Lima ........................................ 1840
6.19 MARXISMO & DIREITO: O FENÔMENO JURÍDICO N’A
SAGRADA FAMÍLIA –Maysa Rodrigues Cunha e Éder Ferreira ......................... 1853
6.20 MÉTODOS PARADIGMÁTICOS DE INTERPRETAÇÃO DO
DIREITO – UMA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA - Wendel Ferreira Lopes e
Eduardo Rodrigues dos Santos....................................................................................... 1867
6.21 O DESLOCAMENTO TEMPORAL DO DIREITO PARA O
FUTURO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – Marcelo de Souza Moura............... 1891
6.22 O ESTADO NUMA PERSPECTIVA KANTIANA – Paulo Francisco de
Oliveira ............................................................................................................................... 1915
6.23 O MESTRE SALA DOS MARES: ANISTIA E AUTORITARISMO
NOS 100 ANOS DO GRITO DE LIBERDADE DO ALMIRANTE NEGRO
– Gustavo Silveira Siqueira e Marcelo Andrade Cattoni de Olveira ......................... 1951
6.24 O MUNDO ORIENTAL EM HEGEL: AURORA DO ESPÍRITO
UNIVERSAL – Renon Pessoa Fonseca ....................................................................... 1973
6.25 O PENSAMENTO TÓPICO DE THEODOR VIEHWEG E O
POSITIVISMO JURÍDICO – Daniela Rezende de Oliveira .................................... 2000
6.26 SOB O SIGNO DA OPRESSÃO: A HERANÇA DAS DEVASSAS NO
BRASIL – Larissa Marila Serrano da Silva e Rodrigo Dias Silveira .......................... 2020
6.27 TRANSCRIPTASE REVERSA: A INTERDISCIPLINARIDADE A
PARTIR DA CIÊNCIA DO DIREITO – Rômulo Soares Valentini...................... 2037

7 OS DESAFIOS DO ESTADO NA CONTEMPORANEIDADE ............... 2055


7.1 A COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA COMO UM PODER-DEVER DO
ESTADO CONTEMPORÂNEO – Marcelo Rosa Franco e Ádria Regina
Cunha Pereira .................................................................................................................... 2056
 
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7.2 A GOVERNANÇA SOCIAL COMO INSTRUMENTO


DEMOCRÁTICO DE EMANCIPAÇÃO ECONÔMICO-SOCIAL NO
BRASIL CONTEMPORANEO – Lara Marina Ferreira........................................... 2079
7.3 A GOVERNANÇA SOCIAL SOB A SOMBRA DA DÚVIDA. QUE
AS MAZELAS ELA TRARÁ PARA O ESTADO? – Henrique José da Silva
Souza ................................................................................................................................... 2101
7.4 A QUESTÃO AMBIENTAL: ENSINO E PESQUISA COMO
INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO E APRIMORAMENTO DO MEIO
AMBIENTE HUMANO – Rodrigo Vitorino Souza Alves ...................................... 2112
7.5 A SEPARAÇÃO DOS PODERES COMO DOUTRINA E COMO
PRINCÍPIO: BREVE CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA EVOLUÇÃO
DA DOUTRINA DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E SUA
PERTINÊNCIA COM O IDEAL DE ESTADO DE DIREITO – João Paulo
Medeiros Araújo................................................................................................................2131
7.6 ADVOCACIA PUBLICA E SUA FUNÇÃO DE CONTROLE NO
MODELO ESTATAL CONTEMPORÂNEO – Ricardo Vieira de Carvalho
Fernandes ........................................................................................................................... 2151
7.7 ARBITRAGEM NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: O
ENTENDIMENTO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES E AS TENDÊNCIAS
NA PACIFICAÇÃO DA MATÉRIA – Paula Rodrigues Lara Leite....................... 2183
7.8 CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLÍTICA E O PLANO NACIONAIS
DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS E SUA RELAÇÃO
COM A CONVENÇÃO DE DIREITOS DAS MULHERES - CEDAW –
Mércia Cardoso de Souza e Mário Lúcio Quintão Soares .......................................... 2201
7.9 CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA E DEMOCRACIA SOCIAL –
Michelle Gonçalves e Mariana Rezende Guimarães.................................................... 2228
7.10 DIREITO E SOBERANIA: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA DA
NECESSIDADE DO CONTROLE DA MÍDIA E O USO RETÓRICO DA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO – Felipe Magalhães Bambirra e João Paulo
Medeiros Araújo................................................................................................................2240
7.11 LIMITES E POSSIBILIDADES DO ESTADO DIRIGENTE NA
CONTEMPORANEIDADE – Claudia Paiva Carvalho ........................................... 2254
7.12 NATUREZA JURÍDICA DA ADVOCACIA PÚBLICA PÓS-88 –
Ricardo Vieira de Carvalho Fernandes .......................................................................... 2291
 
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7.13 O CONTROLE SOCIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NAS


INSTÂNCIAS PARTICIPATIVAS: LEGITIMAÇÃO E DESAFIOS DA
ATUAÇÃO ESTATAL – Luiza Sabino Queiroz ........................................................ 2309
7.14 OS FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DO FUNCIONALISMO
PENAL SISTÊMICO E SUAS CONTRIBUIÇÕES À EFETIVIDADE DA
ATUAÇÃO ESTATAL – André Pedrolli Serretti....................................................... 2352
7.15 SENTIMENTO CONSTITUCIONAL E CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE: MANEIRAS DE IMPERATIVIDADE DA
CONSTITUIÇÃO - Ruan Espíndola Ferreira............................................................. 2380
7.16 SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS EM CONTRATOS
ADMINISTRATIVOS POR VIAS EXTRAJUDICIAS – Renata Faria Silva
Lima e Lídia Helena Souza Rezende.............................................................................. 2403
7.17 UMA REFLEXÃO SOBRE A PROBIDADE ADMINISTRATIVA NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – Clausner Donizeti Duz e
Sebastião Sérgio da Silveira.............................................................................................. 2441

8 PROCESSO, ACESSO À JUSTIÇA E PRÁTICA JUDICIÁRIA ................. 2460


8.1 A CELERIDADE NO PROCESSO PENAL ORAL – Lucas Moraes
Martins................................................................................................................................ 2461
8.2 A CONTRIBUIÇÃO DOUTRINÁRIA DE CAPPELLETTI E GARTH
E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA PROCESSUAL BRASILEIRO – Thiago
Munaro Garcia e Reinaldo Luís Tadeu Rondina Mandaliti ........................................ 2487
8.3 A CRISE DO MONOPÓLIO DA JUSTIÇA ESTATAL E OS
DESAFIOS DA JURISDIÇÃO NO BRASIL – MEDIAÇÃO E
CONCILIAÇÃO – Sávio Raniere Pereira Pinto e Kássios Dávilon Soares
Cordeiro ............................................................................................................................. 2525
8.4 A EFETIVIDADE DA TUTELA JURÍDICA ESPECÍFICA A PARTIR
DA ATUAÇÃO DO MAGISTRADO NO PROCESSO EXECUTIVO NO
COLETIVO – Naiara Souza Grossi.............................................................................. 2557
8.5 A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA: ANÁLISE DE SEUS
PRESSUPOSTOS E CONSEQUÊNCIAS – Andréa Letícia Carvalho
Guimarães e Alexandre Garrido da Silva ...................................................................... 2584

 
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8.6 A LEI 12.016 DE 2009 E SEU REFLEXO JURÍDICO NOS


MANDADOS DE SEGURANÇA COLETIVO – Guilherme Vieira Barbosa e
Yvete Flávio da Costa ..................................................................................................... 2607
8.7 A REFORMATIO IN PEJUS NO ART. 475 DO CPC – Sarah Cristina
Souza Guimarães............................................................................................................... 2637
8.8 A SOCIEDADE DE RISCO E OS SEUS IMPACTOS NAS DECISÕES
JUDICIAIS – Maristela Medina Faria ........................................................................... 2653
8.9 ASSISTÊNCIA JURÍDICA E CIDADANIA EM FRANCA:
HISTÓRIA, FUNDAMENTOS E PERSPECTIVAS DE UM PROJETO –
Bruno Rahme Miguel Moysés ......................................................................................... 2671
8.10 CUMPRIMENTO DE SENTENÇA E PROCEDIMENTO
MONITÓRIO DE ACORDO COM A LEI 11.232/05 – Fernando Garcia
Souza ................................................................................................................................... 2684
8.11 MEDIAÇÃO, CIDADANIA E INCLUSÃO SOCIAL: A
EXPERIÊNCIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO –
Maria Tereza Fonseca Dias e Marília Vasconcelos Rodrigues ................................... 2701
8.12 NOVA LEI DE MANDADO DE SEGURANÇA E OS EFEITOS
PATRIMONIAIS – Allice Ferreira de Oliveira ........................................................... 2723
8.13 O INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS
DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: UMA TÉCNICA
PROCESSUAL ENTRE TUTELA JURISDICIONAL COLETIVA E
PRECEDENTES JUDICIAIS COMO SOLUÇÃO ÀS DEMANDAS DE
MASSA – Lara Caroline Miranda e Camilo Zufelato.................................................. 2761
8.14 O JUIZ E A PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO – Renata
Saggioro Davis................................................................................................................... 2789
8.15 O PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO PROCESSO
LICITATÓRIO – Victor Alves Pereira ........................................................................ 2802
8.16 PELA EFETIVIDADE DO DEVIDO PROCESSO
CONSTITUCIONAL – Vinícius Silva Bonfim........................................................... 2821
8.17 POR UMA PRINCIPIOLOGIA PROCESSUAL COLETIVA: O
DESAFIO DO ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL – Talita Tatiana Dias
Rampin ............................................................................................................................... 2845

 
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8.18 PSICOGRAFIA COMO MEIO DE PROVA NO JURI – André


Fagundes Lemos ............................................................................................................... 2893
8.19 RAZOÁVEL DURAÇÃO NO PROCESSO DE ADOÇÃO – Graziella
Ferreira ............................................................................................................................... 2916

9 TRABALHO E DESENVOLVIMENTO SÓCIO-ECONÔMICO ............ 2930


9.1 A APLICAÇÃO DAS PENALIDADES ADMINISTRATIVAS
TRABALHISTAS: ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO E
EMPREGO E DA JUSTIÇA DO TRABALHO – Carolina Pereira Lins
Mesquita ............................................................................................................................. 2931
9.2 A DISCRIMINAÇÃO COMO UM DOS EFEITOS PRECARIZANTES
DA TERCEIRIZAÇÃO – Raquel Betty de Castro Pimenta e Sara Lúcia Moreira
de Cerqueira....................................................................................................................... 2970
9.3 A EFICÁCIA DOS DIREITOS SOCIAIS TRABALHISTAS NO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – Patrícia de Miranda Alves
Pereira ................................................................................................................................. 3000
9.4 A RENOVAÇÃO DO SINDICALISMO BRASILEIRO: PERÍODO
1979-2010 – Simone Nunes Freitas Araújo e Mirta G. Lerena de Misailidis........... 3023
9.5 ARBITRAGEM NOS CONFLITOS INDIVIDUAIS TRABALHISTAS:
LIMITES E POSSIBILIDADES – Taila Cristina Schalch ........................................ 3043
9.6 COMPOSIÇÃO TRIPARTITE: GÉRMEN DEMOCRÁTICO NA
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO? – Carolina Pereira
Lins Mesquita e Daniela Muradas Reis .......................................................................... 3066
9.7 DIALOGANDO COM OS CLÁSSICOS: A CONCEPÇÃO DE
CLASSE EM WEBER E MARX – Miguel Rodrigues Netto.................................... 3103
9.8 ECONOMIA SOLIDÁRIA E DEVOLUÇÃO CIDADÃ – Maria
Aparecida de Oliveira ....................................................................................................... 3119
9.9 EFETIVIDADE DOS DIREITOS TRABALHISTAS NO
PROCEDIMENTO LICITATÓRIO – Mila Batista Leite Corrêa da Costa .......... 3146
9.10 FATOR ACIDENTÁRIO DE PREVENÇÃO – FAP –
INADEQUAÇÃO ENTRE SEUS OBJETIVOS E METODOLOGIA DE
APURAÇÃO – Isabelle Resende Alves Rocha............................................................ 3169
 
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9.11 IMIGRAÇÃO LABORAL NO MERCOSUL: CIRCULAÇÃO DE MÃO


DE OBRA E PROTEÇÃO AO TRABALHADOR IMIGRANTE – Pedro
Augusto Gravatá Nicoli ................................................................................................... 3189
9.12 O FENÔMENO DA ESTATIZAÇÃO NA AMÉRICA DO SUL E
SEUS REFLEXOS NO MUNDO JUSTRABALHISTA – Caio Augusto Souza
Lara ................................................................................................................................... 3207
9.13 O INSTITUTO DA DESAPOSENTAÇÃO – Nazário Nicolau Maia
Gonçalves de Faria ........................................................................................................... 3223
9.14 OS BENEFÍCIOS ASSISTENCIAIS INSERIDOS NO CAMPO DA
SEGURIDADE SOCIAL – Vinicius Cesar Félix e João Paulo Knychala
Almeida............................................................................................................................... 3235
9.15 PARASSUBORDINAÇÃO: ANÁLISE DA MITIGAÇÃO DE
PRINCÍPIOS E INVERSÃO DA TENDÊNCIA EXPANSIVA DAS
TUTELAS TRABALHISTAS NO ATUAL CONTEXTO DE
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL – Letícia Mara Pinto
Ferreira ............................................................................................................................... 3259
9.16 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO TRABALHO DIANTE DAS
TRANSFORMAÇÕES ECONOMICAS E SOCIAIS DA DÉCADA DE 80 A
ATUALIDADE – Simone Nunes Freitas Araújo e Mirta G. Lerena de Misailidis 3273
9.17 REDES INTERNACIONAIS SINDICAIS: UMA NOVA FORMA DE
ORGANIZAÇÃO EM MUNDO GLOBALIZADO E FRAGMENTADO –
Maíra Neiva Gomes.......................................................................................................... 3291
9.18 REFLEXÕES SOBRE A DISPENSA COLETIVA BRASILEIRA –
Cláudio Jannotti da Rocha............................................................................................... 3340
9.19 REPERCUSSÕES SÓCIOJURÍDICAS DA CESSÃO DE DIREITOS
DECORRENTES DO CONTRATO DE TRABALHO DE ATLETA
PROFISSIONAL A PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DISTINTAS DAS
ENTIDADES DE PRÁTICA DESPORTIVA – Júlio César de Paula
Guimarães Baía.................................................................................................................. 3356
9.20 RESPONSABILIDADE SOCIAL CORPORATIVA E QUALIDADE
DE VIDA DO TRABALHADOR – Ana Aparecida Morais de Oliveira ............... 3370

 
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PREFÁCIO 

Com júbilo prefaciamos esta edição do Congresso - o primeiro de outros


tantos de uma trajetória que já se anuncia exitosa - da Associação Mineira de Pós-
Graduandos em Direito. O evento contou com a exploração de temáticas variadas e
que flertam, como sói acontecer com abordagens da ciência do direito, com a
fronteira do conhecimento, com a linha de avanço do estado da arte. Poder-se-ia de
pronto objetar que essas características são da essência e da natureza de todos os
eventos científicos. O que há de inédito neste particular evento é a forma da
organização e a capilarização da realização. Com relação à organização, não nos
esqueçamos que o evento é de ascendência, ou seja, partiu da base, dos alunos e
pesquisadores alcançando o grau de excelência, sem que a verticalização ocorresse no
sentido inverso, como é tradicional, poderia partir de organização de professores.
Surgiu do alunado reunido e organizado na AMPD. Sobre a capilarização, e aqui toca
em especial ao programa que represento, houve o envolvimento da capital e do
interior, mostrando a disseminação e o vigor do sistema de pós-graduação em direito
por toda a Minas Gerais. Pesquisa há, pesquisa de qualidade nos temas do direito, da
capital ao cerrado mineiro, já se podendo mencionar a existência de uma espécie de
subsistema, da rede de pós-graduação em direito de Minas Gerais, integrada aos
motivos estratégicos do sistema nacional de pós-graduação e aquilo que é exigido da
área do direito.
Do cotejo do sumário deste caderno é possível avistar a concretização de
linhas de pesquisa variadas e da realização social das necessidades de um direito
atuante e atualizado. A forma de publicação adotada bem indica que o objetivo
central das comunicações científicas, o levar ao conhecimento da comunidade o que

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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se pesquisa e como se pesquisa, está bem realizado. A publicação tem o formato ideal
para que se aviste o quanto de produção os vários autores materializam ou insinuam.
Como expusemos ao início, a trajetória é indicativa de vários outros
eventos. Com muita honra, a Universidade Federal de Uberlândia e o curso de
mestrado em direito públicos estarão prontos e, solícitos, receberemos os - futuros -
congressos da AMPD participando, assim como participamos este ano, deste palco
privilegiado, recebendo este público qualificado.

Alexandre Walmott Borges

Coordenador do curso de Mestrado em Direito Público da UFU, verão de 2010.

 
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CIDADANIA,
CRIMINALIZAÇÃO E
PRÁTICAS PUNITIVAS

 
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A INFLUÊNCIA DA CO-CULPABILIDADE NA DOSIMETRIA DA PENA


NO DIREITO BRASILEIRO

Adriana Cordeiro Galvão1

RESUMO

A teoria da co-culpabilidade fundamenta-se na omissão estatal em proporcionar a


todos os cidadãos os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição
Federal, eis que é inegável a discrepância existente entre as condições
socioeconômicas oferecidas a cada brasileiro. De outro lado, verifica-se que o sistema
penal não consegue punir todas as condutas delitivas, selecionando delitos
específicos praticados por indivíduos vulneráveis, suscetíveis a assumir o papel de
deliquentes que lhe é atribuído pela sociedade. A situação de alta vulnerabilidade é
gerada, dentre outros fatores, pelo reduzido espaço social conferido ao sujeito. A
falta de apoio estatal no combate à pobreza vista em sentido amplo constitui
relevante causa da criminalidade, emergindo dessa falha social uma parcela de
responsabilidade pela prática do delito por indivíduos marginalizados. Partindo-se da
premissa de que o exercício da função jurisdicional só é legítimo quando se
compromete com a justiça ao jurisdicionado, surge a co-culpabilidade no Estado de
Direito como forma de individualização da pena e garantia aos indivíduos,
reconhecido um menor grau de determinação do agente que não dispõe, ou dispõe
precariamente, de condições socioeconômicas. Dessarte, buscou-se compreender o
conceito de co-culpabilidade – atribuída à sociedade nos casos de delitos cometidos
por indivíduos socioeconomicamente prejudicados –, bem como a influência do
instituto na dosimetria da pena.

Palavras-chave: Co-culpabilidade. Individualização da pena.

                                                            
1 Advogada, graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
E-mail: dri_x@yahoo.com.br
 
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1 - INTRODUÇÃO

A Constituição da República de 1988, atendendo às exigências do nascente


Estado Democrático de Direito, consagrou o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e na dignidade da pessoa humana. Ainda,
colocou como objetivos fundamentais, dentre outros, a erradicação da pobreza e da
marginalização e a redução das desigualdades sociais.
Não obstante nosso ordenamento consagre uma série de direitos
fundamentais e ofereça aos seus cidadãos ações judiciais que garantam a sua eficácia,
a situação fática mostra-se bem diferente para a maioria da população: é inegável que,
desde a mais tenra idade, as oportunidades oferecidas a cada brasileiro são bem
diversas. Ao longo do tempo, as divergências socioeconômicas culminaram numa
sociedade conflitiva, industrializada, praticamente estagnada economicamente por
décadas, com recessão, desemprego, que carece de políticas básicas de moradia, de
educação e de saneamento básico, além de ter uma péssima distribuição de renda.
Referida desigualdade também acarreta conseqüências no sistema penal, no
qual a seletividade é apresentada como característica estrutural por ZAFFARONI
(1991, p. 147), uma vez que o Estado, impossibilitado de sancionar todas as condutas
delitivas, claramente opera punindo apenas alguns indivíduos, pela prática de delitos
2
específicos. Segundo o eminente autor, a seletividade do sistema recai sobre os
indivíduos que se encontram em uma situação de alta vulnerabilidade, gerada, dentre

                                                            
2 Além da seletividade Eugênio Raul Zaffaroni apresenta como características estruturais do sistema
penal: a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção
institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações
horizontais ou comunitárias.
 
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outros fatores, pelo reduzido espaço social conferido aos sujeitos, tornando-os mais
suscetíveis a assumir o papel de delinqüentes que lhes é atribuído pela sociedade.
De fato, as causas da criminalidade são várias e, dentre elas, não se pode
ignorar a falta de apoio estatal no combate à pobreza, vista esta em sentido amplo.
Da falha estatal e, portanto, da sociedade como um todo, surge a sua co-
culpabilidade no delito, emergindo da omissão estatal um dos fatores criminógenos.
Em outras palavras, ao negar aos indivíduos marginalizados oportunidades de vida
dadas a outros cidadãos, atribuindo-lhes o papel de delinqüentes, a sociedade torna-
se parcialmente responsável pela prática do delito por eles.
Dessarte, o princípio da co-culpabilidade é corolário do princípio
constitucional da igualdade, uma vez que, reconhecido um menor grau de
determinação do indivíduo que não dispõe, ou dispõe precariamente, de condições
econômicas, educação, alimentação, moradia, lazer, etc., impõe-se que a resposta
estatal ao delito praticado por ele leve em conta, no momento de individualização da
pena, a omissão da sociedade.
Diante da parca abordagem da doutrina sobre o tema, a despeito da sua
importância, objetiva o presente trabalho compreender o conceito de co-
culpabilidade e a sua influência na fixação da pena do deliquente, tendo-se em vista
que cada vez mais circunstâncias têm que ser consideradas na atividade judicante,
para a realização da justiça material.

 
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2 - A CULPABILIDADE E A INSUFICIÊNCIA DE SEU CONCEITO


TRADICIONAL

O princípio da culpabilidade foi adotado expressamente tanto pela


Constituição Federal, em seu art. 5º, LVII, quanto pelo Código Penal, que em sua
Exposição de Motivos estendeu sua aplicação a todo o projeto. 3
Sintetizando o pensamento de diversos autores, MOURA (2005, p. 29)
ressalta o caráter garantidor do princípio da culpabilidade e delimita suas funções
essenciais no Direito Penal brasileiro, aduzindo que a culpabilidade: constitui
elemento do conceito analítico de crime; fundamenta e limita a pena a ser
estabelecida; atua na aplicação da pena, sendo utilizada como circunstância judicial
prevista no art. 59 do Código Penal; e ainda, veda a responsabilidade objetiva e a
culpabilidade do autor, consagrando a culpabilidade de fato.
Interessa-nos especialmente a acepção da culpabilidade como elemento
estrutural do conceito de delito, visto que, ao lado da tipicidade e da ilicitude,
apresenta-se como requisito para que determinada conduta seja considerada crime,
constituindo, consequentemente, condição de aplicação da pena.
Para que uma determinada conduta seja considerada culpável é necessário
que estejam presentes três elementos específicos, sem os quais não poderá haver o
juízo de censura inerente à culpabilidade. Primeiro, deve o agente ser imputável,
qualidade que reflete a sua maturidade psíquica e a capacidade de se motivar
racionalmente de acordo com as exigências do Direito. Segundo, exige-se que possua
consciência da antijuridicidade do fato, pois só assim poderá se sentir motivado a agir em
conformidade com o mandamento contido na norma. Por derradeiro, diante de uma
                                                            
3 Segundo ROCHA (2004, p. 322), além da previsão expressa na Constituição Federal e no Código
Penal, pode-se inferir o princípio da culpabilidade da interpretação das normas constitucionais
relativas aos direitos e liberdades reconhecidos como princípios fundamentais integrantes do
ordenamento jurídico, bem como se pode derivá-lo do próprio Estado de Direito. 
 
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situação normal, o indivíduo deve ser livre para agir de acordo com sua
autodeterminação, dentro do âmbito de exigência da norma jurídica, ou seja, não ser
exigível comportamento distinto no caso concreto. Presentes tais elementos, impõe-se que
a sanção estabelecida no momento da individualização da pena seja proporcional ao
fato cometido (VALLEJO, 1999, p. 42; ZAFFARONI, 2003, p. 246).
Na lição de ZAFFARONI, PIERANGELI (2004, p. 571) “Um injusto, isto é,
uma conduta típica e antijurídica, é culpável quando é reprovável ao autor a realização desta
conduta porque não se motivou na norma, sendo-lhe exigível, nas circunstâncias em que agiu, que
nela se motivasse. Ao não ter se motivado na norma, quando podia e lhe era exigível que o fizesse, o
autor mostra uma disposição interna contrária ao direito”.
Por sua vez, CAMARGO (1994, p. 10) ressalta a influência da culpabilidade
nos demais elementos do crime, ao afirmar que “Antes mesmo da fixação da pena, há que
definir-se pela reprovação penal do agente. Numa etapa posterior, a pena, fundamentada nos
princípios da proporcionalidade e necessidade, será fixada através dos critérios previstos na lei
penal”. 4
A culpabilidade apresenta-se assim, como a terceira categoria na teoria geral
do delito correspondente ao pressuposto da aplicação da pena ao autor de um fato já
classificado como típico e antijurídico. Em suma, atua culpavelmente quem pratica
uma conduta tipificada no nosso direito penal, sem a presença de qualquer causa de
exclusão da ilicitude, quando podia atuar de maneira diversa, ou seja, conforme o
direito.
Não é fácil, entretanto, verificar concretamente que o agente mostra uma
disposição interna contrária ao direito, ou seja, não agiu conforme a norma quando
podia e lhe era exigível que o fizesse. Nesse diapasão, o livre-arbítrio, como

                                                            

 
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fundamento da culpabilidade, constitui um grande problema na construção moderna


do conceito de culpabilidade, sendo o grande responsável pela atual crise desta.
Sobre essa questão, WELZEL apud BITENCOURT (2007, p. 348) propõe
que a culpabilidade deve se basear não na liberdade de agir de outro modo, mas sim
na liberdade de vontade, tida como a capacidade de atuar conforme o conhecimento
do injusto e de assumir a responsabilidade pelo ato. Para o autor, “Não se trata aqui da
capacidade geral de decisão com o sentido, por conseguinte, da imputabilidade, que existe
independentemente da situação dada, mas da possibilidade concreta do autor, capaz de culpabilidade,
de poder adotar sua decisão de acordo com o conhecimento do injusto”.
Em consonância com tal pensamento, CONDE (1988, p. 126-127) prega a
insuficiência do conceito tradicional de culpabilidade, asseverando que o mesmo
pauta-se na premissa indemonstrável de que o agente possuía a capacidade de atuar
de modo diverso daquele como realmente atuou. Afirma o autor que, embora
aparentemente exista para qualquer sujeito uma liberdade de escolha dentre várias
opções, tal pressuposto é insuficiente para fundamentar o conceito de culpabilidade,
dada a impossibilidade de conhecer as razões que levam a escolher uma ou outra
opção.
Dessa forma, apresenta-se ao jurista a possibilidade de relativizar o conceito
tradicional da culpabilidade e o entendimento da liberdade de que lhe serve de
alicerce, conferindo à culpabilidade um fundamento social e dotando-a de um
conteúdo capaz de legitimar e limitar de modo racional a imposição de uma pena.
Parte-se do pressuposto de que, inobstante seja indemonstrável a disposição
interna do autor do fato em agir conforme a norma, é possível auferir a capacidade
de atuar de modo diverso a partir da “média de comportamento” dos indivíduos,
considerados em situações normais, eis que a própria sociedade determina num
momento histórico os padrões de conduta aceitáveis. Assim, a análise da liberdade de

 
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agir do indivíduo parte da consideração de dados concretos, relativos às expectativas


sociais e, em relação à co-culpabilidade, às oportunidades oferecidas a cada indivíduo.
Neste sentido, adota-se inteiramente a argumentação de CONDE (1988, p.
126-127), o qual afirma que “não há uma culpabilidade em si, mas sim uma culpabilidade
tomada em referência aos demais. A culpabilidade não é um fenômeno individual, mas social, como
fenômeno social”.
Tome-se como exemplo a situação de um desempregado de classe econômica
baixa que assalta um ônibus a fim de conseguir o dinheiro necessário ao sustento de
sua família, em oposição à de um jovem universitário que subtrai para si um bem
móvel de um estabelecimento, simplesmente para satisfazer um desejo seu de
consumo. É inegável que, embora ambas as condutas sejam típicas, ilícitas e
culpáveis, os agentes apresentam graus de reprovabilidade diversos, uma vez que o
desempregado não possuía a mesma liberdade de agir que o universitário.
No caso citado, considerando-se que a conduta do desempregado não se
subsume na excludente do estado de necessidade, sendo efetivamente punível, ainda
assim a reprovabilidade pelo ato por ele cometido é menor da que a do jovem
universitário delinquente. Tal fato se deve pela discrepância entre as situações
socioeconômicas dos mesmos, do leque de oportunidades e condições a eles
oferecidas.
Em síntese, a partir da constatação de que a liberdade de vontade do infrator
da norma penal pode ser condicionada pelo meio em que vive, sendo necessária a
análise concreta de dados como grau de escolaridade e situação socioeconômica
deste, a teoria da co-culpabilidade propõe que a sociedade assuma uma parcela da
culpa pela prática do delito por indivíduos marginalizados, permitindo-se a
construção de um modelo de reprovação penal mais legítimo e mais condizente com
a culpabilidade do indivíduo e sua realidade social.

 
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3 - DO PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE

3.1 - ORIGEM HISTÓRICA

Segundo MOURA (2005, p. 52-53), a origem da teoria co-culpabilidade está


ligada ao surgimento do Estado Liberal, bem como às idéias iluministas consagradas
no século XVIII, uma vez que, com o advento do contratualismo, o Estado assumiu
o encargo de propiciar aos seus cidadãos condições mínimas de sobrevivência,
segurança e desenvolvimento individual. Da quebra do contrato social firmado,
consubstanciada no inadimplemento destas obrigações, surge a responsabilidade do
Estado pela prática de certos delitos, por determinados agentes.
Considerado precursor da teoria, Jean Paul Marat, “em 1799, desenvolveu uma
crítica socialista e revolucionária ao pensamento kantiano, afirmando ser a pena talional a mais
justa e apropriada das formas de pena desde que tivéssemos uma sociedade igualmente justa e
igualitária” (RODRIGUES, 2009, p. 233).
Conquanto não seja uma ideia recente, o “ressurgimento”, por assim dizer,
da co-culpabilidade, com suas primeiras aplicações, somente deu-se há poucas
décadas, com a revisão do modelo clássico de justiça criminal, o qual colocava o
crime como “mero enfrentamento” entre seu autor e as leis do Estado, conforme
GOMES (2001, p. 185).
Atualmente, tem-se que o conteúdo da resposta estatal ao delito não pode
restringir-se à aplicação de penas – especialmente as restritivas de liberdade –, como
se houvesse uma correspondência matemática entre estas e as violações das normas
positivas. Com efeito, embora uns dos objetivos do sistema penal seja satisfazer a
pretensão punitiva que nasce com a violação do Direito, tal escopo não é realizado
somente com a imposição de penas, uma vez que o crime constitui um conflito
interpessoal que não se esgota na punição.
 
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De fato, a harmonia social, quebrada com a prática do delito, não é


restabelecida quando um indivíduo reincidente é punido pela prática de um novo
crime, mas sim quando tal indivíduo é ressocializado e não volta a delinqüir. De igual
forma, a imposição de pena ao indivíduo marginalizado que infringiu uma norma
penal, equivalente à imposta a quem optou livremente por violar dita norma, não
pode ser considerada como resposta estatal plenamente satisfatória, impondo-se,
neste caso, a aplicação da co-culpabilidade.

3.2 - CONCEITO E FUNDAMENTOS DA CO-CULPABILIDADE

Conceituar determinados institutos jurídicos – não obstante no caso do


princípio da co-culpabilidade haja uma facilidade proporcionada pela percepção de
seus reflexos no âmbito social – pode se mostrar uma tarefa árdua e complexa.
Sem objetivar estabelecer um conceito preciso, arriscamo-nos a uma
aproximação do sentido e alcance da co-culpabilidade, afirmando que esta consiste
na parcela de responsabilidade que o Estado chama para si quando da prática de
delitos pelos indivíduos alijados do processo de inserção social, considerando-se que
estes possuem um menor âmbito de autodeterminação e, portanto, ensejam uma
menor reprovação social.
Segundo CONDE (1988, p. 130), qualquer alteração relevante na faculdade
do sujeito de motivar-se de acordo com a norma implica na exclusão ou atenuação da
culpabilidade, dependendo da relevância de tal alteração. Isso porque a norma deve
motivar o indivíduo, dentre as várias ações possíveis, a abster-se de realizar a conduta
proibida com a ameaça de uma pena, de modo que, atribuída determinada ação ao
mesmo, tenha-se como conseqüência a responsabilidade pelo ato praticado.

 
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A autodeterminação corresponde ao livre arbítrio, ao poder de agir


livremente, ou seja, na capacidade de analisar uma situação, valorá-la e decidir qual a
conduta a ser tomada. A liberdade, assim tomada como atributo inerente à condição
humana e, portanto, de todas as pessoas, consideradas igualmente, tem sua
inviolabilidade assegurada constitucionalmente, no ordenamento pátrio, em seus
diversos ramos, inclusive no penal. 5
Contudo, a verificação da realidade derruba a premissa da existência de
igualdade entre os cidadãos, sendo que a proteção formal aos direitos fundamentais
ligados ao direito de liberdade não garante, por si só, a realização concreta da Justiça.
Em razão das desigualdades sociais e econômicas existentes no nosso país, há que se
observar na aplicação das normas, um critério material – social e filosófico – que
permita determinar o grau de liberdade a que certo indivíduo tem acesso. Para tanto,
MOURA (2006, p. 60) defende a integração da Sociologia e do Direito Penal,
considerando o princípio da co-culpabilidade como um elo entre estas ciências.
Uma vez que a noção de co-culpabilidade baseia-se na diminuída ou
inexistente capacidade do agente de autodeterminação, faz-se necessário delimitar os
fatores juridicamente relevantes que influenciam nesta aptidão do indivíduo.
Nas últimas décadas, a literatura criminológica revelou vários fatores que
afetam as escolhas dos indivíduos, dentre os quais as forças socializantes da família,
dos pares e da escola, os reforços proporcionados pela comunidade, as
predisposições pessoais e até mesmo biológicas e, ainda, arranjos institucionais de
diversas naturezas. Contudo, tais fatores são irrelevantes quando apontam para
situações fora do controle do Estado – nas quais a intervenção possa não ser

                                                            
5 No campo do Direito Penal, a garantia de liberdade do indivíduo consubstancia-se especialmente
nos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, da legalidade, da
irretroatividade, da intervenção mínima, da culpabilidade e da individualização da pena.
 
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desejável, ou ainda, para um plano no qual o Estado tem muito pouco a fazer, por
estarem os fatos fora do âmbito de relevância jurídica.
Nas palavras de ZAFFARONI e PIERANGELI (2006, p. 715), “os
habitantes dispõem de distintas margens sociais de autonomia ou de distinto espaço social, em razão
das desigualdades socioeconômicas, de instrução etc., isto é, existem pessoas que dispõem de meios
econômicos e de graus de instrução superiores aos dos outros, estes, frequentemente, em graus de
carência bem marcados”.
Diferente de outras circunstâncias, os meios econômicos e sociais,
constitucionalmente garantidos ao cidadão, constituem fatores objetivamente
verificáveis, e que, portanto, interessam ao reconhecimento da co-culpabilidade.
Dessarte, o Estado omisso torna-se parcialmente responsável quando um indivíduo
pratica um delito impulsionado por necessidades cujo atendimento lhe foi negado
pelo governo, sendo sua conduta menos reprovável do que seria em condições ditas
“normais”.
Portanto, de acordo com a teoria da co-culpabilidade, as condições sociais
desfavoráveis são determinantes na anormal motivação da vontade nas decisões da
população marginalizada, razão pela qual a sociedade é responsável pela prática de
delitos por tais indivíduos, na medida em que nega a estes a igualdade de acesso às
oportunidades sociais.
Conforme posicionamento de SANTOS (2004, p. 255-256), um dos
primeiros estudiosos a fomentar a ideia, “é admissível a tese da co-culpabilidade da sociedade
organizada, responsável pela injustiça das condições sociais desfavoráveis da população
marginalizada, determinantes da anormal motivação da vontade das decisões vida. Em sociedades
pluralistas, as alternativas de comportamento individual seriam diretamente dependentes do status
social de cada indivíduo, com distribuição desigual das cotas pessoais de liberdade e determinação
conforme a respectiva posição de classe da escala social”.

 
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Considerando-se que o Estado não proporciona iguais oportunidades aos


cidadãos, a reprovação de culpabilidade que se faz ao indivíduo inferiorizado por
condições adversas deve ser compensada. Não seria possível que a sociedade
creditasse a este agente a possibilidade de motivar-se na norma, sobrecarregando-lhe
com as causas sociais que determinaram a redução de seu âmbito de liberdade. Nesse
caso, há uma parte da reprovação com a qual a própria sociedade deve arcar
(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2004, p. 580).
Em consonância com tal pensamento, CASTRO (2005, p. 49) afirma que
“A liberdade de ação e de vontade está relacionada com realidade social. O indivíduo pode se
determinar de acordo com as possibilidades que o meio em que vive lhe proporciona”. Contudo, a
autora ressalva que, com o reconhecimento da culpabilidade, “Não se quer excluir a
responsabilidade pessoal e transferi-la para a sociedade, mas tão somente atenuá-la”.
Em síntese, a liberdade realizada no ato não corresponde necessariamente à
liberdade da pessoa, relacionando-se diretamente com as oportunidades sociais de
que esta dispõe. Não se pode esperar de um indivíduo que sobrevive em uma
situação limite – excluída a hipótese do estado de necessidade, causa de exclusão da
ilicitude – disponha da mesma capacidade de análise e autodeterminação que outro
indivíduo que possui uma situação digna.
De fato, o livre arbítrio apresenta-se em grau diminuído quando não são
oferecidas ao agente as mesmas opções sociais apresentadas aos demais cidadãos. É
compreensível que o indivíduo, diante da impossibilidade de inserção no espaço
social de forma digna, aja ilicitamente para satisfazer aspirações as quais não
alcançaria de outro modo. Diante da omissão da sociedade em relação ao sujeito –
consubstanciada na falta de investimento do Estado em projetos de ensino, moradia,
lazer e criação de empregos –, sua conduta é menos reprovável, não sendo justo que
aquele arque com a total responsabilidade pelo seu ato.

 
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Dúvida não há de que, se a própria sociedade, representada pelo Estado, nega


aos indivíduos a igualdade de acesso a meios materiais, deve arcar com as
conseqüências desta negativa. Neste sentido, CASTRO (2005, p. 50) aponta que “Em
sendo o Estado também responsável pela conduta de seus membros, natural que com eles divida o
encargo imposto pela lei, assumindo sua parcela de culpa e, assim, diminuindo a pena a ser imposta
para o autor do delito”.
Consigne-se que o reconhecimento da co-culpabilidade não significa a
impunidade do agente delituoso, uma vez que deve ocorrer mediante o
preenchimento de certos requisitos: o agente deve ser oriundo de um meio social
onde o Estado não se faça presente e, ainda, o delito deve ter sido efetivamente
motivado por fatores socioeconômicos. Dessa forma, a pena do infrator será ajustada
de acordo com sua culpabilidade, ou seja, na medida da reprovação social e pessoal
pelo ato praticado.
Sendo assim, a co-culpabilidade não se vincula ao falso pressuposto de que
a criminalidade é efeito exclusivamente da pobreza, uma vez que a falta de
oportunidades sociais, embora seja fator determinante na prática de crimes, não é
considerada isoladamente.
De fato, há diversas teorias que investigam as razões porque pessoas em
idênticas condições sociais e econômicas possuem comportamentos diversos,
considerando-se que amplo segmento da população pobre não participa da
criminalidade.
Segundo REALE JUNIOR (2004, p. 187-188) “A não satisfação dos desejos,
diante da impossibilidade de alcance dos meios lícitos postos à disposição, é de ser aceita se houve por
parte da pessoa autocontrole, isto é, se omite a ação ilícita que tornaria possível a realização do
desejo, conformando-se em não ter tudo que pretende imediatamente, para não imperar, na expressão
de Forti, a ditadura do `tutto e súbito`”.

 
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Assim, na expressão do autor, o indivíduo possuidor de autocontrole é


aquele que encara a vida com realismo, sem pretender metas inatingíveis colocadas
pela sociedade de consumo, sabendo enfrentar as frustrações e aceitar obstáculos à
consecução de seus desejos. Frise-se que, o fato do marginalizado conformar-se à
ordem imposta pelo direito, deixando de buscar meios ilícitos para atingir seus
objetivos, não implica em aceitar passivamente as omissões do Estado quanto à
efetivação dos direitos sociais assegurados constitucionalmente.
Por sua vez, ZAFFARONI (1991, p. 276-277), ao invés de adotar a
responsabilização da sociedade diante da criminalidade dos excluídos, propõe a
culpabilidade pela vulnerabilidade, centrada no sujeito que se encontra em posição
vulnerável, ou seja, mais propenso aos efeitos da criminalização, por um sistema
penal irracional e seletivo.
Para o autor, tal situação é produzida pela posição de vulnerabilidade e pelo
esforço pessoal de vulnerabilidade. Desta forma, a mensuração da reprovação do
delito dá-se inversamente à posição de vulnerabilidade do agente, sendo menor a
reprovação quanto mais baixa for a sua posição no estrato social. Ao contrário, será
maior a reprovação quanto maior for o esforço pessoal do agente para a
vulnerabilidade, na medida em que este decidir autonomamente pela prática do
delito.
Portanto, o fato de se considerar o sujeito vulnerável mais propenso aos
efeitos da criminalização, não quer dizer que este irá delinquir, mas sim que incide
sobre ele fator tido como determinante nas causas de criminalidade. Assim, na
hipótese de prática de um delito por tal indivíduo, deve este ser responsabilizado na
medida de sua culpabilidade, respondendo o Estado solidariamente, na medida em
que negou ao mesmo o devido espaço social.

 
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3.3 - A CULPABILIDADE DE AUTOR E O PRINCÍPIO DA CO-


CULPABILIDADE

Ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, a teoria da co-


culpabilidade não se relaciona com a chamada culpabilidade de autor, porquanto esta
reprova a própria personalidade do sujeito, partindo da premissa de que a faculdade
de compreender o injusto penal estaria comprometida pela sua conduta de vida do
agente, pelo seu caráter e pelo seu modo de ser e de viver (TOLEDO, 1982, p. 235).
No direito penal do autor o ato delituoso é tomado como sintoma de uma
personalidade perigosa, não se proibindo o ato em si, mas o ato como manifestação
da personalidade do autor, esta sim considerada verdadeiramente reprovável, no
dizer de ZAFFARONI; PIERANGELI (2004, p. 107).
Em crítica à culpabilidade do autor, REALE JUNIOR (2004, p. 187-188)
assevera que “O equívoco está em procurar visualizar a opção de um comportamento concreto como
opção por um sentido de vida, reduzindo-se a culpabilidade a um juízo sobre a direção imprimida
pelo agente sobre seu próprio ser, quando ela deve implicar uma e outra valoração: a do ato em si
mesmo e a do que ele significa no sentido total da existência do agente”.
Por sua vez, a teoria da co-culpabilidade posiciona a situação social em
precedência lógica ao próprio agente, cujas circunstâncias pessoais serão analisadas
para uma eventual atenuação e até mesmo exclusão da pena, e não para estabelecer
uma maior reprovação, como ocorre na culpabilidade do autor.
Assim, inobstante o direito penal moderno seja basicamente um direito
penal do fato, recaindo o juízo de reprovação sobre a conduta do agente, não há
impedimento para que, na fixação da pena, sejam consideradas as circunstâncias
pessoais e as condições socioeconômicas do sujeito.

 
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4 - DA APLICAÇÃO DA CO-CULPABILIDADE NO DIREITO


BRASILEIRO

A Constituição Federal de 1988 enfatiza como nenhuma das anteriores o


princípio da igualdade, assegurando que a igualdade formal seja quebrada diante de
situações que autorizem tal ruptura. Contudo, não basta a afirmativa da lei de que
todos são iguais, cabendo ao Estado garantir essa igualdade, tratando de forma
diferenciada, inclusive juridicamente, os que são desiguais.
Na órbita do Direito Penal, a efetivação da igualdade material está ligada à
idéia da co-culpabilidade, tendo-se em vista que o indivíduo alijado do processo de
inserção social deve ter um juízo de reprovação diverso daquele que recai sobre um
sujeito que teve oportunidades privilegiadas.
Embora não haja previsão expressa de aplicação da co-culpabilidade no
6
ordenamento pátrio, há dispositivos que a admitem implicitamente, podendo ser
utilizados na concretização do princípio. Nos tópicos seguintes serão analisadas as
possibilidades atuais e futuras de aplicação da co-culpabilidade na dosimetria da pena,
em cada de suas três fases.

4.1 – INFLUÊNCIA NA PENA-BASE

Segundo MOURA (2005, p. 145-146), a aplicação da co-culpabilidade ainda


não é possível no tocante à fixação da pena-base, uma vez que todas as circunstâncias
judiciais a serem consideradas pelo julgador já estão expressas no art. 59 do Código

                                                            
6 Para um aprofundamento sobre a legislação de outros países que consagram expressamente a co-
culpabilidade, vide MOURA (2005).
 
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Penal. Assim, seria necessário modificar o dispositivo a fim de incluir a co-


culpabilidade em seu rol.
Nesse sentido, comissão de eminentes juristas, presidida por Miguel Reale
Júnior e responsável pela elaboração de anteprojeto de lei de reforma da parte geral
do Código Penal, propôs a alteração do art. 59 para prever as oportunidades sociais
oferecidas ao acusado como circunstância judicial (REALE JUNIOR, 2003, p. 85):

Art. 59 O juiz, atendendo à culpabilidade, antecedentes,


reincidência e condições pessoais do acusado, bem como as
oportunidades sociais a ele oferecidas, aos motivos,
circunstâncias do crime e ao comportamento da vítima,
estabelecerá conforme seja necessário e suficiente à
individualização da pena: [...] (grifo nosso).

Imperioso ressaltar que, além da inserção no artigo da circunstância


“oportunidades sociais” oferecidas ao agente delituoso, o anteprojeto suprimiu, em
claro repúdio à culpabilidade de autor, as referências à conduta social e à
personalidade do agente, aspectos que poderiam ser considerados para agravar a pena
do réu, dando lugar a um indesejado subjetivismo por parte do juiz.
Não obstante o entendimento do autor citado, temos que é possível a
aplicação da co-culpabilidade na fixação da pena-base a partir da conjugação do art.
59 do Código Penal e art. 187, § 1º do Código de Processo Penal.
Com efeito, a inquirição sobre certas circunstâncias judiciais de cunho
subjetivo – a própria culpabilidade, a personalidade do agente e os motivos do crime
– permite a análise das condições que compeliram o réu à prática delituosa e,
portanto, da co-culpabilidade.
Ressalte-se que, sendo a culpabilidade a medida de reprovação social pelo
delito, constitui circunstância judicial que deve preponderar sobre as demais, ainda
que estas sejam desfavoráveis. Desse modo, havendo um menor grau de exigibilidade

 
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de outra conduta em razão das condições socioeconômicas do réu, ou seja, presente


a co-culpabilidade, deve a pena-base ser fixada no mínimo cominado abstratamente
ao tipo penal.
Nesse diapasão, o art. 187, § 1º, do Código de Processo Penal, alterado pela
Lei n.º 10.792/2003, inovou ao prever no momento do interrogatório judicial o
questionamento sobre certos dados sobre a vida do acusado, que antes poderiam ser
ignorados pelo julgador:

Art. 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a


pessoa do
acusado e sobre os fatos.
§ 1o Na primeira parte o interrogando será perguntado sobre a
residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais,
lugar onde exerce a sua atividade, vida pregressa, notadamente se
foi preso ou processado alguma vez e, em caso afirmativo, qual o
juízo do processo, se houve suspensão condicional ou
condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados
familiares e sociais (grifo nosso).

Com isso, o legislador possibilitou que o juiz, caso constate a relação


determinante entre a prática do crime e a ausência de oportunidades sociais dadas ao
acusado, aplique uma pena mitigada, proporcional à reprovação social, em vista da
co-culpabilidade.

4.2 – A CO-CULPABILIDADE COMO ATENUANTE SUPRALEGAL

Conquanto os defensores do legalismo estrito considerem que somente são


válidas as atenuantes expressamente previstas em lei, concordamos integralmente
com o posicionamento de que a co-culpabilidade está implícita na ordem jurídica de
qualquer Estado que reconheça aos seus cidadãos direitos econômicos e sociais.
 
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No Brasil, parte da doutrina e da jurisprudência adota a co-culpabilidade


como atenuante supralegal da pena, com fulcro na disposição genérica do art. 66 do
Código Penal, o qual prevê a atenuação da pena em razão de circunstância relevante,
anterior ou posterior ao crime, ainda que não prevista expressamente em lei.
Neste sentido, ZAFFARONI e PIERANGELI (2006, p. 715) afirmam que
“Uma circunstância que, lamentavelmente, o texto vigente não menciona de maneira expressa, mas
que pode ser considerada por esta via de atenuantes, é a menor culpabilidade do agente proveniente
do que se acostumou chamar de “co-culpabilidade”. Ainda, a carência de condições
socioeconômicas de uma pessoa deve ser considerada como atenuante “sempre e
quando estas circunstâncias não cheguem a um grau tal que devam ser consideradas como presença de
um eximente, em razão do estado de necessidade justificante ou exculpante”.
Segundo MOURA (2005, p. 145-149), a aplicação da co-culpabilidade como
atenuante genérica encontra seu limite nos casos em que a pena-base for fixada no
mínimo legal, visto que as circunstâncias atenuantes não poderiam resultar em uma
pena aquém da cominação legal.
Imperioso registrar em sentido contrário doutrina e jurisprudência, ainda
7
minoritárias, que sustentam ser o mínimo legal cominado aos tipos penais
incompatível com o próprio princípio da culpabilidade, razão pela qual defendem a
redução da pena aquém desse mínimo quando da aplicação das atenuantes.
Fundamenta-se essa ideia na determinação constitucional de individualização das
penas e na necessidade de se considerar todas as circunstâncias que envolvem o fato
                                                            
7 Neste sentido, temos como exemplo as decisões:
BRASIL, TJRS. Apelação Criminal 70002250371, 5ª Câmara Criminal, Rel. Amilton Bueno de
Carvalho, data de julgamento: 21.03.2001. Disponível em: www.tjrs.jus.br.
BRASIL, TJRS, Apelação Criminal 70005127295, 5ª Câmara Criminal, Rel. Amilton Bueno de
Carvalho, data de julgamento: 06.11.2002. Disponível em: www.tjrs.jus.br.
BRASIL, TJRS, Embargos infringentes 70000792358, 4ª Câmara Criminal, Rel. Tupinambá Pinto de
Azevedo, data de julgamento: 28.04.2000). Disponível em: www.tjrs.jus.br.
BRASIL, TRF 2ª Região. Apelação Criminal 2001.51.01.539656-0. Rel. Alexandre Libonati, data de
julgamento: 13.04.2005. Disponível em: www.trf2.gov.br.
 
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delituoso, notadamente aquelas que a própria lei diz que sempre alteram a pena, como
é o caso das atenuantes legais (CAMARGO, 1994, p. 148-152).
Com base nessas considerações, não há dúvidas quando à possibilidade de
aplicação da co-culpabilidade como atenuante legal genérica, uma vez que constitui
circunstância relevante anterior ao crime, a qual deve obrigatoriamente ser analisada
pelo julgador.

4.3 – POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO DE UMA CAUSA DE DIMINUIÇÃO


DE PENA

Se a minoração da pena aquém do mínimo legal quando da análise das


circunstâncias judiciais e das atenuantes é rejeitada pela doutrina majoritária, é
pacífico que a incidência das causas de diminuição na terceira fase da dosimetria da
pena permite a produção de tal efeito.
Em razão disso, por tornar possível maior individualização da pena
aplicada, a melhor hipótese para a positivação da co-culpabilidade, segundo MOURA
(2005, p. 149), consistiria no acréscimo de um parágrafo ao art. 29 do Código Penal,
prevendo como causa de diminuição de pena a hipossuficiência e a precariedade de
condições socioeconômicas do agente, desde que tivessem influenciado a prática do
crime e apresentassem compatibilidade com o delito cometido.
Para o autor, embora haja previsão implícita da co-culpabilidade no
ordenamento, é de suma importância a criação da referida causa de diminuição da
pena, como forma de obrigar o julgador a aplicá-la na prática. Desse modo, haveria o
estabelecimento de limites ao poder de interpretação e à liberdade do juiz, referindo-
se o primeiro à obrigatoriedade de sua aplicação quando do reconhecimento da co-

 
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culpabilidade, e a segunda ao quantum a ser diminuído na pena – por exemplo, de um


terço a dois terços.

4.4 – A CO-CULPABILIDADE COMO CAUSA SUPRALEGAL DE


EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE

Conquanto não se tenha notícia dos tribunais da aplicação desta hipótese,


tem-se que a co-culpabilidade pode ser considerada como exculpante supralegal
quando a miserabilidade do agente alcança grau tão elevado que deixa de incidir
sobre seu comportamento qualquer reprovação penal, por não ser exigível que se
conformasse à norma legal (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p. 715). É que,
assim como a culpabilidade, a co-culpabilidade pode ser graduada, impondo-se o
reconhecimento da exculpante nos casos em que não seja exigível do agente o agir de
outro modo.
No dizer de ROCHA (2004, p. 361), a inexigibilidade constitui princípio
geral de Direito, podendo outras hipóteses ser acrescidas às já positivadas para
excluir a responsabilidade do sujeito, pois o ordenamento brasileiro não apresenta
um rol taxativo de excludentes de culpabilidade.
Neste sentido, ao referir-se aos elementos da culpabilidade, CONDE (1988,
p. 132) assevera que “Esses três elementos são graduais (exceto no caso da menoridade penal) e,
por isso, quando há alguma causa que os modifique ou os torne imprecisos, esta só pode ter efeito
atenuante da culpabilidade quando não tem força para excluí-la totalmente”.
Em consonância com tal pensamento, ZAFFARONI; PIERANGELI
(2004, p. 626-627) afirmam que “Diante da vigente legislação positiva brasileira, e da maneira
como temos entendido as hipóteses de inculpabilidade, cremos que se torna totalmente desnecessária a
busca de uma eximente autônoma de inexigibilidade de conduta diversa, que pode ter atendido a
 
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exigências históricas já superadas, mas cuja adoção, hoje, prejudica toda sistemática da
culpabilidade”.
A partir dessa premissa, de que a inexigibilidade de conduta diversa
constitui uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade, torna-se possível a
exculpação com fulcro na co-culpabilidade quando se comprovar que a ausência de
condições materiais, fruto da omissão do Estado em cumprir seus deveres
constitucionais, influiu de forma incisiva no âmbito de autodeterminação do autor do
fato, compelindo-o à prática do crime.
Sendo assim, “Somente através da extensão da utilização do conceito de inexigibilidade
de conduta diversa às reais condições de vida do povo, independentemente desta hipótese estar prevista
ou não expressamente em lei, é que conseguiremos desenvolver uma culpabilidade efetiva, traduzida
no conceito de co-culpabilidade, que garanta a iguadade” (RODRIGUES, 2009, p. 250).
Por fim, embora a situação de inexigibilidade de conduta diversa esteja
abarcada pelo nosso direito como excludente “genérica” de culpabilidade,
consideramos de suma importância a positivação da co-culpabilidade como causa de
exculpação, de modo a garantir sua inequívoca aplicação pelo julgadores.

5 – CONCLUSÃO

1. A análise da culpabilidade, como medida de reprovação pela prática do


delito, deve levar em conta as condições do acusado e o contexto social no qual ele
está inserido, considerando-se que as circunstâncias socioeconômicas influenciam
diretamente no âmbito de autodeterminação do sujeito.
2. O princípio da co-culpabilidade apresenta-se como corolário do Estado
Democrático de Direito e de valores constitucionalmente consagrados, especialmente
a igualdade e a individualização da pena: uma vez que o Estado não proporciona
 
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oportunidades sociais semelhantes aos seus cidadãos, a reprovação social e pessoal


que recai sobre o indivíduo a quem se negou o devido espaço social deve ser
diminuída, ou mesmo excluída, arcando a sociedade com parte da responsabilidade
pela prática delitiva.
3. A co-culpabilidade não representa simplesmente a retirada da
responsabilidade do acusado e sua transferência para a sociedade, uma vez que exige
o preenchimento de requisitos: o agente deve advir de um espaço social onde o
Estado não se faça presente e, ainda, a ausência de condições socioeconômicas deve
ter influído de modo determinante na prática do delito. A miserabilidade do agente
não servirá sempre como escusa para a prática do crime, devendo ser analisada caso a
caso: não comprovada a relação de miséria do agente com a prática do crime, não
deve ser aplicada a co-culpabilidade.
4. Embora não haja previsão expressa da co-culpabilidade, há dispositivos
legais que admitem implicitamente sua aplicação e que devem ser utilizados na
concretização do princípio. Nesse sentido, o juiz deve levar em conta os dados da
vida do acusado obtidos no momento do interrogatório judicial (art. 187, § 1º do
Código de Processo Penal) tanto na fixação da pena-base (art. 59 do Código Penal)
como na consideração das atenuantes (art. 66 do Código Penal).
5. Considera-se ainda que a co-culpabilidade pode ser aplicada
excepcionalmente como causa supralegal de exculpação, nos casos em que a miséria
do agente alcança um patamar tão elevado que deva ser considerada como eximente
de qualquer reprovação social, por não ser exigível que o agente agisse conforme o
Direito.
6. Não obstante a previsão implícita da co-culpabilidade no ordenamento,
sua positivação é de suma importância para que se concretize como direito público
subjetivo do acusado e obrigue o seu reconhecimento pelo julgador, uma vez que

 
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tanto doutrina quanto jurisprudência ainda resistem à aplicação prática do instituto,


sob o argumento de que haveria violação da segurança jurídica.

6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v. 1., 5 ed. São
Paulo: Saraiva, 2007.

CAMARGO, A. L. Chaves. Culpabilidade e reprovação penal. Sugestões Literárias, 1994.


sem local, sem edição.

CASTRO, Carla Rodrigues Araújo de. Co-culpabilidade. Revista do MP. Rio de Janeiro.
n.º 21, jan. - jun. 2005.

CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. Porto Alegre: Fabris, 1988. Trad. e
notas de Juarez Tavares e Luis Regis Prado.

GOMES, Luiz Flávio. Vitimologia e Justiça Penal Reparatória. In: LEAL, César Barros e
MOURA, Grégore Moreira de. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal. Niterói:
Impetus, 2006.

REALE JR., Miguel. Instituições de direito penal, v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

ROCHA, Fernando Antônio Nogueira Galvão da. Direito Penal - Parte Geral. Niterói,
RJ: Impetus, 2004.

RODRIGUES, Cristiano. Temas controvertidos de Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen


Júris, 2009.

 
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SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 3 ed. Curitiba: Fórum,
2004.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. São Paulo:


Saraiva, 1982.

VALLEJO Manuel Jaén. Cuadernos Luis Jiménez de Asúa, 5. Los princípios superiores del
Derecho Penal. Madrid, España : Dykinson, 1999.

ZAFFARONI, Eugénio Raul. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. I,
p. 246.

ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do


sistema penal. Tradução Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de
Janeiro: Revan, 1991.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, Jose Henrique. Manual de direito penal


brasileiro: parte geral. 5 ed. e 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004 e 2006.

 
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A NECESSIDADE DE ESPECIAL PROTEÇÃO DA DIGNIDADE SEXUAL DAS CRIANÇAS


E ADOLESCENTES À LUZ DO CONCEITO DE VULNERABILIDADE

Clarissa Bahia Barroso França∗

RESUMO

Até a recente entrada em vigor da Lei 12.015/09, a ausência no Código


Penal de um capítulo específico para a tutela do desenvolvimento sexual saudável das
crianças representava uma incongruência do ordenamento jurídico com as diretrizes
da doutrina da proteção integral. O texto do Código Penal vigente até então, embora
previsse a incidência de presunção de violência na constatação dos crimes sexuais em
que a vítima não fosse maior de 14 anos, concebia a liberdade sexual como único
valor jurídico protegido, em evidente desconsideração à especificidade da proteção
requerida pelas crianças e adolescentes.
Com o advento da aludida Lei, diversas foram as modificações feitas no
Código Penal relativamente aos crimes sexuais. Dentre elas, a criação um capítulo
exclusivo para tratar dos crimes cometidos contra as crianças menores de 14 anos,
incluídas no conceito de indivíduos vulneráveis, representou importante avanço no
que diz respeito à compatibilidade da legislação nacional às diretrizes internacionais
de proteção à criança.
Entretanto, especificamente no tocante à nova figura delitiva do estupro de
vulnerável, diversas discussões surgem acerca da definição de seus elementos
estruturais.
Nesse contexto, a partir de uma definição do conceito de vulnerabilidade, o
presente estudo examina alguns dos aspectos controvertidos deste tipo penal
relativos ao critério etário adotado pelo legislador. Primeiramente, analisa a
pertinência e a legitimidade da determinação de um tipo penal específico para a
proteção dos menores de 14 anos na esfera da sexualidade. Em segundo lugar,
dedica-se à apreciação da tese que defende a adequação do tipo penal do estupro de
vulnerável mediante a relativização da vulnerabilidade nos casos concretos, com base

                                                            

Graduanda do 9º período em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
 
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no grau de conscientização do menor de 14 anos relativamente à prática sexual,


concluindo pela sua inaplicabilidade.
Palavras-chave: Estupro, Vulnerabilidade, Consentimento; Rape, Vulnerability,
Consent.

SUMÁRIO

Introdução – 1. O conceito de vulnerabilidade e suas implicações jurídicas – 2. A


questão da relativização da figura da vulnerabilidade – 3. Referências Bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Até a recente entrada em vigor da Lei 12.015/09, não havia no Código


Penal tipo penal incriminador específico para a tutela das crianças contra o abuso
praticado mediante a realização de atos sexuais e libidinosos. Isso porque nos casos
de crimes sexuais em que a vítima não fosse maior de 14 anos, o texto original do
instrumento normativo penal se limitava à incidência de presunção de violência8. A
legislação assim configurada apresentava-se inadequada, suscitando diversas questões
controvertidas.
Primeiramente, como os delitos de estupro e atentado violento ao pudor
visavam proteger qualquer pessoa9 da ingerência de outrem em sua esfera sexual, sem
se preocupar com o estabelecimento de uma tutela específica dirigida às crianças,
concluía-se que o único valor jurídico protegido era a liberdade sexual10. Essa
desconsideração da especificidade da proteção requerida pelas crianças e adolescentes
                                                            
8 Na redação revogada do art. 224 do Código Penal: “Presume-se a violência, se a vítima: a) não é
maior de catorze anos, b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não
pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência”.
9 ESTEFAM, André. Crimes Sexuais: Comentários à Lei n. 12015/2009. São Paulo: Saraiva, 2009, p.57.
10 TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia: aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2007, p. 100.


 
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recebeu inúmeras críticas por parte da doutrina. Defendia-se “a necessidade de


separação entre os crimes contra a liberdade sexual e os crimes sexuais contra
menores”11, sob a justificativa de que, quando se trata da prática sexual com menores
de 14 anos, a ilicitude da conduta delitiva não decorreria da ausência de
consentimento da vítima, mas sim da necessidade de proteger essas pessoas “contra
o ingresso precoce na vida sexual, a fim de lhes assegurar crescimento equilibrado e
sadio sob esse aspecto”12. Corroborando esse posicionamento, BREIER afirmava que
“o bem jurídico, voltado apenas para a liberdade sexual, faz com que a legislação
omita as demais necessidades de tutela da vítima, principalmente nos casos das
crianças vítimas de atos de pedofilia”13.
Em segundo lugar, o recurso à técnica legislativa da presunção para se
verificar a ocorrência da violência, então circunstância elementar dos crimes de
estupro e atentado violento ao pudor, abriu espaço para um longo embate tanto na
doutrina quanto na jurisprudência14 sobre a qualidade da presunção vigente: “se
absoluta (não comportando prova em contrário) ou relativa (possibilitando prova em
contrário)”15. Conforme leciona DUPRET, mesmo diante da inexistência de
                                                            
11 FRANCO, Alberto Silva; SILVA, Tadeu. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 8ª Ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 1019, apud ESTEFAM, André. Crimes Sexuais: Comentários à
Lei n. 12015/2009. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 57.
12 ESTEFAM, André. Crimes Sexuais: Comentários à Lei n. 12015/2009. São Paulo: Saraiva, 2009. pp.

57-58.
13 TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia: aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2007, p. 103.


14 DUPRET, Cristiane. Manual de Direito Penal. Niterói: Editora Impetus, 2009, Adendo Lei nº

12.015/2009, p. 09.
15 NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de

agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009, p.34. Defensor do caráter absoluto daquela presunção,
MIRABETE leciona que “a primeira hipótese de violência presumida, indutiva ou ficta, é de ser a vítima
menor de 14 anos. Embora seja certo que alguns menores, com essa idade, já tenham maturidade
sexual, na verdade não ocorre o mesmo com o desenvolvimento psicológico. Assim, o fundamento do
dispositivo é a circunstância de que a menor de 14 anos não pode validamente consentir, pelo
desconhecimento dos atos sexuais e de suas conseqüências, o que torna seu consentimento
absolutamente nulo”, In: MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado, São Paulo: Atlas,
1999, p. 1314. Defendendo a relativização, por sua vez, afirmava TELES: “é evidente que essa norma é
 
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elementos textuais que indicassem que a configuração da violência presumida nos


crimes sexuais não dependesse da ausência de anterior experiência sexual da vítima16,
“vários julgados reconheciam a presunção de violência como relativa, incluindo
recente julgado do STJ (HC n° 88.664), cujo Relator foi o Ministro Celso Limongi,
embora o entendimento predominante no STF ainda fosse o da presunção
absoluta”17.
Na tentativa de solucionar tais controvérsias, diversas foram as
modificações feitas pela Lei 12.1015/09 no Código Penal relativamente aos crimes
sexuais. Dentre elas, possui significativa relevância a nova denominação do Título
IV, que deixou de tutelar a liberdade sexual e passou a proteger bem jurídico mais
amplo representado pela dignidade sexual18. Além disso, ao elegê-la como bem
juridicamente protegido em todos os crimes reunidos sob o Título IV do Código
Penal, inclusive naqueles cometidos contra as vítimas menores de 14 anos, o
legislador reconhece que a sexualidade19 é um importante aspecto que integra a
personalidade humana ao longo de toda a vida, desde o nascimento20.

                                                                                                                                                                   
inconstitucional. Viola o princípio da legalidade. Ninguém pode ser punido senão quando pratica o
fato descrito na norma incriminadora. O tipo descreve um acontecimento real, em abstrato. O fato
deve a ele se ajustar. O tipo de estupro contem a violência como elementar. Ela deve ser real. Se não
existiu não pode haver estupro. Nem a lei pode mandar que seja presumida, porque aí o sujeito será
punido pelo que não fez, pelo que não aconteceu, por algo apenas imaginado na norma”. In: TELES,
Ney Moura. Direito Penal – Parte Especial, vol. 3, 2ª Ed, São Paulo: Atlas:, 2006, pp. 7-8.
16 DUPRET, Cristiane. Manual de Direito Penal. Niterói: Editora Impetus, 2009, Adendo Lei nº

12.015/2009, p. 09.
17 DUPRET, Cristiane. Manual de Direito Penal. Niterói: Editora Impetus, 2009, Adendo Lei nº

12.015/2009, p. 21.
18 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal– Parte Especial. Niterói: Editora Impetus, 2009, Adendo Lei

nº 12.015/2009, p. 03.
19 A noção de sexualidade é complexa. Apenas a título ilustrativo, o conceito estabelecido pelas

orientações conjuntas da Organização Mundial da Saúde e a Organização Panamericana de Saúde,


“sexualidade refere-se a uma dimensão essencial do ser humano o qual inclui sexo, gênero, identidade
sexual e de gênero, orientação sexual, erotismo, afeto emocional/amor, e reprodução. Ela é vivenciada
ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, attitudes, valores, atividades, práticas, papéis,
relacionamentos. A sexualidade é o resultado da interação de fatores biológicos, psicológicos,
socioeconômicos, culturais, éticos e religiosos/espirituais. No original: “Sexuality refers to a core
 
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Ademais, foi criado um capítulo exclusivo para tratar dos crimes cometidos
contra as vítimas vulneráveis, entendidas como tal as crianças e adolescentes em
determinadas faixas etárias21. Nesse contexto, atendendo aos anseios da doutrina no
que concerne à necessidade de se dar tratamento jurídico diferenciado aos crimes
sexuais cometidos contra a criança, passou a figurar como delito autônomo o estupro
de vulnerável22, cujo sujeito passivo é o menor de 14 anos23. Tornou-se ilícito,
portanto, simples fato de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com
esses indivíduos, sem que para a configuração do delito seja exigível que a conduta
seja praticada mediante violência ou grave ameaça24.

                                                                                                                                                                   
dimension of being human which includes sex, gender, sexual and gender identity, sexual orientation,
eroticism, emotional attachment/ love, and reproduction. It is experienced or expressed in thoughts,
fantasies, desires, beliefs, attitudes, values, activities, practices, roles, relationships. Sexuality is a result
of the interplay of biological, psychological, socio-economic, cultural, ethical and religious/spiritual
factors”. In: ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Promotion of Sexual Health: Recommendations
for Action, Maio, 2000, p. 8.
20 GROFF, Alcione Maria. Sexualidade e Contexto Escolar. EDUCERE – Revista da Educação, vol. 2,

nº2, jul-dez, 2002, p. 192. Disponível em:


<http://revistas.unipar.br/educere/article/viewFile/849/746>. Acesso em: 29/04/10.
21 Conforme se verifica do exame dos tipos penais incluídos nesse capítulo, nos crimes de estupro de

vulnerável (art. 217-A), corrupção de menores (art. 218) e satisfação de lascívia mediante presença de
criança ou adolescente (art. 218-A) considera-se vulnerável o menor de 14 anos. Esse patamar etário é
mais rigoroso apenas quanto ao delito de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração
sexual de vulnerável (art. 218-B) no qual se entende serem vulneráveis os menores de 18 anos.
22 “Art. 217-A, verbis: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)

anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.


§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que,
por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência
§ 2o (VETADO)
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”
23 Apesar de reconhecer que o legislador equiparou, com acerto, a situação dos portadores de

deficiência mental e dos que não podem oferecer resistência à prática do ato à vulnerabilidade
decorrente da faixa etária, o presente estudo, por razões metodológicas, não abordará tais hipóteses.
24 DUPRET, Cristiane. Manual de Direito Penal. Niterói: Editora Impetus, 2009, Adendo Lei nº

12.015/2009, p. 02.
 
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Apesar de, a priori, parecer contraditório assegurar às crianças o exercício


digno de sua sexualidade e, ao mesmo tempo, estabelecer um parâmetro etário fixo a
partir do qual se criminaliza a prática de quaisquer atos sexuais envolvendo os
menores de 14 anos, veremos ao longo de presente artigo que não há qualquer
incoerência nessa opção legislativa. Isso porque a compreensão da tutela da
sexualidade da criança não pode se realizar sem levar em conta as implicações da
noção de vulnerabilidade que lhe é inerente.

1. O CONCEITO DE VULNERABILIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS

Apesar da existência um capítulo exclusivo para tratar dos crimes sexuais


cometidos contra as vítimas vulneráveis, a definição da vulnerabilidade penalmente
relevante é tratada apenas de forma exemplificativa no Código Penal, inexistindo
naquele instrumento uma conceituação objetiva do termo25. A despeito dessa lacuna,
uma compreensão suficientemente consistente sobre o significado e das fontes do
conceito de vulnerabilidade é essencial para uma correta análise da nova modalidade
de estupro criada pela Lei 12.015/09.
Segundo FERREIRA o vulnerável é caracterizado como aquele “que pode ser
vulnerado (ferido)”26 ou então “o lado fraco de um assunto ou de uma questão, ou
do ponto pelo qual alguém pode ser atacado”27. Embora tais significações
corretamente demonstrem a posição de risco que o vulnerável ocupa perante os
demais, percebe-se que são pouco elucidativas quando se pretende constatar, na
                                                            
25 Embora seja uma novidade na esfera penal, o conceito de vulnerabilidade não é inédito no

ordenamento jurídico brasileiro, estando presente também no artigo 4º, inciso I, da Lei nº 8.078, de 11
de setembro de 1990, que estabelece o Código de Defesa ao Consumidor.
26 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª Edição. Rio de

Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1995, p.1792.


27 Idem.

 
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prática, situações de desigualdade capazes de caracterizar determinado indivíduo ou


grupo como vulnerável.
De fato, conforme consta no dicionário, conceito de vulnerabilidade reflete
a posição de fraqueza28 ou desvantagem de um indivíduo ou grupo com relação aos
outros. Contudo, uma definição restrita como essa nos levaria a equiparar, de modo
equivocado, a vulnerabilidade com a existência de uma mera disparidade de forças,
quando, na verdade, reconhecer um indivíduo como vulnerável vai mais além do que
isso. Segundo a Federação Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente
Vermelho, a vulnerabilidade é constatada a partir da existência de determinadas
circunstâncias responsáveis pelo aumento significativo do risco de que haja situações
que ameacem a sobrevivência ou a capacidade de um indivíduo ou grupo de viver
com um mínimo de segurança socioeconômica e de dignidade humana.29
A partir dessa observação, percebe-se que a vulnerabilidade deve ser
entendida como um termo específico30, pois não é possível compreendê-la sem antes
identificar quais são os fatores capazes de determinar a situação de fraqueza de um
indivíduo, e, em seguida, estabelecer o nexo de causalidade entre essa fraqueza e as
limitações que este encontra no exercício de seus direitos. Em outras palavras, o real

                                                            
28 FORSTER, Jacques. Reversing the spiral of vulnerability. In: International Review of the Red Cross,
Genebra, International Committee of the Red Cross for the International Red Cross and Red
Crescent Movement, nº 301, 1994, p. 319.
29 Segundo a Federação Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, os indivíduos mais

vulneráveis são “aqueles com maior risco de situações que ameaçam a sua sobrevivência ou sua
capacidade de viver com um mínimo de segurança social e econômica e dignidade humana”. No
original: “those at greater risk from situations that threaten their survival or their capacity to live with a
minimum of social and economic security and human dignity”. In: Federação Internacional da Cruz
Vermelha e do Crescente Vermelho. Improving the situation of the most vulnerable -Strategic Work Plan for the
Nineties, revisado e adotado pela Assembléia Geral em sua IX Sessão, Birmingham, 25-28 de Outubro
de 1993, p.7, trad. livre.
30 GRAZ, Liesl. A question of vulnerability. In: Red Cross, Red Crescent, International Red Cross and

Red Crescent Movement, Genebra, nº03, 1997, Disponível em: <


http://www.redcross.int/EN/mag/magazine1997_3/2-7.html .>. Acesso em: 05/05/2010.
 
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significado do termo só pode ser alcançado levando-se em consideração as


circunstâncias de cada caso concreto31.
Os fatores capazes de tornar um indivíduo ou grupo vulnerável são tão
diversos32 que é possível afirmar que todos os seres humanos serão considerados
vulneráveis em alguma etapa de suas vidas33. Podem ser tanto físicos34 (v.g. idade e
sexo biológico), quanto psíquicos35 (v.g. desenvolvimento mental) ou
                                                            
31 Cf. no mesmo sentido: HOFFMASTER, Barry. What Does Vulnerability Mean. In: The Hastings Center
Report, Vol. 36, Nº 2 (Mar. - Abr., 2006), p. 38.
32 “Os fatores de (vantagem ou) desvantagem são muito numerosos. Alguns decorrem de condições

próprias do sujeito – a saúde, a idade ou o sexo, entre elas -; outras, de circunstâncias sociais – a
condição de indígena, estrangeiro, detido, por exemplo.” Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006. Série C No. 149. Voto fundamentado do
Juiz Sergio García Ramírez, p. 01, §5º, trad. livre.
33 GRAZ, Liesl. A question of vulnerability. In: Red Cross, Red Crescent, International Red Cross and

Red Crescent Movement, Genebra, nº03, 1997. Disponível em: <


http://www.redcross.int/EN/mag/magazine1997_3/2-7.html .>. Acesso em: 05/05/2010. No
mesmo sentido, interessante a afirmação de HOFFMASTER no sentido de que a vulnerabilidade é um
aspecto na natureza humana ainda mais marcante do que a própria racionalidade: “Os seres humanos
são racionais, mas os seres humanos também têm um corpo, e porque têm corpos, eles são
vulneráveis. De fato, a vulnerabilidade é uma característica ainda mais básica da nossa constituição
humana do que a racionalidade, porque, enquanto todos os seres humanos são vulneráveis, não todos
os seres humanos são racionais ou mesmo possuem o potencial para se tornarem racionais. Todos os
seres humanos nascem em vulnerabilidade e permanecem profundamente vulneráveis por algum
tempo, mas os seres humanos que nascem sem certas partes de seus cérebros ou com extrema
deficiência mental nunca irá se tornar racional”. No original: “In fact, vulnerability is an even more
basic feature of our human constitution than rationality because, while all human beings are
vulnerable, not all human beings are rational or even possess the potential to become rational. All
human beings are born into vulnerability and remain deeply vulnerable for some time, but human
beings who are born without certain portions of their brains or with extreme mental impairments
never will become rational”. In: Hoffmaster, Barry. What Does Vulnerability Mean. In: The Hastings Center
Report, Vol. 36, Nº 2 (Mar. - Abr., 2006), p. 43, trad. livre.
34 Sobre esse aspecto, interessante a observação de HOFFMASTER no sentido de que “quando a

vulnerabilidade é o resultado de causas naturais, há pouco, se houver alguma, diferença entre ser
‘vulnerável’ e estar ‘em risco’.” No original: “When vulnerability is the result of natural causes, there is
little, if any, difference between being ‘vulnerable’ and being ‘at risk’.” In: HOFFMASTER, Barry.
What Does Vulnerability Mean. In: The Hastings Center Report, Vol. 36, Nº 2 (Mar. - Abr., 2006), p. 41,
trad. livre.
35 Nesse sentido, manifestou-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos: “(e)m virtude de sua

condição psíquica e emocional, as pessoas portadoras de deficiência mental são particularmente


vulneráveis a qualquer tratamento de saúde e essa vulnerabilidade se vê aumentada quando essas
pessoas ingressam em instituições de tratamento psiquiátrico. Essa vulnerabilidade aumentada se
verifica em razão do desequilíbrio de poder existente entre os pacientes e o pessoal médico
 
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socioeconômicos36 (v.g. identidade de gênero, pobreza e acesso a educação), inclusive,


apresentando-se de forma conjugada na maioria das vezes37. Um exemplo que ilustra
como a vulnerabilidade deve ser avaliada em seu aspecto multidimensional é a
situação dos meninos de rua. Para esses indivíduos, aliadas ao fato de serem crianças
e adolescentes em tenra idade, as condições socioeconômicas nas quais vivem os
tornam especialmente incapazes de assegurar o respeito a seus direitos38.
A vulnerabilidade decorrente de fenômenos naturais, a exemplo da idade,
parece ser mais facilmente percebida do que a resultante de circunstâncias
socioeconômicas, já que aquela pode ser frequentemente associada à fragilidade do
corpo humano. A respeito, ponderou CANÇADO TRINDADE que “[d]e modo geral, é
ao início e ao final do tempo existencial que se experimenta maior vulnerabilidade,
                                                                                                                                                                   
responsável por seu tratamento e pelo alto grau de intimidade que caracteriza os tratamentos das
doenças psiquiátricas.”In: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil.
Sentença de 4 de julho de 2006. Série C No. 149, p. 52, §129.
36 Discorrendo acerca da pobreza como fonte de vulnerabilidade, FORSTER afirma que “o setor

empobrecido da população do país continua muito vulnerável, mesmo que possa ter apenas os meios
para sobreviver. Os pobres estão à mercê dos acasos da vida familiar (doenças, acidentes, morte de um
chefe de família, perda de emprego). Apenas ‘redes de segurança’, tais como os fornecidos pela
seguridade social e solidariedade de grupo ou família podem impedir que eles sejam atraídos para a
espiral de adversidade cumulativa. A relação entre pobreza relativa e vulnerabilidade, portanto,
depende não só do rendimento médio, mas também sobre a natureza do tecido social No original:
“The impoverished sector of a country's population remains very vulnerable, even though it may have
the bare means to survive. The poor are at the mercy of the hazards of family life (illness, accidents,
death of a breadwinner, loss of employment). Only ‘safety nets’ such as those provided by social
security and group or family solidarity can prevent their being drawn into the spiral of cumulative
adversity. The relationship between relative poverty and vulnerability therefore depends not only on
average income but also on the nature of the social fabric.” In: FORSTER, Jacques. Reversing the
spiral of vulnerability. International Review of the Red Cross, Genebra, International Committee of the Red
Cross for the International Red Cross and Red Crescent Movement, nº 301, 1994, p. 319, trad. livre.
37 Por serem em certa medida temas conexos, as ponderações de CANÇADO TRINDADE sobre as

causas do fenômeno da discriminação também se aplicam às causas da vulnerabilidade: “dificilmente a


discriminação ocorre com base em um único elemento (v.g. raça, origem nacional ou social, religião,
sexo, entre outros), sendo antes uma mescla complexa de vários deles (inclusive casos de
discriminação de jure)”. In: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Condición Jurídica y Derechos de los
Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Serie A No. 18,
voto concordante do juiz Antônio Augusto Cançado Trindade, p. 23, §62, trad. livre.
38 Nesse mesmo sentido, cf. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso de los “Niños de la Calle”

(Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Mérito. Sentença de 19 de novembro de 1999. Serie C No. 63.
 
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frente à proximidade do desconhecido (o nascimento e a primeira infância, a velhice


e a morte).”39
Devido à peculiar condição de indivíduo em desenvolvimento, as crianças
reúnem uma série de características que justificam a sua classificação como grupo
vulnerável, tais como:

(…) não terem acesso ao conhecimento pleno de seus direitos;


não terem atingido condições de defender seus direitos frente às
omissões e transgressões capazes de violá-los; não contarem com
meios próprios para arcar com a satisfação de suas necessidades
básicas; não poderem responder pelo cumprimento das leis e
deveres e obrigações inerentes à cidadania da mesma forma que o
adulto, por se tratar de seres em pleno desenvolvimento físico,
cognitivo, emocional e sociocultural40.

Porém, quando se trata do exercício da sexualidade, essa vulnerabilidade


intrínseca das crianças e adolescentes é agravada nos indivíduos que ainda não
atingiram a puberdade, ou há pouco alcançaram essa etapa de seu desenvolvimento.
Do ponto de vista biológico, ainda que, desde o nascimento, as crianças apresentem
manifestações sexuais a partir das quais têm condições de sentir sensações corporais
prazerosas41, verifica-se a impossibilidade de apresentarem resposta fisiológica adulta

                                                            
39 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Condición Jurídica y Derechos Humanos del Niño. Opinião
Consultiva OC-17/02 de 28 de agosto de 2002. Serie A No. 17, Voto fundamentado do Juiz Cançado
Trindade, p. 02, §5º, trad. livre. No original: De modo general, es al inicio y al final del tiempo
existencial que uno experimenta mayor vulnerabilidad, frente a la proximidad del desconocido (el
nacimiento y la primera infancia, la vejez y la muerte). Todo medio social debe, así, estar atento a la
condición humana.
40 COSTA, Antonio Carlos Gomes. Natureza e implantação do novo Direito da Criança e do

Adolescente. In: SILVA PEREIRA, Tânia da. (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei
8.069/90: estudos sociojurídicos. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, l992, p. 26. Apud SILVA PEREIRA,
Tânia da. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
p.28.
41 AGUIAR, Beatriz; SANTOS, Joseleno. Desenvolvimento da Sexualidade de Crianças e

Adolescentes. In: Castanha, N. (org.). Direitos sexuais são direitos humanos. Brasília: Comitê Nacional de
Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, p. 26.
 
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diante da estimulação sexual42, pois o desenvolvimento e a maturação completa de


seus órgãos sexuais ainda estão por vir. Por sua vez, sob o aspecto psicológico, é
nesse período que as bases para a organização de uma sexualidade saudável na vida
adulta estão sendo construídas43. Em consequência disso, as crianças se revelam
incapazes de compreender as atividades sexuais com a mesma conotação dada pelos
adultos, tornando-se, desse modo, inaptas a concordar com tais atos44.
A conjugação de tais fatores intrínsecos aos infantes é ainda agravada pela
existência de agravante externa, representada pela possibilidade de atuação de
indivíduos acometidos por uma espécie de transtorno de preferência sexual45,
denominada pedofilia, que se manifesta pela busca de relações sexuais com crianças.
Embora os critérios para o seu diagnóstico possam variar ligeiramente entre os
estudiosos, não há divergência quanto à constatação de que os indivíduos acometidos

                                                            
42 NEDEFF, Cristiano Carvalho. Contribuições da sexologia sobre a sexualidade do adolescente: uma
revisão bibliográfica. Psico Utp Online – Revista Eletrônica de Psicologia, nº03, Curitiba, out. 2003, p.04.
Disponível em: < http://www.utp.br/psico.utp.online/site3/contribsexologia.pdf>. Acesso em:
08/05/2010.
43 Tratando da construção da sexualidade da criança e de sua suscetibilidade a aceitar diversos tipos de

prática sexual sem oferecer resistência, assevera FREUD: “É instrutivo que a criança, sob a influência
da sedução, possa tornar-se perversa polimorfa e ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso
mostra que traz em sua disposição a aptidão para elas; por isso sua execução encontra pouca
resistência, já que, conforme a idade da criança, os diques anímicos contra os excessos sexuais — a
vergonha, o asco e a moral — ainda não foram erigidos ou estão em processo de construção. (…) Em
condições usuais, ela pode permanecer sexualmente normal, mas, guiada por um sedutor habilidoso,
terá gosto em todas as perversões e as reterá em sua atividade sexual.” FREUD, Sigmund. Obras
Psicológicas completas de Sigmund Freud: Volume VII: Um caso de Histeria, Três ensaios sobre a
sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Rio de Janeiro: IMAGO, 1972, p. 196.
44 AMAZARRAY, Mayte Raya; KOLLER, Silvia Helena. Alguns aspectos observados no

desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 11, n. 3,
1998 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
79721998000300014&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 05/05/2010. doi: 10.1590/S0102-
79721998000300014.
45 Na Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID -10, a pedofilia é incluída

entre os Transtornos de Personalidade e de Comportamento em Adultos e é definida como “uma


preferência sexual por crianças, meninos, meninas ou ambos, usualmente de idade pré-puberal ou no
início da puberdade”. Disponível em:<
http://apps.who.int/classifications/apps/icd/icd10online/?gf60.htm+f654>
 
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por essa patologia têm como alvo crianças em idade pré-puberal ou que acabaram de
ingressar na puberdade46.
Nesse sentido, afirmam KAPLAN & SADOCK que a pedofilia “envolve
impulso ou excitação sexual recorrente e intensa por crianças de treze anos de idade
ou menos, persistindo por, no mínimo, seis meses.”47 Corroborando essas
afirmações, em estudo sobre os aspectos psicológicos da pedofilia, TRINDADE
assevera que “os pedófilos preferem as crianças que são bem infantis, ou seja, que
parecem ser totalmente inocentes, não são muito conscientes do mundo que as cerca,
e que se mostram mais imaturas para a sua idade. (…) tendem a escolher as crianças
que mostram maior grau de vulnerabilidade”48.
A impossibilidade de se afirmar com absoluta certeza que a reunião desses
fatores internos e externos aumenta o risco de os menores pré-puberes sofrerem esse
tipo de violência reside unicamente no fato de que a determinação de qualquer risco
não pode estar dissociada do cálculo de probabilidades, e esse, por sua vez, só pode
ser realizado com base em dados matemáticos que se aproximem ao minimamente da
realidade. Ocorre que, a existência de elementos estatísticos seguros, infelizmente,
não se verifica no contexto das investigações sobre o abuso sexual, muito menos
quando se trata dos delitos cometidos contra crianças. Ao contrário, os estudos sobre
o tema são enfáticos ao declarar que o silêncio imposto às vítimas tanto pelos
abusadores quanto por seus próprios representantes legais é uma das características

                                                            
46 No Manual de diagnóstico e estatística das perturbações mentais, em seu texto revisado em 2000
(DSM-IV-TR) define-se que “o foco parafílico da Pedofilia envolve atividade sexual com uma criança
pré-púbere geralmente com 13 anos ou menos). O indivíduo com Pedofilia deve ter 16 anos ou mais e
ser pelo menos 5 anos mais velho que a criança.”
47 KAPLAN H. & SADOCK B. J. Compêndio de Psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990, p. 379,

apud TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia: aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2007, p. 19.
48 TRINDADE, Jorge; BREIER, Ricardo. Pedofilia: aspectos psicológicos e penais. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2007, pp. 24-25.


 
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mais marcantes dessa natureza de delitos49 e que acaba por ocultar grande parte de
suas ocorrências50. Ao tentar estabelecer as razões pelas quais a violência contra a
criança é oculta, não denunciada e, consequentemente “sub-registrada”, a ONU
asseverou que:

(…) muitas crianças têm medo de denunciar os incidentes de


violência dos quais são vítimas. Frequentemente, os pais, que
deveriam proteger os seus filhos, ficam em silêncio se a violência é
cometida por um cônjuge ou membro da família, um membro
mais influente da sociedade como um empregador, um policial ou
um dirigente de da comunidade. O medo está intimamente
relacionado com o estigma que muitas vezes envolve o fato de
denunciar a violência, particularmente em lugares onde “a honra
da família” é colocada acima da segurança e do bem-estar da
criança. Em especial, o estupro ou outras formas de violência
sexual pode levar ao ostracismo, mais violência ou morte51.

No Brasil, são escassas as pesquisas que se dedicam à sistematização dos


dados referentes ao abuso sexual. Além do reduzido alcance dos estudos em
decorrência da dificuldade de se chegar próximo ao número real de abusos
cometidos, as estatísticas existentes, a exemplo daquela levada a efeito pela
Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência

                                                            
49 Cf. a esse respeito, BRAUN, S. A violência sexual infantil na família. Do silencio à revelação do segredo.
Porto Alegre: Editora Age Ltda., 2002.
50 Nesse sentido, cf. MARCHIORI, Hilda. Victimas vulnerables: niños víctimas de abuso sexual.

ILANUD Al Día, San José, Instituto Latinoamericano de las Naciones Unidas Para la Prevención del
Delito y el tratamiento del Delincuente, Ano 14, Nº27, pp.281-291, 2006, p. 281.
51 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Rapport de l’expert indépendant chargé de l’étude

des Nations Unies sur la violence à l’encontre des enfants, A/61/299 (2006), p. 09. No original: “(…)
beaucoup d’enfants ont peur de signaler les incidents de violences dont ils sont victimes. Souvent, les
parents, qui devraient protéger leurs enfants, restent silencieux si l’acte de violence est commis par un
conjoint ou un membre de la famille, un membre plus influent de la société tel qu’un employeur, un
policier ou un dirigeant de la communauté. La peur est intimement liée à la stigmatisation qui entoure
souvent le fait de dénoncer la violence, notamment dans les milieux où « l’honneur de la famille » est
placé au-dessus de la sécurité et du bien-être de l’enfant. En particulier, le viol ou d’autres formes de
violence sexuelle peuvent entraîner l’exclusion, d’autres violences ou la mort.”
 
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(ABRAPIA)52, não se dedicam ao exame da incidência de cada crime sexual nas


diferentes faixas etárias das vítimas.
Diante da ausência de estimativas que retratem a realidade brasileira mais
detalhadamente, apenas a título de demonstração da probabilidade de incidência de
crimes sexuais por faixa etária, bem como ressalvadas as diferenças socioeconômicas,
culturais e jurídicas, interessante observar os resultados obtidos por SNYDER, em
pesquisas realizadas a partir dos dados coletados no National Incident-Based Reporting
System, pertencente ao FBI. Segundo ele, no período que abrange os anos de 2000 e
2001, dentre os menores de 18 anos vítimas de abuso sexual53, 47% foram crianças
com menos de 12 anos54, sendo que a idade modal dentre os jovens que sofreram
esse tipo de violência foi de 14 anos para vítimas do sexo feminino e 05 anos para as
do sexo masculino55. Em análise anterior, porém alcançando período mais longo, de
1991 a 1996, o mesmo autor concluiu que

Um por cento das vítimas destes crimes tinha 54 anos de idade ou


mais. Sete por cento das vítimas tinham mais de 34 anos (…).
Outros 12% tinham idades de 25 a 34 anos, e 14% estavam entre
as idades de 18 e 24. O restante, mais de dois terços (67%) de
todas as vítimas de abuso sexual relatado às delegacias, eram
jovens (menores de 18 anos à época do crime). Mais da metade de
todas as vítimas jovens tinham idade inferior a 12 anos. Ou seja,
33% de todas as vítimas de abuso sexual relatado às delegacias
estavam possuíam de 12 a 17 anos e 34% eram menores de em 12
                                                            
52 Em relatório intitulado “Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes no Brasil”, a

ABRAPIA, levando em conta o período de 01 de janeiro de 2000 a 31 de janeiro de 2003, fornece


informações como “denúncias de abuso sexual por região”, “colocação dos estados por número de
denúncias de abuso sexual”, “os primeiros municípios em número de denúncias de abuso sexual”,
“perfil das vítimas de abuso sexual (sexo)”, “perfil dos abusadores sexuais (sexo e faixa etária)”,
“vínculo do agressor com a vítima de abuso sexual (com vínculo e sem vínculo; intrafamiliar e
extrafamiliar)”. Disponível em < http://www.observatoriodainfancia.com.br/IMG/pdf/doc-92.pdf>
53 SNYDER, Howard N.; SICKMUND, Melissa. Juvenile Offenders and Victims: 2006 National Report.

Washington, DC: U.S. Department of Justice, Office of Justice Programs, Office of Juvenile Justice
and Delinquency Prevention, 2006.
54 SNYDER, Howard N.; SICKMUND, Melissa. Op. cit. p. 32
55 SNYDER, Howard N.; SICKMUND, Melissa. Op. cit. p.. 31

 
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anos de idade. O mais preocupante é que uma em cada sete


vítimas de agressão sexual (ou 14% do total das vítimas) relatadas
às autoridades era menor de 6 anos56.

No mesmo sentido de tais estatísticas, diversos estudiosos de vitimologia,


psicólogos e psiquiatras afirmam a grande incidência de vítimas em idade pré-puberal
nos casos de abuso sexual infantil. MARCHIORI, por exemplo, observa “meninas de 3,
5, 6, 10 anos vítimas de delitos, com uma média de idade, segundo alguns
vitimólogos de 7 a 9 anos”57. No mesmo sentido, ao tratar especificamente dos
abusos sexuais ocorridos no ambiente familiar, GORGAL assevera que “é muito
grande o número de meninas, meninos e adolescentes vítimas desta forma de
violência” 58, e completa dizendo que “a idade de maior incidência é por volta da
puberdade (de 9 a 12 anos de idade), mas as vemos em qualquer idade, inclusive em
bebês” 59.
Diante de tais constatações, ainda que não se possa falar na existência de
um maior risco objetivamente calculado, a conclusão que se chega é de que a reunião
                                                            
56 SNYDER, Howard N. Young Children as Reported to Law Enforcement: Victim, Incident, and Offender.

Washington, DC: National Center for Juvenile Justice, Jul. 2000, p. 02. trad. livre. No original: “One
percent of victims of these crimes was age 54 or older. Seven percent of victims were over age 34
(table 1). Another 12% were ages 25 through 34, and 14% were between ages 18 and 24. The
remainder, over two-thirds (67%) of all victims of sexual assault reported to law enforcement
agencies, were juveniles (under the age of 18 at the time of the crime). More than half of all juvenile
victims were under age 12. That is, 33% of all victims of sexual assault reported to law enforcement
were ages 12 through 17 and 34% were under age 12. Most disturbing is that one of every seven
victims of sexual assault (or 14% of all victims) reported to law enforcement agencies were under age
6”
57 MARCHIORI, Hilda. Victimas vulnerables: niños víctimas de abuso sexual. ILANUD Al Día, San

José, Instituto Latinoamericano de las Naciones Unidas Para la Prevención del Delito y el tratamiento
del Delincuente, Ano 14, Nº27, pp.281-291, 2006, p. 282.
58 No original: “Es muy grande el número, de niñas, niños y adolescentes que son víctimas de esta

forma de violencia. La edad de mayor incidencia es alrededor de la pubertad (de 9 a 12 años de edad)
pero la vemos a cualquier edad, inclusive en bebes”. GORGAL, Alicia Casas. ¿De Qué Hablamos
Cuando Hablamos De Violencia Sexual Hacia Niños, Niñas Y Adolescentes? In: CESARE, Luis A.
(Org). La protección de los derechos de los niños, niñas y adolescentes frente a la violencia sexual. Instituto
Interamericano da Criança, Out. 2003, p. 67. Disponível em:
<http://www.iin.oea.org/La_proteccion_de_los_derechos.pdf>. Acesso em 09/04/2010.
59 Idem.

 
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de todas essas circunstâncias faz com que as crianças sejam alvos mais fáceis de
abuso sexual, determinando-se, assim, a necessidade de serem consideradas
especialmente vulneráveis no que diz respeito à sexualidade.
Uma vez definidos os contornos do conceito de vulnerabilidade e
explicitada sua aplicabilidade no caso das crianças em idade pré-púbere, nos resta
determinar quais são as implicações jurídicas decorrentes da atribuição dessa
característica a uma determinada parcela da população.
De modo geral, verificada a vulnerabilidade de uma parcela da população,
surge para o Estado a obrigação de adotar políticas de compensação capazes de
reduzir as desigualdades de fato em favor dos setores menos favorecidos60. Sobre o
tema, declarou GARCÍA RAMÍREZ que:

É igualmente certo(…) que incumbe ao Estado, quando a


desigualdade de fato coloca o titular de direitos em situação difícil
– que pudesse levar ao absoluto inexercício dos direitos e das
liberdades –, proporcionar os meios de correção, igualação,
compensação ou equilíbrio que possibilitem ao sujeito o acesso a
esses direitos, mesmo em condições relativas, condicionadas e
imperfeitas, que a tutela do Estado procura aliviar. Esses meios
constituem outras tantas “proteções” razoáveis, pertinentes,
eficientes, que se destinam a estender as oportunidades e melhorar
o destino, justamente para alcançar a expansão natural da pessoa,
não para reduzi-la ou evitá-la sob o pretexto de assistência e
proteção (…). É obrigação do Estado, manifestada em tratados e
convenções de natureza diversa, enfrentar essas desigualdades,
eliminar a fonte das discriminações e acompanhar com eficácia –
do “berço ao túmulo”, se for necessário, como rezava o lema do

                                                            
60 Sobre a diferenciação de tratamento discriminatório e diferenciado, cf. MACHADO, Isabel Penido

de Campos. O princípio da igualdade no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: do tratamento


diferenciado ao tratamento discriminatório. In OLIVEIRA, Márcio Luis. Sistema Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos: Interfaces com o Direito Constitucional Contemporâneo. Belo Horizonte: Editora
Del Rey, 2007, pp. 123 - 144.
 
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Estado de bem-estar – o acidentado curso da existência,


procurando prevenir, moderar e remediar suas contingências.61

Da análise do novo tipo penal de estupro contra vulnerável percebe-se que


o legislador brasileiro procurou transportar esse entendimento para a esfera criminal.
Atribuiu-se a qualidade de vulnerável aos menores de 14 anos como forma de
reconhecer que eles são indivíduos especialmente suscetíveis de serem vítimas de
condutas delitivas lesivas à sua dignidade sexual62. É pela necessidade de o Estado
atuar na prevenção de tais ocorrências e proporcionar a especial proteção a que
fazem jus os indivíduos notadamente vulneráveis, portanto, que se legitima o
estabelecimento de normas penais específicas para o resguardo de seus direitos,
inclusive, com a cominação de penas mais elevadas do que aquelas previstas para a
repressão dos demais crimes63.

2. A QUESTÃO DA RELATIVIZAÇÃO DA FIGURA DA VULNERABILIDADE

A constatação da violência nos casos de estupro cometido contra o adulto é


frequentemente verificável pelo uso da força física por parte do agressor, ou mesmo
pelo emprego de grave ameaça, geralmente relacionada à integridade física da vítima.
Diversamente, nos abusos sexuais cometidos contra a criança, em virtude de sua
incapacidade de compreender com a mesma conotação de sexualidade a prática à
qual está sendo submetida, as formas de coação tendem a ser mais sutis e de mais
difícil comprovação, podendo, inclusive, ser exercidas por meios não violentos.
                                                            
61 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de
2006. Série C No. 149. Voto fundamentado do Juiz Sergio García Ramírez, p. 01, §§4º e 5º, grifos
nossos.
62 HAREL, Alon; PARCHOMOVSKY, Gideon. On Hate and Equality. The Yale Law Journal, New

Haven: The Yale Law Journal Company, Vol. 109, No. 3, pp. 507-539, Dez., 1999. pp. 509-510.
63 Idem.

 
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Conforme observa GORGAL, “a coação está presente através de diferentes maneiras,


seja por pressão, seja por ameaças, chantagens, prêmios e castigos, sedução, engano,
ou mais raramente, por meio da força física”64.
Em razão de o ato sexual praticado com a criança e com os indivíduos que
possuem qualquer espécie de deficiência de consentimento poder se realizar não
apenas mediante coação física, mas também psicológica, leciona NUCCI que sob a
ótica da legislação anterior à vigência da Lei 12.015/09, aplicava-se a fórmula da
presunção de violência contida no artigo 224 e que preceituava em sua primeira
alínea a ilicitude dos crimes sexuais cometidos contra menores de 14 anos65.
Prossegue o mencionado autor relembrando que “a tipificação do crime de estupro
ou atentado violento ao pudor era feita por extensão: art. 213 combinado com o art.
224 ou artigo 214 combinado com o art. 224. Com isso, considerava-se violenta a
relação sexual do agente com pessoa menor de 14 anos ou contando com outra
espécie de deficiência de consentimento.”66
Conforme já dito, a divergência jurisprudencial e doutrinária instaurada em
torno da discussão sobre o caráter absoluto ou relativo da presunção de violência67
foi tamanha que, numa tentativa de colocar fim à dificuldade de caracterização do

                                                            
64 No original: “La coerción está presente a través de diferentes maneras, ya sea por presión,

amenazas, chantaje, premios y castigos, seducción, engaño, o más raramente a través de la fuerza
física”. GORGAL, Alicia Casas. ¿De Qué Hablamos Cuando Hablamos De Violencia Sexual Hacia
Niños, Niñas Y Adolescentes? In: CESARE, Luis A. (Org). La protección de los derechos de los niños, niñas y
adolescentes frente a la violencia sexual. Instituto Interamericano da Criança, Out. 2003, p. 54. Disponível
em: <http://www.iin.oea.org/La_proteccion_de_los_derechos.pdf>. Acesso em 09/04/2010.
65 NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de

agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009. p. 34.


66 Idem.
67 NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de

agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009. pp. 34-35.


 
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estupro por ela causada, o legislador buscou resolvê-la substituindo a técnica da


presunção de violência68 pela utilização do conceito de vulnerabilidade.
A conduta que antes era considerada criminosa por presunção legal,
suscitando discussões acerca de sua compatibilidade com a proibição da imputação
por responsabilidade penal objetiva no direito penal brasileiro69, passa a ser ilícita sem
que haja necessidade de se comprovar o elemento da violência quando se verifica a
vulnerabilidade da vítima. O avanço representado por essa modificação é evidente,
pois a reprovabilidade da conduta do agente que pratica o ato sexual com menores de
certa idade independe da utilização de meio violento, já que o consentimento da
vítima é debilitado pela impossibilidade de compreender os riscos envolvidos na
atividade sexual.
Apesar de não restarem dúvidas acerca da intenção do legislador de eliminar
a possibilidade de flexibilização dos elementos estruturais do estupro cometido
contra os menores de 14 anos, verifica-se na doutrina o entendimento de que com a
supressão da técnica da presunção, não logrou atingir esse objetivo. O que teria
ocorrido, ao contrário, seria apenas a alteração do objeto da discussão travada
anteriormente, da técnica jurídica da presunção para o conceito de vulnerabilidade70.
Nesse sentido, manifesta-se NUCCI:

O nascimento de tipo penal inédito não tornará sepulta a


discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior
presunção de violência. Agora, subsumida na figura da
vulnerabilidade, pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou
relativa. Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente

                                                            
68 ESTEFAM, André. Crimes Sexuais: Comentários à Lei n. 12015/2009. São Paulo: Saraiva, 2009. p.
58.
69 DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 6. ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.

481.
70 BARROS, Francisco Dirceu. Vulnerabilidade nos Novos Delitos Sexuais. Jornal Carta Forense,

02/03/2010. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=5314>. Acesso em:


10/05/2010.
 
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vulnerável a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser


completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual
comprovada? Ou será possível considerar relativa a
vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de
conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição
que nos parece acertada.71

De fato, a configuração da nova norma penal incriminadora não foi capaz


de pacificar a discussão acerca da necessidade de se relativizar a caracterização do
estupro. Adversamente, pode-se inclusive afirmar que a polêmica foi até mesmo
reforçada, já que, o leque de condutas ilícitas não está restrito apenas às conjunções
carnais, mas abrange qualquer ato libidinoso. Desse modo, considerada unicamente a
adequação das condutas dos agentes ao tipo penal descrito, o abuso sexual
continuado da filha por seu pai, a sodomização violenta de um menino de nove anos
de idade, a relação sexual consensual, ou mesmo um mero beijo, entre uma menina
de treze e seu namorado de dezesseis anos de idade, todas essas condutas seriam
classificadas juridicamente como estupro, e, portanto, seriam os imputáveis punidos
com a aplicação da severa pena privativa de liberdade de 08 a 12 anos de reclusão,
recebendo os inimputáveis a medida socioeducativa correspondente.
Se, por um lado, as variadas nuances que distinguem as condutas capazes de
serem subsumidas ao tipo penal em questão nos compelem a concluir pela a
necessidade de adequação social da norma a partir da análise do caso concreto, por
outro ousamos divergir do entendimento esposado pela doutrina majoritária72 de que
tal ajustamento se opere mediante a flexibilização do conceito de vulnerabilidade. A
proposta dos defensores dessa tese no sentido de que o grau de conscientização da
criança ou adolescente para a prática sexual deve ser o parâmetro para a relativização

                                                            
71 NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de
agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009. p. 37.
72 A título exemplificativo, cf. NUCCI, op. cit., p. 37 e ESTEFAM, op. cit., p. 59.

 
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da vulnerabilidade parece-nos inadequada, na medida em que ignora as origens da


vulnerabilidade desses indivíduos.
Primeiramente, constata-se que esse raciocínio desconsidera que a
vulnerabilidade atribuída às crianças e adolescentes menores de 14 anos pelo
legislador não decorre apenas de fatores estritamente sexuais, mas, conforme se
demonstrou no tópico anterior, é o resultado de uma série de fatores biológicos e,
sobretudo, psicológicos, que convergem na impossibilidade de compreensão das
atividades sexuais e seus efeitos da mesma forma como os adultos o fazem.
Ademais, a nosso ver, compreender a vulnerabilidade como a simples
ausência de experiência sexual comprovada seria confundi-la, de forma equivocada,
com a inocência, a qual, por tratar-se de um valor puramente moral, não deve
orientar a aplicação de uma norma jurídica. Além do mais, a utilização da inocência
como indicador da existência de lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo do estupro
de vulnerável, ao invés de promover a proteção das crianças, acaba por provocar a
estigmatização de grande parte dos menores, já que a imagem de absoluta pureza dos
infantes não passa de um ideal romântico que jamais será constatado na prática73. Ao
afastar a reprovabilidade e, por conseguinte, eliminar a tutela penal desses indivíduos,
sem levar em consideração que o conhecimento sobre o sexo ou a existência de
anterior experiência sexual não é suficiente para equiparar o comportamento infantil
ao do adulto, o Direito acaba legitimando a ocorrência de tais abusos. Sobre esse
aspecto, interessantes as conclusões de KITZINGER, a partir da análise dos trabalhos
de SUMMIT, KRYSO, SGROI e outros:

A noção de inocência e, por conseguinte, o potencial para a perda


da inocência também pode facilitar a vitimização: a criança
                                                            
73 KITZINGER, Jenny. Defending Innocence: Ideologies of Childhood, Feminist Review, Basingstoke:
Palgrave Macmillan Journals, No. 28, Family Secrets: Child Sexual Abuse (Primavera, 1988), pp. 77-87,
p. 81.
 
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sexualmente vitimizada pode ser vista nem como criança nem


como adulto, mas sim como parte de uma “mercadoria
danificada” na qual faltam tanto os atributos da infância quanto
aqueles do adulto (…) (Sgroi, 1982: 114).
Uma criança que é conhecida por ser vítima de abuso sexual está
frequentemente sujeita à exploração futura: “uma bizarra
consequência do processo de rotulagem é a fascinação que a
menina apresenta aos outros... Publicamente deflorada como ela é,
ela é considerada como não merecedora de respeito ou de
proteção” (Summit e Kryso, 1978: 244). A inocência, então, é um
conceito problemático, porque é ele próprio uma mercadoria
sexual e porque uma criança que é algo menos do que “um anjo”
pode ser vista como “jogo justo”, tanto pelos tribunais e por
outros homens que se valerão de uma criança que sabem que tem
sido abusada (Ward, 1984: 159; Sarnacki Porter et al., 1982: 114).74

Ressalte-se que, ainda na vigência da presunção de violência, a


jurisprudência já se posicionava nesse sentido, sendo bastante elucidativos os
apontamentos do Ministro Félix Fischer:

Tudo isto, de fato, calcado na innocentia consilii considerada, é bem


de ver, como impossibilidade de compreensão em termos de
madureza, de capacidade psico-ética, de consideração quanto aos
efeitos produzidos pelos fatos sexuais. Não se confunde, pois, a
falta de innocentia consilii com a experiência, até mesmo reiterada, da
prática mecânica de atividade sexual. Caso contrário, ad
argumentandum, toda e qualquer prostituta infantil, v.g., de 9 ou 10
anos de idade teria que ser considerada como madura e o seu

                                                            
74 No original: “The notion of 'innocence' and, therefore, the potential for the loss of innocence can
also facilitate further victimization: The sexually victimized child may be viewed neither as a child nor
as an adult but rather as a piece of'damaged goods' lacking the attributes of both childhood and adult
(…)(Sgroi, 1982: 114). A child who is known to be a victim of sexual abuse is often subject to further
exploitation: 'a bizarre spin-off of the labelling process is the fascination the girl presents to others....
Publicly deflowered as she is, she is regarded as no longer deserving respect or protection' (Summit
and Kryso, 1978: 244). Innocence, then, is a problematic concept because it is itself a sexual
commodity and because a child who is anything less than 'an angel' may be seen as 'fair game', both by
the courts and by other men who will avail themselves of a child they know has previously been
abused (Ward, 1984: 159; Sarnacki Porter et al., 1982: 114)”. KITZINGER, op. cit., p. 81.
 
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consentimento considerado válido. O que, data venia, é algo lógica


e axiologicamente ininteligível75.

Por fim, considerar a vulnerabilidade unicamente conforme o


comportamento e o grau de conscientização da criança relativamente à prática sexual
revela-se inadequado, já que, dessa forma, focaliza-se a atenção sobre a adequação da
conduta da vítima, em detrimento da análise da reprovabilidade da conduta do réu e
de sua culpabilidade.
Mais apropriado seria, portanto, promover a adequação social da norma
penal permitindo-se a apreciação da existência ou não da lesão à dignidade sexual do
menor de 14 anos, buscando-se, no comportamento do agente, elementos capazes de
demonstrar ou afastar o desvalor de sua ação76. Desse modo, torna-se relevante
avaliar, por exemplo, se o ato sexual deu-se mediante o uso de violência ou
manipulação psicológica, se a diferença de idade entre vítima e pretenso agressor
destoa do que se julga um relacionamento tolerável no meio em que esses vivem, se o
agente era membro da família da vítima e nela poderia exercer alguma forma de
controle.

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Beatriz; SANTOS, Joseleno. Desenvolvimento da Sexualidade de Crianças


e Adolescentes. In: Castanha, N. (org.). Direitos sexuais são direitos humanos. Brasília:
Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e
Adolescentes.

                                                            
75 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. REsp 252827/GO , Rel.: Min. Ministro
FELIX FISCHER , ac. de 08/08/2000, DJ de 04/09/2000 p. 183, LEXSTJ vol. 137 p. 390.
76 GUERRINA, Britton. Mitigating Punishment for Statutory Rape.The University of Chicago Law Review,

Vol. 65, No. 4 (Autumn, 1998), pp. 1251-1277. p. 1274.


 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

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AS GARANTIAS PROCESSUAIS DO RÉU NO PROCESSO PENAL DO


ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Rafael Arouca Rosa1

RESUMO

O presente estudo tem por objetivo fazer uma análise das garantias processuais do
réu no processo penal do Estado Democrático de Direito, bem como a efetividade
destes direitos no Brasil. Sabemos que, no nosso direito, o devido processo penal é o
procedimento pelo qual o Estado aplica a pena de forma legal. Tal procedimento
necessita, para ser legítimo, atender aos princípios e garantias processuais previstos
na lei vigente, principalmente a Constituição Federal. O que vemos, porém, embora
estejam a igualdade e a imparcialidade entre os mandamentos de maior expressão, é o
réu ocupando a posição de parte mais fraca, visto que precisa “lutar” contra todo o
aparato punitivo estatal, contando, muitas vezes, apenas com um defensor dativo
com o qual não articulou uma boa defesa. Faz-se necessário, portanto, rígida
observância de princípios como in dubio pro reo, legalidade (CF, art. 5º, II), vedação ao
tratamento desumano ou degradante (CF, art. 5º, III), juiz natural (CF, art. 5º,
XXXVII ), honra e intimidade (CF, art. 5º, X) , entre outros, sem a qual o processo
padecerá de vícios capazes de causar sua ilegitimidade. Vale destacar, também a
moderna concepção do direito penal mínimo, segundo a qual o direito penal deve
buscar o máximo bem-estar possível dos não desviantes e o mínimo mal-estar
necessário dos desviantes. Enfim, num Estado que consagra como objetivos
fundamentais “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (Art. 3º, I) e livre (IV),
não se deve conceber as flagrantes violações aos direitos e garantias fundamentais do
réu que temos visto nos noticiários.

Palavras-chave: garantias processuais, processo penal, garantismo.

                                                            
1 Graduando do 3º ano de Direito da Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Campus

Franca.
Membro do Grupo de Pesquisas Avançadas em Direito Processual Civil Brasileiro e Comparado da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Franca.
E-mail: rafael.aroucarosa@hotmail.com .
Lattes: http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalheest.jsp?est=9419860194836307.
 
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Keywords: procedure guarantees, penal process, garantism.


1. Introdução

O anteprojeto do novo Código de Processo Penal, já transformado em


projeto de lei, prevê, em seu artigo 1º:

Art. 1º: o processo penal reger-se-á, em todo o território nacional,


por este Código, bem como pelos princípios fundamentais
constitucionais e pelas normas previstas em tratados e convenções
internacionais dos quais seja parte a república federativa do Brasil.

O artigo 2º, por sua vez, determina:

Art. 2º: As garantias processuais previstas neste Código serão


observadas em relação a todas as formas de intervenção penal,
incluindo as medidas de segurança, com estrita obediência ao
devido processo legal constitucional.

A análise de tais dispositivos, quando feita comparativamente aos atuais


artigos 1º e 2º e à luz da exposição de motivos do anteprojeto do novo Código, nos
possibilita notar a preocupação do legislador com os direitos e garantias
fundamentais, elencados em nossa Constitução Federal (CF), e que não encontram
no atual código, a valoração que lhes foi dada pela “garantista” Carta de 1988.
A necessidade de tal mudança de paradigma vem num momento crucial em
que a cidadania, prevista no artigo 1º, II da Constituição, passa a tomar maior
expressão em nossa tão jovem república, que vem se destacando no cenário mundial
como potência econômica em ascensão.
Não obstante a histórica má distribuição de renda, presente em nosso país
desde os tempos da colonização, temos que a classe menos favorecida encontra,
também, obstáculos no que tange ao efetivo acesso à justiça, de modo que se torna
nítido o abismo social que há entre os responsáveis por “acusar e julgar” (geralmente

 
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oriundos das classes mais abastadas) e aquele que se senta no banco dos réus (na
maioria dos casos advindo das classes desfavorecidas economicamente).
Tais obstáculos não podem ser admitidos na atual fase da instrumentalidade
em que se encontra o processo, que passa a ser, além de meio para compor a lide,
instrumento de participação política (compreendida esta na cidadania), e de busca
para a consecução dos objetivos do Estado, elencados no artigo 3º da Constituição,
entre os quais a erradicação da pobreza e a construção de uma sociedade livre e
igualitária.
Paralelamente a isto, os nossos já altíssimos índices de criminalidade
continuam a subir, chegando, em alguns casos, a afrontar a soberania e as bases de
nosso sistema democrático. Isto é o que ocorre nos interiores de algumas das grandes
favelas brasileiras, nas quais traficantes de drogas e milícias ditam as regras,
chegando, até mesmo, a impedir a entrada da polícia.
Como forma de frear a expansão desordenada da criminalidade, surgem
muitas vezes, sugestões que não encontram amparo em nosso sistema constitucional,
nem nas modernas doutrinas de direitos humanos, tais como penas de morte, prisão
perpétua e afins, as quais, como se demonstra a cada dia, falham no desempenho da
atividade de prevenção dos delitos.
A tais proposições, se opõem, também, a teoria do direito penal mínimo,
que defende a intervenção do Estado somente no que for estritamente necessário, de
forma contrária à banalização do direito penal e à agravação das penas como formas
de conter a expansão da criminalidade.
O presente estudo tem por objetivo fazer uma análise de alguns dos direitos
processuais do réu em nosso sistema jurídico, análise esta que tem sua importância
no fato de o acusado ocupar a posição de parte mais frágil da relação processual
penal, e, consequentemente, ter suas garantias constitucionais desrespeitadas com
freqüência consideravelmente maior.
 
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2. Princípios

2.1 O devido processo legal

Tido por alguns como uma espécie de supraprincípio2, ou como “princípio


fundante”3, no qual se sustentam os outros princípios processuais, o princípio do
devido processo legal, tem sua origem na Law of the land de João sem Terra, tendo,
posteriormente, sido melhor delimitado na Constituição americana, que estabeleceu a
cláusula do due processo of Law, hoje tão difundida nas mais variadas legislações.
Em nosso sistema, encontra assento no artigo 5º, LIV da Constituição
brasileira, que determina: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal”. É dizer, ninguém deverá sofrer tais cerceamentos em sua
autodeterminação sem que, anteriormente, se desenvolva um procedimento
previamente fixado em lei.
Há quem divida o due process em dois sentidos: o material e o formal. 4 O
devido processo legal em sentido material consiste na garantia de que os direitos
fundamentais da pessoa serão efetivamente respeitados pelo Estado no processo,
enquanto o sentido formal consiste na obediência às formas previstas, sobretudo na
legislação processual, como forma de se assegurar, entre outros fins, a publicidade e a
segurança jurídica.

                                                            
2 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios de processo civil na Constituição Federal. 8. ed. rev.,

ampl., e atual. São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 60.
3 MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p.

158.
4 MACHADO, op. cit., p. 158.

 
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A observância de tal princípio é conditio sine qua non para a aplicação de penas
em nossa ordem constitucional, seja o processo de natureza civil, militar, administrativa,
penal, etc.
2.2 O princípio da justa causa

A justa causa consiste, segundo alguns, num “mínimo de base”5 ou mínimo


de prova que é necessária para que se estabeleça a persecução penal. O princípio
encontra assento no Código de Processo Penal, artigo 648, I, segundo o qual a
persecução penal será considerada ilegal quando não houver justa causa.
Os elementos mais apontados como formadores da justa causa são6: a) a
tipicidade; b) a materialidade do fato; c) a punibilidade do agente; e d) os indícios de
autoria. Ou seja, para que se possa estabelecer a persecução penal, é necessário que
os quatro requisitos sejam atendidos.
A doutrina diverge quanto à sua natureza. Para alguns, trata-se de condição
da ação, enquanto outros a consideram questão atrelada ao mérito da causa.
Há Dois pontos relevantes a destacar sobre a aplicabilidade deste princípio.
São: a) buscar que se evite a imposição a inocentes do peso do processo penal,
altamente desagradável em si mesmo, conforme o mestre Carnelutti7 já dizia; b)
Evitar gastos desnecessários por parte do Estado (economia processual).

2.3 in dubio pro reo – o princípio liberal de inocência

                                                            
5 Idem, op. cit., p. 168.
6 Idem, op. cit. p. 167.
7 CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio Cardinalli. [s.l.]:

CONAN, 1995.
 
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A Constituição Federal, em seu artigo 5º, LVII, determina: “ninguém será


considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Deste dispositivo, podemos extrair, conforme Antônio Alberto Machado, que “o réu,
no curso do processo, deve merecer o mesmo tratamento que se dispensa a qualquer
cidadão livre”8.
Embora um tanto quanto utópica, a ideia de Machado não perde sua
importância, dado que numa ordem jurídica pautada em princípios garantistas, o
sistema jurisdicional não deveria dar de ombros para o massacre por que passam os
acusados, realizado por uma parte inescrupulosa da mídia e da sociedade.
O que temos visto, porém, é uma freqüente desconsideração deste
princípio. Tal atitude, embora até certo ponto admissível no que toca à população em
geral, não pode ser aceita entre os operadores do direito, os quais têm o dever de agir
da forma mais sensata possível, a fim de que se evite dar qualquer tratamento
indevido aos acusados.
O princípio da presunção de inocência, conquista das revoluções liberais do
século XVIII, em época de opressão e poder exacerbado do Estado, tem sido
abalado por perigosas intenções de se “fazer justiça” ou dar celeridade à mesma, os
quais devem, a nosso ver, embora essenciais, estar submetidos às garantias
fundamentais.
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem tomado uma postura defensiva do
princípio ora estudado. No HC 98.8789, cujo relator foi o ministro Celso de Mello, o
STF, por unanimidade, acolheu o pedido nos termos do voto do eminente ministro.
Trata-se de processo em que o acusado esteve preso cautelarmente por mais de dois
anos e sete meses, o que, segundo o próprio autor do voto, configura séria ofensa ao
princípio da razoabilidade. O ministro afirmou ainda que o caso demonstra um
                                                            
8 MACHADO, op. cit., p. 166.
9 BRASIL, STF, Plenário, HC 100.574/MG, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 218, nov. 2009.
 
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desprezo do Estado pelo direito do cidadão à liberdade, além de ferir a garantia da


duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII).
Enfim, não se pode aceitar que o Estado avance sobre direitos
fundamentais para tentar solucionar, de maneira autoritária, o problema da segurança
pública, cujas raízes estão fora do sistema judiciário, assim como suas soluções.

2.4 O princípio acusatório

O princípio do processo penal acusatório, citado várias vezes na exposição


de motivos do anteprojeto do novo CPP, consiste, basicamente, na rígida distinção
entre as funções de acusar, defender e julgar, as quais não podem estar em uma só
pessoa no processo.
Sua consolidação, tal como a de tantos outros importantes princípios, se
deu com as revoluções liberais do século XVIII, no contexto da luta contra os
abusos por parte do Estado, o qual, muitas vezes, acusava, julgava e punia, o que
caracteriza o outro sistema oposto ao acusatório, denominado inquisitivo.
Modernamente, com a conquista das garantias da inamovibilidade,
vitaliciedade e irredutibilidade de seus vencimentos, o Ministério Público alcançou
uma posição que o permite agir com considerável independência política em sua
atividade. Logo, ressalvadas algumas exceções de prova de ofício, deve ficar
reservada somente aos promotores e possíveis assistentes da acusação, a atividade de
buscar indícios e provas contra o acusado, de modo que este não corra o risco de ser
condenado por um juiz que se “contaminou” ao buscar tais provas.
Este princípio guarda relação com o in dubio pro reo, uma vez que, na busca
de provas pelo juiz, o risco é suportado muito mais pelo acusado, a quem interessa a
insuficiência delas. Daí deve vir a prudência do juiz, que deve portar-se tendo sempre
 
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em mente que maior injustiça é punir um inocente do que deixar impune um


culpado.
Maior peso ainda deve ser dado a tal presunção quando levamos em conta a
atual situação do sistema carcerário brasileiro, tido como uma “escola do crime”, no
qual praticantes de crimes de pequeno potencial ofensivo se misturam aos que
praticaram as mais detestáveis condutas.

2.5 O princípio da insignificância ou bagatela

Embora não encontre um assento específico em nosso atual ordenamento


penal, o princípio da insignificância vem sendo admitido em nossos tribunais, a
exemplo do HC 100.31110, no qual o agente, autor do furto de um aspirador de pó
avaliado em cento e cinquenta reais, foi considerado não perigoso. A insignificância
da sua conduta deu causa, conforme se lê na ementa, à exclusão da ilicitude.
O direito penal, como ultima ratio, deve ter seu campo de atuação restrito
àquelas condutas consideravelmente reprováveis e lesivas aos bens jurídicos
fundamentais, sob pena de se causar a sua “banalização”. Quaisquer outras atitudes
devem ser analisadas em outras esferas menos aflitivas do direito.
Não se trata aqui de uma defesa da impunidade, mas sim de um tratamento
baseado em princípios fundantes de nossa ordem jurídica, tais como a
proporcionalidade e a razoabilidade, para que não se proceda de maneira a “matar
um pássaro com um canhão”.
Um exemplo trazido por Luiz Flávio Gomes é o de um jovem que atira
uma bolinha de papel num ônibus em movimento. Tal conduta, embora

                                                            
10 BRASIL, STF, Plenário, HC 100.311/RS, Rel. Min. Cezar Peluso. 09 mar. 2010.
 
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insignificante, encontra-se tipificada em nosso Código Penal, art. 264 “Arremessar


projétil contra veículo, em movimento, destinado ao transporte público por terra, por
água ou pelo ar”, com pena de detenção de um a seis meses. Logo, numa visão
legalista, o agente deveria ser punido.
Outro exemplo, desta vez real e estarrecedor e que foi noticiado é o de um
lavrador que foi preso em flagrante por raspar a casca de uma árvore a fim de fazer
um chá para sua mulher doente.11 A aplicação de tal punição demonstra-se
sobremaneira desproporcional, embora não deixe de ser “legal”. Uma análise um
pouco mais aprofundada permite-nos notar, neste caso, um certo desprezo pelo
direito à liberdade, previsto no caput do art. 5º, logo em seguida ao direito à vida.
Em sentido contrário a tal decisão, parte da doutrina moderna, a exemplo
de Luigi Ferrajoli12, defende a utilização de outros tipos de punição para os casos de
crimes de pequeno potencial ofensivo. Tais punições podem estar contidos na esfera
cível (ex: reparação do dano), trabalhista (demissão por justa causa), ou até mesmo
penal (multa e penas alternativas), as quais tem se mostrado muito mais efetivas (e
educativas) em um país cuja situação deplorável do sistema carcerário é notícia13 no
exterior.

2.6 O princípio da ampla defesa

                                                            
11 DIÁRIO DE CUIABÁ. Lavrador é preso por raspar casca de árvore. Cuiabá: Diário de Cuiabá,
2000.
Disponível em: <http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=9595>. Acesso em 20 mai.
2010.
12 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. 2. ed. ver. e ampl. Tradução

de Ana Paula
Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. passim.
13 DESTAK. Prisões do ES são denunciadas na ONU. São Paulo: Destak, 2010. Disponível em:

<http://www.destakjornal.com.br/readContent.aspx?id=14,53410.>. Acesso em: 20 mai. 2010.


 
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Previsto na Constituição (art. 5º, LV), o princípio da ampla defesa é aquele


segundo o qual, o acusado tem direito de contrariar a acusação, usando de quaisquer
meios lícitos de prova, a fim de se opor à pretensão punitiva. Tal princípio,
juntamente com o do contraditório, deve sua importante consolidação às revoluções
do século XVIII.
Ensina Machado que a ampla defesa comporta tanto a defesa técnica, feita
por um advogado, como a autodefesa, que é aquela que o próprio acusado
desempenha, a exemplo de autodefesa do interrogatório.14
Embora inspiradora na teoria, o que temos visto na prática é um sem
número de casos de desrespeito à ampla defesa. Enquanto a acusação é formada por
um promotor que, na maioria dos casos, é capacitado e conta com todo o aparato
estatal para realização de perícias, provas e afins, o acusado, nos casos de
hipossuficiência, conta somente com um defensor dativo, com o qual, por vezes,
encontra-se em pouquíssimas oportunidades, não tendo a efetiva possibilidade de
articular uma defesa que seja realmente ampla e eficaz.
Por outro lado vemos, nos crimes de colarinho branco, grandes empresários
utilizarem de recursos e mais recursos, e, por vezes, até consultarem advogados para
sua orientação antes mesmo de praticarem suas condutas reprováveis.
Enfim, tanto a imposição de obstáculos como o abuso na realização da
ampla defesa consistem em ofensas ao Estado Democrático de Direito e à
administração da justiça, e que deveriam, portanto, receber maior atenção do
Judiciário, bem como um tratamento mais rigoroso por parte do legislador.

                                                            
14 MACHADO, op. cit., p. 161.
 
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3. A doutrina do direito penal mínimo

A teoria do direito penal mínimo, sistematizada por Luigi Ferrajoli, foi


criada visando contrapor aquela do utilitarismo de Bentham e Beccaria, segundo a
qual o objetivo da pena seria buscar a “máxima felicidade dividida pelo maior
número possível de pessoas”15.
Para Ferrajoli, tal teoria peca por desconsiderar os condenados, aos quais
são impostas, às vezes, penas exageradas, sob o pretexto da busca da felicidade dos
não-desviantes, através da tentativa de se prevenir novos crimes.
O autor propõe um novo paradigma, defendendo que se deve buscar, além
do “máximo bem estar possível dos não-desviantes, o mínimo mal estar necessário
dos desviantes”16, uma vez que já ficou evidente que o sucessivo aumento das penas
não tem se mostrado capaz de impedir a prática dos delitos, servindo, muito mais
como tentativa retribucionista de devolver o mal com mal.
Uma das formas de se buscar a efetivação de tal ideia é através da imposição
da pena mínima necessária aos desviantes, a qual deve, necessariamente, cumprir uma
função reeducativa, sem a qual tornar-se-á ainda menos útil e eficaz do que as que
têm sido aplicadas atualmente.
Ao tomar para si o monopólio da justiça, o Estado se responsabiliza pela
defesa da paz social, ficando, portanto, reservada a ele a função de buscar a
prevenção, tanto dos delitos, como da vingança do ofendido, que, por vezes, mostra-
se desenfreada, chegando a atingir pessoas diferentes daquela que praticou o primeiro
crime. Para Ferrajoli, esta função tem sido ignorada em nossos sistemas criminais
                                                            
15 FERRAJOLI, op. cit., p. 308.
16 FERRAJOLI, op. cit., p. 308.
 
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atuais, embora seja a segunda a ser defendida pelo direito penal, juntamente com a
primeira, de prevenir os delitos.
Embora o sistema elaborado por Ferrajoli choque à primeira vista por trazer
um novo paradigma, uma vez que defende, ao invés do aumento desenfreado com
fins de prevenção, a redução e o controle das penas, tal ideia mostra-se muito mais
coerente com o nosso ordenamento constitucional, de viés garantista, e que preza
pela dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), ao qual a realidade dos sistemas
processual e de execução penal brasileiros tem se mostrado paradoxalmente
indiferentes.

4. Conclusão

A oposição existente entre a realidade do processo e o texto constitucional


nos mostra a urgente necessidade de uma mudança nos sistemas penal e processual
penal brasileiro, que contribuem para várias formas de desrespeito às garantias,
sobretudo do acusado. Tal necessidade já foi sentida pelo legislador, que já tem se
mobilizado no sentido de elaborar novos diplomas compatíveis com a Carta Magna.
Paralelamente a isto, urge que ocorra também uma mudança no paradigma
dos aplicadores do direito, aos quais salta aos olhos que o atual sistema de execução
penal, que guarda relação muito próxima com o processual, tem falhado na sua tarefa
de prevenir os delitos, pois a construção de mais e mais penitenciárias, a fim de
abrigar um número cada vez maior de detentos, não tem demonstrado eficácia
satisfatória.
Enfim, cabe à classe de juristas tentar fazer com que o sistema jurídico
brasileiro acompanhe as mudanças que têm acontecido em nosso país, a fim de que
este perca, juntamente com o status de subdesenvolvido economicamente, o de
 
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“subdesenvolvido” em matéria de tutela dos direitos humanos e garantias


fundamentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, STF, Plenário, HC 100.311/RS, Rel. Min. Cezar Peluso. 09 mar. 2010.

BRASIL, STF, Plenário, HC 100.574/MG, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 218, nov.
2009.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antonio


Cardinalli. [s.l.]: CONAN, 1995.

DESTAK. Prisões do ES são denunciadas na ONU. São Paulo: Destak, 2010.


Disponível em:
<http://www.destakjornal.com.br/readContent.aspx?id=14,53410.>. Acesso em: 20
mai. 2010.

DIÁRIO DE CUIABÁ. Lavrador é preso por raspar casca de árvore. Cuiabá:


Diário de Cuiabá, 2000. Disponível em:
<http://www.diariodecuiaba.com.br/detalhe.php?cod=9595>. Acesso em 20 mai.
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FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. 2. ed. ver. e


ampl. Tradução de Ana Paula Zomer et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

MACHADO, Antônio Alberto. Teoria geral do processo penal. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 2010.

 
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NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios de processo civil na Constituição Federal.


8. ed. rev., ampl., e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

APLICAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS ATENUANTES NA DOSIMETRIA


DA PENA: A SÚMULA 231 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A
FIXAÇÃO DO QUANTUM APLICÁVEL17

Anna do Prado Valladares de Andrade

RESUMO

O estudo da Teoria da Pena é de vital importância para a noção de justiça necessário


e inerente ao sistema criminal. Como último ato da prestação jurisdicional, a pena
representa, em ultima instância, a culminação do ação penal. Nesta seara, insere-se a
dosimetria da pena e, em particular, o do regime das atenuantes. O objeto de estudo
deste artigo é justamente a análise da súmula nº 231 do Superior Tribunal de Justiça,
seus alicerces e sua constitucionalidade. Ocorre que a referida súmula veda a
aplicação da circunstância atenuante, na segunda fase da dosimetria da pena, caso isso
implique na fixação da pena provisória abaixo do limite mínimo cominado ao tipo.
Realizando uma analogia in malam parte do inciso II do artigo 59 do Código Penal, o
STJ distorce o espírito do ordenamento para supostamente encontrar baliza no
princípio da legalidade. Todavia, é através de uma análise mais detalhada da súmula e
da Constituição Federal de 1988 que se percebe como aquele Tribunal realiza uma
leitura contra legem do disposto no artigo 65 do Código Penal e, simultaneamente, fere
de morte o sistema trifásico de cálculo da pena privativa de liberdade determinado no
artigo 68 do mesmo codex, o que caracteriza a profunda inconstitucionalidade da
referida súmula, haja vista que vai diretamente contra o texto expresso da lei e os
princípios constitucionais da legalidade e da individualização da pena. Finalmente,
para encerrar o estudo dos antecedentes, nas disposições referentes à segunda fase da
dosimetria, o legislador se absteve de fixar o quatum aplicável às atenuantes e
agravantes, gerando uma insegurança jurídica. Para preencher essa lacuna, busca-se
                                                            
17Artigo final apresentado no curso de Ciências Penais no IEC – Instituto de Educação Continuada
da Pontifícia Universidade de Minas Gerais, sob orientação Prof. Eugenio Pacelli, em 2010. 
 
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inspiração no sistema penal, em especial no Código Penal Militar e Código Eleitoral


de forma a encontrar as frações aplicáveis e manter o ordenamento coeso.

Palavras-chave: Teoria da Pena. Atenuantes. Súmula 231 STJ. Limite mínimo.


Fixação. Legalidade. Analogia. Individualização da pena. Quantum. Código Penal
Militar. Código Eleitoral.

1 BREVE INTRODUÇÃO À TEORIA DA PENA

A aplicação da pena ao fim do processo penal é a culminação da prestação


jurisdicional do Estado. É através da delimitação da punição que o Juiz reafirma a
exclusividade do poder estatal de sanção e, simultaneamente, procura restaurar o
status quo societatis anterior ao delito cometido. Mas essas não são as únicas nuances da
reprimenda, conforme aponta Guilherme de Souza Nucci em seu Manual:

Temos quatro enfoques: a) geral negativo, significando o poder


intimidativo que ela representa a toda a sociedade, destinatária da
norma penal; b) geral positivo, demonstrando e reafirmando a
existência e eficiência do Direito Penal; c) especial negativo,
significando a intimidação ao autor do delito para que não torne a
agir do mesmo modo, recolhendo-o ao cárcere, quando necessário
e evitando a prática de outras infrações penais; d) especial positivo,
que consiste na proposta de ressocialização do condenado, para
que volte ao convício social, quando finalizada a pena ou quando,
por benefícios, a liberdade seja antecipada. (2008, p. 368)

Todo o sistema penal, portanto, gira em torno de qual será a pena aplicada
ao réu considerado culpado ao fim do processo. Ele assim foi construído para poder
realizar tal tarefa de forma justa, estabelecendo princípios e normas que devem ser
obedecidos continuamente.
Uma vez que a pena e, mais especificamente, o quantum desta é o objetivo
final da prestação jurisdicional do Estado, o seu estudo é de fundamental
importância. As diversas interpretações do texto legal podem gerar resultados de
 
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penas diferentes em um mesmo caso concreto quando as circunstâncias dos agentes


são as mesmas ou, ainda, penas iguais quando tais circunstâncias são diversas, em
total inobservância ao princípio da igualdade.
Desta forma, mais do que apenas uma questão teórica, a análise do instituto
da pena e das nuances de sua aplicação é instrumento fundamental para a realização
de um Direito Penal individualizado e íntegro, merecedora de um maior
aprofundamento teórico, como o que se deu com o Tipo Penal.
É no momento da sentença criminal que deverá ser realizada a dosimetria
da pena, pela qual o magistrado demonstra e fundamenta como atingiu o quantum
final e fixou o regime em que ela será cumprida. Partindo do princípio constitucional
que toda aplicação de pena deve ser feita de modo individualizado, isto é,
considerando o caso concreto, o juiz irá analisar as circunstâncias do fato e do agente
e, realizando um processo legalmente estabelecido, chegará a um quantum
determinado que constituirá o tempo da pena privativa de liberdade a ser cumprida
pelo autor do fato.
Luiz Luisi explica com maestria, citando Gerson Pereira dos Santos:

O juiz, pois, nos limites que a lei impõe realiza uma tarefa de
ajustamento da resposta penal em função não só das
circunstâncias objetivas, mas principalmente da pessoa do
denunciado, e, também, do comportamento da vítima. (2003, p.
53)

O Código Penal determina que a pena em concreto deve ser necessária e


suficiente para garantir os fins da prevenção e retribuição da infração penal. E é
através do trabalho de individualização da pena que o juiz, utilizando-se da sua
discricionariedade, porém sempre vinculado à sua fundamentação legal, determina o
quantum ideal cabível.

 
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Assim, a dosimetria da pena nada mais é, portanto, do que uma operação


também aritmética embasada por regras gerais legais de como proceder.
1.1 Dos métodos de dosimetria: bifásico e trifásico

Antes da reforma do Código Penal Brasileiro de 1984, questionava-se, em


razão do texto dúbio dos antigos artigos 42 e 50 do CP, qual deveria ser o critério
adotado para realizar o cálculo da pena privativa de liberdade. Em entendimentos
diversos encontravam-se Roberto Lyra, defensor do critério bifásico, e Nelson
Hungria, patrono do método trifásico.
No método bifásico, o magistrado, ao aplicar a pena, analisava em uma
primeira etapa as circunstâncias judiciais, as atenuantes e as agravantes,
simultaneamente, para fixar a pena-base. Numa segunda etapa, então, sopesava as
causas de aumento e de diminuição da pena para fixar a pena definitiva.
Percebe-se que, através do método de Lyra, as atenuantes e agravantes
ficavam adstritas, por proximidade, às regras aplicáveis às circunstâncias judiciais.
Uma vez que eram todas analisadas conjuntamente não haveria como o juiz
distanciar a aplicação de qualquer determinação legal, mesmo que dirigida
exclusivamente às circunstâncias judiciais. Portanto, em razão da vedação de que, na
consideração das circunstâncias judiciais (1ª fase) o magistrado estaria circunscrito
aos limites legais cominados ao tipo legal, o mesmo seria obrigatoriamente aplicado
às atenuantes e agravantes – frisa-se, em função da sua análise conjunta.
Somente na 2ª fase da dosimetria é que poderia o magistrado ultrapassar os
limites fixados pelo legislador. Explica-se: se nas circunstâncias judiciais tais limites
serviam como baliza para o juiz, ao ponderar as causas de aumento ou diminuição
estas continham de forma especificada, em si, as frações aplicáveis para alterar a
pena, inclusive podendo ultrapassar, além ou aquém, os valores anteriormente
estabelecidos.
 
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O critério trifásico, defendido por Hungria, vislumbra a dinâmica da


dosimetria de forma bastante diferente. Isso porque, ao incluir uma nova fase no
processo do cálculo, o critério trifásico separou as atenuantes e agravantes das
circunstâncias judiciais, tornando aquelas completamente autônomas. E mais, ao
distinguir as fases da pena-base e da pena-provisória, o juiz ficou obrigado a
fundamentar mais detalhadamente a dosimetria feita, verdadeiro avanço no direito de
ampla defesa.
Com o advento da nova Parte Geral do CP, pela edição da lei 7.209/84, o
legislador expressamente optou pelo método de Hungria, conforme explica a
Exposição de Motivos:

51. Decorridos quarenta anos da entrada em vigor do Código


Penal, remanescem as divergências suscitadas sobre as etapas da
aplicação da pena. O Projeto opta claramente pelo critério das três
fases, predominante na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal. Fixa-se, inicialmente, a pena-base, obedecido o disposto
no art. 59; consideram-se, em seguida, as circunstâncias atenuantes
e agravantes; incorporam-se ao cálculo, finalmente, as causas de
diminuição e aumento. Tal critério permite o completo
conhecimento da operação realizada pelo juiz e a exata
determinação dos elementos incorporados à dosimetria.
Discriminando, por exemplo, em primeira instância, o quantum da
majoração decorrente de uma agravante, o recurso poderá ferir
com precisão essa parte da sentença, permitindo às instâncias
superiores a correção de equívocos hoje sepultados no processo
mental do juiz. Alcança-se, pelo critério, a plenitude de garantia
constitucional da ampla defesa.

Assim, a partir da reforma, o processo de individualização da pena passou a


ser regido pelo artigo 68 do Código Penal (CP) nos seguintes termos:

Art. 68, CP – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do


art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as
circunstâncias atenuantes e agravantes; por ultimo, as causas de
diminuição e de aumento. (BRASIL, 1940.)

 
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Na primeira fase, portanto, são analisadas as circunstâncias judiciais


enumeradas no art. 59 do CP, para se fixar, dentro dos limites mínimo e máximo
cominados ao tipo, uma pena provisória denominada pena-base. Ressalta-se aqui a
imposição feita ao juiz, no sentido de este manter-se dentro dos limites da cominação
legal:
Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à
conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às
circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao
comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário
e suficiente para reprovação e prevenção do crime:
I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;
II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de
liberdade;
IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por
outra espécie de pena, se cabível. – grifos nossos.

Na segunda fase, havendo quaisquer das circunstâncias agravantes ou


atenuantes previstas nos arts. 61 e seguintes do CP, a pena será aumentada ou
diminuída, e uma pena provisória será fixada.
Finalmente, incidirão as chamadas causas de aumento ou diminuição
(terceira fase), encontradas tanto na parte geral como na parte especial do Código
Penal e caracterizadas pelas frações (aumenta-se da metade, diminui-se de dois terços,
etc.).
A pena resultante deste processo aritmético será a pena final imputada ao
réu. Ainda neste momento será definida a pena de multa, o regime inicial de
cumprimento da pena privativa de liberdade, a possibilidade de substituição por pena
restritiva de direitos e o sursis.
Apesar da dosimetria da pena ser feita conforme as três fases descritas no
nosso Código Penal, o presente estudo possui foco restrito, visando tratar apenas da
polêmica referente à aplicação das atenuantes na segunda fase da dosimetria da pena.

 
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Neste trabalho nos circunscrevemos à duas questões referentes às atenuantes que,


acreditamos, são de extrema importância: primeiramente, se é possível pela aplicação
da atenuante fixar a pena-provisória aquém do limite fixado pelo legislador e, em
segundo lugar, uma vez que não há previsão legal para o quantum que deve ser
aplicado se reconhecida uma atenuante ou agravante, qual é o melhor critério para
defini-lo.

2 ASPECTOS JURÍDICOS DA SÚMULA 231 DO STJ (SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL)

A Súmula nº 231 do STJ dispõe: “A incidência da circunstância atenuante


não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.
Antes de criticar qualquer aspecto da referida súmula, mister se faz entender
a fundamentação da mesma, é o que faz o voto do Min. Felix Fisher abaixo:

A individualização da pena, evidentemente, não existe para


deleite do magistrado. Ela é uma obrigação funcional, a ser
exercida com critério jurídico pelo juiz e, simultaneamente, uma
garantia do réu (v.g., art. 5º, inciso XLVI, da Carta Magna e arts.
381 e 387 do CPP) e da sociedade (v.g., arts. 381 e 387 do CPP).
Está, outrossim, vinculada ao princípio da reserva legal (art. 5º,
inciso XXXIX, da Lex Maxima). A nossa legislação fornece o
critério mencionado na Lex Fundamentalis (“a lei regulará a
individualização...”) que deve ser respeitado e aplicado com a
indispensável fundamentação concreta (cfe. princípio da
persuasão racional ou princípio do livre convencimento
fundamentado, ex vi do art. 93, inciso IX, 2ª parte da Lei Maior e
arts. 157, 381, 387 e 617 do CPP). Ninguém, em nenhum grau de
jurisdição, pode, mormente através de paralogismos ou de
silogismos destituídos de conteúdo jurídico, realizar a aplicação da
pena privativa de liberdade de forma diversa daquela prevista na
sistemática legal. O argumento crítico, de carga exclusivamente
subjetiva, pessoal, ou, então, o pretenso exercício de “dikeologia”
 
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só acarretam, no fundo, neste tópico, imprevisibilidade, incerteza


e injustiça.
Em assim sendo, desde a elaboração do C. Penal de 40, passando
pelas diversas alterações, até se atingir a modificação ampla
realizada pela Lei nº 7.209/84, nunca predominou - nem sequer
mereceu destaque - o entendimento de que as agravantes e
atenuantes (ao contrário das majorantes e minorantes)
pudessem levar a pena privativa de liberdade para fora dos limites
previstos em lei. E isto, quer seja no sistema bifásico (de Roberto
Lyra), quer seja no trifásico (de Nelson Hungria), agora imposto
legalmente (v.g., as ensinanças de Hungria, A. Bruno e M.
Noronha, por demais conhecidas).
Como se vê, repetindo, dos arts. 59, 67 e 68 do C. Penal, a Lei nº
7.209/84 impôs um critério de fixação da pena privativa de
liberdade. Ele não pode, de forma alguma, ser negado, sob pena
de se tornarem, os referidos dispositivos, mero ornato do C.
Penal.
Trata-se de uma regulamentação genérica que não fere qualquer
princípio ou norma superior e, portanto, inadmite o
circumvenire legem. Pela sistemática enfocada, a fixação da
pena definitiva pode desdobrar-se em três etapas cuja seqüência
está evidenciada. A pena-base (e não ponto de partida) é obtida
com as circunstâncias judiciais (art. 59 do CP). A seguir, em
segunda operação, devem incidir as agravantes e as atenuantes
(ex vi dos arts 61 a 67 do CP), surgindo, daí, a pena provisória.
Esta só se torna definitiva ou final se não houver a aplicação das
denominadas causas legais, genéricas ou específicas, de aumento
ou diminuição da pena (majorantes ou minorantes, ex vi do art.
68 do CP). Como se vê, primo ictu oculi, até “à vol d'oiseau ”, o
critério é claro, a sua seqüência evidente e os limites, nas duas
primeiras operações, decorrem não só dos textos, mas até por
uma questão de elementar lógica. Se assim não fosse, inexistindo
os parâmetros apontados, teríamos um sistema de ampla
indeterminação que é incompatível com o princípio da reserva
legal e possibilita constantes tratamentos infundadamente
diferenciados. Mas o CP em seu art. 59, II, diz: “dos limites previstos
”. No art. 67, assevera: “do limite indicado ”. É, cumpre sublinhar, o
sistema da indeterminação relativa (v.g.: Jair Leonardo
Lopes in “Curso de Direito Penal”, PG, 2ª ed., RT, págs. 231 e
segts.; Damásio E. de Jesus in “Direito Penal”, vol. 1, PG, p.
579, 20ª ed., Saraiva; Heleno C. Fragoso in “Lições de Direito
Penal”, PG, Forense, 1995, 15ª ed., p. 339; Álvaro Mayrink da
Costa in “Direito Penal”, PG, vol. I, Tomo II, p. 539, Ed.

 
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Forense, 1991; L. Régis Prado & Cezar Roberto Bitencurt in


“Código Penal Anotado”, RT, 1997, págs. 327 e 334; Juarez
Cirino dos Santos in “Direito Penal. A nova Parte Geral.”, p.
250, Ed. Forense, 1985; Maurício Kuehne in “Teoria e Prática da
Aplicação da Pena”, Juruá, p. 99, 1995 e Fernando Galvão in
“Aplicação da Pena”, p. 124, Ed. Del Rey, 1995).
A quaestio não pode merecer solução diversa daquela
tradicionalmente adotada. Primeiro, qual seria a razão de ser do
disposto nos arts. 59, 67 e 68 do CP, mormente se o estatuto
repressivo indica, ainda, um mínimo e um máximo de pena
privativa de liberdade para cada delito? Segundo, admitindo-se,
ad argumentandum, a redução almejada no recurso especial,
qual seria o limite? A pena “zero”? Vale lembrar que não foi
adotada, entre nós, a discutível concepção unilateral na relação
culpabilidade/pena (v., comparativamente, Nilo Batista in
“Introdução Crítica ao Direito Penal” e H. H Jescheck, in
“Tratado de Derecho”, 4ª ed., Granada, 1993, págs. 384/386,
apresentando a polêmica na doutrina alienígena, em particular,
envolvendo Roxin, Jakobs, A. Kaufmann e Achenbach).
Terceiro, a alegação de manifesta injustiça, ou de absurdo
jurídico, na hipótese de um concurso de agentes em que dois réus,
com circunstâncias judiciais favoráveis, são condenados à mesma
pena, apesar de um deles ainda ter, a seu favor, mais de uma
atenuante, também, data venia, não é argumento decisivo. A
aplicação da pena não pode ser produto de “competição” entre
réus ou delinqüentes. Caso contrário, na participação de
somenos (art. 29, § 1º, do CP), aí sim, absurdamente, teríamos,
constantemente que aplicar a minorante, “premiando” o co-réu
que tivesse menor participação (o texto, todavia, só diz com a
participação ínfima, cfe. ensinanças de René A. Dotti in
“Reforma Penal Brasileira”, Ed. Forense, 1988, p. 98/99, e de Jair
Leonardo Lopes, op. cit., p. 183). Por último, a expressão
“sempre atenuam” não pode ser levada a extremos,
substituindo-se a interpretação teleológica por uma meramente
literal. Sempre atenuam, desde que a pena base não esteja no
mínimo, diga-se, até aí, reprovação mínima do tipo. Se assim
não fosse, teríamos que aceitar, também, a hipótese de que as
agravantes (“que sempre agravam a pena”) pudessem levar a
pena acima do limite máximo (o outro lado da ampla
indeterminação). E isso, como preleciona A. Silva Franco, é
incompatível com o princípio da legalidade formal:
“O entendimento de que o legislador de 84 permitiu ao juiz superar tais
limites encerra um sério perigo ao direito de liberdade do cidadão, pois, se, de

 
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um lado, autoriza que apenas, em virtude de atenuantes, possa ser estabelecida


abaixo do mínimo, não exclui, de outro, a possibilidade de que, em razão de
agravantes, seja determinada acima do máximo. Nessa situação, o princípio
da legalidade da pena sofreria golpe mortal, e a liberdade do cidadão ficaria à
mercê dos humores, dos preconceitos, das ideologias e dos “segundos códigos” do
magistrado, Além disso, atribui-se às agravantes e às atenuantes, que são
circunstância acidentais, relevância punitiva maior do que a dos elementos da
própria estrutura típica, porque, em relação a estes, o juiz está preso às
balizas quantitativas determinadas em cada figura típica. Ademais,
estabelece-se linha divisória inaceitável entre as circunstâncias legais, sem
limites punitivos, e as causas de aumento e de diminuição, com limites
determinados, emprestando-se àquelas uma importância maior do que a estas,
o que não parece ser correto, nem ter sido a intenção do legislador. Por fim, a
margem de deliberação demasiadamente ampla, deixada ao juiz, perturbaria o
processo de individualização da pena que se pretendeu tornar, através do art.
68 do CP, o mais transparente possível e o mais livre de intercorrências
subjetivas.” (A. Silva Franco in “Código Penal e sua Interpretação
Jurisprudencial”, 6ª ed., 1997, RT, p. 1072). – grifos no original
STJ. RESP 955.234-RS. Min. Rel. Felix Fisher. Julgado em 25 de
setembro de 2007.

Pelo texto supra percebe-se que a posição do STJ em vedar que a atenuante
reduza a pena abaixo do mínimo legal fundamenta-se no sentido de ser aquele (limite
cumulado ao tipo penal) uma barreira intransponível em virtude dos princípios
constitucionais penais da legalidade (art. 5º, inc. XXXIX) e da pena cominada (art. 5º,
inc. XLVI).
O princípio da legalidade configura-se como verdadeira restrição ao poder
estatal de intervir na esfera das liberdades individuais, isso porque ele determina que a
elaboração de normas incriminadoras e suas respectivas sanções constituem matéria
reservada ou função exclusiva da lei (TOLEDO, 2007, p. 21).
Ao entendimento do STJ, o inciso II do art. 59 do CP, que impede o juiz de
ultrapassar os limites legais da pena cominada ao tipo no momento da determinação
da pena, é aplicável tanto na fase das circunstâncias judiciais quanto na aplicação das
atenuantes e agravantes. Dessa forma, o reconhecimento da atenuante de maneira a
reduzir a pena abaixo do mínimo legal ou de uma agravante que ultrapassasse o teto
 
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máximo entraria em choque com o referido princípio, visto que, nestas fases o
quantum da variação da pena não foi estipulado pelo legislador, mas sim é calculado
de acordo com a faculdade que o juiz tem de se determinar conforme seu livre
convencimento.
Alega ainda que tais limites somente podem ser ultrapassados em razão das
causas de aumento ou de diminuição, quando o legislador, afastando a
discricionariedade do juiz, expressamente estabeleceu as frações de variação
aplicáveis às penas.
Contudo, a fundamentação apresentada pelo egrégio Tribunal Superior
apresenta falhas graves, especialmente quando leva-se em conta sua função
primordial como tribunal garantidor das leis infraconstitucionais.
Haja vista que o atual Estado Democrático de Direito fundamenta-se num
conjunto de normas que formam o ordenamento jurídico e que tal grupo normativo
deve ser coeso sob pena de tornar-se ineficaz, ao se deparar com uma polêmica cabe,
tanto ao doutrinador quanto ao magistrado, buscar refúgio e inspiração dentro
daquele aglomerado, realizando uma interpretação conjunta das normas existentes e
buscando a coesão do todo.

2.1 Da visão mais benéfica ao réu no ordenamento jurídico

Desde o princípio geral do Direito Processual Penal do in dubio pro reu até a
defesa da imposição da prisão somente como ultima ratio, por todo o ordenamento
espalham-se diversas normas que se traduzem em benefícios concedidos ao
condenado. Tal fato decorre da política criminal existente que procura reduzir os
profundos danos que naturalmente decorrem do encarceramento.
A Constituição Federal assinala como direitos fundamentais o direito à vida,
 
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à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 1988). Dentre estes, o


direito à liberdade surge como aquele capaz de preservar a dignidade da pessoa
humana, na medida em que o homem, livre por natureza, poderá dispor de si mesmo,
bem como poderá se auto determinar.
A liberdade, como característica inerente ao homem, somente poderá ser
ceifada nas hipóteses da lei e, sob esta noção, o instituto da prisão toma vulto de
medida extrema. Dessa forma, toda e qualquer norma que vise, como fim, o
encarceramento do ser humano deve ser interpretada sempre da maneira mais
restritiva possível para que se coadune com o espírito do ordenamento jurídico.
Sob este ponto de vista, parece contraditório que o STJ impeça a aplicação
de que algo que não possui vedação legal expressa – qual seja, estabelecer a pena
provisória abaixo do mínimo legal em função de atenuante legal. Isto é, se pela
perspectiva adotada no ordenamento procura-se produzir menos dano ao
condenado, que já sofrerá naturalmente pela restrição à sua liberdade, não é lógico
que, enquanto privilegia-se o direito à vida e à liberdade, ao mesmo tempo interprete-
se a lei de maneira mais gravosa.
Ressalta-se que este trabalho não defende a aplicação irrestrita das
atenuantes e agravantes para que estas ultrapassem os limites impostos pelo
legislador. O que se propõe é uma leitura da norma penal de uma maneira menos
gravosa ao condenado, o que somente pode ocorrer na hipótese das atenuantes.
A aplicação das atenuantes de forma a reduzir a pena provisória aquém do
mínimo legal busca, justamente, a realização de uma hermenêutica mais favorável ao
condenado, conforme o próprio ordenamento já se posiciona. A Súmula 231 do STJ,
a contrário, faz uma interpretação normativa restritiva em prejuízo ao direito de
liberdade. Ao impedir que se ultrapasse o limite mínimo da pena na segunda fase da
dosimetria aquele Tribunal desvirtua a essência do ordenamento.
Corroborando com o posicionamento aqui defendido está Juarez Cirino:
 
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(...) a proibição de reduzir a pena abaixo do limite mínimo


cominado, na hipótese de circunstâncias atenuantes obrigatórias,
constitui analogia in malam partem, fundada na proibição de
circunstâncias agravantes excederem o limite máximo da pena
cominada – precisamente aquele processo de integração do
Direito Penal proibido pelo princípio da legalidade. (2005, p. 140-
141)

O limite abstrato da pena máxima cominada tem a função de servir como


barreira fixa ao magistrado, uma vez que sua existência se justifica na proibição do
excesso do Estado contra o indivíduo. Fundamenta-se, assim, na gritante e inegável
diferença de forças entre Estado e indivíduo onde este, infinitamente inferior, é
subjugado pela violenta imposição daquele. Para evitar tal injustiça é que, no passar
dos muitos anos do desenvolvimento do Direito Penal, surgiram e ganhou força os
direitos fundamentais.

A efetiva supremacia dos princípios e normas assentados nas


declarações universais de direitos e nas Constituições
democráticas, a efetiva concretização dos direitos fundamentais, a
realização dos fins do Estado de direito democrático requerem a
inversão das tendências expansionistas do poder punitivo.
Requerem a recuperação do desejo da liberdade, a máxima
contenção, sem quaisquer concessões, do ampliado poder
punitivo, o resgate de um direito penal consentâneo com sua
natureza essencialmente mínima, o resgate de um processo penal
orientado pela supremacia da tutela da liberdade sobre o poder de
punir. (KARAM)

Essa limitação intransponível não deve ocorrer nas atenuantes, haja vista que
o seu reconhecimento pode vir a levar a pena provisória abaixo do mínimo legal. No
caso da agravante, ao contrário, isso exacerbaria a pena por demasiado, prejudicando
imensamente o condenado – o que não merece prosperar, como explanado acima.
Sobre o tema refletem Jorge de Oliveira Vargas e Felipe Heringer Roxo da Motta:

 
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Os limites da cominação devem ser vistos com finalidades


diferentes em cada um dos extremos. O máximo de pena
estipulado para uma conduta deve ser interpretado como uma
garantia do indivíduo, no sentido de que ele não terá uma pena
cominada acima daquele valor. É a interpretação restritiva das
normas que limitam a liberdade. Já no outro ponto, o limite
mínimo, deve ser interpretado não como uma barreira, mas como
um referencial. É a interpretação que concede a maior eficácia
possível ao direito fundamental da liberdade. Assim, no mínimo
legal, o magistrado tem uma previsão in abstracto do legislador, mas
é no momento do juízo que tal previsão legal deve ser posta em
concreto. (2009.)

2.2 Do princípio da legalidade e a negativa de vigência à lei federal

O princípio da legalidade não se encontra descrito em apenas um


dispositivo legal, mas sim em três incisos do art. 5º da Constituição Federal. Um
quanto as fontes das normas penais incriminadoras (reserva legal – inciso XXXIX).
Outro concernente a enunciação dessas normas (determinação taxativa). E um
terceiro relativo a validade das disposições penais no tempo (irretroatividade) (LUISI,
2003, p. 17-18).
Em breves linhas, o principio da legalidade estampado neste dispositivo
reflete no ordenamento penal no sentido de que todos os dispositivos legais devem
ser atentamente obedecidos e que somente através da lei anterior pode ser algo
imputado a alguém.
Assim, notável é a incongruência no discurso do STJ que fundamenta a
Súmula 231. Explica-se.
Como apontado anteriormente, aquele Tribunal Superior busca arrimo no
princípio da legalidade para vedar o estabelecimento da pena provisória abaixo do
mínimo legal cominado ao tipo. Ao alegar que o inciso II do artigo 59 é aplicável

 
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também na segunda fase da dosimetria, a egrégia corte estende, por analogia, a


aplicação de um dispositivo que prejudica o condenado – o que vimos ser contrário
ao espírito do ordenamento.
Contudo, pelo postulado da reserva legal inserido no princípio da legalidade,
a analogia não pode nunca ser utilizada como fonte do direito penal, especialmente
quando é feita in malan partem, o que joga por terra a validade do argumento
defendido pelo egrégio tribunal.

Do princípio da Reserva, outrossim, decorre, - em se tratando de


normas incriminadoras, - a proibição do direito costumeiro e da
analogia como fonte do direito penal. Possível é, no entanto, tanto
a aplicação de normas costumeiras e de analogia, quando “in
bonam parte”, ou seja, em benefício do réu. (LUISI, 2003, p. 22)

Mister apontar que aquela limitação (de ultrapassar os limites de pena


cominados) restringe-se às circunstâncias judiciais da 1ª fase da dosimetria da pena
haja vista que, pela melhor técnica legislativa, os incisos se referem unicamente ao
caput do artigo, e nunca a outros dispositivos.

Constata-se que a regra estabelecida no artigo 59, inciso II, do


Código Penal, qual seja, a que determina que o juiz ficará
vinculado a quantidade pena aplicável dentro dos limites mínimos
abstratamente previstos para o delito, refere-se tão somente à
fixação da pena-base, ou seja, a primeira etapa do procedimento
trifásico, razão pela qual sua vinculação a estes limites termina
logo após concluída a primeira fase, através da determinação da
pena-base. (SANTANA, 2005. p. 31)

Enquanto na análise das circunstâncias judiciais o juiz deve ater-se aos


limites previamente impostos pelo legislador para fixar a pena-base por força do
inciso II do art. 59, do CP, na segunda fase da dosimetria, isto é, na aplicação das
agravantes e atenuantes, não há impedimento para que o juiz ultrapasse tais linhas.
Nesse sentido se posiciona Luiz Regis Prado:

 
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Se na determinação da quantidade da pena-base aplicável o juiz


deve ater-se aos limites traçados no tipo legal de delito (art. 59, II),
uma vez fixada aquela, passa-se à consideração das circunstâncias
atenuantes e das agravantes, em uma segunda fase, conferindo-se
ao juiz a possibilidade de aplicar pena inferior ao limite mínimo, já
que o artigo 68 não consigna qualquer restrição. (2003, p. 333)

Tal se dá porque, apesar das atenuantes e das causas de diminuição serem


aplicadas em momentos diversos da dosimetria, as mesmas não se diferem
ontologicamente. Ambas serão responsáveis pela diminuição da pena aplicada ao
condenado. Não há, portanto, razão para aplicar tratamentos diversos entre as
mesmas, pelo qual deve-se permitir que o reconhecimento da atenuante seja capaz de
reduzir a pena provisória abaixo do mínimo legal.
O que torna a alegada fundamentação do STJ extremamente deficiente, na
verdade, é que, além de ir de encontro com a essência do ordenamento e ignorar a
técnica legislativa, o Tribunal desconsidera, por completo, o caput do art. 59 do CP:

Art. 59 São circunstâncias que sempre atenuam a pena:


I – ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou
maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença;
II – o desconhecimento da lei;
III – ter o agente:
a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou
moral;
b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo
após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou
ter, antes do julgamento, reparado o dano;
c) cometido o crime sob coação que poderia resistir, ou em
cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a
influência de violenta emoção provocada por ato injusto da
vítima;
d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria
do crime;
e) cometido o crime sob influência de multidão em tumulto, se
não o provocou. – grifos nossos.

 
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O dispositivo é expresso ao afirmar que as circunstâncias enumeradas


“sempre” atenuam a pena. Não há, no caso, qualquer espaço para dúvida de
interpretação. O texto é claro e direto, contudo, o Tribunal preferiu ignorá-lo e
aplicar a analogia in malan partem, em patente violação ao mesmo princípio da
legalidade evocado como fundamento da súmula. Há, assim, uma contradição entre o
texto legal e a interpretação dada pela jurisprudência sumulada.

(...) o fundamental é fixar, sempre, uma pena justa para o caso,


proporcional ao delito, conforme as múltiplas variáveis que o
envolve (art. 59) ainda que para tanto, tenha o juiz de fixá-la
aquém do mínimo legal. É legítima, pois, a aplicação de pena
abaixo do mínimo legal. Entender o contrário é adotar uma
postura anti-garantista. (QUEIROZ, 2002)

O caput do art. 65 do CP afirma que: “São circunstâncias que sempre


atenuam a pena: (...)” (BRASIL, 1984). Se o legislador usou o adjunto adverbial
"sempre" é porque queria deixar claro que em toda e qualquer hipótese deverá ser
aplicada a atenuante. Caso contrário teria usado a expressão "sempre que possível".
Não cabe ao magistrado, como simples intérprete da lei, sem poder para formular
qualquer previsão legislativa, escolher quais dispositivos irá acatar e quais dará uma
leitura diversa da literal.
Limitar a aplicação das atenuantes de forma a que estas não reduzam a pena
aquém do mínimo é legal é nada menos que negar vigência à lei federal. Isto é, se
aquela é categórica ao usar o advérbio "sempre", a sua não aplicação fere diretamente
a Constituição Federal novamente no que se refere ao princípio da legalidade. Na
sistemática da reforma penal de 1984, se afastada a incidência da atenuante existente
no caso concreto, não será atendido o princípio de sua aplicação obrigatória (Código
Penal, artigo 65, caput).

Objeto de muita discussão tem sido a possibilidade de se reduzir a


pena-base aquém do mínimo ou aumentá-la além do máximo
 
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nesse segundo momento de fixação da pena. O STJ, por


intermédio da Súmula 231, expressou o seu posicionamento no
sentido de que “a incidência da circunstância atenuante não pode
conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Essa,
infelizmente, tem sido a posição de nossos autores, que, numa
interpretação contra legem, não permitem a redução da pena-base,
em virtude da existência de uma circunstância atenuante, se aquela
tiver sido fixada em seu patamar mínimo.
Dissemos que tal interpretação é contrária à lei porque o art. 65
não excepciona a sua aplicação aos casos em que a pena-base
tenha sido fixada acima do mínimo legal. Pelo contrário. O
mencionado artigo afirma categoricamente que “são circunstâncias
que sempre atenuam a pena”. Por que razão utilizaria o legislador o
advérbio sempre se fosse sua intenção deixar de aplicar a redução,
em virtude de existência de uma circunstância atenuante, quando a
pena-base fosse fixada em seu grau mínimo? (GRECO, 2004)

Ainda, o artigo 68 do mesmo codex é claro quando estabelece as três fases


da dosimetria da pena:

Art. 68, CP – A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do


art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as
circunstâncias atenuantes e agravantes; por ultimo, as causas de
diminuição e de aumento. (BRASIL, 1940.)

Novamente, existindo uma atenuante no caso concreto, se o magistrado, em


atendimento à Sumula 231 do STJ, não a aplica por, por exemplo, a pena-base já
estar fixada no mínimo legal, novamente estará aquele negando vigência à lei federal.
Como a lei estabelece que a dosimetria é feita em três fases e, havendo uma
atenuante a ser aplicada, se esta não o é, a segunda fase – obrigatória – foi
completamente ignorada pelo juiz, que deixa de realizar o método trifásico do cálculo
da pena para aplicar o método bifásico, expressamente revogado pela reforma de
1984 (vide Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, item 51).

 
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Cumpre destacar que não há previsão de supressão de fases para


aplicação da pena, o que impõe concluir que somente se
inexistentes circunstâncias atenuantes ou agravantes é que incidem
diretamente sobre a pena-base as causas de aumento e de
diminuição, nos termos do art. 68, CP. (PEREIRA, 2010)

Não pode o magistrado, em qualquer nível da hierarquia do poder


Judiciário, fechar os olhos para o que a lei dispõe sob pena de cometer a mais grave
das ilegalidades. A súmula 231 do STJ, ao mesmo tempo, ignora o texto explícito do
artigo 59 e desobedece o comando do artigo 68, ambos do Código Penal, adotado o
critério bifásico para determinar a pena privativa de liberdade, e negando vigência aos
dispositivos e ferindo de morte o princípio da legalidade que norteia todo o
ordenamento penal.

2.3 Do princípio da individualização da pena

É direito do condenado ter a pena a ele aplicada de forma individualizada,


atento a todos os detalhes do fato, do agente e da vítima. Todos os itens que
envolvem as circunstâncias do ilícito penal devem ser sopesadas para atingir o
quantum final da pena privativa de liberdade.
A importância deste princípio decorre do próprio conceito de Justiça.
Somente quando se afere todos os elementos do crime é que se tem a real noção da
culpabilidade do agente e, conseqüentemente, pode-se aplicar a pena de forma que a
sanção seja suficiente para garantir os fins da prevenção e retribuição da infração
penal.
Defende-se, aqui, que o máximo previsto da pena deve sempre ser encarado
como limite intransponível haja vista que configura-se como verdadeira garantia do
indivíduo contra o Estado. Assegura-se, através desta exegese restritiva, a não
 
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imposição de pena acima daquela abstratamente cominada pelo legislador. O


mínimo, ao contrário, deve ser visto como referência, buscando-se, assim, maior
eficácia ao direito fundamental de liberdade e ao princípio constitucional da
individualização da pena. (PEREIRA, 2010)
A vedação imposta pela Súmula 231 além de ferir os princípios retro
citados, significa, em última instância, que o processo de ponderação de todos os
dados do crime torna-se engessado, haja vista que impõe-se ao magistrado que este
desconsidere uma circunstancia que seria benéfica ao condenado. Ignora-se, assim, a
capacidade discricionária do juiz concedida pelo legislador, impedindo que essa
ponderação seja feita de acordo com o livre convencimento do juiz, único ciente de
todos os pormenores do evento, que poderia realizá-la de uma maneira, talvez, um
pouco mais benéfica ao réu.
O método trifásico da dosimetria da pena representou um avanço no que
tange o exercício do princípio da individualização da pena pois foi através do
fracionamento das fases que tornou-se possível uma análise mais detalhada não só
dos elementos do injusto mas, especialmente, através das três fases o magistrado
pode, minuciosamente, avaliar o grau de culpabilidade do agente e atribuir com maior
segurança e certeza a pena privativa de liberdade a ele cabível. A supressão da
segunda fase, como propõe o STJ em uma leitura extremada da súmula, importa em
retrocesso, o que não se pode aceitar.

 
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3 FIXAÇÃO DO QUANTUM APLICÁVEL ÀS ATENUANTES E


AGRAVANTES

Outra polêmica que abarca as atenuantes e as agravantes diz respeito à


influência concreta que estas geram na dosimetria da pena. Isto é, qual, exatamente, é
poder daquelas de alterarem o tempo de encarceramento.
Ocorre que, na primeira fase da dosimetria o juiz analisa as circunstâncias
judiciais de forma a fixar a pena-base. Não há qualquer indicação, por parte do
legislador, de qual seria a correta quantificação das diversas circunstâncias. A única
ordem é, por força do inciso II do art. 59, do CP, que o juiz fique dentro dos limites
mínimo e máximo da pena cominada.
Enquanto as causas de diminuição e aumento, aplicadas na terceira fase da
dosimetria, dispersas no CP tanto em sua Parte Geral quanto na Especial, são
facilmente identificadas por especificarem em forma de fração o valor que deve ser
aumentado ou decotado da pena provisória, as atenuantes e agravantes da segunda
fase não tiveram valoração definida pelo legislador, ficando sua aplicação e
quantificação a cargo do magistrado, trazendo enorme insegurança ao réu. As
agravantes e atenuantes da segunda fase, portanto, possuem regime extremamente
vago. Conforme demonstrado no capítulo 2, nem mesmo o limite mínimo serve
como barreira intransponível para a aplicação das circunstâncias na segunda fase.
Resta pacificado na doutrina e jurisprudência que o quantum relativo a
aplicação da atenuante não deve ser inferior a 1/6 da pena-base, em consonância
com o disposto em relação às majorantes e minorantes da 3ª fase:

A norma do artigo 61 limitou-se a estipular que as circunstâncias


ali previstas sempre agravam a pena, embora não tenha fornecido,
como ocorre em outros códigos estrangeiros, qualquer valor. O
mesmo ocorre com o disposto no artigo 65, que determina dever
a pena ser atenuada, porém sem qualquer menção ao montante.
 
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Temos defendido que cada agravante ou atenuante deve ser


equivalente a 1/6 (um sexto) da pena-base (menor montante
fixado para as causas de aumento ou diminuição da pena), afinal,
serão elas (agravantes e atenuantes) consideradas na segunda fase
de aplicação da pena, necessitando ter uma aplicação efetiva. Não
somos partidários da tendência de elevar a pena em quantidades
totalmente aleatórias, fazendo com que o humor do juiz
prepondere ora num sentido, ora noutro. (NUCCI, 2005. p. 208-
209)

O Código não estabelece a quantidade de aumento ou de


diminuição das agravantes e atenuantes legais genéricas, deixando
ao prudente arbítrio do juiz. No entanto, sustentamos que a
variação dessas circunstâncias não deve ir muito além do limite
mínimo das majorantes e minorantes, que é fixado em um sexto.
Caso contrário, as agravantes e atenuantes se equiparariam àquelas
causas modificadoras da pena que, a nosso juízo, apresentam
maior intensidade, situando-se pouco abaixo das qualificadoras
(no caso das majorantes). (BITTENCOURT, 2003. p. 557)

Questiona-se aqui, entretanto, a adequação da jurisprudência dominante em


fixar a fração referente às atenuantes e agravantes no 1/6 da pena-base. Isso porque,
se não há previsão legal, não há certeza jurídica para se estabelecer este quantum e,
conseqüentemente, a sua validade frente ao ordenamento. Devemos, assim,
novamente buscar inspiração no ordenamento para suprir esta lacuna de forma mais
satisfatória.
Se o Código Penal não fornece parâmetro seguro para a quantificação da
pena, em face das atenuantes e agravantes, o sistema penal, sim. Neste sentido, o
artigo 285 do Código Eleitoral e o artigo 77 do Código Penal Militar que possuem a
mesma redação, preceituam:

Quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem


mencionar o quantum, deve o juiz fixá-lo entre um quinto e um
terço, guardados limites da pena cominada ao crime. (BRASIL,
1965; e BRASIL, 1969). – grifos nossos.

 
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O legislador de 1984 ignorou os preceitos anteriormente estabelecidos e, em


um ato de abstenção, não definiu o quantum aplicável às atenuantes e agravantes.
Contudo, buscando referência em outros diplomas de cunho penal, estes limites
estão expressamente delimitados.
Ao propor a aplicação “entre um quinto e um terço” como quantificação
das circunstâncias da segunda fase da dosimetria busca-se a concretização dos
parâmetros em concordância com o resto do sistema penal o que, em última
instância, traduz-se em maior segurança jurídica.
Finalmente, a analogia defendida, ressalta-se, não é feita in malem partem uma
vez que não se pode, de plano, alegar que a permissão de variar entre um quinto e
um terço é prejudicial ao réu, haja vista potencialmente poder piorar em demasia a
pena provisória em caso de agravante reconhecida. Isto porque, ao utilizar os limites
impostos no Código Penal Militar e no Código Eleitoral, cria-se um “espaço de
manobra” no qual o magistrado poderá, tendo em vista as particularidades do caso
concreto, aplicar a pena de forma mais adequada, sempre em atenção à culpabilidade
do réu e do princípio da individualização da pena.

4 CONCLUSÃO

As circunstâncias atenuantes, no processo de dosimetria da pena, estão


envolvidas pela insegurança gerada pelo conflito entre o que diz o legislador e como
tal é interpretado pelos tribunais nacionais. Em razão da redação de dispositivos
referentes a outros elementos da dosimetria da pena, surgiu a polêmica se, na
aplicação das atenuantes, estas poderiam levar o juiz a fixar a pena provisória abaixo
do mínimo legal cominado ao tipo. Também, em vista da total omissão do legislador,

 
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não há no Código Penal qualquer referência sobre qual é o quantum a ser utilizado
na segunda fase da dosimetria.
A doutrina e a jurisprudência, agindo de forma a tentar completar as lacunas
do ordenamento, procurou estabelecer parâmetros ultra legem, via de regra utilizando-
se da analogia. Dessa forma, o STJ publicou a súmula 231, que veda a utilização da
circunstância atenuante para fixar a pena abaixo do limite inferior cominado e, em
decisões recorrentes, os tribunais vem adotando a fração de 1/6 sobre a pena-base
fixada como quantum aplicável tanto às atenuantes quanto às agravantes.
No tocante à súmula, ao analisar o disposto pelo STJ, percebe-se que a
Corte realiza uma leitura contra legem do artigo 65 do CP, completamente ignorando o
texto do dispositivo retro em clara negativa de vigência ao texto infraconstitucional.
Ainda, num processo de analogia in malem partem, o STJ expandiu o alcance do inciso
II do artigo 59, buscando dar ares de legalidade à interpretação feita. Como se
demonstrou no desenvolvimento deste trabalho, a analogia no Direito Penal possui
aplicação restritíssima, apenas podendo ser feita a favor do réu. Novamente, patente
é a violação dos princípios constitucionais.
Além disso, em função do texto expresso do art. 65, CP, que diz que tais
circunstâncias “sempre” atenuam a pena, e do art. 68, CP, que impõe a realização
obrigatória das três fases da dosimetria, não há duvida sobre a validade da aplicação
das atenuantes para fixar a pena provisória abaixo do mínimo legal. Não há, no caso,
qualquer espaço para uma leitura diversa da aqui apontada, haja vista a cristalina
posição adotada pelo legislador, obviamente deturpada pelo STJ.
A súmula 231, dessa forma, fere o principio da legalidade, ao ignorar a
orientação expressa do legislador presentes nos artigos supra citados; e
simultaneamente, o princípio da individualização da pena, haja vista que não permite
que o juiz sopese os pormenores do fato e calcule a real culpabilidade do agente.
Também, na medida que a súmula francamente impõe a realização do processo da
 
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dosimetria pelo método bifásico, contra o disposto no artigo 68 do CP que instituiu


o método trifásico obrigatório, esta encontra-se eivada de ilegalidade.
Finalmente, buscando arrimo nos dispostos do Código Penal Militar e no
Código Eleitoral, é possível obter, com maior segurança e em atenção à coesão do
ordenamento penal, um critério mais adequado à fixação do quantum aplicado nas
circunstâncias da segunda fase da dosimetria. Nos dois diplomas citados o legislador
fixou o mesmo entre 1/3 e 1/5, concedendo ao magistrado um espaço de manobra
para exercer sua discricionariedade e adequar, ao caso concreto, a sanção legal, pelo
qual não há motivo para que se aplique qualquer fração pré-determinada conforme
vem se posicionando a doutrina majoritária.

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CIDADANIA ATRÁS DAS GRADES:


VIOLÊNCIA E GÊNERO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Talita Tatiana Dias Rampin

RESUMO

O presente trabalho analisa em que medida a cidadania brasileira é realizada em seu


sistema prisional. Através da análise dos dados estatísticos de junho de 2009
fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional, traça um esboço da atual
conjuntura estrutural prisional brasileira, bem como identifica o “perfil” da
população encarcerada utilizado pelo governo para o estabelecimento das respectivas
políticas públicas. Investiga em que medida o referido paradigma contribui para a
violação dos direitos humanos, mormente quando consideramos o forte apelo de
gênero que emana do direito e sistemas penal e penitenciário. Enfoca o processo de
mortificação e invisibilização do “Outro” que ocorre através da confirmação da
categoria da totalidade, ou seja, da afirmação de que “o ser é, o não-ser não é”.
Denuncia a violência que o próprio sistema engendra, mormente quando
consideramos a vulnerabilidade de determinados sujeitos, em especial, das mulheres
encarceradas. Propugna pela superação do paradigma hegemônico vigente através da
adoção de uma categoria distinta, para afirmar a alteridade negada: a exterioridade,
em que “o ser é, o não-ser é real”. Refuta a disseminada tese de “falência” do sistema
prisional lastreado nos estudos de Michel Foucault, indicando que os fins colimados
pelo sistema são sim alcançados pela estrutura vigente, que tem na violência e na
delinqüência elementos configuradores. Caracteriza o sistema vigente como
criminoso e criminalizante, problematizando a concretização da cidadania da
população encarcerada feminina.

Palavras-Chave: sistema prisional; violência; gênero.


Keywords: prison system; violence; gender.

 
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INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objeto a análise da concretização da cidadania


brasileira na hipótese em que o sujeito encontra-se encarcerado em penitenciárias
públicas em virtude de uma sanção penal que lhe fora imposta pelo Estado através de
uma condenação judicial.
Fruto dos debates promovidos, em 2009, pelo Professor Doutor Paulo
César Corrêa Borges, na disciplina “Tutela Penal dos Direitos Humanos”, no âmbito
do curso de mestrado em Direito da UNESP, nossa análise problematiza a temática
da violência sob um ponto de vista peculiar: a perpetração da violência contra a
população carcerária feminina brasileira a partir da imposição de um sistema e
estrutura penal e penitenciária androcêntrico. A adoção de um paradigma masculino,
absoluto e uno quando da elaboração das políticas públicas carcerárias, viola a
cidadania das mulheres presas e contribui para processo progressivo e intensivo de
sua invisibilização, ao ponto de negar-lhes um dos bens mais caros à pessoa humana:
a dignidade.
O enfoque adotado vai ao encontro das preocupações em nós despertadas
no ano de 2006, ocasião em que tivemos a oportunidade de acompanhar o
desenvolvimento de um projeto de extensão universitária, denominado “Projeto
Cadeia”, realizado pelo Centro Jurídico e Social (CJS) da UNESP junto aos cursos de
graduação em Direito e em Serviço Social. O projeto, ainda em andamento, visa
promover a assistência jurídica gratuita no único estabelecimento penitenciário
feminino da região de Franca, Estado de São Paulo: a Cadeia Pública de Batatais1.

                                                            
1Durante nossa participação como estagiária do CJS, a Cadeia Pública de Batatais/SP era ainda
masculina, e o Projeto Cadeia era realizado no anexo da Delegacia de Polícia de São José da Bela
Vista/SP. Devido à intervenção do Ministério Público Estadual de Franca, a unidade prisional de São
 
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Naquela ocasião, tivemos a oportunidade de estabelecer um contato direto


com a população carcerária feminina da região e vivenciar, embora como estagiária
de advocacia, o que Julita Lemgruber2, ao prefaciar a segunda edição de sua obra
“Cemitério dos Vivos” (1976), afirmou no século passado: “É impossível passar por
uma prisão e sair sem marcas e feridas. Acontece com todos. Com os que para lá são
mandados, para cumprir uma pena. Com funcionários e visitantes. E, porque não,
com pesquisadores”.
A realidade prisional que nos foi revelada atingiu-nos sobremaneira no
modo de pensar o direito e, em especial, o sistema penitenciário. Atingiu-nos,
também, em nossa essência humana. Deparamo-nos com um ambiente em que tudo
parecia carecer de reformas: a estrutura física envelhecida, suja e inadequada; o staff
quantitativa e qualitativamente limitado, senão inexpressivo; o gerenciamento
ultrapassado, desleixado e, porque não, desumano; o ambiente fétido, estagnado e
opressor; e até mesmo as mulheres encarceradas, destituídas de sua própria
identidade, abandonadas por suas famílias e amigos, ignoradas pelo Estado e
respectivos agentes políticos, enfim, esquecidas em sua condição humana.
Demasiado humana3.
A partir dessa experiência, observamos algumas falhas penitenciárias
pontuais. A primeira constatação é a de que a estrutura física prisional vigente é
incapaz de fazer frente ao número de pessoas encarceradas. Sendo assim, a falta de
vagas é uma constante com a qual o sistema prisional convive. A segunda é a
constatação da inadequação dessa mesma estrutura em servir de morada digna para
seres humanos. E mais. Essa estrutura e organização penitenciárias servem antes para
                                                                                                                                                                   
José da Bela Vista foi interditada e sua respectiva população carcerária transferida para Batatais, que,
por sua vez, teve seus presos homens transferidos para a unidade francana.
2 LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos Vivos: análise sociológica de uma prisão de mulheres. 2ª

edição, revista e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 1999. P. XIII.


3 Alusão á obra de Friedrich Wilhelm Nietzsche “Humano, demasiado humano” (2005, traduzido por

Paulo César de Souza) cujo original, em 1878, inaugura a maturidade do pensamento de Nietzsche
 
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a violação dos direitos humanos e fundamentais do que à redução da delinqüência e


violência.
Nesse sentido, uma inquietação nos acometeu. Parece haver um consenso
doutrinário sobre a atual falência do sistema prisional. As noticias que nos chegam
informam-nos da existência de uma “crise” no sistema penitenciário. Corrupção,
maus tratos, rebeliões, fugas, organizações criminosas, todos estes problemas são
apontados pela mídia como evidências de uma suposta falência prisional. Contudo,
partimos de uma premissa diversa. Se entendermos que “falido” é um adjetivo que
qualifica a impossibilidade de satisfazer adequadamente as obrigações assumidas,
chegaremos à uníssona conclusão de que falido está, de fato, o nosso sistema
penitenciário, assim como também estão o nosso Direito, Estado, sociedade e,
inclusive, a nossa própria condição humana. Mas, se detivermos maior atenção sobre
a realidade, tal como ela se nos apresenta, constataremos que o sistema prisional
vigente não só não está falido, como, também, cumpre a contento todas as
finalidades institucionais por ele assumidas.
O referencial teórico adotado encontra em Michel Foucault4 e Erving
Goffman5 o lastro necessário para confirmar a tese de que a aparente “falência” e
“crise” do sistema prisional são, na verdade, características estruturais indispensáveis
para que a prisão atenda a contento os fins colimados: controlar os indivíduos
encarcerados e conformar, de modo sistemático, a população carcerária à deliquência
desejada ou pré determinável.
Com Foucault, observamos que o assujeitamento do encarcerado pelo
sistema ou poder, insere-se em um contexto de disciplina, fixação de identidade e
limitação das possibilidades do “ser”. A ação punitiva, que antes tinha como objeto o

                                                            
4 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. 30ª edição. Petrópolis:
Vozes, 2005.
5GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes.

 
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corpo do sujeito, transfigura-se: o corpo não é mais o alvo principal da repressão


penal. Os castigos físicos, outrora “espetáculos”, deixam de ser admitidos como
formas punitivas oficiais do Estado. Em seu lugar, surgem punições menos
diretamente físicas e focadas mais no “vigiar” do que no “punir”. Notamos, hoje, a
atualidade de Foucault: o sistema é voltado para uma forma aprimorada da mesma
“arte de fazer sofrer”, porém, mais discreta, mais sutil, e talvez por isso mais eficiente
em adestrar os corpos dóceis.
Goffman, por sua vez, promove uma análise micro sociológica desse
mecanismo de poder. Em sua obra Presentation of self in everyday life (1959), Goffman
utiliza a metáfora da vida enquanto peça teatral para explicar o modo de “atuação” e
os “papéis” vividos pelos indivíduos em sociedade. Segundo o autor, nossa existência
pressupõe o cumprimento de certas expectativas. Cada indivíduo possuiria uma
função, um papel, uma conduta e postura a ser exercida e assumida perante a
sociedade. Estigmatizado, o sujeito se vincula e é vinculado ao papel que lhe é
impingido. Uma vez desvirtuada sua atuação (extrapolando ou desviando sua
conduta daquela que é dele esperada), o sujeito perde a legitimação para desempenhá-
la6.
O presente trabalho pondera os estudos desses autores como pressupostos
para o entendimento do processo de mortificação do eu que ocorre nos indivíduos
encarcerados. Entendemos, com Ana Gabriela Mendes Braga7 e Alvino Augusto de
Sá, que a ordem institucional causa um impacto significativo sobre a identidade do
preso, que será tão mais intenso quanto o for sua vulnerabilidade. Nesse processo de
prisionização o indivíduo penalmente condenado se sujeita, segundo Baratta, a um
duplo movimento: um de desculturação (negação de uma cultura) e outro de
                                                            
6 Sobre a identidade enquanto representação de papéis sociais, conferir: BRAGA, Ana Gabriela
Mendes. A identidade do preso e as leis do cárcere. Dissertação de mestrado. Usp, 2008.
7 BRAGA, Ana Gabriela Mendes. A identidade do preso e as leis do cárcere. Dissertação de

mestrado. Usp, 2008.


 
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aculturação (aceitação de uma nova cultura ou subcultura). É nesse momento que


podemos identificar um locus de violação de direitos e violência humana: o sistema
faz com que o cidadão, preso, perca sua identidade, sua individualidade, sua
autonomia e sua vontade para, em seguida, configurá-lo segundo os seus interesses.
É o sistema penal e penitenciário atuando à margem da legalidade, gerenciando as
ilegalidades existentes e produzindo a deliquência. Podemos, inclusive, afirmar ser o
sistema penitenciário criminoso e criminalizante.
Imbuídos dessas aspirações é que iniciaremos nosso trabalho. Na primeira
parte, recorreremos a dados estatísticos fornecidos pelo Departamento
Penitenciário8, para identificar a realidade prisional brasileira, ao menos em termos
numéricos. A análise quantitativa é necessária para dimensionar o impacto de nosso
estudo e identificar o paradigma carcerário sobre o qual o Estado – em nível federal e
estadual – traça suas respectivas políticas públicas.
Em um segundo momento, discutiremos a insuficiência do paradigma
carcerário vigente em atender à realidade prisional humana, em sua globalidade, e,
pior, demonstraremos que referido paradigma é estigmatizante, excludente e
invisibilizador. Recorreremos então ao existencialismo em Simone de Beauvoir9 para
dimensionar em que medida o “Um” penal e penitenciário é afirmado em detrimento
do “Outro”. Nossa tese é a de que o sistema penitenciário possui um forte apelo de
gênero, no qual o homem (“ser”) reina uno e absoluto, enquanto a mulher (“não-
ser”) é submetida em sua incompletude, parcialidade e insignificância. Um sistema e
direito assim pensado, contribui para a violação de um sem número de direitos
humanos e fundamentais, pois oprime parcela considerável da população e corrobora
para a invisibilização feminina.

                                                            
8Informações on-line em http://www.mj.gov.br/depen. Acesso aos 20 de outubro de 2009.
9BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. 6ª ed. Traduzido por Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
 
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Nesse sentido, crucial foram as leituras das obras de Olga Espinoza10, Judith
Butler11 e Julita Lemgruber, que trazem á tona os problemas de gênero como
instrumentos de subversão da identidade feminina. O mote, comum, é o cárcere
enquanto instituição total.
Por entendermos ser crucial que o escritor situe-se no tempo e no espaço,
restringimos o nosso olhar territorialmente sobre a hipótese paulista, e,
historicamente, às políticas penitenciárias implementadas a partir da segunda metade
da década de setenta. Os estudos de Fernando Salla12 desenvolvidos junto ao Núcleo
de Estudos da Violência (NEV) da USP13 inspiraram nossa compreensão dos
acontecimentos políticos e governamentais em São Paulo.
Nossa tentativa é vislumbrar uma aproximação entre a filosofia da
libertação, cujo lastro teórico não poderia ser outro que não Enrique Dussel14, e o
Direito, fomentando uma nova hermenêutica e concepção da cidadania à luz de sua
fundamentalidade no Estado Democrático de Direito brasileiro. Recorrendo a Michel
Miaille15, buscaremos contribuir para “fazer aparecer o invisível”, a partir de uma
categoria de exterioridade. Propugnamos pelo gozo necessário dos direitos
fundamentais, inclusive, pelas mulheres encarceradas. Para tanto, cumpre denunciar
que o Estado, através de seu sistema e políticas carcerárias, voltadas única e
exclusivamente ao paradigma masculino hegemônico, impede a eficácia expansiva e

                                                            
10 ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: IBCCRIM,

2004.
11 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Civilização brasileira, 2008.


12 SALLA, Fernando. De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São Paulo. In Revista

Brasileira de Segurança Pública. Ano 1, 2007.


13 Cf. on line: www.nevusp.org.br
14 Cf. DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação: crítica à ideologia da exclusão. Trad. Georges

Maissiat. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2005. Do mesmo autor: Ética da libertação na idade da
globalização e da exclusão. 2 ed. São Paulo: Vozes, 2002.
15 MIAILLE, Michel. Introdução crítica ao direito. 2ª edição. Trad. Ana Prata. Lisboa/Pt: Estampa,

1994. P.21.
 
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extensiva dos direitos fundamentais, inclusive da cidadania que, sistematicamente


violada, não se concretiza atrás das grades.

1 A POPULAÇÃO CARCERÁRIA BRASILEIRA

O Ministério da Justiça, através de seu Departamento Penitenciário


Nacional (DEPEN), mantém um Sistema Integrado de Informações Penitenciárias
(InfoPen) que articula informações sobre o sistema prisional brasileiro das diversas
regiões que compõem o cenário nacional. Os dados coletados até junho de 2009
revelam uma realidade numérica assustadora: o Brasil possui 468.807 presos. Destes,
409.548 estão no Sistema Penitenciário, que – pasmem! – conta atualmente com
apenas 270.300 vagas, sendo 255.823 destinadas a homens e 14.477 a mulheres.
Através destes primeiros dados, alarmantes, podemos constatar a existência de um
déficit de 139.248 vagas.
Analisando a distribuição geográfica dessa população carcerária,
constatamos que a região Sudeste concentra a maior parcela dos presos: são 212.238
pessoas contra 64.865 no Nordeste, 64.536 no Sul, 39.784 no Centro-oeste e 25.189
no Norte. No Estado de São Paulo a realidade é ainda mais devastadora, uma vez
que sua população carcerária expressa quase 32% do total nacional: são 158.704
presos para uma população estimada em 41 milhões de habitantes. Isso significa que
a cada grupo de 100 mil pessoas, 386,97 estão presas. Constatação expressiva e que
não pode passar despercebida.
São Paulo não só possui a maior expressão numérica, mas, também, o maior
percentual nacional. Sua população carcerária é numericamente a mesma dos Estados
de Minas Gerais (33.152 presos, 7% do total), Rio Grande do Sul (28.619, 6%),
Paraná (23.263, 5%), Rio de Janeiro (22.185, 5%), Pernambuco (20.865, 4%), Ceará
 
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(13.491, 3%) e Santa Catarina (12.654, 3%) somados! Em um ranking dos Estados
com maior população carcerária, São Paulo desponta em primeiro lugar com uma
população igual à soma dos 2º à 8º colocados.
Embora os números não possam expressar em sua completude a dimensão
humana do sistema prisional, podemos, a partir da plataforma on-line do DEPEN,
adquirir uma compreensão mais concreta de nossa realidade penitenciária, uma vez
que o InfoPen disponibiliza regularmente dados atualizados e detalhados sobre a
população carcerária e respectiva estrutura prisional.

1.1 O Sistema Prisional paulista

Conforme foi dito, São Paulo possui uma população carcerária de 158.704
pessoas, sendo que sua capacidade é de 99.074 presos. A superlotação das cadeias e
penitenciárias paulistas é uma constante, já que o seu trabalha com um déficit de 33%
de suas vagas. Quanto à sua estrutura, precária, o sistema conta com 132
estabelecimentos penais, sendo 121 masculinos e apenas 11 femininos. Desses
recintos, 77 são penitenciárias, 13 são colônias agrícolas, 38 são cadeias públicas e há
ainda quatro hospitais de custódia e tratamento. Inexistem casas de albergados.
Os dados revelam ainda uma insuficiência no número de servidores
penitenciários. São Paulo conta atualmente com 29.011 servidores16, sendo que 1.862
pertencem ao quadro administrativo, 25.583 são agentes penitenciários (estima-se um
agente para cada grupo de seis presos), 341 são assistentes sociais e apenas 1.225 são
profissionais da área da saúde. São números alarmantes por demonstrarem a escassez
de servidores para tratar significativa parcela dos cidadãos.
                                                            
16 De acordo com os indicadores do InfoPen – referência 6/2009 – não há estimativas de quantos

destes servidores (funcionários públicos na ativa) estão lotados em presídios masculinos ou femininos. 
 
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Um dado que chama a atenção é o número limitado de profissionais ligados


à área da saúde, dentre os quais destacamos como categorias: enfermeiros, auxiliares
e técnicos em enfermagem, psicólogos, dentistas e médicos (das mais diversas
especialidades). Atualmente existem somente 1.225 profissionais da saúde
contratados, ou seja, cerca de um funcionário para cada grupo de 130 presos. Quanto
à estrutura física, a limitação não é diferente: existem apenas cinco módulos de saúde,
dos quais apenas um é especializado para o tratamento da saúde feminina.
Uma observação pontual há de ser considerada: os dados do InfoPen
(referência: junho/2009), revelam a contratação de somente dois médicos
ginecologistas para atender as cerca de 7.712 mulheres encarceradas, ou seja, existe
um ginecologista para cada grupo de 3.856 mulheres. Considerando um expediente
de 6 horas diárias, distribuído em 240 dias úteis (média de 20 dias úteis mensais em
um período de um ano), cada médico teria à disposição das presidiárias paulistas um
total de 1440 horas anuais. Se relevássemos o fato de que os mesmos gozam de férias
e também de que existem feriados nacionais17, poderíamos especular que cada mulher
encarcerada, poderia fruir, no máximo, onze minutos anuais de consulta médica
(consideramos, para o cálculo, o atendimento ginecológico dentro dos padrões
recomendados: ao menos duas vezes ao ano), seja referida consulta preventiva,
rotineira ou para tratamento específico18. Onze minutos totais, nele computados o
tempo gasto pelo paciente para conversar com o médico, fazer os exames
necessários, receber o diagnóstico e fazer o retorno. Onze minutos entre o primeiro e

                                                            
17 Nesse sentido, desconsideramos, ainda, o fato de a extensão territorial do Estado de São Paulo

dificultar o deslocamento desses médicos da Capital (onde provavelmente encontram-se lotados) para
o interior. Consideramos que referido deslocamento, se existente, é realizado em outro horário, que
não o do expediente.  
18 Muito provavelmente referidos ginecologistas trabalham no tratamento antes do que na prevenção e

manutenção da saúde feminina, pois não teriam tempo hábil para atender a demanda e ainda se
deslocar pelos inúmeros municípios paulistas, ou sequer na Grande São Paulo.
 
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derradeiro contato com o médico. Nesse sentido, e considerando a saúde em bem


essencial, podemos afirmar existir a prestação de um serviço público adequado?
A displicência no tratamento da saúde feminina corrobora a nossa tese de
que o sistema prisional brasileiro possui um forte apelo de gênero, que o impede de
atender as especificidades do universo feminino e, mais, contribui para um sem
número de violações dos direitos humanos e fundamentais. Contudo, antes de
adentrar o mérito da temática “gênero e direito”, cumpre-nos identificar o perfil do
preso paulista. É o que nos propomos a analisar a seguir.

1.2 O paradigma hegemônico carcerário: o “Um” ou “ser” masculinizado

Dos presos custodiados no Sistema Penitenciário paulista, 49.375 são presos


provisórios, 78.799 cumprem pena em regime fechado, 19.300 em regime semi-
aberto, 955 cumprem internados medidas de segurança e 514 estão sob tratamento
ambulatorial. Nenhum preso cumpre pena em regime aberto lastreado no argumento
de insuficiência estrutural do sistema.
Contrariando o que o senso comum nos leva a crer, a maioria dos
presidiários possui alguma instrução educacional19. O InfoPen aponta20 para um total
de 5.179 analfabetos, o que representa cerca de 3% do total das mulheres e 4% dos
homens encarcerados. O sistema aponta mais: 15% dos presos declararam-se apenas
alfabetizados (21.696), 55% cursaram ao menos parte do ensino fundamental
(82.222) e 21% teve acesso ao ensino médio (30.773).
Esta primeira constatação chama atenção para o fato de que o preso

                                                            
19Lembrando que estamos trabalhando com um total de 148.943 pessoas encarceradas.
204.257 homens não informaram o seu grau de instrução (cerca de 3% do total dos homens
encarcerados).
 
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paulista possui sim um grau considerável de instrução, e, assim sendo, passou ao


menos algum período de sua vida em escolas e esteve em determinadas fases
(infância e adolescência) sob os cuidados e tutela do Estado através de sua rede
pública de ensino. De imediato podemos pontuar uma forma ou momento incisivo
de atuação estatal antes do ingresso dessas pessoas no mundo do crime: a idade de
formação escolar. Através do esboço de políticas públicas, o Estado, querendo, pode
atuar de forma efetiva na vida de seus cidadãos, principalmente em momento de
crucial importância não só para a formação de seu caráter, mas também para a erição
de um espírito cívico e construção de um sujeito apto a ingressar no mercado de
trabalho com um grau mínimo de instrução, o que permitiria, em tese, seu
afastamento ou redução de sua vulnerabilidade.
Podemos também identificar que a massa carcerária paulista é composta por
brasileiros natos. São 138.713 brasileiros contra 1.757 estrangeiros. Destes, a maioria
provém de países africanos (601) ou americanos (699), sendo ainda expressivos os
grupos europeus (334) e asiáticos (119). Outro fator notável das estatísticas é a
formação étnica ou quantidade de presos segundo a cor da pele e respectiva
procedência. Segundo o relatório de junho de 2009, 63.249 presos são brancos,
23.100são negros e 49.357 são pardos. Quanto à procedência, 47.368 são
provenientes de municípios do interior, 56.880 de regiões metropolitanas e 2.600 da
zona rural.
Quanto ao “perfil criminológico”, mulheres e homens não apresentam o
mesmo padrão. Dos encarcerados paulistas, 66% cometeu crimes contra o
patrimônio, 20% se envolveu em tráfico de entorpecentes e 11% cometeu crimes
contra a pessoa. Contudo, enquanto 69,70% dos homens estão presos pelo
cometimento de crimes contra o patrimônio, apenas 24,32% das mulheres
cometeram o mesmo crime. A maioria das mulheres está encarcerada devido ao seu
envolvimento com tráfico de entorpecentes, que constitui 50,16% do total.
 
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No que tange ao tempo total das penas, o perfil carcerário feminino


também difere do masculino. A maioria das mulheres (33%) cumpre penas de até
quatro anos (2.580), seguidas das penas (25%) de quatro a oito anos (1.894). Os
homens, por sua vez, cumprem, majoritariamente, penas de quatro a oito anos
(29.958), seguidos (17%) das de oito a 15 anos (24.015).
Um dado que nos chama atenção é a idade média do preso paulista. Mais da
metade (55%) de toda a população carcerária ainda não completou 30 (trinta) anos.
Essa maioria é identificável tanto entre as mulheres (42,68%) como entre os homens
(56,12%).
A exposição que fizemos até o presente momento, centrada em indicadores
estatísticos e evidenciação de dados numéricos em modulação gráfica, serviu de mote
para que alcançássemos os seguintes percentuais sobre a totalidade dos presos
paulistas: 21% cumprem pena de quatro a oito anos; 55% ainda não completou 30
anos; 93% são brasileiros natos; 70% é alfabetizado e cursou ao menos parte do
ensino fundamental; 42% são brancos; 16% são negros; 70% são da zona urbana
(32% do interior e 38% de regiões metropolitanas); 67% cometeu crime contra o
patrimônio e 21% tráfico entorpecentes; e 95% é Homem.
Os dados falam pouco e muito, ao mesmo tempo. São números frios, talvez
incertos, já que não sabemos o propósito a que realmente servem, contudo, são
números que não podem ser ignorados. São números, mas sua extensão na realidade
não é meramente quantitativa, mas, sobretudo, qualitativa, uma vez que é sobre esses
dados que o Estado identifica um suposto “perfil” carcerário e, com base nesse
paradigma, traça suas políticas públicas de atuação.
Pelo exposto, identificamos que o perfil do preso paulista é: do gênero
masculino, de cor de pele branca, com 30 anos incompletos, brasileiro nato,
proveniente da zona urbana, possui ensino fundamental incompleto, cometeu crime

 
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contra o patrimônio e cumpre pena de quatro a oito anos de prisão em regime


fechado.
Uma vez identificado um “perfil”, este passa a “ser”. Todos os demais
perfis que não se adéqüem ou não correspondam àquele, “não-são”. Identificado o
“Um” exclui-se o “Outro”. Constrói-se um paradigma hegemônico a partir de
estatísticas e em cima deste é que são pensadas, formuladas e implantadas todas as
políticas criminais. Inclusive as destinadas ao “Outro”.
Este “Um” é masculinizado, branco, instruído e “perturba” a sociedade em
um “bem” delimitado: o patrimônio privado. Fácil concluir pela inadequação de uma
estrutura planejada para atender, conter e controlar este “ser”, em servir a um
“Outro” feminino, branco-pardo, instruído e que atua criminalmente a serviço do
tráfico, submetida a este e aos homens que o comandam. O convívio entre a
dualidade ser/não-ser, um/outro, absoluto/parcial, não consegue ser harmônico. Na
verdade, essas categorias se sobrepõem umas as outras, sendo aquela mais vulnerável
a submetida. Diante disso, uma categoria vige hegemônica, enquanto a outra, jaz
submetida, oprimida.
A identificação do perfil do preso paulista é crucial ainda por servir de
modelo ou padrão extensível aos demais Estados da Federação. Afinal, se o Estado
de São Paulo concentra a maior parte da população carcerária, é o preso paulista o
paradigma hegemônico nacional.

1.3 Primeiras considerações

Lastreados nos dados sócio-demográficos apresentados, podemos tecer


algumas considerações iniciais.
A primeira é que o sistema penitenciário nacional não possui vagas
 
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suficientes para abrigar, sequer, os cidadãos já encarcerados. Convivemos com um


déficit de quase 140 mil vagas, ou seja, no mínimo, não possuímos espaço físico para
abrigar 34% do total dos presos no sistema. Em termos práticos, isto significa que
nossos estabelecimentos prisionais e respectivas estruturas penais (sejam elas
materiais ou de pessoal) abrigam inapropriadamente quatro cidadãos em local cujo
limite espacial seria de no máximo três. A consequência inevitável dessa constatação
é a superlotação das prisões brasileiras, que trabalham com população superior a
suportada.
Os dados observados de Estados nordestinos e do centro-oeste revelam que
quanto mais centrais e afastados os Estados se apresentem do eixo Rio – São Paulo,
maior é o déficit de vagas nas prisões. A título de exemplificação, encontramos
Pernambuco com um déficit de 55% e Mato Grosso com 54%. Nestes Estados, a
cada dois cidadãos encarcerados, um o está de modo inadequado. Em SP, a realidade
não é outra. O sistema paulista trabalha com um déficit de 33%, confluindo para a
média nacional. Nesse Estado, talvez mais do que em outros, as projeções dessas
superlotações adquirem contornos mais notórios, pois a concentração da população
carcerária em SP (32%) é maior do que nos demais Estados, como PE (4%) e MT
(2%).
Se SP é a maior expressão nacional em termos carcerários, podemos
certamente fazer nossa segunda consideração: as políticas carcerárias nacionais são
traçadas com base na realidade paulista, que coincide, em muitos aspectos, com a
nacional. Assim, SP tornou-se o paradigma hegemônico em relação à política
criminal, seja em termos estruturais, seja em termos criminológicos. Quanto à
estrutura, vários problemas são identificáveis: insuficiência de servidores, falta de
qualificação profissional, priorização da segurança e vigília em detrimento da
manutenção da saúde dos encarcerados, negação do direito ao trabalho, carência de
atividades direcionais.
 
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Chamamos atenção para a precariedade da área da saúde: a superlotação


acarreta um contato físico direto entre os detentos não desejável, pois contribui para
a disseminação de doenças contagiosas, desde problemas dermatológicos tais como a
sarna até doenças venéreas, como o HPV. A limitação de recursos leva também a
administração das penitenciárias a não disponibilizar aos seus presidiários produtos
de limpeza e de higiene pessoal, fato este que atua como catalisador da proliferação
de um sem número de patologias. Essa realidade aliada à insuficiência de
profissionais da saúde é devastadora, e acaba corroborando a violação da saúde como
direito fundamental.
Drauzio Varella21, em sua obra “Estação Carandiru”, relata sua experiência
como médico no complexo do Carandiru em 1989. Na época, a Casa de Detenção
era o maior presídio do país, chegando a abrigar 7200 presos. O trabalhado realizado
pelo médico contou com o apoio da Universidade Paulista (UNIP) e enfocou o HIV
(tratamento, prevenção, acompanhamento). Em seu relato, é possível dimensionar
como a saúde é tratada atrás das grades:

Não eram apenas os casos de AIDS e tuberculose, a clientela


tornou-se variada: facadas, acessos de asma, diabéticos,
hipertensos, abscessos, craqueiros dispnéicos, paraplégicos com
escaras, epiléticos em crise, dermatites diversas (…)
Eu tinha que ser rápido: ouvir as queixas, palpar, auscultar, olhar,
fazer o diagnóstico e receitar o medicamento em cinco minutos
no máximo. Sem errar, se possível. (…) Inútil solicitar exames
laboratoriais porque os resultados, quando vinham, não chegavam
a tempo de auxiliar na consulta. (…) Dificuldades não faltavam. A
medicação prescrita percorreria complicadas vias burocráticas (…)
Muitas vezes, como é característico no serviço público, existia
fartura de antibióticos e antivirais caríssimos, enquanto faltava
aspirinas e remédio para sarna (...)

Nosso contato com as mulheres encarceradas em São José da Bela Vista

                                                            
21 VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das letras, 1999. P.90 e 91.
 
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corroboram o relato de Varella. A cadeia em pauta possuía quatro celas de 6m² cada,
e era destinado à uma população carcerária flutuante de 45 a 60 pessoas. As celas
eram dispostas uma ao lado da outra, em fila única, dispostas no mesmo corredor.
Ventilação, iluminação e água potável eram “luxos” com os quais o sistema
penitenciário “não podia arcar”. Amontoadas, as mulheres passavam a maior parte
do tempo deitadas no chão encostadas umas às outras. O ar estagnado aliado à
precária higiene das presas e limpeza do local não poderia acarretar outra
conseqüência: doenças de pele, das mais variadas. A sarna reinava triunfante e a
maior reclamação das presas era a insuficiência de remédio para combater a “praga”.
Aliás, as reclamações eram ironicamente entonadas para sugerir que o remédio,
quando existente, tinha destino certo: as “queridinhas” do cárcere.
Outra consideração a ser feita é que o presidiário brasileiro é um cidadão
em idade produtiva, já que mais da metade dos encarcerados possui entre 18 e 29
anos de idade. Críticas a parte sobre os impactos que este fato causa na realidade
brasileira – mormente no que tange á condição social e econômica das famílias
dependentes destes detentos e que acabam sofrendo grande impacto em seu nível de
vida via reflexa ao encarceramento – centremos nosso olhar sobre o dia-a-dia desses
cidadãos. São raras as instituições que investem em programas de trabalho (somente
41.863 presos têm acesso a algum tipo de trabalho interno ou externo ao sistema
prisional) e, quando os estabelece, o faz de modo insatisfatório, já que o número de
vagas oferecidas é insuficiente para alocar todo o contingente carcerário e,
principalmente, não atende as particularidades profissionais dos presos.
Os trabalhos dispostos aos presos, além daqueles comumente dispensados à
manutenção do próprio prédio prisional (faxina, pequenos trabalhos burocráticos,
cozinha, pequenos reparos...), são muitas vezes subempregos que atendem antes aos
interesses do particular explorador dessa “mão de obra” do que à própria legislação
trabalhista. Má remuneração (quando existente), exploração e trabalhos artesanais
 
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desinteressantes (costura de bolas de futebol, montagem de caixas, produção de


malas-direta) constroem as possibilidades de ocupação daqueles que têm a opção de
trabalho.
O sistema prisional poderia também servir de paliativo para algumas
insuficiências educacionais constatadas a posteriori. Se o preso paulista possui baixa
escolaridade, porque não aproveitar a concentração populacional carcerária como
lócus de atuação? Ora, se esses cidadãos estão todos reunidos em uma só estrutura
física, cumpre ao Estado fazer-se presente e inserir programas de formação escolar.
Se uma das funcionalidades da prisão é promover a ressocialização do preso, cumpre
efetuá-la também através do aperfeiçoamento profissional e instrução educacional.
Ocorre que o Estado apresenta-se, no cárcere mais do que em qualquer outro espaço
público, ausente, ou no mínimo omisso, e somente 16.457 dos presos tem acesso a
educação.

2 A NEGAÇÃO DO “OUTRO” PELO SISTEMA PRISIONAL

Se, por um lado, o Estado identificou como paradigma carcerário


hegemônico o homem branco, jovem, da zona urbana, com ensino fundamental
incompleto, que cometeu crime contra o patrimônio e cumpre pena de quatro a oito
anos de prisão em regime fechado, por outro, observamos que foi excluída grande
contingente de pessoas encarceradas.
Enfocaremos, por ora, a hegemonia de um gênero humano, o masculino,
no sistema penitenciário, e discorreremos sobre os reflexos que a supressão das
particularidades do sexo feminino acarreta na violação e violência contra as mulheres
encarceradas.

 
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2.1 O “Um” masculino: a categoria da totalidade como fator de negação do


“Outro”

Ao centrar o Homem como paradigma, o sistema penal e penitenciário


estabelece qual sujeito é considerado como absoluto. Este “Um” passa a servir de
referência suprema, “ser” uno, superior, hegemônico. Todos aqueles que se
distanciam deste “Um” passam a sofrer a vulnerabilidade do “Outro”. Notamos que
essa forma de pensar e agir reflete a adoção da totalidade como categoria fundamental,
que, por sua vez, emerge como afluente da ontologia grega, européia e, porque não,
moderna-liberal.
Parmênides, na antiguidade grega, pressagiou: “o ser é, o não-ser não é”.
Repetido e disseminado, esse pensamento adentrou as entranhas do pensamento
clássico e suas repercussões são sentidas ainda hoje, em nossa realidade. A afirmação
“o ser é” deixa implícito que tão somente uma categoria “é”. Esse “ser” passa, então,
a ser o início e fim da totalidade, limitando e reduzindo a existência o uno. Sempre o
mesmo.
Enrique Dussel explica que essa categoria da totalidade refugia o
pensamento no centro, como se este fosse a única realidade. “Fora de suas fronteiras
está o não-ser, o nada, a barbárie, o sem-sentido (...)22. O “Outro” “não-é”, não
existe, é excluído devido ao fato de somente o “ser” compor a totalidade. O
“Outro”, múltiplo, é então negado. Em nosso estudo, verificamos que o Homem
encarcerado tornou-se o “Um” e a Mulher encarcerada tornou-se o “Outro”. As
conseqüências práticas são desastrosas.
Segundo Simone de Beauvoir23:

                                                            
22DUSSEL, 1980, p.11.
23BEAUVOIR, Simone de. O SEGUNDO SEXO. 6ª edição. Traduzido por Sérgio Milliet. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1980. P.9.
 
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[...] O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a


ponto de dizermos “os homens” para designar os seres humanos,
tendo-se assimilado ao sentido singular o vocábulo vir o sentido
geral da palavra homo. A mulher aparece como o negativo, de
modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem
reciprocidade.

Nesse sentido, o movimento de totalização nega o “Outro” ao eliminar a


existência das diferenças. Afirma o mesmo como real e exclui todos os não
submetidos á totalidade pelo simples fato de ser outro. O “outro” torna-se, na
melhor das hipóteses, “algo”, nunca, “alguém”.

2.2 O “Outro” feminino: a categoria excluída pelo “Um”

O fenômeno da negação do “Outro” não é fenômeno de recente criação e,


principalmente, não é constatado em apenas uma categoria humana.
Ao longo da história, várias categorias forjaram o “Um” e, como tais, se
sobrepuseram ao “Outro”. Este, por “não ser”, foi sistematicamente excluído,
segregado e violado. São exemplos disso a escravidão do negro (outro) pelo branco
(um), o genocídio dos judeus (outro) pelos nazistas (um), a exploração das colônias
sul americanas (outro) pela Europa (um), dentre outros.

Existem outros casos em que, durante um tempo mais ou menos


longo, uma categoria conseguiu dominar totalmente a outra. É
muitas vezes a desigualdade numérica que confere esse privilégio:
a maioria impõe sua lei à minoria ou a persegue. [...] Não raro,
também, os dois grupos em presença foram inicialmente
independentes: ignoravam-se antes ou admitiam cada qual a
autonomia do outro; e foi um acontecimento histórico que
subordinou o mais fraco ao mais forte. [...]24

                                                            
24 BEAUVOIR, Simone de. Op. Cit. P.12.
 
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Simone de Beauvoir observa que a Mulher, enquanto categoria, jamais foi


minoria ou autônoma ou independente.

[...] Porque as mulheres não contestam a soberania do macho?


Nenhum sujeito se coloca imediata e espontaneamente como
inessencial; não é o Outro que definindo-se como Outro define o
Um; ele é posto como Outro perante o Um definindo-se como
Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso
que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa
submissão na mulher?

Continua a autora discorrendo que no caso das mulheres, não houve um


‘fato’ que as colocasse em tal situação de inferioridade. Na verdade, elas o são em
virtude de sua estrutura fisiológica. Nota-se que sua submissão escapa ao fator
histórico, pois a alteridade nesse caso sempre o foi de modo absoluto.

[...] a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica;


só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder;
elas nada tomaram; elas receberam. Isto porque não têm os meios
concretos de se reunir em uma unidade que se afirmaria em se
opondo. Não têm passado, não têm história, nem religião própria
[...]25

As mulheres vivem dispersas entre os homens, e com eles se confundem ou


se ligam pelo habitat, pelo convívio. São extremamente fortes os laços que as une com
os seus opressores.

[...] quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido


numa situação de inferioridade, ele é de fato inferior; mas é sobre
o alcance da palavra ser que precisamos entender-nos; a má-fé
consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido
dinâmico hegeliano; ser é ter-se tornado, é ter sido feito tal qual se
manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores
aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades

                                                            
25 BEAUVOIR, Simone de. Op. Cit. P.13.
 
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menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas


deve perpetuar-se26.

Contextualizando essa discussão com a problemática do sistema prisional


brasileiro, notamos que a realidade das mulheres encarceradas não é a mesma dos
homens.
O Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil, elaborado em fevereiro
2007, revela que a mulher presa no Brasil hoje é jovem, mãe solteira, afrodescendente
e na maioria dos casos, condenada por envolvimento com tráfico de drogas (ou
entorpecentes). Ela apresenta um vínculo tão forte com a família que prefere
permanecer em uma cadeia pública, insalubre, superlotada e inabitável, mas com
chance de receber a visita de sua família e filhos, a ir para uma penitenciária distante,
onde poderia eventualmente ter acesso à remição da pena por trabalho ou estudo, e a
cursos de profissionalização, além de encontrar melhores condições de
habitabilidade.
Em recente pesquisa publicada pela Revista Brasileira de Ciências
Criminais27, o Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Estudos Criminais-penitenciários
da Universidade Católica de Pelotas (Gitep/UCPel), analisando o encarceramento
feminino na 5ª Região Penitenciária do Rio Grande do Sul, concluiu que “Os dados
sócio-demográficos, portanto, nos remetem a um perfil de encarceramento que
atinge predominantemente mulheres jovens, chefes de família, fragilizadas em sua
escolaridade e subalternizadas nas posições que ocupam no mercado de trabalho”.
Olga Espinoza, descrevendo o perfil das mulheres entrevistadas nas oficinas
de Direitos Humanos e Execução Penal (Projeto “Colibri” na Penitenciária Feminina
da Capital) entre os meses de janeiro a agosto de 2002, analisa o impacto do
                                                            
26BEAUVOIR, Simone de. Op. Cit. P.18.
27CHIES, Luiz Antônio Bogo et al. A prisão dentro da prisão: sínteses de uma visão sobre o
encarceramento feminino na 5ª região Penitenciária do Rio Grande do Sul. In Revista brasileira
de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 17, n.79, jul.-ago./2009. P.259.
 
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encarceramento feminino destacando o trabalho por elas realizado antes da prisão e


dentro da cadeia. Em sua pesquisa, Espinoza constatou que “Todas as entrevistadas
eram trabalhadoras (...) e tinham trabalho antes de entrar na PFC”28. Colaciona
também informações obtidas do relatório preparado pelo Coletivo de Feministas
Lésbicas (ONG paulista):

As mulheres não brancas (negra, mulata, amarela, vermelha)


representam o contingente majoritário, de 61,4%. No tangente à
idade, 78% têm entre 19 e 34 anos. A grande maioria nasceu no
Estado de São Paulo (62%) e cresceu em áreas urbanas (67%),
incluindo cidades do interior. No tocante à escolaridade, 84%
delas não concluíram o ensino fundamental (...). A chefia da
família é comandada por 59% das mulheres presas29.

Referido perfil é confirmado na realidade prisional batataense30:

Tratam-se de mulheres pobres, jovens e mães. Muitas vezes eram


as responsáveis pelo sustento da família. O envolvimento com as
drogas é, na maioria dos casos, crucial para o ingresso na vida
criminosa. Outro fator importante é o envolvimento de seus
companheiros, namorados ou maridos com o crime. São
primárias, e desempenhavam um papel coadjuvante nas ações
criminosas das quais participaram.

Várias são as considerações que poderíamos tecer entorno desse perfil


carcerário que se afasta daquele hegemônico, anteriormente indicado. Contudo,
seremos pontuais para indicar dois fatores de diferenciação entre a população
carcerária feminina e masculina: os crimes cometidos (ou perfil criminológico) e a
estrutura física disposta.

                                                            
28 ESPINOZA, Olga. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. São Paulo: IBCCRIM,

2004. P.117 e 117.


29 ESPINOZA, Olga. Op. Cit. p.126.
30 BACCHIN, Mariana. Ninguém é mulher impunimente: a opressão de gênero no sistema

prisional brasileiro. TCC, Unesp/Franca, 2007. P.75.


 
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A mulher encarcerada, em sua maioria, foi condenada devido à tráfico de


entorpecentes. Via de regra, o papel desempenhado por essas mulheres é coadjuvante
em relação aos mentores do tráfico. Julita Lemgruber aponta que

Diversos criminólogos norte-americanos sustentam que, embora o


tráfico de drogas seja uma atividade que ocupa um número de
homens muito maior do que o de mulheres, as mulheres acabam
condenadas em proporção maior do que os homens. A
interpretação para essa discrepância deve-se à posição que as
mulheres ocupam na estrutura do tráfico de drogas, uma posição
sempre subalterna, que lhes dá menos possibilidades de negociar
com a polícia, comprando sua liberdade.

Também no crime a mulher é a “outra”. O “Um”, no tráfico, é o traficante,


ardiloso, bem-sucedido, empresário. O “Outro” é o subalterno, o responsável pelo
“corre”, o viciado e aliciado.
Outra diferença identificável é o tempo de cumprimento de pena das
mulheres: em média, até quatro anos, enquanto a maioria dos homens permanece de
quatro a oito anos. Este dado revela que, em “tese”, os crimes cometidos pelos
homens são mais graves do que os das mulheres. Em outras palavras, as mulheres
cometem crimes mais “amenos”.

2.3 Os reflexos da totalidade: ser mulher atrás das grades

Partimos da premissa de que as mulheres encarceradas, por constituírem a


minoria no sistema prisional nacional e paulista, não despertam o interesse da mídia
nem dos políticos ou até mesmo do próprio Estado quando da elaboração de
políticas públicas. Esse desinteresse contribui para o processo de invisibilização
feminina, que, não obstante já ocorra na sociedade pela sempre suprema afirmação

 
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do “ser” masculino, encontra nas instituições de sequestro feminino uma forma


aprimorada de mortificação.
As notícias veiculadas ao sistema prisional estão sempre relacionadas á
rebeliões, abusos, arbitrariedades. Referidos informes são acompanhados, via de
regra, de imagens masculinas: celas superlotadas, homens desumanizados, mas,
sempre, homens. Presídios masculinos.
Em uma rápida busca pela mídia, verificamos que são escassas as notícias
sobre presídios femininos. Se restringirmos nossa busca á internet, nossa surpresa
será grande: os assuntos relacionados aos termos de pesquisa “presídios femininos” e
“presidiárias”, trazem notícias do mundo da moda, da prostituição, da ficção e da
beleza. Exemplo disso31:

Presídio Feminino elege Miss


A tarde da terça-feira (29), que começou ensolarada na capital de
Mato Grosso do Sul, Campo Grande, viu ser coroada a nova Miss
Primavera do Estabelecimento Penal Feminino Irmã Zorzi. A
paranaense Fabiana Garcia foi a eleita entre as 12 candidatas do
concurso que animou e coloriu o presídio feminino, celebrando
este começo de primavera. A vencedora do concurso é detenta do
alojamento 11, que é onde ficam as recentes mães que cumprem
pena.
"A expectativa agora é que o tempo passe mais rápido. A vitória é
um incentivo, e isso dá mais vontade de ir embora e mudar de
vida”, comemora Fabiana. Para ela, o que cativou os jurados do
concurso foi seu sorriso e alegria. A vencedora ainda recebeu
como prêmio uma televisão 20 polegadas e um Kit de
cosmésticos. O segundo lugar do concurso ficou com a detenta
Letícia Morais; Silmara Ferraz ficou com a fiaxa de terceira
colocada (por Edenir Rodrigues)

Essa correlação que impõem sobre a criminologia feminina ao sexo, não é


encontrada na criminologia masculina. Entendemos que a justificação dessa confusão

                                                            
31 Acesso aos 20 de novembro de 2009.
http://www.jornaldeluzilandia.com.br/pontocritico.php?dia=01&mes=10&ano=2009
 
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reside na própria visão que a totalidade impôs á mulher, enquanto “outro”. Segundo
Beauvoir32:

A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si


mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo
[...] Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o
“sexo” para dizer que ela se apresenta diante do macho como um
ser sexuado: para ele, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente.
A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e
não este em relação à ela; a fêmea é o inessencial perante o
essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro.

Até mesmo a definição lexical da palavra “mulher” é subordinada ao


“homem”. Segundo o Dicionário on line Priberam da Língua Portuguesa33 “Mulher.
1. Flexão feminina de homem. 2. Pessoa adulta do sexo feminino. 3. Esposa. 4. Jogo
popular. mulher pública: mulher do mundo ou mulher de partido, meretriz.”
Referida definição contrasta com a definição de Homem indicada pelo Dicionário
Aurélio básico da língua portuguesa34.

Homem. s.m. 1. Qualquer indivíduo pertencente à espécie animal


que apresenta o maior grau de complexidade na escala evolutiva; o
ser humano. 2. A espécie humana; a humanidade. 3. O ser
humano, com sua dualidade de corpo e espírito, e as virtudes e
fraquezas decorrentes desse estado; mortal. 4. Ser humano do
sexo masculino varão. 5. Esse mesmo ser humano na idade adulta;
homem-feito. 6. Restr. Adolescente que atingiu a virilidade. 7.
Homem dotado das chamadas qualidades viris, como coragem,
força, vigor sexual, etc; macho. 8. Marido ou amante. 9. Homem
que apresenta os requisitos necessários para um empreendimento;
o homem indicado para um fim (…) Homem público. Indivíduo
que se consagra à vida pública, ou que a ela está ligado. (…)

                                                            
32 BEAUVOIR, Simone de. O SEGUNDO SEXO. 6ª edição. Traduzido por Sérgio Milliet. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1980. P.10.


33 http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=mulher. Acesso em 26/10/2009
34 Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. De Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.

Editora Nova Fronteira. Obra em fascículos encartados na Folha de S.Paulo, 1995. P. 344 e 446.
 
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Mulher. s.f. 1. O ser humano do sexo feminino capaz de


conceber e parir outros seres humanos, e que se distingue do
homem por essas características. 2. Esse mesmo ser humano
considerado como parcela da humanidade. 3. A mulher na idade
adulta. 4. Restr. Adolescente do sexo feminino que atingiu a
puberdade; moça. 5. Cônjuge do sexo feminino; a mulher em
relação ao marido; esposa. Mulher à-tôa; Bras. Pop. V. meretriz.
mulher da comédia Bras. Pop. V. meretriz.; mulher da rua Bras.
Pop. V. meretriz.; mulher da vida Bras. Pop. V. meretriz.; mulher da
zona. Bras. Pop. V. Meretriz.

A mulher é então definida por seu sexo, sempre em relação ao homem, ao


dominante, ao ser total: pleno e existente. Essa visão e modo-de-ser inferioriza a
mulher e a violenta em sua condição humana, pois, uma vez “algo” , “parte”,
“menos”, ela se torna invisível perante os olhos da sociedade e do Estado, fato este
que contribui para um sem número de violações de seus direitos fundamentais.
Uma prática recorrente que elucida esse processo de invisibilização e
violação feminina é o fato de as unidades prisionais femininas muitas vezes serem
instaladas onde outrora funcionava uma unidade masculina. Em alguns casos, o
argumento da “insuficiência orçamentária” é tão forte que o Estado permite a
existência de presídios mistos. É o caso da 5ª Região Penitenciária do Rio Grande do
Sul35.

As mulheres encarceradas na 5ª Região Penitenciária do Rio


Grande do Sul – cativas em presídios mistos que originalmente
foram construídas como estabelecimentos masculinos – desvelam
a compreensão de estarem muito mais num presídio masculino
que aloja mulheres do que num presídio misto, ainda que esse
reconhecimento nem sempre seja explícito e esta condição, em
alguns casos, seja inicialmente negada.

Os pesquisadores identificaram que as mulheres encarceradas são renegadas

                                                            
35CHIES, Luiz Antônio Bogo et al. A prisão dentro da prisão: sínteses de uma visão sobre o
encarceramento feminino na 5ª região Penitenciária do Rio Grande do Sul. In Revista brasileira
de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 17, n.79, jul.-ago./2009. P.262.
 
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a um segundo plano: são as últimas a receber refeições, ficam na pior cela, utilizam os
espaços coletivos (pátios) nos piores horários e em menor tempo. Outra constatação
deplorável é a utilização do mesmo “seguro” (local onde o preso cumpre pena de
castigo por infração disciplinar) para homens e mulheres. Segundo relato das presas,
o uso comum do “seguro” propicia, inclusive, a disseminação de doenças nas
mulheres.
Ainda segundo o Gitep, o encarceramento feminino possui alguns
desdobramentos específicos, pois tanto as questões psicossociais como as
socioculturais, como questões conjunturais, agregariam outras dimensões, mais
potencializadas, por assim dizer.
A mulher passa por um processo de estigmatização desde a infância36.
Beauvoir chega mesmo a afirmar que ninguém nasce mulher, torna-se. Com isso, a
filósofa existencialista introduz o questionamento do processo cultural de
estigmatização feminina. Desde o seu nascimento, o indivíduo do sexo feminino
passa a ser “educado” (adestrado) para incorporar vários valores “femininos”: desde
o processo de identificação (nomes), até o processo de “catalogação” (vestuárias
diferenciadas, cores específicas, posturas sociais necessárias). Findo o processo (se é
que possui fim), o indivíduo é mulher (o verbo “ser” é aqui empregado no sentido de
ter-se tornado).
Homens e mulheres são iguais. Não obstante a evidência da afirmação retro,
a especificidade do gênero feminino atuou e atua como um peso no desenvolvimento
da mulher em sua potencialidade humana, funcionando mesmo como empecilho, em
determinados casos, para a sua realização enquanto “homem”, no sentido amplo.

                                                            
36 Segundo Mariana Bachin: “As relações de gênero surgem a partir de representações estereotipadas

do que vem a ser o feminino e o masculino. Se elaboram como parte do processo de identificação de
gênero, que perpassa espaços como a família, a escola e o contexto social. (Ninguém é mulher
impunimente: a opressão de gênero no sistema prisional brasileiro. TCC, Unesp/Franca, 2007.
P. 19).
 
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Será mesmo que a capacidade de gerar filhos é argumento hábil a excluí-la da


totalidade?
A estigmatização da mulher enquanto fêmea, reprodutora, refletiu
diretamente no modo pelo qual a sociedade passou a encará-la: ao homem, “o
plantador de sementes”, coube a arte da guerra, da vida pública, da ciência, do
desenvolvimento, afinal, é ele um desbravador; à mulher, coube a arte da procriação,
da criação da prole, da manutenção do lar, do âmbito privado, particular, no qual ela,
“fêmea”, “reina”. O estigma da mulher é tamanho que, antes de “ser-humano”, é ela
esposa, filha, mãe: apêndice. Sendo múltipla, múltiplos também são os reflexos e
dores por ela sentido quando encarcerada.

3 A EXTERIORIDADE COMO CATEGORIA FUNDAMENTAL PARA A


VISIBILIDADE CARCERÁRIA FEMININA

Encontramos em Enrique Dussel o fundamento filosófico necessário para


propugnar pela inclusão do “outro”.

O outro, o pobre, em sua extrema exterioridade do sistema,


provoca à justiça; ou seja, chama (-voca) de frente (pro-). Para o
sistema de injustiça “o outro é o inferno” (se por inferno se
entende o fim do sistema, o caos agônico). Pelo contrário, para o
justo o outro é a ordem utópica, sem contradições; é o começo do
advento de um mundo novo, distinto, mais justo. A simples
presença do oprimido como tal é o fim da boa consciência do
opressor. Quem for capaz de descobrir onde se encontra o outro
(...) poderá, a partir dele, fazer o diagnóstico da patologia do
Estado37.

                                                            
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação: crítica à ideologia da exclusão. Trad. Georges
37

Maissiat. 3ª edição. São Paulo: Paulus, 2005. P.49.


 
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Segundo o filósofo, optar pela categoria da exterioridade, em detrimento da


totalidade, contribui para a libertação dos oprimidos, dos excluídos, enfim, do
“Outro”. A partir de uma ótica externa, o “outro” é revelado, na medida em que o
próprio discurso é construído a partir dessa realidade. Na exterioridade, o “ser é; o
não-ser é real”, viabilizando, pois, a alteridade negada. Com Dussel “O ser é e o não-
ser é ainda ou pode ser o outro”38.
As mulheres encontram-se “encarceradas” já quando sua liberdade de
locomoção não foi-lhes limitada por sanção penal. Os estigmas e a opressão que
sofrem no dia-a-dia por si já configuram uma forma de opressão. Contudo, uma vez
presas, as mulheres passam a sofrer uma sobrecarga de punição: são alocadas em
estabelecimentos que não foram pensados à suas especificidades; são submetidas á
tratamento que não considera suas necessidades; são estigmatizadas pela própria
família e amigos, pois ao cometerem crimes, rompem não só a ordem jurídica
estabelecida, mas, sobretudo, a moral social vigente. Fatos corriqueiros, como o uso
de estabelecimentos prisionais masculinos para abrigar mulheres, demonstram que as
decisões políticas e governamentais em relação ás mulheres são tomadas em segundo
plano.
Nesse sentido, cumpre propugnar por uma libertação da mulher sobre este
signo opressor que é o sexo. Urge desmistificá-la para, então, inseri-la no contexto.
Mais do que fazê-la adentrar o centro da totalidade, cumpre libertá-la através da
exterioridade, salvá-la dos estigmas que lhes foram conferidos, numa história e
realidade escrita e protagonizada por sujeitos masculinos.
Nesse momento, importante fazer uma digressão sobre o processo de
prisionização. Ana Gabriela Mendes Braga39, retomando lição valorosa de Alvino

                                                            
DUSSEL, Enrique. Op. Cit. P.49.
38
39BRAGA, Ana Gabriela Mendes. A identidade do preso e as leis do cárcere. Dissertação de
mestrado. Usp, 2008.
 
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Augusto de Sá, afirma que a prisionização acarreta a desorganização da


personalidade: empobrecimento psíquico (dado a restrição dos horizontes) e
regressão e infantilização (dado o sentimento de inferioridade e impotência
inculcados pelo sistema). Ao adentrar o cárcere, o individuo é abruptamente
“desumanizado” e “desindividualizado”: suas roupas, seus pertences, seus hábitos,
tudo é recolhido em nome da manutenção da segurança prisional. O individuo perde
sua referencial pessoal para passar a pertencer a uma nova “categoria” de excluídos:
os encarcerados. Em se tratando de indivíduo do sexo feminino, esse processo é
ainda mais devastador, pois ao adentrar no sistema ela perde vários referencias, num
processo de “exclusão” em cascata: não é mais mãe, nem filha, nem feminina. Aos
poucos, deixa de ser mulher, para ser uma “outra coisa”. As mulheres, frente aos
homens, são menos. As encarceradas, frente às libertas, são menos ainda.
Entendemos que esse processo de prisionização, por si, constitui uma
espécie de violação dos direitos humanos e também fundamentais. Ao perder a
identidade, a intimidade, a autonomia e a até mesmo a vontade, o indivíduo
encarcerado tem violado seus direitos fundamentais, tal como encartados no artigo 5º
da Constituição Federal de 1988. Sendo mulher, essa violação adquire contornos
específicos, sobressaltados e, pior, invisíveis.
Nesse sentido, crucial seria a atuação do Estado enquanto agente
fomentador de políticas públicas voltadas para o universo feminino. Cremos que,
assim, ao menos algumas particularidades seriam respeitadas e concretizadas. É
preciso, pois, permitir que essas mulheres encarceradas se revelem como realmente
são, manifestem sua existência no círculo limitado que a totalidade impõe. É preciso
revelar suas faces para que, visíveis, toquem o “Um” em sua mítica totalidade e lhe
demonstrem o quão injustos se nos apresentam e quão limitada é sua percepção da
realidade.

 
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CONCLUSÕES

Da análise esboçada, permitimo-nos tecer as seguintes ponderações


conclusivas:
a) O sistema prisional brasileiro não está falido. Considerando os objetivos
alcançados pelas penitenciárias (seqüestro de determinados indivíduos
vulneráveis no meio social para o seu “controle”, “adestramento” e
“conformação”), afirmamos que elas atendem a contento suas
finalidades institucionais;
b) O sistema penitenciário brasileiro possui inúmeros problemas
estruturais, dentre os quais destacamos a insuficiência de vagas, de
unidades prisionais e de funcionários;
c) O sistema prisional paulista concentra a maior parte da população
carcerária brasileira e é paradigma para a elaboração de políticas penais e
prisionais;
d) Este paradigma carcerário hegemônico é centrado no homem, branco,
alfabetizado, jovem e que infringiu a ordem estabelecida através de
crimes contra o patrimônio;
e) Referido paradigma não coincide com o perfil das mulheres
encarceradas, as quais passam a sofrer violações em seus direitos
fundamentais devido a inadequação da estrutura prisional vigente em
abrigá-las;
f) Essa violação consiste em uma forma de violência sistemática,
perpetrada pelo próprio Estado que passa a atuar como agente criminoso
e criminalizante;
g) A categoria de pensamento dominante revela a adoção da totalidade, em
que o “Um” masculino se sobrepõe, supremo, sobre o “Outro”
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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feminino;
h) As mulheres encarceradas passam a constituir um “outro”
estigmatizado;
i) Uma nova categoria é possível, sendo a exterioridade uma importante via
de visibilização feminina;
j) Referida visibilização é necessária para a humanização da humanidade.

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1985.

 
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DIREITO PENAL DO INIMIGO:


DA NEGAÇÃO DO GARANTISMO PENAL ÀS TESES LEGITIMADORAS

Joaquim Manoel Alves Cardoso1

RESUMO

O Direito Penal, caracterizado como um conjunto de normas jurídicas, tem


como fim possibilitar o convívio social através do estabelecimento de ilícitos penais e
suas correspondentes sanções. A convivência humana, sem esse lastro limitador e
regulador, como se demonstrou ao longo da história, não seria pacificamente possível
e tampouco se realizaria a justiça.
Não se pode, todavia, conceber que ao Direito Penal seja cabível selecionar
qualquer conduta humana e chancelá-la como ilícita. O poder incriminador estatal
está, ou pelo menos deveria estar, limitado pelo princípio da intervenção mínima ou
da ultima ratio. A relevância desses bens jurídicos e suas correlativas tutelas não
podem violentar os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente
consagrados. Este é o solo onde o Direito Penal floresce.
Ocorre, entretanto, que os pressupostos do Direito Penal garantista, por
vezes, são subvertidos por teorias legitimadoras da exclusão social e por construções
teóricas baseadas em um Direito Penal simbólico, nitidamente caracterizado pelas
teses do Direito Penal do Inimigo. O Direito sancionador aplicado assume, nesses
casos, a teoria do Direito Penal do autor, afastando-se do fato. Pune-se de maneira
exemplar e excessiva tal e qual pessoa pelo que ela é, e não pela conduta praticada.
A obra Direito Penal do Inimigo, de Günther Jakobs, é o fio condutor da
perspectiva do Direito Penal simbólico.
Luigi Ferrajoli, por seu lado, formulou a Teoria do Garantismo Penal e
reconheceu que não se deve indagar sobre a alma do acusado, nem tampouco
fundamentar decisões na pessoa deste, mas apenas e tão somente investigar seus
comportamentos proibidos.
O ponto nevrálgico do debate, portanto, alicerça-se na possibilidade de se
reconhecer no sistema jurídico penal adotado pelo Brasil os postulados do Direito
Penal do Inimigo como Direito e validar suas teses.
                                                            
1 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - 10º

Período. 
 
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Palavras-Chave: Direito Penal do Inimigo, Garantismo Penal, Direitos


Fundamentais; Derecho Penal del Enemigo, Garantismo Penal, Derechos
Fundamentales.

1 INTRODUÇÃO

O Direito Penal, caracterizado como um conjunto de normas jurídicas, tem


como fim possibilitar o convívio social através do estabelecimento de ilícitos penais e
suas correspondentes sanções. A convivência humana, sem esse lastro limitador e
regulador, como se demonstrou ao longo da história, não seria pacificamente possível
e tampouco se realizaria a justiça.
Não se pode, todavia, conceber que ao Direito Penal seja cabível selecionar
qualquer conduta humana e chancelá-la como ilícita. O poder incriminador estatal
está, ou pelo menos deveria estar, limitado pelo princípio da intervenção mínima ou
da ultima ratio. Assim, de relevância penal seriam apenas aquelas condutas capazes de
violar bens jurídicos determinados e de significativa importância para a garantia da
harmonia social.
A relevância desses bens jurídicos e suas correlativas tutelas não podem
violentar os direitos e garantias fundamentais constitucionalmente consagrados. Este
é o solo onde o Direito Penal floresce.
Os pressupostos do Direito Penal garantista e da intervenção mínima, por
vezes, são subvertidos por teorias legitimadoras da exclusão social e por decisões
judiciais baseadas em um Direito Penal simbólico, nitidamente caracterizado pelas
teses do Direito Penal do Inimigo. O Direito sancionador aplicado assume, nesses
casos, a teoria do Direito Penal do autor, afastando-se do fato. Pune-se de maneira
exemplar e excessiva tal e qual pessoa pelo que ela é, e não pela conduta praticada.

 
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A obra Direito Penal do Inimigo, de Günther Jakobs, é o fio condutor do


debate. Nela o jurista alemão explicita as bases de suas investigações e assevera que
tanto o Direito Penal do Inimigo quanto o Direito Penal do Cidadão não podem ser
afastados de forma taxativa, pois representam tendências opostas de um único
contexto do Direito Penal. Para ele,

quem não pode oferecer segurança cognitiva suficiente de que se


comportará como pessoa não só não pode esperar ainda ser
tratado como pessoa, como tampouco o Estado está autorizado a
tratá-lo ainda como pessoa, pois, de outro modo, estaria lesando o
direito das outras pessoas à segurança.2

Luigi Ferrajoli, por seu lado, formulou a Teoria do Garantismo Penal e


reconheceu que não se deve indagar sobre a alma do acusado, nem tampouco
fundamentar decisões na pessoa deste, mas apenas e tão somente investigar seus
comportamentos proibidos.
O ponto nevrálgico do debate, portanto, alicerça-se na possibilidade de se
reconhecer no sistema jurídico penal adotado pelo Brasil os postulados do Direito
Penal do Inimigo como Direito e validar suas teses.

2 EXACERBAÇÃO PUNITIVA

2.1 Considerações iniciais

As percepções midiáticas sobre o avanço da criminalidade têm justificado


ao longo do tempo inúmeras ações legislativas no sentido de recrudescer o trato para
com o criminoso. Os discursos de lei e ordem e de máxima tutela penal
                                                            
2 JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Organização e Introdução Eugênio Pacelli de Oliveira.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 17. 


 
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fundamentam a exasperação das penas privativas da liberdade e até mesmo a


relativização de garantias constitucionais.
A cultura da insegurança e do medo forma indivíduos despreparados e dá
azo a interpretações equivocadas sobre a realidade e justifica, em alguns casos, a
sensação de impotência. Sánchez afirma que isso dá lugar a percepções inexatas e “a
reiteração e a própria atitude (dramatização, morbidez) com a qual se examinam
determinadas notícias atuam como um multiplicador dos ilícitos e catástrofes,
gerando uma insegurança subjetiva que não corresponde com o nível de risco
objetivo” 3. O inimigo toma forma no contexto de uma sociedade incapaz de lidar
com o fenômeno do crime e a resposta cômoda e rápida se constrói sobre a frágil
idéia que a sanção penal extremada é remédio amargo, mas eficaz.
Discute-se, portanto, o real alcance das proposições de Jakobs e se é lícito teorizar
sobre um Direito Penal do Inimigo, desqualificando o cidadão como pessoa e o
afastando cada vez mais das tutelas fundamentais estatuídas na Constituição,
principalmente no que tange aos seguintes aspectos:

1) se as teses do Direito Penal do Inimigo são passíveis


de se considerar como Direito, isto é, se tais teorias
subsistem dentre de um Estado Democrático de Direito
poder-se-ia considerá-las válidas dentro da estrutura adotada
pelo sistema penal brasileiro?
2) assevera Jakobs, que se o indivíduo não oferecer
garantias suficientes de que observará a norma a fim de
propiciar o convívio social, a conseqüência seria seu

                                                            
3 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. – (Série as ciências criminais no século 21; v. 11). p. 38.
 
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afastamento desse mesmo convívio, pois perderia sua


condição de pessoa. Será possível subtrair o status de pessoa
do indivíduo que comete infrações penais e, por
conseguinte, aplicar a ele penas mais próximas do máximo
legal, a fim de afastá-lo das relações sociais, evitando a
reincidência, por exemplo?

A análise aqui proposta toma corpo em razão da ampla discussão pós-


publicação da obra Direito Penal do Inimigo. Os doutrinadores filiados ao Direito
Penal Garantista, via de regra, não reconhecem a possibilidade de aplicação ou
mesmo incidência dos pressupostos levantados por Jakobs, principalmente, por não
vislumbrarem a possibilidade de considerar o chamado Direito Penal do Inimigo
como Direito, na concepção garantista do termo. Assim, dentro de um Estado
Democrático de Direito não haveria possibilidade de se enxergar o inimigo, já que
todos são cidadãos e como tal devem ser reconhecidos.
Embora doutrinariamente se possa observar de forma mais clara tal
posicionamento, o mesmo não ocorre quanto se trata de Processo Penal e as
correspondentes condenações. É mais comum do que se pensa encontrarmos
decisões judiciais em que o condenado é visto como um pária, um hostil, um inimigo,
que não se enquadra dentro dos ditames da sociedade em que vive em razões dos
inúmeros crimes praticados ou mesmo pela gravidade da sua única conduta, e,
portanto, precisa ser alijado do convívio social o maior tempo possível para evitar o
cometimento de novas infrações.
Os fundamentos dessas decisões, majoritariamente, não fazem menção ao
Direito Penal do Inimigo, entretanto, são orientadas pela exacerbação dos elementos
de fixação da pena expressos no art. 59 do Código Penal. A conduta infracional deixa

 
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de ser o mais relevante, volvendo-se os olhos para quem a pratica, logo, Direito
Penal do autor e não do fato.

3 DIREITO PENAL DO INIMIGO: as perspectivas de Jakobs

3.1 Apresentação

O florescimento da teoria do Direito Penal do Inimigo elaborada por


Günther Jakobs é fruto do desenvolvimento de pesquisas e conferências destinadas a
um público especializado, consoante suas próprias palavras.
Em 1985, durante seminário realizado na cidade de Frankfurt, Alemanha,
Jakobs demonstrou, através de análise crítica, que havia se desenvolvido no Direito
Penal Alemão um Direito Penal parcial, denominando-o Direito Penal do Inimigo e
afirmando que preceitos jurídico-penais dessa natureza não podiam ser admitidos e
que, nas palavras de Moraes, “o Direito Penal deixara de ser uma reação da sociedade
ao fato criminoso perpetrado por um dos seus membros para tornar-se uma reação
contra um inimigo”4.
As teses apresentadas pelo penalista foram bem recebidas pelo público
presente e aplaudidas também por estudiosos do Direito. Entretanto, já em 1999,
durante a Conferência do Milênio em Berlim, passa a admitir o modelo de Direito
Penal parcial e aprofunda sua teoria. No ano de 2004 publica o artigo denominado
Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo e estabelece a distribuição dos
seres humanos em dois sistemas diferentes.
Por sua vez, Juarez Cirino dos Santos bem acentuara que
                                                            
4 MORAES, Alexandre Rocha Almeida de. Direito Penal do inimigo: a terceira velocidade do Direito

Penal. Curitiba: Juruá, 2008. p. 182.  


 
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no começo do novo milênio, as energias intelectuais desse famoso


penalista foram consumidas no trabalho de dividir o Direito Penal
em dois sistemas diferentes, propostos para compreender duas
categorias de seres humanos também considerados diferentes - os
cidadãos e os inimigos -, cujos postulados transitam dos princípios do
democrático Direito Penal do fato e da culpabilidade para um
discriminatório Direito Penal do autor e da periculosidade.5

Atento à repercussão de sua teoria, Jakobs, no prefácio a edição brasileira da


obra Direito Penal do Inimigo, afirma tratar-se de um tema delicado e que muitos
consideram mesmo ser politicamente incorreto sequer pronunciá-lo. Entretanto,
assevera que “da mesma forma que não nos livramos de nossa feiúra recusando-nos
a olhar no espelho, tampouco solucionamos o problema do Direito Penal do Inimigo
não falando dele”6. O fato de não se desejar um Direito Penal do Inimigo não
aniquila a priori sua existência. É possível, contudo, estabelecer objeções no sentido
de demonstrar que o fato está descrito de forma incorreta e que o denominado
Direito Penal do Inimigo não existe ou, por outro lado, reconhecer a existência do
fenômeno jurídico e buscar alterar os fatos, abolindo-o.
Além disso, o professor de Bonn expõe que seu discurso não é legitimador
e que analisa o sistema jurídico olhando-o de fora, logo, “suas afirmações devem ser
entendidas sob o aspecto descritivo”7. Esta advertência de caráter meramente
descritivo da análise por ele desenvolvida parece, todavia, não corresponder ao
sistema jurídico-penal que o doutrinador alemão consolidou. Damásio de Jesus
observa que Jakobs afastou-se do enfoque descritivo e, contrariando a si mesmo,
fundamentou aquilo que julgava apenas descrever:

                                                            
5 SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual.
Disponível em: < www.icpcjur.com.br/images/direito_penal_do_inimigo.pdf>. Acesso em: out.
2009.
6 JAKOBS, Günther. 2008. p. xxv. 
7 Ibidem, p. xxv. 

 
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O próprio Jakobs, abandonando o enfoque meramente descritivo


que inicialmente propõe sobre o Direito Penal do Inimigo, i.e.,
deixando de simplesmente tratá-lo como uma realidade que
precisa ser ‘domada’, fundamenta-o e busca sua legitimidade em
três alicerces: 1) o Estado tem direito a procurar segurança em
face de indivíduos que reincidam persistentemente por meio da
aplicação de institutos juridicamente válidos (exemplo: medidas de
segurança); 2) os cidadãos têm direito de exigir que o Estado tome
medidas adequadas e eficazes para preservar sua segurança diante
de tais criminosos; 3) é melhor delimitar o campo do Direito
Penal do Inimigo do que permitir que ele contamine
indiscriminadamente todo o Direito Penal.8

3.2 Conceito

A elaboração do conceito de Direito Penal do Inimigo é que permitirá a


análise de seu conteúdo e o estabelecimento de sua relevância sistemática, sendo
necessário, todavia, estabelecer elementos mínimos, já que definições díspares podem
ser encontradas na bibliografia.
Sánchez destaca que “o Direito do inimigo - poder-se-ia conjeturar - seria,
então, sobretudo o Direito das medidas de segurança aplicáveis a imputáveis
perigosos. Isso, ainda que tais medidas se revelassem com freqüência sob a aparência
formal de penas”9.
Jakobs, ao explicitar diretamente seu conceito, afirma que “são regras
jurídico-penais que, como suas correlatas, as regras do Direito Penal do Cidadão,
somente são concebíveis enquanto tipos ideais.” Para ele, o Direito Penal do Inimigo

                                                            
8 JESUS, Damásio de. Direito Penal do Inimigo[1]: Breves Considerações. Disponível em: <

http://jus2.uol. com.br/doutrina/texto.asp?id=10836f> Acesso em: out. 2009.


9 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas

sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. – (Série as ciências criminais no século 21; v. 11). p. 150. 
 
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é, essencialmente, “violência silenciosa; o Direito Penal do Cidadão é, sobretudo,


comunicação sobre a vigência da norma”10.
O Direito Penal do Cidadão tem como missão a garantia da vigência da
norma como expressão de uma determinada sociedade; o Direito Penal do Inimigo,
por seu lado, tem como função a eliminação de perigos, logo, é pura coação, sendo o
direito daqueles que se contrapõem ao inimigo.

3.3 Direito Penal do Inimigo versus Direito Penal do Cidadão

A concepção de discurso meramente descritivo - e não legitimador -


propugnado inicialmente por Jakobs pode ser vislumbrada na percepção de que tanto
o Direito Penal do Inimigo quanto o Direito Penal do Cidadão não caracterizam
espaços isolados e incomunicáveis entre si. Logo, não podem ser afastados de forma
taxativa, pois representam “tendências opostas de um único contexto do Direito
Penal”. Segundo o autor, é possível, portanto, que essas tendências se sobreponham
e o agente venha a ser tratado em determinado momento como pessoa e em outro
“como fonte de perigo ou como meio de intimidação de outros”11. A proposta de
Jakobs é que se reconheça essa comunicabilidade:

[...] não se trata de contrapor duas esferas isoladas do Direito


Penal, mas de descrever dois pólos de um só mundo ou de mostrar
duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penal. Tal
descrição revela que é perfeitamente possível que estas tendências
se sobreponham, isto é, que se ocultem aquelas que tratam o autor

                                                            
10 JAKOBS, Günther. 2008, p. xxv. 
11 Ibidem. p. 1. 

 
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como pessoa e aquelas outras que o tratam como fonte de perigo


ou como meio para intimidar aos demais.12

A denominação Direito Penal do Inimigo, para ele, não carrega em si um


sentido pejorativo, embora evidencie que a pacificação social ainda é insuficiente.
Esse modelo de Direito Penal exige um comportamento orientado por regras e,
portanto, não se deve esperar espontaneidade em seu cumprimento. A pena é a
coação direcionada ao agente violador da norma, caracterizando a resposta ao crime.
Ela não só significa algo, mas também atinge fisicamente o sujeito, nesse caso,
prevenção especial, afastando o indivíduo do convívio social. Assegura que a coação
não deve significar algo,

[...] mas sim provocar um efeito, o que quer dizer que ela não se
aplica ao sujeito de direito, mas sim ao indivíduo perigoso. Isso
deveria ficar especialmente claro quando se passa do efeito
assegurador da pena privativa de liberdade para a custódia de
segurança como medida; nesse caso, o olhar volta-se não apenas
para trás, para o fato a ser julgado, mas também, principalmente,
para frente, para o futuro.13

Justificando seu entendimento exemplifica com a medida de segurança,


dizendo que nesta as ações futuras do indivíduo são valoradas em razão do seu
“pendor para infrações graves”14 que podem vir a ter efeitos perigosos para a
coletividade. Assim, afasta-se a pessoa competente em si mesma e entra o indivíduo
perigoso. Temos Direito Penal do Inimigo nessa hipótese e não Direito Penal do
Cidadão.
O Direito é que permite a convivência social e, portanto, regula o vínculo
entre pessoas e seus respectivos direitos e deveres. A relação com o inimigo não

                                                            
12JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. org. e trad.
André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 21. 
13 JAKOBS, Günther. 2008. p. 2-3. 
14 Ibidem, p. 3. 

 
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observa os mesmos parâmetros, posto que ele não está inserido nesse vínculo
jurídico. Assim, o tratamento a ele destinado não é determinado pelo Direito. Aos
inimigos, a coação. Jakobs fundamenta ainda, com apoio em Hobbes e Kant, que o
status de cidadão não é necessariamente algo que não se pode perder, posto que “não
se trata como pessoa quem me ‘ameaça... constantemente’, quem não se deixa coagir
ao estado de civilidade”15.
Para que um sujeito possa ser considerado pessoa, na perspectiva de Jakobs,
deve se comportar de tal maneira que nele se observe participação,
comprometimento, e lealdade jurídica suficiente. A convivência social cria
expectativas de comportamento pessoal e quando essas expectativas são frustradas de
maneira duradoura, isto é, o indivíduo “não age de maneira relativamente confiável
prestando e prometendo lealdade jurídica, deixaria de ser considerado pessoa, seria um
indivíduo perigoso a quem o Direito Penal do Inimigo se destinaria”16.
O Direito Penal do Cidadão, nessa ótica, estaria destinado a regular a vida
daqueles que prometem lealdade jurídica e não delinqüem de “modo contumaz por
princípio - e um Direito Penal do Inimigo contra aqueles que se desviam por
princípio; este exclui, enquanto aquele deixa intocado o status de pessoa”17.
Entretanto, não é demais lembrar, que esses modelos de Direito Penal subsistem
dentro do mesmo contexto e

[...] há que se assegurar ao Direito Penal do Inimigo ao menos


uma parte das garantias de Estado de Direito do Direito Penal
material e do Direito Processual, não só para torná-lo sustentável
para o Estado de Direito, como também para disfarçar a diferença
em relação ao Direito Penal do Cidadão.18

                                                            
15 Ibidem, p. 7. 
16 CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. O Direito Penal do Inimigo e o Constitucionalismo: mise-em-scène de
uma proposta funcionalista. Artigo analítico inserido ao final da obra de Jakobs (2008, p. 131).
17 JAKOBS, Günther. 2008. p. 7. 
18 Ibidem, p. 47. 

 
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O Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo não se


manifestam em sua forma pura. Esses tipos estão inseridos no Direito Penal e na
prática o que se observa são características de um e de outro. O certo, entretanto, é
que o Direito Penal geral tem sido rapidamente tocado pelas prescrições do Direito
Penal do Inimigo. Este, reafirma Jakobs:

[...] continua sendo Direito, na medida em que vincula os


cidadãos, por seu lado, mais precisamente o Estado, seus órgãos e
seus funcionários, no combate dos inimigos. Com efeito, o
Direito Penal do Inimigo não constitui um código de normas para
a destruição ilimitada, mas sim, no Estado de Direito gerido de
forma inteligente, uma ultima ratio a ser aplicada conscientemente
como exceção, como algo que não se presta a um uso
duradouro.19

3.4 A definição do inimigo

O Estado, na visão de Jakobs, tem dois caminhos possíveis para atuar em


relação aos criminosos. Assim, podem ser vistos como pessoas que cometeram
falhas, que erraram, e a eles seria destinado todo arcabouço jurídico do Direito Penal
do Cidadão. Todavia, podem também ser considerados indivíduos perigosos e,
portanto, precisam ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, para estes, a
solução é a coação.
A definição do inimigo, portanto, está a depender do comportamento do
sujeito diante do ordenamento jurídico. A promessa de lealdade jurídica e a oferta de
segurança suficiente de que se comportará tal qual o prometido é que garante ao
sujeito o status de pessoa.

                                                            
19 Ibidem p. 41. 
 
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Quem não faz essa promessa de forma credível será


tendencialmente, gerido por outrem; seus direitos serão
subtraídos. Seus deveres permanecem ilimitados (ainda que,
cognitivamente, não se conte mais com o cumprimento dos
deveres), caso contrário ele não seria criminoso por não existir
uma violação do dever.20

As prescrições legais orientam o agir do sujeito e a adequação de seu


comportamento ao socialmente esperado é que possibilita a vigência da norma
perante o grupo social. Na ausência dessa garantia o Direito Penal, que até então
seria apenas uma reação da sociedade diante do delito praticado por um dos seus
membros, passa a ser uma reação contra o inimigo. Assim expõe Jakobs:

Quem não oferece segurança cognitiva suficiente de que se


comportará como pessoa não só não pode esperar ainda ser
tratado como pessoa, como tampouco o Estado está autorizado a
tratá-lo como pessoa, pois, de outro modo, estaria lesando o
direito das outras pessoas à segurança. Assim, pois, seria
totalmente incorreto condenar o que se está chamando aqui de
Direito Penal do Inimigo; isso não resolve o problema de como se
deve tratar os indivíduos que não se deixam coagir a uma
constituição civil21.

Assegura ainda que “o grau adequado de fidelidade ao direito não é


determinado segundo o estado psíquico do sujeito, mas é estabelecido como
parâmetro objetivo por meio de uma pretensão dirigida a cada cidadão; mais
exatamente, em razão desta pretensão se trata de um cidadão, uma pessoa”22.
Sánchez, com fundamento nas proposições de Jakobs, evidencia que

[...] o inimigo é um indivíduo que, mediante seu comportamento,


sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua
                                                            
20 JAKOBS, Günther. 2008. p. 39-40. 
21Ibidem, p. 17.
22JAKOBS, Günther. Ciência do Direito e ciência do Direito Penal. Tradução Maurício Antonio Ribeiro
Lopes. Coleção Estudos de Direito Penal, volume I. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 38. 
 
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vinculação a uma organização, abandonou o Direito de modo


supostamente duradouro e não somente de maneira incidental.
Em todo caso, é alguém que não garante mínima segurança
cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta esse déficit
por meio de sua conduta23.

A condição de pessoa precisa ser conquistada e mantida pelos indivíduos


para que possam ser tratados como pessoa. O Direito Penal do Cidadão, segundo
Jakobs, “é Direito também no que se refere ao criminoso. Este segue sendo pessoa.
Mas o Direito Penal do Inimigo é Direito em outro sentido. Certamente, o Estado
tem direito a procurar segurança frente a indivíduos que reincidem persistentemente
na comissão de delitos”24. Alerta ainda que “um inimigo não precisa ser
necessariamente um inimigo total; ele pode muito bem ser um inimigo parcial”25.

3.5 Características essenciais do Direito Penal do Inimigo

O Direito Penal tutela bens jurídicos e regula as relações dos indivíduos em


sociedade e tem, como uma de suas principais características, a finalidade preventiva.
As regras do jogo são lançadas, estão aí, caracterizando a chamada prevenção
genérica. Esta confere os parâmetros gerais da sociedade e visa motivar todos os
indivíduos a não infringirem a ordem jurídico-penal. Entretanto, se ainda assim esta
for violada, ao indivíduo infrator será imposta a sanção efetiva, atuando sobre ele de
forma a restabelecer o equilíbrio. Nesse momento tem-se a prevenção especial.
Jakobs entende que as fundamentações teóricas do Direito Penal podem ser
muito bem construídas e transmitirem segurança. Entretanto, é possível perceber que

                                                            
23 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. 2002. p. 149. 
24 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. 2008. p. 29.
25 JAKOBS, Günther. 2008. p. 38. 

 
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há certo distanciamento entre o modelo jurídico-penal ideal e o Direito Penal vivido.


Nesse contexto, é certo que todos devem ser tratados como pessoa, mas isso “é um
mero postulado, um modelo para uma sociedade, mas nem por isso constitui parte
de uma sociedade realmente operante”26. Esse distanciamento entre o postulado e o
vivenciado é que daria azo ao surgimento do Direito Penal do Inimigo. Talvez por
isso Jakobs tenha se preocupado tanto em dizer que seu discurso era meramente
descritivo e não legitimador. E afirma:

[...] é preciso distinguir um Direito postulado - não importando o


quão convincente seja -, um Direito-modelo e a estrutura
normativa real de uma sociedade. Pode ser que o primeiro oriente
no futuro, ‘mentalmente’, mas somente o segundo orienta no
respectivo ‘aqui e agora.27

Otávio Binato Júnior, em excelente dissertação de mestrado, aponta


três características básicas do Direito Penal do Inimigo que, praticamente,
todos os autores que debatem o tema assinalam:

[...] a) o adiantamento das barreiras de punibilidade para estágios


bastante afastados da efetiva lesão aos bens jurídicos
penalmente tutelados; b) um significativo aumento de pena dos tipos
penais que integram estas legislações; c) a diminuição ou mesmo
eliminação de algumas das garantias processuais básicas, gerando um
verdadeiro Processo Penal do inimigo.28

Sánchez aponta basicamente as mesmas características e aduz que estas


“seriam então, sempre segundo Jakobs, a ampla antecipação da proteção penal, isto é,
mudança de perspectiva do fato passado a um porvir; a ausência de uma redução de
pena correspondente a tal antecipação; a transposição da legislação jurídico-penal à
                                                            
26 Ibidem, p. 28.
27 JAKOBS, Günther. 2008. p.28.
28 JÚNIOR, Otávio Binato. Do Estado social ao Estado penal: o direito penal do inimigo como novo

parâmetro de racionalidade punitiva. 2007. 198f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade


do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2007. p. 136.
 
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legislação de combate; e o solapamento de garantias processuais”29.


Meliá sintetiza as proposições de Jakobs e reafirma as características básicas
por este enumeradas:

O Direito penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em


primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da
punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva (ponto de
referência: o fato futuro), no lugar de - como é habitual -
retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo
lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas:
especialmente, a antecipação da barreira de punição não é
considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada.
Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são
relativizadas ou inclusive suprimidas30.

3.6 Críticas ao modelo de Jakobs

As mudanças inseridas no contexto estrito do Direito Penal,


tradicionalmente, vinham acompanhadas de profundos debates políticos e técnicos.
O sistema jurídico-penal permanecia, em essência, o mesmo, e as adaptações
necessárias inseridas paulatinamente. O fenômeno observado nos últimos anos
demonstra um afastamento do modelo tradicional. Meliá aduz que o mundo
ocidental começou a experimentar um desvio, ou melhor, um afastamento do
chamado núcleo duro do ordenamento jurídico

na direção de um lugar arriscado na vanguarda do dia-a-dia


jurídico-político, introduzindo-se novos conteúdos e reformando-
se setores de regulação já existentes com grande rapidez, de modo
que os assuntos da confrontação política cotidiana chegam em
prazos cada vez mais breves também ao Código penal31.
                                                            
29 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. 2002, p. 149. 
30 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. 2008. p. 67.
31 JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. 2008. p. 53.
 
166 
 
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Essa tendência está provocando um processo de criminalização de


condutas ainda no estado prévio e o estabelecimento de sanções desproporcionais à
lesão (ou perspectiva de lesão) aos bens jurídicos.
O modelo apresentado por Jakobs sofreu e ainda sofre muitas críticas. A
própria terminologia adotada - Direito Penal do Inimigo – é alvo das mais variadas
manifestações contrárias, principalmente, pela carga emocional que o termo
“inimigo” carrega, afastando-se do fato e volvendo o olhar ao autor. Ainda nessa
seara, Meliá assevera:

[...] a identificação de um infrator como inimigo, por parte do


ordenamento penal, por muito que possa parecer, a primeira vista,
uma qualificação como <<outro>>, não é, na realidade, uma
identificação como fonte de perigo, não supõe declará-lo um
fenômeno natural a neutralizar, mas, ao contrário, é um
reconhecimento de função normativa do agente mediante a
atribuição de perversidade, mediante sua demonização.32 (grifo nosso)

Zaffaroni, citado por Moraes, assegura que:

[...] o sentimento de segurança jurídica não tolera que uma pessoa


(isto é, um ser capaz de autodeterminar-se) seja privada de bens
jurídicos, com finalidade puramente preventiva, numa medida
imposta tão-somente pela sua inclinação pessoal ao delito sem
levar em conta a extensão do injusto cometido e o grau de
autodeterminação que foi necessário atuar33.

Ademais, segundo ele, “a admissão resignada de um tratamento penal


diferenciado para um grupo de autores ou criminosos graves não pode se eficaz para
conter o avanço do atual autoritarismo”, principalmente, por não ser possível reduzir
o tratamento diferenciado a determinado grupo de pessoas “sem que se reduzam as

                                                            
32Ibidem, p. 71-72.
33ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte
Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 117-118, apud MORAES, Alexandre Rocha Almeida
de. Direito Penal do inimigo: a terceira velocidade do Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2008. p. 266. 
 
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garantias de todos os cidadãos diante do poder punitivo, dado que não sabemos ab
initio quem são essas pessoas”34.
Jakobs teorizou sobre a necessidade de todos os indivíduos ofertarem
segurança cognitiva mínima, isto é, demonstrarem determinado grau de fidelidade à
norma para que possam ser considerados pessoas. Entretanto, o posicionamento de
Zaffaroni se assenta também na impossibilidade de relativização do conceito de
pessoa, pois “a negação jurídica da condição de pessoa ao inimigo é uma característica
do tratamento penal diferenciado que lhe é dado, porém não é a sua essência, ou seja,
é uma conseqüência da individualização de um ser humano como inimigo, mas nada
nos diz a respeito da individualização em si mesma”35.
O catedrático argentino afirma ainda que

[...] admitir um tratamento penal diferenciado para inimigos não


identificáveis nem fisicamente reconhecíveis significa exercer um
controle social mais autoritário sobre a população, como único
modo de identificá-los e, ademais, impor a toda a população uma
série de limitações à sua liberdade e também o risco de uma
identificação errônea e, consequentemente, condenações e penas a
inocentes.36

Juarez Cirino dos Santos aponta que “a ingenuidade desse direito penal do
inimigo não está em apostar na violência do Estado sobre o indivíduo - afinal, um
dado universal, mas em ignorar as aquisições científicas sobre crime e controle social
nas sociedades atuais” 37. Além disso, destaca no mesmo texto:

[...] as idéias complementares de estabilização das expectativas


normativas do Direito Penal do cidadão e de eliminação antecipada do
                                                            
34 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 191. 
35 Ibidem, p. 21.
36 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. 2007. p. 118.
37 SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual.

Disponível em: < www.icpcjur.com.br/images/direito_penal_do_inimigo.pdf> Acesso em: out. 2009.


 
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Direito Penal do inimigo integram o tradicional discurso


ideológico encobridor da função real de garantia das desigualdades
sociais realizada pelo Direito Penal nas sociedades modernas –
conforme demonstra BARATTA -, mas como uma diferença
essencial: a forma igual do Direito Penal do cidadão garante as
desigualdades sociais, a forma desigual do Direito Penal do inimigo
amplia as desigualdades sociais garantidas.

Como conclusão, acentua que a substituição do princípio da igualdade


perante a lei pelo da desigualdade legal, ou se for lícito considerar que as garantias
constitucionais do processo legal “são casuísmos dependentes do tipo de autor –
aplicadas ao cidadão e negadas ao inimigo, conforme preferências idiossincráticas dos
agentes de controle social -, então o Estado Democrático de Direito está sendo
deslocado pelo estado policial”38. Zaffaroni, no mesmo sentido, sintetizou sua crítica
afirmando que “caso se legitime essa ofensa aos direitos de todos os cidadãos,
concede-se ao poder a faculdade de estabelecer até que ponto será necessário limitar
os direitos para exercer um poder que está em suas próprias mãos. Se isso ocorrer, o
Estado de direito terá sido abolido”39.

4 GARANTISMO PENAL E APLICAÇÃO DA PENA

4.1 Garantismo penal

Se fosse permitido ao intérprete do Direito Penal um olhar apaixonado e


parcial sobre o delito e seu autor não seria possível sequer cogitar de segurança
jurídica e estabilidade normativa. A maneira com que cada um de nós enxerga os

                                                            
38 SANTOS, Juarez Cirino dos. O direito penal do inimigo – ou o discurso do direito penal desigual.
Disponível em: < www.icpcjur.com.br/images/direito_penal_do_inimigo.pdf> Acesso em: out. 2009.
39 ZAFFARONI, 2007. p. 192. 

 
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fenômenos é influenciada por diversos fatores e circunstâncias. Não há um


pensamento uniforme; não deve haver. Entretanto, em matéria penal é preciso uma
construção ainda mais sólida e firmes alicerces, pois em última análise o que está em
jogo é a liberdade.
A teoria do garantismo penal tem como fim o estabelecimento de critérios
de racionalidade e civilidade à intervenção penal, assegurando a efetivação dos
direitos e garantias fundamentais que, por sua vez, fixam o objeto e o limite do
Direito Penal. O poder punitivo estatal é restringindo e a pessoa passa a receber
garantias contra atos arbitrários. Salo de Carvalho acentua que o garantismo penal
atua

[...] deslegitimando qualquer modelo de controle social


maniqueísta que coloca a ‘defesa social’ acima dos direitos e
garantias individuais. Percebido dessa forma, o modelo garantista
permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à
tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam
públicos ou privados.40

Os direitos e garantias fundamentais são, portanto, instrumentos essenciais


e hábeis a orientar a ação estatal e corrigir excessos e equívocos por parte do Estado
sancionador. Há limites que não podem ser ultrapassados, mesmo que sob o
fundamento de controle social e punição de criminosos. As regras garantistas
consagradas na Constituição orientam o sistema penal, não podendo o intérprete
olvidá-las.
A construção teórica dos pressupostos do garantismo penal encontra
assento nos sólidos fundamentos propostos por Luigi Ferrajoli. Em sua obra Direito
e Razão – Teoria do Garantismo Penal, o jurista italiano desperta reflexões sobre a

                                                            
40 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3. ed. ampl.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 19. 


 
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necessidade de se afastar a incerteza e imprevisibilidade no momento da intervenção


penal.
Ferrajoli assegura que a diferença substancial entre o Direito Penal Mínimo
e o Direito Penal Máximo pode ser mais bem esclarecida quando assentada nos
critérios de certeza e incerteza, mesmo reconhecendo o relativismo desses critérios.
Assim,

A certeza perseguida pelo direito penal máximo está em que


nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que
também algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida
pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum
inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum
culpado possa ficar impune. Os dois tipos de certeza e os custos
ligados às incertezas correlativas refletem interesses e opiniões
políticas contrapostas: por um lado, a máxima tutela da certeza
pública acerca das ofensas ocasionadas pelo delito e, por outro
lado, a máxima tutela das liberdades individuais acerca das ofensas
ocasionadas pelas penas arbitrárias.41

O sistema penal de tipo garantista, ainda que reconheça a impossibilidade de


um critério absoluto de certeza, não tem por fim que todos os crimes sejam
devidamente comprovados e punidos, mas que sejam punidos apenas aqueles em que
a culpabilidade restou plenamente comprovada. A dinâmica garantista não tem por
escopo uma pretensão de totalidade e assenta-se em juízos de certeza construído sob
a ótica das liberdades individuais em contraposição ao arbítrio estatal.
O princípio in dúbio pro reo visa garantir que nenhum inocente venha a ser
punido, resolvendo-se a incerteza, como leciona Ferrajoli, “por uma presunção legal
de inocência em favor do acusado, precisamente porque a única certeza que se

                                                            
41 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2002. p. 84-85. 
 
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pretende do processo afeta os pressupostos das condenações e das penas e não das
absolvições e da ausência de penas”42.
Zaffaroni salienta que “referir-se a um direito penal garantista em um Estado
de direito é uma redundância grosseira, porque nele não pode haver outro direito penal
senão o de garantias, de modo que se supõe que todo penalista, nesse marco, é
partidário das garantias, isto é, garantista”43. E arremata:

O direito penal de um Estado de direito, por conseguinte, não


pode deixar de esforçar-se em manter e aperfeiçoar as garantias
dos cidadãos como limites redutores das pulsões do Estado de
polícia, sob pena de perder sua essência e seu conteúdo. Agindo
de outro modo, passaria a liberar poder punitivo
irresponsavelmente e contribuiria para aniquilar o Estado de
direito, isto é, se erigiria em ramificação cancerosa do direito do Estado de
direito.44

4.2 Aplicação da pena

4.2.1 Fundamentação e publicidade das decisões

Para que seja possível trilhar o mesmo caminho percorrido pelo juiz ao fixar
a pena é preciso saber qual direção ele seguiu. Decisões que não possibilitam essa
digressão ferem previsão constitucional, uma vez que os julgamentos do poder
judiciário serão públicos e as decisões fundamentadas, consoante o disposto no art.
93, IX, da Constituição Federal.

                                                            
42 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 85.
43 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. 2007. p. 173. 
44 Ibidem.

 
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Os motivos de fato e de direito que subsidiaram a decisão devem estar ao


alcance de todos, principalmente, do condenado. O caráter público das decisões
judiciais e as implicações delas decorrentes impõem a exteriorização das razões de
decidir. Ney Fayet, citado por Carvalho e Carvalho, leciona sobre a necessidade de
fundamentação das decisões e expõe:

[...] é pela motivação que se aprecia se o juiz julgou com


conhecimento de causa, se sua convicção é legítima e não
arbitrária, tendo em vista que interessa à sociedade e, em
particular, às partes saber se a decisão foi ou não acertada. E,
somente com a exigência da motivação, da fundamentação, se
permitiria à sociedade e às partes a fiscalização da atividade
intelectual do magistrado no caso decidido.45

4.2.2 Circunstâncias judiciais

O art. 59 do Código Penal estabelece os critérios orientadores eleitos pelo


legislador para que se possa determinar a pena-base. Tem-se, no caso, o processo de
individualização da pena consagrado na Constituição Federal. Ao juiz, portanto, é
imposto o dever de analisar cada uma das circunstâncias em relação a cada um dos
réus, para, enfim, estabelecer a pena conforme necessário e suficiente para
reprovação e prevenção do crime.
Essas circunstâncias são denominadas judiciais, pois cabe ao juiz aumentar
ou diminuir a pena em razão de cada circunstância observada no caso concreto. Há,
como se vê, certa discricionariedade. Esta, entretanto, não é ilimitada e a própria lei
estabelece os parâmetros do permitido e do proibido, uma vez que discricionariedade

                                                            
45 FAYET, A Sentença Criminal e suas Nulidades, p. 49-50, apud CARVALHO, Amilton Bueno de;
CARVALHO, Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p.
32. 
 
173 
 
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não pode ser confundida com arbitrariedade. Nucci assim conceitua a fixação da
pena:

Trata-se de um processo judicial de discricionariedade


juridicamente vinculada visando à suficiência para prevenção e
reprovação da infração penal. O juiz, dentro dos limites
estabelecidos pelo legislador (mínimo e máximo, abstratamente
fixados para a pena), deve eleger o quantum ideal, valendo-se do
seu livre convencimento (discricionariedade), embora com
fundamentada exposição do seu raciocínio (juridicamente
vinculada).46

Luiz Luisi, citado por Galvão, esclarece que:

É de entender-se que, na individualização judiciária da sanção


penal, estamos frente a uma “discricionariedade juridicamente
vinculada”. O Juiz está preso aos parâmetros que a lei estabelece.
Dentro deles, o juiz pode fazer as suas opções, para chegar a uma
aplicação justa da Lei Penal, atendendo as exigências da espécie
concreta, isto é, as suas singularidades, as suas nuanças objetivas e
principalmente a pessoa a que a sanção se destina. Todavia é
forçoso reconhecer estar habitualmente presente nesta atividade
do julgador um coeficiente criador, e mesmo irracional, em que,
inclusive inconscientemente, se projetam a personalidade e as
concepções da vida e do mundo do juiz.47

Não basta ao juiz apenas fazer referência ao art. 59, CP, pois o acusado tem
o direito de saber qual a razão da punição e o porquê desta e não daquela pena. Citar
de forma genérica as circunstâncias previstas no artigo não realiza seu desiderato.
Sentenças dessa natureza, por vezes, acobertam razões de decidir que não se
amoldam aos princípios e garantias fundamentais em matéria penal. Os Tribunais
têm anulado repetidamente decisões que aplicam a pena acima do mínimo sem a

                                                            
46 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9. ed. rev. atualiz.. ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008. p. 388. 
47 LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Fabri, 1991, apud GALVÃO,

Fernando A. N. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004. p. 691.
 
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adequada fundamentação. Zaffaroni e Pierangeli confirmam esse entendimento e


asseveram:

Uma sentença assim elaborada é nula, porque não permite a sua


crítica, posto que, não sendo possível reconhecer a
fundamentação que leva à imposição de uma determinada pena,
não é suscetível de comprovação a sua adequação ou inadequação
às normas legais. Pode-se ampliá-las, mediante a interpretação
dessas normas e com a aplicação concreta que delas faça o juiz,
mas para isso é necessário saber quais foram elas, e, as omissões,
neste sentido, isso impedem, o que torna incompreensível a
individualização da pena realizada.48

Assim, a experiência pessoal e a sensibilidade do julgador é que


determinarão a forma de sua interpretação. Entretanto, como ensina Ferrajoli,
lembrando por Carvalho e Carvalho, o juiz

não deve submeter à indagação a alma do imputado, nem deve


emitir vereditos morais sobre sua pessoa, mas apenas investigar
seus comportamentos proibidos. E um cidadão pode ser julgado,
antes de ser castigado, apenas por aquilo que fez, e não, como no
juízo moral, também por aquilo que é.49

5 O DIREITO PENAL DO INIMIGO NA PRÁTICA JUDICIÁRIA

A concepção de um Direito Penal que fundamenta a aplicação da pena não


em razão do ato praticado, mas orientado pelo “ser” daquele que o pratica está
vinculada às perspectivas de um Direito Penal do autor. Esse modelo de Direito
Penal não é acolhido pelo Estado brasileiro, posto que os princípios liberais que
orientam o Estado de Direito inviabilizam a adoção de postulados autoritários e
                                                            
48ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique., 2007. p. 707.  
49FERRAJOLI, Luigi. Diritto e Ragione, p. 208 apud CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO,
Salo de. Aplicação da pena e garantismo. 3. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 13.. 
 
175 
 
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violadores dos direitos e garantias fundamentais. Na doutrina tradicional o Direito


Penal do fato é compreendido como um princípio liberal, excluindo de
responsabilidade jurídico-penal os meros pensamentos e, dessa forma, afastando um
Direito Penal orientado pelos posicionamentos internos do autor.
Zaffaroni e Pierangeli elucidam ainda mais o tema:

Ainda que não haja um critério unitário acerca do que seja o


direito penal de autor, podemos dizer que, ao menos em sua
manifestação extrema, é uma corrupção do direito penal, em que
não se proíbe o ato em si, mas o ato como manifestação de uma
“forma de ser” do autor, esta sim considerada verdadeiramente
delitiva. O ato teria valor de sintoma de uma personalidade; o
proibido e reprovável ou perigoso, seria a personalidade e não o
ato. Dentro desta concepção não se condena tanto o furto, como
o “ser ladrão.50

A ilegitimidade das premissas do Direito Penal do autor, pela sua própria


contradição, afasta também a possibilidade de fundamentação do denominado
Direito Penal do Inimigo. Não há possibilidade da negação do status de pessoa em
nosso Direito e, portanto, no plano jurídico abstrato, é inconcebível a admissibilidade
de seus postulados. Isso não quer dizer que concretamente não existam decisões que,
ora explicitamente ora sub-repticiamente, conjuguem elementos de Direito Penal do
autor e Direito Penal do Inimigo. A existência de tais decisões, é bom dizer, não as
legitima como práticas jurídicas dentro do Estado de Direito. Chamon Júnior, no
mesmo sentido, adverte:

Que esta prática de combate jurídico-penal exista, como exalta


JAKOBS, de forma silenciosa e, porque não, acreditou eu,
parasitária do Direito Penal legítimo, não pode decorrer conclusões a
acreditar que se trata de uma prática normativa coerente com o
Estado de Direito e que possa ser identificada como sendo prática
jurídica. Antes, o que aqui se buscou colocar em relevo é o fato de
                                                            
50 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. 2007. p. 107.  

 
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que todas, e quaisquer, pretensões de coercibilidade somente se


justificam na Modernidade quando sustentáveis em face de uma
reconstrução do sentido normativo subjacente ao Direito
moderno, quando capazes de se manterem de pé por razões
normativas, e não somente por razões funcionais. E que este papel
reconstrutivo, e não meramente “descritivo”, é o que há que ser
assumido pelos cientistas e operadores do Direito, se se pretende
levar adiante o projeto jurídico-moderno de reconhecimento de
iguais direitos fundamentais a todos os concidadãos, na maior
medida possível, de construção de uma Sociedade de livres e
iguais.51

Um Direito Penal que busca rotular cidadãos como inimigos aponta


aspirações autoritárias. Ferrajoli concebe que um processo penal que visa “golpear
todos os culpados é fruto de uma ilusão totalitária” e arremata dizendo que
“compreende-se , assim, como o princípio equitativo do favor rei – de que a máxima in
dubio pro reo é um corolário – não só não contradiz, mas é até mesmo uma condição
necessária para integrar o tipo de certeza racional perseguida pelo garantismo
penal”52.

6 CONCLUSÃO

Findado o estudo proposto é possível considerarmos que os postulados do


Direito Penal do Inimigo descritos e, porque não dizermos, legitimados por Jakobs,
aguçam o sentimento de diferenciação social e exacerbam a dicotomia “nós contra

                                                            
51 CHAMON JUNIOR, Lúcio Antônio. O Direito Penal do Inimigo e o Constitucionalismo: mise-em-scène de
uma proposta funcionalista. Artigo analítico inserido ao final da obra de Jakobs (2008, p. 131).
51 JAKOBS, Günther. 2008. p. 7. 
52 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2002. p. 86.
 
 
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eles”, pois se funda no estabelecimento de categorias de seres humanos: os cidadãos


e os inimigos.
Os pressupostos do Estado de Direito não admitem esse modelo de
categorização e discriminação. As máximas garantistas orientam o sistema no sentido
de assegurar a todos a condição de cidadão, não sendo possível cogitar a perda do
status de pessoa e, muito menos, a seleção de inimigos.
Inicialmente, buscou-se demonstrar alguns elementos da teoria proposta
por Jakobs e a ressalva por ele apresentada de que o fato de não falarmos ou não
desejarmos falar em Direito Penal do Inimigo não o faz sucumbir. Além disso, a
formulação do discurso meramente descritivo e não legitimador por ele apresentado
mereceu detida análise, já que ao descrever o fenômeno olhando-o de fora, como ele
mesmo disse, fundamentou o que dizia apenas descrever. É certo, porém, que não se
pode ignorar o discurso de Jakobs e simplesmente supor que no Estado de Direito o
modelo por ele apresentado não existe. Entre o dever-ser e o ser há um intervalo
assombroso.
A segregação social em duas categorias de seres humanos, inimigos e
cidadãos, não representam, para Jakobs, esferas incomunicáveis e isoladas. Estas
categorias estão inseridas no mesmo contexto do Direito Penal e um mesmo
indivíduo seria tratado como pessoa em dado momento e, em outro, como fonte de
perigo. A diferenciação no tratamento destinado ao indivíduo estaria a depender do
comportamento do sujeito diante do ordenamento jurídico. Para ser tratado como
cidadão e, portanto, ter seu comportamento regulado pelo Direito Penal do Cidadão,
o sujeito deve oferecer garantias mínimas de que se comportará como pessoa. Se
assim não for, isto é, se o indivíduo não oferecer essa segurança cognitiva suficiente e
reincidir persistentemente na prática de delitos, não seria adequado tratá-lo com
pessoa, pois tal privilégio violaria o direito das outras pessoas à segurança. A este
estaria reservado o Direito Penal do Inimigo.
 
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As características do Direito Penal do Inimigo foram sintetizadas em três


aspectos: adiantamento das barreiras da punibilidade; aumento significativo de pena
dos tipos penais que integram essas legislações e diminuição ou até mesmo
eliminação de algumas das garantias processuais básicas.
Os aspectos assinalados evidenciam a negação dos princípios do garantismo
penal estatuídos por Ferrajoli. Na perspectiva do Direito Penal do Inimigo é licito
segregar de forma extremada o criminoso contumaz, posto que este não oferece
segurança para viver em sociedade; com a lente do garantismo, o que devemos
buscar é o fato praticado e sua repercussão penal. O indivíduo em si não é o objeto
da sanção penal, mas o fato. Este determina os limites e os contornos da intervenção
estatal sancionadora. As garantias, é bom dizer, não são instrumentos de segurança
apenas para o acusado, mas para toda a sociedade.
Por fim, nomear as teses postuladas por Jakobs como Direito significa a
legitimação da ofensa a todos os cidadãos, criando regras de exceção. Entretanto, a
simples manifestação de incongruência do sistema por ele proposto e sua
inadequação no contexto do Estado de Direito não o elimina. Mas é evidente que
tolerar decisões fundadas em um Direito Penal simbólico e legitimador de teses de
exceção avilta a própria Constituição. Sánchez, laconicamente, compreende que “à
vista de tal tendência, não creio que seja temerário prognosticar que o círculo do
Direito Penal dos ‘inimigos’ tenderá, ilegitimamente, a estabilizar-se e a crescer”53 .

                                                            
53 SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas
sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. – (Série as ciências criminais no século 21; v. 11). p. 151.
 
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O REGIME PRISIONAL ABERTO NA HISTÓRIA DAS PENAS


PRIVATIVAS DE LIBERDADE NO BRASIL

Andreza Lima de Menezes1

RESUMO

No presente trabalho pretende-se revelar o discurso por trás do caráter


declaradamente humanitário do regime prisional aberto. Ao traçar sua trajetória - dos
regulamentos elaborados pela justiça estadual paulista que, aproveitando-se do vácuo
legislativo à época sobre o processo executivo penal, “inventaram” uma solução
declaradamente humanitária, passando por sua positivação na legislação brasileira, até
sua atual ameaça de extinção em face do pequeno número de Casas do Albergado –,
resta clara sua relação de continuidade com a história das penas privativas de
liberdade enquanto instrumento da Economia para regular o mercado de trabalho,
oscilando entre o treinamento dos corpos para o trabalho e a introjeção do ideário
burguês entre as classes pobres. Por fim, vê-se, então, que se essas funções já
encontraram total compatibilidade com um modelo político que obrigava o Estado a
garantir o bem-estar social e o pleno emprego, hoje, no entanto, seu sentido
desvaneceu diante de uma economia na qual o desemprego integra sua estrutura, e,
assim, gera ampla flexibilidade dos direitos, insegurança dos rendimentos, bem como
a perda das subjetividades. Tal permanência ideológica, ao que parece, só se sustenta
para escamotear a tendência ao aumento do controle policial e penal, em que não
importa a relativização ou o total desrespeito aos direitos e garantias processuais de
acusados e condenados.

Palavras-chave: Pena privativa de liberdade; Regime aberto.


Palabras-clave: Pena privativa de la libertad; Régimen abierto.

 
                                                            
1 Pós-graduada em Segurança Pública e Complexidade pela Rede de Altos Estudos em Segurança
Pública do Ministério da Justiça e pela Escola Superior Dom Helder Câmara
(http://lattes.cnpq.br/2923150491618126).
 
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Uma história

Vários são os autores brasileiros que afirmam ter a história do Direito Penal
sido iniciada em “tempos primitivos”, “envoltos em ambiente mágico”
(MIRABETE, 2004, p. 35), período no qual prevaleceu, em ordem cronológica, a
“vingança privada”, a “vingança divina” e a “vingança pública”. A sobrevivência
desta narrativa sem indicação de tempo nem de lugar, talvez resultante de uma
simplificação dos dados históricos2, contada e recontada para os estudantes dos
cursos jurídicos Brasil afora através dos manuais mais populares, dos reprodutores do
direito, merece aqui um breve registro tão somente para lembrar que as prisões nem
sempre estiveram presentes na trajetória dos vários direitos de punir, ao menos como
item indispensável para suas práticas. A privação de liberdade, se nem sempre
constituiu uma prática punitiva, conferiu ao Direito Penal moderno uma razão de
existir, desde quando se tornou um marco na chamada humanização das penas em
meados do século XVIII - com a introdução dos princípios da legalidade, do devido
processo legal e da proporcionalidade -, e até os dias atuais, quando continua sendo
apontada como principal instrumento de controle social ou, como muitos (juristas,
inclusive) costumam dizer, um “mal necessário” (BITTENCOURT, 2004), embora
seja óbvio que, tratando-se de um mal, não pode haver espaço para considerá-lo
necessário.
A história que se conta aqui começa na Europa da Idade Média, mais
precisamente no que se conhece hoje como Inglaterra, França e Países Baixos,
durante a vigência do modo de produção pré-capitalista, momento em que o cárcere
como pena ainda não existia, servindo apenas de custódia preventiva e para acautelar

                                                            
2 Na obra de BATISTA (2000), percebe-se que tal simplificação corresponde às práticas punitivas
dos povos germânicos antigos (século I d.C.), fontes históricas mais remotas do sistema penal
brasileiro.
 
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os endividados. Naquela época, existiam outros bens socialmente considerados como


valores a serem privados (vida, integridade física, perda de status). A forma pública de
execução das penas era necessária para expiação da culpa, pois não se punia o ato em
si, mas sim se evitava, com o castigo espetacular, a fúria divina sobre a comunidade.
O Direito Canônico é que fornece ao Estado absolutista a experiência da
privação de liberdade como sanção contra uma conduta desviante. A penitência
inspirou-se nos mosteiros de tipo oriental, de natureza contemplativa e ascética. O
tempo privado servia à purificação do sujeito e seu quantum era proporcional à
gravidade da falta, e não à periculosidade do faltoso. Já com o capitalismo, introduz-
se o conceito de equivalência (a noção de que o trabalho humano deve ser medido
pelo tempo), absorvido não só pela Economia, mas também pelo Direito. Ora, essa
noção penetra também no universo das punições, tanto com a introdução da idéia de
pena como retribuição - seja contra a ofensa a Deus ou contra a própria vítima -,
quanto assumindo a proporcionalidade como critério de sua aferição (quanto mais
grave o crime, mais dura a pena). Assim, a sanção penal, quando sob a forma de
privação de liberdade passa a ser medida pelo tempo tal como o trabalho. Embora
mantidas as penas corporais, progressivamente as instituições foram recebendo
condenados por delitos mais graves e com penas mais longas, observando-se, assim,
a substituição, pelo cárcere, de outras formas de punição, o que não significava que a
detenção fosse, em si, menos dolorosa que os flagelos ou que estes não fossem
realizados em seu interior.
Os pobres eram classificados entre os que podiam e os que não podiam
trabalhar. Havia até um imposto específico, na Inglaterra do século XVI, para
subsidiar os últimos, enquanto para os primeiros só existiam duas opções: o trabalho
ou a punição. O proletariado, nos seus primórdios, relutou em se adaptar ao trabalho
nas manufaturas, daí porque trabalho forçado teve uma função de regulação frente ao
preço do trabalho no mercado livre: a principal finalidade das workhouses era incutir a
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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disciplina dos antigos camponeses com o trabalho operário – afinal, embora expulsos
do campo, eles ainda estavam acostumados com o modo de produção feudal -,
sujeitando-os a condições de trabalho terríveis, contra as quais era quase impossível
resistir. Na Inglaterra, por exemplo, chegou-se ao ponto de obrigar seus súditos a
aceitação da primeira oferta de trabalho que lhes fizessem, sob pena de ser
severamente punido com trabalho forçado (MELOSSI e PAVARINI, 2006). Porém,
em verdade, tal estratégia não era de todo exitosa, na medida em que não havia
capital suficiente para empregar todos os pobres, servindo, então, o cárcere para
abrigar todo esse “exército de reserva3”.
Com o avanço capitalista, as relações de produção ganham legitimidade a
ponto de se naturalizarem, fazendo com que a violência física seja usada apenas
excepcionalmente, o que abre um flanco para que ganhasse força o clamor iluminista
pela legalidade, pela proporcionalidade das penas à gravidade do delito cometido e
pela humanidade das penas. Ora, a fonte ideológica de tais inquietações também
serviu para combater o abuso de poder consubstanciado nas monarquias absolutas e
para inaugurar o chamado Estado moderno. Ao fundar uma ordem política fundada
naqueles princípios, refinou-se a técnica jurídica da punição, ao mesmo tempo em
que se promoveu a aceitação dos direitos civis fundamentais que, de fato,
contribuíram para conter os ânimos exaltados das massas populares, antes tão
interessantes para burguesia que pretendia ascender ao poder. A maior conquista da
burguesia, portanto, não foi sobre o Estado absoluto, que de alguma maneira já

                                                            
3 O exército de reserva, ou a superpopulação relativa de trabalhadores sem qualificação profissional,
foi percebido por Karl Marx ao examinar a formação do capitalismo na Inglaterra (quando da
acumulação primitiva do capital). Ele observou que havia um contingente expressivo de trabalhadores
sem ocupação fixa que tendia a aceitar as condições de trabalho piores do que as praticadas no
mercado de empregos regulares. Assim, tal massa era prontamente convocada quando necessária e
mantinha sob a pressão os trabalhadores ativos (o “exército ativo”), e quando não era, servia para
conter as pretensões de melhoria de condições de vida dos últimos (MONTENEGRO, 2009).
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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estava por ela dominado, mas sim a sua consolidação de sua hegemonia frente ao
proletariado.
Com a Revolução Industrial, iniciada no século XVIII na Inglaterra,
possível graças à acumulação primitiva do capital, observa-se o crescimento da
população e outro grande movimento de expulsão dos campos. O desenvolvimento
industrial faz desaparecer o trabalho no cárcere ou torna-o improdutivo ante a
competição com o mercado livre, cujas tecnologias passam a sobrepor-se às
manufaturas. No entanto, a coação exclusivamente econômica não consegue ser mais
capaz de conter a resistência, ora menos desorganizada, do proletariado. Mais uma
vez, o aparelho estatal é mais uma vez acionado para promover tal contenção.
Assiste-se, então, à retirada dos potenciais trabalhadores no interior das casas de
correção e a permanência dos incapacitados nas casas de assistência, já que a
abundância de mão-de-obra livre faz com que o trabalho forçado perca sua função
reguladora, sobrando-lhe apenas a função disciplinante.
É por isso que, em meados do século XVIII, verifica-se que o trabalho
deixa de ser a tônica do cárcere na Inglaterra que, em 1770, inaugurou a deterrent
workhouse, a casa de trabalho “terrorista”, assim denominada por se destinar somente
àqueles que não tinham outra opção. As condições de vida lá eram propositadamente
piores do que as oferecidas ao trabalhador livre – orientação do princípio da less
eligibitity, consagrado na Poor Law Amendment de 1834 – e assim o era também como
forma de o Estado se posicionar (com a intimidação) frente às primeiras lutas
operárias. O trabalho lá desenvolvido era improdutivo, inútil, insignificante, restando
tão-somente a finalidade punitiva e disciplinadora do cárcere.

“Não é que não se trabalhasse mais no cárcere; o trabalho no


cárcere não era descartado a priori, mas o que emergia era o caráter
punitivo, disciplinador, do trabalho, mais do que a sua imediata
valorização econômica. E isso acontecia porque, com a introdução
das máquinas, o nível de emprego de capitais em qualquer
 
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trabalho produtivo aumentara de tal forma que o trabalho no


cárcere, como informava um relato da época, não podia ser mais
promovido, a não ser na perspectiva das grandes perdas”
(MELOSSI e PAVARINI, p. 69).

 
A invenção penitenciária

A viagem pela história da pena privativa de liberdade, a partir do final do


século XVII deve necessariamente chegar a então colônia inglesa ora conhecida
como Estados Unidos da América. Até então, a pobreza era tolerada, uma vez
considerado o exercício da caridade um meio de redenção da humanidade. Tal
tolerância, contudo, concentrava-se tão-somente em relação aos pobres que
permaneciam em suas respectivas comunidades, que tinham o dever moral de assisti-
los, e esvaía-se em relação aos pobres errantes, o que, segundo MELOSSI e
PAVARINI (2006), tinha relação estreita com a extrema valorização da propriedade
privada imobiliária4.
Graças a processos migratórios cada vez mais intensos, assistiu-se nas
colônias mais densamente povoadas a introdução de instituições repressivas da
Europa, tais como as casas de correção e as casas de trabalho. A primeira house of
correction, inspirada nas rasp-huis da Holanda, e sob influência moral dos quakers, foi
criada na Pensilvânia em 1682, para abrigar aqueles não condenados a penas
corporais ou à pena capital. No entanto, ainda por um bom tempo, o espetáculo do
suplício e a assistência domiciliar da pobreza persistiram no cenário estadunidense até
sua independência, momento a partir do qual observou um rápido processo de
acumulação de capital e a passagem de uma economia agrícola para uma de perfil
                                                            
4 “[...] a obsessão que condicionou o pensamento da época não foi tanto o problema da
marginalidade, mas sim o da mobilidade das populações indigentes, o que denota a presença efetiva de
um ideal de estabilidade no fundo da ideologia dominante” (p. 154-155).
 
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manufatureiro até chegar, ainda no século XIX, a assumir a indústria como principal
atividade. Assim como a européia nos séculos anteriores, a sociedade estadunidense
pós-colonial tinha o pobre como o único responsável por sua condição – já que as
oportunidades estavam acessíveis a todos - e a pobreza como a fonte de
criminalidade, sendo, então, ambos combatidos não mais com a assistência privada,
mas sim com os mesmos instrumentos de repressão já experimentados no Velho
Mundo: internamento e trabalhos forçados.
Foi assim que os Estados Unidos “inventaram” a penitenciária: em 1790, na
mesma Pensilvânia dos quakers, que num ato de filantropia, mobilizaram a opinião
pública e as autoridades locais para a construção de um lugar que oferecesse
condições para que os criminosos salvassem suas almas - isolamento, oração e total
abstinência de bebidas alcoólicas. Conseguiram, assim, fundar um modelo de
instituição no qual, declaradamente, o trabalho não tinha outra função senão a de
ocupação de tempo, vez que o isolamento celular, por si só, não permitiria a
introdução de uma atividade verdadeiramente produtiva no seu interior. O solitary
confinement tinha por finalidade promover no interno o “processo psicológico de
introspecção” (MELOSSI e PAVARINI, 2006, p. 189) necessário para que o
condenado se arrependesse do seu crime. Em pouco tempo, contudo, o
confinamento mostrou-se mais eficaz para o crescimento do número de suicídios e
de encarcerados acometidos pela loucura.
Olvidadas as razões humanitárias, e em vista da industrialização da
economia que, somada ao decréscimo na importação de escravos, fez com que
crescesse a necessidade de mão-de-obra, o sistema pensilvânico passou a ser
criticado, já que reduzia o número de trabalhadores livres e deseducava os presos ao
obrigá-los a trabalhar sem fins produtivos. Dessa forma, tentou-se primeiramente
introduzir o trabalho produtivo nas prisões mantendo-se o isolamento celular, o que

 
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logo se mostrou incompatível com as exigências da produção manufatureira


(RUSCHE e KIRCHHEIMER, 1999).
Assim, surgiram tentativas de capacitar a população carcerária para trabalhar
nas manufaturas, com a adoção do confinamento solitário à noite e do trabalho
coletivo durante o dia, em absoluto silêncio, de modo a evitar a comunicação e, por
extensão, a corrupção moral entre os prisioneiros. É este, em síntese, o chamado
modelo auburniano, assim denominado por causa da penitenciária de Auburn,
Filadélfia, primeira a adotar tais “novidades”. Mesmo sendo muito festejado, o
modelo auburniano não significou o fim do pensilvânico, uma vez que com este se
distancia efetivamente muito pouco (BITTENCOURT, 2004).
As mudanças na disciplina do cárcere ocorrem, de fato, com a
internalização das regras da divisão do trabalho, já que a simples vigilância não era
mais o bastante para subordiná-los. A partir de então, passa-se a estimular o trabalho
com a expectativa de privilégios, e não com a mera ameaça de punição, daí porque o
ato de trabalhar transforma-se em parâmetro de boa conduta carcerária e passa a
condicionar a concessão dos ditos “benefícios”.
Também se observam, em linhas gerais, duas tendências no que tange à
organização do trabalho no interior do cárcere: a atividade produtiva ora foi
organizada e gerida pelo Estado, ora pelo empresário privado5. O cárcere-fábrica
esteve em funcionamento no curto lapso de tempo que se mostrou lucrativo, entre
os séculos XVIII e XIX, o que durou até a total industrialização da atividade
produtiva. Isso porque o processo industrial não encontrava possibilidades
estruturais de ser introduzido no interior da instituição, sem contar que a produção
carcerária e o uso de mão-de-obra barata encontraram resistência de organizações

                                                            
5 A pretensão do atual governo mineiro em estabelecer uma parceria público-privada para
administrar as prisões, portanto, não pode ser vendida como uma novidade: novo mesmo é
transformar em matéria-prima o preso e do seu sofrimento retirar a mais-valia.
 
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operárias. Assim, o trabalho artesanal e, muitas vezes inútil, voltou a ser a tônica das
prisões, até porque não mais havia real necessidade de treinar a população carcerária
para ocupar mercado de trabalho, mas sim, e tão somente, reproduzir no cárcere a
idéia corrente de que empregado sempre está subordinado ao patrão.

As reinvenções do cárcere

De volta à Europa, agora no século XIX, observa-se que, após adotar a


“invenção” penitenciária estadunidense, o Velho Mundo fez suas próprias
reinvenções6.
Os chamados sistemas progressivos, nas suas versões espanhola, inglesa ou
irlandesa, consistem, em síntese, na adoção de uma cadeia de etapas no cumprimento
da pena privativa de liberdade, cujo avanço em cada etapa significaria o gozo de uma
série cada vez mais ampla de privilégios, dependendo, assim, da correlata boa
conduta do condenado, sinal mais contundente de sua capacidade de retorno à
sociedade.
Em verdade, é difícil enxergar as diferenças entre os modelos
estadunidenses e os sistemas irlandês e inglês, pois nestes dois últimos vê-se a
aplicação do isolamento celular diurno e noturno em suas primeiras etapas e do
common work nas seguintes, tendo, por fim, as últimas fases menos aflitivas (no
sistema inglês, o livramento condicional, e no sistema irlandês, o período
intermediário e, depois, o livramento condicional). De fato, nem mesmo o sistema do
diretor do Presídio de Valência, de 1834 a 1854, Manuel Montesinos y Molina
                                                            
6 “O confinamento solitário, sem trabalho ou com um trabalho meramente punitivo, é um sintoma
de uma mentalidade que, como um resultado de excedente populacional, abandona a tentativa de
encontrar uma política racional de reabilitação, ocultando este fato com uma ideologia moral”
(RUSCHE e KIRCHHEIRMER, 1999, p. 181).
 
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(pioneiro na vedação do isolamento celular e dos castigos corporais, bem como na


autorização de saídas, daí ser considerado precursor da prisão aberta), diferencia-se
muito do que era aplicado nos Estados Unidos: sua severa, mas “humana” disciplina
(BITTENCOURT, 2004) baseava-se no mérito pelo trabalho, o qual tentou
introduzir como atividade produtiva, também sem sucesso diante da oposição dos
artesãos locais frente por terem de competir o mercado com os produtos do cárcere.
Aliás, quanto ao critério meritocrático como forma de avaliação da conduta
carcerária, não há mesmo tanta diferença entre os sistemas aqui apresentados, pelo
menos no plano do discurso, já que ali também vigia o princípio da igualdade: em vez
de troca da força de trabalho por salário no mercado de trabalho, critério geral do
valor na economia e no Direito que reduz toda a riqueza social ao trabalho abstrato
medido pelo tempo, nas prisões, o bom comportamento é a moeda de troca para o
abrandamento das condições de vida no cumprimento da pena progressiva. No
sistema de vales inglês (mark system), isso fica ainda mais evidente: na “conta
corrente” dos apenados, creditava-se sua boa conduta e a dedicação ao trabalho e
debitavam-se suas faltas disciplinares, sendo o saldo disso o correspondente ao
restante da pena a ser cumprida (BITTENCOURT, 2004). Já no irlandês,
aperfeiçoamento do primeiro sistema, segundo o mesmo autor, acrescentou-se entre
o regime fechado e o livramento condicional um período intermediário, durante o
qual o condenado passaria por uma fase de testes, tal como um trabalhador livre (idem,
p. 87), antes de obter a liberdade.
Se o estímulo ao bom comportamento do preso por meio de premiações
traz como conseqüência o uso da sua dissimulação para alcance dos favores, como
reconhece, inclusive, Bittencourt (2004), a introdução dos conhecimentos criminológicos,
no século XIX, nas práticas penitenciárias – que converteu o sistema progressivo no
da “individualização científica”, segundo o referido autor -, ficou longe de transformá-
las. Pelo contrário, garante sua continuidade ao dar respaldo à meritocracia,
 
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imprimindo-lhe com o signo das ciências uma moralidade burguesa que pretendia,
sob o engodo de ressocializar ou de reinserir à sociedade, subjugar as classes
subalternas, tanto para adestrar seus corpos para produzir, quanto para moldar seus
espíritos à ordem.
Isso vale notadamente para os saberes psi, cujos técnicos se destacam na
tarefa da avaliar e o diagnosticar os presos7, e, assim, compõem, como qualquer
“funcionário do cárcere”, o seu aparato de segurança: a indisciplina do sujeito é,
invariavelmente, tomada como sintoma de sua não regeneração ou de doença mental,
ao passo em que a normalidade restringe-se àqueles que apresentam bom
comportamento, seja ele dissimulado ou não (RAUTER, 2003).
A partir da segunda metade do século XIX, a melhora das condições de
vida dessa classe influencia no decréscimo ou, ao menos, na manutenção nos índices
de criminalidade. Também ressurge a demanda por mão-de-obra com a expansão da
produção industrial em tempos de imperialismo. Simultaneamente a tais fatos, o
desenvolvimento de uma abordagem sociológico-naturalista sobre a questão criminal,
o que, por sua vez, altera o enfoque da punição:

“[...] o problema dos métodos punitivos não era mais visto como
um problema de manutenção de uma proporção justa entre o
crime e a pena; ele era agora examinado sob o ponto de vista do
criminoso, a expectativa de reabilitação e as precauções que valiam
a pena de serem tomadas. [...] A concepção de culpa social
envolvia a idéia de garantir a volta do maior número de forças

                                                            
7 A Lei de Execuções Penais, em seu art. 5º, manda classificar os condenados, segundo os
antecedentes e a personalidade, para orientar a individualização da execução penal. Tal mister incumbe
à Comissão de Técnica de Classificação, que deve ser presidida pelo diretor do estabelecimento e em
cuja composição deve haver, no mínimo, um psiquiatra e um psicólogo (art. 7º). Apesar de haver sido
revogada a obrigatoriedade do exame criminológico para reconhecimento dos direitos à progressão de
regime e ao livramento condicional (alteração da Lei 10.792/03), as decisões dos técnicos continuam
exercendo forte influência na sorte dos condenados quanto ao gozo desses direitos, já que seus
saberes subsidiam o julgamento das faltas disciplinares, faltas essas que pontuam o comportamento
carcerário a ser avaliado em juízo.
 
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produtivas para a sociedade.” (RUSCHE e KIRCHHEIMER,


1999, p. 188-189)

Assim, assiste-se à diminuição da população carcerária proporcionalmente


ao aumento de outras formas de controle social, práticas incorporadas nas legislações
penais até os dias atuais (cujo emprego maior ou menor, por óbvio, varia de acordo
com as tendências políticas e econômicas de cada lugar), como o probation (suspensão
da pena condicionada a um período de provas), fiança e o livramento condicional
(parole), além dos primeiros registros de instituições em que vigia totalmente o regime
prisional aberto (MUAKAD, 1998), pressuposto para a prisão-albergue brasileira.

O açoite reservado8

Foi no século XIX, durante o Império que a privação de liberdade tornou-


se a principal forma de punição, não ensejando, no entanto, o fim da tradição
privatística e corporal das penas vigentes na época colonial, já que a brutalidade e a
distinção pela condição social não deixaram de caracterizar o cárcere.
Se, no Brasil, o cárcere não exerceu a função de disciplinar os corpos para o
trabalho porque o desenvolvimento das manufaturas e da indústria deu-se
tardiamente, assim que chegou, assumiu prontamente a função repressiva própria das
nações mais desenvolvidas. No contexto brasileiro, serviu para manter a então ordem
escravista, ameaçada tanto pelas restrições ao tráfico de escravos, impostas pela
Inglaterra que pugnava pelo fim desse comércio, quanto pela possível iminência de
uma revolta escrava. A organização carcerária imperial foi francamente inspirada nos
ideais europeus e estadunidenses (em verdade, numa mistura das diversas
                                                            
8 Expressão usada por ROIG (2005) para designar a condição dos escravos que, mesmo privados da

liberdade por uma infração estatal, ainda eram sujeitos à punição de seus senhores dentro das prisões.
 
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experiências que não foram seguidas fielmente), mas sua finalidade corretiva era
reservada aos presos não escravos, pois, a estes, a pena

“conserva incólume a sua condição de suplício corporal,


reproduzindo na esfera pública as mesmas práticas punitivas
senhoriais (privadas), não apenas como meio de expiação do ato
praticado e dissuasão de possíveis levantes escravos, mas também
como instrumento de neutralização – verdadeiro extermínio -, seja
dos cativos considerados perigosos ou sediciosos, seja daqueles
que deixavam de possuir serventia laboral.” (ROIG, 2005, p. 43)

Com a abolição da escravatura e o surgimento da demanda por mão-de-


obra livre, o cárcere assume, enfim, a função de ensinar os encarcerados como
manterem, naqueles novos tempos, sua condição de subalternos: a ideologia burguesa
do trabalho, com a legitimação das ciências médicas e sociais, amparada pelos ares
liberais e positivistas da então República que se instaurava pacificamente, passa a
orientar o projeto de regeneração moral do preso, o que previa além da construção
de colônias industriais e agrícolas, um enorme abuso na repreensão das faltas
disciplinares, bem como a permissão normativa para atuação praticamente autônoma
e, muitas vezes, arbitrária por parte da direção dos estabelecimentos.
E é aí que se vê o quanto o Estado-juiz tem feito uso da execução penal
para se estabelecer como uma instância política. Os bacharéis em Direito da virada
do século XIX, cuja formação humanística ampla permitia-lhes o desempenho das
mais variadas atividades (administração pública, foros, vida política, cargos legislativo
e executivo, escolas, jornais, literatura), encarregaram-se de inscrever a ideologia
burguesa do trabalho quando da implantação de relações sociais de produção
capitalista no Brasil àquela época. São eles que promoveram, por meio do discurso
jurídico (que, inicialmente, iluminista, passa rapidamente a absorver ideologias
positivistas/racistas, que tão bem se ajustaram ao cenário pós-abolição), a
individualização dos conflitos através do processo de criminalização. Para NEDER

 
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(1995), a normatização da repressão e do controle social, naquela época, tinha como


objetivo a regulamentação do mercado de trabalho brasileiro, profundamente
alterado graças ao fim da escravidão e à reorganização do Brasil em estado
republicano, que colocava a instituição judiciária como indissociável neste processo
(afinal, sua suposta neutralidade e eficácia são qualidades fundamentais para um
regime que pretendia opor-se à monarquia).
Já durante o século XX, as normas que versavam sobre a questão
penitenciária competiram às próprias unidades prisionais ou aos estados-membros da
federação, o que, além da natural discrepância no tratamento dos presos, facilitava o
exercício da já mencionada arbitrariedade das autoridades executivas. A idéia do
estabelecimento de diretrizes gerais no campo da execução penal veio apenas quando
se tentou atribuir certa autonomia científica ao penitenciarismo, após o X Congresso
Penitenciário Internacional, em 1930, o que motivou a elaboração do Projeto de
Código Penitenciário de 1933, de vezo positivista clínico e defensivista social, que se
destaca pela “minuciosa organização antropológica, médica e psiquiátrica dos estabelecimentos
penais” (ROIG, 2005, p. 105).
Contudo o plano só foi concretizado com o advento da Lei 3.274, de 07 de
outubro de 1955. O diploma legal que dispunha sobre as normas gerais do regime
penitenciário brasileiro acolhia as Regras Mínimas das Nações Unidas para
Tratamento dos Presos, aprovadas naquele mesmo ano pelo Conselho Econômico e
Social da ONU, as quais determinavam o respeito à condição humana do preso,
inclusive prevenindo os maus tratos e o abuso na punição das faltas disciplinares,
bem como estimulando o esforço para vencer as dificuldades práticas na aplicação
das diretrizes. A seguir, o que trouxe a Lei 3.247/57 ao ordenamento jurídico:

“a) Individualização da pena para o conhecimento da


personalidade de cada sentenciado e proporcionar o tratamento
penitenciário adequado; b) A educação moral, intelectual, física e
 
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profissional dos sentenciados; c) A assistência social aos


sentenciados, aos liberados condicionais, aos egressos e às famílias
dos mesmos e das vítimas; d) A necessidade do trabalho atender
às circunstâncias ambientais de seu futuro emprego em meio
urbano ou meio rural; e) Toda a educação dos sentenciados,
levando-se em conta os índices psico-pedagógicos e orientada a
sua vocação na escolha de uma profissão útil, objetivando
readaptá-los ao meio social”. (DOTTI, 2009)

Curiosamente, no mesmo ano da promulgação da lei, já se encomenda um


novo Anteprojeto, em cujo teor são adotados os mesmos paradigmas humanitários
positivados, acrescentando-se, porém, os detalhes próprios dos regulamentos
penitenciários executivos, Isso revelavam a permanência dos ideais positivistas e da
defesa social, com destaque para o dispositivo que permitia a segregação em “célula
disciplinar”, mesmo após o cumprimento da sanção, do preso portador de alta
periculosidade que cometesse falta grave.
O Anteprojeto do “Código de Execuções Penais” de 1970, por sua vez, não
diferia muito do anterior, até porque sua carga ideológica era compatível com o
regime ditatorial ora instalado. Antes dele, o Anteprojeto de 1963, de autoria de
Roberto Lyra, era o único que abandonava o ideário positivista, porém seja
francamente determinista social.
Com efeito, os Anteprojetos merecem seu registro aqui pelo seu legado
ideológico deixado para a legislação atual. Como bem anota ROIG (2005),

“não obstante os inegáveis progressos trazidos, tais como a


positivação do princípio da legalidade, em sede executiva, ainda se
encontram influenciados pelo modelo neodefensivista social,
consagrando a ressocialização do condenado como objetivo
anunciado da pena, reincorporando a noção de periculosidade do
agente e primando pela idéia de ‘tratamento do delinqüente’” (p.
137-138).

Vale frisar, ainda, que o legislador do Código Penal de 1940 debruçou-se


sobre a matéria, estabelecendo algo similar ao sistema progressivo (o que não era
 
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novidade, pois o mesmo já fora previsto no Código Penal de 1890, em seu art. 509),
bem ainda uma espécie de período de estágio para o livramento condicional
(MUAKAD, 1998), para os condenados de “bom procedimento”, a ser cumprido em
colônias penais e estabelecimentos similares (então art. 30, §2º), os quais nunca
“saíram do papel”.
Observa-se, assim, uma curiosa insistência em obedecer a um projeto
disciplinar que, mesmo nunca tendo sido efetivamente seguido à risca, continua
preservado enquanto discurso até hoje - ainda que tenha perdido completamente seu
sentido.

A invenção brasileira

As lacunas deixadas pelo legislador brasileiro durante o século XX


permitiram que muitas práticas no campo da execução penal fossem deixadas ou a
cargo da Administração Pública, ou do Poder Judiciário. A prisão-albergue encaixa-se
na última hipótese: foi um regime penitenciário instituído, experimentalmente, pelo
Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo por meio do
Provimento XVI, de 1965 e, em caráter definitivo, a partir do Provimento XXV, de
1966 (TRIBUNAL DE JUSTIÇA..., 2009). Tal decisão certamente encontrou apoio
tanto nas já mencionadas Regras Mínimas da ONU (DOTTI, 2009), quanto em

                                                            
9 “Art. 50. O condemnado a prisão cellular por tempo excedente de seis annos e que houver
cumprido metade da pena, mostrando bom comportamento, poderá ser transferido para alguma
penitenciaria agricola, afim de ahi cumprir o restante da pena.
§ 1º Si não perseverar no bom comportamento, a concessão será revogada e voltará a cumprir a
pena no estabelecimento de onde sahiu.
§ 2º Si perseverar no bom comportamento, de modo a fazer presumir emenda, poderá obter
livramento condicional, comtanto que o restante da pena a cumprir não exceda de dous annos”
(SENADO..., 2010).
 
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iniciativas bem sucedidas tomadas pelos juízes de primeira instância durante os anos
cinqüenta, inclusive em outros estados-membros.
Em 1954, foi promovida uma campanha em prol da prisão aberta pelo
Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo, “impressionado com a
promiscuidade e com o abandono espiritual” das prisões paulistas (MUAKAD, 1998, p. 83).
Apesar de inspirar-se em experiências estrangeiras10, a denominação “prisão-
albergue” não foi importada: a Casa do Albergado, a dimensão espacial do regime
prisional aberto no Brasil, é uma “invenção” brasileira, pelo menos na sua
denominação.
O regime, criado pela jurisprudência paulista, mandava o condenado
dedicar-se ao trabalho durante o dia e, nas horas de repouso, à noite, e nos fins de
semana e dias de folga e nos feriados, recolher-se em estabelecimento especialmente
destinado a tal fim – a Casa do Albergado – ou, na falta deste, em seção isolada
reservada para tal fim em presídios, cadeias públicas ou distritos policiais. Também
exigia o cumprimento de condições, tais como proibição de freqüentar certos lugares
“incompatíveis com o regime” (casa de jogo, lupanares, etc.) e de ingerir bebidas
alcoólicas, o cumprimento dos horários de saída do trabalho e de retorno ao
estabelecimento onde o condenado deveria recolher-se quando não estivesse
trabalhando, e o comparecimento periódico perante o juiz para comprovar a
satisfação dos encargos familiares e o efetivo exercício do trabalho. A depender de
seu comportamento, teria acesso a algumas “regalias” como visitar a família em datas
especiais, freqüentar curso profissionalizante de segundo grau ou superior, ir à igreja
ou participar, fora do estabelecimento, de outras atividades que concorressem com
“sua emenda e reintegração ao convívio social” (MÉDICI, 1979, p. 44). Interessante ver tais
                                                            
10 A prisão-albergue é a versão nacional da “semiprisão ou semiliberdade na França e Bélgica, o
regime de meia liberdade em Portugal, saída livre na Suécia e o Day Parole ou liberação condicional
diurna nos Estados Unidos” (MUAKAD, 1998, p. 85). A sua originalidade restringe-se às
denominações “albergue” e “Casa do Albergado”.
 
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normas reproduzidas no art. 115 da atual Lei de Execução Penal: lá subsistem todas
as condições elencadas, exceto a expressa proibição de freqüentar certos lugares e de
ingerir álcool - o que não impede que o juízo da execução a imponha como uma
condição especial, mediante oitiva do Ministério Público (art. 115). A LEP
acrescenta, ainda, a condição de não se ausentar da comarca sem expressa
autorização judicial.
Destaca-se, também, que o ingresso no regime aberto, como já dispunha o
Provimento XVI, “supõe a aceitação de seu programa e das condições impostas pelo juiz” (art.
113 da LEP), não podendo ser progredido o condenado que não os aceita
expressamente ou caso “se deduza, por seu comportamento, que não os aceita” (MIRABETE,
1993, p. 289): a entrada na Casa do Albergado revela-se um “contrato” que não
contempla a hipótese de consentimento tácito, mas tão só de recusa tácita!
Por fim, a fiscalização direta dessas condições incumbiria aos conselhos da
comunidade, aos patronatos ou similares ou, à falta, às “pessoas idôneas nomeadas
pelo juiz” (art. 29). A Lei 7.210/84 mantém, em seu art. 78, a incumbência expressa
somente aos Patronatos, cujo nome em si parece dispensar comentários!
A ressocialização pelo trabalho é o móvel do instituto, destinado a propiciar
aos condenados a oportunidade de conquistar uma profissão cujo aprendizado, na
maioria das vezes, não seria possível no interior do cárcere. Os primeiros
experimentos com a prisão-albergue ocorreram em tempos de grande
desenvolvimento industrial em São Paulo (anos cinqüenta do século passado), o que
pode ter impulsionado a liberalidade. Os braços do “exército de reserva” brasileiro,
àquela época, tinham menos dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, (a
industrialização avançava a passos largos), ainda menos exigente quanto ao nível de
escolaridade e aos atributos dos candidatos às tarefas mais subalternas.
A experiência da prisão-albergue foi mantida e, inclusive, consolidada na
década seguinte, período marcado por uma forte crise econômica e atravessado pelo
 
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regime de exceção, cuja Doutrina da Segurança Nacional localizava o inimigo em


figuras que, em regra, não habitavam o cárcere antes de serem perseguidos. Já para os
habituées, a lição parecia ter sido aprendida:

“Bastante significativa, também, a mensagem do jornal ‘Novos


Rumos’, órgão dos internos do sistema penal do antigo Estado da
Guanabara, edição de 10 de janeiro de 1971, a respeito do
trabalho pelos condenados: ‘o trabalho é o único meio de
reintegrar na sociedade os que dela foram segregados. Assim o
entenderam os sociólogos e a maioria dos penalistas, combatendo
como anti-social e antieconômico o ócio das comunidades
presidiárias’” (MÉDICI, 1979).

De fato, o trabalho nas prisões tem suas vantagens:

“O trabalho prisional atende a uma necessidade da instituição,


tanto material (suprir o trabalho de muitos funcionários que
seriam onerosos para o Estado) quanto de segurança. O preso que
trabalha pode ser um aliado na instituição: em determinadas
ocasiões, o “faxina (designação do preso que trabalha, na gíria
carcerária) é geralmente escolhido pelas suas características
colaboracionistas. Há também aqueles que trabalham em favor de
seus companheiros como assistentes jurídicos, escrevendo cartas
para os que não sabem escrever, etc. Mas o que queremos ressaltar
é que o trabalho é algo a ser compreendido no jogo das múltiplas
forças institucionais: a possibilidade de trabalhar é vista pelo preso
como um privilégio, em virtude dos benefícios secundários que
acarreta. Além disso, ela é um imperativo, do ponto de vista da
preservação da sanidade mental, para alguém mantido em
confinamento por longos anos”. (RAUTER, 2003, 103)

No Provimento XCII, de 1975, do Conselho da Magistratura de São Paulo -


que teve por escopo regular a alteração do Código Penal (Lei 6.016/73) que
introduzia a prisão-albergue para condenados às penas, qualquer que fosse sua
duração - exigia-se, nos casos de penas até cinco anos, a “prova de oferta de emprego
remunerado, público ou privado” (art. 14). O texto também colocava a possibilidade de o

 
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diretor e os funcionários do presídio, bem como o próprio juiz providenciarem ao


preso um emprego na comarca onde pretendia albergar-se.
Já na Lei 1.819/78 - diploma estadual paulista que visava regulamentar as
novidades trazidas pela Lei federal 6.416/7711 -, consta, para os condenados a penas
de qualquer duração, a exigência de que estivesse trabalhando ou tivesse a
possibilidade de fazê-lo imediatamente para progredir ao regime aberto (art. 59, cuja
redação foi reproduzida integralmente pela Lei de Execuções Penais, no art. 114, I),
porém agora sem qualquer indicação de como seria possível a obtenção de emprego pelos
selecionados do sistema penal, sobretudo aqueles oriundos da instituição, os quais,
privados, total ou parcialmente, de manter ou criar novas relações interpessoais extra
muros, naturalmente teriam muito menos oportunidades de empregar-se. Ora, desta
forma o Estado desvencilha-se do ônus de garantir o emprego da mão-de-obra
advinda do cárcere, delegando ao próprio sentenciado a incumbência de
“autorressocializar-se” pelo trabalho. Talvez tal omissão já reflita o desmoronamento do
ideal do pleno emprego, ao mesmo tempo em que revela a sobrevivência, no
imaginário social e, também no sistema punitivo brasileiro, da idéia de que o trabalho
recupera o indivíduo da ociosidade que o levou ao crime.
Se tal idéia já encontrou total compatibilidade com um modelo político que
obrigava o Estado a garantir o bem-estar social com base em um regime econômico
do pleno emprego, hoje, no entanto, seu sentido desvaneceu. Afinal, diante de um
Estado neoliberal, assentado por uma economia na qual o desemprego integra sua
estrutura, o que se observa é a ampla flexibilidade dos direitos, a insegurança dos
rendimentos, e até a perda das subjetividades, vez que o trabalho deixa de ser um
eixo e passa a ser só mais um fragmento na trajetória biográfica do indivíduo (DE
GIORGI, 2006). Ora, tal permanência ideológica, ao que parece, só se sustenta se o
                                                            
11 Dentre suas as novidades, a introdução dos regimes fechado, semi-aberto e aberto, além da

previsão da Casa do Albergado como espaço para cumprimento do regime aberto.


 
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sentido de trabalho for reduzido àquele que ajuda o preso a se manter ocupado no
interior do cárcere, e não fora dele, pois, ainda, que seja um trabalhador, tal condição
não o deixa imune à seleção do Direito Penal12.
Outra razão de ser para o gozo da prisão-albergue residiria na superlotação
dos cárceres paulistas (MUAKAD, 1998), e tal justificativa vem expressamente
anunciada nas considerações do Conselho da Magistratura paulista no Provimento
XCII, de 1975 (MÉDICI, 1979).
Se a necessidade da época era esvaziar as prisões e desonerar o Estado da
adequação do aparato penitenciário à população que devia abrigar, de fato, para isso
não serviria o já positivado livramento condicional, que então exigia o cumprimento
de mais de metade da pena, se primário, e mais de três quartos da pena, se
reincidente nas penas superiores a três anos (o extinto art. 60 do Código Penal).
Assim, com a criação da prisão-albergue, os julgadores paulistas acabaram
proporcionando um benefício tanto para os presos, que ganharam outra chance, e
menos demorada, de sair do cárcere antes de cumprida a pena, quanto para o Estado-
administração que deles se livrava, ao menos temporariamente.
As Casas do Albergado, por não exigirem o rigor penitenciário das demais
unidades prisionais (art. 57 da Lei Estadual paulista 1. 819/78, que tem hoje como
correlato o art. 94 da LEP), permitiam que o Estado não dispusesse dos elevados
custos para manter os presídios. Tal vantagem, contudo, não foi o bastante para
convencer os gestores públicos a assumir a solução da magistratura paulista no
campo da execução penal. Aliás, até hoje, trinta anos após a positivação do regime
aberto no Brasil, pouca foi a mobilização do Poder Executivo para instalar as Casas

                                                            
12Vale aqui a referência ao trabalho de MATTOS (2008) no Complexo Penitenciário Feminino
Estevão Pinto de Belo Horizonte: 69% das internas, em 2005, exerciam atividade laborativa lícita antes
de ingressar no sistema. Desse número, 54% sustentava sozinha a família e 74% trabalhava sem
carteira assinada.
 
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do Albergado, deixando claro que os argumentos de ordem financeira não


conseguiram serem sobrepostos aos de ordem política.
Em primeiro lugar, se adotasse prontamente a solução da magistratura
paulista, o Executivo daquela época estaria reconhecendo sua ineficiência (o que, ao
contrário, hoje, faz até questão de escancarar, por certo tendo em vista a privatização
do cárcere...) e abriria espaço para a ingerência do Judiciário no campo da
administração prisional. Em segundo, basta lembrar que as agências penais brasileiras
sempre focaram um inimigo (ex-escravos, malandros, comunistas, traficantes), e, para
tanto, quando não o eliminavam, o aprisionamento era e continua sendo a opção que
mais faz sofrer, da pior maneira possível, e longe dos olhos da população. Ora, é
muito mais cômodo (é menos trabalhoso) construir prisões e nela concentrar toda a
punição, longe de qualquer fiscalização popular, do que aparelhar o Estado com
outros mecanismos de controle e vigilância que exigem o investimento na
apropriação de outros saberes e de tecnologias. Até que, recentemente, tem-se
observado no Brasil um certo movimento no sentido de aparelhar o Estado com
esses novos mecanismos -, mas isso não chega nem perto de ocupar o lugar de
destaque conferido à privação de liberdade. Além disso, como já mencionado, não se
pode esquecer que, atualmente, encarcerar com extremo rigor penitenciário rende lucros:
não se ganha apenas licitando para fornecer produtos e serviços ao cárcere,
administrá-lo também é um ótimo negócio para a iniciativa privada.
A má vontade do Executivo em encampar inovações no campo da
execução penal resta evidente quando se analisam os números do próprio Estado
pioneiro no cumprimento de pena em regime aberto: em São Paulo, quando da
instalação das Casas do Albergado, das 73 unidades instaladas, 43% eram-no em
imóveis doados, 21% em imóveis alugados e 36% em imóveis disponibilizados a
outros títulos (MUAKAD, 1998). Isso, então, revela mais do que a participação da
sociedade civil, mas sim uma certa transferência do ônus de custear a invenção
 
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brasileira do Estado para o particular. Afinal, não é à toa que, no


próprio folheto explicativo da campanha para aproximar a comunidade da questão,
promovida pela Secretaria de Justiça de São Paulo em 1975, era lançada, como
introdução do texto, uma pergunta um tanto ressabiada (ou talvez cínica mesmo):
“‘por que o Estado, que já recebe impostos para a prestação de serviços, não se encarrega da
construção e da manutenção das Casas do Albergado?’” (MÉDICI, 1979).
Parece, então, que a instituição da prisão-albergue era menos uma
oportunidade de derrubar obstáculos que distanciam sociedade civil do processo de
execução penal, tal como sustenta Dotti (2009), e mais uma medida administrativa
tomada pelo Poder Judiciário. É fato que ao Estado-juiz não ocupa a tarefa de
administrar diretamente as prisões, mas, com a jurisdicionalização do processo
executivo penal, não teve como escapar dos conflitos que estavam intimamente
relacionados com omissão histórica do Poder Executivo.
Com efeito, a partir da promulgação da Lei de Execuções Penais, momento
a partir do qual o Estado-juiz foi definitivamente convocado para atuar após a
sentença condenatória transitada em julgado13, o Poder Judiciário passou – ainda que
não declaradamente - a dividir com o Executivo as responsabilidades pela gestão do
cárcere. Aliás, até os dias de hoje, nem todos os juristas aceitam o caráter
exclusivamente jurisdicional do processo executivo penal, alguns preferindo adotar
uma espécie de teoria “mista” para definir sua natureza jurídica, isto é, entendendo-o
como atividade simultaneamente judicial e administrativa (PRADO, 2009), o que
pode representar menos uma preocupação em “decifrar” seu lugar na ordem jurídica,
e mais uma certa intuição de uma não declarada parceria, muitas vezes harmoniosa,

                                                            
13 Antes da LEP, já havia o dispositivo do Código de Processo Penal, art. 668: “a execução, onde não
houver juiz especial, incumbirá ao juiz da sentença, ou, se a decisão for do Tribunal do Júri, ao seu
presidente. Parágrafo único. Se a decisão for de tribunal superior, nos casos de sua competência
originária, caberá ao respectivo presidente prover-lhe a execução”.
 
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outras até conflituosa, entre Estado-Juiz e Estado-Administração na gestão do


cárcere.
Certamente, isso amenizou o caráter arbitrário que a ingerência exclusiva da
Administração Pública imprimia à execução penal, tão bem expressa na já referida
obra de ROIG (2005). De fato, há uma disputa entre Judiciário e Executivo no
campo da execução penal: a não construção das Casas do Albergado pelo Executivo
e a concessão judicial da prisão domiciliar em face da ausência das aludidas unidades
prisionais são evidências dessa disputa que, apesar de existir, não impede que Estado-
juiz e Estado-administração acabem se entendendo na missão de gerir o cárcere.
Afinal, as soluções tomadas pela Justiça nada solucionam, são remendos que pouco
contribuem para mobilizar a ação executiva, pelo contrário, talvez até estimulem a
perpetuação de sua odiosa inércia. Isso quando não são, pelos gestores do Executivo,
usados para convencer a opinião pública de que os juízes estão promovendo a
insegurança da população, ao deixar os marginais à solta14.
O Provimento CI, de 1977, que sucedeu ao Provimento XCII, de 1975, que
versaram sobre a matéria, ainda dispõe sobre a retirada dos autores de furto
qualificado no rol dos beneficiários da medida que só poderiam usufruir dela após
terem cumprido um terço da pena (art. 1º). Tal norma mais restritiva era dirigida aos
condenados por roubo simples ou qualificado, extorsão, extorsão mediante seqüestro
e pelos crimes previstos na antiga Lei de Tóxicos, a 6.368/76 (exceto os usuários não
traficantes). Isso porque, para cumprir a prisão-albergue desde o início da execução ou
a partir de seis meses de cumprimento, alem de bom comportamento, o condenado
deveria possuir “nenhuma ou escassa periculosidade” (art. 1º do Provimento XCII,
                                                            
14 Vide o caso do acusado pelo homicídio de vários jovens de Luziânia-GO, Adimar Jesus da Silva.
Ele teria praticado os crimes após obter a progressão de regime para o aberto. O juiz Luis Carlos da
Vara de Execuções do Distrito Federal, autor da decisão, foi alvo de críticas do Ministro da Justiça e
de deputados federais. No rebate às críticas, o magistrado alega que não poderia esquivar-se de
cumprir a lei que conferia ao então acusado o direito ao regime aberto e que levaria ainda mais tempo
para decidir se aguardasse a realização de perícia. (COLON, 2010).
 
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de 1975), o que, nos casos elencados, presumia-se existir, sem qualquer chance de
prova em contrário. No caso das penas superiores a três anos e um dia, o juiz poderia
concedê-la ainda na sentença, com base em elementos para aferir a periculosidade do
agente, colhidos durante a realização dos atos processuais da ação penal,
especialmente o interrogatório (art. 5º do Provimento XCII, de 1975). Se quisesse, a
autoridade judicial poderia instaurar uma sindicância para realizar tal aferição (art. 6º,
idem). Já segundo o art. 15 do mesmo diploma, no caso de condenação não superior a
cinco anos, tal sindicância era obrigatória e era realizada por pessoa de confiança do
juiz, de preferência assistente social, a qual investigava o condenado, sua família e até
a idoneidade do empregador (MÉDICI, 1977).
Se o candidato à prisão albergue estivesse cumprindo medida de segurança
em casa de custódia e tratamento (semi-imputáveis), ou fosse multirreincidente,
“criminoso habitual ou por tendência”, deveria ser submetido a exame de aferição da
periculosidade no Instituto de Biotipologia Criminal ou no Manicômio Judiciário. Se
a periculosidade já fosse declarada na sentença condenatória, passaria o condenado,
então, por um exame para apurar se ela foi cessada. Oportunizava-se, ainda, um
reforço no assujeitamento dos albergados com a permissão para que o juiz, antes ou
durante o regime aberto, determinasse seu tratamento psicoterápico ou psiquiátrico,
com ou sem internamento (art. 32 do Provimento XCII, de 1975)15. Assim, acionava-
se o arsenal ideológico da defesa social para farejar aqueles que, minimamente, teriam
internalizado a ordem das coisas, bem como para selecionar, dentre a clientela das
penitenciárias, aqueles cuja personalidade foi transformada, com êxito, para, enfim,
obedecer ao patrão.

                                                            
15 O dispositivo era compatível com o sistema do duplo trilho (a pena privativa de liberdade poderia ser
seguida de aplicação de medida de segurança para os “incorrigíveis”), ainda em vigor à época
(FRAGOSO, 2010).
 
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Hoje, a Lei de Execuções Penais dispõe, em seu art. 114, II, que um dos
requisitos de ingresso no regime é a apresentação, “pelos seus antecedentes ou pelo resultado
dos exames a que foi submetido, fundados indícios de que irá ajustar-se, com autodisciplina e senso
de responsabilidade, ao novo regime”. É só um jeito diferente de dispor aquilo que a
magistratura paulista já ditava! E para avaliar a pertinência do regime aberto ao caso
concreto, Mirabete (1993) alerta não ser o bastante a mera análise dos registros na
folha de antecedentes criminais do condenado, já que neles não constam “todos os fatos
da vida pregressa do condenado com relação ao comportamento familiar, trabalho, atividades sociais,
etc”. E afirma mais: é necessário submeter o sentenciado a exames de personalidade,
pois não basta a comprovação de bom comportamento carcerário, “que não deve ser tão
valorizado, porque é sabido que a periculosidade ou antissociabilidade na prisão sofre controles
inibitórios” (p. 290). Mas não seria a função do cárcere justamente manter sob controle
ou inibir tais idiossincrasias? Independente da resposta, é de se observar o “esforço”
do legislador na LEP para, com outras palavras, manter em ação o eterno e
incansável “periculômetro” (MATTOS, 2005)!
O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo elencou, ainda no
Provimento XCII, de 1975, em seu art. 40, as hipóteses em que o condenado em
regime aberto poderia cumprir o restante da pena em sua própria residência,
moldando, assim, o que hoje se conhece por prisão domiciliar. Aquele dispositivo
previa a possibilidade de cumprimento de pena no próprio domicílio quando faltasse
estabelecimento adequado na comarca onde o condenado cumpria pena, por certo
uma aplicação analógica da Lei 5.256, de 06 de abril de 1967, destinada aos indiciados
ou denunciados que fazem jus à prisão especial em localidades que não dispusessem
de estabelecimentos adequados ao seu recolhimento.
Sem dúvida, causa certo estranhamento a possibilidade de aplicar na
execução penal de qualquer condenado uma hipótese de prisão provisória que,
claramente, visava privilegiar o elenco de “autoridades” ainda previsto no art. 295 do
 
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Código de Processo Penal, a saber, ministros de Estado e dos Tribunais de Contas,


governadores, prefeitos, vereadores, chefes e delegados de polícia, magistrados,
parlamentares, ministros de confissão religiosa, cidadãos que já tivessem exercido a
função de jurados do Tribunal do Júri, os “diplomados” e os inscritos no “Livro de
Mérito”. Ora, não se deve esquecer que o regime aberto ainda não havia sido
positivado no Código Penal, sendo regulado, contudo, pela magistratura paulista que,
por certo, aplicava a prisão domiciliar excepcionalmente. E talvez o fizesse como
forma de pressionar o Executivo a assumir efetivamente a instalação das Casas do
Albergado, o que, como se viu, não ocorreu até os dias de hoje.
Já a incapacidade para exercer atividades laborais caracteriza as demais
hipóteses autorizadoras da prisão-albergue domiciliar, únicas remanescentes no art.
58 da Lei Estadual paulista 1.819/7816, atualmente todas constantes no dispositivo do
art. 117 da vigente Lei 7.210/84. O parágrafo único do art. 114 da LEP
expressamente confirma tal assertiva, ao dispensar do trabalho os mesmos
condenados que já faziam jus ao tratamento especial no regulamento paulista: os
maiores de setenta anos, os acometidos de doença grave e as condenadas com filho
menor ou deficientes físicos ou mentais e as gestantes.
No caso dos maiores de setenta anos (já “aposentados”) e dos portadores de
doença grave, isso fica mais evidente. No caso das mulheres gestantes e das mães de
filhos menores, entretanto, é a questão de gênero que emerge das entrelinhas: a
mulher brasileira, diferente de hoje, começava a se aventurar a trabalhar fora e nem
sonhava com a possibilidade de sustentar a família sozinha. Naquela época, ainda não
outro seu lugar senão em casa, reinando no lar, cuidando do marido e dos filhos,
presa ao e no lugar de onde só deveria ter saído para, excepcionalmente,
desempenhar as tarefas que as esposas dos seus senhores não assumiam. Estas
                                                            
16 Norma que regulava, em São Paulo, a aplicação dos regimes progressivos, introduzidos no Código

Penal pela Lei 6.416/77.


 
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últimas, sim, podiam dar-se ao luxo de serem histéricas e loucas, concessões que a
moralidade burguesa lhes conferiu para exprimir-se contra o patriarcado (COSTA,
1979), enquanto às subalternas só parecem ter restado o nobre papel de mãe - e que
as torna merecedoras dessa espécie de licença (maternidade). Para não deixar dúvidas
quanto ao tom patriarcal da norma, basta conferir o dispositivo do art. 2º da Lei
Estadual paulista 1.819/77, in verbis: “as mulheres cumprem pena em regime fechado,
semi-aberto ou aberto, em estabelecimentos apropriados, ou, à falta, em Seção
especial de penitenciária ou prisão comum, sujeitas a trabalho interno, admitido o
benefício do trabalho externo, sempre em atividades profissionais compatíveis com o seu sexo”.
Com o tempo, não respeitado o comando legal que determinava a
construção das Casas do Albergado, os Tribunais se dividiram: passaram a mandar o
“albergado” recolher-se em local reservado a este fim em cadeias públicas ou
presídios comuns, ou a permitir que o mesmo, mediante condições, cumprisse o
regime aberto em seu próprio domicílio. Os que defenderam e continuam a defender
a primeira alternativa opõem-se em deixar o sentenciado totalmente livre e sem
qualquer fiscalização, o qual, ao menos, seria mantido sob algum controle quando
recolhido à noite. Já a outra corrente alega que o condenado não pode sofrer com a
desídia do Poder Público e não ficar sujeito a regime mais grave do que faz jus. Em
comum em ambos os posicionamentos, condena-se o desrespeito à lei.
No embate de idéias, parece estar em vantagem a linha do argumento de
que, na ausência de estabelecimentos adequados e de qualquer controle ou
fiscalização sobre os condenados, desvirtuou-se o regime aberto, o que passou a ser
uma forma de impunidade velada. Isso porque, no atual projeto de reforma da Parte
Geral do Código Penal, não mais se contempla a hipótese deste regime inicial,

 
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permitindo tão-somente o livramento condicional17 após obrigatório cumprimento de


boa parte da sanção recolhido ao cárcere, mesmo para penas inferiores a quatro anos, as
hoje consideradas de curta duração (SILVA, 2009). Assim, o Estado se desincumbe
de construir as Casas do Albergado e ainda ganha autorização para transplantar as
experiências no campo da execução penal estrangeiras mais “bem sucedidas” dos
últimos tempos, o encarceramento em massa e a privatização da administração
carcerária, ambas passíveis de realizar o “direito penal eficaz” que tanto se almeja:

“A palavra ‘eficácia’, no contexto da exposição de motivos, parece


reportar-se menos à conhecida categoria da teoria geral do direito
do que a um verbete do léxico neoliberal, que participou muito do
debate sobre a excelência da gestão privada em confronto com as
retumbantemente noticiadas mazelas da administração pública. Se
prestarmos atenção, Senhora Viégas18, verificaremos que por
vezes a palavra ‘eficácia’ está ocupando no texto o lugar que
tocava aos mitos prevencionistas da ressocialização, reinserção
social, recuperação, etc. Talvez isto esteja assinalando algo mais
importante, que está no cerne da pretendida viragem em direção a
um ‘direito penal eficaz’, e do papel que a este ‘direito penal eficaz’
se atribuirá na ‘plenitude do ordenamento jurídico’. O Ministro
José Gregori afirma literalmente que essa reforma no sistema de
penas ‘antecipa a adoção de uma nova política criminal’. Qual será
ela?” (BATISTA, 2000, p. 106).

Conclusão

Atualmente, num contexto marcado pelo excesso de mão-de-obra e pelo


fim da ilusão keynesiana do pleno emprego, não resta ao cárcere outra finalidade

                                                            
17 O Projeto de Lei nº 3.473, de 2000, pretende dobrar o lapso temporal necessário para obtenção do

livramento condicional.
18 O artigo de Nilo Batista (2000) é cópia integral da carta enviada em 11 de setembro de 2000 a Ivete

Lund Viégas, então Secretária de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em que requer a
retirada do seu nome da Exposição de Motivos do citado Projeto de Lei.
 
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senão a de confinar as categorias da população que representam risco, e não mais


servir de um dispositivo disciplinar – já que não há mais necessidade de adestrar os
corpos do proletariado. É por isso que não se deve admirar a impressão da maioria
das condenadas do Complexo Penitenciário Estevão Pinto, em Belo Horizonte,
recentemente entrevistadas por Mattos (2008), de que a prisão ofereça bom
atendimento médico e dentário, boa qualidade na alimentação, acesso a meios de
comunicação (rádio e TV, em sua maioria), nem surpreende que, na fala de um dos
técnicos daquela unidade prisional, a instituição ganhe o adjetivo de “protetora”
(MENEZES, 2009), no sentido de ofertar às internas tudo aquilo que elas não têm
no lado de fora. Afinal de contas, as condições no interior do cárcere aparentam ser
melhores do que extra muros, o que parece ser justamente uma das facetas mais
sombrias do chamado Estado penal: numa subversão do less eligibity , não se tenciona
mais proporcionar bem estar algum à população, nem mesmo para os pobres
trabalhadores e ordeiros, os quais, agora, também foram transformados em alvos do
sistema penal.
Ao contrário do que possa parecer, apesar de seu papel de protagonista na
economia da pena pelo mundo afora, não é o cárcere o único dispositivo de controle.
No país com a maior população carcerária do mundo, a maioria dos que estão “‘sob
a tutela da justiça’ é composta não por detentos, mas por condenados ‘postos à
prova’ (probation) e colocados em ‘liberdade condicional’ (parole)” (Wacquant, 2001, p.
66). Em 2007, dados mais recentes disponibilizados pelo U.S. Department of Justice,
foram computados incríveis 5 milhões de homens e mulheres no regime de parole
naquele país (U.S. DEPARTMENT..., 2010). É que, além de capturar, as agências
penais também se especializaram em observar: ninguém mais escapa ao efeito
panóptico de bancos de dados centralizados, cujo acesso cada vez se torna mais fácil,
não obstante contenham, por vezes, informações desatualizadas ou errôneas; o
importante é que elas facilitam o trabalho dos operadores de segurança pública em
 
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redobrar a vigilância e a perseguição de quem figura nas listas de suspeitos. Sempre


os suspeitos de sempre: gente miserável ou pobre.
No Brasil, as tentativas de adoção de técnicas de punição extra muros já tem
sido experimentadas, tais como o monitoramento eletrônico19, mas ainda são muito
tímidas. Afinal, onde o welfare state nunca atingiu o mesmo nível de excelência das
nações desenvolvidas, talvez a prisão pura e simples, em detrimento das penas
substitutivas à privação de liberdade, seja mais interessante do ponto de vista político
e prático: afinal, o pobre brasileiro tem no cárcere “casa, a comida e roupa lavada”, tudo
aquilo de que, normalmente, foi e continua privado (ainda que à custa de muito
sofrimento e de muito dinheiro público).
Contudo, por mais paradoxal que seja, desencarcerar também é
necessário para que o controle sobre a população prisional não se torne inviável para
os administradores da instituição. Eis o que revela Wacquant (2001), cujas
considerações sobre o sistema estadunidense não deixam de servir de referência para
o cenário brasileiro:

“Longe dos debates acadêmicos sobre as missões da prisão –


reinserir, punir ou neutralizar -, a preocupação inicial dos
responsáveis por estas verdadeiras fábricas de prender é
pragmática e funcional: ‘fazer circular’ o fluxo inexaurível de
acusados e detentos o mais rápido possível através do ‘sistema’ a
fim de minimizar os incidentes ligados ao amontoamento e à
mistura de populações díspares e difíceis, senão hostis
(notadamente entre elas mesmas)” (p. 61)

                                                            
19 Em Minas Gerais, já foram testadas tornozeleiras eletrônicas em condenados em regime semi-
aberto da comarca de Nova Lima (RUBENS, 2010). Isso indica que o sistema progressivo pode até
continuar existindo, mas deixando de lado seu sentido original, que é construir o senso de
responsabilidade no condenado. Ora, a Lei de Execuções Penais em vigor prevê a fiscalização do
cumprimento da pena em regime semi-aberto ou aberto, porém garante ao condenado sua saída da
unidade prisional sem qualquer escolta. Seria o monitoramento uma mera forma de fiscalizar ou uma
espécie de escolta?
 
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Se voltarmos o foco para o Estado de Minas Gerais, obviamente, os


números (ainda!) são bem mais modestos e, por isso, o regime aberto talvez pouco
ofereça obstáculo para a implementação do projeto de mass encarceration
escancaradamente em curso. Até porque – e isso é o mais assustador - a quantidade
de presos sob custódia da Polícia Civil (15.801) somada à cifra dos provisórios
(9.775) denota que a maior parcela da população encarcerada assim esteja a título de
prisão cautelar, e não por sentença condenatória transitada em julgado
(MINISTÉRIO..., 2009). Quanto ao regime aberto, no estado mineiro, existem duas
Casas do Albergado, uma localizada em Belo Horizonte (Casa do Albergado
Presidente João Pessoa – CAPJP) e outra em Juiz de Fora (Casa do Albergado José
de Alencar Rogêdo – CAJAR), que atendem homens e mulheres, possuindo ambos,
segundo dados do Infopen relativos a junho de 2008 (MINISTÉRIO..., 2009), 276
vagas masculinas e 1 feminina, todas ocupadas20. Se, no total, 642 presos estão
cumprindo pena em regime aberto em Minas, 366 deles estão ou em prisão
domiciliar ou em unidades prisionais inadequadas. Portanto, o possível contingente
daqueles que cumprem em regime aberto não é tão significativo diante do
contingente de pessoas encarceradas em Minas (quase 50 mil), não sendo difícil, ao
contrário do que se anuncia, mantê-los sob os olhos vivos do sistema penal. Assim, o
cárcere está sempre à disposição para acolher de volta os “albergados”, caso
retomem a carreira da indisciplina. Apesar disso, a manutenção da prisão aberta na
ordem jurídica ainda representa o fim da vida no interior do cárcere, o que significa
muito para uma população historicamente submetida à barbárie, seja intra muros (uma
vez sujeita aos efeitos deletérios e, por vezes, irreversíveis da institucionalização), seja
no “mundão21” , cujo assujeitamento passa pela sua super-exploração de sua mão-de-

                                                            
20 Não resta claro qual das unidades, de fato, atende o público feminino, afinal, só há uma vaga, e
obviamente não pode ser dividida por duas!
21 O lado de fora, na gíria carcerária.

 
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obra, cada vez mais mal remunerada e descartável, pela contínua negação da
assistência (não-oferta de bens básicos para se viver: saúde, educação, moradia, etc.) e
pela invisibilidade de sua existência.
Diante de tudo que foi aqui demonstrado, não se enxerga outra saída senão
uma verdadeira ruptura do sistema punitivo vigente, culminando com o fim do
encarceramento, o que vai exigir, a princípio, que o Direito Penal dispa-se de toda
sua irracionalidade e, a partir de então, talvez não lhe sobre qualquer sentido político
ou social, ou lhe reste o papel de impor sanções tomadas de empréstimo de outros
ramos do Direito (Administrativo, Civil, por exemplo) até com estes se confundir. E
pior que o fim das prisões não é o suficiente, ou melhor, não seja um dia alcançado
enquanto sobreviverem as demais instâncias penais estatais e, principalmente, as que
ultrapassam o âmbito estatal, infiltradas que estão nos meios de comunicação, nas
relações sociais, na cultura.
Para tanto, é imprescindível a promoção do debate sobre o significado
político da repressão penal, vez que o cometimento do crime e a conseqüente
resposta do Estado não podem ser encarados como um mero conflito entre o
indivíduo e a sociedade, no papel de vítima. É preciso, sim, desvelar a forma
maniqueísta como se trata a criminalidade que, além de mascarar os conflitos sociais,
econômicos e culturais envolvidos na questão, também justifica a implementação de
práticas repressivas violadoras de direitos e garantias fundamentais, inclusive as que
pretendem transformar o condenado em matéria-prima, e de seu sofrimento retira a
mais-valia para lucrativas empresas de administração carcerária.
Tal discussão política, portanto, vai além da necessidade de melhoria das
condições de vida oferecidas nas prisões e de tratamento digno aos seus amigos e
familiares, alcançando o próprio sentido (ou melhor, a sua falta) das penas privativas
de liberdade. Se, na sociedade industrial, a prisão prestou-se a disciplinar os corpos
ora para o trabalho, inscrevendo-o no universo da subalternidade, na sociedade atual,
 
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sem necessidade de adestrar mão-de-obra, serve apenas como mero depósito de


pobres. Em vez de efetivar os direitos básicos para se viver, o Estado tem restringido
tais garantias ao mínimo, condicionando-as a tantos critérios, não havendo outra
medida estatal tão ampla senão o cárcere, mesmo reconhecendo inviável sua
declarada missão ressocializadora. Assim, mesmo custando caro aos cofres públicos,
é preferível, aos que se ocupam da gestão estatal, continuar retirando dos
selecionados pelo sistema penal sua autonomia e sua identidade por meio da
institucionalização, do que construir, para eles, reais alternativas à criminalidade.

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OS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA IRRELEVÂNCIA PENAL


DO FATO NO CONTEXTO DA TEORIA DO DIREITO PENAL
MÍNIMO

Thiago Barbosa de Oliveira1

RESUMO

O presente trabalho trata da concepção de Direito Penal Mínimo, passando por uma
análise do princípio da intervenção mínima, para, posteriormente, aprofundar o
estudo em relação aos princípios que dele decorrem, quais sejam, o princípio da
insignificância e o princípio da irrelevância penal do fato. Por meio de uma digressão
teórica, abordam-se os elementos componentes do conceito tripartite de crime e,
posteriormente, secciona-se a composição do fato típico, com o estudo focado na
tipicidade. Analisam-se as características comuns a ambos os princípios, apontando
suas diferenças e peculiaridades.

Palavras-chave: Direito Penal Mínimo; Princípio; Insignificância; Irrelevância Penal


do Fato.
Keywords: Minimum Criminal Law; Principle; Insignificance; Criminal Irrelevance
of Fact.

1 – INTRODUÇÃO

O sistema penal, já há algum tempo, vem perdendo a segurança da


sociedade quanto à sua capacidade de apresentar soluções adequadas aos problemas
surgidos. A resposta a essa crise, que atinge, também e por consequência, o discurso

                                                            
1 Advogado. Pós-graduando em Direito Público pela Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da

Universidade Federal de Uberlândia.


 
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jurídico-penal, foi o surgimento de propostas político-criminais que negam a


legitimidade desse sistema para a resolução dos conflitos sociais.
O direito penal mínimo ou minimalismo penal ou, ainda, contração penal,
embora negue a legitimidade do sistema penal, nos moldes como funciona
atualmente, defende sua intervenção mínima, considerada como mal menor
necessário, que, para Ferrajoli2, legitima-se, tão somente, por uma razão utilitária, qual
seja, prevenir uma reação formal ou informal mais violenta contra o delito. Em suma,
a ingerência penal mínima, para o citado autor, configura-se como um instrumento
impeditivo da vingança.
Nesse contexto social e teórico, analisaremos adiante os princípios da
insignificância e da irrelevância penal do fato, relacionando-os com a teoria do
minimalismo penal e abordando sua aplicação prática no cotidiano.

2 – DIREITO PENAL MÍNIMO OU MINIMALISMO PENAL

O Direito Penal Mínimo, nascido em especial de propostas elaboradas por


Luigi Ferrajoli e Alessandro Baratta, com grande contribuição de Eugênio Raul
Zaffaroni, propõe uma redução dos mecanismos punitivos do Estado ao
estritamente necessário. Destarte, a intervenção penal somente se justifica quando é
absolutamente imprescindível à proteção dos cidadãos.
Neste sentido, apenas as condutas mais graves e periculosas, lesivas aos
bens jurídicos de maior importância, devem ser punidas pelo Direito Penal, o qual
deixa de se preocupar com toda e qualquer conduta formalmente típica,
caracterizando-se como a “ultima ratio”; desta feita, o Direito Penal somente atua

                                                            
2 FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo, in “Poder y control”, nº 0, 1986.
 
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quando os demais ramos do Direito forem insuficientes à proteção dos bens jurídicos
em conflito.
A teoria aqui abordada defende a proporcionalidade na aplicação de um tipo
penal. Analisemos, a título de exemplo, a seguinte situação: o artigo 155 do Código
Penal dispõe que é crime subtrair coisa alheia móvel; entretanto, não é crível atribuir
ao legislador, quando da criação desse tipo penal, a intenção de atingir também
aquele que subtrai um simples chiclete de um imenso hipermercado. Parece ser
incoerente movimentar toda a máquina judiciária por conta de uma mera goma de
mascar, até pelo fato de ser economicamente inviável ao Estado tutelar bens jurídicos
tão ínfimos.
Para Ferrajoli3 o Direito Penal Mínimo:

“configura a proteção do débil contra o mais forte; tanto do débil


ofendido ou ameaçado pelo delito, como também do débil
ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no
delito é o delinqüente, e na vingança é a parte ofendida ou os
sujeitos públicos ou privados solidários com ela.”

Pela ótica de Ferrajoli, o direito penal origina-se com a função de substituir


a relação bilateral “vítima-ofensor” por uma relação tríplice, em que o Estado-juiz é
inserido numa terceira posição imparcial. Este autor vislumbra uma dupla função
preventiva geral das penas, qual seja, a prevenção dos delitos e das reações
desproporcionais por ele provocadas. Nesta mesma visão, um direito penal mínimo
configuraria sempre uma defesa do fraco contra o mais forte, da vítima em relação ao
ofensor e do ofensor em relação à vingança. Por este prisma, a total abolição do
Direito Penal poderia acarretar alternativas ainda piores, tais como a vingança
descontrolada, seja por parte de particulares ou do Estado, e o disciplinarismo social,
por meio de rígidos controles da população.
                                                            
3 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoria Del Garantismo Penal. 2ª Ed., Madrid, Trotta, 1997, pág.

335.
 
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2.1. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

Pelo princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve se abster de


intervir em condutas irrelevantes e só atuar quando todos os meios extrapenais de
controle social estiverem esgotados, ou seja, apenas quando estritamente necessário,
limitando o poder penal violento do Estado.
O citado princípio pode ser estudado sob duas perspectivas reciprocamente
complementares, decorrentes dos valores e princípios constitucionais:
subsidiariedade e fragmentariedade do Direito Penal.
A subsidiariedade norteia a intervenção em abstrato do Direito Penal, que,
para ser aplicado, deve aguardar a ineficácia e incapacidade dos demais ramos do
Direito em impor uma sanção a determinada conduta reprovável, caracterizando-se,
assim, como ultima ratio.
Em razão disso, a natureza do Direito Penal é subsidiaria, decorrente da
função limitadora instituída pelo Estado Social Democrático de Direito ao
ordenamento penal. Assim, constatando-se a existência do bem jurídico penal
relevante e da elevada ofensa a ele dirigida, deve-se verificar, ainda, a necessidade da
tutela penal.
Nos dizeres do prof. Fernando Capez4:

“(...) o ramo penal só deve atuar quando os demais campos do


Direito, os controles formais e sociais tenham perdido a eficácia e
não sejam capazes de exercer essa tutela. Sua intervenção só deve
operar quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem
jurídico predispostas por outros ramos do Direito. Pressupõe,
portanto, que a intervenção repressiva no círculo jurídico dos
cidadãos só tenha sentido como imperativo de necessidade, isto é,
quando a pena se mostrar como único e último imperativo de

                                                            
4 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2005, pág. 22.

 
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necessidade, isto é, quando a pena se mostrar como único e


último recurso para a proteção do bem jurídico, cedendo a ciência
criminal à tutela imediata dos valores primordiais da convivência
humana a outros campo do Direito, e atuando somente em último
caso (ultima ratio).”

No mesmo sentido, Claus Roxin citado por Nilo Batista5:

“(...) a utilização do Direito penal onde bastem outros


procedimentos mais suaves para preservar ou reinstaurar a ordem
jurídica não dispõe da legitimação da necessidade social e perturba
a paz jurídica, produzindo efeitos que afinal contrariam os
objetivos do Direito.”

Em razão de seu caráter fragmentário, o Direito Penal apenas intervém nos


casos concretos, ainda que haja tipicidade formal, quando presente relevante lesão ou
perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.
Decorrentes do princípio da Intervenção Mínima surgem outros dois
princípios, quais sejam, o princípio da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato.

3 - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E PRINCÍPIO DA


IRRELEVÂNCIA PENAL DO FATO

A jurisprudência e a doutrina não são unânimes no que tange à


possibilidade de aplicação do princípio da insignificância. Há os que negam sua
existência baseados no simples fato de o dito princípio não estar agasalhado pelo
Direito Positivo; por outro lado, existem aqueles que asseveram sua inteira
aplicabilidade em virtude de uma interpretação sistemática das regras e princípios que
encorpam a Ciência Jurídica.

                                                            
5 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990, pág. 87.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Certo é que, embora haja alguma divergência, na jurisprudência atual o


citado princípio vem sendo amplamente admitido, mesmo não havendo
reconhecimento normativo explícito em nosso ordenamento jurídico, fato
excepcionado apenas pelo Código Penal Militar em seus artigos 209, parágrafo 6º, e
240, parágrafo 1º:

Art. 209. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:


(...)
§ 6º No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a
infração como disciplinar.

Art. 240. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:


§ 1º Se o agente é primário e é de pequeno valor a coisa furtada, o
juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-
la de um a dois terços, ou considerar a infração como disciplinar.
Entende-se pequeno o valor que não exceda a um décimo da
quantia mensal do mais alto salário mínimo do país.

A partir da obra de Claus Roxin (Kriminalpolitik und Strafrechtsystem -


Política Criminal y sistema del Derecho Penal, trad. de Muñoz Conde, Barcelona,
1972), e desde 1970 existe a concepção de que a estrutura do delito não pode ser
interpretada seca, formal e literalmente, bem como de que dos fatos mínimos não
deve cuidar o juiz (minina non curat praetor).
A fim de que se entenda mais adequadamente o princípio em tela,
necessária se faz uma digressão teórica:
Ao considerarmos o conceito tripartite, a composição do delito passa por
fato típico, antijuridicidade e culpabilidade, necessariamente nesta ordem, de modo
que, em não havendo fato típico, prescindível a investigação da ilicitude e assim
sucessivamente.
Por seu turno, o fato típico é formado por quatro elementos, quais sejam, a
conduta, a tipicidade, o resultado e o nexo causal entre a conduta e o resultado.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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No que tange à tipicidade, em sua visão clássica, é considerada apenas sob o


prisma formal, o que significa dizer que, basta haver perfeita subsunção da conduta
ao tipo penal descrito em lei para que se conclua por sua existência.
Entretanto, considerando a função primordial do Direito Penal de
proteção a interesses e valores relevantes para a sociedade, bem como visando evitar
sua utilização desregrada, surgiram posicionamentos que demonstram ser
desnecessária a utilização desse ramo jurídico na regência de determinados casos
concretos, para o que, dividiu-se a tipicidade em dois aspectos, formal e material,
aquele representando a definição clássica de tipicidade, este, por sua vez,
caracterizando a conduta que, além de formalmente típica, ataque de maneira
intolerável o bem jurídico penalmente tutelado, o que se designa desvalor do
resultado.
Desta feita, em não havendo desvalor do resultado, não há, também,
tipicidade material e, consequentemente, não se configura o delito. Essa lição é
comum ao princípio da insignificância e ao princípio da irrelevância penal do fato.
Este último criado e sedimentado pela jurisprudência para se reger os denominados
crimes bagatelares (fatos insignificantes, de ninharia ou, em outras palavras, de uma
conduta ou mesmo de um ataque ao bem jurídico que não requer a intervenção
penal). Ambos partem da análise da tipicidade material, em outros termos, importa
saber se há ou não desvalor do resultado.
Contudo, o princípio da insignificância baseia-se unicamente nesse
critério, de maneira que, não havendo desvalor do resultado, ou seja, não tendo sido
causada considerável lesão ao patrimônio jurídico protegido, não há que se falar em
crime; contudo, isso não quer dizer que o autor do fato insignificante fique impune,
sobre ele devem recair todas as sanções civis, trabalhistas e dos demais ramos do
Direito, o que não se justifica é a aplicação do Direito Penal, “não se pode utilizar um
canhão para matar um passarinho”.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Por seu turno, o princípio da irrelevância penal do fato vai além e considera,
ainda, o desvalor da ação e o desvalor da culpabilidade. Assim, presente qualquer
deles o fato torna-se penalmente relevante, devendo o agente ser sancionado.
A diferença entre os dois princípios supra mencionados, cuja co-existência é
absolutamente impossível, é assim explicada pela doutrina6:

“A diferença fundamental entre os dois princípios mencionados é


a seguinte: uma linha jurisprudencial (a mais tradicional)
reconhece o princípio da insignificância levando em conta
(unicamente) o desvalor do resultado, é dizer, é suficiente (para a
atipicidade) que o nível da lesão (ao bem jurídico) ou do perigo
concreto verificado seja ínfimo. Cuidando, ao contrário, de
ataque intolerável, o fato é típico (e punível). Uma outra linha
jurisprudencial (que está se tornando cada vez mais evidente),
para o reconhecimento da infração bagatelar, não se contenta só
com o desvalor do resultado e acentua a imprescindibilidade de
outras exigências: o fato é penalmente irrelevante quando
insignificantes (cumulativamente) não só o desvalor do resultado,
senão também o desvalor da ação bem como o desvalor da
culpabilidade do agente (isto é: quando todas as circunstâncias
judiciais - culpabilidade, antecedentes, conduta social,
personalidade, motivos do crime, conseqüências, circunstâncias
etc. - são favoráveis).”

Os dois princípios aqui enfocados não ocupam a mesma posição dentro do


Direito Penal. O princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade, já o
princípio da irrelevância penal do fato é causa de dispensa da pena, em virtude de sua
desnecessidade no caso concreto.
É cediço que nenhum dos princípios foram legalmente criados, mas fruto
de construções teóricas e jurisprudenciais, o que dificulta sua aplicação ao caso
concreto, pois a maior exigência requerida pelo princípio da irrelevância penal do
fato provoca diferenciações de tratamento em casos idênticos em relação à utilização

                                                            
6 GOMES, Luiz Flávio. Delito de Bagatela: Princípios da Insignificância e da Irrelevância Penal do Fato. In sítio

do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM, pág. 01.


 
228 
 
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do princípio da insignificância.
Necessário, portanto, que o magistrado analise o caso que se lhe apresenta
com bom senso a fim de selecionar qual dos dois princípios melhor rege a questão,
sendo temeroso adotar, a priori, qualquer deles e prescindir do outro.

4 – CONCLUSÃO

A importância dos princípios aqui abordados torna-se ainda mais evidente


ao relembrarmos um caso concreto julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo7. A. T., dezoito anos, mãe de um filho de dois anos, desempregada,
primária e de bons antecedentes ficou presa 128 dias (na comarca de São Paulo)
porque teria tentado “roubar” um pote de 200 gramas de manteiga, avaliado em R$
3.10 (O Estado de São Paulo de 16.03.06, pág. C6 e de 25.03.06 pág. C4). Não houve
ameaça com arma de fogo ou mesmo com arma branca. Cinco pedidos de liberdade
provisória foram denegados (pelo Juízo e pelo Tribunal de Justiça). Coube ao
Ministro Paulo Gallotti do STJ conceder a ela a liberdade provisória.
Casos como o acima rememorado demonstram a imprescindibilidade da
adoção dos princípios da insignificância e da irrelevância penal do fato no julgamento
de casos concretos, até para que se evite injustiças como a outrora ocorrida, nas quais
o Direito Penal é aplicado com toda a sua força em situações plenamente
solucionáveis por outros meios.

                                                            
7 Disponível em:
http://www.advocaciabittar.adv.br/index.php?option=com_content&task=view&id=75 &Itemid=1;
Acesso em 25 de março de 2010.
 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan,
1990;

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2005;

FERRAJOLI, Luigi. El derecho penal mínimo, in “Poder y control”, nº 0, 1986;

_______________. Derecho y Razón – Teoria Del Garantismo Penal. 2ª Ed.,


Madrid, Trotta, 1997;

GOMES, Luiz Flávio. Delito de Bagatela: Princípios da Insignificância e da


Irrelevância Penal do Fato. In sítio do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais –
IBCCRIM.

 
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PRISIONEIROS DO ESTADO, DA SOCIEDADE OU DO MERCADO?


UMA ANALISE DA PRIVATIZAÇÃO DOS PRESÍDIOS FRENTE AO
SURGIMENTO DAS ASSOCIAÇÕES DE PROTEÇÃO E ASSISTENCIA
AOS CONDENADOS (APAC)

Israel Andrade Alves1


Fabrício Vargas Hordones2

RESUMO

O sistema carcerário tem por finalidade realizar função de caráter público,


consistente na adequada execução das penas, entendida como aquela execução que se
dê com o respeito aos direitos fundamentais do condenado e com aptidão para
promover ressocialização. A proposta de privatização funda-se em uma busca por
eficiência, mas que transfere determinadas atividades-meio do sistema carcerário para
entes empresariais, que atuam a partir da lógica do mercado (busca do maior lucro
com o menor emprego de recursos), o que a torna um risco para a impessoalidade e
imparcialidade que deve nortear o exercício do jus puniendi em um Estado de Direito,
características que podem se perder pela apropriação privada do espaço carcerário,
uma vez que é tênue a separação entre atividades-fim e atividades-meio na execução
das penas. Lado outro, o modelo APAC parte de um compartilhamento de
responsabilidade entre o Estado e a sociedade civil no que se refere ao Sistema
Carcerário, em que ambos possuem as mesmas finalidades, sem o oferecimento de
risco para o monopólio do jus puniendi e com maior aptidão para promover
ressocialização, tendo em vista a atuação que se norteia apenas pela realização do
interesse público, sem qualquer finalidade lucrativa ou persecução de interesses
privados. É preciso investigar a adequação da privatização dos presídios como
medida para solucionar a crise do Sistema Penitenciário Brasileiro, efetivando os
direitos fundamentais da população carcerária e realizando a finalidade
ressocializadora das penas frente à possibilidade de implantação do modelo de gestão

                                                            
1
Graduando em Direito pela PUC Minas.
2
Mestre em Direito pela PUC Minas.
 
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compartilhada entre Estado e Sociedade Civil. Frente à possibilidade de implantação


do modelo de gestão compartilhada entre Estado e Sociedade Civil - Associação de
Amparo e Proteção ao Condenado - APAC, a privatização do sistema carcerário não
se apresenta como medida adequada para efetivar os direitos fundamentais da
população carcerária, sanando a crise do Sistema Carcerário no Brasil.

Palavras-Chave: Privatization, state, society.

DESENVOLVIMENTO

A sociedade, desde tempos remotos, tem procurado punir aqueles que não
se enquadram em suas normas, neste sentido Teles:

[...] o homem primitivo, assim que passou a viver em grupo, sentiu


a necessidade de reprimir aquele que tivesse agredido algum
interesse de seus membros e também de punir o estranho que se
tivesse colocado contra algum valor individual ou coletivo. (Teles,
2004, p. 18)

Apesar de haver passado por várias fases, o que podemos afirmar com
certeza é que, conforme Carvalho Filho (2002, p.21), o cárcere faz parte de quase
toda trajetória histórica da humanidade, porém, suas finalidades mudaram. O fim da
pena era apenas a punição do indivíduo consubstanciada na vingança, como exemplo
a Lei de Talião. Porém, com o passar dos tempos e com a evolução social, foram
nascendo princípios e garantias, mudando-se o conceito e as finalidades da punição
do sujeito.
Uma mudança notável é a passagem do Estado Absolutista para a ascensão
do Estado de Direito, onde foi possível a criação dos Direito Fundamentais, marco
fundamental dessa transição no que se refere às penas. De acordo com Freitas (ano),
o Estado Absolutista baseou-se na doutrina da monarquia divina, respaldada no

 
232 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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direito natural. Os teóricos do absolutismo explicavam a soberania do monarca como


direito divino.
As principais características dos Estado Absolutista era: Reis com poderes
totais, reis determinavam a religião do povo, na França o maior destaque foi com
Luis XIV: que chegou a afirmar: O Estado sou eu”(rei da França entre 1643 e 1715),
a transmissão do poder era hereditária, altos gastos para manter o luxo e as festas da
corte e uso da violência ilimitada para governar (Anderson, 1998).
No contexto dos Estados Absolutistas, o monarca tinha amplos poderes, e
até mesmo, com a ajuda da Igreja, passou a representar a vontade divina. Muitas das
vezes tal autoridade era usada para proveito dos detentores do poder, deixando a
população sem nenhuma assistência ou mesmo segurança jurídica.
Da luta pela liberdade do indivíduo frente ao absolutismo do monarca,
nasceu a primeira noção de Estado de Direito. Essa luta pela liberdade contra o
despotismo foi decidida pela Revolução Francesa, iniciada com a Queda da Bastilha
(14 jul. 1789). Esse movimento revolucionário, sob o lema da liberdade, igualdade e
fraternidade, trouxe importantíssimas renovações institucionais e possibilitou o
surgimento na Europa do primeiro Estado jurídico, guardião das liberdades
individuais (Freitas, 2002).
O teórico liberal Cesare Beccaria, em sua clássica obra Dos Delitos e Das
Penas, afirma que qualquer excesso de severidade tornaria a pena supérflua,
desnecessária, e, por isso mesmo, tirânica. A teoria de Beccaria se volta ao contrato
social e diz que os homens com o passar do tempo decidiram abrir mão de parcela de
sua liberdade para que o Estado garantisse alguns de seus direitos. Em face desse
contrato, aquele que o descumprisse seria penalizado, recaindo nesse momento a
sanção estatal e a aplicação da pena.
Consoante o magistério de Paganella Boschi:

 
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O princípio da humanidade das penas é iluminista, contratualista,


moderno. Ele equivale a um divisor de águas entre opressão e
libertação, entre barbárie e modernidade, na medida em que, em
nome dele, se considera o homem em primeiro lugar e
desconsidera-se tudo aquilo que afronta sua dignidade e
‘humanidade’”.

Com o advento do Estado de Direito, as mudanças foram surgindo em


escala significativa, uma vez que o Estado passou a ser aquilo que a Lei Maior
determinasse, esse é o limite de sua atuação. Luiz Regis Prado ensina que:

A idéia de humanização das penas criminais tem sido uma


reivindicação constante no perpassar evolutivo do Direito Penal.
Das penas de morte e corporais, passa-se, de modo progressivo,
às penas privativas de liberdade e destas às penas alternativas (ex.:
multa, prestação de serviços à comunidade, interdição temporária
de direitos, limitação de fim de semana)” (Prado 2007)

García-Pelayo (1997, p.52-54) considera a existência de duas dimensões do


Estado de Direito: a formal e a material. A primeira identifica a legalidade como
único parâmetro do Estado, referindo-se à forma de realização de suas ações,
reduzidas à lei ou à Constituição. A segunda não se alicerça apenas na legalidade
estrita, entendendo que ela deva estar amparada na legitimidade, devendo o Direito
ser a expressão de valores jurídico-políticos de uma época.
A humanização faz com que a função da pena passe a ser, de acordo com
Luis Regis Prado (2007, p. 124), “uma diretriz de ordem material e restritiva da lei
penal, verdadeira salvaguarda da dignidade pessoal, relacionando-se de forma estreita
com princípios da culpabilidade e da igualdade”.
Em suma, poderíamos dizer que o princípio da humanidade impõe a
proibição de aplicação de penas desumanas, cruéis e degradantes, como disposto no
art. 5º, III, da Constituição Federal.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Os direitos e garantias individuais, sociais ou coletivos, devem ser


observados no cumprimento da pena, visto que esta além de punir, tem finalidade
ressocializadora, pois como lembra Ferrajoli:

A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante


para a humanidade do que a própria história dos delitos: porque
mais cruéis e talvez do que as violências produzidas pelos delitos
têm sido as s penas e porque, enquanto o delito costuma ser a
violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência
imposta por meio da programada, consciente, organizada por
muitos contra um. (2002, p.310).

Portanto, isso não tem ocorrido, pois temos visto situações não condizentes
com o Estado de Direito, mesmo a nossa Constituição resguardando os direitos
fundamentais e proibindo penas desumanas e cruéis, como podemos encontrar no
art. 1º , III e art. 5, III.
Em tempos passados, o direito de punir não era apenas do Estado,
principalmente na era da vingança privada, porém, a partir do Estado de Direito, o
Estado é indubitavelmente o único titular do direito de punir, sendo que ocorrem
inúmeros casos de punição aplicada por particulares, o que nada mais é do que uma
ilegalidade e inconstitucionalidade. Mas ao exercer o Jus Puniendi, deve atentar para os
direitos fundamentais do condenado e observar os limites constitucionais de sua
atuação e interferência.
De acordo com Julio Fabrini Mirabete, jus puniendi pode ser definido
como direito que tem o Estado de aplicar a pena cominada no preceito secundário da
norma penal incriminadora, contra quem praticou a ação ou omissão descrita no
preceito primário, causando um dano ou lesão jurídica. (MIRABETE, 2006)

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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O jus puniendi pode ser chamado tambem de Direito poder-dever do Estado,


já que nao é so uma faculdade que o Estado tem de punir, é mais que isso, é uma
obrigação. Seu exercício, contudo é limitado.
A Lei de Execuções Penais editada em 1984 regulamenta o cumprimento
das penas privativas de liberdade. Ademais, reconhece os direitos humanos dos
presos, ordena tratamento individualizado, protege os direitos substantivos e
processuais dos detentos, e garante assistência médica, jurídica, educacional, social,
religiosa e material. Esta lei determina que os condenados sejam classificados
segundo seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da
execução penal, e que os presos provisórios devem estar separados dos condenados,
e os primários dos reincidentes. Também é garantido ao preso alimentação, vestuário
e instalações higiênicas, atendimento médico, assistência jurídica, assistência
educacional e preservação dos direitos não atingidos pela perda da liberdade, todos
estes constantes no art. 41 e seus incisos, da LEP.
Verifica-se que a Constituição da República de 1988 e a Lei de Execuções
Penais formam um arcabouço jurídico-normativo centrado na humanização das
penas e no respeito aos direitos fundamentais dos detentos.
Acontece que, como é de nossa tradição imperial e republicana, há enorme
distância entre a realidade e a lei, eis que algumas das principais causas de rebeliões
nos presídios brasileiros são deficiência da assistência judiciária, violências ou
injustiças praticadas dentro do estabelecimento prisional, superlotação carcerária,
falta ou má qualidade da alimentação e de assistência médica e odontológica, dentre
outras, como explica Carla Renata (2006).
Vale ainda ressaltar os dizeres de Dropa:

Chamar nossas cadeias e penitenciárias de prisões é um elogio


desmerecido. O que existe no Brasil são verdadeiras masmorras,
depósitos humanos de excluídos formalmente separados dos
 
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presos desviados, ou seja, aqueles bons cidadãos que por uma


razão ou outra cometeram um equívoco e tiveram sua liberdade
privada. São os chamados presos especiais com direito a regalias
como comida especial, televisão, jornais, e outras regalias que não
cabem ao denominado povão (DROPA, 2006)

Diante da situação acima exposta, nota-se que é precário o cumprimento da


pena privativa de liberdade na maioria dos lugares no Brasil e seu objetivo principal,
isto é, a ressocialização, é ineficiente.
Além de não conseguir cumprir seu objetivo, que além de punir, consiste
em fazer com que o preso tenha uma mudança de vida, encontramos dentro do
sistema penitenciário o desrespeito aos direitos fundamentais que devem ser
observadas mesmo que o sujeito esteja em cumprimento de pena. Estes direitos estão
sendo violados, inobservando as garantias legais previstas.
O que tem acontecido é que, no instante em que o preso passa à tutela do
Estado, alem de perder o seu direito de liberdade, perde também outros direitos
fundamentais que não foram atingidos pela sentença, recebendo um tratamento
indigno e sofrendo os mais variados tipos de castigo, que acarretam a degradação de
sua personalidade e a perda de sua dignidade, sem quaisquer condições de preparar o
seu retorno à sociedade.
Uma pesquisa realizada em nível nacional, retirada do livro Ninguém é
irrecuperável (Ottobone, 2001, p. 22), aponta que o índice de reincidência é de 86%,
alem do mais, 80% da população carcerária usam drogas e 87% dos presos não tem
uma profissão definida.
Tais dados retratam a crise do sistema penitenciário brasileiro e justificam a
crescente preocupação da sociedade civil em buscar meios que venham a mitigar essa
realidade. Vemos que a sociedade vem se organizando, e tal fato não se deve apenas à
ineficiência do Estado, a própria sociedade se coloca co-responsável pelos resultados,

 
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“Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’ com a qual a própria
sociedade deve arcar” (Zaffaroni; Pierangeli, 2007, p. 525).
A grande preocupação sobre a crise do Sistema Penitenciário Brasileiro e
suas conseqüências, gera a busca de medidas alternativas e soluções efetivas para os
problemas deste sistema. O Sistema Punitivo apresenta vários problemas de fato,
como as superlotações nos presídios, falta de atividades laborativas, tratamento
médico inexistente ou insuficiente, além de inúmeras outras situações generalizadas
de desrespeito aos direitos dos condenados.
A crescente preocupação do Estado e da sociedade fez surgir propostas de
mudança do Sistema Carcerário, sendo os mais constantes a Proposta de Privatização
das Penitenciarias e as ASSOCIAÇÕES DE AMPARO E PROTEÇÃO AO
CONDENADO - APAC´s, que vem ganhando força no Brasil e no exterior,
principalmente em Minas Gerais.
Segundo Carvalho Filho (2002, p.62), a privatização de presídios foi
implantada nos Estados Unidos da América a partir da década de 1980, quando as
penitenciárias estavam superlotadas e a Justiça exigia adequação do número de vagas
ao número de presos e não havia recursos para gerenciar e construir novos presídios.
Após a idéia foi se espalhando pelo mundo, sendo introduzida também em
países como Austrália, França e Inglaterra, chegando ao Brasil na década de 1990.
Nos países indicados, exceto o Brasil, embora tenham unidades prisionais
privadas, estas são minoria frente ao sistema estatal, e cada país adota um modelo
diferente de privatização, com maior ou menor participação do empreendedor
privado, destacando-se os Estados Unidos como o modelo em que se constata maior
participação, ou seja, quase total, do empresário na administração do presídio,
diferentemente do que ocorre na França, que adota o modelo segundo qual o Estado
está, juntamente com o empreendedor, administrando a unidade prisional, numa
verdadeira co-gestão (Carla Renata, 2006, p.44).
 
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Fernando Capez, sobre o sistema de privatização de presídios, declarou que:

É melhor que esse lixo que existe hoje. Nós temos depósitos
humanos, escolas de crime, fábrica de rebeliões. O estado não tem
recursos para gerir, para construir os presídios. A privatização
deve ser enfrentada não do ponto de vista ideológico ou jurídico,
se sou a favor ou contra. Tem que ser enfrentada como uma
necessidade absolutamente insuperável. Ou privatizamos os
presídios; aumentamos o número de presídios; melhoramos as
condições de vida e da readaptação social do preso sem
necessidade do investimento do Estado, ou vamos continuar
assistindo essas cenas que envergonham nossa nação perante o
mundo. Portanto, a privatização não é a questão de escolha, mas
uma necessidade indiscutível, é um fato". (Capez, 2007)

Outro defensor da Privatização dos Presídios, Borges D`Úrso opina que:

Registro que sou amplamente favorável à privatização, no modelo


francês e as duas experiências brasileiras, uma no Paraná há um
ano e outra no Ceará, há dois meses, há de se reconhecer que são
um sucesso, não registram uma rebelião ou fuga e todos que
orbitam em torno dessas unidades, revelam que a ‘utopia’ de tratar
o preso adequadamente pode se transformar em realidade no
Brasil. [...] Das modalidades que o mundo conhece, a aplicada pela
França é a que tem obtido melhores resultados e testemunho que,
em visita oficial aos estabelecimentos franceses, o que vi foi
animador. Trata-se de verdadeira terceirização, na qual o
administrador privado, juntamente com o Estado fazem parceria
administrativa, inovando o sistema prisional. Já o modelo
americano, o qual também visitei, tal seria inaplicável ao Brasil,
porquanto a entrega do homem preso ao particular é total, fato
que afrontaria a Constituição brasileira. [...]De minha parte, não
me acomodo e continuo a defender essa experiência no Brasil, até
porque não admito que a situação atual se perpetue, gerando mais
criminalidade, sugando nossos preciosos recursos, para piorar o
homem preso que retornará, para nos dar o troco! (D`Úrso, 2008)

 
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Ainda de acordo com Borges D´Urso (p. 218), a função jurisdicional,


indelegável, permanece nas mãos do Estado que por meio de seu órgão juiz,
determinará quando um homem poderá ser preso, quanto tempo assim ficará,
quando e como ocorrerá punição e quando o homem poderá sair da cadeia, numa
preservação do poder de império do Estado que é o único titular legitimado para o
uso da força, dentro da observância da lei.
O Professor Laurindo Minhoto, em entrevista ao jornal "A Tribuna" de
Santos, SP, salienta que a privatização do sistema carcerário brasileiro não é o
caminho mais indicado:

A grande promessa dos advogados da privatização no Brasil é


justamente essa (diminuir custos). A idéia é de que a iniciativa
privada, mais eficiente, adote programas de qualidade e de gestão.
Dizem que ela já teria sido, em tese, comprovada nos países onde
houve implementação do sistema. Digo sinceramente: não há
qualquer estudo que comprove isso, aqui ou lá. Reduções de
custo, quando existem, são mínimas se comparadas aos gastos dos
estabelecimentos públicos. E, em muitas situações, o que parece é
que essa diminuição do preço por detento aparece devido à piora
na qualidade dos serviços penitenciários. Justamente no que seria
o diferencial: na ressocialização, educação, trabalho, saúde e
acompanhamento do preso. São tarefas que sofrem piora em
função do corte de custos. Os presídios privados são a Gol
(empresa de aviação brasileira que barateia passagens e oferece
serviço de bordo mais modesto) do setor. (Minhoto, 2008, p. 2)

A idéia de privatização ainda não é totalmente aceita entre os juristas, e gera


vários debates sobre o assunto na atualidade. A principal questão controversa é por
não se ter ao certo, definido que partes de um sistema prisional pode ser privatizado,
isto é, transferido o poder de cuidado à terceiros. Existe uma grande dificuldade em
se conceituar quais são aqueles atos que são únicos do Estado, e que não podem ser
delegados, por integrarem ao jus puniendi do Estado, e aqueles que se referem apenas
como medidas necessárias à gestão do espaço prisional.

 
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Porém, como explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

É oportuno lembrar que o entusiasmo pela privatização


(entendida no sentido de busca pelo regime jurídico de direito
privado para a Administração Pública), não pode chegar ao ponto
de tornar letra morta o princípio da legalidade, porque sem este
não se pode falar em Estado de Direito. No direito brasileiro,
especialmente, não se pode perder de vista que é preciso tomar
cuidado com a transposição pura e simples de institutos utilizados
no direito estrangeiro. Fala-se muito na evolução do direito
administrativo, no surgimento de novos institutos, na flexibilidade
de seu regime jurídico. No direito francês, por exemplo, os
autores que cuidam da matéria de contrato mencionam o
aparecimento de tipos novos de contratos administrativos que se
colocariam como modalidades diversificadas de concessão; no
direito italiano, fala-se na atipicidade dos institutos do direito
administrativo, parecendo que aos poucos vai-se superando a idéia
de que os atos e contratos administrativos devem corresponder a
fórmulas previstas e delineadas pelo direito positivo. Não se pode
esquecer, no entanto, que o Brasil não tem uma jurisdição
administrativa, como a francesa e a italiana, com função criadora
do direito. Especialmente na França, grande parte dos institutos
do direito administrativo tira sua força de decisões judiciais, que
emprestam validade a instrumentos de ação utilizados pela
Administração Pública, independentemente de previsão legal. O
direito administrativo brasileiro não é de elaboração pretoriana; a
Administração Pública, se quiser criar figuras contratuais novas,
tem que procurar seu fundamento no direito positivo. (Di Pietro,
2007)

As alegações acerca dos benefícios a serem oferecidos pela privatização


consistem geralmente em: aumentar a capacidade de vagas no sistema prisional (hoje
superlotado); proporcionar um cumprimento de pena de maneira digna ao
presidiário; estabelecer parcerias com a sociedade no sentido de proporcionar
trabalho ao apenado e com isso facilitar sua ressocialização, além de desonerar o
Estado no tocante a investimentos de curto prazo (verbas para construção de
unidades prisionais).

 
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A privatização, porém, não é a única proposta, surgiu no Brasil, na década


de 70, em São José dos Campos a APAC – Associação de Proteção e Assistência ao
Condenado. A primeira Associação de Proteção e Assistência ao Condenado - Apac
– foi criada em 18 de novembro de 1972 na cidade de São José dos Campos/SP.
Resultou da união de um sonho do advogado paulista, Mário Ottoboni, e do apoio
de um grupo de amigos cristãos que compartilhavam o objetivo de amenizar os
sofrimentos da população carcerária da Cadeia Pública de São José dos Campos.
É uma entidade civil de Direito Privado, com personalidade jurídica própria,
que tem como objetivo principal promover a humanização das prisões, sem perder a
finalidade punitiva da pena. Seu propósito é evitar a reincidência no crime e oferecer
alternativas para o condenado se recuperar.. Tal método prega um índice muito baixo
de reincidência de seus recuperandos (nomenclatura dada ao preso na APAC ), isso
devido ao seu método humano e voltado realmente para a ressocialização do
condenado e sua reinserção na sociedade, como pode-se ver nas palavras de Mário
Ottoboni, idealizador do método:

Enquanto o sistema penitenciário praticamente – existem


exceções – mata o homem e o criminoso que existe nele, em razão
de suas falhas e mazelas, a APAC propugna acirradamente por
matar o criminoso e salvar o homem. Por isso, justifica-se a
filosofia que prega desde os primórdios de sua existência: “matar
o criminoso e salvar o homem”.” (OTTOBONI, 2006, p.45)

A APAC é regida por um Estatuto próprio, e que determina que os fins


lícitos de sua ação se prendem, exclusivamente, a assistir o condenado no que
concerne: à família, à educação, à saúde, ao bem estar, à profissionalização, à
reintegração na sociedade, às pesquisas psicossociais, à recreação e à assistência
espiritual, isso nada mais é do que a observância do principio da dignidade da pessoa
humana, resguardado pela nossa Constituição.
 
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A resguarda do principio da dignidade da pessoa humana não é uma


inovação do Método Apaqueano, e sim um cumprimento da lei, pois além da própria
Constituição, a Lei de Execução Penal assegura em seu art. 3º que um dos principais
objetivos da pena é ofertar condições que propiciem harmônica integração social do
condenado ou internado. O art. 10º da mesma lei, assegura que a assistência ao preso
e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno a
convivência em sociedade.
Estas duas principais propostas exigem, para definir sua compatibilidade
com o atual ordenamento jurídico brasileiro, a análise do argumento central que as
legitima.
A proposta de privatização toma como fundamento a gestão eficiente do
sistema carcerário, delegando a sujeitos privados, de caráter empresarial, as atividades
meio para a consecução do jus puniend do Estado. Isto gera um enorme risco para o
correto exercício do direito de punir em um Estado de Direito, vez que se vislumbra
uma linha muito tênue dentro do sistema carcerário entre a execução da pena e as
atividades necessárias à sua consecução que não afetem sua atividade-fim.
Visto como um grande negócio, surgiram então duas empresas que hoje
lideram o mercado mundial dirigido ao setor: a Corrections Corporation of América -
CCA, e a Wackenhut Corrections Corporations, ambas atuando em países como
Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Austrália e Porto Rico; por oportuno,
citando relatórios publicados por uma associação civil inglesa com tradição no ramo,
a Prison Reform Trust, relata que a empresa Wackenhut Corrections Corporations
registrou, em 1996, um faturamento de US$ 137,8 milhões, apresentando um
crescimento de 86% em relação ao ano imediatamente anterior, ao passo que CCA a
faturou US$ 206 milhões, lucrando a vultuosa cifra de US$ 21,2 milhões. (Minhoto,
2000).

 
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De posse desses dados, ninguém pode duvidar da rentabilidade do


"negócio" em que se transformou a custódia de penitenciários. Para se ter uma
dimensão, a expectativa, segundo um dos próprios dirigentes da Wackenhut
Corrections Corporations, é a de que a empresa esteja avaliada em 1 bilhão de
dólares em 2004, verbis:

Quanto ao segundo ponto, os números representam-se


espantosos. A CCA e a Wackenhut observaram uma valorização
de 100 a 200% na Bolsa. Um dos dirigentes desta última anuncia:
"Se mantivermos nosso mercado acionário e a taxa de
crescimento, seremos uma firma de 1 bilhão de dólares em 2004".
15 anos após a fundação, os lucros da CCA cresceram mais de
cem vezes. A certa altura a empresa chegou a tentar comprar todo
o sistema prisional do Tennessee por 250 milhões. Em 1996, o
mercado de prisões privadas foi estimado em 700 milhões de
dólares, existindo já então a expectativa de atingir 1 bilhão em
1997. (THOMPSON, 2005).

O principal problema apontado pelos críticos da privatização é que ela traz


em si um ideal mercantil, que visa obviamente um lucro por parte de seus
investidores. Isto a torna alternativa questionável, pois a mão-de-obra carcerária será
meio para lucros de terceiros.
Além disso, é necessário lembra que na privatização, há um enorme risco
para o monopólio estatal do jus puniendi, visto que várias atividade dentro do espaço
prisional serão administradas por particulares e podem ser alvos de manipulação. Na
punição do indivíduo por meio do Estado, devem ser considerados sempre os
princípios da impessoalidade, imparcialidade e igualdade nas punições, o que ficaria
comprometido com a privatização, visto que não será mais o Estado na consecução
das atividades-meios da execução da pena.
Tais questões demonstram que o objetivo da privatização não é a
recuperação nem a reintegração do condenado e sim o lucro para o particular. A
mão-de-obra, bem como a clientela, desta destas empresas provem do trabalho de
 
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pessoas condenadas pelo Poder Judiciário. É da natureza da empresa buscar clientes


mão-de-obra barata é essencial. Seria então interesse do particular que o cidadão se
recupere e assim não volte a cumprir pena naquele estabelecimento, perdendo ele a
sua mão-de-obra gratuita ou barata, bem como sua clientela?
É exatamente neste ponto, quando tratamos do interesse público, é que
estas duas instituições (Privatização e APAC) mais se distanciam. As privatizações
carcerárias têm como objetivo principal o “desafogamento” do Estado referente às
execuções penais, propiciando um digno cumprimento de pena, algo que o Estado se
mostrou ineficiente. Além disso, como já foi citado, na iniciativa privada há a
persecução do lucro, adquirido com o pagamento do Estado pelas diárias dos presos
e pela própria mão de obra carcerária.
Talvez esse objetivo de desafogar o Estado e promover um cumprimento
de pena mais digno é um interesse estatal, mas também da sociedade em geral.
A proposta de gestão do sistema pelas APACS emerge de outro pano de
fundo: a tomada pela sociedade civil organizada de realização de atividade de caráter
público, colocando-se frente ao Estado como co-responsável. O caráter e a finalidade
pública destas instituições anulam o risco de perda do monopólio estatal do jus
puniendi, vez que se identifica profundamente com os mesmos objetivos perseguidos
e almejados pelo Estado.
A metodologia APAC, ao contrario da privatização, não repassa poder
algum a particulares, apenas opera como entidade auxiliar dos Poderes Judiciário e
Executivo, respectivamente, na Execução Penal e na administração do cumprimento
das penas privativas de liberdade nos regimes fechado, semi-aberto e aberto. De
acordo com Mário Ottoboni:

Enquanto o Estado não apoiar a única formula existente capaz de


produzir e que se consubstancia na participação da comunidade,
por intermédio de entidades organizadas juridicamente, e
 
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descentralizar presídios, fazendo com que cada comunidade


assuma sua população prisional, nenhum fruto será colhido, por
melhor que seja a legislação. (Ottoboni, 2006)

Destarte, o Estado não terá um substituto, mas sim um parceiro no qual


proporcionará entre outros, a participação da sociedade, na recuperação e
transformação do condenado. Isto é legalmente possível, e a própria Lei de Execução
em seu art. 4º “ O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas
atividades de execução da pena e da medida de segurança”.
Assim, indaga-se: A privatização de presídios pode ser considerada medida
adequada para solucionar a crise do Sistema Penitenciário Brasileiro, efetivando os
direitos fundamentais da população carcerária e realizando a finalidade
ressocializadora das penas frente à possibilidade de implantação do modelo de
gestão compartilhada entre Estado e Sociedade Civil - Associação de Amparo e
Proteção ao Condenado - APAC?
Parte-se da hipótese que, frente à possibilidade de implantação do modelo
de gestão compartilhada entre Estado e Sociedade Civil - Associação de Amparo e
Proteção ao Condenado - APAC, a privatização do sistema carcerário não se
apresenta como medida adequada para efetivar os direitos fundamentais da
população carcerária, sanando a crise do Sistema Carcerário no Brasil,
Analisando-se comparativamente, as privatizações não geram diferença nos
índices de ressocialização do preso frente aos índices apresentados pelo sistema
tradicional, mantendo-se índice de reincidência em 80%, ao passo que a APAC, além
do índice de reincidência estar entre 7 e 10%, o custo com cada recuperando é três
vezes menor do que o gasto no próprio sistema comum. Tal comparativo demonstra
que a privatização, quando confrontada com o método apaqueano, não se justifica
frente a uma das finalidades essenciais da pena: ressocialização.

 
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RESPONSABILIDADE PENAL E CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE NA


PERSPECTIVA FUNCIONALISTA: UM PARALELO ENTRE AS
DOUTRINAS DE CLAUS ROXIN E GÜNTHER JAKOBS

Frederico Gomes de Almeida Horta1

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. 1 PARALELAS QUE SE CRUZAM NO HORIZONTE DA


PREVENÇÃO: RESPONSABILIDADE PENAL EM CLAUS ROXIN, E
CULPABILIDADE EM GÜNTHER JAKOBS. 2. A PROPOSTA
FUNCIONALISTA DE TRATAMENTO DO ERRO QUANTO À ILICITUDE
DO FATO: CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE E ERRO DE PROIBIÇÃO
SEGUNDO CLAUS ROXIN E GÜNTHER JAKOBS. 3. OPOSIÇÃO COMUM
À PROPOSTA DE ADOÇÃO DA TEORIA DO DOLO NO TRATAMENTO
DO ERRO NO DIREITO PENAL ESPECIAL. CONCLUSÕES.
REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho traz uma análise comparativa entre as concepções de


culpabilidade e consciência da ilicitude desenvolvidas por Claus Roxin e Günther
Jakobs, bem como do tratamento do erro de proibição em cada um desses autores.
Por meio desse confronto se pretendeu verificar os novos rumos apontados
pelo funcionalismo na compreensão da culpabilidade e para a solução dos problemas
pertinentes à relevância dogmática do erro de proibição.

                                                            
1 Mestre em Ciências Penais e Doutorando em Direito pela FDUFMG
 
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A escolha desses dois autores baseou-se no fato de serem os mais celebres e


pioneiros representantes de duas correntes do funcionalismo, conhecidas como
teleológica e sistêmica. A primeira, de Roxin, caracteriza-se pela compreensão ou
construção das categorias sistemáticas do delito em função de valorações político
criminais orientadas pela finalidade do Direito Penal num Estado Democrático de
Direito, que é a tutela preventiva de bens jurídicos. Já a segunda, de Jakobs,
caracteriza-se pela explicação ou construção dessas categorias em vista da função do
Direito Penal, de manter as expectativas e eventualmente restabelecer a confiança
social na força vinculante das normas jurídicas e, assim, do sistema jurídico enquanto
subsistema social.
O trabalho se divide em três partes. Na primeira realiza-se uma análise das
concepções de culpabilidade e responsabilidade penal de Roxin e da concepção de
culpabilidade de Jakobs, para ao final demonstrar que, a despeito da peculiaridade do
conceito de culpabilidade no primeiro autor, há uma evidente convergência entre as
noções de responsabilidade penal para Roxin e culpabilidade para Jakobs. Na
segunda parte analisamos o conceito e a relevância sistemática atribuídos por um e
outro autor à consciência da ilicitude, para na terceira e última parte revelar as razões
invocadas por um e outro na defesa da aplicabilidade geral e irrestrita da teoria da
culpabilidade no tratamento do erro de proibição.
Ao final, apresentamos conclusões em tópicos que destacam as
coincidências entre as concepções de um e outro autor sobre os temas analisados,
esboçando algum traço essencial, quiçá um norte comum, determinado pelo método
funcional na definição das condições de punibilidade do injusto penal.

 
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1 PARALELAS QUE SE CRUZAM NO HORIZONTE DA PREVENÇÃO:


RESPONSABILIDADE PENAL EM CLAUS ROXIN, E CULPABILIDADE
EM GÜNTHER JAKOBS

1.1 A culpabilidade como condição necessária, mas insuficiente, da


responsabilidade penal

Claus Roxin se refere à culpabilidade em três sentidos distintos e


complementares. Fala da culpabilidade como princípio, como fundamento da pena e
como parâmetro para a medida da pena.
Como princípio, a culpabilidade desempenha um papel essencial, embora
não exclusivo, na determinação de quando e em que medida alguém pode ser
responsabilizado por um comportamento socialmente lesivo, jurídico penalmente
relevante, de maneira que se lhe apliquem as sanções próprias desse ramo do direito.2
Atua, em seu aspecto externo, desde o âmbito do injusto, excluindo a
responsabilidade do agente pelas causações decorrentes do mero acaso, segundo os
critérios de imputação objetiva. Depois, por seu aspecto interno, o princípio da
culpabilidade submete a responsabilização do agente à verificação de se a sua
constituição interior permite uma imputação subjetiva.3 O princípio invoca, então, a
verificação da culpabilidade em seu sentido mais comum; de elemento do conceito
analítico de crime.
Neste sentido, a culpabilidade é definida sumariamente por Roxin como a
atuação injusta, a despeito da acessibilidade do agente às normas, isto é; da
idoneidade dele para ser destinatário de normas e se auto determinar conforme os

                                                            
2 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal, p. 134.
3 ROXIN. Estudos..., p. 135.
 
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seus comandos.4 Será culpável o sujeito disponível no momento do fato para o


chamado da norma, conforme seu estado mental e anímico; quando ainda lhe sejam
psiquicamente acessíveis possibilidades de decisão por uma conduta orientada
conforme a norma ou, simplesmente, quando a possibilidade psíquica de controle,
presente geralmente nos adultos sãos, exista também no caso concreto.5
Tal noção de culpabilidade representa uma significativa redução em relação
àquela que tem por conteúdo material a reprovabilidade do sujeito pela prática do
injusto, baseada na possibilidade e exigibilidade de atuação conforme o direito.
Referimo-nos aqui à concepção normativa de culpabilidade concebida a partir dos
esforços de Frank, Goldschmidt e Freudenthal. Esta concepção, que a partir do
finalismo adquire sua forma mais pura, despojada do dolo e da culpa e configurada
apenas pelos elementos da imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e
exigibilidade de conduta diversa, é amplamente divulgada e geralmente aceita entre
nós. 6
A crítica que Roxin opõe à concepção de culpabilidade como
reprovabilidade diz respeito ao papel positivo, efetivamente configurador, que ela
atribui ao “poder agir de outro modo” na circunstância concreta em que o agente
praticou o injusto. Pois ainda que se admita a existência do livre arbítrio, como o
admite Roxin, ele é indemonstrável empiricamente, assim como é,
consequentemente, a efetiva possibilidade de o agente escolher livremente entre a
obediência ou não ao comando da norma penal incriminadora numa determinada
situação. E se a afirmação da culpabilidade fica dependente da comprovação de um

                                                            
4 ROXIN. Estudos..., p. 138; _____. Derecho penal: parte general, p. 806.
5 ROXIN. Derecho penal..., p. 807.
6 Entre os mais proeminentes defensores desta concepção de culpabilidade no Brasil está Francisco de

Assis Toledo. (Princípios básicos de direito penal, p. 216 e segs.)


 
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fenômeno empírico que, afinal, não se pode constatar, o princípio “in dubio pro reo”
imporá sempre a absolvição, inviabilizando um direito penal da culpabilidade.7
Dessa forma, Roxin limita a culpabilidade e, afinal, a imputação subjetiva do
injusto ao agente, à constatação de que ele atou com imputabilidade e potencial
consciência da ilicitude. Ambas as circunstâncias demonstráveis empiricamente, com
maior ou menor dificuldade. Nessas condições, o livre arbítrio do agente é
simplesmente presumido, e se pode – a princípio – responsabilizar o agente pela
adoção da conduta ilícita em prejuízo das alternativas lícitas que em princípio lhe
eram psiquicamente acessíveis.8
As causas de exclusão da culpabilidade, no sentido estrito que lhe confere
Roxin, serão então apenas aquelas previstas nos §§ 17 e 20 do Código Penal (CP)
alemão.9
Tal não significa desconsiderar a relevância das circunstâncias conhecidas
como excesso escusável em legítima defesa ou estado de necessidade exculpante para
a exclusão da pena. Isso iria de encontro às disposições expressas nos §§ 33 e 35 do
CP alemão.10 Antes, Roxin lhes dá a merecida atenção, reconhecendo nelas hipóteses

                                                            
7 ROXIN. Derecho penal..., p. 800.
8 ROXIN. Derecho penal..., p. 808.
9 § 20. Incapacidad de culpabilidad por perturbaciones psíquica. Actúa sin culpabilidad quien en la

comisión de un hecho es incapaz por una perturbación síquica patológica, por perturbación profunda de la conciencia o
por debilidad mental o por otra alteración síquica grave de comprender lo injusto del hecho o actuar de acuerdo con esa
comprensión. § 17. Error de prohibición. Sí le falta al autor en la comisión de un hecho la comprensión de lo
injusto de su actuar entonces actúa sin culpa si el no pudo evitar ese error. Si el autor pudo evitar el error, entonces puede
atenuarse la pena conforme al § 49, inciso 1. (Código Penal Alemán. Trad. Claudia López Diaz) 
10 § 33. Exceso en la legítima defensa. Si el autor excede los límites de la legítima defensa por confusión temor o miedo,

entonces no será castigado. § 35. Estado de necesidad disculpante. (1) Quien en un peligro actual para la vida, el cuerpo
o la libertad no evitable de otra manera, cometa um hecho antijurídico con el fin de evitar el peligro para él para un
pariente o para otra persona allegada, actúa sin culpabilidad. Esto no rige en tanto que al autor se le pueda exigir
tolerar el peligro, de acuerdo con las circunstancias particulares, porque el mismo ha causado el peligro o porque el estaba
en uma 12 especial relación jurídica. Sin embargo, se puede disminuir la pena conforme al § 49 inciso l., cuando el autor
no debería tolerar el peligro en consideración a una especial relación jurídica. (2) Si el autor en la comisión del hecho
supone erróneamente circunstancias que a él lo puedan exculpar conforme al inciso primero, entonces sólo será castigado
 
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legais nas quais a responsabilidade pelo fato culpável estaria excepcionalmente


excluída, por faltarem nesses casos as razões preventivas que justificam a pena.
Como se vê, a culpabilidade deixa de ser razão suficiente para a pena,
embora seja dela uma condição indispensável. É que entre a valoração da conduta
como um injusto e a sua caracterização como fato punível, Roxin insere a apreciação
da responsabilidade do agente. Esta, por sua vez, tem como requisitos a culpabilidade
e, ao seu lado, a necessidade preventiva da pena.
A responsabilidade poderá ser excluída, pois, mesmo havendo
culpabilidade, quando o injusto tiver sido praticado em circunstâncias tão
excepcionais que desautorizem a suposição de qualquer funcionalidade preventiva à
pena. Por meio desse modelo, Roxin logra estabelecer um elo entre a conformação
dogmática do delito e orientações político-criminais, conforme a sua proposta
funcionalista. Pois ainda que se tenha um injusto culpável, esse não será punido
quando faltarem as razões preventivas que justificam a reação penal. Nessas
hipóteses faltará a responsabilidade penal pelo fato.11
Como bem adverte Roxin, a abertura sistêmica para orientações político-
criminais no âmbito da responsabilidade, consubstanciada no requisito das
necessidades preventivas da pena, não importa num campo para a arbitrária
discricionariedade judicial. Afinal, as necessidades preventivas da pena não haverão
de ser determinadas segundo a opinião pessoal do juiz, mas segundo a lei ou as
decisões valorativas legais.12
                                                                                                                                                                   
cuando el error hubiese podido evitarse. La pena ha de atenuarse conforme al § 49, inciso 1. (Código Penal Alemán.
Trad. Claudia López Diaz)
11 A referência à responsabilidade como pressuposto do delito não é original. Heinhart Maurach já a

mencionava, porém como um extrato autônomo, localizado sistematicamente entre a apreciação do


injusto e da culpabilidade. No modelo de Maurach, a responsabilidade e a culpabilidade seriam
requisitos do terceiro extrato do conceito analítico de crime, ao qual esse autor se refere como
atributividade da conduta típica e ilícita. (MAURACH, Heinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal: parte
general, p. 540)
12 ROXIN. Estudos...l, p. 156.

 
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Indiferentemente à opinião pessoal do julgador, não se reconhece


necessidades preventivas para a pena, conforme expressa disposição legal, nos já
referidos casos de estado de necessidade exculpante (§35 do CP alemão) e de excesso
escusável em legítima defesa (§33 do CP alemão).
Nesses casos, ressaltamos, o rigor da orientação legal, quando analisada sob
o prisma político criminal, é evidente. Pois aquele que realiza um tipo penal em
situação de estado de necessidade é, em geral, fiel ao direito e não necessita de
qualquer intervenção ressocializadora. Ademais, provavelmente ele não enfrentará
outra vez a mesma situação, a menos que uma peculiar condição pessoal as
determine com maior freqüência, como é o caso do bombeiro. Mas a eles não se
aplica a referida excludente legal da responsabilidade, assim como não se aplica a
causa de justificação prevista no artigo 24 do CP brasileiro. Tampouco se revelam
razões de prevenção geral na punição de quem atua em estado de necessidade
exculpante, uma vez que a população em geral se mostra compreensiva em relação ao
seu comportamento, que consequentemente não abala a paz social.13
Da mesma forma, quem por medo ou susto extrapola os limites da legítima
defesa não se revela assim uma pessoa perigosa, a qual se deva impor tratamento
correcional. E essas situações não inspiram urgências intimidativas, na medida em
que o comportamento dos medrosos não é tomado como modelo pelas pessoas em
geral.14
Ademais, e ainda segundo Roxin, só pela alocação sistemática de
considerações sobre as necessidades preventivas da pena, no âmbito da
responsabilidade, com independência da culpabilidade, se tornaria possível conferir
explicação dogmática aos casos do chamado estado de necessidade exculpante supra

                                                            
13 ROXIN. Estudos..., p. 152.
14 ROXIN. Estudos..., p. 153.
 
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legal e se obteria padrões razoáveis para a aferição da escusabilidade ou


inescusabilidade do erro de proibição.15
Com efeito, ao impor à pena o requisito das necessidades preventivas,
considerados de forma absolutamente independente da culpabilidade, e ao recusar
que a culpabilidade legitime a retribuição, o modelo de Roxin não limita menos o
poder punitivo estatal que a concepção tradicional de culpabilidade, e pode até
conferir argumentos mais claros, ou talvez até mais francos, para excluir a relevância
penal de um fato concreto.
Todavia, não nos parece que a substituição do problema da possibilidade ou
exigibilidade de conduta diversa por considerações sobre as necessidades preventivas
da pena no caso concreto tenha representado um avanço qualitativo. Primeiramente
porque a demonstração das necessidades preventivas da pena não é menos
tormentosa que a demonstração do livre arbítrio do agente. Depois, porque
considerações sobre as funções da pena não são menos metajurídicas que aquelas
pertinentes à reprovabilidade de um determinado comportamento.

1.2 A culpabilidade como responsabilidade pela motivação antijurídica ou


deslealdade ao Direito

Para Günther Jakobs a culpabilidade é a responsabilidade do autor de um


injusto pelo déficit de motivação jurídica revelado com a sua prática. O sujeito
culpável, então, é aquele que não se conduz pela motivação jurídica dominante, na
medida em que atua antijuridicamente, e é responsável pela falta dessa motivação.16

                                                            
15 ROXIN. Estudos..., p. 158-159.
16 JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general, p. 566.
 
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Trata-se de um conceito simples, mas que não diz muito, e por isso é
tratado como um conceito formal. Pois se o déficit de motivação jurídica dominante
decorre simplesmente do comportamento ilícito, a culpabilidade será definida
exclusivamente em função do que seja determinante para a responsabilização do
culpável por esse déficit.
A abertura de tal conceito de culpabilidade reside justamente ai. Para Jakobs
essa responsabilidade se dá sempre que a falta de disposição do agente para se
motivar conforme a norma que descumpre não possa ser compreendida sem abalar a
confiança geral nessa norma.17 Como se vê, a culpabilidade não é definida a partir de
características da conduta, de um juízo sobre ela, mas segundo fatores extrínsecos. O
que fundamenta e determina a medida da culpabilidade de um comportamento
antijurídico, em Jakobs, é o abalo que ele possa gerar no reconhecimento geral da
norma defraudada.
Dessa forma Jakobs concebe a culpabilidade como uma categoria
totalmente funcional, cuja determinação e a medida serão sempre coincidentes com a
oportunidade e necessidade da pena no caso concreto.
Com efeito, Jakobs reconhece na pena exclusivamente a finalidade de
manter o reconhecimento geral da norma e, conseqüentemente, a expectativa social
de que a norma é vinculante. Atribui-lhe, pois, um caráter preventivo geral,
convencionalmente referido como positivo, em oposição à clássica teoria da
prevenção geral negativa, que espera da pena uma eficácia de intimidação. Nas
palavras desse autor, “se pune para manter a confiança geral na norma; para exercitar
o reconhecimento geral da norma”.18
Ora, quando o comportamento antijurídico do autor não pode ser
compreendido senão como uma demonstração de infidelidade ao direito, haverá
                                                            
17 JAKOBS. Derecho penal..., p. 566.
18 JAKOBS. Derecho penal..., p. 581. Tradução nossa.
 
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culpabilidade e a pena terá lugar como mecanismo para exercitar a fidelidade devida,
estabilizando expectativas em torno da ordem jurídica violada.
Na medida em que o conceito de culpabilidade está voltado para as
repercussões que o comportamento antijurídico possa ter sobre as expectativas
sociais de vinculação da norma, torna-se irrelevante o questionamento do livre
arbítrio. Com efeito, a verificação do livre arbítrio, ou mesmo a sua consideração
como um pressuposto indemonstrável da culpabilidade, só faz sentido quando por
esse juízo não se visa unicamente lograr um efeito social, mas também a
reprovabilidade do indivíduo, o que não ocorre na perspectiva de Jakobs.19
O poder agir de outro modo só pode ser entendido na perspectiva de
Jakobs como uma construção normativa. Significa simplesmente que o âmbito da
culpabilidade, por ser o âmbito da responsabilidade, é justamente aquele da
autonomia do indivíduo. O âmbito sobre o qual ele não necessita suportar
ingerências, exatamente porque ali será responsável por suas escolhas, “por suas
motivações defeituosas”. Em suma, a culpabilidade coincide com a liberdade do
culpável, não no sentido de livre arbítrio, mas da ausência de obstáculos
juridicamente relevantes para sua atuação; para seus “atos de organização”.20
Os críticos do conceito de culpabilidade formulado por Jakobs acusam-no
de ser inidôneo a limitar a punibilidade, que ficaria sempre à deriva de necessidades
preventivas.21 Jakobs, todavia, vê na função da pena um limite seguro para a
punibilidade, acreditando que a necessidade de punição e a medida necessária da
pena podem ser objetivamente definidas segundo padrões gerais, com independência
e prejudicialmente à opinião pessoal do julgador.

                                                            
19 JAKOBS. Derecho penal..., p. 585.
20 JAKOBS. Derecho penal..., p. 585
21 Nesse sentido ROXIN. Derecho penal...., p. 806.

 
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Para esse autor o princípio nulla poena sine culpa impõe justamente que entre
o suposto fático e sua conseqüência jurídica deve haver uma proporção adequada,
determinada pela necessidade. O limite que a culpabilidade estabelece para a pena
não gira em torno do que o delinqüente “mereceu” segundo a opinião geral – ou
pessoal do julgador, acrescentaríamos – mas do necessário à manutenção da
confiança.22 Desse modo, só se imporá pena quando estiver descartada a
possibilidade de resolver o conflito sem castigar o autor e, sendo esta necessária,
vinculará para sua medida o padrão válido para casos semelhantes. Nesse sentido, o
princípio da culpabilidade atuaria limitando o arbítrio nas decisões judiciais, uma vez
que as decisões particulares sobre a culpabilidade estariam vinculadas “pelas
exigências do sistema de exculpação e inculpação que se pratica em geral”.23
Resta-nos, então, descrever em seus traços essenciais o “sistema de
inculpação e exculpaçao” proposto por Jakobs. Em outras palavras, as condições
mediante as quais seria plausível supor uma disposição geral a aceitar ou negar a
responsabilidade do autor pelo seu déficit de motivação jurídica.
Trata-se do “tipo total de culpabilidade”, composto por elementos
positivos, determinantes da deslealdade ao direito do autor, que conformam o “tipo
de culpabilidade”, e por elementos negativos da inexigibilidade, que conformam o
“tipo de exculpação”.24
Como elementos positivos, determinantes do tipo de culpabilidade, Jakobs
se refere primeiramente ao próprio injusto, que é, afinal, a expressão do déficit de
motivação jurídica do autor. O comportamento típico evitável, doloso ou

                                                            
22 RAMOS, Enrique Peñaranda; GONZÁLEZ, Carlos Suárez; MELIÁ, Manuel Cancio. Um novo
sistema do direito penal: Considerações sobre a teoria de Günther Jakobs, p. 63.
23 JAKOBS. Derecho penal..., p. 588-589.
24 JAKOBS. Derecho penal..., p. 596.

 
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imprudente, que não está justificado é, assim, para Jakobs, simultaneamente objeto e
elemento do juízo de culpabilidade.25
Depois, Jakobs trata da imputabilidade como condição geral para se atribuir
responsabilidade ao autor de um injusto pelo déficit de motivação que revela. Como
essa responsabilidade ocorrerá sempre que a falta da motivação segundo a norma
puder abalar as expectativas gerais sobre a vinculação desta, serão imputáveis todos
os sujeitos definíveis como iguais.26
Isto porque em situações motivacionais semelhantes, a infração da norma
por um sujeito determinado exemplifica a infração da norma por qualquer outro a ele
equiparável, ofendendo assim a validade da norma em relação a todos esses.27 O
indivíduo “igual” que não se motiva conforme a norma, atuando antijuridicamente,
apresentará uma alternativa de comportamento capaz de abalar a confiança na
vinculação da norma infringida.
O mesmo não ocorre quando o autor do fato antijurídico puder ser
qualitativamente definido como “anormal” sob o ponto de vista psíquico, ou quando
lhe faltar a “igualdade” em razão da menoridade. As condições determinantes dessa
anormalidade Jakobs reconhece nas hipóteses centrais previstas no § 20 do CP
alemão, que reúne também, segundo ele, causas de inexigibilidade. Já a presunção de
desigualdade e, pois, inculpabilidade, das crianças e pré-adolescentes pelo
desenvolvimento social incompleto se dá nos termos do §19 do mesmo diploma.28

                                                            
25 JAKOBS. Derecho penal..., p. 598.
26 JAKOBS. Derecho penal..., p. 598.
27 JAKOBS. Derecho penal..., p. 598
28 JAKOBS. Derecho penal..., p. 598 e 599. Aqui transcrevemos esses dispositivos, correspondentes no

essencial aos artigos 26, caput, e 27 do Código Penal brasileiro: § 19. Incapacidad de culpabilidad del nino:
Es incapaz de culpabilidad quien en el momento de la comisión de un hecho aún no ha llegado a la edad de los catorce
años.
§ 20. Incapacidad de culpabilidad por perturbaciones psíquicas: Actúa sin culpabilidad quien en la comisión de un
hecho es incapaz por una perturbación síquica patológica, por perturbación profunda de la conciencia o por debilidad
 
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Os menores e aqueles que sofrem de graves perturbações ou deficiências


psíquicas não seriam capazes de atingir, por seu comportamento, as expectativas da
sociedade em relação ao comportamento das pessoas em geral, exatamente por serem
vistos como exceções, por não serem semelhantes.
A partir dessa constatação, Jakobs adere à conhecida tese de Hegel, segundo
a qual “a pena honra o delinqüente como ser racional”, “atenuando” a racionalidade
pela igualdade, e o honrar pelo definir. Para Jakobs, pois, a pena define o delinqüente
como um ser igual.29
Também será um elemento positivo da culpabilidade que a motivação do
autor desrespeite uma norma básica para a estrutura estatal e social ou, em se
tratando de normas “disponíveis quanto ao seu conteúdo”, que desrespeite seu
fundamento de validez. Em torno dessa máxima Jakobs desenvolve o problema da
consciência, ou “intelecção”, do injusto. Esta seria pressuposta quando se tratasse de
normas básicas para a estrutura social. Mas, em se tratando de normas disponíveis, o
erro sobre o seu conteúdo excluirá a responsabilidade, desde que o autor tenha
observado seu fundamento de validez e, dessa forma, demonstre suficiente
disposição para obedecer as normas que lhe sejam cognoscíveis. É que nessas
hipóteses a pena não serviria ao objetivo de exercitar a lealdade ao direito, e seria
ademais disfuncional, pois exercitaria a existência de uma norma disponível em
diferentes contextos, perturbando a sua mutabilidade. Sobre esse ponto falaremos
mais adiante. 30

                                                                                                                                                                   
mental o por otra alteración síquica grave de comprender lo injusto del hecho o actuar de acuerdo con esa
comprensión.(Código Penal Alemán. Trad. Claudia López Diaz)
29 JAKOBS. Derecho penal..., p. 599. Com base nessa idéia os defensores de sua teoria pretendem

responder a crítica segundo a qual esse conceito puramente funcional de culpabilidade ofenderia a
dignidade dignidade do culpável ao trata-lo como mero objeto da pena necessária e, neste sentido,
como instrumento de estabilização de expectativas sociais. (a respeito vide RAMOS; GONZÁLEZ;
MELIÁ. Um novo sistema..., p.65 e segs.)
30 JAKOBS. Derecho penal..., p. 600.

 
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Completam o tipo positivo de culpabilidade os chamados “especiais


elementos da culpabilidade”, presentes em alguns tipos de crime, que além de
pertencerem ao injusto se referem também a uma medida intensificada de
deslealdade ao direito. Trata-se dos elementos que dizem respeito à responsabilidade
ou ao incremento da responsabilidade por uma infração de dever, como a
circunstância de agir “maliciosamente”.31
Como elemento negativo do tipo total de culpabilidade, Jakobs se refere à
inexigibilidade. Por meio dessa categoria se agrupam as situações em que a
responsabilidade do autor se vê excluída ou diminuída por uma disposição de ânimo
ou um contexto exculpante. São situações nas quais a motivação não jurídica de um
autor imputável, que desrespeita o fundamento de validez da norma, pode ser
explicada por uma desgraça particular sua, reconhecida em geral como tal, ou se pode
imputar a outra pessoa.
Nesses casos a exculpação se dá por que o déficit de motivação não revela
uma deslealdade ao direito e o caráter ameaçador do contexto em que o injusto se
deu não é atribuído ao autor. A situação exculpante não diz respeito ao autor, seja
porque era inevitável, como a situação de necessidade surgida fortuitamente, à qual se
refere o §35 do CP alemão, seja porque deva ser imputada a outra pessoa, como no
excesso em legítima defesa previsto no §33 do mesmo diploma.32

1.3 Confronto

Se for verdade que o sentido atribuído à culpabilidade em Roxin é diverso


do que lhe atribui Jakobs, não é incorreto dizer que entre as condições apresentadas
                                                            
31 JAKOBS. Derecho penal..., p. 374.
32 JAKOBS. Derecho penal..., p. 601.
 
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por um e outro para que o injusto seja um fato punível, há muito mais semelhanças
que diferenças.
Antes de tudo é preciso pontuar que a comparação entre os conceitos e
respectivos pressupostos da culpabilidade nesses dois autores é tarefa equivocada e
infrutífera, uma vez que pelo mesmo termo cada um se refere a categorias
sistemáticas diferentes, uma mais abrangente que a outra. Por “culpabilidade” Roxin
se refere apenas a uma das condições – necessária, mas não suficiente – para a
responsabilização penal do autor do injusto, enquanto Jakobs se refere a todas as
condições para tanto. Consequentemente, só faz sentido comparar, pela semelhança
dos papeis que desempenham no sistema desenvolvido por cada um, o conceito de
culpabilidade de Jakobs com o de responsabilidade penal, de Roxin.
A responsabilidade penal, para Roxin, resulta da conjugação entre
idoneidade do agente para ser destinatário de normas e a verificação de necessidades
preventivas da pena, sendo essas duas condições totalmente independentes entre si,
enquanto a culpabilidade de Jakobs é integralmente concebida segundo a necessidade
da resposta penal ao injusto.
Por esta razão esses autores divergem quanto à possibilidade de a
culpabilidade do agente estar aquém da necessidade preventiva da pena. Enquanto
Roxin admite essa possibilidade sempre que as exigências de prevenção fizerem
desnecessária ou mesmo desaconselhável a pena no limite máximo da culpabilidade,33
Jakobs a rejeita, por considerar essas variáveis coincidentes. Em suas palavras, “a
pena adequada à culpabilidade é por definição a pena necessária para a estabilização
da norma”.34
Quanto a essas necessidades preventivas, também não estão inteiramente
conformes, já que Roxin não atribui à pena somente a função de prevenção geral
                                                            
33 ROXIN. Estudos..., p. 155.
34 JAKOBS. Derecho penal..., p. 589
 
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positiva, como Jakobs, mas também as funções de prevenção geral negativa e de


prevenção especial.
As divergências, contudo, não vão muito além dessas, cuja transcendência
prática nos parece no mínimo imprecisa. Mais numerosas e relevantes são as
semelhanças. Essas, disfarçadas pela terminologia peculiar de Jakobs, vão desde a sua
definição de culpabilidade como responsabilidade do agente pelo seu déficit de
motivação jurídica revelado com a prática do injusto. Como se vê, da mesma forma
que Roxin, Jakobs acrescenta ao injusto, como último requisito do fato punível,
justamente a responsabilidade do autor por sua prática.
Ambos rejeitam a idéia de reprovabilidade da ação como fundamento da
punição pelo injusto, substituindo-a pela necessidade de pena, conforme suas
finalidades preventivas.
Por fim, não são muito diversos os parâmetros a partir dos quais um e
outro autor baseiam a verificação da necessidade de pena e, de todo modo, as
condições da culpabilidade apontadas por Jakobs são as mesmas da responsabilidade
segundo Roxin. Para ambos a necessidade da pena, verificável a princípio quando da
prática de um injusto por um imputável, estará excluída nos casos de excesso em
legítima defesa e estado de necessidade exculpante, previstos respectivamente nos §§
33 e 35 do CP alemão.
Também coincidem na maior parte dos casos em considerar o erro de
proibição escusável como causa excludente da necessidade de pena. Pois embora
Roxin trate da evitabilidade do erro dentro do seu conceito restrito de culpabilidade,
considerando que a possibilidade de o sujeito conhecer a norma descumprida diz
respeito à sua idoneidade para dela ser destinatário, ele reconhece que só em
raríssimos casos se poderá afirmar que a norma era mesmo inacessível ao autor.
Quase sempre a consciência da ilicitude do comportamento é alcançável, ainda que

 
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com um esforço inexigível, e então a exclusão da pena pelo erro de proibição


dependerá apenas de considerações sobre as suas necessidades preventivas.35
A peculiaridade de uma ou outra perspectiva acaba se limitando, pois, à
imputabilidade, que Roxin, diferentemente de Jakobs, não concebe de forma
puramente funcional, entre as condições de necessidade da pena, mas
preliminarmente como idoneidade do sujeito para ser destinatário de normas. Não
obstante, o próprio Roxin admite que o seu conceito de culpabilidade e, portanto, de
imputabilidade, se apóia numa justificação social para a pena e nisto muito se
assemelha ao conceito funcional de Jakobs.36

2. A PROPOSTA FUNCIONALISTA DE TRATAMENTO DO ERRO


QUANTO À ILICITUDE DO FATO: CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE E
ERRO DE PROIBIÇÃO SEGUNDO CLAUS ROXIN E GÜNTHER
JAKOBS

2.1 A consciência da ilicitude e o erro de proibição segundo Claus Roxin

2.1.1 Objeto e posição sistemática da consciência da ilicitude

Roxin define a consciência da ilicitude citando entendimento do Supremo


Tribunal Federal Alemão em matéria penal (Bundesgerichthof in Strafsachen- BGHSt),
segundo o qual esta é o saber que o fato praticado não está juridicamente permitido,
mas sim proibido.37 Conforme esse conceito, para a consciência da ilicitude não basta

                                                            
35 ROXIN. Derecho penal..., p. 879.
36 ROXIN. Derecho penal..., p. 811.
37 ROXIN. Derecho penal..., p. 866

 
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simplesmente a consciência da danosidade social ou imoralidade do fato, embora não


seja necessário a consciência da sua punibilidade.38
Assim se posicionando, Roxin rejeita uma teoria puramente material sobre o
objeto da consciência da ilicitude, segundo a qual este se limitaria ao caráter anti-
social ou imoral do comportamento, tal qual defendida, entre outros, por Max Ernst
Mayer, a partir de sua teoria das normas de cultura.39 Como bem argumenta o autor
que analisamos, nem toda conduta imoral ou socialmente desvaliosa é proibida, de
modo que o conhecimento do valor moral ou social da conduta é só um meio de se
atingir a consciência da sua ilicitude, que com ela não se confunde. Ademais, numa
sociedade pluralista como a nossa, na qual convivem diversas subculturas, distintos
sistemas morais constantemente mutáveis, não se pode exigir que ninguém paute seu
agir incondicionalmente segundo essa classe de regras, mas apenas segundo as
proibições e mandamentos jurídicos.40
Por outro lado, também não acolhe uma concepção puramente formal
sobre a consciência da ilicitude, frisando que o objeto desse saber não abarca a
punibilidade do comportamento. A irrelevância da consciência da punibilidade,
justifica, baseia-se em que o conhecimento da proibição deveria bastar em todos os
casos ao sujeito para motivar sua conduta com fidelidade ao direito,
independentemente da especulação sobre a possibilidade de sofrer pena pela prática
do ilícito.41 Em suma, é necessário saber que o fato é ilícito, mas não necessariamente
um ilícito penal.

                                                            
38 ROXIN. Derecho penal..., p. 866
39 Como bem sintetiza Luís Augusto Sanzo Brodt, para essa teoria as normas jurídicas são normas de
cultura reconhecidas pelo Estado. Assim, do conhecimento das normas de cultura resultaria a
inferência das normas jurídicas e, conseqüentemente, da ilicitude. (BRODT, Luis Augusto Sanzo. A
consciência da ilicitude no direito penal brasileiro, p. 25-26).
40 ROXIN. Derecho penal..., p. 866
41 ROXIN. Derecho penal..., p. 867.

 
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Assim definida, a consciência da ilicitude jamais será excluída pela oposição


de consciência do autor em relação ao mandamento descumprido. Afinal, quem
discorda de uma proibição, seja por razões religiosas ou ideológicas, não pode
invocar ao descumpri-la o disposto no §17 do CP alemão, correspondente ao art. 21
do CP brasileiro, pelo simples fato de que o agente a conhece e, portanto, sabe que
sua conduta é objetivamente proibida; vedada pelo ordenamento jurídico
Diríamos, então, que a posição de Roxin está entre as concepções mistas, e
muito se assemelha àquela adotada por Luis Augusto Sanzo Brodt, para quem a
consciência da ilicitude importa na percepção do desvalor jurídico do
comportamento, da contrariedade da conduta à ordem jurídica, “não sendo
necessário que o agente conheça o tipo penal ou que esteja convencido da utilidade
social da proibição”.42
Embora Roxin não concorde com uma posição formalista, segundo a qual a
consciência da ilicitude coincidiria com a consciência da prática de um determinado
tipo penal, ele não se contenta com a consciência de uma proibição abstrata do
comportamento. Não basta um juízo qualquer sobre a ilicitude do fato praticado,
sendo necessário que se reconheça nela o mesmo conteúdo de injusto consagrado no
tipo penal realizado. Para Roxin, mesmo desconhecendo a existência do tipo, o
agente responsável há de reconhecer o injusto concreto que lhe corresponde.43
Esta propriedade da consciência da ilicitude, à qual Roxin se refere como
divisibilidade, é, segundo afirma, a chave para a solução dos casos de duplo erro de
proibição; quando o agente julga seu fato ilícito por uma razão equivocada, e
desconhece a verdadeira razão da sua ilicitude. Tal ocorre no exemplo do tio que
seduz a sua sobrinha de quinze anos, desconhecendo que a sedução de jovens dessa
idade seja proibida (nos termos do §182 do CP alemão ou do já revogado art. 217 do
                                                            
42 BRODT. Da consciência da ilicitude..., p. 28.
43 ROXIN. Derecho penal..., p. 869.
 
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CP brasileiro), mas pensando equivocadamente que relações sexuais entre tio e


sobrinha o fossem. Em casos como esse, Roxin julga haver erro de proibição, já que
falta a consciência do injusto específico correspondente ao tipo concretizado.44
Quanto à posição sistemática da consciência da ilicitude Roxin se posiciona
ao lado das teorias da culpabilidade, consagrada pelo legislador alemão de 1975,
rejeitando a tese de que ela seria um requisito do dolo.
Contra os partidários da teoria do dolo, segundo os quais o conhecimento
da ilicitude seria indispensável nos delitos dolosos, Roxin argumenta que o
fundamento da punição nessas formas de delito não consiste na desobediência à
norma, mas sim em que o sujeito desdenha de forma intolerável dos interesses de
outros ou da comunidade.45
Conseqüentemente, como já antes revelamos, a consciência da ilicitude só
será relevante, no sistema apresentado por Roxin, para a verificação da culpabilidade
ou da responsabilidade do autor pelo injusto praticado. E essa relevância se infere na
medida em que a sua ausência, quando inevitável, poderá indicar que o agente não
era um destinatário idôneo da norma e, por isso, não culpável, ou, pelo menos, que a
sua punição não era necessária sob a ótica preventiva.

2.1.2 Repercussões dogmáticas do erro de proibição

Dito isso adentramos na analise das repercussões dogmáticas da falta de


consciência da ilicitude do fato, às quais nos referimos como erro de proibição. (art.
21 do CP brasileiro e § 17 do CP alemão)

                                                            
44 ROXIN. Derecho penal..., p. 871
45 ROXIN. Derecho penal..., p. 864
 
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Ao adotar a teoria da culpabilidade, Roxin não apenas concebe a


consciência da ilicitude como algo independente do dolo, mas justamente por isso já
não reconhece nela um requisito essencial para a configuração do fato punível. Com
efeito, nem sempre será relevante para a culpabilidade, ou para a responsabilidade,
que o agente do injusto doloso conheça a contrariedade desse fato ao direito. Como
bem ilustra Roxin, raciocinado aqui de forma bem semelhante à Jakobs como
veremos, a culpabilidade de quem infringe normas ético-sociais elementares não é
menor quando desconheça que transgride o direito que quando, para fazê-lo, tenha
de vencer escrúpulos jurídicos.46
Assim, ao contrário do que ocorre nos casos de erro de tipo, que sempre
importam na exclusão do dolo e por vezes até da culpa, nos casos de erro de
proibição só se decidirá no caso concreto, conforme a vencibilidade ou
invencibilidade do erro, se com ele concorre culpabilidade plena ou atenuada, ou se
exclui em absoluto a responsabilidade jurídico-penal.47
O modelo de Roxin, em perfeita harmonia com o disposto no §17 do CP
alemão, segundo o qual o erro de proibição invencível exclui a culpabilidade, concebe
a vencibilidade do erro de proibição como um pressuposto da ação culpável, ao lado
da imputabilidade. Com efeito, a idoneidade do sujeito para ser destinatário de
normas, ou acessibilidade normativa, que é a culpabilidade para Roxin, estará
excluída quando por perturbações psíquicas o agente se veja incapacitado de valorar
corretamente o fato que pratica, isto é; de compreender o seu caráter ilícito. Mas o
mesmo também ocorrerá quando por qualquer outra razão, como o contexto social
em que se formou, a cultura que pôde adquirir ou os seus déficits de formação, o
mandamento da norma simplesmente não for acessível ao sujeito.

                                                            
46 ROXIN. Derecho penal..., p. 864.
47 ROXIN. Derecho penal..., p. 864.
 
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Dessa forma, vale destacar, Roxin propõe que a investigação da


vencibilidade do erro, assim como da imputabilidade, se dê a partir das condições
individuais do sujeito, e não pela verificação da existência de um dever objetivo de
informar-se. Para esse autor, não é a omissão do agente em recolher informações
jurídicas que orientem suas ações o que fundamenta a culpabilidade, mas sim a sua
capacidade de ter acesso à proibição que porventura tenha descumprido. Citando um
exemplo seu, para a vencibilidade do desconhecimento de uma infração às leis de
produção e comercialização de vinho, o decisivo será o que o vinicultor acusado no
caso concreto poderia ter conhecido, e não o que um vinicultor ideal poderia ter
alcançado.48
Não obstante, o próprio Roxin reconhece que mesmo voltando a
investigação da acessibilidade normativa para o individuo concreto, raríssimas serão
as hipóteses de verdadeira inacessibilidade do indivíduo, imputável, à norma
descumprida. Afinal de contas, geralmente são muitos – e cada vez mais – os meios
de informação disponíveis. E se para a responsabilidade fosse suficiente a simples
possibilidade de o sujeito alcançar a consciência da ilicitude, a absolvição pelo erro de
proibição seria algo praticamente inviável e o direito retornaria por via oblíqua à
máxima “error iuris nocet”.
Por isso defende que a vencibilidade do erro de proibição não deva ser
excluída apenas pela absoluta impossibilidade do sujeito de alcançar a consciência da
ilicitude, mas sempre que o esforço necessário para tanto seja inexigível. Na primeira
hipótese, em se verificando essa total impossibilidade do sujeito alcançar a
consciência da ilicitude, ter-se ia a exclusão da própria culpabilidade. Na segunda,
quando o acesso à norma, embora possível, só possa ser atingido com um esforço
extremo, que não corresponde ao que a lei espera e cuja exigibilidade entorpeceria a

                                                            
48 ROXIN. Derecho penal..., p. 878-879.
 
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vida social, mesmo presente a culpabilidade ficará excluída a responsabilidade por


faltarem as necessidades preventivas da pena.49
A exclusão da pena pelo erro de proibição inevitável é, pois, explicada por
Roxin, ora como causa de exclusão da própria culpabilidade e ora como causa de
exclusão da responsabilidade. Embora a lei alemã trate da escusabilidade do erro de
proibição expressamente como uma hipótese de exclusão da culpabilidade, o autor
em comento admite, até como forma de garantir o devido âmbito de aplicabilidade
ao instituto, a possibilidade de, mesmo havendo culpabilidade reduzida, a
responsabilidade pelo erro ser excluída quando ele for tolerável sob pontos de vista
preventivos.50 Mais uma vez, assim como na interpretação que faz do §35 do CP
alemão, Roxin propõe uma interpretação extensiva para as referências legais à
culpabilidade, de modo que por elas se abarque todo o âmbito de responsabilidade
jurídico penal, além, portanto, do que pertence à culpabilidade propriamente dita
conforme seu sistema conceitual.
Como parâmetro para a exclusão da responsabilidade em função do erro,
Roxin indica o tratamento da matéria no artigo 20 do Código Penal suíço, segundo o
qual o erro quanto à ilicitude do fato será escusável quando o sujeito dispuser de
razões suficientes para supor o caráter permitido do fato.51 E ao analisá-lo, mais uma
vez revela a afinidade entre a sua noção de responsabilidade penal e a concepção de
Jakobs sobre a culpabilidade. Segundo Roxin, as razões do sujeito serão suficientes
quando por elas se satisfizerem as pretensões sociais de fidelidade ao Direito;
“quando a absolvição pela disponibilidade subjetiva do sujeito a observar o Direito
seja tolerável sem comoção da consciência jurídica geral”.52

                                                            
49 ROXIN. Derecho penal..., p. 879
50 ROXIN. Derecho penal..., p. 892.
51 ROXIN. Derecho penal..., p. 880
52 ROXIN. Derecho penal..., p. 880

 
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Finalmente, em se tratando de um erro de proibição vencível, tem lugar, nos


exatos termos do §17 inc 2 do CP alemão, similarmente ao disposto no artigo 21 do
CP brasileiro, uma redução facultativa do marco penal correspondente ao crime
doloso. O caráter facultativo dessa redução de pena, todavia, não deve ser
interpretado como uma possibilidade entregue à livre discricionariedade do Juiz, mas
segundo Roxin, sempre atrelado ao princípio da culpabilidade. Dessa forma, e
considerando que a diminuição de pena pelo erro de proibição evitável corresponde a
uma considerável redução da culpabilidade, pela boa fé do culpável, a diminuição se
impõe como regra.53.
Nota-se na assertiva de que a medida da pena não deve transpor o grau da
culpabilidade, que nela Roxin emprega o termo “culpabilidade” num sentido peculiar.
Como já antes ressaltamos, para Roxin a noção de culpabilidade como medida da
pena não se confunde com a noção de culpabilidade como fundamento da pena,
ainda que elas guardem entre si muita relação. Enquanto a culpabilidade como
fundamento da pena é definida em função apenas da idoneidade do sujeito para ser
destinatário de normas, e, portanto, como um juízo peremptório, que quase não
admite gradações, a culpabilidade como medida da pena é graduável e corresponde
ao conjunto de fatores que tem relevância para a magnitude da pena no caso
concreto.54 A culpabilidade para a medição da pena depende sobretudo dos critérios
previstos no §46 do CP alemão,55 que corresponde às nossas circunstâncias legais
agravantes e atenuantes, previstas entre os artigos 61 e 66 do CP brasileiro
A única hipótese na qual Roxin admite a inaplicabilidade da redução da
pena pelo erro de proibição evitável é quando as razões do erro revelem efetiva
hostilidade do culpável em relação ao direito. Esses casos, assevera, são muito

                                                            
53 ROXIN. Derecho penal..., p. 892
54 ROXIN. Derecho penal..., p. 813-814.
55 ROXIN. Derecho penal..., p. 814.

 
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infreqüentes e diante deles a negativa da diminuição da pena haveria de basear-se na


demonstração dessa hostilidade. Pois até mesmo nos casos de erro facilmente
vencíveis, em não se verificando hostilidade ao direito, não estará afastada a
diminuição da reprimenda.56

2.2 A consciência do ilícito e o erro de proibição segundo Günther Jakobs

2.2.1 Objeto e posição sistemática da consciência do ilícito

Também para Jakobs o objeto do conhecimento do ilícito é o injusto.


Portanto, para atingi-lo não basta a consciência da infração de princípios éticos, dos
bons costumes ou da decência. Jakobs o demonstra com um argumento a meu ver
preciso. A consciência do injusto se distingue da consciência do imoral, digamos
assim, mesmo na perspectiva do leigo, em face de suas conseqüências. Com efeito, ao
injusto corresponde como conseqüência uma reação oficial e a possibilidade dessa
reação é abarcada pela consciência do injusto.57
Isso não significa que a consciência do ilícito se confunda com a
consciência da sua punibilidade.58 Afinal, a punibilidade é apenas uma forma, entre
tantas outras, de reação ao ilícito. Em suma, não é necessária a consciência do caráter
penalmente relevante do ilícito que se pratica, mas apenas da sua contrariedade ao
Direito em geral.
Mas segundo Jakobs, para a surpresa de muitos, o conhecimento do injusto
é algo mais do que o simples conhecimento da contrariedade ao Direito da conduta.

                                                            
56 ROXIN. Derecho penal..., p. 892-893.
57 JAKOBS. Derecho penal..., p. 668
58 JAKOBS. Derecho penal..., p. 667.

 
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Envolve também o conhecimento do fundamento material da ilicitude, que é a


perturbação social que o fato ilícito enseja. Essa última noção não se concebe sob um
ponto de vista puramente subjetivo, como intima convicção do caráter perturbador
do ilícito. Pelo contrário, e aqui mais uma vez coincidindo com Roxin e Brodt, a
discordância do sujeito quanto à oportunidade da norma numa sociedade ideal para
ele não exclui a consciência da ilicitude, quando o sujeito conhece a importância da
norma no sistema de valores consagrados pela sociedade real na qual ele está
inserido.59 Em síntese, a consciência do caráter perturbador do injusto requer a
consciência de que por ele se fere um interesse socialmente reconhecido, mas não a
comunhão do autor a esse interesse. A oposição de consciência, também para Jakobs,
não exclui o conhecimento do injusto.
Jakobs também concorda com a célebre lição atribuída a Mezger segundo a
qual, de toda forma, o conhecimento do ilícito não terá em geral as características do
saber técnico, mas se conforma como um conhecimento próprio do leigo, atingível
pela valoração paralela do fato doloso na esfera do profano.60
Finalmente, e como afinal já revelamos no capítulo anterior, Jakobs concebe
a consciência do ilicitude com total independência em relação ao dolo, que ademais,
sequer é, para esse que foi discípulo de Welzel, um elemento configurador da
culpabilidade. Não apenas por imposição legislativa, mas também por considerá-la
mais justa, Jakobs está entre os que acolhem e defendem uma teoria da culpabilidade
no tratamento do erro de proibição. Sobre a importância da consciência da ilicitude
para a culpabilidade, isso é; sobre a relevância do erro de proibição segundo Jakobs,
trataremos no tópico seguinte.

                                                            
59 JAKOBS. Derecho penal..., p. 668.
60 JAKOBS. Derecho penal..., p. 669.
 
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2.2.2 O tipo de norma violada como parâmetro para as conseqüências dogmáticas do


erro de proibição

As conseqüências decorrentes da falta de consciência da ilicitude


apresentadas por Günther Jakobs, também não destoam do tratamento legal
conferido à matéria no § 17 do CP alemão. De forma análoga ao previsto no artigo
21 do CP brasileiro, que tal qual o germânico se influenciou por uma teoria da
culpabilidade, a falta da consciência da ilicitude não excluirá a culpabilidade em todo
caso, mas apenas e sempre que essa ausência for inevitável. Em sendo evitável a
ausência de compreensão do injusto, como explica Jakobs, a medida da culpabilidade
será determinada conforme padrões axiológicos que se comportam elasticamente, de
modo que tal fato psíquico poderá ou não ser considerado um indício de
culpabilidade diminuta.61
Não obstante esse ponto de partida, afinal incontornável, Jakobs elabora as
razões determinantes do tratamento conferido pela lei ao erro de proibição de
maneira realmente peculiar, perfeitamente coerente com seu modelo puramente
funcional de culpabilidade.
Como já se disse, Jakobs, assim como Roxin, reconhece no ordenamento
jurídico, e não na moral ou em outras valorações sociais do comportamento, o
substrato da consciência da ilicitude. Todavia, a doutrina de Jakobs sobre o erro de
proibição leva em conta uma classificação preliminar àquela baseada na evitabilidade.
Jakobs também classifica o erro de proibição, com conseqüências determinantes para
a verificação da sua evitabilidade, a partir do tipo de norma sobre a qual recaia.
Assim, distingue entre o erro sobre as normas centrais, que constituem os
fundamentos de determinada ordem jurídica e que, como tal, só são revogáveis pela

                                                            
61 JAKOBS. Derecho penal..., p. 656.
 
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via revolucionária, do erro que recaia sobre as normas que compõem o âmbito
“disponível” desse ordenamento, para usar a expressão do autor.62 Essas últimas são
as normas cujo conteúdo não está desde logo determinado pelos princípios básicos
do ordenamento e que, portanto, são modificáveis em um processo de evolução,63
conforme as contingências sociais, diríamos.
A inevitabilidade do erro sobre normas que componham o núcleo
fundamental de um ordenamento jurídico só é concebível para Jakobs em situações
muito excepcionais. Praticamente só reconhece a escusação de um erro dessa
natureza quando partir de pessoas pertencentes a outras culturas. Pois para Jakobs
pessoas assim poderiam ser reconhecidas de forma análoga aos inimputáveis. Em
razão de sua “socialização exótica”, as conduta e motivações que manifestam não
servem de parâmetro para as expectativas sociais a respeito do comportamento geral;
elas não podem “servir de norma”. Assim, conforme os exemplos de Jakobs, a idéia
de que uma pessoa tenha suposto equivocadamente que, por princípio, a alta traição,
a coação ao Parlamento, o homicídio, as lesões ou até mesmo os danos estejam
permitidos só é aceitável se esta pessoa é cometida de grave perturbação psíquica ou
se seu estado psíquico é determinado pela estranheza de sua socialização.64
A escusa do erro sobre “os fundamentos”, além desse caso “extremo de
inimputabilidade”, poderia também se admitir na hipótese ainda mais rara da
consciência e motivação do agente ter sido determinada por regimes de governo
totalitários, marcados pela injustiça. Jakobs se lembra aqui do nacional socialismo, o
regime nazista, cuja atuação instigadora de comportamentos essencialmente injustos,
eficiente ao ponto de tratá-los como legais, seria idônea à exculpação do sujeito que
realiza suas demandas. Pois o contexto social imposto por regimes como esse, se

                                                            
62 JAKOBS. Derecho penal..., p. 659-660.
63 JAKOBS. Derecho penal..., p. 661
64 JAKOBS. Derecho penal..., p. 659-660.

 
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bem possa deixar subsistente o conhecimento da antijuridicidade pelo autor de uma


determinada ofensa, dificulta sobremaneira o conhecimento do significado de
infração da norma. Efetivamente, não viola as expectativas sociais de
comportamento o fato de que alguém tenha se motivado conforme as ordens
emanadas do regime, mas pelo contrário, não se pode esperar de qualquer um a
insubordinação a elas.65
Todos os demais casos de erro de proibição relativos às normas
fundamentais serão considerados evitáveis, como peremptoriamente propõe Jakobs.
Pois a evitabilidade do erro, para Jakobs, corresponde à responsabilidade por ele. E o
conhecimento das normas nucleares e fundamentais do ordenamento jurídico seria,
por princípio, responsabilidade de todo imputável;66 de todo igual, diríamos.
Já nos casos de erro quanto às normas do âmbito disponível, mutável, do
ordenamento jurídico, há de se proceder diversamente. Não apenas, ou não
exatamente, por que o erro quanto a essas normas seja mais freqüente ou mais
compreensível, mas antes de tudo por que nesses casos a pena cumprirá função
diversa. A punibilidade de quem age em erro quanto às normas do âmbito disponível
não visa a estabilização do conteúdo prescritivo dessas normas, mas de algo que em
geral quem atua em erro não questiona: o fundamento de validade da norma
descumprida. Por fundamento de validade se entende a obrigatoriedade própria de
todas as normas positivas, uma vez promulgadas segundo o procedimento previsto
para tanto.
                                                            
65JAKOBS. Derecho penal..., p. 660.
66 JAKOBS. Derecho penal..., p. 660. O que seja um erro sobre os fundamentos – ou quiçá a
inescusabilidade do erro, pensamos – não se determina, segundo Jakobs, apenas pelo tipo de normas
sobre as quais incide, mas também segundo o âmbito vital no qual por muito tempo tenha se
desenvolvido o autor. Assim, o erro quanto às normas profissionais será um erro fundamental para o
autor que tenha vivenciado o âmbito profissional regulado por essas normas. Por exemplo, inclui-se
entre os fundamentos a proibição de aceitação de dádivas, dirigida ao funcionário público, bem como
a proibição de revelar o segredo fiscal, dirigida ao servidor de repartição fazendária, ou a proibição de
caçar em determinados períodos, dirigida aos pescadores. (p. 660-661)
 
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Isso porque, em se tratando de normas não determinadas pelos princípios


básicos do ordenamento e que são modificáveis sem prejuízo deles, é irrelevante que
seus destinatários as aceitem por seu conteúdo, mas sim por seu fundamento de
validade; que é a decisão do legislador pelo devido procedimento. Afinal de contas,
pela mesma decisão do legislador os destinatários da norma haverão de aceitar sua
eventual revogação. Assim compreendidas as coisas, seria até desinteressante a
internalização do conteúdo das normas “disponíveis” na consciência de seus
destinatários, posto que isso dificultaria suas oportunas mudanças.67
Os erros sobre o âmbito disponível do ordenamento jurídico poderão ser
desculpáveis, mesmo quando não se verifique um estado psíquico especial do agente,
não importando em responsabilidade e, afinal, em necessidade de pena, por que o
autor que por ele se conduz em geral não questiona, plenamente ou em absoluto, o
fundamento de validade da norma descumprida. Sendo assim, a culpabilidade de
quem incorre nesse tipo de erro dependerá apenas do risco que o seu
comportamento possa ter gerado para o direito modificável, isto é; da sua idoneidade
para comprometer o próprio escopo do procedimento legislativo, que é o
fundamento de validez desse âmbito disponível do direito.68
A medida da tolerância do erro quanto ao âmbito disponível do
ordenamento e, portanto, os parâmetros determinantes da exclusão da culpabilidade
nos termos do §17 do CP alemão, em tudo correspondente ao art. 21 do CP
brasileiro, haverão de ser determinados, segundo Jakobs, de forma análoga à
verificação do risco permitido, isto é; recorrendo-se à ponderação de interesses e do
que é usual.69

                                                            
67 JAKOBS. Derecho penal..., p. 661.
68 JAKOBS. Derecho penal..., p. 661-662.
69 JAKOBS. Derecho penal..., p. 662.

 
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Nos casos de culpabilidade diminuída pelo erro de proibição evitável,


Jakobs, assim como Roxin, admite que a pena possa ser imposta abaixo do limite
mínimo cominado.70 Como se vê, a discordância de ambos sobre a possibilidade de a
pena ser fixada aquém da medida da culpabilidade, reflete muito mais uma
divergência terminológica do que de fundo. Simplesmente Jakobs não admite essa
disparidade por que em sua concepção culpabilidade e necessidade de pena são
conceitos coincidentes. Todavia, as conclusões práticas a que chegam um e outro
autor quanto à medida da pena, são fundamentalmente semelhantes.

3. OPOSIÇÃO COMUM À PROPOSTA DE ADOÇÃO DA TEORIA DO


DOLO NO TRATAMENTO DO ERRO NO DIREITO PENAL ESPECIAL

3.1 Considerações gerais sobre a teoria do dolo

Antes de adentrarmos na problemática a ser enfocada no presente capítulo,


é impositivo que contextualizemos o surgimento das chamadas “teoria do dolo” e
“teoria da culpabilidade” na doutrina alemã. Tal se deu sob o horizonte legislativo do
Código alemão de 1871, que só conferia relevância ao erro de fato, como causa
excludente no dolo, no seu §59, não reconhecendo nenhuma relevância ao que hoje
nos referimos como erro de proibição. Partia-se da distinção entre erro de fato e erro
de direito, sendo o primeiro excludente do dolo e o segundo, a princípio, irrelevante
conforme a máxima “error iuris nocet”. Para amenizar as conseqüências
despropositadas que esta distinção poderia trazer, já que o fato jurídico penalmente
relevante muitas vezes é composto de elementos de conteúdo jurídico, quase sempre

                                                            
70 JAKOBS. Derecho penal..., p. 683.
 
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definidos por outros ramos do direito, parcela da doutrina defendia, como informa
Brodt, a equiparação do erro de direito extrapenal ao erro de fato.71
Mas tampouco essa solução se firmou como satisfatória. Primeiramente pela
dificuldade em se delimitar o que seja o erro de direito penal em relação ao que seja
um erro de direito extrapenal. Depois, por que o fato de uma matéria estar regulada
exclusivamente no âmbito do direito penal não justifica por si só a irrelevância do
erro que sobre ela recaia. Como argumenta Frank72, citado por Roxin, não é razoável
atribuir conseqüências diversas ao erro sobre as condições e limites da auto tutela,
correspondente ao nosso desforço necessário, e ao erro sobre os pressupostos da
legítima defesa, simplesmente pelo fato daquele instituto estar previsto no Código
Civil e este no Código Penal.73
Acabou se impondo, segundo Roxin, a opinião científica de que também o
erro de proibição deve desculpar o agente, pelo menos quando inevitável. Não
obstante, permaneceu a divergência sobre a relevância do erro evitável sobre a
ilicitude do fato. E por traz de uma e outra posição divergente estão justamente as
teorias do dolo e da culpabilidade.
Para a primeira, que teve em Binding um de seus mais consistentes
defensores, a essência do delito consistiria na rebelião consciente do sujeito contra a
norma. Consequentemente, só haveria culpabilidade dolosa – nota-se que tal
concepção parte de um modelo causalista de delito – quando o sujeito atuasse com
efetiva consciência da ilicitude do seu comportamento. Essa teoria converte, assim, a

                                                            
71 BRODT. Da consciência da ilicitude..., p. 56.
72 FRANK, StGB, 1931, §59 III 2 apud ROXIN, Derecho penal..., p. 862.
73 No fundo, como bem observa Jakobs, a fluidez e imprecisão da distinção entre erro de fato e erro

de direito, serviu para que o Tribunal Imperial (Reichsgericht) decidisse conforme o “sentimento
jurídico”, considerando “extrapenal” o erro “sentido” como exculpante, e “penal” o inescusável.
(JAKOBS. Derecho penal..., p. 658) Nisso a jurisprudência do Reichsgericht muito se aproxima, em seus
resultados, da concepção de Jakobs sobre a relevância do erro de proibição, baseada em que ele recaia
sobre normas fundamentais ou sobre normas “disponíveis” do ordenamento jurídico.
 
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consciência da ilicitude em pressuposto do dolo. Daí a sua designação: “teoria do


dolo”.74 Segundo essa concepção, todo erro quanto à ilicitude do fato, evitável ou
não, conduzirá a descaracterização do crime e conseqüente impunidade do fato
sempre que não houver previsão legal de correspondente forma culposa.
Em oposição a ela, a teoria da culpabilidade, determinada pelo modelo
finalista de delito, não reconhece na consciência da ilicitude um pressuposto do dolo
e tampouco necessariamente da culpabilidade. Segundo esta concepção, que acabou
sendo acolhida no Código alemão de 1975, em seu §17, e também no Código
brasileiro, no seu artigo 21, é tão merecedor de pena quem descumpre a norma por
absoluta indiferença ao direito que quem o faz consciente de descumpri-lo.75 O erro
de proibição só excluirá a culpabilidade e, com ela o crime, se inevitável, sendo que,
quando evitável, poderá atenuar a pena correspondente ao crime doloso.
Digna de nota a respeito dessa questão é posição de Jakobs, que mesmo
acolhendo e reconhecendo a guarida legislativa à teoria da culpabilidade, que ele trata
como teoria elástica da culpabilidade, admite ser a teoria do dolo a mais sólida,
embora não seja a mais justa.76

3.2 A proposta de aplicação da teoria do dolo no direito penal especial e sua


crítica por Claus Roxin e Günther Jakobs

Ambos os autores focalizados neste trabalho convergem na rejeição a


proposta de conferir um tratamento unitário para o erro no direito penal especial,

                                                            
74 ROXIN. Derecho penal..., p. 863.
75 ROXIN. Derecho penal..., p. 863.
76 JAKOBS. Derecho penal..., p. 663.

 
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acessório ou secundário,77 que se daria nos termos da teoria do dolo; com exclusão
do dolo independentemente do erro do agente, evitável ou inevitável, recair sobre as
circunstâncias do fato ou sobre a sua ilicitude. Trata-se de proposta capitaneada por
Klaus Tiedemann, a partir da constatação de que nesse âmbito do direito penal os
tipos de delito se constituem essencialmente a partir de elementos normativos, de tal
forma que a consciência da prática do fato típico, pelo agente, pressupõe a
consciência simultânea da sua ilicitude. Essa proposta, como bem observa
Tiedemann, embora não reconhecida na Alemanha foi concretizada pelo legislador
português, que equipara o erro de proibição ao erro sobre o fato em todo caso no
qual a consciência da ilicitude em abstrato seja racionalmente indispensável para
tornar o agente consciente da realização do tipo concreto de injusto que pratica.78
A crítica de Jakobs leva em conta que, por detrás da proposta de limitação
da teoria da culpabilidade ao direito penal central, descansa a tese segundo a qual a
consciência da realização dos elementos objetivos do tipo no direito penal central
importa quase sempre na consciência da perturbação social que o fato gera, enquanto
no direito penal especial ou contravencional o fato típico não possui coloração ético-

                                                            
77 Segundo Jorge de Figueiredo Dias, a distinção, sempre relativa, entre o que se pode chamar direito

penal clássico e o direito penal secundário, ou entre direito penal de justiça e direito penal
administrativo vai buscar sua legitimação última à dupla função desempenhada pelo homem no
contexto do Estado de Direito. Em suas palavras: “surgindo embora sempre como concreto e
socializado, o homem realiza a sua personalidade na dupla esfera da sua actuação pessoal e da sua
actuação comunitária, sem que uma se sobreponha à outra no seu relevo ou na sua validade originária;
à proteção daquela se dirige o direito penal clássico (e, só nesse sentido, “primário”), à proteção desta
o direito penal administrativo (hoc sensu, “secundário”)”. (FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Para uma
dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal económico e
social português. In: PODVAL, Roberto (org.). Temas de direito penal econômico. p. 45.)
78 TIEDEMANN, Klaus. Sullo stato della teoria dell’errore, com particolare riferimento al diritto

penale dell’economia e alle leggi speciali: considerazioni di diritto comparato e conclusioni. In Rivista
Trimestrale di Diritto penale dell’economia, p. 85-86. Com efeito, assim dispõe o art. 16, I, do CP português:
“O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo
conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude
do facto, exclui o dolo.”
 
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social, de modo que o conhecimento dos seus elementos não importa na consciência
de um mandamento que se descumpre.
Mas como bem observa esse autor, tal diferença entre as normas penais
incriminadoras, que ele reconhece entre as normas fundamentais e as normas
pertencentes ao âmbito disponível do ordenamento jurídico, se bem é relevante para
o tratamento do erro, não se dá de forma clara entre as que compõem o direito penal
central e o direito penal especial.79 Sobretudo, segundo Jakobs, não são disponíveis
todas as normas positivadas fora do Código Penal. Segundo ele, são tão indisponíveis
os preceitos de direito penal tributário quanto aquele proibitivo do estelionato.
Ademais, o caráter fundamental ou disponível não varia apenas conforme o
conteúdo do preceito, mas também conforme aquele que descumpre. No exemplo de
Jakobs, para os comerciantes a proibição de vender bebidas alcoólicas a crianças ou a
pessoas ostensivamente embriagadas será sempre fundamental, independentemente
da sua posição sistemática. Por essa razão, principalmente, um tratamento
diferenciado do erro não encontra justificativa na dicotomia entre direito penal
central e direito penal especial.80
Já Roxin, mesmo reconhecendo que a teoria da culpabilidade é menos
convincente quanto à sua retidão no âmbito do direito penal acessório, no qual o
conhecimento das circunstâncias fáticas determinantes do injusto na maioria das
vezes não permite a dedução da sua lesividade social, prefere a aplicabilidade ampla
da teoria da culpabilidade, por razões de política criminal. Argumenta que a
imposição de absolvição em todo caso de ignorância da norma, conforme pleiteia a
teoria do dolo, à falta de correspondente forma culposa, paralisaria os esforços por
conhecer o direito e importaria numa revogação prática de todas as normas que
ninguém conhece. Preferível é, como arremata Roxin, resolver os casos de erro de
                                                            
79 JAKOBS. Derecho penal..., p. 666.
80 JAKOBS. Derecho penal..., p. 666.
 
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proibição nesses âmbitos à luz de considerações sobre a necessidade de pena,


fazendo uso generoso da possibilidade de atenuação da reprimenda e, quando se
puder renunciar totalmente à pena, julgar invencível o erro de proibição, conforme
critérios normativos.81

CONCLUSÕES

1 O funcionalismo, tanto na perspectiva de Roxin quanto na de Jakobs, concebe a


culpabilidade orientando-se mais para a sociedade que para as contingências do
sujeito culpável, e sob essa perspectiva substitui a tradicional referência à
reprovabilidade pela noção de responsabilidade como fundamento da pena.

2 A categoria “responsabilidade” tal qual apresentada por Roxin é análoga à


culpabilidade tal qual concebida por Jakobs, já que ambas fundam a punibilidade do
injusto na responsabilidade do seu autor, a ser apurada conforme a necessidade de
pena.

3 Embora Roxin e Jakobs discordem sobre a possibilidade da pena ser fixada em


patamar aquém da medida da culpabilidade, essa divergência é meramente
terminológica. Ambos, afinal, concordam que a necessidade é, a um só tempo,
condição e limite da pena.

4 Para Roxin e Jakobs o objeto da consciência da ilicitude é a contrariedade do fato


ao direito em geral, da forma como possa ser intuída ou deduzida por um leigo. É,

                                                            
81 ROXIN. Derecho penal..., p. 865.
 
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portanto, mais que a consciência do caráter imoral ou socialmente danoso do fato, e


menos que a consciência da sua punibilidade.

5 A evitabilidade ou inevitabilidade do erro de proibição é determinada, segundo


Roxin, apenas segundo a razoabilidade dos motivos ou circunstâncias que o
determinaram, enquanto para Jakobs tal juízo obedecerá também, mas
preliminarmente, ao tipo de norma desconhecida. Em se tratando de uma norma
fundamental o erro será por princípio evitável, salvo nos casos especiais em que pela
cultura exótica do agente esse possa ser tratado como um inimputável. Já em se
tratando de normas componentes do âmbito disponível do ordenamento jurídico, a
evitabilidade ou inevitabilidade do erro dependerá da sua tolerância social,
determinada segundo critérios análogos aos da delimitação do risco permitido.

6 Tanto Roxin quanto Jakobs rejeitam a limitação da teoria da culpabilidade ao


direito penal nuclear, e a acolhida da teoria do dolo no direito penal especial, seja por
razões de política criminal, seja por que não há uma distinção peremptória entre os
tipos de norma que compõem um e outro âmbito.

REFERÊNCIAS

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enero de 1998. Traducción de Claudia Lopez Dias. Bogotá: Universidad Externado
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Cancio. Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a obra de Günther Jakobs.
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DIREITO,
AUTONOMIA PRIVADA
E PESSOA

 
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A AUTONOMIA PRIVADA NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS: A


NECESSÁRIA CONCILIAÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS NA PÓS –
MODERNIDADE

Fernanda Sabrinni Pereira1


Juliana Chioca Lopes Marteleto2

RESUMO

A evolução social mostra a necessidade de interpretação mais adequada dos


princípios contratuais em razão do paradigma da pós-modernidade, momento em
que se passa a denominar a velha autonomia da vontade como princípio da
autonomia privada. Não se trata de um novo princípio e sim de uma reinterpretação,
mais apropriada às exigências trazidas pelas modificações sociais. A autonomia da
vontade - característica do século XIX – imprime destaque ao individualismo
jurídico, que outorgava ao homem direitos naturais anteriores aos da sociedade,
fazendo do indivíduo a fonte do direito que tinha como fim a coexistência das
vontades individuais. Assim, a análise filosófico-individualista da época, aliada à
doutrina econômica liberal, influenciaram, como era de se esperar, no pensamento
jurídico dominante ao tempo da redação do Código Civil Francês - berço do
princípio da autonomia da vontade. Tal princípio espelhava, naquele contexto, a
liberdade correspondente aos anseios burgueses de tornarem-se independentes do
poder feudal, seus privilégios e imunidades. No sistema do individualismo liberal, em
que vigorava a ampla e irrestrita liberdade contratual, não havia espaço para debater
questões como a justiça contratual, equidade e equilíbrio, uma vez que o fator
determinante era tão somente a livre vontade dos contratantes, por isso, indiferente
era para as partes envolvidas a superveniência ou não de causas imprevisíveis.
Todavia, instala-se a crise da concepção voluntarista e a necessidade veemente de se
limitar a autonomia da vontade a partir de fundamentos constitucionais. Neste
escopo, o trabalho pretende debater a necessária conciliação dos princípios civis
constitucionais, na medida em que a justiça contratual e a boa-fé devem conviver
                                                            
1 Pós-graduanda em Direito Civil pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail:
fersabrinni@yahoo.com.br. Link plataforma lattes: http://lattes.cnpq.br/7834491849893652 .
2 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: juchioca@terra.com.br.

 
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com a liberdade e a responsabilidade individual, resgatando a dignidade da pessoa


humana e os direitos sociais, conforme estampados na Constituição Federal. Utiliza-
se, para isso, o método dedutivo argumentativo.

Palavras-Chave: Autonomia privada; princípios contratuais; pós-modernidade.


Keywords: autonomia privada; contractual principles; pos-modernity.

INTRODUÇÃO

As inevitáveis transformações que ocorrem na sociedade e as novas


exigências daí advindas colocam em dúvida a antiga distinção entre Direito Público e
Direito Privado. Por isso, alguns autores se referem à publicização do Direito
Privado. Já, para outros, se trata exatamente de uma modificação estrutural do
Direito Civil. Nesta seara, o Direito Civil deixa de ter como figura central apenas o
Código Civil, passando a ser interpretado com base na Constituição Federal.
Assim, o que se observa é que a vontade individual não deve imperar de
forma absoluta, pelo contrário, deve haver uma busca dos princípios fundamentais
garantidos constitucionalmente a fim de que se preserve a supremacia da dignidade
da pessoa humana também no ramo do Direito Privado, harmonizando assim o
Direito Civil e a Constituição.
Dessa relação nasce o chamado Direito Civil Constitucional, com a missão
de conciliar o Direito Civil aos princípios constitucionais, fazendo com que a norma
constitucional seja integrante do sistema civil, compreendendo o papel de regra
hermenêutica e norma vinculante de comportamento, que incide sobre as relações
privadas e tutela seus valores fundamentais, em especial a pessoa humana.
A publicização ou socialização do Direito Civil compreende a idéia de
ingerência dos poderes públicos no campo das relações privadas, em detrimento da
 
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autonomia da vontade individual, sendo que este moderado intervencionismo


administrativo nem sempre reponde a um aumento do poder estatal, sendo muitas
vezes uma reação do Estado para defender a pessoa e a sociedade frente às forças
sociais fomentadas pelo regime de economia liberal.
O contrato não pode submeter-se apenas as vontades das partes, há uma
série de valores e princípios que devem ser respeitados para que se alcance a utilidade
social que lhe é inerente de forma justa e equilibrada.

1 O DIREITO PRIVADO NA PÓS-MODERNIDADE

A expressão pós – modernidade denota o sentido de mudança, de crise e de


variabilidade do tempo e Direito atuais.
Com base na doutrina de Erik Jayme3 esse contexto é marcado pela era de
globalização, de desregulamentação, de privatizações, de forte exclusão social, de
individualismo e mercado eufóricos, de convivência e intolerância de valores, ou seja,
uma época em que o Direito como ciência da realidade social encontra-se em crise e
simultânea evolução.
O autor apresenta quatro características que marcariam a pós-modernidade:
a primeira traduz o pluralismo de fontes legislativas para regular fatos, tutelar sujeitos
- tantas vezes difusos - e relações múltiplas que propiciam o nascimento de um novo
Direito fundamentado no diálogo de fontes. A segunda característica é a comunicação,
entendida como um valor máximo da pós-modernidade, associado à valorização do
passar do tempo nas relações humanas e do Direito como instrumento de
comunicação. Em seguida, é apresentada a narração como conseqüência da
                                                            
3 Claudia Lima Marques, Direito na Pos-modernidade e a teoria de Erik Jayme, Revista Faces do

Multiculturalismo Teoria – Política – Direito, 2006


 
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comunicação. Significa a admissão de um novo método de elaboração de normas


legais, não mais normas que regulem condutas e sim normas que traduzam objetivos,
princípios e finalidades em vista da interpretação teleológica e efetividade das
normas. A última característica seria o reconhecimento de elementos sociais,
ideológicos e outros fora do sistema no discurso jurídico. Daí, os direitos humanos
passam a ser entendidos como os novos e únicos valores seguros a serem utilizados
na busca da equidade.
Segundo essa ótica, nasce um novo Direito privado a partir da inclusão dos
direitos humanos, enquanto normas fundamentais nas constituições. O Direito
assume um novo papel social fixando limites à intervenção do Estado, oferecendo
proteção ao indivíduo e inibindo abusos, mas especialmente incentivando ações do
Estado na busca da equidade e da igualdade material.
Para o autor, conforme menciona Claudia Limas Marques, a grande herança
do Direito privado para o século XXI seria a autonomia e transparência, isto é, que o
Direito do futuro vise preservar a autonomia e a liberdade dos indivíduos,
assegurando a transparência e a informação, que são a chave da autodeterminação
daquele que é sujeito (e não objeto) de direitos, o cidadão.
A pós-modernidade seria um paradigma que exprime a antítese aos modelos
da época moderna, que traduz uma ruptura com a experiência dos últimos séculos,
que questiona as idéias próprias do Iluminismo. O racionalismo, o individualismo, a
subjetividade jurídica e o formalismo passam a dar lugar ao pluralismo das fontes, as
soluções dentro de um mesmo sistema, a humanização do indivíduo e a
constitucionalização da sociedade civil. Não é a realidade que está em crise e sim os
modelos mentais de compreensão dessa realidade.
Sendo a sociedade pós-moderna pluralista, complexa, marcada pela
mundialização da economia e massificação dos meios de comunicação, os modelos
jurídicos até então vigentes, herdados de uma sociedade moderna, não mais se
 
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apresentam aptos para responder aos desafios desse atual desenvolvimento. Sob a
égide de princípios jurídicos voltados à maior eficácia, garantia e legitimidade em
matérias privadas, os sistemas são desconstruídos.
No contexto atual, a superação do paradigma da modernidade, na órbita
jurídica, pode ser verificada na constitucionalização dos princípios fundamentais do
Direito privado. Passaram a constar da Constituição direitos humanos individuais
antes previstos somente pelo ordenamento privado, o que provocou uma
modificação da visão do Direito Civil e do próprio Código Civil, surgindo a chamada
publicização ou socialização do Direito particular. Aí nasce o direito civil
constitucional com a missão de harmonizar o Direito Civil aos princípios da
Constituição. Eles passam a incidir sobre as relações privadas e sobre a tutela dos
seus valores fundamentais, em especial, a pessoa humana.
O Direito privado brasileiro necessita avançar em suas teorias e reforçar
paradigmas, valores sociais e éticos para alcançar a justiça diante das novas
necessidades da sociedade contemporânea, de uma pós-modernidade – mesmo em
países emergentes – surpreendentemente aprofundada e destruidora das bases,
crenças e instituições comuns4. Nesse contexto, a autonomia da vontade sede espaço
para a autonomia privada.

2 A TRANSIÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE PARA A


AUTONOMIA PRIVADA

                                                            
4Claudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais, 2006, p. 209/210. 


 
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A autonomia da vontade, filha do liberalismo econômico, quando analisada


sob o contexto atual destoa significativamente do fundamento com o qual se edificou
desde a época de sua consagração.
Isso porque, “a massificação das relações sociais e a reação que se operou com o
surgimento do chamado Estado Social conduziram a uma revalorização do homem, reclamando a
revisão dos institutos clássicos do Direito Civil5”.
A evolução social mostra a necessidade de nova interpretação, mais
adequada aos novos anseios sociais característicos da pós – modernidade, momento
em que se passa a denominar a velha autonomia da vontade como princípio da
autonomia privada. Não se trata de um novo princípio e sim de uma reinterpretação,
mais adequada às exigências trazidas pelas modificações sociais.
Importante, pois, explicar como se deu essa nova necessidade e porque a
autonomia da vontade não mais respondia aos negócios jurídicos.
A autonomia da vontade é característica do século XIX, no qual se
destacou o individualismo jurídico que outorgava ao homem direitos naturais
anteriores aos da sociedade, fazendo do indivíduo a fonte do direito que tinha como
fim a coexistência das vontades individuais. Assim, a análise filosófico-individualista
da época aliada à doutrina econômica liberal influenciaram, como era de se esperar, o
pensamento jurídico impetrante ao tempo da redação do Código Civil Francês, berço
do princípio da autonomia da vontade, que espelha a liberdade correspondente aos
anseios burgueses de tornarem-se independentes do poder feudal, seus privilégios e
imunidades6.
No sistema do individualismo liberal, no qual vigorava a ampla e irrestrita
liberdade contratual, não havia espaço para debater questões como a justiça
contratual, equidade e equilíbrio, uma vez que o fator determinante era tão somente a
                                                            
5 Heloisa Carperna, Abuso de direito nos contratos de consumo, 2001, p. 11.
6 Rubén S. Stiglitz, Autonomía de la voluntad y revisión del contrato, 1992, p. 10.
 
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livre vontade dos contratantes, por isso, indiferente era, para as partes envolvidas, a
superveniência ou não de causas imprevisíveis. O contrato era lei entre as partes, de
acordo com o princípio do pacta sunt servanda.
Observou-se, por conseguinte, uma crise da concepção voluntarista e a
necessidade veemente de se limitar a autonomia da vontade com fundamentos
constitucionais. Dessa forma, nas obrigações contratuais, o fundamental é ter em
mente a possibilidade atribuída pelo ordenamento às próprias partes de “autonormar-
se7” na esfera privada, desde que respeitados os limites e garantias fundamentais.
Portanto, trata-se de uma decadência da autonomia da vontade provocada
pela modificação e evolução dos anseios sociais uma vez que a autonomia privada
melhor se adéqua à diferente realidade pós – moderna, pois conforme conclui Rubén
S. Stiglitz, “o individualismo não admite racionalmente a necessidade de que o juiz
revise o contrato, com fundamento em que este é a resultante de um acordo entre
iguais e livres e, portanto, o acordado só é passível de ser modificado pelas mesmas
partes contratantes, celebrando outro contrato8”.
Conforme esclarece Fernando Noronha, o “princípio da autonomia
privada” é expressão que tende a substituir aquela de “princípio da autonomia da
vontade”, cunhada por Gounot em 1912, para caracterizar a concepção individualista
e liberal que ao seu tempo imperava.9
Embora alguns países ainda utilizem o termo autonomia da vontade, como
a França, por exemplo, entende-se necessária a modificação da nomenclatura, por se
                                                            
7 Segundo Fernando R. Martins: “Destarte, pode-se observar até por etimologia que a expressão
autonomia significa “autonormar-se”. Assim, contextualiza a autonomia privada a liberdade das
pessoas em ditar regras primarias de convivência, desde que observados os limites traçados pelo
sistema. Por isso, diz-se que a autonomia privada deve ser entendida como um poder nos limites do
direito. 7 ( Fernando R. Martins, Estado de Perigo no novo codigo civil: uma perspectiva civil
constitucional. 2007, p. 10)
8 Autonomia de la voluntad y revision del contrato, 1992, p. 17.
9 O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé,

justiçacontratual, 1994, p. 111.


 
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tratar de momentos históricos divergentes que se traduzem em interpretações e


limites também diferentes.
Desta forma, pode-se dizer que o dirigismo contratual influenciou
diretamente na autonomia da vontade – entendida esta como a capacidade de firmar
obrigações, de estabelecer livremente qualquer negócio segundo seus próprios
interesses, fazendo com que deixasse de subsistir de modo absoluto para ceder lugar
à autonomia privada que se caracteriza como o poder da vontade no direito de um
modo “objetivo, concreto e real”10, isto é, a autonomia privada refere-se a capacidade de
auto regrar-se; sendo ela própria a capacidade negocial das partes em conformidade
com o princípio maior da dignidade da pessoa humana e segundo os ditames de uma
sociedade livre, justa e solidária, noções estas irrefutáveis no âmbito do Direito Civil
Constitucional. Ressaltando o caráter objetivo e externo da vontade no âmbito da
autonomia privada, esclarece Joaquim de Souza Ribeiro:

Tendo como ponto de referência uma teoria do negócio jurídico


inicialmente marcada, de modo dominante, pelo dogma da
vontade, assinala-se, com aquele conceito, uma tendência
evolutiva em que os parâmetros de valoração, em vários aspectos
da disciplina negocial (critério e limites do negócio, interpretação,
tratamento das patologias etc) se desprendem da vontade real do
declarante, dando relevo a certos elementos exteriormente
recognoscíveis. Os efeitos produzidos não correspondem
necessariamente aos que foram queridos, mas sim, aos que se
amoldam ao significado objectivo da conduta declarativa, ao
sentido que lhe é justificadamente atribuído por um declaratório
razoável (dotado do zelo, capacidade de entendimento e de
avaliação normais), em face dos seus termos e das circunstâncias
que a rodeiam.11
                                                            
10 AMARAL, Francisco, apud NANNI, Giovanni Ettore. A evolução do Direito Civil Obrigacional: a

concepção do Direito Civil Constitucional e a transição da autonomia da vontade para a autonomia


privada. Cadernos de Direito Civil Constitucional. Coord. Renan Lotufo. Caderno n° 2, Curitiba:
Juruá, 2001, p. 171.
11 Apud NANNI, Giovanni Ettore A evolução do Direito Civil Obrigacional: a concepção do

Direito Civil Constitucional e a transição da autonomia da vontade para a autonomia privada. Cadernos
de Direito Civil Constitucional. Coord. Renan Lotufo. Caderno n° 2, Curitiba: Juruá, 2001, p. 174.
 
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O princípio da autonomia privada possui importância significativa, pois não


é um simples princípio civil-constitucional expresso no ordenamento jurídico (art.170
CF/88), mas também conseqüente e necessário para regulação da ordem econômica,
em outras palavras, essencial no atual globalismo.
Outrossim, a autonomia privada consagrada no texto constitucional através
da livre iniciativa, deverá estar em estrita consonância com a dignidade da pessoa
humana, pois sendo esta última o valor superior da Constituição não poderá ser
declinada pela liberdade negocial das partes. Citando Massimo Bianca, esclarece
Giovanni Ettore Nanni:

[...] como toda liberdade, mesmo a liberdade negocial insere-se em


um contexto de valores constitucionais hierarquicamente
ordenados. Em particular, a evolução em senso social dos direitos
fundamentais tende a privilegiar a liberdade individual a
solidariedade social. A autonomia privada, portanto, pode e deve
ser controlada para garantir relações justas. E, concluindo o seu
pensamento, a liberdade negocial permanece de qualquer maneira
um valor constitucional e as suas limitações devem precisamente
ser socialmente justificadas resolvendo-se de outra forma na lesão
de um direito fundamental da pessoa.12

Assim, o princípio da autonomia privada é o meio pelo qual se regulamenta


a possibilidade de as partes contratantes, livremente, se auto regularem, seja em
contratos ou até mesmo em negócios jurídicos unilaterais. Insta ressaltar que essa
liberdade não é ampla, pelo contrário, limita-se ao negócio jurídico a ser celebrado,
portanto se sujeita a limitações que garantam relações justas e equilibradas.

                                                            
12 Apud NANNI, Giovanni Ettore A evolução do Direito Civil Obrigacional: a concepção do
Direito Civil Constitucional e a transição da autonomia da vontade para a autonomia privada. Cadernos
de Direito Civil Constitucional. Coord. Renan Lotufo. Caderno n° 2, Curitiba: Juruá, 2001, p. 180.
 
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Quanto a esses limites impostos à autonomia explica Pietro Perlingieri que


“não são mais externos e excepcionais, mas, antes, internos, na medida em que são expressão direta
do ato e de seu significado constitucional” 13.
Nos dizeres de Giselda Maria Fernandes Hironaka, o Direito Civil tinha o
seu pilar fundamental na autonomia privada, com fundamento na propriedade e
contrato, mas, na atualidade, verifica-se uma profunda alteração axiológica nesta
concepção. Trata-se de uma crise que visa resgatar a dignidade da pessoa humana e
os direitos sociais, conforme estampados na Constituição Federal. Um olhar atento
sobre os dias de hoje, demonstra claramente a ocorrência de uma funcionalização
dos institutos privados, na busca por adequá-los a um novo prisma.14
Note-se, porém, que alguns autores chamam a atenção para a “passagem da
autonomia privada ao interesse social”, o que demonstra a preocupação com o renascer da
codificação, mesmo que com uma roupagem modernizada, num novo texto. Nessa
medida, o direito voltado para os interesses privados, centrados apenas no indivíduo,
em oposição aos interesses sociais, situa-se na contramão da história, pela tendência à
superação da dicotomia direito público-direito privado, por meio da
constitucionalização dos institutos básicos do direito civil, a serem regulamentados
por estatutos próprios, mais específicos e por isso presumivelmente mais eficazes.15
Judith Martins-Costa16 salienta que atualmente, a autonomia contratual não
é mais vista como um impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos
princípios substanciais contidos na Constituição e às novas funções que lhe são
reconhecidas.

                                                            
13 Perfis do direito civil, 1997, p. 280.
14 Tendências do Direito Civil no Século XXI. Seminário Internacional de Direito Civil, 2001, p.
15. 
15 Carmen Lucia Silveira Ramos et al. Repensando fundamentos do direito civil brasileiro

contemporâneo, 2007, p. 17.


16 Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista Direito do Consumidor,

São Paulo, set-dez.,1992, n. 3, p. 141.


 
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Assim, desloca-se o eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade


à tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável para a concretização, entre
outros, dos princípios da superioridade do interesse comum sobre o particular, da
igualdade (em sua face positiva) e da boa-fé em sua feição objetiva.

3 A NECESSÁRIA CONCILIAÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS


CONTRATUAIS

Como bem salienta Ghestin17 no tópico conciliação necessária dos


princípios, que a justiça contratual e a boa-fé devem ser conciliados com a liberdade e
responsabilidade individual. E, como conseqüência, presumir que o contrato,
concluído pelos indivíduos livres e responsáveis, é dessa feita conforme à justiça. Mas
se trata de uma simples presunção. A constatação de um desequilíbrio entre as
prestações, ou a prova que uma das partes não está em situação de apreciar ou de
defender normalmente seus interesses justifica a intervenção dos poderes públicos.
A necessidade de justiça social e distributiva nas relações jurídico-privadas
deu origem à função social do contrato, pela qual devem os contratos espelhar uma
conformidade com os interesses superiores da sociedade, não mais se podendo
exercitar somente os interesses particulares, os quais devem ser adaptados às
exigências do bem comum, e se não o forem, terá o Estado legitimidade para
interferir na declaração de vontade das partes para que o negócio atinja seus fins
sociais. Sobre os fins do contrato marcado por essa socialidade assevera Mazeud y

                                                            
17 Traité de droit civil: les obligations: principes et caractères essentiels, ordre public,
consentement, objet, cause, théorie générale des nullités, 1980, p. 144. “Tradução livre da
autora.”
 
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Mazeud a necessidade de se “buscar o estado de equilíbrio que permita à personalidade


desenvolver suas iniciativas dentro dos limites ordenados por um evidente interesse social”18.
Desta forma, em prol da justiça social nos contratos, não é apenas o
momento da manifestação de vontade das partes quando do fechamento do negócio
que será relevante para a concretização da função social do contrato, devendo-se
observar ainda os efeitos deste mesmo contrato no meio social, assim como as
condições sócio-econômicas das partes que nele se encontram.19
É certo, no sentido aduzido por Humberto Theodoro Júnior, que os
princípios tradicionais, calcados na ótica liberal permanecem, porém, sopesados pelos
atuais. Ainda há a atuação prevalente da vontade dos contratantes, eis que,
inegavelmente, a autonomia privada é espaço dentro do qual as pessoas exercem, na vida
econômica, a liberdade que a Constituição declara e assegura como garantia fundamental20.
Todavia, a livre manifestação da vontade e a força criativa e obrigatória dos
contratos, enquanto elementos essenciais e existenciais dos contratos, devem
harmonizar-se com os novos imperativos da boa-fé, da função social e do equilíbrio
econômico.
O importante quanto à ascensão da autonomia privada como regulação
objetiva da vontade do agente segundo os interesses maiores da coletividade é deixar
registrado que há na atual conjuntura sócio-jurídica uma série de normas imperativas
que delimitam a liberdade contratual das partes em função da preservação dos
interesses sociais. Dentre elas pode-se citar o CDC, o Estatuto do Idoso, o novel
Código Civil e a própria Constituição Federal de 1988.

                                                            
18 Apud GOMES, Orlando. Contratos. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 32.
19 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4 ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais , 2002, p. 105/115.
20 O Contrato e sua Função Social, 2004, p. X.

 
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A noção de função social do contrato impõe por outro lado, não apenas a
relativização de sua força obrigatória (pacta sunt servanda), mas requer ainda um padrão
de comportamento para que não haja relações contratuais injustas, o que significa
que para atender sua função social o contrato deverá ser ao mesmo tempo comutativo,
justo e equilibrado, isto é, deverá ele espelhar uma relação jurídica equilibrada na qual os
direitos e deveres de cada uma das partes estejam em condições de equivalência, o
que em última instância quer dizer que em função desse caráter social, deverá o
contrato estar em harmonia com os ditames constitucionais da dignidade da pessoa
humana e da livre iniciativa para que prevaleça o bem comum.
E essa necessidade de justiça social e distributiva nas relações jurídico-
privadas, deu origem a chamada função social do contrato, tendo o novel Código Civil lhe
reservado tratamento expresso em seu art. 420, que dispõe: “A liberdade de contratar
será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
A função social não mais representa um mero principio de garantia de
circulação de riquezas e sim atende ao necessário estabelecimento de relações
jurídicas obrigacionais justas e equilibradas. O contrato deve espelhar uma
conformidade aos interesses maiores da sociedade e não apenas interesses
unicamente privados. A exigência do bem comum legitima a interferência do Estado
na limitação e correção da vontade pessoal, impondo padrões de comportamento a
fim de serem evitados contratos abusivos e injustos.
Será justamente pela necessidade de se garantir o equilíbrio de direitos e
deveres entre as partes que surgirá a noção de eqüidade contratual, como um princípio
norteador na conduta dos contratantes. Como exemplo da prevalência desse
princípio pode-se citar as normas imperativas do CDC, que proíbem o uso de
qualquer cláusula abusiva, como as que garantam vantagens unilaterais ou em
exagero para o fornecedor de bens e serviços, ou aquelas que são incompatíveis com
a boa-fé e a equidade (ex vi art. 51, inciso IV do CDC).
 
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CONCLUSÃO

O Direito Privado atual não mais subsiste apenas segundo os interesses


particulares, tendo este sofrido profundas mudanças, que impõem seja sua
interpretação pautada no texto constitucional, haja vista ter ele recepcionado os
princípios fundamentais da Magna Carta.
Desta forma, passa o Direito Privado a ter como valores superiores a
dignidade da pessoa humana e o bem comum, consagrando este último pela busca de
uma sociedade livre, justa e solidária, o que provoca mudanças na tutela das relações
privadas, deixando o Direito Civil de se preocupar única e exclusivamente com a
declaração de vontade das partes, para se atentar para as condições pessoais dos
agentes em cada relação jurídica, para os efeitos dessas relações no tempo e no
espaço, a fim de se garantir a realização de negócios jurídicos “justos”.
E, nessa busca por justiça comutativa e distributiva no Direito Privado para
garantir relações jurídicas equilibradas, serviu-se o mesmo de valores que já eram
tutelados pelo Direito Natural, nos quais já se valorava a figura humana haja vista sua
preocupação com um “direito justo”, idéia esta que se liga diretamente a socialidade
que atualmente permeia as relações jurídico-privadas.
Desta forma, nota-se que a liberdade de contratar, de firmar negócios, isto
é, a liberdade das partes de estabelecerem-lhes normas jurídicas - sua autonomia
privada, deve ser manifestada sob a perspectiva do Direito Civil Constitucional, por
não ser mais o Direito Civil do Estado Liberal – que se identificava com o próprio
Código Civil, suficiente para acompanhar o desenvolvimento e o progresso da
sociedade.
Por fim, ressalta-se que esse novo enfoque do Direito Privado se justificou
em razão dos anseios de uma sociedade massificada, cujas relações complexas
requereram mudanças no ordenamento jurídico para que este pudesse acompanhar o
 
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seu desenvolvimento, sendo certo que se no âmbito das relações privadas a sociedade
atual, globalizada, tende naturalmente a exclusão de muitos, haja vista a alta
competitividade que nela se impõem, terá o Direito Civil neste aspecto, como direito
dos cidadãos, a função de garantir a primazia da dignidade da pessoa humana para
que se torne possível a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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nullités. Paris: LGDJ, 1980. Vol. 1.

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HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. Tendências do Direito Civil no Século XXI


- Conferência de encerramento. Seminário Internacional de Direito Civil. Belo
Horizonte: NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa da Faculdade Mineira de Direito
da PUC/MG, 2001, p.1-15.

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perspectiva civil constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

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Direito Civil Constitucional e a transição da autonomia da vontade para a autonomia
privada. Cadernos de Direito Civil Constitucional. Coord. Renan Lotufo.
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A INADEQUAÇÃO ÉTICO-JURÍDICA DOS CRITÉRIOS LEGAIS DE


DELIMITAÇÃO DOS EMBRIÕES HUMANOS APTOS A SEREM
UTILIZADOS EM PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO1

Daniel Mendes Ribeiro2


Carolina Penna Nocchi3

RESUMO

O art. 5º da Lei 11.105/2000 regula, no Brasil, a utilização de células-tronco


extraídas de embriões humanos para pesquisas médicas, permitindo, para tal
finalidade, o uso tão-somente de embriões excendentários produzidos por
fertilização in vitro, que sejam inviáveis ou que tenham sido congelados até a data da
publicação da lei, depois de completados três anos de congelamento. Em qualquer
caso, é preciso o consentimento dos genitores.
A escolha desses critérios, entretanto, não foi precedida de um debate
fundamental - acerca da (im)pessoalidade do embrião e das implicações éticas da
definição de seu status, tendo os legisladores priorizado a obtenção, apenas, de um
consenso político possível sobre a questão, para que o projeto tramitasse
celeremente.
O julgamento da ADIN 3.510, em que se questionou a constitucionalidade
do referido art. 5º, pouco contribuiu para aprofundar o debate. Ressalve-se o voto do
Min. Ayres Britto, que fez uma distinção relevante entre o embrião dentro do útero,
em desenvolvimento, e o embrião congelado fora do útero. A proteção legal ao
embrião abarcaria apenas a figura do embrião intrauterino, denominado
juridicamente de nascituro.
Esse indicador permite o uso, para além dos embriões inviáveis, daqueles que
nunca estiveram ou nunca poderão estar dentro de um ambiente que permita o seu
                                                            
1 Trabalho inserido no contexto das discussões propiciadas pela participação no grupo de pesquisa “A
Pesquisa com Células-Tronco Embrionárias: Fundamentação Ético-Jurídica a partir do Conceito Pós-
Metafísico de Pessoa Natural”, coordenado pelo Prof. Dr. Brunello Souza Stancioli, do qual ambos os
autores são membros. Esse grupo de pesquisa é financiado pela Fundação de Desenvolvimento da
Pesquisa – FUNDEP.
2 Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de

Minas Gerais.
3 Discente do curso de Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Minas

Gerais.
 
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desenvolvimento organísmico. GUENIN chama esse ente - o embrião criado fora do


corpo e doado pelos genitores para fins de pesquisa, proibida a sua implantação
uterina - de epidosembryo.
O modelo proposto por GUENIN, centrado no epidosembryo, parece
pertinente, pois um critério adequado para decidir quais os embriões poderão ser
usados em pesquisas deve partir, primeiramente, da noção de que um embrião,
embora ente humano, não é pessoa e que, para os embriões doados exclusivamente
para pesquisas, não há sequer a possibilidade de que venham a se tornar pessoas.
Essas são premissas adequadas para o debate.

Palavras-chave: células-tronco embrionárias; lei de biossegurança; epidosembryo.

SUMÁRIO

1. Introdução – Apresentação do Problema; 2 – O processo de elaboração da Lei Nº


11.105/05; 3 – A insuficiência da fundamentação ético-jurídica da Lei Nº 11.105/05
4 – Em busca de critérios adequados; 5 – Conclusão; 6 – Referências Bibliográficas.

1. Introdução – Apresentação do Problema

Há pouco mais de cinco anos o Brasil, através do art. 5º da Lei 11.105, em


vigor desde o dia 28 de março de 2005, regulamentou a utilização de células-tronco
extraídas de embriões humanos em pesquisas médico-científicas, permitindo o seu
uso para tal finalidade.
Não obstante a relevância da edição de tal regramento, essencial para que
nosso país pudesse avançar nesse tipo de pesquisa4, a questão da regulamentação

                                                            
4 Nesse sentido, cf. DINIZ, Débora & AVELINO, Daniel. Cenário internacional da pesquisa em
células-tronco embrionárias. Revista de Saúde Pública [online], v. 43, n. 3, abr. 2009, p. 541-547. O
trabalho, que objetiva a construção de um panorama da regulamentação das pesquisas científicas
envolvendo células-tronco embrionárias humanas, aponta que: “a tendência da regulação internacional
 
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legal do uso de células-tronco humanas embrionárias começou a ganhar especial


destaque quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510,
ajuizada pelo então Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles, no Supremo
Tribunal Federal, poucos dias após a entrada em vigor da lei.
Em suma, o que se argüiu na demanda foi a inconstitucionalidade do
referido art. 5º, que, por permitir o uso de células-tronco embrionárias humanas em
pesquisas científicas, estaria violando o valor constitucionalmente protegido da vida,
elencado no caput art. 5º da Constituição da República de 19885. Em julgamento
plenário nos dias 05 e 28 de março de 2008, precedido de importante participação
pública (seja através das audiências públicas, seja através do ingresso no feito de
diversas organizações como amicus curiae)6, o Supremo Tribunal Federal julgou
improcedente o pedido, entendendo pela consonância do artigo combatido com a
Constituição da República de 1988.
A discussão no Tribunal, entretanto, cingiu-se a argumentos, em geral,
utilitaristas, frágeis, dissociados de uma investigação acerca do que consiste a pessoa
humana – objeto de proteção de qualquer ordenamento jurídico, e, portanto, cerne
da questão7.

                                                                                                                                                                   
é a de autorizar a pesquisa com células-tronco embrionárias. A pesquisa é permitida em 23 países por
marco legal ou normas éticas, dentre os quais apenas um país limita a pesquisa a linhagens
embrionárias importadas. Dentro do universo da pesquisa, a República da Itália é o único país com
capacidade tecnológica equivalente à brasileira que proíbe por lei a pesquisa com células-tronco
embrionárias.” 
5 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à


igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...).
6 Participaram como amicus curiae: Conectas Direitos Humanos; Centro de Direito Humanos – CDH;

Movimento em Prol da Vida – MOVITAE; Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero;
e a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Informação disponível:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2299631. Acesso em:
29.04.2010.
7 Esse tema foi desenvolvido no trabalho A Fundamentação Ético-Jurídica Acerca do Uso De Células-Tronco

Embrionárias em Pesquisas no Brasil, elaborado por Nara Pereira Carvalho, Aline Rose Barbosa Pereira,
Anna Cristina de Carvalho Rettore , Carolina Penna Nocchi e Laís Godoi Lopes, cujo resumo foi
 
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Nesse sentido, nos parece adequado acolher o conceito pós-metafísico de


pessoa humana (STANCIOLI)8, segundo o qual a pessoa seria constituída de três
eixos: autonomia, alteridade e dignidade, sendo que, a partir da convergência da
autonomia do indivíduo humano de interagir com o outro e com o ambiente, surge a
capacidade de se buscar formas de vida consideradas dignas.
Com efeito, o debate sobre o tema deve orientar-se para a construção, sob o
ponto de vista ético e jurídico, de uma fundamentação para as pesquisa com células-
tronco embrionárias discursivamente compartilhada, pautada no contexto de um
Estado Democrático de Direito, a fim de que se possa superar, a partir de
argumentos racionais e interdisciplinares, a mera argumentação simplesmente jurídica
ou dogmática
Visando justamente contribuir para essa contínua construção é que
tomamos como objeto de estudo a adequação dos critérios de delimitação dos
embriões aptos a serem utilizados em pesquisas com células tronco, elencados no art.
5º da Lei 11.105/05.
O mencionado dispositivo autorizou o uso de embriões: (1) produzidos por
fertilização in vitro, (2) e não utilizados no respectivo procedimento, desde que sejam
(3-a) embriões inviáveis ou (3-b) sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais,
na data da publicação da Lei, ou que, já congelados na data da publicação da Lei,
depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento,
sendo indispensável (4) o consentimento dos genitores e a (5) submissão do projeto
de pesquisa à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa9.

                                                                                                                                                                   
aprovado para apresentação na 62ª Reunião Anual da SBPC, que será realizada em Natal, entre os dias
25e 30 de julho.
8 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade ou Como Alguém se
Torna o que Quiser. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 2007 (Tese de Doutorado). 
9 Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias

obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo
procedimento, atendidas as seguintes condições:
 
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Destarte, logo se vê que são muitos os elementos a serem observados no


caso concreto para que as células-tronco obtidas de um embrião humano possam ser
utilizadas em pesquisas com fins médicos.
E, dentre tantas diretrizes, chamou-nos especial atenção o critério elencado
no inciso II do art. 5º, segundo o qual os embriões viáveis só poderiam ser utilizados
caso estivesse congelados há 3 (três) anos ou mais na data da publicação da Lei, ou
que, se já congelados na data da publicação da Lei, após completarem 3 (três) anos,
contados a partir da data de congelamento. O inciso XIV do art. 3º do Decreto n.
5591/2005, que regulamentou a Lei 11.105/05, não deixou margem para dúvidas
quanto ao significado de embriões congelados disponíveis, ao defini-los como sendo
aqueles congelados até o dia 28 de março de 2005 (data em que o diploma legal
entrou em vigor), depois de completados três anos, contados a partir da data do seu
congelamento
Qual o motivo de regramento tão específico? Por que não permitir o uso de
qualquer embrião congelado viável?
O que se verificará, como será demonstrado no próximo item deste artigo,
é que a escolha de tal critério no processo de elaboração legislativa não foi precedida
de um debate –para nós, fundamental, como já explicitado-, acerca da pessoalidade
do embrião e das implicações éticas da definição de seu status. O que se visou foi tão

                                                                                                                                                                   
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que,
já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir
da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-
tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos
respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática
implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.
 
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somente a obtenção de um fácil consenso político sobre a questão, para que o


projeto tramitasse celeremente.
A partir dessa constatação será proposto, ao final do trabalho, um critério
que, por ora, alvitra-se mais adequado, e que, inclusive, foi utilizado pelo Min, Ayres
Britto em seu voto, pautado na relevância de se distinguir o embrião dentro do útero,
em desenvolvimento, e o embrião congelado fora do útero.
GUENIN, autor canadense utilizado como referência no presente artigo10,
chama esse ente, o embrião criado fora do corpo humano e doado pelos genitores
exclusivamente para fins de pesquisa, proibindo a sua implantação uterina, de
epidosembryo.
O modelo proposto por ele nos parece, a princípio, apropriado como
premissa para debate, pois parte da idéia de que o critério adequado para decidir
quais os embriões cujo uso em pesquisas se permite centra, primeiramente, na noção
de que um embrião, embora ente humano, não é pessoa e que, para os embriões
doados exclusivamente para pesquisas, não há sequer a possibilidade de que venham
a se tornar pessoas.

2. O processo de elaboração da Lei 11.105/05

O Projeto de Lei n. 2.401/2003, de iniciativa do Presidente da República,


foi aprovado pela Câmara com a seguinte redação, no que tange à questão do uso de
células-tronco embrionárias humanas em pesquisas:

                                                            
10 GUENIN, Louis M. The Morality of Embryo Use. Cambridge University Press, 2008
 
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“Art. 5º - É vedado:
I - qualquer procedimento de engenharia genética em organismos
vivos ou o manejo in vitro de ADN/ARN natural ou
recombinante, realizado em desacordo com as normas previstas
nesta Lei;
II - manipulação genética em células germinais humanas e em
embriões humanos;
III – clonagem humana para fins reprodutivos;
IV - produção de embriões humanos destinados a servir como
material biológico disponível;
V- intervenção em material genético humano in vivo, exceto se
aprovado pelos órgãos competentes, para fins de:
a) realização de procedimento com finalidade de diagnóstico,
prevenção e tratamento de doenças e agravos;
b) clonagem terapêutica com células pluripotentes;
VI - intervenção in vivo em material genético de animais,
excetuados os casos em que tais intervenções se constituam em
avanços significativos na pesquisa científica e no desenvolvimento
tecnológico ou em procedimentos com finalidades de diagnóstico,
prevenção e tratamento de doenças e agravos, desde que
aprovados pelos órgãos competentes;
VI - liberação ou o descarte no meio ambiente de OGM e seus
derivados em desacordo com as normas estabelecidas pela
CTNBio, pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização e
constantes na regulamentação desta Lei;
(...)”11

O art. 5º da Lei 11.105/05 começou a ganhar a redação com o qual seria


aprovado no Senado Federal.
Quando da apreciação do Projeto de Lei da Câmara n. 09/2004 (numeração
que adquiriu no Senado Federal) pela Comissão de Educação, os Senadores Tasso
Jereissati e Lúcia Vânia, propuseram, através de uma emenda substitutiva, alterações
no dispositivo acima transcrito, consistente, nos termos do Parecer da Comissão de
Educação, de relatoria do Ministro Osmar Dias, na:
                                                            
11 Projeto de Lei da Câmara º. 09 de 2004 (nº 2401/2003, na Casa de origem) (de Iniciativa do

Presidente da República). Disponível em:


http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=65843. Acesso em:
29.04.2010.

 
311 
 
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“(...) adoção de um artigo que explicita a autorização para


utilização dos conjuntos celulares embrionários humanos
depositados para fertilização in vitro, e não utilizados no
procedimento, desde que estejam congelados na data da
publicação dessa lei há 3 (três) anos ou, já congelados na data da
publicação da lei, alcancem o prazo de congelamento de 3 (três)
anos ou ainda que inviáveis para a implantação no processo de
fertilização. Parágrafo único reitera que a comercialização do
material referido no artigo é crime, já tipificado na Lei 9.434 de 4
de fevereiro de 1997. Pretende-se com a iniciativa evitar o descarte
de material tão importante para a comunidade médica e científica,
como para os doentes que podem se beneficiar de sua utilização.”

No próprio Parecer o relator destaca que a eleição de tal critério foi “fruto de
acordo que objetivou resguardar os interesses estratégicos e de celeridade na tramitação do projeto”12.
É curioso notar que a emenda foi acolhida pela Comissão justamente
porque o critério dos três anos, mesmo limitando o pool de células aptas a serem
utilizadas em pesquisas com fins médicos, permitiria a seleção de um número
suficiente de conjuntos celulares embrionários capazes de viabilizar o avanço dessas,
sem, contudo, embaraçar interesses estratégicos para a tramitação da matéria junto a
todos os setores envolvidos com o tema, nem retardar a aprovação da lei.
O Projeto, quando levado à análise na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania, de Assuntos Econômicos e de Assuntos Sociais, não sofreu modificações
em relação ao ponto ora destacado, ganhando apenas alguns ajustes para “permitir, de
forma inequívoca, tais procedimentos e de tornar claros os termos e conceitos científicos empregados”13.

                                                            
12 Parecer da Comissão de Educação, sobre o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 9, de 2004 (PL nº
2.401, de 2003, na Casa de origem. RELATOR: Senador Ney Suassuna. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=65843. Acesso em:
29.04.2010.
13 Parecer Das Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania, de Assuntos Econômicos e de

Assuntos Sociais, sobre o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 9, de 2004 (PL nº 2.401, de 2003, na
Casa de origem. RELATOR: Senador Ney Suassuna. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=65843. Acesso em:
29.04.2010.

 
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O Projeto de Lei n. 09/2004 foi levado à votação em sessão plenária do


Senado Federal no dia 07 de outubro de 2004.
Os debates foram intensos, mas cingiram-se mais à questão da permissão ou
não do uso de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas científicas com
fins terapêuticos, sem que fosse promovido um debate acerca dos critérios
estabelecidos para selecionar os embriões aptos a serem usados nas pesquisas.
Sem intencionar fazer uma análise aprofundada das discussões legislativas,
até porque esse não é o objeto deste trabalho, pode-se imaginar que os debates
seguiram essa linha pelo fato de que a questão da permissão de pesquisas com
células-tronco, por si só, já é difícil e controvertida o suficiente para fazer com que os
parlamentares entravassem longos debates, sem conseguir, contudo, examinar de
forma acurada os parâmetros estabelecidos no art. 5º para o uso de referidas células
em pesquisas.
A fala do Senador Mozarildo Cavalcanti, do PPS-RR, nesse sentido, merece
destaque, pois demonstra uma preocupação com a “permissão com data de validade” que
a lei em discussão conferiria ao uso das células-tronco, ressaltando que seu voto seria
favorável “porque reconheço que é um passo no caminho de atingir uma meta maior, que espero
seja atingida muito em breve, antes de vencerem os três anos de validade desta lei”14.
Em resposta, o Senador Tião Viana ressaltou que “a comunidade científica, de
maneira hegemônica, disse que assim estaria satisfeita”15, e, assim, encerrou-se a contenda
sobre a questão dos embriões congelados disponíveis.

                                                            
14 Diário do Senado Federal. Quinta Feira 7, Outubro de 2004. fl. 31544. Disponível em:

http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=65843 Acesso em:


29.04.2010.
15 Diário do Senado Federal. Quinta Feira 7, Outubro de 2004. fl. 31545. Disponível em:

http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=65843. Acesso em:


29.04.2010.
 
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3. A insuficiência da fundamentação ético-jurídica da Lei Nº 11.105/05

Pela análise dos debates que precederam a aprovação da Lei Nº


11.105/2005, resta claro que o critério utilizado para se delimitar quais embriões
humanos estariam aptos a serem usados em pesquisas científicas foi exclusivamente
político.
Tendo em vista as pressões de diversos grupos sociais, contra e a favor da
liberação das pesquisas, adotou-se uma posição conciliatória: considerando a
existência de grande número de embriões humanos congelados em laboratórios,
oriundos de “sobras” de procedimentos de reprodução assistida (embriões
excedentários) que seriam, de outro modo, jogados fora, permitiu-se que a ciência
desse a esses zigotos um fim mais nobre do que o lixo. Concomitantemente, proibiu-
se a produção intencional e sistemática de embriões para fins de pesquisa.16
Esquematizando a argumentação utilizada, tanto nos debates legislativos da
Lei de Biossegurança, quanto em grande parte das discussões da ADIN n. 3.510-0
temos:
1) Os procedimentos de reprodução assistida têm como consequência
previsível, mas não querida, a produção de embriões humanos chamados
excedentários, que não serão fecundados sem o consentimento dos genitores e cujo
fim, desse modo, seria a armazenagem por tempo indefinido em estado criogênico
ou o descarte. É eticamente aceitável a utilização de procedimentos como o de
fertilização in vitro - que criam não-intencionalmente embriões excedentários que
nunca serão implantados em um útero - para fins reprodutivos, em razão do direito
                                                            
16 É elucidador, para esse fim, observar a disciplina que a reprodução assistida encontra no novo

Código de Ética Médica brasileiro (Resolução CFM Nº 1931/2009), que proíbe, no art. 15 do Capítulo
III, a realização de procedimento de reprodução assistida que conduza sistematicamente à produção
de embriões supranumerários. Tais embriões, portanto, os únicos que estariam, em tese, disponíveis
para pesquisas com células-tronco embrionária humana no país, só podem ser produzidos de forma
estritamente acidental.
 
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fundamental à reprodução e ao planejamento familiar. Esses direitos se encontram


inscritos na Constituição da República de 1988 (e. g. o art. 226, §7º, da CR/88),
garantido o acesso a meios científicos para exercê-los.
2) Não há uma obrigação moral de gerar todos os embriões excedentários
produzidos nesses procedimentos, nem por parte dos genitores nem do próprio
estado, tendo em vista o fardo desarrazoado que isso implicaria. Há apenas um dever
de proteger e zelar pelos embriões que se fixam no útero materno.
3) Considerando a inevitabilidade da existência de embriões excedentários,
cujo destino nunca poderá ser a gestação, dentre as opções que se colocam, a mais
nobre seria a utilização dos mesmos em pesquisas científicas, que podem trazer
enormes avanços para a ciência médica e benefícios para toda coletividade.
4) O embrião humano todavia, não pode ser manipulado e
instrumentalizado livremente. Mesmo não sendo considerado pessoa, é ente humano
que merece proteção. A permissão para o uso instrumental dos embriões humanos
deverá ser acompanhada de período temporal definido e regras rígidas, para evitar
qualquer tentativa de se produzi-los exclusivamente para uso em pesquisas.
Diante do quadro apresentado, verifica-se que, embora o raciocínio
empregado seja, em certa medida, coerente, ele acaba por dar à matéria um
tratamento inadequado.
Em primeiro lugar, a ratio legis parece tomar como pressuposto que o
embrião humano é um ente que deve ser protegido contra manipulação ou
instrumentalização, sem esclarecer ou fundamentar as bases de tal pressuposto. Em
segundo lugar, se se considera que o embrião, embora ente que mereça proteção,
possa ser instrumentalizado, como faz a lei, deveria, novamente, haver justificativa
consistente para tanto.
O argumento que poderíamos chamar de “utilitarista”, segundo o qual seria
preferível dar um fim nobre ao embrião a simplesmente destrui-lo ou congelá-lo
 
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indefinidademente, apenas mascara um outro problema: se o embrião merece


proteção, porque não se proibe a adoção de procedimentos – como a fertilização in
vitro - que criem embriões cujo destino será, inexoravelmente, a destruição ou
instrumentalização?17
Mesmo partindo do pressuposto de que é direito fundamental o
planejamento familiar e o acesso aos meios científicos que o garantam, certamente
esse direito tem limites.
Para exemplificar tais limites, parte-se de um exemplo hipotético bastante
simples: suponhamos que a ciência médica dispusesse de uma técnica bastante eficaz
de reprodução assistida dirigida especificamente para mulheres que não pudessem
gerar embriões no seu próprio útero. A técnica envolveria a mistura de gametas dos
genitores em uma máquina que geraria, sozinha, um ser humano advindo da fusão
dos gametas, ser esse que já sairia pronto da máquina em um estágio de
desenvolvimento organísmico conforme se encontraria ao final de uma gestação
normal no útero materno.
Ocorre que a geração o nessa “máquina de bebês” só seria viável se vários
embriões fossem gestados ao mesmo tempo, tendo em vista que a chance de que a
gestação de um único embrião fosse bem-sucedida seria, em razão de limitações da
tecnologia, bastante pequena.
Desse modo, para se obter um bebê, desejado pelos genitores, vários
embriões seriam implantados na máquina ao mesmo tempo e gestados no processo,
com o resultado previsível, mas não-querido, de que mais de um pudesse sobreviver
à gestação. Os “bebês excedentários” seriam um resultado não-querido, mas
previsível do procedimento, exatamente como ocorre no caso dos embriões

                                                            
17O argumento de que é muito mais nobre utilizar o embrião em pesquisas do que jogá-lo no lixo
apareceu, reiteradas vezes, nos votos dos ministros do STF durante o julgamento da Ação Direta de
Constitucionalidade n. 3.510-0, como, por exemplo, no da Ministra Ellen Gracie.
 
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excedentários na fertilização in vitro. Será que a saída para esse problema seria o
congelamento dos bebês excedentários ou o seu “cultivo” para algum fim que
beneficiasse a coletividade, como a doação de órgãos, por exemplo?
Decerto que não. Nesse caso, mesmo sendo uma técnica científica que
garantisse a reprodução humana, ela não poderia ser utilizada se criasse pessoas cujo
destino fosse o armazenamento criogênico, a instrumentalização em pesquisas ou o
descarte. A criança, ao nascer, já apresenta traços fortes de pessoalidade, como a
capacidade de interação inteligente, de aprendizado, construção de alteridade, etc,
todas condições necessárias para o livre desenvolvimento da personalidade. Logo,
deve ser tratada como pessoa humana, ainda que em formação. Supor que poder-se-
ia tratar essa criança como objeto, ou coisa, seria, desse modo, um desrespeito a sua
dignidade, que veda a sua instrumentalização heterônoma. Em outras palavras, a
pessoa nunca é um meio, mas sempre um fim para si própria, na busca da sua
autorrealização.18
Conclui-se, deste modo, que, caso o embrião fosse pessoa, em nenhuma
hipótese poderia ser instrumentalizado na realização de pesquisas, ao mesmo tempo
que, caso não seja pessoa, seria aceitável, a princípio, tal utilização. Na próxima seção,
tentaremos buscar um modelo de argumentação adequado para levar em conta tais
considerações.

4. Em busca de critérios adequados

A Lei de Biossegurança parece tratar o embrião como um ente que não é


pessoa – pois pode ser instrumentalizado – mas que, ao mesmo tempo, possui certa

                                                            
18 STANCIOLI. Renúncia ao Exercício…, cit. p. 114.
 
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relevância moral, não sendo mera coisa. Essa posição deveria, de todo modo, ser
debatida e posta às claras pelo legislador.
Outro equívoco da lei é conferir status diferenciados aos embriões tomando
como base a data em que foram congelados. Ora, tudo indica que deveriam receber o
mesmo tratamento, por não haver diferença significativa entre eles. O critério que
toma como base única e exclusivamente a data do congelamento, foi, frise-se,
adotado exclusivamente por um critério de conveniência política, sem nenhuma
consideração acerca de outras distinções que possam existir entre tipos de embriões,
mais relevantes para a questão que se coloca.
A proposta desse trabalho, expostos os problemas no tratamento dado pela
Lei de Biossegurança à questão das pesquisas que se utilizem de células-tronco
advindas de embriões humanos, é provocar o debate em outras bases. Buscam-se
critérios adequados que possibilitem fundamentar ética e juridicamente essas
pesquisas.
Um primeiro passo na busca de critérios adequados é definir quais são os
atributos do embrião humano de interesse para as pesquisas científicas que façam uso
de células-tronco embrionárias.
Obtido um conceito, parte-se do pressuposto de que só não seria possível
realizar pesquisas com esses embriões caso houvesse um motivo relevante para tanto.
Ou seja, a restrição a essas pesquisas só se justificaria caso ferissem princípio ético ou
jurídico relevante, e não o contrário. Desse modo, a pergunta a ser feita é: “Porque
não seria permitido instrumentalizar ou destruir esses embriões humanos em
pesquisas científicas?”
A resposta a essa pergunta permite, em um segundo momento, a discussão
acerca de quais atributos os embriões humanos, dentre os que se prestam à utilização
nessas pesquisas, não podem ter, conforme as objeções aventadas.
Esquematizando o modelo de argumentação proposto:
 
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1) Se “X” é o conjunto de embriões humanos que podem ser


potencialmente utilizados em pesquisas para obtenção de células-tronco
embrionárias, quais embriões pertencem a X?
2) Considerando X como conjunto que abarca um grupo de embriões
heterogêneo, nos quais todos os elementos do conjunto possuem em comum,
necessariamente, alguns atributos centrais, além de outros atributos que permitiriam
dividi-los em subconjuntos de X, quais seriam as razões para não permitir pesquisas
com embriões do conjunto X como um todo ou, alternativamente, a subconjuntos
específicos contidos em X?
3) Considerando o conjunto X, é permitida a pesquisa com determinados
elementos desse conjunto resultantes da subtração de X ao conjunto formado pelos
elementos de X que não satisfaçam dadas condições relevantes apontadas em
objeções à realização das pesquisas.
Como exemplo de construção baseada em um modelo como esse, poder-se-
ia citar o supra referido conceito criado por GUENIN, denominado Epidosembryos, e
a argumentação que o embasou.19
Tem-se que o embrião humano é o ente formado, normalmente,20 pela
fusão entre o gameta masculino (espermatozóide) e o feminino (óvulo), em um
processo no qual os gametas fusionados dão origem a um novo ser, denominado
zigoto ou embrião.
O embrião humano relevante para pesquisas com células-tronco é aquele
que possui células-tronco pluripotentes. As células-tronco embrionárias dotadas de
pluripotência podem se diferenciar e dar origem a todos os tipos de células presentes
                                                            
19 GUENIN, Louis M. The Morality…, cit.
20 É possível que seja formado um embrião humano através do processo de clonagem que envolve a
remoção do núcleo de um óvulo com a sua posterior ativação assexuada através da introdução do
núcleo de uma célula somática, criando, para todos os efeitos, um clone do indivíduo ao qual pertence
o material genético da célula somática utilizada. Sobre o tema, cf. GUENIN. The Morality of..., cit., p. 6-
8.
 
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no corpo humano, e é exatamente nessa possibilidade que reside o enorme potencial


das pesquisas com tais células, no desenvolvimento de terapêuticas regenerativas e na
descoberta de curas para diversas doenças hoje tidas como incuráveis.21
As células-tronco embrionárias pluripotentes se encontram apenas no
Blastocisto. O Blastocisto é um dos primeiros estágios no desenvolvimento
embrionário humano, no qual o embrião se encontra formado por uma camada
exterior de células, chamada de Tropoblasto, e uma massa de células localizada no
interior da cavidade formada pelo Tropoblasto, denominada de Embrioblasto. O
Embrioblasto é formado por células-tronco embrionárias pluripotentes e é dele que
são extraídas tais células para realização de pesquisas. O Blastocisto se forma
aproximadamente no quinto dia da fertilização e dura até o fim da segunda semana
de desenvolvimento embrionário.22
Contudo, a partir da implantação do embrião no útero, que ocorre por volta
do sétimo dia da fecundação, as células do embrioblasto começam a se diferenciar, e
vão perdendo gradualmente a pluripotência, de forma que apenas o Blastocisto pré-
implantação uterina é que pode servir como fonte viável e segura de células-tronco
embrionárias pluripotentes.
Desse modo:

X = {x│x é um embrião humano que esteja no estágio do desenvolvimento


denominado de Blastocisto antes da sua implantação no endométrio
uterino}

                                                            
21 Sobre as possibilidades terapêuticas vislumbradas através da utilização de células-tronco
embrionárias pluripotentes em pesquisas médicas, cf. HOCHEDLINGE, Conrad. As Células que
Curam. Scientific American Brasil, São Paulo, Ano 8, nº 96, p. 24-31, mai. 2010.
22 GUENIN. The Morality of..., cit., p. 4-9.

 
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Esse, então, é o grupo de embriões de interesse para a pesquisa biomédica


com células-tronco. Passemos agora a algumas objeções que poderiam obstar a sua
utilização nessas pesquisas.
Uma primeira objeção seria a de que, uma vez ocorrida a fecundação,
teríamos na figura do embrião já uma pessoa humana individuada, que não poderia
ser destruída na realização de pesquisas científicas.
Contra essa objeção, GUENIN contra-argumenta que, nos estágios iniciais
do desenvolvimento embrionário humano é possível que, a partir de um só embrião,
sejam formados dois seres distintos denominados gêmeos monozigóticos, ou, em
termos leigos, de gêmeos idênticos. Só a partir da formação da Linha Inicial, eixo
longitudinal que divide o Blastocisto logo antes do início da gastrulação, que se dá
aproximadamente no décimo-quarto dia do desenvolvimento embrionário humano, é
que deixa de existir a possibilidade da divisão do embrião em dois ou mais seres
idênticos. GUENIN afirma, então, que até esse momento não existe indivíduo
humano, já que o indivíduo é justamente aquele que não é divisível em dois ou mais
indivíduos do mesmo tipo que sobrevivam a essa separação. Como a condição de
indivíduo é, para o autor, essencial para haver pessoa, não há que se falar da
possibilidade de o embrião, até o décimo-quarto dia de desenvolvimento, ser
considerado pessoa.23
Desse modo:

P = {p│p é um ente considerado pessoa e, como tal, não pode ser


instrumentalizado heteronomamente}

                                                            
23 GUENIN. The Morality..., cit., p. 59-60.
 
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p tem como uma de suas características a individuação, ou seja p ‫ א‬I em que

I = {i │ i é um ente humano individuado}

x ‫ ב‬I, logo x ‫ ב‬P.

Vê-se então que, definido o grupo de embriões relevantes para pesquisas


com células-tronco embrionárias como aquele que possui células pluripotentes
aproveitáveis, o autor argumenta que, pelo fato de não haver indivíduo humano
nesse momento, o embrião, no ponto em que se encontra, não é pessoa.
Outra objeção relevante ao uso de embriões do grupo X em pesquisas é a
de que, muito embora se trate de embrião não individuado e que não é, portanto,
pessoa, ele já corresponde minimamente a uma pessoa em potencial, pois, sem que
ocorra nenhuma mudança substancial nesse ser, e, na ausência de interferências
externas, uma pessoa irá surgir desse embrião.
Uma variação desse argumento é o de que o embrião humano já teria, após
a fecundação, uma existência “antepessoal”, e que mereceria ser protegido em razão
de uma “ética da espécie humana”, apresentado por HABERMAS.24

                                                            
24 HABERMAS, Jürgen. O futuro da Natureza Humana; A caminho da Eugenia Liberal? 2004. Sobre
essa linha de argumentação apresentada por Habermas, cf. ATLAN, Henri & BOTBOL-BAUM
Mylène. Dos Embriões aos Homens. 2009. P. 27-39.
 
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De fato, poder-se-ia argumentar que esse ente merece proteção, na


condição de pessoa em potencial, ou mesmo de ente com existência antepessoal, tal
qual um feto em desenvolvimento mereceria, pois, entre o blastocisto e o feto não
houve mais do que um processo de desenvolvimento organísmico, sendo blastocisto
e feto duas atribuições temporais diversas de um mesmo ente.
GUENIN concorda inicialmente com essa objeção e retira do grupo de
embriões passíveis de utilização em pesquisa – todos os embriões no estágio do
Blastocisto pré-implantação uterina – aqueles que possam ser entendidos como
pessoas em potencial. Assim, o autor chega ao seu conceito de Epidosembryo:

“Do grego epidosis, da contribuição benéfica de um ateniense à


riqueza comum, eu defino o que se segue.
Epidosembryo. Um epidosembryo é um embrião humano do qual se
pode dizer o seguinte:
(a) o embrião foi criado fora do corpo humano, e
(b) os progenitores que contribuiram com os gametas ou outras
células das quais se formou o embrião doaram o referido embrião,
desde antes ou após a sua criação, com as condições, estabelecidas
em instrumento escrito aceito pelo donatário, de que (i) o
donatário deverá usar o embrião somente em pesquisas ou
terapêuticas médicas, e que (ii) o embrião, ou qualquer célula
totipotente dele extraída, nunca poderão ser transferidos para um
útero, feminino ou artificial.” (tradução nossa).25

O que se tem então, é:

EP é o conjunto de epidosembryos, tal que:


EP = {ep│ep é um embrião humano pertencente ao conjunto X que foi
criado fora do corpo humano e que foi doado pelos seus genitores para uso

                                                            
25 GUENIN. Morality of..., cit., p. 27.
 
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específico em pesquisas, proibida a sua implantação num útero materno ou


artificial}
Se E = {e│e é um embrião humano pertencente ao conjunto X criado
dentro do corpo humano ou cuja autorização para uso em pesquisas não
tenha sido dada pelos seus genitores}

Temos que ep ‫ א‬X e que e ‫ א‬X. Logo, EP = X – E.

O mesmo argumento confrontado por GUENIN, o de que é relevante


saber se o embrião existe dentro ou fora do útero, foi abordado pelo Ministro Carlos
Britto no julgamento da ADIN n. 3.510-0. O Ministro argumenta, em dado
momento, que o embrião criado na fertilização in vitro e não implantado no útero não
corresponde a uma pessoa em potencial, como é o caso do nascituro, e, portanto,
não merece a mesma proteção dispensada pelo ordenamento jurídico a esse último.26
A diferença é que GUENIN não pretende justificar a utilização de embriões
que já existem e cujo destino seria, alternativamente, ficar congelado
indefinidamente, ir para o lixo ou ser instrumentalizado em pesquisas. Pelo contrário,
o autor busca uma fundamentação que permita inclusive criar embriões
especificamente para fins de pesquisa, opondo restrições ao uso de embriões apenas
com base em argumentos que defendam a pessoalidade – efetiva ou potencial – do
ente embrionário.

                                                            
26 Conforme o art. 2º do Código Civil Brasileiro: “art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do

nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”
 
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Supor que o status de um embrião criado em laboratório seja distinto


conforme o ato volitivo que lhe deu origem (intenção de criar o embrião ou
consequência previsível e não-querida de fertilização in vitro), ou mesmo a data de sua
criação e congelamento, como fizeram os legisladores da Lei de Biossegurança e os
Ministros que julgaram a sua constitucionalidade, não faz nenhum sentido.

5. Conclusão

Em qualquer discussão ética que ganhe a esfera pública, é essencial que todos
os interessados – afetados, nesse sentido – possam ser chamados ao debate para que
a decisão a ser tomada seja, ao menos, fruto de um consenso racional possível.27
O objetivo desse trabalho foi apresentar um modelo viável para fomentar o
debate público acerca das possibilidades ético-jurídicas do uso de embriões humanos
em pesquisas científicas e, para tanto, fez-se uso do modelo de GUENIN, como um
exemplo de proposta que parte de bases racionais e argumenta de maneira
consistente, tentando lidar com o cerne do problema que se coloca.
No Brasil, ao contrário, evitou-se a todo custo – seja no processo de
elaboração de Lei de Biossegurança, seja no julgamento da sua constitucionalidade no
STF – tangenciar os pontos centrais da controvérsia.
Muito longe de ser um modelo ideal, o “epidosembryo” demonstra que o
tratamento da questão se encontra em um estágio incipiente, de maneira que, ainda,
colocar premissas racionais, pós-metafísicas, para a discussão parece já ser um grande
avanço.

                                                            
27Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción e racionalización
social. Madrid: Taurus, 1987.
 
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6. Referências Bibliográficas

ATLAN, Henri & BOTBOL-BAUM, Mylène. Dos Embriões aos Homens. Tradução de
Leandro Neves Cardim. Aparecida: Idéias & Letras, 2009. 183 p.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n.º 1931/2009. Código de


Ética Médica brasileiro. Diário Oficial da União, 24 set. 2009. Seção I, p. 90.
Retificação publicada no D.O.U. de 13 out. 2009, Seção I, p. 173.

DINIZ, Débora & AVELINO, Daniel. Cenário internacional da pesquisa em células-


tronco embrionárias. Revista de Saúde Pública [online], v. 43, n. 3, abr. 2009, p. 541-547.

GUENIN, Louis M. The Morality of Embryo Use. Cambridge: Cambridge University


Press, 2008. 273 p.

HABERMAS, Jürgen. O Futuro da Natureza Humana; A caminho da eugenia liberal?


Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción e


racionalización social. Madrid: Taurus, 1987.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei nº 10.406 – 10 jan. 2002. Institui o


Código Civil. Diário Oficial da União, 11 jan. 2002.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Lei nº 11.105 – 24 mar. 2005.


Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal,
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que


envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o
Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de
Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida
Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da
Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Diário Oficial da
União, 28 mar. 2005, p. 1.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição de 1988 – 05 out. 1988.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/. Acesso em: 20
abr. 2010.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Projeto de Lei da Câmara º. 09 de 2004


(nº 2401/2003, na Casa de origem) (de Iniciativa do Presidente da República).
Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp?p_cod_mate=65843.
Acesso em: 29.04.2010.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Diário do Senado Federal. Quinta Feira


7, Outubro de 2004. f. 31530/31555. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/detalhes.asp? Acesso em:
29.04.2010.

REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Supremo Tribunal Federal.


Constitucional. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei de Biossegurança.
Impugnação em bloco do Art. 5º da Lei Nº 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de
 
327 
 
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Biossegurança). Pesquisas com células-tronco embrionárias. Inexistência de violação


do direito à vida. Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em
pesquisas científicas para fins terapêuticos. Descaracterização do aborto. Normas
constitucionais conformadoras do direito fundamental a uma vida digna, que passa
pelo direito à saúde e ao planejamento familiar. Descabimento de utilização da
técnica de interpretação conforme para aditar á Lei de Biossegurança controles
desnecessários que implicam restrições às pesquisas e terapias por ela visadas.
Improcedência total da ação. Requerente: Procurador-Geral da República.
Requeridos: Presidente da República, Congresso Nacional. Relator: Min. Ayres
Britto. Publicado no Diário da Justiça Eletrônico (DJE) em 28 de mai. 2010.

STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade; ou Como


Alguém se Torna o que Quiser. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG,
2007 (Tese de Doutorado).

 
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A NATUREZA JURÍDICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL


DECORRENTE DE VIOLAÇÃO DOS DEVERES ANEXOS
PROVENIENTES DA BOA-FÉ OBJETIVA

Ricardo Padovini Pleti1

RESUMO

O Código Civil de 2002 consagrou a boa-fé objetiva como cláusula geral


aplicável às relações contratuais e, com isso, reconhece a tripla função desse
princípio, nos seguintes termos: a) função interpretativa dos negócios jurídicos; b)
função limitadora das condutas humanos tipificando como ato ilícito o abuso do
direito subjetivo; c) função integrativa, criando deveres de conduta (anexos ou
acessórios) concernentes à eticidade, honestidade, probidade e respeito, não previstos
expressamente pelas partes.
A moderna concepção dinâmica das obrigações recusa a perspectiva da
relação jurídica que a esgota no dever de prestar e no antagônico direito de exigir a
prestação. Atuando como legítima fonte de deveres jurídicos, a boa-fé faz com que o
liame obrigacional seja percebido na sua totalidade, com atribuição às partes de
outros deveres colaboracionistas além da prestação principal.
Dentre tais deveres de conduta estão o dever de informar, atinente ao
aconselhamento e riscos contratuais, o dever de cooperação (ou lealdade) na
execução do contrato e o dever de cuidado, relacionado à segurança da vida e do
patrimônio de cada parte.
Destarte, questão bastante discutível é a natureza jurídica da
responsabilidade civil resultante da infração dos deveres impostos pela boa-fé
objetiva, hipótese denominada como “violação positiva do contrato”. Tal
problemática constitui o objetivo deste trabalho, para tanto será utilizado o método
dedutivo e procedimento bibliográfico. Analisar-se-á, portanto a corrente que
compreende a violação positiva do contrato como caso de responsabilidade subjetiva
e aquela diametralmente oposta que defende a responsabilidade objetiva, conforme
preconiza o enunciado n. 24 do CJF/STJ.

                                                            
1 Mestre e Doutorando em Direito Empresarial na UFMG. 
 
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Palavras-chave: Boa-fé; Deveres de conduta; Responsabilidade contratual. Good-


faith; Behavior duties; Responsibility.

1. INTRODUÇÃO

A idéia de se interpretar o Direito Civil conforme os valores constitucionais


parece constituir resultado de movimento hermenêutico bastante recente. Mas essa
tendência já foi esboçada por João Baptista Villela há mais de três décadas atrás
quando ressaltou que

o sentido profundo das transformações por que passa o direito


privado reside no seu progressivo dimensionamento social, que se
traduz por melhor incorporação da pessoa humana na sua
sistemática, pela substituição das idéias de concorrência e
competição por aquelas mais humanas de colaboração e boa
vontade, tornando-se, enfim, mais dúctil e funcional 2.

Nessa ordem de idéias, o presente trabalho elege como marco teórico o


princípio da cooperação nas relações obrigacionais, o qual fundamenta a existência
de deveres anexos à prestação principal em torno da qual é celebrado um contrato.
Esses deveres paralelos têm sido reconhecidos pela mais abalizada doutrina
civilista atual e derivam do princípio da eticidade. É esse o magistério de Caio Mário
da Silva Pereira quando destacou que o princípio da boa-fé objetiva “também possui
o condão de criar deveres jurídicos anexos, como deveres de correção, cuidado,

                                                            
2 VILLELA, João Baptista. Por uma nova teoria dos contratos. Revista Forense. Rio de Janeiro:

Forense, v. 261, 1978, p. 33.


 
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cooperação, sigilo, prestação de contas, e mesmo de limitação de direitos


subjetivos”3.
Dessa forma, em virtude da complexidade que caracteriza a noção de
deveres anexos provenientes da boa-fé objetiva, a pesquisa que hora se relata busca
responder duas importantes indagações. Em primeiro lugar, mediante cuidadosa
hermenêutica da teoria geral do negócio jurídico, convém investigar se esses padrões
de conduta que tangencia o liame contratual são compatíveis com o ordenamento
jurídico pátrio.
Para tanto, impende constatar se eles derivam de fidedigna expressão ideal
da lógica jurídica, tomando-se como parâmetro os critérios de justiça
estabelecidos por Aristóteles em “A retórica”. Segundo o filósofo grego, “há na
natureza um princípio comum do que é justo e injusto, que todos de algum modo
adivinham mesmo que não haja entre si comunicação ou acordo4”.
Ao enfrentar o problema dos deveres anexos, é também oportuno verificar
se eles podem ser considerados institutos implícitos à boa-fé objetiva, competindo ao
intérprete a missão de desvendá-los em cada caso concreto. Nessa esteira, é possível
dizer que eles estariam acobertados pelas inevitáveis “franjas” da linguagem,
concebidas por Emílio Betti e explanadas por Maria Helena Damasceno e Silva
Megale

Fundado em Wilhelm Humbodt (1767-1835), Betti chama a


atenção para o caráter elítico da expressão comunicativa,
afirmando que de toda expressão lingüística ou metalingüística
transborda, como uma espécie de franja, alguma coisa que não
vem explícita, mas que deve ser captada pela sensibilidade e
                                                            
3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. I, 20.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2004,

p.503; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Idéia de Boa-fé. In: Revista Forense. vol. 72, 1937, p. 25.
4 ARISTÓTELES. Retórica. Introdução de Manuel Alexandre Júnior. Tradução e notas de Manuel

Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 2005, p. 144.
 
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intuição do intérprete. Os pressupostos os implícitos,


concernentes aos fins e valores, referem-se ao contexto e são
perceptíveis e assimiláveis, pelo fato de existir uma comunidade de
fala, possibilitadora do discurso configurado como totalidade
intencionalmente expressa. Por isso compreendemos muito mais
do que foi expresso como afirma Urban em nota sobre linguagem
e realidade – “so much more is understood than is expressed”5.

Ora, os subprincípios da probidade e da confiança que derivam da boa-fé


orientam que o cumprimento de qualquer obrigação pressupõe sua adequada
execução. Desse modo, a realização defeituosa de incumbências de dar, fazer ou não
fazer constitui forma de inadimplemento devido à violação da lisura que deve
permear as relações obrigacionais.
Tome-se como exemplo um tipo de dever anexo que tem,
progressivamente, atraído a atenção da jurisprudência brasileira: o dever de o credor
mitigar os próprios prejuízos (duty to mitigate the loss). Segundo essa regra
comportamental, a par do direito de exigir a satisfação da prestação principal, o
credor tem o dever colaboracionista de cuidar para que os prejuízos oriundos do
inadimplemento não se vejam majorados devido à sua conduta omissiva ou
comissiva.
Recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo ilustra a existência do
dever do credor mitigar as próprias perdas. Nesse julgado, reconheceu-se a
necessidade de distribuidora de combustíveis acionar imediatamente revendedores
inadimplentes (donos de um posto de gasolina), com o fito de não permitir que
acreditassem em perdão, desinteresse, enfim, criassem a legítima expectativa de não
cobrança. Por conseguinte, competia à credora cooperar com os devedores, não
esperando o agravamento de sua situação econômica para, só então, realizar a
                                                            
MEGALE, Maria Helena Damasceno e Silva. A teoria da interpretação jurídica: um diálogo com
55

Emilio Betti. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos. n. 91, Belo Horizonte: Imprensa Universitária da
UFMG, Jan-Jun 2005, p. 9.
 
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cobrança de montante exagerado do débito quando situação de avassaladora crise


econômica já lhes assolava.
Com base nesses fundamentos, a Sexta Câmara de Direito Privado do
Tribunal de Justiça de São Paulo exteriorizou entendimento nos seguintes termos

No caso, a credora se manteve inerte durante quase um ano, ante


o descumprimento por parte dos devedores, vendo crescer a
dificuldade e o prejuízo deste, sem procurar evitar ou, ao menos,
minorar tal perda. Perda que poderia ter sido evitada, sem maior
prejuízo aos mesmos. Temos, pois, que o nosso direito não só
pode, como já recepcionou, no aspecto contratual, o princípio do
"duty to mitigate the loss". Os sistemas jurídicos alemão e o suíço
adotam tal princípio, mas atribuindo-lhe a condição, o primeiro,
de "Obliegenheít" e o segundo, a de "incombance"6.

Em raciocínio imediatamente posterior, o segundo questionamento que esse


relatório de pesquisa tentará responder diz respeito à natureza jurídica da
responsabilidade civil ensejada pela infração dos referidos deveres anexos: se
objetiva, conforme orienta a jurisprudência atual; se subjetiva tal como se aduz da
regra geral da responsabilidade civil; ou se deve assumir uma ou outra modalidade de
acordo com as particularidades do caso concreto.
Para ponderar entre essas três opções, é necessário lançar mão de técnicas
oferecidas por depurada argumentação retórica e afastando qualquer atitude erística.
Nessa rota, averiguar-se-á se o inadimplemento dos deveres anexos tipifica abuso de
direito em toda e qualquer hipótese, para, com isso, abstrair quais os melhores
caminhos científicos e metodológicos que devem ser obedecidos para a
responsabilização do agente por condutas que afrontam o princípio da boa-fé
objetiva.
                                                            
6BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível n. 1.170.013-1. Sexta Câmara
Cível. Relator: Des. Windor Santos. Diadema, SP, 3 jul. 2007. Disponível em <www.tjsp.jus.br>.
Acesso em: 20 jun. 2010.
 
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2. DEVERES ANEXOS PROVENIENTES DA BOA-FÉ OBJETIVA

2.1.1 Delimitação conceitual

A entrada em vigor do Código Civil de 2002 marcou a superação do


modelo privatístico formalista e positivista que dominou o ordenamento jurídico no
século XIX. Por consequência, optou-se por um novo sistema semanticamente
aberto e constituído por cláusulas gerais inspiradas em principiologia hermenêutica
capaz de garantir a unidade do corpo legislativo em torno da dignidade humana.
Nessa ordem de idéias, o princípio da eticidade penetrou a legislação civil
mediante a norma aberta atinente à boa-fé objetiva, que pode ser entendida como
regra de conduta conforme determinados padrões sociais de lisura, honestidade e
correção. Nesse viés, a boa-fé permite o enquadramento constitucional do direito das
obrigações. Isso porque, no âmbito negocial, o respeito à dignidade humana efetiva-
se mediante a consideração pelos interesses que a parte contrária espera obter da
relação contratual7.
Para assegurar essa postura solidária, a boa-fé apresenta multifuncionalidade
no Código Civil: a) serve como paradigma interpretativo (art. 113 – função
interpretativa); b) limita a conduta humana, tipificando como ato ilícito o abuso do
direito subjetivo (art. 187 – função restritiva, limitadora ou de controle); c) integra a
obrigação principal, criando deveres laterais (anexos) éticos de honestidade, probidade e respeito,
não previstos expressamente pelas partes (art. 422 – função integrativa). Assim, essas
funcionalidades constituem ponto de partida para análise do presente tema-
problema.

                                                            
7 FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Direito das Obrigações. 2ª Ed., Rio de Janeiro:

Lumen Juris. 2007, p. 61.


 
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A moderna concepção dinâmica das obrigações recusa a perspectiva da


relação jurídica que a esgota no dever de prestar e no antagônico direito de exigir a
prestação. Atuando como legítima fonte de deveres jurídicos, a boa-fé faz com que o
liame obrigacional seja percebido em sua totalidade, com atribuição às partes de
outros deveres colaboracionistas além da prestação principal.
Tais deveres têm recebido inúmeras denominações pela doutrina: deveres
instrumentais, laterais, correlatos, de cooperação, proteção e tutela, ou, ainda, deveres
anexos do contrato. Mas apesar dessas múltiplas definições, eles compreendem, em
síntese, os “deveres especiais decorrentes da imposição da boa-fé objetiva, inserida
no contexto de uma obrigação complexa entre sujeitos determinados ou
determináveis”8.
Dentre tais imperativos estão o dever de informar, atinente ao
aconselhamento e riscos contratuais, o dever de cooperação na execução do contrato
e o dever de cuidado, relacionado à segurança da vida e patrimônio das partes.9
Antônio Menezes Cordeiro prefere conceber essas exigências
comportamentais como “deveres fiduciários”, subdividindo-os em três categorias,
quais sejam: de cuidado, de informação e de lealdade10. Nesse diapasão, Fernando
Noronha acrescenta também os deveres de assistência ao analisar a lição do mestre
português e, em seguida, explica cada um deles nos seguintes termos

Por força dos deveres de cuidado, geralmente chamados de proteção¸


ou de segurança, cada parte numa relação obrigacional deve cuidar
para que a outra não sofra lesões, nem em sua pessoa nem no seu
patrimônio. Os deveres de informação, também chamados de
esclarecimento, são aqueles que obrigam as partes a, no momento do
                                                            
8 ROSENVALD, Nelson. Dignidade Humana e Boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 97.
9 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 1992, p. 187,
195 e 198.
10 CORDEIRO, António Menezes. Da boa fé no direito civil. v. 1, Coimbra: Almedina, 1984, p. 603 a

606.
 
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nascimento de uma obrigação contratual (celebração do contrato)


e também na fase das negociações preliminares antecedente,
informarem-se mutuamente de todos os aspectos que, de acordo
com os padrões de conduta prevalecentes, sejam importantes para
a realização do negócio em causa. Os deveres de assistência, de
colaboração propriamente dita, ou de cooperação, são aqueles que
obrigam as partes, especialmente aquelas que tiverem fornecido
produtos e serviços duradouros, a, ao longo do tempo, prestarem
auxílio à contraparte, instruindo-a sobre como resolver problemas
que surjam, ou assegurando o fornecimento de peças de
reposição. Estes deveres de assistência são similares aos de
informação, mas estão presentes durante a execução do contrato e
mesmo após o término deste (fase pós-contratual). Por último, os
deveres de lealdade serão aqueles que obrigam as partes a se
absterem de ações que possam “falsear o objetivo do negócio ou
desequilibrar o jogo das prestações por elas designado”, como diz
Menezes Cordeiro [1984, v. 1, p. 606]11.

O descumprimento desses imperativos recebeu na Alemanha a precursora


designação de “violação positiva do contrato”. Isso porque o inadimplemento
contratual dos deveres anexos não decorre de atitude negativa do devedor, tal como
ocorre ordinariamente com a inexecução total ou parcial (mora) da prestação
principal.
Conforme sustentou Hermann Staub, importariam verdadeira hipótese de
inadimplemento “os incontáveis casos nos quais alguém descumpre uma relação por
meio de atuação positiva, nos quais alguém pratica aquilo de que deveria abster-se, ou
efetua a prestação que deveria ser efetuada, mas de forma defeituosa”12.

                                                            
11 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações: Fundamentos do Direito das Obrigações, Introdução

à Responsabilidade Civil. v. 1, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 84 e 85.


12 STAUB, Hermann, Die positiven Vertragsverletzungen. In: Culpa in Contrahendo und Die positiven

Vertragsverletzungen, mit einem Nachwort von Eike Schimidt. Bad Homburg v.d.H.:Gehlen, 1969, n. 26, p. 93
apud DA SILVA, Jorge Cesa Ferreira, A boa-fé e a violação positiva do contrato, Rio de Janeiro, Ed.
Renovar, 2002, p. 13.
 
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A professora Rosa Maria de Andrade Nery exemplifica a violação dos


referidos deveres acessórios da seguinte forma

Se a execução do contrato, por exemplo, não atende ao interesse


dos contratantes, porque a vantagem econômica natural e efetiva
do negócio não pode se realizar em razão de óbice que era do
conhecimento dos vendedores, mas não do conhecimento dos
compradores, identifica-se hipótese de descompasso das partes
quanto ao dever de lealdade que elas se devem mutuamente. O dever
de informação, no trato negocial, ainda mais relacionado com o
objeto central do negócio é dever das partes, e o seu
descumprimento é aspecto evidenciador de falta de boa-fé
objetiva (rectius=de lealdade) do contratante (GRIFOS
NOSSOS)13 - 14.

Sob essa ótica, devido à sua atualidade, merece ser explicitado o dever de o
credor mitigar os próprios prejuízos, modalidade que pode ser arrolada entre os

                                                            
13 NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São
Paulo: RT, 2008, p. 259.
14 Nesse diapasão, Judith Martins Costa ilustra a existência daqueles deveres ao apresentar o seguinte

rol: “a) os deveres de cuidado, previdência e segurança, como o dever do depositário de não apenas
guardar a coisa, mas também de bem acondicionar o objeto deixado em depósito; b) os deveres de
aviso e esclarecimento, como o do advogado, de aconselhar o seu cliente acerca das melhores
possibilidades de cada via judicial passível de escolha para satisfação de seu desideratum, o do consultor
financeiro de avisar a contraparte sobre os riscos que corre, ou o do médico, de esclarecer o paciente
sobre a relação custo/benefício do tratamento na fase pré-contratual, o do sujeito que entra em
negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da
declaração negocial; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações
jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, in fine, 14, 18, 20, 30, 31,
entre outros), seja em atenção ao mandamento da boa-fé objetiva; d) o dever de prestar contas, que
incumbe aos gestores e mandatários, em sentido amplo; e) os deveres de colaboração e cooperação,
como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela
negativa, o de não dificultar o pagamento por parte do devedor; f) os deveres de proteção e cuidado
com a pessoa e o patrimônio da outra parte, como, v.g., o dever do proprietário de uma sala de
espetáculos ou de um estabelecimento comercial de planejar arquitetonicamente o prédio, a fim de
diminuir o risco de acidentes; g) os deveres de omissão e de segredo, como o dever de guardar sigilo
sobre atos ou fatos dos quais se teve conhecimento em razão do contrato ou de negociações
preliminares, pagamento, por parte do devedor etc”. COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado:
sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 1999, p. 439.
 
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deveres que são classificados como “de lealdade”. É o assunto que o próximo tópico
pretende desenvolver.

2.2 O dever de mitigar os próprios prejuízos (duty to mitigate the loss)

Interessante notar que, hodiernamente, ganha relevo uma espécie sui generis
de dever anexo decorrente da boa-fé objetiva que tem recebido cada vez mais
prestígio da jurisprudência brasileira: o dever de o credor mitigar seu próprio prejuízo
(duty to mitigate the loss). Segundo esse padrão comportamental, reconhece-se como
dever anexo do credor a necessidade de zelar para que seus prejuízos não sejam
majorados devido à sua ação ou omissão.15
A jurisprudência estrangeira traz interessante exemplo de violação a esse
dever. De acordo com julgado expedido pela Bundesgerichthof, em 1999, uma empresa
produtora de sementes de uva havia adquirido cera especial destinada a evitar o
ressecamento das cepas e protegê-las contra os riscos de infecções. No entanto, após
as primeiras aplicações do produto, descobriu-se que a cera estava causando danos às
cepas. Contudo, a despeito da ciência de tais danos, a empresa continuou a utilizar-se
da cera.

                                                            
15 “A obrigação deve ser vista como uma relação complexa, formada por um conjunto de direitos,

obrigações e situações jurídicas, compreendendo uma série de deveres de prestação, direitos


formativos e outras situações jurídicas. A obrigação é tida como um processo – uma série de atos
relacionados entre si -, que desde o início se encaminha a uma finalidade: a satisfação do interessa na
prestação. Hodiernamente, não mais prevalece o status formal das partes, mas a finalidade à qual se
dirige a relação dinâmica. Para além da perspectiva tradicional de subordinação do devedor ao credor
existe o bem comum da relação obrigacional, voltado para o adimplemento, da forma mais satisfativa
ao credor e menos onerosa ao devedor. O bem comum na relação obrigacional traduz a solidariedade
mediante a cooperação dos indivíduos para a satisfação dos interesses patrimoniais recíprocos, sem
comprometimento dos direitos da personalidade e da dignidade do credor e devedor” ROSENVALD,
Nelson. Dignidade Humana e Boa-Fé. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 204.
 
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Ante esse quadro, a Corte Federal alemã decidiu no sentido de que a


conduta descrita acima violou o artigo 77 da CIGS, não podendo ser aceita,
porquanto contrária a todas as regras de comportamento contratual, sejam elas de
natureza moral, costumeira (lex mercatoria), principial (boa fé) ou legislativa.
No Direito Brasileiro, a infração pelo credor do seu respectivo dever de
mitigar o próprio prejuízo vem alcançando crescente prestígio. Cite-se como
exemplo importante precedente do Tribunal de Justiça do Espírito Santo em que
instituição de ensino superior, muito embora tenha constatado a desistência de aluno
do curso ofertado, não realizou procedimentos imediatos para cobrança dos valores
das mensalidades.
Fixou-se, então, o entendimento no sentido de que “é abusiva a conduta da
instituição de ensino, que aguardou o transcurso de todo o ano letivo - e o
vencimento de todas as mensalidades -, para tomar providências (...)”16. Daí porque
restou devida apenas a multa pela desistência do contrato e não o valor de todas as
prestações mensais correspondentes aos meses posteriores ao abandono do curso
pelo cliente.
Ao fundamentar o acórdão, a Desembargadora Relatora assim enfatizou a
posição adotada pelo TJES

Trata-se de orientação decorrente do princípio interpretativo do


duty to mitigate the loss, ou da mitigação do prejuízo pelo próprio
credor. In casu, deveria a instituição recorrente ter exigido as
mensalidades inadimplidas tão logo constatasse o abandono da
aluna, não permitindo que a dívida aumentasse, para só então
cobrá-la.
Portanto, concluo que não são devidas as parcelas ora exigidas,
simplesmente porque não houve prestação e utilização dos
                                                            
16BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Apelação Cível n. 24.060.084.241. Quarta Câmara
Cível. Relatora: Des. Catharina Maria Novaes Barcellos. Vitória, ES, 10 mar. 2009. Diário da Justiça
do Espírito Santo, n. 3522, 25 mar. 2009. Disponível em <www.tjes.jus.br>. Acesso em: 20 jun. 2010.
 
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serviços, já salientado que a escola tinha plenas condições de saber


do abandono da aluna17.

Nota-se, desta maneira, evidências que o dever de mitigar os próprios


prejuízos é compatível com o direito brasileiro, enquadrando-se entre os deveres
procedentes da eticidade, notadamente, no subprincípio da probidade (lealdade) de
deflui imediatamente do princípio da boa-fé objetiva. Entretanto, também há razões
jusfilosóficas para admissão desse padrão de conduta contratual conforme se
demonstrará no próximo item deste trabalho.

2.3 A verdade nas relações negociais

Pelo exemplo que ilustrou o tópico anterior, percebe-se que a “verdade” nas
relações jurídicas negociais não é aquela que deflui imediatamente dos contornos
formais apresentados pelas partes.
Ora, muito embora se verifique o inadimplemento de certas obrigações
principais, a análise perfunctória do caso sub examine nunca é o bastante para se
determinar se a conduta da parte adimplente está realmente estribada de acordo com
as máximas que podem ser extraídas da boa-fé objetiva.
Um segundo exemplo referente ao duty to mitigate the loss corrobora a
conclusão parcial oferecida no presente tópico. Diante da quebra de sociedade
empresária, é usual – e também razoável – admitir que as obrigações de execução
continuada que não se interromperem com a decretação da falência podem ser
cobradas pelo respectivo credor no rateio dos bens que compunham o patrimônio da
pessoa jurídica.

                                                            
17 Idem.
 
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Todavia, situação bastante particular ocorreu no estado de São Paulo. O


administrador judicial de certa massa falida notificou a companhia de energia elétrica
que não necessitaria mais de fornecimento de potência diferenciada de energia para o
estabelecimento empresarial, porquanto encerradas suas atividades. Mesmo assim, a
credora continuou a disponibilizar aquele serviço, que era expressivamente mais caro
do que o método de potência ordinário de energia elétrica.
Na fase de habilitação dos créditos, a mencionada companhia elétrica
credora pretendeu o recebimento do valor integral atinente ao serviço de potência
diferenciada que havia sido disponibilizado à sociedade falida. Diante dessas
circunstâncias, assim se pronunciou o magistrado Silas Silva Santos

Ocorreu que, com a decretação da falência, o administrador


judicial comunicou, por escrito, a vontade de não mais manter
aquele sistema diferenciado de fornecimento de energia, tudo no
afã de minimizar os prejuízos da massa e também da própria
concessionária de energia elétrica (fls. 126).
Ora, diante dessa expressa manifestação de vontade, cabia à
credora adotar comportamento mitigatório de suas próprias
perdas (duty to mitigate the loss), na consideração de que não era mais
necessária a manutenção daquela demanda que ensejou a
contratação inicial. Os deveres de cooperação, de lealdade e de
probidade decorrentes do princípio da boa-fé objetiva também
impunham semelhante comportamento.
Em outras palavras, de uma forma ou de outra, o fato é que a
manifestação do administrador judicial teve o condão de resilir
unilateralmente aquele contrato18.

Verifica-se, destarte, que a obediência aos deveres anexos do contrato visam


garantir a preservação da verdade na efetivação das relações negociais.
                                                            
18BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Decisão interlocutória em incidente de
habilitação de crédito no processo n. 483.01.2006.003003-0 /000008-000. 1ª Vara da Comarca de
Presidente Venceslau.Juiz: Silas Silva Santo. Presidente Venceslau, SP, 21 dez. 2007. Disponível em
<www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 20 jun. 2010.
 
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3. RESPONSABILIDADE PELA VIOLAÇÃO DOS DEVERES


ANEXOS

Uma vez constatada a adequação dos deveres anexos para com o direito
brasileiro, trata-se agora de examinar qual seria a natureza jurídica da
responsabilidade pelo inadimplemento dos deveres anexos provenientes da boa-fé
objetiva.
Em razão do caráter intensamente controverso do assunto, cabe mencionar
a existência de duas principais correntes quanto ao tipo de responsabilidade civil
resultante da violação dos deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva.

3.1 Responsabilidade Objetiva

Segundo o enunciado 24 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da


Justiça Federal “em virtude do princípio da boa-fé, positivado no CC 422, a violação
dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de
culpa”.
Segundo esse entendimento, a violação positiva da obrigação contratual
qualificada pelo descumprimento de dever lateral consubstancia abuso de direito que
prescinde do fator culpar para sua reparação19. Logo, para ressarcimento dos
prejuízos, bastará apenas a comprovação da conduta, do dano e do nexo causal entre
ambos20.

                                                            
19 TARTUCE, Flávio. Sentença: a boa-fé objetiva e o dever do credor de mitigar a perda (duty to
mitigate the loss), In: A outra Face do Poder Judiciário. Decisões Inovadoras e Mudanças de Paradigmas”, 2,
Del Rey, 2007, 45 e segs., p.66.
20 NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 4. ed., rev., ampl.

e atual. até 20 de maio de 2006. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 236; DINIZ, Maria
 
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Essa posição também tem por fundamento o fato de que, frequentemente,


quem é beneficiado pelo cumprimento de deveres anexos e resta lesado por sua
inobservância não dispõe de meios hábeis para produzir prova. Por isso, a
responsabilização objetiva atende à necessidade de redistribuição de riscos, com a
inversão do ônus probatório.
Hipoteticamente, seria possível imaginar o caso daquele que descumpre o
dever de informar sobre as condições do bem alienado. Caso não proceda dessa
forma, terá de provar que efetivamente se desincumbiu do ônus que lhe cabia.

3.2 Responsabilidade Subjetiva

Vera Maria Jacob Fradera, ao tratar do dever anexo de o credor mitigar o


próprio prejuízo afirma que “no sistema do Código Civil brasileiro de 2002, de
acordo com o disposto no seu art. 422, o duty to mitigate de loss poderia ser considerado
um dever acessório, derivado do princípio da boa-fé objetiva”. Em seguida, conclui a
autora que “como se trata de um dever e não de obrigação contratualmente
estipulada, a sua violação corresponde a uma culpa delitual”21.

                                                                                                                                                                   
Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. V. 1, 6 ed. rev. e atual. De acordo com o novo Código
Civil (Lei 10.406, de 10-1-2002), o Projeto de Lei n. 6.960/2002 e a Lei n. 11.101/2005. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 86. AGUIAR, Ruy Rosado (org.) I Jornada de Direito Civil. 2002, Enunciado n. 24.
BIGOLIN, Régis In AGUIAR JR, Ruy Rosado (org.) III Jornada de Direito Civil. 2005, p. 226.
21 FRADERA, Vera Maria Jacob. In AGUIAR JR, Ruy Rosado (org.) III Jornada de Direito Civil.

Brasília: CJF, 2005, p. 175. Enunciado 169 “Viola o dever de mitigar o prejuízo o locador que não
ingressa tão logo quanto possível com a competente ação de despejo em fase do inadimplemento e
com isso permite que a dívida assuma valores excessivos. Nesse caso, serão compensadas na quantia
devida as perdas e danos decorrentes do avultamento provocado pela inércia do credor. No mesmo
sentido: FRANZOLIN, Cláudio José. A responsabilidade decorrente do inadimplemento dos deveres
anexos do contrato. Scientia Iuris. Londrina, v. 13, p. 137-153, nov. 2009, p. 150.
 
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Nessa esteira, mesmo vislumbrando a hipótese de violação positiva do


contrato, há os que entendem que quando o dever inadimplido não tenha vinculação
direta com os interesses do credor na prestação, será necessária a perquirição da
culpa22. Sendo assim, a violação de deveres anexos seria disciplinada pela regra geral
de responsabilidade civil subjetiva.
Com respaldo na noção de culpa em sentido amplo, seria necessário
verificar a ocorrência de dolo ou culpa em sentido estrito na hipótese de inexecução
regular do contrato. Logo, seria indenizável o descumprimento de dever anexo
quando resultasse da conduta intencional do agente direcionada a prejudicar o
devedor. E, também, quando derivasse de conduta omissa ou sem consciência
deliberada de ocasionar tal violação, como ocorre nos casos de negligência,
imprudência e imperícia.
Imagine-se a situação de pessoa contratada para pintar as paredes internas
de um prédio, mas que, embora tenha realizado perfeitamente o serviço para o qual
foi contratado, passe a importunar os moradores. E o faz solicitando dinheiro
emprestado ou agindo de forma ameaçadora no cumprimento de suas tarefas
gerando risco à integridade física dos condôminos. Nesse caso, para que o agente seja
responsabilizado pela violação do dever anexo de proteção à pessoa do credor, urge
demonstrar a ocorrência de culpa.

4. CONCLUSÃO

A dissidência doutrinária e jurisprudencial exposta acima tem como


epicentro a configuração do inadimplemento contratual denominada “violação
                                                            
22 FERREIRA DA SILVA, Jorge César. A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar,

2002, p. 268.
 
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positiva do contrato”. Esta ocorre quando uma das partes – seja ela credor ou
devedor –, infringe os deveres anexos oriundos da boa-fé objetiva.
Deste modo, há opiniões no sentido da responsabilização objetiva daquele
que descumpre dever anexo, uma vez que sua conduta tipificaria abuso de direito.
Todavia, corrente diametralmente oposta entende que depende de culpa a imputação
dos danos àquele que transgride os ditames de conduta estabelecidos pelo princípio
da boa-fé objetiva.
Contudo, depois de realizada a análise das duas alternativas acima, é
necessário ponderar que a infração de deveres anexos nem sempre consubstancia
abuso de direito e, por isso, pode ensejar tanto a responsabilidade objetiva como
subjetiva. Isso dependerá da espécie de dever anexo violado, da intensidade e da
forma com que o responsável cometeu o ilícito e, principalmente, do
comportamento exigido pela relação de confiança estabelecida com a parte contrária.
Portanto, conclui-se com Cláudio Henrique Franzolin que

Sem dúvida, a culpa penetra como um dos elementos


identificadores no âmbito do inadimplemento dos deveres anexos.
E, para isso, conecta-se com a diligência exigida. No entanto,
ocorrem algumas situações com as quais a culpa não prospera,
haja vista que existem outros parâmetros para se apreciar o
descumprimento de um dever anexo, por exemplo, quando se
envolve um objeto ou um serviço perigoso (art. 927, parágrafo
único, do CC)23.

Por derradeiro, acrescente-se que, dentre as hipóteses enunciadas pelo autor


nas quais a culpa não prospera é possível citar a tipificação do abuso de direito (art.
187).

                                                            
23 FRANZOLIN, Cláudio José. A responsabilidade decorrente do inadimplemento dos deveres

anexos do contrato. Scientia Iuris. Londrina, v. 13, p. 137-153, nov. 2009, p. 152.
 
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A RELAÇÃO ATUAL ENTRE DIREITO CONSTITUCIONAL E


DIREITO CIVIL

Sarah dos Reis Campos

RESUMO

O Direito brasileiro sempre foi e ainda é consideravelmente baseado no dito sistema


de “Civil Law”, ou seja, nas Leis e nos códigos positivados. A tradição do Direito
Privado, desde o movimento de positivação realizado com o Código de Napoleão de
1804, era separar em esferas totalmente estanques o Direito Privado do Direito
Público. A Constituição, até o segundo pós-guerra, possuía estritamente um caráter
político e só depois dessa data começou a influenciar diretamente as diversas áreas do
fenômeno jurídico. No Brasil, a Constituição de 1988 trouxe as garantias
proporcionadas pelo reconhecimento dos Direitos Fundamentais e, deste então,
progressivamente passou a ser respeitada como efetiva “Lei Maior”. Essa
preocupação com os Direitos Fundamentais não atingiram, porém, somente a esfera
do Direito Público, como a lógica tradicional esperaria. O Código Civil Brasileiro de
2002 foi fortemente influenciado por essa tal corrente, demonstrando assim que o
Direito Público e o Privado se distanciam cada vez menos; consequentemente, o
Direito Constitucional se revela cada vez mais importante para a compreensão de
todas as outras áreas da ciência jurídica. Discutir a absorção de matérias de Direito
Civil pelo texto da Carta Magna e a paralela interpretação das normas privadas
conforme os princípios constitucionais é tema indispensável a qualquer profissional
da área do Direito, pois consubstancia questão de suma importância nos tempos
atuais.

Palavras-chave: Constituição, Código Civil.

INTRODUÇÃO

Quando se faz referência ao termo “Direito Civil-Constitucional”, o senso


comum nos faz logo pensar que se trata de uma nova matéria. Tal conclusão vê-se

 
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totalmente infundada, pois ele quer apenas significar um novo entendimento tanto
sobre o Direito Constitucional quanto sobre o Direito Civil. A expressão, portanto,
demonstra uma nova interpretação do Direito Civil sob o olhar da Constituição, e
também a reciprocidade desse fato, isto é, o conteúdo dito “privado” sobre a Lei
Fundamental.
É importante frisar também que duas expressões que vêm unidas a esse
novo conceito são “publicização do Direito Privado” e “privatização do Direito
Público”. Apesar dessa associação, não se deve confundir as expressões. A
hierarquização da Constituição como Lei Fundamental parte de um processo distinto
dessas duas idéias, processo esse que logo mais será apresentado no trabalho.

1. OS CÓDIGOS COMO CENTROS DO ORDENAMENTO

Desde o começo da sociedade houveram manifestações de movimentos


chamados “codificações”. O mais antigo código conhecido é o Código de Hámurabi,
que é de aproximadamente quatro mil anos atrás. Outras expressões podem ser
observadas ao longo da história, como a Lei Mosaica dos hebreus, o Código de
Manu, na Índia e as XII Leis, no antigo Império Romano. A força normativa de um
código, porém, deu-se apenas em 1804, com a elaboração do Código de Napoleão.
Outro expoente importante foi a formulação do Código Alemão, à mesma época. A
partir de então, esse movimento de codificação foi expandido para outros países,
inclusive influenciando o Código Civil Brasileiro de 1916.
O que justifica, entretanto, este devir? A codificação ocorreu como uma
tentativa de agrupar os diversos tipos de normas existentes, e não apenas as leis
escritas. Houve uma unificação das leis vigentes do país, o que facilitou também a

 
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elaboração de uma Constituição. As principais demonstrações da força efetiva dos


códigos na modernidade sõ o Código Napoleônico e o Código Civil Alemão.

1.1 O CÓDIGO DE NAPOLEÃO

O Código Civil de Napoleão surge devido à necessidade de unificação


jurídica na França. Até então, antes da Revolução Francesa, o que se via era um
cenário típico do Feudalismo: pluralismo jurídico. Mesmo após o início da
Revolução, essa questão ainda não estava resolvida. As pessoas, por conta dessa
grande diversidade, não possuíam certeza jurídica, o que demandou a necessidade de
um sistema único de normas, isto é, de um código.
Muito se discutiu até chegar a um consenso. Apenas entre 1803 e 1804 é
que Napoleão conseguiu com que fossem aprovadas 36 leis, e em 1807, surge o
chamado “Código de Napoleão”, com mais de dois mil artigos. Já em seu conteúdo,
houve a preocupação com as pessoas, com os bens e com os “modos que se adquire
certa propriedade”
O Código Francês surge com a intenção de fazer um balanço entre a
tradição do Direito Romano (Civil Law) e a tradição do Direito Costumeiro
(Commom Law), dando, porém, mais enfoque ao primeiro tipo. Essa escolhe deve-se
pois, em países instáveis politicamente, como a França era, a codificação dava a
segurança jurídica que outrora não havia. Com as leis positivadas e acessíveis, a
população agora tinha noção de seus direitos e deveres.
Os direitos que esse código possui são os chamados “direitos de primeira
geração”, uma vez que eles possuíam forte caráter liberal. Esse código atendia a todas
as necessidades da burguesia, por priorizar princípios como a liberdade contratual, a
propriedade como direito absoluto e a autonomia da pessoa. O código era
 
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interpretado de maneira lógico-normativa, sem visar os direitos fundamentais, o que


mais adianta explicará a prioridade dele sobre a Constituição.

1.2 O CÓDIGO CIVIL ALEMÃO

O histórico do direito alemão é marcado pela tradição do direito


costumeiro. Durante o Império Carolíngio, houve certa unidade jurídica, mas, com a
dissolução do mesmo, a Alemanha passou a ser um “Império Federalista”, em que
cada província possuía autonomia. É importante relembrar que a unificação política
alemã ocorreu apenas em meados do século XIX, século esse em que também houve
uma codificação efetiva. Além desse fator, a criação de um código está estritamente
ligada às necessidades da burguesia, algo também já vivenciado anteriormente na
França.
Contrariando toda a tradição anterior, o código civil alemão tinha um
caráter rígido e tecnicista, baseado na tradição romana de direito. Também era
abstrato, para conseguir abranger várias questões jurídicas ao mesmo tempo. O
código tinha mais de dois mil parágrafos, dividindo-se em uma Parte Geral, que
tratava das pessoas, bens e negócios, e uma Parte Especial, que se subdividia em
direito das obrigações, direito de família, direitos reais e direito hereditário.
O código alemão foi visto, à época, como o mais progressista, inclusive
superando o modelo francês, em termos de influência. Como o código francês,
porém, ele também estava voltado para garantir direitos burgueses como a
propriedade e a autonomia da pessoa.

 
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1.3. OS CÓDIGOS AO CENTRO PROPRIAMENTE DITO

Toda essa exposição das características dos dois principais códigos já


escritos é necessária para o entendimento da razão em que eles foram postos como
centro de todo o ordenamento jurídico. A abstração de ambos permitia a ampla
utilização dos direitos neles existentes que, como exposto anteriormente, protegiam
apenas uma classe social: a burguesia. O momento histórico em que esses códigos
foram escritos (século XIX) foi um momento de consolidação do capitalismo e da
própria burguesia, o que também propiciou o chamado “Estado Liberal de Direito”.
Esse chamado Estado Liberal visava apenas às liberdades individuais de
cada cidadão, o que interessava diretamente a burguesia. Entretanto, os códigos civis
eram mais importantes que a Constituição em si, pois essa última era vista
meramente como um conjunto de normas postas e formais que não se efetivavam.
A segurança jurídica dava-se através dos Códigos Civis, uma vez que estes
garantiam um maior grupo de direitos, direitos esses que visavam às relações entre os
particulares. Há uma contradição, porém, entre o exercício desses direitos e os
chamados Direitos Fundamentais, que estavam presentes nas constituições de cada
país. Como o código civil era completamente rígido, formal e lógico, tais Direitos
Fundamentais não eram cumpridos, uma vez que o juiz era, de fato, mero aplicador
da lei. O código civil era visto como autossuficiente, capaz de resolver qualquer tipo
de conflito. Tornou-se então algo mecânico, que não possuía mais aquela eficiência e
garantia de segurança como outrora.

 
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2. O PAPEL DA CONSTITUIÇÃO EM SEU COMEÇO

Desde a Antiguidade, assim como com os códigos, houve manifestações de


constituições. Essas manifestações, porém, não passavam de pactos informais,
inclusive não eram positivados. Na Grécia Antiga, por exemplo, o Direito não
passava de uma mera interpretação dada pelos nobres, ou seja, a Constituição era
somente um instrumento que atendia a uma determinada classe, que era dominante e
que perpetuava essa dominação através do controle sobre as leis.
Já no período medieval, a primeira grande demonstração de pacto social
propriamente dito foi a Magna Carta de 1215, na Inglaterra. A Magna Carta surgiu
primeiramente com o intuito de limitar os poderes do rei João, devido a conflitos
entre ele, o Papa e os nobres. Já dessa noção é possível extrair um dos motivos que
levam à formação de uma Constituição: limite de poderes.
No começo, a Magna Carta apresentava interesses de uma classe dominante
em si, a nobreza. Com a ascensão da classe burguesa, entretanto, esse eixo foi
mudando, fazendo com que a Câmara dos Comuns (representantes da burguesia e,
posteriormente, do povo) ficasse acima da Câmera dos Lordes e também do rei em
si. Tal mudança também aconteceria, bem depois, na mudança de foco do Código
Civil para a Constituição em si.
Antes, porém, da moderna concepção de constituição como pacto social e
também de Lei Fundamental que garante direitos limitando poderes, a constituição
em si era vista apenas como um pacto político. O povo não tinha participação efetiva
na formulação dela e, mesmo se tivesse, ela não era posta em prática. Isso demonstra
porque os códigos civis eram mais importantes e estavam no centro do ordenamento
– a Constituição não passava a idéia de segurança jurídica.
É claro que não se pode desconsiderar a importância da Constituição nos
Estados Unidos, que desde o começo era o centro do ordenamento jurídico norte-
 
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americano. Esse caso, porém, é uma exceção no momento histórico das codificações,
porém a idéia de centralização da Constituição, já vista nos EUA, será também
aderida em outros países, o que será discutido logo mais.
Com as mudanças na sociedade, a crise do Estado Liberal de Direito e a
transição deste para o chamado Estado Social de Direito, o centro do ordenamento
jurídico também sofreu alterações, passando dos códigos para a Constituição.

2.1. BREVE HISTÓRICO DO ESTADO DE DIREITO

O Estado de Direito surge a partir do século XIX, com as chamadas


revoluções burguesas. Ante a transição do Absolutismo para as outras formas de
governo, que tomavam a burguesia como centro da política, era necessária uma nova
ordem vigente, e, portanto, um novo direito também.
Durante séculos, a atividade jurídica concentrava-se no poder da nobreza e,
indiretamente, do clero. Antes mesmo disso, o rei tinha o poder total e absoluto
sobre o direito também. Essa era uma forma de perpetuação do poder, que era
julgador e ao mesmo tempo formulador de suas próprias regras. Desse modo, a
população em geral não tinha o mínimo acesso à justiça, tanto por falta de
conhecimento como por falta de representatividade.
Com a nova classe social ascendente, a burguesia, o quadro instituído
precisava de uma transformação. A política econômica do Absolutismo, que era de
intervencionismo estatal, não atendia aos interesses burgueses, uma vez que eles
desejam total liberdade para o exercício de suas atividades.
Somente com a expansão do Iluminismo como principal corrente teórico-
cientifíca é que a burguesia finalmente conseguiu avistar a possibilidade de mudança.
No século XVIII, com livro “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith, já era possível
 
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vislumbrar os anseios burgueses de separação da economia do poder político, pois o


liberalismo tinha como máxima a não-intervenção estatal.
Tal idéia de separação do poder absoluto também era condizente com a
aspiração à liberdade política burguesa. O Absolutismo não era, há muito, mais
coerente com os ideais burgueses, o que gerou as famosas revoluções burguesas.
Trocada, então, a ordem vigente, via-se necessária uma radical
transformação do direito. Para garantir as conquistas que obtivera, a burguesia passa
então a estabelecer princípios inerentes a perpetuação do poder da mesma. Sob uma
aparência de garantias da igualdade e liberdade tanto pregadas nas revoluções,
buscou-se instaurar os chamados direitos fundamentais de primeira dimensão.
As liberdades individuais e de propriedade passam a idéia de conquista
social, idéia essa que logo depois é substituída pelos direitos de segunda dimensão.
Os direitos do Estado Liberal buscam proteger o cidadão do Estado, visto que ainda
há a idéia de Estado absoluto, advinda do próprio Absolutismo. Apesar disso, há a
consolidação da democracia representativa, uma vez que o poder estabelecido pelo
povo é garantido diante dessa mudança, em que há, pela primeira vez, certa
participação popular na política e, como conseqüência disso, no Direito.
Esse modelo, porém, não vigora por muito tempo. Há a crise do Estado
Liberal, que ocorre junto à crise econômica de 1929. Com a queda do liberalismo
econômico, a proposta de sociedade e também dos direitos começa a se transformar.
A partir das políticas keynesianas, que critica o liberalismo clássico, pregando a igual
distribuição de renda, surge o conceito de um novo Estado de Direito: o chamado
Estado Social.
Conhecido também como “welfare state”, o Estado Social muda
radicalmente a visão acerca do papel do Estado na sociedade. Ele agora possui o
dever de promover o bem-estar social, e não mais apenas garantir direitos que são
tidos como meramente formais. A prática desses direitos é dever do Estado, e é por
 
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isso que agora sim não há proteção aos interesses de uma determinada classe social,
como ocorria, na realidade, no Estado Liberal.
Surgem então, com essa nova perspectiva, os direitos fundamentais de
segunda dimensão, que predominaram no século XX. São chamados “direitos
coletivos”, em que há preocupação com o todo, isto é, com os direitos de
determinadas classes. Há preocupação com leis trabalhistas e também tributárias,
como se pode ver, no Brasil, com a Consolidação das Leis Trabalhistas. A reforma
agrária também é uma questão que passa a ser discutida, ante essa nova demanda
social.
Ao contrário dos direitos de primeira dimensão, os chamados direitos
sociais não têm um sujeito específico; a liberdade visada não é a individual, e sim a
coletiva. Estabelece-se, a partir de então, normas específicas sobre as relações
trabalhistas na indústria e no campo, e também questões fundamentais como
educação e saúde. Esses direitos vão acabar incorporando também as constituições
dos Estados, inclusive na Constituição Brasileira de 1988.
O Estado Social de Direito, porém, também sofreu uma dura crise. Com as
melhorias e avanços na sociedade, como aumento da qualidade e também da
expectativa de vida, o Estado não conseguiu mais arcar com todas as despesas dos
cidadãos. Houve, então, mais uma mudança da concepção do Estado: atualmente,
vivencia-se o chamado “Estado Democrático de Direito”, surgindo também os
direitos de terceira dimensão.
O Estado Democrático de Direito visa contrabalancear os direitos da
primeira e segunda dimensões. Do neo-liberalismo, busca manter a liberdade
econômica adquirida, enquanto do conceito de social-democracia, esses direitos
liberais devem ter certo teor social. Essa questão relaciona-se com a Constituição
Federal de 1988, que pode ser vista em artigos da mesma, o que será enfocado logo
mais adiante.
 
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3. A MUDANÇA DO CENTRO DO ORDENAMENTO

A Constituição passou a ser o centro do ordenamento jurídico. Mas quais


são as razões para tal mudança? Segundo o professor-mestre Luis Roberto Barroso,
há três marcos para essa nova perspectiva: um marco histórico, um filosófico e um
teórico.
O marco histórico dá-se a partir do segundo pós-guerra, na Europa, e após
a Constituição de 1988, no Brasil. Depois da Segunda Guerra Mundial, a sociedade
passa a querer ter maior segurança não quanto aos direitos apenas ligados ao
liberalismo, e sim aos chamados “direitos democráticos”, isso é, aqueles que colocam
a dignidade humana acima dos demais princípios. Os marcos iniciais dessa visão na
Europa ocorreram na Alemanha e na Itália, dois dos países que outrora
configuravam um Estado totalitário.
Tal preocupação com as garantias democráticas também é vista e vivenciada
no Brasil. A Constituição Federal de 88, considerada a mais “cidadã” de todas que o
país já teve, surgiu após vinte anos de um Estado totalitário, e também apresenta
grande grau de democratização, como mais adiante será evidenciado. Ainda na linha
de pensamento de Barroso, a Constituição, por ter sido uma verdadeira conquista
democrática, torna-se o centro de toda a questão do ordenamento. Questiona-se
sobre o que é ou não é legal a partir do que é ou não constitucional, tendo como
exemplo várias questões sociais como decisão do aborto com a anencefalia, a revisão
da Lei de Anistia, a intervenção federal no Distrito Federal devido aos casos de
corrupção, etc. A partir de então é que efetivamente a Constituição adquire o caráter
de limitação de poderes e garantia de direitos, não mais apenas uma mera
formalidade.
O marco filosófico é o chamado pós-positivismo. Essa corrente surge
como uma tentativa de conciliar as duas escolas filosóficas já existentes: o
 
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jusnaturalismo e o positivismo. A primeira corrente é demasiadamente abstrata, ao


afirmar que existe um “direito natural e universal”, inerente a todos os seres
humanos, enquanto a segunda é excessivamente mecanizada, racionalizada, o que
acaba por afastar o Direito da sociedade. Após também a Segunda Guerra Mundial,
valores tidos como “naturais” voltam à cena, justamente por causa da demanda social
de justiça e ética, não vistas durante a ascensão de regimes totalitários.
O pós-positivismo surge para tentar juntar esses princípios de justiça como
também a positivação do Direito em si. A legalidade é necessária e se faz através de
códigos positivados, porém há outras fontes além dessas para o Direito. Alexy já diz
“a injustiça extrema não é direito”, e também atualmente é pior violar um princípio
que se encontra na Constituição que transgredir uma norma infraconstitucional.
O marco teórico subdivide-se em três categorias: o reconhecimento da
força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e uma nova
interpretação constitucional. A primeira diz respeito à mudança de centro do
ordenamento já anteriormente exposta, a segunda é comprovada através de, por
exemplo, o controle de constitucionalidade e, por último, a terceira acaba por ser
uma conseqüência da primeira, isto é, a força normativa da Constituição gera uma
nova interpretação sobre todo o Direito e, atualmente, sobre o Direito Civil essa
perspectiva já se vê consolidada.

4. O MOVIMENTO DE DESCODIFICAÇÃO

Como reflexo de toda essa mudança, houve também o chamado


movimento de descodificação do Direito. As leis chamadas “gerais”, que continham
o teor geral para dar maior possibilidade de opções ao aplicador da lei foram
gradativamente sendo substituídas pelas leis especiais, o que garantia, de fato, maior
 
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eficácia social. Um exemplo atual disso são os chamados “Juizados Especiais”, que
demonstram a tentativa de aproximação e resolução de conflitos sem a participação
direta do Estado.
O código civil, que era visto como infalível e fonte de todas as soluções não
conseguiu comportar a idéia da nova sociedade, sociedade essa que é amplamente
diversificada. Dado esse fato, a necessidade de leis mais específicas passou a
aumentar, causando essa ruptura com a idéia de “código imbatível”.
Algo a se considerar, porém, é que não somente o Código Civil Brasileiro é
que foi influenciado pela Constituição, mas esta também recebeu diretamente idéias
do âmbito do direito privado. A Constituição, portanto, não retira a importância da
regulamentação de relações entre pessoas, bens e seus negócios jurídicos, mas pelo
contrário, ela serve para garantir a existência de tal ordenamento, consolidando-o
com a proposta de encontrar um balanço entre os direitos adquiridos com o Estado
Liberal e os direitos sociais.

5. O CÓDIGO CIVIL NA CONSTITUIÇÃO

Não somente a Constituição é que se lançou sobre o Código Civil. O atual


código brasileiro, embora seja datado de 2002, na verdade apresenta idéias das
décadas de 70 e 80. O código anterior a esse era o de 1916, que apresentava normas
pouco democráticas, como a regulamentação do desquite caso comprovada a
defloração da mulher antes do casamento. Tais preceitos já não eram mais aceitos,
ou, no mínimo, cabíveis ante a nova realidade social.
A década de 80 do século XX apresentou grandes transformações sociais
que refletiram no Direito também. Um exemplo disso é o reconhecimento da

 
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entidade familiar conhecida por “união estável”, que, pelo Código Civil Brasileiro de
1916, era considerada algo imoral e também irregular diante do ordenamento.
As idéias, portanto, que embasaram o Código Civil também acabaram por
fazer parte da Constituição Federal de 1988. Alguns dispositivos, como a família e a
propriedade, antes vistos como exclusivos do âmbito civil, passaram também a
integrar a Constituição, até como forma de garantir os direitos associados a essas
entidades.

6. EXEMPLOS CONCRETOS DO FENÔMENO

Como anteriormente discutido, os princípios fundamentais de uma


Constituição passaram a integrar uma nova interpretação do Código Civil. Mas onde
e como tal interpretação é vista no novo Código Civil Brasileiro?
Antes da codificação em si, ou seja, da positivação de normas, as mudanças
no entendimento de certo assunto no Direito geralmente dão-se através da
jurisprudência. O primeiro caso no Brasil disso foi da expulsão de um associado em
uma cooperativa de músicos, que foi questionada, devido à falta da garantia de ampla
defesa e do contraditório, que são Direitos Fundamentais assegurados. O recurso
extraordinário 201.819, dado pelo STF, foi inovador e demonstrou a nova
interpretação constitucional do Direito Civil. Ainda que o princípio da autonomia da
vontade tenha sido alegado, os constitucionais (da ampla defesa e do contraditório)
sobressaíram-se, demonstrando de vez a força normativa da Constituição.
Já na codificação em si, há exemplos tanto na Constituição quanto no
Código Civil dessa relação entre direito público e direito privado. No artigo 226 da
Constituição Federal, caput, diz assim: “A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado”. No parágrafo sétimo, se vê mais evidente tal relação: “Fundado
 
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nos princípios da dignidade humana e da paternidade responsável, o planejamento


familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. Tal proteção à família e
configuração de direitos e deveres também são vistas no artigo 227 da Constituição,
caput: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao
adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade
e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligencia, discriminação, exploraçao, violência, crueldade e opressão.”
Não somente no que diz respeito à família, como também da relação de
propriedade privada e das relações comerciais. O artigo 5º, XXXII, diz: “O Estado
promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, bem como no tocante à
propriedade, artigo 5º C.F/88, XXII: “é garantido o direito a propriedade”, e, logo
em seguida, em XXIII: “a propriedade atenderá a sua função social”.
Também na Lei de Introdução ao Código Civil (decreto-lei n. 4657/42), o
artigo 5º diz: “N aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e
às exigências do bem comum”. Outro exemplo da presença de princípios
constitucionais no Código é visível no artigo 548 do Código Civil, que diz: “É nula a
doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência
do doador”. O princípio em questão é o do mínimo existencial, que põe novamente a
pessoa humana no centro do ordenamento jurídico.
Fica claro, portanto, a relação que existe entre os direitos sociais e os
direitos individuais, e, também com isso, é perceptível a ligação entre direito público,
representado pela Constituição, e direito privado, representado pelo Código Civil.

 
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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O chamado Direito Civil-Constitucional já é um conceito consolidado no


Brasil e em diversas partes do mundo. Entender como e porque ele hoje é influente é
algo necessário a qualquer cientista da área jurídica, pois a realidade posta é a que está
de fato ocorrendo atualmente.
A valorização da pessoa humana justificou e ainda justifica todo esse
processo e, uma vez esse princípio assegurado pela Constituição, o Direito
Constitucional finalmente adquiriu um grande papel – se não o principal – dentro da
ciência jurídica. O texto fundamental, antes com esse nome apenas formalmente,
possui agora força normativa para regulamentar todo o ordenamento
infraconstitucional.
A força do Código Civil perdeu-se porque também a idéia de direitos
individuais foi deixada de lado. Não bastava a garantia formal, sem realização prática,
e também não eram suficientes os direitos de primeira direção, que atendiam aos
interesses de somente uma classe. Com a democratização, ante um processo
histórico, dos direitos, o foco também se deslocou, dando prioridade aos direitos
sociais e de teor democrático.
Reconhecer isso, porém, não significa que os códigos, dentre eles o civil,
têm de ser deixados de lado. A Constituição tem como principal função reger todo o
ordenamento jurídico, e propiciar a existência do mesmo. Tanto isso é verdade que,
como foi visto anteriormente, o Código Civil também teve participação na
formulação da Constituição Federal de 88, no Brasil.
A Constituição, portanto, não vem para tirar a importância normativa do
Código Civil, e sim para ser seu alicerce, sua fonte primária. Os direitos existentes
nele, como os de família e os de propriedade privada, devem ter um amparo social-

 
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democrático, tomando como base, é importante reforçar, os princípios


constitucionais: dignidade humana, isonomia e solidariedade.
Conclui-se aqui, frisando novamente que o Código Civil é um
ordenamento necessário para regulamentação das relações entre os particulares,
porém essa relação não pode justificar abusos por parte de algum deles. A
identificação de um excesso ou não do direito de alguma das partes dá-se,
atualmente, a partir do que é considerado constitucional ou não.

8. BIBLIOGRAFIA

Livros

ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de direito constitucional/ Luiz Alberto


Dacid Araújo, Vidal Serrano Nunes Júnior. – 11 ed. rev. e atual – São Paulo: Saraiva,
2007.

CACHAPUZ, Rozane da Rocha. Mediação nos conflitos & Direito de


Família/Rozane da Rocha Cachapuz/1ª ed.(ano 2003),4ª tir./Curitiba:Juruá, 2006.

COSTA, Dilvanir José da, 1932 – Sistema de Direito Civil à luz do novo Código/
Dilvanir José da Costa – Rio de Janeiro: Forense, 2005.

DAVID, René. 1906 - .Os grandes sistemas do direito contemporâneo/ René


David; tradução Herínio A. Carvalho – 4ª edição – São Paulo: Martins Fontes, 2002.
– (Coleção justiça e direito)

MIRANDA, Jorge, 1941 - . Teoria do Estado e da Constituição/ Jorge Miranda –


Rio de Janeiro: Forense, 2002. Tradução da edição portuguesa.

 
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Edições Uberlândia e Belo Horizonte

MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito social aos interesses transindividuais:
o Estado e o Direito na ordem contemporânea/ José Luis Bolzan de Morais –
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

Material da Internet

A codificação Direito, por Adriane Stoll de Oliveira. Disponível em:


http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3549&p=1

Carta Magna de 1215 criou condições para liberdades e direitos civis, por Matthias
Von Hellfeld. Disponível em: http://www.dw-
world.de/dw/article/0,,4213323,00.html

Direito Civil constitucional – aplicação e efetividade dos Direitos Fundamentais, por


Raquel Evangelista e Vladimir Brega Filho. Disponível em:
http://jusvi.com/artigos/26454

Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito, por Luis Roberto Barroso.


Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547&p=2

O Direito Civil Constitucional, por Maiana Alves Pessoa. Disponível em:


http://www.juspodivm.com.br/artigos/artigos_52.html

Os direitos de primeira e segunda dimensão, por Fernanda Silva Tose. Disponível


em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1598 

 
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A RESPONSABILIDADE CIVIL E OS REFLEXOS DA CONFIANÇA

José Humberto Souto Júnior1

RESUMO

A responsabilidade civil é tema de tamanha importância no nosso ordenamento


jurídico pátrio. Indenizar a vítima de um ato ilícito é uma das formas de
compensação pelos danos patrimoniais e morais ali perturbados. O instituto
indenizatório demonstra principalmente a preocupação em ressarcir a vítima pelo ato
lesivo sofrido. A evolução da responsabilidade civil trouxe o percurso da
subjetividade para a objetividade, até mesmo cogitando novas formas de
responsabilização, como a coletiva. De maneira não diferente, a violação da
confiança vem se tornando uma das formas de reparação no âmbito da
responsabilidade civil, pois envolve, no seu âmago, a quebra da expectativa. Tema
ainda polêmico, principalmente pela aplicação através de cláusulas gerais, a quebra da
confiança é uma das formas reparatórias que vem sendo inserida no nosso
ordenamento pátrio, com especial atenção à figura da vítima, que deposita a
expectativa na concretização de determinado objetivo, tendo, todavia, esta quebrada
de forma inesperada. Pugna-se assim, pela proteção da confiança, com atenção
especial ao direito privado.

Palavras-chave: Princípio da Confiança; Responsabilidade Civil; Proteção da


Confiança.
Keywords: Principle of Trust; Civil Responsibility; Protection of Trust.

SUMÁRIO

1. Introdução – 2. A evolução da responsabilidade civil – 3. A tutela da confiança e


seus reflexos reparatórios – 4. Conclusão – 5. Referência.
                                                            
1 Advogado especialista em direito empresarial pela Universidade Gama Filho – RJ e mestrando em

direito empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos – MG.  


 
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INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da responsabilidade civil trouxe novas formas de


enxergar esse instituto. Se nos primórdios prevalecia a vingança privada, o mal sendo
combatido pelo próprio mal, a evolução trouxe novas formas de solucionar o dano
causado. Iniciou-se o período da composição econômica, com vedação à vítima em
praticar a vingança pelas próprias mãos. O Estado assumiu e, somente ele, a função
de punir. A Lei Aquilia trouxe a noção do dano. Daí, novas formas de
responsabilidade foram surgindo, até chegarmos à responsabilidade subjetiva, local
cuja existência da culpa se faz essencial.
Se não bastasse a padronização da responsabilidade na forma subjetiva, a
massificação social, processo de industrialização e multiplicação dos danos
vislumbraram novas formas de proteção à vítima, abrindo espaço para primeiramente
fundamentar a responsabilidade na forma objetiva, ou seja, aquela em virtude do
risco da atividade exercida pelo agente da lesão, incluindo tanto atos ilícitos quanto
os lícitos.
Indo além, a responsabilidade civil visa resguardar a proteção da confiança,
mais precisamente em estudo que vem sendo feito na doutrina alemã e portuguesa,
através das referências de Manuel Antônio de Castro Portugal Carneiro da Frada 2,
no qual “a elaboração dogmática da confiança experimentou em todo o caso na Alemanha um
especial desenvolvimento. Atingiu aí o seu mais alto cume pela pena de CANARIS, que ficou a
marcar um virar de página na sua história”.
Verifica-se que tutelar as expectativas certamente se torna necessário dentro
do cenário impessoal e globalizado no qual nos encontramos, sendo o abrigo da
confiança pedra angular na proteção do mercado e junto aos contatos sociais. Valorar
                                                            
2 FRADA, Manuel Antônio de Castro Portugal Carneiro da. Teoria da Confiança e Responsabilidade

Civil. Coimbra: Almedina, 2004. p. 35. 


 
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as expectativas é garantir justamente a concretização dos valores inseridos nas


relações negociais.
O tema confiança possui característica ampla, possibilitando sua
aplicabilidade em vários ou até mesmo todos os ramos do direito. A confiança é,
indubitavelmente, ponte de sustentação das relações sociais, justificando a sua
valorização e necessidade de análise mais profunda, em especial aos aspectos de
responsabilidade civil pela quebra das expectativas.
Por tais apontamentos e pela amplitude do debate, temos como meta
comprovar que a quebra da confiança se consubstancia como forma de reparação
civil, utilizando para esse fim o novo Código Civil e Código de Defesa do
Consumidor.

2. A EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A principal conseqüência da prática de um ato ilícito é a obrigação que


acarreta, para o seu autor, de reparar o dano, sendo esta obrigação de natureza
pessoal, que se resolve em perdas e danos.
3
Neste sentido, Wilson de Melo (1962) já assinalava a necessidade da
existência da culpa do autor, do dano e o nexo causal entre estes para a configuração
da responsabilidade civil.
Contudo, nem sempre a responsabilidade civil se baseou neste pilar ação ou
omissão do agente, culpa, relação de causalidade e o dano.

                                                            
3 SILVA, Wilson de Melo da. Responsabilidade sem Culpa e Socialização do Risco. Belo Horizonte:

Bernardo Álvares, 1962. p. 41/42 


 
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Nos primórdios da humanidade, sequer se cogitada do fator culpa. O dano


gerava uma reação brutal e imediata do ofendido, predominando então a vingança na
forma privada.
Posteriormente sucede-se o período da composição, no qual a valoração da
compensação econômica se tornou viável para reparação dos danos praticados. A
vingança é substituída pela composição a critério da vítima, porém ainda não se
cogitando da culpa.
À vítima é vedado fazer justiça pelas próprias mãos, transformando a
composição econômica, que voluntária era, a ser obrigatória, bem como tarifada, nos
remetendo então aos Códigos de Manu e Lei das XII Tábuas.
Ao tempo dos romanos ocorreu a diferenciação entre a pena e a reparação.
De acordo com Wilson de Melo da Silva

“Ainda não se estabelece, nesses primeiros tempos, uma


discriminação entre a pena e a reparação, discriminação essa que
só começou efetivamente a se esboçar ao tempo dos romanos,
com a diferenciação entre os delitos públicos e os delitos privados.
Naqueles, a poena econômica que se impusesse ao réu, deveria ser
recolhida aos cofres públicos.4

Dessa forma, assume o Estado, e somente ele, a função de punição,


surgindo a ação de indenização.
Surge a Lei Aquília e a generalização do princípio aquiliano, ou seja, uma
forma geral reparadora do dano e a distinção entre a responsabilidade civil e penal.
A noção de culpa é trazida no direito romano, havendo a diferenciação
entre a culpa delitual e culpa contratual, fundando-se então a responsabilidade civil
na idéia da culpa.
Com o desenvolvimento industrial, das máquinas e a multiplicação dos
danos, novas teorias no âmbito da responsabilidade civil se mostraram necessárias,
                                                            
4 SILVA, Wilson. Op. Cit., p. 40.
 
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visando maior proteção à vítima, criando a concepção de responsabilidade objetiva


ou teoria do risco, também chamada de responsabilidade sem culpa.
O individualismo inserido dentro da concepção de responsabilidade perde
força, dando espaço a visão solidarista e protetora da vítima. Neste sentido, Wilson
de Melo já dizia que o homem cede o lugar da vida isolada para viver em comunhão
com semelhantes, em face a socialização do direito 5.
Já Dilvanir José da Costa apontava a relevância do solidarismo no novo
Código Civil, afirmando de maneira adequada que

“Além da expansão dos fatos sociais, com projeção nas leis


especiais e nos microssistemas (mudança quantitativa), houve
mudança qualitativa, principiológica ou filosófica, consistente esta
na socialização e na personalização dos direitos. Para completar,
houve mudança de método, de técnica, através da abertura, da
flexibilização e das cláusulas gerais, a fim de assegurar a
maleabilidade e a sobrevivência do Código”6.

Diante desta evolução, no nosso ordenamento jurídico pátrio prevalece a


responsabilidade civil subjetiva, haja vista a necessária presença de três elementos,
quais sejam, a ação ou omissão do agente, a culpa, o dano e relação de causalidade,
conforme estampado no artigo 186 do Código Civil Brasileiro.
Pressupõe a culpa como fundamento da responsabilidade civil, levando a
conclusão que não há responsabilidade em não havendo a culpa.
Ausente a culpa, o sistema jurídico nacional utiliza a responsabilidade
objetiva ou teoria do risco para a proteção da vítima fundada na reparação que se
satisfaz somente com o dano e o nexo de causalidade, ou seja, todo dano é

                                                            
5SILVA, Wilson. Op. Cit. p. 239.
6COSTA, Dilvanir José da, 1932 – Sistema de direito civil à luz do novo Código. – Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 36.
 
 
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indenizável e deve ser indenizado por quem a ele se liga por um nexo de causalidade,
independentemente de culpa.
Se não bastasse, diante de inúmeras situações novas vivenciadas pelos
cidadãos face a complexidade social ora formada, surge a proteção da confiança, que
é conceituada, sucintamente, como a reparação civil pela quebra das expectativas.
Observamos que a responsabilidade civil subjetiva, fincada nos três
elementos, ato ilícito, dano e relação de causalidade, evolui para a forma objetiva,
baseada somente no ato ilícito e o nexo causal e, por fim, a responsabilidade por
proteção da confiança, norteando as relações negociais entre os indivíduos, gerando
gravames de ordem contratual e extracontratual ao infrator.

3. A TUTELA DA CONFIANÇA E SEUS REFLEXOS REPARATÓRIOS

Primeiramente se faz importante demarcar o campo no qual pretendemos


atuar, qual seja, a tutela da confiança e sua relação direta com a reparação civil no
nosso ordenamento jurídico pátrio.
A confiança pode ser definida como ter fé, esperar, crédito, segurança
íntima de procedimento, discrição, segurança e bom conceito que inspiram as
pessoas de talento, crer nas qualidades morais (honestidade, probidade etc.) ou na
capacidade de7.
Pode ser analisada de forma psicológica, social e jurídica, sendo este o que
efetivamente interessa ao presente estudo, vez buscarmos elementos inseridos no

                                                            
7 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI: 5ª ed. ver. Ampliada. Rio de

Janeiro. 2001. p. 184.


 
 
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nosso ordenamento que possam garantir à vítima a reparação pela quebra da tutela da
expectativa.
Todavia, conceituar a confiança não é trabalho de fácil apuração, vez
englobar conceito aberto e subjetivo, o que em grande parte dos casos se torna
complexo delimitar exatamente se houve a quebra da expectativa. Ademais,
comportamento das pessoas, atitudes e aspectos culturais do local estão diretamente
relacionados na forma de confiar, alterando assim o grau ou conceito de confiança de
uma localidade para outra.
Dessa forma, apesar da relevância em buscar um conceito da confiança para
poder aplicá-la às situações concretas, ao seu campo de atuação, não menos
importante é adaptá-la a realidade no qual se encontra, tanto jurídica como perante a
sociedade.
Verdade que vivemos em uma sociedade globalizada, formando relações
entre os sujeitos de forma cada vez mais impessoal, o que obviamente dificulta a
confiança que não seja baseada em cláusulas contratuais expressas e determinadas,
havendo quebra diante da desobediência do que solidamente previsto.
Entretanto, justamente a massificação social, formando sociedades cada vez
mais complexas, com maior participação de intermediários nas relações entre as
pessoas, enfim, fortalecendo os contatos sociais, apresenta-se a necessidade do
direito tutelar tais relações, valorizando certamente um dos requisitos que ali se
encontra presente, a confiança. Se anteriormente era de fácil percepção a
identificação do comprador e vendedor, hoje, com a complexidade social e
interferência de mais intermediários nas relações comerciais, a impessoalidade
negocial se tornou fator presente e atuante, o que enseja tutelar as expectativas.

 
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Como bem apontado por Ricardo Luiz Lorenzetti “desde distintos campos de
conhecimento, autores como Niklas Luhmann y Francis Fukuyama se vêem ocupadso pela
importância que a confiança possui em qualquer sistema social” 8.
Manuel Antônio de Castro Portugal Carneiro da Frada já cotejava a
globalização e tutela das expectativas,

“Pode até afirmar-se que, quanto maior for, por via da referida
complexidade e diferenciação, a despersonalização e o anonimato
na vida social, mais aguda se torna a acuidade da substituição do
processo informal de coordenação dos comportamentos através
da confiança pela institucionalização de regras jurídicas
“formais”9.

Na mesma linha foi o entendimento de outros doutrinadores, dentre eles


Cláudia Lima Marques, que asseverava ser

“Interessante notar que o mandamento de proteção da confiança


(Vertrauensgebot) está intimamente ligado, pode-se mesmo
afirmar ser uma conseqüência ética, ao anonimato das novas
relações sociais. Como as relações contratuais e pré-contratuais, a
produção, a comercialização são massificadas e multiplicadas, sem
que se possa claramente identificar os beneficiados (consumidores
e usuários), foi necessário criar um novo paradigma. Um novo
paradigma mais objetivo do que a subjetiva vontade, boa ou má-fé
do fornecedor in concreto, mas sim um standard de qualidade e
segurança que pode ser esperando por todos, contratantes,
usuários atuais e futuros (expectativas legítimas)”10.

Necessário pontuar que apesar do fortalecimento da impessoalidade das


relações humanas, face a força da globalização, a confiança ainda é inerente ao
relacionamento entre as pessoas, sendo até mesmo imprescindível no convívio social,
                                                            
8 LORENZETTI, Ricardo Luiz. Revista de direito do consumidor. Vol. 33. Doutrina Internacional –

Esquena de uma teoria sistêmica del contrato. Editora Revista dos Tribunais. Ano 2000. p. 34. 
9 FRADA, Manuel. Op. Cit. p. 18..
10 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das

relações contratuais. 4. ed. rev. atual. e ampl., incluindo mais de 1.000 decisões jurisprudenciais. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 979/980.  
 
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pois, paz jurídica e confiança possuem forte conexão, trazem em seu bojo aspectos
éticos e jurídicos.
Através de modernização reflexiva, Anthony Giddens aponta a relevância
da confiança na sociedade de risco,

“o risco e a confiança, assim como seus vários opostos, precisam


ser analisados em conjunto nas condições da modernidade tardia.
A “primeira sociedade global” é certamente unificada de uma
maneira negativa, como diz Beck, pela geração de riscos comuns.
Os “bens” criados pelo desenvolvimento industrial ficam
prejudicados por uma séria muito óbvia de “males”. Esta
sociedade, não obstante, não é apenas uma “sociedade de risco”.
É uma sociedade em que os mecanismos da verdade se modificam
– de maneiras interessantes e importantes. O que pode ser
chamado de confiança ativa torna-se cada vez mais significativo
para o grau em que emergem as relações sociais pós-tradicionais”.
11

Neste raciocino, o presente trabalho busca delimitar o estudo da tutela da


expectativa capaz de ensejar reparação indenizatória face a sua violação, conforme o
mencionado autor português já apontava, ao afirmar que “buscamos a análise da
confiança, a saber, naquele domínio em que se justifica com a frustração de expectativas o
desencadear de pretensões indemnizatórias” 12.
Enfim, a pergunta que se faz é se a quebra de expectativas enseja a
responsabilidade indenizatória, apesar deste instituto ainda estar entregue ao
legislador através de cláusulas gerais junto ao Novo Código Civil Brasileiro de 2002.
Certamente, apesar do tema ser mencionado pela doutrina e jurisprudência com certa
freqüência, a zona do direito ainda não é transparente e segura. Segundo o próprio
autor português,

                                                            
11 BECK, Ulrich. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna –
Ulrich Beck, Anthony Guiddens, Scott Lash; tradução de Magda Lopes. – São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 221.
12 FRADA, Manuel. Op. Cit. p. 26.

 
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“Na doutrina germânica, reclama-se uma proteção


indemnizatória da confiança para cobrir duas grandes áreas. Por
um lado a dos casos em que alguém deve responder pelos danos
causados por uma declaração sua viciada ou inexacta, ou então
pela respectiva omissão, como ocorre paradigmaticamente no
âmbito da culpa in contrahendo e em situações dela próxima, de
responsabilidade por informações incorrectas. A elas
corresponderia uma responsabilidade por declarações” 13 .

Certo é que o principio norteador da tutela da confiança é proteger as


expectativas. À medida que a sociedade e as relações sociais se tornam mais
complexas, nota-se novas maneiras geradoras de responsabilização, dentre elas a
reparação por violação deste princípio.
Assim, sob a ótica desta tutela, a proteção das expectativas se dá no aspecto
positivo e negativo. Aquele visa garantir positivamente a efetividade da expectativa
do sujeito, é o cumprimento do dever. Esta já se dá através da substituição do
cumprimento do dever pela pecúnia compensatória, visando reparar o prejuízo que
de certo fato não ocorreria caso não houvesse sido quebrada a expectativa. Na ótica
negativa, o sujeito não teria sofrido prejuízo algum se tivesse tido a sua expectativa
respeitada e cumprida, pois não violaria os preceitos de boa-fé.
A função interpretativa da conduta pela boa-fé, segundo Leonardo
Medeiros de Garcia, “serve de orientação para o juiz, devendo este sempre prestigiar, diante das
convenções e contratos, a teoria da confiança, segundo a qual as partes agem com lealdade na busca
do adimplemento contratual”14.
Há doutrina explicitamente contrária a configuração de responsabilidade
através da quebra das expectativas. O ponto crucial desses defensores se encontra na
inexatidão, falta de objetividade deste tipo de responsabilidade. Outrossim, pugnam

                                                            
13 FRADA, Manuel. Op. Cit. p. 76.
14 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do consumidor. 3. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2007. p. 30.  
 
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pela autonomia privada, autodeterminação dos personagens envolvidos na relação


contratual e o risco assumido e envolvido na negociação.
Por outro lado, vale salientar que há uma ponte estreita que liga a teoria da
aparência com a tutela da confiança, haja vista principalmente a força intensificadora
possuída pela aparência na formação da confiança.
A principio, a confiança se encontra inserida junto ao nosso Código Civil
através de cláusulas gerais, conforme citado por Leonardo Medeiros de Garcia “a boa-
fé objetiva também foi inserida no Novo Código Civil, como cláusula geral, irradiando seus efeitos
por todo o sistema civilista”15.
Dentro desse raciocino, natural que a sua aplicação se dê através de um
sistema móvel, ou seja, terá a sua análise e efetividade perante cada caso concreto.
Válido citar, dentro de uma visão de sistema móvel, ou melhor, existência
de partes móveis no sistema jurídico, o pensamento de Canaris, que previa em
âmbito alemão, mas com validade para os nossos tempos, “não é possível confeccionar
uma previsão normativa rígida, mas apenas ponderar entre si determinados critérios de acordo com o
número e o peso, no sentido de Wilburg, sem que se fixe uma relação de hierarquia, por exemplo
entre culpa e risco.” 16
Quando remetemos a aplicação da teoria da confiança aos negócios
propriamente ditos, percebe-se nitidamente uma clara antinomia, vez colocar em
foco a autonomia privada negocial e o respeito às expectativas ali inseridas, chocando
liberdade e autonomia com o essencial respeito às expectativas.
Prudentemente apontado por Alicia de Leon Arce

“por definição e em linhas gerais, a responsabilidade contratual


deriva do descumprimento dos deveres e obrigações que nascem

                                                            
15GARCIA, Leonardo. Op. Cit. p. 33.
16CANARIS, Claus, Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito. 2.
ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996. p. 136  
 
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para as partes de um contrato e como conseqüência do mesmo.


Por isso, pode se dizer que este tipo de responsabilidade nasce
em garantia do cumprimento do que fora pactuado, ou em outras
palavras, o interesse protegido no contrato; existe portanto um
dever de conduta previamente pactuado que emana de uma
relação jurídica anterior, e cujo inadimplemento gera
responsabilidade”.17

Vale dizer que no âmbito das relações negociais, as propostas devem


possuir pontualmente determinados requisitos. A oferta deve conter, em seu núcleo,
a noção de boa-fé objetiva, visando o equilíbrio da relação instaurada, porém com
respeito a liberdade de contratação.
Com isso, a inserção da boa-fé e confiança no ordenamento jurídico pátrio
determina obediência a obrigação principal e, também, aos deveres anexos ou
laterais.
Interessante ressaltar que a análise da confiança pode advir de fatores
subjetivos, ou seja, aqueles de maior abrangência e, através de fatores objetivos,
como formas de conduta. Assim, flagrante a maior percepção da tutela da confiança
na responsabilidade aquiliana.
Por isso que a maior averiguação da responsabilidade pela confiança se dê
na fase pré-contratual, com a culpa in contrahendo. Nesta fase pretérita ao negócio,
moldar os deveres de conduta ainda é questão de intenso debate, sendo certo que a
aplicação da reparação se dá em virtude da aplicação das cláusulas gerais.
Aqui, justamente na fase pré-contratual, fase negocial e de propostas,
ofertas, há claramente a declaração de vontade da parte proponente, no qual este
propõe a parte contratante os elementos e termos para a conclusão do contrato.
Configura-se, pois, manifestação de vontade unilateral satisfatória para a efetiva

                                                            
17ARCE, Alicia de Leon. Derechos de los consumidores y usuários. Editora irante lo Blanch.
Valencia, 2000. p. 716.
 
 
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aceitação, pelo contratante, dos termos contratuais. Neste entendimento, o


personagem que apresenta determinada proposta inserida e adequada aos
dispositivos legais vigentes promove na parte destinatária expectativa que deverá ser
tutela, justamente por ser legitima, pois, caso contrário fosse, favoreceria a
insegurança e premiaria a má-fé do proponente. A formulação equivocada da
proposta ou da oferta é certamente passível de ensejar conseqüências de ordem
obrigacional.
Questiona-se se há a necessidade de haver uma seleção de expectativas a se
tutelar, levando em consideração a cultura e bons costumes locais, ou se tentar
positivar a conduta da confiança seria um trabalho inacabado, face a infinitude de
possibilidades presentes e novas situações futuras de possível quebra de expectativas.
Neste sentido, Claus Wilhelm Canaris já apontava pela importância das
cláusulas gerais dentro do sistema móvel indicando que

“Encontram-se numerosos exemplos da mobilidade do sistema,


em especial onde as previsões normativas rígidas se
complementam e acomodam através de cláusulas gerais: para
determinar se um despedimento é anti-social, se existe um
fundamento importante, se um negócio jurídico ou um
comportamento são contrários aos bons costumes, etc., é
necessário ponderar entre si determinados pontos de vista
segundo o número e o peso, sem uma relação hierárquica
firme”.18

Obviamente que o sistema jurídico deve focar no sistema positivado, vez


trazer maior segurança jurídica, contudo deve estar aberto a novas situações, através
de um direito que vá além da lei, analisando caso a caso, esmiuçando as
peculiaridades ali presentes.
A tutela da confiança tem aplicabilidade tanto perante as partes diretamente
envolvidas no negócio quanto aos terceiros interessados. Estes são aqueles que
                                                            
18 CANARIS, Claus, Op. Cit. p. 137/138.
 
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atuam diretamente na concretização do negócio, aumentando e solidificando a


confiança em uma das partes para concretização do negócio e auferimento de uma
vantagem pessoal. Como Manuel da Frada apontava, “como se vê, a obrigação de
indemninzar aparece construída na base da confiança que a conduta do terceiro é susceptível de gerar
na contraparte nas negociações.” 19
A influência de terceiros vale também para aqueles capacitados
profissionalmente e que atuam diretamente na concretização dos negócios devido ao
conhecimento técnico especializado possuído. Em alguns negócios, a atuação do
profissional é tão decisiva que a concretização se dá unicamente pela confiança
transmitida em face da referida especialização. Aqui podemos citar a
responsabilização por informações prestadas, por prospectos, dentre outras.
Diferente não é a figura do terceiro que possui direto interesse econômico
na concretização do negócio, pois assim lhe trará vantagens próprias. Dessa forma,
inegável a influência que o terceiro, utilizando dos conhecimentos técnicos
possuídos, além da confiança transmitida, atua diretamente no desenvolvimento
contratual e concretização do mesmo.
Outrossim e não menos importante é a quebra da confiança nas relações
envolvendo fornecedores e consumidores, clamando por conseqüência o Código de
Defesa do Consumidor para buscar melhor solução ao caso concreto.
Claudia Lima Marques já apontava que o

“CDC institui no Brasil o principio da proteção da confiança do


consumidor. Este principio abrange dois aspectos: 1) a proteção
da confiança no vinculo contratual, que dará origem às normas
cogentes do CDC, que procuram assegurar o equilíbrio do
contrato de consumo, isto é, o equilíbrio das obrigações e
deveres de cada parte, através da proibição do uso de cláusulas
abusivas e de uma interpretação sempre pró-consumidor; 2) a
proteção da confiança na prestação contratual, que dará origem
                                                            
19 FRADA, Manuel. Op. Cit. p. 119.
 
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às normas cogentes do CDC, que procuram garantir ao


consumidor a adequação do produto ou serviço adquirido, assim
como evitar riscos e prejuízos oriundos destes produtos e
serviços”20.

O consumidor, quando da contratação de prestação de serviço ou aquisição


de produto, deposita as suas expectativas quanto à qualidade, eficiência, segurança,
transparência, dentre outros. Com isso, face ao desequilíbrio econômico existente
entre as partes envolvidas na relação de consumo, quais sejam, empresa versus
consumidor, este se tornou a figura vulnerável da relação, necessitando assim de
maior proteção.
Por esta razão, a frustração da expectativa do consumidor, quanto ao
produto adquirido ou serviço prestado, poderá ensejar a reparação aquele lesado.
Na mesma linha da autora, “a confiança que deve existir entre os contratantes se
baseia, desse modo, em um dever ético de não frustrar as expectativas recíprocas, que devem ser
legitimas e fundamentadas. Tal colocação bem comprova que, a rigor, o dever de confiança se origina
de um dever de fazer a ser seguido pelas partes, levando-se em consideração o principio da
razoabilidade”21
Certo é a clara objetividade de proteção ao consumidor que, por certo, na
figura de hipossuficiente na relação negocial, fica a mercê do fornecedor caso
prevaleçam as normas contratuais firmadas entre as partes. Assim, a proteção das
abusividades contratuais por certo devem ser controladas. Cite-se Gabriel Stiglitz, ao
tratar do controle do abuso do conjunto do contrato, afirma que “a maior parte das
regulamentações das clausulas abusivas contem uma disposição geral, sancionando de modo expresso

                                                            
20 MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, Antonio Herman V.

Benjamin, Bruno Miragem. 2. ed. Ver., atual. E ampl. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2006.
p. 143.  
21 LISBOA, Roberto Senise. Responsabilidade civil nas relações de consumo. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2001. p. 106/107.  


 
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o caráter abusivo de um contrato ou de uma clausula que traduza um desequilíbrio inaceitável entre
as partes”. 22
Com reconhecida autoridade no tema envolvendo as relações de consumo,
Cláudia Lima Marques já apontava há tempos pela necessidade de atenção ao
principio da boa-fé objetiva e o princípio da confiança, “a manifestação da vontade do
consumidor é dada almejando alcançar determinados fins, determinados interesses legítimos. A ação
dos fornecedores, a publicidade, a oferta, o contrato firmado criam no consumidor expectativas,
também, legítimas de poder alcançar estes efeitos contratuais”23.
Na mesma linha da obediência da boa-fé e delimitação da confiança,
Manuel da Frada se posicionou

“o reconhecimento da importância dos deveres de


comportamento para a protecção contra danos que ofendem as
expectativas dos sujeitos em conjunturas influenciáveis pela
vontade humana não é todavia suficiente para que a respectiva
violação consubstancie uma genuína responsabilidade pela
confiança. Como precedentemente se apontou, não basta que a
defesa da confiança se apresente como mero fim, embora
porventura precípuo, do seu estabelecimento, é necessário que
eles constituam a resposta do ordenamento jurídico à ocorrência
de uma concreta hipótese de confiança e que seja a defraudação
desta o fundamento jurídico da obrigação de indemnizar”.24

A boa-fé, por sua vez, será parâmetro a ser observado nas normas de
conduta, pois na relação negocial, a principio, deverá ser ponderado e respeitado a
liberdade contratual e autodeterminação do sujeito. A norma de conduta, a forma da
condução é que deverá ser cotejada com os princípios ensejadores da boa-fé para
verificar o caso concreto, sendo talvez mais fácil buscar o que é incompatível com
ela.
                                                            
22 STIGLITZ, Gabriel. Defensa de los consumidores de productos y servicios – Daños – Contractos.
Ediciones la Rocca. Buenos Aires, 1994. p. 215.  
23 MARQUES, Claudia. 2002. Op. Cit. p. 979.
24 FRADA, Manuel. p. 385.

 
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Quando se fala em normas de conduta, em boa-fé, respeito ao princípio da


confiança, tenta-se abertamente indicar o dever de atuar com honestidade,
transparência, proteção, respeito, ética, não omitir as precauções devidas para
segurança pessoal e patrimonial daqueles inseridos na relação negocial. É, em suma, o
dever de verdade.
Se não bastasse a dificuldade de aplicação da tutela da confiança nas
relações negociais, clama atenção ao fato de existência de contratos de curta, média e
longa duração. Visualizar a quebra de expectativas dentro de cada uma dessas etapas
contratuais realmente não é tarefa fácil. Aqui, no presente estudo, nos atemos
somente em citar a complexidade de aplicação da confiança aos contratos de longa
duração e a dificuldade de aplicação da quebra da expectativa dentro desta.
Certo é que o referido diploma legal, CDC, através da lei 8.078/90, já prevê
em seu artigo 4º a necessária transparência nas relações de consumo, in verbis,

Art. 4º - A Política Nacional de Relações de Consumo tem por


objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o
respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus
interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida, bem
como a transparência e harmonia das relações de consumo,
atendidos os seguintes princípios:
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no
mercado de consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o
consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações
representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados
de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho;
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações
de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com
a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de
modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem
econômica (artigo 170, da Constituição Federal), sempre com
 
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base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e


fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores,
quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do
mercado de consumo;
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de
controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim
como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de
consumo;
VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados
no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e
utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e
nomes comerciais e signos distintivos, que possam
causar]prejuízos aos consumidores;
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de
consumo.

Diante do dever de transparência entre fornecedores e consumidores, a


confiança englobou um dos requisitos dessas relações, a ponto de ensejar inclusive a
reparação material face a quebra da expectativa. Leonardo de M. Garcia já apontava
da importância da obediência à confiança dentro da relação consumidor/fornecedor,
“a boa fé objetiva estabelece um dever de conduta entre fornecedores e consumidores no sentido de
agirem com lealdade (treu) e confiança (glauben) na busca do fim comum, que é o adimplemento do
contrato, protegendo, assim, as expectativas de ambas as partes” 25.
Ademais, ainda dentro das relações de consumo, a confiança se tornou
princípio obrigatório e necessário a defesa do consumidor, dentro do que já vem
sendo observado pelo ordenamento pátrio e na linha de entendimento de Cláudia
Lima Marques,

“No sistema do CDC, leis imperativas irão proteger a confiança


que o consumidor depositou no vínculo contratual, mais
especificamente na prestação contratual, na sua adequação ao fim
que razoavelmente dele se espera, irão proteger também a

                                                            
25 GARCIA, Leonardo. Op. Cit. p. 30.
 
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confiança que o consumidor deposita na segurança do produto


ou do serviço colocado no mercado”26.

Vários são os julgados que garantem a aplicação do princípio da confiança às


relações contratuais e extracontratuais, como podemos citar nos embargos
infringentes n.º 1.0024.06.076131-9/004(1), Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no
qual entendeu que a vulnerabilidade do consumidor deve ser observada levando em
consideração a boa-fé contratual e confiança depositada 27.
Alguns julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já suportam a
condenação indenizatória pela comprovada quebra da confiança, destacando as
apelações cíveis n.º 70029751328 28, 70025933342 29, 70025754565 30, 70022309801 31.
                                                            
26 MARQUES, Cláudia, 2002, Op. Cit. p. 979.
27 Brasil, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Ementa da decisão no TJMG, Relator Evangelina
Castilho Duarte, publicação 15.04.2008, acesso em 19.02.2010, as 23:58, disponível em
http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/juris_resultado.jsp?numeroCNJ=&dvCNJ=&anoCNJ=&origem
CNJ=&tipoTribunal=1&comrCodigo=&ano=&txt_processo=&dv=&complemento=&acordaoEme
nta=acordao&palavrasConsulta=CDC+principio+da+confian%E7a&tipoFiltro=and&orderByData=
0&relator=&dataInicial=&dataFinal=20%2F02%2F2010&resultPagina=10&dataAcordaoInicial=&da
taAcordaoFinal=&pesquisar=Pesquisar.
28 TJRS, Apelação Cível 70029751328, publicado no Diário da Justiça em 10 junho. 2009. Ementa:

APELAÇÃO CÍVEL. TRANSPORTE. PACOTE TURÍSTICO. INGRESSO PARA ASSISTIR AO


EMBATE FUTEBOLÍSTICO GREMIO X BOCA JUNIORS. PRIVAÇÃO. RELAÇÃO DE
CONSUMO. DEVER DE QUALIDADE. QUEBRA DA CONFIANÇA. REVESES MATERIAL
E MORAL DIAGNOSTICADOS. 1- Tutela da Confiança: o mercado de consumo reclama a
observância continente e irrestrita ao dever de qualidade dos serviços e produtos nele comercializados,
amparado no princípio da confiança, que baliza e norteia as relações de consumo. Inobservado este
dever de qualidade e, via reflexa, a tutela da confiança ¿ pedra angular para o desenvolvimento do
mercado ¿ a lei impõe gravames de ordem contratual e extracontratual ao infrator. 2- Reveses material
e moral: diagnosticada a mácula no serviço ofertado pela ré ¿ privação de comparecer à partida
futebolística de notório relevo, envolvendo clubes de tradição indesmentível no certame ¿ rompe-se o
laço de confiança que ata consumidor e fornecedor do produto, ensejando a indenização por revés
moral. Dano material insofismável. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº 70029751328, Décima
Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em
28/05/2009). Disponível em http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris. Acessado em 18.05.2010,
15:03 horas.
29 TJRS, Apelação Cível 70025933342, publicado no Diário da Justiça em 27 de abril de 2009.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR


DANO MATERIAL E MORAL. AQUISIÇÃO DE CASA PRÉ-FABRICADA. RELAÇÃO DE
CONSUMO. MÁCULAS DIAGNOSTICADAS NA QUALIDADE DO PRODUTO. REVESES
MATERIAL E MORAL EXPERIMENTADOS. QUANTUM INDENIZATÓRIO QUE DEVE
 
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GUARDAR SIMETRIA COM O CENÁRIO FÁTICO-JURÍDICO E EQUAÇÃO FUNÇÃO
PEDAGÓGICA X ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO. FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA.
POSSIBILIDADE. 1- Tutela da Confiança: o mercado de consumo reclama a observância continente
e irrestrita ao dever de qualidade dos produtos e serviços nele comercializados, amparado no princípio
da confiança, que baliza e norteia as relações de consumo. Inobservado este dever de qualidade e, via
reflexa, a tutela da confiança ¿ pedra angular para o desenvolvimento do mercado ¿ a lei impõe
gravames de ordem contratual e extracontratual ao infrator. 2- Revés moral: diagnosticada a mácula no
produto adquirido, rompe-se o laço de confiança que ata consumidor e fornecedor, ensejando a
indenização por revés moral. As provas carreadas aos autos dão conta de que a parte autora passou
por situação angustiante e embaraçosa, tudo em razão do agir censurável e imprevidente da ré
ITAGIEL LTDA. ao deixar de zelar pela qualidade de seus produtos. Ora, não se pode negar que o
consumidor, ao escolher mercadoria de sua confiança no mercado, supõe estar adquirindo produto
que, a par de sua predileção pelo aspecto visual, reúne condições mínimas ao fim almejado. 3-
Quantum indenizatório: fixação de verba indenizatória no patamar de R$ 7.000,00, que se coaduna
com a observância continente à equação função pedagógica x enriquecimento injustificado, confiada à
condenação por revés moral. 4- Fixação de multa diária: é caso de fixar multa diária à ré ITAGIEL
LTDA., na hipótese de descumprimento da obrigação de fazer imposta na sentença em desfavor
desta, no valor de R$ 300,00 (trezentos reais) por dia de inadimplemento, a contar da publicação do
presente acórdão. Apelo parcialmente provido. (Apelação Cível Nº 70025933342, Quinta Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 15/04/2009).
Disponível em http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris. Acessado em 18.05.2010, às 15:07 horas.
30 TJRS, Apelação Cível n.º 70025754565, publicado no Diário de Justiça em 04 de março 2009.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. RELAÇÃO


DE CONSUMO. FIO PLÁSTICO EM PRODUTO ALIMENTÍCIO. PERIGO À SAÚDE DO
CONSUMIDOR. DEVER DE QUALIDADE. QUEBRA DA CONFIANÇA. REVÉS MORAL
DIAGNOSTICADO. 1- Tutela da Confiança: O mercado de consumo reclama a observância
continente e irrestrita ao dever de qualidade dos produtos e serviços nele comercializados, amparado
no princípio da confiança, que baliza e norteia as relações de consumo. Inobservado este dever de
qualidade e, via reflexa, a tutela da confiança - pedra angular para o desenvolvimento do mercado - a
lei impõe gravames de ordem contratual e extracontratual ao infrator. 2- Revés moral: Diagnosticada a
presença de corpo estranho no interior do produto alimentício, rompe-se o laço de confiança que ata
consumidor e fornecedor do produto, ensejando a indenização por revés moral. Ainda que se pudesse
admitir um prognóstico de baixa lesividade do corpo estranho em tela - fio plástico - não se pode
negar que o consumidor, ao escolher produto de sua confiança no mercado, confia estar adquirindo
alimento que, a par de sua predileção pelo sabor e qualidade, reúne condições mínimas ao consumo
humano. 3- " Quantum " indenizatório: Valor a título de indenização fixado em R$ 9.300,00 (nove mil
e trezentos reais), coeficiente razoável diante das contingências do caso concreto - imprevidência e
falta de zelo da ré ao elaborar e comercializar produto que desafia a saúde do consumidor. Apelo
parcialmente provido. (Apelação Cível Nº 70025754565, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 18/02/2009). Disponível em
http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris. Acessado em 18.05.2010, 15:25 horas.
31 TJRS, Apelação Cível n.º 70022309801, publicado no Diário de Justiça em 08 de outubro 2009.

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ALTERAÇÃO DE DATA DE


VALIDADE DO MEDICAMENTO. VÍCIO NO PRODUTO. RESPONSABILIDADE
SOLIDÁRIA. QUANTUM INDENIZATÓRIO. 1. Tutela da confiança ¿ Dever de indenizar: o
mercado de consumo reclama a observância continente e irrestrita ao dever de qualidade dos produtos

 
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Insta pontuar que, caso o sujeito não tenha depositado a correspondente


confiança em outrem, ou seja, na outra parte contratual, não há que se falar em
reparação por responsabilidade, vez ausente o liame necessário que liga formar a
expectativa e tê-la quebrada.
Ao contrário, instigada a expectativa e esta sendo depositada pelo
consumidor na relação contratual, havendo a sua quebra, haverá sim de ser aplicado
um ônus ao violador da confiança rachada. O Superior Tribunal de Justiça, através de
julgado do RESP 590336/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, assim se manifestou
quanto a expectativa criada pelo consumidor em contrato de vida e de plano de
saúde 32,

                                                                                                                                                                   
e serviços nele comercializados, amparado no princípio da confiança, que baliza e norteia as relações
de consumo. Inobservado este dever de qualidade, ante a comercialização de medicamentos com
prazo de validade vencido e, via reflexa, a tutela da confiança, a lei impõe gravames de ordem
contratual e extracontratual ao infrator. 2. Responsabilidade solidária do importador e do comerciante
do medicamento: levando em conta que, `in casu¿, aplica-se o artigo 18, §6º, do CDC, respondem
pelos danos advindos do vício de qualidade do produto, de forma solidária, o importador e o
comerciante do medicamento. 3. "Quantum¿ indenizatório, a título de danos morais: na fixação do
montante indenizatório por gravames morais, deve-se buscar atender à duplicidade de fins a que a
indenização se presta, atentando para a capacidade do agente causador do dano, amoldando-se a
condenação de modo que as finalidades de reparar a vítima e punir o infrator (caráter pedagógico)
sejam atingidas. No caso em pauta, vai mantida a indenização fixada na sentença no montante
equivalente a 20 (vinte) salários mínimos. 4. Consectários legais: relativamente à condenação por
danos morais, a correção monetária incide a partir da sentença que fixou o `quantum¿ indenizatório. Já
os juros moratórios, em se tratando de relação contratual, incidem a partir da citação, nos termos do
artigo 405 do Código Civil. Apelo do réu desprovido e provido, em parte, o apelo do autor. (Apelação
Cível Nº 70022309801, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari
Sudbrack, Julgado em 30/09/2009). Disponível em http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris.
Acessado em 18.05.2010, às 15:12 horas.
32 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, RESP 590336/SC, Ementa: Direito do consumidor.

Contrato de seguro de vida inserido em contrato de plano de saúde. Falecimento da segurada.


Recebimento da quantia acordada. Operadora do plano de saúde. Legitimidade passiva para a causa.
Princípio da boa-fé objetiva. Quebra de confiança. Denunciação da lide. Fundamentos inatacados.
Direitos básicos do consumidor de acesso à Justiça e de facilitação da defesa de seus
direitos. Valor da indenização a título de danos morais. Ausência de exagero. Litigância de má-fé.
Reexame de provas. - Os princípios da boa-fé e da confiança protegem as expectativas do consumidor
a respeito do contrato de consumo. - A operadora de plano de saúde, não obstante figurar como
estipulante no contrato de seguro de vida inserido no contrato de plano de saúde, responde pelo
pagamento da quantia acordada para a hipótese de falecimento do segurado se criou, no segurado e
 
386 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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"O documento de fl. mostra que a segurada, respectivamente


genitora e esposa dos autores,pactuou com a GOLDEN CROSS
um plano de saúde com o código SPS 20 - 5 na data
de05/05/1993 (...). Por sua vez, o documento de fls. , em seu
texto relativo às condições contratuais do SPS (Super Plano de
Saúde), deixa claro, noitem relativo aos 'DIREITOS DO
ASSOCIADO', que o seguro facultativo no montante equivalente
a cem vezes o valor da última prestação mensal está acoplado aos
contratos assinados a partir de01/03/1992.(...)Já o documento de
fls. releva que a SUSEP (órgão máximo de controle da atividade
securitária no país), precisamente às fls,através de seu Conselho
Diretor, por unanimidade, decidiu orientar o reclamante (um dos
autores) a ingressar em juízo contra a referida sociedade
(Seguradora Roma S/A) e contra a estipulante (Golden Cross)(...)
os documentos revelam que tal seguro está acoplado como
'direito do associado' ao Super Plano de Saúde ao qual a falecida
estava associada e o prêmio mensal dos referidos seguros
(obrigatório e facultativo) era embutido na mensalidade do
plano" (fls. 212/213). Observada a existência de relação de
consumo na espécie, merecem relevo as seguintes palavras de
Cláudia Lima Marques:"Por fim, o Princípio da Proteção da
Confiança leva o sistema do CDC a concentrar-se também nas
expectativas legítimas despertadas nos consumidores pela ação
dos fornecedores, protegendo a confiança que o consumidor
depositou no vínculo contratual e também na prestação
contratual, mais especificamente na adequação ao fim que
razoavelmente se pode esperar dos produtos e dos serviços
colocados no mercado pelos fornecedores" (Contratos no
Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais, 4ª ed., São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2002
– p. 1065).Ora, se a recorrente, operadora de plano de saúde,
criou a legítima expectativa, tanto na segurada quanto nos
                                                                                                                                                                   
nos beneficiários do seguro, a legítima expectativa de ela, operadora, ser responsável por esse
pagamento. - A vedação de denunciação da lide subsiste perante a ausência de impugnação à
fundamentação do acórdão recorrido e os direitos básicos do consumidor de acesso à Justiça e de
facilitação da defesa de seus direitos. - Observados, na espécie, os fatos do processo e a finalidade
pedagógica da indenização por danos morais (de maneira a impedir a reiteração de prática de ato
socialmente reprovável), não se mostra elevado o valor fixado na origem. - O afastamento da
aplicação da pena por litigância de má-fé necessitaria de revolvimento do conteúdo fático-probatório
do processo. Recurso especial não conhecido. Diário da União: DJ 21/02/2005 p.
175.disponívelemhttp://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=direito+do+consumidor
+confian%E7a&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=4. acesso em 19.02.2010, 12:12 hs.

 
387 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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beneficiários do seguro, de que ela,recorrente, responderia pelo


adimplemento do contrato de seguro de vida, e se assegurada
pagava suas prestações mensais, nas quais estava incluído o
prêmio do seguro de vida, diretamente à recorrente, sobrevém,
então, a responsabilidade da recorrente pelo pagamento da
quantia acordada no contrato de seguro de vida.Outrossim, o
fato de a recorrente ser apenas estipulante do contrato de seguro
de vida não era de prévio conhecimento da segurada no
momento da celebração do contrato, motivo pelo qual a
recorrente não poderia argüir tal matéria com o objetivo de
afastar a sua legitimidade passiva para a causa, em harmonia com
a interpretação sistemática do art. 46 do CDC.Ademais, ainda se
existisse cláusula em tal sentido, circunstância não delineada na
origem, ela seria nula de pleno direito, pois o fornecedor não
pode tentar transferir suas responsabilidades a terceiros (art. 51,
III, do CDC).

Por tais motivos, a proteção da confiança se torna uma das formas de


buscar o equilíbrio dentro da relação de interesses entre consumidores e
fornecedores. Assim sendo, a predominância ética nas relações negociais deverá estar
sempre presente, sob pena de, caso quebrada, ensejar a reparação ao lesado.
Com isso, o depósito de expectativa nas relações negociais e a sua quebra
por falha de uma das partes é passível de ensejar a responsabilização do sujeito
violador, gerando assim a reparação proporcional.

4. CONCLUSÃO

A aplicação da responsabilidade pela quebra das expectativas é situação


presente no nosso ordenamento pátrio e alienígena, com destaque para Alemanha e
Portugal.

 
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A violação aos deveres de boa-fé, ética, probidade, honestidade e


transparência se tornaram motivos de reparação civil, definido como
responsabilidade pela quebra da confiança.
A delimitação das normas de conduta, da conceituação da violação da
confiança ainda é tema de intenso debate, pois o campo de extensão do conceito
ainda é amplo, pois sua aplicação se dá através de cláusulas gerais junto ao Código
Civil de 2002.
Por certo, o Código de Defesa do Consumidor trouxe uma série de artigos
que protegem a expectativa quebrada no consumidor, motivo que observamos maior
quantidade de decisões envolvendo responsabilidade reparatória por quebra da
confiança envolvendo as relações de consumo.
Apesar da multiplicação das relações negociais, globalização e impessoalidade
que vem se transformando a forma de negociações, o valor a confiança ainda
permanece como essencial dentro das relações sociais.
Insta pontuar Anthony Giddens e modernidade reflexiva, ao qual

“nas profundas transformações que estão atualmente ocorrendo


na vida pessoal, a confiança ativa está necessariamente atrelada à
integridade do outro. Essa integridade não pode ser tacitamente
assumida com base no fato de uma pessoa ocupar uma
determinada posição social. A confiança deve ser conquistada e
ativamente mantida; e isso geralmente pressupõe um processo de
mutua narrativa e revelação emocional. Uma “abertura” para o
outro é condição do desenvolvimento de um laço estável – salvo
quando os padrões tradicionais são por uma ou outra razão
reimpostos, ou quando existem dependências emocionais ou
compulsões.” 33.

Valorizar a confiança não contrapõe aos valores de autodeterminação e


liberdade contratual dos sujeitos envolvidos na relação, tampouco aos riscos ali

                                                            
33 BECK, Ulrich. Op. Cit. p. 222.
 
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inseridos. O que acontece é que “a vontade das partes manifestada livremente no contrato não
é mais o único fato decisivo” 34.
O que se pugna é pela negociação transparente, ética e clara aos sujeitos
envolvidos, tendo plena ciência da realidade concreta. Há indenização pela quebra da
confiança quando este fato seja a essência da obrigação.
Assim, uma das formas de proteção da confiança se dá através da
responsabilização da confiança, garantindo à vitima a devida reparação.
Observamos que os deveres até então considerados secundários passaram a
figura de essenciais e protegidos de forma clara através do Código de Defesa do
Consumidor, como o principio da confiança,

“O principio da proteção da confiança leva o sistema do CDC a


concentrar-se também nas expectativas legítimas despertadas nos
consumidores pela ação dos fornecedores, protegendo a
confiança que o consumidor depositou no vínculo contratual e
também na prestação contratual, mais especificamente na
adequação ao fim que razoavelmente se pode esperar dos
produtos e dos serviços colocados no mercado pelos
fornecedores. O princípio da confiança garante, assim a
adequação, a qualidade e mesmo uma segurança razoável dos
produtos e serviços de forma a evitar danos à saúde e prejuízos
econômicos para o consumidor e os terceiros vítimas. A
finalidade destas normas é, em última análise, melhorar a
qualidade de vida dos brasileiros, melhorando a qualidade dos
produtos que consome e dos serviços que são colocados à sua
disposição”35.

Temos por finalmente que, concluído a possibilidade e aplicabilidade


indenizatória pela quebra da confiança, mais comum se torna a tutela de forma
negativa, transformando a quebra da expectativa em valores monetários.

                                                            
34 MARQUES, Claudia, 2002, Op. Cit. p. 1063.
35 MARQUES, Claudia, 2002. Op. Cit. p. 1.065.
 
390 
 
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Enfim, preservar a relevância da confiança nas relações negociais, valorar a


sua presença e sancionar aquele que não a observa é certamente uma evolução no
sistema jurídico pátrio e que ainda será fortemente moldada à realidade local,
encontrando tutela perante o Código Civil nas cláusulas gerais e ampla proteção no
Código de Defesa do Consumidor.

5. REFERENCIA

ARCE, Alicia de Leon. Derechos de los consumidores y usuários. Editora irante lo


Blanch. Valencia, 2000. 1635 p.

BECK, Ulrich. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social


moderna – Ulrich Beck, Anthony Guiddens, Scott Lash; tradução de Magda Lopes. –
São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. 263 p.

BRASIL. Código Civil (2002) Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. In: ANGHER,
Anne Joyce (Org.). Vade mecum acadêmico de direito. 2.ed. São Paulo: Rideel, 2006. p.
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BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Embargos Infringentes. n.º


1.0024.06.076131-9/004(1), Belo Horizonte, 15.04.2008. Diário do Estado de Minas
Gerais. acesso em 19.02.2010, as 23:58, disponível
emhttp://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/juris_resultado.jsp?numeroCNJ=&dvCNJ=
&anoCNJ=&origemCNJ=&tipoTribunal=1&comrCodigo=&ano=&txt_processo=
&dv=&complemento=&acordaoEmenta=acordao&palavrasConsulta=CDC+princi
pio+da+confian%E7a&tipoFiltro=and&orderByData=0&relator=&dataInicial=&da

 
391 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

taFinal=20%2F02%2F2010&resultPagina=10&dataAcordaoInicial=&dataAcordaoFi
nal=&pesquisar=Pesquisar.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, RESP 590336/SC, Diário da União: DJ


21/02/2005p.175.disponívelemhttp://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp
?livre=direito+do+consumidor+confian%E7a&&b=ACOR&p=true&t=&l=10&i=
4. acesso em 19.02.2010, 12:12 horas.

BRASIL Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível 70029751328,


publicado no Diário da Justiça em 10 junho. 2009. Disponível em
http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris. Acessado em 18.05.2010, 15:03 horas.

BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível 70025933342,


publicado no Diário da Justiça em 27 de abril de 2009. Disponível em
http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris. Acessado em 18.05.2010, às 15:07 horas.

BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º


70025754565, publicado no Diário de Justiça em 04 de março 2009. Disponível em
http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris. Acessado em 18.05.2010, 15:25 horas.

BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º


70022309801, publicado no Diário de Justiça em 08 de outubro 2009. Disponível em
http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=juris. Acessado em 18.05.2010, às 15:12 horas.

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VERSÃO 4.4, DE 24/11/2002; VERSÃO 1.5, DE 18/11/02 - FORMATAÇÃO
ELETRÔNICA – JOÃO PROTÁSIO FARIAS DOMINGUES DE VARGAS E
MARJORIE CORRÊA MARONA. Texto eletrônico fornecido pela Prof. Dra.
Juliana Neuenschwander de Magalhães, com o auxílio de sua Bolsista Letícia
 
393 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

Godinho e outros colegas, na disciplina Sociologia do Direito II, do Programa de


Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado em Filosofia do Direito, durante
os 1º e 2º semestres de 2002, em arquivos de capítulos. A tradução foi feita por um
Professor mexicano, amigo da Professora Juliana, que gentilmente adiantou os seus
originais em espanhol, da versão que preparou do original alemão de Niklas
Luhmann.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo


regime das relações contratuais. 4. ed. rev. atual. e ampl., incluindo mais de 1.000
decisões jurisprudenciais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 1109 p.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo


regime das relações contratuais. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor,


Antonio Herman V. Benjamin, Bruno Miragem. 2. ed. Ver., atual. E ampl. São Paulo:
editora Revista dos Tribunais, 2006. 1311 p.

SILVA, Wilson de Melo da. Responsabilidade sem Culpa e Socialização do Risco.


Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1962.

SOARES, Orlando, Responsabilidade Civil no direito brasileiro: teoria, prática


forense e jurisprudência – Rio de Janeiro: Forense, 1997. 521 p.

STIGLITZ, Gabriel. Defensa de los consumidores de productos y servicios – Daños


– Contractos. Ediciones la Rocca. Buenos Aires, 1994. p. 480.

 
394 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO ESTADO SEXUAL DO


TRANSEXUAL REDESIGNADO

Walsir Edson Rodrigues Júnior*


Layla Maria Fabel Gontijo**

RESUMO

O presente estudo tem por objetivo analisar a situação jurídica do transexual e,


também, a possibilidade de alteração do prenome e do estado sexual após a cirurgia
de transgenitalização, apontando algumas das possíveis implicações jurídicas no
âmbito do Direito de Família. No caso concreto, a solução deverá ser construída em
trabalhos hermenêuticos uma vez que não há, no ordenamento jurídico brasileiro,
normas que regulem expressamente o assunto. Defende-se que a ausência de
regulamentação clara e específica sobre tal matéria não impede o operador do direito
de construir jurisprudencialmente, de acordo com os princípios jurídicos existentes,
decisões compatíveis com o paradigma do Estado Democrático de Direito adotado
pela Carta Magna de 1988. A opção do constituinte pelo Estado Democrático de
Direito vincula a todos o respeito pelo pluralismo social, pelos diferentes projetos de
vida. Torna-se papel essencial do Direito a efetivação da dignidade da pessoa
humana, não apenas por meio de garantias no ordenamento jurídico daquilo que a
sociedade de um modo geral considera como padrão de normalidade, mas também
através de garantias proporcionadas àqueles indivíduos que apresentam, por opção
ou condição, modelos de vida diferentes. Assim, procura-se demonstrar que o
Direito pode e deve adotar posicionamentos hermenêuticos que garantam ao
transexual o livre desenvolvimento de sua personalidade, com fundamento nos
direitos da personalidade, no princípio da autonomia privada e no princípio da
dignidade humana.

                                                            
* Doutor e Mestre em Direito pela PUC-Minas. Professor de Direito Civil nos Cursos de Graduação,
Especialização, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC-Minas. Professor de Direito Civil na
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Advogado. 
** Graduanda em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da PUC-Minas. Monitora de Teoria Geral

do Direito e pesquisadora do grupo de planejamento urbano participativo do Núcleo Jurídico de


Políticas Públicas da PUC-Minas. 
 
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Palavras-chave: Transexuais; Estado Sexual; Nome. Transsexuelle; Sexueller


Zustand; Name.

1 INTRODUÇÃO

A cirurgia de transgenitalização foi realizada no mundo pela primeira vez


em 1952, na Dinamarca, pelo médico Christian Hamburger, em um jovem americano
de 28 anos, ex-soldado, chamado George Jorgensen. No Brasil, somente em 1971 foi
realizada a primeira cirurgia de ablação de órgãos genitais pelo cirurgião Roberto
Farina no paciente Waldir Nogueira. Logo após a cirurgia, que foi bem sucedida,
pleiteou Waldir a alteração do nome e do estado sexual no registro civil, pedidos que
foram julgados improcedentes.1
O Ministério Público denunciou o cirurgião pela prática de lesão corporal
de natureza gravíssima. Em primeira instância, o réu foi condenado a dois anos de
reclusão, mas, ao recorrer da decisão, em grau superior, foi absolvido. Considerou o
órgão julgador que inexistia ação dolosa na conduta do médico, pois visava apenas à
cura do paciente, diminuindo-lhe o sofrimento físico e mental por se sentir
aprisionado em um corpo que não sentia ser o seu. Portanto, entendeu-se que o
crime não ocorria, visto que se cuidava de expediente reparador, uma correção de um
problema de saúde, uma cura de anomalia, em que o consentimento funciona como
causa autônoma de exclusão da ilicitude, invocando-se o regular exercício de direito
para afastar a antijuridicidade do ato médico.
Mais de cinco décadas depois da primeira cirurgia de transgenitalização,
ainda não existe, no ordenamento jurídico brasileiro, nenhuma regulamentação

                                                            
1 ARÁN, Márcia; ZAIDHAFT, Sérgio; MURTA, Daniela. Transexualidade: corpo, subjetividade e

saúde coletiva. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p. 71, jan./abr. 2008. 
 
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específica sobre a situação do transexual, seja quanto a possibilidade de se submeter à


cirurgia de mudança de sexo, seja quanto à possibilidade de mudança do prenome e
do estado sexual no registro de nascimento após a redesignação2. Essa ausência de
leis a respeito da situação jurídica do transexual causa divergências sobre o tema, que
perpassam desde a discussão a respeito da (i)licitude da realização da cirurgia até a
(im)possibilidade jurídica de alteração de prenome e do registro civil do redesignado
sexualmente.
Objetiva-se evidenciar por meio deste estudo que a ausência de
regulamentação clara e específica sobre tal matéria não impede o operador do direito
de construir jurisprudencialmente, de acordo com os princípios jurídicos existentes,
decisões compatíveis com o paradigma do Estado Democrático de Direito, adotado
pela Constituição Federal de 1988.
A opção do constituinte pelo Estado Democrático de Direito vincula a
todos o respeito pelo pluralismo social, pelos diferentes projetos de vida. Torna-se
papel essencial do Direito a efetivação da dignidade da pessoa humana, não apenas
por meio de garantias no ordenamento jurídico daquilo que a sociedade de um modo
geral considera como padrão de normalidade, mas também através de garantias

                                                            
2 Existe apenas um Projeto de Lei (n. 70-B/1995) em curso no Congresso Nacional, de autoria do

Deputado José Coimbra, que visa a descaracterizar a ilicitude do ato do médico que realiza a cirurgia
de mudança de sexo. De acordo com o projeto, “não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada
para fins de ablação de órgãos e partes do corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de
paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada a pedido deste e precedida de todos os exames
necessários e de parecer unânime de junta médica.” Além disso, de acordo com a redação atual, que
incorporou as ressalvas feitas na Comissão de Constituição e Justiça, o projeto propõe a alteração da
redação do art. 58 da Lei nº 6.015/73, permitindo a mudança do prenome mediante autorização
judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido à intervenção cirúrgica destinada a alterar
o sexo originário, bem como a averbação no assento de nascimento do novo prenome e do sexo,
lavrando-se novo registro. (BRASIL. Projeto de Lei n. 70-B/1995. Dispõe sobre intervenções cirúrgicas que
visem à alteração de sexo e dá outras providências. Disponível em:
<http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=23/1/1999&txpagina=33
57&altura=700&largura=800>. Acesso em: 06/04/10.)
 
 
397 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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proporcionadas àqueles indivíduos que apresentam, por opção ou condição, modelos


de vida diferentes.
Assim, procura-se demonstrar que o Direito pode e deve adotar
posicionamentos hermenêuticos que garantam ao transexual o livre desenvolvimento
de sua personalidade, com fundamento nos direitos da personalidade, no princípio da
autonomia privada e no princípio da dignidade humana.
É nesse contexto que este estudo será desenvolvido, já que a Constituição
de 1988 estabeleceu a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e
garantias fundamentais (art. 5º,§1º) e, segundo Pietro Perlingieri,

as normas constitucionais – que ditam princípios de relevância


geral – são de direito substancial, e não meramente interpretativas;
o recurso a elas, mesmo em sede de interpretação, justifica-se, do
mesmo modo que qualquer outra norma, como expressão de um
valor do qual a própria interpretação não pode subtrair-se. É
importante constatar que também os princípios são normas.3

Uma renovação e oxigenação das decisões judiciais sobre o tema em análise


é indissociável do respeito à dignidade humana e do reconhecimento da singularidade
de cada indivíduo em uma sociedade multifacetada, afinal, “[...] é o Estado que existe
em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a
finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.”4

                                                            
3 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. 2.ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p.11.
4 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de

1988. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p.65.


 
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2 O TRANSEXUALISMO E O PROCESSO TRANSEXUALIZADOR

A 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças passou a ter a


denominação de Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde. Na prática, é conhecida como CID-10. A CID-10 foi criada
para padronizar e catalogar as doenças e problemas relacionados à saúde, tendo
como referência a Nomenclatura Internacional de Doenças, estabelecida pela
Organização Mundial de Saúde. O transexualismo e o travestismo estão inseridos no
Capítulo V que trata dos Transtornos mentais e comportamentais e foram agrupados
na categoria dos transtornos da personalidade e do comportamento do adulto. O
transexualismo e o travestismo bivalente fazem parte da subcategoria dos transtornos
da identidade sexual e apresentam as seguintes características, de acordo com a CID-
10:

F64.0 Transexualismo. Trata-se de um desejo de viver e ser


aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se
acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de
inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do
desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um
tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme
quanto possível ao sexo desejado.

F64.1 Travestismo bivalente. Este termo designa o fato de usar


vestimentas do sexo oposto durante uma parte de sua existência,
de modo a satisfazer a experiência temporária de pertencer ao
sexo oposto, mas sem desejo de alteração sexual mais permanente
ou de uma transformação cirúrgica; a mudança de vestimenta não
se acompanha de excitação sexual. Transtorno de identidade
sexual no adulto ou adolescente, tipo não-transexual. Exclui:
travestismo fetichista (F65.1)5

                                                            
5 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. CID-10: classificação estatística internacional de
doenças e problemas relacionados à saúde. Décima Revisão. Versão 2008. Volume I. Disponível em:
<http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.htm>. Acesso em: 06/04/10. 
 
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Já o travestismo fetichista está inserido na subcategoria dos transtornos da


preferência sexual que, de acordo com a CID-10 (F65.1), é caracterizado por vestir
roupas do sexo oposto, principalmente com o objetivo de obter excitação sexual e de
criar a aparência de pessoa do sexo oposto. O travestismo fetichista se distingue do
travestismo transexual pela sua associação clara com uma excitação sexual e pela
necessidade de se remover as roupas uma vez que o orgasmo ocorra e haja declínio
da excitação sexual. Pode ocorrer como fase preliminar no desenvolvimento do
transexualismo.6
Atualmente, portanto, o transexualismo é considerado pela Organização
Mundial de Saúde uma doença de anomalia sexual e, conforme Maria Helena Diniz,

é a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade genética e


a própria anatomia de seu gênero, identificando-se
psicologicamente com o gênero oposto. Trata-se de um drama
jurídico-existencial, por haver uma cisão entre a identidade sexual,
física e psíquica. É a inversão da identidade psicossocial, que leva
a uma neurose reacional obsessivo-compulsiva, manifestada pelo
desejo de reversão sexual integral. [...]. O transexual é portador de
desvio psicológico permanente na identidade sexual, com rejeição
do fenótipo e tendência a automutilação ou ao auto-extermínio.
Sente que nasceu com o corpo errado.7

É, portanto, uma doença de transtorno de identidade de gênero (disforia de


gênero) e caracteriza-se pela repulsão aos próprios órgãos sexuais, uma vez que o
indivíduo possui cromossomos, genitais e hormônios de um sexo, mas ele acredita
pertencer ao sexo contrário ao de sua anatomia. Por isso, a cirurgia de mudança de
sexo é vista por ele como a cura para o seu sofrimento psicológico e físico dentro de

                                                            
6 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. CID-10: classificação estatística internacional de
doenças e problemas relacionados à saúde. Décima Revisão. Versão 2008. Volume I. Disponível em:
<http://www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.htm>. Acesso em: 06/04/10. 
7 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 229-231.

 
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um corpo com o qual não se identifica e não encontra prazer.8 O sofrimento é


advindo não apenas dessa desarmonia entre o sexo biológico e o sexo psicossocial,
mas também pela discriminação social a qual está sujeito, bem como pela carência de
legislação que reconheça expressamente os seus direitos de personalidade e que são
próprios da condição de transexual.
Consequentemente, por todos esses fatores, a saúde do indivíduo transexual
encontra-se extremamente fragilizada. Ele possui um distúrbio mental curável, um
transtorno de identidade, que deve ser tratado, sob risco de automutilação ou
autoextermínio. Por isso, essas pessoas precisam de tratamento psicológico e
terapêutico como uma manifestação do direito à saúde. Contudo, há quem defenda a
necessidade de autorização judicial para que o transexual submeta-se à cirurgia de
mudança de sexo e, pior, há quem, ainda hoje, a negue.9
Há que se discordar desse posicionamento, pois o melhor tratamento para
cada indivíduo deve ser determinado pela medicina e com a efetiva participação do
paciente e não pelo Poder Judiciário. Na maioria dos casos a cirurgia de redesignação
sexual será indicada ao paciente transexual como meio corretivo para a adequação do
seu sexo biológico ao seu sexo psicossocial.

                                                            
8 Fica fácil perceber que o transexual não se confunde com o homossexual, pois este convive com o
próprio sexo e tem a certeza de pertencer a ele, por isso, não busca a cirurgia de redesignação sexual.
9 Nesse sentido: Civil. Estado individual. Imutabilidade. Cirurgia de transgenitalização. Autorização

judicial. Pedido. Impossibilidade jurídica. O art. 13, caput, do Código Civil (Lei n.º 10.406, de 10 de
janeiro de 2002) veda o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente
da integridade física ou contrariar os bons costumes, salvo por exigência médica. A exigência médica a
que se refere o dispositivo do Código Civil deve ser entendida como a necessidade imperiosa de
transformação ou de remoção de órgão do corpo, cientificamente provada, em decorrência de
patologia grave e curável, exclusivamente, por meio daqueles procedimentos interventivos extremos.
O sexo, como estado individual da pessoa, é informado pelo gênero biológico. O sexo, do qual
derivam direitos e obrigações, procede do Direito e não pode variar de sua origem natural sem
legislação própria que a acautele e discipline. Nega-se provimento ao recurso. (MINAS GERAIS.
Tribunal de Justiça. AC 1.0672.04.150614-4/001(1). Rel. Des. Almeida Melo. Data do Julgamento:
12/05/2005. Data da Publicação: 14/06/05. 
 
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Deve-se salientar que tal intervenção cirúrgica está de acordo com o artigo
13 do Código Civil brasileiro, que dispõe: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato
de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da
integridade física, ou contrariar os bons costumes.”
A operação, de maneira alguma, importa na diminuição permanente da
integridade física. Como já explicado, a cirurgia é um tratamento médico, que se
encontra regulamentado pela Resolução do CMF n. 1.652/02, pela Portaria do SUS
n. 1.707/08 e pela Portaria da Secretaria de Atenção à Saúde n. 475/08. Possui índole
corretiva, adequando o sexo psicológico ao sexo biológico, permitindo ao indivíduo
transexual desfrutar de todos os aspectos do direito à saúde e, consequentemente, de
exercer o seu direito à vida digna, à intimidade e ao próprio corpo.
A primeira regulamentação no Brasil a respeito do transexual deu-se em
1997, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM), que, de acordo com a Lei nº
3.268/57, detém a atribuição legal de supervisionar, julgar e disciplinar a ética médica
em todo o país, aprovou a Resolução nº 1.482/97, autorizando, a título experimental,
a realização da cirurgia de transgenitalização.
Posteriormente, o CFM aprovou a Resolução n. 1.652/0210, estabelecendo
requisitos para a identificação de transexualismo, bem como para a seleção dos
pacientes para a cirurgia de transgenitalismo.

                                                            
10 Para a aprovação da Resolução nº 1.652/02, o CFM considerou, entre outros aspectos: ser o

paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do
fenótipo e tendência à automutilação e ou auto-extermínio; que a cirurgia de transformação plástico-
reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de
mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal, visto que tem o propósito terapêutico específico de
adequar a genitália ao sexo psíquico; a viabilidade técnica para as cirurgias de neocolpovulvoplastia e
ou neofaloplastia; o que dispõe o artigo 199 da Constituição Federal, parágrafo quarto, que trata da
remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento,
bem como o fato de que a transformação da genitália constitui a etapa mais importante no tratamento
de pacientes com transexualismo; que o artigo 42 do Código de Ética Médica veda os procedimentos
médicos proibidos em lei, e não há lei que defina a transformação terapêutica da genitália in anima
nobili como crime; que o espírito de licitude ética pretendido visa fomentar o aperfeiçoamento de
 
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Para a definição de transexualismo devem ser identificados, de acordo com


a Resolução n. 1.652/02 do CFM, no mínimo, os seguintes aspectos: desconforto
com o sexo anatômico natural; desejo expresso de eliminar os genitais, perder as
características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois
anos; ausência de outros transtornos mentais.
Já a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo deve ser
precedida de avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra,
cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, após, no mínimo, dois anos
de acompanhamento conjunto, obedecidos os seguintes critérios: diagnóstico médico
de transgenitalismo; maioridade civil; ausência de características físicas inapropriadas
para a cirurgia.
Todo esse processo visa a garantir o consentimento válido do paciente, que
deverá ser inclusive expresso de maneira formal, por meio de documento que
contenha os aspectos enumerados acima.
Percebe-se que os critérios definidos pela Resolução n. 1652/02 são
rigorosos, podendo apenas o paciente se submeter à cirurgia após o
acompanhamento de dois anos pela equipe multidisciplinar e do diagnóstico da
doença. A cirurgia de transgenitalização busca, portanto, adequar o sexo físico ao
psicológico, sendo uma cirurgia que visa à cura do paciente, jamais a sua mutilação.
Não convém, por conseguinte, discutir sobre a ilicitude da intervenção, uma vez que
                                                                                                                                                                   
novas técnicas, bem como estimular a pesquisa cirúrgica de transformação da genitália e aprimorar os
critérios de seleção; o estágio atual dos procedimentos de seleção e tratamento dos casos de
transexualismo, com evolução decorrente dos critérios estabelecidos na Resolução CFM nº 1.482/97 e
do trabalho das instituições ali previstas; o bom resultado cirúrgico, tanto do ponto de vista estético
como funcional, das neocolpovulvoplastias nos casos com indicação precisa de transformação o
fenótipo masculino para feminino. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1.652,
de 6 de novembro de 2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97.
Disponível em: < http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm>. Acesso
em: 06/04/10.  
 
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possui a finalidade de cura, sendo uma manifestação do direito à saúde, do livre


desenvolvimento da personalidade humana, fundamentados na dignidade humana.
Evidencia-se, dessa forma, que a cirurgia de ablação de órgãos é exercício
regular de direito, não havendo necessidade de autorização judicial, não cabendo ao
Poder Judiciário reexaminar questões médicas ligadas ao direito à saúde do paciente.
É importante observar que a Resolução n. 1.652/02 do CFM privilegiou a
autonomia privada do paciente quando determinou que a cirurgia de mudança de
sexo deve ser precedida do consentimento livre e esclarecido.
No âmbito civil, a esfera de liberdade que a pessoa dispõe denomina-se
autonomia, que consiste no poder que o particular tem de estabelecer as regras
jurídicas de seu próprio comportamento, dentro do espaço que lhe fora cedido pelo
Estado.11
Essa autodeterminação pode ser vislumbrada em uma manifestação de
vontade submetida “aos juízos de licitude e de valor, através dos quais se determina a
compatibilidade entre ato e atividade de um lado, e o ordenamento globalmente
considerado, de outro,”12 o que, conforme o tema do presente estudo, delimita o ato
de consentir ou não com os procedimentos para a realização da cirurgia de
redesignação sexual.
Nesse diapasão, em 2008, o Ministro da Saúde, considerando, entre outros
aspectos, que a orientação sexual e a identidade de gênero são fatores reconhecidos
pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação de saúde,
não apenas por implicarem práticas sexuais e sociais específicas, mas também por
expor a população GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais) a
agravos decorrentes do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão que

                                                            
AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 347.
11

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 2 ed. Trad.
12

Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 277.


 
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violam seus direitos humanos, dentre os quais os direitos à saúde, à dignidade, a não-
discriminação, à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade; que a Carta
dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída pela Portaria nº 675/GM, de 31 de
março de 2006, menciona, explicitamente, o direito ao atendimento humanizado e
livre de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero a todos os
usuários do Sistema Único de Saúde (SUS); que o transexualismo trata-se de um
desejo de viver e ser aceito na condição de pessoa do sexo oposto, que em geral vem
acompanhado de um mal-estar ou de sentimento de inadaptação por referência a seu
próprio sexo anatômico, situações estas que devem ser abordadas dentro da
integralidade da atenção à saúde preconizada e a ser prestada pelo SUS; que já existe
uma Resolução do Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre a cirurgia do
transgenitalismo; e que falta regulamentação dos procedimentos de transgenitalização
no SUS; instituiu, por meio da Portaria nº 1.707/08, o Processo Transexualizador, no
âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).13
Logo em seguida foi publicada a Portaria nº 457, de 19 de agosto de 2008,
da Secretaria de Atenção à Saúde definindo as Diretrizes Nacionais para o Processo
Transexualizador no Sistema Único de Saúde – SUS.14
A cirurgia de transgenitalização nada mais é do que a materialização do
direito à saúde aos transexuais, que deve ser garantido pelo Estado, utilizando de
todos os meios possíveis para viabilizar a saúde do indivíduo.
                                                            
13 BRASIL. Portaria n. 1.707, de 18 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde. Institui, no âmbito do

Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas,
respeitadas as competências das três esferas de gestão. Disponível em: <
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/prt1707_18_08_2008.html>. Acesso em:
06/04/10. 
14 BRASIL. Portaria n. 457, de 19 de agosto de 2008, da Secretaria de Atenção à Saúde. Define as

Diretrizes Nacionais para o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde - SUS, a serem
implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão.
Disponível em
http://cnes.datasus.gov.br/Portarias%5CPORTARIA%20N%C2%B0%20457%20de%2019%20de%
20Agosto%20de%202008.pdf. Acesso em: 06/04/10. 
 
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Portanto, como já acontece no Brasil, deve o Estado, não só permitir a


cirurgia de ablação de órgãos, mas também, quando necessário, custodiar a
intervenção cirúrgica necessária. Contudo, além disso, após a cirurgia de redesignação
sexual, o Estado, por meio do Poder Judiciário não deve obstar a alteração do
prenome e do sexo no registro de nascimento do transexual como será demonstrado
a seguir.

3 SEXUALIDADE, ESTADO CIVIL E TRANSEXUALISMO

De acordo com Pedro Pais de Vasconselos, o estado é “a posição jurídica


complexa que integra direitos e deveres, de poderes e vinculações, de situações
activas e passivas, em que a pessoa é investida por inerência da sua qualidade pessoal
de membro de uma comunidade ou grupo de pessoas, da posição que assume nesta
comunidade ou grupo e do papel que nela desempenha.”15
Segundo lição de Francisco Amaral, estado civil em sentido amplo é a
qualificação jurídica da pessoa conforme sua situação social.16 Trata-se, dessa
maneira, de um identificador pessoal do qual o Direito se vale para definir, em geral,
os direitos e deveres daquele sujeito específico, ou seja, sua seara de legitimidade para
realização de atos jurídicos.17
A principal função do estado civil é a identificação subjetiva, o que se dá,
necessariamente, na sociedade; é dizer, perante terceiros. Em outras palavras, o
estado civil, em sentido amplo, é uma garantia de que os outros conheçam a
legitimidade da pessoa para realização de atos na esfera jurídica, para que se

                                                            
15 VASCONCELOS, Pedro Pais de. Teoria geral do direito civil. 5 ed. Coimbra: Almedina, 2008. p. 94.
16 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 238.
17 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 239.

 
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preservem em relação a isso, e para que a própria pessoa seja preservada. Trata-se de
uma limitação da esfera de ação jurídica dos sujeitos que, como conhecida por todos,
serve a permitir que as relações se deem atentas a tanto. “O estado civil é, assim, uma
18
situação subjetiva absoluta (válida erga omnes)” , razão pela qual há de ser
seguramente tornado público a fim de que seja incontestável e, nesta medida,
oponível, preservando-se a segurança jurídica.
O estado civil lato sensu da pessoa natural subdivide-se em estado individual
(idade, capacidade e sexo), estado familiar (casado(a), solteiro(a), divorciado(a),
separado(a) judicialmente, viúvo(a), pai, mãe, filho(a), irmão(ã), sogro(a), enteado(a),
cunhado(a) etc) e estado político ( nacional ou estrangeiro).
Na amplitude característica do estado civil, encontra-se o estado sexual que,
como a própria terminologia adianta, compreende a posição da pessoa relativamente
ao sexo masculino e ao sexo feminino.
Logo após o nascimento, mediante o simples exame da genitália externa,
toda criança é registrada civilmente e enquadrada em um dos dois estados ligados à
sexualidade: masculino ou feminino. Esse estado sexual irá conferir à pessoa um
novo grupo de posições jurídicas, de direitos e deveres.
Na maioria das vezes esse critério é suficiente. Porém, em alguns casos, o
simples exame da genitália externa pode não determinar adequadamente a identidade
sexual de uma pessoa.
É que a genitalidade (sexo morfológico) é apenas um dos aspectos da
sexualidade. A sexualidade humana possui conceito mais amplo e pode ser
classificada em três grandes grupos: sexo biológico, sexo psíquico ou psicossocial e
sexo civil, legal ou jurídico.

                                                            
18 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 238.
 
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Dentre as maneiras biológicas de identificação sexual estão: a) sexo


morfológico; b) sexo endócrino; c) sexo genético ou cromossômico.

O sexo morfológico diz respeito à forma ou aparência de uma


pessoa no seu aspecto genital; o sexo endócrino é formado pelo
sexo gonodal e pelo sexo extragonodal. O primeiro tipo é
identificado nas glândulas sexuais: os testículos nos homens e os
ovários na mulher. O segundo tipo é constituído pelas glândulas
tiróide e epífise, que têm como função atribuir ao indivíduo
masculinidade ou feminilidade.19

O sexo genético ou cromossômico é de simples determinação, é a união


entre óvulo e espermatozóide. Quando há o sexo feminino haverá a união de dois
cromossomos “X”, enquanto quando houver a junção de um cromossomo “X” com
um cromossomo “Y” será formado um indivíduo do sexo masculino.
Enquanto os aspectos do sexo biológico são mais facilmente perceptíveis,
os aspectos do sexo psicológico são de difícil percepção, pois são subjetivos e, nem
sempre, estão em harmonia com o sexo biológico. Tal aspecto psicossocial da
sexualidade humana refere-se à identidade a que o indivíduo realmente acredita
pertencer, sendo formado por uma série de fatores sociais, culturais, entre outros.
Já o sexo civil, jurídico ou legal é aquele presente no registro de nascimento
da pessoa que, por sua vez, é definido, inicialmente, por meio do sexo biológico.
A definição inicial do sexo civil, a partir do sexo biológico, em regra, satisfaz
a necessidade da maioria dos indivíduos, que apresentam a forma de expressão sexual
mais comum na sociedade. A sociedade tende a estabelecer padrões de normalidade
e, com relação à sexualidade, considera-se normal aquele indivíduo que possui o seu
sexo biológico em harmonia com o seu sexo psicológico. Eis, então, o problema: o

                                                            
19 SZANIAWSKY, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999. p. 36.


 
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transexual que biologicamente apresenta um sexo, mas psiquicamente considera-se


outro, deve ser enquadrado em qual categoria de sexo civil: masculino ou feminino?
Conforme constata Iara Antunes de Souza, “a definição da identidade
sexual não se dá apenas com a verificação das características do sexo biológico
(morfológico), como realizado quando da definição do sexo civil, sendo necessário
avaliar aspectos psicológicos e sociais.”20
Assim, a correta identificação sexual do ser humano deve ser feita a partir
dos vários aspectos de sua sexualidade e, não apenas, do sexo morfológico. Devem
ser considerados também os sexos genético, endócrino e psíquico para se chegar a
uma conclusão que conduza à determinação do sexo civil do indivíduo que será
revelado no registro de nascimento.21
De fato, não é possível haver um Estado Democrático sem a vontade da
maioria, mas esta não pode significar a supressão da vontade, valores e ideologia dos
grupos minoritários. Nesse contexto, surge a discussão acerca dos transexuais, pois
eles representam um grupo minoritário que possui uma sexualidade diferente da
maioria. O indivíduo transexual é aquele que acredita fielmente pertencer ao sexo
oposto ao qual biologicamente pertence, configurando-se uma desarmonia entre o
sexo psicológico e o sexo biológico, causando sofrimento intenso, pois o transexual
sente-se preso a um corpo que não é o seu.
Considerando que o Brasil adotou um modelo democrático de Estado, é
fundamental refletir sobre essa questão aparentemente polêmica sob a ótica do
pluralismo. O Direito é um importante instrumento de inclusão social, por isso, é
indispensável uma mudança deste para a efetivação dos direitos dos transexuais.
                                                            
20 SOUZA, Iara Antunes de. Apontamentos para uma decisão judicial de alteração do nome e sexo no

registro civil do transexual operado. In: FIUZA, César; SÁ, Maria de Fátima Freire de Sá; NAVES,
Bruno Torquato de Oliveira (Coord.) Direito civil: atualidades IV – teoria e prática no direito privado.
Belo Horizonte : Del Rey, 2010. p. 114.
21 SZANIAWSKY, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1999. p. 35-36.


 
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Cabe ao Direito encontrar uma solução para garantir a dignidade humana desta
minoria marginalizada considerada anormal, através da hermenêutica contemporânea,
da principiologia do ordenamento jurídico, dos direitos humanos e fundamentais e
dos direitos da personalidade.
Há muito tempo a sexualidade humana deixou de ser definida apenas pelo
sexo biológico, e passou a envolver aspectos históricos, culturais e psíquicos. A
sexualidade é, antes de tudo, não apenas o ato sexual ou a genitalidade, mas também
a forma de o indivíduo agir, pensar e interagir no meio social em que vive. É, em
suma, a forma pela qual o sujeito expressa a sua individualidade e, por isso,
“devemos entender a sexualidade em seu sentido mais amplo e profundo para não
reduzi-la à genitalidade, o que seria um empobrecimento das relações humanas”.22
Como bem colocam Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de
Oliveira Naves, o conjunto desses aspectos configura o status sexual, a partir do qual
se visualiza o direito à identificação sexual, que se insere no campo dos direitos da
personalidade.23
Por todo o exposto, parece lícito concluir que, embora o conceito de status
sexual tenha se transformado, em função das várias formas de manifestação da
sexualidade que lhe impuseram um novo significado, ele ainda não teve sua disciplina
jurídica adaptada. A existência de descompassos entre a organização proposta pelo
sistema jurídico e o universo fático que se pretende organizar é flagrante. E, com
isso, também ficam evidentes as violações ao paradigma, eleito constitucionalmente,
de proteção à pessoa humana e de instauração de um Estado Democrático de
Direito.

                                                            
22 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito, amor e sexualidade. In: PEREIRA, Rodrigo Cunha. A
Família na travessia do milênio. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 54.  
23 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodireito. Belo

Horizonte: Del Rey, 2009. p. 254.


 
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Não se tem permitido ao indivíduo transexual promover escolhas que


digam respeito ao seu projeto de vida, no qual se inclui, decisivamente, a realização
da cirurgia de transgenitalização e, posteriormente, caso queira, a mudança do
prenome e do sexo no seu registro de nascimento. A pluralidade sexual é negada por
uma interpretação equivocada da normativa existente. É preciso reconhecer que “só
permitindo a inclusão de projetos de vida diversos em uma sociedade pluralista é que
ela pode se autocompreender como uma sociedade democrática.”24

4 ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO ESTADO SEXUAL NO REGISTRO


CIVIL DO TRANSEXUAL REDESIGNADO

Após a cirurgia de transgenitalização os transexuais sofrem vários


constrangimentos devido ao prenome e ao estado sexual inadequados constantes no
registro civil. Apesar da nova aparência, todos os seus documentos permanecem os
mesmos, em desacordo com a nova identidade. Nessa situação o transexual
redesignado é constantemente exposto a situações vexatórias, tanto no meio
profissional, quanto no social.
Não se nega que o intenso sofrimento do transexual é minimizado com a
cirurgia de ablação dos órgãos genitais, contudo, falta ainda a adequação do seu
nome e do seu estado sexual à sua nova aparência, ou seja, a alteração dos dados
constantes no seu registro de nascimento, de modo que ele possa ser identificado na
sociedade pelo nome escolhido em razão do seu sexo psicológico, e não em razão do
seu sexo biológico.

                                                            
24 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: o estado democrático de direito a partir do

pensamento de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 210.


 
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Entretanto, muitos juízes negam os pedidos de alteração do prenome e do


estado sexual com fundamento na inexistência de lei expressa regulamentando a
matéria, bem como na regra da imutabilidade do nome da pessoa. Argumentam,
ainda, que as transformações corporais e hormonais sofridas pelo transexual são
meramente estéticas e, portanto, não têm o condão de alterar o sexo da pessoa.
Nesse sentido:

Direito de Família - Retificação de assento de nascimento - Alteração de


gênero - transexual - impossibilidade. A partir da realização de cirurgia de
transgenitalização, surge um dos principais problemas jurídicos atuais,
qual seja, a possibilidade de redesignação, ou adequação, do sexo civil,
registrado, ao sexo psicológico, novo sexo anatômico, e os efeitos daí
resultantes. Não há, nem jamais haverá, possibilidade de transformar um
indivíduo nascido homem em uma mulher, ou vice versa. Por mais que
esse indivíduo se pareça com o sexo oposto e sinta-se como tal, sua
constituição física interna permanecerá sempre inalterada. Assim,
afigura-se indevida a retificação do assento de nascimento de transexual
redesignado, mormente para salvaguardar direito de terceiros que podem
incorrer em erro essencial quando a pessoa do transexual, na hipótese de
enlace matrimonial. (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação
Cível n° 1.0024.07.595060-0/001 – Rel. Des. Dárcio Lopardi Mendes.
Data do Julgamento: 26/03/09.)

Retificação. Registro Civil. Estado individual da pessoa. Competência.


Vara de Família. Nome. Conversão jurídica do sexo masculino para o
feminino. Incide a competência da Vara de Família para julgamento de
pedido relativo a estado da pessoa que se apresenta transgênero. A falta
de lei que disponha sobre a pleiteada ficção jurídica à identidade
biológica impede ao juiz alterar o estado individual, que é imutável,
inalienável e imprescritível. Rejeita-se a preliminar e dá-se provimento ao
recurso. (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº
1.0000.00.296076-3/000 – Rel Des. Almeida Melo. Data do Julgamento:
20/03/03.)

 
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Há, ainda, juízes que autorizam a mudança do prenome, mas negam a


mudança do estado sexual no registro civil:

Transexual. Retificação de Registro Civil. Cirurgia realizada no exterior.


Mero atestado médico constatando sua realização. Ausência de
cumprimento das normas brasileiras sobre o tema. Procedimento que
precede a análise da mudança de sexo no registro civil. Indeferimento da
alteração do sexo no assento de nascimento. Recurso a que dá
provimento. (MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n°
1.0543.04.910511-6/001 – Rel. Des. Roney Oliveira. Data do
Julgamento: 23/02/06.)

No entanto, todos os argumentos contrários à mudança do prenome, bem


como à mudança do sexo no registro de nascimento podem ser refutados com fulcro
numa hermenêutica constitucional que sobreleva a dignidade da pessoa humana, os
direitos de personalidade e a autonomia privada.
Na definição de Ingo Wolfgang Sarlet, tem-se por dignidade da pessoa
humana:

a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz


merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado
e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venha a lhe garantir as condições existenciais mínimas para
uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação
ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida
em comunhão com os demais seres humanos.25

A personalidade pode, nessa acepção, ser entendida como o conjunto de


características inerentes ao ser humano que serve à sua individualização e que, por
isso, deve ser tutelada juridicamente.
                                                            
25 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de

1988. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 59-60.


 
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A pessoa não é um ser, mas um tornar-se. Não é posta, mas constantemente


construída. A existência humana consiste numa busca incessante, diante de sua
incompletude. Voltada para um horizonte qualquer, a pessoa humana se
desenvolve,26 apreende fatores sociais, identifica necessidades e busca satisfazê-las,
formando e conformando a sua individualidade.
Esse processo frequente, reforçando a dinamicidade própria da
personalidade, autoriza concluir que, na verdade, cada pessoa constitui-se segundo
decisão própria.27 E, sendo assim, a maneira mais genuína de se proteger o ser
humano é tutelar o desenvolvimento da sua personalidade. Eis, quiçá, o corolário mais
íntimo da ideia de dignidade, porque é incisivamente protetor da diferença de
individualidade tão essencial à natureza humana.28 Escolhas peculiares, formas
exclusivas de coordenar os incontáveis fatores sociovitais: este é o mecanismo capaz
de propiciar a autêntica estruturação pessoal.
Note-se, com isso, que pretender deixar a cada um seu devir – vir a ser –
induz, inevitavelmente, reconhecer a pessoa como titular de liberdade. Imposições
externas seriam fatalmente comprometedoras da real formação de referências
individuais. Daí dizer-se que o direito que possuem todas as pessoas, enquanto tais,
não se completa meramente pelo desenvolvimento da personalidade, mas pelo livre
desenvolvimento da personalidade.29
Há diversas teorias que visam a explicar a origem do transexualismo, tais
como a teoria genética, a psicológica, a fenotípica, a neurológica e teoria eclética, esta
                                                            
26 PAIVA, Márcio. Ontologia da liberdade e suas implicações. In: NAVES, Bruno Torquato de
Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire de. (Org.) Bioética, biodireito e o Código Civil de 2002. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 52-53.
27 PINTO, Paulo Mota. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade. In: Portugal-Brasil Ano

2000, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p. 157.
28 PINTO, Paulo Mota. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade. In: Portugal-Brasil Ano

2000, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p. 152 e 158.
29 ALMEIDA, Renata Barbosa de; RODRIGUES JÚNIOR, Walsir Edson. Direito Civil: Famílias. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 47.  


 
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última envolvendo fatores genéticos, fenotípicos e psicológicos. Percebe-se, pela


multiplicidade de teorias sobre a origem do transexualismo, o alto grau de
controvérsia sobre o tema. Cada uma dessas teorias, que não serão abordadas neste
estudo, pretende fundamentar a proteção do transexual a partir de sua origem, e cada
uma delas adota uma concepção diferente. Entretanto, deve-se deixar à parte essas
controvérsias teóricas, muitas vezes intermináveis e meramente acadêmicas e, por
conseguinte, incapazes de gerar alterações concretas na situação jurídica deste
indivíduo.
Deve-se compreender que não é a origem do transexualismo que influirá na
proteção jurídica do transexual, mas sim a dignidade da pessoa humana, princípio
central do ordenamento jurídico e unificador da ordem constitucional brasileira,
fundamentada no paradigma do Estado Democrático de Direito. Consequentemente,
não é mera faculdade estatal reconhecer e garantir a dignidade do ser humano
transexual, mas sim um dever, que deve se materializar em um ordenamento jurídico
que assegure a dignidade do redesignado sexualmente.
Cabe ainda destacar que a todo indivíduo é assegurado o direito à vida e a
Constituição de 1988 também elegeu como valor fundamental da República a
dignidade da pessoa humana, que deverá ser protegida e promovida individual e
socialmente. Com isso, conclui-se que o direito à vida não pode e não deve ser
considerado isoladamente, ele deve ser trabalhado sempre em conjunto com outros
direitos de personalidade para que não apenas a vida do ser humano seja respeitada,
mas a vida digna.
Viver dignamente implica reconhecer e respeitar o direito à
autodeterminação do indivíduo, o direito à identidade pessoal, o direito à saúde, o
direito à intimidade, entre outros direitos de personalidade.
A autodeterminação sexual está inserida no direito à identidade pessoal que,
para o transexual consiste na mudança do prenome e do seu estado sexual no registro
 
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de nascimento, pois toda pessoa que vive em sociedade tem a necessidade de ser
identificada corretamente como sujeito pertencente ao sexo masculino ou feminino.
Trata-se de um direito à identificação sexual. Segundo Elimar Szaniawski,

O direito à identidade sexual é considerado como um dos aspectos


fundamentais da identidade pessoal, vinculada a uma pluralidade de
direitos, que permitem o livre desenvolvimento da personalidade,
compreendendo a tutela à integridade psicofísica; a tutela à saúde e o
poder de disposição de partes do próprio corpo pela pessoa.30

Considerando que o transexualismo trata-se de um desejo de viver e ser


aceito na condição de pessoa do sexo oposto, que em geral vem acompanhado de um
mal-estar ou de sentimento de inadaptação por referência a seu próprio sexo
anatômico, o direito à autodeterminação sexual e o direito à identidade estão
intimamente ligados ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade do
transexual.
Para o transexual, a mudança do prenome e do estado sexual é fundamental
para o desenvolvimento da sua personalidade e integração social, e também para o
próprio sucesso da terapia, pois “permite cessar os constrangimentos pessoais e
sociais de se viver um sexo oposto a de sua identificação civil”.31
O princípio da dignidade humana está positivado no artigo 1°, inciso III da
Constituição Federal de 1988, fundamentador de toda a ordem constitucional
vigente. Justamente por ser princípio abrangente e unificador da ordem jurídica em
vigor, a interpretação e a aplicação da norma devem ser norteadas por esse princípio,
sempre visando à consecução dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, a

                                                            
30 SZANIAWSKY, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005. p. 167.
31 VENTURA. Miriam. Transexualidade: algumas reflexões jurídicas sobre a autonomia corporal e

autodeterminação da identidade sexual. In: RIOS, Roger Raupp (Org.) Em defesa dos direitos sexuais.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 142.
 
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saber, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
ou quaisquer formas de discriminação” (CF, 1988, artigo 3°, III).
Dessa forma, esse princípio é um importante instrumental para a efetivação
dos direitos constitucionais, servindo, para o tema em análise, de justificativa para a
proteção jurídica do transexual.
Negar a alteração de prenome e de estado sexual ao redesignado
sexualmente é submetê-lo a tratamento desumano, condenando-o e discriminando-o
por ser portador do transexualismo. Visivelmente, isso não está de acordo com o
princípio da dignidade da pessoa humana e com o paradigma de Estado Democrático
de Direito.
A incorporação dos direitos da personalidade nos ordenamentos jurídicos
mundiais é resultado do desenvolvimento da concepção de que há direitos inerentes
à própria essência humana, que não possuem conteúdo patrimonial direto, mas que
são merecedores de proteção da ordem jurídica como uma expressão do ideal de
justiça. Assim, os direitos da personalidade integram os direitos fundamentais e
humanos, como direitos essenciais para a pessoa humana, sem os quais o indivíduo
não pode desenvolver todas as suas potencialidades.
A sexualidade é um dos componentes da personalidade humana. “A
sexualidade é elemento inerente à vida e, como tal, pertencerá aos direitos da
personalidade. A sexualidade humana deve estar contida no sentido de personalidade,
sob pena de extrairmos dela, personalidade, elemento essencial e vital.”32
Quanto ao nome, elemento designativo do indivíduo e fator de sua
identificação na sociedade, integrante da personalidade do indivíduo, em relação ao
transexual, deve estar adequado à sua condição, pois é através dele que a sociedade
identificará o sujeito.

                                                            
32 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 15. 
 
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De acordo com o parágrafo único do art. 55 da Lei nº 6.015/73, “os oficiais


do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus
portadores [...].” Essa regra deve ser alargada para abranger outros casos em que o
nome expõe a pessoa ao ridículo, não somente no momento de registrar o prenome
do recém-nascido. Esse alargamento decorre do princípio da dignidade humana e dos
valores constitucionais, e implica uma relativização da regra da imutabilidade.
Além disso, o próprio art. 58 da Lei nº 6.015/73 admite a substituição do
prenome por apelidos públicos notórios. Verifica-se, portanto, que é um direito do
transexual redesignado retificar o seu nome no registro civil.
Esse também é o entendimento de Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno
Torquato de Oliveira Naves33, que frisam ser uma afronta à dignidade humana
impedir a alteração do prenome do transexual, conduta que não inibiria a
discriminação dessa minoria, impossibilitando o livre desdobramento da
personalidade, que compreende o direito à cidadania, direito à saúde, direito ao
próprio corpo. Como já foi visto, embora não exista legislação ordinária expressa
tratando a matéria, há diversos dispositivos no ordenamento jurídico que podem
servir de fundamento para a alteração do registro civil. Nenhum indivíduo deve ser
discriminado em razão de sua orientação ou condição sexual, tendo em vista que o
objetivo fundamental do Estado brasileiro é promover o bem de todos sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
Conclui-se que a alteração do prenome e do estado sexual do indivíduo
transexual, apesar de ausência de regulamentação direta sobre a matéria, encontra
respaldo suficiente no ordenamento jurídico pátrio.

                                                            
33 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodireito. Belo

Horizonte: Del Rey, 2009. p. 261-263.


 
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Felizmente, já é possível encontrar várias decisões que autorizam a mudança


do prenome e do sexo do transexual redesignado. Entretanto, essas decisões ora
autorizam a mudança sem qualquer tipo de ressalva no registro civil, ora determinam
que a informação sobre a mudança seja averbada à margem do registro civil do
transexual redesignado.

4.1 Alteração do prenome e do estado sexual do transexual redesignado:


decisões com e sem ressalva no registro civil.

Visando conciliar a privacidade do transexual e a publicidade dos Registros


Públicos, alguns julgados permitem a alteração do prenome e do sexo, no entanto,
determinam que a informação a respeito da mudança seja averbada à margem do
registro civil do transexual. Nesse sentido:

Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis


seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar
no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário
acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a
alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se
não pode comparar com qualquer outra circunstância que não
tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela
necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe,
equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado
ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato
voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a
vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito,
discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que
escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na
permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e
provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp

 
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678933/RS, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito. 3ª


Turma. Julgado em 22/03/2007. DJ 21/05/2007 p. 571)

REGISTRO PÚBLICO. MUDANÇA DE SEXO. EXAME DE


MATÉRIA CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE DE
EXAME NA VIA DO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE
PREQUESTIONAMENTO. SUMULA N. 211/STJ.
REGISTRO CIVIL. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO
SEXO. DECISÃO JUDICIAL. AVERBAÇÃO. LIVRO
CARTORÁRIO. 1. Refoge da competência outorgada ao Superior
Tribunal de Justiça apreciar, em sede de recurso especial, a
interpretação de normas e princípios de natureza constitucional. 2.
Aplica-se o óbice previsto na Súmula n. 211/STJ quando a
questão suscitada no recurso especial, não obstante a oposição de
embargos declaratórios, não foi apreciada pela Corte a quo. 3. O
acesso à via excepcional, nos casos em que o Tribunal a quo, a
despeito da oposição de embargos de declaração, não regulariza a
omissão apontada, depende da veiculação, nas razões do recurso
especial, de ofensa ao art. 535 do CPC. 4. A interpretação
conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo
legal para que transexual operado obtenha autorização judicial
para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido
público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. 5.
Não entender juridicamente possível o pedido formulado na
exordial significa postergar o exercício do direito à identidade
pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o
registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a
sua integração na sociedade. 6. No livro cartorário, deve ficar
averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as
modificações procedidas decorreram de decisão judicial. 7.
Recurso especial conhecido em parte e provido. (BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. REsp 737.993/MG. Rel. Ministro
João Otávio de Noronha. 4ª Turma. Julgado em 10/11/2009. DJe
18/12/2009)

Favorável à mudança do prenome e do sexo no registro de nascimento sem


qualquer informação do fato que gerou tal mudança, determinando inclusive que das
 
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certidões do registro público competente não conste que a alteração é oriunda de


decisão judicial, tampouco que ocorreu por motivo de redesignação sexual de
transexual é possível encontrar a seguinte decisão:

Direito civil. Recurso especial. Transexual submetido à cirurgia de


redesignação sexual. Alteração do prenome e designativo de sexo.
Princípio da dignidade da pessoa humana.
- Sob a perspectiva dos princípios da Bioética – de beneficência,
autonomia e justiça –, a dignidade da pessoa humana deve ser
resguardada, em um âmbito de tolerância, para que a mitigação do
sofrimento humano possa ser o sustentáculo de decisões judiciais,
no sentido de salvaguardar o bem supremo e foco principal do
Direito: o ser humano em sua integridade física, psicológica,
socioambiental e ético-espiritual.
- A afirmação da identidade sexual, compreendida pela identidade
humana, encerra a realização da dignidade, no que tange à
possibilidade de expressar todos os atributos e características do
gênero imanente a cada pessoa. Para o transexual, ter uma vida
digna importa em ver reconhecida a sua identidade sexual, sob a
ótica psicossocial, a refletir a verdade real por ele vivenciada e que
se reflete na sociedade.
- [...].
- Em última análise, afirmar a dignidade humana significa para
cada um manifestar sua verdadeira identidade, o que inclui o
reconhecimento da real identidade sexual, em respeito à pessoa
humana como valor absoluto.
- [...].
- A situação fática experimentada pelo recorrente tem origem em
idêntica problemática pela qual passam os transexuais em sua
maioria: um ser humano aprisionado à anatomia de homem, com
o sexo psicossocial feminino, que, após ser submetido à cirurgia
de redesignação sexual, com a adequação dos genitais à imagem
que tem de si e perante a sociedade, encontra obstáculos na vida
civil, porque sua aparência morfológica não condiz com o registro
de nascimento, quanto ao nome e designativo de sexo.

 
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- Conservar o “sexo masculino” no assento de nascimento do


recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das
realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a
aparência do transexual redesignado, em tudo se assemelha ao
sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de
anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente.
- Assim, tendo o recorrente se submetido à cirurgia de
redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido, existindo,
portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de
sexo no registro civil, e a fim de que os assentos sejam capazes de
cumprir sua verdadeira função, qual seja, a de dar publicidade aos
fatos relevantes da vida social do indivíduo, forçosa se mostra a
admissibilidade da pretensão do recorrente, devendo ser alterado
seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo
feminino, pelo qual é socialmente reconhecido.
- Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado
corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de
angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a
dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal.
No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente
depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor
vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se
identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento,
seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da Lei
n.º 6.015/73.
- Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já
enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a
barreira do preconceito e da intolerância. O Direito não pode
fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente
no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais
íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do
designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome do
operado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica,
porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que
o Direito deve assegurar.
- Assegurar ao transexual o exercício pleno de sua verdadeira
identidade sexual consolida, sobretudo, o princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana, cuja tutela consiste em promover
 
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o desenvolvimento do ser humano sob todos os aspectos,


garantindo que ele não seja desrespeitado tampouco violentado
em sua integridade psicofísica. Poderá, dessa forma, o redesignado
exercer, em amplitude, seus direitos civis, sem restrições de cunho
discriminatório ou de intolerância, alçando sua autonomia privada
em patamar de igualdade para com os demais integrantes da vida
civil. A liberdade se refletirá na seara doméstica, profissional e
social do recorrente, que terá, após longos anos de sofrimentos,
constrangimentos, frustrações e dissabores, enfim, uma vida plena
e digna.
- [...]. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1008398/SP.
Rel. Ministra Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em 15/10/2009.
DJe 18/11/2009)

Essa parece ser a decisão que melhor se conforma aos paradigmas do


Estado Democrático de Direito, pois a integração completa do transexual
redesignado depende da retificação do registro e qualquer ressalva ofende os seus
direitos fundamentais por ser discriminatória. Os transexuais têm o direito
constitucional de manter o sigilo de sua condição e ter resguardada a sua intimidade.

5 REFLEXOS DA MUDANÇA DO PRENOME E DO ESTADO SEXUAL


NO DIREITO DE FAMÍLIA

A alteração de prenome e sexo no registro civil pode ter repercussão em


relação a terceiros. No entanto, tais repercussões não se colocam como um
impedimento para o pleno exercício dos direitos personalíssimos e fundamentais do
indivíduo transexual.
É no direito de família que a mudança do estado sexual suscita mais
dúvidas, principalmente nos institutos do casamento e da filiação, pois as relações

 
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familiares, base da sociedade, são as mais atingidas com a cirurgia de ablação de


órgãos

5.1 Casamento

No Brasil, de acordo com a doutrina34 e jurisprudências majoritárias, a


diversidade de sexos entre os cônjuges é requisito indispensável para garantir que o
ato seja existente e válido. O Estado brasileiro não reconhece o casamento entre
pessoas do mesmo sexo. O matrimônio realizado entre pessoas do mesmo sexo,
casamento não é; trata-se de um ato inexistente, incapaz de produzir os efeitos
jurídicos. Essa é a posição predominante na doutrina e na jurisprudência pátrias.
A justificativa é uma só: o casamento sempre foi posto por heterossexual
por ser uma entidade familiar voltada para a perpetuação da espécie. Conforme
Olando Gomes, “O direito de família organiza relações humanas que derivam do
instinto de reprodução. É, em síntese, a disciplina da sexualidade.”35
Os cônjuges hão de formar um casal para alcance dessa meta. O Direito
Canônico disciplinou o casamento pautado, essencialmente, em três elementos: seu
caráter sacramental, a indissolubilidade e a cópula. A relação sexual entre os
consortes era considerada um dever, pois indispensável à consecução do fim maior: a
procriação. Como o regime jurídico do Código Civil de 1916 foi pautado no Direito
Canônico, outro não poderia ser o entendimento: a diversidade de sexos é elemento
essencial para o casamento.
Ocorre que a procriação não pressupõe mais nem conjugalidade, nem a
sexualidade. Pode ocorrer sem estas, como na adoção ou na reprodução assistida,
                                                            
34 Nesse sentido: GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. São Paulo:
Saraiva, 2005. v.6, p. 28; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família.
16.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. v.5, p. 64-65.
35 GOMES, Orlando. A crise do Direito. São Paulo: Max Limonad, 1955. p. 198.

 
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conjunta ou individualmente. Em contramão, e complementarmente, também


podem conjugalidade e sexualidade se mostrarem dissociadas da procriação. Logo,
torna-se discutível a plausibilidade de se manter a heterossexualidade do casamento
como uma característica realmente elementar.
De acordo com João Baptista Villela,

No ambiente dessacralizado e pluralista das sociedades ocidentais


contemporâneas, soa inaceitável o estabelecimento de restrições
de direito em razão de preferências ou inclinações sexuais. Se a
isso se ajuntar a circunstância de que o casamento deixou de ser
um instituto preordenado à reprodução, para se constituir
essencialmente em espaço de companherismo e de camaradagem,
era natural que se definisse a demanda pelo reconhecimento legal
da união entre parceiros do mesmo sexo.36

Na mesma direção, Luiz Edson Fachin considera equivocada a base de


formulação doutrinária e jurisprudencial acerca da diversidade de sexos como
pressuposto do casamento. Segundo o autor,

A matéria desborda dessa seara e não pode ser vista à luz da


conhecida teoria da inexistência matrimonial, na qual fortes são os
preconceitos e a rigidez. Tal argumento não pode ser subterfúgio
para negar, num outro plano, efeitos jurídicos às associações
afetivas de pessoas de mesmo sexo.37

Torna-se imperioso nos dias atuais desvincular, definitivamente, o


casamento civil da religião. O Brasil é um Estado laico (art. 19 da CF/88). O art. 3º,
IV da Constituição de 1988 estabelece que é objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceito ou qualquer outra

                                                            
36 VILLELA, João Baptista. As novas relações da família. In: Anais da XV Conferência Nacional da OAB
em Foz do Iguaçu. São Paulo: JBA Comunicações, 1995. p. 642.
37 FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro.

2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 126.


 
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forma de discriminação. Parece não existir outra explicação, senão o preconceito,


para impedir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Mesmo que o Código Civil brasileiro vedasse o casamento entre pessoas do
mesmo sexo – o que em hipótese nenhuma pode ser verificado no texto legal – ainda
assim, diante da Constituição de 1988, com base nos princípios da liberdade e da
igualdade, defensável seria o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Com esse entendimento, impossível é não admitir o casamento do
transexual, sob pena de se estar, além de atentando contra a liberdade sexual,
reconhecendo uma capacidade limitada, fora das previsões do Código Civil, o que
nos parece desacertado.”38
Até mesmo de acordo com a doutrina conservadora, deve-se entender que,
inexistindo lei proibitiva do casamento transexual, este deva ser permitido, uma vez
que a mudança do sexo civil no registro do transexual faz com que o requisito da
diversidade de sexos seja observado.
Ressalta-se ainda que o direito à intimidade da pessoa deve ser respeitado,
deixando a cargo do transexual a liberdade para informar ao outro cônjuge sobre a
cirurgia e a alteração do prenome e do sexo no registro civil. No entanto, o
transexual que não informar a sua condição ao cônjuge, poderá ter o casamento
anulado em virtude do error in persona, previsto no artigo 1557, I do Código Civil.
Portanto, o indivíduo que se sentir enganado, caso venha a contrair matrimônio com
um transexual, tem ao seu dispor instrumentos legais adequados para pôr fim à união
se desejar, ou seja, a anulabilidade do casamento por erro essencial sobre a pessoa do
outro cônjuge, que deve ser alegada no prazo de três anos a contar da celebração do
casamento, conforme estabelecido no artigo 1560, III do Código Civil. É que o

                                                            
38SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade,
da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo Horizonte: Del Rey,
1998. p. 324.
 
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exercício do direito à intimidade por parte do transexual não pode contrariar o


princípio da boa-fé objetiva, sendo seu dever informar ao parceiro a respeito da
cirurgia e da retificação do registro civil.

5.2 Filiação

O livre planejamento familiar é um direito garantido constitucionalmente e


tem como possíveis desdobramentos o direito de procriar e o direito de não procriar.
Procriar é um procedimento que tem por finalidade a transmissão da vida
de geração a geração, compreendendo desde a fecundação até o nascimento,
crescimento e criação de um novo ser.
Contemporaneamente, a família não é mais encarada como uma unidade de
procriação e produção, estruturada apenas para atender aos seus fins econômicos,
políticos, religiosos e culturais como outrora. No Brasil, com a Constituição da
República de 1988, caiu o modelo da família unitária, transpessoal, matrimonializada,
patriarcal e hierarquizada.
Nesse sentido, a família deixou de ser objeto de proteção autônoma –
colocada como uma realidade baseada em si mesma – e tornou-se funcional, ou seja,
instrumento de promoção e desenvolvimento dos seus membros, realçando a
dignidade da pessoa humana em suas relações.39 É a pessoa que deve ser protegida e
colocada no centro do ordenamento jurídico.40

                                                            
39 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares. In: TEPEDINO,
Gustavo. Temas de Direito Civil. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 352.
40 Para essa mudança, Paulo Luiz Netto Lôbo utiliza a expressão “repersonalização”. (LÔBO, Paulo

Luiz Netto. A repersonalização das famílias. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 6, n.
24, p. 151, jun.-jul. 2004.) 
 
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Com o reconhecimento de outras formas de constituição de família para


além do casamento, como a união estável e a família monoparental, conclui-se que a
família reconhecida e amparada pelo legislador constituinte é aquela formada pelo
vínculo afetivo. É a affectio o principal elemento comum em todos os novos núcleos
familiares.41
O Código Civil, de forma expressa, proíbe a qualquer pessoa, de direito
público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família (art. 1.513).
A liberdade pode ser visualizada no texto constitucional (art. 226, §7º), quando trata
do planejamento familiar que deverá ser exercido com base na dignidade da pessoa
humana e da paternidade responsável. Conforme atesta Eduardo de Oliveira Leite,
“no texto constitucional de 1988 é nítido o sério esforço no sentido de reduzir o
campo das imposições, alargando o espaço das liberdades [...].”42
Nesse novo contexto, procriar não mais está vinculado à questão da
sexualidade. É direito subjetivo43, garantido constitucionalmente, incluso na liberdade
de planejamento familiar que, nos termos do art. 226, § 7, da CR/88, “(...) é livre
decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos
para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de
instituições oficiais ou privadas.”

                                                            
41 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus.
In: Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: IBDFAM/Del Rey, 2002. p. 96-
98. PEREIRA, Sumaya Saady Morhy. Direitos e deveres nas relações familiares – uma abordagem a
partir da eficácia direta dos direitos fundamentais. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo
da Cunha. A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense,
2006. p. 520-521.
42 LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias Monoparentais: a situação jurídica de pais e mães solteiros, de

pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003. p. 17.
43 Nota: no presente estudo foi adotado como conceito de direito subjetivo o interesse juridicamente

protegido. Para estudar melhor esse ponto indica-se PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil:
introdução ao Direito Civil Constitucional. 2 ed. Trad. Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.
 
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No exercício da autodeterminação (do livre planejamento familiar), o sujeito


tem a liberdade de procriar (liberdade positiva), que o permite ter filhos quando
decide tê-los; e a liberdade de não procriar (liberdade negativa), que o possibilita não
ter filhos quando decide em não tê-los.44
Dessa forma, não se pode negar ao transexual redesignado o livre
planejamento familiar que poderá ser efetivado por meio das técnicas de reprodução
assistida. Contudo, resta saber como fica a situação dos filhos, já existentes, do
transexual que alterou o prenome e o sexo no registro de nascimento. A redesignação
do transexual, a priori, não deve ser refletida nos documentos de identificação do
filho, continuando a sua situação tal como antes, pois se trata de direito da
personalidade do filho e, por isso, compete tão somente ao filho, caso queira,
solicitar a modificação do seu registro.
Portanto, mesmo após a mudança do prenome e do sexo do transexual no
registro civil, todos os direitos, deveres e poderes familiares permanecem, devendo o
pai/mãe transexual comprovar a sua condição parental para a prática dos atos ligados
à relação paterno-filial, já que na certidão de nascimento do filho, em princípio, não
se alterarão os nomes dos pais.

6 CONCLUSÃO

Sob a perspectiva da dignidade humana, da autonomia privada e dos


direitos da personalidade, não é possível que uma pessoa tenha uma vida digna sem
que seja reconhecida plenamente a sua identidade sexual. O objetivo principal do
ordenamento jurídico é assegurar a integridade humana em todos os seus aspectos,
                                                            
44 MORI, Maurizio. Fecundação assistida e liberdade de procriação. Revista de Bioética e Ética Médica, v.

9, n. 2, p. 57-70, 2001.
 
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tanto física, psicológica, socioambiental, ético-espiritual, garantindo o


desenvolvimento e a promoção da dignidade humana.
O transexual que tem os pedidos de mudança negados de prenome e de
sexo no registro civil tem os seus direitos à intimidade, à identidade, bem como sua
autonomia privada violados. Para o transexual, viver dignamente pressupõe o
reconhecimento de sua identidade sexual própria e o seu correto espelhamento no
registro de civil.
Embora a legislação não possa estar sempre de acordo com o fato social, a
ausência de norma expressa prevendo a alteração de prenome e sexo no registro civil
dos transexuais redesignados não justifica a recusa de alguns tribunais de dar
provimento às pretensões dos transexuais de mudança do prenome e do sexo no
registro civil, uma vez que esta mudança encontra-se reconhecida através da
invocação de princípios, especialmente o princípio da dignidade humana.
O Direito não pode fechar os olhos para as mudanças sociais, colaborando
para a discriminação, nem mesmo permitir a exposição de qualquer indivíduo ao
ridículo, a situações vexatórias que abalam a sua autoestima, causando danos
gravíssimos a sua integridade psicofísica e desrespeitando o seu direito à vida, à
saúde, à liberdade, à igualdade, à privacidade, à identidade sexual e o seu direito ao
nome.
As repercussões em outros ramos do direito, principalmente no direito de
família, em nada impedem o exercício dos direitos personalíssimos e da consequente
dignidade do transexual.

 
430 
 
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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O TRATAMENTO DAS


SITUAÇÕES DE "DESACORDO MORAL RAZOÁVEL":
O CASO DA UTILIZAÇÃO DAS CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS

Nathália de Lima Catão1

RESUMO

Hodiernamente, é possível verificar um progressivo crescimento da atuação do Poder


Judiciário no Brasil, o qual vem sendo cada vez mais chamado a decidir as diversas
causas relativas ao Estado, especialmente no âmbito de competência do Supremo
Tribunal Federal. Muito se tem questionado acerca desse papel da jurisdição
constitucional, levantando-se também a discussão acerca dos direitos fundamentais
como legitimadores desse exercício. As divergências residem em seu alegado caráter
antidemocrático, uma vez que se passa a um órgão não eleito pelo povo a
responsabilidade de guardião da constituição, ao ponto de poder ele anular atos com
ela incompatíveis, mesmo que tenham sido esses atos oriundos do Parlamento, eleito
pelo povo. O presente trabalho visa apresentar a problemática em torno do exercício
da jurisdição constitucional, diante dos debates envolvendo a relação entre direitos
fundamentais e democracia, apresentando concepções que vislumbram
complementaridade e tensão entre esses institutos. Analisando-se tal questão, quer-se
examinar a proposta de autocontenção judicial que envolve as situações de
“desacordo moral razoável”, levando a estudo especificamente o caso da utilização
de células-tronco embrionárias e o julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3510 empreendido pelo Supremo Tribunal Federal. Ao se
falar em desacordo moral razoável, o qual tem lugar diante de uma ausência de
consenso entre posições racionalmente defensáveis, são facilmente enquadráveis
questões biojurídicas, em que o cerne da discussão tem cunho marcantemente
ideológico. Nessa perspectiva, um mesmo direito fundamental poderia embasar o
lado favorável e o lado contrário à legislação reguladora, inexistindo elemento
                                                            
1Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Mestranda do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
 
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fático/científico que conduza a uma solução única. A questão da utilização das


células-tronco embrionárias figura nesse contexto e em tempos marcados por uma
ampliação constante do rol de direitos fundamentais, em que as mais diversas
matérias acabam se enquadrando nesse discurso de proteção, a relevância do debate
em torno da problemática se intensifica.

Palavras-chave: Jurisdição Constitucional, Direitos fundamentais, Células-tronco,


Constitutional Jurisdiction, Fundamental Rights, Stem Cells.

 
1. Introdução

A jurisdição constitucional abarca a interpretação das normas


constitucionais pelos integrantes do Poder Judiciário, e o controle de
constitucionalidade figura, atualmente, como uma de suas mais importantes
manifestações. Ao exercer esse controle, o Poder Judiciário pode declarar a
incompatibilidade dos atos normativos contrários à Constituição e retirá-los do
ordenamento jurídico.
O presente trabalho visa apresentar a problemática em torno do exercício
da jurisdição constitucional, diante dos debates envolvendo a relação entre direitos
fundamentais e democracia. Analisando-se tal questão, quer-se examinar a proposta
de autocontenção judicial que envolve as situações de “desacordo moral razoável”,
levando a estudo especificamente o caso da utilização de células-tronco embrionárias.
Hodiernamente, é progressivo o chamamento do Poder Judiciário para
atuar na garantia dos direitos fundamentais, adentrando, na esfera decisória, questões
que muitas vezes perpassam os liames estritamente jurídicos, o que tem intensificado
a tensão entre o Poder Judiciário e os demais poderes. As divergências que advêm do
exercício da jurisdição constitucional residem em seu alegado caráter
antidemocrático, uma vez que se passa a um órgão não eleito pelo povo a

 
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responsabilidade de guardião da Constituição, ao ponto de poder anular atos com ela


incompatíveis, mesmo que tenham sido esses atos oriundos do Parlamento eleito
pelo povo.
No que se refere à atuação do Poder Judiciário no controle de
constitucionalidade, especificamente no caso da regulamentação da utilização das
células-tronco embrionárias, tem-se que tal controle já foi exercido por meio da Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 3510.
No Brasil, a revogada lei n.º 8.974/95 – anterior lei da Biossegurança –
proibia completamente a manipulação genética de células germinais humanas,
restringindo quaisquer pesquisas nesse âmbito. A nova lei, de n.º 11.105/2005,
permitiu, em seu artigo 5º, “para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-
tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro
e não utilizados no respectivo procedimento” 2, atendidas as condições de que sejam
embriões inviáveis ou congelados por mais de três anos, sendo também necessário o
consentimento dos genitores, e ficando vedada qualquer comercialização.
O referido dispositivo deu ensejo à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
3510, proposta em 30 de maio de 2005 pelo então Procurador-geral da República,
cujo julgamento teve grande repercussão na sociedade, com oportunidades de
debates por meio de audiências públicas realizadas. O Supremo Tribunal Federal
decidiu, em 29 de maio de 2008, por maioria de votos (seis ministros), que o artigo 5º
da Lei da Biossegurança não merece reparo, entendendo que as pesquisas com

                                                            
2 BRASIL. Lei no. 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de
segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho
Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de
Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o,

Diário Oficial da União, Brasília-DF, 28 mar.


10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências..

2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-


2006/2005/Lei/L11105.htm>. Acesso em: 15 ago. 2008. 
 
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células-tronco embrionárias, nos termos da referida lei, não violam o direito à vida ou
a dignidade da pessoa humana.
Inicialmente, pretende-se apresentar uma análise da relação entre direitos
fundamentais e democracia, apresentando as concepções que vislumbram
complementaridade e tensão entre esses institutos. Em seguida, será demonstrada a
proposta de autocontrole judicial referente ao tratamento de situações envolvendo
desacordos morais razoáveis.
Posteriormente, será empreendido o exame da problemática através do caso
concreto da utilização de células-tronco embrionárias, analisando-se ainda o
julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510 realizado pelo Supremo
Tribunal Federal. Por fim, será apresentada a perspectiva teórica de defesa do
controle constitucional apresentada por Rodrigo Umpimny, envolvendo os vários
aspectos discutidos no presente trabalho.
Ressalte-se, por derradeiro, que não se tem aqui qualquer intenção de
resolver em poucas páginas esses questionamentos que há muito vêm sendo
debatidos no âmbito do Direito Constitucional e da Teoria do Estado. Dentro de um
recorte limitado, o que se procura nesse espaço é levantar algumas proposições e
questionamentos que possam contribuir com o cenário do debate atual acerca dos
problemas apresentados.

2. Uma possível tensão entre Direitos Fundamentais e Democracia?

Na linguagem moderna ocidental, os termos “direitos fundamentais” e


“democracia” tornaram-se uma constante nos mais diversos discursos. Na
problemática da relação entre ambos, tem-se como resposta a tese da

 
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complementaridade de um lado e, de outro lado, a tese da incompatibilidade ou


tensão entre os termos. 3
Pode-se dizer que, atualmente, é mais comum que os dois termos sejam
utilizados num sentido de complementaridade, de forma que a conjugação entre
ambos dá-se, muitas vezes, quase que de forma automática. Por outro lado, torna-se
também cada vez mais corriqueiro o entendimento que vislumbra a existência de
uma possível tensão entre esses dois conceitos, sob a ótica de que o influxo
demasiado de direitos fundamentais poderia reduzir o espaço de deliberação popular,
especificamente numa sobreposição do Poder Judiciário em relação ao Poder
Legislativo.4
Aponta-se a imprecisão e a abstração da linguagem dos direitos
fundamentais como um problema do qual decorreria uma mutabilidade do dircurso,
incorrendo no fato de que partes contrárias poderiam se valer de um mesmo direito
fundamental para justificar entendimentos opostos. Nesse sentido, os direitos
fundamentais serviriam de base para qualquer um que simplesmente discordasse de
atos normativos emanados pelo Poder Legislativo. Para André Ramos Tavares, uma
conseqüência perigosa é que: “O discurso dos direitos fundamentais finda por
conceder um verniz jurídico a qualquer sentimento de repulsa a determinado ato
normativo”.5
Decorre também dessa abstração que cabe ao Poder Judiciário,
notadamente seu órgão decisório de cúpula, definir e concretizar o alcance conceitual
desses direitos fundamentais, o que pode incorrer numa relativização do Poder

                                                            
3 DIMOULIS, Dimitri. Estado Nacional, Democracia e Direitos Fundamentais – conflitos e aporias.

In: CLÈVE, Clèmerson Merlin et al (coords). Direitos Humanos e Democracia. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p. 30. 
4 Nesse sentido: TAVARES, André Ramos et al. Direitos Fundamentais e Democracia:

complementariedade/contrariedade. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin et al (coords). Direitos


Humanos e Democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 170. 
5 Idem, p. 172.

 
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Legislativo e do próprio princípio democrático, em conseqüência. O receio é que


qualquer questão jurídica poderia ser enquadrada no discurso de algum direito
fundamental, de forma que qualquer lei deixaria de depender da vontade legislativa,
passando a ser definida pelo Judiciário.6
Uma Teoria dos Direitos Fundamentais, sob essa ótica, enfraqueceria a
deliberação democrática por tirar da população, mais especificamente de seus
representantes, a soberania de decidir em torno de questões envolvendo os direitos
fundamentais. Tal prerrogativa é transportada para o Poder Judiciário, que acaba
assumindo uma posição de protagonismo deliberativo. A questão é que, justamente
em tempos marcados por uma ampliação constante do rol de direitos fundamentais,
em que as mais diversas matérias acabam se enquadrando nesse discurso de proteção,
a problemática se intensifica.
A tese da complementaridade, por outro lado, entende pela necessária
compatibilidade entre direitos fundamentais e democracia, sob a idéia de que os
institutos pressupõem-se mutuamente: é necessário democracia, para se garantir a
proteção dos direitos fundamentais e são essenciais os direitos fundamentais para a
configuração de um espaço democrático. 7
Em se tratando dos direitos fundamentais ligados à garantia do
procedimento democrático formal, a discussão encontra-se mais tranqüila, uma vez
que é possível considerar, de maneira geral, que mesmo autores ditos
procedimentalistas reputam a viabilidade de um controle das leis que possam afetar
direitos fundamentais políticos, ou ligados à liberdade, desde que para garantir a
manutenção do próprio processo democrático. O problema maior diz respeito à
possibilidade de uma limitação material das leis a partir do conteúdo desses direitos
                                                            
6 Idem, p. 177-178.
7 DIMOULIS, Dimitri. Estado Nacional, Democracia e Direitos Fundamentais – conflitos e aporias.
In: CLÈVE, Clèmerson Merlin et al (coords). Direitos Humanos e Democracia. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p. 31. 
 
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fundamentais, e principalmente, pelo fato de tal conteúdo ficar a cargo do Poder


Judiciário, que será o responsável por verificar se a legislação é compatível com os
valores previstos na Constituição. 8
Na concepção de John Hart Ely, entender pela atuação da Suprema Corte,
em sobreposição ao Poder Legislativo, tal como um legítimo representante do povo,
constitui posicionamento elitista e antidemocrático, chegando o autor a atribuir a
denominação de “princípio de Führer”. 9
Já Dworkin defende que essa competência dada ao Poder Judiciário não
gera qualquer ofensa à democracia, mas, em sentido contrário, pode configurar um
grande trunfo das minorias. Dá-se, assim, força ao ideal democrático, visto ser o
acesso aos tribunais, de fato, possível, e por tais decisões serem fundamentadas na
proteção dos direitos fundamentais.10
Demais disso, considerando a supremacia dos direitos fundamentais, o
autor entende que esses direitos conferem legitimidade à atuação do Poder Judiciário
diante de atos oriundos dos demais poderes em contraposição aos direitos
fundamentais. Nessa atuação, a jurisdição constitucional abraça os valores políticos
que já foram escolhidos pelo povo no processo de construção da constituição.
Capeletti chega a afirmar ser o processo jurisdicional o maior propiciador de
participação na esfera pública, dado que o sentimento de participação ínsito à
democracia pode ser desvirtuado pelo Poder Legislativo, e tal não aconteceria na
jurisdição, em que somente as partes podem dar início ao processo de discussão,
podendo ser ouvidas e determinar o seu conteúdo.11

                                                            
8 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Jurisdição Constitucional: entre constitucionalismo e

democracia. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 155.


9 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. Cambridge: Harvard University Press, 2002, p. 68. 
10 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 32.
11 CAPELETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonis Fabris, 1999, p. 101.

 
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Para Habermas, o nexo interno entre os direitos humanos e a soberania


popular consiste no fato de que os direitos humanos institucionalizam as condições
de comunicação para a formação da vontade política racional. Assim, direitos que
possibilitam o exercício da soberania popular não podem ser impostos como
limitações de fora ao legislador.12
Na perspectiva de Alexy, o choque entre direitos fundamentais e
democracia seria apenas aparente, relacionando-se com a distribuição de
competências constante da Constituição Federal: a competência do Poder Legislativo
encontra-se nos limites dos direitos fundamentais, apesar de legitimado
democraticamente de maneira direta; a competência do Judiciário remete-se ao
controle do Legislativo diante de ameaça aos direitos fundamentais, ainda que
legitimado de forma indireta. 13
Por fim, cabe acrescentar o posicionamento de Humberto Ávila:

A tese da insindicabilidade das decisões do Poder Legislativo,


sustentada de modo simplista, é uma monstruosidade que viola a
função de guardião da Constituição atribuída ao Supremo
Tribunal Federal, a plena realização do princípio democrático e
dos direitos fundamentais bem como a concretização do princípio
da universalidade da jurisdição. 14

3. Autocontrole Judicial: a proposta do “Desacordo Moral Razoável”

Sob a perspectiva de que a jurisdição constitucional configuraria uma


afronta à democracia, são lançadas fórmulas de contenção a esse protagonismo
                                                            
12 HABERMAS, Jürgen. A Constelação pós-nacional – Ensaios Políticos. São Paulo: Littera Mundi,
2001, p. 149. 
13 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 574. 
14 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 178.  

 
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judicial – as chamadas doutrinas de self-restraint ou autocontenção judicial –, sob a


ótica de que certas matérias não poderiam ser submetidas à análise do Poder
Judiciário. 15
Válido explicitar aqui o que a filosofia moderna tem chamado “desacordo
moral razoável” ou “pluralismo razoável” 16, o qual tem lugar diante de uma ausência
de consenso entre posições racionalmente defensáveis. Nessa perspectiva, um
mesmo direito fundamental poderia embasar o lado favorável e o lado contrário à
legislação, inexistindo elemento fático/científico que conduza a uma solução única.
Diante dessa situação, defende-se a aplicação do princípio da prioridade do
Legislativo, que estaria numa maior coerência com princípios basilares da ordem
constitucional, como a própria democracia.17
Nesses casos, o ponto crucial de inconstitucionalidade seria ideológico,
havendo argumentos aceitáveis e de amplo consenso para ambas as alternativas em
discussão. Dada essa impossibilidade de uma única decisão cabível, o Judiciário
haveria de decidir em favor da lei, independentemente de entendimentos pessoais de
cada um, uma vez que a legislação passou por um procedimento democrático para
ser construída.
Dentro da perspectiva de autocontenção judicial, cabe transpor o ácido
entendimento lançado por Jeremy Waldron:

As pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um


sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos
políticos e tomando suas decisões com base no governo da
maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios.
Parece que tal fórum é considerado indigno das questões mais
                                                            
15 BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. Op. cit., p. 117. 
16 Termo trabalhado por Rawls, em seu Liberalismo Político (2000).
17 TAVARES, André Ramos et al. Direitos Fundamentais e Democracia:
complementariedade/contrariedade. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin et al (coords). Direitos
Humanos e Democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 177. 
 
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graves e mais sérias dos direitos humanos que uma sociedade


moderna enfrenta. O pensamento parece ser que os tribunais,
com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em
couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, sejam um
local mais adequado para solucionar questões desse caráter.18

4. O caso da utilização das células-tronco embrionárias

Ao se falar em desacordo moral razoável, são facilmente enquadráveis


questões biojurídicas, envolvendo discussões tais como a do aborto, a eutanásia, a
clonagem e a utilização de células-tronco embrionárias, que será colocada em foco a
partir desse ponto. A questão pauta-se sob a ótica do papel do Poder Judiciário no
controle de constitucionalidade, especificamente e no caso concreto da
regulamentação da utilização das células-tronco embrionárias; tal controle já foi
exercido por meio da ADI 3510.
Antes de adentrar na análise do julgamento empreendido pelo Supremo
Tribunal Federal, cabe tecer, inicialmente e de forma sucinta, algumas considerações
sobre aspectos éticos e científicos que envolvem a discussão em torno da utilização
das células-tronco embrionárias.

4.1. Alguns aspectos éticos e científicos

As células-tronco constituem um fenômeno complexo, visto que


apresentam características específicas nos diversos estágios de desenvolvimento
humano. Com o passar do tempo e o desenvolver de um estudo mais aprofundado,

                                                            
18 WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 8. 
 
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foram descobertos diferentes tipos de células-tronco, que podem ser encontradas em


estágios embrionários, tecidos fetais e mesmo em órgãos adultos do corpo humano.
De uma maneira geral, as células-tronco podem ser conceituadas como
células que possuem “a dupla capacidade de dividir-se ilimitadamente e gerar
diferentes tipos de células especializadas”.19 Assim sendo, têm as células-tronco como
características essenciais a capacidade de autoperpetuação e, em determinados casos,
a propriedade de diferenciação, podendo converter-se em outros tipos celulares, o
que vem gerando expectativas quanto à sua utilidade para fins terapêuticos. Essa
última característica é variável, a depender do tipo de célula-tronco.
Nessa perspectiva, as células-tronco podem ser classificadas como adultas
ou embrionárias. De acordo com os resultados de pesquisas recentes, as células-
tronco embrionárias podem originar todos os tipos celulares de um organismo
adulto; em contrapartida, são poucos os tipos de células-tronco constantes de tecidos
adultos e, ao que mostram os atuais estudos, a capacidade de especialização dessas
células é muito restrita. As células-tronco, nesse sentido, podem ser totipotentes,
pluripotentes ou multipotentes.
A totipotência refere-se à capacidade de uma célula gerar um organismo
completo. As células-tronco totipotentes, portanto, têm a potencialidade de
diferenciação em um próprio embrião e em membranas extraembrionárias,
contribuindo para a formação de todos os tipos celulares existentes num indivíduo
adulto. Essas células são encontradas no embrião humano em estágio inicial – nos

                                                            
19 LACADENA, Juan Ramón. Experimentação com embriões: o dilema ético dos embriões
excedentes, os embriões somáticos e os embriões partenogenéticos. In: MARTÍNEZ, Julio Luis (org.).
Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Loyola, 2005, p. 66. 
 
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blastômeros até o estágio de mórula de 16 células –, e essa propriedade tem relação


com o processo que dá ensejo à formação de gêmeos.20
A pluripotência diz respeito à capacidade funcional de uma célula gerar
diferentes linhagens celulares e tecidos. As células-tronco pluripotentes não têm a
capacidade de, sozinhas, gerar um indivíduo completo, mas podem gerar todos os
tipos de células no feto e no adulto, sendo capazes de auto-renovação. Essas células
estão presentes nos estágios iniciais de desenvolvimento embrionário; as células-
tronco embrionárias derivadas do estágio de blastocisto humano são pluripotentes.
No que se refere à multipotência, é essa a capacidade funcional de uma
célula gerar certas linhagens celulares – todavia, não todas. As células-tronco
multipotentes têm, portanto, uma capacidade, em princípio, limitada para gerar
linhagens celulares diferenciadas. Podem ser encontradas algumas células-tronco
multipotentes em tecidos e órgãos adultos, e um exemplo claro são as células
hematopoiéticas presentes na medula óssea.21
Destarte, as células-tronco totipotentes e pluripotentes são encontradas em
embriões humanos, enquadrando-se, assim, na categoria – ou denominação – das
células-tronco embrionárias, podendo ser extraídas até aproximadamente 14 dias
após a fecundação. As células-tronco adultas, todavia, são multipotentes, e, por isso,
seu potencial para pesquisa é visto, de uma maneira geral, como significativamente
menor.22

                                                            
20 LACADENA, Juan Ramón. Experimentação com embriões: o dilema ético dos embriões

excedentes, os embriões somáticos e os embriões partenogenéticos. In: MARTÍNEZ, Julio Luis (org.).
Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Loyola, 2005, p. 66.
21 JOSÉ, Lluís Montoliu. Células-tronco humanas: aspectos científicos. In: MARTÍNEZ, Julio Luis

(org.). Células-tronco humanas: aspectos científicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Loyola, 2005, p.
29.
22 BARROSO, Luís Roberto. Em defesa da vida digna: constitucionalidade e legitimidade das

pesquisas com células-tronco embrionárias. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos
limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 245. 
 
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No estado atual das pesquisas, por possuírem as explicitadas características


específicas, as células-tronco embrionárias vêm sendo vistas como mais promissoras
para fins de terapia. A utilização dessas células-tronco embrionárias, todavia, desperta
implicações e questionamentos éticos, face à possibilidade de destruição de embriões
humanos para a sua obtenção.
A utilização de células-tronco embrionárias envolve ainda a problemática
das chamadas “sobras embrionárias”. A fertilização in vitro constitui uma das técnicas
de reprodução humana assistida – TRHA – através da qual se busca sobrepor o
problema da infertilidade conjugal, tornando possível a fecundação fora do corpo da
mulher, quando o processo não pode ser realizado, naturalmente, na tuba uterina. A
percentagem de êxito situa-se, normalmente, entre 10 e 30%, e essa percentualidade
cresce com o aumento do número de embriões transferidos.23 Todavia, pela
possibilidade de aumento dos riscos na gravidez, normalmente, há a recomendação
de transferência de, no máximo, três ou quatro embriões por ciclo. 24
É daí que surge a problemática dos embriões excedentários, que coloca a
própria técnica de reprodução humana assistida em debate: o que fazer com esses
embriões supranumerários, que não são implantados no útero? Em geral – é o que
ocorre no Brasil – esses embriões são congelados, ou criopreservados, sendo vedado
o seu descarte. Ocorre que, na maioria das vezes, os casais não mais desejam ter
filhos, de forma que esses embriões permanecem congelados por anos; estudos

                                                            
23 BARROSO, Luís Roberto. Em defesa da vida digna: constitucionalidade e legitimidade das

pesquisas com células-tronco embrionárias. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos
limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, p. 244, 2007.
24 Esse é o número previsto na Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina brasileiro, mas

ele é variável nos diferentes países. In PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul.
Problemas atuais de Bioética. São Paulo: Loyola, 1991, p. 222.
 
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apontam para o fato de que a técnica de congelamento degrada os embriões,


deixando, com o passar dos anos, sua viabilidade praticamente nula.25
Tendo em vista esse problema, muitos estudiosos são contrários a essa
produção supranumerária de embriões.26 Todavia, na maioria dos países – aqui
também incluído o Brasil – não existe uma proibição da obtenção desses embriões
excedentes, já existindo, na prática, um considerável número de embriões
congelados, de forma que essa é uma realidade que deve ser enfrentada.27
Levando em conta esses aspectos mencionados, a Lei 11.105/05 buscou
desenvolver uma regulamentação da matéria.

4.2. A ADI 3510


A Lei 11.105/2005 estabelece normas de segurança e mecanismos de
fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados e
seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança e reestrutura a Comissão
Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio. Ademais, dispõe a lei sobre a Política
Nacional de Biossegurança.28

                                                            
25 PRANKE, Patricia. A importância de discutir o uso de células-tronco embrionárias para fins

terapêuticos. Ciência e Cultura, São Paulo, vol. 56, n. 3, jul/Set. 2004, p. 35. 
26 Nesse sentido: LACADENA, Juan Ramón. Ob. cit., p. 68.
27 Não há, até o momento atual, uma estimativa precisa com relação ao número de embriões

criopreservados, todavia, de acordo com profissionais da área ouvidos pela Agência Brasil, durante o
período de tramitação da Ação direta de Inconstitucionalidade 3510, estimava-se estar esse número
em torno de dez mil embriões. Em: THIESEN, Adriane; SPAREMBERGER, Raquel Fabiana Lopes.
Bioconstituição e Identidade Genética na concepção dos direitos humanos. Revista Jurídica
Consulex, Brasília, n. 269, 31 mar. 2008, p. 31. 
28 BRASIL. Lei no. 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art.

225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de


atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o
Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no
8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts.
5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências.
 
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A legislação é resultante de Projeto de Lei de iniciativa do Presidente da


República, encaminhado à Câmara dos Deputados como Mensagem de nº 579, de
03.10.2003, constando em seu conteúdo a previsão de pesquisas com células-tronco
embrionárias. Muito embora tenha havido parecer favorável da Comissão Especial
com relação ao referido texto, tais pesquisas foram retiradas do complexo normativo
que foi remetido da Câmara para o Senado. No Senado Federal, o texto foi então
reconstruído; para tal, foi necessário um amplo debate e sua tramitação numa série de
comissões.29
É importante ressaltar que, nessa tramitação, foram realizadas várias
audiências públicas, com a oitiva de diferentes especialistas, visando maiores
esclarecimentos técnicos acerca da matéria. Essa oportunização de audiências
públicas teve importância fundamental para a abertura do debate nos diferentes
setores da sociedade.
Em 06.10.2004, a matéria foi discutida no Senado, obtendo-se a aprovação
do projeto – prevendo novamente a liberação das pesquisas com células-tronco –,
sob o quorum de 53 votos a 2. Na Câmara dos Deputados, submetido a uma nova

                                                                                                                                                                   
Diário Oficial da União, Brasília-DF, 28 mar. 2005. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm>. Acesso em: 15
ago. 2008. 
29 O texto foi encaminhado, em 09.06.2004, à Comissão de Educação do Senado, passando a tramitar

em conjunto com o PLS 188/99 e com o PLS 422/99. Nessa Comissão, foi anexado o ofício do
Ministro da Ciência e Tecnologia, encaminhando manifestação da Comissão Técnica Nacional de
Biossegurança – CTNBio – e as demais manifestações sobre o projeto. Em 10.08.2004, foi aprovado
parecer no mesmo sentido do substitutivo oferecido pelo relator, Senador Osmar Dias, incorporando
a emenda de autoria dos Senadores Tasso Jereissati e Lúcia Vânia, re-inserindo, no projeto, a
permissão para pesquisas com células-tronco. Depois de encaminhado à Comissão de Assuntos
Econômicos do Senado, o projeto foi aprovado em 14.09.2004. Foram então realizadas sessões
conjuntas da Comissão de Assuntos Econômicos, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, e
da Comissão de Assuntos Sociais, figurando o Senador Ney Suassuna como relator do projeto. In
BARROSO, Luís Roberto. Em defesa da vida digna: constitucionalidade e legitimidade das pesquisas
com células-tronco embrionárias. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos limites da
vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 256. 
 
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votação, o projeto de lei foi aprovado com 85% de votos favoráveis, em 04.03.2004.
Finalmente, em 14.10.2004, o projeto foi sancionado pelo Presidente, com a
conversão na Lei nº 11.105/2005.30
É importante mencionar que a revogada lei n.º 8.974/95 proibia
completamente a manipulação genética de células germinais humanas, restringindo
quaisquer pesquisas nesse âmbito. A Lei nº 11.105/05 inovou, ao tratar da questão da
seguinte forma, em seu artigo 5º:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de


células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos
produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo
procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data
da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da
publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos,
contados a partir da data de congelamento.
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos
genitores.
§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem
pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas
deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos
respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se
refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15
da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

O artigo 5º deu ensejo à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510,


proposta em 30 de maio de 2005 pelo então Procurador-geral da República, Cláudio

                                                            
30 BARROSO, Luís Roberto. Em defesa da vida digna: constitucionalidade e legitimidade das
pesquisas com células-tronco embrionárias. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos
limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 241-242.
 
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Lemos Fonteles. O argumento principal da ação era de que o dispositivo impugnado


se contrapunha à inviolabilidade do direito à vida, afrontando a dignidade da pessoa
humana. De outro lado, a ação questionava não somente a compatibilidade
constitucional da pesquisa com células-tronco embrionárias, mas sua própria
viabilidade, sob o argumento de que as pesquisas com células-tronco adultas seriam
objetivamente mais promissoras. Foram juntados com esse escopo diversos
pareceres científicos de professores de centros universitários.
Em posição contraposta, tendo ingressado na lide como amigus curiae, houve
a atuação do MOVITAE - Movimento em prol da vida, que juntou petição elaborada
por Luis Roberto Barroso, com consultoria técnica de Mariana Zatz, diretora do
Centro de Estudos do Genoma Humano. Argumentou-se, desse lado, a ausência de
consenso científico quanto ao início da vida, uma vez que variadas essas concepções,
envolvendo entendimentos – para mencionar alguns deles – segundo os quais a vida
humana inicia-se: “(i) com a fecundação; (ii) com a nidação; (iii) quando o feto passa
a ter capacidade de existir sem a mãe (entre a 24ª e a 26ª semanas da gestação); (iv)
quando da formação do sistema nervoso central (SNC)”. 30
Diante dessa situação de dissenso, utilizou-se justamente o argumento de
existência do já explicitado desacordo moral razoável:

A suprema corte atua como intérprete da razão pública, impondo o


respeito aos consensos mínimos consubstanciados na
Constituição, mas respeitando a deliberação política majoritária
legítima. Pois bem: no caso específico, a manifestação do
Congresso Nacional foi inequívoca, mediante votação expressiva
na Câmara dos Deputados (85% dos parlamentares presentes
votaram favoravelmente) e no Senado Federal (53 votos
favoráveis contra 2). O debate na sociedade e nos meios de
comunicação tem sido amplo e significativo.
A conclusão que se extrai de todos esses elementos afigura-se
simples. A questão em discussão, sobretudo se levada para o
plano do momento de início da vida, envolve um profundo

 
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desacordo moral na sociedade. Logo, não se está diante de matéria


que possa figurar na categoria dos consensos mínimos. Nesse
ambiente, o Congresso Nacional, expressando a vontade política
majoritária da sociedade, regulou o tema de uma maneira que
respeita o pluralismo político, isto é, a autonomia de cada um. De
fato, ao exigir o prévio consentimento dos genitores para a
realização de pesquisas com células-tronco, a lei assegurou o
direito de cada um agir de acordo com sua ética pessoal.31

Em resposta aos fundamentos lançados na ação, defendeu-se também o


maior potencial para a pesquisa das células-tronco embrionárias, por serem elas
totipotentes. Aqui também foram trazidos vários elementos de cientificidade para
fundamentar os argumentos defendidos.
É importante ressaltar, nesse ponto, que ambos os lados teriam razões para
justificar seus pontos de vista, tendo também ambos buscado trazer elementos de
cientificidade com esse intento. Ademais, não se pode afirmar a existência de um
consenso ético ou científico sobre o início da vida ou sobre a efetividade terapêutica
das células-tronco em suas diferentes formas de obtenção.
A ação de inconstitucionalidade foi distribuída ao Ministro Carlos Ayres
Britto, o qual, numa proposta até então inédita no Supremo Tribunal Federal,
determinou a realização de audiências públicas para a discussão da matéria e a
exposição de esclarecimentos científicos. Tais audiências intensificaram os debates
sobre a temática com a comunidade científica e a sociedade civil.
No voto proferido quando do julgamento da Ação de
Inconstitucionalidade, Carlos Britto definiu a configuração de duas correntes
distintas de opinião que se mostraram nas audiências públicas. De um lado, o
entendimento de que as células-tronco embrionárias não teriam qualquer

                                                            
31BRASIL, STF – ADI 3510. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso
em: 30.05.2008, p. 11. 
 
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superioridade, para fins terapêuticos, em relação às células-tronco adultas e de que a


pessoa humana já existe no próprio momento da fecundação, seja ela natural ou in
vitro. De outro, a corrente que sustenta, de forma entusiástica, os experimentos com
células-tronco embrionárias, e entende que há uma diferenciação entre o embrião in
vitro e o embrião que se desenvolve no corpo da mulher, o qual só vem a alcançar o
estado de feto com a colaboração do tempo e do útero.32
Inicialmente, numa análise do dispositivo questionado, entendeu o relator
não haver problemas com o regramento que, de forma ponderada, teria fixado
condições razoáveis na realização das pesquisas com células-tronco embrionárias:

Daqui se infere – é a minha leitura - cuidar-se de regração


legal a salvo da mácula do açodamento ou dos vícios da
esdruxularia e da arbitrariedade em matéria tão religiosa,
filosófica e eticamente sensível como a da biotecnologia na
área da medicina e da genética humana. Ao inverso, penso
tratar-se de um conjunto normativo que parte do pressuposto da
intrínseca dignidade de toda forma de vida humana, ou que tenha
potencialidade para tanto, ainda que assumida ou configurada do
lado de fora do corpo feminino (caso do embrião in vitro).
Noutro dizer, o que se tem no art. 5º da Lei de Biossegurança
é todo um bem concatenado bloco normativo que, debaixo
de explícitas, cumulativas e razoáveis condições de
incidência, favorece a propulsão de linhas de pesquisa
científica das supostas propriedades terapêuticas de células
extraídas dessa heterodoxa realidade que é o embrião
humano in vitro. 33

A partir daí, são analisados em seu voto os demais pontos que envolvem a
questão – os quais não constitui objetivo aprofundá-los aqui –, com destaque para o

                                                            
32 Idem, p. 5-9.
33 Idem, p. 19 (grifos da autora).
 
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enfrentamento da análise do alcance do direito à vida, buscando definir em que


medida a vida encontra-se validamente protegida pelo direito infraconstitucional.
Nos termos do voto do relator, em conformidade com o artigo 2ª do
Código Civil, a Constituição, ao falar em “dignidade da pessoa humana” e demais
direitos fundamentais, está se referindo ao indivíduo-pessoa, nascido com vida.
Todavia, o direito protege de modo variado cada etapa de desenvolvimento biológico
humano, garantindo-se uma dignidade para o embrião humano, mas sem que isso
implique seu reconhecimento como pessoa. O voto ressaltou ainda a situação
diferenciada do embrião produzido em laboratório, em que deixa de haver a
coincidência entre concepção e nascituro, enquanto não for ele implantado no útero
feminino, de forma que esse embrião não implantado acaba passando por um
processo “estacionário degenerativo”.
No correr do voto, ressaltando as características que acenam para uma
melhor aplicação das células-tronco embrionárias em terapias, o Ministro deixou
claro ainda que a permissão constante da lei não anula a importância das linhas de
pesquisa com células-tronco adultas.
Em 29 de maio de 2008, acompanhando os fundamentos do voto do
relator, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos34, que o artigo 5º
da Lei da Biossegurança não merece reparo, entendendo que as pesquisas com
células-tronco embrionárias, nos termos da referida lei, não violam o direito à vida ou
a dignidade da pessoa humana.

                                                            
34 Votaram acompanhando o relator da matéria, os ministros Ellen Gracie, Cármen Lúcia Antunes
Rocha, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello. Os ministros Cezar Peluso e Gilmar
Mendes também votaram pela constitucionalidade da lei, mas com a ressalva da necessidade de uma
rigorosa fiscalização das pesquisas por um órgão central – a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa
– ponto não foi acolhido pela Corte Constitucional. Os ministros Carlos Alberto Menezes Direito,
Ricardo Lewandowski e Eros Grau votaram pela procedência, em parte, da ADI 3510, sem retirar
parte do texto, mas firmando várias ressalvas para a liberação das pesquisas com células-tronco
embrionárias.  
 
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Em sede do mesmo julgamento, vale mencionar ainda o voto proferido


pelo Ministro Gilmar Mendes, o qual se insere na discussão de uma série de pontos
analisados nesse trabalho. O Ministro desenvolve sua linha de argumentação inicial
destacando a importância e a legitimidade democrática da atuação do Supremo
Tribunal Federal no referido caso, encampando as idéias de Robert Alexy, e
defendendo o descabimento de uma idéia de restrição da atuação do Poder
Judiciário. Nesse sentido, argumenta:

O julgamento desta ADI n° 3.510, dedicadamente conduzido pelo


Ministro Carlos Britto, constitui uma eloqüente demonstração de
que a Jurisdição Constitucional não pode tergiversar diante
de assuntos polêmicos envolvidos pelo debate entre religião
e ciência.
É em momentos como este que podemos perceber, despidos de
qualquer dúvida relevante, que a aparente onipotência ou o
caráter contra-majoritário do Tribunal Constitucional em
face do legislador democrático não pode configurar
subterfúgio para restringir as competências da Jurisdição na
resolução de questões socialmente relevantes e
axiologicamente carregadas de valores fundamentalmente
contrapostos.35

Reconhece o Ministro que a determinação do alcance de direitos


fundamentais – tais como o direito à vida e à dignidade humana – e a decisão acerca
de questões biojurídicas – tal como a utilização de embriões humanos para fins
terapêuticos e de pesquisa – envolvem questões morais, políticas e religiosas,
questões essas que não vêm alcançando um consenso mínimo sobre uma resposta

                                                            
35BRASIL, STF – ADI 3510. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso
em: 30.05.2008, p. 2 (grifos da autora).
 
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“supostamente correta para todos”, indo, de fato, bem além dos limites estritamente
jurídicos. 36
Mesmo nesse contexto, Gilmar Mendes destaca o importante papel que as
Cortes Constitucionais têm exercido – e mais especificamente o Supremo Tribunal
Federal – quando chamadas a decidir sobre os direitos protegidos pela Constituição
dentro dessas controvérsias, sem implicar, em sua ótica, abalos institucionais e
democráticos. E vai além, afirmando que “certamente, a alternativa da atitude passiva
de self restraint (...) teriam sido mais prejudiciais ou menos benéficas para a nossa
democracia. O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este julgamento, que
pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o parlamento”.37
Gilmar Mendes, ao fim de suas considerações, afirma ser inequívoca a
legitimidade democrática da decisão que se fazia tomar pelo Supremo Tribunal
Federal, em sede do julgamento da ADI 3510.

5. Uma defesa do controle constitucional: diálogo com a concepção de


Rodrigo Uprimny

Rodrigo Uprimny desenvolve uma interessante análise acerca da


legitimidade democrática do controle constitucional, adentrando no debate da
problemática relação entre direitos fundamentais e democracia. Inicialmente, o autor
explicita três justificações clássicas do controle constitucional, formuladas desde a

                                                            
36 BRASIL, STF – ADI 3510. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso
em: 30.05.2008, p. 2.
37 Idem, p. 3.

 
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origem do instituto e que se remetem à sentença da Corte Americana no caso


Marbury vs. Madison e a autores tais como Hans Kelsen38.
A primeira delas refere-se à idéia de que se a constituição figura como lei
fundamental, esta vincula o Legislador, sendo necessário que algum órgão garanta a
compatibilidade das leis inferiores a ela. Esse órgão, por sua vez, deve ser o
Judiciário, uma vez que a constituição tem por escopo justamente limitar o Executivo
e o Legislativo.
Em segundo lugar, essa supremacia constitucional é necessária, uma vez
que, limitando, impossibilita que o Legislativo proceda como bem entender, pondo
em risco direitos individuais. A terceira idéia diz respeito ao fato de que é na
constituição, na verdade, que estão contidos os preceitos do povo soberano, sendo
os legisladores apenas seus representantes. Assim, um tribunal ao negar a
constitucionalidade de uma lei, estaria tão-somente ratificando a vontade popular
materializada na constituição. Dessa forma, não implica essa atuação uma
superioridade do Judiciário sobre o Legislativo, mas a superioridade do poder do
povo em relação a ambos.39
Essas justificações clássicas, embora sejam dotadas de elementos válidos, na
ótica do autor, são insuficientes. Todavia, isso não implica uma impossibilidade de
fundamentação democrática do controle constitucional. Seguindo em sua análise, o
autor destaca as justificações contemporâneas, as quais, em síntese, repousam em
duas idéias principais: os defeitos e paradoxos do princípio da maioria e a
importância dos direitos fundamentais em uma sociedade democrática.40

                                                            
38 UPRIMNY, Rodrigo. Legitimidad y Conveniencia Del Control Constitucional a la Economia. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 325. 
39 UPRIMNY, Rodrigo. Legitimidad y Conveniencia Del Control Constitucional a la Economia. In:

SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 326. 
40 Idem, p. 327.

 
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Assim, a democracia não pode ser concebida simplesmente como o


governo das maiorias, uma vez que essa concepção pode conduzir a uma anulação da
própria democracia. Mesmo no procedimento democrático, certos aspectos não
podem ser debatidos, uma vez que constituem eles mesmos as regras do jogo
democrático. São assim retiradas do debate democrático e da agenda legislativa. É a
idéia de que para preservar as mãos, deve-se também amarrar um pouco as mãos.41
Isso explica, por sua vez, a supremacia da constituição em face das leis
ordinárias, visto que as normas constitucionais não podem ser afetadas pelo debate
democrático ordinário. Finalmente, para que essas regras sejam respeitadas,
necessário um guardião, que assim não pode pertencer às maiorias, justamente
porque precisa controlá-las. Deve ser um órgão independente que, por sua vez, se
não tem uma origem democrática formal, não tendo sido eleito, cumpre um papel
democrático essencial: é o guardião da continuidade do processo democrático.
A segunda idéia, a qual repousa na importância dos direitos fundamentais,
contempla que muitos desses direitos são pressupostos de funcionamento da
democracia, dada a impossibilidade de se conceber um debate democrático, sem que
se garanta liberdade de expressão e direitos políticos, por exemplo. Assim, para a
manutenção da democracia, também é necessário garantir condições mínimas de
dignidade, sendo preciso que tenhamos cidadãos livres, iguais e autônomos. Esses
direitos figuram como elementos essenciais à existência da democracia como regime,
caracterizando-se como pressupostos materiais do regime democrático.42
Assim, os direitos fundamentais atuam tanto como pressupostos
processuais, como materiais da democracia, e assim devem ser garantidos,
independente da vontade das maiorias. Isso entra em consonância com a idéia de
                                                            
41Idem, p. 328.
42UPRIMNY, Rodrigo. Legitimidad y Conveniencia Del Control Constitucional a la Economia. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 329. 
 
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Dworkin43, para o qual os direitos fundamentais constituem “cartas de trunfo contra


a maioria”, mesmo quando essa decide em conformidade com os procedimentos
democráticos, e assim, logicamente, esses direitos devem ser assegurados por
instituição que não pertença a essas maiorias, como o é um tribunal constitucional.
Essas ilações levam ainda a uma terceira justificação do controle
constitucional, que consiste na perspectiva de que a democracia não pode ser
pensada como um governo da maioria, para essa maioria. A democracia, portanto,
embora seja um regime baseado no princípio da maioria, não implica uma tirania da
maioria. E, nessa perspectiva, pode existir um órgão que assegure a imparcialidade
das decisões tomadas no processo democrático, o qual deve ser também
independente das maiorias e, na opinião do autor, algo que se aproxime aos tribunais
constitucionais:

(...) aunque los tribunales constitucionales carecen de


legitimidad democrática formal, pues no tienen origen en la
voluntad popular, lo cierto es que gozan de uma legitimidad
democrática substancial, en la medida en que aseguran los
derechos fundamentales y protegen la continuidad e
imparcialidade del processo democrático. El control judicial de
constitucionalidad tiene entonces uma amplia justificación
democrática. 44

Uprimny conclui, portanto, pontuando no asseguramento dos direitos


fundamentais e na proteção da continuidade do próprio processo democrático a
fundamentação democrática do controle constitucional.

                                                            
43 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 18 ed. Cambridge: Harvard University, 2001. 
44 UPRIMNY, Rodrigo. Op. cit., p. 330.
 
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6. Considerações Finais

No presente momento, é possível verificar, no Brasil, um progressivo


crescimento da atuação do Poder Judiciário, que vem sendo cada vez mais chamado
a decidir as diversas causas relativas ao Estado, especialmente no âmbito de atuação
do Supremo Tribunal Federal. Pode-se ver também que essa maior crença no papel
ativo do Poder Judiciário vem atrelada, por uma série de fatores, a um forte
descrédito nos demais poderes eleitos, findando o Judiciário por ocupar,
inevitavelmente, os demais espaços de poder.
Muito se tem questionado acerca dessa atuação da jurisdição constitucional,
propiciando-se também a discussão acerca do papel dos direitos fundamentais como
legitimadores desse exercício, numa alegada contraposição ao princípio democrático.
Partindo-se de uma idéia de tensão entre direitos fundamentais e democracia, surgem
propostas de uma autocontenção judicial, dentre as quais se enquadram a explicitada
perspectiva de tratamento das situações de desacordo moral razoável.
A proposta de restrição da atuação do Judiciário diante uma ausência de
consenso entre posições racionalmente defensáveis figura, à primeira vista, como
uma proposta interessante, todavia traz implicações complicadas numa perspectiva
de aplicação prática. A complexidade da sociedade pluralista moderna e, em
conseqüência, dos casos que são levados à decisão, principalmente diante do
envolvimento de princípios com uma carga axiológica aberta, tornam difícil
considerar a possibilidade de alcance de um consenso em torno das questões que são
levadas à discussão, especialmente no que diz respeito a problemas biojurídicos,
como o caso estudado das células-tronco embrionárias. A proposta então poderia
resultar numa privação total da atuação do Poder Judiciário no âmbito dessas
matérias.

 
461 
 
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Ainda nessa linha da existência de uma incompatibilidade entre direitos


fundamentais e democracia, seguindo a linha de pensamento de Uprimny, destaque-
se que não se pode pensar em democracia unicamente como governo da maioria,
uma vez que se pode findar por atingir verdadeira “tirania da maioria”, totalmente
incompatível com o ideal democrático. 45
Assim, vislumbrando-se os direitos fundamentais como substância e a
democracia como procedimento, torna-se difícil optar pela idéia de tensão entre os
conceitos, uma vez que seria necessário lidar com o problema da democracia sem o
conteúdo dos direitos fundamentais.
Demais disso, não é propriamente o discurso dos direitos fundamentais,
mas a própria Constituição Federal que prevê o instituto do controle de
constitucionalidade. É o próprio poder constituinte que determina a função da
jurisdição constitucional em controlar a compatibilidade das leis com a Constituição
Federal, assim como a limitação dos poderes constituídos, os quais não podem ser
tidos ou tratados como absolutos.
Nessa perspectiva, não se pode também perder de vista que o papel da
necessária interpretação dos direitos fundamentais – dado o seu caráter conteudístico
aberto – deve ser atribuído a algum órgão, seja o Poder Legislativo, seja o Poder
Judiciário, para que seja possível a concretização desses direitos. Conforme
demonstrado, vários autores buscaram atribuir a um desses órgãos uma legitimidade
democrática ideal para essa atuação. Todavia, é complicado afirmar, mediante uma
certeza, qual das duas instituições teria uma maior legitimidade democrática para essa
atuação, ou qual delas seria mais dificilmente coagida, mais imparcial no exercício das
deliberações, ou que implicaria mais participação popular nos procedimentos etc.

                                                            
45UPRIMNY, Rodrigo. Legitimidad y Conveniencia Del Control Constitucional a la Economia. In:
SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Jurisdição e Direitos Fundamentais, vol. I, tomo II. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006, p. 330.
 
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No Brasil, a Constituição Federal de 1988 confere legitimidade à jurisdição


constitucional, viabilizando o controle de constitucionalidade dos atos legislativos e
encarregando o Poder Judiciário para tal função. Diante dessa realidade, um
problema que tem que ser enfrentado diz respeito a buscar quais limites e liames para
uma atuação da jurisdição constitucional garantidoras do processo democrático e dos
direitos fundamentais, simultaneamente.
Muito se tem alertado acerca do aumento de poder que vem se atribuindo
ao Poder Judiciário – especialmente ao Supremo Tribunal Federal – e dos perigos em
torno da indefinição acerca do que resultará da interpretação dos tribunais quanto às
causas que estão sendo submetidas a sua apreciação. É certo que, mesmo dentro de
uma mesma corte, os entendimentos e as posturas podem variar, como foi
verificado, a título ilustrativo, na análise de caso empreendida, diante das diferentes
linhas de entendimento empreendidas pelos Ministros Carlos Ayres Brito e Gilmar
Mendes na tomada de decisão acerca da utilização das células-tronco embrionárias,
em sede da ADI 3510.
É partindo desse receio, que Álvaro Cruz questiona:

Foi dito que o poder corrompe e que o poder absoluto corrompe


absolutamente. A doutrina constitucional vem, desde os
primórdios com os trabalhos de Locke e Montesquieu,
esforçando-se para colocar peias/limites ao Poder Executivo e,
mais tarde, ao Poder Legislativo. Não seria agora a vez de haver
preocupação com o Judiciário e, mais especificamente, com o
Supremo Tribunal?46

Um sinal positivo diz respeito ao fato de que o Supremo Tribunal tem


fomentado as deliberações realizadas, buscando trazer a população para dentro do
processo judicial, por meio de mecanismos diversos, tais como as audiências públicas

                                                            
46CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004, p. 20. 
 
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e a figura do amigus curiae. Esses procedimentos têm buscado aproximar os cidadãos


da esfera deliberativa, dando mais abertura para o envolvimento nas decisões, e
trazendo mais visibilidade à atuação do Poder Judiciário, de forma que as medidas
empreendidas podem ser acompanhadas pela sociedade.
Por serem mudanças ainda recentes, ainda não se pode afirmar os efeitos
dessas medidas na prática, todavia, certamente sinalizam um maior cuidado e
preocupação com o incremento da legitimidade democrática da atuação do Poder
Judiciário.
7. Referências Bibliográficas

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modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança –
CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio,
 
464 
 
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dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de


5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os
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PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E A LEI DE


BIOSSEGURANÇA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ADI 3510-0 DF

Aline Rose Barbosa Pereira1


Mariana Alves Lara2

RESUMO

O uso de células-tronco embrionárias nas pesquisas científicas e no desenvolvimento


de técnicas curativas é bastante promissor. Todavia, existem controvérsias acerca da
legalidade e eticidade da manipulação de embriões humanos. Os debates sobre o
assunto foram bastante intensos durante o julgamento da ADI 3510-0 DF, que
declarou a constitucionalidade do Art. 5º da Lei 11.105/05, conhecida como Lei de
Biossegurança, o qual permite, com alguns limites, a pesquisa e terapia com células-
tronco embrionárias. Após o referido julgamento os debates arrefeceram, como se a
questão estivesse resolvida. No entanto, ainda há muito o que discutir: a Lei de
Biossegurança é bastante restritiva, colocando diversos limites para a utilização das
células-tronco embrionárias, e nossa legislação ainda é muito conservadora se
comparada à de outros países. Destaca-se também que, não obstante a visibilidade e
o alcance sem precedentes das discussões no Supremo Tribunal Federal, a
fundamentação apresentada nos votos do julgamento da ADI 3510-0 DF careceu de
cientificidade, sendo permeada em diversos momentos por influências de cunho
religioso. Em um Estado Democrático de Direito Plural e Secular, a fundamentação
ética e jurídica do uso de células-tronco embrionárias deve passar necessariamente
por um conceito pós-metafísico de pessoa humana, o que sequer foi abordado no
julgamento.

Palavras-chave: Células-Tronco Embrionárias, ADI 3510-0 DF, Pessoa; Stem Cells,


ADI 3510-0 DF, Person.

                                                            
1 Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do grupo Persona,
coordenado pelo Professor Doutor Brunello Stancioli.
2 Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do grupo Persona,

coordenado pelo Professor Doutor Brunello Stancioli.


 
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I) Introdução

As células-tronco são caracterizadas por seu elevado potencial de


transformação celular: podem se autorreplicar e dar origem a diferentes tecidos do
organismo. Distinguem-se entre células-tronco embrionárias e células-tronco
adultas. Estas são encontradas em alguns tecidos (como o tecido adiposo, a medula,
o cordão umbilical) e, mais recentemente, também vêm sendo obtidas a partir da
reprogramação de células adultas diferenciadas, formando as células-tronco de
pluripotência induzida3. As células-tronco adultas são multipotentes, têm a
capacidade de se transformar em um número restrito de células diplóides
diferenciadas.4
Seu uso em pesquisas não enseja grandes questionamentos éticos, posto que
não ocorre a destruição de um ser vivo em potencial. Os opositores da manipulação
de embriões humanos incentivam o uso das células-tronco adultas, que, entre outras
vantagens, apresentariam um risco menor de rejeição5. Não se pode ignorar, porém,
que um tipo de pesquisa não exclui o outro: o pouco conhecimento que ainda se tem
a respeito do desenvolvimento e controle das células-tronco ante às inúmeras
possibilidades de pesquisa e tratamento vislumbradas reforça a necessidade de se
investir em estudos com todos os tipos de células.

                                                            
3 O objetivo das pesquisas nesse campo é conseguir, através da reprogramação de uma célula adulta,

que esta se comporte como uma célula-tronco embrionária, da maneira mais eficiente possível.
Entretanto, ainda não há resultados concretos nesse sentido, a ponto de se afirmar que substituirão as
células-tronco embrionárias. 
4 KUNISATO, Atsushi; WAKATSUKI, Mariko; KODAMA, Yuuki; SHINBA, Haruna; ISHIDA,

Isao; NAGAO, Kenji. Generation of Induced Pluripotent Stem Cells by Efficient Reprogramming of Adult Bone
Marrow Cells. In: STEM CELLS AND DEVELOPMENT. Vol. 19, no. 2, 2010. p. 229-237. p. 229.
Disponível em: http://www.liebertonline.com/doi/pdf/10.1089/scd.2009.0149 acesso em 03 de
maio de 2010. 
5 KUNISATO, Atsushi; WAKATSUKI, Mariko; KODAMA, Yuuki; SHINBA, Haruna; ISHIDA,

Isao; NAGAO, Kenji. Generation... cit.


 
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As células-tronco embrionárias, por sua vez, são células pluripotentes,


obtidas a partir de um embrião no estágio de blastocisto ou em estágios anteriores,
(até o 5º dia após a fertilização, portanto), que se caracterizam pela habilidade de
proliferar em culturas, permanecendo indiferenciadas e com cariótipo estável, mas
mantendo a capacidade de se diferenciar nos três folhetos germinativos6. Estes dão
origem a todos os tecidos e órgãos do corpo humano, o que trouxe esperanças, tanto
a cientistas quanto a leigos, de que se desenvolvam pesquisas que possibilitem novos
tratamentos, notadamente para doenças degenerativas e lesões tidas até o momento
por incuráveis.
Acredita-se que uma série de disfunções relacionadas ao fígado, diabetes,
distrofias musculares, mal de Alzheimer, mal de Parkinson, artrite, degeneração da
retina, lesões na coluna vertebral, esclerose múltipla e hemofilia – entre outras –
poderiam ser curadas por meio dessas terapias. Estudos já indicam ser possível
orientar a diferenciação de células-tronco embrionárias para a formação de células
que produzam insulina, as quais poderiam ser usadas em transplantes para tratar
diabetes7.
Ademais, as células-tronco embrionárias podem ser uma ferramenta
importante no desenvolvimento de modelos de cultura in vitro para o estudo de
doenças genéticas humanas8, o que permitiria não só uma melhor compreensão do
funcionamento desses distúrbios, sobre os quais o conhecimento que se tem ainda é
                                                            
6STRULOVICI, Yael; LEOPOL, Philip L.; O’CONNOR, Timothy P.; PERGOLIZZI, Robert G.;

CRYSTAL, Ronald G. Human Embryonic Stem Cells and Gene Therapy. In: THE AMERICAN SOCIETY
OF GENE THERAPY REVIEW. Vol. 15, no. 5, mai 2007. p. 850-866. p. 850. 
7EHNERT, Sabrina; GLANEMANN, Matthias; SCHMITT, Andreas; VOGT, Stephan; SHANNY,

Naama; NUSSLER, Natascha C.; STÖCKLE, Ulrich; NUSSLER, Andreas. The possible use of stem cells
in regenerative medicine: dream or reality? In: LANGENBECK'S ARCHIVES OF SURGERY. Vol. 394,
no. 6 / Nov. 2009. p. p. 985-997. p. 988. Disponível em:
http://www.springerlink.com/content/w6q0h1vt205741u3/fulltext.html acesso em 17 abr 2010.
8STRULOVICI, Yael; LEOPOL, Philip L.; O’CONNOR, Timothy P.; PERGOLIZZI, Robert G.;

CRYSTAL, Ronald G. Human Embryonic Stem Cells and Gene Therapy. In: THE AMERICAN SOCIETY
OF GENE THERAPY REVIEW. Vol. 15, no. 5, mai 2007. p. p. 850-866. p. 850
 
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muito limitado, mas também a busca de terapias e o teste de novos medicamentos


nos diferentes tipos de células humanas.
Não obstante promissor, este é um campo de pesquisa bastante
controverso, vez que a obtenção de linhagens de células-tronco embrionárias
pressupõe a interrupção do desenvolvimento do embrião em suas primeiras fases,
que, destarte, é “consumido” no processo de pesquisa. As questões suscitadas em
torno da pretensa dignidade do embrião, do direito à vida, entre outras, levaram a
grandes limitações dos estudos nessa área, proibidos em muitos países e
extremamente restritos em outros.
Recentemente, o uso de células-tronco embrionárias foi debatido no Brasil
em razão da ADI 3.510-0 DF, em que se questionou a constitucionalidade do art. 5º
da Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança). Com algumas restrições, o dispositivo
permite o uso de embriões excedentes dos procedimentos de reprodução assistida
para obtenção de linhagens de células-tronco para a pesquisa, o que implica a
destruição desses embriões, considerados vida humana pelos propositores da ADI.

II) Lei de Biossegurança e ADI 3510-0 DF

Em 24 de março de 2005, foi aprovada a Lei 11.105, conhecida como Lei de


Biossegurança, que estatui, em seu artigo 5º, que:

Art. 5o É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de


células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos
produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo
procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na
data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da

 
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publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos,


contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos
genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem
pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas
deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos
respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que
se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art.
15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

Tão logo aprovada a lei, foi proposta pelo Procurador-Geral da República,


Cláudio Fonteles, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 3510-0 DF, em 10
de maio de 2005, objetivando a declaração de inconstitucionalidade do Art. 5º e de
seus parágrafos, com o argumento de que as pesquisas com células-tronco
embrionárias violariam o direito à vida.
O julgamento foi polêmico, tendo suscitado intensos debates e angariado
ampla cobertura da mídia. Foram admitidos cinco órgãos da sociedade civil como
amici curiae9 e realizou-se, pela primeira vez na história do Supremo Tribunal Federal,
uma audiência pública, na qual vinte e duas autoridades científicas brasileiras se
manifestaram sobre o tema.
Ao final, a ação foi julgada improcedente, permanecendo em vigor os
referidos dispositivos. Não obstante a amplitude da discussão, observa-se que os
votos e os argumentos apresentados para fundamentá-los foram, em alguns aspectos,
inconsistentes ou, pelo menos, insuficientes. No presente trabalho, serão feitas
algumas considerações acerca dos argumentos levantados ao longo do processo10.

                                                            
9 Conectas Direitos Humanos; Centro de Direitos Humanos – CDH; Movimento Em Prol da Vida –
MOVITAE; Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS, e Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil – CNBB. 
10 Não se teve acesso aos votos dos ministros Menezes Direito, Joaquim Barbosa e Celso de Mello.

 
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III) Argumentos favoráveis à ADI 3510-0 DF

Sustentou-se na petição inicial que a vida humana acontece na, e a partir da,
fecundação. Desde esse momento, portanto, ter-se-ia a tutela constitucional da vida e
o embrião, ser humano na fase inicial, mereceria proteção do Estado, no sentido de
proibir sua manipulação.11 Em outras palavras, a partir da fecundação existiria um ser
humano completo e, portanto, já se teria uma pessoa titular de direitos na ordem
jurídica (vez que seria inconcebível, para essa doutrina, a existência de um ser
humano que não fosse pessoa).
A idéia tem por base a teoria concepcionista, de matriz ideológica
fortemente cristã, em que se acredita que a concepção seria o momento em que alma
e corpo se unem. A tese, "admitid[a] por São Jerônimo, segundo o qual cada alma é
criada por Deus no momento da concepção da criança e imediatamente infundida no
embrião”, se firmou ao longo do período medieval.12
Destaca-se que essa nem sempre foi a teoria adotada pela Igreja Católica
sobre o início da vida. Tomás de Aquino, seguindo as idéias de Aristóteles, defendia a
animação sucessiva e gradual do embrião.13 Primeiramente, ele obteria uma alma
vegetativa, no momento da fecundação, depois uma alma sensitiva, e apenas após o
40º dia da concepção, para o embrião masculino, e o 90º dia, para o feminino, ele
obteria uma alma racional, tornando-se, a partir daí, pessoa. De acordo com esse
raciocínio, no Corpus Iuris Canonici já constava, desde o séc. XII, que o aborto antes da
infusão do espírito não era homicídio.14

                                                            
11 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI 3510-0 DF. Petição Inicial. Procurador-Geral da
República Cláudio Fonteles. 
12 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do Ano 1000 à Colonização da América. Trad. Marcelo Rede.

São Paulo: Globo, 2006, p. 412. 


13 TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica. I parte, questão CXVIII.
14 KRESS, Hartmut. Ética Médica. Trad. Hedda Malina. São Paulo: Loyola, 2008. P. 196-197 

 
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Apenas recentemente a Igreja convencionou que a fecundação é o


momento em que é constituído um ser pleno, substituindo a teoria da animação
sucessiva pela animação simultânea.15 O Vaticano lançou um manual de instruções de
bioética, em 2008, aprovado pelo Papa Bento XVI e intitulado Dignitas Personae
(Dignidade da Pessoa), no qual reforça suas posições frente aos recentes avanços
biomédicos. Opõe-se à fertilização in vitro, à clonagem humana, aos testes genéticos
pré-implantatórios e às pesquisas com células-tronco embrionárias,16 argumentando
que tais práticas violariam o princípio de que toda vida é sagrada e o princípio de que
as crianças só podem ser concebidas por meio de relações entre os casais.17
A insustentabilidade desse argumento se evidencia em algumas críticas. Em
primeiro lugar, é preciso destacar que não existe consenso científico acerca do início
da vida. Várias teorias visam a precisar esse momento, mas nenhuma conseguiu
comprovar suas hipóteses. Nem mesmo há como se falar em instante da fecundação,
já que esta não ocorre de maneira pontual no tempo, sendo, na verdade, um
processo, que dura cerca de uma dia, o que traz insegurança para essa teoria.18
Ademais, buscar saber início da vida levaria a uma regressão ao infinito, pois
os gametas também são células vivas, ainda que com a metade dos cromossomos, e já
trazem informações genéticas que estarão posteriormente no zigoto. Ou seja, estar
vivo não é o único requisito para se ter um ser humano pleno ou uma pessoa. Da
mesma forma que o espermatozóide, o óvulo e o embrião, nosso sangue é material
biológico vivo, e o direito permite que possamos colher essas células humanas vivas,
estudá-las, e usá-las para tratamentos. "Destruir uma célula não equivale a destruir

                                                            
15 KRESS, Hartmut. Ética... cit.
16 As outras grandes religiões não corroboram a concepção católica. O Islamismo, o Judaísmo e
algumas religiões do extremo Oriente, permitem as pesquisas com células-tronco embrionárias, por
não considerarem que ai já exista uma pessoa. KRESS, Hartmut. Ética... cit.
17 POVOLEDO, Elisabetta e GOODSTEIN, Laurie. Vaticano Estabelece diretrizes bioéticas em novo

documento. MIGLIACCI, Paulo (Trad.) Folha de São Paulo, 13 de dezembro de 2008.  


18 GUENIN, Louis M. Morality of Embryo Use. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 p. 5

 
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um ser humano. (...) Células-tronco embrionárias produzidas em laboratório


merecem cuidados. Mas são células. Não são pessoas dotadas de direitos.” 19
Evidencia-se – assim como nas pesquisas que envolvem a manipulação de
animais – que a vida não é um valor em si, mas um valor com vistas à pessoa, razão
de ser do ordenamento jurídico. A tutela constitucional é garantida à personalidade,
que tem na vida apenas um de seus requisitos.
Assim, a discussão "só pode ser equacionada no campo do direito, pois a
ciência é incapaz de apontar um instante mágico a partir do qual um emaranhado de
células se converte num ser humano titular de direitos.” 20
Destarte, deve-se ter em mente que concepções teológicas fundadas em
dogmas não podem embasar as ações de um Estado Democrático de Direito que se
pretenda plural e secular. Deve haver liberdade para que as pessoas escolham suas
crenças e ajam segundo seus valores no caso concreto, ou seja, optem por realizar ou
não pesquisas com células-tronco embrionárias, ou por se submeterem ou não a
terapias desenvolvidas a partir desses estudos. Mas a posição estatal deve ser
fundamentada sobretudo em princípios racionais, abrindo amplas possibilidades para
as decisões individuais, sem, contudo, fechar as portas a um determinado
conhecimento científico, com grandes perspectivas de melhoria da qualidade de vida
das pessoas, em virtude, unicamente, de uma moral religiosa.
Tentar revestir o argumento da inicial – religioso, como demonstrado – de
cientificidade, através da afirmação de que o embrião já é pessoa porque possui um
código genético que o acompanhará por toda a vida, sendo um ser único e
irrepetível, tampouco soluciona a questão. A individualidade é, ao lado da vida,

                                                            
19 MELLO, Luiz Eugênio. O STF deve proibir as pesquisas com células-tronco embrionárias? NÃO. Entre
células e pessoas: a vida humana. Folha de São Paulo, 01 de março de 2008.
20 A favor da Pesquisa. Ao reconhecer a validade da Lei de Biossegurança, STF impediu que uma ética privada, a

religiosa, fosse imposta a todos. Editorial da Folha de São Paulo, 30 de maio de 2008.
 
 
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apenas mais uma condição da pessoalidade, não garantindo, por si só, a existência
desta. E não se restringe à individualidade genética – ao contrário, abrange a
construção do ser em interação com o meio que o circunda.
No embrião, ou pré-embrião, como vem sendo chamado em suas primeiras
fases, não é possível vislumbrar essa característica, pensada, até o momento, como
inerente à pessoa: a individualidade determinada. Por certo não há ainda nenhuma
forma de interação inteligente. E não se pode falar sequer em individualidade
genética, uma vez que cada célula, se retirada, poderá dar origem a outro embrião,
com o mesmo genótipo. É o que acontece com os gêmeos univitelinos, caso que
evidencia que o pré-embrião não é ainda um indivíduo pleno nem mesmo do ponto
de vista genético, mas um conjunto indefinido de células. Com base nesse fenômeno
(da formação de dois embriões a partir de um único zigoto), alguns teólogos católicos
chegaram a afirmar que a infusão da alma deveria ocorrer apenas depois do fim da
divisibilidade, portanto após o 14º dia21.
Nesse sentido, manifesta-se Norman Ford, que concluiu em seu livro When
Did I Begin? que:

A falta essencial de unidade entre as células do pré-embrião e o


fato de elas não se terem diferenciado no estágio do blastocisto
tornam impossível rastrear a continuidade de uma pessoa
individual para além de, quando é o caso, oito dias a partir da
concepção, e que, portanto, o pré-embrião, que existe antes de se
poder atribuir uma real individualidade ao conjunto de células em
desenvolvimento, merece um status moral diferente do que é dado
ao embrião propriamente dito. Essa é, na lei inglesa, a justificativa
para permitir pesquisas que usem embriões, ou pré-embriões,
humanos até que comece o desenvolvimento da mórula.22

                                                            
21KRESS, Hartmut. Ética... cit. P. 207. 
22FORD, Normam. apud WARNOCK, Baronesa. A Ética Reprodutiva e o Conceito Filosófico do Pré-
Embrião. In Bioética: Poder e Injustiça. GARRAFA, Volnei e PESSINI, Leo. (Orgs.) São Paulo: Loyola,
2004. P. 160.  
 
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A partir do que foi dito até agora, propõe-se que o ponto central da questão
não deva ser o início da vida, mas o início da personalidade. Em primeiro lugar,
porque com o conhecimento científico existente é impossível delimitar o momento
exato em que a vida teria início. Em segundo lugar, porque mesmo que o embrião
seja vivo isso não é suficiente para justificar sua proteção, pois a vida só é um valor
com vistas à pessoa, centro e fim de todo o ordenamento jurídico. Viver é apenas um
entre os requisitos da pessoalidade. Deve-se destacar, ademais, que a vida no pré-
embrião é tão precária que ele pode ser congelado por anos – estado em que não
possui vida, entendida esta como um processo – e depois descongelado, o que jamais
poderia ser feito com uma pessoa. Destarte, o foco deve estar no conceito de pessoa,
que é convencional e pode ser construído por meio de argumentos racionais.
Alguns afirmam, ainda, que os embriões devem ser protegidos por serem
pessoas em potencial. Todavia, aqueles utilizados para a retirada de células-tronco
não seriam usados para a reprodução, ou seja, essa não era uma alternativa válida
para eles, já que os doadores dos gametas vedaram o seu uso para fins reprodutivos
e, apenas a eles (aos progenitores), cabe decidir se um embrião poderá ou não ser
transferido para o útero da mãe ou de terceiros (ou para um “útero artificial”).
Nesse ponto, convém ressaltar que há autores contrários à fertilização in
vitro e outros contrários à criação de embriões excedentes nesses procedimentos.
Todavia, neste trabalho, parte-se do pressuposto de que ambas as práticas são lícitas
e éticas, tendo em vista o direito constitucional ao planejamento familiar (Art.226,
§7º), e o fato de que produzir apenas embriões que serão implantados e, se falharem,
repetir o procedimento, geraria enormes sacrifícios para a mãe (como novos exames,
injeção de hormônios, cirurgia para extração dos óvulos, o que pode gerar

 
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hemorragias, traumas nos ovários, câncer...), e ela pode não estar disposta a enfrentá-
los.23
Assim, uma vez produzidos embriões excedente, não é razoável que se
imponha aos progenitores o dever de iniciar uma gravidez ou de suportar uma
paternidade biológica remota compulsória,24 o que se verificaria caso eles não
pudessem decidir acerca da destinação dos embriões excedentes, sendo obrigados a
doá-los para fins reprodutivos.25
O dever de transferência intrauterina – que acarretaria aos genitores de um
embrião extracorpóreo o dever de transferi-lo para a mãe biológica ou permitir sua
implantação em qualquer outra mulher – não se sustenta, do ponto de vista moral,
quer com base no dever de resgate, quer com base no dever de não interferência.
Conforme o primeiro, se um agente encontra uma pessoa em perigo de dano
considerável, tem o dever de tentar salvá-la se e na medida em que possa fazê-lo sem
que isso lhe imponha riscos ou ônus desarrazoados.26.
Em outras palavras, o dever de resgate comanda que se tome uma atitude
ante a um perigo de dano grave. Tendo em vista que o dano consiste na lesão de
interesses, os quais se originam de vontades e desejos, um embrião não pode sofrer
dano ao lhe ser negado o uso para reprodução, uma vez que, não tendo a capacidade
de querer ou desejar, não tem interesses.27 Mas ainda que se suponha que um pré-

                                                            
23 MELO-MARTÌN, Inmaculada de. On our obligation to select the best children. A reply to Savulescu.

Bioethics, v. 18, n. 1, 2004, p. 364-369


24 Por paternidade biológica remota entende-se a situação em que os genitores produziram um

embrião que será implantado em outra pessoa, caso em que serão pais biológicos, mas não conviverão
com seu filho.
25 O raciocínio completo que será, em linhas gerais, descrito nos parágrafos seguintes é

detalhadamente desenvolvido em GUENIN, Louis M. The Morality of Embryo Use. New York:
Cambridge University Press, 2008, cap. 2, onde se encontram muitos outros argumentos para
sustentar o direito dos progenitores de decidirem acerca do destino a ser dado a um embrião
produzido fora do corpo.
26 GUENIN, Louis M. The Morality… cit. p. 33
27 GUENIN, Louis M. The Morality… cit. p. 34

 
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embrião possa sofrer dano (tenha interesses), não se pode perder de vista que se
soma ao dever moral ora discutido a condição de que o resgate não imponha ao
agente ônus desarrazoados.
A paternidade é um compromisso que se estende por décadas, uma
incumbência que extrapola consideravelmente “uma reação célere a um perigo
evitável rapidamente”28 – o resgate. “O que é razoável esperar que as pessoas façam –
este é o padrão estabelecido no que tange ao ônus como condição do dever de
resgate.” 29 O ônus de criar uma criança é evidente, e a paternidade remota
compulsória impõe aos pais biológicos “ansiedade e remorso por não saber como a
criança está sendo criada, não ter notícias do bem estar da criança ao longo do
tempo, não querer confundi-la inserindo-se em sua vida, e talvez não querer que a
criança os reconheça como pais.”30 Portanto, colocar um embrião extracorpóreo
dentro do corpo de uma mulher vai além do auxílio imposto pelo dever de resgate.
Tampouco se sustenta a transferência intrauterina compulsória no dever de
não-interferência, já que, no caso do embrião resultante de fertilização in vitro, não
interferir é justamente deixar que ele pereça.
Em suma, a potencialidade de se tornar pessoa não é uma variável
independente da situação em que se insere o embrião gerado fora do corpo, pelo
contrário, só pode ser pensada em função desse contexto. E, entre as condicionantes
que podem afetar o potencial desenvolvimento deste embrião, tem-se um ato
discricionário dos genitores – a transferência intra-uterina – sem o qual ele perecerá
por volta do décimo dia após a fecundação.31 Admitida a legitimidade desse ato
discricionário, uma vez que os genitores tenham decidido proibir o uso de seus
embriões na reprodução, não há que se falar em pessoas em potencial.
                                                            
28 GUENIN, Louis M. The Morality ... cit. p. 36, tradução livre.
29 GUENIN, Louis M. The Morality… cit. p. 38, tradução livre.
30 GUENIN, Louis M. The Morality… cit. p. 37, tradução livre.
31 GUENIN, Louis M. The Morality… cit. p. 30

 
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Afirmam Persson e Savulescu que nos embriões que não serão implantados
inexiste potencial realizável. A potencialidade se referiria ao estado interno do ser
(genes, proteínas, estruturas internas aptas ao desenvolvimento); ao passo que o
conceito de "realizável" envolveria o estado externo (as condições biológicas e sociais
extrínsecas apropriadas para que ele desenvolva sua potencialidade). Assim, um
embrião na placa petri não tem potencial realizável, diferentemente de um embrião no
útero, que o possui. Dessa forma, seria possível utilizar aqueles embriões para
pesquisa, porque eles não possuem nenhum potencial de se tornarem pessoas (uma
vez que os doadores de gametas decidiram por sua não utilização para fins
reprodutivos).32
Além disso, é sabido que tanto na reprodução natural quanto na artificial,
vários embriões morrem. Na reprodução natural, estima-se que para cada gravidez
bem sucedida que resulta em um nascimento com vida, até cinco embriões perecem
nas fases iniciais, são abortados ou sequer chegam a se fixar no útero. Isso leva
alguns autores a afirmar que o sacrifício de embriões é inerente à procriação, até
mesmo nos processos naturais.33 Se eles fossem detentores do direito a uma vida
digna, chegar-se-ia ao absurdo de considerar errada a reprodução natural, em que há
altas taxas de perda de embriões. Persson e Savulecu sistematizam esse pensamento
da seguinte forma:

(i) Se é moralmente permissível engajar em uma reprodução,


natural ou artificial, embora se saiba que grande número de
embriões irão falhar na implantação e rapidamente morrerão,
então;
(ii) É moralmente permissível utilizar embriões para outros
propósitos que não o reprodutivo, que envolvam a sua morte,
                                                            
32 PERSON, I., e SAVULESCU J. (2010). Actualizable Potential, Reproduction and Embryo Research:

Bringing Embryos into Existence for Different Purposes, or Not at All. Cambridge Quarterly of Healthcare
Ethics. 19(1), Jan 2010.
33 SAVULESCU, J. (2004) Embryo Research: Are there any lessons from Natural Reproducion?. Cambridge

Quarterly of Healthcare Ethics. 13(1);22-5 (Summer).


 
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como a retirada de células-tronco que serão usadas para salvar


vidas, quando a produção deles para propósitos reprodutivos não
for uma alternativa viável.34

Retomando os argumentos favoráveis à ADI e aduzidos ao longo dos


debates, afirmou-se também que a pesquisa com células-tronco adultas se mostra
mais promissora que a com as células embrionárias. A conclusão é equivocada, vez
que uma linha de pesquisa não exclui outras e que, se aquela encontrou melhores
resultados até o momento, é porque, além de ter começado antes, pôde se
desenvolver sem problemas precisamente por não suscitar questões éticas. Ademais,
é comprovada a maior plasticidade das células-tronco embrionárias, que são as únicas
capazes de se diferenciar em qualquer célula humana. Como afirma Rosalia Mendez-
Otero:

Os estudos clínicos feitos até o momento usaram células adultas


porque nós ainda não conhecemos as embrionárias tão bem e
porque não tínhamos permissão para usá-las [no Brasil] até
poucos anos atrás. Não houve tempo de pesquisa suficiente para
que elas pudessem chegar a um modelo de estudo clínico. Não
temos dúvida nenhuma de que as células adultas não vão servir
para tratar tudo o que tem de ser tratado. (..) Elas não se
diferenciam, por exemplo, em tipos celulares como neurônios ou
cardiomiócitos [células de músculo cardíaco], mas as embrionárias
sim.35 [grifou-se]

Dessa forma, não obstante haja algumas vantagens no uso das células-
tronco adultas, como a ausência de problemas de incompatibilidade,

Certamente devem ser consideradas as limitações de sua utilidade.


No caso do transplante autógeno de células-tronco adultas, não
podem ser desprezados os problemas decorrentes do surgimento
                                                            
34Persson, I., and Savulescu J. (2010). "Actualizable Potential... cit, tradução livre.
35MENDEZ-OTERO, Rosalia. In GARCIA, Rafael. Célula embrionária ainda é necessária, diz cientista.
Folha de São Paulo, 04 de março de 2008.  
 
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de tumores. Surgem sobretudo dificuldades em obter, na medida


necessária, essas células-tronco adultas para as mais variadas
utilizações médicas. Ainda, para que elas possam ser utilizadas
clinicamente, devem ser multiplicáveis. Essa multiplicidade das
células-tronco adultas, no entanto, nem sempre é garantida. [...]
Não se pode, porém, com o conhecimento que se tem atualmente,
dizer se as células-tronco adultas oferecem de um modo geral uma
alternativa terapêutica para as células-tronco embrionárias. [...]
Seria aconselhável pesquisar os diferentes tipos de células-tronco36.

Não seria possível terminar esta seção sem mencionar um dos argumentos
mais comuns para aqueles que se opõe às pesquisas com embriões: a afirmação de
que esta atitude pode, no futuro, permitir outras ingerências na dignidade humana.
Seria dizer que, uma vez abertas as comportas, abusos poderiam acontecer. Trata-se,
na verdade, de uma falácia, conhecida como slippery slope, em que se chega a
conclusões (omitindo uma ou mais premissas) cuja verdade é meramente sugerida
pelo conteúdo das premissas fornecidas, mas não se segue necessariamente delas.
Usa-se esse raciocínio quando se quer evidenciar possíveis consequências nefastas de
determinado fato.37
Esse pensamento não é correto porque é bem possível que, conforme o
caso, paralisem-se as ações em determinado ponto, e não se avance mais. Não há
como provar que de um ato irão decorrer necessariamente as conseqüências que se
alegam. Além disso, no tema aqui analisado, não se tratando de pessoa o embrião,
fica ainda mais distante a ligação entre as pesquisas com células-tronco embrionárias
e uma possível ingerência na dignidade humana.

                                                            
36KRESS, Hartmut. Ética... cit. P. 184-186. 
37COLIVA, Annalisa, e LALUMERA, Elisabetta. Pensare: Leggi ed errori Del ragionamento. Roma:
Carocci, 2006, p. 110.
 
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IV) Argumentos contrários à ADI

Passando para o lado oposto, destaca-se a insuficiência de alguns dos


argumentos levantados nos votos contrários à ADI 3510-0 DF. A começar pelo
utilitarista, mencionado diversas vezes, o qual se baseia na idéia de que os embriões
inviáveis e excedentes deveriam servir às pesquisas com células-tronco em razão de
que assim seriam mais úteis à sociedade, ou que é um fim mais “nobre” para eles, que
seriam, de outro modo, descartados. Tal argumento não pode, por si só, justificar a
manipulação de embriões, vez que, se eles tivessem personalidade, não seria possível
quer seu descarte, quer sua manipulação.
A pessoa jamais poderia ser instrumentalizada dessa maneira sem
consentimento. Não se pode matar e retirar os órgãos de um idoso, embora isso até
pudesse ser mais benéfico para os muitos que estão na fila de transplantes, sob a
justificativa de que ele inevitavelmente morrerá em breve. O fundamento ético e legal
para a manipulação das células-tronco está no fato de que o embrião não é pessoa, e
não apenas na utilidade que isso traria. "A iminência de morte não justifica por si só
o ato de matar alguém.” 38 Assim, é possível manipular não porque os embriões serão
jogados no lixo, mas porque não são pessoas.
A tese utilitarista tem seus méritos em alguns contextos39 e pode fortalecer a
convicção de que se está fazendo um bem para a sociedade ao dar uma finalidade útil
a algo que, de outro modo, não teria nenhuma. Mas essa tese, isoladamente, não
pode justificar a permissão das pesquisas.
Na mesma linha de raciocínio, outros argumentos utilizados na defesa das
pesquisas, como o direito constitucional à saúde (Art. 6º), a liberdade científica como
                                                            
38GUENIN, Louis M. Morality... cit p. 51/52
39Os referidos contextos não serão abordados aqui por extrapolarem a proposta do trabalho. Mas
apenas para exemplificar, quando se trabalha com recursos públicos escassos, pode-se lançar mão do
pensamento utilitarista para decidir a melhor solução para o caso concreto.
 
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parte dos direitos fundamentais (Art. 5º, IX da Constituição Federal), o dever do


Estado de incentivo ao desenvolvimento científico (Art. 218 da Constituição
Federal), e o princípio da solidariedade entre gerações (Art. 225, § 1º, II da
Constituição Federal) certamente acentuam a importância das pesquisas com células-
tronco embrionárias, mas não autorizam, por si sós, a sua realização. Reitera-se: por
mais importante que possam ser as pesquisas, se o embrião fosse pessoa, elas não
poderiam ser realizadas. A fundamentação ética e jurídica diz respeito, como já dito,
ao conceito de pessoa.
Tampouco dizer que o embrião só seria digno de amparo porque está
dentro do útero materno é correto. O lugar em que ele se encontra não pode definir
seu status. A possível construção de um útero artificial derrubaria esse argumento. O
que é relevante é a simbiose com a mãe, a interação, e não o lugar em que ele se
encontra. Um embrião dentro do útero deve ser mais protegido devido à interação
que existe ali, e não pelo útero em si. O centro dos direitos, que é a “pessoa
humana”, não prescinde da interação.40
Destarte, um embrião em uma placa petri ou ainda congelado, não seria
pessoa por não estar inserido em um contexto sócio-interativo. E, como visto, não
seria sequer uma pessoa em potencial se o seu uso na reprodução não fosse uma
alternativa concreta para ele – se os progenitores já tivessem tomado a decisão de
não permitir o seu uso para fins reprodutivos.
Destaca-se, aqui, que um dos eixos-base do conceito de pessoa é a
alteridade, isto é, “[...] o reconhecimento e a afirmação do outro [...]”.41 E não se
pode pensar esse eixo sem que existam no embrião possibilidades de interação que
estejam além do nível bioquímico, ou seja, para se falar em alteridade deve haver,
                                                            
40 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna o que quiser.
2007. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2007
41 STANCIOLI, Brunello. Renúncia... cit. p. 95.

 
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ainda que de modo incipiente, a possibilidade de interação inteligente entre o


embrião e seu meio. Como lembra Dworkin,

[n]ão se sabe quando essas capacidades mais complexas [ser ou


não capaz de sentir prazer, afeições e emoções, ter esperanças e
expectativas] começam a desenvolver-se no ser humano, em sua
forma primitiva, incipiente ou indefinida. Mas parece muito pouco
provável que se desenvolvam no feto humano antes da maturação
cortical, por volta da trigésima semana de idade gestacional,
quando a atividade elétrica cortical torna-se mais complexa e os
períodos de vigília podem ser distinguidos dos períodos de sono
através do eletroencefalograma. [...] A embriologia ainda tem, sem
dúvida, muito mais a descobrir sobre o desenvolvimento do
sistema nervoso do feto. [...] Ainda assim, parece fora de dúvida
que um feto só passa a ter o substrato neural necessário ao
surgimento de qualquer tipo de interesse em algum momento
relativamente tardio de sua gestação.42

É impossível se pensar a mente ou a inteligência sem que haja um substrato


físico adequado a essas características. Por conseguinte, pode-se afirmar, com
segurança, que não há qualquer possibilidade de interação inteligente antes da
formação das estruturas mais básicas de suporte à mente humana – os neurônios.
Roberto Lent, professor de neurociência do Instituto de Ciências Biomédicas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro esclarece que

por volta de 15-20 dias de gestação, [o embrião] apresenta uma


placa em uma das extremidades, cujas bordas vão se dobrando
sobre si mesmas para formar um tubo: o tubo neural. Esse é o
primeiro momento em que se pode identificar um precursor do
cérebro no embrião. O tubo neural é formado por células
precursoras que ainda não são neurônios. Embora se
comuniquem quimicamente, essas células ainda não são capazes
de gerar sinais bioelétricos de informação, como os neurônios
maduros. Elas tampouco formam redes ou circuitos, o que indica

                                                            
42 DWORKIN, Ronald. Domínio da Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.p. 23-24.
 
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que, a essa altura, estão longe ainda de apresentar as características


fundamentais da mente humana.43

Embora a neurociência ainda não tenha condições de precisar a partir de


que momento as estruturas cerebrais teriam suporte para capacidades relacionadas à
inteligência, pode-se afirmar, seguramente, que antes do 15º dia após a fecundação
essas estruturas não existem. O embrião que pode ser utilizado nas pesquisas é aquele
cujo desenvolvimento é interrompido até o 5º dia após a fecundação. Portanto, não
há que se falar em ofensa à dignidade da pessoa nas fases iniciais do desenvolvimento
embrionário, já que sequer pessoa pode haver.
Outro argumento apresentado consiste na correlação entre a cautela com
que a Lei 11.105/05 tratou a possibilidade do uso de células-tronco embrionárias
humanas em pesquisas e a ausência de ofensa à dignidade da pessoa, vez que haveria
regras e limites bem definidos para a pesquisa.44 O argumento é por demais frágil,
pois do fato de haver “cautela” legal não decorre, necessariamente, o respeito à
dignidade. Além disso, com a devida fundamentação ética e jurídica, será possível
ampliar o alcance da lei sem, contudo, ofender a dignidade da pessoa humana.
Também não procede a afirmação de que os embriões podem ser
manipulados porque seriam inviáveis para a reprodução após três anos de
congelamento. Não obstante haver algum embasamento científico na determinação
desse prazo, existem casos de embriões congelados há oito anos, que, ainda assim,
foram capazes de, uma vez transplantados para o útero, darem origem a bebês.
Como afirma o ginecologista José Gonçalves Franco Júnior, detentor do maior

                                                            
43 LENT, Roberto. Quando começa e quando termina a vida? In: CIÊNCIA HOJE ON-LINE, disponível
em: http://cienciahoje.uol.com.br/118247 acesso em 18 de maio de 2009.
44 Tais limites são: uso apenas para fins de pesquisa e tratamento; só embriões produzidos

artificialmente; não aproveitados ou inviáveis; congelados há mais de 3 anos quando da publicação da


lei, ou já congelados na época da publicação da lei, após 3 anos; consentimento dos doadores;
encaminhamento do projeto aos comitês de ética; vedada a comercialização.
 
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banco de criopreservação do país, a viabilidade de alguns embriões congelados há


mais de três anos é um fato.45
É certo que ocorre uma deterioração do embrião congelado com o passar
do tempo, mas o prazo estabelecido na lei não é um critério absoluto: tanto há
embriões que se deterioram antes desse período, como há aqueles que superam em
muito esse limite. Ademais, se se aceita que a utilização de embriões é ética e
juridicamente permissível, o tempo de congelamento dessas células é indiferente,
podendo ocorrer a sua manipulação a qualquer tempo (apenas respeitado o
consentimento dos doadores de gametas).
Foi dito, ainda, que a permissão do aborto elimina, de certa forma, a
questão das pesquisas com células-tronco, pois a vida já seria relativizada. Contudo,
aproximar o uso de células-tronco embrionárias ao aborto não traz qualquer
contribuição para resolver o problema. Trata-se de situações distintas, com diferentes
graus de complexidade.
Abortar significa “1. (obstetrícia) expulsar naturalmente o feto, ou retirá-lo
por meios artificiais, sem que o mesmo tenha condições de sobrevivência fora do
útero; 2. (termo jurídico) interromper o processo de gestação, provocando a morte
do feto. [...]”46 O aborto pressupõe, pois, a existência de gravidez. No mesmo
sentido, definições encontradas na literatura jurídica:

Aborto é a interrupção da gravidez antes de atingir o limite


fisiológico, isto é, durante o período compreendido entre a
concepção e o início do parto, que é o marco final da vida
[intrauterina]. Segundo Aníbal Bruno, “provocar aborto é

                                                            
45JÚNIOR, José Gonçalves Franco. In. COLLUCCI, Cláudia. Embrião congelado por 8 anos produz bebê.
Folha de São Paulo, 09 de março de 2008.
46 ABORTAR in DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, versão

1.0, 2003.
 
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interromper o processo fisiológico da gestação, com a


conseqüente morte do feto.” 47

As definições de aborto têm em comum o fato de se referirem à interrupção


da gravidez, quando o feto ainda é inviável, provocando sua morte. Portanto, não há
que se falar em aborto no que tange à pesquisa com células-tronco, em que se tem
um embrião produzido fora do organismo, sem que se tenha iniciado uma gestação.
A associação proposta na ADI, portanto, não tem cabimento. O fato de já haver
permissão legal do aborto em alguns casos não leva à conclusão de que as pesquisas
com células-tronco embrionárias devem ser permitidas, nem a autorização das
pesquisas leva à legalização do aborto. São situações ética e juridicamente distintas.
Destaca-se ainda a carga negativa da palavra aborto, cuja associação ao uso
de células-tronco embrionárias pode conduzir os incautos à falácia acima referida, de
ver na permissão das pesquisas um passo rumo à descriminalização do aborto em
qualquer caso e, com base nisso, se oporem a um campo lícito da busca de
conhecimento científico. Finalmente, o aborto é um tema demasiado controverso,
por enquanto, suscitando mais dúvidas que contribuindo para resolver a questão.

V) Conclusão

A partir dos apontamentos feitos, conclui-se que o foco da discussão deve


estar no conceito de pessoa natural, que é o centro e o fim de todo o ordenamento
jurídico brasileiro. Não se pode perder de vista que a reconstrução desse conceito
deve se calcar em uma discussão ética, posta na esfera pública, a partir de argumentos

                                                            
47 BITENCOURT, Cezar Roberto.Tratado de Direito Penal: parte especial, vol. 2. 5. ed. rev. e atual. São

Paulo: Saraiva, 2006. p. 159


 
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racionais, ou seja, em que não se aceitem dogmas e em que se ponham em jogo todas
as pré-compreensões de um Mundo da Vida irrefletido. Nesse contexto, para
determinar o início da pessoalidade e, portanto, da tutela do ordenamento jurídico,
deve-se valer de observações empíricas (biologia) e da problematização de idéias
apriorísticas, como alma – que, de resto, não é objeto da Ciência ou da Filosofia
desde a Modernidade – as quais, se não se mostrarem consistentes, devem ser
abandonadas.
Ressalta-se que a dimensão social e interativa deve ser levada em conta
como momento fundante da pessoalidade: só se pode conceber a pessoa em um
contexto sócio-interativo, em que autonomia e alteridade são co-originárias.48
Embora não seja preciso o momento a partir do qual o embrião apresenta
interação inteligente no útero materno, pode-se afirmar com segurança que esta
inexiste antes da formação de um sistema nervoso, mesmo que rudimentar – donde a
impossibilidade de se falar na existência de uma pessoa nas fases embrionárias mais
incipientes, quando os embriões podem ser usados em pesquisas.
Dessa forma, como no embrião não há individualidade e nem sinal de
sistema nervoso, inexistindo qualquer forma de interação inteligente, não se trata de
pessoa segundo um conceito pós-metafísico. Assim, as pesquisas com células-tronco
embrionárias não encontram óbice algum. Essa é a fundamentação racional e
condizente com um Estado Democrático de Direito plural e secular, que
infelizmente ficou ausente do julgamento da ADI.
Os argumentos apresentados na oportunidade careceram de cientificidade
em muitos pontos e não abordaram o cerne da questão, que seria exatamente a
elaboração de um conceito pós-metafísico de pessoa humana. Trabalhos nesse

                                                            
48 Segundo Brunello Stancioli, a pessoa se fundamenta em três eixos básicos, quais sejam a autonomia,
alteridade e dignidade, além de valores que ela escolhe para sua vida, sem prescindir de uma base
sensível que medeie a interação entre os demais eixos – o corpo. STANCIOLI, Brunello. Renúncia... cit.
 
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sentido permitiriam inclusive avançar e alterar a legislação para permitir outras


técnicas hoje proibidas, como a produção de seres híbridos, ou a clonagem
terapêutica.
Por fim, destaca-se que esse artigo não tem a pretensão de exaurir o tema e
muito menos trazer respostas definitivas. Visa, outrossim, a chamar a atenção para o
fato de que a situação não está acabada, e de que os debates não devem se encerrar.

VI) Referências Bibliográficas

ABORTAR e ABORTO. DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA


LÍNGUA PORTUGUESA, versão 1.0, 2003.

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do Ano 1000 à Colonização da América. Trad.


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BITENCOURT, Cezar Roberto.Tratado de Direito Penal: parte especial, vol. 2. 5. ed.


rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

COLIVA, Annalisa, e LALUMERA, Elisabetta. Pensare: Leggi ed errori Del ragionamento.


Roma: Carocci, 2006.

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PROTEÇÃO DA PESSOA:
DIREITOS DA PERSONALIDADE OU LIBERDADES JURÍDICAS?

Edgard Audomar Marx Neto1

RESUMO

A partir de elaboração de uma série de medidas protetivas a problemas que se


apresentavam novos, gradativamente os tribunais e a doutrina passaram a cogitar de
uma nova possibilidade de proteção jurídica da pessoa, que acabou reconhecida
como objeto de regulação autônoma. Historicamente se fala em direitos do homem
(como nas primeiras declarações de direitos), posteriormente em indivíduo (delimitado
pelos valores liberais de vida, propriedade e liberdade), e só mais recentemente em
pessoa, embora a origem do termo seja remota. Conforme Walter Moraes, dizer que
os direitos da personalidade são da pessoa não é dizer nada, pois todos os direitos
são da pessoa. Antes de conceituados como categorias autônomas, os direitos da
personalidade eram objeto de uma tutela do tipo subterrâneo, sem referir a eles de
modo expresso. Só nos anos 70 (século XX) a lei francesa traz expressamente os
direitos da personalidade, embora se verifique a formulação do Direito Geral de
Personalidade no segundo pós-guerra (desenvolvimento dos direitos da
personalidade e dos direitos fundamentais). O reconhecimento legislativo expresso
só veio no Brasil em 2002. O enquadramento dos direitos da personalidade como
verdadeiros direitos subjetivos sempre foi tormentoso. Ao lado de teses negativistas,
firmou-se a sua caracterização como direitos submetidos a uma estrutura jurídica
comum. Mais específico, chegou-se a definir o Direito Geral de Personalidade como
direito subjetivo, do qual os direitos especiais seriam poderes, sem constituírem
direitos subjetivos autônomos. Nesse quadro, torna-se contraditório definir direitos
como poderes, fazendo necessária a investigação zetética se os mecanismos de
proteção da pessoa e de sua personalidade devem ser enquadrados como direitos ou
percebidos como liberdades tuteladas juridicamente.

Palavras-chave: direito de personalidade, direito subjetivo, liberdade.

                                                            
1 Doutorando pela UFMG, edgardmarx@gmail.com.
 
 
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Keywords: personality rights, subjective rights, freedom.

SUMÁRIO

1 Dos indícios à caracterização dos direitos da personalidade; 2 Enquadramentos e


aproximações; 3 Relação jurídica; 4 Elementos; 5 Atributos; 6 Tutela dos direitos da
personalidade; 7 Uma relação jurídica autônoma; Referências bibliográficas.

Os últimos tempos têm vivenciado um amplo processo de multiplicação de


direitos subjetivos. Ao lado dos direitos historicamente reconhecidos – de propriedade,
das obrigações e contratos, de família, por exemplo – são identificados novos,
especialmente dentre os direitos da personalidade.
Assim, a estrutura tradicional dos direitos subjetivos – direitos de – vê um
novo caminho nos direitos a. Os textos legais proclamam direitos à saúde, à
moradia, ao patrimônio mínimo. Busca-se, a todo instante, o direito à efetivação da
dignidade.

1 Dos indícios à caracterização dos direitos da personalidade

Os direitos da personalidade correspondem ao progressivo esforço do


direito em responder às demandas sociais, oferecendo mecanismos capazes de
realizar a proteção da pessoa humana de modo mais pleno.
Verifica-se, no plano geral dos acontecimentos, uma “tendência geral do
direito moderno que marca a preeminência da pessoa humana na hierarquia de
valores” (BERTI, 1996b, p. 115).
O reconhecimento dos direitos da personalidade como uma categoria
autônoma é recente. Para Bevilaqua, “a personalidade não é um direito, é o complexo
 
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dos direitos atribuídos a uma pessoa, considerados em conjunto, constituindo uma


unidade, mas antes em potencialidade do que em atividade” (BEVILAQUA, 1955, p.
54-55).
Como sistema construído, os direitos da personalidade são, na expressão de
Milton Fernandes, “uma conquista do nosso tempo”. A procura imemorial do
sentimento de vergonha no Gênesis ainda é destituída de valor jurídico. O direito
romano conheceu a actio iniuriarum como resposta pontual aos casos de desprezo pela
personalidade alheia (FERNANDES, 1977, p. 4 et seq).
Já no século XVI se firmam pontos de proteção dos direitos da
personalidade, mas sem erigir-se em sistema, que é produto dos séculos XIX e XX.
Essa conquista moderna supera o pensamento antigo, voltado para a natureza e o
cosmos, e o medieval, que “aspirou por uma ligação com o mundo sobrenatural do
homem com Deus; na Idade Moderna, a tudo se acresceu uma auto-reflexão, uma
investigação intensiva do interior humano e de suas forças” (FERNANDES, 1977, p.
5).
A principal influência para o desenvolvimento teórico dos direitos da
personalidade provém, por certo, do cristianismo. Como esclarece Milton Fernandes,

“o cristianismo constitui a mais solene proclamação dos direitos


da personalidade humana, através da idéia de uma verdadeira
fraternidade universal, que implica a igualdade de direitos e a
inviolabilidade da pessoa, com todas as suas prerrogativas,
individuais e sociais” (FERNANDES, 1977, p. 7-8).

Como ponto de apoio, destaca-se também o desenvolvimento de alguns


mecanismos de tutela no direito público, fora do âmbito privado. No direito positivo
brasileiro essa anterioridade do direito público vem destacada pelo reconhecimento,
pela Constituição da República de 1988, da dignidade da pessoa humana e da

 
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inviolabilidade da vida, da intimidade, da honra, da vida privada e da imagem (arts.


1º, III. 5º, caput e inc. X), antes que legislação civil o fizesse.
Somente com a edição do Código Civil de 2002 (Lei 10.406, de 10 de
janeiro de 2002) é que a legislação brasileira reconheceu a expressão “direitos da
personalidade”.
A pessoa toma do centro do direito contemporâneo, que busca efetivar-lhe
a plena dignidade. É justamente no cenário posterior aos horrores da Segunda
Guerra Mundial que a Lei Fundamental Alemã reconhece em seu art. 1º que “A
dignidade do homem é inviolável”.
Para além de conceitos abstratos, porém, é preciso definir a abrangência do
termo direitos da personalidade. Segundo Walter Moraes, “dizer que, subjetivamente,
são da pessoa é dizer coisa não falsa, mas vazia; porque todos os direitos são da
pessoa e analogamente da personalidade” (MORAES, 1984, p 15). E completa:
“dizer, objetivamente, que são os que se exercem sobre a mesma pessoa importa
reconhecer que os diferentes objetos dos direitos dos direitos de personalidade são,
ou compõe, ou pelo menos sustentam, a pessoa ou a personalidade” (MORAES,
1984, p. 15).
Por isso a procura por um modelo de relação jurídica capaz de albergar os
direitos da personalidade.

2 Enquadramentos e aproximações

Antes do desenvolvimento de teoria autônoma para os direitos da


personalidade, a vida íntima era tida como projeção da propriedade. Como explica
Milton Fernandes, “antes de a jurisprudência e as leis tomarem a seu cargo a
proteção civil da intimidade, esta foi concedida, ainda que em parcela mínima, como
 
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implícita nos poderes absolutos do proprietário” (FERNANDES, 1977, p. 417),


como categoricamente prevê a expressão inglesa my home is my castle.
Para Gierke, um dos primeiros teóricos dos direitos da personalidade, eles
eram aqueles “que asseguram ao seu sujeito o domínio [Herrschaft] sobre uma parte
componente da esfera da própria personalidade” (apud MORAES, 1984, p. 15).
A aproximação entre os direitos da personalidade e os direitos reais não é
casual. Claramente a estrutura obrigacional não serve para explicar a proteção da
pessoa, já que essa modalidade de tutela jurídica dependeria da existência de uma
relação entre as partes e somente poderia produzir efeitos entre elas.
Já a estrutura dos direitos reais, cuja proteção não depende de qualquer
relação entre lesado e violador, efetivando-se erga omnes e oferecendo ao titular
verdadeiro poder direito sobre o bem, parecia mais adequada, embora não fosse
capaz de resolver o problema fundamental de se ter pessoa como sujeito e objeto de
uma mesma relação jurídica ou, em outros termos, admitir que uma pessoa dotada de
dignidade fosse objeto dessa mesma relação.
Voltando à formulação dos direitos da personalidade, em 1819 já se fala em
mur da la vie privée, mas a primeira decisão jurisdicional é, possivelmente, de 1858, no
caso que ficou conhecido como affaire Rachel (RAVANAS, 1978; BERTI, 1993).
A proteção deferida pelo Tribunal francês não se ateve à caracterização da
figura ou a seu enquadramento doutrinário, mas efetivou medida de proteção do que
hoje é chamado, sem questionamentos, de direitos da personalidade.
Sob outros influxos, em 1890 Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz
Brandeis publicam o artigo The Right to Privacy, que fixa as bases da proteção da
personalidade no sistema do Common Law, sustentando a necessidade do
reconhecimento legal do direito de estar só.

 
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Embora conte com ampla discussão doutrinária e jurisprudencial ao longo


do século XX, somente em 1970 o Código Civil francês estabeleceu, em seu art. 9º,
que “chacun a droit au respect de as vie privée”.

3 Relação jurídica

Os direitos da personalidade são direitos subjetivos.


Na expressão de Jean Dabin, “os direitos da personalidade são os direitos
que têm por objeto os elementos constitutivos da personalidade do sujeito posta sob
seus múltiplos aspectos, físico e moral, individual e social” (DABIN, 2008, p. 169),
ou seja, são direitos subjetivos com características próprias.
A tutela subjetiva da personalidade constitui direito pessoal “de defender a
dignidade própria, de exigir o seu respeito e de lançar mão dos meios juridicamente
lícitos que sejam necessários, adequados e razoáveis para que essa defesa tenha êxito”
(VASCONCELOS, 2006, p. 53). Sob esse aspecto, o exercício desse direito somente
é realizado por meio da atuação do titular, no exercício de sua autonomia privada,
A fonte desses direitos constitui o direito objetivo de personalidade, a
defesa da personalidade reconhecida e reguladas “quer na lei constitucional, quer na
lei ordinária, cuja ratio se funda em razões de ordem pública e de bem comum, e que
é alheia à autonomia privada” (VASCONCELOS, 2006, p. 50). Nesse aspecto, faz
referência à defesa da humanidade considerada como um todo – a dignidade do
homem em seu sentido mais amplo – e pretende ainda resguardar os bons costumes,
a ordem pública e o bem comum.
Uma vez reconhecido que os direitos da personalidade são direitos
subjetivos e não sendo possível caracterizá-los como direitos reais ou obrigacionais,
suas especificidades determinam o reconhecimento de um terceiro gênero. Assim, em

 
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sentido geral, as relações jurídicas privadas podem ser organizadas em obrigacionais,


reais e de personalidade.

4 Elementos

Se a relação jurídica de direito da personalidade constitui uma realidade


autônoma, o próximo passo é a definição de seus elementos.
O sujeito ativo é o próprio titular.
O sujeito passivo é toda a coletividade que deve respeito à dignidade de
cada pessoa. Como nos direitos reais, só há sentido prático em se definir o sujeito
passivo se houver uma violação a esses direitos.
Outra peculiaridade nos direitos da personalidade é que se vai admitir que,
em relação aos aspectos existenciais, também o titular deva respeito aos bens de
personalidade que são indisponíveis.
Sobre o vínculo estabelecido, Walter Moraes esclarece que “a relação entre
personalidade e pessoa é a de subsistência e substância. Substância pode definir-se
como o que é em si e não em outra coisa. [...] Subsistência vem a ser, pois, aptidão
para ser sem dependência” (MORAES, 1984, p. 17).
O objeto dessa relação jurídica é o bem da personalidade. Bem é uma
realidade capaz de satisfazer necessidades (sentido objetivo) ou apetências (sentido
subjetivo) da pessoa (MENEZES CORDEIRO, 2004, p. 77).
Pode-se compreender a caracterização de diversas áreas de bens da
personalidade, para o ser humano biológico (vida, integridade física, saúde,
necessidades vitais), para o ser humano moral (integridade moral, identidade, nome,
imagem, intimidade), e para o ser humano social (família, bom nome e reputação,
 
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respeito) (MENEZES CORDEIRO, 2004, p. 77). Pode-se também compreender a


personalidade como um “complexo unitário psíquico-somático” (CAPELO DE
SOUZA, 1995, p. 199), do qual os elementos citados constituiriam diversos aspectos.
Em qualquer posicionamento, os bens da personalidade correspondem à
totalidade dos atributos próprios do sujeito ou, em outros termos, “os bens da
personalidade correspondem a aspectos específicos de uma pessoa, efectivamente
presentes, e susceptíveis de serem desfrutados pelo próprio” (MENEZES
CORDEIRO, 2004, p. 78).

5 Atributos

A partir da configuração dos direitos da personalidade como uma relação


jurídica de atributos próprios, é possível verificar quais atributos decorrem dessa
condição e mesmo buscar uma principiologia que lhe seja adequada. Se o princípio
da dignidade da pessoa humana, especialmente nos direitos da personalidade, tudo
impregna e pequena margem de diferenciação agrega, a identificação de atributos
serve melhor à classificação. Isso porque a identificação de notas peculiares em um
tipo específico de relação jurídica serve a fim dúplice, tanto de se poderem aplicar
esses atributos a todas aquelas que no modelo se encaixem, como de, a partir da
verificação desses atributos, indicar o enquadramento jurídico de uma nova realidade
que se apresente.
Sintetizando a produção sobre o tema, pode-se dizer que os direitos da
personalidade sejam originários, essenciais, não relativos, indisponíveis, extrapatrimoniais,
intransmissíveis, imprescritíveis e exclusivos.
Diz-se que são originários porque são contemporâneos à proteção da
pessoa pelo direito, “pertence a todo indivíduo pelo simples fato de ser pessoa”
 
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(BERTI, 1993, p. 45). O reconhecimento de direitos da personalidade se verifica


desde a concepção, como expressão da personalidade natural. Não se duvida que o
nascituro seja, desde logo, titular de direito à vida, à integridade corporal ou à saúde,
dentre tantos que lhe são reconhecidos, admitindo a jurisprudência que seja vítima de
um dano moral. São direitos que não se adquirem, mas surgem com a personalidade
(BERTI, 1993, p. 45).
São essenciais porque não existe pessoa sem direitos da personalidade.
Necessária e obrigatoriamente toda pessoa tem direitos da personalidade desde seu
início até seu ocaso. Segundo Walter Moraes, o objeto dos direitos da personalidade
recai sobre bens essenciais, cuja privação não é “possível «vivente capite»”
(MORAES, 1972, p. 81).
A não relatividade dos direitos da personalidade em geral determina que a
proteção desses direitos não depende da existência de uma relação entre titular e
ofensor, ou seja, é oponível erga omnes e geradora de um dever geral de abstinência. A
não relatividade traduz-se em “uma relação oponível à generalidade dos indivíduos,
isto é, dotada de eficácia universal, sem a especificação de sua exigibilidade contra
determinado sujeito passivo” (SILVA PEREIRA, 2001, p. 30). Prefere-se, aqui, a
denominação não relativo a absoluto, como tradicionalmente expresso e fonte de
inúmeras confusões entre os direitos da personalidade e os direitos reais, para que se
possa melhor expressar o conteúdo do atributo e não se levar a crer que os direitos
da personalidade sejam ilimitados.
A indisponibilidade dos direitos da personalidade vincula-se à
impossibilidade, qualificada como natural (MORAES, 1972, p. 80), de privar-se deles
o sujeito. A procura de um critério concreto pretende atender com maior clareza às
demandas de toda ordem que colocam os direitos da personalidade, ainda que
mediatamente, como objeto de relações sociais. Nos limites da lei pode-se mesmo
violar a integridade física da pessoa, doadora ou receptora, na doação de órgãos e
 
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tecidos humanos. Como adverte Walter Moraes, a disponibilidade decorre do ser


absoluto que marca os direitos da personalidade, e sustentar a indisponibilidade
baseia-se idéia equivocada de que dispor induz necessariamente privar-se. Assim, a
disponibilidade – nos limites do possível – “determina toda a trama da vida jurídica”
dos direitos da personalidade (MORAES, 1972, n. 55) e, acrescente-se, é plena em
certos casos, como na quebra do direito ao sigilo e de inédito pelo próprio titular.
Por não serem suscetíveis de avaliação pecuniária os direitos da
personalidade são considerados extrapatrimoniais. Todavia esse aspecto não os exclui
das relações econômicas, podendo ter reflexos assim qualificados (BERTI, 1993, p.
43). De maneira positiva, quando o titular explora seus bens de personalidade com
finalidade lucrativa, ou negativa, que se verifica na especialmente na reparação por
dano moral, os direitos da personalidades podem manifestar aspectos patrimoniais.
Isso porque o aspecto moral deve ser protegido em todas as circunstâncias, enquanto
a expressão econômica apareceria somente nos casos de expressa destinação do
titular ou como medida de reparação do direito violado. Deve-se considerar também
que uma extrapatrimonialidade estrita levaria à impossibilidade de reparação do dano
moral, em favor do infrator e contra a vítima da ofensa.
Por serem direitos originários, indisponíveis e vincularem-se diretamente à
personalidade de seu titular, os direitos da personalidade afigura-se intransmissíveis,
tanto por ato inter vivos como causa mortis. Ademais, se hipoteticamente transmissível,
não poderia integrar outra personalidade (MORAES, 1972, p. 81). A
intransmissibilidade por ato inter vivos confunde-se com a própria indisponibilidade
do bem de personalidade. Em relação aos herdeiros do falecido a situação apresenta-
se mais sofisticada: eles não são, por certo, sucessores da personalidade, mas
assistem-lhes meios para proteção de aspectos da personalidade do morto. Aos
parentes que sobrevivem compete, por exemplo, o direito de atuar em relação à
imagem do falecido, sem que tenha havido transmissão do direito à imagem. “Trata-
 
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se, na verdade, de um direito novo, conferido a certos parentes colocados em


condição de defenderem o sentimento de piedade que tenham pelo morto” (BERTI,
1993, p. 47). Assim, ainda que com o desaparecimento do substrato físico do corpo,
subsiste a faculdade, para outros titulares, de opor-se a publicação da imagem:
“morto o sujeito, subsiste-lhe a imagem física por algum tempo, e as reproduções
dela indefinidamente” (BERTI, 1993, p. 48).
Da inalienabilidade dos direitos da personalidade decorre sua
imprescritibilidade (KAYSER, 1971, p. 495-497). Somente o aspecto moral é,
todavia, imprescritível. Ou seja, a possibilidade de fazer cessar a lesão não prescreve,
embora a pretensão de reparação civil esteja sujeita ao prazo de três anos (art. 206, §
3º, V, do Código Civil).
Ainda, a estrita vinculação entre o direito da personalidade e seu titular
determina o reconhecimento de que somente o titular pode mobilizar a utilização de
seus bens da personalidade. Em relação ao direito à imagem, significa “o direito
exclusivo do titular de fazer exatamente aquilo que aos outros é vedado, ou seja,
consentir na divulgação de sua imagem” (BERTI, 1993, p. 37).

6 Tutela dos direitos da personalidade

Para a proteção dos direitos da personalidade o ordenamento jurídico


disponibiliza diversos meios não excludentes de atuação. Em referência a Maularie,
Silma Berti destaca que “um direito não aparece verdadeiramente senão quando está
ameaçado” (BERTI, 2000, p. 241).
A primeira baliza para verificação se houve lesão a um direito da
personalidade é se houve ou não consentimento do titular, quando esse
consentimento for válido (BERTI, 1996a, p. 188).
 
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Podem ser identificados mecanismo de tutela penal, administrativa ou civil.


A tutela penal de alguns bens mais significativos revela o valor social da
proteção da personalidade, como, por exemplo, na tipificação dos crimes de
homicídio, lesão corporal, aborto, injúria e contra a honra.
Por sua própria aplicação a circunstâncias qualificadas como mais graves, o
ordenamento jurídico brasileiro não contempla disposições amplas de proteção penal
dos direitos da personalidade.
A tutela penal da intimidade só se faz “de forma mediata e insuficiente, por
meio das normas que protegem a honra e o segredo” (COSTA JR., 2007, p. 114). O
Código Penal reconhece, de maneira expressa, os crimes contra a honra, a
possibilidade de alegação da exceção da verdade, o direito de resposta, a
inviolabilidade de domicílio e de segredo (COSTA JR., 2007, p. 71-118). Mesmo as
situações objeto de proteção específica vêm sofrendo abalos decorrentes da técnica:
“a tecnologia moderna possibilitou a invasão do domicílio sem que o agente nele
penetrasse” (COSTA JR., 2007, p. 94).
Os demais bens de personalidade restam sem proteção de norma penal
específica.
A tutela administrativa pode ser verificada, por exemplo, nas normas de
organização da programação televisiva, em normas administrativas de saúde pública,
na vacinação obrigatória e nas deliberações de alguns conselhos profissionais, como
as resoluções do Conselho Federal de Medicina sobre a atuação médica.
A tutela civil, mais abrangente, compreende as modalidades de autotutela
como de atuação jurisdicional.
A autotutela corresponde ao comportamento do próprio titular, ou mesmo
de terceiro, que efetiva a proteção dos direitos da personalidade sem a intervenção do
órgão jurisdicional. Assim, quem se opõe a sofrer uma lesão corporal ou impede a

 
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captação fotográfica não autorizada age em legítima defesa dos direitos da


personalidade.
Também na legítima defesa de sues bens da personalidade o sujeito deve
agir nos limites do razoável e proporcional, para que se mantenha nos limites da
licitude.
Outra possibilidade de autotutela dos direitos da personalidade, embora não
reconhecida expressamente no ordenamento brasileiro, é o recurso à ação direta,
prevista no Código Civil português:

“Art. 336º. 1. É lícito o recurso à forca com o fim de realizar ou assegurar o


próprio direito, quando a ação direta for indispensável, pela impossibilidade de
recorrer em tempo útil aos meios coercitivos normais, para evitar a inutilização
pratica desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário
para evitar o prejuízo.”

A aceitação da licitude de tal procedimento no direito brasileiro depende,


por certo, da não configuração da conduta como exercício arbitrário das próprias
razões.
Já a tutela jurisdicional tem sede principal no art. 12 do Código Civil
brasileiro, que prevê que “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da
personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas
em lei”.
A atuação jurisdicional pode ser negativa, impedindo ameaça ou lesão ou
compensando o dano, ou positiva, para “restabelecer o exercício do direito, e ou, a
integridade do bem, lesados” (MORAES, 1996, p. 199).
A tutela jurisdicional por excelência dos direitos da personalidade é a tutela
preventiva, para que faça cessar ameaça a esses direitos. Isso porque dos atributos
dos direitos da personalidade decorre a sua irreparabalidade, sendo desejável que se
impeça a lesão que não pode ser desfeita.
 
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Dentre os mecanismos de tutela insere-se a tutela inibitória, para fazer


cessar um dano à personalidade. Uma vez o dano em efeitos permanentes, quanto
antes se interrompa a lesão melhores são as condições de salvaguarda da
personalidade.
Em último caso, quando não tenham sido manejados os instrumentos
preventivos ou inibitórios, ou se esses não foram capazes de resolver o problema
plenamente, é cabível medida compensatória, vez que a atribuição de um valor em
pecúnia, arbitrado como dano moral, é incapaz de apagar a lesão sofrida pela vítima.
Analogamente ao dano material, compreendido como diminuição do
patrimônio, é reconhecido o dano moral como lesão a direito da personalidade, cuja
verificação não se vincula a critérios econômicos. Assim, a tutela civil inespecífica
(indenizatória) se junta aos mecanismos de tutela específica dos direitos da
personalidade.

7 Uma relação jurídica autônoma

O desenvolvimento de um sistema novo, como o dos direitos da


personalidade, envolve processos de discussão e acomodação teórica. Ainda que o
sistema dos direitos da personalidade não constitua um arcabouço doutrinário,
legislativo e jurisprudencial completo, muitos elementos podem ser agregados para
sua melhor compreensão.
Assim, a matriz geral do direito à efetivação da dignidade poderia ser
compreendida como mera norma programática constitucional, não vinculativa dos
comportamentos privados. Tal hipótese afigura-se, mais precisamente, no limite
entre norma programática e imposição constitucional. Na definição de Canotilho: “as
imposições constitucionais são imposições permanentes mas concretas, ao passo que
 
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as normas programáticas (as determinações de tarefas dos Estado ou os princípios


definidores dos fins do Estado) são imposições permanentes, mas abstractas”
(CANOTILHO, 2001, p. 315).
Os direitos da personalidade, mais que corresponderem a direitos subjetivos
para seus titulares, determina oponibilidade para terceiros que, se não são obrigados a
contribuir para sua efetivação, não podem impedi-la (técnica denominada proibição
de insuficiência – Untermassverbot).
Assim, voltou-se atenção para a análise da estrutura da relação jurídica dos
direitos da personalidade, especialmente para sua caracterização como relação
autônoma, distinta das relações obrigacionais e das relações reais. Os primeiros
passos de acomodação por símile devem ser superados, possibilitando o
enfrentamento de novas situações.

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RESPONSABILIDADE CIVIL NA CIRURGIA PLÁSTICA: UMA ANÁLISE


DA CONDUTA DO PROFISSIONAL

Graziella Ferreira Alves∗

RESUMO

Este trabalho discute aspectos relevantes sobre a responsabilidade civil do cirurgião


plástico, questões controvertidas sobre a adoção de Seguro de Responsabilidade Civil
Médica e aborda práticas preventivas a processos contra médicos. Não é objetivo de
o presente estudo definir se a Cirurgia Plástica subdivide-se em reparadora e estética,
e se a obrigação do cirurgião é de meio ou de resultado, não obstante tal classificação
alterar de forma substancial o resultado do julgamento dos processos. O escopo
deste trabalho é demonstrar atitudes para se evitar demandas judiciais, práticas que
fortaleçam a relação médico-paciente e atos que o médico possa adotar para se
resguardar. Observou-se, a partir de pesquisa teórica jurídica, e também de pesquisa
documental (jurisprudência e questionários respondidos por magistrados), que deve
haver uma aproximação entre o Poder Judiciário e as instituições médicas. Também,
na pesquisa documental, foi realizada uma análise nas cláusulas das Condições Gerais
em Seguro de Responsabilidade Civil Profissional para pessoa física, sendo que uma
seguradora respondeu um questionário sobre o produto. A principal conclusão do
presente trabalho é que nada substitui a boa relação médico-paciente, devendo o
profissional cumprir rigorosamente o dever de informação ao paciente. A postura
ético-profissional deve ser buscada por todos os membros da classe médica,
sobretudo ante o atual Código de Ética Médica. Para isso, esse estudo apresenta
algumas condutas que possam tornar menos laboriosa à prática profissional do
cirurgião plástico, no que diz respeito à Responsabilidade Civil.

Palavras-chave: Relação Médico-Paciente, Seguro de Responsabilidade Civil, Dever


de Informação; Damage Liability, Insurance, Liability, Consent Forms.

                                                            

Mestranda em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
Bolsista pela CAPES.
 
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INTRODUÇÃO

No campo da responsabilidade civil do cirurgião plástico muito já foi


discutido e apresentado. Todavia, as demandas nos tribunais continuam crescentes.
Acrescente-se que o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou afirmando que é
aplicável o Código de Defesa do Consumidor no tocante aos serviços prestados pelo
cirurgião plástico. A pergunta a ser respondida é: o que deve fazer o cirurgião ante
tal responsabilidade? Como exercer seu labor com tranquilidade, sabendo que a
possibilidade de resultado diverso do esperado pode levar a uma condenação judicial?
Os objetivos do presente estudo, portanto, são: 1) informar como deve ser
o consentimento livre e informado dado pelo paciente para ter validade legal; 2)
apresentar quais as práticas e condutas que os cirurgiões plásticos éticos e
responsáveis devem adotar para evitarem processos judiciais; 3) se, tendo em vista a
sua obrigação de resultado, os cirurgiões devem adotar o Seguro de Responsabilidade
Civil.
Neste estudo, foi realizada pesquisa teórica para estudo da doutrina jurídica
e médica sobre o tema Responsabilidade Civil do Cirurgião Plástico. Outrossim, na
pesquisa documental, foram analisados 73 acórdãos na íntegra, de Tribunais de
Justiça de diversos estados brasileiros, dos anos de 2000 a julho de 2006, e ainda 102
ementas (resumos dos acórdãos). Essa pesquisa foi realizada acessando-se o sitio
eletrônico de cada Tribunal de Justiça brasileiro e digitando-se a palavra chave
“cirurgia plástica” no campo de busca, restringindo-se a pesquisa nas apelações
cíveis. Dessa análise, foram apuradas as estatísticas de número de ações procedentes,
procedentes em parte e improcedentes que envolviam a cirurgia plástica, dentre elas
ações envolvendo cirurgia estética ou reparadora, e ainda outros dados relevantes.
Foram enviados questionários para dez juízes de direito da Justiça Comum
Estadual da Comarca de Uberlândia, e um promotor de justiça da mesma comarca,
 
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sendo que, de todos esses, apenas três juízes efetivamente responderam às perguntas,
que tratavam de temas como: Termo de Consentimento Informado, atuação de não-
especialista em cirurgia plástica, devolução de honorários, dentre outras questões.
Foram analisadas as “Condições Gerais de Seguro de Responsabilidade Civil
Profissional”, para profissionais da saúde, de uma seguradora que também respondeu
um questionário sobre dúvidas levantadas acerca desse produto.

RESULTADOS

Do estudo dos 73 acórdãos relativos a processos envolvendo a cirurgia


plástica, apurou-se que 100% das ações pesquisadas, em que as cirurgias eram
consideradas reparadoras (não embelezadoras), foram julgadas improcedentes, ou
seja, sem condenação. Já nas ações que envolviam cirurgias consideradas estéticas,
19% foram julgadas improcedentes e 4% foram julgadas procedentes em parte.
Outrossim, nesses processos, a maior demanda estava relacionada a
cirurgias plásticas em mamas (41% das ações), posteriormente cirurgias na face
(37%). Esses dados divergem daqueles apresentados pelo Conselho Regional de
Medicina de São Paulo, em que a maioria dos processos estão relacionados a cirurgias
de lipoaspiração (33,5%) (CREMESP, 2008, p. 4).
Dos processos ora analisados, 79% deles foram relacionados a cirurgias
consideradas estéticas, em que a obrigação era de resultado, e 21% deles foram
relacionados a cirurgias consideradas reparadoras, em que a obrigação do médico era
de meio.
Dentre os fatores que fundamentaram as condenações, a falha no dever de
informação foi citada em 55% dos processos, seguido dos problemas com
cicatrização (45%) e infecções (9%). O fato do médico não ser especialista em
 
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cirurgia plástica foi citado em 4% das fundamentações dos julgados. Novamente esse
último dado conflita com aqueles apurados pelo Conselho Regional de Medicina do
Estado de São Paulo:

Cerca de 97% dos médicos que respondem a processos ético-


profissionais no Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo (Cremesp), relacionados a cirurgias plásticas e
procedimentos estéticos, não possuem título de especialista na
área. A publicidade irregular ou enganosa é responsável por cerca
de 67% dos processos, enquanto as denúncias de má prática
profissional respondem por cerca de 28% dos processos éticos.
Em levantamento inédito O Cremesp analisou processos éticos
que tramitam no órgão de janeiro de 2001 a julho de 2008 e que
envolvem 289 médicos. Destes, 139 médicos (48,1%) não têm
título em nenhuma especialidade médica. Já 143 médicos (49,5%)
possuem título em especialidades não relacionadas à cirurgia
plástica e procedimentos estéticos. Dentre os médicos
processados, figuram apenas seis cirurgiões plásticos (2,1% do
total) que é a especialidade mais habilitada para a realização de
cirurgias plásticas e apenas um dermatologista (0,3% do total),
especialista que, em seu campo de atuação, executa procedimentos
estéticos. Dentre os médicos com título de especialista, os mais
freqüentes nos processos são os ginecologistas, os cirurgiões
gerais e os ortopedistas. (CREMESP, 2008, p. 4).

Nos processos analisados pelo presente estudo, no tocante aos quantum


indenizatório, o menor valor de condenação apurado foi de R$ 5.000,00 (cinco mil
reais), ou seja, aproximadamente 12 salários mínimos à época, sendo que nesse caso
o dano foi de menor poder ofensivo, em que o paciente não ficou com sequelas
resultantes da cirurgia. O maior valor apurado foi de R$ 200.000,00 (duzentos mil
reais), ou seja, aproximadamente mil salários mínimos à época, processo em que as
sequelas resultantes da cirurgia foram de extrema gravidade. O valor médio apurado
girou em torno de cem salários mínimos.
 
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Não foram encontrados casos que fizessem menção ao fato do médico ser
segurado ou não de Seguro de Responsabilidade Civil Profissional.
Com relação às respostas dos magistrados, todas foram bastante completas
e esclarecedoras. Infelizmente a limitação de espaço não permite reproduzi-las na
íntegra. De qualquer forma, todos foram unânimes em afirmar que a
responsabilidade do cirurgião plástico é de resultado, nos casos de cirurgia
considerada estética. Quando perguntados se o médico, para realizar cirurgias
plásticas, dever ser especialista e membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica
– SBCP, divergiram: dois deles afirmaram que a imperícia está ligada à tarefa
desenvolvida pelo profissional e deve ser apurada em cada caso, sendo desejável a
especialização; outra resposta foi no sentido de que o médico que realiza
procedimentos puramente estéticos deve ter especialidade comprovada e ser membro
da SBCP.
Sobre a possibilidade de o médico gravar as consultas sem consentimento do
paciente foram unânimes em condenar essa prática, recomendando o uso do Termo
de Consentimento por escrito, sendo certo que cláusula que afirma que o médico não
garante resultados será considerada nula.
1No tocante à devolução de honorários, dois juízes afirmaram que há, nesse
caso, presunção de “culpa” ou de reconhecimento de mau resultado. Foram
questionados se o uso de programas de computador que simulam resultados compele
ao médico obter o resultado simulado. Dois dos magistrados responderam que sim e
outro juiz mostrou-se mais flexível, sendo que todos alertaram que seu uso pode ser
legítimo, caso fique claro que o objetivo não é induzir o paciente a operar, e sim
ajudá-lo na compreensão da cirurgia.
Foram perguntados se existe a possibilidade de aumento de número de
demandas, de aumento de condenações e de valores de condenações para o médico
que possui Seguro de Responsabilidade Civil, todos responderam negativamente. Por
 
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fim, afirmaram que seria muito útil a aproximação do Poder Judiciário das
Instituições Médicas, fato que facilitaria o trabalho dos juízes.
No questionário respondido pela Seguradora de Responsabilidade Civil, foi
esclarecido que a denunciação à lide é obrigatória, ou seja, o segurado deve fazer com
que a Seguradora figure no pólo passivo, juntamente com o médico. Se o Segurado
não fizer a denunciação à lide, futuramente a Seguradora poderia ser isentada de
pagar a indenização por descumprimento do art. 70, III, do Código de Processo
Civil: “Art. 70 – A denunciação da lide é obrigatória: III – àquele que estiver obrigado, pela lei
ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda”.
A Seguradora respondeu que não admite cláusula aditiva ao contrato
permitindo o uso de programas de computador que simulem resultados de pós-
operatórios. No tocante aos acordos judiciais e extrajudiciais, somente poderão ser
realizados mediante autorização da seguradora.

DISCUSSÃO

Pela análise dos processos e questionários formulados, percebe-se a difícil


situação em que o cirurgião plástico brasileiro se vê, perante os tribunais, tendo em
vista a responsabilidade de resultado que tem na maioria dos casos. Kfouri Neto, ao
discorrer sobre os processos judiciais que envolvem cirurgia considerada estética,
afirma:

A repulsa suscitada pelas deformidades às vezes resultantes dessas


cirurgias, com finalidade puramente estética, teve como
conseqüência o estabelecimento, desde logo, da distinção entre
obrigações de meio e de resultado, em tema de responsabilidade
médica. Daí afirmarem os tribunais que, embora não evidenciada a
 
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culpa extracontratual do cirurgião, caso o resultado seja


insatisfatório, impõe-se o dever de indenizar. (KFOURI NETO,
2002. p. 243)

O primeiro dado que se confirma, após a análise dos processos e das


respostas aos questionários aplicados, é que realmente há maior rigor no julgamento
das ações que envolvem cirurgias consideradas estéticas. Nessas cirurgias há maior
exigência no cumprimento do dever de informação.
Por isso, o uso por escrito de Termo de Consentimento Informado é
indispensável. O documento deve conter, além de informações acerca da técnica
cirúrgica, todos os riscos e reais limites da cirurgia, as complicações possíveis, e ainda
um campo para preenchimento manuscrito pelo paciente de dados e particularidades
sobre aquele caso específico (por exemplo: “fui orientado sobre tendência à
quelóides”, ou “programadas duas etapas cirúrgicas”, etc.). Isso se justifica em razão
de alguns magistrados desconsiderarem o documento, posto que não passariam de
formulários padronizados, semelhantes a contratos de adesão. O fato do paciente
escrever, de próprio punho, sobre as particularidades de sua cirurgia afasta qualquer
alegação de formulário padrão. Nesse sentido, afirma Santos:

É bom registrar, a propósito, que a exigência do consentimento


informado não resta atendida pela simples assinatura pelos
pacientes formulários padronizados no momento em que entram
no estabelecimento médico em busca do tratamento, como
adverte França (2001, p. 36). Primeiro porque obviamente não
levam em conta as particularidades, o perfil, do receptor das
informações. Segundo porque normalmente são genéricos e
recheados de informações técnicas ininteligíveis para o leigo em
medicina. Por fim, porque o procedimento médico naturalmente
implica na prática de sucessivos atos, que podem não ser
previsíveis no início da prestação de serviços. Na verdade, como
assevera França (2001, p. 37), o consentimento há de ser

 
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continuado,devendo ser renovado sempre que a evolução da


moléstia impuser uma mudança de rumos no tratamento a ser
adotado. (SANTOS, 2008, p. 187-188).

Recomenda-se, ainda, que no Termo de Consentimento Informado conste:


01) expresso consentimento do tipo de anestesia (conforme determina a Resolução
CFM 1.711/03); 02) a possibilidade de reposição hematológica; 03) os riscos do
tabagismo e propostas para seu abandono; 04) que, como resultado da cirurgia
existirá uma cicatriz permanente; 05) que é dever do paciente cumprir às prescrições
médicas e comparecer aos retornos; 07) e todas as informações que o médico julgar
necessárias ao caso.
É adequado que exista uma consulta pré-operatória específica para que
sejam dirimidas as dúvidas dos pacientes após a leitura do livreto de informações.
Este estudo confirma o posicionamento de outro trabalho já apresentado sobre
Consentimento Livre e Esclarecido: é negligência do médico não observar seu dever
de informação. (CAVALCANTI, 2005, p. 241-244).
O prontuário médico é outro documento importantíssimo. É conveniente a
assinatura, por parte do paciente, de confirmação das informações pessoais prestadas
na consulta inicial, principalmente para fazer prova de hábitos que possam
influenciar no resultado da cirurgia, como o tabagismo. Tal prática é descrita pelo
trabalho “Padronização da Ficha Clinica em Cirurgia Plástica” (FERREIRA, 2003, p.
56-60), sendo possível que diminuíram os casos de pacientes que escondam o hábito
de fumar e aumentaram os relatos de uso de medicação para emagrecer.
Não se devem protelar as anotações dos atendimentos, pois é possível, por
perícia específica, apurar se foram feitas todas no mesmo momento. Devem-se
anotar as informações psicológicas colhidas na consulta inicial como: o quanto o
paciente está incomodado com problema apresentado, se deixa de freqüentar alguns
ambientes, se faz tratamento psicológico etc. No caso de abandono de tratamento,
 
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registrar o fato no prontuário e enviar carta registrada (AR) ao paciente. Não deixar
de registrar fotos pré e pós-operatórias das várias etapas cirúrgicas, o que pode
auxiliar, inclusive, a manter os pacientes conscientes da melhora (FERREIRA, 2004,
p. 39-40).
Impressiona o dado relativo à quantidade de processos em que houve a
influência de outro médico, ou seja, o paciente buscou parecer de terceiro sobre a
cirurgia realizada. Percebe-se que, na maioria das vezes, dessa opinião surge o
interesse do paciente em processar seu cirurgião. Recomenda-se ao médico que
receber paciente operado por colega, que analise a questão com muita
responsabilidade. Já o cirurgião que operou um paciente, e este posteriormente vem
afirmando que consultou outro profissional, o qual lhe disse, por exemplo, que a
técnica utilizada na cirurgia é ultrapassada, solicite ao paciente que volte no dito
profissional e peça um relatório por escrito e carimbado das afirmações e/ou
diagnósticos dados ao paciente. Objetiva-se provar as falsas informações.
Quanto ao uso de programas simuladores de resultados, recomenda-se
muita cautela em seu uso, para não haver um dever de resultado “reforçado”, tanto
no caso de cirurgias consideradas estéticas, quanto nas cirurgias consideradas
reparadoras.
No tocante ao Seguro de Responsabilidade Civil, o trabalho não apurou
dados concretos que o contra-indiquem. Todavia, ressalta os posicionamentos do
Conselho Federal de Medicina e demais instituições (ASSOCIAÇÃO MÉDICA
BRASILEIRA, 2003) e é contrário ao posicionamento de autores que o defendem
(GOMES, 2000, p. 158-161 e VIEIRA, 2001. p.158), tendo em vista que o seguro
não impede que o médico seja processado.
Entende-se que é possível esta análise: tendo em vista que o juiz, para fins
de condenação, analisa a capacidade contributiva das partes (CAHALI, 2005. p. 44), e
a seguradora, deve figurar no pólo passivo do processo, vislumbra-se, então, a
 
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possibilidade de aumento de condenações, dos valores das condenações e,


conseqüentemente, do número de processos. Todavia, tal conclusão não pode ser
considerada científica, ante a inexistência de dados apurados nesse sentido.
Por fim, restou clara a distância do entendimento dos desembargadores que
proferiram as sentenças analisadas da realidade da Cirurgia Plástica, que, como as
demais áreas da medicina, lida com a incerta reação do organismo humano, devendo
sua obrigação ser de meio (AVELAR, 2000). Conforme as respostas dadas pelos
juízes no presente trabalho, a aproximação do Poder Judiciário com as Instituições
médicas tem muito a acrescentar a ambas as partes.
Giostri alerta para o risco do desempenho do profissional na defensiva,
receando um processo judicial:

... poderá se insinuar uma tendência cada vez maior em objetivar a


responsabilidade daqueles profissionais, deslocando-se sua área –
que é a da subjetividade para a da teoria do risco, com o
consequente desencadeamento do exercício de uma Medicina
defensiva, na dependência das Companhias de Seguro Médico e
aguçando de vez as tendências indenizatórias, o que inviabilizaria,
cada vez mais, estar a especialidade ao alcance de muitos, bem
como indisponibilizaria ao profissional a necessária liberdade do
exercício de sua arte. (GIOSTRI, 2007, p. 119).

Ressalte-se as complicações pós-operatórias são inerentes à atividade do


profissional da cirurgia plástica. Após esse estudo, teme-se que o cirurgião plástico
ético e responsável tenha sido igualado aos maus profissionais e esteja, de certa
forma, refém do Poder Judiciário, pela cobrança do resultado absoluto. Confirma-se
o posicionamento do artigo “Sou médico, tenho medo”: o cirurgião plástico está
sujeito aos processos e pedidos de indenizações quando não faz os “milagres” que
deles se esperam (ASSUMPÇÃO, 2003).

 
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CONCLUSÃO

Verificou-se que o dever de informação é essencial à prática médica. O


profissional deve expor ao paciente todos os riscos e limites da cirurgia plástica,
inclusive em cumprimento ao princípio da boa-fé objetiva e seus corolários. Deve
sempre dizer a verdade, de forma aberta, transparente e mais completa possível, em
linguagem compreensível.
Deve orientar o paciente quanto às suas expectativas, e também quanto aos
seus deveres, ressaltando os limites da especialidade Cirurgia Plástica. O paciente
deve ter tempo hábil para ler e apreender as informações recebidas, inclusive com
momento para sanar as dúvidas. Somente depois de tudo isso, o consentimento deve
ser fornecido.
Por outro lado, o cirurgião deve permanecer em constante aprimoramento
profissional e respeitar suas competências e limitações. Recomenda-se fortemente
que seja especialista em Cirurgia Plástica, portanto membro da Sociedade Brasileira
de Cirurgia Plástica, uma vez que tal entidade é que confere o título de especialista ao
médico.
O cirurgião deve ser ético no trato com o paciente, na publicidade, e,
sobretudo, com os colegas. Deve objetivar, em primeiro lugar, o bem estar de seu
paciente. Nas palavras do Dr. Adib Jatene, em entrevista televisiva: “o paciente tem
que confiar em que o médico fará o melhor para ele, o paciente, e não para ele, o
médico”.
Desaconselha-se, por hora, a adoção de Seguro de Responsabilidade Civil,
pelos fatos já expostos e porque ele não tem condições de afastar o penoso processo
judicial, posto que somente assegura, de maneira limitada e restrita, questões
financeiras.

 
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Finalmente, conclui-se que, por vezes, os profissionais éticos da cirurgia


plástica tem se mostrado passivos ante as propagandas antiéticas e as condutas dos
maus colegas. Sugere-se a realização de palestras, seminários e debates para juízes,
seus assessores, promotores de justiça e demais membros do Judiciário, sobre a
realidade dessa profissão, abordando temas de complicações e limites da Cirurgia
Plástica.
É uma saída para que o Judiciário desestimule as aventuras judiciais e os
litigantes temerários, principalmente aqueles pacientes que se valem da atual posição
da jurisprudência sobre a cirurgia plástica para auferirem vantagens indevidas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AVELAR, J. M. Cirurgia plástica: obrigação de meio e não obrigação de fim ou


de resultado. São Paulo: Hipócrates, 2000.

ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. Seguro médico: entidades são contra,


2003. Disponível em URL: <http://www.amb.org.br/seguro_medico.php3>.
Acesso em: 21. mai. 2010.

CAHALI, Y. S. Dano Moral. 3. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005.

CAVALCANTI, M A. Consentimento Informado: Por que e como? In: Revista da


Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São Paulo, 2005;20(4):241-244.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO.


Cremesp divulga levantamento inédito sobre cirurgia plástica e
procedimentos estéticos. 2008, Disponível em URL:
<http://www.cremesp.org.br/library/modulos/noticias/pdf/processos_plastica_20
08.pdf>Acesso em: 21. mai. 2010.

D’ASSUMPÇÃO, E. A. Médicos não são Deuses. Belo Horizonte: CIRPLAST,


2003.
FERREIRA, L. M. Cirurgia Plástica: Uma Abordagem Antroposófica. In: Revista da
Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São Paulo, 2004; 19(1):39-40.

FERREIRA, L. M.; HOCHMAN, B. Padronização da Ficha Clinica em Cirurgia


Plástica. In: Revista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, São Paulo,
2003;18(2):56-60.

GIOSTRI, H. T. Erro médico à luz da jurisprudência comentada. 2. ed. Curitiba:


Juruá, 2007.

GOMES, J. C. M.; DRUMOND, J. G. F.; FRANÇA, G. V. Erro médico. 2ª ed.


Montes Claros: Unimontes, 2000.

KFOURI NETO, M. Culpa Médica e o Ônus da Prova. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.

SANTOS, L. V. Responsabilidade civil médico-hospitalar e a questão da culpa


no direito brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2008.

 
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Entendimento Correlato do STJ - 3ª T –


Resp 731078 SP. [on line] 2006 [1 telas]. Disponível em URL: <ww.stj.gov.br>.

VIEIRA, L. C. Responsabilidade Civil Médica e Seguro: doutrina e


jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

 
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VIVÊNCIAS PESSOAIS DO CORPO E INTEGRIDADE FÍSICA

Laís Godoi Lopes1


Mariana Alves Lara2

RESUMO

Tanto os documentos normativos quanto a literatura jurídica encaram o direito à


integridade física como um direito negativo, uma defesa contra agressões externas e
da própria pessoa. Por detrás dessa concepção está a idéia historicamente arraigada
de intangibilidade e sacralização do corpo humano, que estabelece padrões fixos de
vivência da corporeidade. É o corpo visto como um dado e não como construção
pessoal e intersubjetiva. Entretanto, fenômenos que nos últimos tempos têm
desafiado o direito, levantam questionamentos acerca dessa visão do corpo como
acabado e imodificável artificialmente. Os transexuais e os wannabes (pessoas que
querem amputar determinados membros por acreditarem que eles não se adéquam a
sua realidade corpórea) provocam reviravoltas no modo tradicional de pensar o
corpo. Demandam, portanto, uma releitura do instituto da tutela da integridade física,
à luz de uma concepção pós-metafísica da pessoa natural (STANCIOLI), capaz de
abarcar toda a complexidade da vivência pessoal do corpo, que deve ser visto como
uma base biofísica, altamente plástica, passível de ser transformada no que a pessoa
quiser, de acordo com o seu horizonte de sentidos para uma vida boa.

Palavras-chave: Corpo; Pessoa; Integridade Física. Body; Person; Physical Integrity.

                                                            
1 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do grupo Persona,
coordenado pelo Professor Doutor Brunello Stancioli.
2 Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais, integrante do grupo Persona,

coordenado pelo Professor Doutor Brunello Stancioli.


 
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I) Introdução

“Não desejo morrer, mas também não quero viver em um corpo que não
sinto como meu.”
Corine3

A noção de integridade física não tem sido objeto de grandes


problematizações pelo Direito brasileiro. Tanto os documentos normativos quanto a
doutrina parecem encarar o direito à integridade física como um direito negativo,
uma defesa contra agressões externas e da própria pessoa.
O Código Civil, nesse sentido, estabelece que os direitos da personalidade
são irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária (Art. 11).
Também fixa a indisponibilidade do corpo vedando qualquer interferência que
importe uma diminuição permanente da integridade física ou viole os pretensos bons
costumes (Art. 13).
A literatura jurídica, em sua grande maioria, segue nesse mesmo norte de
proteção do corpo até contra atos voluntários do próprio sujeito. Washington de
Barros Monteiro assim interpreta o Art. 13 do Código Civil:

O legislador procura proteger a incolumidade física da pessoa,


resguardando-a de terceiros e de si própria. A não ser que se cuide
de necessidade médica, não pode o indivíduo, por exemplo,
amputar a própria mão, ou doar órgão vital, ou submeter-se a
cirurgia para mudança de sexo. Nada impede, porém, que a pessoa
venda seus cabelos, já que não comprometem a integridade física
do doador.4

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho afirmam:

                                                            
3Wannabe personagem do documentário Complete Obssession, produzido pela BBC.
4MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil 1. Parte Geral. 42ª Ed. São Paulo: Saraiva,
2009. p. 104.
 
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De fato, o direito tutelado é, no final das contas, a higidez do ser


humano no sentido mais amplo da expressão, mantendo-se,
portanto, a incolumidade corpórea e intelectual, repelindo-se as
lesões causadas ao funcionamento normal do corpo humano. (...)
Como já se inferiu, ninguém está autorizado a atentar contra a sua
própria vida, o que compreende a proibição de se automutilar. (...)
O corpo, como projeção da individualidade humana, também é
inalienável, embora se admita a disposição de suas partes, seja em
vida, seja para depois da morte, desde que, justificado o interesse
público, isso não implique mutilação e não haja intuito lucrativo.5

Caio Mário, por sua vez, explica que:

No conceito de proteção à integridade física inscreve-se o direito ao


corpo, no que se configura a disposição de suas partes, em vida ou
para depois da morte, para finalidades científicas ou humanitárias,
subordinado contudo à preservação da própria vida ou de sua
deformidade. A lei não pode placitar a autolesão.6

Em síntese, acredita-se que “O direito à integridade física tem por objeto a


preservação da intocabilidade do corpo físico e mental da pessoa humana.”7 Nessa
lógica, tatuagens, piercings, implante de silicone, cirurgias plásticas, cirurgia para
mudança de sexo e outras modificações corporais radicais seriam ilícitas,
demonstrando a concepção do direito à integridade física como proteção até mesmo
contra a autonomia do titular.
Ressalta-se que a maioria dos autores faz tímidas concessões a respeito de
formas específicas de disposição do corpo. Todavia, os critérios apresentados para
aferir a licitude da intervenção na esfera corpórea (necessidade médica, interesse
público, não ofensa aos bons costumes, não ocasionar mutilação...) são fluidos e
precários em sua fundamentação. A passagem de Paulo Lobo bem ilustra:
                                                            
5 GAGLIANO, Pablo Stolze, e FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral.

Vol. I. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 155


6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral de

Direito Civil. V. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p.250


7 LÔBO, Paulo. Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 148.

 
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Esse direito [à integridade física], como todos os demais diretos da


personalidade, não é absoluto sendo razoável a admissibilidade de
pequenas intervenções no corpo, como a vacinação obrigatória,
ou a extração de sangue para confirmação de doença contagiosa,
ou tratamento sanitário obrigatório, ou a realização obrigatória de
provas para comprovar a inexistência de enfermidades, como
condição de acesso ao trabalho ou a cargos públicos.8

A inconsistência teórica desses limites reside exatamente na arbitrariedade


de se admitir alterações corporais por motivos outros, e não admiti-las pela vontade
autônoma da pessoa, fundamento último de qualquer ordenamento jurídico
verdadeiramente democrático.
Por detrás da perspectiva tradicional está a idéia historicamente arraigada de
intangibilidade e sacralização do corpo humano, que estabelece padrões fixos de
vivência da corporeidade. É o corpo visto como um dado natural.
No Medievo, o Cristianismo informou em grande medida a idéia de
sacralidade do corpo humano, pois este suporte, criação divina e morada da alma,
não podia sofrer lesões, precisava permanecer íntegro. Ademais, a doutrina cristã da
ressurreição dos corpos no fim dos tempos também contribuiu enormemente para a
idéia de intangibilidade. A tradição medieval do Ocidente admitiu a plena
materialidade dos corpos terrestres com todos os seus membros no momento da
ressurreição. Dela decorre uma obsessão maníaca pela inteireza dos corpos
ressuscitados, os quais mesmo no caso de mutilação ou devoração por animais,
deveriam ser totalmente reformados. Essa concepção levou autores como Agostinho
a argumentar que unhas e cabelos cortados ao longo da vida seriam juntados ao
corpo ressuscitado.9

                                                            
8LÔBO, Paulo. Direito... cit. p. 148.
9BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do Ano 1000 à Colonização da América. Trad. Marcelo Rede.
São Paulo: Globo, 2006. p. 409-445. 
 
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A visão mecanicista do corpo, como um todo concatenado e que necessita


de todas as suas partes para ser um hábil instrumento de trabalho, também solidifica
a idéia de ser ele uma esfera quase intocável. Nessa ótica ele deve ser explorado em
todas as suas potencialidades para produzir resultados úteis. Assim, qualquer
empreendimento que a princípio possa reduzir o campo de ação do corpo humano e
diminuir sua utilidade e produtividade – especialmente econômica – tende a ser visto
como inadmissível.
Todavia, tal concepção do corpo como acabado e imodificável
artificialmente, pertencente apenas à natureza, não se sustenta à luz de recentes
formas de vivência da corporeidade, como as cirurgias para mudança de sexo e o
desejo de amputação dos wannabes. É preciso primeiramente entender essas práticas
que buscam adequar a imagem corporal à identidade da pessoa, para depois concluir-
se favoravelmente a uma tutela da integridade física que, não apenas proteja a pessoa
de intervenções não autorizadas, mas, para além, permita a vivência do direito ao
corpo da maneira mais plena possível.

II) Transexualismo

“Eu não me penso neste corpo. Embora eu reconheça que


biologicamente sou do sexo masculino, para mim eu não sou homem.
Foi isso que me fez procurar ajuda. Eu só quero levar a minha vida
normalmente.”
Roberta10

                                                            
10 ARAN. M.; ZAIDHAFT, S.; MURTA, D. Transexualidade: corpo, subjetividade e saúde coletiva. In:

Psicologia & Sociedade, Vol. 20, No. 1, 2008, p. 74.


 
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O transexualismo corresponde a uma incompatibilidade entre a identidade


de gênero assumida por uma pessoa11 e o seu aparato biológico. Caracteriza-se,
portanto, por um “sentimento intenso de não-pertença ao sexo anatômico, sem por
isso manifestar distúrbios delirantes [...] e sem bases orgânicas (como o
12
hermafroditismo ou qualquer outra anomalia endócrina).” Esse fenômeno só
ganhou maior repercussão a partir dos anos cinqüenta, com a possibilidade de
cirurgias e procedimentos de adequação, pelo recurso a avanços médicos e
tecnológicos.
A inadequação do corpo ao gênero almejado e a sensação de nojo do sexo
biológico motivam os transexuais a conformar meticulosamente a aparência.
Aprendizado de trejeitos, composição de vestimentas e acessórios, tratamentos
hormonais, implantes ou retirada de seios, operações de mandíbula e nariz são passos
na transição para o gênero desejado. Integram o processo de assumir-se perante os
outros como indivíduo transexuado. Nesse contexto, a cirurgia de transgenitalização
é o procedimento, ainda irreversível, de assumpção do sexo anatômico compatível
com o novo gênero. Trata-se de uma intervenção possibilitada pelos avanços
biomédicos mais recentes13, que permitem a conversão do pênis em vagina

                                                            
11 A identidade de gênero abrange o sentido psicosocialmente definido de pertencer a um sexo ou
outro - homem ou mulher na dicotomia tradicional. Por sua vez, a orientação sexual figura como a
tendência erótica e afetiva a se relacionar com pessoas do mesmo sexo, do sexo oposto ou de ambos
os sexos. Ressalva-se que não há pesquisas para averiguar que tipo de correlação existe entre opção
sexual e identidade de gênero. (CARDOSO, Luiz Fernando. Inversões do papel de gênero: “Drag Queens,
Travestismo e Transexualismo. In: Psicologia: Reflexão e Crítica, Vol. 18, No. 3, 2005) Todos esses padrões
tendem a ser relativizados, na medida em que, na Modernidade, os papéis sexuais e de gênero são cada
vez mais uma composição livremente escolhida pelo indivíduo. (GIDDENS, Anthony. A
Transformação da Intimidade – Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. 2ª ed. São Paulo: Ed.
Unesp , 2000.)
12 CASTEL, Pierre-Henri. Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno transexual” (1910-

1995). In: Revista Brasileira de História. Vol. 21, No. 41, 2001, p. 77. 
13 A primeira cirurgia de transgenitalização moderna que ganhou notoriedade foi realizada Christian

Hamburger, na Dinamarca em 1952. (CASTEL, Pierre-Henri. Algumas reflexões... cit.)


 
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(vaginoplastia) ou da vulva em genitália masculina (faloplastia), inclusive com a


manutenção da sensibilidade do novo órgão.
No Brasil, essas cirurgias se disseminaram a partir da década de setenta. A
Resolução 1482/97 do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu que caberia
aos hospitais públicos e universitários realizá-las. Foi alterada pela Resolução
1652/02, no sentido de que, a partir de então, a neovaginoplastia poderia ser efetuada
por hospitais públicos e privados. A neofaloplastia, por sua vez, continuou restrita a
hospitais universitários ou públicos em que sejam desenvolvidas atividades de
pesquisa. Em todo o caso, é exigido o acompanhamento psicológico do transexual
pelo período mínimo de dois anos antecedentes à realização da cirurgia.14
O requisito temporal de psicoterapia indicia uma tendência de patologização
do transexualismo que não é exclusividade da cultura nacional. A resolução 1652 do
CFM rotula o transexualismo como “desvio psicológico permanente de identidade
sexual”, em consonância com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados com a Saúde (CIID) 15. Essa lista adotada pela Organização
Mundial da Saúde prevê, dentre os “Transtornos da personalidade e do
comportamento adultos”, as “Desordens de identidade de gênero”, nas quais
enquadra o transexualismo, ao lado das práticas travestitas. Nesse sentido, a cirurgia é
admitida como procedimento terapêutico mais eficaz. Porém, essa perspectiva tem
efeitos perversos. Tratar o transexual como um doente mental é efeito e causa de
discursos técnicos que o inferiorizam e estigmatizam. A anormalidade psicológica
que lhe é atribuída faria dele uma pessoa desacreditada, pouco capaz de
autodeterminar-se e colocar-se com contato com os outros.

                                                            
14Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm Acesso em
30 de maio de 2010.
15Disponível em: http://apps.who.int/classifications/apps/icd/icd10online/ Acesso em 30 de maio

de 2010.
 
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Na medida em que toda identidade pessoal pressupõe o corpo16, a condição


dos transexuais não-operados é uma indeterminação, fonte de um intenso sofrimento
que pode gerar depressão, distúrbios alimentares e tentativas de automutilação e de
suicídio. Não bastassem essas angústias, os estigmas de depravação e patologia com
freqüência relegam os transexuais a um sistema de exclusão social, segregação e
privamento de direitos fundamentais.
A luta por reconhecimento do movimento transexualista desenvolve-se no
sentido de reivindicar não apenas o acesso a cirurgias de redefinição genital e
tratamentos hormonais, mas combater também a patologização17 e a discriminação
econômica, política e social. As correntes mais vanguardistas do movimento
transgênero chegam inclusive a criticar o transexualismo, como expressão de uma
visão dos gêneros como reduzidos a duas formas de vivência sexual definidas pelo
dimorfismo anatômico.18
Logo, a discussão sobre o transexualismo passa pela superação da idéia de
que a identidade de gênero e a orientação sexual são definidas pelo aparato biológico.
As tendências mais modernas indicam que esses são papéis socialmente construídos,
maleáveis e adequado às opções individuais. Nesse sentido, o corpo deve ser passível
de adequações a essas escolhas.

                                                            
16 WILLIAMS, Bernard. Problems of the self. New York: Cambridge University Press, 1999.
17 Nesse sentido, avanços importantes começam a despontar: a França em fevereiro de 2010 tornou-se
o primeiro país do mundo a retirar o transexualismo de sua lista de transtornos psiquiátricos, após
grande pressão dos movimentos transgênero. Disponível em:
http://www.lemonde.fr/societe/article/2010/02/12/le-transsexualisme-n-est-plus-une-maladie-
mentale-en-france_1305090_3224.html Acesso em 30 de maio de 2010.
18 CASTEL, Pierre-Henri. Algumas reflexões... cit

 
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III) Wannabe

“Esse desejo de amputação é algo que eu preciso fazer para mim. É o


meu objetivo e eu espero alcançá-lo. É incompreensível para todos que
estão ao meu redor, mas eu quero isso para minha vida.”19

Wannabe é o nome comumente dado aqueles que desejam amputar


determinados membros, por acreditarem que eles não se adéquam a sua realidade
corpórea. Embora não se saiba o número certo de pessoas que vivenciam essa
experiência, estima-se que totalizem alguns milhares, já existindo sites, blogs e
documentários a respeito do assunto.20 Todavia, essa é uma temática recente, pouco
explorada, que necessita de estudos aprofundados.
Dentre as várias hipóteses de explicação desse fenômeno, a mais aceita é a
ocorrência de incompatibilidade entre a experiência corporal dos wannabes e a atual
estrutura do seu corpo. Haveria uma discrepância entre o corpo real e o que eles
vivenciam. Segundo essa teoria os wannabes sofrem de Body Integrity Identity Disorder
(BIID).21
A imagem corporal é uma representação consciente da forma e estrutura do
corpo, que deriva de várias fontes, como a experiência visual e a tátil. Essa
representação molda as sensações corporais da pessoa (dores, cócegas, prazer...), e
forma a estrutura a partir da qual ela se orienta no mundo. A incompatibilidade entre
o corpo e imagem dele representada, no caso de BIID, pode desaguar na negação da
existência de determinado membro pelo indivíduo.22

                                                            
19 Personagem do documentário Complete Obsession produzido pela BBC. 
20 Existe um documentário da BBC intitulado Complete Obsession, e outro produzido por M. Gilbert,
USA, 2003, chamado Whole.
21 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and the Ethics of

Amputation. In. Journal of Applied Philosophy, Vol. 22, No. 1, 2005. 


22 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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O termo Body Integrity Identity Disorder foi criado em 2005, pelo psiquiatra
Michael First, da Universidade de Columbia em Nova York. Todavia, a primeira
menção a um caso que pode ser enquadrado como BIID data de 1785, quando um
homem pediu a um cirurgião que amputasse sua perna, sem necessidade médica, e
ficou satisfeito com o resultado.23
O desejo de amputação, conforme atestado numa pesquisa com 52 wannabes
realizada pelo psiquiatra Michael First, advém da expectativa de que a cirurgia irá
corrigir a incompatibilidade entre a anatomia da pessoa e o senso que ela tem de si
mesma, a sua identidade, seu verdadeiro self.
Através dos estudos já feitos, como a pesquisa de First, sabe-se que os
wannabes são lúcidos, não são delirantes. Apesar de absolutamente capazes e de
levarem uma vida comum, possuem o sentimento de incompletude e deficiência em
um corpo capaz e, ao contrário, de completude e capacidade após a amputação.
Além disso, mantém uma idéia fixa na retirada do membro indesejado, o que os
levam a desenvolver planos de auto-lesão, e a imitarem em público ou em privado, o
estado debilitado do amputado que gostariam de ser (por exemplo, começam a andar
de cadeira de rodas ou muletas).24
Para a maioria, esses sentimentos emergem na infância ou na adolescência.
Lilly25, uma wannabe francesa, relata que, quando criança, brincava de ser amputada e,
nesse mundo, sentia-se normal, completa. Por muitos anos ela manteve esse desejo
escondido, mas seu marido afirma que já notava sinais “estranhos” no
comportamento dela. A esposa tinha atitudes aparentemente sem sentido, como
enfaixar as pernas quando não havia ninguém por perto. Lilly, que já tentou amputar

                                                            
23 Disponível em: http://biid-info.org/When_was_BIID_invented%3F. Acesso em 30 de maio de
2010.
24 Disponível em: http://biid-info.org/What_are_the_symptoms_of_BIID%3F Acesso em 30 de

maio de 2010.
25 Pseudônimo.

 
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sozinha as pernas por duas vezes, afirma: “Não nasci no corpo correto. Minha mente
não se conecta ao meu corpo como um todo.”26
A noção de imagem corporal da pesquisa de First se aproxima da auto-
imagem de pessoas que querem fazer cirurgias plásticas, por exemplo, para aumentar
os seios. A pessoa sabe que tem seios pequenos, mas idealiza seu corpo com seios
maiores. Ela não se sente confortável com seu próprio corpo.27 Da mesma forma, o
wannabe sabe que tem o membro, mas não se sente confortável com ele e idealiza
outro corpo.
Em 1997, o cirurgião escocês Robert Smith atendeu um paciente que queria
amputar a perna esquerda por achar que ela não fazia parte do seu corpo. Após
consultar psiquiatras, o médico fez a cirurgia, e algum tempo depois o paciente disse
que se sentia muito melhor. O caso foi divulgado na mídia e outras pessoas
apareceram pleiteando a amputação. Todavia, o hospital aconselhou que o médico
não fizesse mais cirurgias semelhantes e hoje nenhum hospital realiza esse tipo de
procedimento.28
Entretanto, essa recusa em realizar a cirurgia não tem o poder de dissuadir
os wannabes a procurarem a amputação por seus meios. Karl29, professor de química,
após fazer todos os cálculos termodinâmicos e de massa dos tecidos humanos,
colocou suas pernas em um compartimento com gelo, mantendo-as ali por seis
horas. Depois, dirigiu calmamente seu carro adaptado com controles manuais até
uma central de emergência. Em poucos dias sua perna começou a escurecer com o

                                                            
26 Disponível em: http://abcnews.go.com/Primetime/Health/story?id=1806125&page=2 Acesso em

30 de maio de 2010.
27 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit.
28 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit.
29 Pseudônimo

 
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tecido congelado morto, e em um mês os médicos não tiveram outra alternativa a


não ser amputar ambas as pernas de Karl.30
Existem diversos meios para se buscar a amputação: através de tiros com
armas de fogo, pagando “cirurgiões” no mercado negro de amputações (os quais na
maioria das vezes não estão habilitados para tais procedimentos), criando espécies de
guilhotina caseira ou até mesmo colocando as pernas sobre os trilhos do trem. No
entanto, todas elas trazem enormes riscos, sendo confirmados casos de morte nessas
tentativas.
Há várias formas de lidar com essa questão: remédios, psicoterapias,
amputação. Todavia, as duas primeiras não se mostraram, até o momento, eficientes
para eliminar a incompatibilidade entre o corpo real e o vivenciado. Por outro lado,
as pessoas amputadas, em geral, se mostraram satisfeitas com o resultado, livres do
incômodo, felizes por terem um corpo adequado à auto-imagem e não
desenvolveram desejo de amputar outras partes.
Tim Bayne e Neil Levy, apontam três argumentos a favor da amputação. O
primeiro é a minimização dos danos, pois alguns wannabes continuarão com seu desejo de
amputar mesmo face à recusa médica em realizar a cirurgia, o que os levará a
procurar meios não seguros, trazendo inúmeras complicações ao seu estado de
saúde.31
Um segundo argumento é a autonomia da pessoa humana. A concepção do
indivíduo do que é o bem, do que é vida boa, deve ser respeitada no contexto
médico. Quando o wannabe manifesta um forte desejo pela amputação, seu pedido é
consciente, autônomo e está cercado pelas informações necessárias, deve ser
permitido ao médico atendê-lo. Pode ser feita uma analogia com a recusa de

                                                            
30Disponível em: http://abcnews.go.com/Primetime/Health/story?id=1806125&page=2 Acesso em
30 de maio de 2010.
31 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit

 
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tratamento por questões religiosas, afinal, se o médico tem o dever de respeitar as


convicções pessoais e não ministrar um tratamento a que o paciente se opõe, como
transfusões sanguíneas, ele também deveria respeitar o desejo do wannabe.32
Os autores apontam duas freqüentes objeções à autonomia. A primeira
consiste na afirmação de que os wannabes não são totalmente racionais, e assim o
pedido não seria autônomo. Todavia, isso não se sustenta, pois conforme constatado,
as pessoas que sofrem de BIID não possuem a capacidade de discernimento
reduzida, não são delirantes nem incapazes, e vivem por décadas com esse
sentimento de inadequação corporal. Um paralelo pode ser feito com pessoas que
buscam cirurgias plásticas. Permite-se que elas idealizem tipos corporais e
modifiquem o corpo mesmo quando isso parece irracional.33
Uma segunda objeção à autonomia é dizer que o wannabe não pode dar um
consentimento informado porque ele não sabe como é ser amputado antes de sê-lo.
Esse argumento é fraco, pois a autonomia exige apenas que a pessoa tenha um
adequado entendimento das conseqüências de sua ação, e é possível ter um
entendimento razoável de como é a vida de um deficiente (e de certa forma o wannabe
já vivencia essa experiência).34
Por fim, o terceiro argumento reside nos efeitos da amputação. Essa análise
parte das seguintes premissas: o wannabe está sofrendo em seu atual estado, a
amputação pode trazer alívio para esse sofrimento, tal alívio não pode ser obtido por
outros meios menos drásticos (como dito, terapia e tratamentos com remédios não
se mostram eficazes) e esse alívio pode compensar o custo da amputação (o custo
deve ser analisado caso a caso). 35

                                                            
32 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit
33 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit
34 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit
35 BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit

 
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Mesmo com esses argumentos algumas pessoas ainda levantam objeções à


amputação. Essa hostilidade deriva da repugnância que surge do fato de alguém
querer retirar o próprio membro. Dennis Canavan, membro do parlamento escocês,
que tentou dissuadir o médico Robert Smith a fazer outras operações de amputação,
afirma: “A coisa toda é repugnante, a legislação precisa agir agora para banir da
legalidade”. Todavia, muitas práticas que não são atualmente indicadores de
transgressões morais já causaram repulsa, como masturbação, inseminação artificial,
casamento inter-racial, tatuagem e piercing.36
Na verdade, a repulsa à amputação encerra um preconceito mal disfarçado
contra os deficientes. Acredita-se erroneamente na impossibilidade de ser feliz e ter
uma vida plena sem um dos membros. Esse fenômeno ora analisado vem
demonstrar exatamente o oposto. A concepção de vida boa, vida digna de ser vivida,
não é e nem poderia ser a mesma para todas as pessoas. Uma determinada visão de
mundo não pode ser imposta aos demais como a melhor. Só a pessoa tem o direito
de escolher como deseja viver.37
Correntes contrárias à amputação dos wannabes alegam ainda que a cirurgia
prejudicaria a coletividade, na medida em que os amputados teriam privilégios em
concursos públicos por serem deficientes, ou pleiteariam benefícios previdenciários
em virtude dessa nova condição. Na verdade isso não é razão bastante para proibir
tal prática, pois bastaria uma adequada regulamentação dessas situações, vedando os
benefícios indevidos. Todo novo direito enseja novas regulações, basta que a
sociedade esteja pronta para fazê-las.
Por fim, destaca-se que, independentemente da origem do desejo de
amputação, se é de fato uma doença ou uma opção pessoal, (vez que a BIID, não

                                                            
36BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By… cit
37KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é o Iluminismo? Trad. Alexandre Morão. In: MORÃO,
Alexandre (Org.). A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1995. 
 
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obstante ser a mais aceita é apenas uma hipótese), e embora a crença sobre o
membro possa ter chegado à irracionalidade, se a deliberação sobre o que deve ser
feito com essa crença é racional, ela deve ser respeitada, como forma de adequação
da realidade corpórea ao (re)fazer da identidade.

IV) Conclusão

O pano de fundo comum a essas experiências é o descompasso entre a


identidade ideal da pessoa e sua experiência corpórea, do que decorre o desejo de
adequação, que pressupõe necessariamente a disposição do próprio corpo.
A legitimidade da conformação corporal justifica-se nos quadros de uma
concepção pós-metafísica de pessoa como ser eternamente inacabado e dotado de
autonomia38. Essa perspectiva impulsiona uma releitura do instituto da tutela da
integridade física, que seja capaz de abarcar toda a complexidade da vivência pessoal
do corpo.
Segundo Brunello Stancioli, a pessoa é constituída de três eixos
fundamentais: autonomia, alteridade e dignidade. Como autorrealização, a dignidade
refere-se à aptidão de a pessoa humana, dotada de autonomia, interagir com o outro e
criar projetos de vida que a conduzam, inclusive, a transcender a realidade fática,
especialmente corpórea, em que se encontra. Além desses pilares a pessoa também é
constituída por valores que ela escolhe conforme seu horizonte de sentido para uma
vida boa.39

                                                            
38 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna o que quiser.
2007. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2007 
39 STANCIOLI, Brunello. Renúncia... cit.  

 
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Por fim, há o corpo, base sensível e suporte da pessoalidade, altamente


plástico, e passível de ser transformado no que a pessoa quiser, de acordo com sua
concepção de bem. Como elemento mediador das experiências intersubjetivas e
conformador da identidade pessoal,40 a corporeidade assume relevância fundamental
no livre desenvolvimento da personalidade – direito a ser reconhecido e assegurado
por qualquer ordenamento jurídico que tenha como centro a pessoa humana e sua
dignidade.41
Nesse sentido, sustenta-se a possibilidade do corpo ser moldado conforme
o fazer e refazer da identidade, afinal, ele é uma construção, e não um dado estanque.
Assim, a amputação e a cirurgia para modificação de sexo devem ser vistas
como condições de possibilidade de vivências particulares do corpo conformes à
concepção de vida boa que aquele indivíduo escolheu para si mesmo. Independente
da causa que originou a incompatibilidade entre o corpo querido e o efetivamente
vivenciado, não havendo outros caminhos aceitos pelos sujeitos, e se o desejo é
autônomo, esses procedimentos devem ser permitidos para que a pessoa possa
construir sua experiência corporal de forma adequada à sua identidade.
Propõe-se, portanto, uma releitura do direito à integridade física, para que
ele seja entendido como um direito ao corpo, de dele dispor e adequá-lo às escolhas
pessoais. Esse conceito, por óbvio, abrange a defesa contra atentados não
autorizados de terceiros, porém não pode ser jamais uma defesa contra atos da
própria pessoa dotada de autonomia.
O direito à integridade física, nos moldes delineados, é um reflexo da tutela
do livre desenvolvimento da personalidade. Os valores que constituem esse processo
que é a pessoa não são inatos, mas sim construídos em um dado contexto histórico e
                                                            
WILLIAMS, Bernard. Problems of… cit.
40
41MOTA PINTO, Paulo. O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade. In: PÁDUA RIBEIRO,
Antônio de et alii. Portugal-Brasil Ano 2000. [s.l.]: Coimbra Editora, 1999.
 
 
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inscritos, muitas vezes, em normas jurídicas sob a epígrafe de direitos da


personalidade. É preciso ter em mente que concretizar esses direitos significa ter uma
postura ativa na sua interpretação, aplicação, vivência ou renúncia.42
Dessa forma, proibir um transexual de fazer a cirurgia redesignativa de sexo,
ou um wannabe de consumar a tão desejada amputação, significa frustrar o projeto de
vida - e de corpo - que eles conceberam para si, configurando-se um atentado contra
suas pessoalidades. Nesse sentido, o direito à integridade física não pode aprisionar o
seu titular, mas, ao contrário, deve possibilitá-lo vivenciar da forma mais plena
possível o corpo e adequá-lo à identidade conforme suas escolhas pessoais. O direito
à integridade física transmuta-se no direito à conformação autônoma do corpo.

V) Referências Bibliográficas

ARAN. M.; ZAIDHAFT, S.; MURTA, D. Transexualidade: corpo, subjetividade e saúde


coletiva. In: Psicologia & Sociedade, Vol. 20, No. 1, 2008, p. 74.

BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do Ano 1000 à Colonização da América. Trad.


Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006, p. 409-445.

BAYNE, Tim e LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and the
Ethics of Amputation. In. Journal of Applied Philosophy, Vol. 22, No. 1, 2005.

CARDOSO, Luiz Fernando. Inversões do papel de gênero: Drag Queens, Travestismo e


Transexualismo. In: Psicologia: Reflexão e Crítica, Vol. 18, No. 3, 2005.

                                                            
42 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ... cit. p. 107
 
540 
 
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Edições Uberlândia e Belo Horizonte

CASTEL, Pierre-Henri. Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno


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FIRST, Michael. Desire for amputation of a limb: paraphilia, psychosis, or a new type of identity
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GAGLIANO, Pablo Stolze, e FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil.
Vol. I. Parte Geral 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade – Sexualidade, Amor e Erotismo nas


Sociedades Modernas. 2ª ed. São Paulo: Unesp, 2000.

KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: Que é o Iluminismo? Trad. Alexandre Morão. In:
MORÃO, Alexandre (Org.). A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70,
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LÔBO, Paulo. Direito Civil. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2009.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil 1. Parte Geral. São Paulo:
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MOTA PINTO, Paulo. O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade. In: PÁDUA


RIBEIRO, Antônio de et alii. Portugal-Brasil Ano 2000. [s.l.]: Coimbra Editora, 1999.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Introdução ao Direito Civil.
Teoria Geral de Direito Civil. V. I. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

 
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Edições Uberlândia e Belo Horizonte

STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se


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DIREITO, CONTRATOS
INTERNACIONAIS,
GESTÃO EMPRESARIAL E
REGULAÇÃO ECONÔMICA

 
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A ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO EM AUXÍLIO DE POLÍTICAS


ECONÔMICAS: A REVISÃO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL
E DA RESOLUÇÃO BACEN 2827/2001

Izes Augusta da Silva Siqueira1


Lívia Vilas Boas e Silva2

RESUMO

A excessiva identidade entre política de Estado e política de governo e a


escassez de recursos públicos têm conduzido à parceria entre a iniciativa privada e a
pública como meio apto a contornar as dificuldades presentes em cada uma dessas
esferas, enquanto agentes isolados, para desenvolver projetos estruturais e, por isso,
fundamentais ao progresso econômico do Brasil.
Dessa premissa parte o presente trabalho, que busca analisar os impactos na
economia decorrentes da Resolução 2.827/2001, editada pelo Banco Central do
Brasil, e da Lei Complementar 101/2000, respectivamente, a regra de
contingenciamento de crédito ao setor público e a lei de responsabilidade fiscal.
Para tanto, nosso estudo se utiliza de importante contribuição da análise
econômica do direito, ao buscar entender não apenas como essas normas evoluíram
historicamente, mas, em particular, como podem vir a evoluir em circunstâncias
diferentes.
Ambientadas em contexto marcado pela necessidade de se limitar gastos
públicos como medida prévia ao controle da inflação que marcou a década de 1980,
essas normas, hoje, sem a devida atualização de valores, acabam por distorcer o
equilíbrio de mercado nas parcerias entre os entes públicos e os privados, gerando
custos extras em financiamentos de projetos e desigualdades concorrenciais.
Pretendemos, dessa forma, mostrar que é possível manter a vigência das
normas e o fim por elas pretendido, desde que excluídas da sua incidência situações
econômicas específicas. Com isso, evitam-se empecilhos ao desenvolvimento
econômico da sociedade brasileira sem uma devida contrapartida positiva que os
justifique.
                                                            
1 Mestranda em Direito Empresarial pela UFMG. 
2 Bacharela em Direito pela UFMG
 
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Palavras-chave: Regulação, Economia, Financiamento; Regulation, Economy, Finance.

INTRODUÇÃO

A Análise Econômica do Direito, também conhecida por AED, em


primeira análise, pode ser caracterizada como a “aplicação da teoria econômica, em
especial, seu método, para o exame da formação, estruturação e impacto da aplicação
das normas e instituições jurídicas”3. Trata-se de um instrumento importantíssimo,
disponibilizado aos juristas para que possam analisar uma situação jurídica (litigiosa
ou não) sob um novo prisma, mais ligado à realidade e despido de diversos dogmas
seculares, morais e religiosos, que revestem o Direito.
Utilizada a princípio pelos economistas para analisarem o impacto
econômico de decisões judiciais na realidade, passou a ser observada pelos juristas a
partir da publicação de um artigo, nos idos de 1960, por um de seus expoentes, o
Professor da Universidade de Chicago Ronald Coase, “The Problem of the Social Cost”
que, apesar de estar mais relacionado a temas econômicos, definiu as premissas
fundamentais de temas como o custo social e os efeitos externos provocados pelas
atividades econômicas, e estabeleceu uma linguagem comum entre as teorias jurídica
e econômica.
No mesmo período, o jurista Guido Calabresi, membro da Universidade de
Yale, publicou seu trabalho “Some thoughts on risk distribution and the Law of torts”, no
qual demonstrou a importância de analisar impactos econômicos da alocação de
recursos para regulação da responsabilidade civil em âmbito legislativo e judicial.

                                                            
3 RIBEIRO, Márcia Carla Pereira, GALESKI Junior, Irineu. Teoria Geral dos Contratos: contratos

empresariais e análise econômica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 53.


 
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Richard A. Posner, juiz da Corte de Apelação dos EUA, publicou sua


primeira obra em 1972, “Economic Analysis of Law”, e influenciou diretamente a
atividade jurisdicional buscando a aplicação da teoria da AED aos casos concretos da
Corte, chamando a atenção e provocando a adesão de outros magistrados ao
movimento. Para Posner, é plenamente possível o exercício da AED na aplicação
jurisdicional, afirmando que direito consuetudinário demonstra maior eficiência que
o direito legislado, tendo em vista a elaboração do primeiro pelo próprio magistrado.
É evidente que o movimento sofreu inúmeras críticas, especialmente nos
EUA, onde ganhou maior visibilidade no momento em que passou a servir como
instrumento de análise de casos no Judiciário norte-americano. As maiores críticas
vieram de dentro do próprio país, notadamente da corrente conhecida como Critical
Legal Studies, de tendência esquerdista e ideologicamente contrária à lógica capitalista
da Análise Econômica do Direito. Entretanto, apesar das duras críticas recebidas,
incluindo a Escola Neoclássica (Austríaca), a AED se estabeleceu como um
movimento sólido e um instrumento de fato eficaz na busca de soluções melhores e
mais factíveis.
Assim, em uma concepção moderna, podemos dizer que a AED é uma
reformulação econômica do Direito que coloca no centro dos estudos jurídicos os
problemas relativos à eficiência do Direito, o custo dos instrumentos jurídicos na
persecução de seus fins e as conseqüências econômicas das intervenções jurídicas4.
Percebe-se claramente o caráter instrumental da Análise Econômica do
Direito, a ser usada como uma ferramenta na busca de soluções que consigam
equalizar ganhos maiores que perdas, para o maior número de pessoas possível,
ligando diretamente a Justiça ao conceito de Eficiência. Trabalha-se com os

                                                            
4 MERCADO PACHECO, Pedro. El analisis Econômico del Derecho. Madrid: Centro de Estúdios

Constitucionales, 1994, p. 34-35. In RIBEIRO, GALESKI. Op. cit., p. 67-68.


 
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elementos valor, utilidade e eficiência, utilizando a ótica econômica para analisar as


diversas situações jurídicas diárias.
A eficiência é o critério mais utilizado pela AED para nortear o estudo de
casos e as decisões, de forma a permitir o maior ganho possível a toda a sociedade,
evitando ao máximo as perdas, trazendo a solução mais eficiente para o caso concreto.
Desvendaremos o conceito de eficiência e sua inserção na realidade
brasileira ao longo deste trabalho, bem como sua aplicação concreta para o auxílio de
políticas econômicas governamentais e maximização dos recursos disponíveis para o
desenvolvimento de grandes projetos e investimentos.

1 – EFICIÊNCIA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL E DIRETRIZ


ECONÔMICA

Em princípio, cabe definir quais são os critérios que melhor explicam a


Eficiência do ponto de vista da Análise Econômica do Direito. Podemos enumerar
três principais Teorias da Eficiência na economia, a seguir:
a) a eficiência estática, proposta por Vilfredo Pareto, propõe que
“uma distribuição de recursos será eficiente se for possível melhorar a
situação de algum dos agentes econômicos sem piorar a situação dos
demais”5;
b) a eficiência dinâmica, teoria desenvolvida por Nicholas Kaldor
e John Richard Hicks, também conhecida como maximização da riqueza,

                                                            
5 MARTINS, Arthur Villamil. O Empresário e a eficiência econômica: uma abordagem interdisciplinar do direito

empresarial a partir da Análise Econômica do Direito. Monografia apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para
aprovação na disciplina Temas de Direito Empresarial: Direito de Empresa e Direito Societário. Belo
Horizonte, 2009, p.11.
 
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na qual se consideram as perdas totais e os benefícios totais envolvidos na


transação. “Quando os benefícios totais superam as perdas totais, a nova
distribuição de recursos escassos entre seus usos concorrentes será a mais
eficiente, devendo ser implementada mesmo a despeito da perda sofrida por
alguém”6;
c) a teoria de Richard A. Posner utiliza-se do conceito de
eficiência enquanto distribuição de recursos tendente a lhes aumentar o
valor. “Esse aumento intencional do valor dos recursos através de uma
distribuição eficiente é que vai sinalizar o que Posner chama de
maximização da riqueza social, o qual poderá ser medido por um critério
monetário, já que o valor aumentado deve ser medido em termos de
‘disposição em pagar’”7 determinada quantia para se obter determinado
produto.
Ao analisar as teorias da eficiência colacionadas acima, percebe-se que
aquela que melhor se ajusta aos preceitos da realidade brasileira, bem como sua
vocação constitucional de justiça distributiva, são as teorias de Kaldor-Hicks e de
Posner, as quais nortearão a condução deste trabalho.
Nota-se claramente a estreita relação entre a maximização de riquezas com a
Ordem Econômica Constitucional, a qual se expressa por meio das normas contidas
no Titulo VII da Constituição da República Federativa do Brasil, notadamente o
artigo 170:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do


trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
                                                            
6 MARTINS. Op. cit, p. 14.
7 MARTINS. Op. cit., p. 17.
 
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II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento
diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e
serviços e de seus processos de elaboração e prestação; (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital
nacional de pequeno porte.
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte
constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País. (Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 6, de 1995)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de
qualquer atividade econômica, independentemente de autorização
de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.8

Pautada na Justiça Social e nos princípios da dignidade da pessoa humana,


valor social do trabalho e da livre iniciativa, a Ordem Econômica Constitucional
busca a melhor distribuição dos recursos na sociedade, de forma que todos tenham
condições de exercer sua cidadania em todas as escalas possíveis, inclusive na
aquisição de bens de consumo e na participação ativa no mercado. Assim, conforme
propõe o caput do artigo 170, colacionado acima, busca-se a maximização das
riquezas (propriedade privada, livre concorrência, livre exercício de qualquer
atividade econômica independentemente de autorização de órgãos públicos) sem
perder de vista as garantias aos direitos fundamentais do homem (função social da
propriedade, defesa do consumidor e do meio-ambiente, redução das desigualdades
regionais e sociais, busca do pleno emprego, tratamento favorecido a empresas de
pequeno porte).

                                                            
8BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Diário Oficial da União, 5 de outubro de
1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>.
Consulta em 20.05.2010.
 
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Entretanto, segundo as teorias da Eficiência de Kaldor-Hicks e Posner, o


Direito não mais precisa se prender a princípios morais e religiosos, deixando para
trás a moralidade retórica do principio “dar a cada um o que lhe é devido”. O que
importa, de fato, é a maximização das riquezas pela eficiência, pura e simples,
propiciando assim a construção da “equação da distribuição de justiça, segundo a
Análise Econômica do Direito, capaz de enfrentar com maior clareza os litígios e
questões surgidas entre os agentes econômicos”9.
Para Posner, a Justiça como eficiência significa:

Un segundo significado de justicia, tal vez el más común, es el de


la eficiencia. Entre otros ejemplos, veremos que cuando los
individuos califican de injusto el hecho de condenar a una persona
sin someterla a juicio, de expropiar sin una compensación justa o
de no obligar a un automovilista a que pague los daños a la
víctima de su negligencia, esto no significa nada más que la
afirmación de que ese comportamiento desperdicia recursos
(véase más adelante § VIII.3). Incluso el principio de
enriquecimiento ilícito puede derivarse del concepto de la
eficiencia (más adelante § IV.14). Y con un poco de reflexión no
nos sorprenderá que, en un mundo de recursos escasos, el
desperdicio debe considerarse inmoral10.

A partir dessa visão, constata-se a importância da aplicação dos maiores e


melhores esforços no sentido de maximizar os recursos disponíveis, buscando a
eficiência na utilização desses recursos e em sua distribuição.
Não é a toa que o princípio da eficiência está presente entre as diretrizes da
atuação da Administração Pública, como um dos pilares do exercício de todas as suas
funções e prerrogativas, seja no próprio âmbito da Administração, seja em sua
relação com o particular, seja em sua atuação direta na sociedade.

                                                            
9MARTINS. Op. Cit., p.18.
10POSNER, Richard. El análisis econômico del Derecho. 4.ed. México, DF: Fondo de Cultura Econômica,
2000, p. 32. In MARTINS. Op. cit., p. 18.
 
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Art. 37. A administração pública direta e indireta de


qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte:
(…)11

O legislador constituinte desejou estabelecer a eficiência como princípio


basilar da Administração Pública por entender ser esta uma forma de coibir abusos,
evitar perdas e gerar melhor aproveitamento da atuação da Administração. Hely
Lopes Meirelles fala em eficiência como um dos deveres da Administração Pública,
definindo-o como “o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições
com presteza, perfeição e rendimento funcional”12. A atuação do agente público não
se limita mais à legalidade de sua atuação, mas também ao exercício de suas funções
com a exigência de resultados positivos e satisfatório atendimento das necessidades
da comunidade e de seus membros.
Para Maria Sylvia Z. Di Pietro, o princípio da eficiência apresenta dois
aspectos, o primeiro em relação ao modo de atuação do agente público, e o segundo
em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública,
sempre com o claro objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do
serviço público.
O Plano Diretor de Reforma do Estado, elaborado em 1995, expressamente
afirmava que

Reformar o Estado significa melhorar não apenas a organização e


o pessoal do Estado, mas também suas finanças e todo o seu
sistema institucional-legal, de forma a permitir que o mesmo

                                                            
11 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Diário Oficial da União, 5 de outubro
de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>.
Consulta em 20.05.2010.
12 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003. In DI

PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 78-79.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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tenha uma relação harmoniosa e positiva com a sociedade


civil. A reforma do Estado permitirá que seu núcleo estratégico
tome decisões mais corretas e efetivas, e que seus serviços – tanto
os exclusivos quanto os competitivos, que estarão apenas
indiretamente subordinados na medida que se transformem em
organizações públicas não estatais – operem muito eficientemente.13
(sem grifos no original)

Desta feita, resta patente a necessidade de um controle eficiente da


Administração Pública, em consonância com os demais princípios constitucionais
presentes no artigo 37 da Constituição da República Federativa do Brasil e implícitos
no texto constitucional, a fim de equalizar os recursos a serem distribuídos na
sociedade e garantir uma atuação pautada na eficiência, moralidade e legalidade,
principalmente.
As Teorias da Eficiência de Kaldor-Hicks e Posner podem e devem ser
aplicadas à Administração Pública como forma de alcançar seus princípios basilares,
como um instrumento de adequação da atuação da Administração aos interesses de
toda a sociedade, especialmente no que tange à prestação de serviços públicos de
qualidade, investimentos sérios e eficazes, organização e atuação isenta e respeito aos
ditames legais.
Enquanto instrumento de análise e decisão, a eficiência conduzirá às
escolhas que beneficiem toda a sociedade, maximizando riquezas e diminuindo as
perdas, seja através da escolha de um financiamento menos oneroso, ou através do
estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada, mas sempre com a intenção de
reduzir os custos da transação econômica, repercutindo em melhorias e ganhos para
toda a sociedade.
Diminuindo os custos da transação, a Administração Pública, em qualquer
ato que executar, torna-se mais eficiente, consegue distribuir os recursos de forma

                                                            
13 DI PIETRO. Op. cit., p. 79.
 
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mais justa (justiça no sentido de eficiência, como define Posner) e maximiza riquezas.
Atende, assim, aos ditames da Ordem Econômica Constitucional, prevista no Título
VII da Constituição da República Federativa do Brasil, equalizando os direitos
fundamentais do cidadão e o exercício da atividade econômica pelos agentes do
mercado.

2 – AS PARCERIAS ENTRE INVESTIDORES PÚBLICOS E PRIVADOS

A participação do ente público em grandes empreendimentos e


investimentos em infraestrutura não deve ser vista como uma mera parceria com o
particular. Ao contrário, a inserção do ente público é fundamental para a condução
dos grandes projetos, garantir sua execução e para atrair mais e melhores
investimentos. Acrescente-se, ainda, o trânsito facilitado em questões burocráticas de
que depende o projeto, seja na obtenção de licenças várias, seja na aprovação junto a
órgãos públicos de outras esferas, seja no conhecimento da estrutura interna de
autoridades governamentais, a participação do ente público pode ser considerada
como um facilitador na execução de grandes projetos, especialmente quando se trata
de grandes obras de infra-estrutura.
São patentes os benefícios que a participação do ente público pode trazer ao
projeto, além, é claro, da confiabilidade que o sócio membro da Administração
Pública traz para o empreendimento, especialmente para investidores, fornecedores,
e para a própria sociedade, que vê com bons olhos a associação entre o público e o
particular para executar grandes obras e empreendimentos.
Tratando especificamente da sociedade, esta entende a associação de entes
públicos e privados como uma espécie de garantia para a execução de projetos até o
seu fim, os quais, muitas vezes, significam uma melhoria significativa em sua vida
 
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particular e em sua comunidade (muitas vezes os benefícios se estendem a toda a


sociedade, em nível nacional). Em função do número excessivo de obras iniciadas
pelo Governo Federal, Estadual e/ou Municipal, e nunca finalizadas, gerou-se um
sentimento de desconfiança por parte da sociedade civil quando o ente público
participa sozinho em determinado empreendimento, no sentido de que aquele
serviço ou aquela obra será deficitária, aquém das expectativas, isso se for
efetivamente prestado o serviço ou se a obra for finalizada.
Assim, a sociedade civil enxerga essa parceria entre o público e o privado
como uma saída para encontrar a efetividade no serviço público, o qual receberia a
aplicação de métodos e a estrutura empresarial da iniciativa privada para gerar uma
eficiência maior na prestação dos serviços públicos e na execução de projetos
importantes para a sociedade, seja de infraestrutura, investimentos ou inovação.
Não somente a sociedade civil compreende os benefícios da associação
entre o público e o privado. A própria iniciativa privada demonstra grande interesse
em se associar com a Administração Pública, por entender que essa parceria lhe
rende benefícios diversos, seja na segurança – ainda que psicológica – que o ente
público concede para executar de fato o projeto, ao participar de determinado
empreendimento, o fluxo de investimentos muito maior quando da participação do
ente público, maior facilidade em captar recursos no mercado, especialmente através
do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento), um conhecimento mais
profundo das estruturas administrativas por parte da própria Administração Pública,
que melhor do que ninguém conhece seus entraves e meandros burocráticos. Além
disso, ter o ente público como sócio impede manobras governamentais a favor de
políticas públicas que prejudiquem consideravelmente ou desestimulem o próprio
empreendimento.
As parcerias entre o público e o privado, normalmente através de
Consórcios e Sociedades de Propósito Específico, mostram-se bem sucedidas, seja
 
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para o público, seja para o privado. Para o ente público representa a participação em
investimentos em setores estratégicos, v.g. energia e transportes, que na maior parte
das vezes não tem condições de assumir sozinho projetos de grande monta, mas que
são essenciais para prover a estruturação do desenvolvimento de todo o país. A
Administração Pública brasileira, com suas imensas obrigações de prover o bem estar
social, ranço do Estado do Bem Estar Social, na educação, saúde, habitação,
saneamento básico, não tem plenas condições de destinar recursos volumosos aos
diversos investimentos necessários ao desenvolvimento da economia e da sociedade
brasileira.
Nesse sentido, a associação ao ente privado figura como uma alternativa à
falta de recursos disponíveis para, por exemplo, custear a infraestrutura do projeto e
a própria mão de obra que atuará naquele empreendimento. Ademais, a estrutura
societária da iniciativa privada, em geral, é mais enxuta e mais ágil, o que facilita
sobremaneira a condução do negócio, no sentido de otimizar recursos e trabalho
para alcançar os objetivos finais de forma mais rápida e eficiente.
Assim, essa simbiose se mostra extremamente benéfica para ambas as
partes, pois passam a ter maior condição de finalizar o empreendimento mais
rapidamente e com maior eficiência, diminuindo custos tanto para a própria
sociedade entre o público e o particular, mas também para toda a sociedade.
Enumerar todas as razões pelas quais a iniciativa privada deseja a
participação da Administração Pública como parceira em seus negócios é uma tarefa
árdua, e poderíamos estender o presente artigo demasiadamente, assim como os
benefícios extraídos pela Administração Pública dessa parceria.
É evidente que não só de benefícios se constitui a participação de um ente
da Administração Pública nos grandes projetos. O regramento excessivo para a
concessão de crédito e garantias gera entraves importantes para o financiamento dos
grandes projetos, tendo em vista as restrições impostas pela Lei de Responsabilidade
 
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Fiscal (Lei Complementar 101/2000, artigo 40, §6º e §7º, I) e pela Resolução
2.827/2001 do Banco Central do Brasil (Regras de contingenciamento de crédito ao
setor público).
Verifica-se, da análise desses regramentos, uma excessiva rigidez quanto à
concessão de garantias pelas entidades da Administração Pública, especialmente para
os entes da Administração Indireta, impossibilitados de receber financiamentos
bancários quando não figurarem como majoritários no projeto, bem como a
impossibilidade das empresas estatais em concederem garantias às suas coligadas.
Isso se deve a uma mentalidade desenvolvida entre as décadas de 1970 e
1980, nas quais verificou-se um abuso exacerbado da estrutura estatal para beneficiar
terceiros, estranhos ao interesse público, resultando na concessão de garantias e
estabelecimento de negócios.
Assim, as legislações elaboradas a partir de meados da década de 1980
(especialmente 1986, com a edição do Decreto 2.300/1986, uma espécie de embrião
da Lei de Licitações – Lei 8.666/1993) refletiram a insegurança sentida em épocas
anteriores através de uma excessiva regulação da Administração Pública, em especial
das empresas estatais, na celebração de contratos, aquisições, contratação de
funcionários, formação de parcerias com o particular, com a edição de leis rígidas e
complexas para a atuação estrita da Administração dentro dos limites da legalidade,
atendendo aos princípios constitucionais contidos no artigo 37 da Constituição da
República Federativa do Brasil.
Entretanto, a mesma Constituição que prevê a limitação para atuação da
Administração Pública, também prevê a atuação da Administração em atividades
econômicas, através das entidades da Administração Indireta – as sociedades de
economia mista e as empresas públicas, em regime de Direito Privado, às quais deve
ser dada igualdade de condições para concorrer com a iniciativa privada.

 
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Em princípio, quando da elaboração da Constituição de 1988 e dos demais


dispositivos legais para a Administração, pensava-se que haveria abuso por parte da
Administração quando de sua atuação em atividades econômicas, utilizando-se de
suas peculiaridades de ente da Administração para se beneficiar ante o particular,
colocando-se em condição de vantagem no momento de obter financiamentos e
garantias governamentais, licenças prévias e para funcionamento, alvarás,
autorizações, aprovações e todas as outras decisões que dependessem do poder
público para serem obtidas.
Com o passar dos anos, as privatizações – especialmente na década de 1990,
o aprimoramento do mercado brasileiro nos últimos anos, principalmente do
mercado de capitais, o fortalecimento de instituições fiscalizadoras da atuação pública
como o Ministério Público, a Polícia Federal e os Tribunais de Contas, contribuíram
sensivelmente para o aperfeiçoamento da estrutura das empresas estatais,
especialmente para a fiscalização de seus negócios e de sua atuação no mercado.
Essas empresas passaram a ser observadas por um número cada vez maior de
pessoas e instituições, sejam investidores, pessoas físicas ou jurídicas, fornecedores,
parceiros, auditores e “fiscais da lei”, o que leva à adequação quase obrigatória aos
preceitos de mercado, competitividade, livre e leal concorrência e à própria lei.
Todavia, a manutenção de leis rígidas para a celebração de contratos, para a
concessão de créditos e financiamentos, para a concessão de garantias institucionais,
para as mais diversas gamas de contratações próprias ao mercado impede um cenário
de concorrência equitativa entre o ente público e o ente privado, sagrando-se o
primeiro com sua atuação bastante limitada perante o mercado, uma excessiva
burocracia e demora em seus procedimentos corriqueiros. O ente privado, por sua
vez, possui uma independência infinitamente maior, sem necessidade de se ater a
princípios especificados em regramentos legais, como é o caso do artigo 37 da
Constituição da República Federativa do Brasil ou limitações à sua liberdade de
 
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contratar, podendo escolher os parceiros e fornecedores que melhor lhe aprouverem,


independente de motivação, justificativa ou autorização legal.
Assim, o objetivo inicial dos normativos legais criados para limitar a
liberdade de atuação da Administração Pública acabou por reverter a lógica da
criação das empresas estatais, que deveriam competir em posição de igualdade com o
particular. Ao invés de se verificar privilégios à Administração Pública, nota-se um
grande desnível de liberdade entre o público e o privado, podendo este último tomar
decisões mais rápidas e eficientes, correspondendo à dinâmica do mercado, ao
contrário das empresas estatais, que em muitos casos dependem de procedimentos
administrativos específicos, autorizações governamentais, atos legislativos e
aprovações que importam em grande demora e, em conseqüência, perda de negócios
estratégicos, rentáveis e, algumas vezes, fundamentais ao cumprimento do objeto
social da sociedade e à sua própria sobrevivência.
Por esses motivos, o ente público tem participado dos projetos na condição
de minoritário, através da formação de consórcios e sociedades de propósito
especifico, ou mesmo novas sociedades em que detém menos de 50% (cinquenta por
cento) do capital social votante. Dessa forma, a atuação da nova estrutura formada
não será regida pelo Direito Público e, sim, pelo Direito Privado, primando pela
liberdade de contratação e atuação sob formas e métodos exclusivamente de Direito
Privado.
Participando as empresas estatais do capital votante de outras sociedades
(ou mesmo consórcios) em percentual inferior a 50% (cinquenta por cento), não
estarão essas sociedades sujeitas aos preceitos do Direito Público, seja através de
autorização dos órgãos superiores, autorizações legislativas, deliberações ministeriais,
limitações legais impostas à atuação da Administração Pública em atividades
econômicas.

 
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O que para alguns pode ser motivo de crítica, para outros é razão de
aplausos, já que participação minoritária do setor público em empreendimentos
liderados pelo setor privado conjuga a celeridade e a competitividade necessárias a
uma atuação satisfatória em mercado, permitindo, ainda, ao público exercer a
fiscalização da utilização dos seus recursos de maneira próxima e minuciosa.
Nosso compromisso, então, passa a ser com a eficiência, que acima
buscamos identificar nas parcerias entre os investidores públicos e privados. E, neste
momento, em reforço dessa mesma eficiência, ressaltamos o que de ineficiente existe
nessa união de forças.

3 – A LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL E A RESOLUÇÃO BACEN


2.827/2001: ANÁLISE DE CASO

A Lei Complementar 101/2000, nacionalmente conhecida como Lei de


Responsabilidade Fiscal, ao estabelecer normas de finanças públicas voltadas para a
responsabilidade na gestão fiscal, buscou conter os excessivos gastos públicos e sua
nefasta repercussão na macroeconomia do país como uma das principais causas da
inflação vivenciada nas décadas passadas.
Nesse sentido, constou da Mensagem Presidencial nº 485, que encaminhou
o projeto à Câmara dos Deputados, tratar-se de uma das “medidas do Programa de
Estabilidade Fiscal – PEF, apresentado à sociedade brasileira precisamente no dia 28
de outubro de 1998, e que tem como objetivo a drástica e veloz redução do déficit
público e a estabilização do montante da dívida pública em relação ao PIB da
economia”.14

                                                            
14 MOTTA, Carlos Pinto Coelho [et al.]. Responsabilidade fiscal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 22
 
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A lei em questão, manifestando preocupação com os fenômenos financeiros


do Estado, dirige-se à União, aos Estados federados, ao Distrito Federal e aos
Municípios, compreendendo as respectivas administrações diretas, bem como
fundos, autarquias, fundações e empresas estatais dependentes, nos dizeres do art. 1º,
§3º, I, “b”.
Ao referir-se, pois, a empresa estatal dependente, a Lei de Responsabilidade
Fiscal cuidou de definir-lhe o conceito, em seu art. 2º, III, como sendo “empresa
controlada que receba do ente controlador recursos financeiros para pagamento de
despesas com pessoal ou de custeio em geral ou de capital, excluídos, no último caso,
aqueles provenientes de aumento de participação acionária”.
Não por acaso a lei em questão excluiu de seu âmbito de incidência as
empresas estatais não dependentes, já que sujeitas ao regime jurídico próprio das
empresas privadas (art. 173 da Constituição da República Federativa do Brasil), com
gestão financeira e orçamentária condizentes com a prática usual do mercado.
Todavia, constam do §6º e do §7º, I, do art. 40 da Lei de Responsabilidade
Fiscal a menção genérica às entidades da administração indireta, conforme transcrito
a seguir:

Art. 40. Os entes poderão conceder garantia em operações de


crédito internas ou externas, observados o disposto neste artigo,
as normas do art. 32 e, no caso da União, também os limites e as
condições estabelecidos pelo Senado Federal.
(...)
§6º É vedado às entidades da administração indireta, inclusive suas
empresas controladas e subsidiárias, conceder garantia, ainda que
com recursos de fundos.
§7º O disposto no §6º não se aplica à concessão de garantia por:
I – empresa controlada a subsidiária ou controlada sua, nem à
prestação de contragarantia nas mesmas condições;
(...)15
                                                            
15 BRASIL. Lei Complementar nº 101. Brasília, Diário Oficial da União, 4 de maio de 2000. Disponível

em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp101.htm>. Consulta em 14.05.2010.


 
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Em lugar da interpretação desses dispositivos conjugados com o art. 1º da


mesma lei, optaram os órgãos governamentais de cúpula por estender o efeito legal
às empresas estatais não dependentes, de modo a ficarem impedidas de conceder
garantias corporativas, na forma de fiança ou aval, em favor de suas coligadas.
Ao longo de 10 anos, o dispositivo legal que antes, pela política de
investimentos adotada no país, não causava maiores elucubrações, na atualidade tem
inviabilizado ou elevado o custo de vários projetos fundamentais para o
desenvolvimento econômico do Brasil.
E, de fato, as mudanças sociais ocorridas alteraram o teor da interferência
desses parágrafos no cotidiano das empresas estatais não dependentes, dos entes da
Administração Pública direta e das demais pessoas, naturais e jurídicas, que com elas
interagem.
A existência de sociedades de economia mista e de empresas públicas tem
como propósito permitir ao Estado atuar na iniciativa privada, explorando atividade
econômica diretamente ou por meio de outras sociedades (art. 2º, §3º, da Lei
6.404/76). O presente trabalho não questiona a validade ou a conveniência dessa
previsão legal, fazendo sua análise a partir da realidade da norma e do
comprometimento de sua efetividade em razão de incongruências, quando
considerada a totalidade do Ordenamento Jurídico.
Partindo desse pressuposto e da necessidade de financiamento para o bom
exercício das atividades econômicas, exemplificamos mudanças sociais ocorridas,
destacando que, no Brasil, ainda não é usual a adoção de projetos estruturados,
também conhecidos como project finance, em que as receitas geradas pelo próprio
projeto constituem a principal garantia para os agentes financiadores, porque inexiste
no país mercado de seguros que forneça garantias consideradas adequadas em face
dos riscos da fase pré-operacional.
 
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Embora a estrutura de financiamento mencionada seja perseguida, hoje os


financiamentos são concedidos a sociedades de propósito específico, constituídas
especialmente para a construção e operacionalização de empreendimentos, sendo
exigidas dos seus acionistas garantias corporativas, na forma de aval ou fiança, no
valor do financiamento concedido, durante toda a fase pré-operacional, ao fim da
qual são substituídas pelas receitas geradas pelo próprio projeto já em operação.
Feitas essas apresentações, pode-se então compreender as implicações da
Lei de Responsabilidade Fiscal em estruturas de financiamento que contam com a
participação de investidores públicos e privados. Na maioria dos casos, a participação
conjunta desses dois setores ocorre em empreendimentos essenciais à continuidade
do crescimento da economia nacional, que demandam grande investimento e que
também envolvem grandes riscos.
Como controladoras, as empresas estatais não dependentes encontram
autorização no §7º, I, do art. 40 da Lei de Responsabilidade Fiscal para concederem
garantias em favor das suas controladas, mas também enfrentam dificuldades de
gestão lenta e pouco competitiva, que afastam o interesse de muitos investidores
privados. Esses entraves, tratados na parte introdutória do presente artigo, têm por si
próprios justificado as novas políticas de parceria incentivadas pelo Estado, não
obstante a eles se somar o impedimento expresso no art. 7º, IV, da Resolução
BACEN 2.827/2001, que veda às instituições financeiras e demais instituições
autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil transferir, a qualquer título, a
responsabilidade direta ou indireta pelo pagamento de dívida a órgãos ou entidades
do setor público. Em outras palavras, essa Resolução veda tanto a concessão de
financiamento a entidades com controle estatal, ainda que não dependentes, quanto o
recebimento de garantias concedidas por essas entidades em favor das instituições
citadas, mesmo que observada a proporção de suas participações societárias.

 
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Como acionistas minoritárias, as empresas estatais não dependentes vêm


encontrando entrave no art. 40, §6º e §7º, I, da Lei de Responsabilidade Fiscal,
impedidas, pois, de conceder garantias em favor dos agentes financiadores, ainda que
observada a proporção de suas participações no capital das coligadas.
Sobre as coligadas, entendemos conveniente destacar que, até 2008, eram
conceituadas no §1º, do art. 273, da Lei 6.404/76, como sociedades de cujo capital a
acionista participava com 10% ou mais sem controlá-la. A partir de então, após a
edição da Medida Provisória 449/2008, convertida na Lei 11.941/2008, a Lei das
Sociedades por Ações passou a conceituar coligadas como “as sociedades nas quais a
investidora tenha influência significativa”, sem, no entanto, controlá-la.
Retomando a discussão, como solucionar o impasse legal identificado na Lei
de Responsabilidade Fiscal quanto a financiamento de coligadas? Exigir dos
financiadores que renunciem à garantia que seria concedida pelos investidores
públicos, assumindo o risco de comprometer o equilíbrio do Sistema Financeiro
Nacional? Ou exigir dos investidores privados que concedam a totalidade da garantia
na fase pré-operacional, assumindo o risco de, beneficiando indevidamente os
parceiros públicos, estimular o desinteresse daqueles investidores pela parceria?
O tema vem ganhando repercussão na medida em que a Lei, tal como posta,
não tem impedido a formação de parcerias entre o capital público e o privado nem a
concessão de financiamentos a grandes projetos levados adiante por essas parcerias,
de modo que, como alternativa à concessão de garantias pelas empresas estatais não
dependentes, têm sido contratados seguros e fianças bancárias, cujos custos elevados
criam uma desvantagem para as estatais em relação às demais empresas do setor
privado.
Nesse ritmo argumentativo, a Secretaria do Tesouro Nacional formulou
consulta à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN sobre a possibilidade
jurídica da concessão de garantia pelas empresas estatais não dependentes a suas
 
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coligadas na proporção de sua participação acionária, apresentando, em específico, a


questão relativa à Eletrobrás – Centrais Elétricas Brasileiras S.A., se, como
participante minoritária nos empreendimentos das Usinas Hidrelétricas do Madeira –
Santo Antônio e Jirau –, respectivamente, com 39% e 40% do capital das sociedades
de propósito específico constituídas, pode conceder garantias corporativas ao
financiamento, na proporção de suas participações.
Em resposta, foi emitido o Parecer PGFN/CAF/Nº2712/2009, datado de
10/12/2009, que concluiu “não existir óbices jurídicos à concessão de garantia pela
Eletrobrás, no limite de sua participação, às sociedades de propósito específico por ela
constituídas com a finalidade de realizar o empreendimento objeto de contrato de
concessão da qual participou, de forma a permitir que atue em igualdade de condições
com as empresas privadas que também criaram aquela sociedade”, fundado na
seguinte argumentação:
a) a legislação pátria criou vedação às empresas públicas e
sociedades de economia mista de concederem garantia a terceiros, com
exceção daquelas ofertadas em benefício de suas controladas e de suas
subsidiárias;
b) essa proibição legal há de ter seu alcance fixado levando-se em
consideração três aspectos: (i) regime jurídico constitucionalmente imposto
às empresas públicas e às sociedades de economia mista, (ii) finalidade da
vedação legal e (iii) natureza e objetivo das sociedades de propósito
específico;
c) dos §§ 1º a 3º do art. 173 da Constituição da República extrai-
se que o regime jurídico constitucional das empresas estatais estabelece sua
sujeição ao direito privado, quando se trata do aspecto relativo ao exercício
em si da atividade econômica, ao mesmo tempo em que estabelece sua
sujeição ao controle estatal, na qualidade de entidades da administração
 
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pública indireta. E é sob a ótica desse art. 173 que se deve examinar todo o
Ordenamento Jurídico infraconstitucional, sob pena de privilegiar
indevidamente as empresas estatais ou as demais sociedades privadas;
d) do § 6º e §7º, I, do art. 40 da Lei de Responsabilidade Fiscal
extrai-se que a finalidade da norma legal é evitar que as entidades da
administração indireta, especialmente as empresas públicas e as sociedades
de economia mista, transformem-se em instrumentos políticos ou
governamentais para a concessão de garantias irresponsáveis, de forma a
assegurar o cumprimento de obrigações contraídas por pessoas físicas ou
jurídicas estranhas àquelas entidades, que com elas não tenham nenhum
vínculo econômico ou societário, ou que apenas possuam alguma ligação
econômica ou societária irrelevante ou sem significação;
e) do art. 9º da Lei 11.079/2004, de editais, de contratos ou da
natureza do projeto, extrai-se que a opção, legal ou contratual, pela criação
de sociedade de propósito específico com participação minoritária de ente
estatal, torna mais efetiva a atuação e o controle estatais, de um lado, e mais
eficiente, de outro, a realização do projeto por parte dos investidores;
f) firmados esses três aspectos, determina-se o alcance da
vedação e da exceção previstas, respectivamente, no §6º e §7º, I, do art. 40
da Lei de Responsabilidade Fiscal, no sentido de também ser possível a
concessão de garantias por empresas estatais não dependentes em benefício
de suas coligadas, observadas como limite as respectivas participações
acionárias. Assim, do regime jurídico híbrido a que se sujeitam as empresas
estatais, com especial atenção para as não dependentes, decorre que a
disciplina da prestação de garantias deve observar a sujeição ao regime
próprio das sociedades privadas e assegurar a atuação competitiva das
empresas públicas e sociedades de economia mista, sem conferir-lhes
 
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privilégios ou impor-lhes vedações excessivas, sob pena de provocar


desequilíbrios sérios no setor econômico em que atuam, e, com isso, vir a
prejudicar ou a beneficiar indevidamente as sociedades privadas
concorrentes.
Portanto, o impasse legal identificado na Lei de Responsabilidade Fiscal
quanto a financiamento de coligadas foi solucionado pelo parecer em comento, que,
consoante termos próprios, cuidou de conferir nova interpretação ao §6º e ao §7º, I,
do art. 40, que “lhes atualize o conteúdo, porém sem modificar-lhes a finalidade”.
Mas, como ressaltado acima, não é a Lei Complementar 101/2000 nosso
único ponto de atenção quanto a fatores legislativos que geram ineficiências nas
parcerias entre o setor público e o privado.
Logo após a publicação daquela Lei em 2000, cuidou o Banco Central do
Brasil de editar a Resolução BACEN 2.827/2001, que consolida e redefine as regras
para o contingenciamento do crédito ao setor público. Sua finalidade segue, até os
dias atuais, a preocupação estampada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, qual seja, a
“redução do déficit público e a estabilização do montante da dívida pública em
relação ao PIB da economia”. Todavia, a Resolução, nos termos do seu art. 1º, dirige-
se “às instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo
Banco Central do Brasil”.
A Resolução BACEN 2.827/2001, no entanto, não tratou de forma distinta
as empresas estatais dependentes das não dependentes, como o fez a Lei de
Responsabilidade Fiscal, conforme se depreende do seu art. 1, parágrafo 1º, I, “c”,
transcrito a seguir:

Art. 1. Limitar o montante das operações de crédito de cada


instituição financeira e demais instituições autorizadas a funcionar
pelo Banco Central do Brasil com órgãos e entidades do setor
público a 45% (quarenta e cinco por cento) do Patrimônio de
Referência (PR), nos termos da regulamentação em vigor.
 
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Parágrafo 1. Para efeito do disposto nesta Resolução, entende-se:


I – por órgãos e entidades do setor público:
(...)
c) as empresas públicas e sociedades de economia mista não
financeiras, suas subsidiárias e demais empresas controladas, direta
ou indiretamente, pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal
e pelos municípios, inclusive as sociedades de objeto exclusivo
(...)16

Nos termos dessa Resolução, as instituições financeiras e demais


instituições autorizadas que integram o Sistema Financeiro Nacional são vedadas de
conceder crédito à Administração Direta ou Indireta, sem distinção, abarcando ainda
as sociedades controladas. Isso, porque o limite estabelecido de 45% do Patrimônio
de Referência já foi alcançado por muitos, se não todos, os entes e órgãos da
Administração Pública.
Por interpretação reversa, essa Resolução permite, no entanto, a concessão
de crédito a coligadas. Permite de um lado, proíbe de outro. Nos termos do art. 7,
IV:

Art. 7. São vedadas às instituições financeiras e demais


instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do
Brasil:
(...)
IV – a realização de qualquer tipo de operação que importe em
transferência, a qualquer título, da responsabilidade direta ou
indireta pelo pagamento da dívida para órgãos ou entidades do
setor público.17

A Resolução, então, veda a concessão de financiamento à Administração


Pública e às suas sociedades controladas, assim como veda o recebimento de
                                                            
16 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução n. 2827. Brasília, Diário Oficial da União, 30 de março

de 2001. Disponível em <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=101056


903&method=detalharNormativo>. Consulta em 14.05.2010.
17 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução n. 2827. Brasília, Diário Oficial da União, 30 de março

de 2001. Disponível em <https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=101056


903&method=detalharNormativo>. Consulta em 14.05.2010.
 
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garantias concedidas por elas em favor das instituições financeiras, ainda que
observada a proporção de suas participações societárias.
Na prática, a Resolução 2.827/2001 e a Lei de Responsabilidade Fiscal têm
apenas contribuído para aumentar o custo nas operações de crédito de sociedades de
propósito específico com controle privado e capital minoritário público ao induzir os
bancos a renunciarem às garantias dos sócios públicos ou ao exigir das sociedades
financiadas a contratação de fianças bancárias.
Duas regras com uma única finalidade, mas sujeitas a tratamento diferente.
Pois as razões que conduziram a consulta à PGFN também foram apresentadas ao
Banco Central do Brasil, a solução encontrada é que não seguiu a mesma lógica.
A PGFN, em seu parecer, deu nova interpretação aos parágrafos de uma lei
complementar, resolvendo a questão para todos os casos semelhantes que
encontrassem a mesma dúvida diante da referida norma. O Banco Central do Brasil
foi mais comedido, criando, por meio da Resolução BACEN 3.835/2010, a seguinte
exceção à regra do art. 7:

Art. 7. (...)
Parágrafo 4. A vedação prevista no inciso IV não abrange a
concessão de garantias por empresas do setor de energia elétrica,
no âmbito federal, estadual, municipal e distrital, a sociedade de
propósito específico por elas constituída, limitada ao percentual de
sua participação na referida sociedade, exclusivamente para
realização de investimentos vinculados ao Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC).18

Ao tangenciar a matéria, o Banco Central do Brasil desconsiderou os


fundamentos aplicados pela PGFN a uma lei complementar, remediando o problema
de forma transitória e individualizada por uma nova Resolução.

                                                            
18BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução n. 3835. Brasília, Diário Oficial da União, 28 de janeiro
de 2010. Disponível em < https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=11000
7644&method=detalharNormativo>. Consulta em 14.05.2010.
 
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A questão que nos resta fazer: isso é eficiente?

4 – CRÍTICA CONCLUSIVA

Chama-nos à atenção, então, o custo de transação já identificado, e ainda


não totalmente solucionado, envolvendo a concessão de financiamento a parcerias
entre o setor público e o privado.
Pareceres que “atualizam” interpretações e exceções a regras desatualizadas
são evidência, se não prova, da ineficiência conseqüente da aplicação da norma.
Em 10 anos, a Lei de Responsabilidade se mostrou tão nociva à questão
aqui estudada, que houve a necessidade de uma revisão da aplicação de seus termos.
Cedo ou tarde, a revisão foi feita e de forma definitiva.
Não obstante, a outra parte do tratamento que se mostrava menos
complexa não foi feita. Antes o contrário, pois o Banco Central do Brasil, ao criar
uma exceção específica à regra de contingenciamento de crédito, criou também uma
disparidade entre sua Resolução e a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Como visto anteriormente, eficiência, no conceito difundido pela Análise
Econômica do Direito, é, no conceito de Pareto, o benefício de alguém sem o
prejuízo de outro, ou, na concepção de Kaldor-Hicks, a maximização da riqueza
social (total), quando são consideradas as perdas totais e os benefícios totais
envolvidos. Onerar projetos em favor de normas sem finalidade ou com finalidade
desatualizada não é, portanto, eficiente. Ou, conforme Posner preceitua, essa má
utilização dos recursos disponíveis pode ser considerada até mesmo imoral.
A solução para o conflito gerado pela letra da Lei de Responsabilidade
Fiscal já foi superado com a interpretação firmada pela PGFN, fundada na
Constituição e seu art. 173. Aguardamos, pois, o Banco Central do Brasil rever sua
Resolução 2.827/2001 com base em argumentos já defendidos por outro órgão
 
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federal. Lembramos, apenas, que lei complementar deve observar dispositivo


constitucional; da mesma forma, uma resolução, enquanto ato administrativo.
Mas a verdadeira solução para as ineficiências na esfera jurídica, seja em
instrumentos normativos ou em jurisprudência, acreditamos, não está na
identificação dos problemas ou nas soluções viáveis, mas sim na aceitação de que o
Direito pode ser corroído pelas ações da sociedade no tempo e, com isso, tornar-se
ineficiente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução n. 2827. Brasília, Diário Oficial da


União, 30 de março de 2001. Disponível em
<https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=101056903&meth
od=detalharNormativo>. Consulta em 14.05.2010.

BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução n. 3835. Brasília, Diário Oficial da


União, 28 de janeiro de 2010. Disponível em <
https://www3.bcb.gov.br/normativo/detalharNormativo.do?N=110007644&metho
d=detalharNormativo>. Consulta em 14.05.2010.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Diário Oficial da União,


5 de outubro de 1988. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>. Consulta
em 20.05.2010.

 
570 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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BRASIL. Lei Complementar nº 101. Brasília, Diário Oficial da União, 4 de maio de


2000. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LCP/Lcp101.htm>. Consulta em
14.05.2010.

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PGFN/CAF/Nº 2712/2009. Nota nº 1695/2009/COAPI/STN, de 08 de dezembro
de 2009. Brasília, 10 de dezembro de 2009.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 21.ed. São Paulo: Atlas,
2008.

MARTINS, Arthur Villamil. O Empresário e a eficiência econômica: uma abordagem


interdisciplinar do direito empresarial a partir da Análise Econômica do Direito. Monografia
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial para aprovação na disciplina Temas de Direito
Empresarial: Direito de Empresa e Direito Societário. Belo Horizonte, 2009.

MOTTA, Carlos Pinto Coelho, SANTANA, Jair Eduardo, FERNANDES, Jorge


Ulisses Jacoby, ALVES, Léo da Silva. Responsabilidade fiscal. Belo Horizonte: Del Rey,
2000.

RIBEIRO, Márcia Carla Pereira, GALESKI Junior, Irineu. Teoria Geral dos
Contratos: contratos empresariais e análise econômica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

TOLOSA Filho, Benedicto. Comentários à nova lei de responsabilidade fiscal. Rio de


Janeiro: Temas & Idéias Editora, 2000.
 
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A ATIVIDADE REGULATÓRIA ESTATAL E OS REFLEXOS DA


ATUAÇÃO DOS CARTÉIS NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA
COLETIVIDADE: DA EFICÁCIA FORMAL À EFICÁCIA MATERIAL NO
EXERCÍCIO DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

Daniela Almeida Campos1

Resumo

O trabalho pretende analisar a atividade interventiva do Estado na ordem econômica


sob o aspecto da regulação, entendida esta como a positivação de normas que devem
nortear a conduta dos agentes econômicos, identificando os contornos do legítimo
exercício de seus direitos. Para tanto, identifica-se a noção de regulação econômica,
enquanto espécie da atividade de intervenção estatal, com o conceito de
administração ordenadora, como parcela da função administrativa que visa a
disciplinar, com o uso do poder de autoridade, os comportamentos dos particulares
no campo de atividades que lhes é próprio, sempre com respaldo legal. O alcance da
atividade regulatória exercida pelo Estado no âmbito econômico é delimitado através
da investigação a respeito dos valores da livre iniciativa e da livre concorrência, que
garantem não só a liberdade de acesso ao mercado, mas também a liberdade de
permanência no mesmo. Destacam-se, nesse contexto, os fins sociais almejados por
essa regulação, uma vez que os direitos fundamentais passam a legitimar toda e
qualquer atuação administrativa na esfera jurídica da cidadania. O cartel será tomado
como conduta representativa de infração contra a ordem econômica, dando-se ênfase
aos reflexos de sua atuação nos direitos fundamentais da coletividade. Será ressaltado
o direito de participação dos cidadãos no processo de formação das decisões
administrativas, com a edição de normas procedimentais que permitam o exercício de
tal direito, caracterizando-se a eficácia formal da função administrativa. Os resultados
conduzirão à constatação da eficácia material da mesma como o atendimento efetivo
aos direitos fundamentais da coletividade e aos princípios constitucionais erigidos em
torno da preservação da dignidade da pessoa humana, identificando-se, assim, o
processo da constitucionalização do direito. A metodologia utilizada no trabalho consiste
na pesquisa teórico-bibliográfica, aliada ao procedimento metodológico do raciocínio

                                                            
1 Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisadora do CNPq. 
 
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dedutivo, culminando em um procedimento técnico de análise textual, temática e


interpretativa.

Palavras-chave: regulação econômica; direitos fundamentais; processo


administrativo.

1. A EVOLUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO E A ATIVIDADE


INTERVENTIVA DO ESTADO

Investigar as origens do Direito Administrativo pressupõe conhecer a


história do próprio Estado, figura onipresente na vida dos cidadãos, os quais, a
depender do período histórico analisado, ocuparam a posição de suas vítimas, ou de
seus beneficiários.
Questão conflituosa, assaz debatida, diz respeito à vocação do Direito
Administrativo na sociedade: seria um Direito do Estado, voltado
predominantemente para a defesa dos interesses estatais, ou seria um Direito da
Cidadania2, entendida esta como a coletividade dos cidadãos integrantes da
comunidade, cujos interesses estariam por ele protegidos? Na atualidade, a resposta
para tal indagação passa, necessariamente, pela análise do que BINENBOJM (2008,
p. 44) denomina “crise dos paradigmas do direito administrativo brasileiro”, que
representa, como adiante se verá, uma reestruturação dos institutos consagrados da
disciplina com vistas à proteção e realização dos direitos fundamentais da
coletividade.

                                                            
2 A expressão, utilizando a palavra “Cidadania” no sentido subjetivo, como substantivo coletivo de

cidadão, comum de dois gêneros, pode ser encontrada na tese de doutoramento do eminente Prof.
Márcio Alexandre da Silva Pinto, intitulada “Evolução do Direito Público da Cidadania”. Neste
trabalho, a palavra, por vezes, é usada com esta conotação, indicando o conjunto de cidadãos que
integram a sociedade.
 
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Historicamente, o Direito Administrativo carrega o fardo de ter sido, por


muito tempo, um Direito do Estado, criado pelo Estado e voltado para persecução
de seus interesses. Tal fato pode ser explicado pela influência da estrutura estatal
encontrada no período que antecede o seu surgimento: o Estado Absolutista. Em
tempos de Absolutismo, o Estado não se submetia à ordem jurídica, pois se colocava
em patamar superior à mesma. Ademais, a figura do Estado confundia-se com a
figura do governante, e inexistia separação entre o Direito Público e o Direito
Privado, pois o Estado detinha o controle de todas as esferas da vida dos cidadãos.
Por conseguinte, neste momento histórico, os cidadãos ocuparam a posição de
vítimas do autoritarismo do ente estatal.
Em finais do século XVIII, inicia-se a construção sistemática do chamado
Estado de Direito, cujas principais características podem ser assim descritas:
exigência de um conjunto de Direitos Fundamentais, aos quais o Estado deve
obediência, e os quais deve garantir aos cidadãos; primazia do princípio da legalidade,
o que evidencia que o Estado não está acima da ordem jurídica; separação das
funções estatais, outrora inexistente, também como meio de garantir a submissão do
Estado à ordem jurídica (informação verbal)3. FARIA (2007, p.24) elenca, ainda,
como funções básicas do Estado de Direito, a defesa nacional, a política externa, a
manutenção da ordem e da segurança pública, a prestação jurisdicional e a
implantação de infra-estrutura básica indispensável ao desenvolvimento econômico.
No contexto do Estado de Direito estão as origens do Direito
Administrativo, pois, pela primeira vez, encontrou-se a função administrativa como
uma função especializada do Estado. O Estado de Direito estruturava-se como
Estado Liberal e, por conseguinte, preocupava-se, predominantemente, com a

                                                            
3 Trecho da palestra do Prof. Florivaldo Dutra de Araújo sobre o papel do Direito Administrativo na
relação Estado-cidadão e suas tendências, apresentada no IV Encontro de Direito Público da
Universidade Federal de Uberlândia, em Uberlândia, MG, novembro, 2009.
 
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garantia da liberdade e da propriedade, atendendo, dessa forma, aos anseios da


burguesia, ávida pela conquista do lucro auferido a partir da livre circulação das
riquezas.
O Direito Administrativo nasce, então, arraigado no autoritarismo do
período histórico precedente. Nasce, portanto, como um Direito do Estado,
acentuando os direitos da Administração, em detrimento dos cidadãos. Sua
sistematização centra-se em torno da noção do ato administrativo, enquanto decisão
unilateral da Administração Pública que impõe obrigações aos administrados. O
procedimento administrativo, caminho através do qual eram tomadas as decisões
administrativas, foi deixado de lado. Toda admiração foi erguida em torno da idéia da
discricionariedade administrativa, revelando o poder da Administração de atuar com
liberdade, conforme os ditames da ordem jurídica, determinado a melhor conduta a
ser adotada pelo administrador diante do caso concreto.
Segundo BINENBOJM (2008, p.40),

A idéia de uma origem liberal e garantística do direito


administrativo, forjada a partir de uma milagrosa submissão da
burocracia estatal à lei e aos direitos individuais, não passa de um
mito. [...] Nesse contexto, é correto afirmar que a dogmática
administrativista estruturou-se a partir de premissas teóricas
comprometidas com a preservação do princípio da autoridade, e não
com a promoção das conquistas liberais e democráticas. O direito
administrativo, nascido da superação histórica do Antigo Regime,
serviu como instrumento retórico para a preservação daquela
mesma lógica de poder.

A intervenção mínima do Estado Liberal na vida privada resultou em uma


defasagem completa no atendimento às necessidades da cidadania. Tal fato despertou
a sociedade para a urgência de outra forma de atuação estatal: a atuação interventiva,
não só como forma de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, mas,

 
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principalmente, de promover tais direitos através de prestações positivas. Nesse


sentido, as palavras de FARIA (2007, p. 24):

O intervencionismo não é característica de Estado autoritário. É,


ao contrário, decorrência de estado democrático de direito. Depois
do liberalismo inspirado na Revolução Francesa, verificou-se que o
Estado não poderia ser mero assistente do comportamento da
sociedade. Seria necessária a sua intervenção sempre que se
verificassem abusos contra o interesse coletivo.

A necessidade de intervenção do Estado em diversos setores da sociedade


fomentou o surgimento de questionamentos a respeito do papel exercido pelo
Direito Administrativo. É chegado, portanto, o momento de responder à indagação
inicial deste capítulo: seria o Direito Administrativo um Direito do Estado ou um
Direito da Cidadania ? Como exposto, este ramo do Direito carrega o fardo de ter
nascido como um direito do Estado, no entanto, enfrenta o desafio de estruturar-se,
na atualidade, como um direito dos cidadãos, vocacionado ao respeito de seus
direitos fundamentais e ao provimento de suas necessidades sociais.
Assim configura-se a chamada “crise dos paradigmas do direito
administrativo brasileiro” (BINENBOJM, 2008, p. 44), momento em que as velhas
estruturas são questionadas e ganham extremo relevo as discussões em torno da
participação dos cidadãos no exercício da função administrativa, principalmente no
que respeita aos limites constitucionais que os direitos fundamentais representam
para o agir administrativo do Estado.
Nesse contexto, a intervenção do Estado na ordem econômica merece ser
destacada, uma vez que a manutenção do equilíbrio desta é fundamental para o
respeito aos postulados básicos em que se funda, quais sejam, a valorização do
trabalho humano e a livre iniciativa, assim como para a garantia da dignidade da
pessoa humana, erigida a fundamento da República, e de tantos outros direitos
fundamentais da coletividade. Avulta de importância a intervenção realizada
 
576 
 
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mediante a regulação do setor econômico, responsável pela delimitação do campo


legítimo de exercício de direitos pelos particulares, em prol do conjunto de direitos
difusos de toda a cidadania.

2. A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA

Segundo MOREIRA (2007, p. 4),

Entende-se a intervenção econômica como toda e qualquer


conduta estatal (comissiva ou omissiva) que vise a alterar o
comportamento econômico espontâneo dos agentes privados, seja
com fins de prestígio ao mercado concorrencial, seja com fins
estranhos ao próprio mercado concorrencial (mas vinculados ao
interesse público, tal como definido em lei).

A noção de intervenção estatal na ordem econômica sempre induzirá à


“inserção de um terceiro no mercado” (MOREIRA, 2007, p.3), que poderá ocorrer
de formas distintas, a depender da atividade desenvolvida pelo Estado na economia
privada.
CARVALHO FILHO (2008, p. 812) identifica duas formas do que
denomina “atuação do Estado na ordem econômica”. Segundo o autor, o Estado
pode atuar como “agente regulador do sistema econômico”, criando normas,
estabelecendo restrições e fazendo um diagnóstico social das condições econômicas.
Seu papel, nessa posição, assemelha-se a de um “fiscal da ordem econômica
organizada pelos particulares”, identificado, portanto, como “Estado Regulador”. De
outro lado, pode também atuar executando atividades econômicas que, em princípio,
estão destinadas à iniciativa privada. Nesse ângulo, exerce o papel de “Estado
Executor”.

 
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Estado Regulador é aquele que, através de regime interventivo,


se incumbe de estabelecer as regras disciplinadoras da ordem
econômica com o objetivo de ajustá-la aos ditames da justiça
social. [...] Entretanto, o Estado também age exercendo, e não
apenas regulando, atividades econômicas. (CARVALHO FILHO,
2008, p.812, destaque do autor)

Enquanto Estado Regulador, “cabem-lhe três formas de atuar: a de


fiscalização, e de incentivo e a de planejamento.”

A de fiscalização implica a verificação dos setores econômicos


para o fim de serem evitadas formas abusivas de comportamento
de alguns particulares, [...] O incentivo representa o estímulo que o
governo deve oferecer para o desenvolvimento econômico e social
do país, [...] planejar no texto constitucional significa estabelecer
metas a serem alcançadas pelo governo no ramo da economia em
determinado período futuro. (CARVALHO FILHO, 2008, p.812-
813).

O Estado Executor, por seu turno, pode explorar diretamente as atividades


econômicas através de seus órgãos internos, ou pode criar pessoas jurídicas a ele
vinculadas, explorando indiretamente tais atividades. Ressaltando o aspecto social da
intervenção estatal na economia, afirma CARVALHO FILHO (2008, p.808):

Com esse tipo de atuação, o Estado procura garantir melhores


condições de vida aos mais fracos, sem considerar seu status no
mercado de trabalho, e ainda corrige o funcionamento cego das
forças de mercado, estabelecendo parâmetros a serem observados
na ordem econômica. De todos esses fatores, importa que,
intervindo na economia, o Estado, por via de conseqüência,
atende aos reclamos da ordem social com vistas a reduzir as
desigualdades entre indivíduos. (destaque do autor)

BANDEIRA DE MELLO (2009, p.789) leciona no mesmo sentido,


identificando, entretanto, três modos pelos quais a interferência do Estado na ordem
econômica pode ocorrer: através do conhecido “poder de polícia” estatal, mediante a
edição de leis e atos administrativos para executá-las; através de sua própria atuação
 
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empresarial, “mediante pessoas que cria com tal objetivo” e, finalmente, através de
incentivos à iniciativa privada, “estimulando-a com favores fiscais ou financiamentos
[...] ”.
Assim, no tocante à atividade interventiva do Estado na economia privada,
tendo como base o desenvolvimento doutrinário da matéria – cujo fundamento
encontra-se na ordem constitucional brasileira – pode-se afirmar que representa o
gênero, do qual a intervenção direta realizada por meio do exercício da atividade
econômica pelo próprio Estado, e a intervenção indireta, configurada através da
edição de normas que visam a regular e delimitar o âmbito da legitimidade do
exercício de direitos pelos particulares, são suas espécies. Esse o posicionamento de
MOREIRA (2007), cuja doutrina merece acolhida, para que se possa então delimitar
a alcance e as principais características da atividade regulatória exercida pelo Estado
no âmbito antitruste.

2.1. Regulação Econômica como Espécie de Intervenção Estatal: A


Administração Ordenadora

Consoante afirmado, MOREIRA (2007) toma a intervenção do Estado na


economia como um conceito abrangente, que abarca as espécies “regulação” e
“intervenção em sentido estrito”4.

                                                            
4 “Propõe-se uma definição restrita de regulação, limitada ao estabelecimento de normas (gerais e
abstratas, mas também na condição de preceitos-medida ou de atos concretos) que sujeitem terceiros
ao seu cumprimento (e respectivas sanções). Regulação econômica é a positivação de normas para o
atingimento de alguma finalidade econômica. Inclui-se no conceito a formulação de princípios e de
regras; de normas de estrutura e normas de conduta. Já a intervenção em sentido estrito é a atuação
material direta do interventor estatal no espaço econômico reservado às pessoas privadas. Dá-se
através do exercício direto de atividade econômica no domínio econômico privado.” (MOREIRA,
2007, p.3) 
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Na intervenção exercida por meio da atividade regulatória do Estado,


portanto, são postas as bases normativas que devem nortear a conduta dos agentes
econômicos, identificando os contornos do legítimo exercício de seus direitos. Como
objetivos, buscam-se a manutenção do equilíbrio da ordem econômica, o respeito aos
seus princípios e a promoção de direitos constitucionais fundamentais dos cidadãos,
que se colocam como interesse primário do Estado, a direcionar todo o exercício da
função administrativa.
Diferentemente, na intervenção “em sentido estrito”, o Estado exerce
atuação empresarial concreta, inserindo no mercado um “novel fato econômico”,
responsável por forçar a adoção de condutas tais pelos demais agentes econômicos
que não existiriam caso a intervenção não se efetivasse. (MOREIRA, 2007, p. 5)
Com relação às conseqüências de cada espécie de intervenção econômica,
MOREIRA (2007, p.7) afirma serem, em tese, as mesmas: ambas alteram o
comportamento dos demais agentes econômicos que compõem o mercado, no
sentido de adequá-lo aos contornos jurídicos da ordem econômica, ou reestruturá-lo
de modo a evitar prejuízos diante do poder econômico do novo “empresário”.
Importante, a esse ponto, ressaltar o alcance da atividade regulatória
exercida pelo Estado no âmbito econômico. O valor social da livre iniciativa5, além
de constituir-se em fundamento da ordem econômica brasileira (CR, art. 170, caput),
apresenta-se também como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil
(CR, art. 1º, IV), ao lado, v.g., da cidadania e da dignidade da pessoa humana.
Segundo BRUNA (1997, p.134), através da liberdade de iniciativa garante-se
não só a liberdade de acesso ao mercado, mas também a liberdade de permanência
no mercado. Dessa forma, o direito à liberdade de iniciativa está diretamente ligado
                                                            
5 “A livre iniciativa constitui-se no direito de acesso ou decesso ao mercado. Assegura, aos agentes

econômicos, liberdade para escolherem a atividade que desejam empreender, bem como administrá-las
segundo suas próprias estratégias empresariais.” (VALÉRIO, 2006, p.65)
 
 
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ao direito à livre concorrência, princípio cuja observância se faz imprescindível para o


cumprimento do fim de toda atividade econômica, qual seja, assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social. Nesse sentido, as palavras
esposadas pelo autor:

Livre iniciativa e livre concorrência são, pois, princípios


intimamente ligados. Ambos representam liberdades, não de
caráter absoluto, mas liberdades regradas, condicionadas, entre
outros, pelos imperativos de justiça social, de existência digna e de
valorização do trabalho humano. Assim, o que a Constituição
privilegia é o valor social da livre iniciativa, ou seja, o quanto ela pode
expressar de socialmente valioso. Da mesma forma, a livre
concorrência é erigida à condição de princípio da ordem
econômica não como uma liberdade anárquica, mas sim em razão
de seu valor social. A extensão de tais liberdades dependerá de sua
análise conjugada com os demais objetivos e princípios, não só da
ordem econômica mas da Constituição co um todo. (BRUNA,
1997, p.136)

É através da livre concorrência6 que se estimula a competitividade das


empresas, resultando em aprimoramento tecnológico e redução de custos. É também
por meio de sua garantia que se restringe o abuso da liberdade de comércio e
indústria, impedindo o desequilíbrio no funcionamento dos mercados. Garantindo-a,
portanto, garante-se o direito à livre iniciativa, cuja realização depende do equilíbrio
do mercado. Nesse processo, os consumidores são os principais beneficiados.
Assim, pelo princípio da livre iniciativa, constitui um direito de todo
cidadão o exercício de qualquer atividade econômica, excetuando-se, é claro, aquelas
atividades que a própria Constituição reservou à exploração monopolística do Estado
– e que estão descritas no artigo 177 da Carta Magna -, cuja exploração pelos
particulares depende de delegação do Poder Público. Assim o demonstra a redação
                                                            
6Segundo VAZ (1993, p.27), “A noção tradicional de concorrência pressupõe uma ação desenvolvida
por um grande número de competidores, atuando livremente no mercado de um mesmo produto, de
maneira que a oferta e a procura provenham de compradores ou de vendedores cuja igualdade de
condições os impeça de influir, de modo permanente ou duradouro, no preço dos bens ou serviços.” 
 
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do artigo 170, parágrafo único, da Constituição da República: “É assegurado a todos o


livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos,
salvo nos casos previstos em lei.”

Isto significa que a Administração Pública não tem título jurídico


para aspirar a reter em suas mãos o poder de outorgar aos
particulares o direito ao desempenho da atividade econômica tal
ou qual; evidentemente, também lhe faleceria o poder de fixar o
montante da produção ou comercialização que os empresários
porventura intentem efetuar. De acordo com os termos
constitucionais, a eleição da atividade que será empreendida assim
como o quantum a ser produzido ou comercializado resultam de
uma decisão livre dos agentes econômicos. O direito de fazê-lo lhes
advém diretamente do Texto Constitucional e descende, mesmo, da
própria acolhida do regime capitalista, para não se falar dos
dispositivos constitucionais supramencionados. [...] Deste universo
só estão arredadas as atividades econômicas que a própria
Constituição, no art.177, colocou sob monopólio estatal.
(BANDEIRA DE MELLO, 2009, p.790-792, destaques do autor)

É exatamente nesse contexto que atua a atividade regulatória do Estado.


Segundo FORGIONI (1998, p.230), quando a autoridade antitruste autoriza ou
coíbe comportamentos dos agentes econômicos, os quais poderiam resultar em
prejuízos à livre concorrência, ela está justamente concretizando o princípio da livre
iniciativa e da livre concorrência. Para VALÉRIO (2006, p.66), “a ação estatal de
limitar a liberdade de iniciativa procura, por mais paradoxal que se possa parecer,
assegurar essa liberdade a todos.”
Assim sendo, todos têm direito à liberdade de iniciativa econômica, desde
que, observados os contornos constitucionais, seu exercício se conforme aos limites
impostos pela regulação estatal, enquanto atividade preventiva de controle das
estruturas de mercado. (VALÉRIO, 2006, p.69)
Delimitado o alcance da regulação estatal na ordem econômica, importante
trazer à baila conceito assaz pertinente, com origem no direito alemão, desenvolvido

 
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na doutrina brasileira pelo eminente jurista SUNDFELD (2003), a partir das bases
delineadas pelo ordenamento jurídico interno: a administração ordenadora.
O conceito nasceu em oposição à noção de “poder de polícia”, expressão
utilizada para designar a atividade da Administração Pública voltada à restrição da
liberdade dos indivíduos no que se refere ao exercício de alguns de seus direitos.
Segundo BANDEIRA DE MELLO (2009, p.815), o poder de polícia pode ser
compreendido em dois sentidos: em sentido amplo, referindo-se à “atividade estatal
de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos”, e
em sentido estrito, relacionando-se às intervenções gerais e abstratas do Poder
Executivo, “destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao
desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais.”
A utilização da expressão “poder de polícia”, para SUNDFELD (2003,
p.11), envolve terrível problemática, principalmente pelo caráter autoritário que a
mesma suscita. Seu surgimento esteve ligado ao ideal do Estado mínimo, que
discordava da intervenção estatal na economia, e pugnava pela imposição de limites
negativos à liberdade e à propriedade dos cidadãos. Superada a fase do liberalismo
clássico, a mudança na atuação do Estado foi significativa, conforme demonstrado
nos capítulos iniciais deste trabalho. As funções administrativas foram ampliadas
sobremaneira, surgindo o assim chamado Estado Social, preocupado em prover à
coletividade seus direitos fundamentais.
A noção de administração ordenadora surge, portanto, para solucionar o
conflito gerado entre a atividade interventiva do Estado, historicamente repressora, e
os limites impostos à mesma pelo princípio da legalidade, que passou a condicionar a
legitimidade de toda e qualquer atuação administrativa na esfera jurídica da cidadania.

Enquanto a noção de poder de polícia surgiu para realçar o


suposto poder de a Administração interferir na liberdade e
propriedade, regulando-as em nome da boa ordem da coisa pública, a
 
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de administração ordenadora nasce justamente para negá-lo – e


para deixar bem estampada a negativa. (SUNDFELD, 2003, p.18,
destaque do autor)

SUNDFELD (2003, p.20) conceitua a administração ordenadora como “a


parcela da função administrativa, desenvolvida com o uso do poder de autoridade,
para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares
no campo de atividades que lhes é próprio.”
Dessa forma, o conceito de administração ordenadora equivale ao conceito
de regulação, definido por MOREIRA (2007) como espécie do gênero intervenção
estatal na economia. Tal conclusão prova-se pelas palavras de SUNDFELD (2003, p.
25) ao analisar a interferência do Estado na esfera privada:

A interferência da Administração Pública no campo privado existe


em três modalidades distintas: a) através de estímulos à iniciativa
privada, para induzi-la em certa direção; b) quando assume
atividade dos particulares, passando a atuar em substituição a eles;
c) pela ordenação de seus comportamentos, através de comandos
cogentes, derivados do poder de autoridade (administração
ordenadora).

A equivalência de conceitos, entretanto, ocorre quanto a um dos modos de


intervenção na vida privada adotados pela administração ordenadora, pois, segundo
SUNDFELD (2003, p. 26), esta pode se dar de quatro formas: através da constituição
de direitos privados por ato administrativo; através da regulação administrativa do exercício
dos direitos titularizados pelos particulares, os chamados condicionamentos administrativos
de direitos – cuja análise interessa ao presente estudo -; através, ainda, do sacrifício de
direitos dos particulares e, finalmente, das prestações dos particulares em favor da
Administração.

 
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2.2. Condicionamentos Administrativos de Direitos: A Regulação


Exercida pelo Estado na Ordem Econômica

Partindo da conclusão acima esposada, tem-se que a administração


ordenadora, através dos condicionamentos administrativos de direitos, define o
campo legítimo de exercício dos direitos pelos particulares. No âmbito antitruste,
cuja análise o presente estudo se presta a realizar, os condicionamentos
administrativos de direitos equivalem à regulação exercida pelo Estado sobre a ordem
econômica, mais especificamente, sobre a conduta dos agentes econômicos, visando
a delimitar o âmbito do exercício lícito de seus direitos constitucionalmente
garantidos.

Os condicionamentos administrativos são as situações subjetivas


passivas, impostas pela lei e controladas pela Administração (ou
impostas pela Administração Pública, com base em lei, e por ela
controladas), aos titulares de direitos, para definir seu campo de
legítimo exercício, traduzidas em deveres de não fazer (limites do
direito), fazer (encargos do direito) ou suportar (sujeições).
(SUNDFELD, 2003, p. 54)

O autor divide, portanto, os condicionamentos administrativos de direito


em três espécies. A primeira são os limites dos direitos, que representam deveres de
abstenção para os particulares. Na seara antitruste, por exemplo, o poder de
desenvolver atividade econômica, garantido constitucionalmente pelo princípio da
livre iniciativa, é limitado pela proibição da conduta que resulte em infração contra a
ordem econômica.
A segunda espécie, consistente nos encargos do direito, representam obrigações
positivas para os particulares, vinculadas ao exercício de determinados direitos. No
que toca à atividade antitruste estatal, pode-se identificar como encargo do direito à

 
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liberdade de exercício da atividade econômica a função social que deve ser cumprida
pela mesma.
Segundo BRUNA (1997, p.140), a função social da propriedade dos bens de
produção deve ser encarada numa perspectiva dinâmica, uma vez que obriga os
titulares dos mesmos a “dar-lhes destino socialmente útil, que tenha em vista não
somente os interesses individuais do proprietário, mas também os interesses da
coletividade.” Dessa forma, o exercício da atividade empresarial se legitima a partir
da consecução de objetivos sociais, e não somente pelo alcance de interesses
particulares, representados pelo lucro dos agentes econômicos. Nesse sentido,
ilustres as palavras esposadas pelo autor:

A liberdade de iniciativa empresarial, portanto, porque inserida no


contexto constitucional, há de ser exercitada não somente com
vistas ao lucro, mas também como instrumento de realização da
justiça social – da melhor distribuição de renda – com a devida
valorização do trabalho humano, como forma de assegurar a todos
uma existência digna. [...] Isso equivale a dizer que o
estabelecimento de uma ordem econômica, que tem por objetivo a
realização da justiça social, através da proteção do consumidor, da
busca do pleno emprego, da redução das desigualdades sociais,
entre outros, condiciona não só a ação do Estado, mas as ações de
toda sociedade. (BRUNA, 1997, p.141)

O não cumprimento da função social, portanto, é capaz de fazer incidir em


ilicitude aspectos do exercício da atividade econômica. Exemplos são as penas que
incidem sobre os empregadores, detentores dos meios de produção, que
desrespeitam normas trabalhistas, violando, dessa forma, a valorização do trabalho
humano, um dos fundamentos da ordem econômica, erigido sobre a garantia da
dignidade da pessoa humana.
Importante ressalva, entretanto, deve ser feita: tal função social não deve ser
absolutizada, pois, como afirma COMPARATO (apud BRUNA, 1997, p.141), não
significa que “toda companhia se transforme em órgão público e que tenha por
 
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objetivo primordial, senão único, o vasto interesse público”, apenas deve-se dar
espaço aos deveres sociais constitucionalmente estabelecidos.
Finalmente, como terceira espécie de condicionamento administrativo estão
as sujeições, que geram para os particulares o dever de suportar a interferência do
Poder Público na sua esfera de interesses, de que são exemplos as servidões
administrativas.
Todos os condicionamentos, em obediência ao princípio da legalidade –
entendido este como “vinculação positiva à lei” (BINENBOJM, 2008, p.42), que
norteia e legitima a atuação administrativa do Estado –, são impostos aos particulares
diretamente pela lei ou por ato administrativo. E todos eles visam à compatibilização
do exercício das liberdades públicas com os interesses da cidadania.
Interessa, para o presente trabalho, o aprofundamento da primeira espécie,
ou seja, dos limites dos direitos, visto a importância que tal condicionamento possui na
seara antitruste, já que a Lei 8.884/94, também conhecida como Lei Antitruste ou Lei
da Concorrência, que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a
ordem econômica, preocupa-se com a descrição das condutas que, uma vez
realizadas pelos agentes econômicos, venham a causar prejuízos ao equilíbrio do
mercado. Tais agentes têm, portanto, o exercício de seu direito à liberdade de
iniciativa limitado, no sentido de que são proscritos comportamentos que impliquem
em abuso do poder econômico, como forma de se preservar a livre concorrência e,
conseqüentemente, a própria liberdade de iniciativa.
Destacam-se, nesse contexto, os fins sociais almejados pela regulação do
comportamento dos agentes econômicos, vez que são eles que legitimam toda
atividade interventiva exercida pelo Estado na ordem econômica. O Estado intervém
para garantir o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. No âmbito
antitruste, especificamente, para garantir os direitos dos particulares enquanto
consumidores, os princípios constitucionais de liberdade de iniciativa, de livre
 
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concorrência, de função social da propriedade e de repressão ao abuso do poder


econômico.
Este o próximo passo desta análise: investigar as competências manejadas
pela administração ordenadora com relação aos limites dos direitos impostos como
condicionamentos administrativos no antitruste.

3. AS COMPETÊNCIAS MANEJADAS PELA ADMINISTRAÇÃO


ORDENADORA FRENTE AOS LIMITES DOS DIREITOS DO
ANTITRUSTE

Na seara antitruste, conforme afirmado, o condicionamento administrativo


consistente nos limites dos direitos representa a principal imposição da administração
ordenadora. Entretanto, as competências por esta manejadas não se resumem à
imposição de condicionamentos. SUNDFELD (2003, p. 73) identifica outras três
distintas competências: fiscalização, repressão – com destaque para a sanção de
infrações –, e execução.
A primeira competência, consistente na imposição de condicionamentos,
consoante o exposto, perfaz-se, por força do princípio da legalidade, mediante lei ou
ato administrativo. Neste último caso, é fundamental a existência de preceito geral e
abstrato anterior que autorize a Administração, em situações determinadas, a impor o
condicionamento legalmente criado.
A Lei Antitruste, ao identificar as condutas dos agentes econômicos que
constituem tais infrações, impõe limitações à sua liberdade de atuação no mercado.
No entanto, tais limitações justificam-se por objetivarem à proteção de interesses
maiores, pertencentes a toda a coletividade, quais sejam, a liberdade de iniciativa, o

 
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equilíbrio do mercado e o respeito aos consumidores, bens jurídicos estes protegidos


pela citada Lei .
Segundo MELLO, S. (2003, p.277-278),

[...] as atitudes empresariais são vedadas na proporção em que


geram empecilho à livre iniciativa e prejuízo ao consumidor. [...]
Tais limitações ocorrerão de acordo com a legislação antitruste,
toda vez que interesses particulares causarem ou puderem causar
danos ao interesse público. As normas de controle e de proteção
não podem ser vistas como formas de extinguir a autonomia da
vontade, mas sim enquanto instrumentos de harmonização
concreta da liberdade de cada um dos participantes nas relações de
mercado, sob inspiração de interesses transindividuais.

Importante mencionar que Lei Antitruste, ao limitar o exercício do poder de


7
mercado pelos agentes econômicos, não tem por fim tornar seu exercício ilícito,
apenas visa a reprimir seu exercício de forma abusiva, capaz de causar prejuízos aos
consumidores e aos demais concorrentes. Condena-se determinada conduta não pelo
seu simples exercício, mas pelos efeitos negativos que seu exercício gera ou pode
gerar para os bens jurídicos tutelados pela mesma lei.

[...] o ilícito antitruste não é definido pela descrição dos atos, mas
pelos efeitos que possam vir a produzir, independentemente de sua
forma. [...] a Lei Antitruste não tem por fim tornar o exercício do
poder de mercado ilícito, mas sim controlar a forma pela qual ele e
adquirido e mantido. Reprime-se, tão somente, seu abuso. Ele é
lícito quando resultado de processo natural decorrente da maior
eficiência de um agente econômico em relação a seus competidores.
[...] A finalidade da Lei da Concorrência é prevenir que efeitos
anticompetitivos ocorram. (VALÉRIO, 2006, p.109-110; p.148)

                                                            
7 Segundo VALÉRIO (2006, p.131), “O poder de mercado é a capacidade de um agente,
unilateralmente ou em grupo, de forma coordenada, aumentar preços, reduzir quantidades, diminuir
qualidade ou variedade de produtos ou serviços, ou ainda, restringir inovações com relação aos níveis
que vigorariam sob condições de concorrência irrestrita, por período razoável de tempo, no intento de
aumentar seus lucros. Em outras palavras, é a capacidade de agir independentemente de seus
competidores.”
 
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Com relação à segunda competência manejada pela administração


ordenadora, a fiscalização, afirma SUNDFELD (2003, p.75):

À competência para impor condicionamentos se grega a de


fiscalizar sua observância. Trata-se do poder, atribuído pela lei à
Administração, de verificar permanentemente a regularidade do
exercício dos direitos pelos administrados.

A competência fiscalizatória resta bem delineada na Lei Antitruste.


Integram o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência a SEAE - Secretaria de
Acompanhamento Econômico, vinculada ao Ministério da Fazenda; a SDE -
Secretaria de Direito Econômico, vinculada ao Ministério da Justiça, e o CADE -
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, autarquia também vinculada ao
Ministério da Justiça. Seus membros representam as autoridades responsáveis pela
prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, ou seja, aplicam a
legislação e conduzem o processo administrativo antitruste.
A Lei 8.884/94 determina como competência de tais autoridades o zelo pela
sua observância e aplicação8. Determina, especialmente, à SDE o monitoramento e
acompanhamento das práticas de mercado, uma vez que este órgão é responsável,
em face de indícios de infração contra a ordem econômica, pela realização de
averiguações preliminares para instauração do processo administrativo antitruste, ou
pela pronta instauração do processo, quando os indícios forem suficientes para tanto.
A terceira competência, consistente na repressão às infrações, apresenta-se
como uma das finalidades da Lei Antitruste, ao lado da prevenção das infrações
contra a ordem econômica. Para SUNDFELD (2003, p. 77), a atividade repressiva da
                                                            
8 Nos termos do art. 14 da Lei 8.884/94: “Compete à SDE: I- zelar pelo cumprimento desta Lei,
monitorando e acompanhando as práticas de mercado” O art. 30, por sua vez, afirma que “A SDE
promoverá averiguações preliminares, de ofício ou à vista de representação escrita e fundamentada de
qualquer interessado, quando os indícios de infração à ordem econômica não forem suficientes para a
instauração de processo administrativo.”
 
 
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Administração é veiculada por instrumentos distintos, quais sejam, a ordem para


correção de irregularidade, a medida cautelar e a sanção.

Verificado o descumprimento da lei pelo titular do direito, a


Administração pratica ato determinando-lhe a correção da
irregularidade. É o que chamamos de ordem. [...] Trata-se de
medida repressiva – embora não sancionadora –, cuja finalidade é
exigir formalmente a eliminação da violação produzida. [...]
Medidas cautelares são providências de caráter provisório ditadas
pela urgência de fazer cessar ilegalidades que coloquem em grave
risco a vida, a saúde, a segurança da sociedade. [...] A sanção não é
atividade específica de qualquer ramo do Direito, mostrando-se
presente em todos eles. [...] A imposição da sanção é sempre um
ato jurídico, vale dizer, uma declaração por meio da qual se
determina certa conduta devida (ex.: pagar multa, cessar atividade,
etc.) que, não sendo por sua vez obedecida, gera a execução
compulsória [...] (SUNDFELD, 2003, p.77-80, destaque nosso)

Na Lei Antitruste estão presentes todos os instrumentos repressivos


mencionados. O capítulo IV da citada lei9, ao tratar da medida preventiva e da ordem
de cessação, utiliza-se dos instrumentos ordem para correção de irregularidade e medida
cautelar conjuntamente, na hipótese da existência de indício ou fundado receio de que
o representado – “pessoa física ou jurídica a quem foi imputada prática
anticoncorrencial no despacho de instauração do processo” (MELLO, S., 2003,
p.290) – cause ou possa causar ao mercado lesão irreparável ou de difícil reparação,
ou torne ineficaz o resultado final do processo administrativo antitruste.
Nesse caso, a ordem de cessação da prática lesiva, ou potencialmente lesiva,
será determinada ao representado na medida preventiva adotada pelo Secretário da
                                                            
9 Nos termos do capítulo IV da Lei 8.884/94: “Capítulo IV – Da Medida Preventiva e da Ordem de
Cessação Art.52. Em qualquer fase do processo administrativo poderá o Secretário da SDE ou o
Conselheiro-Relator, por iniciativa própria ou mediante provocação do Procurador-Geral do CADE,
adotar medida preventiva, quando houver indício ou fundado receio de que o representado, direta ou
indiretamente, cause ou possa causar ao mercado lesão irreparável ou de difícil reparação, ou torne
ineficaz o resultado final do processo. § 1º Na medida preventiva, o Secretário da SDE ou o
Conselheiro-Relator determinará a imediata cessação da prática e ordenará, quando materialmente
possível, a reversão à situação anterior, fixando multa diária nos termos do art. 25.” 
 
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SDE ou pelo Conselheiro-Relator, a qual ordenará, ainda, a reversão à situação


anterior, de inexistência de lesão ao mercado, quando materialmente possível.
A sanção, por sua vez, caracteriza o instrumento repressivo de maior
intensidade na legislação antitruste, uma vez que impõe uma conseqüência negativa
ao infrator de um dever jurídico, qual seja, o dever de se abster da prática de
condutas econômicas passíveis de lesionar o mercado e os consumidores.
Segundo MELLO, R. (2007, p.38; 72),

A sanção é a resposta prevista na norma para a hipótese de


inobservância da conduta nele prescrita. Funda-se a sanção numa
exigência de justiça retributiva, na medida em que sua aplicação é
decorrência da adoção de um comportamento não desejado pelo
ordenamento ou, ainda, da adoção de uma conduta considerada
pelo ordenamento como “socialmente prejudicial” [...] A
Administração Pública, no exercício de sua competência
sancionadora, aplica uma medida com caráter aflitivo ao infrator,
punindo-o pela prática do ilícito administrativo.

A Lei Antitruste, em seu artigo 23, estabelece que a prática de infração


contra a ordem econômica sujeita os responsáveis à pena de multa, de valor variável.
No caso de empresa, de 1% (um por cento) a 30% (trinta por cento) do valor do
faturamento bruto no seu último exercício, nunca sendo inferior à vantagem auferida,
quando esta for quantificável. No caso de administrador, direta ou indiretamente
responsável pela infração cometida por empresa, multa de 10% (dez) a 50%
(cinqüenta por cento) do valor da multa aplicável à empresa. No caso das demais
pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, o valor da multa oscilará de
seis mil a seis milhões de Unidades Fiscais de Referência – UFIR10, ou padrão
superveniente.

                                                            
10O valor de uma Unidade Fiscal de Referência no Estado de Minas Gerais equivale, na atualidade, a
R$ 1,0641. Cf. dados disponíveis em:
http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/legislacao_tributaria/comunicados/ufir.htm
 
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O artigo 24 apresenta também um rol de penas que podem ser aplicadas


isolada ou cumulativamente, sem prejuízo das penas cominadas no artigo precedente,
desde que a gravidade dos fatos ou o interesse público assim o exijam.
Tais penas são exemplos do que MELLO, R. (2007, p.76) denomina
“sanções administrativas retributivas”, consistentes em “medida de simples
retribuição pela infração, sem qualquer pretensão de ressarcimento do dano causado
pela conduta delituosa ou de restauração do status quo ante.” Sua finalidade, de acordo
com autor, é preventiva, pois “pune-se para prevenir a ocorrência de novas infrações,
desestimulando a prática de comportamentos tipificados como ilícitos.” Para
exemplificar, determina o artigo 24, em seu inciso I, a publicação, em meia página e
às expensas do infrator, em jornal indicado na decisão, de extrato da decisão
condenatória, e no inciso II, a proibição de contratar com instituições financeiras
oficias e participar de licitações públicas, por prazo não inferior a 5 (cinco) anos.
Importante não confundir a sanção com as medidas preventivas, uma vez
que as primeiras pressupõem a consumação de um comportamento ilícito pelos
agentes econômicos, e as segundas visam, justamente, a evitar a consumação ou o
agravamento de uma violação à ordem econômica. (MELLO, R., 2007, p.82)
Finalmente, no que se refere à quarta competência da administração
ordenadora – a execução dos condicionamentos impostos -, insta ressaltar que a
decisão do Plenário do CADE, órgão responsável pelo julgamento do processo
administrativo antitruste, constitui título executivo extrajudicial. Sua execução se
dará, portanto, administrativa ou judicialmente. Nesse último caso, o Presidente do
CADE determinará à Procuradoria as providências judiciais para a execução das
decisões e julgados da Autarquia, podendo, ainda, requerer ao Ministério Público
Federal a promoção da execução dos mesmos.

 
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4. OS REFLEXOS DA ATUAÇÃO DOS CARTÉIS NOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS DA COLETIVIDADE

O presente estudo, como inicialmente afirmado, tomará o cartel como


conduta representativa de infração contra a ordem econômica, visando à análise de
seus efeitos sobre os direitos fundamentais da coletividade. Antes de proceder à sua
definição, importante ressaltar o alcance e a relevância dos direitos fundamentais na
ordem jurídica brasileira.
Segundo BINENBOJM (2008, p.46), a idéia de dignidade da pessoa
humana constitui origem e fundamento de todos os direitos fundamentais. Na
atualidade, assiste-se ao desenvolvimento de um processo caracterizado pela
expansão da noção de respeito e garantia não só aos direitos fundamentais, mas a
todos os valores inerentes à dignidade da pessoa humana constitucionalmente
consagrados, sobre toda a ordem jurídica. Tal processo, a que o autor denomina
constitucionalização do direito, tem sido um dos grandes responsáveis pela valorização
dos direitos fundamentais em todos os ramos do direito, incluindo, como já se pôde
perceber pelas linhas escritas, na seara antitruste.
Para MENDES (2004, p.2), os direitos fundamentais apresentam uma
dimensão subjetiva e outra objetiva. Em sua dimensão subjetiva, “os direitos
fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em
face dos órgãos obrigados.” Em sua dimensão objetiva, por sua vez, representam
elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva, formando a base do
ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático.
Traçando a caracterização das concepções dos direitos fundamentais, afirma
o supracitado autor que, na sua concepção tradicional, os direitos fundamentais são
direitos de defesa, protegendo posições subjetivas contra a intervenção do Poder

 
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Público, seja pelo não-impedimento da prática de determinado ato, seja pela não-
intervenção em situações subjetivas ou pela não-eliminação de posições jurídicas.
Os direitos fundamentais apresentam-se, também, como normas de proteção de
institutos jurídicos, quando obrigam o legislador a expedir atos normativos
concretizadores de alguns direitos, e como garantias positivas do exercício das liberdades
fundamentais, exigindo uma postura ativa do Estado para que este coloque à
disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material. (MENDES,
2004, p.4-5)
BINENBOJM (1998, p. 52), ao analisar a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, a associa ao mencionado processo de constitucionalização do direito,
pois, segundo o autor, ela representa “o reconhecimento dos direitos fundamentais
como bases estruturais da ordem jurídica, que espraiam sua influência por todo o
direito positivo.” Como conseqüência dessa dimensão, o autor chama atenção para a
eficácia horizontal dos direitos fundamentais, que pode ser definida como a oponibilidade
de tais direitos entre os particulares, como fundamento para restringir liberdades
individuais no âmbito das relações privadas. É o que acontece na seara antitruste,
quando, como exposto anteriormente, regula-se a liberdade de iniciativa e o exercício
do direito à atuação no mercado em prol da defesa, v.g., dos direitos dos
consumidores.
Passando-se à análise do cartel enquanto instrumento de controle de
mercado, violador da ordem econômica, cumpre, de antemão, apresentar a noção de
mercado relevante, por estar diretamente relacionada à atuação dos cartéis.
Segundo BRUNA (1997, p.83-94), mercado relevante é “o contexto onde se
manifesta o poder econômico”, sendo sua identificação, portanto, fundamental à
análise antitruste. O autor analisa a noção de mercado relevante sob três dimensões.
Primeiramente, sob a dimensão da procura, o mercado relevante inclui “todos os
produtos (ou serviços) que sejam genericamente idênticos ou, ao menos, aqueles que,
 
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apesar de não serem idênticos, sejam tidos pelos consumidores como relativamente
bons substitutos uns dos outros”. Sob a dimensão da oferta, o mercado relevante é
determinado pela “possibilidade de entrada de novos competidores” e pela
capacidade de expansão produtiva dos atuais concorrentes, “através do
redirecionamento de recursos produtivos”. Por fim, sob a dimensão geográfica,
“determinar qual seja o mercado relevante é determinar a área em que as empresas
nela situadas tenham uma vantagem de custo sobre as empresas localizadas fora
dessa mesma área.”
Para BANDEIRA DE MELLO (2009, p.800),

[...] mercado relevante é aquele relativo a determinados produtos


ou serviços ofertados em dada região e que os consumidores
consideram como intercambiáveis por suas características, preço e
comercialização, de sorte que é recomendável considerá-los
agrupadamente.

VALÉRIO (2006, p.125), por sua vez, afirma que o mercado relevante é
composto por duas dimensões distintas, mas complementares. A dimensão
produtos/serviços é “composta por todos produtos ou serviços considerados
substituíveis entre si pelo consumidor, devido às características, preços e utilização.”
A dimensão geográfica, por seu turno, “compreende a área em que as empresas ofertam
e procuram produtos ou serviços em condições de concorrência homogêneas em
termos de preços, preferências dos consumidores, características dos produtos ou
serviços.”
Por conseguinte, a noção de mercado relevante abrange fundamentalmente
uma dimensão referente aos produtos e serviços, que inclui aqueles cuja substituição
uns pelos outros os consumidores consideram possível e realizável, e uma dimensão
referente à área geográfica, que inclui os produtos e serviços que, em determinada
área, são concorrentes entre si, e cujas variações de preço e qualidade influenciam

 
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diretamente uns sobre os outros e sobre o comportamento dos consumidores


daquela localidade.
A partir dessa noção, compreende-se o cartel como uma manobra utilizada
pelos componentes de um mercado relevante que visa à fraude do sistema da livre
concorrência e, conseqüentemente, da livre iniciativa.
O cartel pode revelar-se mediante práticas diversas, dentre elas o
tabelamento dos preços, resultando na eliminação da possibilidade da livre escolha
dos produtos por parte dos consumidores, uma vez que o preço é elemento
fundamental no direcionamento do consumo; na divisão da oferta entre os diversos
produtores, com o estabelecimento da cota-parte de cada um deles no abastecimento
do mercado; na divisão do mercado tendo em vista áreas de consumo ou parcelas de
consumidores e, ainda, no acordo realizado visando à fraude das licitações, a partir de
acordos relacionados ao teor das propostas apresentadas ao Poder Público no
processo de licitação.
Segundo FORGIONI (1998, p.324), os cartéis consistem em acordos
horizontais11 celebrados por agentes econômicos atuantes no mesmo mercado
relevante, visando à neutralização da concorrência entre eles. Tais acordos partem do
pressuposto de que a concorrência é sempre prejudicial aos concorrentes, por
resultar em lucros menores auferidos pelos empresários e pela preocupação
constante com a qualidade de seu produto, o que exige maiores investimentos na
produção, para se manter no mercado competitivo. Conforme os dizeres de
ASCARELLI (apud FORGIONI, p.325), “a concorrência obriga os produtores a

                                                            
11 A autora diferencia acordos horizontais e acordos verticais tendentes à restrição da concorrência.

Os primeiros são celebrados por agentes econômicos atuantes em um mesmo mercado relevante e
que, por isso, encontram-se em concorrência direta uns com os outros. Os acordos verticais, por seu
turno, são celebrados entre agentes econômicos pertencentes a mercados relevantes distintos, porém
complementares, tais como entre fornecedores de matéria-prima e entre fabricantes de determinado
produto, ou entre estes e empresas distribuidoras.
 
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procurarem, constantemente, a melhoria de seus produtos e a diminuição do preço


de custo.”
Como conseqüência da prática do cartel para o mercado e para os
consumidores tem-se o prejuízo da livre concorrência, que resulta, inevitavelmente,
na maior indisponibilidade dos produtos para grande parte de consumidores, devido
ao aumento significativo dos preços. Segundo levantamento da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os cartéis são responsáveis
por um sobrepreço estimado entre 10 e 20% comparados aos preços de um mercado
competitivo12.
Ademais, com a prática do cartel, a livre iniciativa é afetada, uma vez que a
entrada de novos competidores no mercado será obstada pelo elevado poder de
mercado dos co-participantes.
Inegavelmente, a prática do cartel, como todas as demais infrações contra a
ordem econômica, produz reflexos nos direitos fundamentais da coletividade,
afetando, v.g., o direito fundamental à liberdade, em sua dimensão referente à
liberdade de escolha dos consumidores. Em um contexto de mercado em que se faz
presente o cartel, os produtos tornam-se demasiadamente homogêneos, tanto no que
se refere aos preços, como à sua qualidade. Esse baixo grau de diferenciação é
responsável pelo compartilhamento do poder de mercado entre os concorrentes, já
que nenhum deles sobressairá aos demais, todos terão seus lucros garantidos. Os
consumidores, entretanto, sofrerão com os altos preços e a baixa qualidade dos
produtos ofertados, não exercitando sua liberdade de escolha, que constitui fomento
à competitividade no mercado.
Todas as práticas anticoncorrenciais que culminam em prejuízos aos
cidadãos afetam sua vida, sua dignidade, sua saúde, sua segurança, sua liberdade de
                                                            
12A informação consta do sítio do Ministério da Justiça. Disponível em:<http://www.mj.gov.br>.
Acesso em: 25 out. 2009.
 
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escolha, seus interesses econômicos e, substancialmente, a melhoria da sua qualidade


de vida. Em um mercado anticompetitivo, os consumidores são lesados não somente
enquanto consumidores, mas também, e principalmente, em sua condição de
cidadãos, pois são subjugados pelo poder de mercado detido nas mãos de agentes
econômicos ávidos tão-somente pelo lucro, sem preocupação com a função social
exercida por sua atividade econômica.
Como expressão jurídica máxima da dignidade da pessoa humana
(BINENBOJM, 2008, p. 50), os direitos fundamentais dos cidadãos necessitam ser
respeitados, principalmente no âmbito das relações econômicas. As conseqüências
causadas pela prática de infrações contra a ordem econômica caracterizam-se como
altamente gravosas para a vida da coletividade, que é, como bem o afirma a Lei
Antitruste, a titular dos bens jurídicos por ela protegidos.

5. DA EFICÁCIA FORMAL À EFICÁCIA MATERIAL NO EXERCÍCIO


DA FUNÇÃO ADMINISTRATIVA

A eficácia compreende-se como a força ou poder que possa ter um ato ou


um fato para produzir os desejados efeitos (SILVA, 2007, p.509). Na análise que se
desenvolve a respeito da atividade regulatória do Estado sobre a ordem econômica, a
eficácia formal de tal atividade revela-se na existência de normas que visam a
determinar o âmbito legítimo do exercício do direito de atuação no mercado pelos
particulares. Por outras palavras, a eficácia formal concretiza-se na exata medida em
que o Estado exerce efetivamente a função de legislar sobre as condutas objeto da
política antitruste, delimitando o alcance da liberdade de iniciativa a ser desenvolvida
pelos cidadãos.

 
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Nesse sentido, a Lei Antitruste revela-se um instrumento hábil a efetivar a


função administrativa antitruste estatal, uma vez que prevê mecanismos processuais
adequados ao combate às infrações contra a ordem econômica.
Sobreleva anotar, entretanto, que a simples eficácia formal, muitas vezes,
não é responsável pela tutela efetiva dos bens jurídicos protegidos pela lei, qualquer
que seja esta. Ainda que a atividade processual desenvolva-se em obediência aos
trâmites legais, com respeito a todos os direitos fundamentais processuais – ampla
defesa, contraditório e devido processo legal -, muitas vezes, não se realiza
verdadeiramente a tutela dos direitos dos cidadãos ou, como no caso da legislação
antitruste, dos direitos da coletividade.
O que se defende, portanto, é a atenção à eficácia material da função
administrativa, consubstanciada no real atendimento aos anseios da coletividade,
através do respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos. Aqui, mais uma vez,
merece acolhida a teoria da constitucionalização do direito de BINENBOJM (2008),
segundo a qual os direitos fundamentais, enquanto expressão da dignidade da pessoa
humana, devem orientar o exercício da atividade administrativa desenvolvida pelo
Estado em todos os setores da sociedade.
No exercício da função administrativa antitruste, o Estado deve ater-se com
primazia à garantia dos direitos fundamentais da coletividade, de modo a legitimar
sua atuação. O simples cumprimento dos procedimentos legalmente previstos, desde
que incapazes de realizar a tutela efetiva de tais direitos, configura simples desgaste
da máquina estatal.

 
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6. CONCLUSÃO

No contexto do surgimento do Estado de Direito, marcado pelo


Liberalismo, encontram-se as raízes do Direito Administrativo. Inicialmente
caracterizado como um Direito do Estado, passou, diante da necessidade de
provimento de direitos à coletividade, a configurar-se como um Direito dos cidadãos,
vocacionado à garantia de seus direitos fundamentais por meio de sua atividade
interventiva.
A atividade interventiva estatal, destarte, representa o gênero do qual a
atividade regulatória é espécie, realizando-se através da edição de normas que visam a
regular e delimitar o âmbito do exercício legítimo dos direitos pelos particulares. Esta
a noção de administração ordenadora, responsável pelo estabelecimento dos
chamados condicionamentos administrativos de direitos.
Nesse contexto insere-se a atividade antitruste desenvolvida pelo Estado
que, ao coibir comportamentos capazes de lesionar a livre concorrência, visa a
concretizar o princípio da livre iniciativa e, também, como visto, o próprio princípio
da livre concorrência, pois que diretamente interligados estão.
A defesa da coletividade é de extrema importância no contexto de um
mercado anticompetitivo, em que os reflexos da atuação dos cartéis são sentidos
diretamente pela população. Com bens mais caros e indisponíveis, os consumidores
vêem lesados não só seu direito à liberdade de escolha dos produtos que desejam
consumir, mas também todos os direitos inerentes à sua condição de pessoa humana,
cuja dignidade constitui fundamento da República Federativa do Brasil. Seus
interesses econômicos são atingidos pelo domínio de mercado exercido por alguns
agentes, o que agrava sobremaneira suas condições de melhoria de qualidade de vida.
A análise das competências manejadas pela administração ordenadora no
antitruste permitiu a constatação de que dispõe a Lei Antitruste de eficácia formal, de
 
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modo a garantir as atividades de prevenção e repressão às infrações contra a ordem


econômica. No entanto, como a preservação do regular funcionamento do mercado,
inserida na proteção à ordem econômica, constitui interesse público, é mister se
atente para a eficácia material do exercício da função administrativa antitruste,
consubstanciada no respeito aos direitos fundamentais da coletividade.
Na atualidade tem sido crescente a eficácia dos resultados alcançados
através da implementação da legislação antitruste, o que demonstra a preocupação do
Poder Púbico com a eficácia material no exercício de sua função13. Os mecanismos
trazidos pela Lei mostram-se aptos à tutela real e efetiva dos bens jurídicos por ela
protegidos, desde que implementados com seriedade e objetividade pelos órgãos
integrantes do sistema brasileiro de defesa da concorrência.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ª ed. São
Paulo: Malheiros, 2009.

BINENBOJM, Gustavo. Temas de direito administrativo e constitucional. Rio de Janeiro:


Renovar, 2008.

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da República Federativa do Brasil,


promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 25 out. 2009.
                                                            
13 Relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgado
recentemente afirma que o Brasil é visto como líder no combate a cartéis por seus vizinhos na
América latina, servindo de referência nesta matéria para os governos destes países. Disponível em:
www.mj.gov.br. Acesso em: 20 mai 2010.
 
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______. Lei 8.884, de 11 de junho de 1994. Transforma o Conselho Administrativo de


Defesa Econômica em autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem
econômica e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>.
Acesso em: 26 out. 2009.

______. Ministério da Justiça. Defesa da Concorrência. Programa de Leniência.


Disponível em: http://www.mj.gov.br>. Acesso em: 25 out. 2009.

BRUNA, Sérgio Varella. Agências reguladoras. São Paulo: Ed. RT, 2003.

_____ . O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. São Paulo: RT, 1997.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19ª.ed. Rio de
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FARIA, Edmur Ferreira de. Curso de direito administrativo positivo. 6ª.ed., Belo
Horizonte: Del Rey, 2007.

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MELLO, Shirlei Silmara de Freitas. Tutela cautelar no processo administrativo. Belo


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MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador.


São Paulo: Malheiros, 2007

 
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MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª.ed.


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MOREIRA, Egon Bockmann. O direito administrativo contemporâneo e a


intervenção do Estado na ordem econômica. Revista Eletrônica de Direito Administrativo
Econômico. nº 10.mai/jun/jul 2007. Salvador-BA.

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VALÉRIO, Marco Aurélio Gumieri. Antitruste em setores regulados. São Paulo: Lemos e
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A LEI 11.101/2005, A RECUPERAÇÃO JUDICIAL E A NECESSIDADE DE


APRESENTAÇÃO DE CERTIDÕES NEGATIVAS FISCAIS PARA A
RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Mariana Mendes Monteiro de Godoi1


Ricardo Padovini Pleti2

RESUMO

Em sintética análise da atual Lei de Falências (Lei 11.101/2005) é possível perceber a


problemática referente à necessidade de apresentação de certidões negativas fiscais
para a obtenção da recuperação judicial. Depois de 10 anos da proposição do
respectivo projeto de lei, foi promulgada, em 9 de fevereiro de 2005, a lei
11.101/2005. Todavia, o art. 57 dessa lei traz séria incoerência em relação ao seu
princípio basilar: a recuperação da empresa economicamente viável (art. 47 da mesma
lei). Isso porque aquele dispositivo legal exige a apresentação de certidões negativas
fiscais para que seja concedida, pelo juiz, a recuperação judicial. Ora, quando a
atividade empresária se avizinha da crise, os primeiros débitos que se tornam
inadimplentes são os tributários, notadamente, devido à pesada carga prevista na
legislação tributária brasileira. Apesar do que está positivado na discutida regra da
legislação falimentar, o que os tribunais estaduais têm entendido e confirmado é a
dispensa dessa certidão e, a despeito da previsão legal, concedido a recuperação
judicial para as empresas que apresentam chances razoáveis de soerguimento. É a
partir da análise desse artigo dentro do contexto interpretativo da nova lei que se
perceberá sua incompatibilidade em relação à finalidade para a qual foi estruturada
uma nova disciplina da falência e da recuperação de empresas pela Lei 11.101/2005.
Destarte, o intuito deste trabalho é enfrentar a controvérsia existente na nova Lei de
Falências com relação à necessidade de apresentação de certidões negativas fiscais
para que o empresário individual ou a sociedade empresária devedor (a) tenha
homologado o plano de recuperação judicial.

                                                            
1 Graduanda na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia-UFU. 
2 Doutorando na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.  
 
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Palavras-Chaves/Keywords: Lei de Falências; Recuperação judicial; Certidões


negativas fiscais. Law of insolvency; Bankruptcy protection; Tax clearance
certificates.

1. Introdução

1.1. Evolução histórica do comércio e do Direito Comercial no Brasil até 1850

Os primeiros indícios que começaram a aparecer no Brasil de práticas que


poderiam ser consideradas mercantis remontam à época do descobrimento (1500).
Assim ocorreu pois, nesse tempo, os colonizadores portugueses que vieram para o
nosso litoral traziam bugigangas para os índios em troca do corte da madeira Pau-
Brasil. Identificam-se aí certas práticas de escambo que, mesmo não envolvendo
moeda, podem ser consideradas como tipos de mercancia.
Depois de estabelecidos em terra firme, os colonizadores começaram a
produzir o seu próprio alimento para sobreviver e como nem todos plantavam tudo
que precisavam comer, eles trocavam entre si o que excedia das produções. Assim
era possível obter vários tipos alimentícios que não eram produzidos pelo próprio
adquirente, a despeito de não haver lugares de compra e venda naquela época.
Portanto, “desde os primórdios, o homem sentiu a necessidade de trocar
seus excedentes de produção, como forma apropriada de atender suas necessidades
físicas e psicológicas, propiciando o surgimento da chamada economia de escambo”3.
No período de 1500 até 1850, regras e lei portuguesas vigoravam em nosso
país em razão da procedência de nossa colonização. No ano de 1595 foi promulgada,
por Felipe II, a primeira lei que tratava de matéria falimentar, denominada de Lei

                                                            
3 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 5.
 
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08.03.1595. Em 1756 foi outorgado o Alvará de 13 de dezembro por Marquês de


Pombal, e este Alvará cuidava do processo de falência.
Com a proclamação da Independência no Brasil no ano de 1822, inicia-se
lento processo de adaptação das leis ao novo regimento político, sendo que em 25 de
junho de 1850 uma parte do Código Comercial passa a tratar “Das Quebras”, com
regulamento no Decreto 738, de 25.11.1850.

1.2. Código Comercial Napoleônico de 1850 e sua influência no Código


Comercial Brasileiro.

Segundo Moacyr Lobato, “o Direito Comercial nasce como um direito de


classe, a saber, o conjunto de regras destinado a reger as relações dos mercadores.
Nasce consuetudinário e internacional, vinculado às origens da prática mercantil”4.
É no ano de 1800 que começa a ser discutida no Brasil a necessidade de
editar e promulgar um Código Comercial Brasileiro, uma vez que, até esse período, a
nossa pátria era regida por leis portuguesas. Nessa perspectiva, Vera Helena de Mello
Franco observa que durante muito tempo, mesmo após a vinda de D. João VI ao
Brasil, “inexistia um conjunto sistematizado e organizado de leis, particularmente
brasileiro, dotado de princípios gerais definidos”5.
Mesmo com a vinda para o Brasil de D. João VI e a família real, as
atividades comerciais eram muito restritivas por causa dos obstáculos das leis
portuguesas impostas pelo monopólio de Portugal. Porém, a situação das práticas
mercantis muda em nosso país a partir da abertura dos portos às nações amigas, pois

                                                            
4 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 11.
5 FRANCO, Vera H. M. Manual de Direito Comercial. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 22.
 
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além desse acontecimento provocar o aumento das relações comerciais, criou-se a


“Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábrica e Navegação”.
Com o passar dos tempos, devido à evolução proporcionada pela abertura
dos portos brasileiros, foi promulgado, em 15 de junho de 1850, o Código Comercial
Brasileiro, mediante a Lei n. 556.
Este Código, assim como a maioria que foi editada nos anos de 1800, sofreu
forte influência do Código Comercial Napoleônico e, por isso, adotou a teoria
francesa dos atos de comércio ao definir que o comerciante seria aquele que
praticasse a mercancia habitualmente, como profissão.

Inegável contribuição decorreu da codificação francesa do início


do século XIX, ocasião em que o legislador gaulês admitiu que os
atos de comercio seriam tanto aqueles praticados
profissionalmente pelos comerciantes, quanto aqueles praticados
por outras pessoas, mesmo que não-comerciantes, desde que a lei
os considerasse mercantis. 6

Tanto o Código Comercial Francês quanto o Código Comercial Brasileiro


não descreveram quais seriam os procedimentos mercantis que deveriam ser
considerados atos de comércio. Entretanto, aqui no Brasil, o legislador tratou de
cuidar deste assunto ao editar e promulgar o Regulamento n. 737 de 1850.
Assim dizia o art.19 do Regulamento n. 737:

Considera-se mercancia:
§1º A compra e venda ou troca de efeitos móveis ou semoventes,
para vender por grosso ou retalho, na mesma espécie ou
manufaturados, ou para alugar o seu uso;
§2º As operações de câmbio, banco e corretagem, expedição,
consignação e transporte de mercadorias, de espetáculos públicos;
§3º As empresas de fábricas, de comissões de depósito, de
expedição, consignação e transportes de mercadorias, de
espetáculos públicos;

                                                            
6 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 14.
 
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§4º Os seguros, fretamentos, riscos e quaisquer contratos relativos


ao comércio marítimo;
§5º A armação e expedição de navios. 7

Importante frisar que, mesmo com a edição de Regulamento destinado a


exemplificar quais seriam as atividades consideradas como mercantis, muitas práticas
que tinham características suscetíveis de configurar atos de comércio foram
esquecidas, tais como: prestação de serviços, negociação imobiliária e atividades
rurais.
Todavia, há de se fazer a ressalva de que não era apenas o Regulamento n.
737/1850 que descrevia o rol de atos de comércio. Outros dispositivos legais
também o faziam, como: o art. 57 do Decreto n. 2.044/1908, que tratava das
operações com letras de câmbio e notas promissórias e o art. 2º, §1º, da Lei n.
6.404/76, que abordava a matéria sobre as operações realizadas por sociedades
anônimas.
Em virtude de o Código Comercial Brasileiro de 1850 sofrer as influências
do Código Francês, ele acabou por também carregar consigo as críticas feitas ao
último. Um exemplo delas foi o fato de nenhum deles ter delimitado de maneira
satisfatória a definição dos atos de comércio e nem ter oferecido rol exemplificativo.

1.3. Código Comercial Italiano de 1942 e a sua influência no Código Comercial


Brasileiro

Conforme esclarecido anteriormente, o fato do Código Comercial Brasileiro


ter sido influenciado pelo Código Comercial Francês de 1850 fez com que padecesse
dos mesmos problemas constantes deste.
                                                            
7 FAZZIO JR., Waldo. Manual de Direito Comercial. 9. ed. São Paulo: Atlas S.A., 2008, p. 6.
 
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No entanto, com a publicação do Código Civil Italiano de 1942 e a


divulgação da teoria da empresa por ele adotada, percebe-se nítida aproximação do
Código Comercial Brasileiro a este novo sistema jurídico mercantil. E tal
aproximação foi tão intensa que, aos poucos, a jurisprudência pátria também deixou
de usar a teoria dos atos de comércio para assumir a teoria da empresa.
Conforme André Luiz Ramos Santa-Cruz, “isto fez com que vários juízes
concedessem concordata a pecuaristas e garantissem a renovação compulsória de
contrato de aluguel a sociedades prestadoras de serviços, por exemplo”8.
Assim, o fato de a jurisprudência afastar o critério da mercantilidade e
passar a usar a teoria da empresa para fundamentar as suas decisões foi um marco
que demonstrou o avanço do Direito Comercial Brasileiro.
Mas apesar de toda a proximidade com o Código Civil Italiano e a mudança
de postura jurisprudencial, a transição do Direito Comercial Brasileiro só se efetivou
completa e concretamente em 2002, com a edição e promulgação do Código Civil.

1.4. O Código Civil Brasileiro de 2002

No século XXI foi promulgada a Lei n. 10.406/2002, que instituiu o atual


Código Civil Brasileiro e promoveu a derrogação do Código Comercial
Brasileiro,tendo por modificação mais significativa o abandono da influência da
teoria dos atos de comércio da França para adotar a teoria da empresa da Itália. Sob
esse primas, “seguindo à risca a inspiração do Codice Civile de 1942, o novo Código

                                                            
8 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial – O Novo Regime Jurídico – Empresarial

Brasileiro. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 42.


 
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Civil brasileiro derroga grande parte do Código Comercial de 1850, na busca de uma
unificação, ainda que apenas formal, do direito privado”9.
Com esse novo Código Civil Brasileiro, troca-se a figura do comerciante
pela figura do empresário, que é definido como aquele que “exerce profissionalmente
atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (CC/02,
art. 966); com isso, aprimora-se a delimitação do âmbito de incidência do regime
jurídico empresarial.

2. A antiga Lei de Falências – Decreto – Lei nº 7.661/45

Desde a promulgação do Código Comercial Brasileiro de 1850, a disciplina


legal do direito falimentar brasileiro sofre críticas e, em razão disso, tem passado por
diversas alterações e reformulações legislativas. Porém, esse período de reiteradas
reformulações culminou com a edição do Decreto-Lei n. 7.661/1945 que, durante os
sessenta anos seguintes, regulamentou o direito falimentar brasileiro.
Antes de prosseguir com o assunto, vem explanar, brevemente, o sentido da
expressão “falência”. Esta pode ser definida, segundo Sérgio Campinho, como “a
impossibilidade de o devedor arcar com a satisfação de seus débitos, dada a
impotência de seu patrimônio para a geração dos recursos e meios necessários aos
pagamentos devidos”10. Além disso, por a quebra ser intitulada como instituto típico
do regime empresarial, ela somente pode ser aplicada a devedores empresários, pois
provoca sua execução concursal. Nessa senda, convém ressaltar que

                                                            
9 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial – O Novo Regime Jurídico – Empresarial
Brasileiro. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 44.
10 CAMPINHO, Sérgio. Falência e Recuperação de Empresa. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar,

2006, p. 3.
 
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Falir significa faltar, enganar, ou ainda, falha, defeito, engano ou


omissão. Deriva do latim fallere. Em seu sentido jurídico-
comerical, veio em substituição ao sentido de falimento, indicativo
do ato de falir, da insolvência comercial ou da bancarrota. 11

De acordo com a edição do Decreto-Lei n. 7.661/1945 – antiga Lei de


Falências –, a quebra seria decretada caso o devedor não pagasse a obrigação líquida
dentro do prazo de vencimento estabelecido, constante de título que legitimasse sua
execução. Essa mesma norma também instituiu o sistema de concordatas como
provável forma de recuperar empresas sujeitas à falência, podendo ser preventiva ou
suspensiva. Sob esse viés, é possível obtemperar que

(...) a concordata representou a mais expressiva possibilidade de


soerguimento da atividade de um devedor, premido por uma
situação de iliquidez. O chamado benefício da concordata era
destinado ao devedor infeliz e de boa-fé, que apresentasse ainda
situação patrimonial que permitisse vislumbrar chances efetivas de
recuperação econômica. 12

A concordata preventiva ocorria quando o comerciante se encontrava em


situação economicamente razoável, porém financeiramente ruim13. Logo, caso os
                                                            
11 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 9.
12 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 80.
13 Fábio Ulhoa Coelho distingue três espécies de crise da empresa nos seguintes termos: Por crise

econômica deve-se entender a retração considerável nos negócios desenvolvidos pela sociedade
empresaria. Se os consumidores não mais adquirem igual quantidade dos produtos ou serviços
oferecidos, o empresário varejista pode sofrer queda de faturamento (não sofre, a rigor, só no caso de
majorar seus preços). Em igual situação está o atacadista, o industrial ou o fornecedor de insumos que
vêem reduzidos os pedidos dos outros empresários. A crise econômica pode ser generalizada,
segmentada ou atingir especificamente uma empresa; o diagnóstico preciso do alcance do problema é
indispensável para a definição das medidas de superação do estado crítico. Se o empreendedor avalia
estar ocorrendo retração geral da economia, quando, na verdade, o motivo da queda das vendas está
no atraso tecnológico do seu estabelecimento, na incapacidade de sua empresa competir, as
providências que adotar (ou que deixar de adotar) podem ter o efeito de ampliar a crise em vez de
combatê-la. A crise financeira revela-se quando a sociedade empresária não tem causa para honrar seus
compromissos. É a crise de liquidez. As vendas podem estar crescendo e o faturamento satisfatório –
e, portanto, não existir crise econômica –, mas a sociedade empresária ter dificuldades de pagar suas
obrigações, porque ainda não amortizou o capital investido nos produtos mais novos, está endividada
em moeda estrangeira e foi surpreendida por uma crise cambial ou o nível de inadimplência na
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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credores resolvessem cobrar todos os débitos na mesma oportunidade, isso levaria o


comerciante à quebra, ante a inexistência de dinheiro suficiente em caixa para
pagamento de todos os seus credores. Então, para prevenir essa situação, o
empresário poderia requerer a concordata preventiva (antes de decretada a falência),
para obter parcelamento adequado das dívidas e, assim, poder continuar a trabalhar e
manter a empresa em boas condições de funcionamento. Nesse sentindo, convém
citar decisão expedida em resposta a pedido de concordata preventiva

Concordata preventiva – Alegação de desonestidade do devedor


não comprovada – Inexistência de impedimentos previstos no art.
140 do Dec.-lei 7.661/45 – Empresa quem em face dos planos
governamentais teve abalada sua estrutura econômica – Pedido
que deve ser deferido. 14

Já a concordata suspensiva era pedida pelo comerciante depois que já havia


sido decretada a quebra da empresa e dava início à liquidação, como meio de o
empresário voltar a administrar os negócios, tentar soerguer a atividade empresarial
novamente e suspender os efeitos que pode vim de tal decreto.

                                                                                                                                                                   
economia está acima das expectativas. A exteriorização jurídica da crise financeira é a impontualidade.
Em geral, se a sociedade empresária não está também em crise econômica e patrimonial, ela pode
superar as dificuldades financeiras por meio de operações de desconto em bancos das duplicatas ou
outro título representativo dos créditos derivados das vendas ou contraindo mútuo bancário mediante
a outorga de garantia real sobre bens do ativo. Se estiver elevado o custo do dinheiro, contudo, essas
medidas podem acentuar a crise financeira, vindo a comprometer todos os esforços de ampliação de
venda e sacrificar reservas imobilizadas. Por fim, a crise patrimonial é a insolvência, isto é, a
insuficiência de bens no ativo para atender à satisfação do passivo. Trata-se de crise estática, quer
dizer, se a sociedade empresaria tem menos bens em seu patrimônio que o total de suas dívidas, ela
parece apresentar uma condição temerária, indicativa de grande risco para os credores. Não é assim
necessariamente. O patrimônio líquido negativo pode significar apenas que a empresa está passando
por uma fase de expressivos investimentos na ampliação de seu parque fabril, por exemplo. Quando
concluída a obra e iniciadas as operações da nova planta, verifica-se aumento de receita e de resultado
suficiente para afastar a crise patrimonial. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. v.3., São
Paulo: Saraiva, 2005, p. 231-232.
14 FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Falências – Comentada. 2ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2003, p. 397.


 
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A concordata suspensiva é de ocorrência bastante incomum, o


que encontra explicação no fato de a falência interferir
diretamente em todo o sistema de funcionamento da empresa,
sendo muito raro que, depois de tal interferência, tenha o
empresário ainda condições de colocar novamente seu negocio em
andamento. 15

Nessa esteira, eis julgado sobre essa segunda modalidade de concordava

Falência – Concordata suspensiva extemporânea – Pedido


formulado quando já realizado o ativo – Deferimento –
Pagamento aos credores ainda não realizado – Liquidação,
portanto, não encerrada – Inteligência dos arts. 178 e 185 do
Dec.-lei 7.661/45.16

Entretanto, apesar de toda a evolução que o diploma falimentar brasileiro


representou em 1945, com o percorrer dos anos, ele deixou muito a desejar em
diversos quesitos, principalmente por não acompanhar os avanços experimentados
pelo comércio. Ademais, nem a falência e nem as concordatas (preventiva ou
suspensiva) do Decreto-Lei 7.661/45 ofereciam alguma possibilidade de recuperação
da empresa para os comerciantes que se encontravam em crise financeira.
Acrescente-se, ainda, que o falido não era bem visto pela sociedade e nem pelo
próprio Judiciário, persistindo o preconceito medieval acerca do estado falimentar do
negócio.
Diversos foram os doutrinadores que fizeram críticas a essa antiga Lei de
Falências, dentre eles: Moacyr Lobato, Rubens Requião e Jorge Lobo. Conforme os
dizeres do primeiro,

No Brasil, além de restringir-se aos comerciantes e sociedades


comerciais, carecia o direito falimentar de tratamento legal mais

                                                            
15 FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Falências – Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. Pág. 474.
16 FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Falências – Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2003. Pág. 475.


 
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adequado à realidade econômica e social do país, em virtude das


profundas modificações implementadas em nossa estrutura e
desenvolvimento, sobretudo, a partir da segunda metade do século
XX.17

Além disso, o sistema que foi adotado pelo Decreto-Lei 7.661/45


demonstrava que seria quase impossível uma atividade empresarial prosseguir com
seu trabalho devido à paralisação total de suas atividades. Existia, apenas, mínima
hipótese de continuação da empresa em caso de falência, devido à previsão legal que
permitia ao falido certa iniciativa, a despeito do parco incentivo para rompimento de
sua inércia.
Moacyr Lobato, a partir desse quadro, conclui que “(...) o instituto da
Concordata não mais atendia às finalidades que ensejaram sua adoção no Direito
Brasileiro”, por isso, passou a constituir modelo esgotado que não servia mais “aos
interesses do devedor e de tantos outros conectados aos da empresa”18
Além de não atender mais às finalidades para as quais se destinava, a
concordata também tinha outro vício, caracterizado por desdobrar seus resultados
apenas para os credores quirografários, que poderiam estar presentes ou não no
processo, bem como domiciliar ou não no país.
Para Rubens Requião, sua principal percepção foi que a antiga legislação
falimentar oferecia preocupação muito grande em apenas quitar as dívidas do
empresário em falência, não dando importância para a função social e econômica que
a atividade empresarial exercia em toda a sociedade. Desta forma, foram suas
palavras

Urge assim procurar o que seria um “pronto-socorro” para


empresas em situação pré-falimentar, para que se lhes oferecesse
possibilidade de recuperação. A manutenção da atividade da

                                                            
17 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. Pág. 18.
18 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 19.
 
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empresa guarda interesse social acentuado, como pólo produtivo


da economia. Fundamental é que seja entranhada no pensamento
jurídico a idéia de “personalização” da empresa, no sentido de sua
institucionalização. 19

Segundo o mesmo mestre, o que deveria ser feito era a mudança do foco do
ordenamento falimentar brasileiro, que ao invés de procurar quais eram as causas que
levaram a empresa à crise econômica e recolher bens para liquidar o passivo, deveria
buscar meios para possibilitar que ela pudesse se recuperar. Nessa linha, afirmou o
autor

(...) a mudança de foco do direito falimentar brasileiro, afastando a


antiga preocupação primordial de liquidação e pagamento de
credores, para partir-se para uma busca de mecanismos que
privilegiem a manutenção da empresa e a preservação do emprego
e dos inúmeros benefícios sociais que a empresa propicia.
Rememora ainda que já em Alvará de 1756, a preocupação com a
recuperação do comerciante honesto era presente no pensamento
do Marquês de Pombal, que em sua Regra VIII, determinava que
“os que caírem em pobreza sem culpa sua... não incorrerão em
crime algum... serão os atos remetidos ao Prior e Cônsules do
Consulado, que os procurarão concertar e compor com seus
credores...” 20.

Jorge Lobo também apôs crítica relacionada ao funcionamento da


concordata, uma vez que, para ele, este sistema era utilizado pelo empresário de má-
fé para poder adiar o momento em que seria decretada, de fato, a quebra. Por
conseguinte, enquanto isso, o dono da empresa, na verdade, pretendia obter tempo
maior para desviar seus bens e, assim, fraudar os credores de maneira impune.
Referindo-se, ainda, ao Decreto-Lei 7.661/45, Jorge Lobo afirma que

                                                            
19 FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Falências – Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003, p. 35.
20 FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Falências – Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2003, p. 36 e 37.


 
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O que se verifica é que o sistema atual não consegue proteger os


credores da empresa concordatária ou falida e não consegue
também, por outro lado, preservar a empresa, apresentando-se
como sistema incapaz de preservar qualquer tipo de interesse,
atendendo apenas, na grande maioria das vezes, ao comerciante
oportunista e desonesto. 21

Diante do exposto acima sobre os objetivos e defeitos da antiga Lei de


Falências, bem como das ressalvas dos autores apresentados, verificou-se a
necessidade de fazer novo projeto de lei falimentar, que acompanhasse as
necessidades da sociedade hodierna. Por isso, em 1993, foi proposto projeto de lei
para alterar, significativamente, o regime jurídico concursal brasileiro e, depois de 10
anos de tramitação no Congresso Nacional, foi promulgada a Lei n. 11.101/2005, de
9 de fevereiro de 2005, assumindo vigência a partir de 9 de junho do mesmo ano.

3. A atual Lei de Falências nº 11. 101/2005 – Denominada de Lei de


Recuperação de Empresas

A nova Lei de Falências, n. 11.101/2005 foi aprovada e promulgada com o


objetivo de atender às novas exigências requeridas pelas empresas modernas,
tentando alcançar, simultaneamente, credores, devedores e toda a sociedade que
usufrui dos serviços por elas disponibilizados.
Além de aperfeiçoar o antigo sistema de concordatas, essa lei tem por
escopo a busca de novos princípios que devam ser respeitados e seguidos quando um
empresário estiver em momento de crise financeira e pretenda superá-la. Entre esses
princípios estão: a preservação da empresa, a função social, a circulação de bens e
serviços e o fluxo contínuo referente ao movimento de capital.
                                                            
21 FILHO, Manoel Justino Bezerra. Lei de Falências – Comentada. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003, p. 41.
 
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Conforme as palavras de Moacyr Lobato, a importância desse instituto


ocorre pelo fato de que

Particularmente, a recuperação judicial almeja a harmonização dos


interesses intrinsecamente conflituosos, titularizados pelos
credores, pelos empregados e pelo próprio devedor. (...)
Mencionou, expressamente, o estímulo à atividade econômica e o
prestígio da função social da propriedade como paradigmas da
recuperação judicial. 22

Entretanto, mesmo que a nova Lei de Falências tenha o objetivo de


promover a recuperação judicial de empresas que experimentem crise econômico-
financeira, este novo instituto deve ser usado de forma coerente e apenas naquelas
atividades empresariais que sejam economicamente viáveis para a sociedade como
um todo.
É relevante dar atenção para este aspecto, pois apesar da maioria das
empresas de hoje serem atualizadas tecnologicamente, com uma boa organização
administrativa e com um bom capital de giro, existem aquelas que se encontram
obsoletas em tecnologia e administração, o que pode afetar e prejudicar aquelas que
possuem ótimas condições de funcionamento empresarial.
Assim sendo, por mais que se queira recuperar os negócios que estão na
iminente falência, há casos em que é melhor ser decretada a “quebra” do que permitir
que uma atividade empresarial continue sem ter a menor perspectiva de melhora.
Com isso, é possível realocar recursos materiais, financeiros e humanos que antes
eram empregados nas empresas que faliram, redirecionando-os para aquelas que
estão em plena potência de produtividade de riquezas.

                                                            
22 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 79.
 
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3.1. Conceito de recuperação e o que vem a ser a recuperação judicial

O verbo recuperar tem por significado o sentido de reaver, recobrar,


readquirir algo que se perdeu, por exemplo. Traz, assim, a idéia de restabelecimento e
pode ser visto, também, como a noção de restauração de algum bem ou de algum
valor. A recuperação, em si, comporta o sentido de ressarcimento e seja qual for o
significado de recuperar ou de recuperação, haverá sempre a noção de uma iniciativa,
de uma reconstrução ou preservação.
O conceito de recuperação judicial seguirá o mesmo caminho, porém um
pouco mais complexo, pois envolve outros fatores sociais. Ela é caracterizada,
conforme o contexto da nova lei, pela soma de providências de caráter econômico-
financeiro, econômico-produtivo, organizacional e jurídica com a finalidade de
reestruturar e aproveitar, da melhor maneira possível, a potência produtiva de uma
empresa. Deste modo, o empresário consegue atingir renda auto-sustentável, que
permita a superação da crise financeira do negócio para, assim, manter sua produção
e sua função social.
De acordo com os dizeres de Waldo Fazzio Júnior,

A ação de recuperação judicial tem por meta sanear a situação


gerada pela crise econômico-financeira da empresa devedora.
Nela, o devedor postula um tratamento especial, justificável, para
remover a crise econômico-financeira de que padece sua empresa.
Seu objeto mediato é a salvação da atividade empresarial em risco e
seu objeto imediato é a satisfação, ainda que atípica, dos credores,
dos empregados, do Poder Público e, também, dos consumidores.
23

                                                            
23 FAZZIO JR., Waldo. Manual de Direito Comercial. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 615
 
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3.2. Natureza jurídica da recuperação judicial

O que predomina na recuperação judicial é a autonomia privada fundada na


vontade das partes interessadas que, co ela, visam atingir a finalidade de
soerguimento da empresa. Dessa forma, ela possui natureza de um contrato judicial
com feições sui generis, muito embora o plano recuperatório tenha se submeter à
avaliação judicial. Advirta-se, entretanto, que, quando o juiz concede o pedido de
recuperação, isto não repercute no conteúdo do que restou estabelecido entre as
partes.

A recuperação judicial, de iniciativa do devedor e consubstanciada


num documento submetido à deliberação dos credores reunidos
em assembleia e dependente da chancela judicial, encontra sua
natureza mais próxima do acordo de vontades. As partes
reconhecem que a adoção de tudo quanto esteja contido no plano
servirá como meio propício ao soerguimento pretendido. 24

3.3. As inovações conquistadas pela nova LRE

Conforme explicitado anteriormente, a atual Lei de Falências trouxe


inúmeras novidades para o ramo empresarial, inclusive para aqueles que se sujeitam à
falência. Dentre as várias inovações formuladas, encontram-se, entre outras: a
extinção das concordatas e a atuação da recuperação judicial (principal novidade); o
pedido da quebra perde um pouco a sua intensidade coercitiva, utilizada na cobrança
de dívida; permissão de, imediatamente, a realização do ativo; desnecessidade de
intervenção do Ministério Público em todos os processos em que figurem massas

                                                            
24 LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 116.
 
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falidas; alteração na ordem da classificação dos credores; necessidade de apresentação


de certidões negativas fiscais para a obtenção da recuperação judicial.
Apesar dos muitos aprimoramentos proporcionados pela LFRE, este estudo
pretende dar maior enfoque à questão da necessidade de apresentação de certidões
negativas fiscais pelo proponente. Isso porque essa exigência traz consigo aspecto
que tem gerado muitas controvérsias entre o que está explícito em lei e orientações
doutrinárias e jurisprudenciais sobre a realidade empresarial brasileira.

3.4. Controvérsias existentes acerca do artigo 57 da Lei 11. 101/2005

O art. 57 da LFRE estabelece a necessidade de apresentação de certidões


negativas fiscais de débito por parte do devedor para a obtenção da requerida
recuperação, o que diverge do art. 47, que mostra, de forma clara e explícita, que o
objetivo daquela lei é viabilizar a recuperação judicial de empresas em crise
econômico-financeira. Pretende-se, com isso, proporcionar a continuidade da
produção e garantir a sua função social e estimulação econômica. Mas isso não pode
ser atingido caso seja cumprido o estabelecido no art. 57 daquele mesmo diploma
legal.
Pelo assunto ser alvo de intensos debates entre doutrinadores, juízes e
outros especialistas da área, é importante a transcrever, integralmente, os artigos
mencionados:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a


superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a
fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego
dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo,

 
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assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à


atividade econômica. 25

Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovador pela


assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art.
55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará
certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151,
205, 206 da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código
Tributário Nacional. 26

O ponto central dessa controvérsia é o fato de que, como a Lei de Falências


veio para tornar mais acessível a recuperação judicial de uma empresa sujeita à
falência, seria absurdo colocar óbice à sua primordial. E isso se daria ao estabelecer
como requisito para conceder a recuperação judicial, a apresentação de certidões
negativas tributárias pelo devedor ao juiz, sob pena de se declarar a quebra.
Há de ser levado em consideração que quando uma empresa está em
condições financeiras dificultosas e precisa cortar os gastos, as primeiras dívidas
inadimplidas pelo empresário serão os débitos fiscais, ressaltando que é alta a carga
tributária nacional, pois o endividado privilegiará os fornecedores e os empregados,
porque sem estes a atividade empresarial fica inviabilizada, e o mesmo não ocorre
com os débitos fiscais.
Além do art. 57 conflitar com o art. 47 da LFRE, ele também afronta
normas constitucionais, como, por exemplo, o art. 6º da Constituição da República
que institui o direito ao trabalho como direito fundamental social. Recorde-se que, de
acordo com o art. 57, caso não seja apresentado ao juiz certidão negativa fiscal pelo
devedor empresário, decreta-se a falência da empresa. Isso ocasiona a resolução dos
contratos dos empregados e, desta maneira, aumenta a taxa de desemprego, o que
viola o art. 6º da Constituição da República, tipificando clara inconstitucionalidade.
                                                            
25 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de
Empresas (Lei n. 11. 101, de 9-2-2005). 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Pág. 112.
26 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de

Empresas (Lei n. 11. 101, de 9-2-2005). 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Pág. 165.
 
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Interessante notar que um dos efeitos proporcionados pela recuperação


judicial da empresa é a “dispensa da apresentação de certidões negativas para que o
devedor exerça as suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou
para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios...”, conforme o
inc. II do art. 52 da mesma lei. Portanto, não há como exigir certidões negativas
tributárias do devedor que pretende se recuperar, pois um dos reflexos da concessão
do procedimento recuperatório é justamente a dispensa delas para continuar a
atividade empresarial. Desta forma, evidencia-se novamente a antinomia do art. 57
para com o arcabouço principiológico da Lei 11.101/2005.
Ponto que merece relevância por parte do juiz quando do deferimento do
pedido de recuperação judicial é a anuência dos credores ao aprovarem o plano
apresentado pelo devedor, propiciando a ele a oportunidade de quitar as dívidas e
continuar com a atividade empresarial. Neste caso, mesmo que as certidões negativas
tributárias não tenham sido apresentadas, não parece ser plausível que o magistrado
indefira o pedido de recuperação por falta da apresentação das certidões, uma vez
que os próprios credores se posicionaram de comum acordo com a situação.

3.5. Posições doutrinárias e jurisprudenciais sobre a questão

Apesar do que estabelece o art. 57 da Lei 11.101/2005, a doutrina tem se


posicionado contrariamente ao seu teor com fundamento na idéia de que a finalidade
da LFRE é possibilitar e viabilizar a superação da crise econômica para as empresas
que a ela se sujeitam. Nessa linha, conclui-se que este artigo demonstra equívoco ao
colidir com o objetivo principal do estatuto falimentar. É o que pondera Julio Kahan
Mandel

 
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Aliás, neste ponto, a Lei não aproveitou o ensinamento que os 60


anos de vigência do Dec.-lei 7.661/45 trouxeram, a partir do
exame do art. 174 daquela lei. Este artigo exigia que, para que a
concordata fosse julgada cumprida, o devedor apresentasse
comprovação de que havia pago todos os impostos, sob pena de
falência. Tal disposição, de praticamente impossível cumprimento,
redundou na criação jurisprudencial que admitia o pedido de
desistência da concordata, embora sem expressão prevista legal, E
a jurisprudência assim se firmou, porque exigir o cumprimento
daquele art. 174, seria levar a empresa, certamente, à falência. Sem
embargo de tudo isto, este art. 57 acoplado ao art. 49, repete o
erro de trazer obrigações de impossível cumprimento para as
sociedades empresárias em crise27.

Os juízes têm seguido o mesmo caminho dos doutrinadores, confirmando a


orientação da não exigência das certidões negativas fiscais para a concessão da
recuperação judicial, o que entendem estar de acordo com o escopo da nova lei de
falências. Sendo assim, cabe citar inúmeras decisões que demonstram tal
entendimento.
As primeiras a serem mencionadas são as recuperações judiciais dos casos
da Varig e Parmalat, as quais os juízes dispensaram a apresentação das certidões para
a homologação do plano e concessão da recuperação judicial28. Outro
pronunciamento jurisprudencial que merece relato é a que se refere à Recuperação
Judicial da Marquat & Cia Ltda, de nº 1580/05, na 2ª Vara Cível do Foro de
Barueri/SP, a seguir:

Entendeu o MM. Juiz do caso em tela pela homologação da


recuperação judicial da Marquart & Cia Ltda, aduzindo que a
recuperação tem por objetivo a superação da crise econômico-
financeira do devedor, permitindo a manutenção da empresa

                                                            
27 MANDEL, Julio Kahan. A Recuperação Judicial de Empresas e a Fazenda Nacional. Disponível em:

<http://www.mandeladvocacia.com.br/artigo4.asp>. Acesso em: 13 de maio de 2010. 


28 News. Reestruturação e Recuperação de Empresas – 2 anos de vigência da lei de recuperação de empresas e falências

– orientações dos tribunais sobre aspectos controversos. 12 de nov. de 2007. Disponível em:
<http://www.tozzinifreire.com.br>. Acesso em: 13 de maio de 2010.
 
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como fonte produtora com o escopo de atingir a meta da função


social.
A exigência de juntada de certidões negativas de débitos
tributários não pode levar, automaticamente, à decretação da
falência, como requereu o Ministério Público, a partir de
manifestação da Procuradoria da Fazenda Nacional. Exemplifica a
“bem lançada manifestação do Ministério Público nos autos do processo de
recuperação da Parmalat, salientando que o projeto originário da Lei de
Recuperação Judicial teve afastado seu parágrafo único do artigo 57, que
estabelecia que na ausência de prazo para a juntada das certidões negativas, o
juiz decretaria a falência”.
Expõe sua percepção no sentido de que a doutrina tem-se
projetado no sentido de não ser cabível a exigência da oferta de
certidões como condição para a recuperação judicial e atenta para
o fato de que as execuções fiscais não estão sobrestadas pela
recuperação judicial, não havendo, destarte, prejuízos para o fisco,
sem falar que sequer houve a aprovação de lei especial a tratar das
condições de parcelamento dos créditos tributários (art. 155-A,
parágrafo 3º, do CTN). 29

Outro importante julgado ocorreu em agravo de instrumento do Banco Itaú


S/A contra a EMBEL – Empresa de Bebidas Ltda., que tramitou na 5ª Câmara Cível
do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

EMENTA: EMPRESARIAL, TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL


CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUPERAÇÃO
JUDICIAL - DEFERIMENTO - AUSÊNCIA DE CERTIDÃO
FISCAL NEGATIVA - POSSIBILIDADE - INEXISTÊNCIA
DE LEI COMPLEMENTAR SOBRE PARCELAMENTO DO
DÉBITO TRIBUTÁRIO - RISCO DE LESÃO AO PRINCÍPIO
NORTEADOR DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL -
IMPROVIMENTO DA IRRESIGNAÇÃO - INTELIGÊNCIA
DOS ARTS. 47, 57 E 68 TODOS DA LEI Nº 11.101/2005 E
ART. 155-A, §§ 2º E 3º DO CTN. A recuperação judicial deve ser
concedida, a despeito da ausência de certidões fiscais negativas, até
que seja elaborada Lei Complementar que regule o parcelamento
do débito tributário procedente de tal natureza, sob risco de
sepultar a aplicação do novel instituto e, por conseqüência, negar

                                                            
29 MANDEL, Julio Kahan. A Recuperação Judicial De Empresas e A Fazenda Nacional. Disponível em:

<http://www.mandeladvocacia.com.br/artigo4.asp>. Acesso em: 13 de maio de 2010. 


 
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vigência ao princípio que lhe é norteador (TJMG, Agravo de nº


1.0079.06.288873-4/001, 2008). 30

Na cidade de Contagem – MG, houve manifestação jurisprudencial no


agravo de instrumento que tramitava em desfavor da Pétalas Cosméticos Ind com
Ltda, consistente no seguinte acórdão

EMENTA: RECUPERAÇÃO JUDICIAL - LEI 11.101/05 -


IMPUGNAÇÃO CRÉDITO - MOMENTO OPORTUNO -
INTEMPESTIVIDADE - APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO
NEGATIVA DE DÉBITO FISCAL - FLEXIBILIZAÇÃO -
PLANO DE RECUPERAÇÃO APROVADO -
OBSERVÂNCIA. Eventuais impugnações acerca da legitimidade,
importância ou classificação de crédito relacionado pelo
administrador judicial devem observar o procedimento da Lei nº.
11.101/05, sob pena de aceitação tácita do quadro geral de
credores e sua conseqüente consolidação. As insurgências contra
os créditos listados pelo administrador judicial devem ser
apresentadas em 15 dias da publicação da primeira lista de
credores e em 10 dias da publicação da segunda lista. Os créditos
não impugnados ou impugnados intempestivamente serão
considerados habilitados pelo magistrado. Inaplicabilidade do art.
19 da Lei 11.101/05. A exigência do art. 57 da Lei de Recuperação
de Empresas deve ser mitigada tendo em vista o princípio de
viabilização da empresa de que trata o art. 47, bem como diante da
inexistência de lei específica que regule o parcelamento de débitos
ficais das empresas em recuperação (art. 68 da Lei 11.101/05). O
processo de recuperação judicial visa conciliar os interesses da
empresa recuperanda e dos seus credores, pelo que devem ser
observadas as exigências traçadas no plano de recuperação judicial
aprovado pela Assembléia Geral de Credores, com a anuência da
devedora (TJMG, Agravo de Instrumento de nº
1.0079.07.371306-1/001, 2009). 31

                                                            
30 Decisão jurisprudencial do TJMG. Disponível em: <
http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=79&ano=6&txt_
processo=288873&complemento=1>. Acesso em: 13 de maio de 2010.
31 Decisão jurisprudencial do TJMG. Disponível em: <
http://www.leidefalencia.com.br/destaques/tjmg-formacao-do-quadro-geral-de-credores-fases/>.
Acesso em: 13 de maio de 2010. 
 
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Por fim, menciona-se a decisão jurisprudencial de agravo de instrumento


interposta pela Fazenda do Estado de São Paulo contra a Viação Área São Paulo S.A.
– VASP, que tramitou na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo,
com a seguinte redação de julgamento:

Agravo de Instrumento. Recuperação Judicial. Aprovação do


plano de Recuperação Judicial. Decisão que concede a
Recuperação Judicial, com dispensa da apresentação das certidões
negativas de débitos tributários, exigidas pelo artigo 57, da Lei nº
11.101/2005 e artigo 191-A, do CTN. Recurso interposto pela
Fazenda Estadual. Exigência do artigo 57 da LRF que configura
antinomia jurídica com outras normas que integram a Lei nº
11.101/2005, em especial, o artigo 47. Abusividade da exigência,
enquanto não for cumprido o artigo 68 da nova Lei, que prevê a
edição de lei específica sobre o parcelamento do crédito tributário
para devedores em recuperação judicial. Dispensa da juntada das
certidões negativas ou das positivas com efeito de negativas
mantida. Agravo desprovido (TJSP, Agravo de Instrumento de nº
472. 540.4/7-00).32

Diante dos posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais acima, fica claro


que, apesar do que está previsto no art. 57 da Lei 11. 101/2005, a tendência seguida
pelos especialistas da área de falências tem sido a não exigência das certidões
negativas tributárias para a concessão da recuperação judicial.

                                                            
32 Decisão jurisprudencial do TJSP. Disponível no site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Acesso em: 14 de maio de 2010.


 
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3.6. Uma possível solução para as controvérsias existentes acerca do art. 57 da


Lei 11. 101/2005

Depois do estudo sobre o escopo da LFRE, sua natureza jurídica, as


novidades por ela estabelecidas e, principalmente, as divergências advindas do
conteúdo de seu art. 57, convém apontar provável solução para essa antinomia.
Vale ressaltar que, apesar de o art. 68 da atual LFRE dispor “que as
Fazendas Públicas e o Instituto Nacional de Seguro Social – INSS poderão deferir,
nos termos da legislação específica, parcelamento de seus créditos, em sede de
recuperação judicial, de acordo com os parâmetros estabelecidos na Lei 5.172, de 25
de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional”, este se demonstra um tanto
obsoleto, pela necessidade de se promulgar uma lei tributária nacional mais
compatível com as necessidades da economia hodierna e conforme as exigências das
atuais atividades empresariais.
Dessa forma, Hugo de Brito Machado, sugere a seguinte alternativa de
harmonização do problema hora abordado

Na verdade, deveria ter sido aprovada, junto com a Lei


11.101/2005, uma outra, instituindo um "parcelamento especial"
para os contribuintes em processo de recuperação judicial. Assim,
o contribuinte pediria a recuperação, em seu processamento o juiz
dispensaria a apresentação de todas as certidões (art. 52, II),
deferiria também o parcelamento especial (com o qual a empresa
conseguiria todas as certidões, com amparo nos arts. 151, VI e 206
do CTN), sendo assim viável a posterior concessão da
recuperação, nos termos do art. 191-A do CTN, e a homologação
do plano de recuperação, nos termos do art. 57 da Lei
11.101/2005. 33

                                                            
33 MACHADO, Hugo de Brito. Certidão Negativa e Recuperação Judicial. 24 de março de 2009.
Disponível em: <http://direitoedemocracia.blogspot.com/2009/03/certidao-negativa-e-
recuperacao.html>. Acesso em: 14 de maio de 2010.
 
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4. Conclusão

O presente estudo analisou a evolução histórica do Direito Comercial


Brasileiro, discorrendo a respeito das influências sofridas pelo Código Comercial
Francês e pelo Código Comercial Italiano, da antiga Lei de Falências e da nova Lei de
Recuperação de Empresas. Em seguida, dedicou-se maior enfoque sobre a
necessidade imposta pelo art. 57, a apresentação de certidões negativas fiscais pelo
devedor para que o juiz defira o pedido de recuperação judicial do empresário.
Destarte, conclui-se que enquanto não se solucionar essas controvérsias, a
forma encontrada de conceder a recuperação judicial para as empresas, para que estas
cumpram suas funções sociais, gerando empregos, circulação de bens e serviços, giro
de capital, é o magistrado relativizar o estabelecido pelo art. 57 da Lei 11.101/2005,
deferindo os pedidos requeridos pelos empresários.

5. Referências bibliográficas

BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Falências – Comentada. 2. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003.

CAMPINHO, Sérgio. Falência e Recuperação de Empresa – O Novo Regime da Insolvência


Empresarial. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife: Renovar, 2006.

COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas


(Lei n. 11. 101, de 9-2-2005). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

FAZZIO JR., Waldo. Manual de Direito Comercial. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
 
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LOBATO, Moacyr. Falência e Recuperação. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

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MACHADO, Hugo de Brito. Certidão Negativa e Recuperação Judicial. 24 de março de


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2007. Vol. I.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial – O novo regime jurídico-
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REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar. vol. I, 17. ed., São Paulo: Afiliada,
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SALAMACHA, José Eli. A Recuperação Judicial de empresas e as dívidas Fiscais. 07


de abril de 2010. Disponível em: <
http://www.netlegis.com.br/indexRC.jsp?arquivo=detalhesArtigosPublicados.jsp&c
od2=290>. Acesso em: 13 de maio de 2010.
 
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WILGES, Fernando dos Santos. A recuperação judicial da empresa e a possibilidade


de verificação da inconstitucionalidade do art. 57 da Lei nº 11.101/05 pela via do
controle difuso. Junho de 2006. Disponível em: <
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8836>. Acesso em: 13 de maio de
2010.

<http://www.tozzinifreire.com.br/mostra_preview.php?codigo=1042&codigo_som
a=26&numeracao2=&modelo=1&enviado=1&preview=1&eng=>. Acesso em: 13
de maio de 2010.

<http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodig
o=79&ano=6&txt_processo=288873&complemento=1>. 06 de junho de 2008.
Acesso em : 13 de maio de 2010.

 
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DILUIÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DAS SOCIEDADES EM CONSÓRCIOS


EMPRESARIAIS

Camila Chamas Falcão1

RESUMO

O consórcio é figura regulada pelos artigos 278 e 279 da Lei 6.404/76 e consiste na
união de empresas que se relacionam para a realização de um determinado objetivo,
resultando na criação de uma nova estrutura organizacional que representa o
agrupamento, sem intervir na identidade de cada sociedade, que se mantém jurídica e
patrimonialmente independente. Sua criação se justifica pela dinâmica atual das
relações comerciais e tem como objetivo a sobrevivência das empresas na economia
mundial, o incremento do desenvolvimento tecnológico e o aumento da
competitividade e da concorrência, o que estimula a atuação em parceria das
sociedades, a fim de que possam participar em determinados negócios de vulto.
Assim, através de um contrato, duas ou mais sociedades se vincularão apenas na
medida do necessário para a execução de um determinado empreendimento, sem que
desse contrato resulte a criação de uma nova sociedade. Dessa forma, por ser figura
desprovida de personalidade jurídica, o consórcio não apura lucros, nem perdas. Os
resultados obtidos são atribuíveis individualmente a cada consorciado, de acordo
com os ajustes estabelecidos no contrato. Por conseguinte, o financiamento do
empreendimento será realizado por cada uma das empresas consorciadas. Portanto,
caso haja inadimplemento de uma consorciada, as demais deverão arcar com a
inadimplência, aplicando recursos próprios, além do limite estabelecido no contrato
de consórcio, para viabilizar a continuidade do negócio. Desse modo, afigura-se
possível a diluição da participação das empresas no consórcio, tendo em vista que
nas sociedades a diluição ocorre de acordo com a participação de cada sócia, com
base no capital social? Como essa figura poderá ser aplicada aos consórcios? Partindo
dessa indagação, analisar-se-á a natureza jurídica do consórcio, bem como o instituto
da diluição societária, para verificar a possibilidade de diluição da participação das
sociedades em consórcio empresarial.

                                                            
1 Mestranda em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos. Especialista em

Direito Processual pela PUC/MG. 


 
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Palavras-Chave: Consórcio, Diluição, Participação; Consortium, Dilution, Equity.

SUMÁRIO

1. Introdução 2. O que é um consórcio? 3. Regime legal do consórcio 4. Natureza


jurídica e qualificação do contrato de consórcio 5. A prática dos contratos de
consórcio 6. Aproximação entre o consórcio e as sociedades 7. O sócio remisso no
Código Civil e o acionista remisso na LSA 8. Comparação entre o remisso e
consorciado inadimplente (incapaz de colaborar com o necessário para a
continuidade do consórcio) 9. Aplicação da redução de participação por
inadimplência nas relações consorciais 10. Exceções à regra da redução: obrigações
personalíssimas 11. No silêncio das partes, a adoção da solução economicamente mais
eficiente 12. Conclusão 13. Referências bibliográficas.

1. Introdução

No direito brasileiro, os consórcios foram regulados pelos artigos 278 e 279


da Lei das Sociedades Anônimas, a Lei 6.404/1976 (LSA). Alfredo Lamy e Bulhões
Pedreira, mentores intelectuais da referida lei, destacaram, na sua exposição de
motivos, que as disposições constantes daqueles dois artigos não trouxeram inovação
alguma, apenas convalidaram o que já existia na prática2.
Todavia, foi com o advento da regulamentação que a figura do consórcio
passou a ser mais utilizada, principalmente na área de grandes projetos e
empreendimentos. Hoje, com a globalização da economia e a internacionalização dos
mercados, a formação de consórcios tornou-se um “imperativo da vida negocial”3 para as
sociedades empresárias que pretendem melhorar seu desempenho, ganhar

                                                            
2 LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A lei das S.A.: pressupostos, elaboração e
aplicação. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 251.
3 TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Das sociedades anônimas no

Direito brasileiro. v. 2. São Paulo: Bushatsky, 1979, p. 793.


 
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competitividade, desenvolver seu potencial tecnológico ou, no mínimo, partilhar


riscos.
Ao reunir e racionalizar esforços, aproveitando-se das sinergias e da
ampliação das próprias capacidades, especialmente no âmbito técnico e econômico,
as sociedades empresárias consorciadas tornam-se mais eficientes e aptas (habilitadas)
para os mais variados negócios. Muitas das vezes, tais negócios seriam absolutamente
inacessíveis, caso fossem intentados isoladamente. Assim, o consórcio é a união
temporária, e algumas vezes necessária, de duas ou mais sociedades para a realização
de determinado objetivo compartilhado: o objeto do consórcio.
Mas, como em toda parceria, a Fortuna pode reservar a cada um dos
parceiros, em suas diversas relações independentes do consórcio, surpresas capazes
de suplantar todas as Virtudes. Sempre poderá haver descumprimentos dos termos
em que foi pactuada a colaboração das consorciadas e, com isso, o início dos
problemas para as partes, com grave risco para o objeto do consórcio.
Como o consórcio não constitui uma sociedade nova, uma nova
personalidade jurídica distinta das sociedades consorciadas, cada empresa deverá
agregar esforços e recursos individuais para a consecução do objetivo comum. Se
uma das consorciadas não cumpre com suas obrigações de colaboração para com o
consórcio (e.g., aportes financeiros e não financeiros), impõe óbices para que seja
alcançado o resultado visado e sujeita os integrantes do consórcio às conseqüências
do inadimplemento. Isso porque mesmo que os direitos e obrigações sejam
imputados individualmente na esfera jurídica de cada consorciada, a coordenação
entre as atividades desenvolvidas separadamente pelas consorciadas, que é da
essência do consórcio, faz com que as sociedades se apresentem como agrupamento
ordenado que atua coletivamente perante terceiros e para o cumprimento do objeto
para o qual o consórcio foi formado.

 
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Dessa forma, o descumprimento das obrigações por uma das consorciadas


deve gerar a possibilidade das consorciadas adimplentes cumprirem a obrigação em
nome da inadimplente, garantindo a continuidade do empreendimento e evitando
resquícios da responsabilização por violações perpetradas em consórcio. Aqui,
importa asseverar que, apesar da LSA afastar a presunção de solidariedade entre as
consorciadas, o artigo 33, inciso V, da Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações) acabou por
fazer com que, na prática, a maior parte dos instrumentos de constituição de
consórcios instituísse a responsabilidade solidária das consorciadas pelos atos
praticados em consórcio.
Mas não faz sentido imaginar que a consorciada adimplente supra as faltas
da consorciada inadimplente sem qualquer contrapartida, apenas ampliando os seus
esforços em nome da parceria. Isso porque, em sua essência, o próprio consórcio
decorre de um contrato comutativo entre as consorciadas. É preciso que haja uma
proporcionalidade entre o sacrifício suportado (a colaboração ou o aporte realizado)
e a vantagem que se busca (a participação no resultado). Pois, se de outra forma
ocorresse, a constituição de consórcios não seria considerada alternativa interessante
de agregação empresarial, já que não conseguiria resguardar as partes do
inadimplemento de suas próprias parceiras. Não haveria verdadeira partilha dos
riscos do negócio.
Assim, tentaremos responder às seguintes perguntas: (i) É válida cláusula do
contrato de consórcio que estipula a “redução de participação da consorciada por
inadimplência”? e (ii) Mesmo no silêncio do contrato de constituição do consórcio, a
redução de participação é uma solução válida?

 
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2. O que é um consórcio?

O consórcio, nos dizeres do professor Alberto Xavier, “é um negócio típico


nominado, representando o esquema, modelo ou tipo de regulamentação predeterminado na lei,
construído para servir de instrumento jurídico idôneo a organizar a cooperação, temporária e
limitada, entre empresas, sem diminuição da respectiva individualidade jurídica e independência
econômica.”4.
Assim, os consórcios consistem em fórmulas de concentração provisória e
flexível, efetivadas pela união de sociedades empresárias que se relacionam para a
realização de um determinado objetivo. Seu ponto crucial reside exatamente em sua
finalidade: a execução de determinado empreendimento. Contudo, outro ponto
importante que também merece o mesmo destaque refere-se à forma como as
sociedades empresárias se vincularão no consórcio: apesar da união entre elas, cada
consorciada manterá sua independência jurídica e financeira.
De acordo com Fábio Konder Comparato “a chave do êxito passa pela
conjugação de esforços e recursos, sem supressão da autonomia das diferentes unidades em causa.
Cada empresa continua a perseguir o seu próprio objetivo, sob o controle independente de cada
empresário, mas o método de trabalho não é mais individualista. Criam-se estruturas de cooperação
institucional, onde antes havia um conjunto de operações isoladas. Aí está, em linhas gerais, a idéia
justificadora dos consórcios empresariais”5.
O consórcio é vocacionado para a transitoriedade e sua duração deverá
coincidir com a duração do empreendimento que constitua o seu objeto.

                                                            
4 XAVIER, Alberto. “Consórcio: natureza jurídica e regime tributário”. Revista Dialética de Direito
Tributário. nº 64. Janeiro/2001, p. 7.
5 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1978,

p. 223.
 
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3. Regime legal do consórcio

Conforme já exposto, a lei geral do consórcio é a LSA, que, em dois artigos,


deu contornos genéricos ao tema. Não obstante, a legislação esparsa que tratava da
matéria, anterior à promulgação da LSA, continua em vigor6. Da mesma forma,
legislações posteriores também tratam da matéria de forma direcionada, regulando a
possibilidade de sua existência e aspectos específicos referentes a consecução de
determinados objetivos, em particular quando relacionados ao Poder Público, tal qual
a Lei de Licitações, que regula o instituto do consórcio para efeito de contratação
com a Administração Pública, e a Lei 9.478/1997 (Lei do Petróleo), que dispõe sobre
os consórcios participantes das licitações para outorga de contratos de concessão
celebrados com a Agência Nacional do Petróleo (ANP).
As cláusulas necessárias à validade e à eficácia de todos os contratos de
consórcio estão prescritas no artigo 279 da LSA. Contudo, tais cláusulas são os
requisitos mínimos de literalidade do contrato, que não contemplam questões
fundamentais do regime consorcial, ou seja, não tratam da relação do consórcio com
terceiros, nem de aspectos básicos da dinâmica que será estabelecida entre as próprias
consorciadas. Além desses requisitos, o contrato de consórcio pode, ou melhor
dizendo, deve conter outras disposições, tendo em vista a complexidade da relação
consorcial.
Portanto, respeitadas as disposições das legislações aplicavéis ao tipo de
consórcio que se deseja constituir, as partes poderão dispor sobre outras questões
que entendam necessárias ao ajuste consorcial, tais como regras de ingresso e saída

                                                            
6 À guisa de exemplo, algumas leis nas quais se encontram previsões sobre os consórcios antes do

advento da LSA: Código de Águas (Decreto-lei nº 24.643/1934), Lei de Mercado de Capitais (Lei
4.728/1965), Código Brasileiro do Ar (Decreto-lei nº 32/1966) e Código de Mineração (Decreto-lei nº
227/1967). Em todos esses diplomas, existem apenas breves referências ao consórcio, sem estipular
requisitos que caracterizem essa modalidade de colaboração interempresarial.
 
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de consorciadas, penalidades, hipóteses de exclusão, causas de denúncia, rescisão,


faculdade de retirada e procedimentos de liquidação. Enfim, onde não impera a
Ordem Pública, podem os contraentes atuar com liberdade, com um complementar
exercício, considerável e praticamente imprescindível, da autonomia privada. Até
porque não é concebível que um consórcio constitua-se de maneira enxuta, eis que
não pode contar com um nível mínimo de construção legal do seu regime.

4. Natureza jurídica e qualificação do contrato de consórcio

Por expressa disposição legal (art. 278, §1º, LSA), o consórcio é destituído
de personalidade jurídica e deve ser constituído através de um contrato de
coordenação nominado celebrado entre titulares de sociedades independentes que
visam desenvolver conjuntamente operações.
Assim, não existe uma sociedade consórtil, mas apenas um contrato
associativo. De acordo com Lacerda Teixeira e Tavares Guerreiro, o consórcio é uma
“simples fórmula associativa de diversas pessoas jurídicas, desprovido de personalidade e de
patrimônio e com conotação marcadamente contratual”7.
Dessa forma, inquestionável a natureza convencional do consórcio.
Todavia, o contrato de consórcio não pertence ao rol de contratos bilaterais,
em que há prestações correspectivas. Trata-se de contrato plurilateral, pois os interesses
contrastantes das partes se unificam por meio de um escopo comum. No contrato
plurilateral, uma parte obriga-se perante todas as outras e em relação a elas adquire
direitos. A consequência dessa vinculação é a coordenação das partes em torno de
uma finalidade comum.

                                                            
7 TEIXEIRA, Egberto Lacerda; GUERREIRO, José Alexandre Tavares, op. cit., p. 797.
 
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Segundo Tullio Ascarelli, o conceito de “fim ou escopo” ganha, nos


contratos plurilaterais, a sua autonomia. Nos contratos bilaterais, o escopo identifica-
se com a função típica do próprio contrato, como no caso da compra e venda, em
que ocorre a transferência da propriedade da coisa pelo pagamento do preço. Já nos
contratos plurilaterais, o escopo “constitui o elemento ‘comum’, ‘unificador’ das várias adesões,
e concorre para determinar o alcance dos direito e dos deveres das partes”8.
Assim, a função do contrato plurilateral não termina quando as obrigações são
executadas pelas partes. A execução das obrigações constitui uma premissa para uma
atividade ulterior, sendo a realização dessa atividade que constituirá a finalidade do contrato.
O contrato serve, portanto, como instrumento para a organização das várias partes em
relação ao desenvolvimento de uma atividade posterior.
O contrato plurilateral de consórcio se instrumenta através de um contrato
escrito, que se considera típico, associativo, oneroso e normativo. Nos dizeres de Antônio
Junqueira de Azevedo, o contrato de consórcio é também relacional, pois é de duração
e exige fortemente a colaboração9.

5. A prática dos contratos de consórcio

Embora a LSA tenha estabelecido “em dispositivo bastante criticado, que a


solidariedade do consórcio não se presume (art. 278, §2º)”10, as consorciadas acabam por
sempre fixar a solidariedade no contrato, conforme nos mostra o mestre Roberto
Papini: “Na prática, temos observado a declaração de solidariedade feita pelos consorciados por

                                                            
8 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades snônimas e direito comparado. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1969,
p. 272.
9 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009,

p. 355.
10 PENTEADO, Mauro Rodrigues. Consórcio de empresas. São Paulo: Pioneira, 1979, p. 35. 

 
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todas as obrigações assumidas pelo consórcio, sem prejuízo da definição dos compromissos e obrigações
de cada uma delas, de acordo com o objeto do empreendimento”11.
Como exposto pelo catedrático português Raul Ventura, ao tratar das
obrigações entre as consorciadas no direito brasileiro, a questão da solidariedade
influencia diretamente os terceiros que se relacionam com o consórcio: “Sucede, porém,
que a questão do regime dessas obrigações – solidariedade ou conjunção – é usualmente colocada não
nas relações internas do consórcio (onde, contudo, não seria teoricamente impossível) mas sim nas
relações externas, com terceiros. E para esta conclusão pode argumentar-se com o facto de a negação
da presunção de solidariedade das obrigações das consorciadas aparecer juntamente com a recusa de
personalidade jurídica, cuja importância é, sobretudo, externa. É óbvio, contudo, que as estipulações
existentes no contrato de consórcio não vinculam o terceiro que contratar com o consórcio, o qual pode
exigir a solidariedade das consorciadas ou contentar-se com a conjunção de duas obrigações para com
ele.”12.
O contratante público, como vimos, exige sempre a solidariedade entre as
consorciadas, por força do artigo 33, V, da Lei de Licitações. Por sua vez, o
contratante privado também não quer ter o ônus de apurar a divisão de obrigações
imputadas internamente entre as consorciadas, já que, assim como a Administração
Pública, acaba por contratar com o “consórcio” e não com cada consorciada de
forma estanque. Caso ocorra algum problema, o contratante particular também não
quer ter que provar a responsabilidade de cada consorciada e impõe, por sua posição
usualmente privilegiada, possibilidade de acionar todas as sociedades integrantes do
consórcio ou apenas a que escolher, em regime de solidariedade.
Assim, por exigência daqueles que contratam com os consórcios, a
solidariedade entre as consorciadas sempre existirá e deverá ser ajustada no contrato.
                                                            
11 PAPINI, Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999,
p. 323.
12 VENTURA, Raul. “Primeiras notas sobre o contrato de consórcio”. Revista da Ordem dos Advogados.

Ano 41, III, set./dez. 1981, p. 611.


 
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Neste campo, é sempre bom lembrar que, ainda que a solidariedade não esteja
expressa no contrato de constituição de consórcio, sempre poderá vir no regime
negocial do empreendimento que será desenvolvido pelas consorciadas. De uma
maneira ou de outra, dificilmente o inadimplemento de uma consorciada passará sem
conseqüências para as demais parceiras.

6. Aproximação entre o consórcio e as sociedades

As sociedades de pessoas têm no relacionamento entre os sócios a sua razão


de existir. A vinculação entre os sócios funda-se na confiança que cada um deposita
nos demais e, ipso facto, nas qualidades pessoais de cada um deles.
Nos consórcios nos quais as partes convencionam solidariedade não é
muito diferente. A participação das consorciadas se faz intuitu personae, ou seja, na
medida em que cada uma delas assume a responsabilidade pelo resultado da atividade
final do consórcio, sem discriminação das obrigações desempenhadas
individualmente por cada parte, confiando em suas parceiras e nelas depositando
expectativas.
Assim, os consórcios, em especial quando há a solidariedade, encontram-se
revestidos de um inequívoco caráter personalíssimo, que implica necessariamente em
reconhecer a inegável affectio societatis que a prática jurídica impôs a este instituto.
A chamada affectio societatis é reconhecida no elemento psicológico necessário
para a formação da sociedade, consistente na vontade de cooperação entre os sócios
e na assunção da responsabilidade dos resultados da atividade empresária.
As consorciadas, além de terem manifestado vontade no sentido de se unir
para a realização de um objetivo comum, com a instituição de solidariedade,

 
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reconhecem que se submetem ainda a suportar prejuízos em decorrência do negócio


comum.
A solidariedade amplia a vinculação entre as consorciadas, fazendo com que
elas efetivamente adequém sua conduta e seus interesses pessoais, eventualmente
egoístas e não coincidentes, às necessidades do consórcio, a fim de que este possa
cumprir o seu objetivo.
Existente, portanto, o ânimo de união e aceitação das áleas próprias do
empreendimento pelas consorciadas, o que caracteriza a affectio societatis no âmbito do
consórcio.
Marçal Justen Filho, ao expor sobre a solidariedade consorcial asseverou
que “ para fins de licitação e de contratação administrativa, o consórcio produz uma espécie de
sociedade de fato, em que todos os atos praticados individualmente se comunicam aos demais
consorciados”13.
Como vimos de ver, a solidariedade passou a ser a regra imposta pela
prática aos ajustes consorciais, o que transforma praticamente todos os consórcios
em sociedades de fato, nas quais é inequívoca a existência da affectio societatis.
Por sua vez, é flagrante que o reconhecimento da affectio societatis acarreta,
necessariamente, profundas alterações no que diz respeito a interpretação dos fatos
havidos no âmbito do consórcio. Se há, no consórcio, o desejo das consorciadas de
operar unidas por interesses e riscos comuns, certamente os contratos e relações
internas hão de ser vistos, analisados e interpretados sob o prisma da confiança
mútua, e, obviamente, na ótica dos interesses convergentes.
Portanto, podemos perceber que as relações entre as consorciadas se
assemelham em muito às relações entre os sócios de uma sociedade.

                                                            
13JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 11 ed. São Paulo:
Dialética, 2005, p. 361. 
 
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7. O sócio remisso no Código Civil e o acionista remisso na LSA

Feita a aproximação entre a figura do consórcio e as sociedades, importa


passar ao tratamento que a lei confere ao sócio e ao acionista remissos, que falham
com a mais essencial das obrigações de colaboração social.
Nas sociedades de fins econômicos torna-se indispensável ao
desenvolvimento da atividade a contribuição de cada sócio, na forma estabelecida em
seu instrumento de constituição. Assim, as obrigações dos sócios de investir na
sociedade determinados recursos, normalmente referidos em moeda, é contratual. É
no contrato social que está prevista a quota de cada sócio, o modo de realizá-la e
demais prestações com as quais tenha se comprometido. Em alguns casos, a
necessidade de recursos não é imediata, hipótese na qual os sócios terão tempo para
cumprir a obrigação ou poderão cumpri-la de forma parcelada.
As prestações a que os sócios se comprometem são necessárias para o
funcionamento da sociedade, para a realização do escopo ou interesse comum. Desta
feita, estipulada as obrigações de todas as partes, cada sócio confia que a contribuição
do outro seja realizada, sem o que o exercício da atividade objeto da sociedade estará
comprometido.
Assim, não se suporta o atraso doloso ou culposo do sócio na prestação de
sua obrigação, porque isso impõe danos a todos, ao conjunto e a cada um dos
participantes da sociedade. Por isso, a lei prevê formas de punição ao sócio
inadimplente, além de alternativas para a manutenção da sociedade, nos casos em que
a affectio societatis não tenha se perdido com inadimplemento.
Com efeito, de acordo com o artigo 1.004 do Código Civil (CC), que se
refere às sociedades simples, mas poderá ser aplicado à sociedade limitada e aos
demais tipos societários, o sócio que não cumprir sua obrigação de aportar os
recursos contratados na forma e no prazo avençados poderá ter que pagar uma
 
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indenização à sociedade, ou, a critério dos demais sócios, ser excluído da sociedade
ou ter sua quota reduzida ao montante já realizado.
A essa redução de quota do sócio inadimplente se dá o nome de diluição.
Assim, a diluição a que se refere esse trabalho nada mais é do que a redução da
participação proporcional do sócio no capital da sociedade.
O instituto da diluição trata-se de uma opção que a lei defere aos sócios
adimplentes, ou seja, que se encontram em dia com as contribuições estabelecidas no
contrato social. Nos termos do parágrafo único, do artigo 1.004, do CC, verificada a
mora de um dos sócios, pode a maioria dos demais sócios deixar de exigir a indenização
correspondente e manter o sócio remisso, reduzindo-lhe a quota (ou a participação) a
montante compatível com o que já tiver colaborado. O que o dispositivo legal oferece,
em síntese, é uma solução para os casos em que ainda há a affectio societatis. Se, apesar
da inadimplência, os sócios adimplentes têm interesse em contar com o sócio
remisso, sua participação é reduzida, mas proporcionalmente preservada. Enfim, o
sócio remisso perde os anéis, mas conserva os dedos para trabalhar em prol dos objetivos da
sociedade.
Assim, o que a lei prevê não é uma penalidade para aquele que viola sua
obrigação mais essencial no contrato de sociedade. Pelo contrário. Trata-se de um
perdão ao inadimplente que vê seu débito para com a sociedade ser quitado ante à
transferência de sua participação àqueles sócios dispostos a suprir sua inadimplência.
É justamente por isso, que o instituto aparece como alternativa à exigência de uma
indenização, que jamais pode ser entendida como penalidade. Por óbvio, o objetivo é
apenas tornar indene.
Ao decidir por reduzir a quota do remisso, os sócios adimplentes podem
também determinar que aquela quota-parte reduzida seja subscrita pelos demais
sócios, respeitado o direito de preferência, observada, ainda, a proporcionalidade das
participações dos sócios adimplentes. Havendo a integralização pelos demais sócios,
 
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garante-se a plena continuidade da operação da sociedade, já que o total de fundos


necessários estaria disponível, recomposto pelos sócios que adquiriram parte da
participação do sócio remisso.
Se formos adiante no Direito Societário, percebemos que a LSA também
traz uma solução para os casos em que há um acionista remisso. Este será executado
pela companhia ou terá as suas ações (não integralizadas) leiloadas. Na segunda
opção, passará a ser acionista em menor medida, eis que remanescerá apenas com as
ações que tiver integralizado. Aqui, é preciso lembrar que a solução da LSA, como já
era de se esperar, tem menor consideração pela affectio societatis. O que impõe observar
que, muito provavelmente, o vínculo de colaboração que une os consorciados em
prol do objeto do consórcio assemelha-se mais àquele que se verifica entre os sócios
do que aquele que, em geral, percebe-se entre os acionistas.
As sociedades, portanto, possuem mecanismos que visam a induzir os
sócios a cumprir suas obrigações para com a sociedade, ao mesmo tempo em que,
constatado o inadimplemento, possibilitarão aos participantes adimplentes optar por
manter o sócio remisso na organização, apenas na exata medida em que tiver
colaborado ou que puder continuar a colaborar com o objeto social.

8. Comparação entre o remisso e o consorciado inadimplente (incapaz


de colaborar com o necessário para a continuidade do consórcio)

O remisso, conforme exposto no tópico acima, é aquele que não cumpre com
seu dever básico de colaboração e participação, violando a essência da própria
sociedade ao falhar na contribuição para a formação do capital social.
A idéia que queremos introduzir aqui é a do consorciado inadimplente, aquele
incapaz de colaborar com os recursos necessários para as atividades essenciais ao
 
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bom andamento do empreendimento desenvolvido pelo consórcio. Não há dúvidas


de que as consorciadas deverão contribuir, na proporção avençada entre elas, para as
despesas comuns e necessárias ao desenvolvimento das atividades que compõem as
obrigações complexas assumidas pelo consórcio. Essas despesas referem-se, e.g., ao
pagamento da remuneração dos empregados do consórcio (lembrando que o Direito
do Trabalho, independentemente da disposição das partes, imputa responsabilidade
solidária às sociedades integrantes do consórcio, conforme disposto no artigo 2º, § 2º
da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei 5.452/1943);
pagamento de tributos, encargos e contribuições devidos em virtude das atividades
exercidas pelo consórcio; quitação de títulos regularmente emitidos contra o
consórcio; pagamento de débitos contratuais com fornecedores e prestadores de
serviço do consórcio; pagamento dos débitos de água, energia elétrica, telefonia do
consórcio; dentre outras estritamente necessárias ao andamento das atividades
consorciais.

9. Aplicação da redução de participação por inadimplência nas relações


consorciais

Para Mauro Penteado “subsistem algumas situações em que a melhor forma para a
consecução dos objetivos do consórcio seria o recurso ao esquema legal das sociedades, e que, nestes
casos, regras específicas poderiam ser cogitadas, a fim de melhor permitir o alcance de tais finalidades,
bem assim a tutela dos interesses em jogo”14.

                                                            
14 PENTEADO, Mauro Rodrigues, op. cit., p. 68. 
 
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O inadimplemento de uma consorciada seria uma das hipóteses em que se


afiguraria o cabimento da aplicação de um instituto típico das sociedades ao
consórcio.
A falta de aportes por uma consorciada acarreta prejuízos para a
continuidade do consórcio, podendo, inclusive, acarretar na paralisação do
empreendimento.
Modesto Carvalhosa é quem ensina sobre a necessidade da contribuição
pelas consorciadas para as despesas comuns como forma de viabilizar a existência do
consórcio: “A criação de um fundo comum é geralmente indispensável para a cobertura de pequenos
gastos, como será o caso de consórcios instrumentais, ou para atender às relevantes despesas próprias
dos consórcios operacionais”15.
Na constituição desse fundo, chamado de fundo consórtil, as consorciadas
deverão contribuir com as despesas, segundo critérios de rateio estabelecidos no
instrumento de constituição. Salienta-se que a repartição das contribuições para o
fundo consórtil ou de quaisquer outros aportes necessários para pagamento de
despesas inadiáveis do consórcio nem sempre seguirá a proporção da participação
das consorciadas nos resultados. Pode-se estabelecer que, de acordo com a natureza
das obrigações de cada consorciada, a repartição das despesas comuns seja realizada
de forma desigual ou nem ocorra entre todas as consorciadas.
Contudo, caso haja divisão das despesas e definição de aportes necessários,
as partes poderão ajustar no contrato de constituição do consórcio medidas a serem
tomadas em caso de inadimplemento de uma consorciada em realizar os referidos
aportes. De toda forma, não se pode perder de vista que as medidas a serem
estipuladas no contrato devem sempre assegurar a continuidade das atividades, sem
onerar desarrazoadamente as consorciadas adimplentes.
                                                            
15CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. v. 4. Tomo II. 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 421.
 
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Assim, defende-se que uma das medidas a serem previstas pelas


consorciadas no contrato de consórcio poderá ser a da redução da participação da
consorciada inadimplente, que passará a ter de contribuir menos, correndo menos
riscos e visando menor participação nos resultados do empreendimento. Trata-se de
solução que tem clara inspiração nos moldes adotados pelas sociedades empresárias.
No consórcio, tal qual em uma sociedade, não se pode afirmar que a falta da
consorciada em cooperar para os fins comuns acarrete sempre um desentendimento
insuperável entre as partes. Dependendo das circunstâncias, o consórcio poderá
continuar normalmente suas atividades e as demais consorciadas poderão ter
interesse em conviver com a inadimplente, desde que devidamente superada a sua
inadimplência. Essa aferição, que envolve questões de fato, dependerá do papel a ser
cumprido por cada consorciada para o sucesso comum.
Assim, como o inadimplemento é fato danoso ao consórcio e, pela
solidariedade, potencialmente danoso a cada uma das consorciadas, a forma de
possibilitar a continuidade das atividades será a recomposição dos valores não
aportados por uma das consorciadas através de aporte feito pelas demais
consorciadas no lugar da consorciada inadimplente, que terá sua participação nos
resultados, e, conseqüentemente, seus direitos e deveres para com o consórcio e com
as demais consorciadas, proporcionalmente reduzidos.
Ademais, em muitos casos, apenas com a manutenção de todas as
consorciadas, mesmo que alguma delas tenha a participação reduzida, será possível a
continuidade do próprio consórcio com a consecução completa de seu objetivo final.
Neste ponto, é importante ressaltar que a interrupção do consórcio, a paralisação ou,
in extremis, o seu abandono, pode atentar até mesmo contra o interesse público, eis
que o modelo é bastante usual no âmbito das obras públicas. Dessa forma, a redução
da participação da consorciada mostra-se como uma alternativa que consegue
equilibrar o atendimento aos interesses privados e internos das consorciadas com o
 
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interesse público de continuidade da atividade conjunta das consorciadas. Obras


públicas são continuadas, empregos são mantidos, fornecedores do consórcio são
respeitados, enfim, a rede de contratos que se forma em virtude do consórcio tende a ser
preservada.

10. Exceções à regra da redução: obrigações personalíssimas

Se o consórcio tiver assumido obrigações de caráter personalíssimo, que


levem em conta o perfil das consorciadas, a participação destas torna-se
intransmissível e, por conseguinte, alteração das participações pode frustrar aqueles
que se encontram em relação direta com o consórcio. Poderia haver até mesmo
prejuízo para a capacidade executiva do consórcio, especialmente no que se refere à
técnica. Quem contratou com o consórcio pode ter levado em especial consideração
suas características, principalmente no que diz respeito às partes que o compõem, os
papéis por elas desempenhados e suas qualidades pessoais. A aptidão técnica de uma
consorciada, muitas vezes, é insubstituível, constatação que pode condicionar a
diminuição de sua participação à concordância de todos aqueles cujas expectativas
estão em jogo.
Nos casos de consórcios que contratam com o Poder Público, muitas vezes
o caráter personalíssimo da obrigação decorre do edital, já que este, via de regra, veda
a alteração das participações das consorciadas após a adjudicação do objeto da
licitação. Isso porque a alteração das participações das sociedades no consórcio é ato
que interessa diretamente à Administração. As partes consorciadas, apesar de serem
solidariamente responsáveis pelos atos praticados em consórcio, comprometeram-se
perante a Administração com certa divisão de esforços. Logo, esta divisão de

 
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esforços já não interessa apenas as consorciadas e não poderá ser alterada sem a
anuência da contratante.
Assim, a aplicação da redução da participação da consorciada inadimplente
encontrará óbice quando as obrigações a serem cumpridas pelas consorciadas forem
de caráter personalíssimo, já que não será possível a livre substituição das prestações
imputadas a cada consorciada. O ânimo associativo deverá ser mantido como no
momento da constituição do consórcio e as consorciadas deverão buscar outras
alternativas para o caso de inadimplemento de uma delas.
Ainda assim, interessa notar que o quantum da participação de cada
consorciada no consórcio costuma corresponder à respectiva capacidade econômica
e não técnica. Os dias atuais são caracterizados por um ampla transmissibilidade de
tecnologia. Por isso, a proposta de uma redução da participação da consorciada incapaz
de colaborar pode ser extremamente interessante para todo o conjunto de atores
econômicos que se relacionam com o consórcio, até mesmo o seu denominado
“contratante principal”. A redução evita a exclusão e garante que as qualidades
pessoais de todos as consorciadas continuem à disposição, sem que faltem os
necessários recursos econômicos.

11. No silêncio das partes, a adoção da solução economicamente mais


eficiente

Mesmo quando o contrato de consórcio não prevê a possibilidade de


redução da consorciada inadimplente, esta se mostra uma solução economicamente
eficiente. Um caminho que pode ser adotado para resguardar os direitos das
consorciadas e de terceiros.

 
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Em decorrência da solidariedade, as consorciadas podem quitar dívidas da


inadimplente relacionadas ao consórcio e, com isso, subrogar-se-iam, de acordo com
previsão do CC. Assim, poderiam cobrar da inadimplente, hipótese em que o credor
subrogado (consorciada adimplente) executaria a consorciada inadimplente.
Contudo, para evitar esse tipo de relação entre as consorciadas e resguardar
os direitos das consorciadas adimplentes, sem prejuízo para o andamento das
atividades do consórcio, a redução da participação de consorciada inadimplente deve
ser aplicada, em conformidade com o disposto no artigo 1.004 do CC, nos casos em
que a affectio societatis ainda existe.
Mais uma vez, o interesse público é fator fundamental para a continuidade
do consórcio através da solução menos gravosa.

12. Conclusão

Conforme exposto, a redução da participação da consorciada inadimplente


é viável, desejável e, em algumas oportunidades, até imperativa, na medida em que se
faz necessário redistribuir e reequilibrar forças para dar continuidade ao
empreendimento, sem onerar desarrazoadamente as consorciadas adimplentes.
Onde há a mesma razão, deve empregar-se o mesmo Direito16. Por isso, a
aplicação das soluções legais elaboradas para as sociedades aos consórcios é,
conforme demonstrado, um esforço necessário diante do silêncio da lei quanto ao
problema da inadimplência das consorciadas.
Por ausência de vedação legal, pela natureza jurídica do contrato de
consórcio e diante da ampla aplicação do legítimo instrumento da redução de

                                                            
16 "Ubi eadem legis ratio, ibi eadem dispositio."
 
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participação societária no âmbito das sociedades, a instituição de uma cláusula no


contrato de consórcio que disponha que, mesmo após o descumprimento gravíssimo
(falta de aportes), caso ainda exista o ânimo associativo, as consorciadas poderão
continuar unidas mostra-se possível. Apenas com a redução da participação da
consorciada inadimplente se evitará o mau funcionamento ou até a extinção do
consórcio, com todas as maléficas conseqüências advindas desses fatos.
A aplicação da “cláusula de diluição” como instrumento destinado a tornar
mais eficiente o contrato de consórcio possui, ainda, amparo dos princípios gerais do
contrato. Como já vimos, os contratos de consórcio são contratos plurilaterais ou
contratos de colaboração, em que diferentes pessoas conjugam reciprocamente
esforços para a realização de uma finalidade em proveito de todos. Antônio
Junqueira afirma que, “nos contratos de colaboração, dois dos atuais ‘princípios sociais’ dos
contratos, o do equilíbrio contratual e o da boa-fé, vêm reforçados por força da própria natureza do
contrato. Parecem oportunas as seguintes palavras de Betti: ‘Se de cooperação se trata, não é honesto,
não é humano (porque anti-social) pretender o sacrifício da existência patrimonial do devedor para
ter fé no contrato. Isso seria contrário à idéia de cooperação no interesse do consorciado; isso seria
contrário ao próprio critério da boa-fé contratual.’ ”17.
Na esteira de Emilio Betti e de sua referência ao “anti-social”, não seria
exagero considerar até mesmo o princípio de preservação da função social do contrato.
O consórcio, em virtude do plexo de relações jurídicas em que se envolve, das
obrigações complexas em que participa, assume grande importância no meio econômico
em que está inserido. Segundo já foi explicitado, a falta de saúde econômica do
consórcio penaliza as consorciadas adimplentes (partes) e o consórcio (objeto do
contrato), amplia a repercussão da própria inadimplência da consorciada
inadimplente (parte), e acaba por afetar o contratante principal do consórcio – em alguns

                                                            
17 AZEVEDO, Antônio Junqueira de, op. cit., p. 366.
 
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casos, o Estado (terceiro interessado no consórcio), todos os contratados do consórcio –


seus fornecedores, prestadores de serviços, colaboradores, prepostos, empregados,
etc. (terceiros interessados no consórcio). Por esta razão, a continuidade das
atividades consorciais sem os recursos necessários implica em grande sacrifício para
todo conjunto de pessoas que estão envolvidas nas vultosas atividades que desafiam
os consórcios. Neste contexto, a inadmissão do reequilíbrio implicaria em prejuízo
para o social e para o coletivo, sem preservar qualquer dos valores em jogo nas
relações entre consorciadas.
Ademais, os contratos de sociedades, assim como os contratos de
consórcios, também possuem natureza plurilateral. Como nos consórcios, em uma
sociedade, os sócios se organizam para a realização de uma atividade ulterior, que
constituirá o objetivo da sociedade. Dessa forma, a colaboração entre as partes é
fundamental para o sucesso do empreendimento e realização do objetivo final, seja
na sociedade, seja no consórcio. Sendo o vínculo associativo tendente à continuidade,
é importantíssimo que se atente para o comportamento das consorciadas no curso da
relação, vez que tal comportamento ensejou a formação do consentimento das partes
por ocasião da celebração do contrato.
Diante da certeza de que a redução de participação da consorciada
inadimplente, com reequilíbrio das forças postas à disposição do consórcio, é solução
que pode ser negociada entre as partes e que deve ser admitida como
economicamente eficiente, impõe-se a ampliação do problema. Na prática, o desafio
é a elaboração de um critério de redução que seja equilibrado, ou seja, que viabilize
uma adequada redefinição do grau de envolvimento que será reservado à parte
inadimplente. A redução não pode, em hipótese alguma, desrespeitar os esforços já
despendidos pela parte que, por razões supervenientes, tornou-se incapaz de
continuar a colaborar. Isso implica na adoção de um critério que seja capaz de se

 
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amoldar à capacidade que a parte inadimplente ainda conserva no sentido de dar


continuidade ao cumprimento de suas obrigações no consórcio.
Deve-se atentar para este ponto para que não ocorra violação aos
princípios gerais da razoabilidade e da proporcionalidade. Uma fórmula matemática que
possibilite aferir o quantum da redução com base no contexto do descumprimento, nem sempre é
simples de se elaborar. Contudo, sem esta fórmula, sem um critério preciso, não se
encontrará a segurança jurídica que as partes necessitam assegurar com antecedência
aos momentos de crise contratual.

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O PODER REGULAMENTADOR DO DNRC FACE À EXIGÊNCIA DE


CNDS PARA ALTERAÇÃO DO CONTRATO SOCIAL E
CANCELAMENTO DE REGISTRO

Otávio De Paoli Balbino1

RESUMO

O DNRC, por meio das Instruções Normativas nº 88/2001 e 105/2007,


determinou que pedidos de arquivamento de transformação, incorporação, fusão ou
cisão e, ainda, redução de capital e extinção societária, devem ser instruídos com
certidões que demonstrem quitação de débitos junto à Fazenda Nacional e INSS,
regularidade no recolhimento de FGTS e inexistência de inscrição na dívida ativa da
União.
Fazendo uso destas Instruções Normativas, as Juntas Comerciais passaram
a negar o arquivamento de modificações em atos constitutivos que tenham os
escopos supracitados, quando desacompanhados das certidões.
Não obstante consolidadas, discute-se a possibilidade e necessidade de
tais práticas quando submetidas à análise sistemática do ordenamento jurídico:

a) Pela impossibilidade, o art. 34 do Decreto nº 1.800/96 estabeleceu


quais documentos acompanhariam, obrigatoriamente, pedidos de
arquivamento, donde se extrai a desnecessidade daqueles constantes das
referidas Instruções. Portanto, a princípio, não haveria nenhum poder
outorgado ao DNRC que o permita exigir documentos diversos dos
estabelecidos no Decreto como condição para prática de atos inerentes à
atividade empresária. Ademais, Instrução Normativa não é via apropriada
para restringir liberdades e atividades já previstas em lei.

b) Demonstrando a desnecessidade, os arts. 132 e 133 do CTN


estabelecem que eventual aquisição, fusão, incorporação ou transformação
não ocasionam a extinção dos débitos fiscais, que passam a ser devidos
pelos sucessores. Ademais, para que haja extinção da pessoa jurídica é

                                                            
1 Pós-Graduando em Direito de Empresa lato sensu na Faculdade de Direito Milton Campos. 
 
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necessário averbar seu cancelamento, necessariamente antecedido por três


períodos distintos: dissolução, liquidação e partilha. O art. 190 do CTN
determina que os créditos tributários sejam pagos com preferência sobre
todos os demais durante a liquidação.

Portanto, o escopo do trabalho a ser apresentado, é estudar os limites ao


poder regulatório do DNRC no que tange à necessidade e possibilidade de exigir dos
empresários a apresentação de CNDs para reger a vida e permitir a extinção das
sociedades empresárias.

Palavras-chave: PODER REGULAMENTADOR DNRC


Keywords: POWER REGULATION DNRC

1 Introdução

O DNRC, por meio das Instruções Normativas nº 88/2001 e 105/2007,


determina que pedidos de arquivamento de transformação, incorporação, fusão ou
cisão e, ainda, redução de capital e extinção societária, devem ser instruídos com
certidões que demonstrem quitação de débitos junto à Fazenda Nacional e INSS,
regularidade no recolhimento de FGTS e inexistência de inscrição na dívida ativa da
União.
Fazendo uso destas Instruções Normativas, as Juntas Comerciais passaram
a negar o arquivamento de modificações em atos constitutivos que tenham os
escopos supracitados, quando desacompanhados das certidões.
Tais práticas tornaram-se consolidadas, mas, ainda assim, discutíveis. Os
obstáculos impostos tangem discussão acerca do Poder Regulamentador do DNRC e
seus limites, verificação da necessidade de determinados instrumentos normativos e,
mormente, a repercussão para as pessoas a eles sujeitadas.

 
659 
 
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2 O Sistema Nacional de Registro de Empresa - SINREM

Em 1808 criou-se, no Brasil, o Tribunal da Real Junta do Comércio,


Agricultura, Fábrica e Navegação do Estado do Brasil e Domínios Ultramarinhos,
responsável por manter o registro público dos comerciantes.
Em seguida, foram criados os Tribunais do Comércio, cuja função era julgar
lides de interesse comercial e realizar o registro dos comerciantes. Com sua extinção,
pelo Decreto nº 2.662 de 1875, o registro passou a ser exercido, exclusivamente,
pelas Juntas e Inspetorias Comerciais.
Posteriormente, ocorreram grandes mudanças no sistema de registro com o
advento de diversos instrumentos normativos, como o Decreto nº 916 e a Lei
4.726/65. Esta última, revogada pela Lei 8.934/94, em seguida regulamentada pelo
Decreto nº 1.800 de 1996, criou o SINREM – Sistema Nacional de Registro de
Empresas Mercantis. O Código Civil de 2002, por sua vez, trouxe dispositivos em
seu corpo que guardam relação com o registro de maneira geral, v.g., arts. 45, 46, 967
a 971, 1.150 a 1.154, entre outros.
Tavares Borba leciona que o Código Civil de 2002, conforme art. 1.150,
“ordenou um sistema de registro fundado em duas organizações preexistentes, o Registro Público de
Empresas Mercantis e o Registro Civil das Pessoas Jurídicas, atribuindo à primeira a inscrição dos
empresários individuais e das sociedades empresárias, e ao segundo a inscrição das sociedades
simples” 2. Entretanto, não é escopo deste trabalho a análise do Registro Civil das
Pessoas Jurídicas.
O SINREM, de acordo com a Lei 8.934/943, é composto por dois órgãos: o

                                                            
2BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 10ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 25.
3 Art. 3º - Os serviços do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins serão exercidos,
em todo o território nacional, de maneira uniforme, harmônica e interdependente, pelo Sistema
Nacional de Registro de Empresas Mercantis – SINREM, composto pelos seguintes órgãos:
I – Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, órgão central do SINREM, com
 
660 
 
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Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC e as Juntas Comerciais.


Há uma Junta Comercial em cada Estado membro da Federação, todas
coordenadas pelo DNRC que, de maneira geral, lhes fornece apoio técnico, elabora
normas a serem seguidas uniformemente no âmbito nacional, fiscaliza suas funções e
organiza o cadastro nacional das empresas mercantis.
Portanto, o DNRC é órgão federal, com funções técnicas e administrativas,
enquanto as Juntas Comerciais são órgãos estaduais com funções de execução e
administração dos serviços de registro.
As Juntas Comerciais ocupam-se de tomadas de decisões pertinentes ao
registro do comércio, das quais cabe recurso administrativo, nos termos do art. 44 da
Lei 8.934/94.
Note-se que a função decisória das Juntas não tem natureza jurisdicional,
mas administrativa, já que elas apenas verificam requisitos formais para autorizar ou
não o registro4, podendo, certamente, ser invocado o Poder Judiciário para
solucionar eventual violação ou ameaça a direito.

3 Escopo do Registro do Comércio

Desde as corporações de ofício, segundo Bulgarelli5, o registro dos diversos


atos existentes deveria se prestar a garantir publicidade, como forma de proteção do
público e dos comerciantes, sendo este o seu fundamento.

                                                                                                                                                                   
funções supervisora, orientadora, coordenadora e normativa, no plano técnico; e supletiva no plano
administrativo;
II – Juntas Comerciais, com funções executora e administradora dos serviços de Registro Público de
Empresas Mercantis e Atividades Afins. 
4 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: Comentários aos Artigos 966 a 1.195

do Código Civil. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 587-592.
5 BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 119.

 
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Waldemar Ferreira afirmava, categoricamente, que “dá-se, pelo arquivamento no


Registro do Comércio, a publicidade dos documentos. Tornam-se eles, desde então, válidos erga
omnes”.6
Note-se que a publicidade dos atos registrados, que em tese aproveitaria à
coletividade daqueles que contratassem com o comerciante, aos poucos foi tendo sua
compreensão remodelada.
Atualmente, encontra-se estampado na Lei 8.934/947, que o registro se
presta, basicamente, a dar publicidade, autenticidade, garantia, segurança e eficácia
aos atos jurídicos das empresas mercantis.
Waldemar Ferreira, após enumerar os atos sujeitos a arquivamento
obrigatório, observou que: “Muito mais que o segredo, a publicidade é a alma do negócio” 8.
Tal manifestação nos remete à idéia de que o próprio comerciante seria um dos
beneficiados pela publicidade, e não somente aqueles com quem ele mantém relação
negocial.
Fran Martins, por sua vez, sustenta que o arquivamento dos atos
constitutivos é fundamental para a segurança do comerciante já que “presume-se que os
terceiros conhecem a constituição das sociedades, não podendo, desse modo, argüir ignorância dos
mesmos” 9.
Incorporando postura vanguardista, Vera Helena de Melo Franco
desfocaliza sua atenção do comerciante e dos terceiros e a volta para o Estado: “Para
o empresário, na maioria dos casos, o crédito é mais importante do que o capital. Por tal razão,

                                                            
6 FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial, Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 424.
7 Art. 1º - O Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins, subordinado às normas
gerais prescritas nesta Lei, será exercido em todo o território nacional, de forma sistêmica, por órgãos
federais e estaduais, com as seguintes finalidades:
I – dar garantia, publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos das empresas
mercantis, submetidos a registro na forma desta Lei.
8 FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial, Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 423-427.
9 MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 223.

 
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necessita, cautelosamente, acompanhar a evolução de seus negócios, sem perder de vista sua situação
econômico-financeira perante terceiros. A par disto, uma série de impostos incidem sobre estas
atividades, e é justamente por meio dos registros das operações realizadas que o Fisco pode aferir o
fato gerador dos diversos tributos.”
Finaliza afirmando ser este o fundamento das sanções por ausência de
registro: “Daí por que a ausência de tais registros é severamente sancionada pela lei, quer
apenando diretamente o empresário, quando sanciona a ausência desta escrituração como crime,
sujeito à pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos (art. 178 da Lei 11.101/2005, quer
indiretamente, quando o impede de requerer a recuperação judicial (art. 51, II, da Lei
11.101/2005); transformar seu tipo societário ou encerrar legalmente suas atividades”. 10
Destaque-se, portanto, que a doutrina fez interessante movimento quanto à
compreensão do escopo da publicidade gerada pelo registro: Antes, constituía
segurança para credores; posteriormente passou a ser considerada como garantia para
o comerciante; hodiernamente, pode ser entendido como garantia para ambos, além
de garantia de arrecadação para o Fisco.
É possível, até mesmo, afirmar que, na divulgação, está o embrião das atuais
idéias de governança corporativa, que exige a publicidade dos atos praticados pela
sociedade: por um lado em prol do interesse dos investidores evitando-se fraudes
contábeis, financeiras e corporativas11 e, por outro lado, visando à apuração de fatos
geradores sobre os quais incidirão tributação. É o que tem buscado o Estado, por
exemplo, com a implantação do SPED – Sistema Público de Escrituração Digital,
cuja legalidade tem sido discutida face à existência do art. 1.19012 do Código Civil de

                                                            
10FRANCO, Vera Helena de Mello. Direito Empresarial I: O empresário e seus auxiliares,

estabelecimento empresarial, as sociedades. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 68.
11 LOBO, Jorge. Princípios de Governança Corporativa: in Revista de Direito Mercantil, Vol. 142,

2006, p. 148-149.
12 Art. 1.190 - Ressalvados os casos previstos em lei, nenhuma autoridade, juiz ou tribunal, sob

qualquer pretexto, poderá fazer ou ordenar diligência para verificar se o empresário ou a sociedade
empresária observam, ou não, em seus livros e fichas, as formalidades prescritas em lei.
 
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2002.
4 Obstáculos Criados pelo DNRC Aplicados ao Registro do Comércio

A Lei 8.934/94, que dispõe sobre o Registro Público de Empresas


Mercantis prescreveu, por meio do art. 4º, II, que o DNRC tem competência
exclusiva para elaborar normas e diretrizes pertinentes ao registro de empresa.
Fazendo uso dessa competência, o DNRC elaborou a Instrução Normativa
nº 88 em 2001, onde constou, no art. 24, que quaisquer atos de arquivamento
referentes à alteração de tipo societário, incorporação, fusão e cisão, devem ser
instruídos com certidões demonstrando: a) quitação de tributos e contribuições
federais perante a Fazenda Nacional; b) não haver débitos junto ao INSS; c) negativa
de inscrição em Dívida Ativa da União e; d) regularidade do recolhimento do FGTS.
Elaborou, também, a Instrução Normativa nº 105 de 2005 que, por sua vez,
manteve o rol de exigências, mas ampliou as hipóteses sobre as quais estas incidem,
acrescentando a extinção e a redução de capital social ao rol de atos que só podem
ser registrados mediante comprovação de inexistência de débitos socialmente
relevantes por parte da sociedade ou do empresário.
Portanto, as Juntas Comerciais exigem a produção, pela sociedade, de
certidões demonstrando quitação de débitos tributários ou socialmente relevantes
quando a alteração do contrato social requerida versar sobre: a) transformação de
tipo societário; b) incorporação; c) fusão; d) cisão; e) redução de capital social e; f)
extinção de sociedade empresária ou cancelamento de registro como empresário.
Fomentando a supracitada alteração do escopo da publicidade gerada pelo
registro, João Luiz Coelho da Rocha afirma que o objetivo da Instrução nº 88 é,

 
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evidentemente, “apertar o cerco aos devedores de créditos públicos ou socialmente relevantes” 13. O
raciocínio pode ser estendido à Instrução nº 105.
Constata-se, pois, que nem sempre o descumprimento de obrigações pela
sociedade, como o dever de publicidade gerada pelo registro, decorre de atitude
desidiosa.

5 Necessidade das Instruções nº 88 e 105

Revela-se claro o propósito estatal de cobrar créditos de reconhecida


importância ao impedir o arquivamento de alterações do contrato social que versam
sobre matéria de tamanha relevância.
Entretanto, ainda que, a princípio, a cobrança de tributos e créditos
socialmente relevantes esteja em consonância com o interesse social, são discutíveis
as Instruções Normativas nº 88 e 105 no que tange à necessidade.
É preciso destacar que o ordenamento jurídico brasileiro possui
mecanismos extremamente eficazes e hábeis a satisfazer as necessidades do ente
público quando este figura como credor.
Inicialmente, dê-se a devida atenção à figura da sucessão trabalhista,
entendida como “substituição de empregadores, com uma imposição de créditos e débitos”14,
consagrada pela CLT15, segundo a qual, eventual alteração na estrutura jurídica da
sociedade, “como ocorre na compra e venda, sucessão hereditária, arrendamento, incorporação,

                                                            
13 ROCHA, João Luiz Coelho da. Registro do Comércio e os Limites de sua Exigência. in Revista de
Direito Mercantil, Vol. 129, p. 70.
14 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 2ª Ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 366.
15 Art. 10. Qualquer alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por

seus empregados.
Art. 448 - A mudança na propriedade ou na estrutura jurídica da empresa não afetará os contratos de
trabalho dos respectivos empregados.
 
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fusão, cisão, etc.”16, não afeta os contratos de trabalho existentes ou os direitos


adquiridos dos empregados.
A Justiça do Trabalho interpreta as previsões legais de modo a satisfazer os
créditos dos trabalhadores e, sabidamente, a jurisprudência tem considerado
responsáveis pelas dívidas da sociedade, ainda que limitada, os diretores, acionistas,
sócios e o grupo econômico, em razão do simples inadimplemento.
Portanto, os empregados não necessitam da tutela de órgãos estatais já que,
sabidamente, a Justiça Trabalhista tem se mostrado implacável na luta pela satisfação
dos direitos surgidos das relações empregatícias.
Os créditos fiscais não se encontram menos amparados que os trabalhistas.
Não há desaparecimento dos débitos fiscais na sucessão empresarial. Na realidade, a
pessoa jurídica que resultar de fusão, incorporação ou transformação, passa a ser
responsável pelos débitos anteriores (art. 132 do CTN) e, conforme entende a
doutrina17, o preceito se estende à cisão.
Importante destacar o parágrafo único do art. 132, que prescreve haver
sucessão de obrigação no caso de extinção da sociedade com continuação da
atividade por qualquer sócio remanescente. Tal preceito visa a obstar a extinção da
sociedade que tenha por objetivo a extinção de débitos fiscais por ela adquiridos ao
longo das atividades, evitando que se perpetue inadimplementos. Portanto, o próprio
Código Tributário Nacional parece entender ser possível encerrar as atividades e
extinguir a sociedade, ainda que ela possua débitos fazendários, se não houver
continuação da atividade pelos sócios.
Quando se analisa a extinção de sociedades, é necessário mencionar tratar-
se de procedimento específico composto por três fases que ocorrem sucessivamente:

                                                            
16BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 2ª Ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 366.
17COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 5ª ed. Rio de janeiro:
Forense, 2000, p. 623.
 
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a) dissolução; b) liquidação e; c) partilha.


Na liquidação, procedimento onde todos os ativos e passivos da sociedade
são, respectivamente, apurados e pagos, os créditos fiscais vencidos ou vincendos
serão satisfeitos com preferência sobre todos os demais, conforme art. 190 do CTN.
O Direito Trabalhista resguarda o crédito dos empregados quando ocorre extinção
da sociedade já que responsabiliza os antigos sócios pelo adimplemento de créditos
que venham a ser cobrados no futuro.
Note-se não haver insurgência contra restrições justificadamente impostas,
como as do art. 5318 do Decreto nº 1.800/96, que tem por objetivo impedir
arquivamento de contratos sociais sem os requisitos legais necessários ou a inscrição
de “elementos de moral duvidosa” 19, nas palavras de Bulgarelli.
Menos ainda, embora muitos o façam, coloca-se em discussão a
interpretação legislativa proveniente da Justiça do Trabalho ou os privilégios de que
gozam os créditos fiscais.
Na realidade, o Poder Regulamentador do DNRC é necessário e, quando
bem utilizado, traz segurança e bem direciona a atuação das Juntas Comerciais.
Entretanto, não se fundamentam as imposições aqui mencionadas, senão em
interesses eminentemente fiscais sem qualquer base legal.
A Junta Comercial não é o local próprio e nem o registro é o momento
adequado para cobrar tributos. Constitui a Junta, sim, local onde se pretende levar ao
conhecimento público, determinados atos praticados ou situações existentes, já que a

                                                            
18 Art. 53. Não podem ser arquivados:
I - os documentos que não obedecerem às prescrições legais ou regulamentares ou que contiverem
matéria contrária à lei, à ordem pública ou aos bons costumes, bem como os que colidirem com o
respectivo estatuto ou contrato não modificado anteriormente;
II - os documentos de constituição ou alteração de empresas mercantis em que figure como titular ou
administrador pessoa que esteja condenada pela prática de crime cuja pena vede o acesso à atividade
mercantil; (...)
19 BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 126.

 
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garantia de publicidade, sabidamente, é o escopo do registro e fundamento de


existência da Junta.
O poder público dispõe de meios próprios para cobrar e receber os créditos
fazendários e socialmente relevantes, v.g., a Execução Fiscal, onde é possível o
contraditório e a ampla defesa, o que torna legítimo o processo de cobrança.
Por outro lado, não se mostra legítima a cobrança dos referidos créditos no
momento da inscrição de alterações no contrato social, já que houve processo
legislativo próprio onde restou definida a forma, o procedimento e o momento
próprio para tanto.

6 Poder Regulamentador do DNRC e Ilegalidade das Instruções nº 88 e 105

Partindo do princípio de que Poder Regulamentador é forma de atuação


estatal por meio de elaboração de medidas legais e executivas20, ainda que as
Instruções nº 88 e 105 sejam entendidas como necessárias, é possível afirmar que o
DNRC extrapolou seu Poder Regulamentador ao exigir que se produzam as referidas
certidões.
Segundo Coelho da Rocha “fato é que não há delegação legal nenhuma ao órgão
administrativo para este exigir, como condição de arquivamento daqueles atos societários, a
produção, pelas sociedades envolvidas, daquelas certidões de quitação ou inexistência desses débitos”
21
.
Se por um lado o art. 4º, III da Lei 8.934/94 estabeleceu ser da competência
do DNRC baixar Instruções visando a eliminar dúvidas decorrentes de interpretações
                                                            
20 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 5ª ed. São Paulo:
LTr, 2003, p. 327.
21 ROCHA, João Luiz Coelho da. Registro do Comércio e os Limites de sua Exigência. in Revista de

Direito Mercantil, Vol. 129, p. 70.


 
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de Leis e Regulamentos relativos ao registro de empresas, por outro lado, o art. 34 do


Decreto nº 1.800 de 1996, que regulamenta a Lei 8.934/94, traz rol de documentos a
serem apresentados quando do arquivamento do contrato social e suas alterações22.
Ademais, o parágrafo único do art. 34 determina que nenhum outro
documento, além dos referidos no Decreto, será exigido da sociedade mercantil ou
das firmas individuais, sendo possível concluir que o rol é taxativo.
Portanto, o DNRC pode orientar as Juntas Comerciais a exigirem
documentos dos empresários e sociedades empresárias, desde que observados os
limites delineados pelo art. 37 da Lei 8.934/94 e pelo art. 34 do Decreto nº 1.800/96.
Quaisquer outras exigências, como as previstas nas Instruções Normativas

                                                            
22 Art. 34 – Instruirão obrigatoriamente os pedidos de arquivamento:

I - instrumento original, particular, certidão ou publicação de autorização legal, de constituição,


alteração, dissolução ou extinção de firma mercantil individual, e sociedade mercantil, de cooperativa,
de ato de consórcio e de grupo de sociedades, bem como de declaração de microempresa e de
empresa de pequeno porte, datado e assinado, quando for o caso, pelo titular, sócios, administradores,
consorciados ou seus procuradores e testemunhas;
II - certidão negativa de condenação por crime cuja pena vede o acesso à atividade mercantil, para
administradores, expedida pelo Distribuidor Judiciário da Comarca da jurisdição de sua residência, nos
atos de constituição ou de alterações, que impliquem ingresso de administrador de sociedades
mercantis, excluídas as anônimas;
III - ficha do Cadastro Nacional de Empresas Mercantis - CNE, segundo modelo aprovado pelo
Departamento Nacional de Registro do Comércio - DNRC;
IV - comprovantes de pagamento dos preços dos serviços correspondentes;
V - prova de identidade do titular da firma mercantil individual e do administrador de sociedade
mercantil e de cooperativa:
a) poderão servir como prova de identidade, mesmo por cópia regularmente autenticada, a cédula de
identidade, o certificado de reservista, a carteira de identidade profissional e a carteira de identidade de
estrangeiro;
b) para o estrangeiro residente no País, titular de firma mercantil individual ou administrador de
sociedade mercantil ou cooperativa, a identidade deverá conter a prova de visto permanente;
c) o documento comprobatório de identidade, ou sua cópia autenticada, será devolvido ao interessado
logo após exame, vedada a sua retenção;
d) fica dispensada nova apresentação de prova de identidade no caso de já constar anotada, em
processo anteriormente arquivado, e desde que indicado o número do registro daquele processo.
Parágrafo único. Nenhum outro documento, além dos referidos neste Regulamento, será exigido das
firmas mercantis individuais e sociedades mercantis, salvo expressa determinação legal, reputando-se
como verdadeiras, até prova em contrário, as declarações feitas perante os órgãos do Registro Público
de Empresas Mercantis e Atividades Afins.
 
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nº 88 e 105, constituem nítida extrapolação do Poder Regulamentador e,


conseqüentemente, ficam sujeitas ao controle judiciário.
Regulamento é ato administrativo cuja vigência inicia-se com Decreto do
Poder Executivo.
Há inúmeras diferenças entre Lei e Regulamento, entretanto, a maior delas,
conforme noticia Oswald Aranha23, é que a Lei pode inovar no ordenamento
jurídico, enquanto o Regulamento está a ela adstrito, se prestando a efetivar as
diretrizes traçadas. Portanto, sujeita-se o Regulamento à Lei, não podendo a ela se
opor. Em outras palavras, o Regulamento é hierarquicamente inferior à Lei24.
Note-se que o Decreto nº 1.800/96 traz o mesmo rol de documentos
exigidos pelo art. 37 da Lei 8.934/94 e, portanto, não inovou no ordenamento
jurídico. Entretanto, inovou o DNRC com as Instruções nº 88 e 105, prevendo
documentos não exigidos pela Lei ou Regulamento.
Lado outro, Instruções Normativas são ordens destinadas a orientar a
atuação dos subalternos que compõe os órgãos da Administração Pública e, portanto,
são eles os destinatários de tais instrumentos normativos. Desta forma, não podem as
Instruções Normativas tanger direitos de particulares.
Hely Lopes Meirelles bem sintetiza esta idéia ao afirmar que “Como é óbvio, as
instruções não podem contrariar a lei, o decreto, o regulamento ou o estatuto do serviço, uma vez que
são atos inferiores de mero ordenamento administrativo interno. Por serem internos não alcançam
particulares nem lhes impõe conhecimento e observância, vigorando, apenas, como ordens hierárquicas
de superiores a subalternos”25.
Neste contexto, a imposição do DNRC, afronta as mais elementares lições
                                                            
23 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo. 1ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1969, p. 316.


24 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1991, p. 156.


25 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16ª ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1991, p. 160.


 
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de Direito Administrativo.
Isto posto, é possível afirmar que o Poder Regulamentador do DNRC está
delimitado pela Lei 8.934/94 e pelo Decreto nº 1.800/96 devendo,
conseqüentemente, orientar sua atuação nos limites traçados pelo legislador.
Não é permitido criar ou restringir direitos que não estejam expressamente
estabelecidos na Lei 8.934/94 via Instruções Normativas, pois estas se prestam
apenas a orientar a atuação de determinado órgão da administração pública e, não, a
prescrever obrigações, limitar ou criar direitos.
Autorizar que o DNRC crie direitos ou obrigações por meio de Instruções,
equivale a outorgar-lhe competência de que dispõe apenas o Congresso e o Senado,
suprimindo instâncias legislativas.

7 Efeitos Imediatos e Mediatos dos Obstáculos Impostos pelo DNRC

É possível colacionar efeitos imediatos e mediatos decorrentes dos


obstáculos impostos equivocadamente pelo DNRC.
Entre os efeitos mediatos, pode estar a inviabilização do negócio. Fusão ou
transformação podem visar a dar novas forças a determinada sociedade,
possibilitando sua continuidade. Por sua vez, incorporação poderá ser benéfica a
credores em razão da sucessão de obrigações. Ainda, a impossibilidade de autorizar
extinção de sociedade empresária quando em débito com o fisco, contribui para a
monstruosa estatística de sociedades ativas, mas inoperantes.
São preocupantes as conseqüências dos atos praticados pelo DNRC.
Entretanto, está entre os efeitos imediatos aquele que mais merece destaque: a
aplicabilidade automática das regras das sociedades em comum.

 
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O Código Civil criou a figura da Sociedade em Comum, cujas características


mais marcantes são: a) responsabilidade solidária e ilimitada dos sócios pelas dívidas
da sociedade (art. 990) e, b) possuir patrimônio especial, dos quais os sócios são
donos em condomínio (art. 998).
Lado outro, há previsão expressa no Código Civil de que as alterações no
contrato social, cuja matéria esteja indicada no art. 997, devem ser registradas no
prazo de 30 dias (art. 998 c/c 999, parágrafo único).
Entende-se por Sociedade em Comum, tipo societário distinto dos demais
existentes e, não, sinônimo de perda da personalidade jurídica ou sanção imposta à
sociedade que descumpre suas obrigações legalmente impostas. Assim como é
possível aplicar as regras das sociedades simples subsidiariamente às limitadas, é
possível aplicar as regras das sociedades em comum subsidiariamente a qualquer
sociedade.
Portanto, ser considerada em comum quer dizer regência pelas regras deste
tipo societário e, cumulativamente, aplicação das regras do tipo societário escolhido.
Havendo confronto entre ambos, prevalecem as regras das sociedades em comum.
Sabido é, que as modificações integram o contrato social. Portanto, se não
são registradas as modificações no contrato social dentro do prazo de 30 dias, não
cumpriu-se o escopo do registro, que é a publicidade. É como se o contrato social
não estivesse arquivado ou registrado parcialmente. Tal hipótese atrai incidência do
art. 986 do Código Civil de 2002, segundo o qual, enquanto não inscritos os atos
constitutivos, reger-se-á a sociedade pelas regras das Sociedades em Comum.
Desta forma, estende-se aos sócios a responsabilidade por dívidas sociais
(art. 990) em virtude de descumprimento do dever de registrar as alterações no
contrato social.
No momento em que a sociedade procura a Junta Comercial para arquivar
alteração em seu contrato social e recebe negativa com base nas Instruções
 
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Normativas nº 88 e 105, passados os 30 dias do art. 998, a sociedade estará,


automaticamente, regida pelas regras das sociedades em comum por haver
divergência entre a realidade fática em que se encontra e o que está registrado.
Portanto, os efeitos da negativa das Juntas Comerciais vão muito além de
inflar as estatísticas de sociedades que não foram extintas, mas que estão inativas,
sendo absolutamente necessário coibir esta prática desnecessária e ilegal.

8 Remédios Processuais e Recursos Administrativos

Toda atividade da Administração Pública é subordinada à existência de


permissivo legal, cujo fundamento é o princípio da legalidade. Assim, pode-se dizer
que ela é submissa à ordem jurídica.
Segundo Seabra Fagundes, objetivando tornar efetiva a submissão da
Administração Pública, “existe um tríplice sistema de controle de suas atividades: controle
administrativo, controle legislativo e controle jurisdicional”26.
Ao Poder Judiciário compete o controle denominado jurisdicional, que é
feito por meio de remédios processuais comuns ou especiais.
Os remédios comuns são utilizados quando, embora figure como parte no
processo a Administração Pública, o ato por ela praticado se assemelha a ato
praticado por comuns: é o caso da violação possessória ou da responsabilidade civil.
Por sua vez, os remédios especiais são utilizados quando há previsão legal expressa a
lhe embasar: as execuções fiscais são exemplo disto.
Justifica-se a utilização de remédios especiais em situações específicas e por
sua maior repercussão quando comparada à dos atos jurídicos privados27.
                                                            
26 FAGUNDES, Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1979, p. 101.


 
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Portanto, quando os órgãos públicos extrapolam o poder a eles outorgado


pela Lei, cabe ao Poder Judiciário, através do controle jurisdicional que lhe é peculiar,
solucionar a controvérsia quando provocado por meio de instrumentos próprios.
Os remédios comuns são inúmeros e não têm relevância para o presente
estudo. Por sua vez, os especiais compreendem: a) habeas corpus; b) mandado de
segurança; c) ação de desapropriação e; d) ação popular28.
Note-se que, mantendo preceito anterior, a nova Lei do Mandado de
Segurança, Lei nº 12.016 de 07 de agosto de 2009, prescreveu que, embora atendida a
condição genérica para sua concessão29, não será cabível o remédio especial quando a
hipótese em discussão versar sobre: a) ato da qual caiba recurso administrativo com
efeito suspensivo, independente de caução (art. 5º, I, da Lei 12.016/09); b) decisão
judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo (art. 5º, II, da Lei 12.016/09) e;
c) decisão judicial transitada em julgado (art. 5º, III, da Lei 12.016/09).
Não obstante as decisões das Juntas Comerciais serem passíveis de Recurso
Administrativo, esgotada ou não esta via, pode o particular, através de Mandado de
Segurança, suscitar o controle jurisdicional sobre elas.
É que, embora haja obstáculo para utilização do Mandado de Segurança
contra ato da qual caiba recurso administrativo, conforme prescreve o art. 5º, I, da
Lei 12.016/09, os Recursos previstos no Decreto nº 1.800/96, embora possuam esta
natureza, não são dotados de efeito suspensivo (art. 73) e, portanto, não atraem
aplicação do referido artigo.

                                                                                                                                                                   
27 FAGUNDES, Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1979, p. 235.
28 FAGUNDES, Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1979, p. 237.


29 A condição genérica para o concessão do Mandado de Segurança é o objetivo de proteger direito

líquido e certo não amparado por habeas data ou habeas corpus, contra ato praticado ou que haja receio
de ser praticado por qualquer autoridade, com ilegalidade ou abuso de poder, seja por pessoa física ou
jurídica, conforme prescreve o art. 1º da Lei nº 12.016/09.
 
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Demonstrada a possibilidade de interposição de Mandado de Segurança,


cabe àquele cujo direito foi violado, optar por interpô-lo ou recorrer da decisão da
Junta Comercial por meio dos remédios administrativos previstos no Decreto nº
1.800/9630.

9 Conclusão

Diante de tudo que foi dito, é possível concluir que Instruções Normativas
não podem ser consideradas vias próprias para exigir que a sociedade ou o
empresário produzam documentos, além dos previstos no Decreto nº 1.800/96, para
praticar quaisquer atos.
Ainda, não se fazem necessárias as Instruções Normativas nº 88 e 105, já
que o ordenamento jurídico brasileiro é atento às situações por elas reguladas,
prescrevendo que créditos fiscais, trabalhistas e previdenciários não se extinguem
com o encerramento da empresa.
Portanto, as exigências impostas pelo DNRC e que extrapolem os limites
delineados pela Lei 8.934/94 ou pelo Decreto que a regulou, devem ser consideradas
ilegais. Além de ilegais, são também desnecessárias, face à existência de meios
próprios de que dispõe o Estado para cobrar créditos fiscais, trabalhistas e
previdenciários.
Isto posto, sob pena de supressão de instâncias legislativas, deverá o
judiciário pronunciar-se pela ilegalidade de toda e qualquer imposição ilegítima

                                                            
30 Art. 64. O processo revisional pertinente ao Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades

Afins dar-se-á mediante:


I - pedido de reconsideração;
II - recurso ao Plenário;
III - recurso ao Ministro de Estado da Indústria, do Comércio e do Turismo. 
 
675 
 
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proveniente dos órgãos estatais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 10ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,
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BULGARELLI, Waldirio. Direito Comercial. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 1999

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 5ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2000

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5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979

FRANCO, Vera Helena de Mello. Direito Empresarial I: O empresário e seus


auxiliares, estabelecimento empresarial, as sociedades. 3ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009

FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial, Vol. 2. São Paulo: Saraiva,


1960

GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: Comentários aos


Artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007
 
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LOBO, Jorge. Princípios de Governança Corporativa: in Revista de Direito


Mercantil, Vol. 142, 2006

MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16ª ed. São Paulo:
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MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais de Direito Administrativo.


1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1969

ROCHA, João Luiz Coelho da. Registro do Comércio e os Limites de sua Exigência.
in Revista de Direito Mercantil, Vol. 129

SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 5ª


ed. São Paulo: LTr, 2003

 
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PLANO DE RECUPERAÇÃO RECUSADO E DECRETAÇÃO DE


FALÊNCIA

Liliane Dantas Correa de Morais1

RESUMO

A atual Lei de Falências provoca inúmeras discussões acerca da aplicação de


suas disposições aos casos concretos. Nessa perspectiva, considerando a importância
da eficaz regulamentação do instituto falimentar, cabe debater a exigência de se
decretar a quebra quando o plano de recuperação não for aprovado pelos credores,
tal como disciplina no artigo 56, parágrafo 4o. da Lei 11.101/2005.
Parte dos juristas admite que a interpretação da lei deve ultrapassar os
limites textuais, de maneira que a reprovação do plano pelos credores não deve
conduzir, necessariamente, à falência. Cite-se como exemplo os casos em que a
reprovação do plano tenha se dado por pequena diferença de votos, quando, então,
boa parte dos credores – aqueles interessados na continuidade da empresa – restará
prejudicada.
Por outro lado, há opiniões no sentido da não conveniência de se decidir
contra a maioria, pois isso afrontaria a soberania das decisões da Assembléia Geral de
Credores.
Todavia, a decretação automática da falência em virtude de ter sido rejeitado
o plano de recuperação ofende o artigo 5o do Decreto-Lei 4.657/42 e o art. 47, pois
ambos preconizam a preservação da empresa economicamente viável.
A extinção da empresa causa inúmeros danos ao meio social, vez que
dificulta a promoção do desenvolvimento econômico ao provocar a inadimplência
das obrigações assumidas, sem contar na cessação de inegável fonte tributos e
empregos.
Noutra monta, constata-se baixa procura pela recuperação pelos
empresários por receio de que os credores não aceitem o plano. Por isso, é necessário
pacificar as polêmicas a fim de se criar conjuntura de razoável segurança jurídica para
empresa fragilizada economicamente.

                                                            
1 Graduanda na Faculdade de Direito “Professor Jacy de Assis” na Universidade Federal de

Uberlândia. 
 
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Palavras-chave: Recusa do plano, falência, recuperação judicial


Keywords: refusal of the plan, bankruptcy, bankruptcy protection

Introdução

A nova Lei de Recuperação de Empresas e Falência, Lei 11.101 de 2005,


trouxe uma moderna concepção para o Direito Falimentar Brasileiro: o princípio de
continuidade dos negócios da empresa (preservação de sua função social). Baseada
nas exigências da economia atual e almejada por uma sociedade em constante
evolução, tal norma veio substituir o rígido Decreto-Lei 7.661 de 1945.
Inspirada no modelo norte-americano e distanciando-se do antes adotado
sistema francês, esta nova lei visa incentivar as negociações entre o devedor e seus
credores, promover condições efetivas para a recuperação da empresa preservando
seu quadro de empregados, o interesse dos credores e sua capacidade produtiva, e,
estabelecer uma situação de maior segurança jurídica no País, garantindo aprovação
da comunidade internacional, dos fundos de investimento e das instituições
financeiras.
Esse dispositivo legal, no entanto, está permeado de previsões que
contrariam seu princípio idealizador. Em meio a inúmeras controvérsias quando da
aplicação dessas previsões e considerando a importância da empresa para o
crescimento econômico do país, este trabalho debaterá uma das regras divergentes na
doutrina, após uma concisa explanação comparativa entre a concordata e a
recuperação judicial, fundamental para o entendimento da matéria.

 
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Considerações acerca das diferenças entre o antigo e o novo instituto

É necessário diferenciar brevemente os dois diplomas com seus respectivos


institutos: a antiga concordata (preventiva) e a atual recuperação empresarial.
Em linhas gerais, concordata é um favor da lei, um benefício outorgado
através de sentença judicial, ao empresário devedor, com a finalidade de proteger a
sociedade das conseqüências dos efeitos da falência.
A recuperação empresarial é admitida, pela nova lei, na forma de
recuperação judicial e extrajudicial. Foi concebida com o objetivo de resguardar as
empresas viáveis, com dificuldades transitórias, da falência causadora de perda de
investimentos, arrecadação de impostos e empregos. Por isso, ao disponibilizar
alternativas para o enfretamento da crise, contrapondo-se à inexistência de amparo
estatal do sistema não mais vigente, constitui-se um estímulo à atividade econômica.
Quanto às distinções, primeiramente, constata-se que o diploma anterior
não era claro quando se referia ao empresário (pessoa física) e à empresa (pessoa
jurídica). Isso, para o presidente do Instituto Brasileiro de Gestão e Turnaround,
Jorge Queiroz: “desestimulava os credores a cooperar para a recuperação da empresa,
2
ainda que viável.” A nova lei evidencia que sujeitam-se a ela o empresário e a
sociedade empresária. A grande novidade diz respeito à sua aplicação às companhias
aéreas.
Há uma substituição do comissário e síndico pelo administrador judicial.
Alerta-se que essa troca não se restringe ao nome do cargo, mas configura-se à
mudança de funções, visto que para os cargos antecedentes a tarefa era meramente
burocrática e para o administrador judicial é exigido conhecimento e experiência para

                                                            
2 QUEIROZ, JORGE. Após cinco anos, Lei de Recuperação mostra falhas. Revista Consultor
Jurídico, São Paulo. 23 de março de 2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-mar-
23/quinto-aniversario-lei-falencias-mostra-licoes-nao-aprendidas>. Acesso em: 10 de maio de 2010. 
 
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que possa “analisar a viabilidade, estruturar e executar uma recuperação bem


sucedida.”3 Por isso, o artigo 21 indica que deve haver, preferencialmente, um
profissional de gestão. Para o advogado Almeida Paiva:

Enquanto na vigência do DL 7661/45 as empresas falidas


simplesmente eram diluídas pelo tempo, acabando o ativo e
ficando no ar o passivo, no sistema da Lei 11.101/2005, se as
empresas souberem escolher bons profissionais que apurem
imediatamente as causas da crise vivenciada, certamente
encontrarão soluções viáveis e muitas empresas serão salvas do
fantasma da Falência.4

Ainda, para manter a isenção ou imparcialidade do administrador em


relação aos interesses das partes envolvidas, aquele é escolhido pelo juiz e não pelos
os maiores credores. (Art. 60, Decreto-Lei 7.661/45). É também, fiscalizado pelo
juízo e pelo Comitê de Credores durante todo o processo, além de exercer o papel de
agente auxiliar do juiz.
A recente Lei transferiu maiores poderes aos credores ao criar a Assembléia
Geral de Credores (AGC) e o Comitê dos Credores. Aquele, presidido pelo
administrador judicial, é um órgão colegiado convocado somente para deliberar
sobre questões de maior relevância (competências elencadas no artigo 35), devido aos
altos custos para sua realização e por representar a vontade preponderante entre os
titulares de crédito, e este é um órgão facultativo que existe apenas se a atividade
econômica da devedora tiver recursos para sustentar suas despesas. A função do
Comitê é predominantemente fiscalizadora, como se extrai de suas atribuições,
estabelecidas no artigo 27. O instituto da concordata preventiva:
                                                            
3 QUEIROZ, JORGE. Após cinco anos, Lei de Recuperação mostra falhas. Revista Consultor

Jurídico, São Paulo. 23 de março de 2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-mar-


23/quinto-aniversario-lei-falencias-mostra-licoes-nao-aprendidas>. Acesso em: 10 de maio de 2010.
4 PAIVA, José de Arimathéa Almeida. Direito Falimentar: Crises que podem levar uma empresa à

Falência. São Paulo. 20 de agosto de 2005. Disponível em: <


www.investidura.com.br/.../empresarial/937-direito-falimentar-crises-que-podem-levar-uma-empresa-
a-falencia.htm.>. Acesso em 10 de maio de 2010.
 
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[...] apenas permitia que os credores apresentassem impugnações e


oposição, que seriam decididas pelo juiz [...] e [...] não previa a
constituição dos referidos órgãos, pois a sua concessão era
realizada somente com base nos requisitos estabelecidos em lei,
independentemente da anuência dos credores.5

Outra inovação é a exigência da apresentação de um plano de recuperação,


não prescrito anteriormente porque bastava satisfazer as condições determinadas pela
lei para que o juiz concedesse o benefício da concordata preventiva. Para se
enquadrar, a empresa precisava estar na iminência da falência, hoje, no entanto, pode
estar em crise econômico-financeira e não somente no estado pré-falimentar como
requerido na concordata. Cumpre destacar que há um procedimento especial para as
microempresas também ausente na legislação precedente.
Insta observar o surgimento da figura do gestor judicial cuja função é
administrar a empresa em recuperação quando o devedor for afastado desse cargo.
Os casos de afastamento estão estatuídos no artigo 64.
O objeto desses institutos se diferencia. Para a concordata, era os créditos
quirografários, aqueles sem preferência ou garantia. Em contraposição, no artigo 49,
confere-se: “estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data
do pedido, ainda que não vencidos”6
Os meios de recuperação, exemplificamente arrolados no artigo 50, passam
a ser qualquer um que seja viável, ao invés da mera dilação do prazo e remissão
parcial das dívidas.
É válido saber que a recuperação extrajudicial, com regulamentação no art.
161 e seguintes, propicia um “ambiente mais flexível e informal de negociações sobre

                                                            
5 BRITO, Thomás Raimundo. SOARES, Gabriela. PINHEIRO, Grazieli. PEREIRA, Lívia Sampaio.
Da análise comparativa entre a recuperação judicial e a concordata. Disponível em:
<www.fesmip.org.br/arquivo/publicacao/dir_comercial.pdf>. Acesso em: 10 de maio de 2010. 
6 Lei 11.101/2005 – Lei de Recuperação e Falência.

 
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os destinos da empresa”7. Consiste na apresentação de um plano para determinados


credores escolhidos pelo devedor, que, não impugnado ou acordado, recebe a
homologação judicial. Embora seja uma maneira mais ágil de se estabelecer uma
avença entre credores e devedor, é pouco utilizada no Brasil.
Quanto às micro e pequenas empresas, é aplicado um procedimento
limitado, tratado pelas disposiçoes do art. 718. Em um processo análago à
concordata, tem como objeto os créditos quirografários (com exceção estatuída no
art. 71, I9) e a decisão de aprovação do plano cabe ao juiz, assim como a concessão
para iniciar o processo de recuperação judicial.

Os efeitos da Lei 11.101/2005

Embora a recuperação judicial tenha surgido para tornar-se solução ideal


para a sobrevivência das empresas em crise e opção efetiva para garantir o direito dos
credores, tem-se verificado que a nova lei não atingiu bem as expectativas de sua
implantação. Segundo a Revista Consultor Jurídico:

                                                            
7 FREITAS, Newton. Recuperação e Falência de Empresas. Fortaleza. Disponível em:
<http://www.newton.freitas.nom.br/artigos.asp?cod=113>. Acesso em: 10 de maio de 2010.  
8 Art. 71. O plano especial de recuperação judicial será apresentado no prazo previsto no art. 53 desta

Lei e limitar-se-á às seguintes condições:


I – abrangerá exclusivamente os créditos quirografários, excetuados os decorrentes de repassse de
recursos oficiais e os previstos no §§ 3º e 4º do art. 49 desta Lei;
II – preverá o parcelamento em até trinta e seis parcelas mensais, iguais e sucessivas, corrigidas
monetariamente e acrescidas de juros de 12% a.a. (doze por cento ao ano);
III – preverá o pagamento da primeira parcela no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado
da distribuição do pedido de recperação judicial;
IV – estabelecerá a necessidade de autorização do juiz, após ouvido o administrador judicial e o
Comitê de Credores, para o devedor aumentar despesas ou contratar empregados.  
9 Ver nota anterior.

 
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Os próprios números põem em dúvida a eficácia da lei diante de


uma crise de crédito generalizada, como a atual. Do ano passado
[2008] para cá, o número de falências decretadas no estado de São
Paulo foi 46% maior, segundo números da Junta Comercial do
estado de São Paulo. Reportagem dessa sexta-feira (28/8) do
jornal O Estado de S. Paulo revela que, entre janeiro e julho de
2008, foram 154 quebras. Já no primeiro semestre deste ano, o
órgão registrou 225. A inadimplência também aumentou, segundo
a reportagem. O Indicador Serasa Experian de Inadimplência das
Empresas mostra aumento de 29,7% nos calotes, considerando o
primeiro semestre de 2009 e o do ano passado. 10 (grifo nosso)

É válido comentar, entretanto, que a quantidade de quebras não está


relacionada apenas a problemas internos ou externos (alterações de mercado)11, mas é
influenciada, da mesma forma, pela dificuldade dos atores envolvidos interpretarem
suas normas, muitas vezes, contraditórias ou obscuras.
Por isso, vários órgãos como o Instituto Nacional de Recuperação
Empresarial enviaram à Câmara dos Deputados uma proposta de modificação da lei,
pois “as experiências internacionais apontam para uma relação entre uma boa lei de
falências e um maior crescimento econômico com melhor distribuição de renda.”12

                                                            
10 CRISTO, Alexandre. Instituto aponta falhas na nova Lei de Falências. Revista Consultor Jurídico,

São Paulo. 29 de agosto de 2009. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-ago-29/posta-


prova-crise-lei-falencias-mostra-deficiencias>. Acesso em: 10 de maio de 2010. 
11 A quantidade de pedidos de falência e recuperação relaciona-se com o “crescimento da economia, a

recuperação do crédito para empresas e melhores condições como prazos e custos.”, de acordo com a
empresa Seara Experian. E deve-se, segundo o advogado Almeida Paiva, a “mudanças nas políticas
cambial, fiscal e creditícia; criação de impostos extraordinários; surgimento de novos produtos; queda
da cotação dos produtos agrícolas nos mercados internacionais; retração do mercado consumidor;
altas taxas de juros; inadimplemento dos devedores, inclusive do próprio Estado” [...] “sucessão do
controlador; desentendimento entre sócios; capital insuficiente; avaliação incorreta das possibilidades
de mercado; desfalque pela diretoria; operações de alto risco; falta de profissionalização da
administração e do estoque; obsolescência dos equipamentos; redução das exportações; investimento
ou novos equipamentos”, [...] “maxidesvalorização da moeda nacional; situação econômica anormal da
região do pais ou do mercado consumidor estrangeiro; conflitos sociais" (grifo do autor) 
12 FREITAS, Newton. Recuperação e Falência de Empresas. Fortaleza. Disponível em:

<http://www.newton.freitas.nom.br/artigos.asp?cod=113>. Acesso em: 10 de maio de 2010.  


 
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Diante dessas imperfeições da regulamentação, a questão da decretação de


falência com fundamento apenas na recusa do plano de recuperação pelos credores é
um das polêmicas aqui pormenorizadas por confrontar com a necessidade de garantir
a sobrevivência da empresa deixando uma importante decisão a cargo somente dos
credores.
Antes de comentar sobre os óbices à devida interpretação, confere-se
resumidamente os problemas de adaptação da Lei 11.101/2005.
Noventa por cento dos processos que tramitam na vara do juiz Alexandre
Lazzarini (responsável pelo caso Parmalat) são pedidos de falência. Isso porque,
segundo ele, há uma

incapacidade de entrar em uma recuperação. O processo de


recuperação é multidisciplinar. Costumo dizer que é um processo
negocial e empresarial. Tem muito pouco de jurídico nisso. A lei
dá as diretrizes apenas. Quando o faturamento da empresa
começa a cair, em geral, o empresário põe a culpa no excesso de
tributação, nos juros bancários, mas não olha, por exemplo, que o
produto que fabrica está deixando de ser útil no mercado. Ele só
vai notar isso e começar a repensar a empresa quando já estiver
com os títulos protestados. Nesta altura, já está sem credibilidade
junto aos credores. Por isso eu digo que a visão do próprio
empresário tem de mudar.13

Além da falta de entendimento sobre a reestruturação, visão atrelada à


revogada Lei, o Poder Judiciário não se organizou nacionalmente, constituindo varas
especializadas em recuperação e falência e mantendo um quadro de profissionais
aptos ao exercício da função de Administrador Judicial, que ficasse à disposição dos
juízes para a escolha segundo a complexidade de cada caso. Ocorre, também, uma

                                                            
13PINHEIRO, Aline. Entrevista: Alexandre Lazzarini, juiz de Direito em São Paulo. Revista
Consultor Jurídico, São Paulo.7 de outubro de 2007. Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2007-out-07/lei_falencias_empresario_aprende_negociar?pagina=3>.
Acesso em: 10 de maio de 2010.
 
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confusão de competências entre a Justiça Cível, a Criminal e a Trabalhista como


outro fator que dificulta o sucesso da Lei.
Em sucinta comparação com os Estados Unidos da América (EUA), infere-
se grande diferença de aplicação da novo regime mesmo tendo ambas a mesma
finalidade, salvar uma empresa em crise.
Nos EUA, por exemplo, o pedido voluntário de recuperação ou falência é
comum enquanto no Brasil é só se pede falência e involuntariamente. Isso devido à
mentalidade nacional de que uma empresa em crise está fracassada. Nos países
desenvolvidos a maioria das lides termina antes do processo, somente dez por cento
dos casos vão às barras da Justiça. Jorge Queiroz defende ser decisiva a cultura de
que o negócio pode continuar funcionando.
Ele ainda pondera que:

Nos EUA existem empresas também especializadas em investir


em empresas em crise da mesma forma que em empresas
saudáveis e os juízes têm de ter essa sensibilidade. Até o
momento, os fundos de investimento privados entendem ser
inviável investir em empresas em recuperação no Brasil pelo alto
grau de risco, além de considerarem que existe ainda grande
insegurança jurídica e grande morosidade nos processos
recuperatórios. [...] No famoso caso da WorldCom, a direção foi
substituída e a empresa recuperada em três anos – continua sendo
a 2ª maior empresa de telecomunicações do mundo.14

Nos EUA, o processo é focado na celeridade, pois a demora conduz uma


empresa passível de salvação à dissolução completa. O litígio é resolvido de maneira
notoriamente informalizada, na qual o objetivo prevalece em relação aos rigores
formais do processo. Os ditames burocráticos dão lugar à agilidade própria da
iniciativa privada. As negociações, elaboração do plano e reuniões são realizadas fora
                                                            
14 QUEIROZ, JORGE. Após cinco anos, Lei de Recuperação mostra falhas. Revista Consultor
Jurídico, São Paulo. 23 de março de 2010. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-mar-
23/quinto-aniversario-lei-falencias-mostra-licoes-nao-aprendidas>. Acesso em: 10 de maio de 2010. 
 
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do juízo para dinamizar o processo e acautelar a continuidade da atividade da


empresa. Existe uma consciência e um ativo aparato jurídico e financeiro centrado na
tentativa de manter a atividade produtora. No Brasil, contudo, a recuperação ainda é
muito burocratizada.

A decretação de falência conforme a Lei Falimentar

Atentando às preditas explicações analisa-se, com profundidade, o artigo 56


§ 4º o qual determina que: “Rejeitado o plano de recuperação pela assembléia-geral
de credores, o juiz decretará a falência do devedor.”
A partir de sua leitura percebe-se que seu mandamento contraria o corolário
da própria lei em que está inserido, porque independente da viabilidade da empresa,
se os credores decidirem não aceitar o plano, a empresa caminhará para a falência.
O artigo 73, III, confirma o enunciado anterior ao ordenar:

Art. 73. O juiz decretará a falência durante o processo de


recuperação judicial: [...]
III – Quando houver sido rejeitado o plano de recuperação, nos
termos do § 4º do art. 56 desta Lei; [...]15

A interpretação literal confronta principalmente o artigo 47 da mesma Lei


que diz: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação
de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte
produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores,
promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à
atividade econômica.”16

                                                            
15 Lei 11.101/2005
16 Lei 11.101/2005
 
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Surge, portanto, “a dúvida” sobre “o que pode acontecer com essas


empresas – e com todas as outras que pediram recuperação – se seus planos não
tiverem o aval dos credores.”17
Em vista disso, muitos juízes têm decidido de outra forma. Newton de
Lucca, desembargador federal julga que esse artigo não pode ser literalmente
interpretado, pois, cabe ao juiz avaliar se a proposta é sólida ou não. O estudioso
sustenta, outrossim, que o juiz pode rejeitar planos que considerar inconsistentes,
mesmo se tiverem sido aprovados pela assembléia geral dos credores.
O próprio artigo 58, § 1º prevê a concessão da recuperação pelo juiz até se a
assembléia geral não aceitar o plano. Essa previsão excepcional quer tratar os
credores de forma igualitária visto que a reprovação pode ter acontecido por pouca
diferença de votos prejudicando a grande parte de credores que acreditam na
recuperação da empresa. Claramente, demonstra-se aí, o comportamento dúbio da
Lei.
Esse entendimento faz-se amparado no artigo 5º do Decreto-Lei 4.657 de
1942 ou Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) disciplinando que: “Na aplicação
da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem
comum”, ou seja, deve-se utilizar a razoabilidade ao interpretar as leis como
defendido pelo desembargador Pereira Calças.
Na opinião do juiz Calças, apesar da assembléia ser soberana ela está abaixo
da Justiça e não impedirá o juiz de permitir que a empresa tenha a chance de
apresentar novo plano para os credores examinarem. “A nova Lei de Falências

                                                            
17 OCHOA, Roberto Ozelame. Plano de recuperação recusado poderá não resultar em falência?.
Jornal Valor Econômico, São Paulo. 9 de dezembro de 2005. Disponível em:
<http://www.planejaerecupera.com.br/materia.php?vIDMateria=122>. Acesso em: 19 de abril de
2010. 
 
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tornou maior a atuação dos credores no processo, mas não transformou o juiz em
chancelador da assembléia”18, opina.
Deve-se levar em consideração, outrossim, que muitos planos apresentados
são questionáveis devido à ausência de uma lei regulamentando o modo e o conteúdo
da elaboração. Acrescenta-se a isso o fato de serem produzidos por profissionais de
outras áreas, o que acaba dando ensejo a uma recuperação ineficaz. Como exemplo,
o caso Varig, a Variglog, Vasp, Parmalat e inúmeras outras.
Outros magistrados, como a juíza Márcia Cunha, não crêem que se deva
decidir contrariamente aos credores se eles preferem aprovar um plano fraco ao
processo falimentar. No entanto, ela defende que é necessário conferir se não houve
algum tipo abuso de direito por parte do credor. Para mais alguns, seria ineficiente
descobrir abusos por parte dos credores e não decretar a falência, já que eles podem
boicotar o funcionamento da empresa não fornecendo matérias-prima, por exemplo.
O caso Parmalat Participações Ltda. ilustra um bom exemplo do uso da
razoabilidade diante da decisão de decretar ou não a quebra. Sua fundamentação se
deu com base no princípio constitucional da função social da empresa. Sendo, por
conseqüência, concedido o direito de apresentação de outro plano de recuperação.
Tal decisão foi intensamente criticada por não haver texto legal a dar-lhe
legitimidade. Não obstante, o relator do acórdão refuta a tese, afirmando que “os
princípios têm peso e densidade, devendo ser mesurados. Violar um princípio é mais
grave que violar uma regra, mercê do que, havendo um conflito entre um princípio e
uma regra, o Juiz deve dar prevalência ao princípio.”19

                                                            
18 PINHEIRO, Aline. TJ-SP permitirá que Parmalat apresente novo plano de recuperação. Revista

Consultor Jurídico, São Paulo. 31 de janeiro de 2007. Disponível em:


<http://www.conjur.com.br/2007-jan-31/tj-sp_permitira_parmalat_apresente_plano>. Acesso em:
17 de maio de 2010.  
19 Agravo de instrumento nº 461.74 0-4/4-00. Tribunal de Justiça de São Paulo.

 
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Recorda-se que a Parmalat Participações era uma holding que abrangia a


Parmalat Alimentos, porém, atualmente possui pequena participação. A Parmalat
Alimentos já obteve aprovação do plano pelos seus credores, enquanto a ex holding,
com dois planos rejeitados, ainda enfrenta problemas para conseguir a plena
recuperação.
Após períodos de turbulência, a Parmalat Alimentos do Brasil, comprada
pelo Grupo de Investidores LAEP Brasil, além da aquisição da empresa Poços de
Caldas que pertencia à Danone, se mantém com participação de mercado estável,
crescimento da receita bruta e mostra que sua recuperação foi producente.

Conclusão

Ao longo da discussão, pôde-se notar a grande importância da nova Lei de


Recuperação, tendo-se em conta, a tentativa de se modificar a concepção de uma
empresa em processo de recuperação e de sua importância como um ente inserido
nas decisões da economia de um país.
Contudo, essa norma é acompanhada de muitas divergências doutrinárias e
jurisprudenciais, pois seus dispositivos entram em conflito e enfraquecem, até certo
ponto, a aplicabilidade da lei. Por isso, é alvo de várias propostas de mudanças
inclusive de revogação total.
Os artigos 56 e 73 detalhados neste trabalho são decisivos para o fim ou
para o renascimento de uma empresa, pois, ao determinarem, peremptoriamente, a
quebra após rejeição do plano, os juízes são levados a investigar se é conveniente
fazê-lo, observado o princípio, de status constitucional, de manutenção da função
social da empresa. Isso porque deve-se visualizar o desenvolvimento econômico,
além de garantir a concorrência também prevista na Lei Maior.
 
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Esse posicionamento judicial é mal visto, por alguns autores, por não ter
respaldo legal. No entanto, essa postura legalista não produz efeitos desejáveis,
provocando, por vezes, insegurança jurídica, um mal estar negocial. Ao delegar a
decisão para os credores, o legislador, à sua maneira, pretendeu facilitar as
negociações entre as partes para que elas alcançassem o melhor meio de resolver a
crise, garantir seus contratos e não deixar ao arbítrio dos credores os rumos da
empresa. Essa possibilidade de definir a aceitação do plano pode originar fraudes,
posto que os detentores do crédito podem aprovar ou rejeitar o plano de acordo com
suas conveniências, como também formar conluios prejudicando os pequenos
credores e privilegiando os grandes.
Por fim, pode-se concluir que para os objetivos sociais do instituto
falimentar serem alcançados, deve ser aplicada a interpretação mais benéfica à
subsistência da empresa, ainda que por meio de recursos mínimos. Pois a falência,
pelo seu desenrolar tempestuoso, engessa a produção e circulação da riqueza, reduz a
arrecadação de tributos e desequilibra o ambiente econômico e social de um País,
trazendo um cenário de mal estar a todos que nela estão envolvidos, sejam os
devedores, os credores ou o corpo de empregados.
Bons trabalhos legislativos seriam o modo mais eficaz de auxiliar o
Judiciário a superar as adversidades da incipiente exegese da nova lei de falências. A
hermenêutica segura e equânime dos seus institutos constituiria um poderoso fator a
atuar na criação de um Estado apto a acolher investimentos e, portanto, disposto a
manter firmes as taxas de desenvolvimento.

 
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PODER DE DELIBERAÇÃO DOS CREDORES NA ASSEMBLÉIA


DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Juliana Brandão de Melo Horst1

RESUMO

A recuperação judicial, conforme prevê a Lei n. 11.101/05, objetiva


viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de
permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos
interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função
social e o estímulo à atividade econômica.
A Lei, portanto, fixa o objetivo de preservação da empresa (atividade),
vinculando os operadores do direito.
Ao mesmo tempo, a Lei atribui aos credores um papel fundamental na
decisão do destino da empresa, ao prever que a Assembléia-Geral de Credores terá
por atribuição deliberar sobre o plano de recuperação.
Uma interpretação literal do artigo 35 da Lei leva à conclusão de que a
decisão sobre a recuperação da empresa é dos credores, exercendo o Juiz um papel
homologatório.
Não se pode deixar de considerar, porém, que a atribuição deste poder pode
conflitar com o objetivo legal se os credores não o exercerem visando à preservação
da empresa e, por conseguinte, buscarem tão somente o natural atendimento de seus
próprios interesses que, muitas vezes, são antagônicos ao objetivo de preservação da
empresa.
A questão que surge, então, é como solucionar os conflitos entre os
interesses dos credores e o objetivo de preservação da empresa e de sua função
social, bem como o conflito entre os interesses dos próprios credores.

                                                            
1Especialista em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, mestranda
em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos. Email: julianahorst@gmail.com.
Endereço para acessar currículo na plataforma lattes: http://lattes.cnpq.br/8040763729063780. 
 
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Do mesmo modo, deve-se investigar qual a solução a ser adotada quando a


assembléia rejeita o plano de recuperação e o aplicador do direito considera que ele
deveria ser aprovado por se tratar de empresa economicamente viável.
Há doutrinadores que defendem que o juiz não pode examinar o conteúdo
da deliberação. Outros afirmam que o poder deliberativo dos credores poderá ser
apreciado pelo Judiciário.
Portanto, a questão merece atenção, tendo em vista a importância da
empresa para o desenvolvimento da economia.

Palavras-chave: Recuperação judicial. Preservação da empresa. Credores.


Keywords: Court-supervised reorganization. Conservation of the enterprise.
Creditors.

1 Introdução

O artigo 47, da Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, trata do novel


instituto da recuperação judicial, trazendo uma verdadeira declaração de princípios,
que merece ser transcrita:

A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da


situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de
permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos
trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica.

O fundamento da preservação da empresa está em sua função social. Ao


dispor sobre a ordem econômica e financeira, a Constituição estabelece os princípios
gerais da atividade econômica, dentre os quais o da função social da propriedade e
busca do pleno emprego (art. 170, III e VIII). Nesse contexto, a preservação da
empresa constitui uma das principais formas de dar eficácia aos princípios

 
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enunciados, bem como de concretizar a finalidade constitucional da ordem


econômica, qual seja, assegurar a todos uma existência digna.
A idéia de preservação da empresa já vinha sendo defendida por diversos
juristas, muito antes da promulgação da Lei n. 11.101/05, os quais alertavam sobre a
necessidade de introduzir modificações que, mais do que garantir aos credores a par
condicio creditorum, deveriam procurar mecanismos de sobrevivência da empresa, com
o que se garantiria o interesse social e o interesse dos próprios credores.
A empresa está inserida num contexto social, interferindo e recebendo
influências desse ambiente. É fonte geradora de empregos, de recolhimento de
tributos e de ativação da economia.
A recuperação judicial de empresas tem como objetivo a concretização dos
direitos sociais e econômicos fundamentais, conforme supramencionado.
Exatamente por se tratar de uma recuperação judicial2, a primeira idéia que vem à
mente é a de que a concretização destes direitos passa por uma decisão do Estado-
Juiz, que ponderará sobre a preservação ou não da empresa.
O que se verifica, todavia, é que a Lei n. 11.101/05 atribuiu aos credores um
papel fundamental na decisão do destino da empresa em dificuldade econômica e
financeira. O inciso I, “a”, do artigo 35, dispõe que a Assembléia Geral de Credores
terá por atribuição deliberar sobre a aprovação, rejeição ou modificação do plano de
recuperação judicial apresentado pelo devedor. Verifica-se deste dispositivo que a
decisão da recuperação da empresa é dos credores, exercendo o Juiz tão somente o
papel formal de homologar a decisão daqueles.
A Assembléia Geral de Credores é considerada por muitos doutrinadores
como um dos maiores avanços da Lei 11.101/05, por atribuir aos credores papel
fundamental na decisão do destino da empresa em crise.
                                                            
2 Ainda que considerada por muitos doutrinadores como um processo não-litigioso, como se verá

mais adiante.
 
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É inegável que a diminuta participação dos credores, durante a vigência do


Decreto-Lei n. 7.661/45, fazia com que fossem meros expectadores da insolvência
da empresa, o que contribuiu para o insucesso do referido Decreto-Lei.
Nesse contexto, a Lei n. 11.101/05 mostra-se benéfica ao atribuir
importante papel aos credores na deliberação dos rumos da empresa.
Entretanto, apesar de se tratar de um benefício, faz-se necessário considerar
que os credores podem não exercer o poder que lhes foi conferido de acordo o
objetivo legal de preservação da empresa e, por conseguinte, buscarem tão somente o
atendimento de seus interesses particulares que, muitas vezes, são antagônicos ao
objetivo de preservação da empresa.
A extinta concordata buscava harmonizar relações patrimoniais apenas com
os credores quirografários, de modo a permitir que o devedor pudesse permanecer à
frente de seus negócios. Já a recuperação judicial foi concebida para contemplar um
feixe de interesses muito mais abrangente que os modestos limites da concordata,
conforme se verifica pelo disposto no artigo 47 da Lei 11.101/05.
Face ao exposto, o presente artigo irá realizar um estudo sobre o poder dos
credores na deliberação sobre a recuperação da empresa, bem como eventual
possibilidade de intervenção do Poder Judiciário nesta deliberação.

2 Histórico

A atribuição de funções à Assembléia de Credores não pode ser considerada


uma inovação.
O Código Comercial de 1850 regulou, pela primeira vez, o instituto da
concordata na legislação brasileira. Foi a primeira legislação do país a conceder

 
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autonomia aos credores na organização falimentar, restando ao Juiz apenas o papel


de homologar as decisões tomadas nas Assembléias Gerais.
O processo falimentar se compunha de duas assembléias de credores, tendo
a segunda delas a atribuição de deliberar acerca da concessão de concordata, a qual
para ser concedida dependia da aprovação da totalidade dos credores do falido.

[...] os credores, concluída a apresentação dos pareceres da


comissão verificadora eleita na primeira assembléia, deliberariam
acerca da concessão de concordata ou sobre a forma de liquidação
dos ativos. O avanço para a época é notável e percebe-se que o
papel do credor passa a ser realçado com vistas a realmente definir
os destinos do falido. (SADDI, 2005, p. 200).

A Lei n. 3.065, de 1882, alterou o Código Comercial para impor a


aprovação da concordata suspensiva pela maioria presente na assembléia e inseriu no
Código Comercial a concordata preventiva.
O Decreto n. 917, de 24 de outubro de 1890, abrindo novos horizontes
previa a moratória e o acordo preventivo como meios preventivos da decretação da
falência, fornecendo ao Direito falimentar as bases que chegaram aos dias de hoje.
Tal Decreto foi complementado pela Lei n. 859, de 16 de agosto de 1902. Sobre o
instituto da concordata na vigência da Lei n. 859, de 16 de agosto de 1902, Manoel
Alva de S. Sa Vianna esclarece as regras utilizadas à época:

Quais os elementos que devem concorrer para a concordata


produzir os seus effeitos jurídicos?
Diremos: 1º. – a proposta do devedor; 2º. – a acceitação d’esta
proposta pela dupla maioria do numero e do capital; 3º. – a
homologação pela autoridade judiciária.
Desde que a proposta é feita pelo devedor e a maioria que a lei
exige manifesta-se acceitando-a, cumpre ao juiz decretar a sua
homologação sem entrar – a) na apreciação do valor que o falido
se propõe a pagar; b) no conhecimento da conducta do falido.
(VIANNA, 1907, p. 461-462).

 
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Na sequência, a Lei n. 2.024 de 1908, posteriormente modificada pelo


Decreto 5.746 de 1929, previu a possibilidade de um acordo entre o devedor e seus
credores, que poderiam controlar ativamente o processo falimentar, dando à
concordata a mesma contextualização finalística que a atual Lei:

Mas foi somente em 1908, com a Lei n. 2.024, cujo projeto havia
sido elaborado pelo grande jurista J. X. Carvalho de Mendonça,
que a verificação e a classificação dos créditos contra o falido
aperfeiçoaram as disposições modernas sobre falência, ‘conforme
o progresso científico e a jurisprudência dos tribunais, aplicando-
as segundo as necessidades práticas e modificando-as, quando
houver mister debelar a fraude e a má-fé’. Mais tarde, com o
propósito de aperfeiçoar a Lei 2.024, foi aprovado, em 9 de
dezembro de 1929, o Decreto 5.746, em que se introduziram
inovações como a diminuição do número de síndicos de três para
um e a instituição de porcentagem sobre os créditos para a
concessão da concordata. (SADDI, 2005, p. 201).

Como ensina Trajano de Miranda Valverde (1948, p. 212), desde o Código


de 1850 até o Decreto-Lei n. 7.661, de 21 de junho de 1945, manteve-se firme a regra
que exigia, para a validade da concordata, que a proposta contasse com o apoio de
determinada maioria de credores e créditos. O Decreto-Lei 7.661/45, porém, tomou
outro rumo, tornando desnecessário o consentimento dos credores para a concessão
da concordata.
Com a promulgação do Decreto-Lei n. 7.661/45, elaborado sob a égide da
ditadura de Getúlio Vargas, o eixo da participação do Estado foi modificado, com
uma maior ingerência do ente público, minorando os pressupostos da liberdade de
contratar e da propriedade econômica.
De fato, no regime político do Estado Novo, ocorreu uma forte defesa à
intervenção do Estado na atividade econômica, no domínio da autonomia privada.
Consequentemente, na referida época reforçou-se o caráter judicial do processo

 
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falimentar e reduziu-se a influência dos credores. A concordata deixou de ser um


contrato e passou a ser um direito do devedor.3
Waldemar Ferreira (1951, p. 42-43), ao comentar o Decreto-Lei n.
7.661/45, destacou que a concordata tinha o deliberado propósito de beneficiar o
devedor em detrimento do credor, pois, ainda que os credores, unanimemente, se
opusessem à concordata, o Juiz poderia homologá-la. Por tal motivo, o referido autor
denominou a concordata instituída pelo Decreto-Lei de “concordata fascista”:

A nova lei mostrou-se inexorável contra os credores, restringindo-


lhes o exercício de seus direitos creditórios. Não mais lhe é dado
intervir no processo liquidatório, elegendo o liquidatário. Nem,
tão pouco, intervir na concordata, preventiva ou suspensiva da
falência, senão em termos que lhes impossibilitam
verdadeiramente defender, eficientemente, seus créditos. Instituiu-
se, com evidente espírito fascista, o que impropriamente se tem
chamado de concordata da autoridade. Ainda que os credores,
unânimemente, se lhe oponham, ao juiz é dado outorgá-la. Tudo
póde ser isso, menos concordata. (FERREIRA, 1951, P. 42-43).

Trajano de Miranda Valverde afirmou à época que o Decreto-Lei conferiu à


concordata estrutura integralmente processual:

A demanda de concordata inicia-se, como nos processos


contenciosos, com o pedido do devedor, e, queiram ou não os
credores citados para dizer sobre o pedido, o juiz dêle toma
conhecimento e decide da sua procedência ou improcedência,
segundo as regras prescritas na lei. Aos credores fica reservado o
direito de se oporem (artigo 142) ao pedido, porém não mais
dependerá da vontade deles a terminação do processo da falência
pela concordata suspensiva, quando cumprida, nem a concessão
da concordata preventiva.
Concordata e processo judicial são inseparáveis, isto é, não se
pode conceber a concordata sem a série ordenada de atos e
termos processuais, que alicerçam a demanda. (VALVERDE,
1948, p. 219-220).

                                                            
3 Tal direito era impropriamente chamado de “favor legal”.
 
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Assevera o jurista que o Decreto-Lei 7.661/45, ao conferir essa estruturação


processual à concordata, submete os juízes à pesada prova de competência:

Dá-lhe [magistratura] atribuições delicadas e poderes amplos, com


duplo objetivo: o de resolver, honestamente, o conflito de
interesses individuais e o de preservar a empresa mercantil contra
a ameaça de sua destruição.
Se os juízes falharem, a desmoralização do instituto evidenciará a
incapacidade do Judiciário para tão elevada missão.
Mas esperamos que isto não suceda. E não sucederá, se os juízes
forem intransigentes na observância dos preceitos legais que
impõem condições e requisitos para a obtenção do favor, para
cuja concessão é o juiz mero instrumento da lei. (VALVERDE,
1948, p. 220-221).

Na opinião de Marcos de Barros Lisboa e outros (2005, p. 46), a não


participação dos credores na concordata impedia a criação de um ambiente de
cooperação entre as partes. Assim, os credores eram estimulados a agir isoladamente
para maximizar seus interesses, o que acabava com qualquer expectativa de
soerguimento da empresa.
Em sentido diametralmente oposto ao Decreto-Lei revogado, o art. 35, I,
“a” da Lei n. 11.101/05, confere aos credores o poder de deliberar sobre a
aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado
pelo devedor.
Essa atribuição de poder aos credores, embora tenha obtido apoio de
muitos juristas e do próprio Poder Executivo, sofreu resistência por parte do Relator
do Projeto n. 7.376/93 - que se transformou na Lei n. 11.101/05 -, Deputado
Osvaldo Biolchi. Assevera o Relator que a inserção do artigo 41 na referida Lei foi a
forma encontrada para tentar ao menos distribuir o poder entre os credores de forma
por ele considerada mais democrática:

 
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Confesso em são consciência a você leitor e ao público em geral


que, na qualidade de relator, sempre fui refratário à idéia de
depositar nas mãos dos credores esta importante decisão da vida
das empresas e o próprio destino. Aliás, esta também sempre foi
tema defendido pelo Professor Rubens Requião. Entretanto, o
Poder Executivo é que está coma caneta na mão e detém, em
qualquer nação do mundo, a supervisão, e, logicamente, poderá
impor sua ideologia e filosofia ao Poder Legislativo.
Correlatamente, com a relatoria nas mãos, pois conseguimos
inserir a previsão dos arts. 41 e seguintes da lei, com a distribuição
democrática da dispersão dos votos, na divisão das classes de
credores, que detém poderes iguais e não dependerá só, por
exemplo, do credor da instituição financeira.
Queremos com isso significar que a diminuição dos poderes do
juiz na etapa da recuperação da empresa, portanto, implica a
atribuição maior do poder de influência relativamente aos
credores.
E se for acentuado o absenteísmo assemblear, tanto melhor para
que um grupo coeso passe a exercer o poder de controle e
delibere a sorte da empresa, e uma vez mais repetimos que a
grande preocupação é com a recuperação da atividade e não tão-
somente do crédito, embora tenha sua conotação de importância.
(BIOLCHI, 2009, p. XLV).

A Lei n. 11.101/05 se destaca também por prever a continuação da empresa


economicamente viável, ganhando destaque o princípio da preservação da empresa e
sua função social.4

3 Recuperação Judicial de Empresa

3.1 Definição e natureza jurídica

                                                            
4 Na realidade, muito antes da promulgação da Lei, mecanismos de preservação da empresa já estavam

sendo implementados em muitos ordenamentos jurídicos estrangeiros. 


 
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A recuperação de empresas é uma novidade introduzida no ordenamento


jurídico brasileiro pela Lei n. 11.101/05, concebida por influência do capítulo 11 da
lei americana5, que tem despertado grande interesse internacional.

A legislação americana, particularmente em seu capítulo 11 que


trata da recuperação empresarial, tem despertado grande interesse,
inclusive sido motivo de inspiração para outros países, como o
México, a Argentina e a maior parte da Ásia. Neste modelo tenta-
se criar as condições de uma barganha estruturada entre devedores
e credores, com o objetivo de maximizar o valor da firma através
da adoção de um plano de recuperação empresarial que, embora
proposto pela gerência da firma devedora, tem que ser aprovado
por maioria de cada uma das classes de credores. Somente no caso
de impasse o Juiz pode determinar o chamado cramdown,
forçando uma das classes de credores minoritários a seguir a
maioria. Embora seja criticada por muitos por ser custosa e
demasiado leniente com os devedores, ela tem sido exitosa em
muitos casos. (ARAÚJO; LUNDBERG, 2005, p. 329-330).

O instituto da recuperação de empresas foi introduzido no ordenamento


jurídico brasileiro como uma tentativa de sanar as falhas do Decreto-Lei 7.661/45, o
qual havia se mostrado incapaz de preservar importantes empresas.
Como leciona Marcos de Barros Lisboa e outros,

A experiência brasileira das últimas décadas, baseada na


concordata como único instrumento de recuperação, revela que
mecanismos muito rígidos, sem espaço para a negociação entre
devedor e credores, dificilmente tem êxito no seu objetivo de
possibilitar à empresa a superação de seus problemas financeiros.
Os novos regimes de recuperação judicial e extrajudicial procuram
mudar esse cenário, criando mecanismos flexíveis para a busca de
soluções de mercado para a empresa. (LISBOA, 2005, P. 43).

                                                            
5 Conhecido como “Chapter 11”.
 
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Alberto Camiña Moreira (2005, p. 248) define a recuperação judicial como


“a ação pela qual o devedor oferece aos seus credores a possibilidade de examinar o que a lei chama
de plano de recuperação judicial. Trata-se de mera proposta, que pode ser aceita ou não.”
Os destinatários da proposta são os credores, que, por sofrerem as
consequências diretas do plano, são os titulares do direito de examiná-lo. Em outras
palavras: “a recuperação é a proposta do devedor aos credores, solicitando a apreciação de um plano
com vistas à reorganização da empresa ou à reestruturação do passivo.”(MOREIRA, 2005, p.
249).
Pelo conceito dado pelo autor ao instituto, verifica-se que ele não o
considera um processo litigioso:

Na recuperação judicial não há pretensão exercida contra os


credores, entendida a pretensão como a afirmação de um direito
contra o réu, para que seja este submetido a ela. O direito do
devedor, na recuperação judicial, é de apresentar uma proposta,
apresentar um plano.
O destino do plano, contudo, está nas mãos dos credores, que
poderão aceitá-lo, modificá-lo ou rejeitá-lo.
[...]
Negociação é a palavra chave; e essa negociação, conquanto se dê
perante o Poder Judiciário, dá-se sem a intervenção do juiz. A lei
não prevê a atuação jurisdicional para esse fim; muito embora o
juiz brasileiro disponha de poderes gerais de conciliação, e ela seja
mesmo muito enfatizada pela doutrina. (MOREIRA, 2005, p.
249-250).

Para Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn, o plano de recuperação


judicial consiste em um

“negócio de cooperação celebrado entre devedor e credores,


homologado pelo juiz. No que diz respeito ao negócio de
cooperação, assemelha-se ao contrato plurilateral; no que diz
respeito à homologação, pode-se considerar forma de garantia do
cumprimento das ações assumidas, com o que se reduzem custos

 
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de transação6 dada a coercitividade que dela, homologação,


resulta.” (FRANCO; SZTAJN, 2008, p 234)

Sérgio Campinho (2006, p. 12-13), define o instituto da recuperação judicial


como um contrato judicial, de feição novativa, realizável através do plano de
recuperação.
Também definindo a recuperação judicial como um contrato, tem-se a lição
de Lídia Valério Marzagão:

Assim verifica-se que, a partir da vigência desta nova Lei,


estaremos resgatando um sistema já adotado no século passado, e
não haverá mais dúvida quanto à natureza contratualista da
recuperação judicial que, a princípio, obriga a participação efetiva
de todos os credores representados em assembléia geral de
credores, que terão o poder de aprovar o não o plano de
recuperação apresentado pelo devedor. (MARZAGÃO, 2005, p.
93).

Na realidade, o conceito de recuperação judicial varia de acordo com a


natureza jurídica do instituto adotada pelo autor do conceito.
Em geral, os privatistas defendem que a recuperação judicial da empresa é
um instituto de Direito Privado, devido à sua natureza contratual, conforme se vê
nos conceitos acima transcritos. Afirma Jorge Lobo (2009, p. 125) que, “para os
privatistas, a recuperação judicial da empresa é um contrato celebrado entre o devedor e seus credores,
razão pela qual só cabe ao juiz homologá-lo e, se o contrato não se consumar, decretar a falência do
devedor.”
Já os publicistas afirmam que se trata de um instituto de Direito Público, se
materializando através de uma medida processual:

                                                            
6Custos de transação são aqueles custos em que se incorre, que de alguma forma oneram a operação,
mesmo quando não representados por dispêndios financeiros feitos pelos agentes, mas que decorrem
do conjunto de medidas tomadas para realizar a transação. (SZTAJN, 2005, p. 230).
 
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Para os publicistas, a recuperação judicial da empresa é um


instituto de Direito Processual, pois a LRE garante ao devedor,
preenchidos os requisitos formais do art. 51 e os requisitos
materiais do art. 48, propor ação de recuperação judicial; afirmam
com ênfase, que se a recuperação judicial se efetiva e se
implementa através de uma ação processual de natureza
constitutiva, ela é um instituto de Direito Público [...]”. (LOBO,
2005, p. 126).
Há também quem entenda que se trate de um instituto de Direito
Econômico:

Embora ‘ato complexo’ e ‘ação constitutiva’, a recuperação judicial


tem natureza e as características de um instituto de Direito
Econômico [...]
Com efeito,a recuperação judicial da empresa é um instituto de
Direito Econômico, porque suas normas não visam
precipuamente realizar a idéia de justiça, mas sobretudo criar
condições e impor medidas que propiciem às empresas em estado
de crise econômica se reestruturarem, ainda que com parcial
sacrifício de seus credores [...]. (LOBO, 2009, p. 127-128).

3.2 Plano de Recuperação Judicial

Segundo dispõe o artigo 53, da Lei n. 11.101/2005, o devedor deve


apresentar, em juízo, no prazo de 60 (sessenta dias) contado da publicação da decisão
que deferir o processamento da recuperação judicial, o plano de recuperação, em que
fará discriminação detalhada dos meios de recuperação a serem empregados e o
respectivo resumo, demonstração de sua viabilidade econômica e o laudo
econômico-financeiro e de avaliação de seus bens e ativos.
Oferecido o plano, o juiz ordenará a sua publicação com aviso aos credores,
facultando-lhes a possibilidade de objeção no prazo de 30 (trinta) dias contado da
publicação da relação de credores.

 
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3.3 Assembléia Geral de Credores

No que tange à recuperação judicial, a Lei n. 11.101/2005 cria instância


obrigatória de deliberação, estabelecendo o artigo 35 que a assembléia geral de
credores é competente para deliberar sobre a aprovação, rejeição, ou modificação do
plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor.

3.3.1 Classes de credores na Assembléia Geral e regras de deliberação

São três as classes de credores que compõem a assembléia geral, conforme


prevê o artigo 41 da Lei n. 11.101/2005: 1) titulares de créditos derivados da
legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes do trabalho; 2) titulares de crédito
com garantia real; 3) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com
privilégio geral e subordinados.
Regra geral, a assembléia de credores delibera mediante manifestação de
credores que representam mais da metade do valor total dos créditos presentes à
assembléia. Esta regra, no entanto, possui exceções. Uma das exceções diz respeito
exatamente à deliberação sobre o plano de recuperação judicial.
Nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, seja para aprová-lo,
rejeitá-lo ou modificá-lo, todas as classes de credores previstas no artigo 41 da Lei n.
11.101/2005 deverão aprovar a proposta, conforme prevê o artigo 45 da mesma Lei.
Os créditos decorrentes da legislação trabalhista integram, por inteiro, a
primeira classe, juntamente com os créditos decorrentes de acidentes de trabalho,
independentemente de seu valor. Estes credores deverão aprovar a proposta pela
maioria simples dos presentes, independentemente do valor de seus respectivos

 
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créditos, de acordo com o parágrafo segundo do artigo 45. Configura-se, na hipótese,


o voto “por cabeça” e não pelo valor total do crédito.
A regra da integralidade do crédito, prevista para os créditos trabalhistas
para fins assembleares, não se aplica aos titulares de créditos com garantia real,
componentes da segunda classe. Estes, de acordo com o parágrafo segundo do artigo
41, votam até o limite do bem gravado na classe respectiva e, com os quirografários –
terceira classe –, pelo restante do valor de seu crédito.
Os integrantes da terceira classe votam pela totalidade de seus respectivos
créditos.
Os titulares de créditos com garantia real e os titulares de créditos
quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados deverão
aprovar a proposta pelos que representem mais da metade do valor total dos créditos
presentes à assembléia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores.

3.3.2 Aprovação do plano pelo Juiz

Poderá o juiz aprovar o plano de recuperação judicial que não lograr


aprovação na Assembléia Geral de Credores, na forma do artigo 45. A possibilidade
de aprovação pelo juiz, prevista no parágrafo primeiro do artigo 58, requer que o
plano tenha obtido, de forma cumulativa: a) o voto favorável de credores que
representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia,
independentemente de classes; b) a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos
termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores
votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas; c) na classe que o houver
rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na
forma dos §§ 1o e 2o do art. 45 da Lei.
 
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Ainda como requisito para a aprovação do plano de recuperação pelo juiz,


exige-se que o plano não ofereça tratamento diferenciado entre os credores da classe
que o houver rejeitado, conforme previsto no parágrafo segundo do artigo 58.
Trata-se, na hipótese, do denominado “cramdown” brasileiro. A expressão
“cramdown” significa a possibilidade dada ao magistrado de impor aos credores
dissidentes um plano de recuperação aceito pela maioria.

3.3.4 O exercício do direito de voto na Assembléia Geral de Credores

Como explicitado acima, o legislador disciplinou o modo de concessão da


recuperação judicial, homologada pelo juiz em virtude da aprovação do plano de
recuperação pelos credores reunidos em Assembléia Geral. Excepcionalmente, o juiz
poderá conceder a recuperação mesmo que os credores não a aprovem nos
percentuais fixados em lei (art. 58, da Lei n. 11.101/05).
Por isso, assevera Moacyr Lobato Campos Filho (2007, p. 125) que o voto
constitui a forma legal adequada de manifestação do credor que deliberará sobre o
plano de recuperação judicial.
Assim, pode-se afirmar que a Assembléia Geral constitui o momento por
excelência para exame e manifestação dos credores quanto à proposta de recuperação
judicial.
Segundo Moacyr Lobato,

O legislador de 2005 deferiu aos credores participação e


responsabilidade decisivas na recuperação judicial. Sem eles, não
há como o devedor prosperar no seu intento de evitar a
declaração judicial da falência por intermédio da reestruturação da
empresa. Nesse ambiente, a assembléia geral de credores assume
papel de crucial importância no futuro da empresa. Dirão os

 
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credores, reunidos no conclave, se as condições propostas pelo


devedor atenderão, primordialmente, aos seus interesses. O credor
atua na assembléia geral no resguardo de seus interesses
creditícios, examinando se a proposta de recuperação constitui
instrumento hábil a viabilizar realização de seu crédito.
Não tem o devedor o mesmo grau de responsabilidade e
comprometimento com a empresa que tem o acionista em relação
à companhia.
O acionista é titular do status socii decorrente do vínculo jurídico
estabelecido pela propriedade das ações. É sócio antes de ser
eventual credor. Tem responsabilidades perante a companhia que
compreendem, entre outros, o dever de informar e o de exercer o
direito de voto na assembléia geral conforme o próprio interesse
da sociedade anônima. A lei societária impõe sanções decorrentes
do uso abusivo do direito de voto, do voto contrário ao interesse
da companhia e do conflito de interesses pessoais do acionista
com os da própria companhia.
Outra é a hipótese do exercício do direito de voto pelo credor na
assembléia geral de recuperação judicial. A lei, nesse passo, prevê a
necessidade de aprovação por classes de crédito do plano de
recuperação judicial. Fixa limites mínimos, em termos percentuais,
para que a proposta de recuperação possa vir a ser objeto de
aprovação.
Não há contudo, dever do credor em relação à preservação da
empresa, a não ser que esta esteja vinculada à satisfação de seus
créditos. (CAMPOS FILHO, 2007, p. 134-135)

4 Análise Econômica do poder de deliberação dos credores

Procedendo a um estudo do tema sob o enfoque da análise econômica do


direito, Eduardo Goulart Pimenta (2007, p. 303) afirma que não se pode ou deve
esperar que os grupos de interesses envolvidos no processo de recuperação judicial
abdiquem dos proveitos advindos da decretação de falência da empresa e sua
consequente liquidação, se tais proveitos forem mais eficientes aos seus objetivos,
para atender ao interesse público de manutenção da empresa. E conclui:

 
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A restauração da empresa que passa por uma crise econômico-


financeira somente será eficiente – e portanto viável – se todos
esses grupos de interesses organizados vislumbrarem, na
manutenção da unidade produtiva, o modo mais eficiente de
maximizarem seus interesses. O credor somente orientará sua
conduta no sentido da recuperação da unidade empresarial se
perceber que esta é, se comparada ao fechamento do
empreendimento e recebimento de seus direitos em um concurso
com os demais credores do falido, a escolha mais eficiente.
(PIMENTA, 2007, p. 303)

O autor defende que a compreensão e aplicação do processo de


recuperação de uma empresa não podem se limitar à preocupação com a preservação
da unidade empresarial e com o atendimento de sua função social, pois a manutenção
da empresa está vinculada, primeiramente, aos incentivos econômicos e à vontade
dos credores e do empresário titular da atividade. Negligenciar esse aspecto implicaria
o tratamento do instituto da recuperação sem maiores preocupações com sua
utilização eficiente.

4.1 Teoria dos Jogos e a deliberação dos credores

Para fundamentar seu posicionamento, o autor apóia-se na “Teoria dos


Jogos7”. A obra que introduz no campo jurídico o tema é o livro de Douglas G.
Baird, Robert H. Gertner e Randal C. Picker (2003), intilulado “Game theory and the

                                                            
7 A primeira tentativa formal de criar uma Teoria dos Jogos foi feita pelo matemático húngaro Jancsi
Von Neumann, em 1928, em um artigo seminal intitulado ‘Zur Theorie der Gesellschaftspiele’, no
qual desenvolve o conceito de interdependência estratégica. (PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 161).
O importante é entender o conceito de Von Neumann de ‘jogo’ como simplesmente uma situação de
conflito em que alguém precisa fazer uma escolha, sabendo que há outros, ao mesmo tempo, também
em processo de escolha. Von Neumann provou matematicamente que sempre há um curso racional
de ação para dois jogadores e que os interesses (ou os motivos) de cada um deles pode ser divergentes.
(PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 163).

 
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law”. Estes autores utilizam a Teoria dos Jogos em Direito com a finalidade de
analisar o comportamento estratégico como componente fático do estudo jurídico.
Para compreensão sobre como se portam e também como devem atuar os
agentes econômicos vinculados a uma empresa em crise é necessário estabelecer os
elementos utilizados, ou seja: qual é o “jogo”, quem são os “jogadores”, qual o
“ganho” esperado por eles, quais as “estratégias” disponíveis para cada um e, por
fim, quais os efeitos que as diferentes estratégias de ação podem promover para o
alcance de seus próprios ganhos e dos demais envolvidos.
Em se tratando de deliberação sobre plano de recuperação judicial de
empresa em crise, há o envolvimento de dois ou mais agentes (jogo) e que
obrigatoriamente coloca todos os grupos de interesses a ela vinculados (jogadores)
diante da necessidade de decidir entre a aprovação ou rejeição do plano (estratégias).
A decisão de aderir ao plano é uma estratégia que será adotada pelos credores em
função dos proveitos que cada um deles vislumbrar nessa estratégia.

Os esperados ganhos de cada um desses envolvidos são, por sua


vez, exatamente os incentivos que os levaram a transacionar com
a empresa, ou seja, os provedores dos diferentes fatores de
produção apoiarão o plano de recuperação da empresa se essa for
a estratégia que lhes proporcione a mais eficiente remuneração
pelos insumos que oferecem.
Desse modo, a viabilização da recuperação da empresa está
atrelada a que os fornecedores de cada um dos fatores produtivos
e também o empresário tenham, na estratégia de apoiar o plano de
recuperação, a mais eficiente escolha como meio de atingir os seus
próprios objetivos, sejam eles o lucro, o retorno do capital
emprestado, a manutenção dos postos de trabalho ou o
pagamento das matérias-primas fornecidas. (PIMENTA, 2007,
p306-307).

Cada jogador somente pode tomar a decisão mais eficiente a partir das
informações que detenha sobre o jogo, as suas possíveis escolhas e dos demais
participantes e os ganhos potenciais de cada estratégia.
 
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Assim, pode-se afirmar que a recuperação judicial se apóia sobre a


transparência e maior veracidade possível das informações sobre a situação
patrimonial e financeira do devedor. Somente através do conhecimento da realidade
econômica do empresário é que os credores e demais envolvidos na recuperação
terão subsídios para decidir racionalmente.
O plano de recuperação é uma modalidade de cooperative game (jogo
cooperativo)8, em que é necessária a demonstração de que todos os jogadores podem
maximizar seus ganhos se colaborarem uns com os outros. (PIMENTA, 2007, p.
307).
Analisar a recuperação da empresa como um tipo de jogo cooperativo
apresenta uma relevante particularidade: trata-se de um jogo no qual se envolve mais
de dois participantes que, por sua vez, tendem a se organizar em grupos em função
dos interesses comuns. Tais jogos cooperativos são denominados de jogos de
coalizão (coalitional games).
Um jogo de coalizão pode ser definido como um modelo de interação entre
tomadores de decisão que se foca no comportamento de grupos de jogadores. Cada
grupo de jogadores é chamado de coalização. A coalizão de todos os jogadores é
chamada de grande coalização.9
No caso da recuperação judicial de empresa, espera-se que da soma das
decisões de cada uma das coalizões resulte a grande coalizão que revele a opção por
aprovar o plano de recuperação apresentado à assembléia.

                                                            
8 The concept of cooperation is important in game theory but is somewhat subtle. The term cooperate
means ‘act together, with a common purpose’. We might supose that, for a coalition of two or more
individuals to act together with a common purpose, the individuals would have to set aside their
separate utility functions and create somethig completely new – a collective utility function for
determining their collective behavour. (MYERSON, 1997, p. 370)
9 A coalitional game is a modelo f interacting decision-makers that focuses on the behaviour of group

of players [...] We call each group of players a coalition of all the players the grand coalition.
(OSBORNE, 2004, p. 239).
 
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No procedimento recuperatório, cada um dos fornecedores de um


determinado insumo tem interesses que são comuns aos demais
provedores daquele fator produtivo. Dessa forma, a estratégia
para a maximização dos ganhos de cada agente econômico do
grupo é a mesma dos demais integrantes. Assim, cada conjunto
composto pelos fornecedores de cada um dos fatores de produção
é uma ‘coalizão’ a interferir sobre a decisão de se apoiar ou não a
recuperação da empresa.
A legislação brasileira reforça ainda mais esse caráter de ‘alianças’
ou ‘coalizões’ entre cada conjunto de provedores da empresa ao
atrelar a aprovação do plano à sua aceitação pela maioria e não
por todos os componentes das diferentes classes de credores (art.
45 da Lei 11.101/05). Assim, o plano prevalece se é eficiente aos
anseios dos grupos de credores e mesmo que contrarie os
interesses de alguns deles. O que importa são as estratégias e
interesses da ‘coalizão’ e não de cada um de seus membros.
[...]
Negligenciar qualquer um dos grupos de interesses citados ou
submetê-los ao império de alguns dos outros implica na não
colaboração do núcleo prejudicado com o plano e
comprometimento dos esforços para a restauração da empresa.
Por outro lado, se os diferentes núcleos de agentes econômicos
reunidos em torno da empresa em crise (jogadores) não tiverem
razões racionais para acreditar que o esforço conjunto e a
concessão a curto prazo pode propiciar-lhes no futuro uma
solução melhor para seus ganhos particulares, eles vão e devem
decidir pelo fechamento da unidade produtiva, esta sim provando-
se ineficiente na produção a distribuição de bens e serviços.
(PIMENTA, 2007, p. 310).

Conclui o autor, portanto, que os jogadores irão procurar, dentre as


possíveis condutas, aquela que melhor atenda a seus objetivos. É o que se denomina
“estratégia estritamente dominante10”.
Baird, Gertner e Picker (2003, p. 12, tradução nossa), ao tratar da estratégia
estritamente dominante esclarecem que “um jogador vai escolher a estratégia estritamente

                                                            
10Armando Castelar Pinheiro e Jairo Saddi definem estratégia dominante como o “comportamento de
um dos jogadores que lhe permite auferir uma recompensa maior, qualquer que seja a estratégia
adotada pelo outro jogador. É influenciada pelas possíveis atitudes dos outros jogadores.”
(PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 197). 
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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dominante sempre que possível e não escolherá qualquer estratégia que seja estritamente dominada
por outra. Esse é o mais obrigatório preceito de toda a teoria dos jogos.”11
Logo, para Eduardo Goulart Pimenta:

Mesmo em se tratando de um jogo cooperativo, somente é


possível efetivar a recuperação de uma empresa, apesar de toda a
preocupação com sua função social, quando esta for a melhor
escolha de maximização dos ganhos de todos aqueles diretamente
envolvidos no procedimento.
[...]
Porém a legislação falimentar, inegável variável econômica
potencialmente modificadora do modelo elaborado, tem o poder
de incentivar, com suas normas, a que os diferentes grupos de
interesses em torno do organismo empresarial tomem as condutas
que a um só tempo maximizarão os ganhos de todos e de cada um
deles. A legislação deve, enfim, criar incentivos aos jogadores para
que eles tenham, na colaboração mútua e no apoio ao plano, a
estratégia estritamente dominante. (PIMENTA, 2007, p.310).

Para Rachel Sztajn, não se pode perder de vista que os interesses dos
credores não são homogêneos:

Se a concepção é interessante - dar aos credores poder para se


manifestarem sobre a viabilidade da continuação da atividade do devedor
comum, afetado por crise econômico-financeira, tecnológica,
mercadológica ou outra -, não se pode esquecer que não são
homogêneos os interesses das diferentes classes de credores e, por vezes,
interesses de credores agrupados em uma só classe [...]
Se para alguns credores a perda decorrente da quebra da empresa em
crise é quantificável e até previsível – por exemplo, a perda, ao longo de
certo período, de lucros decorrentes da queda na venda de produtos ou
serviços até que novos clientes sejam encontrados -, para outros a perda
poderá ser expressiva e de difícil mensuração. (SZTAJN, 2005, p. 60-63).

Esclarece a autora que, como na Assembléia de Credores os interesses


podem não ser idênticos, é importante que todos os credores compreendam a
proposta e sejam adequadamente informados.
                                                            
11 A player will choose a strictly dominant strategy whenever possible and will not choose any strategy

that is sttrictly dominate by another. This is the most compellig precept in all game theory.
 
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Pensando em modelos de jogos de cooperação formulados em


teoria dos jogos, e sabendo que cada jogador só obterá o máximo
se cooperar com os demais, as estratégias disponíveis podem ser
estreitadas. Imagine-se um grupo de jogadores de futebol. Se faltar
cooperação, empenho de um ou alguns, o resultado da partida
tende a ser ruim para o time; daí o incentivo para que todos se
empenhem, independentemente de um apenas marcar o gol da
vitória.
Razoável que se considere analisar o processo deliberativo
assemblear sob a ótica da teoria dos jogos – o que segundo David
M. Kreps, facilita compreender e predizer o que ocorrerá diante
de dado contexto econômico.
Esse o ponto central da questão das decisões tomadas em
assembléias de credores. Mesmo que os vários interesses em jogo
sejam distintos, não completamente homogêneos, que se possa
supor que cada jogador tentará obter para si o maior payoff12, dadas
as estratégias disponíveis para os demais jogadores, resta saber que
interesse tenderá a predominar: o da reunião das perdas ou o da
compensação futura pela continuidade das relações negociais, se a
empresa for preservada. (SZTAJN, 2005, p. 64-65).

Entretanto, a autora reconhece a dificuldade no formatar um jogo desse


tipo. Isso porque as decisões majoritárias permitem que um grupo de pessoas possa
combinar obter vantagens em detrimento ou à custa de outras, sendo que a teoria
dos jogos não tem respostas únicas, não ambíguas, para tais situações.
A questão depende da credibilidade da viabilidade do plano, na reputação
do formulador e dos fiscais de sua implementação, sobretudo quando a informação
não for completa, perfeita, amplamente conhecida por todos os jogadores.
Também pode interferir na formulação das estratégias do plano o seu
próprio critério de aprovação – maioria dos créditos e de presentes, conforme
disposto no artigo 45 e seu parágrafo primeiro.13
Tanto os titulares de crédito com garantia real, como os de créditos
quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral e subordinados votam
                                                            
12 Resultado.
13 Conforme explicitado no item 3.3.1.
 
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proporcionalmente ao montante do seu crédito, sendo a deliberação aprovada por


maioria formada pelos valores dos créditos presentes. O plano ainda deve ser
aprovado pela maioria dos presentes.

Vale dizer que são duas aprovações simultâneas! Uma em razão


do valor do crédito - e, nesse caso, a estratégia dos credores
titulares de valores elevados prevalece sobre a dos demais – e
outra em que as pessoas, sem levar em conta o montante da
pretensão, se manifestam. Pode não haver coincidência de
maiorias? Sem dúvida. O que fazer? Esta é uma ameaça crível que
os titulares de créditos de maior valor detêm contra os demais?
Talvez. Em face de maior absenteísmo dos pequenos credores,
sim; caso contrário estar-se-á diante de um dilema quase sem
solução. De todo modo, parece ser estratégia dominante a
presença dos credores em todas as assembléias para tentarem
influir sobre o sentido da deliberação; e isto precisa ser
cuidadosamente avaliado por eles. (SZTAJN, 2005, p. 65).

As classes que, em tese, deveriam votar com foco sobre os aspectos


econômicos podem chegar a determinados impasses que provocam o adiamento do
procedimento e prejudicam a todos. Indaga a autora: “seria esse o elemento para estimular
a cooperação?” (SZTAJN, 2005, p. 65).

Se compete aos credores analisar, aprovar ou rejeitar o plano de


recuperação apresentado pelo devedor, se devem manifestar-se
sobre formas de realização do ativo, se qualquer mudança ou fato
que incida sobre seus interesses depende de aprovação, não
estranha supor que aqueles credores melhor informados sobre os
efeitos de cada uma das matérias tenderão a apresentar
argumentos favoráveis às suas posições – o que levará à sua
dominância sobre os demais , suas estratégias serão mais eficazes.
E, exatamente porque têm informações de melhor qualidade, ou
são mais hábeis no seu manejo, podem se aproveitar disso para
agir de forma oportunista; seu domínio sobre a atividade,
operações econômicas, administração de negócios, por exemplo,
lhes permite extrair ganhos ou vantagens; outros credores os
obterão mediante ameaças, provavelmente críveis, de recusar a
aprovação do plano, do que resultaria a decretação da falência.
(SZTAJN, 2005, p. 65-66).
 
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Diante destas considerações, os questionamentos apresentados são: “como


estabelecer um jogo de cooperação? Que estratégias pensar para harmonizar interesses diferentes?
Como, nas respectivas assembléias, e no conjunto, desenhar estratégias que mais de perto induzam os
credores aprovar o projeto de reestruturação da empresa?” (SZTAJN, 2005, p. 66).
Sobre estas questões a autora esclarece que:

A vantagem de transferir aos credores decisões que envolvem a


preservação, ou não, da atividade da empresa em crise depende de
como lidar com essas ameaças, como equacionar as relações
internas nas assembléias de credores, como inibir
comportamentos voltados para obtenção de vantagens por alguns
credores em detrimento dos demais e, sobretudo, coibir pressões
indevidas ou capturas de certos credores desinformados.
(SZTAJN, 2005, p. 66).

Isso porque a preservação de atividades não pode servir para oportunismos,


tampouco deve servir como paliativo na transferência de riscos aos credores, sob
pena de aumento do custo do crédito, que, em última análise, é o que deve orientar
as deliberações.
Adverte a autora que não se pode seduzir-se pelo argumento de que o
interesse social é que deve influenciar na decisão de preservar a empresa em crise,
ainda que falte suporte econômico-técnico-financeiro para tanto:

Não se perca o leitor no argumento de alguns que vêem no


interesse social fator que influenciará na decisão de preservar a
empresa em crise, ainda que falte o suporte econômico-financeiro
para tanto, dadas a ilogicidade e irrazoabilidade de impor a
particulares riscos econômicos que não atendem a parâmetros
mínimos de economicidade. (SZTAJN, 2005, p. 67).

Para a autora, não se pode simplesmente desconsiderar que a empresa é


negócio econômico. Logo, sua preservação deve manter foco nas questões
econômico-financeiras, nas operacionais e no fato de que deixar de fundar as
decisões nesses parâmetros, para atender a alguns interesses, faz com que se perca
 
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eficiência na alocação de recursos escassos. Conclui, assim, que a defesa que fazem
alguns doutrinadores de que seria importante preservar as empresas em crise, porque
teriam função social, não atende aos critérios de eficiência. De acordo com a sua
concepção, a função social das empresas é criar riquezas; não podendo fazê-lo, a
falência, reorganização ou recuperação, assentadas sobre premissas de
economicidade, são o meio mais adequado para estimular diligência de
administradores e credores. Ou seja: “a inversão de recursos públicos sem critérios de
eficiência, a pretexto da função social da empresa, fere a lógica econômica”. (SZTAJN, 2005, p.
56). “Função social geradora de perdas contradiz a própria idéia que preside a modelagem dessa
função”. (SZTAJN, 2005, p. 68).
Portanto, a visão da autora é no sentido de que as operações econômicas
devem ser analisadas sob a ótica de ganhos sociais e individuais, e, sem apropriação
privada dos resultados da atividade econômica, não haveria incentivos para se aceitar
riscos de atuar em mercados. Isso porque não se pode negar que a Constituição
Federal explicita que o regime econômico do país é o capitalista.
Assim, ao que parece, o legislador de 2005, ao dividir os créditos em três
classes, não considerou que as estratégias que cada uma delas pode escolher não as
fazem homogêneas. Daí surgem os problemas. Por exemplo: ao associar créditos
com privilégios aos créditos quirografários e subordinados, a lei os trata como se
fossem idênticos. Entretanto, se credores titulares de privilégios deliberam com
quirografários e subordinados, há de ser porque perderam o que os distinguia, ou
seja, a garantia. E essa perda representa o ganho de outros.

Será que as estratégias desenhadas serão idênticas se houver


discussão sobre a divisão do surplus? Mais provável que as
estratégias que cada conjunto, artificialmente grupado, adotará
gerem resultados imprevisíveis; embora deliberem em conjunto,
há interesses específicos sobre o que o plano altera em relação a
seu crédito.

 
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A discordância a respeito do argumento é total, porque, ao dividir


os credores em classes, o legislador parte do pressuposto de que
haveria, entre os integrantes de cada uma delas, interesses da
mesma natureza, homogêneos – o que, como se explicou atrás,
pode ser falso, e em certos grupos não há como afastar essa
percepção, por isso que se destacam a classificação e grupamento
dos credores segundo natureza de seus créditos. (SZTAJN, 2005,
p. 68).

Por todo o exposto, a autora conclui que, ao invés de se afirmar que há um


interesse comum dos credores, que seria a preservação da empresa, deve-se
considerar que há interesse comum entre credores de receberem o máximo possível;
há interesse de alguns credores em preservar relações negociais com o devedor, mas
este pode não ser geral.

Se o escopo da lei for a tutela do crédito, se ficar claro que


empresa é negócio econômico desenvolvido em mercados, que há
vários centros de interesse, entre o titular da empresa, o mais
evidente, é preciso que não se transformem os demais centros de
interesse, de trabalhadores, credores, consumidores dos produtos
e/ou serviços ofertados, Fisco, em fatores que prejudiquem a
circulação do crédito. Por isso que a continuidade da empresa
deve ser analisada sob a ótica econômica, e a assembléia de
credores, ao avaliar a viabilidade econômica da empresa, deve ser
pautada pela preservação do crédito e sua circulação.
Comportamentos oportunistas, rent seeking, externalidades, podem
existir, e devem ser coibidos pela demonstração de que sem justa
divisão de benefícios e ônus, sem confiança, o desequilíbrio gerará
reações indesejáveis, com resultados ruins para todos.
Relativamente a estratégias, o que se evidencia é que cada
interessado tentará desenhar a estratégia que melhor atenda a seus
interesses, e o fará certo de que os demais agirão de igual maneira.
Resulta então que se o plano de recuperação proposto afetar de
maneira similar todos os créditos, isso lhe conferirá maior
probabilidade de aprovação, pois as estratégias que visam a gerar
vantagens para um ou alguns credores terão menor probabilidade
de ser vencedoras.
[...]
Com as ressalvas e cuidados, atenção para a criação de incentivos
adequados será mais fácil induzir a cooperação, nada obstante os
 
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certos e sérios conflitos de interesses que possam emergir na


disputa que envolve o futuro empresarial do devedor. Se, de outro
lado, os incentivos e efeitos de segunda ordem criarem
externalidades que interessem a qualquer dos envolvidos que veja
a oportunidade de obter vantagens, de dividir o surplus de forma a
beneficiá-lo, estar-se-á diante de um problema de difícil solução.
O comportamento dos interessados – tanto o dos titulares de
negócios em crise, quanto o dos credores, que aceitam em boa
medida associar-se na empreitada de preservar a atividade – é vital
para que os resultados pretendidos pelo legislador sejam atingidos.
Está-se frente a um jogo em que as estratégias no que diz respeito
à divisão dos ganhos é elemento importante na tomada de decisão
e no qual aqueles menos vulneráveis e mais informados poderão
obter vantagens sem que os remanescentes tenham muitos
mecanismos de defesa. (SZTAJN, 2005, p. 68).

5 O significado do artigo 47

O artigo 4714 da lei brasileira é de origem francesa. Dispõe o artigo 620-1 do


Código Comercial Francês, ao incorporar o art. 1º da lei de 1985, que: “É instituído um
processo de recuperação judicial destinado a permitir a salvaguarda da empresa, a manutenção da
atividade e do emprego, e a apuração do passivo”. (MOREIRA, 2005, p. 264).
Segundo a doutrina francesa os objetivos estabelecidos na lei são
hierarquizados, sendo a salvaguarda da empresa o objetivo maior. Afirma o autor que
o dispositivo da lei francesa é uma diretiva de interpretação, assim como também o é
o artigo 47 da lei brasileira. Considera o artigo 47 da Lei n. 11.101/05 como norma-
objetivo15. (MOREIRA, 2005, p. 264-267).

                                                            
14 A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico
financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos
trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua
função social e o estímulo à atividade econômica. 
15 Eros Roberto Grau (1996, p. 443) define a norma-objetivo como aquela que tem a finalidade de

“fixar objetivos a serem alcançados”. Assim, pode se afirmar que a norma-objetivo define obrigações de
 
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Pode-se afirmar que as normas-objetivo definem obrigações de resultado e


não meio. No caso do dispositivo em tela o resultado seria a preservação da empresa:

Superar a crise, manter a fonte produtora de riquezas, em fim,


preservar a empresa, é um resultado: o meio para tanto foi
conferido pelo próprio legislador, e é a recuperação judicial
instituída nos artigo 47-69; o meio não esta em outro lugar; o
meio não é distinto daquele institucionalizado pela própria lei, e
que conta com procedimento próprio para tanto. A lei cria o
objetivo a ser alcançado e já trás os instrumentos que lhe
viabilizam a consecução.
Essa interpretação, de que o art. 47 é o mandamento nuclear da lei
de recuperação e falências, e que todos os demais dispositivos
devem ser interpretados a partir de sua moldura, é a mais óbvia;
tem-se uma cabeça francesa no corpo americano, para a aplicação
nos trópicos e tem de dar samba.
Examinada a estrutura da lei, os instrumentos colocados à
disposição do devedor, a atuação do juiz, o grau de envolvimento
das diversas classes de credores, chega-se à conclusão de que,
embora superior ao regime revogado, e por isso digna de aplausos,
a preservação da empresa depende da boa vontade do credor, que,
como é natural, pensa, antes de tudo, na recuperação de seu
crédito. A expectativa da lei é de que os credores sejam agentes
para a consecução dos fins do art. 47. (MOREIRA, 2005, p. 267).

Ocorre que, em que pese o artigo 47 da Lei de Recuperação de Empresas


possuir origem francesa, nossa legislação como um todo foi influenciada pela lei
americana.
Isso gera um contra senso, uma vez que o modelo americano, como já
mencionado acima, visa a propiciar condições de uma barganha estruturada entre
devedores e credores, para maximizar o valor da firma através da adoção de um
plano de recuperação empresarial que, embora proposto pelo devedor, tem que ser

                                                                                                                                                                   
resultados concretos que devem ser alcançados pelos seus destinatários. Complementarmente, as
normas-objetivo “passam a determinar os processos de interpretação do direito”. (GRAU, 1996, p. 136)
 
 
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aprovado por maioria de cada uma das classes de credores. Essa foi a idéia adotada
no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no artigo 35 da Lei n. 11.101/05.
Assim, é esclarecedora a interpretação da Lei n. 11.101/05 realizada por
Vera Helena de Melo Franco e Rachel Sztajn no que se refere à finalidade da
recuperação judicial:

Sanear a crise econômico-financeira do empresário ou da


sociedade empresária, pressuposto extrajurídico, matéria de fato,
que varia de caso para caso. Sanear, aqui, significa equacionar o
evento que gera dificuldade para a manutenção da atividade tal
como originalmente organizada a fim de preservar os negócios
sociais, a manutenção dos empregos e, igualmente, satisfazer os
direitos e interesses dos credores. (FRANCO; SZTAJN, 2008, p.
234).

Destaque-se que, apesar do art. 47 da Lei de Recuperação de Empresas fixar


como objetivo da recuperação judicial a preservação da empresa e de sua função
social, a legislação não prevê qualquer contribuição do Estado para a consecução
deste objetivo. Na realidade, todo o “custo social” da recuperação da empresa em
crise é transferido aos credores quando se transfere a estes a um suposto dever de
priorizar a preservação da empresa em detrimento de seus interesses particulares no
momento de deliberar sobre o plano de recuperação judicial. (FRANCO; SZTAJN,
2008, p. 234).
A norma do artigo 47 assinala como objetivo da recuperação preservar a
empresa como unidade produtora, geradora de postos de trabalho e riquezas. Para
atingir tal mister, invoca a função social da empresa. Dessa forma, para compreensão
da conclusão do presente trabalho, faz-se necessário esclarecer qual a compreensão
de função social da empresa adotada.

 
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É inegável que se trata de um conceito metajurídico que irá variar conforme


a concepção sociológica e ideológica adotada pelo interprete, razão pela qual, passa-
se a análise do tema.

6 Função Social da Empresa

Como asseveram Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn (2008, p.


271) o conceito de função social da empresa, “de caráter mais político que jurídico, não é de
fácil delimitação, variando ao sabor das mais diferentes tendências naquele campo.”
Sob a influência do princípio da solidariedade social, introduzido com a
Constituição de Weimar (1919), a função social correspondia ao dever de empregar
os meios de produção no modo mais útil à coletividade:

Este ‘modo mais útil’ significava a função de: concorrer para uma
melhor distribuição de renda; prover a mais ampla assistência
possível às classes menos favorecidas; e promover a composição
entre os interesses dos detentores do poder econômico e aqueles
da classe dos trabalhadores. (FRANCO; SZTAJN, 2008, p. 271).

Diferentemente, sob a ideologia do fascismo, a função social foi


compreendida como o “dever legal de utilizar a propriedade dos meios de produção, tendo em
vista o interesse nacional, o qual era entendido como o aumento da produtividade da nação e o
incremento da produção.” (FRANCO; SZTAJN, 2008, p. 271).
Por tal razão, Rachel Sztajn conclui:

Retrospecto histórico permite constatar que recorrer à função


social é característica de regimes não democráticos fazendo com
que interesses nacionais (do governo) se sobrepussesem aos
individuais.
Outro argumento recorrente para justificar a função social é a
perseguição de equilíbrio entre classes sociais, entre o dito poder
 
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econômico e os trabalhadores, por exemplo, ou entre aquele e os


menos favorecidos. Há ainda quem considere a função social
como meio para promover a solidariedade entre membros da
comunidade, visando ao maior bem estar geral [...] ( SZTAJN,
2005, p. 31-32)

Na opinião de Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn, (2008, p. 282),


a função social da empresa deve ser compreendida como o exercício de um poder
dever, de organizar, explorar e dispor, conforme os ditames da justiça econômica e
social. Em outras palavras: trata-se do dever de colaboração com os objetivos do
desenvolvimento.
No entanto, advertem que a realização destes objetivos, mediante a idéia de
função social da empresa, somente pode ser obtida caso seja possível alcançar uma
atuação harmônica que englobe todos os interesses eventualmente conflitantes,
através de uma solução de equilíbrio.

Se, por um lado, se impõe a tarefa de concorrer por uma melhor


distribuição de renda e um dever de assistência às classes menos
favorecidas, conforme os princípios da justiça distributiva, por
outro, é necessário não descurar do incentivo à atividade
econômica de onde, presume-se, deverão advir os recursos aptos a
proporcionar essa melhor distribuição de renda e assistência. Daí
o limite representado pela tutela dos acionistas enquanto
investidores. E embora o interesse nacional e o da economia
nacional não se insiram como fins em si mesmos na noção de
função social, são limites que não podem ser ultrapassados, o que
leva a entender ao dever de colaboração tendo em vista também o
interesse econômico nacional. Isto, porém, sem perder de vista o
caráter instrumental deste interesse perante a realização do
interesse social e sem esquecer que sem o econômico não é
possível o social. (FRANCO; SZTAJN, 2008, p. 282).

Rachel Sztajn adverte que não se pode comprometer a continuação e a


estabilidade das atividades econômicas ao argumento de se cumprir função social,
sendo necessário não se descurar das regras de economicidade e eficiência.

 
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[...] não se supõe sirva [a função social] para comprometer a


continuação e a estabilidade que a atividade requer e que devem
dominar a sua preservação. Aqui, a função social do contrato,
sobreposta à da empresa, pode ser extremamente perversa, pois
sem respeito às regras de economicidade e eficiência, que a
organização da empresa terá, os efeitos externos que recairão
sobre a coletividade são imprevisíveis. ( SZTAJN, 2005, p. 48).

Com base no exposto, são pertinentes as indagações das autoras acerca do


tema objeto do presente trabalho:

Por outro lado é de se indagar em que medida o critério função


social é suficiente para manter uma empresa, sem condições
econômicas objetivas de eficiência atuando. Basta, para tanto,
aprovação dos credores para quanto ao plano apresentado? Têm
eles ‘expertise’ adequada para apreciar a viabilidade da atividade?
Não seria de se considerar a possibilidade de danos à esfera
subjetiva de outrem, terceiros inocentes que, de boa-fé, ao
negociarem com essa empresa podem ser atingidos em seu
patrimônio pela sua preservação? Só a manutenção de postos de
trabalhos é razão suficiente para suportar a ineficiência? Em que
medida se abole a responsabilidade de ato individual por ato
próprio, para onerar aquele que, diligentemente, se permite, sem
pena de si mesmo, considerar ser o único responsável pelos seus
sucessos ou fracassos? Justifica-se perante a equidade, colocar em
risco os demais participantes do mercado que podem ser atingidos
pela preservação indevida de um organismo falsamente produtor
de riquezas? Estas são perguntas para as quais não temos
respostas. Com tudo, se, quando a empresa é lucrativa, se admite a
apropriação dos resultados, parece lógico que quem fica com o
bônus deverá suportar eventuais ônus. (FRANCO; SZTAJN,
2008, p. 285-286).

Logo, pode-se afirmar que não se pode atribuir um significado à “função social
da empresa” sem considerar o objetivo de lucro inerente à atividade.

 
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7 O papel do Estado-Juiz na recuperação judicial

Com base no artigo 35, há doutrinadores que defendem que o Juiz não
pode examinar o conteúdo da deliberação dos credores que lhe é levada à
homologação. Outros, considerando a possibilidade de conflito de interesses,
afirmam que o poder deliberativo da assembléia dependerá da decisão final do
Judiciário.
Leciona Moacyr Lobato Campos Filho, que a recuperação judicial almeja a
harmonização dos interesses intrinsecamente conflituosos, titularizados pelos
credores, pelos empregados e pelo próprio devedor. Segundo o referido autor, o
legislador não consagrou os credores como os principais destinatários da recuperação
judicial. Do mesmo modo, a Lei não estabeleceu como objetivo principal restabelecer
a higidez econômico-financeira do devedor.

Evitou o legislador, de modo deliberado, eleger os credores como


principais destinatários da recuperação judicial. Preferiu, ao
contrário, a ousada e difícil tentativa de composição dos interesses
dos agentes econômicos em cena. Mencionou, expressamente, o
estímulo à atividade econômica e o prestígio da função social da
propriedade como paradigmas da recuperação judicial. (CAMPOS
FILHO, 2007, p. 79).

Embora a Lei não tenha elegido apenas o interesse dos credores como
relevante, a realização do crédito constitui o seu mais importante e legítimo interesse,
pautando sua atuação na Assembléia de Credores. (CAMPOS FILHO, 2007, p. 136).
A Lei prevê a participação direta e decisiva dos credores na deliberação
sobre a proposta apresentada pelo devedor. A manifestação dos credores, ressalvada
a hipótese de consentimento tácito verificado pela ausência de objeção de qualquer
credor ao plano, ocorre através do voto.

 
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Assim, é de se indagar: quais serão os limites definidores do exercício


regular do direito de voto em Assembléia Geral em matéria de recuperação judicial?
Em que medida esse exercício irá se revelar abusivo e prejudicial aos interesses
conectados aos da empresa? (CAMPOS FILHO, 2007, p. 144).
Segundo Moacy Lobato:

O credor, em princípio, vela por interesses que são seus,


representados por um crédito impago e que vê, na recuperação
judicial, um instrumento eficaz de realização desse mesmo crédito.
Para ele, a aprovação do plano de recuperação deve circunscrever-
se ao interesse específico de solução de relação jurídica
obrigacional que o identifique na posição jurídica de credor.
Não se pode olvidar, entretanto, que a recuperação judicial
contempla outros interesses tão legítimos quanto os do credor,
todos encartados na redação que o legislador conferiu ao artigo 47
da lei.
O fenômeno econômico da insolvência, do ponto de vista legal,
não pode mais conceber os estreitos lindes sugeridos pela relação
jurídico-patrimonial havida entre credor e devedor. Transcende,
hodiernamente, esses limites para deitar profundas raízes no
enfoque do interesse social e nas exigências do bem comum,
ressaltadas tanto no texto constitucional quanto na legislação
própria.
Ainda a considerar, para efeito de identificação do voto regular
exercitado pelo credor nas assembléias previstas na Lei
11.101/2005, que a falência veio concebida com irrecusável perfil
liquidatário, à medida que, tão logo finde a arrecadação de bens,
tem-se início o processo de alienação dos ativos da massa,
independentemente da elaboração do quadro-geral de credores.
Em sã consciência, não se pode, aprioristicamente, censurar o
titular de um crédito que vislumbre na liquidação falimentar
maiores e melhores possibilidades de realização do seu crédito que
no ambiente da recuperação judicial. Assim, poderá ser
considerado abusivo, o voto do credor que rejeite o plano de
recuperação judicial porque a decretação judicial de falência
poderá contemplar, de modo mais completo seu crédito?
(CAMPOS FILHO, 2007, p. 144-145).

 
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Como a Lei de Recuperação de Empresas não trata do exercício abusivo do


direito de voto, tampouco prevê sanções para os casos de abuso, entende o autor que
caberá ao juiz, no caso concreto, identificar as hipóteses de exercício abusivo do
direito de voto, impondo as sanções correspondentes:

Não exercerá o magistrado, principalmente em sede de


recuperação judicial, atribuições meramente homologatórias,
chancelando com uma espécie de ‘visto’ judicial a vontade
imperativa dos credores. Ao contrário, sua atuação deverá ser
efetiva, evitando-se o desequilíbrio que a disparidade de poderio
econômico poderá ensejar.
Não obstante a ausência de parâmetros sobre o exercício abusivo
do direito de voto na lei falimentar, o juiz poderá reconhecê-lo em
razão do exercício manifestamente excedente dos limites impostos
pelo fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes
pelo titular do direito de voto.
[...]
Atento aos limites identificadores da boa-fé e do fim econômico
ou social que a lei impõe em relação aos atos praticados no
exercício de um direito, ao juiz caberá tarefa de identificar, em
cada situação específica, o comportamento do credor que tenha
utilizado o seu voto como instrumento de violação ao direito de
outrem. (CAMPOS FILHO, 2007, p 145-147).

Jorge Lobo entende que, para a correta aplicação do art. 47 da Lei, os


operadores do Direito deverão realizar uma criteriosa “ponderação de fins e princípios”,
não se podendo conceber a função do magistrado na ação de recuperação judicial
como uma função meramente formal – mero homologador das deliberações da
Assembléia Geral de Credores:

No caso da ação de recuperação judicial da empresa, a assembléia


geral de credores, primeiro, depois, o Ministério Público e, por
derradeiro, o juiz da causa deverão sopesar a realização dos fins –
salvar a empresa, manter os empregos e garantir os créditos -,
através do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade,
quando, então, talvez, venham a concluir que o caso concreto
exige o ‘sacrifício’ de determinado fim se indispensável ao
saneamento da empresa ou o ‘sacrifício’ parcial do interesse da
 
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empresa em benefício de empregados e credores etc., pois, como


ressaltam os franceses os procedimentos coletivos são
‘procedimentos de sacrifício’ que limitam os poderes do devedor e
restringem os direitos dos credores.
Deverão, ao mesmo tempo, empenhar-se na ‘ponderação de
princípios’ – o da conservação e da função social da empresa, o da
dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho e da
segurança jurídica e da efetividade do Direito –, através do
‘teorema de colisão’ de Alexy, para o qual diante de um choque de
princípios, as circunstâncias fáticas determinarão qual deve
prevalecer, pois ‘possuem uma dimensão de peso’, verificável caso
a caso.
Por isso, aos que sustentam ser a função do magistrado na ação de
recuperação judicial de empresa simplesmente formal, o que o
transformaria em mero homologador das deliberações da
assembléia geral de credores, respondo que o juiz, no processo de
reorganização da empresa, exerce, em toda a sua plenitude,
poderes de caráter jurisdicional ou ‘poderes-fim’, ‘poderes-meio’
ou ‘instrumentais’ e ‘poderes administrativos’[...] (LOBO, 2005,
p.131).

Maria Celeste Morais Guimarães possui o entendimento semelhante ao de


Jorge Lobo, no sentido de que, no caso da Assembléia de Credores, exige-se uma
postura menos formalista do aplicador do direito. Defende a autora que “[...] se o
instituto [recuperação judicial] tem cunho social e o escopo da nova lei é exatamente o de privilegiar a
função social da empresa, não se justifica mitigar o interesse coletivo em favor do interesse dos
credores.” (GUIMARAES, 2006, p. 162).
Com base nestes argumentos, conclui que é necessária uma mudança de
mentalidade no exercício da atividade exegética, menos formalista e abstrata, em
especial quando se trata de normas de conteúdo econômico, como no presente caso.
Ainda nesse sentido é a lição de Manoel Justino Bezerra Filho (2007, p. 174)
para quem o juiz não está vinculado à decisão da assembléia, devendo, porém
fundamentar suficientemente a sua decisão.

 
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Waldo Fazzio Júnior (2005, p. 98-99) defende que árbitros da recuperação


são os credores, cabendo ao magistrado a tarefa de homologar a decisão dos
credores.
Na mesma linha, Erasmo Valladão A. e N. França (2005, p.72), defende que
o juiz está adstrito a observar o resultado da deliberação assemblear, se tomada com
observância das prescrições legais.
Para Sérgio Campinho (2006, p. 11-12), em que pese a recuperação ser
homologada judicialmente, sua índole é contratual, prevalecendo a autonomia
privada das partes e vinculando a decisão do magistrado ao conteúdo do plano de
recuperação. Assim, a atuação do juiz ficará restrita à verificação das disposições
legais aplicáveis ao plano.

8 Conclusão

Diante do exposto, verifica-se os credores não abdicarão dos proveitos


advindos da decretação de falência de uma empresa em crise, se tais proveitos forem
mais eficientes aos seus objetivos, para atender ao interesse público de preservação
da empresa. Isso porque o processo de recuperação de uma empresa não se limita à
preocupação com a sua preservação. A manutenção da empresa também está
vinculada aos incentivos econômicos e à vontade dos credores e do empresário
titular da atividade.
Se os diferentes agentes econômicos reunidos em torno da empresa em
crise não tiverem razões racionais para acreditar que o esforço conjunto pode
propiciar-lhes no futuro uma solução melhor para seus ganhos particulares, eles
decidirão, inevitavelmente, pelo fechamento da unidade produtiva.

 
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Só será possível efetivar a recuperação de uma empresa, quando esta for a


melhor escolha de maximização dos ganhos de todos os envolvidos no
procedimento.
Diante disso, razão assiste a Rachel Sztajn ao asseverar que a vantagem de
transferir aos credores decisões que envolvem a preservação, ou não, da atividade da
empresa em crise depende de como equacionar as relações internas nas assembléias
de credores, como inibir comportamentos voltados para obtenção de vantagens por
alguns credores em detrimento dos demais e, sobretudo, coibir pressões indevidas ou
capturas de certos credores desinformados.
Acima de tudo, é importante destacar que a preservação de atividades não
pode servir para oportunismos, tampouco transferir riscos aos credores, sob pena de
aumento do custo do crédito. Em outras palavras, não se pode argumentar que o
interesse social é que deve influenciar a decisão de preservar a empresa em crise,
ainda que falte suporte econômico-técnico-financeiro para tanto. Não é lógico e
razoável impor a particulares riscos econômicos que não atendem a parâmetros
mínimos de economicidade.
A defesa que fazem alguns doutrinadores de que seria importante preservar
as empresas em crise, porque teriam função social, não atende aos critérios de
eficiência. Função social geradora de perdas contradiz a própria idéia dessa função.
Destaque-se que a função social da empresa não impõe aos credores um dever de
agir altruisticamente em prol da preservação da empresa em crise.
Portanto, as operações econômicas devem ser analisadas sob a ótica de
ganhos sociais e individuais, e, sem apropriação privada dos resultados da atividade
econômica, não haveria incentivos para se aceitar riscos de atuar em mercados.
Não se pode deixar de considerar, ainda, que, ao dividir os créditos em três
classes, o legislador não considerou que as estratégias que cada uma delas pode
escolher não as fazem homogêneas. Daí surge problemas. Afora isso, as decisões
 
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majoritárias permitem que um grupo de pessoas possa combinar obter vantagens em


detrimento ou à custa de outras.
Portanto, ao invés de se afirmar que há um interesse comum dos credores,
que seria a preservação da empresa, acredita-se que há interesse comum entre
credores de receberem o máximo possível. Ou, ainda, que há interesse de alguns
credores em preservar relações negociais com o devedor, mas este pode não ser geral.
Entretanto, certo é que não se pode censurar o credor que vislumbre na
liquidação falimentar maiores e melhores possibilidades de realização do seu crédito.
E, mais, em que pese as opiniões doutrinárias em sentido diverso, entende-
se que a Lei não atribuiu ao Juiz poderes para interferir no conteúdo do plano de
recuperação. De modo que a decisão sobre a recuperação é dos credores, que,
conforme salientado, não irão se descurar de seus interesses particulares em prol da
preservação da empresa.
Assim, a decisão da Assembléia Geral de Credores prevalecerá, só podendo
haver interferência do Poder Judiciário na hipótese expressamente prevista (art. 58,
da Lei 11.101/05) ou em caso de flagrante ilegalidade e abuso do direito de voto.
Não obstante, deve-se destacar a ausência de parâmetros sobre o exercício
abusivo do direito de voto na Lei de Recuperação de Empresas, o que, sem dúvida,
gera uma análise muito subjetiva por parte do Poder Judiciário do que possa ser
caracterizado como abuso de direito de voto. Por tal razão é que se defende que a
interferência do magistrado somente pode ocorrer em situações excepcionais e de
manifesta e indubitável ilegalidade.

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RESPONSABILIDADE DE COOBRIGADOS NA RECUPERAÇÃO


JUDICIAL DE ACORDO COM A NOVA LEI DE FALÊNCIAS

Cárita Martins Pellegrini Carizzi1

RESUMO

O presente trabalho tem como escopo o desenvolvimento de uma análise acerca de


um tema ainda controverso no âmbito do Direito Empresarial Falimentar, a saber, se
no período de recuperação judicial o coobrigado é passível de execução judicial. A
legislação anterior, Decreto-lei 7661, de 21.6.1945, determinava expressamente que
os coobrigados não eram desonerados de suas obrigações previamente assumidas,
ainda que fosse concedida a concordata à empresa da qual eram fiadores. Sendo
assim, o credor poderia requerer a execução do avalista. Entretanto, após a
promulgação da atual legislação disciplinadora do tema, a Lei 11.101, de 9 de
fevereiro de 2005, surgiram controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais
relativamente ao tema. Seu artigo 6º prescreve, em seu caput, que “a decretação da
falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o
curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor”, não
tratando, ao menos de forma expressa, dos coobrigados. Dessa forma, possibilita
interpretações diversas, causando transtorno aos estudiosos e aplicadores do Direito.
Essa lei, conhecida ainda como a Nova Lei de Falências, apresenta outras
incompatibilidades dentre seus dispositivos, referentes à matéria tratada, como a
constante entre o artigo 49, § 1º e o artigo 59. Esse estudo visa propor uma solução
baseando-se nas premissas do ordenamento jurídico brasileiro hodierno, analisando o
Direito como um sistema, no interior do qual as normas produzidas devem ser
coerentes entre si.

Palavras-Chave: Lei de falências nº 11.101/2005; recuperação judicial; coobrigação


solidária dos avalistas. Law of insolvency nº11. 101/2005; bankruptcy protection;
solidary co-obligated of surety.

                                                            
1 Discente do curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia.
 
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DESENVOLVIMENTO

1 ORIGENS DO DIREITO COMERCIAL FALIMENTAR

A prática comercial existe há vários séculos. Entretanto, não havia, nesses


primórdios, uma área específica no direito para regular essas relações.
Na Antiguidade, os casos de insolvência eram solucionados de forma
repressiva. Os inadimplentes respondiam por suas dívidas tornando-se escravos do
credor. Caso o débito não fosse quitado no prazo estipulado, este poderia vender
aqueles ou matá-los, de acordo com o que lhe aprouvesse.
Essa possibilidade da atribuição de responsabilidade pessoal foi extinta, na
Roma Antiga, com a promulgação da Lex Poetelia Papiria, que determinava a execução
patrimonial. Porém, para muitos autores, a expressão inicial do direito falimentar
encontra-se na Lex Julia Bonorum, criada no ano de 737 a.C., a partir da qual o credor
poderia dispor de todos os bens do devedor além de iniciar a execução, agindo em
seu nome e pleiteando o adimplemento de sua própria dívida, mas beneficiando
também os demais credores. Surge, desse modo, a ideia de massa falida.
Durante a Idade Média, o comércio entre os povos desenvolveu-se
sobremaneira, sendo praticado pela grande maioria dos povos conhecidos, na época.
A partir de então, percebe-se o surgimento de um direito comercial, mesmo que
incipiente. Devido à inexistência de um poder político central atuante e de impositiva
soberania, o direito era fragmentário, variando de acordo com a região. Entretanto,
comparativamente aos anteriores, nesse período houve maior ingerência estatal nas
situações em que havia inadimplemento por parte dos devedores, sendo estes,
quando insolventes, ainda percebidos como pessoas de má-fé, independentemente se
havia culpa ou não. Foi dessa concepção que surgiu o termo falência, oriundo do
verbo fallere, cujo significado é “enganar, ludibriar ou fugir”, dentre outras traduções.
 
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O Direito Canônico prevalecia na época, contrapondo-se aos interesses da


burguesia nascente por condenar o lucro e a usura. Esse empecilho ideológico apenas
foi superado após o pensamento de Calvino. Em geral, era estabelecido
judicialmente, pela assembleia de credores, um administrador para a massa falida,
sendo concedido o prazo de um ano para que fosse quitada a dívida, não havendo
distinção entre as dívidas comerciais e civis. Nesse ínterim surgiram as Corporações
de Ofício, as quais possuíam certa autonomia em relação ao Estado, suprindo a
impotência deste. Regulavam seus próprios interesses, já que cada uma delas possuía
seus próprios costumes, os quais se aplicavam exclusivamente aos membros de cada
uma daquelas, bastando que uma das partes fosse comerciante para que se desse a
aplicação do direito comercial.
O direito comercial, como um sistema normativo positivado cogente estatal,
tem seu marco inicial com a edição do Código Comercial napoleônico, no ano de
1808. Por ter sido criado, quatro anos antes, o Código Civil francês, teve de ser
modificado o critério para aplicação das regras daquele ser compatível com as deste.

Para tanto, a doutrina francesa criou a teoria dos atos de


comércio, que tinha como uma de suas funções essenciais a de
atribuir, a quem praticasse os denominados atos de comércio, a
qualidade de comerciante, o que era pressuposto para a aplicação
das normas do Código Comercial. (RAMOS, 2009, p. 33).2

No que tange o direito falimentar, a grande inovação dessa codificação foi a


“nítida distinção entre devedores desonestos e honestos, facultando-se a estes
últimos os favores da moratória, como aperfeiçoamento da concordata, cujo embrião
encontramos no pactum est minus solvatur e no quinquenales.” (ALMEIDA, 1998, p. 5)

                                                            
2 RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial – O novo regime jurídico-

empresarial brasileiro. 3ª. ed. Salvador: JusPODIVM, 2009. Pág. 33.


 
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2 HISTÓRICO DO DIREITO FALIMENTAR BRASILEIRO

A história comercial brasileira inicia-se enquanto essa nação ainda era uma
colônia portuguesa, sujeitando-se ao que a metrópole determinava. Primeiramente, às
Ordenações Afonsinas, as quais, após revistas, receberam a denominação de
Ordenações Manuelinas. Contudo, a falência do comerciante só foi regulada
expressamente a partir das Ordenações Filipinas. Estas, promulgadas em 1595,
estabeleciam a “pobreza sem culpa”. Neste caso, era desconsiderada a culpabilidade,
a qual, no caso de existência, acarretava até mesmo a pena de morte.
O instituto da falência sofreu modificações realmente revolucionárias com o
Alvará de 13 de novembro de 1756, instituído pelo Marquês de Pombal. O falido
deveria apresentar-se à Junta do Comércio, fazer a declaração de seus bens e dos
motivos da quebra financeira. Após o inventário, era feita a convocação dos
credores, para que fosse negociada a repartição do que foi arrecadado, excetuando os
dez por cento reservados à família do devedor insolvente, para assegurar sua
subsistência.
A princípio, após a proclamação da Independência, eram aplicadas no Brasil
as legislações dos países europeus, no tocante aos negócios mercantis e marítimos.
Todavia, a pressão interna por um sistema legal próprio aumentava e, após a chegada
família real, a tendência da economia nacional sofreu uma drástica mudança graças à
decisão de D. João abrir os portos às nações amigas. Esse fato intensificou as
exigências e foi criada a “Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábrica e Navegação”,
a qual cumpriu finalmente seu propósito com a promulgação da Lei nº 556, o Código
Comercial de 1850, no qual havia a regulamentação “das quebras”. O direito
falimentar passou por sucessivas modificações até a promulgação do Decreto-lei n.
7661, de 1945, conhecido como LFC (Lei de Falências e Concordatas).

 
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A partir da década de 80, as relações econômicas comerciais passaram por


muitas mudanças e, mais uma vez, houve a necessidade de uma nova legislação
falimentar brasileira. Houve um período de mais de dez anos de deliberações pelo
Congresso Nacional; durante a tramitação, mais de 400 emendas foram propostas e
cinco substitutivos apresentados, e o projeto foi aprovado em 09 de fevereiro de
2005, passando a viger após quatro meses de sua publicação.
A Lei nº 11.101, ou Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas,
modificou esses institutos. No caso da recuperação judicial, até o nome não é mais o
mesmo. Ela equivale à antiga concordata. Apesar de ter trazido, em teoria, certos
avanços ao direito empresarial, essa lei apresenta diversas incoerências entre seus
artigos, e não disciplina claramente determinadas situações, causando transtornos aos
estudiosos e aplicadores do Direito. Uma dessas controvérsias é acerca da situação
dos coobrigados durante o processo de recuperação judicial, tema a ser desenvolvido
no presente trabalho.
O entendimento do processo histórico falimentar é importante para que se
compreenda melhor a situação jurídica hoje vivenciada, percebendo que há uma
evolução gradual. Essa compreensão auxilia a busca por soluções aos problemas que
a atual lei falimentar apresenta, dentre eles, o que será exposto e discutido no
presente artigo.

3 RESPONSABILIDADE DOS COOBRIGADOS NA


RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial é uma oportunidade prevista em lei para as empresas


que ainda têm possibilidade de superar a crise financeira e continuarem exercendo
suas respectivas funções sociais. Deve ser apresentado um plano para comprovar a
 
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viabilidade de concessão daquele instituto. Difere, logo a princípio, de sua


equivalente no antigo Decreto-lei 7661/45, a concordata, a qual era mero
instrumento de adiamento da falência. Nas palavras de Fábio Ulhoa, “a concordata
preventiva é um favor legal consistente na remissão parcial ou dilação do vencimento
das obrigações devidas pela sociedade empresária”. (2003, p. 359)
Quanto à situação dos coobrigados no processo de concordata, esses
continuariam respondendo pelas dívidas, ainda que esta fosse concedida. Dessa
forma, durante essa fase, os fiadores poderiam ser executados, tendo de responder
por dívidas que foram reprogramadas para o concordatário. Desconsiderando-se as
reflexões acerca da justiça e lógica da norma, ao menos durante a vigência da antiga
lei de falências e concordatas, Decreto-lei 7661, de 24 de junho de 1945, era possível
resolver os casos concretos a partir da simples subsunção da norma ao caso concreto.
A atual legislação disciplinadora do tema, a Lei 11.101, de 9 de fevereiro de
2005, não traz expresso em seu corpo textual a solução para as controvérsias
doutrinárias e jurisprudenciais acerca da questão da possibilidade e coerência de
conceder a execução dos coobrigados no decorrer do processo de recuperação
judicial. Para tentar dirimir esse dilema, é preciso que seja feita uma análise
sistemática do ordenamento jurídico, buscando conciliar as normas dessa lei para que
seja encontrada a solução mais adequada.
O artigo 6º da Nova Lei de Falências prescreve, em seu caput, que “a
decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial
suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor,
inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário”.
Esse dispositivo versa a respeito da suspensão do curso de prazos das
dívidas do devedor principal. Contudo, não menciona como fica a situação dos
avalistas nesse caso. Uma leitura mais atenta desse artigo não possibilita que se
depreenda se deverá também ser suspensa a execução dos coobrigados. Os sócios,
 
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especialmente os que respondem com responsabilidade ilimitada, de acordo com o


artigo 81 da mesma legislação complementar, serão considerados falidos,
estendendo-se àqueles os mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à
sociedade falida. Contudo, os fiadores não são mencionados, não sendo o artigo 6º
suficiente para resolver o dilema.
Em seu artigo 47, a lei vigente supramencionada estabelece que

a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da


situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de
permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos
trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica.

Para que tal fim seja alcançado, faz-se necessário que o juiz, no mesmo ato
em que deferir a recuperação judicial, deverá, entre outras medidas, ordenar a
suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor, na forma do artigo 6º.
Novamente, não há menção expressa à figura do fiador.
O artigo 49, §1º, estabelece que “os credores do devedor em recuperação
judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e
obrigados de regresso”. Tal dispositivo guarda uma relação de incompatibilidade
aparente com o artigo 59 da mesma lei, o qual dispõe que “o plano de recuperação
judicial implica a novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e
todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias”.
Primeiramente, para uma análise satisfatória do tema, deve-se ter a
compreensão do instituto da novação. Este consiste na extinção da obrigação
estabelecida previamente, através da criação de um novo acordo entre as partes,
podendo ser alterado tanto o objeto da prestação quanto o credor ou devedor por
algum terceiro. Essas são as modalidades de novação, respectivamente, objetiva e
subjetiva.
 
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A novação tem natureza contratual. Portanto, resulta de avença entre credor


e devedor, no caso da recuperação judicial. Um requisito básico para sua efetivação é
o animus novandi, ou seja, a intenção de extinguir a antiga obrigação, instituindo um
novo dever.
Pois bem, o Plano de Recuperação Judicial é feito justamente para
estabelecer novas condições de adimplemento das obrigações inicialmente
estabelecidas. Esse Plano deve ser aceito pelo credor; caso contrário, a empresa
submeter-se-á ao processo de falência.
Portanto, de fato, há a conservação dos direitos contra os coobrigados,
visto que cabe ao credor decidir se aceitará ou não a novação da prestação, podendo
exigir o cumprimento da avença feita primeiramente. Entretanto, após a
concordância com o Plano de Recuperação Judicial, as dívidas anteriores são extintas,
estabelecendo-se novas condições e/ou valores de pagamento.
Destarte, ilógico seria aceitar, como alguns tribunais têm feito, a execução
dos avalistas. Essa posição viola o instituto da novação dos créditos no plano de
recuperação judicial, disposto no artigo 59 da Lei 11.101/05. Seria a admissão de que
uma única dívida poderia originar duas diferentes, coexistindo a obrigação anterior
com a que deveria substituí-la, extinguindo-a.
A adoção desse entendimento acarreta riscos ao instituto da recuperação
judicial. Dentre eles, o de que poderiam os credores, de má-fé, não aprovarem o
Plano de Recuperação Judicial visando à execução antecipada do avalista, se este
possui bens suficientes para quitar o débito.
A superveniência da dívida antiga, no caso de Recuperação Judicial, apenas
ocorrerá no caso desta não haver sido conseguida. Sendo assim, como prevê o artigo
61, §2º, uma vez “decretada a falência, os credores terão reconstituídos seus direitos e
garantias nas condições originalmente contratadas, deduzidos os valores
eventualmente pagos e ressalvados os atos validamente praticados no âmbito da
 
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recuperação judicial”. Somente se isso ocorrer deverá ser executado o coobrigado,


nos termos da avença original.

4 JURISPRUDÊNCIA ACERCA DA EXECUÇÃO DE


COOBRIGADOS NO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Há decisões judiciais em ambas as correntes interpretativas. Os tribunais


costumam decidir uniformemente, de acordo com suas convicções. O problema é
que estas são variáveis de acordo com a comarca.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), notadamente, têm decidido a
favor da execução dos coobrigados da empresa, mesmo estando em curso a
Recuperação Judicial. Apesar do argumento de que a suspensão da cobrança prevista
no artigo 6º da Lei 11.101/05 estender-se-ia aos avalistas, o qual foi utilizado pela
defesa de um conjunto destes, no caso do processo da empresa de construção civil
Margate Construções e Comércio, movido pelo Banco ABN Amro Real, aquele
tribunal manteve sua decisão.
Na ação movida pela Philips da Amazônia contra a Panashop, empresa que
estava em recuperação judicial desde 2005, houve uma decisão desse tribunal em
sentido contrário. Foi suspensa a execução contra esta, entendendo-se o previsto no
artigo 6º já mencionado aos coobrigados. Entretanto, essa é uma decisão isolada no
rol das já efetuadas pelo TJSP.
Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) prolatou sentenças seguindo um
posicionamento oposto ao que convencionalmente o Tribunal de Justiça de São
Paulo adota. Uma das mais citadas decisões foi a do Agravo de Instrumento nº
1.077.960-SP, cujo relator foi o ministro Aldir Passarinho Junior, da Quarta Turma
da corte. Os advogados do avalista de um empréstimo bancário da Reiplás Indústria
 
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e Comércio de Material Elétrico argumentaram que houve novação da dívida.


Quando essa empresa entrou em recuperação judicial, havendo sido efetuado,
inclusive, pagamento de parcelas do débito, o banco iniciou a cobrança do débito. O
acórdão restou assim ementado (fl. 95):

"Execução - Deferimento do pedido de recuperação judicial - Extinção


da execução em relação à avalista - Impossibilidade - Manutenção da
decisão recorrida - Agravo improvido." Com razão a recorrente.
Pretende a agravante a suspensão da execução que paira contra si na
qualidade de avalista de Reiplas Indústria e Comércio de Material
Elétrico LTDA. Com efeito, dos autos colhe-se que a avalizada teve
deferido pedido de recuperação judicial, de maneira que a causa de pedir
da recorrente é que tal fato suspende todas as execuções em curso contra
a empresa recuperanda e ocasiona a consequente novação de seus
débitos anteriores, inexistindo razão para que o processo executivo
continue, mesmo em relação àquele que avalizou o título exequendo. De
fato, é entendimento desta Corte que não se mostra consentâneo com a
recuperação judicial o prosseguimento de execuções individuais, devendo
estas serem suspensas e pagos os créditos, doravante novados, de acordo
com o plano de recuperação homologado em juízo. 3

Esse posicionamento do STJ é eloquente e tem recebido destaque no


universo jurídico. Porém, infelizmente, é um entendimento deveras raro na
jurisprudência, especialmente no estado de São Paulo.
Cabe à doutrina fornecer subsídios argumentativos para que mais decisões
possam ser tomadas da maneira mais justa possível. Há, dessa forma, uma mútua
colaboração, já que a jurisprudência é, muitas vezes, inspiração dos doutrinadores.

                                                            
3 Decisão jurisprudencial do STJ. Disponível em:< http://www.leidefalencias.com.br/destaques/stj-
avalista-de-empresa-em-recuperacao-judcial-nao-responde-pelos-debitos-da-sociedade-decisao-
monocratica/> Acesso em: 20/05/2010.
 
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5 CONCLUSÃO

A Nova Lei de Falências e de Recuperação Judicial, de fato, possibilita


ambas as interpretações: de que o avalista responde pelas dívidas durante o processo
de recuperação da empresa e de que não deveria haver a execução dos fiadores
nesses casos. Controvérsias são comuns, podendo decorrer de dispositivos
incompatíveis, como também da omissão do legislador, intencionalmente ou não,
acerca de determinados assuntos.
Entretanto, a análise sistemática da Lei 11.101/05 e da finalidade da criação
da recuperação judicial torna claramente perceptível que o melhor posicionamento é
o de que a suspensão de cobranças e execuções deve estender-se ao coobrigado. O
entendimento contrário pode acarretar má-fé por parte dos credores, além de
subverter o instituto da novação.
Portanto, é premente a necessidade de mudança de sentido das decisões dos
tribunais, para que haja uma evolução do direito empresarial falimentar e de
recuperação de empresas. Isso porque cabe ao judiciário a busca pela melhor solução
dos conflitos nos casos concretos, e a consequente efetivação de seu escopo de
pacificação social.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 16 ed., ampl. e atual.
São Paulo: Saraiva, 1998.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

BERTOLDI, Marcelo M., RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de


direito comercial. 3 ed. reform., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2006.

CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime da


insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 4ª ed. rev. e atual. Vol.3. São
Paulo: Saraiva, 2003.

FAZZIO Jr., Waldo. Manual de direito comercial. 9 ed. São Paulo : Atlas, 2008.

MACHADO, Rubens Approbato (coord.). Comentários à nova lei de falências e


recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: empresa e atuação

empresarial, vol. 1. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2007.

NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, vol. 1. 5 ed., rev.

e a atual.. São Paulo: Saraiva, 2007.

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Curso de Direito Empresarial: O novo regime

jurídico-empresarial brasileiro.3ª Ed. Rev. Ampl. Atual. Salvador: JusPODIVM, 2009.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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ROCCO, Alfredo. Princípios de Direito Comercial. Campinas: LZN Editora,

2003.

____ FARIAS, Edno Damasceno de. O equívoco de interpretação doutrinária na


lei de recuperação. Postado em: 30 de março de 2009. Disponível em: <
http://www.conjur.com.br/2009-mar-30/equivocidade-interpretacao-doutrinaria-lei-
recuperacao > Acesso em: 15/04/2010.

____ OCHOA, Roberto Ozelame. Avalista fica protegido na recuperação


judicial. Disponível em: <
http://www.planejaerecupera.com.br/materia.php?vIDMateria=200> Acesso em:
10/04/2010.

____ JusBrasil Notícias. TJs mantêm cobrança de sócios durante recuperação


judicial. Postado em: 07 de outubro de 2008. Disponível em: <
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/119138/tjs-mantem-cobranca-de-socios-
durante-recuperacao-judicial> Acesso em: 20/05/2010.

____ Lei de falências e de recuperação de empresas e sua interpretação


jurisprudencial. STJ. Avalista de empresa em recuperação judicial não responde
pelos débitos da sociedade (Decisão monocrática). Disponível em:
<http://www.leidefalencias.com.br/destaques/stj-avalista-de-empresa-em-
recuperacao-judcial-nao-responde-pelos-debitos-da-sociedade-decisao-
monocratica/> Acesso em: 20/05/2010.

 
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SPED E EMPRESA VIRTUAL

Flávia Regina Nápoles Fonseca1

RESUMO

O Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) trouxe à nova ordem


empresarial vários desafios da empresa na era da sociedade da informação. Esse
sistema foi instituído pelo Decreto nº 6022 de 22/01/2007 para atender a Emenda
Constitucional nº 42/03, que introduziu o inciso XXII ao art. 37 da CF/88,
determinando às administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios o dever de atuar de forma integrada, inclusive com o
compartilhamento de cadastros e de informações fiscais.
O avanço da informatização da relação entre fisco, os contribuintes e a
empresa, diante da agilidade da exação fiscal, reflete na sustentabilidade do meio
ambiente, com a economia de emissão de papel, na otimização de recurso humano
pela qualidade do serviço prestado, na integração da empresa na sociedade da
informação, com o favorecimento da exploração de novos mecanismos de
empreendimentos na web e novos investimentos econômicos da empresa.
Numa análise transnacional e interdisciplinar verifica-se que o SPED
correlaciona-se com institutos tecnológicos, levando a uma dimensão do impacto do
sistema eletrônico das empresas cibernéticas, na estrutura jurídica, financeira e
societária. A inclusão digital tecnológica é condição para a democracia e o
desenvolvimento da empresa no seu aspecto econômico, em uma reflexão logística
da portabilidade dos negócios eletrônicos. O SPED (Sistema Público de Escrituração
Digital) é um dos novos desafios da organização empresarial na sociedade da
informação.

Palavras-Chave: SPED (Sistema Público de Escrituração Digital), Era da


Informação. Public System of Digital Bookeeing, Association for Computing.
                                                            
1 Mestranda no Curso de Pós Graduação Stricto Sensu com área de concentração em Direito
Empresarial da Faculdade de Direito Milton Campos. Pós-graduada no Direito Empresarial pelo
Centro de Atualização em Direito – Universidade Gama Filho. Professora de Direito Empresarial na
Faculdade de Ciências Jurídicas – UEMG. Advogada. Avenida do Contorno, 9921/1001 Belo
Horizonte – MG. flavianapolesfonseca@gmail.com.
 
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I - NATUREZA JURÍDICA DO SPED E BASE LEGAL

O SPED é uma obrigação acessória imposta pelo Fisco às empresas que


tributam o Imposto de Renda pelo Regime do Lucro Real e aos contribuintes do
ICMS/IPI (imposto sobre circulação de mercadorias e serviços/imposto sobre
produtos industrializados).
A ação conjunta das administrações federal, estaduais e municipais para
estabelecimento do SPED institui-se por decreto federal em janeiro de 2007, como
parte do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) e, desde então, tem envolvido
órgãos públicos, associações e entidades civis, conselhos de classe e empresas do
setor privado na construção conjunta do projeto.
À medida que processos burocráticos e manuais são substituídos por
automatizados e materiais físicos (papel, móveis de armazenamento e livros) por
arquivos digitais, há um enorme ganho de escala em produtividade, em espaço físico
e na logística.
A sigla SPED começou a se popularizar em 2009, e muitos a confundiam
com SPEED, o serviço de internet banda larga. Nos primórdios alguns a confundiam
com partido político. Outros pensavam em mais uma nova forma de tributo
onerando ainda mais a alta carga tributária.
O SPED está dividido em algumas frentes, dentre as quais se destacam três
grandes grupos: Escrituração Contábil Digital - ECD; Escrituração Fiscal Digital -
EFD; Nota Fiscal Eletrônica - NF-e, Controle de Transporte Eletrônico, CTe e
eLalur, todos sistemas visam uma melhor automação da gestão empresarial com
maior transparência nas relações fiscais.

 
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II - NOTA FISCAL ELETRÔNICA

A Nota Fiscal Eletrônica, NF-e, modelo 55 é um documento de existência


apenas digital, emitido e armazenado eletronicamente, com o intuito de documentar,
para fins fiscais, uma operação de circulação de mercadorias ou uma prestação de
serviços, ocorrida entre as partes. Sua validade jurídica é garantida pela assinatura
digital do remetente (garantia de autoria e de integridade) e pela recepção, pelo Fisco,
do documento eletrônico, antes da ocorrência do Fato Gerador.
Foi através do ajuste SINIEF 07/2005 que restou instituída nacionalmente
a Nota Fiscal Eletrônica e o Documento Auxiliar da Nota Fiscal Eletrônica -
DANFE (Documento Auxiliar da NF-e);
O Ato COTEPE 14/2007 trouxe as especificações técnicas da NF-e, com o
Manual de Integração do Contribuinte, além de todo o detalhamento técnico da Nota
Fiscal Eletrônica e do DANFE.
Mas foi através do protocolo ICMS 10/07 e demais alterações como
protocolo ICMS 88/07, que exarou-se a obrigatoriedade de emissão de NF-e.
A NF-e substitui apenas a chamada nota fiscal modelo 1/1A, utilizada para
documentar transações comerciais com mercadorias entre pessoas jurídicas.
Documentos Fiscais como Nota Fiscal a Consumidor (modelo 2) ou o Cupom
Fiscal, não serão substituídos pela NF-e devendo seguir o padrão exposto na
legislação anterior, o que enseja emissão em papel.
Concomitante à emissão da NFe será emitido o DANFE, (Documento
Auxiliar da Nota Fiscal Eletrônica), documento impresso de acompanhamento da
mercadoria em trânsito e consulta à internet, contendo uma representação gráfica
simplificada da NF-e a chave de acesso da NF-e, que permite a consulta de
informações na Internet e acompanhamento da mercadoria em trânsito, além da
validação da assinatura digital e da autenticidade do arquivo digital.
 
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Assim a NFe deve ser utilizada para operações de importação, operações de


exportação, operações interestaduais e ainda operações de simples remessa.
Nessa perspectiva, a legislação setorizou os contribuintes quanto à
obrigatoriedade da utilização da NFe, a despeito de seu capital social, lucro auferido
ou CNAE (código nacional de atividade econômica). Senão, veja-se os contribuintes
obrigados a emissão de NFe:
I - fabricantes de cigarros;
II - distribuidores de cigarros;
III - produtores, formuladores e importadores de combustíveis líquidos, assim definidos e
autorizados por órgão federal competente;
IV - distribuidores de combustíveis líquidos, assim definidos e autorizados
por órgão federal competente;
V - transportadores e revendedores retalhistas -TRR, assim definidos e
autorizados por órgão federal competente.
O Protocolo ICMS 88/07 de 14/12/2007 alterou disposições do Protocolo
ICMS 10/07 e estabeleceu a obrigatoriedade de utilização da Nota Fiscal Eletrônica
(NF-e), a partir de 1º de setembro de 2008, para os contribuintes:
VI - fabricantes de automóveis, camionetes, utilitários, caminhões, ônibus e
motocicletas;
VII - fabricantes de cimento;
VIII -fabricantes, distribuidores e comerciante atacadista de medicamentos
alopáticos para uso humano;
IX -frigoríficos e atacadistas que promoverem as saídas de carnes frescas,
refrigeradas ou congeladas das espécies bovinas, suínas, bufalinas e avícolas;
X - fabricantes de bebidas alcoólicas inclusive cervejas e chopes;
XI -fabricantes de refrigerantes;

 
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XII -agentes que assumem o papel de fornecedores de energia elétrica, no


âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica -CCEE;
XIII -fabricantes de semi-acabados, laminados planos ou longos,
relaminados, trefilados e perfilados de aço;
XIV -fabricantes de ferro-gusa.
O Protocolo ICMS 68/2008 de 04/07/2008 alterou disposições do
Protocolo ICMS 10/07, adiou a obrigatoriedade de emissão de 01/09/2008 para
01/12/2008, desobrigou da emissão de NF-e operações realizadas fora do
estabelecimento, relativas às saídas de mercadorias remetidas sem destinatário certo,
e estabeleceu a obrigatoriedade de utilização da Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) a partir
de 1º de abril de 2009, para os contribuintes:
XV - importadores de automóveis, camionetes, utilitários, caminhões,
ônibus e motocicletas;
XVI - fabricantes e importadores de baterias e acumuladores para veículos
automotores;
XVII - fabricantes de pneumáticos e de câmaras-de-ar;
XVIII -fabricantes e importadores de autopeças;
XIX - produtores, formuladores, importadores e distribuidores de solventes
derivados de petróleo, assim definidos e autorizados por órgão federal competente;
XX -comerciantes atacadistas a granel de solventes derivados de petróleo;
XXI - produtores, importadores e distribuidores de lubrificantes e graxas
derivados de petróleo, assim definidos e autorizados por órgão federal competente;
XXII - comerciantes atacadistas a granel de lubrificantes e graxas derivadas
de petróleo;
XXIII - produtores, importadores, distribuidores a granel, engarrafadores e
revendedores atacadistas a granel de álcool para outros fins;

 
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XXIV -produtores, importadores e distribuidores de GLP -gás liquefeito de


petróleo, assim definidos e autorizados por órgão federal competente;
XXV -produtores e importadores GNV -gás natural veicular;
XXVI - atacadistas de produtos siderúrgicos e ferro gusa;
XXVII - fabricantes de alumínio, laminados e ligas de alumínio;
XXVIII -fabricantes de vasilhames de vidro, garrafas PET e latas para
bebidas alcoólicas e refrigerantes;
XXIX - fabricantes e importadores de tintas, vernizes, esmaltes e lacas;
XXX - fabricantes e importadores de resinas termoplásticas;
XXXI -distribuidores, atacadistas ou importadores de bebidas alcoólicas,
inclusive cervejas e chopes;
XXXII -distribuidores, atacadistas ou importadores de refrigerantes;
XXXIII - fabricantes, distribuidores, atacadistas ou importadores de extrato
e xarope utilizados na fabricação de refrigerantes;
XXXIV - atacadistas de bebidas com atividade de fracionamento e
acondicionamento associada;
XXXV - atacadistas de fumo beneficiado;
XXXVI -fabricantes de cigarrilhas e charutos;
XXXVII - fabricantes e importadores de filtros para cigarros;
XXXVIII -fabricantes e importadores de outros produtos do fumo, exceto
cigarros, cigarrilhas e charutos;
XXXIX - processadores industriais do fumo;
O Protocolo ICMS 10/2008 de 26/09/2008 alterou disposições do
Protocolo ICMS 10/07 acrescentando novos setores obrigados a emitir NF-e a partir
de 01/09/2009:
XL - fabricantes de cosméticos, produtos de perfumaria e de higiene
pessoal;
 
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XLI - fabricantes de produtos de limpeza e de polimento;


XLII - fabricantes de sabões e detergentes sintéticos;
XLIII - fabricantes de alimentos para animais;
XLIV - fabricantes de papel;
XLV - fabricantes de produtos de papel, cartolina, papel-cartão e papelão
ondulado para uso comercial e de escritório;
XLVI - fabricantes e importadores de componentes eletrônicos;
XLVII - fabricantes e importadores de equipamentos de informática e de
periféricos para equipamentos de informática;
XLVIII - fabricantes e importadores de equipamentos transmissores de
comunicação, peças e acessórios;
XLIX - fabricantes e importadores de aparelhos de recepção, reprodução,
gravação e amplificação de áudio e vídeo;
L - estabelecimentos que realizem reprodução de vídeo em qualquer
suporte;
LI - estabelecimentos que realizem reprodução de som em qualquer
suporte;
LII - fabricantes e importadores de mídias virgens, magnéticas e ópticas;
LIII - fabricantes e importadores de aparelhos telefônicos e de outros
equipamentos de comunicação, peças e acessórios;
LIV - fabricantes de aparelhos eletromédicos e eletroterapeuticos e
equipamentos de irradiação;
LV - fabricantes e importadores de pilhas, baterias e acumuladores elétricos,
exceto para veículos automotores;
LVI - fabricantes e importadores de material elétrico para instalações em
circuito de consumo;

 
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LVII - fabricantes e importadores de fios, cabos e condutores elétricos


isolados;
LVIII - fabricantes e importadores de material elétrico e eletrônico para
veículos automotores, exceto baterias;
LIX - fabricantes e importadores de fogões, refrigeradores e maquinas de
lavar e secar para uso doméstico, peças e acessórios;
LX - estabelecimentos que realizem moagem de trigo e fabricação de
derivados de trigo;
LXI - atacadistas de café em grão;
LXII - atacadistas de café torrado, moído e solúvel;
LXIII - produtores de café torrado e moído, aromatizado;
LXIV - fabricantes de óleos vegetais refinados, exceto óleo de milho;
LXV - fabricantes de defensivos agrícolas;
LXVI - fabricantes de adubos e fertilizantes;
LXVII - fabricantes de medicamentos homeopáticos para uso humano;
LXVIII - fabricantes de medicamentos fitoterápicos para uso humano;
LXIX - fabricantes de medicamentos para uso veterinário;
LXX - fabricantes de produtos farmoquímicos;
LXXI - atacadistas e importadores de malte para fabricação de bebidas
alcoólicas;
LXXII - fabricantes e atacadistas de laticínios;
LXXIII - fabricantes de artefatos de material plástico para usos industriais;
LXXIV - fabricantes de tubos de aço sem costura;
LXXV - fabricantes de tubos de aço com costura;
LXXVI - fabricantes e atacadistas de tubos e conexões em PVC e cobre;
LXXVII - fabricantes de artefatos estampados de metal;

 
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LXXVIII - fabricantes de produtos de trefilados de metal, exceto


padronizados;
LXXIX - fabricantes de cronômetros e relógios;
LXXX - fabricantes de equipamentos e instrumentos ópticos, peças e
acessórios;
LXXXI - fabricantes de equipamentos de transmissão ou de rolamentos,
para fins industriais;
LXXXII - fabricantes de máquinas, equipamentos e aparelhos para
transporte e elevação de cargas, peças e acessórios;
LXXXIII - fabricantes de aparelhos e equipamentos de ar condicionado
para uso não-industrial;
LXXXIV - serrarias com desdobramento de madeira;
LXXXV - fabricantes de artefatos de joalheria e ourivesaria;
LXXXVI - fabricantes de tratores, peças e acessórios, exceto agrícolas;
LXXXVII - fabricantes e atacadistas de pães, biscoitos e bolacha;
LXXXVIII - fabricantes e atacadistas de vidros planos e de segurança;
LXXXIX - atacadistas de mercadoria em geral, com predominância de
produtos alimentícios;
XC - concessionários de veículos novos;
XCI -fabricantes e importadores de pisos e revestimentos cerâmicos;
XCII - tecelagem de fios de fibras têxteis;
XCIII - preparação e fiação de fibras têxteis;

 
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III - ECD ESCRITURAÇÃO CONTÁBIL DIGITAL

A escrituração contábil digital (ECD) é um dos pilares do SPED e é visto


como um padrão contábil, através de um arquivo eletrônico, onde as empresas
divulgam eletronicamente informações fiscais e contábeis para a Receita Federal.
O ECD é obrigatório somente para as sociedades empresarias enquadradas
no regime da tributação do Imposto de Renda pelo regime do Lucro Real e para as
sociedades empresárias sujeitas ao acompanhamento econômico tributário
diferenciado.
Essa modificação impôs aos empresários um alto custo, em razão da
aquisição do sistema de tecnologia para a adequação do layout exigido pelo Fisco, já
que o descumprimento de transmissão dessa obrigação acessória acarretará uma
multa dispendiosa.
A contabilidade das sociedades empresária está regulada na Lei de
Sociedade Anônima 6404/76 e no CC/02. Durante muitos anos os vários planos
econômicos que assolaram o Brasil, desestabilizaram as empresas e a contabilidade
passou a não ser prioridade de gestão, em face de sua complexidade. Todavia, a
escrituração, além de trazer uma transparência financeira, com melhor mensuração
do custo de fluxo de caixa, estoque e inadimplemento, serve como meio de prova em
ações judiciais, em possíveis prestações de conta.
Assim, a lei de S.A. foi modificada para atender normas de padrão
internacional de contabilidade, o que insere o Controle Fiscal Contábil de Transição,
FTCON, parte integrante do SPED, que estabelece nova escrituração visando apurar
o lucro, com base nos métodos fiscais e critérios vigentes.
Pari passu a esta transformação de padrão no cumprimento de obrigação
tributária tem-se a melhoria no controle das obrigações tributárias, legitimidade e
transparência na exação fiscal, uma vez que o sistema dificulta a sonegação fiscal.
 
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Isso pode reflexionar no crescimento da arrecadação, base da reforma tributária e


permitindo uma diminuição na carga tributária, base do SPED – ESCRITURAÇÃO
CONTABIL DIGITAL -ECD.
O SPED tem transformado as realidades conjunturais e de gestão das
sociedades empresárias. As pequenas e médias empresas encontram-se
inevitavelmente em um processo de transformação. A despeito de que possa parecer
aumento dos custos, gradativamente pode ser revestidos em benefícios, seja através
de uma mensuração mais real da contabilidade da empresa, bem como criando novos
padrões de negócios jurídicos.

IV - SPED FISCAL

Terceiro pilar do SPED é a Escrituração Fiscal Digital (EFD), instituída


pelo Convênio ICMS no 143/2006, de 20/12/2006, com o objetivo de transformar
as obrigações acessórias fiscais em ambiente eletrônicos.
A Escrituração Fiscal Digital – EFD é um arquivo digital, que se constitui
de um conjunto de escriturações de documentos fiscais e de outras informações de
interesse dos fiscos das unidades federadas e da Secretaria da Receita Federal do
Brasil, bem como de registros de apuração de impostos referentes às operações e
prestações praticadas pelo contribuinte, obrigações previstas na Resolução SEF
3.884/2007, regulamentada pelos Atos Cotepe 38/2009 e 47/2009 e pelo Ajuste
SINIEF 02/2009, alterado pelo Ajuste SINIEF 02/2010.
Portanto, a partir de 01/2011, existirá uma única obrigação: o CIAP
escriturado na EFD/SPED. Não será exigida mais a entrega das informações do
CIAP a partir de 07/2010, conforme previsto atualmente na Resolução SEF
3.884/2007.
 
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V - ASSINATURA DIGITAL

O documento digital é muito volátil, podendo, em algumas circunstâncias,


não atender alguns padrões de segurança, ou ser modificado por outras pessoas
dotadas de certo grau de conhecimento em quebra de segurança de sistemas, como
os conhecidos "invasores" ou "hackers"2.
Necessário que sejam apresentados métodos eficazes não só para prevenir a
fraude nos documentos, como para tornar sua produção e guarda mais segura, sendo
por isso necessária a assinatura digital, para dar validade jurídica aos documentos
eletrônicos.
A MP 2.200 legitimou o certificado digital e criou o ICPBrasil- Instituto
Infra-estrutura de Chaves Públicas do Brasil o órgão responsável pela regulação e
efetivação das assinaturas digitais eletrônicas.
O certificado digital representa o mecanismo de segurança capaz de garantir
autenticidade, confidencialidade e integridade às informações eletrônicas. As opções
mais usuais são o A1 e A3, o primeiro é armazenado na própria maquina, PC,
desktop ou notebook, tendo sua garantia questionável, face a sua possibilidade de
inutilização por problemas com formatação, remoção de arquivos e ataque de vírus;
o segundo é armazenado fora da máquina em cartão ou token, instrumento que
conecta ao computador através de uma entrada USB.
O alcance desses mecanismos digitais como a assinatura digital, coloca a
disposição da empresa virtual institutos tais como, a identificação das partes no
documento eletrônico, o reflexo na atividade empresarial e quais os resultados que
poderão ser obtidos para se efetivar um ambiente de melhor concorrência.

                                                            
2 OLIVEIRA, Wilson J. HACKER: Invasão e Proteção 2ª edição. Florianópolis: Editora Visual Books

Ltda, 2000.  
 
763 
 
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Necessário que seja mantida uma segurança de sistema para se evitar que
seja comprometida a veracidade do documento digital.
No contexto do SPED, relevante é a atuação dos notários ou registradores
públicos, como instrumento consuetudinário para aplicabilidade da escrituração
digital na utilização da tecnologia digital. Expressões como “cartório digital” e
“cibernotórios” passam a ser comuns, entre outros, não só na realidade SPED como
na formalização jurídica da vontade das partes, na expressão de atos e negócios
jurídicos a que elas devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, para o que
possam autorizar a redação ou redigir os instrumentos adequados, conservando os
originais e expedindo cópias fidedignas e, por fim, autenticar fatos) ²
Nesse diapasão, o futuro dos negócios jurídicos eletrônicos (incluindo,
claro, sua abrangência, validade e a segurança) começam a ser definidos em nosso
ordenamento jurídico, ao menos quanto à sua abrangência de utilização, o que inclui
o SPED e todos os seu subsistemas.
O SPED coaduna-se na complexidade da constituição de prova nos casos
de descumprimento de uma das obrigações acessórias exigidas, ou até mesmo na
segurança do armazenamento de informações de dados sigilosos como livros digitais
e livros contábeis da empresa, que são protegidos legalmente no aspecto da
confidencialidade, credibilidade e indelebilidade.
No meio digital, a assinatura digital dá autenticidade pessoal ao
representante legal, ao contabilista que irá apresentar o livro digital ou o livro
contábil para a Junta Comercial ou ao Notário, baseada em códigos de autorização e
criptografia secretos utilizados para ‘assinar’ documentos eletrônicos.
Concomitante à exigência SPED, necessário o aperfeiçoamento da
assinatura digital eletrônica, em termos de segurança e garantia, para que sejam dadas
viabilidade e validade jurídica a esses documentos.

 
764 
 
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VI - EMPRESA VIRTUAL – UTILIZAÇÃO DE COMÉRCIO


ELETRÔNICO - CONCOMITANTE A ERA SPED

Com a instituição do SPED, as sociedades empresárias se viram na


contingência de toda uma mudança de estrutura e gestão empresarial para atender a
uma obrigação tributária acessória. Empresários mais perspicazes perceberam um
novo cenário e uma nova possibilidade de empreendimento, o e-commerce, com a
instituição do estabelecimento empresarial virtual. Vis a vis, o comércio eletrônico e a
credibilidade dos contratos eletrônicos, a empresa passa a ter uma vertente virtual e
grande lucratividade em atividades no ciberespaço.
Várias empresas se unem em tipos societários como a Joint Venture, para
explorarem o mercado virtual. Na era SPED, quando as sociedades empresárias
encontram-se em plena adequação operacional, para desenvolver prática de gestão e
modernização tecnológica, acredita-se que a exploração desse mercado eletrônico
possa trazer inúmeros benefícios tais como: aumento da margem de lucro usando o
canal on line; fornecimento de serviços mais rápidos e melhores; desburocratização
no cumprimento das obrigações fiscais, trabalhistas, corporativas, fortalecimento da
marca.
Destarte , a alta carga tributária, as sociedades empresárias ainda se deparam
com outra complexidade, onerando ainda mais a sua atividade, qual seja, prazos
curtos de recolhimento de tributos, o que traz impacto no fluxo de caixa das
empresas. Face a tantas exigências, outras alternativas necessitam ser exploradas para
uma melhor otimização no exercício da empresa, gerando inovação e benefício.
Exsurge então a virtualização da empresa, no ciberespaço (mundo automatizado), e
por corolário a ciberlaw ( aplicação da legislação sobre a internet ).
Percebe-se que a confiabilidade nesse novo negócio encontra-se em plena
ascensão, e tem gerado um crescimento do e-commerce no Brasil com suas

 
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peculiaridades e conceitos. O B2B é o termo utilizado para conceituar as relações


comerciais entre empresa, sem a participação imediata do consumidor, e envolve
comercialização de produtos e serviços, entorno de insumos e suprimentos por parte
das empresas e seus produtores, fabricantes, fornecedores e importadores.
O B2C é o termo utilizado para definir relações de varejo eletrônico,
definido como a relação de consumo do tipo fornecedor-consumidor. As sociedades
empresárias, na condição de produtoras, fabricantes, distribuidoras, comercializam
seus produtos ao consumidor final, através do varejo eletrônico.
Nesse novo contexto de novas exigências, nada mais viável do que a
implementação de atividade comercial viabilizada por meio de computadores
conectados. Nas diversas tangentes apresentadas, o comércio eletrônico também
designado como e-commerce, pode ocorrer entre um usuário e um fornecedor,
através de um serviço online, da Internet ou de um BS, ou entre um fornecedor e
computadores do cliente, através de recursos EDI (electronic data interchange), o
que poderá trazer novos empreendimentos e rentabilidade para as sociedades
empresárias, atualmente já instrumentalizadas de tecnologia de informática.
Percebe-se então que a implantação da nota fiscal eletrônica e do programa
SPED redundou em outros benefícios não só às administrações tributárias. Os
contribuintes e contabilistas também usufruem de vantagens, como redução de
custos de impressão e aquisição de papel; simplificação de obrigações acessórias,
como, por exemplo, dispensa de Autorização para Impressão de Documentos Fiscais
(AIDF); redução de tempo de parada dos caminhões em postos fiscais entre os
Estados; e eliminação de digitação de notas fiscais na recepção de mercadorias.

 
766 
 
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VIII - CONCLUSÃO

O novo Sistema de Escrituração Digital além de promover a integração dos


fiscos, racionalizar e uniformizar as obrigações acessórias para os contribuintes,
propiciou melhor ambiente de negócios para as empresas, eliminando a concorrência
desleal, com o aumento da competitividade entre as empresas, com a eliminação de
concorrência desleal.
Para que haja uma melhor projeção de resultado, as sociedades empresárias
terão que dispor de uma melhor gestão empresarial, utilizando de ERP (enterprice
resource planning), sistema integrado de gestão, para uma melhor automação.
Para tanto, será necessário um maior investimento em segurança da
informação, por parte dos órgãos e entidades fiscais brasileiras responsáveis pela
Inteligência Fiscal Brasileira, uma vez esse sistema digital amplia problemas como
invasão de privacidade, furto de informações, risco de fraudes, entre outros.
O SPED, em seu objetivo maior de diminuir a sonegação levará a uma
arrecadação do Fisco, redundando numa inevitável modernização tecnológica dos
processos de escrituração contábeis e fiscais da empresa, otimizando novas
oportunidades negociais de toda cadeia produtiva com uma maior interação entre os
fornecedores, consumidores e contribuintes, como base de crescimento econômico
da iniciativa privada, tendo por base a transformação na gestão empresarial e
virtualização das relações jurídicas na era do Fisco Digital!

BIBLIOGRAFIA

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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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DIREITOS
FUNDAMENTAIS E
DEMOCRACIA

 
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A ADOÇÃO DA TEORIA DO RISCO ABSTRATO PARA


RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR DANO AMBIENTAL – UMA
EXIGÊNCIA DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Sérgio Rubens Birchal Becattini1


Tatiana Amormino Costa de Figueiredo2

RESUMO

A Constituição da República Federativa do Brasil, no caput do artigo 225,


consagra o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado às
presentes e às futuras gerações, e passa a exigir, constitucionalmente, a intervenção
do Estado na questão ambiental.
Entretanto, o paradigma do Estado Democrático de Direito, como
atualmente concebido, não se encontra preparado para enfrentar os desafios que lhe
são apresentados pela sociedade moderna. Os próprios agentes sociais, como as
ONG’s, passaram a atuar nesse vácuo de poder, o que levou a um deslocamento do
eixo do poder político do Estado para esses novos centros de decisão.
Por outro lado, a sociedade atual experimenta dúvidas acerca dos riscos de
suas atividades e do que poderá advir de prejudicial ao equilíbrio ecossistêmico e,
conseqüentemente, à saúde e à preservação de todas as espécies de vida.
Isso porque a evolução científica e tecnológica desenvolve riscos em níveis
globais, mas não é capaz de indicar e calcular as conseqüências nocivas para a vida
futura em todas as suas dimensões. Tais riscos, abstratos, em contraponto aos
concretos, que podem ser previstos pelo conhecimento vigente, são baseados em
juízos de probabilidade, na expectativa de danos ambientais futuros.
Todavia, a mera probabilidade de dano inviabiliza a intervenção jurídica
contundente, pois, nos termos da Teoria do Risco Concreto, é imprescindível a

                                                            
1 Advogado, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Estudos

Diplomáticos pelo CEDIN / Faculdades Milton Campos, mestrando em Direito Público pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
2 Advogada, formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós graduanda em Direito

do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (RJ).


 
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ocorrência do dano para a responsabilização civil e, logo, para a imposição de


medidas preventivas, seja de caráter positivo (obrigação de fazer) como de caráter
negativo (obrigação e não fazer).
Diante dessa crise do Estado e do Direito, propomos a adoção de uma
teoria jurídica mais complexa, Teoria do Risco Abstrato, capaz de controlar os riscos
gerados e concretizar ações para atender às novas demandas da sociedade.

Palavras-Chave: Risco. Ambiental. Responsabilidade.


Keywords: Risk. Environment. Responsibility.

1 Introdução

A sociedade atual experimenta dúvidas acerca não apenas das conseqüências


futuras dos danos já provocados, mas incertezas sobre os riscos de suas atividades,
tais como biotecnologia, indústria química, radiações eletromagnéticas, energia
nuclear, e do que poderá advir de prejudicial ao equilíbrio ecossistêmico e, portanto,
à saúde e à preservação de todas as espécies de vida, dentre as quais se inclui a
humana.
Isso porque a evolução científica e tecnológica desenvolve riscos em níveis
globais, mas não é capaz de indicar e calcular as conseqüências nocivas de sua
utilização para a vida futura em todas as suas dimensões. Tais riscos, abstratos, em
contraponto aos concretos, que podem ser previstos pelo conhecimento vigente, são
baseados em juízos de probabilidade, na expectativa de danos ambientais futuros.
A possibilidade de dano, contudo, não repercute na esfera cível, nos termos
como concebida a responsabilidade civil, pois esta é pautada pela Teoria do Risco
(Concreto), sendo imprescindível a ocorrência do dano. Nesse teor, não é possível a
responsabilização na esfera cível e, logo, a imposição de medidas preventivas, seja de
caráter positivo (obrigação de fazer) ou de caráter negativo (obrigação e não fazer),
diante de atividades produtoras de danos apenas potenciais.
 
773 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Contudo, o Direito não pode absorver as novas demandas da sociedade


com seus tradicionais conceitos jurídicos, sem que sejam revistos e redimensionados.
As categorias que norteiam o Direito devem ser readequadas de forma a
permitir o estabelecimento de limites visando à contenção de abusos e à proteção dos
direitos fundamentais não apenas das presentes, mas também das futuras gerações.
Nesse teor, entendemos que a Teoria do Risco deve ser reformulada de
forma a possibilitar a responsabilização civil por riscos ambientais intoleráveis,
diante da probabilidade de danos ambientais futuros.

2 Direito Ambiental: evolução

Apesar das primeiras referências ao meio ambiente datarem do final do


século XIX, com a celebração de tratados, o Direito Ambiental emergiu apenas a
partir da segunda metade do século XX, quando a sociedade civil - mais precisamente
organizações não governamentais e cientistas ambientalistas -, constatou o colapso de
ecossistemas planetários em razão da ação antrópica.
Acidentes ambientais como o do Torrey Canon, petroleiro que afundou e,
em decorrência do derramamento do petróleo, provocou a poluição das águas
costeiras da França, Inglaterra e Bélgica, contribuíram, sobremaneiramente, para o
desencadeamento da preocupação com a questão ambiental.
Até a década de sessenta, concomitante com a tendência mundial, houve,
no Brasil, uma fase de exploração desregrada. As normas, em matéria ambiental,
eram incipientes, diluídas, direcionadas somente à proteção de recursos naturais
específicos, como a água, as florestas, os minérios, a caça e a pesca, a matérias
relacionadas com o meio ambiente, a exemplo da saúde, mortalidade infantil e
propriedade, ou à proteção do patrimônio histórico, cultural e paisagístico.
 
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A preocupação com a proteção global do meio ambiente como elemento


essencial para a sobrevivência humana surge, no cenário internacional, com a
Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e o Meio Ambiente realizada em
Estocolmo, na Suécia, em 1972. Esta promoveu o início da mudança da percepção
do homem em relação à temática ambiental, tornando-se um marco da evolução do
Direito Ambiental. Como resultado, houve a criação do Programa das Nações
Unidas para o Meio Ambiente, PNUMA, e a aprovação da Declaração sobre o Meio
Ambiente Humano.
Em decorrência do movimento mundial proveniente da Conferência de
Estocolmo de 1972, iniciaram-se mudanças na seara normativa brasileira. Em 31 de
agosto de 1981, foi promulgada a Lei n. 6.938 e, por conseguinte, instituída a Política
Nacional do Meio Ambiente, a qual prima pela proteção ambiental integralizada e
não individualizada dos recursos naturais.
Todavia, a preservação ambiental e o próprio Direito Ambiental ganharam
força apenas com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a
primeira a tratar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e
futuras gerações como direito fundamental de terceira dimensão.
Não obstante a relevância da Conferência de Estocolmo, o grande marco
para a sustentabilidade ambiental aconteceu somente 20 anos depois com a II
Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano,
mais conhecida como ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, que representou o auge
do movimento a favor da sustentabilidade ambiental.
Reafirmou-se o compromisso de reforço e ampliação da cooperação das
nações com o fito de perseguir a preservação ambiental, por meio da abordagem de
diversos aspectos relativos ao meio ambiente e ao desenvolvimento econômico,
reflexo da percepção mundial acerca das conseqüências ambientais e sociais do

 
775 
 
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modelo de produção de caráter eminentemente destrutivo, adotado desde a


Revolução Industrial.
Ademais, resultaram da Conferência, dois documentos: a Declaração do Rio
e a Agenda 21. Entendeu-se, para a própria sobrevivência da humanidade, ser
necessária a conjugação do desenvolvimento, da preservação do meio ambiente e da
melhoria da qualidade de vida.
A partir da ECO-92, portanto, a questão ambiental ganhou enorme
importância mundial, reconhecendo-se a necessidade de ingressarmos em uma nova
fase de crescimento marcada pela sustentabilidade, na qual os recursos naturais
devem ser preservados de forma a atender às necessidades do presente, sem contudo
comprometer as futuras gerações.

3 Crise do Estado Democrático de Direito

O Estado moderno demorou muito para atentar-se à questão ambiental. O


paradigma liberal desconhecia tal questão. O Estado do Bem Estar Social não lhe deu
importância. A atuação dos agentes econômicos nesses paradigmas era desenfreada e
incontida. Não havia consciência da necessidade de conter a exploração do homem
ou de preservar os recursos naturais.
Apenas com a consagração dos diretos difusos e coletivos, passou-se a
exigir a intervenção do Estado em matérias ambientais.
Muito embora, hoje seja um consenso para os governos e a sociedade a
necessidade da preservação ambiental, ainda relutamos em adotar determinadas
tutelas jurídicas capazes de precaver danos a um bem tão valioso.

 
776 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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O ente estatal não conseguiu responder à altura os desafios que lhe foram
propostos, causando uma crise do Estado Democrático de Direito, sendo este não
mais capaz de atender as demandas da sociedade ou de pacificar seus conflitos.
Os próprios agentes sociais, empresas transnacionais, organizações não
governamentais (ONG), organismo supranacionais, passaram a atuar nesse vácuo de
poder, o que levou a um deslocamento do eixo do poder político do Estado para
esses novos centros de decisão. O próprio Direito Ambiental é fruto desse
deslocamento. Organizações transnacionais e ONG’s passaram a assumir papel
fundamental na proteção ao meio ambiente.
Os agentes sociais, contudo, não são capazes de sozinhos tutelar
efetivamente o meio ambiente de modo a preservá-lo. As necessidades sociais, frente
a fenômenos como o aquecimento global, superam a capacidade de atuação de
qualquer membro da sociedade. Somente o ente estatal, agindo democraticamente,
atuando em concerto com seus pares no cenário internacional, será capaz de
enfrentar os desafios ambientais que nos são apresentados neste início de século
XXI.
Para tanto, é necessário resgatar a eficácia do mais importante instrumento
estatal para a regulação de conflitos sociais: o Direito.

4 Da Sociedade Industrial para a Sociedade de Risco

A sociedade industrial, caracterizada pela previsibilidade dos riscos gerados


pelas atividades e de suas conseqüências, desembocou, devido à evolução científica e
tecnológica, numa sociedade que desenvolve riscos em níveis globais, mas não é
capaz de identificar as conseqüências nocivas de sua utilização. É a sociedade de
riscos, preconizada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck.
 
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Novas técnicas de produção, globalização das relações econômicas, novos


processos de gestão econômica e novas tecnologias acarretaram em alterações nas
formas de organização econômica e nas próprias relações sociais.
As próprias relações de poder, sua legitimação e condições de exercício
foram alteradas, passando a exigir novas formas de gestão dos conflitos.
A crescente exposição a riscos, para quais não há instrumentos de controle
eficazes, é uma característica desse novo modelo de organização social, identificada
por Ulrich Beck3:

Sin embargo, llama la atención que en aquel tiempo, a diferencia


de hoy, los peligros atacaban a ala nariz o la ojos, es decir, eran
perceptibles mediate los sentidos, mientras que los riesgos
civilizatórios hoy se sustraen a la percepción y más bien residen en
la esfera de las formulas químico-fisicas (por ejemplo, los
elementos tóxicos en los alimentos, la amenaza nuclear). A ello va
unida una diferencia más. Por entonces, se podía atribuir los
riegos a un infraabastecimiento de tecnología higiéncia. Hoy tienen
su origen en una sobreproducción industrial. Así pues, los riegos y
peligros de hoy se diferencian esencialmente de los de la Edad
Media (que a menudo se les parecen exteriormente) por la
globalidad de su amenaza (seres humanos, animales, plantas) y por
sus causas modernas. Son riesgos de la modernización. Son un producto
global de la maquinaria del progreso industrial y son agudizados
sistemáticamente con su desarrollo ulterior. (Grifo no original).

Risco pode ser definido como “probabilidade de perigo ou ameaça para o


homem e /ou para o meio ambiente”4.
Risco é um conceito da modernidade que substitui o perigo, pois se dissocia
da justificação por causas divinas ou naturais, para atribuir conseqüências às decisões
humanas.

                                                            
3 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo – así una nueva realidad. Barcelona: Paidos, 1998. p. 28.  
4 Dicionário Houaiss. Disponível em: <www.houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 11/05/2010.
 
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Essa alteração ocorre em dois estágios. Em um primeiro momento, a


justificação tradicional, divina, natural ou de destino é substituída pela racionalidade
científica industrial, baseada na causalidade, na limitação da imprevisibilidade e na
pretensão do controle. “A regularidade permite construir conexões entre os
acontecimentos, imputar causalidade e elaborar descrições que tornam manifesta a
rede de conexões entre os acontecimentos”5.
Nesse estágio, estamos em uma sociedade industrial. Entretanto, nas últimas
décadas, constatamos que essa racionalidade não mais prospera. A normalidade
consubstanciada na relação de previsibilidade entre fatos e resultados foi suplantada
por um contexto no qual há riscos que não são sequer “perceptíveis aos afetados,
manifestando-se muitas vezes apenas em momentos temporalmente distantes
daquele em que foram gerados, prejudicando severamente a visibilidade das relações
de causalidade e de imputação”6. Trata-se, portanto, de riscos invisíveis,
transtemporais e intergeracionais.
Portanto, com o desenvolvimento tecnológico e a globalização, os acidentes
passaram a ganhar dimensões maiores e a previsão de sua causalidade deixou de ser
eficiente. As falhas dos sistemas de segurança sociais foram expostas ao público e a
confiança desses nos especialistas e cientistas, abalada.
Reconheceu-se a impossibilidade de previsão de todas as conseqüências das
decisões. O conceito de risco passou a ter feições que ultrapassam qualquer
pretensão de controlabilidade e cognoscibilidade. Restou à sociedade e às instituições

                                                            
5 DE GIORGI, Raffaele. Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1998. p. 188.
6 LEITE, José Rubens Morato. AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de

Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 15 -16.


 
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admitir sua incapacidade de prever, controlar e evitar os riscos, como preconizam


José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala7:

Nesse novo modelo de organização social, o perfil dos riscos


distancia-se dos riscos profissionais e empresariais do Estado
nacional, identificando-se agora as ameaças globais,
supranacionais, sujeitas a uma nova dinâmica política e social. Os
macroperigos dessa nova sociedade caracterizam-se: a) por não
encontrem limitações espaciais ou temporais; b) por não se
submeterem a regras de causalidade e aos sistemas de
responsabilidade e, sobretudo, c) por não ser possível sua
compensação, em face do potencial de irreversibilidade de seus
efeitos, que anula as formas de reparação pecuniária.

Nessa perspectiva, podemos classificar os riscos sob duas vertentes. Os


riscos concretos e os riscos abstratos. Os primeiros são oriundos da sociedade
industrial e podem ser calculados e previstos pelo conhecimento vigente. Já os riscos
abstratos são indivisíveis, globais e ilimitados em razão do tempo e apresentam,
portanto, uma maior capacidade ofensiva. Todavia, são baseados em juízos de
probabilidade, na expectativa de danos ambientais futuros.
Cabe ao Direito a função de estabilizar as expectativas temporais. Para
Niklas Luhmann, o Direito só pode se entendido em relação com o futuro. Daí a
necessidade de símbolos. As normas jurídicas seriam expectativas simbolicamente
generalizadas e o Direito o instrumento para a geração da confiança. “O sistema do
Direito somente é capaz de manter as expectativas de comportamento estabilizadas
na medida em que para sua violação estejam determinadas certas conseqüências”8.

                                                            
7 LEITE, José Rubens Morato. AYALA, Patryck de Araújo. Direito Ambiental na Sociedade de
Risco. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 18.
8 JÚNIOR, Lúcio Antônio Chamon. Filosofia do Direito na Alta Modernidade. Rio de Janeiro:

Lúmen Juris, 2005. p. 102-103.


 
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Sendo o Direito, nessa concepção, um sistema reflexivo, que


normativamente permite esperar as expectativas, resta claro que a função deste
sistema é possibilitar segurança frente ao futuro.
Na seara ambiental, a segurança esperada pelo sistema jurídico não é
efetivamente alcançada. Existem atividades que, uma vez postas em prática, podem
provocar danos com efeitos ainda não conhecidos, demasiadamente extensos ou, até
mesmo, irreversíveis.
Nesta era de incerteza, resta imprescindível ao Direito afinar suas teorias da
responsabilidade, visando adequá-las à nova sociedade de riscos em que hoje nos
encontramos.

5 Princípio da precaução

Entendemos que o princípio da precaução, não obstante a relevância dos


outros princípios do Direito Ambiental, com os quais estabelecem uma relação
dialógica e não excludente, deve nortear toda compreensão acerca das conturbadas
questões impostas pelas novas tecnologias, especialmente no tocante àquelas cujos
riscos apontam para um futuro incerto e duvidoso.
O princípio da precaução atua ao lado do principio da prevenção, mas com
ele não se confunde.
O princípio da prevenção consiste no comportamento efetuado com o
intuito de afastar o risco ambiental. Antecipam-se medidas para evitar agressões ao
meio ambiente. Percebe-se, pois, que tal princípio atua diante de riscos ambientais
concretos, previsíveis pelo conhecimento vigente.

 
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Na análise de Édis Milaré, precaução é “substantivo do verbo precaver-se


(do Latim prae = antes e cavere = tomar cuidado), e sugere cuidados antecipados,
cautela para que uma atitude ou ação não venha a resultar em efeitos indesejáveis”.9
Segundo a Declaração do Rio de Janeiro Sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento de 1992:
Princípio 15: Para que o ambiente seja protegido, será aplicada
pelos Estados, de acordo com as suas capacidades, medidas
preventivas. Onde existam ameaças de riscos sérios ou
irreversíveis não será utilizada a falta de certeza científica total
como razão para o adiamento de medidas eficazes em termos de
custo para evitar a degradação ambiental.

O princípio da precaução exige, pois, que eliminemos os possíveis impactos


danosos ao meio ambiente antes de sua concretização ou de sua certeza científica.
Conforme Paulo de Bessa Antunes10:

É importante observar, evidentemente, que as verdades científicas


são historicamente determinadas e que o simples fato de que a
física newtoniana tenha sido ultrapassada pela física de Einstein,
não implica que Issac Newton estivesse errado. Implica que, ao
tempo de Newton, a verdade era aquela; posteriormente, com
novos estudos e investigações, chegou-se a conclusão de que havia
algo além daquilo que estava estabelecido. O princípio da cautela é
o princípio jurídico ambiental apto a lidar com situações na quais
o meio ambiente venha a sofrer impactos causados por novos
produtos e tecnologias que ainda não possuam acumulação
histórica de informações que assegurem, claramente, em relação
ao conhecimento de determinado tempo, quais as conseqüências
que poderão advir de sua liberação no ambiente.

                                                            
9MILARÉ, Édis. Princípios fundamentais do direito do ambiente. vol. 756. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1998. p. 60 a 62.
10 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental, 9 ed, Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2006.

p. 33.
 
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José Adércio Leite Sampaio sustenta que o princípio da precaução é


interpretado sob duas vertentes11.
A primeira, ecocêntrica ou biocêntrica, reconhece o valor intrínseco da
natureza e seria uma concepção forte do princípio da precaução, pois requer, para a
liberação de uma nova tecnologia, prova absolutamente segura de que não haverá
danos além dos que foram previstos.
A segunda, uma concepção fraca, segundo Sampaio, é baseada na relação
riscos, custos financeiros e benefícios, em uma lógica tipicamente antropocêntrica, na
qual a preocupação com o risco da atividade humana baseia-se na duradoura
qualidade de vida das gerações presentes e futuras.
Não obstante reconhecermos a diversidade de fundamentações ético-
jurídicas em relação ao princípio da precaução, acreditamos que ambas as vertentes
são passíveis de críticas.
Em relação à primeira, haja vista que tal princípio deve ser argüido não
visando a tentar evitar os riscos que são inerentes a qualquer atividade humana e
fonte do progresso tecnológico, mas sim de precaver a sociedade dos efeitos danosos
e, em muitos casos, ainda desconhecidos, das condutas dos agentes econômicos.
Devemos reconhecer que, se por um lado, a assunção de risco pode originar
grandes danos de difícil mensuração, por outro lado, a mesma ação é capaz de
produzir avanços tecnológicos e a superação, inclusive, dos mesmos riscos que se
visava evitar.
Dessa maneira, a aplicação de qualquer teoria do direito deve ser apreciada
em uma dimensão individual e em uma perspectiva coletiva, ambas permeadas por
valores ponderados por um juízo de proporcionalidade e razoabilidade.

                                                            
11 SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio José Fonseca. Princípios de
direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 60.  
 
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Não se pretende aqui, portanto, sob a desculpa de se evitarem riscos


inerentes às atividades humanas, barrar o desenvolvimento da tecnologia, da
economia ou das pesquisas científicas.
Entendemos necessária, sim, a melhor compreensão dos riscos envolvidos,
tanto para os agentes econômicos, quanto para sociedade como um todo.
Nesse teor, o próprio significado do princípio que, conforme já ponderado,
significa cuidados antecipados. Assim, há de se reconhecer a necessidade de
imposição de medidas preventivas objetivando evitar o dano ao meio ambiente, ainda
que haja falta de certeza científica total acerca da ocorrência de sua ocorrência, mas
não a exigência de liberação de uma nova tecnologia condicionada à prova,
absolutamente, segura.
Por outro lado, no tocante à segunda vertente, em respeito à alteridade e à
segurança, o princípio da precaução deve nortear a busca de soluções éticas e não de
soluções econômicas condicionadas tão somente a relações custos benefícios.
A proteção da qualidade e diversidade ecológica são elementos centrais de
uma nova proposta de democracia, organizada de modo a possibilitar o “melhor
acesso aos canais de participação, decisão e gestão dos problemas e impactos
oriundos da irresponsabilidade política no controle de processos econômicos de
exploração inconseqüente dos recursos naturais em escala planetária”12.
A gestão dos riscos deve ser feita em um contexto democrático de reflexão
e diálogo em todas as esferas sociais, cujas decisões sejam tomadas “sempre pelo
público e em público”, consubstanciando uma “democracia ecologicamente

                                                            
12 LEITE E AYALA. Transdiciplinariedade e a proteção jurídico-ambiental em sociedade de risco:
Direito, ciência e participação. In: LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros
(org.). Direito ambiental contemporâneo. Barueri: Manole, 2004. p. 100.
 
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sustentada”13 que melhor reflita um posicionamento pautado não somente na tutela


do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado solidária com o futuro, mas
também no combate às conseqüências perigosas do individualismo.
Não obstante reconhecermos a relevância do confronto entre as visões
antropocêntricas e ecocêntricas/biocêntricas, bem como as implicações quanto à
adoção de uma ou de outra perspectiva, urge destacar que ao se pretender a proteção
da vida dos seres humanos, protege-se, de uma forma ou de outra, a Natureza e vice-
versa, pois “o homem e a natureza são duas faces distintas, porém, inseparáveis, da
mesma e única realidade que constitui o planeta Terra”14.
Assim, mesmo uma leitura antropocêntrica, segundo a qual o meio
ambiente não deve ser preservado por ser um valor em si mesmo, mas para servir à
qualidade de vida do homem, levaria, em última análise, à conclusão de que é
indispensável a conservação dos recursos naturais e a proteção do meio ambiente
para propiciar uma vida digna e sadia aos homens.
Ambos os modelos ético-jurídicos, portanto, de um ou de outro modo,
reforçam a adoção do princípio da precaução como orientador das atividades cujos
riscos possam representar ameaça de significativos danos futuros ao meio ambiente,
tendo em vista o valor intrínseco deste ou a qualidade da vida humana.
Sueli Gandolfi Dallari sustenta que o princípio da precaução, resultante de
um fenômeno social consubstanciado nos riscos sociais, é a tradução da filosofia da
precaução, que foi desenvolvida partindo-se da prudência, revelando, no primeiro
momento, o paradigma da responsabilidade.

                                                            
13 LEITE E AYALA. Transdiciplinariedade e a proteção jurídico-ambiental em sociedade de risco:

Direito, ciência e participação. In: LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros
(org.). Direito ambiental contemporâneo. Barueri: Manole, 2004. p. 115/116.
14 MILARÉ, Édis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x ecocentrismo na ciência

jurídica. In: Revista de Direito Ambiental, ano 9, n. 36, out-dez/2004. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, p. 37.
 
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Este, aduz Dallari, foi substituído, na passagem do século XX, para o


paradigma da solidariedade. “A segurança, novo paradigma em fase de formação,
outorga às obrigações morais a forma ética e transforma o princípio da
responsabilidade em precaução.”15
De acordo com a autora, a responsabilidade era um excelente princípio
regulador, o qual perdia sua eficácia, contudo, em decorrência da dúvida e da
incerteza. Como conseqüência, o paradigma da responsabilidade foi suplantado pelo
da solidariedade, tendo como marco inicial dessa mudança as transformações no
campo dos acidentes de trabalho e das aposentadorias. Se de um lado o princípio da
responsabilidade atuaria diante de comportamentos imprudentes, de outro, o da
solidariedade asseguraria a indenização, mesmo em hipóteses nas quais apesar de
terem sido tomadas todas as precauções, os acidentes aconteciam.16
Para Dallari, é justamente a evolução cientifica, acarretando no aumento dos
riscos imprevisíveis, que está promovendo a suplantação do paradigma da
responsabilidade e a afirmação de um novo, o da segurança. Desse modo, o princípio
da precaução insurge diante de um contexto marcado por incertezas científicas e pelo
risco dos danos graves e irreversíveis. O princípio da precaução tem a pretensão de
“conter a inovação, reorientando o progresso científico ilimitado e revalorizando a
busca dos verdadeiros responsáveis pelos comportamentos imprudentes.”17
Entendemos, entretanto, que segurança/solidariedade e responsabilidade
não são excludentes. Ao contrário, se complementam na busca da proteção
ambiental presente e futura em um contexto de riscos.

                                                            
15 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito e ciência. In: Revista CEJ/Conselho de Justiça Federal,

Centro de Estudos Jurídicos. N.1 (1997). Brasília: CEJ, 1997. N. 16. março/2002. p. 66.
16 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito e ciência. In: Revista CEJ/Conselho de Justiça Federal,

Centro de Estudos Jurídicos. N.1 (1997). Brasília: CEJ, 1997. N. 16. março/2002, p. 66.
17 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito e ciência. In: Revista CEJ/Conselho de Justiça Federal,

Centro de Estudos Jurídicos. N.1 (1997). Brasília: CEJ, 1997. N. 16. março/2002, p. 66.
 
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6 Responsabilidade civil por dano ambiental

A socialização dos riscos e do sistema de seguridade social constitui uma


tendência da responsabilidade civil, sobretudo frente à irreparabilidade do dano em
decorrência do montante da indenização e da falta de patrimônio do agente infrator.
De fato, a co-responsabilidade confere uma maior legitimação ao caráter
solidário da responsabilidade civil por dano ao meio ambiente18.
Todavia, tais institutos se mostram insuficientes diante da iminência de
degradações ambientais caracterizadas pela magnitude e irreversibilidade.
O problema consiste no fato de que aguardar a ocorrência do dano para a
co-responsabilização dos sujeitos, em um contexto de sociedade de riscos, significa
aceitar um cenário de “Irresponsabilidade Organizada”, já que o liame com os
agentes responsáveis pelo dano se perderia temporal e espacialmente, sendo
praticamente impossível a responsabilização.
Isso porque a prática dos seguros objetiva a distribuição do risco entre
todos os segurados e conseqüente socialização da reparação do dano. Tratando-se de
riscos indivisíveis, globais e transtemporais, inviável a determinação dos segurados.
Ademais, a repartição dos custos oriundos da reparação do dano resultaria ineficaz,
haja vista que os danos ao meio ambiente podem ser irreversíveis.
Nesse sentido, o que se deve almejar não é a reparação do dano, mas a
adoção de medidas para que este não ocorra. Desse modo, a perspectiva mais
indicada na análise de riscos ambientais abstratos é a função preventiva da
responsabilidade civil orientada pelo princípio da precaução.

                                                            
18BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade civil por dano ao meio
ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 324.
 
 
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Inicialmente, necessário rediscutir a clássica acepção do instituto


“responsabilidade civil” de forma a adaptá-lo às exigências sociais, podendo-se
propor mais uma etapa no estágio evolutivo do conceito, o qual já foi alterado para
atender às demandas do passado.
A teoria da responsabilidade civil, originariamente, respalda-se na idéia de
que aquele que, por ação ou omissão, acarreta prejuízo a outrem, deve ressarcir o
dano decorrente.
Nos termos da teoria clássica da responsabilidade civil, o elemento
subjetivo, a culpa, caracteriza a conduta antijurídica e é o seu principal pressuposto.
Conforme se depreende do art. 186, do Código Civil, ainda é necessária a existência
de um dano, compreendido como lesão a um bem jurídico material ou imaterial,
patrimonial ou não, e a respectiva relação de causalidade visando a precisar se o dano
é ou não decorrente da conduta.
Contudo, o desenvolvimento do maquinismo, no contexto da Revolução
Industrial, trouxe consigo inúmeros acidentes de trabalho. Nesse contexto, “os
juristas perceberam que a teoria subjetiva não mais era suficiente para atender a essa
transformação social”19, haja vista que caso fosse indispensável a prova da culpa do
causador do dano, a vítima, muito provavelmente, não seria ressarcida.
A evolução da responsabilidade civil subjetiva para a objetiva não foi,
todavia, rápida nem fácil. Inicialmente, admitiu-se uma maior facilidade na prova da
culpa, a qual, em um segundo momento, passou a ser presumida. Posteriormente,
ampliram-se os casos de responsabilidade contratual para possibilitar a
responsabilidade objetiva, alicerçada na mesma estruturação dogmática da
responsabilidade subjetiva, diferenciando-se desta apenas pela ausência de um de
seus elementos, a culpa.
                                                            
19 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 6ª Ed., rev., aum., e atual.

São Paulo: Atlas, 2005. p. 144. 


 
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Na seara ambiental, a Lei 6.938/1981, ao preconizar no artigo 14, parágrafo


1º, a responsabilidade objetiva por dano ao meio ambiente, representou um
significativo avanço.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, considerada
como “Constituição verde”20, consagrou no art. 225, parágrafo 3º, a responsabilidade
objetiva face ao dano ambiental.
Ademais, o Código Civil de 2002, no art. 927, parágrafo único, estendeu a
responsabilização objetiva para todas as atividades de risco.
Assim como a responsabilidade civil objetiva é hoje consagrada,
acreditamos que a responsabilização por danos ambientais futuros é somente mais
um estágio deste importante instituto jurídico.
Isso porque se, em um dado momento histórico, a responsabilidade
subjetiva não foi suficiente para atender às transformações sociais, atualmente, a
responsabilidade objetiva, da mesma forma, é insuficiente, porquanto concebida com
base nos clássicos esquemas da responsabilização civil respaldados em relações
individuais e patrimoniais, ao passo que para a proteção ambiental são indispensáveis
mecanismos que considerem relações de caráter difuso21.
A necessidade do dano certo e atual e a prova da relação de causalidade,
como demanda a responsabilidade civil objetiva, enseja, em inúmeros casos, a
frustração da reparação das degradações ambientais e a conseqüente sensação de
“irresponsabilidade”22:

                                                            
20 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco : doutrina, jurisprudência,
glossário. 5. ed., reform., atual. e ampl. -. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 147.
21 BARROSO, Lucas Abreu. A obrigação de indenizar e a determinação da responsabilidade

civil por dano ambiental. Editora Forense: São Paulo, 2006. p. 04.
22 STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano

ambiental no Direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004.p.80 e 81.
 
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O direito clássico, centrado no indivíduo e na proteção da


propriedade privada, partir de regras rígidas e hierarquizadas, não
dá conta da crise ambiental e do problema da repartição destes
riscos civilizatórios, os quais produzem danos ambientais
irreversíveis e indivisíveis, tanto no que diz respeito à constatação
do dano como no que tange à demonstração da causalidade. Em
conseqüência da racionalidade científica que forjou o pensamento
jurídico contemporâneo, o direito trata o ambiente de forma
fragmentada, patrimonizalizada, e, no que se refere à
responsabilidade civil exige a certeza do dano e a prova cabal do
nexo de causalidade, desconsiderando que os riscos projetam-se
para o futuro, pelo que têm algo de incerto e irreal. Com isto, o
direito concorre para ocultar as origens e conseqüências da
degradação ambiental, em nada contribuindo para a interiorização
das externalidades no processo produtivo que o gerou.

Resta claro que a responsabilidade civil pelo dano ambiental, nos moldes
como aqui descrita, não se coaduna com uma sociedade pós-moderna e de riscos,
como é a sociedade atual. Em um sociedade produtora e distribuidora de riscos
globais, invisíveis, transtemporais e intergeracionais, a espera pela concretização do
dano ambiental é a verdadeira consagração da irresponsabilidade dos produtores
destes riscos.
É necessário reestruturar os clássicos conceitos da responsabilidade civil,
substituindo-se a ótica patrimonialista, centrada na indenização de um dano já
causado, pela ótica da precaução que visa evitar esse mesmo dano.

7 Insuficiência da Teoria do Risco Concreto para uma Sociedade de Riscos

A Teoria do Risco respalda a responsabilidade independente de culpa, desde


que haja violação de um dever jurídico, dever de segurança, originado pelo exercício
de uma atividade perigosa, exigindo o dano.

 
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Essa teoria é pautada no risco concreto, que pode ser calculado e previsto
pelo conhecimento vigente. Impossibilita, pois, a responsabilização dos sujeitos por
riscos abstratos, baseados em juízos de probabilidade acerca de danos ambientais
futuros. Tal teoria deve ser repensada, especialmente no tocante à responsabilidade
civil ambiental.
Inicialmente, em razão da gravidade da questão ambiental, que reside em
três aspectos. Em primeiro lugar, a impossibilidade de, uma vez concretizado o dano,
recuperar totalmente os ambientes degradados. Em segundo, o dano ambiental pode
ser muito extenso, envolvendo comunidades e até países diversos. O terceiro ponto
consiste no modo como o dano afetará as próximas gerações, ou seja, qualquer
solução para o problema ambiental exige uma solução pautada na responsabilidade
intergeracional.
Ademais, os Estados, após consagrarem o direito fundamental ao meio
ambiente equilibrado, utilizam de institutos sociais da sociedade industrial clássica.
Frente aos novos riscos, esses instrumentos não são satisfatórios. Pelo contrário,
podem ocultar as origens e as conseqüências desses riscos.
O problema é que, para o sistema judicial, o risco gerado só é relevante após
se concretizar em um dano.
Dessa forma, uma sociedade de risco que pauta sua responsabilidade por
instrumentos da sociedade industrial, tem por conseqüência a “Irresponsabilidade
Organizada”, conforme definido pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, ou seja, os
sistemas político e social tornam invisíveis e, até mesmo, legitimam as origens dos
perigos ecológicos.
A ineficácia da legislação ambiental é um dos aspectos da
“Irresponsabilidade Organizada”. As leis existentes não são capazes de regular os
riscos produzidos.

 
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Ante o exposto, entendemos ser necessária a utilização de uma teoria para a


imputação de responsabilidade para situações de risco.
Devemos superar a Teoria do Risco Concreto, que encontra sua incidência
condicionada à ocorrência de um dano atual. Partindo para uma nova teoria,
denominada por Délton Winter de Carvalho, em sua obra “Dano ambiental futuro: a
responsabilização civil pelo risco ambiental”23, de Teoria do Risco Abstrato, cuja
matriz sistêmica é composta por autores como Niklas Luhmann, Raffaele de Giorgi e
Ulrich Beck, em que os riscos produzidos pelos agentes sociais possam ser objeto de
responsabilização com base nas probabilidades de seu potencial lesivo.
No mesmo sentido, José Juan González Márques24:

En otro orden de ideas, es necesario pensar en la posibilidad de


abandonar al sistema de imputación como solución a los
problemas derivados del daño ambiental. Al respecto, se abre la
possibilidad de concebir un sistema de responsabilidad sin la
existencia del daño, basado fundamentalmente en la magnitud del
riesgo generado.

Dessa forma, pugnamos pela flexibilização de um dos elementos da


responsabilidade civil clássica: o dano. Impondo-se aos agentes, produtores de riscos
ambientais intoleráveis, obrigações preventivas, antes da concretização do mal
irreversível.
O dano, hoje com caráter punitivo e ressarcitório, seria, nessa concepção,
prescindível, bastando para a responsabilização a produção de riscos inaceitáveis. Em
outras palavras, a probabilidade real de ocorrência do dano.
A justificação para tanto se encontra no fato de que determinados interesses
devem ser tutelados antes mesmo da concretização de danos, haja vista que os riscos
                                                            
23 CARVALHO. Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco
ambiental. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2008.
24 CARVALHO. Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco

ambiental. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2008. p.146 


 
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ambientais intoleráveis adquirem a feição de ilícitos ambientais, face à sua alta


probabilidade de ocorrência futura e à dimensão do dano.
Assim, “somente aqueles riscos cuja equação entre a sua probabilidade de
ocorrência futura e a magnitude das suas conseqüências nocivas indicar a sua intolerabilidade
social devem ser considerados ilícitos25.
Cumpre ressaltar que o risco capaz de ensejar responsabilização não deve
ser o risco obscuro, sutil, vago.
Deve-se responsabilizar é justamente a produção de riscos inaceitáveis.
Aqueles cujos danos, se ocorrerem, são irreparáveis, incalculáveis ou de custos
generalizados pela sociedade. Nesse sentido, tais riscos não seriam improváveis, mas,
sim, passíveis de real ocorrência no mundo dos fatos.
Entendemos essa proposta como uma exigência da sociedade de riscos da
pós-modernidade. Um esforço de superação da “Irresponsabilidade Organizada”
para o paradigma da ação responsável, ciente dos riscos e incertezas que causa.
A responsabilidade pelo risco abstrato seria um processo desmembrado em
três etapas: a averiguação ou investigação científica do risco produzido, a ponderação
das incertezas, ganhos e prejuízos decorrentes da ação e a gestão do risco pela
imposição de medidas capazes de mitigar o risco produzido:

Em uma função preventiva, a responsabilidade civil passa a


demonstrar a sua importância para evitar danos ambientais, a
partir de uma postura pedagógica decorrente das
responsabilizações civis dos poluidores (preventividade indireta),
mas, sobretudo, a partir da sua incidência para situações de risco,
antes mesmo da ocorrência de danos ambientais (preventividade
direta). A partir da avaliação probabilística das conseqüências
futuras dos danos ambientais e de danos potenciais, a
responsabilização civil passa a exercer uma função prática de
construção do futuro e regulação social, através da imposição de
                                                            
25CARVALHO. Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco
ambiental. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2008.p. 155/157.  
 
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medidas preventivas (obrigações de fazer ou não fazer). A função


preventiva primordial da responsabilidade civil é atingia e
consubstanciada na responsabilidade civil pelo dano ambiental
futuro26.

A adoção desse novo paradigma permitirá a juridização de inúmeras


demandas sociais, hoje não atendidas, bem como objeto de tutela diversa da mera
indenização, por meio de medidas preventivas.

Conclusão

A necessidade da preservação ambiental é consenso no âmbito dos Estados


e da sociedade civil. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado às
presentes e às futuras gerações é uma realidade constitucional.
Entretanto, o Direito enfrenta dificuldades para juridicizar a produção e a
distribuição de riscos imprevisíveis e incontroláveis que podem acarretar em danos
ambientais futuros de grande magnitude e intolerabilidade para a sociedade.
Servindo-nos da responsabilidade objetiva, nos termos como concebida no
século XX, indispensável a prova de um dano atual e concreto. Todavia, não
podemos esperar a concretização do dano ao meio ambiente para posterior
imposição de medidas, seja pela impossibilidade de restauração dos biomas afetados,
seja pela extensão do dano, seja pelas conseqüências imprevisíveis deste.
Portanto, torna-se necessário a aplicação do princípio da precaução para
criar uma teoria da responsabilidade civil que possibilite evitar o dano ambiental
antes que este e seus efeitos nefastos se concretizem. Afinal, “não há Estado

                                                            
26CARVALHO. Délton Winter de. Dano ambiental futuro: a responsabilização civil pelo risco

ambiental. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2008.p. 78.  


 
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Democrático de Direito se não é oferecida a possibilidade de sancionar aquele que


ameace ou lese o meio ambiente”27.
Nesse sentido, imprescindível o avanço legislativo na busca de soluções
preventivas num contexto de riscos inaceitáveis ao meio ambiente.
A responsabilidade civil, enquanto importante instrumento jurídico para
tutela do meio ambiente, deve ser readequada a esse contexto, por meio do exercício
da sua função preventiva, possibilitando a imposição de obrigações positivas e
negativas frente a condutas de riscos capazes de ensejar danos em potencial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental, 9 ed,rev. e ampl. Rio de Janeiro:


Lúmen Juris, 2006.

AYALA, Patrick de Araújo. A proteção jurídica das futuras gerações na sociedade do


risco global; o direito ao futuro na ordem constitucional brasileira. In: FERREIRA,
Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (coords.). Estado de Direito
Ambiental: tendências: aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2004.

AYALA, Patryck de Araújo. O princípio da precaução e a proteção jurídica da fauna


na Constituição Brasileira. In: BENJAMIN, Antônio Herman; MILARÉ, Edis.

                                                            
27LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso. Evolução da responsabilidade civil
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A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE CIDADANIA PARA A


LEGITIMAÇÃO DA AÇÃO POPULAR

Márcio Marçal Lopes1

RESUMO

Mesmo após quase dois séculos de independência do Estado brasileiro,


promulgações de várias constituições e um sem número de atos normativos que
visaram integrar e regulamentar o texto constitucional, crê-se que o espaço ainda é
amplo para a discussão do real alcance da expressão “cidadania” para fins de
legitimação ativa da ação popular.
Famigerado instrumento de controle dos atos da administração pública, já
previsto em nosso ordenamento desde a Constituição do Império, está registrado na
Constituição vigente em seu artigo 5º, inciso LXXIII, cujo texto concede a
titularidade da ação a “qualquer cidadão”, nada mais.
Nesta esteira, a Lei Federal de 4.717 de 1965, dispôs em seu artigo 1º, §3º
que “a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral”; a
cerne da discussão encontra-se justamente aí!
Seria sociológica e juridicamente plausível confinar a definição de cidadania
aos limites do mero gozo dos direitos políticos? Estaria referida norma integralmente
recepcionada pelo ordenamento jurídico-constitucional inaugurado pela Constituição
Federal de 1988? Para a maioria da doutrina e jurisprudência, infelizmente, sim.
Contudo, faz-se imperiosa uma releitura da cidadania nos tempos atuais, o
que inclui uma necessária “atualização interpretativa” do inciso LVIII do artigo 5º da
Carta Magna, a fim de que a garantia nela estampada ganhe a abrangência exigida
pelas relações sócio-estatais contemporâneas, marcadamente democráticas,
participativas e, sobretudo, assecuratórias dos direitos sociais previstos
constitucionalmente, também como garantias fundamentais, circunstância
absolutamente diversa daquela encontrada, décadas ou séculos atrás.

                                                            
1Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Pós-graduado em Direito Processual
Civil pela Universidade Federal de Uberlândia. Pós –graduado em Direito Público pela Universidade
Cândido Mendes. Mestrando do Programa de Direito Público da Universidade Federal de Uberlândia. 
 
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Não obstante, é de relevo observar que o Constituição inseriu a cidadania


como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, além da própria ação
popular como verdadeira garantia fundamental, não podendo o legislador
infraconstitucional fazer rota inversa, estabelecendo a mera fruição de um direito
político, tratado em capítulo constitucional diverso, como requisito imprescindível da
legitimação ativa de tão nobre instrumento popular.

Palavras-Chave: Ação Popular. Legitimidade. Cidadania.


Keywords: Writ. Legitimacy. Citizenship.

DO NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO DA CIDADANIA

É tarefa árdua precisar o exato momento ou contexto em que surge a


cidadania na história da humanidade e da vida social.
De qualquer forma, é válido afirmar que a cidadania possui registro de
surgimento na Grécia Antiga, onde atrelou-se à mera idéia de participação nos
negócios políticos do Estado, por parte de alguns.
Na Grécia de Platão e Aristóteles, eram considerados cidadãos todos
aqueles que estivessem em condições de opinar sobre os rumos da sociedade. Entre
tais condições, estava a de que fosse um homem totalmente livre, isto é, não tivesse a
necessidade de trabalhar para sobreviver, uma vez que o envolvimento nos negócios
públicos exigia dedicação integral. Portanto, era pequeno o número de cidadãos, que
excluíam além dos homens ocupados (comerciantes, artesãos), as mulheres, os
escravos e os estrangeiros. Praticamente apenas os proprietários de terras eram livres
para ter o direito de decidir sobre o governo. A cidadania grega era compreendida
apenas por direitos políticos identificados com a participação nas decisões sobre a
coletividade.

 
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Quintão Soares explica que, em consonância com a assertiva de que


cidadania é um mecanismo de representação política que permite relacionamento
pessoal entre governantes e governados e que esse paradigma assentava-se nas
instituições greco-romanas e sua complexa transição para a Idade Média, demonstra
que os modernos conceitos de ideais políticos, como os de justiça, liberdade, governo
constitucional e respeito às leis, surgiram de conceitos de pensadores helênicos sobre
as instituições da Cidade-Estado.
Em Roma, também se encontra, patente, a idéia de cidadania como
capacidade para exercer direitos políticos e civis e a distinção entre os que possuíam
essa qualidade e os que não a possuíam. A cidadania romana era atribuída somente
aos homens livres, mas nem todos os homens livres eram considerados cidadãos.
Na lição de Mário Quintão, vê-se que o Direito Romano, apesar de
proteger as liberdades individuais e reconhecer a autonomia da família com o pátrio
poder, não assegurava a prefeito igualdade entre os homens, admitindo a escravidão e
discriminando os despossuídos. Ao lado da desigualdade extrema entre homens livres
e escravos, o Direito Romano admitia a desigualdade entre os própros indivíduos
livres institucionalizando a exclusão social.
O período medieval é marcado pela sociedade caracteristicamente
estamental, com rígida hierarquia de classes sociais: clero, nobreza e servos (também
os vilões e os homens livres).
A Igreja cristã passou a constituir-se na instituição básica do processo de
transição para o tempo medieval. A doutrina cristã, ao alegar a liberdade e igualdade
de todos os homens e a unidade familiar, provocou transformações radicais nas
concepções de direito e de estado. O desmoronamento das instituições políticas
romanas e o fortalecimento do cristianismo ensejaram uma reestruturação social que
foi dar-se no feudalismo, cujas peculiaridades diferiam consoante seus aspectos
regionais.
 
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Na época medieval, em razão dessa índole hierarquizada das estruturas em


classes sociais, dilui-se o princípio da cidadania. O relacionamento entre senhores e
vassalos dificultava bastante a definição desse conceito. O homem medieval, ou era
vassalo, ou servo, ou suserano; jamais foi cidadão. Os princípios de cidadania e de
nacionalidade dos gregos e romanos estariam “suspensos” e seriam retomados com a
formação dos Estados modernos, a partir de meados do século XVII.
Os primeiros sinais de desmoronamento do sistema que caracterizou o
medievo foram a privatização do poder. ARENDT (2001) afirma que a queda da
autoridade política foi precedida pela perda da tradição e pelo enfraquecimento dos
credos religiosos institucionalizados; foi o declínio da autoridade religiosa e
tradicional que talvez tenha solapado a autoridade política, e certamente provocado a
sua ruína.
No final da Idade Moderna, observa-se um sério questionamento das
distorções e privilégios que a nobreza e clero insistiam em manter sobre o povo. É aí
que começam a despontar figuras que marcariam a História da cidadania, como
Rousseau, Montesquieu, Diderot, Voltaire e outros. Esses pensadores passam a
defender um governo democrático, com ampla participação popular e fim de
privilégios de classe e ideais de liberdade e igualdade como direitos fundamentais do
homem e tripartição de poder. Essas idéias dão o suporte definitivo para a
estruturação do Estado Moderno. Lembrando que alguns desses ideais já teriam sido
objeto de discussão quando do início do constitucionalismo inglês em 1215, ocasião
em que o Rei João Sem Terra assinou, forçosamente, a Magna Carta.
As modernas nações, governos e instituições nacionais surgiram a partir de
monarquias nacionais formadas pela centralização ocorrida no desenrolar da Idade
Moderna. Desde o momento em que o Estado moderno começa a se organizar,
surge a preocupação de definir quais são os membros deste Estado, e, dessa forma, a

 
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idéia atual de nacionalidade e de cidadania só será realmente fixada a partir da Idade


Contemporânea.
Em verdade, a cidadania é um valor que se encontra em permanente
construção. A cidadania constrói-se e conquista-se. É objetivo perseguido por
aqueles que anseiam por liberdade, mais direitos, melhores garantias individuais e
coletivas frente ao poder e a arrogância do Estado. A sociedade ocidental nos últimos
séculos andou a passos largos no sentido das conquistas de direitos de que hoje as
gerações do presente desfrutam. O exercício da cidadania plena pressupõe ter direitos
civis, políticos e sociais e estes, se já presentes, são fruto de um longo processo
histórico que demandou lágrimas, sangue e sonhos daqueles que ficaram pelo
caminho, mas não tombados, e sim, conhecidos ou anônimos no tempo, vivos no
presente de cada cidadão do mundo, através do seu “ir e vir”, do seu livre arbítrio
e de todas as conquistas que, embora incipientes, abrem caminhos para se chegar a
uma humanidade mais decente, livre e justa a cada dia.

A CIDADANIA NO BRASIL

A história da cidadania no Brasil está diretamente ligada ao estudo histórico


da evolução constitucional do País. A Constituição imperial de 1824 e a primeira
Constituição republicana de 1891 consagravam a expressão cidadania. Mas, a partir de
1930, ocorre uma nítida distinção nos conceitos de cidadania, nacionalidade e
naturalidade. Desde então, nacionalidade refere-se à qualidade de quem é membro do
Estado brasileiro, e o termo cidadania tem sido empregado para definir a condição
daqueles que, como nacionais, exercem direitos políticos.
A história da cidadania no Brasil é praticamente inseparável da história das
lutas pelos direitos fundamentais da pessoa: lutas marcadas por massacres, violência,
 
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exclusão e outras variáveis que caracterizam o Brasil desde os tempos da colonização.


Há um longo caminho ainda a percorrer: a questão indígena, a questão agrária, posse
e uso da terra, concentração da renda nacional, desigualdades e exclusão social,
desemprego, miséria, analfabetismo, etc.
Entretanto, sobre a cidadania propriamente dita, dir-se-ia que esta ainda
engatinha, é incipiente. Passos importantes já foram dados. A segunda metade do
século XX foi marcada por avanços sócio-políticos importantes: o processo de
transição democrática, a volta de eleições diretas, a promulgação da Constituição de
1988 “batizada” pelo então presidente da constituinte Ulysses Guimarães de a
“Constituição Cidadã”. Mas há muito que ser feito. E não se pode esperar que
ninguém o faça senão os próprios brasileiros. A começar pela correção da visão
míope e desvirtuada que se tem em ralação a conceitos, valores, concepções. Deixar
de ser uma nação nanica de consciência, uma sociedade artificializada nos seus gostos
e preferências, onde o que vale não vale a pena, ou a mediocridade transgride em seu
conteúdo pelo arrastão dos acéfalos.
Para que haja democracia é necessário que governados queiram escolher
seus governantes, queiram participar da vida democrática, comprometendo-se com
os seus eleitos, apontando o que aprova e o que não aprova das suas ações. Assim,
vão sentir-se cidadãos. Isto supõe uma consciência de pertencimento à vida política
do país.
P exercício do voto é um ato de cidadania. Mas, escolher um governante
não basta. Este precisa de sustentação para o exercício do poder que requer múltiplas
decisões. Agradáveis ou não, desde que necessárias, estas têm de ser levadas a cabo e
com a cumplicidade dos cidadãos.
Ser cidadão é ter consciência de que é sujeito de direitos. Direitos à vida, à
liberdade, à propriedade, à igualdade de direitos, enfim, direitos civis, políticos e
sociais. Mas este é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O
 
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cidadão tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de
um grande e complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, para cujo
bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição. Somente assim se
chega ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem
comum.

A AÇÃO POPULAR NO DIREITO BRASILEIRO

A ação popular no direito romano, como instrumento de defesa da coisa


pública, cuja legitimidade pertencia a qualquer um, já era consagrada entre nós no
Regime das Ordenações, em que nada deveria obstar a conduta do membro do povo
que ansiasse demandar contra a usurpação da coisa pública ou embargar obra nociva
ao espaço público. Veja-se que o instrumento romano, ainda que não
especificamente regulamentado, poderia ser utilizado, na hipótese, restritamente para
a defesa de logradouros públicos e das coisas de domínio e uso comum do povo.
No período imperial, a ação popular foi anotada em pouco textos legais,
merecendo destaque o artigo 157 da Constituição do Império, cujo teor registrou
pela primeira vez a expressão “ação popular”, a ser proposta contra ato de suborno,
peculato e concussão praticado por representante do Estado e em seu prejuízo.
No república, sem previsão na Constituição de 1891, a ação popular ficou
confinada às rasas previsões da legislação especial anteriormente vigente, sendo
praticamente sepultada com a nova ordem civilística introduzida a partir do Código
Civil de 1916, o qual, sem pestanejos, vinculou o direito de ação ao direito material
em seu artigo 76, ao prever que, para propor ou contestar uma ação, era necessário
ter legítimo interesse econômico, ou moral, norma reproduzida pelo artigo 2º do
Código de Processo Civil de 1939 e pelo artigo 3º da lei processual vigente. Da lei,
 
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seguiu a jurisprudência nela contextualizada, admitindo-se tão somente aquelas ações


umbilicalmente ligadas ao interesse do respectivo autor.
Tendo-se em mente a regra de substituição processual que permeia a
legitimidade ativa da ação popular, dado o interesse de toda uma coletividade, aquela
jurisprudência fez-se extremamente prejudicial para o instituto.
Apesar disso, a ação popular começou a impor-se na legislação brasileira,
ainda no regime do Código Civil de 1916. Em matéria eleitoral, era geralmente
legítima a reclamação de qualquer do povo, em forma de representação.
A Carta de 1934 introduziu o instituto em nosso ordenamento jurídico em
seu artigo 113, inciso 38, o que qual prescreve que “qualquer cidadão será parte
legítima para pleitear a declaração de nulidade ou a anulação dos atos lesivos do
patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios. A duração efêmera da
Constituição de 1934 não propiciou o uso do instituto. Houve, contudo, tentativa de
sua regulamentação ainda na vigência daquela constituição, sem êxito naquele
período constitucional.
Conforme leciona SILVA (2007), pouco mais ampliada, a ação popular
ressurgiu na Constituição de 1946, após ter sido suprimida pela Carta de 1937. Nesta
não havia lugar para um instituto que reentrou na ordem jurídica nacional como
manifestação do espírito democrático e como garantia do cidadão.
Na Constituição de 1946, incluíram-se no âmbito da ação popular os atos
lesivos ao patrimônio das autarquias e das sociedades de economia mista; a Carta de
1967 manteve o instituto, apenas não mais especificando as entidades cujo
patrimônio mereciam proteção pela ação popular; não obstante, a Lei de Ação
Popular de 1965 manteve a enumeração de tais entidades. Em tempo, registre-se que
a Carta de 1969, promulgada como Emenda n. 1 à de 1967, manteve os mesmos
termos da ação popular.

 
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A atual fonte constitucional do instituto é o inciso LXXVIII do artigo 5º da


Constituição Federal de 1988, o qual ampliou o objeto da ação popular para amparar
novos interesses, conforme se verá.
A INCOMPATIBILIDADE DA RESTRIÇÃO LEGISLATIVA DA AÇÃO
POPULAR COM O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL VIGENTE

O atual texto da Constituição prevê, em seu artigo 5º, LXXVIII que


“qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato
lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o
autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.
A previsão albergada pelo texto constitucional parece não estar em perfeita
consonância com a legislação de 1965, ainda vigente, a qual, como anunciado
introdutoriamente, restringe a prova da cidadania à apresentação de título eleitoral ou
documento que o valha (Art.1º, §3º da Lei 4.717/1965).
A despeito da evidente dificuldade de se definir pontualmente o conceito
de cidadão, é certo que a Constituição Federal de 1988 não conferiu interpretação em
sentido estrito ao termo, de modo que o entendimento inverso padece de
inconstitucionalidade, justamente por restringir o efetivo acesso aos direito e
garantias sociais asseguradas no texto constitucional.
Aliás, não poderia ser tarefa constitucional a definição do termo cidadão, na
medida em que o mesmo historicamente sempre sofreu e sofrerá relevantes
alterações, de acordo com a própria evolução das relações havidas entre a pessoa e o
Estado.
Veja-se que a palavra cidadão inserida no rol dos direitos individuais, como
está na ação popular, dentro do artigo 5º da Constituição, não é apta a transferir este
direito para o rol dos direitos políticos, porque não o é, são capítulo distintos,
 
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dispostos ordenadamente dentre os direitos e garantias fundamentais , porquanto os


direitos e deveres inseridos no artigo 5º são garantidos de forma igualitária, sem
distinção, a todos os brasileiros e estrangeiros.
Detentores desses direitos e deveres são, também, destinatários dos
serviços
prestados pelo Estado, nessa condição não se pode oferecer apenas o rigor da lei
(obrigação de pagar os tributos, por exemplo), para em contrapartida negar-lhes as
benesses, ou no mínimo, o direito de fiscalizar a aplicação dos tributos pagos por
eles.
Corroborando o entendimento, DECOMAIN (2008) assinalou para uma concepção
mais dilargada de cidadão, para considerar assim, todo aquele que, à vista do
Estado, possa ser considerado titular de direitos sociais. E salientou:

Na perspectiva de semelhante entendimento, resultante da


ampliação do próprio conceito de cidadania, em face do moderno
Estado Social de Direito (que por pressuposto, tem a incumbência
de prover certas necessidades do indivíduo), devem ser
considerados cidadãos não apenas aqueles detentores de direitos
políticos, na perspectiva mais tradicional de cidadania, que se
acabou de expor, mas sim todas as pessoas que possam ser
titulares de direitos sociais em face do Estado brasileiro.

Essas afirmações se consubstanciam, ainda mais, na premissa de que todo


poder emana do povo, sendo assim, deve representar todas as pessoas que compõem a
nação, não apenas os eleitores, mas todos que são titulares de direitos e obrigações
perante o Estado, firmando a origem das interpretações no próprio povo, por
conseguinte, atendendo as exigências do bem comum.
Ademais, não se pode olvidar que os detentores dos direitos sociais (diga-
se, não apenas eleitores), possuem legítimo interesse em preservar o patrimônio

 
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público, a moralidade administrativa, o meio ambiente, e o patrimônio histórico


cultural, objetos da ação popular, isso porque, são os destinatários dos serviços
públicos, oferecidos pelo Estado, e, também, nas palavras de DECOMAIN (2008),
interesse justificado como a mais eficaz garantia de que os serviços estatais sejam
postos com presteza.
Essa é uma defesa válida do entendimento de que a legislação ordinária
restringe o que a Constituição Federal propositadamente deixou em aberto.
Além disso, se nos valermos de consagradas técnicas interpretativas, em
relação ao próprio texto constitucional, outra não poderá ser a solução. Veja-se:
A interpretação gramatical é o momento inicial do processo interpretativo.
O texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o
intérprete. Na interpretação constitucional, por vezes, não é necessário ir além da
letra e do sentido evidente do texto, como se passa, por exemplo, em relação aos
dispositivos acerca da composição e funcionamento de órgãos estatais. De regra,
todavia, correrá risco o intérprete que estancar sua linha de raciocínio na
interpretação literal. Embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua
letra, cumpre evitar o excesso de apego ao texto, que pode conduzir à injustiça, à
fraude e até ao ridículo.
Por outro lado, também na crítica visão de BARROSO (1997), a
interpretação histórica busca o sentido da norma através dos precedentes legislativos,
revelando a vontade do legislador não só na ocasião da elaboração da norma, mas
também a especulação sobre qual seria sua vontade se ele estivesse ciente dos fatos
contemporâneos.
Veja-se que, não apenas pela análise do conteúdo da norma, mas por todo
o arcabouço de valores, reflexos e ideologias que a mesma carrega, a interpretação
histórica mostra-se como técnica bastante mais eficaz de revelação da norma
constitucional do que aquela apontada anteriormente.
 
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Nesta mesma vertente, navega a denominada “interpretação sistemática”,


cujo escopo permite ao exegeta a verificação da norma de maneira não isolada, mas
umbilicalmente ligada ao ordenamento jurídico do qual faz parte, chegando-se a uma
conclusão do ponto de vista estrutural.
Veja-se que a interpretação sistemática é fruto da idéia de ordenamento
jurídico, a qual afasta a visão do direito como um mero amontoado de normas, mas
como um conjunto lógico e sistêmico de normas e princípios, dotado de uma série de
institutos capazes de viabilizar a relação e convivência entre as muitas normas.
Norberto Bobbio aponta três possíveis significados para sistema jurídico:
um primeiro significado baseado no sistema dedutivo, onde todas as normas do
ordenamento derivam de uns princípios gerais como postulados da ciência, ou como
postulados presentes no direito natural.
Um segundo significado reside na ciência do direito moderno; aqui, o
termo “ciência” é usado para indicar um ordenamento da matéria, realizado através
do processo indutivo, partindo-se das simples normas com a finalidade de construir
conceitos sempre mais gerais; também aqui não se fala em dedução, mas em
classificação, reunindo-se os dados fornecidos pela experiência e, com base nas
semelhanças, formando-se conceitos sempre mais gerais até alcançar aqueles
conceitos “generalíssimos” que permitam unificar todo o material dado. Tem-se
plena consciência do significado de sistema como ordenamento desde baixo, próprio
da “jurisprudência sistemática”.
Para um terceiro e interessante significado, o ordenamento é sistema
quando não podem coexistir nele normas incompatíveis, o que remete à validade do
princípio que exclui a incompatibilidade de normas; havendo incompatibilidade, uma
das normas ou ambas devem ser ilimitadas; admite-se, então, que as normas
relacionam-se entre si, o que afasta a incompatibilidade entre as mesmas.

 
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Tratando-se de hermenêutica jurídica, cumpre ainda anotar a utilização da


interpretação teleológica, de relevo tão grande quanto a interpretação sistemática.
Chama-se teleológico o método interpretativo que procura revelar o fim da norma, o
valor ou bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito
(BARROSO, 1996).
Principalmente pelo método de interpretação teleológica e sistemática,
torna-se ainda mais evidente o descompasso entre a legislação que regulamenta a
ação popular e a própria Constituição Federal.
Historicamente, lembramos que a Lei da Ação Popular foi cunhada num
contexto absolutamente avesso ao atual, no qual prevalecia o arbítrio do Estado, a
relativização da democracia e, como conseqüência, a fragilização dos instrumentos de
participação popular, ao que também se deve a redução da legitimação ativa da ação
popular ora apontada; redução que não mais se justifica, ante a nova ordem do
Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, não haveria como manter em nosso ordenamento jurídico a
restrição presente na Lei de Ação Popular sob comento, sob pena de estar-se
infringindo todo o sistema constitucional, bem como indo de embate aos anseios do
Poder Constituinte quando da elaboração do texto magno. Outra não pode ser a
conclusão.
Infelizmente, esta não tem sido a orientação da atual jurisprudência
brasileira, a qual não tem atentado para a presente análise e, de modo seco e menos
avisado, tem exigido como exclusivo (mas imprescindível) requisito para a
propositura da ação sob comente, a apresentação de título de eleitor como prova da
cidadania.
Veja-se que, a prevalecer este entendimento, estariam afastados da proteção
ofertada pela viabilidade da ação popular legítimos detentores de direitos civis e
sociais como crianças, condenados criminalmente, estrangeiros, dentre outros.
 
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A constatação torna o tema bastante relevante, com debate a ser fomentado


no meio jurídico e social.
Uma possível solução, direta e factível, seria a realização de controle difuso
de constitucionalidade por parte dos órgãos do Poder Judiciário que eventualmente
estejam em contato com a discussão ou, ainda, a Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental junto ao Supremo Tribunal Federal para a declaração de
inconstitucionalidade do §3º do Art. 1º da Lei de Ação Popular, datada de período
anterior à atual Constituição, com efeitos vinculantes e erga omnes.

CONCLUSÃO

Do exposto, em breves considerações, conclui-se a necessária


reinterpretação do que seja cidadão, não mais possível sustentar a incoerência do
entendimento dominante (sustentado pela doutrina e jurisprudência) que guarda
resquícios veementes de um Estado Executivo fortíssimo e arbitrário, em que
predominava o cerceamento da liberdade, dos direitos, que não se poderia qualificar
como estado de direito.
Necessário correlacionar a concepção de cidadão ao que hoje é a República
Federativa do Brasil: Estado Social de Direito, estabelecido na Constituição de 1988.
Por conseguinte, revitalizar o instrumento de grande valia, que é a ação popular.
Tal intento só será alcançado, se a comunidade jurídica se propuser a
romper os paradigmas, questionando e reescrevendo os conceitos para adaptá-los à
realidade brasileira, o que culminará em aceitar que cidadão não se limita àquele no
exercício dos direitos políticos, mas todos aqueles destinatários dos direitos sociais,
individuais, alcançados pelos fundamentos da dignidade da pessoa humana e da

 
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cidadania, que, sendo o caso, precisam estar jungidos de meios para cobrar do Estado
a efetividade de seus direitos.
Por fim o que se pretende enfatizar é que, exerce a cidadania quem detém a
qualidade de cidadão, e este não perde essa qualidade pelo simples fato de não deter a
capacidade de votar e/ou ser votado, ao contrário, essa capacidade se dirige ao
exercício dos direitos políticos, se revelando como um atributo outorgado aos
cidadãos, não servindo para limitar a usufruição da cidadania.

REFERÊNCIAS

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de Direito Público. São Paulo. N. 3, p. 73-84, 1993.

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fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva,
1996.

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________________. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do


Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

________________. Decreto-Lei 4.657 de 04 de setembro de 1942. Lei de


Introdução ao Código Civil.

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DECOMAIN, Pedro Roberto. Ação Popular, o conceito tradicional de cidadão e


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FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Ação Civil Pública. Ação Popular. A defesa dos
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MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 23 Ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular: Proteção ao erário, do


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MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo


Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. Ed. Ver. e Atual. São Paulo:
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18ª Ed. São Paulo: Editora Atlas,
2005.

PACHECO, José da Silva. Mandado de Segurança e outras ações constitucionais


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PÉRES, Quitéria Tamanine Vieira. Elementos para a construção de um conceito de


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________________. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. Ed. São


Paulo: Malheiros Editores. 2006.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. 1.ed. Belo Horizonte: Del Rey,
2001. 230p.

VALE, André Rufino do, MENDES, Gilmar Ferreira. A Influência do


Pensamento de Peter Häberle no STF. Disponível em
<http://www.conjur.com.br/2009-abr-10/pensamento-peter-haberle-jurisprudencia-
supremo-tribunal-federal> Acesso em 30 abr. 2010.

 
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A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DE 1988:


AS LUZES DA RIBALTA PROJETADA SOBRE O CIDADÃO

Humberto Magno Peixoto Gonçalves1

I - Momento histórico da constituinte.

A constituição da república federativa do Brasil de 1988 inova colocando o


cidadão em uma posição de destaque. Deve-se sempre ter em mente que uma nova
constituição além de provocar a ruptura da ordem jurídica posta, alterando o
paradigma, vai além servindo como marco orientador necessário para a criação de
novas leis.
Não podemos dissociar o poder constituinte originário e o seu momento
histórico-social, nesse contexto, percebe-se uma maior participação popular na
criação de seu texto. Além disso, com a permissão de criação de novos partidos
políticos no governo de João Batista Figueiredo, percebe-se o surgimento na arena
política de novos atores-políticos.
Esses atores representavam ao seu modo um determinado segmento social,
apenas a título ilustrativo, cita-se o PTB – Partido Trabalhista Brasileiro – que
representava naquele momento histórico, uma tentativa de resgate do trabalhismo
Varguista. Havia ainda a ARENA – aliança renovadora nacional que representava
setores mais conservadoras da sociedade. Podemos citar ainda o Partido Democrata
Social – PDS, o Partido Democrático Trabalhista – PDT e o Partido dos

                                                            
1 Professor Substituto de direito constitucional I e mestrando em hermenêutica constitucional.
 
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Trabalhadores – PT. A composição legendária do congresso nacional, pois diversos


partidos políticos conseguiram eleger deputados federais.
“O processo constituinte terá como ato inaugural a liberação da energia
transformadora apta a mudar as bases políticas e jurídicas de determinada situação
estabelecida de poder. Como assinalado anteriormente, esse evento deflagrador
poderá ser uma revolução, a criação de um novo Estado, a derrota na guerra ou uma
transição política pacífica.O procedimento constituinte normalmente percorrerá
etapas como a convocação da assembléia ou convenção, a escolha dos delegados, os
trabalhos da elaboração , a deliberação final e a entrada em vigor do texto aprovado”.
(Barroso-2009).
A constituinte que culminou na constituição de 1988, é diferenciada em
relação as demais constituintes por diversos aspectos, primeiro por se encontrar no
ápice de um processo de transição democrático, e também pela existência novos
atores políticos no congresso nacional, que trazem novas ideologias para o plenário .
Existia também toda uma comoção nacional pela morte do presidente
Tancredo de Almeida Neves, aliado aos novos de comunicação de massa como por
exemplo a televisão juntamente com os meios tradicionais de cobertura rádios e
jornais.
A constituinte teve uma cobertura ampla, e grupos sociais puderam e
fizeram pressão para que fossem protegidos seus interesses. Nesse caldo jurídico-
cultural se deu o desenrolar do nosso processo constituinte.

II – AS LUZES DA RIBALTAM RECAEM SOBRE O CIDADÃO.

A constituição de 1988 traz em diversos artigos e incisos previsão da


participação dos cidadãos na administração. Essa participação pode se dar ao iniciar
 
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o processo legislativo, por meio da propositura de ações populares, e da sua oitiva


nos processos de referendos e plebiscitos.
A meu ver, contudo, a participação cidadã por meio dos instrumentos
constitucionalmente postas e de somenor importância, haja visto a diminuta
utilização de tais instrumentos democráticos por parte dos poderes constituídos.
O presente trabalho não tem por escopo analisar os instrumentos
constitucionais já postos no interesse de ouvir o cidadão. Na verdade o escopo desse
trabalho e mostrar a influência necessária e imprescindível que irradiou de nossa
constituição para todo o ordenamento jurídico e como o cidadão ganhou relevo na
atuação dos órgãos estatais.
O processo constituinte originário seria ilimitado na concepção de alguns
autores tais como Manuel Gonçalves Ferreira Filho2. Na constituição desestrutura e
estrutura toda administração pública. Novas políticas e órgãos públicos surgem,
sendo uma característica comum nesses novos órgãos a participação do cidadão
(usuário desta política especifica), sendo muitas vezes lhe atribuído o direito de voto
– ou seja há ou deveria existir uma participação efetiva do cidadão.
O advento da CRFB/88 favoreceu a criação de órgãos administrativos
voltados a implementação de políticas públicas destinadas a execução de serviços –
uma característica comum é a criação de conselhos voltados a fiscalização e a

                                                            
2 Ferreira Filho, Manuel Gonçalves – O poder que edita a Constituição nova substituído Constituição

anterior ou dando organização a novo Estado – este Poder Constituinte é usualmente qualificado de
originário. Isto sublinha que ele dá origem à organização jurídica fundamental.
Esta qualificação serve também para distinguir esse Poder Constituinte, que é o único a realmente a
fazer jus ao nome, de Poderes Constituintes instituídos ou derivados. Estes impropriamente são
chamados de constituintes. Eles são constituídos pelo Poder Constituinte originário e dele retiram a
força que têm. A designação Poder constituinte só lhes vem do fato de que, nos termos da obra do
Poder originário, podem modificá-lo, completá-la (poder de revisão) ou institucionalizar os Estados
federados que dela provenham (poder constituinte dos Estados-membros). CURSO DE DIREITO
CONSTTUCIONAL – Ferreira Filho, Manuel Gonçalves – 35º ed – São Paulo: Saraiva, 2009.
 
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execução desses serviços, sendo assegurado nesses órgãos – assentos aos cidadãos
com direito de voto e veto podendo executar as políticas públicas.
Podemos citar textualmente a previsão de conselhos destinados a execução
de serviços públicos na administração pública nos serviços atinentes a saúde,
educação e gestão dos recursos ambientais.
Uma característica comum é o fato do Estado não mais fiscalizar de
maneira autônoma e solitária a destinação dos recursos públicos. O próprio Estado
descentraliza parte das suas atribuições de fiscalização, repassando competências
administrativas de fiscalização para os órgãos de gerenciamento dessas políticas.
Abaixo retiramos alguns conselhos constituídos com o claro fulcro de fiscalizar a
atuação. Observe que a composição do conselho e ampla e sua função de fiscalização
é expressa.

Lei Federal 11.494/07

Art. 24. O acompanhamento e o controle social sobre a


distribuição, a transferência e a aplicação dos recursos dos Fundos
serão exercidos, junto aos respectivos governos, no âmbito da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por
conselhos instituídos especificamente para esse fim.
§ 1o Os conselhos serão criados por legislação específica, editada
no pertinente âmbito governamental, observados os seguintes
critérios de composição:
I - em âmbito federal, por no mínimo 14 (quatorze) membros,
sendo:
a) até 4 (quatro) representantes do Ministério da Educação;
B)1 (um) representante do Ministério da Fazenda;
c) 1 (um) representante do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão;
d) 1 (um) representante do Conselho Nacional de Educação;
e) 1 (um) representante do Conselho Nacional de Secretários de
Estado da Educação - CONSED;

 
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f) 1 (um) representante da Confederação Nacional dos


Trabalhadores em Educação - CNTE;
g) 1 (um) representante da União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação - UNDIME;
h) 2 (dois) representantes dos pais de alunos da educação básica
pública;
i) 2 (dois) representantes dos estudantes da educação básica
pública, um dos quais indicado pela União Brasileira de
Estudantes Secundaristas - UBES;
II - em âmbito estadual, por no mínimo 12 (doze) membros,
sendo:
a) 3 (três) representantes do Poder Executivo estadual, dos quais
pelo menos 1 (um) do órgão estadual responsável pela educação
básica;
b) 2 (dois) representantes dos Poderes Executivos Municipais;
c) 1 (um) representante do Conselho Estadual de Educação;
d) 1 (um) representante da seccional da União Nacional dos
Dirigentes Municipais de Educação - UNDIME;
e) 1 (um) representante da seccional da Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Educação - CNTE;
f) 2 (dois) representantes dos pais de alunos da educação básica
pública;
g) 2 (dois) representantes dos estudantes da educação básica
pública, 1 (um) dos quais indicado pela entidade estadual de
estudantes secundaristas;
Art. 25. Os registros contábeis e os demonstrativos gerenciais
mensais, atualizados, relativos aos recursos repassados e recebidos
à conta dos Fundos assim como os referentes às despesas
realizadas ficarão permanentemente à disposição dos conselhos
responsáveis, bem como dos órgãos federais, estaduais e
municipais de controle interno e externo, e ser-lhes-á dada ampla
publicidade, inclusive por meio eletrônico.
Parágrafo único. Os conselhos referidos nos incisos II, III e IV
do § 1o do art. 24 desta Lei poderão, sempre que julgarem
conveniente:
I - apresentar ao Poder Legislativo local e aos órgãos de controle
interno e externo manifestação formal acerca dos registros
contábeis e dos demonstrativos gerenciais do Fundo;
 
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Nesse diapasão o Estado Atribui competências a esses órgãos para que eles
fiscalizem a origem e destinação dos recursos – No presente caso estaríamos diante
de uma hipótese de controle interno da administração, conforme expressa definição
legal, função esta exercida por um órgão colegiado que permite entre outras coisas,
que os cidadãos tomem conhecimento do funcionamento da máquina administrativa
e permita a consecução da prestação dos serviços.
Além da atuação nos órgãos colegiados criados para a execução dos serviços
públicos, o cidadão enquanto cidadão pode exigir o direito de ver a prestação de
contas do gestor público e analisar se estas se encontram em conformidade com a lei
de contabilidade pública.
Interessante frisar que a colocação do cidadão nas “luzes da ribalta”, nada
mais que uma necessidade vital do Estado Democrático de Direito, pois do contrário
ele não conseguira assegurar que o estado seja democrático3, desrespeitando assim o
nosso próprio texto constitucional.

III – AUDIÊNCIAS PÚBLICAS.

                                                            
3 SILVA, José Afonso da – A Constituição portuguesa instaura o Estado de Direito Democrático,

com o “democrático” qualificando o Direito e não o Estado, Essa é uma diferença formal entre ambas
as constituições. A nossa emprega a expressão mais adequada, cunhada pela doutrina, em que o
“democrático” qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os elementos
constitutivos do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica. O Direito, então, imantado por esses
valores, se enriquece do sentir popular e terá que ajustar-se ao interesse coletivo. Contudo, o texto da
Constituição Portuguesa dá ao Estado de direito democrático o conteúdo básico que a doutrina
reconhece ao Estado Democrático de Direito, quando afirma que ele é baseado a soberania popular,
no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação
dos direitos e liberdades fundamentais, que tem por objetivo a realização da democracia econômica,
social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. CURSO DE DIREITO
CONSTITUCIONAL POSITIVO – Editora Malheiros: São Paulo, 26 edição – 2006 , pág.117.
 
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A própria legislação tem exigido a prática da realização de audiências


públicas, para ouvir assuntos do interesse da sociedade, como condição necessária
para a realização de determinado ato de maneira eficaz e válida.
Podemos citar por exemplo, a questão da necessidade da realização de
audiência4 exigida pela lei complementar nº101/2000, que pela relevância do tema
destaca-se abaixo:

Art. 9o Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da


receita poderá não comportar o cumprimento das metas de
resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas
Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato
próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes,
limitação de empenho e movimentação financeira,
§ 4o Até o final dos meses de maio, setembro e fevereiro, o Poder
Executivo demonstrará e avaliará o cumprimento das metas fiscais
de cada quadrimestre, em audiência pública na comissão referida
no § 1o do art. 166 da Constituição ou equivalente nas Casas
Legislativas estaduais e municipais.

IV – A atuação do Ministério Público (MP) e dos Tribunais de Conta Estaduais


(TCE) e da união (TCU).

O novo arranjo constitucional pós 1988, permitiu que o ministério público e


o Tribunal de contas ocupassem uma posição de destaque no novo arranjo

                                                            
4 A Lei Complementar 101/00 e a Lei 10.257/01 prevêem a realização de audiências públicas nos
processos de elaboração e discussão dos Planos, da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei do
Orçamento Anual, o que pode vir a concretizar no âmbito municipal, o princípio constitucional da
participação popular. Pelo disposto na Lei de Responsabilidade Fiscal o poder executivo tem que
ouvir a população no processo de elaboração daquelas leis ali especificadas, o que significa dizer que
antes do envio do projeto de lei para o legislativo há necessidade de audiência pública para que a
sociedade seja ouvida, porque a transparência e o controle popular na gestão fiscal é norma de caráter
obrigatório . LOCKE, Fernando do Nascimento - Revista Eletrônica de Contabilidade Curso de
Ciências Contábeis UFSM Volume I. N∫.1 Set-Nov/2004

 
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institucional. Chegando ao ponto, conforme defendido por José Luis Quadro de


Magalhães, que a atuação do Ministério Público e dos tribunais de contas o
caracterizasse como um quarto poder, saindo assim daquela concepção de Estado
tripartite prevista por Montesquieu.
Esses órgãos da administração foram previsto antes da constituição de
1967/69, mas a sua atuação ganha destaque a partir de 1988. O MP e os TC
começam paulatinamente a deixarem de ser meramente espectadores da atuação
estatal, e passam a intervir na defesa dos direitos do cidadão de maneira efetiva.
Hoje, eles são os guardiões da sociedade, tutelam os interesses desta, mesma
que para isso tenham que enfrentar o Estado. Percebe-se claramente a mudança do
paradigma, pois o MP na vigência da Constituição de 1967, tinham entre suas
atribuições, a defesa da união não a da sociedade. Na constituição de 1988, de
maneira clara o MP passa a ser o guardião da constituição.

CRFB/1967
Art. 138 - O Ministério Público Federal tem por Chefe o
Procurador-Geral da República, o qual será nomeado pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo
Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos Indicados no
art. 113, § 1º.
§ 1º - Os membros do Ministério Público da União, do
Distrito Federal e dos Territórios ingressarão nos cargos iniciais
de carreira, mediante concurso público de provas e títulos. Após
dois anos de exercício, não poderão ser demitidos senão por
sentença judiciária, ou em virtude de processo administrativo em
que se lhes faculte ampla defesa; nem removidos, a não ser
mediante representação do Procurador-Geral, com fundamento
em conveniência do serviço.
§ 2º - A União será representada em Juízo pelos
Procuradores da República, podendo a lei cometer esse encargo,
nas Comarcas do interior, ao Ministério Público local.
CRFB/88.
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial
à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da

 
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ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e


individuais indisponíveis.

O Tribunal de Contas sai de um papel de um mero expectador da atuação


administrativa e começa após a CRFB/88 a ocupar um papel de relevo. Hoje, caso
este tribunal percebe alguma falha em sua função de controle, este pode até mesmo
anular o ato administrativo que motivou a falha. Abaixo destaca-se o excerto do texto
constitucional vigente no qual é assegurado o poder de anular atos administrativos, e
o texto constitucional anterior.

TRIBUNAL DE CONTAS CRFB/1988

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional,


será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao
qual compete:
II - julgar as contas dos administradores e demais responsáveis
por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e
indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas
pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa
a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao
erário público;
III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de
admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e
indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder
Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em
comissão, bem como a das concessões de aposentadorias,
reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não
alterem o fundamento legal do ato concessório;
IV - realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos
Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de
inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira,
orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades
administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e
demais entidades referidas no inciso II;
X - sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado,
comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado
Federal;

 
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TRIBUNAL DE CONTAS CRFB/1967

Art 71 - A fiscalização financeira e orçamentária da União será


exercida pelo Congresso Nacional através de controle externo, e
dos sistemas de controle interno do Poder Executivo, instituídos
por lei.
§ 1º -O controle externo do Congresso Nacional será exercido
com o auxílio do Tribunal de Contas e compreenderá a apreciação
das contas do Presidente da República, o desempenho das funções
de auditoria financeira e orçamentária, e o julgamento das contas
dos administradores e demais responsáveis por bens e valores
públicos.
§ 2º - O Tribunal de Contas dará parecer prévio, em sessenta dias,
sobre as contas que o Presidente da República prestar anualmente.
Não sendo estas enviadas dentro do prazo, o fato será
comunicado ao Congresso Nacional, para os fins de direito,
devendo o Tribunal, em qualquer caso, apresentar minucioso
relatório do exercício financeiro encerrado.
§ 3º - A auditoria financeira e orçamentária será exercida sobre as
contas das unidades administrativas dos três Poderes da União,
que, para esse fim, deverão remeter demonstrações contábeis ao
Tribunal de Contas, a quem caberá realizar as inspeções que
considerar necessárias.

Apesar da redação do texto constitucional ser parecida sobre as atribuições


dos Tribunais de Contas, as suas funções são diversas. Segundo a redação dada pela
Constituição de 1988, os TC continuam com a função de fiscalizar nos moldes
previsto em 67, mas sua função vai além, uma vez que estes podem até mesmo
anular todos os atos administrativos eivados de vício, função não prevista em 1967,
entre outras.

CONCLUSÃO

Para assegurar o cumprimento do Estado Democrático de Direito, e


justificar de maneira expressa os fundamentos deste, o constituinte assegurou a
 
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participação popular de maneira direta (plebiscito e referendo) ou de maneira


indireta.
Mais do que isso, o texto constitucional, imbuído no contexto histórico de
sua criação permitiu a criação dos meios necessários para que o cidadão
paulatinamente começasse a ser ouvido, e poder influenciar as estruturas estatais
postas.
Interessante frisar que isso se deu num aspecto mais amplo que o
constituinte esperava, pois toda legislação infraconstitucional, ainda que não de
maneira expressa, começou a paulatinamente a ouvir.
O feliz termo cunhado por Ulisses Guimarães – “Constituição Cidadã”, só
se implementa quando analisado num contexto geral em que o cidadão possaq
influenciar ainda que individualmente , a administração..
A participação popular não se restringe apenas ao exercício do direito de
sufrágio, ele vai muito além, podendo englobar outras hipóteses que não sejam essas
expressamente previstas, tais como por exemplo, o direito de ser ouvido e participar
da organização dos conselhos.
A participação popular enquanto princípio constitucional ocorre quando o
cidadão, sem interesse individual imediato, tem como objetivo o interesse comum,
buscando algo por vias administrativas ou judiciais. Ou seja, é o direito de
participação política, de decidir junto, de compartilhar a administração, opinar sobre
as prioridades e fiscalizar a aplicação dos recursos públicos, confirmar, reformar ou
anular atos públicos.
Logo o cidadão passa de um papel secundário perante o Estado, passando a
ser a figura principal nesse novo arranjo constitucional, sai da penumbra das sombras
passando para o neon das ruas.
Devemos destacar também que o cidadão só terá cumprido o seu papel
enquanto cidadão, enquanto tiver exercendo uma postura pro-ativa na defesa dos
 
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seus direitos e dos direitos da sociedade, pois do contrário, por mais que queira não
irá ocupar as luzes do estrelado que o aguardam.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SILVA, José Afonso da – CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL


POSITIVO – Editora Malheiros: São Paulo , 19 edição, 2005.

BONAVIDES, Paulo. CIÊNCIA POLÍTICA. 11ª EDIÇÃO. São Paulo: Editora


Malheiros, 2005, pág.155.

DE MELLO, Celso Antonio Bandeira. CURSO DE DIREITO


ADMINISTRATIVO, 23ª EDIÇÃO, REVISTA E ATUALIZADA ATÉ A
EMENDA CONSTITUCIONAL 53.

FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves – DO PROCESSO LEGISLATIVO –


Editora Saraiva: São Paulo, 6º Edição, 2007.

_____________________________ - CURSO DE DIREITO


CONSTITUCIONAL – Editora Saraiva: São Paulo, 32º Edição,2006

LOCK, Fernando do Nascimento - Revista Eletrônica de Contabilidade Curso de


Ciências Contábeis UFSM Volume I. N∫.1 Set-Nov/2004

MAGALHÃES, José Luis Quadros de – DIREITO CONSTITUCIONAL TOMO I


– Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2004.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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__________________________________ - DIREITO CONSTITUCIONAL


TOMO II – Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2004.

MORAES, Alexandre de. DIREITO CONSTITUCIONAL – 10º Ed. São Paulo:


Atlas, 2001.

SAMPAIO, José Adércio Leite ,coordenador – Belo Horizonte: Del Rey, 2003, 568
p. Texto de BREVE HISTÓRICO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO de Álvaro Ricardo
de Souza Cruz.

SILVA, José Afonso da. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 26ª edição,


Revista e Atualizada nos termos da Reforma Constitucional (até a Emenda
Constitucional nº 48).

Artigos retirados da Internet

BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do


Estado e legitimidade democrática. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 59, out. 2002.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3209>. Acesso em:
21 ago. 2008”.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. A teoria da separação de poderes . Jus


Navigandi, Teresina, ano 9, n. 489, 8 nov. 2004. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5896>. Acesso em: 21 ago. 2008.

 
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LEGISLAÇÃO

BRASIL. CONSTITUIÇÂO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 05 de


Outubro de 1988.

BRASIL. LEI COMPLEMENTAR 101/2000. Estabelece normas de finanças


públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências 04
de Maio de 2000.

 
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A COR INEXISTENTE:
O RACISMO COMO CRIAÇÃO CULTURAL

Bernardo Pessoa de Oliveira1

Ontem plena liberdade,


A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoite... Irrisão!...2

RESUMO

O racismo é criação e imposição européia a países periféricos e dominados política e


socialmente para justificar essa dominação. Foi a forma que o Ocidente encontrou de
controlar cultural e moralmente outros povos. A proposta deste trabalho é discutir a
estipulação da dicotomia homem branco - homem negro por uma pretensa cultura
superior moral e historicamente e as suas conseqüências sociais em um mundo tão
artificialmente dividido.

Palavras-chave: Racismo, Dominação Cultural, Exploração; Racism, Cultural


Domination, Exploration

                                                            
1 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2 Alves, Castro. Espumas flutuantes. CEB; São Paulo. p. 218, poema Navio negreiro.
 
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1 Todos os homens naturalmente se odeiam

O racismo é antigo e onipresente. É um mecanismo comum de defesa


contra o forasteiro, o de fora daquele grupo. Pode-se argumentar que o racismo é
eterno e universal. As desigualdades são inerentes ao ser humano. É possível dizer
que na maioria das línguas humanas o termo “raça humana” indica apenas os
membros da tribo ou grupo, os forasteiros eram até classificados como animais. O
desprezo é um mecanismo comum para excluir o estranho. O medo do outro e do
diferente é a principal fonte das superstições e uma das maiores fontes de crueldade.
“Aquilo que no século XIX se chamava “raça” já era entendido no passado por
termos como ‘linhagem’ e ‘pureza de sangue’”.3 Mas as desigualdades impostas a um
grupo ou a um indivíduo estão sujeitas à circunstancialidade histórica pois as
desigualdades são construídas culturalmente.
A Europa teve, desde cedo, a necessidade de expandir-se, seja para garantir
interesses econômicos, seja pela crença de que sua cultura é universal. Nesse
processo travou contato com outros povos e culturas, assimilando traços e conceitos
impondo a sua cultura ao outro. A idéia universalista de expansão, que tornaria
homogênia a cultura de dominados e dominantes, vem de Alexandre Magno e foi
passada para o Império Romano, que a difundiu; é a forma mais simples de se
manter o controle de uma sociedade dominada sem o ônus da ocupação bélica. Na
modernidade o universalismo é a grande característica da Igreja Católica, a herdeira
do Império, seu objetivo era catequizar os infiéis, era levar a religião cristã para o
âmago da totalidade dos indivíduos.

                                                            
3 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Idéias que mudaram o mundo. Trad. Luiz Araujo; Eduardo Lasserre

e Cristina P. Lopes. São Paulo: ARX, 2009. p. 318-319.


 
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O forasteiro era visto como alguém a ser temido, conhecido e absorvido. É


um diferente que “não é aturado” mas é imprescindível. É necessário para o
desenvolvimento cultural e, sobretudo, financeiro. Com o forasteiro, o europeu
buscou metais preciosos, especiarias, mão de obra e mercado para seus produtos.
Mesmo que assuma a cultura, o forasteiro não se torna europeu, não goza dos
mesmo direitos, não usufrui de forma igual a liberdade. O forasteiro é o dominado é
o índio, o asiático, o negro, o bárbaro, é o “outro”. O racismo é, exatamente, o não
reconhecimento desse “outro”.
A Europa a que me refiro neste trabalho é a “Europa do Norte”, que é
composta por Inglaterra, França e, principalmente, Alemanha, encabeçando a noção
ideal de Povo e de Cultura.
A maioria das sociedades humanas achava a escravidão normal e
moralmente inquestionável. “A escravidão é tão antiga quanto a guerra, e a guerra é
tão antiga quanto a natureza humana.”4 Aristóteles argumentava que algumas pessoas
eram inferiores e seu melhor destino dentro da sociedade consistia em servir a
pessoas superiores. Mas só na era moderna a violência passou a ser justificada por
uma ideologia racista, o ser humano passou a ser separado em raças e as sociedades
em nível de desenvolvimento histórico, tendo por base o homem branco e por
modelo a Europa. Na antiguidade, o escravo era escravo não por pertencer a um
grupo ou raça, mas por ter sido perdedor de uma guerra ou por dívidas, tornava-se
escravo. “A escravidão era mais conjuntural que estrutural – se o resultado da guerra
tivesse sido outro, os papeis de senhor e escravo estariam invertidos.”5 Não existia a
identificação de um determinado grupo com a escravidão. Na modernidade, a
condição de escravo era subordinada à raça, nascia-se escravo. A escravidão é a

                                                            
4 VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Trad. Ciro Mioranza e Antonio Geraldo as Silva. São Paulo; Escala:
2008. p. 241
5 PENA, Sérgio, D. J. Humanidade sem raças?; São Paulo; Publifolha: 2008. p. 10.

 
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desigualdade radical que, na Modernidade, assumiu a característica cruel de


identificação de um povo – no caso, negros africanos.
2 Dominação concreta. O primado da fé e o primado do capital

Ásia, África América passaram por dois momentos distintos em sua história
de dominação entre os séculos XIV e XX. O primeiro foi a dominação colonial
mercantilista, encabeçada pelo tráfico negreiro. “As potencias colonizadoras estavam
interessadas, sobretudo, na obtenção de produtos tropicais e metais preciosos e na
exportação de produtos manufaturados.”6 Onde a ideologia do dominador
confundia-se e sustentava-se com a religião. O final da Idade Média foi caracterizado
por uma grande crise na produção agrícola, “... a única saída para se tirar a Europa
Ocidental da crise seria expandir novamente a base geográfica e de população a ser
explorada.”7 Partiu-se da conquista do litoral africano e da implantação de feitorias ao
longo do continente por volta dos séculos XV e VXI. As feitorias praticamente
tornava desnecessária a colonização do território explorado, reduzindo a relação
entre o europeu e o nativo quase que exclusivamente em uma relação comercial.
Eram comercializadas variantes de pimenta e outras especiarias, ouro em pó, marfim
e, a partir do século XVI, sobretudo escravos. A dominação era quase que
exclusivamente voltada para a manutenção do trafico negreiro. “O escravo passou a
ser um produto tão valorizado na nova realidade econômica que os próprios grupos
tribais organizavam excursões para capturar escravos para depois vender aos
Europeus.”8 A dominação era justificada pela religião, o negro – e também o índio
do continente americano – eram dominados e subjugados porque eram “pecadores”,
ou seja, não professavam a fé católica e era a obrigação moral da Igreja evangelizar e
                                                            
6 KOSHIBA, Luiz. História do Brasil, 7ª Ed. São Paulo; Atual: 2002. p. 218
7 FAUSTO, Boris. História do Brasil, 13ª Ed. São Paulo; EDUSP: 2008. p. 21
8 O trecho em questão foi retirado de um ensaio publicado no numero 175 da revista portuguesa

Análise Social (BARROS, 2005: 345-366). p. 45.


 
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salvar os povos bárbaros. Essa dominação era baseada em uma interpretação bíblica,
onde Cam, ou Canaã, foi amaldiçoado e condenado a ser escravo por ter visto o
corpo nu do pai. Essa passagem serviu como justificativa para a escravização dos
negros, tidos como portadores da maldição de Cam, a escravidão seria uma forma de
purgação do pecado e, portanto, a sua salvação. Entretanto, segundo modernas
interpretações, a associação de Cam ao povo negro é uma falsificação histórica, usada
apenas como uma justificativa para a escravização e inferiorização dos africanos.
O negro africano e o indígena americano foram subjugados, escravizados e
aculturados no processo de colonização. Os nativos do novo mundo foram
dizimados pelas doenças produzidas pelo contato com o europeu, pois não tinham
defesa biológica contra doenças como o sarampo e a varíola; e pela luta contra o
dominador. Exploradores dizimaram civilizações inteiras “usando a sua força militar
com extrema violência, fazendo valer a sua superioridade técnica e espalhando o
terror.”9 O negro foi separado arbitrariamente de seu grupo de origem e lançado em
levas sucessivas em um território estranho. “Dizia-se que a escravidão era uma
instituição já existente na África e assim apenas transportavam-se cativos para o
mundo cristão, onde seriam civilizados e salvos pelo conhecimento da verdadeira
religião”10 O escravo pertencia a um sistema onde era produtor mas também era
produto. O escravismo perdurou ate o final do século XIX mas o racismo, que o
justificava, permaneceu entranhado em nossa cultura. O escravismo acabou com o
fim do mercantilismo, com a superação do pacto colonial pelo capitalismo e
liberalismo. Cada indivíduo passou a ser visto como um consumidor em potencial o
que não era permitido no sistema escravista, uma vez que o escravo não tinha renda.
O Brasil conviveu com a incoerência de um governo liberal apoiador da servidão
durante quase todo o século XIX. Os donos de escravos afirmavam que o estado não
                                                            
9 TEIXEIRA, Francisco M. P. História da América, 11ª Ed. São Paulo; Ática: 1990. p. 9.
10 FAUSTO, Boris. Idem. p. 52.
 
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poderia intervir na propriedade privada – o bem maior do liberalismo – e o escravo o


era. O escravo era visto como um objeto, como um bem comercial e não detinha
nenhum dos direitos fundamentais, aos olhos da lei o escravo era um bem que o
senhor podia dispor a seu bel-prazer. Para o escravo não havia nenhuma política de
direitos civis, não havia lugar para ele nos tribunais; não podia processar ou servir
como testemunha – exceto contra outros escravos ou negros livres – e seu juramento
não era considerado uma obrigação moral; não podia assinar contrato, inclusive o
contrato de casamento. O escravo não tinha personalidade, ou seja, não tinha aptidão
para agir juridicamente. O Direito brasileiro criminalizava totalmente o negro ou o
excluía totalmente do foco das relações jurídicas. O fim da escravidão no Brasil levou
à derrocada do Império. A abolição não mudou a mentalidade racista e conservadora
das elites.
Estima-se que 14 milhões de nativos africanos foram transportados para o
Novo Mundo até meados do século XIX. O trafico negreiro significou uma enorme
deterioração humana do continente negro, muitos morreram durante o transporte
devido as péssimas condições e muitos mais na tentativa de captura no continente.
Durante esse período África e América na visão do Europeu eram ao mesmo tempo,
paraíso onde ele obtinha riquezas, e o inferno; e a Ásia era um mistério exótico. O
mundo ainda era novo para o europeu e muitas coisas careciam de nome. Os três
continentes eram mal ou inteiramente desconhecidos e, oceanos inteiros ainda não
navegados. “As chamadas regiões ignotas concentravam a imaginação dos povos
europeus, que ai vislumbravam, conforme o caso, reinos fantásticos, habitantes
monstruosos, a sede do paraíso terrestre.”11 No livro Coração das trevas de Josseph
Conrad, o protagonista adentra no coração sombrio da selva africana, os nativos são
descritos como selvagens assassinos e facilmente manipuláveis. Outra imagem

                                                            
11 FAUSTO, Boris. Idem. p. 23
 
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negativa do continente criada pelo europeu é o Gigante Adamastor, o Cabo da boa


esperança, tido como gigante atirador de pedras que afundavam os navios de
passagem. Para o europeu a África era um inferno verde ou um deserto interminável
e seus habitantes nem ao menos chegavam a ser humanos. A África era um local a
ser civilizado, um local de oportunidades e de aventuras. O europeu tentou explicar o
Novo Mundo pela visão cristã e, assim, primeiramente viu no continente o paraíso
terrestre. Perseguiu sonhos e miragens de montanhas e cidades de ouro como o
Eldorado, buscou o reino da lenda de Preste João, o descendente dos reis magos e
ferrenho inimigo dos muçulmanos; ou o Jardim do Éden nas florestas tropicais do
Brasil por verem, em um primeiro momento, os índios como representação da
pureza e ingenuidade, tal como os moradores do paraíso na lenda Bíblica. Com a
colonização efetiva do território e com as implicações dessa ocupação a América
passa a ser vista como um inferno. Os nativos americanos passam de puros e
inocentes a demônios antropófagos.
África e América eram o purgatório do europeu, onde ele sofria sob os
desígnios de Deus para depois padecer no paraíso.
O segundo momento foi marcado pelo capitalismo e pelo seu filho, o
imperialismo. Após a mudança de paradigma causada pelo Iluminismo e pelas teorias
liberais, pela cisma da Reforma Protestante e o advento da Revolução Industrial e
seus desdobramentos os interesses europeus na áfrica mudaram, é o
neocolonialismo. Nos primórdios do século XIX, quando a Revolução Industrial se
expandiu e o Mercantilismo foi substituído pelo livre-cambismo, os países
industrializados passaram a encarar não só a África, como toda a “periferia” do
mundo industrializado como mero mercado. “Esses mercados funcionaram como
fornecedores de matérias primas, consumiram a produção industrial dos países
dominadores, proporcionaram gêneros agrícolas para a alimentação, serviram de
campo para colocação de capitais excedentes na Europa e realocação de excedentes
 
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populacionais.”12 O eurocentrismo foi a ideologia dominante na mente do


colonizador, as nações adiantadas tinham o dever e a missão de civilizar e educar o
resto do mundo e levar a sua pretensa cultura superior a todos. Recorreu-se a
superioridade racial como explicação científica dessa dominação. Nos séculos XVII e
XVIII o modelo estrutural da diversidade humana era baseado em raças bem
definidas, esse modelo culminou no racismo científico da segunda metade do século
XIX e no movimento nazista do século XX. “Esse equivocado modelo tipológico
definiu as raças como muito diferentes entre si e inteiramente heterogêneas. E foi
essa crença de que as diferentes raças humanas possuíam diferenças biológicas
substanciais e bem demarcadas que contribuiu para justificar discriminação,
exploração e atrocidades.”13
O europeu passou a justificar sua dominação cientificamente. Idéias como o
Darwinismo Social foram usadas para justificar o Imperialismo, a repressão
patrocinada pelo estado e até o genocídio. Apologistas da escravidão afirmavam que
os negros se diferenciavam das outras pessoas porque possuíam intelecto reduzido,
de modo a constituírem uma espécie diferente. O que foi rapidamente contestado,
uma vez que os humanos de todos os tipos e cores, são capazes de procriar uns com
os outros gerando descendentes férteis.
“Na Europa do século XIX a classificação da humanidade em raças foi
considerada cientifica em analogia com a taxonomia botânica.”14 As pesquisas
científicas de Mendel, Linneu, Gobineau e Darwin foram usadas para completar uma
justificativa científica do racismo. “A genética ofereceu uma explicação sobre como
um homem poderia ser inferior a outro somente em virtude da ‘raça’.”15 Os teóricos

                                                            
12 AQUINO, Rubim Santos Leão. Historia das sociedades, das sociedades modernas às sociedades atuais. Rio de

Janeiro; Ao livro técnico: 2003. p. 307-308.


13 PENA, Sérgio, Idem . P. 7
14 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Idem. p. 318.
15 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Idem. p. 319.

 
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do racismo tinham o desejo não apenas de classificar as raças, mas também estimá-las
em termos de superioridade e inferioridade. “A critica ao Imperialismo era levada a
parecer sentimental e não-científica.”16 Mas é a história, e não a natureza que
determina o desenvolvimento desigual dos povos.
As idéias de Darwin e de seus seguidores foram um produto de sua época e
das circunstancias e serviu aos interesses de uma classe particular; o tráfico de
escravos da África para as colônias americanas movimentou enormes quantias de
dinheiro e, de uma forma ou de outra, financiou a Revolução Industrial na Europa,
aumentando ainda mais o abismo entre centro e periferia dominada. Essas idéias
reforçaram e legitimaram a dominação, fornecendo um arcabouço científico para sua
reificação. Darwin especulava que os nativos africanos teriam evoluído para uma
espécie distinta se o imperialismo não tivesse posto fim ao seu isolamento, para ele,
os africanos estavam condenados à extinção por sua inaptidão técnica e pouco
desenvolvimento tecnológico. No século XVIII o antropólogo Johann Friedrich
Blumenbach classificou a humanidade em cinco raças: a caucasóide, sinônimo de
“branco”; a americana; a malaia; e a etiópica, que se tornou sinônimo de “negro”.
Heackel, no século XIX, “...dividiu a humanidade em doze espécies (isto é, raças),
ordenando-as em uma escala de valor, na qual, como esperado, a “espécie” européia
era a superior.”17 A partir do conceito de raça e do darwinismo social, idéias
ultranacionalistas, xenofóbicas e racistas proliferaram por toda a Europa.
A justificação científica do racismo é fruto do imperialismo, é justificativa
teórica e abstrata da necessidade do sistema capitalista de dominação. O capitalismo
é excludente por natureza, toda a sua base teórica se articula na tentativa de justificar
essa exclusão. O racismo científico justifica a dominação do capitalismo europeu, já
maduro, a países em que esse capitalismo estava em formação. A crise do sub-
                                                            
16 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Idem. p. 319.
17 PENA, Sérgio, Idem . P. 23
 
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consumo do século XIX fez com que o capitalismo expandisse de forma rápida e
violenta à procura de matérias primas industriais como o ferro, carvão e petróleo.
África e Ásia foram fragmentadas em zonas de influencia. A confêrencia de Berlin,
em 1884, definiu a partilha da África entre as principais potencias, criando fronteiras
artificiais sem respeitar as origens étnicas e tribais que antes delimitavam fronteiras
no continente. A corrida por possessões coloniais foi um dos principais fatores
motivadores da Primeira Guerra Mundial.

3 Dominação abstrata. A criação cultural de um mito

A dicotomia homem branco e homem negro – e amarelo – é uma criação


cultural para justificar a dominação de um grupo por outro, mais especificamente, a
dominação do nativo africano, do indígena americano, e do asiático pelo europeu.
Durante a época moderna um culto à imagem do homem branco foi criado. O
branco passou a ser visto como um ser bom, racional e moral; por isso todos os
anjos representados artisticamente eram loiros e de olhos azuis. O negro e o índio
passam a serem discriminados, a ponto de Voltaire afirmar:

A raça negra é uma espécie humana tão diferente da nossa quanto


a raça de cachorros spaniel dos galgos [...] a lã negra de suas
cabeças e em outras partes (do corpo) não se parecem em nada
com o nosso cabelo; e pode-se dizer que a sua compreensão,
mesmo que não seja de natureza diferente da nossa, é pelo menos
muito inferior.18

A Europa passa a ser representada como centro do mundo civilizado


legando a Ásia, África e America à periferia desse mundo. A Europa se afirma como

                                                            
18 Voltaire – Cartas filosóficas – Cit. em PENA; Sérgio, Idem . P. 14-15.
 
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centro da história mundial e cria uma periferia subjugada, criando o “Mito da


Modernidade”, justificando a violência e definindo o seu “ego” como descobridor,
conquistador, colonizador da Alteridade constitutiva da própria Modernidade. “A
história universal vai do Oriente para o Ocidente. A Europa é absolutamente o fim
da história universal. A Ásia o começo.”19 África e Ásia são tidas como imaturas
geograficamente.

A África é em geral uma terra fechada, e conservará este seu


caráter fundamental. Entre os negros é realmente característico o
fato de que sua consciência não chegou ainda a intuição de
nenhuma objetividade, como, por exemplo, Deus, a lei, na qual o
homem está em relação com a sua vontade e tem a intuição na sua
essência. É o homem em estado bruto. (...) Este modo de ser dos
africanos explica o fato de eles serem tão extraordinariamente
facilmente fanatizados. O Reino do Espírito entre eles é tão pobre
e o Espírito tão intenso que basta uma representação que lhes é
inculcada para levá-los a não respeitar nada, a destroçar tudo... A
África não tem propriamente história (...) não é parte do mundo
histórico, não representa um movimento nem um
desenvolvimento histórico. O que entendemos propriamente por
África é algo isolado e sem história, sumido ainda por completo
no espírito natural.20

Argumentos como esse foram usados para justificar a dominação total dos
povos exteriores à Europa. A Europa passou a ter um Direito Absoluto ao mundo por
ser portadora do Espírito neste momento de seu desenvolvimento. A periferia se
tornou o espaço livre para que os pobres, fruto do capitalismo, se tornem
proprietários capitalistas; é o espaço que o sistema encontrou para se desafogar,
encontrando a mão de obra ou a matéria prima, que tanto lhe é cara. “Europa é um
termo elástico, uma construção mental que não corresponde a nenhuma realidade

                                                            
19 Hegel – Cit. em DUSSEL, Enrique. 1492 o encobrimento do outro (a origem do “mito da Modernidade”).
Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis; Vozes: 1993. p. 18.
20 Hegel – Cit. em DUSSEL, Enrique. Idem. p. 20.

 
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geográfica e não tem fronteiras naturais, expande-se ou contrai-se de acordo com


interesses”.21
A Europa é o continente da liberdade, nela floresceram filosofias de
exaltação a liberdade da consciência, da economia e do individuo. Mas “(...) as
liberdades, em verdade, são conjuntos de franquias, de privilégios, ao abrigo dos quais
esta ou aquela coletividade de pessoas e de interesses se refugia e depois, fortalecida
por esta proteção, investe contra as demais, não raro sem nenhum pudor.”22 Tais
liberdades se opõem e se excluem mutuamente. A liberdade existe só para o
dominador, para o chefe, para as raças superiores física e moralmente, para as demais
resta a escravidão ideológica e econômica.
O europeu construiu a “África”. Pôs fim a diversidade de todo um
continente e criou uma unidade acabando com as diversas nações existentes no
continente, pois esse era o meio mais eficaz de se manter a dominação. O nativo
africano foi aculturado e tornou-se o “negro” e não mais o Zulu, Xhosa ou as muitas
outras nacionalidades tribais que se perderam no processo de dominação econômica,
militar e principalmente cultural. Só a nação Zulu, por exemplo, consistia a parte
sudeste de todo o continente africano agregando milhões de pessoas sobre o seu
domínio.

O colonialismo tornou possível a idéia de que todos os povos


negros partilhavam de uma identidade comum. Foi uma
identidade imposta pelos brancos – traficantes de escravos e
imperialistas, para quem os negros de fato tinham características
em comum: eram inferiores, podiam ser explorados e eram
incapazes de se autogovernar.(...)A experiência da escravidão
forçou os negros de terras e culturas diferentes a partilhar de um
mesmo sofrimento, mostrou que eles podiam transcender suas
diferenças de origem e suas práticas para formar comunidades
unidas. Podiam desenvolver culturas nitidamente negras como
                                                            
21 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Idem. p. 267.
22 BRAUDEL, Fernand. Gramática das civilizações. São Paulo; Martins Fontes: 2004. p. 295
 
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fraternidades religiosas, igrejas e cultos, música e dança, idiomas e


literatura.23

Músicos brancos descobriram o Jazz e o Blues, artistas “primitivistas”


começaram a apreciar e imitar a arte tribal africana, a idéia de que a cultura negra
personificava valores iguais ou superiores aos dos brancos surgiu no início do século
XX. Essa idéia se espalhou por todas as regiões onde viviam negros – transformando
a consciência dos negros que viviam sob governo colonial ou sofriam sob
desigualdades sociais. Essa idéia estimulou movimentos de independência e
movimentos por direitos civis em países como África do Sul e os Estados Unidos,
onde os negros não desfrutavam de igualdade diante da lei. No final do século XX
ela se transformou na luta contra o preconceito racial e as formas de discriminação
contra os negros em países predominantemente brancos.

4 Humanidade sem raças?

Hoje temos a consciência de que todos os seres humanos compartilham a


mesma origem genética e a humanidade surgiu na África; e essa idéia causou grande
impacto. O racismo foi desacreditado, mas ainda há a necessidade de uma visão
mundial que reflita as realizações negras e respeite sua dignidade. Ainda não há uma
narrativa histórica que compita com o antigo relato eurocêntrico. O negro ainda
sofre com a desigualdade econômica, é marginalizado e estigmatizado.
O racismo hoje foi abolido e é, em muitos países, considerado crime. Os
direitos fundamentais se estenderam a todos ou quase todos do mundo ocidental.
Todos têm o direito à livre associação, direito a se manifestar dentro dos limites da
ordem pública, imunidade às perseguições baseadas em sexo, raça, credo ou
                                                            
23 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Idem. p. 376.
 
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deficiência, assegurados por lei. Durante todo o século XX movimentos por


independência e por direitos civis lutaram pela extensão de direitos, lutaram pela
igualdade e pela liberdade. Essa luta continua hoje nos movimentos sociais de Gays,
favelizados, das mulheres, negros, dos excluídos da sociedade.Mas ele existe e está
presente na sociedade de muitas formas possíveis. “...devemos fazer todo esforço
possível para construir uma sociedade desracializada, na qual a singularidade do
indivíduo seja valorizada e celebrada e na qual exista a liberdade de assumir, por
escolha individual, uma pluralidade de identidades.”24 O Brasil é, sem duvida, um país
racista, onde os negros compõem a maior parte das populações mais pobres. A
forma de sanar tal problema é implementar educação de qualidade que atinja toda a
população, forme críticos e não técnicos, forme pensadores que possam dar ao país o
destaque que merece, acabando com as diferenças econômicas e sociais. “Precisamos
esquecer as diferenças superficiais de cor entre os grupos continentais e distinguir,
por trás da enorme diversidade humana, um espécie única, presente na Terra a
poucos momentos da escala evolucionaria, uma única família, composta de
indivíduos igualmente diferentes”.25

A realidade põe em dúvida a igualdade criada pelas leis.

5 Referências

ALENCAR, Jose de. Cartas a favor da escravidão. São Paulo; Hedra: 2008.

                                                            
24 PENA; Sérgio, Idem . P. 61.
25 PENA; Sérgio, Idem . P. 62-63.
 
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A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DA DEMOCRACIA NA


PERSPECTIVA INTERAMERICANA

Camilla Capucio*

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar em breves linhas a efetivação dos direitos


humanos e da democracia através dos instrumentos de proteção do Direito
Internacional nas Américas: a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Carta da
OEA e a Carta Democrática Interamericana. A Corte Interamericana têm sido
apontada como um foro eficaz para garantir o cumprimento das obrigações
internacionalmente reconhecidas de direitos humanos dos Estados em face dos
indivíduos. A Corte exerce relevante papel na busca pela efetivação dos direitos
humanos, a prescindir de suas dificuldades processuais e práticas. A Carta da OEA e
a Carta Democrática Interamericana, por sua vez, estabelecem mecanismos de
efetivação da democracia nos Estados americanos, que se mostram limitados frente à
necessidade de concreta observância da realidade democrática. Referidos
instrumentos tratados no trabalho se inserem em um contexto de internacionalização
definitiva dos direitos humanos e de jurisdicionalização do direito internacional.

Palavras-Chave: DIREITOS HUMANOS - DEMOCRACIA - ORGANIZAÇÃO


DOS ESTADOS AMERICANOS.
Keywords: HUMAN RIGHTS - DEMOCRACY – ORGANISATION OF
AMERICAN STATES.

                                                            
* Mestranda da Faculdade de Direito da UFMG. Bolsista do CNPq.
 
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1. INTRODUÇÃO: A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS

De acordo com Norberto Bobbio, uma evolução das últimas décadas foi a
crescente importância atribuída, nos debates internacionais ao problema do
reconhecimento dos direitos do homem1. Embora não seja um problema recente,
somente após a segunda guerra mundial é que o debate “passou da esfera nacional para a
internacional, envolvendo pela primeira vez na história todos os povos”2.
O século XX foi marcado, portanto, pela internacionalização dos direitos
fundamentais, que passam por um processo histórico de positivação inicialmente no
interior dos Estados, para sua afirmação na esfera internacional. As liberdades e
garantias fundamentais, inerentes da condição do homem como ser humano e de sua
dignidade, passam portanto a interessar e a obrigar toda a comunidade internacional3.
Sobre esse período histórico, José Luiz Quadros de Magalhães afirma:

“Após a Segunda Guerra Mundial, sentiu-se a necessidade da


criação de mecanismos eficazes para proteger os Direitos
Humanos nos diversos Estados. Já não se podia mais admitir o
Estado nos moldes liberais clássicos de não-intervenção. O
Estado é consagrado como administrador da sociedade e convém,
então, aproveitar naquele momento os laços internacionais criados
no pós-guerra para que se estabeleça um núcleo fundamental de
Direitos Humanos Internacionais. É dessa forma que se elabora a
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948), a
Convenção Americana dos Direitos do Homem, assinada em 22
de novembro de 1969, em São José da Costa Rica”4

                                                            
1 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. p. 49.
2 Ibid.
3 DORNELLES, João Ricardo W. A Internacionalização dos Direitos Humanos. Revista da Faculdade de

Direito de Campos, Ano IV, n. 04, 2003. p. 178.


4 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Curso de Direitos Fundamentais.

São Paulo: Método, 2008. p. 30.


 
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Flávia Piovesan nos remete ao “Direito Internacional dos Direitos


Humanos”, que tem como objeto “o exercício dos direitos da pessoa humana”5. A
partir do estudo de normas de direitos fundamentais materialmente constitucionais e
oriundos de fontes internacionais, surge a área interdisciplinar do “Direito
Constitucional Internacional”6.Assim, a afirmação e efetivação dos direitos
fundamentais após o movimento de internacionalização observado pelos estudiosos,
se refere não somente ao direito constitucional interno, mas também em grande
medida às disposições internacionais que influenciam esse “catálogo nacional” de
direitos fundamentais.
Isso pois simultaneamente ao processo de internacionalização, a criação de
organizações internacionais de proteção internacional dos direitos humanos e a
proliferação de instrumentos normativos internacionais de afirmação dos direitos
fundamentais têm também influenciado no movimento contrário, de “internalização”
nas constituições nacionais de normas protetivas de direitos fundamentais. Esse
fênomeno nos remete à idéia de universalização dos direitos fundamentais, através
do compartilhamento de uma compreensão comum e universal desses direitos e
liberdades, havendo portanto a existência de um núcleo de direitos universalmente
reconhecidos pelos Estados como fundamentais à vida e dignidade da pessoa
humana.
É que a internacionalização dos direitos fundamentais trouxe também a
universalização dos direitos fundamentais, que pode ser entendida como o
compartilhamento de uma compreensão comum e universal desses direitos e

                                                            
5 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008.

p. 15.
6 Para aprofundamento da questão dirigir-se à obra BOSON, Gerson de Britto Mello.

Constitucionalização do Direito Internacional: Internacionalização do Direito Constitucional – Direito Constitucional


Internacional Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
 
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liberdades, devidos a qualquer ser humano, independente de sua nacionalidade, como


consequência direta da dignidade que lhe é inerente.
Fabio Konder Comparato associa, com propriedade, o processo de
afirmação histórica dos direitos humanos ao reconhecimento do homem como valor
fundante das sociedades, e ao esgotamento do Estado como ordem originária de tais
direitos:

“É irrecusável, por conseguinte, encontrar um fundamento para a


vigência dos direitos humanos além da organização estatal. Esse
fundamento, em última instância, só pode ser a consciência ética
coletiva, a convicção, longa e largamente estabelecida na
comunidade, de que a dignidade da condição humana exige o
respeito a certos bens ou valores a qualquer circunstância, ainda
que não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em documentos
normativos inernacionais. Ora, essa consciência ética coletiva,
como se procura mostrar nestas páginas, vem se expandindo e
aprofundando no curso da História”.7

Nesse contexto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos8,


documento aprovado pela assembléia geral da ONU em 1948, é instrumento básico
que proclama direitos humanos internacionais, universais, indivisíveis e obrigatórios.
Suas disposições principais9 encontram-se atualmente incorporadas na grande
maioria das constituições nacionais, o que leva a uma impressão geral entre os
autores de que os direitos fundamentais já encontram-se positivados através de
normas internas e internacionais, faltando dar a eles a efetividade e aplicabilidade de
que necessitam.

                                                            
7 COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2008.
pag. 60.
8 Texto oficial em português disponível em: http://www.onu-
brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php (consulta em 01/05/10)
9 De maneira geral os principais direitos estabelecidos pela declaração são: direito à vida; à liberdade;

à segurança pessoal; de não ser torturado ou escravizado; de não ser detido ou exilado arbitrariamente;
à igualdade jurídica e protreção contra a discriminação; à julgamneto justo; à liberdade de pensamento;
à participação na política e na vida cultural da comunidade; à educação, trabalho e repouso.
 
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2. A COEXISTÊNCIA ENTRE OS SISTEMAS NACIONAIS E


INTERNACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A partir da internacionalização dos direitos humanos abordada, inaugura-se


a o sistema global de proteção dos direitos humanos, com a Declaração Universal
dos Direitos Humanos e a elaboração de dois tratados internacionais considerados a
interpretação autêntica da Declaração – o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ambos de 1966. Os três instrumentos formam juntos o que a doutrina denomina
International Bill of Rights, a Carta Internacional dos Direitos Humanos, esta sendo a
própria consubstanciação do caráter universal desses direitos.
O sistema global de proteção dos direitos humanos baseia-se, porém não se
esgota na Carta Internacional dos Direitos Humanos, haja vista a multiplicidade de
tratados internacionais plurilaterais de direitos humanos nas últimas décadas,
objetivando a proteção de determinados grupos especialmente vulneráveis ou a
proteção contra determinadas e específicas violações dos direitos. Sobre a
peculiaridade desses tratados, Flávia Piovesan bem explicita: “[d]iversamente dos tratados
internacionais tradicionais, os tratados internacionais de direitos humanos não objetivam estabelecer
o equilíbrio de interesses entre os Estados, mas sim garantir o exercício de direitos e liberdades
fundamentais aos indivíduos.”10
Simultaneamente ao desenvolvimento do sistema global, delineou-se na
sociedade internacional o sistema regional de proteção dos direitos humanos, nos
âmbitos europeu, interamericano e, recentemente, africano. O sistema regional de
proteção dos direitos humanos é também internacional, e constituído através de
instrumentos jurídicos do direito internacional, com aplicação espacialmente
                                                            
10 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2008.
p. 153.
 
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delimitada à uma região específica, e vinculados à organizações internacionais


regionais.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos, em seus sistemas jurídicos
protetivos global e regional, ressalte-se, não tem a função de substituir o sistema
nacional, havendo uma relação de subsidiariedade e suplementariedade em relação ao
ordenamenento nacional. Essa relevante observação é ressaltada por Flávia Piovesan:

“No sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o


Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses
direitos, ao passo que a comunidade internacional tem a
responsabilidade subsidiária. Os procedimentos internacionais
têm, assim, natureza subsidiária, constituindo garantia adicional de
proteção dos direitos humanos, quando falham as instituições
nacionais”11

Deve ser destacado, ainda, que o desenvolvimento do sistema regional de


proteção dos direitos humanos através da criação de Cortes Internacionais com
acesso direto ou quase-direto do indíviduo insere-se em um contexto de
jurisdicionalização do Direito Internacional. A jurisdicionalização do Direto
internacional consiste na crescente proliferação de Cortes e Tribunais internacionais
para o julgamento de controversias oriundas da interpretação e adimplemento de
regras de determinados subsistemas dentro do Direito Internacional em
fragmentação12. No que tange ao subsistema da proteção internacional dos direitos
humanos, a jurisdicionalização resultou em efeitos positivos, pois capaz de efetivar o
acesso de indivíduos à justiça na esfera internacional e promover o aumento da
importância dessas Cortes na resolução de conflitos e na construção de políticas
públicas de respeito aos direitos humanos.
                                                            
11Ibid.
12KOSKENNIEMI, Marti. International Law Comission, 58ª sessão. Fragmentation of International
Law: Difficulties arrising from the Diversification and Expansion of International Law. Relatório do
estudo analítico realizado pelo Grupo de Estudos da Comissão de Direito Internacional, 13 de abril de
2006, UN. Doc. A/CN.4/L.682. Disponível em: http://untreaty.un.org/ilc/texts/1_9.htm .
 
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3. O SISTEMA INTERAMERICANO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS


HUMANOS

O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos tem como


principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de São
José da Costa Rica, de 1969, e se encontra vinculado à Organização dos Estados
Americanos. A Convenção Americana prevê um catálogo dos principais direitos civis
e políticos garantidos no pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.
Ademais, estabelece um sistema de monitoramento e efetivação desses direitos, que
tem como protagistas a Comissão e a Corte Interamericana, como passamos a
observar.
A Comissão Interamericana têm como função primordial a promoção da
proteção e observância dos direitos humanos na América, e embora sua atuação de
destaque se dê na competência primária para o exame das petições e denúncias por
violação de direitos consagrados no pacto de São José, sua função não se esgota no
sistema da Convenção Americana. A Comissão é também competente para analisar a
conduta dos Estados membros da OEA e submeter relatórios à Assembléia Geral.
A Corte Interamericana, órgão jurisdicional do sistema do Pacto de São
José, possui competência consultiva e contenciosa, a primeira pode ser exercida por
provocação de qualquer membro da OEA, a última somente pode se dar em face dos
Estados que ratificaram a Convenção Americana, e se submeteram voluntariamente à
sua jurisdição, nos termos do artigo 62º da Convenção.
Antônio Augusto Cançado Trindade destaca, em referência histórica, que
foi a delegação diplomática brasileira, na IX Conferência Internacional Americana de
1948, em Bogotá, quem propôs a criação de uma Corte Interamericana de Direitos

 
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Humanos.13 Não passou despercebido aos diplomatas brasileiros a noção de que, em


diversas situações, as violações aos direitos humanos são perpetratas pelos próprios
Estados que deveriam ser seus garantidores:

“(...) algumas vezes os próprios tribunais, estreitamente


subordinados a um poder executivo opressor, cometem injustiças
evidentes, ou, então, o indivíduo se vê privado de acesso aos
tribunais locais. Em tais casos, se trata realmente de direitos
fundamentais, e impõe-se a possibilidade de recorrer a uma
jurisdição internacional”. 14

Flávia Piovesan propõe uma tipologia dos casos julgados pela Corte, que se
classificariam em: 1) violações que refletem o legado do regime autoritário ditatorial;
2) violações que refletem questões de justiça de transição; 3) violações que refletem
desafios acerca do fortalecimento de instituições e da consolidação do Estado de
Direito e 4) violações de direitos de grupos vulneráveis.15
De maneira geral, a jurisprudência da Corte têm consolidado relevante
posicionamento de julgar os Estados por violações a obrigações positivas e negativas
de direitos humanos. Isto é, os Estados são corretamente considerados responsáveis
não somente pela obrigação de não violarem diretamente os direitos humanos
através de seus atos (legislativos, judiciários e executivos), mas também pela
obrigação de processar e julgar suspeitos, não omitindo-se mediante uma violação
perpetrada por terceiros em seu território. Nesse aspecto o sistema interamericano é
um importante parâmetro para a ação dos governos, fortalecendo a accountability dos
Estados.

                                                            
13 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Volume III. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003. pag. 609.
14 Ibid. pag. 610. Em referência às atas e documentos da IX Conferência Internacional Americana,

documento CB 125/C.VI 6.
15 PIOVESAN, Flavia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Savaiva, 2009. Pag. 54-56.

 
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Em estudo comparativo da jurisprudência da Corte Interamericana com a


trajetória da política externa brasileira em matéria de direitos humanos, Tania
Alexandra Malinski conclui de forma coerente que o aceite da jurisdição obrigatória
da Corte Interamericana por parte do Brasil em 1998 é um marco na promoção e
proteção dos direitos humanos, sendo peça essencial para a crescente concretização
dos direitos humanos no Brasil.16
Flavia Piovesan também nos apresenta posicionamento similar, ao qual
também nos filiamos:

“[O] sistema interamericano se legitima como importante e eficaz


instrumento para a proteção dos direitos humanos, quando as
instituições nacionais se mostram falhas ou omissas. Com a
atuação da sociedade civil, a partir de articuladas e competentes
estratégias de litigância, o sistema interamericano tem a força
catalisadora de promover avanços no regime de direitos humanos.
Permitiu a desestablização dos regimes ditatoriais; exigiu justiça e
o fim da impunidade nas transições democráticas; e agora
demanda o fortalecimento das instituições democráticas com o
necessário combate às violações de direitos humanos.

Considerando o contexto latino-americano – marcado por graves


e sistemáticas violações de direitos humanos; por profundas
desigualdades sociais; e por democracias ainda em fase de
consolidação, que intentam romper com o denso legado dos
regimes autoritários – pode-se concluir que o sistema
interamericano salvou e continua salvando muitas vidas; tem
contribuído de forma decisiva para a consolidação do Estado de
Direito e das democracias na região; tem combatido a
impunidade; e tem assegurado às vítimas o direito à esperança de
que a justiça seja feita e os direitos humanos respeitados”17

                                                            
16 MALINSKI, Tania Alexandra. A Jurisorudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Trajetória

da Política Externa Brasileira em Matéria de Direitos Humanos: Pontos de Convergência. In: Os Rumos do Direito
Internacional dos Direitos Humanos. Ensaios em Homenagem ao Professor Antônio Augusto Cançado
Trindade. Tomo III. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.
17 PIOVESAN, Flavia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Savaiva, 2009. Pag. 63.

 
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Por fim, a autora nos apresenta propostas existentes para o fortalecimento


do sistema, em resposta às dificuldades processuais e práticas observadas. Propõe-se
1) a democratização do sistema, ampliando-se o acesso à Corte por indivíduos e
ONGs; 2) a democratização da composição da Corte e da Comissão Interamericana,
objetivando assegurar sua necessária independência; 3) a jurisdição automática e
complusória da Corte, que obrigaria todos os Estados membros da OEA; 4) o
aumento na supervisão da implementação das decisões da Comissão e da Corte; 5) a
implementação de medidas logísticas e recursos que possibilitem o desenvolvimento
satisfatório das atividades no sistema; 6) a adoção de medidas internas visando à
plena implementação das decisões internacionais no plano doméstico; 7)
fortalecimento do regime doméstico de proteção dos direitos humanos.18

4. A EFETIVAÇÃO DA DEMOCRACIA PELA OEA

A Carta da OEA, tratado institutivo da organização e diretivo de toda sua


atividade, estabelece em seu artigo 2º que a promoção e consolidação da democracia
representativa, resguardado o respeito ao princípio da não-intervenção, é um de seus
propósitos essenciais. 19

                                                            
18Ibid. Pag. 59-62.
19Carta da Organização dos Estados Americanos (Reformada pelo Protocolo de Reforma da Carta da
Organização dos Estados Americanos "Protocolo de Buenos Aires", assinado em 27 de fevereiro de
1967, na Terceira Conferencia Interamericana Extraordinária; pelo Protocolo de Reforma da Carta da
Organização dos Estados Americanos "Protocolo de Cartagena das Índias", assinado em 5 de
dezembro de 1985, no Décimo Quarto período Extraordinário de Sessões da Assembléia Geral; pelo
Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos "Protocolo de Washington",
assinado em 14 de dezembro de 1992, no Décimo Sexto período Extraordinário de Sessões da
Assembléia Geral; e pelo Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos
"Protocolo de Manágua", assinado em 10 de junho de 1993, no Décimo Nono Período Extraordinário
de Sessões da Assembléia Geral. Versão oficial em português disponível em:
http://www.oas.org/juridico/portuguese/carta.htm. (consulta em 01/05/10)
 
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O continente americano, entretanto, tem sua história marcada, na ordem


jurídica interna de cada Estado, pelo déficit de efetiva participação democrática, e
experiências políticas com origens no arraigado fenômeno do caudilhismo e por
revoluções que, embora tenham ideologicamente objetivado uma ruptura e melhoria
de condições de vida, resultaram muitas vezes em manutensão da elite no poder e
ditaduras violadoras dos direitos humanos.
Assim, na busca pela ponderação entre o respeito à democracia e ao
princípio da não-intervenção em assuntos internos, ambos princípios basilares do
sistema americano, foram traçados mecanismos jurídicos para situações de anomalia
democrática, na Carta da OEA e especificamente na Carta Democrática
Interamericana.
A Carta da OEA, mais adiante, prevê a suspensão da participação de um
Estado membro nas sessões da Assembléia Geral como forma de sanção,
objetivando desmotivar governos que desrespeitem o compromisso democrático. É
o que explicita o artigo 9o da Carta, cuja redação foi dada pelo Protocolo de
Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos "Protocolo de
Washington", assinado em 14 de dezembro de 1992:

“Artigo 9
Um membro da Organização, cujo governo democraticamente
constituído seja deposto pela força, poderá ser suspenso do
exercício do direito de participação nas sessões da Assembléia
Geral, da Reunião de Consulta, dos Conselhos da Organização e
das Conferências Especializadas, bem como das comissões,
grupos de trabalho e demais órgãos que tenham sido criados.

a) A faculdade de suspensão somente será exercida quando


tenham sido infrutíferas as gestões diplomáticas que a
Organização houver empreendido a fim de propiciar o
restabelecimento da democracia representativa no Estado
membro afetado;

 
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b) A decisão sobre a suspensão deverá ser adotada em um período


extraordinário de sessões da Assembléia Geral, pelo voto
afirmativo de dois terços dos Estados membros;
c) A suspensão entrará em vigor imediatamente após sua
aprovação pela Assembléia Geral;
d) Não obstante a medida de suspensão, a Organização procurará
empreender novas gestões diplomáticas destinadas a coadjuvar o
restabelecimento da democracia representativa no Estado
membro afetado;
e) O membro que tiver sido objeto de suspensão deverá continuar
observando o cumprimento de suas obrigações com a
Organização;
f) A Assembléia Geral poderá levantar a suspensão mediante
decisão adotada com a aprovação de dois terços dos Estados
membros; e
g) As atribuições a que se refere este artigo se exercerão de
conformidade com a presente Carta.”

A Carta Democrática Interamericana, por sua vez, é uma resolução da


Assembléia da OEA aprovada em sessão plenária realizada em 11 de setembro de
2001, e como tal, vincula todos os Estados-membros da Organização. O capítulo I
da Carta Democrática delineia princípios e conceitos gerais da democracia como pilar
do sistema interamericano:

“Artigo 1
Os povos da América têm direito à democracia e seus governos
têm a obrigação de promovê-la e defendê-la.
A democracia é essencial para o desenvolvimento social, político e
econômico dos povos das Américas.

Artigo 2
O exercício efetivo da democracia representativa é a base do
Estado de Direito e dos regimes constitucionais dos Estados
membros da Organização dos Estados Americanos. A democracia
representativa reforça-se e aprofunda-se com a participação
permanente, ética e responsável dos cidadãos em um marco de

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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legalidade, em conformidade com a respectiva ordem


constitucional.”20

Há também neste capítulo a definição da democracia representativa como


regime composto essencialmente pelo respeito aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais, o acesso ao poder e seu exercício com sujeição ao Estado de Direito, a
celebração de eleições periódicas, livres, justas e baseadas no sufrágio universal e
secreto como expressão da soberania do povo, o regime pluralista de partidos e
organizações políticas, e a separação e independência dos poderes.
De acordo com o documento, o exercício da democracia somente é possível
através da probidade, responsabilidade e transparência dos governos na gestão
pública, o respeito dos direitos sociais e a liberdade de expressão e de imprensa.
Destaca-se também a subordinação constitucional de todas as instituições do Estado
à autoridade civil legalmente constituída e o respeito ao Estado de Direito por todas
as instituições e setores da sociedade como valores fundantes da democracia.
O capítulo II merece destaque no presente trabalho, por tratar da
interelação existente entre a democracia e os direitos humanos. Em seu artigo 7o, o
documento bem explicita: “[a] democracia é indispensável para o exercício efetivo das liberdades
fundamentais e dos direitos humanos, em seu caráter universal, indivisível e interdependente,
consagrados nas respectivas constituições dos Estados e nos instrumentos interamericanos e
internacionais de direitos humanos.”
A Carta Democrática ressalta também o direito de petição perante o sistema
interamericano de promoção e proteção dos direitos humanos, cujo fortalecimento é
essencial para a consolidação da democracia. A relação entre as esferas se dá,
portanto, de maneira que não somente a democrácia é pressuposto para a efetivação

                                                            
20Carta Democrática Interamericana. Aprovada na primeira sessão plenária, realizada em 11 de
setembro de 2001. Versão oficial em português disponível em:
http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm (consulta em 01/05/10)
 
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dos direitos humanos nos Estados Americanos, mas o respeito aos direitos humanos
é também condição primária para a concretização da democracia participativa plena.
O capítulo III do documento traça a interdependência existente também
entre a democracia, o desenvolvimento econômico-social e o combate à pobreza,
impelindo os Estados-membros a observar os direitos econômicos, sociais e culturais
como medidas de fortalecimento democrático.
Por fim, o capítulo IV, denominado Fortalecimento e preservação da
institucionalidade democrática, inaugura a parte dispositiva da Resolução, prevendo
mecanismos concretos de efetivação da democracia. O artigo 17º prevê o primeiro
desses mecanismos, o pedido de assistência à OEA feito por um governo legítimo
para impedir sua usurpação:

“Artigo 17
Quando o governo de um Estado membro considerar que seu
processo político institucional democrático ou seu legítimo
exercício do poder está em risco poderá recorrer ao Secretário-
Geral ou ao Conselho Permanente, a fim de solicitar assistência
para o fortalecimento e preservação da institucionalidade
democrática.”21

O segundo mecanismo de proteção à democracia previsto pela Carta


Democrática consiste na iniciativa por parte do Secretário-Geral ou o Conselho
Permanente, mas com o consentimento do governo, em tomar atitudes face à uma
possível situação de disturbio à democracia, como explicita o artigo 18:

“Artigo 18
Quando, em um Estado membro, ocorrerem situações que
possam afetar o desenvolvimento do processo político
institucional democrático ou o legítimo exercício do poder, o
Secretário-Geral ou o Conselho Permanente poderão, com o
consentimento prévio do governo afetado, determinar visitas e
outras gestões com a finalidade de fazer uma análise da situação.
                                                            
21 Ibid.
 
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O Secretário-Geral encaminhará um relatório ao Conselho


Permanente, o qual realizará uma avaliação coletiva da situação e,
caso seja necessário, poderá adotar decisões destinadas à
preservação da institucionalidade democrática e seu
fortalecimento.”22

A terceira situação prevista pela Resolução é a possibilidade de acionar o


sistema americano por deposição de um governo através de um golpe interno. É o
que prevê o artigo 20º:

“Artigo 20
Caso num Estado membro ocorra uma alteração da ordem
constitucional que afete gravemente sua ordem democrática,
qualquer Estado membro ou o Secretário-Geral poderá solicitar a
convocação imediata do Conselho Permanente para realizar uma
avaliação coletiva da situação e adotar as decisões que julgar
convenientes.

O Conselho Permanente, segundo a situação, poderá determinar a


realização das gestões diplomáticas necessárias, incluindo os bons
ofícios, para promover a normalização da institucionalidade
democrática.

Se as gestões diplomáticas se revelarem infrutíferas ou a urgência


da situação aconselhar, o Conselho Permanente convocará
imediatamente um período extraordinário de sessões da
Assembléia Geral para que esta adote as decisões que julgar
apropriadas, incluindo gestões diplomáticas, em conformidade
com a Carta da Organização, o Direito Internacional e as
disposições desta Carta Democrática.

No processo, serão realizadas as gestões diplomáticas necessárias,


incluindo os bons ofícios, para promover a normalização da
institucionalidade democrática.”23

Em ambos os casos é possível, caso persista a ruptura da ordem


democrática, que haja como consequência imposta ao Estado a limitação de sua

                                                            
22 Ibid.
23 Ibid.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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participação na organização, como bem explicitam os artigos 19º e 21º da Carta


Democrática:

“Artigo 19
Com base nos princípios da Carta da OEA, e sujeito às suas
normas, e em concordância com a cláusula democrática contida na
Declaração da Cidade de Québec, a ruptura da ordem democrática
ou uma alteração da ordem constitucional que afete gravemente a
ordem democrática num Estado membro constitui, enquanto
persista, um obstáculo insuperável à participação de seu governo
nas sessões da Assembléia Geral, da Reunião de Consulta, dos
Conselhos da Organização e das conferências especializadas, das
comissões, grupos de trabalho e demais órgãos estabelecidos na
OEA.

(…)

Artigo 21
Quando a Assembléia Geral, convocada para um período
extraordinário de sessões, constatar que ocorreu a ruptura da
ordem democrática num Estado membro e que as gestões
diplomáticas tenham sido infrutíferas, em conformidade com a
Carta da OEA tomará a decisão de suspender o referido Estado
membro do exercício de seu direito de participação na OEA
mediante o voto afirmativo de dois terços dos Estados membros.
A suspensão entrará em vigor imediatamente.

O Estado membro que tiver sido objeto de suspensão deverá


continuar observando o cumprimento de suas obrigações como
membro da Organização, em particular em matéria de direitos
humanos.

Adotada a decisão de suspender um governo, a Organização


manterá suas gestões diplomáticas para o restabelecimento da
democracia no Estado membro afetado.”24

Referida suspensão, entretanto, deve ser interrompida tão logo seja


superada a questão que a motivou, por proposta de qualquer Estado membro ou do
                                                            
24 Ibid.

 
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Secretário-Geral, aprovada pelo voto de dois terços dos Estados membros, de acordo
com a Carta da OEA.
Outro mecanismo de fortalecimento da democracia delineado pela
Resolução consiste na assessoria por parte da OEA em processos eleitorais através
do envio de missões de observação eleitoral, a pedido e com a concordância do
Estado em questão, a ser realizada de forma objetiva, imparcial, transparente e
independente, apresentando à organização relatórios sobre a observação.
Cumpre observar, após análise preliminar dos principais mecanismos
existentes para a proteção da democracia no sistema americano, o caráter débil dessa
proteção. Isso porque, objetivando efetivar ao máximo o princípio na não-
intrevenção, a Carta Democrática coloca nas mãos dos “governos” o pedido e a
concordância para a assistência da OEA em situações de excepcionalidade
democrática, desconsiderando o fato de que em diversas situações são os próprios
governos que usurpam e ameaçam a democracia. Isso pode fazer da Carta
Democrática um instrumento de proteção dos governos, a prescindir da proteção
verdadeira da democracia, dada pelos critérios inclusive traçados no referido
documento.

5. CONCLUSÕES

A busca pela efetividade dos direitos humanos e da democracia no plano


interno dos Estados tem no Direito Internacional relevantes instrumentos, que não
devem ser esquecidos ou subestimados. Em verdade, observamos um movimento
em busca da humanização do Direito Internacional, atrvavés da valorização dos seres
humanos como seu objetivo primário, e sua reconstrução como jus gentium, direito

 
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universal de toda a humanidade. Antônio Augusto Cançado Trindade nos brinda


com essa reflexão:

“Con el reconocimiento inequivoco de que ningún Estado puede


considerarse por encima del Derecho, volvemos a los orígenes
conceptuales tanto del estado nacional como del Derecho
Internacional. Em cuanto al primero, no hay que olvidarse que el
Estado fue originariamente concebido para la realización del bien
común, y que existe para el ser humano, y no vice versa. Em
cuanto al segundo, tampoco hay que olvidarse que el Derecho
Internacional no era em sus orígenes un derecho estrictamente
interestatal, sino más bien el derecho de gentes.”25

A Organização dos Estados Interamericanos e a Corte Interamericana de


Direitos Humanos são exemplos desses instrumentos, disponíveis para a proteção e
promoção da democracia no continente americano, e efetivação das normas
protetivas nacionais e internacionais, apesar de seus limites e dificuldades.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.

BOSON, Gerson de Britto Mello. Constitucionalização do Direito Internacional:


Internacionalização do Direito Constitucional – Direito Constitucional Internacional Brasileiro.
Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

Carta da Organização dos Estados Americanos (Reformada pelo Protocolo de


Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos "Protocolo de Buenos
Aires", assinado em 27 de fevereiro de 1967, na Terceira Conferencia Interamericana
                                                            
25 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização do Direito Internacional. Belo Horizonte: Del

Rey, 2006. p. 172.


 
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Extraordinária; pelo Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados


Americanos "Protocolo de Cartagena das Índias", assinado em 5 de dezembro de
1985, no Décimo Quarto período Extraordinário de Sessões da Assembléia Geral;
pelo Protocolo de Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos
"Protocolo de Washington", assinado em 14 de dezembro de 1992, no Décimo Sexto
período Extraordinário de Sessões da Assembléia Geral; e pelo Protocolo de
Reforma da Carta da Organização dos Estados Americanos "Protocolo de Manágua",
assinado em 10 de junho de 1993, no Décimo Nono Período Extraordinário de
Sessões da Assembléia Geral.) Versão oficial em português disponível em:
http://www.oas.org/juridico/portuguese/carta.htm.

Carta Democrática Interamericana. Aprovada na primeira sessão plenária, realizada


em 11 de setembro de 2001. Versão oficial em português disponível em:
http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm

COMPARATO, Fabio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo:
Saraiva, 2008.

DORNELLES, João Ricardo W. A Internacionalização dos Direitos Humanos. Revista da


Faculdade de Direito de Campos, Ano IV, n. 04, 2003.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional. Curso de Direitos


Fundamentais. São Paulo: Método, 2008.

MALINSKI, Tania Alexandra. A Jurisorudência da Corte Interamericana de Direitos


Humanos e a Trajetória da Política Externa Brasileira em Matéria de Direitos Humanos: Pontos
de Convergência. In: Os Rumos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ensaios em

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

Homenagem ao Professor Antônio Augusto Cançado Trindade. Tomo III. Porto


Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo:


Saraiva, 2008.

PIOVESAN, Flavia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Savaiva, 2009.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A humanização do Direito Internacional. Belo


Horizonte: Del rey, 2006

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos


Direitos Humanos. Volume III. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.

KOSKENNIEMI, Marti. International Law Comission, 58ª sessão. Fragmentation of


International Law: Difficulties arrising from the Diversification and Expansion of
International Law. Relatório do estudo analítico realizado pelo Grupo de Estudos da
Comissão de Direito Internacional, 13 de abril de 2006, UN. Doc. A/CN.4/L.682.
Disponível em: http://untreaty.un.org/ilc/texts/1_9.htm

 
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A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A


CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, COMO EXERCÍCIO DA
CIDADANIA

Rodrigo Batista Coelho1


José Antonio Remédio2

RESUMO

Entre os inúmeros desafios a serem enfrentados pelo Estado no mundo


moderno, ganha evidência a necessidade da implementação eficiente de políticas
públicas na consolidação dos direitos fundamentais, notadamente dos direitos sociais
(segunda geração ou dimensão), visando tornar possível o exercício pleno da
cidadania.
Pouco adianta livrar o indivíduo do arbítrio estatal, ao assegurar-lhe
diversos direitos individuais se, no plano dos direitos sociais, muito ainda precisa ser
feito, sobretudo porque a concretização de referidos direitos depende, em sua
maioria, da implementação eficiente de políticas públicas.
No caso brasileiro, a Constituição da República, ao mesmo tempo em que
prevê direitos fundamentais de caráter negativo, por exigirem do Estado uma
abstenção (a exemplo do direito à liberdade, direitos civis e direitos políticos), acaba
também por impor ao Poder Público a obrigação de implementar prestações
materiais e jurídicas no plano fático, ou seja, direitos fundamentais de caráter
positivo, cuja viabilização depende da execução de políticas públicas bem elaboradas
e que vinculem, de modo efetivo, a atuação do Estado.
Em outros termos, a abstenção do Estado não é suficiente para concretizar
integralmente os direitos fundamentais, sendo imprescindível uma atuação
incessante, por meio do exercício pleno e prático da cidadania, para se atingir tal
desiderato.
A ineficiência estatal, aliada a determinados aspectos culturais, não pode
frustrar a concretização dos direitos sociais e, diante do caráter instrumental das
políticas públicas, sobreleva a importância da atuação do Ministério Público e do
                                                            
1 Mestrando em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba.
2 Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
 
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Poder Judiciário na sua efetivação, ainda que relacionada ao denominado “mínimo


existencial” ou “mínimo vital”, com fundamento, essencialmente, na preservação da
dignidade da pessoa humana.

Palavras-Chave: Direitos Sociais; Políticas Públicas; Cidadania.

ABSTRACT

Amongst the innumerable challenges to be faced by the Government in the


modern world, gains evidence the need of the efficient implementation of public
policies in the consolidation of the basic rights, especially of the social rights (second
generation or dimension), aiming to become possible the full exercise of the
citizenship.
It is useless to exempt the individual of the state will, when assuring diverse
individual rights, if in the plan of the social rights, much still needs to be done,
especially because the concretion of related right depends, in its majority, of the
efficient implementation of public policies.
In Brazil, the Constitution of the Republic, at the same time where it
foresees basic rights of negative character, demanding from the State an abstention
(the example of the right to freedom, civil laws and political rights), also imposes to
the Public Power the obligation to implement material and legal attitudes (basic right
of positive character), that depends on the execution of well elaborated public
policies and that they effectively tie the performance of the State.
The abstention of the Government is not enough to materialize the basic
rights, being essential an incessant performance, through the full and practical
exercise of the citizenship, to reach such desideratum.
The inefficiency of the State, allied to determined cultural aspects, cannot
frustrate the concretion of the social rights, leaving evident the instrumental
character of the public policies and the importance of the performance of the Public
Prosecution Service and the Judiciary in the preservation of the social rights, at least
on what concerns to “the minimum existence” or “vital minimum”, with bedding,
essentially, in the preservation of the dignity of the human being.

Keywords: Social Rights; Public Policies; Citizenship.

 
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1-) Introdução: aspectos históricos e conceituais

A história da evolução dos direitos fundamentais liga-se intimamente à


história da própria humanidade, na incansável busca por assegurar a efetivação de
direitos que permitam uma vida humana digna, livre de arbitrariedades e que tenha
por premissa a igualdade entre os indivíduos.
A concepção originária de cidadania, cujo surgimento se deu na Grécia e
Roma antigas, indicava a posição política do indivíduo, com nítido apelo à igualdade
de direitos políticos, embora não fosse, à época, praticada por todos os indivíduos
que integravam a sociedade.
Em sua célebre obra Elementos da Teoria Geral do Estado, o Ilustre Professor
Dalmo de Abreu Dallari (2001, p. 96) esclarece que cidadão, na Grécia antiga,
indicava apenas o membro ativo da sociedade política, aquele que podia participar
das decisões políticas, sendo que, juntamente com os cidadãos, também os homens
livres não dotados de direitos políticos e os escravos compunham a “polis” ou
cidade-Estado, ou seja, quando se fala em povo, em Atenas, só se incluem nessa
expressão os indivíduos que têm certos direitos.
Portanto, a noção de cidadania, na antiguidade greco-romana, trazia em seu
bojo uma concepção bastante restritiva e excludente.
Durante toda a Idade Média, a despeito das discussões relacionadas ao
sentido do termo “cidadania”, remanesceram nítidas contradições quanto ao seu
exercício, sobretudo porque eram recorrentes as distinções entre as pessoas que
integravam determinadas classes sociais, com reflexos na possibilidade de
participação na vida comunitária. O exercício da cidadania, nesse período, não levava
em conta a plenitude da igualdade entre os indivíduos, tal qual concebido nos tempos
atuais.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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O princípio da igualdade, como hoje é entendido, assenta suas raízes no


Cristianismo, levando-se em conta a mensagem de libertação do homem, com
afirmação da dignidade da pessoa humana, em vista de sermos criaturas formadas à
imagem e semelhança de Deus, o que, necessariamente, conduz à ideia de sermos
irmãos e iguais entre si (SILVA, 2001, p. 173).
Nisso reside uma nítida inspiração para a evolução dos direitos
fundamentais do homem, de modo que encontramos forte expressão dos direitos
fundamentais de primeira geração na Magna Carta Inglesa de 1215, do Rei João Sem
Terra. Este marco, por sua vez, acaba por reconhecer, em documento solene, a
necessidade de preservação das liberdades individuais através de um comportamento
de abstenção, com vistas a implementar o controle do absolutismo sobre a vida do
indivíduo.
Já na Idade Moderna, na Europa, durante os séculos XVII e XVIII,
percebia-se a existência de uma sociedade dividida em classes, nas quais os nobres
gozavam de muitos privilégios e os monarcas governavam sem nenhuma limitação,
com poderes absolutos.
Ao lado dessas duas classes sociais de grande expressão, havia as pessoas
comuns, que eram separadas em burgueses (que detinham riquezas) e aqueles que
dependiam do seu trabalho no campo ou na cidade para sobreviverem.
Ante a tensão estabelecida entre todas essas classes sociais, houve um
momento em que os burgueses e os trabalhadores, inconformados com as
arbitrariedades e as injustiças praticadas pelos reis absolutistas e pela nobreza,
uniram-se contra os nobres, fazendo uma série de revoluções, conhecidas como
“revoluções burguesas” (DALLARI, 2004, p. 18).
É no período das revoluções liberais (francesa e norte-americana) que os
chamados direitos de primeira geração (ou dimensão) ganham verdadeiramente
expressão, vez que “a burguesia reivindica o respeito às liberdades dos indivíduos e a
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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consequente limitação dos poderes públicos. São direitos individuais com caráter
negativo por exigirem diretamente uma abstenção do Estado (...)” (NOVELINO,
2008, p. 227).
Contudo, é especialmente após a Revolução Industrial e com a luta do
proletariado que nasce a necessidade de instituição de direitos efetivamente ligados
ao valor igualdade, com a implementação de prestações materiais e jurídicas que
visem a reduzir as desigualdades no plano fático.
Esses direitos, por sua vez, vinculam-se à imperiosa necessidade de respeito
ao núcleo mínimo vital ou mínimo existencial do indivíduo e, embora estejam
condicionados à disponibilidade orçamentária de um Estado, as normas que os
informam não podem ser apenas programáticas, ante os anseios de sua
concretização, notadamente pelo caráter social desses direitos.
Conforme Vidal Serrano Nunes Júnior o denominado mínimo vital deve ser
“entendido como o dever do Estado, caudatariamente ao princípio da dignidade
humana, garantir a todos um ‘standard’ social mínimo incondicional” (NUNES
JÚNIOR, 1999, p. 70).
Durante o século XX, os direitos sociais são amplamente difundidos em
diversos textos normativos pelo mundo, ganhando evidente destaque em diversas
Constituições modernas, cujos marcos são a Constituição Mexicana de 1917 e a
Constituição de Weimar de 1919.
De outra banda, na concepção de Konrad Hesse (1996, p. 97), haveria uma
certa fragilidade intrínseca à natureza dos direitos sociais no que diz respeito ao seu
estatuto constitucional, pois, em seu entender, eles não consolidam direitos
subjetivos (que geram possibilidade de reparação perante o Estado), mas apenas
direitos que são realizados através de “tarefas de Estado”, programas de objetivos
sujeitos a amplas margens legislativas e políticas de configuração.

 
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Todavia, as normas programáticas contempladas nas Constituições


modernas, embora se refiram basicamente a programas ou metas governamentais,
passam a ser consideradas vinculantes, em função da densidade de seu conteúdo,
dando ensejo, em muitos casos, ao surgimento de direitos subjetivos, com
possibilidade de efetiva prestação jurisdicional, como se verifica, a título de exemplo,
com as disposições constitucionais programáticas concernentes à educação e à saúde.
Em vista da atual tendência de “Constitucionalização do Direito”, com
evidente participação dos diversos Poderes de Estado e do Ministério Público na
busca pela concretização dos direitos sociais, vem se adotando a interpretação que
mais prestigie a “força normativa da Constituição”, expressão empregada pelo
próprio Konrad Hesse, e que expressa a necessidade de valorização da efetividade
das normas constitucionais, de sorte que estas precisam ser vistas como expressões
com força verdadeiramente vinculante e não apenas simbólicas ou programáticas.
Nesse sentido, ao afirmar o caráter vinculativo das normas programáticas, o
Professor José Afonso da Silva preconiza que “o fato de dependerem de
providências institucionais não quer dizer que não tenham eficácia. Ao contrário, sua
imperatividade direta é reconhecida, como imposição constitucional aos órgãos
públicos” (SILVA, 1998, p, 155).
Por essa linha de intelecção, cada vez mais ganham espaço na seara jurídica
os temas vinculados às políticas públicas, entendidas como ações positivas de Estado
ou de Governo, e tendentes a concretizar os direitos fundamentais, em especial os
direitos sociais.
E, a despeito da grande dificuldade de se conceituar a expressão “políticas
públicas”, notadamente no que concerne à sua forma de exteriorização reconhecível
pelo sistema jurídico, e ante a ausência de uniformidade na utilização desta expressão,
é mister destacar que as políticas públicas possuem distintos suportes legais, podendo

 
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ser expressas em disposições constitucionais, em leis infraconstitucionais e até em


normas infralegais, tais como decretos e portarias.
A Professora Maria Paula Dallari Bucci (2006, p. 14) concebe a política
pública como sendo um programa ou quadro de ação governamental, consistente
num conjunto de medidas articuladas ou coordenadas, cujo objetivo é “movimentar a
máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública ou, na
ótica dos juristas, concretizar um direito”.
As políticas públicas, conforme Luíza Cristina Fonseca Frischeisen (2000, p.
76), representam, basicamente, “a eficácia social do direito do cidadão a obter
prestações positivas do Estado”.
É evidente que essa atuação cabe precipuamente aos Poderes Executivo e
Legislativo, sem perder de vista, contudo, a importante e crescente atuação do Poder
Judiciário e do Ministério Público no controle da efetivação dessas políticas previstas
em vários textos jurídicos e sobretudo na Constituição da República, dando ensejo às
tendências hoje denominadas “Judicialização de Políticas Públicas” e “Ativismo
Judicial”.

2-) A Instrumentalidade das políticas públicas na ótica da Constituição


Federal

A instrumentalidade das políticas públicas, sem prejuízo de outros


caminhos, passa necessariamente pela adequada interpretação das normas
constitucionais e, sob o prisma da “força normativa da Constituição”, tem por
premissa a necessidade de tornar efetivo o direito social preconizado no campo
hipotético, sob pena de esvaziamento de seu conteúdo e de inexequibilidade.

 
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Diversamente dos direitos fundamentais de 1ª geração, que exigem


basicamente um comportamento de abstenção por parte do Estado (caráter
negativo), os direitos sociais demandam prestações materiais no plano fático, a
exemplo dos direitos à educação e à saúde.
Noutro giro, não se pode esquecer que os direitos sociais devem ser
entendidos como direitos-meio, posto que visam a assegurar o exercício de direitos
individuais de primeira geração.
Assim, com base em nossa Constituição Federal, pode-se utilizar o
exemplo do inciso I do artigo 5º (inserido no capítulo dos Direitos e Deveres
Individuais e Coletivos), o qual garante a igualdade entre homens e mulheres. Esta
disposição constitucional, por sua vez, para ser viabilizada no plano fático
(concretizada) está a depender, dentre outras medidas, do efetivo cumprimento do
disposto no inciso XX do artigo 7º (inserido no capítulo dos Direitos Sociais), que
trata da proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos,
nos termos da lei.
Trazendo novamente à baila as lições da Professora Maria Paula Dallari
Bucci (Op. cit., p. 14), e considerando a positivação constitucional dos direitos
sociais, é possível chamar os direitos sociais de direitos-meio, eis que esses direitos
têm por principal função assegurar que toda pessoa tenha condições de gozar os
direitos individuais de primeira geração e, pra que isso fosse possível, é que se
formularam e se positivaram nas Constituições e nas Declarações internacionais, tais
direitos.
De outro lado, esses direitos sociais necessitam de instrumentos capazes de
torná-los concretos no plano fático, sob pena de se restringirem apenas ao plano
teórico.
Nesse sentido, tomando-se como exemplo o antes citado inciso XX do
artigo 7º da Carta da República, tem-se que sua efetivação está a depender da
 
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implementação de políticas públicas estatais, que podem consistir, v.g., em programas


de conscientização da diversidade de sexo no mercado de trabalho e incentivos
fiscais para as empresas contratarem mulheres em seus quadros, no caso de serem
constatadas distorções que limitem os acessos das mulheres aos postos de trabalho.
Portanto, as políticas públicas revestem-se de nítido caráter instrumental, na
medida em que permitem a concretização dos direitos fundamentais e exteriorizam,
especialmente, os comandos constitucionais afetos aos direitos sociais.

3-) Controle judicial das políticas públicas

No Estado Democrático de Direito, a discricionariedade dos atos emanados


do Poder Público está sempre vinculada aos princípios fundamentais, para que não se
traduza em arbitrariedades.
Portanto, ao se falar em políticas públicas, há de se ter claro que sua
exequibilidade passa pela ótica da discricionariedade do Administrador, que agirá
segundo critérios de conveniência e oportunidade.
Contudo, o conceito de discricionariedade não pode corresponder à
possibilidade de omissão pelo Poder Público, que passaria a estar avalizado a agir
segundo seu bel prazer na implementação de políticas públicas. De outra banda, não
se pode conceber também a execução de uma determinada política pública em
detrimento de outra que verdadeiramente corresponda à concretização dos direitos
fundamentais.
Nessa esteira, a despeito de competir principalmente aos Poderes Executivo
e Legislativo a implementação de políticas públicas, resta inequívoca a importância da
atuação do Órgão Ministerial, cujo perfil institucional está contemplado no art. 127,
“caput”, da CF, e do Poder Judiciário, no controle dessas políticas, notadamente
 
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quando sua implementação depender de atos discricionários do Administrador que,


por sua vez, devem levar em conta a adoção do “comportamento ótimo” (MELLO,
2001, p.32-33), que satisfaça plenamente às exigências da lei.
Por esta senda, pode-se dizer, com base nas lições do ilustre professor Celso
Antônio Bandeira de Mello (Op. cit.), que o administrador está, “nos casos de
discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os
comportados pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta
perfeição à finalidade da lei.”
Parte da doutrina entende que existem atos administrativos de
discricionariedade vinculada, posto que, em dadas circunstâncias concretas, somente
uma dentre as possíveis condutas a serem adotadas pelo Poder Público
corresponderia aos anseios legais e representaria o “comportamento ótimo”.
O Professor Juarez Freitas (2004, p. 216-237), ao investigar aspectos
intrínsecos ao ato discricionário, assim consigna que “a diferença de atos
administrativos vinculados e discricionários reside antes na maior ou menor
intensidade de vinculação3 ao princípio da legalidade do que na eventual inexistência
de liberdade do agente na consecução dos atos administrativos”, ou seja, o
administrador público emite juízos decisórios de valor nos atos discricionários
vinculados, objetivando imprimir crescente concretização dos valores constitucionais,

                                                            
3 Não se nega, por evidente, a distinção. Veja-se o seguinte julgado: “De acordo com o disposto no

art. 98 da Lei n. 8.112/1990, o horário especial a quem tem direito o servidor estudante condiciona-se
aos seguintes requisitos: comprovação de incompatibilidade entre o horário escolar e o da repartição;
ausência de prejuízo ao exercício do cargo; e compensação de horário no órgão em que o servidor
tiver exercício, respeitada a duração semanal do trabalho. Atendidos esses requisitos deve ser
concedido o horário especial ao servidor estudante, porquanto o dispositivo legal não deixa margem à
discricionariedade da Administração, constituindo a. concessão do benefício, nesse caso, ato
vinculado. Recurso não provido” (2002/0031578-8, DJ de 24.3.2003). Bem observadas as coisas e
tudo considerado, um grau de liberdade na avaliação dos requisitos (por exemplo, avaliação do
prejuízo), em certa medida, existe, mas há, está claro, nessa situação, mas acentuada vinculação, por
opção legislativa, ao princípio da legalidade.

 
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ao passo que, nos atos vinculados, emite apenas o mínimo de juízo estritamente
necessário à subordinação principiológica e ao controle interno do sistema.
Por conta disso, ganha evidente relevância a atuação do Órgão Ministerial e
do Poder Judiciário no controle das políticas públicas (conhecida como
“judicialização de políticas públicas”), as quais devem pautar-se pela concretização
dos direitos sociais, e cuja implementação nada mais representa que a própria
garantia de preservação da supremacia da Constituição Federal.
Não restam dúvidas, por outro lado, que muita polêmica existe quanto ao
controle judicial das políticas públicas, sobretudo porque alguns defendem, aí, haver
uma usurpação de competência atribuída a outros poderes que não ao Poder
Judiciário, com violação ao Princípio da Separação dos Poderes.
Contudo, em que pese esse ponto de vista, não parece ser ele o mais
adequado, notadamente porque a judicialização das políticas públicas representa uma
garantia ao indivíduo de que seu direito fundamental será concretizado, não obstante
tenha o Poder responsável pela sua concretização restado omisso. É, por assim dizer,
a busca do Órgão Julgador para fazer prevalecer um preceito constitucional, havendo
guarida no Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição.
Nossa Suprema Corte, ao enfrentar essa temática, em especial no que
concerne ao dever do Estado de assegurar vagas para crianças de até seis anos de
idades em creches e pré-escola, impôs referida obrigação ao Município de Santo
André (SP), após ação movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, cuja
decisão resta assim ementada:

E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA


DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM
CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL -
DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO
CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO
GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À

 
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EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE


IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO
MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO.
- A educação infantil representa prerrogativa constitucional
indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito
de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do
processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso
à pré-escola (CF, art. 208, IV).
- Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado,
por efeito da alta significação social de que se reveste a educação
infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas
que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de
zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e
atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de
configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar,
injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder
Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da
Constituição Federal.
- A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental
de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a
avaliações meramente discricionárias da Administração Pública,
nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.
- Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino
fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não
poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente
vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei
Fundamental da República, e que representa fator de limitação da
discricionariedade político-administrativa dos entes municipais,
cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche
(CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a
comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de
mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.
- Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e
Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas,
revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar,
ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de
políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas
implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão -
por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos
que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a
comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e

 
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culturais impregnados de estatura constitucional. A questão


pertinente à "reserva do possível". Doutrina.4

Portanto, o controle judicial das políticas públicas não implica em violação


ao Princípio Constitucional da Separação dos Poderes, desde que respeitados os
próprios limites impostos pelo Texto Constitucional, mas consubstancia-se num
legítimo instrumento colocado à disposição dos organismos investidos da
competência necessária para assegurar a concretização dos direitos fundamentais e,
por conseguinte, o pleno exercício da cidadania.

4-) Concretização de direitos sociais como exercício da cidadania

Levando-se em conta toda a evolução do conceito de “cidadania” ao longo


da história da humanidade, e superadas as tentativas de equipará-la aos direitos
políticos ou aos direitos de nacionalidade, é mister criar caminhos que conduzam a
um conceito mais amplo do termo “cidadania”, sobretudo para que este possa
corresponder efetivamente à definição de Hannah Arendt, trabalhada pelo Professor
Celso Lafer (1988, p. 146-166), no sentido de que a cidadania é a consciência que o
indivíduo tem do “direito a ter direito”.
Assim, todo e qualquer mecanismo de concretização de direitos também
consiste na formação de bases para o exercício da cidadania, em prestígio à dignidade
da pessoa humana.
A Constituição Federal brasileira de 1988, ao contemplar a cidadania como
princípio fundamental da República Federativa do Brasil, República esta constituída

                                                            
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Improvimento do Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário nº 410715/SP. Agravante: Município de Santo André. Agravado: Ministério Público do
Estado de São Paulo. Relator: Ministro Celso de Mello. Julgamento em 22/11/2005. 2º Turma.
Votação unânime. DJ 03/02/2006. p 76.
 
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em Estado Democrático de Direito, acaba por conceber a cidadania como sendo o


exercício de direitos (art. 1º, “caput”).
Em sua obra Direitos Humanos e Cidadania, o professor Paulo Hamilton
Siqueira Jr. (2009, p. 244), observa que “a cidadania plena surge com os direitos
sociais. Não existe direito de liberdade de expressão sem o direito à educação”
Na concepção de T. H. Marshall, que circunscreve a análise do fenômeno
ao modelo inglês, a cidadania é um “status” concedido àqueles que são membros
integrais de uma sociedade, sendo composta de direitos civis (alcançados no século
XVIII) e políticos (obtidos no século XIX), considerados de primeira geração, e de
direitos sociais (alcançados no século XX), considerados de segunda geração
(MARSHALL, T. H 1967, p. 76).
Para o Professor Jaime Pinsky (2003, p. 9), segundo consta da obra História
da cidadania, a cidadania relaciona-se, sobretudo, com os direitos sociais, que acabam
por viabilizar a fruição dos direitos civis e políticos, de sorte que:

Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade à


igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também
participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos
políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia
sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do
indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao
salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila. Exercer cidadania é
ter direitos civis, políticos e sociais.

José Geraldo Brito Filomeno (1999, p. 132), por sua vez, conceitua
cidadania como:

A qualidade de todo ser humano, como destinatário final do bem


comum de qualquer estado, que o habilita a ver reconhecida toda a
gama de seus direitos individuais e sociais, mediante tutelas
adequadas colocadas à sua disposição pelos organismos
 
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institucionalizados, bem como a prerrogativa de organizar-se para


obter esses resultados ou acesso àqueles meios de proteção e defesa.

No dizer de Fábio Ramazzini Bechara (1999, p. 65), cidadão não


corresponde apenas a uma referência ou a um atributo, ou ainda a sinônimo de
indivíduo, “cidadão é participação na formação da vontade estatal; é interferência nas
questões e decisões políticas; é luta incessante pela defesa dos seus direitos”.
Segundo Anna Trotta Yaryd (2008, p. 308), cidadão é o indivíduo “a quem a
Constituição confere direitos e garantias - individuais, políticos, sociais, econômicos e
culturais – e dá o poder de seu efetivo exercício além dos meios processuais
eficientes contra a violação de seu gozo ou fruição por parte do poder público”.
Pela tese arendtiana, a ciadania é o “direito a ter direitos” (SIQUEIRA
JÚNIOR, 2009, p. 241).
A par disso, não se pode permitir que a concretização dos direitos sociais
esteja vinculada à capacidade orçamentária de cada Estado, sob o argumento da
“reserva do possível”, pois, embora seja notória a necessidade de se ter recursos
financeiros para a execução de prestações materiais, este pensamento pode levar a
uma ineficácia dos direitos sociais preconizados na Lei Maior e, por consequencia,
restaria também inviabilizado o exercício da cidadania.
Na mesma linha do raciocínio acima esposado, o Professor José Afonso da
Silva (1999, p. 11) em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo (RDA), faz,
com evidente sapiência, uma correlação entre o exercício da cidadania, os direitos
fundamentais (sobretudo sociais), a máxima da igualdade de condições e a
disponibilidade financeira do Estado, deixando consignado que

A cidadania, assim considerada, consiste na consciência de


pertinência à sociedade estatal como titular dos direitos
fundamentais, da dignidade como pessoa humana, da integração
participativa no processo de poder com a igual consciência de que
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à


dignidade do outro, de contribuir para o aperfeiçoamento de
todos. Essa cidadania é que requer providências estatais no
sentido da satisfação de todos os direitos fundamentais em
igualdade de condições. Se é certo que a promoção dos direitos
sociais encontra, no plano das disponibilidades financeiras,
notáveis limites, menos verdade não há de ser que, inclusive em
épocas de recessão econômica, o princípio da igualdade continua
sendo um imperativo constitucional, que obriga a repartir também
os efeitos negativos de todo período de crise.

Na lição de Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, p. 194-196), parece clara, no


ordenamento jurídico brasileiro, a impossibilidade de aplicação da chamada teoria da
reserva do possível, quer em relação ao âmbito de projeção do conceito de mínimo
vital, quer quanto aos direitos públicos subjetivos atribuídos por norma
constitucional, os quais não outorgam qualquer margem de conformação para o
legislador ordinário, inclusive em relação às leis orçamentárias, sendo sua aplicação
circunscrita apenas a discussões referentes à realização de direitos sociais que
extrapolem o conceito de mínimo vital e que não estejam incorporados por normas
constitucionais atributivas de direitos públicos subjetivos.
Finalmente, o mínimo vital que assegura o respeito à dignidade da pessoa
humana há de ser protegido a qualquer custo, ganhando tônica a necessidade da
implantação de políticas públicas capazes de concretizar direitos fundamentais,
sobretudo os direitos sociais.

5-) Conclusão

Na esteira de todo o exposto, é possível concluir pela íntima relação entre


políticas públicas, concretização de direitos e exercício da cidadania, tendo-se por

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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premissa a necessidade de preservação do mínimo existencial para a preservação da


dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto, a concretização dos direitos sociais (direitos fundamentais
de 2ª geração), de cunho prestacional, representa, em grande medida, a própria
efetivação da plena cidadania, notadamente porque esses direitos também efetivam
os direitos fundamentais de primeira geração (liberdades públicas), em vista de serem
considerados direitos-meio.
O respeito ao núcleo vital mínimo está, portanto, diretamente relacionado à
capacidade do Estado de desenvolver políticas públicas que concretizem os direitos
sociais preconizados no texto constitucional, devendo ele valer-se das mais variadas
ações de caráter positivo, pautado-se pela eficiência na execução dos preceitos
constitucionais e atentando-se para a “força normativa da Constituição”.
Deste modo, os preceitos contidos em nossa Lei Maior cada vez mais
passam a ganhar novos contornos e a vincular a atuação estatal, ainda que
concebidos como normas programáticas.
Esta evolução na concepção do papel estatal, por sua vez, solidifica o
Estado Democrático de Direito e torna viável o exercício pleno da cidadania a todas
as classes sociais.
Assim, mais do que prestigiar o Princípio da Igualdade formalmente
considerado, é imprescindível criar-se igualdade de oportunidades.
Finalmente, a inércia do Estado em cumprir o atendimento ao bem comum
de seu povo, principalmente pela não efetivação ou pela prestação inadequada dos
direitos sociais contemplados na Constituição Federal, dá ensejo, ao menos em
muitas hipóteses, à busca do Poder Judiciário para se atender a tal desiderato.

 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A JUSTIÇA COMO HIPÉRBOLE – O PROGRAMA NACIONAL DE


DIREITOS HUMANOS E O PROJETO CONSTITUINTE DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO

David Francisco Lopes Gomes1

RESUMO

Uma das principais características das Constituições modernas é sua abertura ao


futuro. Fruto do exercício de um poder constituinte situado histórica e
geograficamente, essas Constituições vivenciam problemas de legitimidade que só
podem ser resolvidos no tempo histórico. Nesse sentido, o que o ato constituinte e a
Constituição dele decorrente representam é o marco inaugural de um projeto
constituinte, um projeto que se lança ao futuro carregado de expectativas que serão
ou não concretizadas de acordo com a maneira como se der a relação sempre tensa
entre faticidade e validade. Isso permite compreender esse projeto, sobretudo em sua
dimensão intergeracional, como algo que, por um lado, se encontra sujeito a
fracassos e retrocessos, mas, por outro, carrega consigo a possibilidade de corrigir a si
mesmo no por-vir da História. Dentro dessa lógica, o presente trabalho procura
abordar o Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3, a partir de uma
compreensão do projeto constituinte brasileiro (re)inaugurado com a Constituição de
1988. Sem pretender elaborar uma análise sistemática dos múltiplos pontos, mais ou
menos polêmicos, que compõem o plano, o que este trabalho procura é discutir em
que sentido o PNDH-3 pode ser compreendido no interior de um processo de
interpretação constitucional que procura atribuir significado ao texto da Constituição
e aos princípios que a conformam. Contudo, essa atribuição de significado,
exatamente por seu conteúdo histórico e hermenêutico, é provisória e incompleta,
uma vez que a justiça aparece frente ao direito como hipérbole, e cada nova inclusão
gera uma nova exclusão, o que traz à tona o caráter inevitavelmente complexo,
parcial e fragmentado de toda identidade constitucional.
                                                            
1 Mestrando em Direito pela UFMG. Bolsista CAPES/REUNI. Diretor Executivo do Instituto de

Hermenêutica Jurídica. Integrante do grupo de estudos Flanar – Direito, Utopia e Democracia.


 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Palavras-chave: Constituição, Identidade Constitucional, Direitos Humanos.


Keywords: Constitution, Constitucional Identity, Human Rights.

“o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe


para a gente é no meio da travessia.” (João Guimarães
Rosa, 1994, p. 85)

I - Introdução

Uma das principais características das Constituições modernas, em oposição


tanto às Constituições da Antigüidade quanto às Constituição do Medievo, é sua
projeção ao futuro (HABERMAS, 2003). Enquanto as Constituições pré-modernas
referiam-se a um passado imemorial que lhes fosse capaz de assegurar estabilidade e
legitimidade (FIORAVANTI, 2001), a impossibilidade desse recurso ao passado faz
com que modernamente as Constituições vivenciem a questão da legitimidade como
uma carência originária que só pode ser solucionada no correr do tempo histórico.
As Revoluções Americana e Francesa vieram revelar-se como ápice de um
processo de esgotamento das formas até então vigentes de justificação do poder
político e das normas jurídicas (ARENDT, 1988). Essas justificações apoiavam-se
basicamente na tríade composta pela autoridade, pela tradição e pela religião, tríade
romana que havia sido apropriada pela Igreja Católica quando de sua ascensão ao
poder secular (ARENDT, 2005). Como resposta ao esfacelamento dessa tríade, um
dos principais produtos teóricos dessas revoluções, sobretudo da Revolução
Francesa, foi a elaboração do que ficaria conhecido como teoria do poder
constituinte.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Para além de uma justificativa sobrenatural para o poder e para as leis, o


fundamento político e jurídico do Estado passava a ser a vontade dos homens,
mesmo que essa vontade viesse ainda expressa, especialmente no caso francês, nos
moldes teomórficos de uma Nação onipotente. À Constituição cabia a partir de então
o papel de assegurar a relação entre o direito e a política, entre um direito cada vez
mais sem possibilidade de recorrer ao direito natural e uma política já sem
possibilidade de recorrer ao direito divino de governar.
Na medida, porém, em que o exercício desse poder constituinte se dá de
modo inevitavelmente tenso, as Constituições que dele derivam nascem marcadas
pelo problema de como afirmarem sua própria legitimidade em face da ordem
jurídica, política e social com a qual rompem. Sem ser possível voltar atrás e se
apegar a um conjunto de tradições e valores comuns, a possibilidade de solução que
se mostra a esse problema é a compreensão da Constituição como um projeto
aberto, um projeto constituinte que toma o ato constituinte e a Constituição por ele
elaborada como seu marco inaugural. Esse projeto lança-se ao futuro carregado de
expectativas que serão ou não consolidadas de acordo com a maneira como se der a
relação entre faticidade e normatividade e, se é verdade que se encontra sujeito a
fracassos e retrocessos, não é menos verdade que carrega consigo a possibilidade de
corrigir a si mesmo com o passar dos anos (HABERMAS, 2003).
Mas essa possibilidade de correção não reside no projeto em si. Ela reside
na postura que a sociedade terá diante da Constituição, principalmente na postura
que as distintas gerações que se sucedem umas às outras assumirão frente à tarefa de
(re)interpretar constantemente o texto constitucional. É na prática cotidiana de
indivíduos, grupos, entidades da sociedade civil organizada e órgãos do Estado que
habita, por excelência, a possível aprendizagem e correção do projeto constituinte do
Estado Democrático de Direito.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Neste artigo, procura-se discutir o Programa Nacional de Direitos


Humanos, o PNDH-3, como uma etapa dentro do processo de aprendizado e
consolidação do projeto constituinte do Estado Democrático de Direito brasileiro
(re)inaugurado com a Constituição de 1988. Sem se apegar a pontos específicos do
programa, o texto busca entendê-lo no interior de um processo de disputa por
interpretação das normas constitucionais, uma disputa que se mostra como tentativa
de atribuir novos sentidos sobremaneira aos princípios fundantes da igualdade e da
liberdade.

II - A Hermenêutica Constitucional e a Identidade Constitucional

Tendo a Constituição pretensões normativas que se dilatam no tempo e


alcançam, por isso mesmo, uma dimensão intergeracional, não é difícil perceber que
seu texto – como, aliás, qualquer texto – é sempre um texto à espera de interpretação
e que a prática constitucional é notadamente uma prática hermenêutica.
A interpretação constitucional, contudo, não é privilégio dos órgãos estatais
responsáveis por essa função. No contexto de sociedades complexas e altamente
diferenciadas, as possibilidades de atribuição de sentidos às normas constitucionais
extrapolam em muito as capacidades de quaisquer órgãos isolados em si mesmos,
ainda que sejam órgãos coletivos. O único caminho para que esse déficit
hermenêutico possa ser atenuado é a compreensão de que a interpretação das normas
constitucionais cabe à sociedade como um todo, ou seja, indivíduos, grupos,
entidades e também os órgãos do Estado não diretamente responsáveis por essa
função. Os fluxos comunicativos no interior dos quais acontece esse contínuo
processo hermenêutico precisam encontrar caminho para que possam chegar até os

 
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órgãos oficiais que, a princípio, devem fixar o sentido do texto da Constituição –


embora, no limite, a fixação do sentido de qualquer texto seja sempre impossível.
Se a prática constitucional é uma prática fundamentalmente hermenêutica e
se essa atividade hermenêutica se prolonga intergeracionalmente e atravessa estratos
históricos distintos, torna-se necessário dar atenção ao fato de que toda interpretação
só pode ocorrer no seio de paradigmas que atuam, a um só tempo, como limite e
condição de possibilidade dessa interpretação. Os sentidos que se atribuem a uma
norma constitucional serão distintos conforme se situem em tal ou qual pano de
fundo paradigmático (HABERMAS, 1997, p. 123-190).
Essas breves reflexões acerca da hermenêutica constitucional não deixam
dúvidas sobre as complexidades envolvidas na construção do sentido de uma
Constituição. É dentro dessa lógica que a identidade constitucional, ou melhor, que
toda identidade constitucional caracteriza-se como aberta, fragmentada, parcial e
permanentemente incompleta (ROSENFELD, 2003).
Como identidade constitucional, ela precisa diferenciar-se de outras
identidades coletivas, como a identidade nacional, a identidade religiosa ou a
identidade cultural. Entretanto, precisa também abrir-se a essas identidades e dialogar
com elas, preservando, não obstante, a possibilidade de que novas identidades
venham, a todo instante, integrar-se a esse diálogo. Assim, a identidade constitucional
aparece como um processo incessante de construção e reconstrução do seu
conteúdo. Nesse processo, tem relevância ímpar a atuação de atores sociais que
colocam em questão as interpretações então vigentes das normas constitucionais e
buscam alterar seu sentido, demandando reconhecimento e oferecendo novos
parâmetros hermenêuticos para se compreenderem a Constituição e as normas que a
conformam, parâmetros esses baseados muitas vezes na vivência de uma exclusão
que se acredita contradizer os princípios fundantes da ordem constitucional.

 
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III - A Constituição de 1988 e o PNDH-3

A Constituição brasileira de 1988 representa, ao menos do ponto de vista


normativo, o apogeu do processo de retomada do regime democrático no país. Por
outro lado, porém, ela representa igualmente o ponto de partida para a consolidação
desse mesmo regime. Sem entrar nas polêmicas envolvendo questões formais
atinentes ao processo constituinte do qual ela resultou, é possível dizer que, como
Constituição moderna, também ela vivencia o problema da legitimidade como uma
carência ou um vazio relativo que somente pode ser preenchido ao longo do tempo.
Ao (re)inaugurar o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito brasileiro,
ela inscreve em si mesma as possibilidades de que essa legitimidade seja aferida no
transcurso histórico a partir do momento em que torna expressas em seu texto um
conjunto de expectativas.
Todavia, essas expectativas não simplesmente aparecem na Constituição,
como se advindas de uma realidade que lhe é externa. Ao enfatizar a abertura ao
futuro que caracteriza as Constituições modernas, é necessário ter em vista que essa
impossibilidade de recurso ao passado como fonte de legitimação não significa um
abandono do passado como espaço de experiência e, portanto, de aprendizado e
memória. É dessa experiência e dessa memória que emerge aquele conjunto de
expectativas explicitadas no texto constitucional (CATTONI, 2009).
O extenso rol de incisos do artigo 5o da Constituição de 1988, por exemplo,
pode ser adequadamente compreendido como um esforço de resposta tanto às
arbitrariedades do regime anterior quanto às mazelas contra as quais lutavam os
distintos atores sociais que vieram a fazer parte do processo constituinte de 1987 e
1988 (CATTONI, 2006).
Mas, pese a que as normas expressas na Constituição de 1988 possam ser
entendidas como a explicitação de expectativas já presentes na experiência e na
 
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memória do país, o passar do tempo, a sucessão de gerações e as mudanças internas à


sociedade como um todo fazem com que o sentido daquelas normas não permaneça
estaticamente igual ao sentido que possuíam quando foram inseridas no texto
constitucional.
Se, como dito acima, a prática constitucional é, por excelência, uma prática
hermenêutica, e se a identidade constitucional é inevitavelmente aberta, fragmentada,
parcial e incompleta, a Constituição de 1988 também se oferece a um processo
constante de interpretação, construção e reconstrução. Isso acontece principalmente
em relação aos princípios constitucionais de igualdade e liberdade. Afinal, eles são o
fundamento do Estado Democrático de Direito e as distintas fases pelas quais passou
esse Estado podem ser lidas como maneiras distintas de interpretá-lo (HABERMAS,
1997, p. 123-190).
É nesse sentido que deve ser compreendido o Programa Nacional de
Direitos Humanos, o PNDH-3. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que se trata de
um decreto da presidência da república, originalmente o decreto 7.037, de 21 de
dezembro de 2009. Logo, o programa consiste em diretrizes de ação para a
administração pública federal, não intervindo nas esferas dos poderes legislativo ou
judiciário. Ao contrário de muitas das críticas que lhe foram feitas, o PNDH-3 não
pretende, por si só, mudar leis e muito menos a Constituição. Nas vezes em que se
refere a alterações das normas legais ou constitucionais, o que há é sempre a idéia de
atuar para que cheguem até o poder legislativo propostas de mudança, propostas que
possam ser discutidas no Congresso Nacional e ali encontrar a aprovação ou a
refutação adequadas.
Em segundo lugar, embora consista, em termos jurídicos, em um decreto
presidencial, isso não significa que o PNDH-3 seja um documento de gabinete,
elaborado por especialistas ausentes da realidade concreta das violações de direitos
humanos no Brasil. O conteúdo final do programa é resultado de um debate amplo
 
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com entidades da sociedade civil organizada que atuam na defesa dos direitos
humanos. As grandes conferências que vêm acontecendo no país em nível municipal,
estadual e nacional são um exemplo de espaços de encontro e debate dentro dos
quais muitas das normatizações presentes do PNDH-3 surgiram.
Esse debate amplo com a sociedade civil pode ser verificado pela extensão
do programa e pela forma detalhada com que trata os temas abrangidos. Por outro
lado, pode ser verificado também pela postura ambígua que muitas entidades
assumem diante do programa. A igreja católica, por exemplo, que participou da
elaboração do documento e o defende em muitos pontos, apresenta-lhe críticas em
temas como o aborto e a retirada de símbolos sacros das repartições públicas. Isso
mostra que o PNDH-3 é resultado de um debate do qual participaram vozes distintas
e significativamente plurais. O que poderia indicar a existência de contradições
internas ao programa, ao receber apoio e crítica ao mesmo tempo de uma mesma
instituição, nada mais indica do que a legitimidade desse programa. Afinal, essas
aparentes contradições expressam não mais do que o caráter democrático do PNDH-
3 e sua construção aberta a atores diversos e com pontos de vista destoantes.
Composto de seis eixos orientadores e vinte e cinco diretrizes que se
dividem entre esses eixos, o programa desce a minúcias e procura responder
satisfatoriamente a demandas oriundas de setores os mais variados da sociedade
brasileira. A interação democrática entre Estado e sociedade civil; a articulação entre
desenvolvimento e direitos humanos; a universalização de direitos num contexto de
desigualdade; a segurança pública, o acesso à justiça e o combate à violência; a
educação e a cultura em direitos humanos; e o direito à memória e à verdade – isto é,
os seis eixos que compõem o programa – podem ser agrupados sob a mesma lógica
de luta e respeito pelos direitos humanos, mas mantêm entre si diferenças de foco
capazes de revelar a vastidão da abordagem pretendida pelo PNDH-3.

 
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É nessa abordagem vasta que reside o trunfo do programa. Como dito na


introdução deste artigo, não se pretende aqui debater pontos específicos do PNDH-
3. Muitas de suas propostas, senão todas, carecem de maior discussão. Mas o que o
programa propõe é exatamente abrir essa discussão, seja através de comissões,
estudos ou propostas a serem encaminhadas ao legislativo. São totalmente legítimas
as críticas que se possam levantar contra tal ou qual proposta pontual do programa.
Porém, críticas que se buscam contrapor a ele como um todo, tanto a seu conteúdo
quanto a sua forma de construção e a suas pretensões democratizantes, carecem de
legitimidade democrática. Isso porque o PNDH-3 representa nem mais nem menos
do que um esforço de interpretação da Constituição da República de 1988 que seja
capaz de ampliar o sentido de seus princípios conformadores na direção de uma
sociedade mais democrática e mais inclusiva.
Não foram poucos os argumentos que acusaram o programa de
inconstitucionalidade. Por mais que haja pontos que possam ter sua
constitucionalidade discutida – até porque, coerentemente com o que se defendeu
acima, a prática constitucional é uma prática hermenêutica que se abre a
compreensões distintas por atores diversos – o programa em si, como busca pela
consolidação do projeto constituinte (re)inaugurado com a Constituição de 1988, não
padece de inconstitucionalidade. Antes, ele expressa um esforço de compreensão do
texto constitucional que se mostre mais consistente e mais adequado à realidade
nacional e à própria Constituição inserida nessa realidade. Se é verdade que a
Constituição de 1988 assegura a liberdade e a igualdade, o que deve significar a
concretização desses princípios no interior da sociedade brasileira? É essencialmente
essa pergunta que rege o PNDH-3.

 
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IV - Considerações Finais: A Justiça como Hipérbole e o Projeto Constituinte


do Estado Democrático de Direito

Nenhuma Constituição nasce pronta. Como texto à espera de uma


interpretação, o que ela faz é inaugurar um projeto constituinte e lançá-lo ao futuro.
Na medida em que esse projeto almeja alcançar todos e todas que se encontram sob
a regulação do texto constitucional e almeja também ser reconhecido por eles e por
elas como fundamento de sua liberdade e de sua igualdade, a carência de legitimidade
da qual padece originariamente toda Constituição pode ser preenchida no transcurso
histórico.
Se esse projeto que se lança ao futuro é, por definição, sujeito a
compreensões múltiplas que se distinguem no tempo e no espaço, tal característica
tem suas dimensões aumentadas no contexto de sociedades complexas e altamente
diferenciadas como são as sociedades da Modernidade tardia. E essas dimensões
ampliam-se ainda mais no quadro de sociedades que, além de diferenças de valores e
visões de mundo, vivenciam significativas desigualdades sociais e econômicas. A
disputa pelo sentido das normas constitucionais num país como o Brasil reflete toda
essas dificuldades.
Como regra, essa disputa procura apoiar-se, ainda que contrafaticamente,
num entendimento do que seja a justiça. Não sendo possível definir seu conteúdo a
priori, a busca por essa definição acontece em meio a lutas e demandas sociais que
têm por intuito ampliar os limites do direito, ou seja, do direito entendido como o
conjunto das normas positivadas e das interpretações consolidadas acerca dessas
normas. Sendo assim, tanto a justiça como a relação que ela estabelece com o direito
possuem uma natureza fluída. E isso ocorre porque a justiça se apresenta ao direito
como hipérbole (DERRIDA, 2007).

 
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As normas positivadas e as interpretações consolidadas a seu respeito jamais


dão conta da totalidade de demandas sociais que acreditam apoiar-se numa
compreensão da justiça para formular seus argumentos. A justiça é inevitavelmente
exagero frente ao direito. Embora exista também dentro dele, ela transborda seus
limites enquanto busca precisamente ampliá-los. Essa postura hiperbólica tem por
horizonte um por-vir que se diferencia do futuro pela abertura ao inesperado que
precisa necessariamente carregar (DERRIDA, 2007). O por-vir não é a espera do que
antes já se definiu como o que deveria vir. Ao contrário, ele é a possibilidade de que
venha o que não se esperava até porque não se imaginava que pudesse vir. É esse
elemento do inesperado que garante o caráter hiperbólico da justiça em face do
direito.
Contudo, se a hipérbole, como figura de linguagem, conceitua-se como
exagero, há um outro significado para hipérbole. Para a matemática, hipérbole é o
nome que se dá a uma figura gráfica cujas curvas se aproximam infinitamente das
retas que se configuram como suas assíntotas, mas jamais as tocam. Talvez o
exemplo mais elementar e mais típico de uma hipérbole seja aquele gráfico formado a
partir da equação f(x) = 1/x (BARUFI, 2001), em que os eixos x e y, eles mesmos, é
que aparecem como assíntotas. Considerando-se que x jamais pode ser igual a zero,
as duas curvas simétricas que surgem dessa equação caracterizam-se por
aproximarem-se indefinidamente de ambos os eixos, mas sem tocá-los. Elas se
aproximam infinitamente, mas nunca os tocam.
A relação entre a justiça e o direito, além de um sentido de exagero, pode
ser tomada como tendo também esse segundo sentido de hipérbole. O direito
procura incessantemente tocar a justiça e se aproxima dela a cada instante dentro do
contínuo de interpretações ao qual está sempre submetido. Todavia, ele nunca a toca,
pois cada nova inclusão gera uma nova exclusão que redefine uma vez mais a relação
entre a justiça e o direito e reafirma a natureza hiperbólica dessa relação.
 
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O Programa Nacional de Direitos Humanos é um exagero. Se há uma


crítica que de fato se lhe possa fazer é esta: o PNDH-3 é um exagero. As demandas
por justiça que ele abriga transbordam em relação às normas jurídicas do
ordenamento positivo brasileiro e às interpretações consolidadas dessas normas.
Repita-se, porém, que isso não significa afirmar a inconstitucionalidade do programa.
É apoiando-se nos princípios insaturados, e sempre insaturáveis, do texto
constitucional que o PNDH-3 objetiva, quando objetiva, contribuir para a alteração,
seja das normas jurídicas, seja de suas compreensões tradicionais.
Mas o PNDH-3 não é só um exagero. Não é só esse exagero saudável que
procura alertar a sociedade brasileira para as promessas ainda não cumpridas pelo seu
projeto de constituir-se num Estado Democrático de Direito livre e igualitário, um
exagero que, como exagero, poderia ser precipitadamente tomado como ponto de
chegada. O PNDH-3 não é o ponto de chegada. Ele é somente uma etapa nova
dentro de uma relação hiperbólica em que o direito busca a justiça sem jamais fixá-la
totalmente dentro de si. Essa etapa, claro, não é a primeira dentro desse processo. O
próprio PNDH-3 vem na seqüencia de dois outros programas nacionais de direitos
humanos que foram elaborados anteriormente. Seguramente, não será também a
última. Muitas outras virão depois dela.
Isso, entretanto, não lhe retira legitimidade nem justifica seu abandono. Se o
projeto constituinte do Estado Democrático de Direito pode ser assumido como um
projeto sujeito a fracassos e retrocessos, mas capaz, por outro lado, de aprender com
a história e corrigir a si mesmo, é imperativo procurar aprender com o Programa
Nacional de Direito Humanos e com as demandas por justiça que ele representa e
apresenta.
Que muitas dessas demandas não serão satisfatoriamente atendidas, não há
dúvidas. Mas isso também não retira legitimidade ou justifica o abandono do
programa. É necessário não esquecer a tensão entre faticidade e validade que permeia
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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a relação entre qualquer realidade social e as pretensões normativas que podem ser
reconstruídas a partir de seu interior.
Após um longo período ditatorial, as movimentações da sociedade civil em
prol das Diretas Já e sua participação na elaboração do texto constitucional de 1988
puderam mostrar um amadurecimento histórico da democracia brasileira. O período
pós-1988 tem reforçado esse amadurecimento e refutado teses tradicionais acerca de
uma incapacidade do Brasil para a democracia ou acerca da necessidade de seu
contentamento com aquilo que seria uma democracia possível (FERREIRA FILHO,
1979).
Se é verdade que não se vive no país uma democracia plenamente
estabilizada, não é menos verdade que a democracia, em si, é um regime que jamais
se estabiliza plenamente. A democracia deve ser entendida como processo, como
processo aberto a inclusões múltiplas e infinitas. Isso não quer dizer que a
democracia não possua limites. Ela os possui, e os encontra naquelas atitudes ou
demandas que ameaçam a pluralidade e a abertura à diferença que a devem
caracterizar.
Como processo, a democracia é também hipérbole. Hipérbole como exagero
em face das instituições em que se consubstanciam os princípios democráticos,
princípios que parecem sempre exigir mais do que aquelas instituições são capazes de
oferecer. E hipérbole também como busca que nunca termina, como aproximação
que nunca chega. E não chega porque não há lugar certo aonde chegar.
Democracia é processo e caminho, não chegada. Por conseguinte, se não há
um modelo perfeito a buscar e muito menos a esperar, é preciso deixar de lado tanto
a tese da incapacidade brasileira para a democracia quanto a tese da democracia
possível. A elas deve ser oposta a tese da democracia sem espera (CATTONI, 2009),
da democracia que se constrói aqui e agora, com suas dificuldades, obstáculos e

 
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erros, mas buscando aprender com todos esses momentos em prol da construção de
uma sociedade mais justa, mais livre e mais igualitária.
Não é na saída nem na chegada, mas no meio da travessia que o real se
dispõe. O PNDH-3 está nesse meio. E, se ele não é plenamente o real, porque este,
em termos de democracia, jamais pode ser fixado, ele é uma etapa fundamental
dentro da busca pela consolidação do projeto constituinte do Estado Democrático de
Direito brasileiro.

V - Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 5a. edição.
São Paulo: Perspectiva, 2005.

ARENDT, Hannah. Da Revolução. Trad. Fernando Dídimo Vieira. Rev. Trad. Caio
Navarro Toledo. Brasília e São Paulo: Universidade de Brasília e Ática, 1988.

BARUFI, Maria Cristina Bonomi. O gráfico de f(x)=1/x é uma hipérbole? Revista do


Professor de Matemática. São Paulo, n. 45, 2001, p. 10-16.

CATTONI, Marcelo. Poder Constituinte e Patriotismo Constitucional: o projeto


constituinte do Estado Democrático de Direito na teoria discursiva de Jürgen
Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.

CATTONI, Marcelo. Democracia sem espera e processo de constitucionalização –


Uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. In:
CATTONI, Marcelo; MACHADO, Felipe (coord.). Constituição e Processo: A resposta
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

do constitucionalismo à banalização do terror. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.


367-399.

DERRIDA, Jacques. Do direito à justiça. In: DERRIDA, Jacques. Força de lei: o


fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democracia possível. 5a. ed., rev. São Paulo:
Saraiva, 1979.

FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: De la antiguedad a nuestros dias. Trad.


Manuel Martinez Neira. Madrid: Trotta, 2001.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v 2. Trad.


Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal


de princípios contraditórios? In: HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Trad. Flávio
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 153-173.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Trad. Menelick de Carvalho


Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

 
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A INEXEGIBILIDADE DOS DIREITOS DE TERCEIRA GERAÇÃO NOS


DIAS ATUAIS

Natália Freitas Miranda1

RESUMO

Os Direitos Humanos de Terceira Geração padecem do drama da


inexigibilidade em razão de um processo precário e superficial de positivação interna
pelos Estados, o que acarreta uma dificuldade de efetivação dessa categoria de
Direitos.
Essa exposição se divide em três momentos, a saber:
Um primeiro momento voltado para a evolução histórica no processo de
declaração dos Direitos Fundamentais, que alcançam seu ápice na Revolução Francesa.
Esse momento histórico na França repercutiu no Ocidente; e o lema revolucionário
“Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, caracterizado pela universalidade e
generalização daqueles direitos, inspirou a classificação geracional triádica dos
mesmos: direitos de primeira geração correspondendo ao lema Liberdade; os de
segunda, referidos ao ideário da Igualdade e os de terceira à Fraternidade. Os de
primeira geração encontram ampla efetividade nos séculos que se seguem; os de
segunda (ditos sociais) clamam por efetivação já no final do século XX e início deste;
os de solidariedade ainda são um desafio para o direito contemporâneo.
Em um segundo momento, discorrer-se-á sobre as características essenciais
dos direitos humanos de terceira geração para compreensão reflexiva e conceitual
construída ao longo do tempo. Especialmente após as tensões vividas no século XX,
principalmente em decorrência das guerras, desenvolveu-se com mais consistência a
temática da categoria de Direitos Fundamentais de terceira geração. Estes, dotados
de alto grau de “humanismo e universalidade” perpassam os ideais de fraternidade,
preocupando-se com as questões da sociedade no presente e no futuro, como, por
exemplo, o direito ao meio ambiente.
Num terceiro momento, pretende-se apontar modalidades previstas na
Constituição Federal de 1988, o que possibilitará tratar das perspectivas jurídicas e a
concreção no sistema vigente no Brasil atual dos direitos de terceira geração. É
                                                            
1 Graduanda do 5º período em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
 
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sabido que essa categoria de direitos é caracterizada por uma ínfima manifestação
constitucional, portanto, nota-se uma proteção pouco expressiva pelo Estado
Brasileiro. Destarte, pode-se inferir que esses interesses jurídicos não ultrapassam "a
órbita do Direito Internacional”, denotando a ocorrência de inexigibilidade de tais
direitos, o que deve consubstanciar-se preferencialmente no plano das ordens
internas.

Palavras-Chave: Direitos Humanos de Terceira Geração.

SUMÁRIO

1. Introdução; 2. Evolução Histórica dos Direitos Fundamentais; 3. Características


essenciais dos direitos de terceira geração; 4. As modalidades dos direitos de terceira
geração previstas na Constituição Federal de 1988; 5. Conclusão; 6. Referências
Bibliográficas.

1. Introdução

A expressão Direitos Fundamentais é a denominação mais cabível e


freqüentemente utilizada nos meios jurídicos, referindo-se aos ideais de liberdade e
dignidade humana2. Todavia, também se relaciona às terminologias banalizadas como
Direitos Humanos ou Direitos do Homem, o que não significa a sobreposição desses
direitos, apenas uma preferência doutrinária.
Salienta-se que cada Estado tem seus direitos fundamentais bem definidos,
pois estes variam de acordo com as peculiaridades de cada sociedade3. Há Estados,
por exemplo, que adotam a pena de morte como solução judicial. Nota-se, portanto,
que o direito à vida, imanente à condição humana, é fundamental e tutelado por

                                                            
2 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 1996,
p. 514.
3 BONAVIDES, Curso de Direito..., cit, p. 515.

 
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algumas nações, mas para outras não há essa proteção de maneira absoluta, ao passo
do infrator ser sancionado, retirando-lhe este direito.
Historicamente, pode-se fixar a Revolução Francesa em 1789, como o
momento de reconhecimento e declaração dos direitos humanos, o que pode ser
justificado pelo lema revolucionário “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Tal
expressão, caracterizada pela universalidade e generalização, influenciou a
classificação geracional triádica de Norberto Bobbio, remetendo a contextos
históricos específicos.
O princípio da Liberdade refere-se à primeira geração, pois se buscava o
rompimento com as opressões estatais e religiosas. Já o ideário de Igualdade
relaciona-se com a segunda geração de direitos, uma vez que todos os homens são
iguais, o que possibilita gozar dos direitos existentes, objetivando excluir todo tipo de
discriminação. E, por fim, os direitos de terceira geração, objeto desta pesquisa,
surgiram principalmente no contexto pós-guerras mundiais, demonstrando a
necessidade de se proteger questões mais amplas no seio social, em prol da
coletividade, rompendo com o individualismo característico das primeiras gerações.
Cabe ressaltar que não houve uma sobreposição entre gerações, pelo
contrário, o caráter que as perpassa é de complementação, na medida em que a
sociedade desenvolve-se, manifestam-se novas demandas e, portanto, o Direito
adapta-se às novas condições. Diante disso, tornam-se inteligíveis as motivações em
torno dos direitos de Terceira Geração. Estes surgiram em um momento histórico de
intensa instabilidade social, em que as pessoas temiam as conseqüências de uma
possível guerra. A paz deveria ser tutelada. Patrimônios da humanidade foram
destruídos em batalhas. O capitalismo, consolidado no período, propiciava um
desenvolvimento desumano, em que o consumo exarcebado tornou-se pressuposto
para existência. As informações passaram a circular em frações de segundo.

 
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Destarte, a sociedade mundial necessitou ser protegida diante das inúmeras


dificuldades apresentadas no contexto Neoliberal, o que implicou na necessidade de
tutelar direitos até então desconhecidos da realidade invidualista predominante.
Infere-se, portanto, que os direitos de terceira geração emergiram da reflexão sobre
temas referentes à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à comunicação e ao
patrimônio da Humanidade4.
Trata-se da categoria de direitos titulados como difusos, pois a coletividade
detém a titularidade deles. Segundo Bonavides, tais preceitos jurídicos assentam-se
sobre o principio da fraternidade5. São dotados de alto teor de humanismo e de
humanidade, uma vez que tem primeiro por destinatário o gênero humano6.
No entanto, tais direitos padecem do drama da inexigibilidade, uma vez que
atuais dirigentes transferem às futuras estruturas políticas a responsabilidade de
torná-los efetivos, o que não é possível em detrimento da não congruência “entre o
dever-ser normativo e o ser da realidade social.7 Pode-se elencar, também, a ausência
de uma positivação interna mais clara e objetiva, ampliando a manifestação
constitucional e a proteção estatal; e o fato da população, em geral, desconhecer que
pode exigir determinados direitos e quais as possibilidades de acesso ao judiciário.

2. Evolução Histórica dos Direitos Fundamentais

Primeiramente pretende-se uma reflexão acerca do desenvolvimento dos


direitos Humanos até a concepção atual, a partir de uma abordagem histórica. Não
                                                            
4 BONAVIDES, Curso de Direito..., cit, p. 523.
5 BONAVIDES, Curso de Direito..., cit, p. 523
6 BONAVIDES, Curso de Direito..., cit, p. 523.
7 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 6. ed. Rio de Janeiro:

Renovar, 2002, p. 85 apud LIPOVETSKY, Nathália. A teoria dos direitos humanos fundamentais e o direitos
de natureza prestacional [monografia de graduação]. Belo Horizonte: UFMG, 2009
 
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se trata, portanto, de uma análise exaustiva de todos os fatos relacionados, e sim,


como propõe Bobbio, de perceber por trás de um acontecimento da História o
fundamento deles.
Paulo Biscaretti di Ruffia afirma que na antiguidade não se encontram
verdadeiras declarações de direitos dos cidadãos frente ao autoritarismo estatal como
no medievo8. Mister observar, sobretudo, os motivadores que perpassaram
determinados comportamentos e valores intrínsecos dos sujeitos nesses períodos. E
diante disso, pode-se afirmar que há uma postura individualista em ambos os
momentos, fundamentando as manifestações contrárias aos excessos do Estado e
dos institutos religiosos. A luta do indivíduo face aos excessos de exercícios de
poderes nas suas variadas formas.
Na mesma ordem de importância, cabe mencionar alguns eventos históricos
que também revelaram essa tendência de afirmação do indivíduo face ao Estado,
apesar de não ter alcançado, no primeiro momento, caráter filosófico e universal,
visando à tutela do indivíduo. Nesse sentido, Ruffia reflete que:

“Em todas as declarações britânicas dos direitos e dos deveres dos


cidadãos, não se encontra nenhuma proclamação de alcance
filosófico e universal; trata-se sempre de contingentes
confirmações de antigos costumes e de preexistentes institutos
jurídicos capazes de tutelar o individuo frente às ameaças da
autoridade real. E, portanto, os documentos solenes que contêm
(mesmo que tenham sido concedidos unilateralmente pelo
soberano ou imposto pelo Parlamento à sua aceitação)
apresentam-se sempre como textos normativos idôneos para
serem invocados pelo cidadão no Tribunal, para tutelar os
próprios interesses específicos, que culminam na defesa da própria
liberdade pessoal.”9

                                                            
8 DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional: Instituições de Direito Público. Trad. Maria
Helena Diniz. 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 515.
9 DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional...cit, p.517.

 
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No início do século XIII ocorreu a declaração da Magna Carta Libertatum,


documento este responsável por limitar os excessos da autoridade régia perante os
cidadãos10. Por mais que representasse fato pontual na história inglesa, não se pode
eximir a importância de tal evento, uma vez que representou um marco para
Inglaterra, servindo de base ao constitucionalismo que desenvolverá a posteriori.
Várias manifestações sucederam-se na Inglaterra, reafirmando o primeiro
documento, como a Declaração da Petition of Rights, em 1628, a qual reafirmava as
limitações impostas à autoridade régia da Magna Carta; a criação e utilização do
Habeas Corpus, a partir do mesmo ano, impedindo toda detenção arbitrária de
Carlos II; e o ápice desse movimento se deu em 1689, com a Bill of Rights, após a
Revolução Gloriosa, consolidando a estrutura parlamentar e limitando de fato os
excessos do soberano, o que justifica a famosa expressão “o rei reina, mas não
governa.”11
Somente no séc. XVIII, principalmente na França, consolidou-se o ideário
político pautado na idéia de que os indivíduos eram detentores de direitos naturais
frente ao Estado, apoiando empressupostos filosóficos de um originário Estado de
natureza e de um Contrato Social (jusnaturalismo ou doutrina do direito natural
contratualista). Nota-se, por sua vez, uma mudança de perspectiva, haja vista que se
rompeu com a ordem tradicional de que o individuo era submisso ao governante e
que o poder sobre os homens procedia de cima para baixo12.
Para exemplificar, mencionemos as Declarações de Independência dos Estados
Unidos, as quais tiveram influência do movimento filosófico-juridico europeu. E
também a Revolução Francesa em 1789 e o desenvolvimento da Declaração dos Direitos do

                                                            
10 DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional...cit, p.515. 
11 DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional...cit, p.516-517
12 DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional...cit, p.518-519.

 
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Homem e do Cidadão no mesmo ano.13 Relacionado ao significado da Revolução na


França, cabe fazer a seguinte menção:

“O tempo de juvenil entusiasmo, de orgulho, de paixões


generosas e sinceras, tempo do qual, apesar de todos os erros, os
homens iriam conservar eterna memória, e que, por muito tempo
ainda, perturbará o sono dos que querem subjugar ou corromper
os homens.”14

Diferentemente da Revolução Americana, a Francesa caracterizou-se por um


universalismo, por influenciar significativamente o Ocidente, refletindo em
movimentos emancipatórios, como as inúmeras Revoluções de Independência que
ocorreram na América Latina. Destarte, os ideais de “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade” possibilitaram o desenvolvimento de uma nova consciência jurídica e a
necessidade de tutelar novos direitos até então desprotegidos ou até mesmo
desconhecidos.
Ademais, cabe frisar que a partir desse lema, elaborou-se a classificação
triádica dos direitos humanos em gerações, atribuída a Norberto Boobio, sendo que
o pressuposto de Liberdade embasou a primeira geração, propondo o rompimento
com as instituições controladoras do Antigo Regime. O ideário de Igualdade,
fundamento da segunda geração de direitos, inovou a condição política e jurídica dos
cidadãos em relação ao Estado, ao propor um sistema mais justo àqueles sujeitos. E,
por fim, o princípio da Fraternidade, base da terceira geração de direitos, que “quase
todo tempo, se quedou como princípio da solidariedade social”15, é caracterizado por
complementar as primeiras gerações de direito e são também denominados como

                                                            
13 DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional...cit, p.518-519 
14 A. de Tocqueville, láncien régime et la révolution inCEuvres complètes, Paris, 1952, tomo II, p.72. { ed.
brasileira: O antigo Regime e a Revolução, Brasília, ed. UNB, 1979. Apud BOBBIO, A Era dos
Direitos, cit., p86. 
15 DE ANDRADE, Maria Inês Chaves. A Fraternidade como Direito Fundamental: Entre o ser e o dever

ser na dialética dos opostos de Hegel. Belo Horizonte: 2007, p.18. 


 
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difusos, pois referem-se a coletividade. Segue abaixo a contextualização de


Bonavides, para melhor ilustrar o período de surgimento dos direitos coletivos:

“A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas


e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento deu
lugar em seguida a que se buscasse uma outra dimensão dos
direitos fundamentais, até então desconhecida.”16

Diante do exposto, é perceptível que os Direitos Fundamentais modificaram-


se ao longo do tempo e não permanecem os mesmos. E, naturalmente, o futuro
demonstrará novos aspectos da realidade a serem tutelados pelo Judiciário, mas para
que isso ocorra, é necessário que se tornem efetivos e exigíveis socialmente.
Atualmente, é do drama da inexigibilidade que padecem os direitos de terceira
geração, no entanto, pode-se inferir que exigir tais direitos será possibilitado na
medida em que os sujeitos demandarem maior proteção, o que é uma questão de
tempo e não pode ser tardio e irreversível.

3. Características essenciais dos Direitos Humanos de Terceira Geração

Para uma reflexão mais elaborada acerca dos Direitos de Terceira Geração,
é interessante traçar as características mais relevantes que os perpassam, podendo,
assim, compreender os fatores relacionados à inexigibilidade dessa categoria de
normas.
Bonavides faz uma consideração conceitual extremamente sensível e
completa de tais direitos:

                                                            
16 BONAVIDES, Curso de Direito..., cit, p.522.
 
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“Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os


direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se neste fim de
século enquanto direitos que não se destinam especificamente à
proteção dos interesses do individuo, de um grupo ou de um
determinado Estado. Têm por primeio destinatário o gênero
humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação
como valor supremo em termos de existencialidade concreta. Os
publicistas e juristas já os enumeram com familiaridade,
assinalando-lhe o caráter fascinante de coroamento de uma
evolução de trezentos anos na esteira da concretização dos
direitos fundamentais. Emergiram eles da reflexão sobre temas
referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à
comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.”17

Por se tratar de direitos que surgiram em um contexto pós-guerras


mundiais, nota-se uma preocupação com a coletividade e não mais com preceitos
individualistas, como ocorreu no século XVIII. Relacionado a isso, assentam-se
sobre o princípio da Fraternidade, ideário este mais fortalecido na comunidade
internacional, que se embasa primordialmente no auxilio mútuo entre as nações,
tanto de cunho financeiro como político. Esses direitos são geralmente vistos em
Tratados Internacionais, para exemplificar, pode-se mencionar a Carta africana de
1981; e também a Carta de Paris em 1990.18
Ao refletir acerca dos componentes desses direitos difusos, nota-se que eles
são de natureza complexa e heterogênea.19 O sujeito é indeterminável, na medida em
que não se pode determiná-lo em nenhuma hipótese. O objeto é indivisível, não se
pode reparti-lo, assim infere-se que todos são titulares do mesmo direito e todas as
conseqüências serão igualmente distribuídas na sociedade, sejam benéficas ou não. E
também, deve-se mencionar a característica denominada como transindividualidade,
em que os sujeitos de direito são desconsiderados da condição de indivíduo e

                                                            
17 BONAVIDES, Curso de Direito..., cit, p.523
18 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 4. ed. rev. São Paulo,
Saraiva, 2000, p.58. 
19 FERREIRA FILHO, Direitos Humanos Fundamentais, cit., p.64-66.

 
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tornam-se padronizados dentro de uma determinada categoria social, o que


transcende ao escopo individual. O interesse em questão deixa de ser de um membro
da sociedade para ser de toda ela20. Cabe mencionar a lição de Carlos Henrique
Bezerra Leite acerca dessas características:

“A fundamentalidade desses novos direitos híbridos é reconhecida


com atenção à preocupação de todos os povos com a qualidade de
vida, o desenvolvimento sustentável e integrado da pessoa
humana e da preservação da natureza. Além da teoria dos direitos
fundamentos, desponta, hodiernamente, a teoria dos interesses
metaindividuais que, propondo atual superação da doutrina
individualista, propiciou uma nova categorização de direitos e
interesses, como a sua justiciabilidade, antes inimaginável.” 21

Ademais, cabe ressaltar que a exigência de tutelar a terceira geração de


direitos remete às futuras estruturas políticas. Os atuais governantes transferem a
responsabilidade de protegê-los para os futuros dirigentes, sendo que estes terão
apenas uma obrigação moral ou no máximo política de executá-los.22
Portanto, os objetos de discussão são propostas ou diretivas para uma
futura legislação, o que dificulta a possibilidade de efetivação de tais direitos, uma vez
que atualmente a positivação é rasteira, com pouca clareza e com restrita
objetividade. Contudo, a aproximação entre o dever ser normativo e o ser da
realidade social torna-se impossibilitada, situação esta que a doutrina denomina como
“síndrome de inefetividade dos Direitos Fundamentais.”23
Ressalta-se que a única garantia de realização desses direitos é a boa vontade
estatal. E, no máximo, a base de sustentação é a opinião pública internacional ou das
                                                            
20 ABELHA, Marcelo. Aula de Tutela Coletiva. Transcrição Mariá Brochado. São Paulo, 2005, p. 2. 
21 GONÇALVES, Marcos Fernandes. Diferença entre direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneo.Disponível em: ( http://www.juslaboral.net/2009/04/diferencas-entre-direitos-
difusos.html). Acesso em 24 de maio de 2010. 
22 BOBBIO, A Era dos Direitos, cit., p82.
23 LIPOVETSKY, Nathália. A teoria dos direitos humanos fundamentais e o direitos de natureza prestacional

[monografia de graduação]. Belo Horizonte: UFMG, 2009.


 
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agências não estatais.24 Além de uma deficitária positivação, a consciência


populacional jurídica é ínfima acerca de quais são os direitos e como exigi-los, o que
pode ser justificado por predominar no direito brasileiro uma estrutura processual
sem especificidade.25 Logo, para cada demanda de requerer determinado direito
difuso, deve-se analisar cada instituto do processo, para verificar em qual é mais
cabível adequar a norma jurídica coletiva. Nesses casos, excepcionalmente, o juiz é
mais atuante, afastando da sua função a imparcialidade própria da sua competência.26

4. As modalidades dos direitos de terceira geração previstas na Constituição


Federal de 1988

É sabido que os direitos de terceira geração manifestam-se intensamente no


Direito Internacional.27 No entanto, para que sejam verdadeiramente efetivos e,
portanto, exigíveis, deve-se ampliar a proteção dessas normas jurídicas na legislação
interna dos Estados que compartilham o princípio da solidariedade com os outros
países. Ao analisar profundamente, “beira” até a incoerência compartilhar uma
postura no âmbito externo que não foi de fato consubstanciada na organização
interna dos Estados.
O Brasil, por sua vez, confirma tal situação, o que pode ser exemplificado
pela Constituição de 1988, documento este com déficit no quesito proteção ao bem
jurídico coletividade. Todavia, apesar disso, não se pode negar a existência dessas
normas difusas, apesar de mínimas, na legislação brasileira.

                                                            
24 BOBBIO, A Era dos Direitos, cit., p.82. 
25 ABELHA, Marcelo.Aula...cit.,. p.5-6. 
26 ABELHA, Marcelo. Aula...cit.,. p.5-6. 
27 FERREIRA FILHO, Direitos Humanos Fundamentais, cit., p.58.  

 
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Primeiramente, é imprescindível analisar os motivos da tutela coletiva no


Brasil. Segundo a lição do Professor Marcelo Abelha, a necessidade de tal proteção
ocorre principalmente por vivenciarmos uma cultura de massa. E por isso, é
necessária a adaptação do instituto processual, pois o máximo que se observa é o
litisconsórcio, o qual é precário para demanda atual.28
Além disso, ele menciona que a tutela coletiva surgiu no Brasil com o artigo
14, parágrafo primeiro, da Lei 6938 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente).
Em seguida, houve diversas negociações políticas para proteger os direitos difusos, o
que culminou em um projeto de Lei em 1983, que inicialmente previa apenas a Ação
Civil Pública para tutelar o meio ambiente e que foi reformulado, ampliando o rol de
garantias. E pode-se considerar o ápice desse movimento pela elaboração dos artigos
do Código de Defesa do Consumidor que definiam os direitos de terceira geração,
bem como as regras processuais de exigência destes.29
Dentre as mínimas manifestações dos direitos difusos na Constituição de
1988, cabe elencar os que são mais tutelados pelo Estado brasileiro, uma vez que o
texto constitucional os expressa de maneira objetiva e clara.
O direito à Comunicação é tratado no artigo 220, da CF de 1988. Segundo
Ferreira Filho, tal proposição “trata-se de uma evolução da liberdade de expressão de
pensamento, do qual já se separa a liberdade de imprensa, e que agora representa
outra face: o direito à informação.”30 Salientando que se trata de um direito difuso,
pois o direito à informação refere-se à coletividade. Alexandre de Morais demonstra
claramente essa assertiva:

“O direito de receber informações verdadeiras é um direito de


liberdade e caracteriza-se essencialmente por estar dirigido a todos

                                                            
28 ABELHA,Marcelo. Aula...cit.,. p.4.
29 ABELHA,Marcelo. Aula...cit.,. p.5-6. 
30 FERREIRA FILHO, Direitos Humanos Fundamentais, cit., p.61. 

 
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os cidadãos, independente de raça, credo ou convicção político-


filosófica, com a finalidade de fornecimento de subsídios para a
formação de convicções relativas a assuntos públicos.”31

Na mesma categoria, a tutela ao meio ambiente também é prevista no texto


constitucional brasileiro. “De todos os direitos da terceira geração, sem dúvida o
mais elaborado é o direito ao meio ambiente”32, ressalta Ferreira Filho. O artigo 225, da
CF, afirma que “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações.33
E segundo Morais,

“Tais regras consagram constitucionalmente o direito a um meio


ambiente saudável, equilibrado e íntegro, constituindo sua
proteção, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal
Federal,“prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo,
dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a
expressão significativa, não ao indivíduo identificado em sua
singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais
abrangente, à própria coletividade social.”34

Os demais direitos são manifestados timidamente na Constituição brasileira.


Para exemplificar, deve-se mencionar o princípio da autodeterminação dos povos,
citado no artigo 4º, VI; também no mesmo artigo, mencionou-se o “direito à paz” e a
“solução pacífica dos conflitos” no inciso seguinte. Nesse sentindo, outros aspectos
também são tratados, mas também com uma importância menor.
Nota-se, portanto, que os direitos de terceira geração ainda estão se
afirmando na esfera jurídica, assim como anteriormente, ocorreu com os princípios

                                                            
31 DE MORAES, Alexandre.Direito Constitucional. p. 677
32 FERREIRA FILHO, Direitos Humanos Fundamentais, cit., p.62
33 BRASIL. Constituição Federal da República. 
34 DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, cit., p. 680 

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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de “Liberdade” e “Igualdade.” Para finalizar, Bobbio descreve, incrivelmente, a


situação atual de tais direitos, a qual perpassa à compreensão da inexigibilidade dos
direitos de Terceira Geração:

“Uma coisa é um direito; outra coisa, a promessa de um direito


futuro. Uma coisa é um direito atual; outra coisa, um direito
potencial. Uma coisa é ter um direito que é, enquanto reconhecido
e protegido; outra é ter um direito que deve ser, mas que, para ser,
ou para que passe do dever ser ao ser, precisa tranformar-se, de
objeto de discussão de uma assembléia de especialistas, em objeto
de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de coerção.”35

5. Conclusão

A Declaração dos Direitos Humanos permitiu a conscientização social


acerca dos direitos e deveres imanentes à condição humana. Todavia, tal tomada de
consciência não é suficiente para que direitos tornem exigiveis e, portanto, efetivos
na sociedade.

“Para a realização dos direitos do homem, são frequentemente


necessárias condições objetivas que não dependem da boa
vontade dos que os proclamam, nem das boas disposições dos
que possuem os meios para protegê-los. [...] Sabe-se que o
tremendo problema diante do qual estão hoje os países em
desenvolvimento é o de se encontrarem em condições econômicas
que, apesar dos programas ideais, não permitem desenvolver a
proteção da maioria dos direitos sociais. O direito ao trabalho
nasceu com a Revolução Industrial e é estreitamente ligado à sua
consecução. Quanto a esse direito, não basta fundamentá-lo ou
proclamá-lo. Nem tampouco basta protegê-lo. O problema da sua
realização não é nem filosófico e nem moral. Mas tampouco é um
problema jurídico. É um problema cuja solução depende de um
certo desenvolvimento da sociedade, como tal desafia até mesmo

                                                            
35 BOBBIO, A Era dos Direitos, cit., p.83. 
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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a Constituição mais evoluída e põe em crise até mesmo o mais


perfeito mecanismo de garantia jurídica.” 36
Conforme mencionado, é possível que, assim como os principios da
liberdade e igualdade tornaram passíveis de exigência ao embasarem as primeiras
gerações de direito, o mesmo ocorrerá com os direitos de terceira geração. Sem
intencionar pretensão e sim, por mera obviedade, pode-se inferir que a atuação no
meio ambiente, por exemplo, será tão intensa em algumas décadas, que
inevitavelmente o Estado não poderá negligenciar protegê-lo e terá que atuar de
maneira mais eficaz para tutelar tal direito coletivo.
E por fim, cabe mencionar a seguinte pespectiva de Norberto Bobbio, para
complementar o entendimento acerca da inexegibilidade dos direitos de terceira
geração e da possibilidade de modificar essa condição:

“Parti da constatação da enorme defasagem entre a amplitude do


debate teórico sobre os direitos do homem e os limites dentro dos
quais se processa a efetiva proteção dos mesmos nos Estados
particulares e no sistema internacional. Essa defasagem só pode
ser superada pelas forças políticas. Mas os sociólogos do direito
são, entre os cultores de disciplinas jurídicas, os que estão em
melhores condições para documentar essa defasagem, explicar
suas razões e, graças a isso, reduzir suas dimensões.”37

6. Referências Bibliográficas

DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Direito Constitucional: Instituições de Direito Público.


Trad. Maria Helena Diniz. 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.

                                                            
36 BOBBIO, A Era dos Direitos, cit., p.44-45. 
37 BOBBIO, A Era dos Direitos, cit., p.83. 
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 4. ed. rev.


São Paulo, Saraiva, 2000.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros
Editores Ltda, 1996.

BOBBIO, Norberto. A Era Dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.

GONÇALVES, Marcos Fernandes. Diferença entre direitos difusos, coletivos e individuais


homogêneo.Disponível em: ( http://www.juslaboral.net/2009/04/diferencas-entre-
direitos-difusos.html). Acesso em 24 de maio de 2010.

LIPOVETSKY, Nathália. A teoria dos direitos humanos fundamentais e o direitos de natureza


prestacional [monografia de graduação]. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
A.de Tocqueville, láncien régime et la révolution inCEuvres complètes, Paris, 1952, tomo II,
p.72. { ed. brasileira: O antigo Regime e a Revolução, Brasília, ed. UNB, 1979. Apud
BOBBIO, A Era dos Direitos.

DE ANDRADE, Maria Inês Chaves. A Fraternidade como Direito Fundamental: Entre o


ser e o dever ser na dialética dos opostos de Hegel. Belo Horizonte: 2007.

DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 24.ed.São Paulo: Ed. Atlas, 2009.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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A INTERVENÇÃO FEDERAL COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE


DA DEMOCRACIA NO DF1

João Gabriel Pimentel Lopes2

RESUMO

A recente situação política do Distrito Federal, precipitada pelos acontecimentos


envolvendo um grande esquema de corrupção movido pela alta cúpula do governo
local trouxe à tona uma série de discussões que permeiam os âmbitos dos sistemas
jurídico e político. Nesse sentido, uma das principais repercussões dos escândalos foi
a propositura, junto ao STF, por parte da Procuradoria-Geral da República, de
representação solicitando a decretação de intervenção federal no DF (IF n.
5179/DF). Com isso, diversos movimentos, favoráveis e contrários à intervenção,
surgiram na sociedade brasiliense. Em debate, estão questões como a autonomia
política do Distrito Federal, a separação dos poderes da República, a possibilidade de
embargo de obras e serviços promovidos pelo governo local e o impacto econômico
de uma possível intervenção. Neste artigo, busca-se mostrar que, para que sejam
levados a sério o direito e a democracia, faz-se necessária a decretação de intervenção
federal no presente momento, em conformidade com os ditames constitucionais,
haja vista: a) a quebra de institucionalidade local; b) a suspeição dos poderes locais
para escolher novos governantes; e c) impossibilidade de se realizar uma análise
puramente utilitarista da realização de direitos públicos políticos. Aprofundando-se
essa discussão, buscar-se-á verificar de que forma a intervenção federal expressa a
realização dos princípios constitucionais e o porquê de seus riscos inevitáveis serem
suplantados pela necessidade de efetivação de uma cultura democrática no Brasil.

Palavras-Chave: Intervenção Federal, Democracia, Brasília.


                                                            
1 Artigo originalmente apresentado no I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito,
realizado em Belo Horizonte – MG, em 14 de maio de 2010, no grupo de trabalho “Direitos Fundamentais e
Democracia”.
2 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro dos grupos de pesquisa Política e

Direito e Sociedade, Tempo e Direito. Membro do projeto de extensão “Universitários Vão à Escola”.
Membro da gestão diretora do Centro Acadêmico de Direito da Universidade de Brasília. Colaborador do
Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília. Militante do movimento “Fora
Arruda e Toda Máfia”.
 
921 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Keywords: Federal intervention, democracy, Brasilia.


Aos companheiros e companheiras
integrantes do Movimento “Fora Arruda e
Toda Máfia”, que me permitem crer na
possibilidade real de uma democracia livre,
justa, solidária, participativa e inclusiva,
do modo como deve ser.

INTRODUÇÃO

A emergência das recentes denúncias de prática de corrupção no Governo


do Distrito Federal fez florescerem no seio da sociedade brasiliense diversos
movimentos voltados à defesa do retorno à institucionalidade nesta unidade da
federação, por meio da recuperação dos princípios que devem reger o Estado
Democrático de Direito.
No interior de toda a discussão levantada publicamente, emergiu um
aspecto em particular que tem chamado a atenção do ponto de vista jurídico-
normativo: a possibilidade de decretação de intervenção federal, requerida pela
Procuradoria-Geral da República por meio da IF 5179/2010 (Procurador-Geral da
República v. Distrito Federal).
De imediato, instalou-se um amplo debate sobre a adequação da medida
tendo em vista suas consequências. Analisou-se, dessa forma, o caráter político (lato
sensu) de uma intervenção federal. Pouco se pensou, contudo, na influência de tal
medida sobre a realização dos direitos constitucionais fundamentais nesta unidade da
federação.
Longe de negar a imprescindibilidade de se avaliarem os aspectos políticos
envolvidos na questão, este estudo vem propor um olhar sobre a intervenção federal
no DF que não somente considere a conformação de relações de poder
 
922 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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consubstanciadas no atual contexto, mas que também tenha em mente uma


necessária articulação das ideias de direitos fundamentais e democracia para a
fundamentação sólida de uma opinião sobre o tema.
O caminho que se pretende trilhar com este fim será iniciado com uma
breve exposição dos fatos ocorridos no Distrito Federal, com vistas a se
contextualizar faticamente o pedido de intervenção. De posse desta realidade, será
possível identificar um dos problemas-base de pesquisa aqui proposta: de que forma a
intervenção federal, no atual contexto do DF, pode convalidar o princípio democrático de forma a
restabelecer a normalidade institucional local sem que sejam sacrificadas a ordem constitucional e a
esfera pública inclusiva?
A análise dessa questão, contudo, requer um exame mais detalhado sobre o
sistema federativo brasileiro, bem como sobre o modo de operação do sistema de
checks and balances no país. As dúvidas que daí emanam são: em que medida a intervenção
federal interferirá em tais mecanismos? Tal interferência se justifica em face do paradigma do Estado
Democrático de Direito?
Em seguida, serão analisados os principais argumentos publicamente
apresentados como contrários à intervenção. Aqui se procurará rebater os pontos de
vista segundo os quais: a) a intervenção federal apresenta um risco à estabilidade
democrática; b) a intervenção federal não é o único mecanismo passível de utilização
no atual contexto; c) a intervenção federal poderá acarretar graves danos econômicos
ao Governo do Distrito Federal e à sociedade local.
Por fim, serão reunidos os argumentos apresentados de forma a aprofundar
sua sofisticação teórica com o fim de se justificar a necessidade de decretação da
intervenção federal no atual contexto político-institucional vivenciado em Brasília.
De nenhuma forma o objetivo deste escrito é esgotar as possibilidades de
debate sobre a questão. O tema é complexo. A função deste texto é não mais que
jogar-se ao público, locus indispensável de debate das questões constitucionais e,
 
923 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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certamente, última instância de avaliação da aplicação do direito num contexto


democrático.

1 A CONSTRUÇÃO DOS PARADOXOS: O PROJETO DE CIDADANIA E


A HERANÇA MALDITA

A construção de uma nova capital em pleno Planalto Central, afastada dos


grandes centros econômicos e políticos do país, representou, quando da sua
execução, a concretização de um projeto de interiorização que implicaria num novo
processo “civilizatório” brasileiro, voltado ao desenvolvimento das regiões ainda não
ocupadas por meio da aproximação destas ao poder político central. Nas palavras de
José Geraldo de Sousa Junior,

Brasília pensada como pano de fundo desse projeto é vista como a


“meta-síntese” do programa de governo Kubistchek, assumindo
em plano simbólico a realização da proposta desenvolvimentista
de “crescimento e integração nacional”. A construção da capital
respondia, na explicitação da política juscelinista, à necessidade de
interiorização do processo de desenvolvimento, cumprindo a
cidade papel de integração entre regiões e abertura de novas
frentes de expansão econômica.3

Dessa mentalidade, decorreu quase que naturalmente (e quando afirmo isso


corro claramente o risco do anacronismo, um risco, porém, desejável neste
momento) uma esperança de que o caráter geográfico de maior proximidade com as
questões latentes no país viesse a ser complementado com uma efetiva aproximação
entre a política e os segmentos sociais que, em busca de sua emancipação,

                                                            
3 SOUSA JUNIOR (2009, p. 19).
 
924 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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reclamavam novas possibilidades de ação, uma nova democracia pautada pelas


questões que emergiam das bases sociais brasileiras.
Nesse sentido, Brasília tornou-se não somente um sonho de melhora
econômica de seus pioneiros, mas, efetivamente, um anseio social de participação nas
estruturas de decisões políticas para o Brasil. Tal anseio foi repetidamente renovado
pelo discurso das autoridades nacionais4, que, contudo, jamais foi observado na vida
prática dos brasilienses.
E isso é facilmente revelado, embora não exaustivamente, pela arquitetura
da cidade, que já em seu plano original se colocava como capital administrativa cujo
crescimento “após 20 anos se [faria] (a) pelas penínsulas e (b) por cidades satélites”5.
O caráter meramente burocratizante de Brasília foi continuamente reforçado não
pelo enrijecimento de suas próprias estruturas, mas, sobretudo, pelas bases
excludentes sobre as quais se deu o crescimento do Distrito Federal, útil somente
àqueles que se apoiavam em políticas populistas para servir aos seus projetos
pessoais.

A instalação do complexo aparelho burocrático na capital,


definindo nitidamente a sua vocação administrativa, serviu ao
projeto populista de mediação alienante das relações sociais pelo
Estado. De acordo com Chico de Oliveira: “a harmonia das
esferas que parece reinar na cidade contrasta violentamente com
os diversos grupos sociais que a habitam, ou mais especificamente
com o grupo social do funcionalismo público” [OLIVEIRA,
1986].6

                                                            
4 Veja-se, por exemplo, o discurso a seguir, de Lúcio Costa, cuja irrealidade salta aos olhos: “Ela [Brasília]

deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as
funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como urbs, mas como civitas, possuidora
dos atributos inerentes a uma capital.” (COSTA, 1957).
5 COSTA apud SOUSA JUNIOR (2009, p. 20).
6 SOUSA JUNIOR (2009, p. 21).

 
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Efetivamente, isso significava deixar à margem do processo de construção


política da nova capital as classes trabalhadoras que viabilizaram sua construção
física. O que não significava, porém, que tais classes fossem inúteis à própria
reprodução do poder das elites burocráticas. A presença dos operários foi justamente
o sustentáculo político dessas elites.
O processo de exclusão de participação política foi complementado pelo
duro golpe promovido pelo advento do regime militar, comandado, por óbvio, a
partir da capital federal. Os poucos núcleos pensantes àquela época, que ofereciam o
contraponto fundamental à vivência democrática, foram rapidamente sufocados pela
violência de tanques e metralhadoras7.
Dessa maneira, o Estado, que já havia tratado de excluir dos processos
decisórios enormes segmentos sociais, passou a usar da violência para impor sua
forma de pensamento.
Contudo, com a redemocratização pós-1988, acenderam-se novos lampejos
de esperança ao brasiliense, cuja intensidade foi aumentada com a concessão de
autonomia político-administrativa ao Distrito Federal. Entretanto, permanecia nesta
sociedade o cerne excludente historicamente identificado. As leis não bastaram para
modificar o espectro do real.
Ao câncer da barbárie militar, sucedeu-se a metástase institucional facilitada
por governos locais – eleitos – de índole assumidamente populista. Em lugar de se
concretizar o projeto de cidadania presente nos discursos, buscou-se realizar
concessões mínimas a uma população vitimada pela violência imposta pela
desigualdade. O que lhe parecia muito era facilmente negociado em troca do voto,
mecanismo único de que dispunham para participar minimamente da política local.

                                                            
7 Aqui, ganha destaque a agressão sofrida pela Universidade de Brasília, que sofreu sucessivas invasões por
tropas militares, resultando na prisão de estudantes e professores e na supressão da liberdade acadêmica de
crítica, função fundamental num Estado Democrático.
 
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A construção de uma capital moderna e “civilizada” se deu, durante todo o


tempo, com o custo da exclusão dos processos decisórios. A retórica da igualdade e
da participação não passava de discurso instrumentalizado, cujo único objetivo era
ocultar as desigualdades e injustiças que impedem a realização desses mesmos
princípios e, consequentemente, impedem o acesso direto do cidadão à esfera
pública.
Tratava-se, em verdade, de uma renovação do caráter patrimonialista das
relações de poder que não representavam nenhuma novidade no espectro político
brasileiro. Significa dizer: mais uma vez, articularam-se as “peças de uma ampla
máquina, a visão do partido e do sistema estatal se perde no aproveitamento privado
da coisa pública, privatização originada em poderes delegados e confundidos pela
incapacidade de apropriar o abstrato governo instrumental [...] das leis”8.
Essa forma de manifestação das relações de poder no Distrito Federal se
expressa, com muito vigor, na política de concessão de lotes do Governo local,
fortalecida na década de 1990. Terrenos eram indiscriminadamente concedidos, nas
mais afastadas áreas, com o único fim de vincular a realização de mínimas condições
de vida a pessoas que mais tarde se valeriam dela para atingir seus fins privados de
poder. Em contrapartida, absolutamente nada se desenvolveu em termos de
infraestrutura e cidadania para essas populações, já inteiramente deslocadas do eixo
de decisão política local.
Por outro lado, fortaleceram-se os privilégios das elites econômicas,
incentivando-se seu isolamento no Plano Piloto, afastando-a dos problemas que
assolam as cidades satélites e espalhando-a por uma burocracia instrumentalizada,
voltada ao reforço do poderio pecuniário e à apropriação privada dos espaços e das
finanças públicas.

                                                            
8 FAORO (2001, p. 718).
 
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Somente assim, com a conjunção do apelo popular e do alinhamento com


grandes interesses político-econômicos foi possível a sustentação de sucessivos
governos na era pós-1988. As denúncias de corrupção no governo de José Roberto
Arruda, em episódio que ficou conhecido como “Mensalão do DEM”, mostraram o
resultado-síntese do processo de conformação política do Distrito Federal.
De imediato, vozes ressoaram contra o “absurdo” das denúncias, como já
não fossem amplamente conhecidas as estruturas do crime organizado montadas na
Administração Pública distrital. No presente momento, se de fato se deseja uma
guinada rumo à (re?)democratização do Distrito Federal, é necessário conhecer a
fundo todo o funcionamento da rede de corrupção instituída.
A devida apuração dos fatos ocorridos é, nesse sentido, fundamental para
que a construção da narrativa histórica do Distrito Federal rume à construção de
novos espaços de participação política, evidenciando-se aquilo que não mais é
desejável se se pretende efetivamente realizar o ideal de democracia.

2 A IF 5179 E SUA POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL

Diante do farto material probatório reunido pelas investigações policiais


sobre os escândalos do governo Arruda, que envolveram também segmentos de
outros poderes locais, o Procurador-Geral da República apresentou o pedido de
intervenção federal n. 5179/DF, com embasamento legal no art. 34, inciso VII,
alínea a, da Constituição brasileira, visando assegurar a observância da forma
republicana, do sistema representativo e do regime democrático.
Em sua formulação histórica, o sistema federativo, assim como os
mecanismos de controle do poder pelo poder (sistema de checks and balances) foram
dedicados à preservação de uma estabilidade institucional, de modo a não permitir a
 
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apropriação indevida do espaço político por indivíduos ou grupos isolados. A


construção desse sofisticado e intrincado sistema já dessa forma era justificada pelos
federalistas norte-americanos, como se lê do seguinte trecho, retirado do artigo
federalista n. 51:

This policy of supplying, by opposite and rival interests, the defect


of better motives, might be traced through the whole system of
human affairs, private as well as public. We see it particularly
displayed in all the subordinate distributions of power, where the
constant aim is to divide and arrange the several offices in such a
manner as that each may be a check on the other – that the
private interest of every individual may be a sentinel over the
public rights. These inventions of prudence cannot be less
requisite in the distribution of the supreme powers of the State.9

A forma encontrada como tentativa de resolução do problema em que


esbarram os federalistas expressa o caráter fundamentalmente moderno do
constitucionalismo: buscou-se um arranjo institucional que, ao mesmo tempo,
garantisse aos governos locais uma capacidade de controle e decisão sobre o governo
federal (e vice-versa) e que também possibilitasse que, quer nas esferas federais, quer
nas estaduais, existisse um arranjo interno de competências que permitisse às
distintas instâncias o controle de umas por outras.
O sistema constitucional brasileiro claramente marcou sua opção
republicana por tais formas de controle do poder. Para muito além do que afirmam
os textos constitucionais, a prática cotidiana da democracia em nosso país impõe

                                                            
9 MADISON (2003, p. 319). Tradução livre: “O método de suprir a falta de melhores motivos pela oposição

e rivalização de interesses deve ser utilizado em todas as questões humanas, sejam elas públicas ou privadas.
Pode-se verificar isso com maior clareza na distribuição dos poderes subordinados, onde o constante objetivo
é dividir e combinar os distintos interesses, de forma a cada um se tornar um contrapeso ao outro – e ainda
de modo que o interesse privado de cada indivíduo sirva de sentinela ao exercício dos direitos públicos. Essas
invenções do bom-senso [prudence] são não menos fundamentais à distribuição dos poderes superiores de um
Estado”.
 
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severas restrições a quaisquer formas de subversão da separação dos poderes e do


sistema federativo.
Entretanto, quando o uso desses mecanismos se converte em subterfúgio
institucional para práticas antidemocráticas, somos obrigados a fazer uma escolha
que varia entre o formalismo (anti-)constitucional e a efetiva vivência da democracia
e, por conseguinte, da própria constituição.
Tal afirmação, contudo, não pode em nenhuma hipótese ser tomada com
um espectro de universalidade. Uma intervenção federal é medida de exceção e,
como tal, deve ser pensada com rigor extremo num contexto democrático. Sua
justificação há de encontrar abrigo no sistema do direito, o que somente se dá com a
concomitante visão por sobre o caso concreto. Com esse objetivo, passarei à
exposição das premissas teóricas que iluminam o contexto político atual de Brasília,
possibilitando uma justificação possível para a decretação da intervenção federal no
governo local.

2.1 A corrupção dos sistemas do direito e da política no Distrito Federal

O constitucionalismo, em seu caráter operacional que hoje conhecemos, é


uma figura essencialmente moderna. Depende, pois, de uma série de contingências10
históricas que desembocaram em uma determinada (auto)compreensão da sociedade.

                                                            
10 O sentido de contingência aqui adotado coincide com aquele evidenciado por Niklas Luhmann: “Por
contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser
diferentes das esperadas, [...] perigo de desapontamento e necessidade de assumir[em]-se riscos”
(LUHMANN, 1983, pp. 45-46). Num sistema social é necessário reconhecer uma contingência que vá além
da contingência simples do campo sensorial, mas que chegue a um aspecto de dupla contingência, imanente do
aspecto da alteridade que possibilita a própria existência do sistema social, entendido como uma diversidade
de fluxos comunicativos. Conforme Luhmann, “reconhecer e absorver as perspectivas de um outro como
minhas próprias só é possível se eu reconheço o outro como um outro eu [...]. Com isso, porém, tenho que
 
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Essa (auto)compreensão passa pela constatação de uma realidade histórica:


a sociedade moderna é uma sociedade complexa11. Para que possa estabilizar
expectativas12, reduzindo seu número de possibilidades, foi necessário, na
modernidade, que tal sociedade se diferenciasse em sistemas13, que atuam cada qual
com sua lógica própria, expressa por um código binário.
No caso do sistema jurídico, as operações funcionais são realizadas segundo
o código binário direito/não-direito. Diferencia-se, dessa maneira, das operações
políticas, realizadas segundo o código poder/não-poder. Diferencia-se, ainda, das
operações econômicas, realizadas conforme a distinção ter/não-ter. A validação do
direito, por conta disso, somente pode ser obtida quando as operações desse sistema
são realizadas segundo seu código próprio, de modo autorreferencial. A adoção do
código poder/não-poder ou ter/não-ter para uma questão jurídica significaria uma
corrupção do sistema jurídico, o que possibilitaria uma desdiferenciação e, por
conseguinte, uma deslegitimação, criando “supercódigos” que prevalecem sobre os
demais, podendo desconstituir a estes.

                                                                                                                                                                   
conceder que o outro possui igualmente a liberdade de variar de comportamento, da mesma forma que eu.
Também para ele o mundo é complexo e contingente” (LUHMANN, 1983, p. 47).
11 Nas palavras de Luhmann, “complexidade deve ser entendida [...] como a totalidade das possibilidades de

experiências ou ações cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação de sentido” (LUHMANN,
1983, p. 12).
12 Expectativa, no horizonte da teoria dos sistemas, pode ser percebida como espectro de possibilidades

realizáveis.
13 Sistemas, para os fins desse estudo, devem ser tomados como “conjunto de elementos inter-relacionados,

cuja unidade é dada por suas interações e cujas propriedades são distintas da soma dos elementos do
conjunto. Sendo que sistemas se apresentam, por seu turno, enquanto esses elementos, inclusive. E estes são
auto-referenciais; pois têm a capacidade de estabelecer aquelas relações entre si ao tempo em que diferenciam
essas relações das relações mantidas com seu ambiente.” (CHAI in CATTONI [coord.], 2004, pp. 571-572).
Os sistemas operam por códigos binários próprios – cada sistema possui o código que processará as irritações
que vêm do ambiente, de forma a processar essas irritações segundo seus próprios critérios. É tal
processamento que viabilizará a conformação do sistema enquanto sistema autorreferenciado. No contexto
moderno, em que se percebe uma diferenciação funcional dos subsistemas sociais, estes apresentam
mecanismos próprios de funcionamento, que caracterizarão seu fechamento funcional. Suas possibilidades de
conhecimento, contudo, não podem ser restritas – os sistemas são, e simplesmente são, irritados pelas
informações que vêm do ambiente. Mantêm-se, pois, cognitivamente abertos.
 
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De que forma, porém, isso contribui para a análise da questão em tela?


O caso de corrupção do governo Arruda, claramente, consubstancia-se
como uma corrupção dos códigos do direito e da política pelo código da economia.
A economia, percebida a partir de um viés eminentemente privado da posse, foi a
única lógica que operou quando foram realizados os desvios de recursos públicos
para finalidades consideradas ilegais, provocando também uma subversão da lógica de
funcionamento do Poder Legislativo.
O sistema do direito, diante disso, não pode permanecer silente. Do
contrário, não existiria apenas uma corrupção operativa, mas uma corrupção estrutural, que
inviabilizaria a estabilização de expectativas, desconstituindo a lógica de todo o
sistema social moderno14. Como expressa Marcelo Neves:

A corrupção sistêmica pode permanecer no nível operativo, sendo


momentânea e eventual. A questão torna-se problemática quando
alcança o nível estrutural, atuando no plano da estabilização de
expectativas. Nesse caso, já se conta com uma certa garantia de
que o sistem corrompido não tem condições de reagir aos
episódios de corrupção. E o problema torna-se grave, em
contextos sociais da sociedade contemporânea hipercomplexa,
quando a corrupção estrutural de um sistema por outro(s) tem
uma tendência à generalização. Nessa hipótese, não está presente
apenas o perigo da desdiferenciação: há um episódio de
desdiferenciação sistêmica. [...] isso significa que esse sistema é
determinado diretamente (não apenas condicionado) por outro(s),

                                                            
14 Isso porque, conforme as teorias constitucionais contemporâneas, o fundamento do direito não pode ser

buscado senão dentro do próprio direito. “O mundo em si, o absoluto eu, permanece em um horizonte
inacessível, incognoscível em si mesmo, pois esse horizonte é o limite do próprio observar, não sendo
possível observá-lo como um todo unitário, indo além do horizonte. [...] Há, pois, diante de nós, um contexto
altamente mutável, que não mais admite descrições que ainda se fundamentem em pretensões “mitológicas”
da razão, as quais todos os problemas eliminaria, todas as tensões superaria, já que tais racionalidades não
fazem mais que ocultar o fato de que essas mesmas tensões são constitutivas de uma realidade por demais
complexa para deixar-se apreender por esquemas científicos oniscientes, de uma espécie de solipsismo
metodológico, não conseguindo observar a sua própria limitação, pois ainda presas a dogmas clássicos do
conceito de conhecimento, configurando, em última hipótese, mecanismos que tão-somente encobrem ou
dissimulam uma representação dessa realidade” (PRATES in CATTONI [coord.], 2004, pp. 524 e 535).
 
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sendo incapaz de uma autoprodução consistente ou fechamento


operativo.15
Que saídas podem ser encontradas para que o fenômeno não se torne
desestruturante da própria realização plena do direito no Distrito Federal, de modo a
conferir-lhe eficácia democrática?

2.2 O acoplamento estrutural entre direito e política como única saída possível
para a crise sistêmica instalada no DF

Como já mencionado, a diferenciação funcional dos sistemas sociais é um


fenômeno típico da modernidade. Os sistemas autorreferenciados caracterizam-se:
“(1) por uma circularidade fundamental e (2) pela impossibilidade de se reintroduzir
operativamente a unidade do sistema em seu interior”16.
Dessa forma, o sistema jurídico permanentemente recebe irritações de seu
exterior que permitirão sua própria constituição enquanto sistema, filtrando tais
irritações em conformidade com o código direito/não-direito. “A referência a esse
código atribui a um tal sistema uma estrutura de comunicação. O eventual uso de um
outro código não seria inadmissível, mas a operação deixaria de ser uma operação
interna do sistema jurídico”17.
O direito passa, então, a encontrar dentro de si mesmo a fundamentação
para as questões a ele suscitadas por meio de sua positivação. O termo aqui se refere ao

                                                            
15 NEVES (2009, p. 44).
16 LUHMANN (s/d). Pode-se interpretar tal afirmação da seguinte forma: o sistema, operativamente,
autorreproduz-se, entretanto, esta autorreprodução somente pode ser viabilizada com base em informações,
irritações, que vêm do seu ambiente.
17 Idem, ibidem.

 
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fato de que o direito somente pode ser criado pelo próprio direito, “e não ab extra
pela natureza ou pela vontade política”18.
O instrumento fundamental para que o direito afirme sua autonomia e que,
por conta disso, lhe confere fundamentação em última instância, é a Constituição19,
constituída pelo sistema jurídico e constituinte do mesmo sistema e, por conta disso,
constituinte de si mesma. Tal afirmação leva à necessária constatação de existência de
um paradoxo interno ao sistema jurídico, trazido pela positivação que o torna
autorreferenciado.
Como é sabido, a existência da Constituição em seu sentido moderno se
deve, sobretudo, a arranjos institucionais que viabilizaram sua consolidação como
paramount law. Pode-se, então, dizer que sua existência deve-se não somente à sua
juridicidade, mas também à sua viabilização política. Cria-se, dessa maneira, um novo
paradoxo: o poder soberano vincula-se a si mesmo através de decisões políticas por
ele tomadas.
Como se pode perceber, a Constituição em sentido moderno surge de uma
necessidade de superação ou ocultação desses dois paradoxos, que aparecem a partir

                                                            
18 Idem, ibidem. “O sistema se surpreende com a própria diferenciação social ao ponte de não poder

compreender em um primeiro momento (que para os filósofos do direito persiste até agora) a positividade
dada com essa diferenciação. Como no passado, o sistema jurídico continua a exigir uma instância [supra-
]regulativa, enquanto o modo segundo o qual essa instância é, a cada vez, definida, por exemplo como
política, como Estado, como authority, como povo ou como natureza, tem uma relevância absolutamente
secundária. Na positivação global do direito expressa-se efetivamente, no entanto, a independência e a
autodeterminação do sistema. De fato, a suspeição de arbitrariedade vinculada a esse processo conduz o
observador a ver apenas um sistema jurídico em que o que ali ocorre pode ser tudo menos arbitrário. O que
significa, em primeiro lugar, que toda imutabilidade, inviolabilidade, superioridade etc. deve ser construída no
interior do próprio sistema jurídico.” (Idem, ibidem).
19 “A Constituição fecha o sistema jurídico ao discipliná-lo como um âmbito do qual ela, por sua vez,

reaparece. Ela constitui o sistema jurídico como sistema fechado mediante o seu reingresso no sistema. Nas
modalidades já discutidas, isso se verifica ou através de regras de coalizão que garantem o primado da
Constituição; ou mediante a previsão constitucional de um controle de constitucionalidade do direito; e não
em último lugar: ao invocar solenemente a instância constituinte e a sua vontade como vinculantes de per se. A
Constituição reconhece a si própria (La costituzione dice io a se stessa)”. (Idem, ibidem).
 
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da diferenciação funcional dos sistemas do direito e da política. Nas palavras de


Giancarlo Corsi;

Diversamente do que pode parecer à primeira vista, portanto, a


invenção da constituição é, sobretudo, uma reação à diferenciação
(moderna) entre direito e política e uma tentativa de resolver (ou
esconder!) os seus problemas: o problema da soberania política e
o problema da positivação (autodeterminação) do direito. Em
ambos os casos, o problema manifesta-se como um paradoxo; o
paradoxo do soberano que vincula/desvincula a si mesmo através
de suas próprias decisões e o paradoxo do direito que se arroga no
direito de discriminar de acordo com o direito, produzindo assim
a diferença entre certo e errado, entre lícito e ilícito, e assim por
diante. A constituição não elimina, certamente, estes paradoxos,
mas limita-se a transferir o peso de um sistema ao outro: a
soberania é transferida, da posição de vértice na hierarquia social
para o povo, encontrando sua legitimação no vínculo jurídico
constitucional; o direito, por sua vez, remete a legitimação da
constituição como texto jurídico ao ato político da assembleia
“constituinte” e à legislação.20

A Constituição existe, portanto, como aquilo que Niklas Luhmann


denominou acoplamento estrutural entre os sistemas do direito e da política, permitindo
que o direito seja viabilizado pela política e a política seja regulada e até limitada pelo
sistema jurídico. Atua-se dessa forma, com uma troca de códigos – questões jurídicas
são analisadas sob a ótica poder/não-poder e questões políticas sob a ótica
direito/não-direito – sem, contudo, que haja uma confusão entre os fluxos
comunicativos dos dois sistemas. Isso pode ser melhor visualizado em Jürgen
Habermas:

Na ótica de sua função estabilizadora de expectativas, o direito


apresenta-se como um sistema de direitos. Os direitos subjetivos
só podem ser estatuídos e impostos através de organismos que
tomam decisões que passam a ser obrigatórias para a coletividade.
E, vice-versa, tais decisões devem a sua obrigatoriedade coletiva à
                                                            
20 CORSI (2002, p. 101).
 
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forma jurídica da qual se revestem. Esse nexo interno do direito com o


poder político reflete-se nas implicações objetivas e jurídicas do
direito subjetivo...21

É desta maneira que a Constituição aparece como única solução possível à


crise institucional instalada no Distrito Federal: como solução política e como
solução jurídica. Faz-se necessária uma imediata reação para que tanto o direito
quanto a política não tenham suas lógicas subvertidas por interesses econômicos
privados, espúrios, como aqueles demonstrados nas denúncias de Durval Barbosa à
Polícia Federal.
A aplicação da Constituição, aqui entendida não como mero texto, mas
como carta de princípios fundamentais à sustentação de um Estado Democrático de
Direito, é um direito fundamental público não somente dos cidadãos e cidadãs do
Distrito Federal, mas de todos os brasileiros, na exata medida em que uma decisão
presente terá necessários impactos futuros sobre toda a estrutura da federação.

2.3 A possibilidade e a justificativa da intervenção federal no DF

A Constituição Federal prevê a possibilidade de ser decretada Intervenção


Federal nos estados e no Distrito Federal em seu artigo 3422. Sua aplicação, todavia,

                                                            
21HABERMAS (2003, p. 170).
22Em termos: Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:
I - manter a integridade nacional;
II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública;
IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que:
a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força
maior;
b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos
estabelecidos em lei;
 
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deve ser entendida como medida extrema, uma vez que vai de encontro a um dos
princípios fundamentais consagrados por nossa carta de princípios: o princípio
federativo.
Sua utilização, portanto, deve ser feita somente como última alternativa,
quando apenas uma suspensão do regime federativo e, consequentemente, da
autonomia da unidade afetada pode salvaguardar o regime democrático e a ordem
constitucional.
A situação vivenciada ao longo dos últimos meses no Distrito Federal,
acentuada e condicionada pela história política local, leva ao fortalecimento do
discurso de defesa da decretação de intervenção federal nos poderes Executivo e
Legislativo locais.
O primeiro motivo que justifica o decreto de intervenção vem das próprias
bases históricas do DF, onde o público foi sucessivamente vilipendiado em termos
de participação política. Embora seja largamente sabido que o poder público local
tem sido sucessivamente utilizado para que valores personalistas e privatistas fossem
reproduzidos, quase nada se sabe sobre os nefastos acontecimentos que tomaram
corpo nas estruturas governamentais locais.
Um decreto de intervenção federal, no presente momento, poderia
viabilizar uma real e efetiva investigação, bem como o reconhecimento dos
criminosos responsáveis pelos desmandos e pela corrupção sistêmica localizada em
Brasília. O amplo acesso a tais informações é um direito inegociável de todos os
                                                                                                                                                                   
VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:
a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
b) direitos da pessoa humana;
c) autonomia municipal;
d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta.
e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente
de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

 
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cidadãos brasileiros. Aqui, não interessam os custos econômicos ou o desgaste


“político”. A ampla proteção à garantia constitucional de transparência é mister de
todos aqueles que possam vir a ocupar a cadeira de governador do Distrito Federal.
Contra tal argumento, seria possível suscitar o fato de que não é necessário
um interventor para que as investigações sejam dirigidas. Daí decorrerá o segundo
aspecto favorável à intervenção federal.
Obviamente, a nomeação de um interventor, por si só, não representa uma
solução ao problema da falta de transparência no governo do Distrito Federal. As
investigações dependerão de vontade política deste interventor e de sua equipe. Nada
o impedirá de utilizar o cargo para fins outros que não aqueles aqui defendidos.
Contudo, o decreto de intervenção estará permanentemente sujeito a
controles externos do Poder Legislativo (por meio do Congresso Nacional – art. 36,
§ 1º, da CF) e do Poder Judiciário, a quem incumbirá analisar questões atinentes à
constitucionalidade das medidas adotadas. O próprio texto constitucional vincula, de
alguma forma, o conteúdo do decreto presidencial às razões que deram causa à
intervenção (art. 36, § 4º, da CF).
Assim, dentre as alternativas possíveis no presente estado das coisas, a
intervenção federal mostra-se como aquela que tem maiores chances de lograr êxito
na defesa do direito e da democracia em Brasília. A simples sucessão de um
governador corrupto, apoiado por uma base de legisladores igualmente repleta de
irregularidades, por um outro23 que conta com esta mesma base nenhuma esperança
pode dar aos cidadãos brasilienses, sedentos de verdade e democratização.
A continuidade das estruturas vigentes é extremamente prejudicial à
democracia. No contexto constitucional vigente, “o direito à positivação autônoma

                                                            
23Nomeadamente, o senhor Rogério Rosso (PMDB-DF), eleito por treze votos de deputados distritais, dos
quais oito estavam envolvidos nos escândalos de corrupção (inclusive um recém-saído do cárcere em
decorrência de tais escândalos.
 
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do direito concretiza-se [...] em direito fundamentais que criam condições para iguais
pretensões à participação em processos legislativos democráticos. Estes têm que ser
instaurados com o auxílio do poder politicamente organizado”24. Quando o poder
institucional age em contrário a essa pretensão de abertura comunicativa do espaço
público, ele converte-se necessariamente em autoritarismo, em antidireito.
Resta, ainda, o argumento textual-normativo. A desordem institucional está
flagrantemente ferindo os princípios republicano e representativo. Ao primeiro, fere
pelo fato de o poder público servir, contínua e sub-repticiamente, para atender aos
interesses privados patrimonialistas daqueles que, não satisfeitos em deterem os
meios de produção, acham-se detentores do aparelho estatal (o que configura a
subversão lógica do sistema do direito pelo sistema da economia). Ao segundo,
representa ataque direto pelo fato de que os “representantes do povo” encadeirados
na Câmara Legislativa não representam ninguém que não a si mesmos, como
demonstrado no escândalo de venda de votos no Parlamento.
A quebra de tais princípios dá causa à intervenção, como se pode ler do art.
34, VII, a, da carta de direitos. E mais: culmina com a quebra do terceiro requisito
dessa alínea, o regime democrático.
Enquanto perdurar a situação de um governo ilegítimo mantendo-se à custa
de conchavos esquizofrênicos no poder, perdurará a violência institucionalizada aos
milhões de brasileiros que aguardam uma resposta em defesa de um regime de
legalidade e institucionalidade. Como assenta Ronald Dworkin, “the Government will not
re-establish respect for law without giving law some claim to respect. It cannot do that if it neglects the
one feature that distinguishes law from ordered brutality”25. Enquanto acreditarmos que é

                                                            
24HABERMAS (2003, p. 171).
25 DWORKIN (1978, p. 205). “O Estado não vai restabelecer o respeito pela lei, sem possibilitar alguma
reivindicação por respeito à lei. Não enquanto negligenciar a única característica que distingue o Direito da
brutalidade institucionalizada” (tradução minha, não revisada).
 
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mais seguro manter o status quo que buscar a garantia de direitos públicos políticos,
permaneceremos reféns do autoritarismo antijurídico e antidemocrático.
É preciso levar os direitos a sério no Distrito Federal. Afirmar a
independência do sistema jurídico e articulá-lo politicamente por meio da
Constituição é imprescindível para a superação de uma crise que já se revelou
avassaladora das estruturas democráticas de Brasília.
3 UMA ÚLTIMA REFUTAÇÃO

A tentativa de extinção da autonomia do sistema do direito, condicionando-


o à economia, alerte-se, não vem somente sob a forma dissimulada da corrupção. Ela
também tem tomado um aspecto público desde que se aventou a possibilidade de
uma intervenção federal vir a abrir a Caixa de Pandora.
É que o principal argumento levantado contra uma possível intervenção
federal é de índole meramente econômica. Sob o argumento de que uma intervenção
levaria a uma paralisação das obras públicas, o que geraria perda de empregos por
milhares de cidadãos, entidades da “sociedade civil” chegaram inclusive a abraçar
simbolicamente o STF clamando por “respeito” ao pacto federativo.
Ocorre, porém, que o desrespeito já havia ocorrido. E foi mais grave que
um descumprimento do pacto federativo. As instituições democráticas de Brasília já
se encontravam fortemente golpeadas pela patrimonialização do espaço público local.
O pacto federativo encontrou seu limite na própria manutenção da ordem
democrática constitucional no plano local. Para o bem desta última, resta uma
temporária suspensão da autonomia local para que se aclarem os esquemas que
resultaram nos nefastos acontecimentos amplamente noticiados.
Ademais, como afirma Juliano Zaiden Benvindo, “essa perda da dimensão
jurídica dos interesses individuais, especialmente em áreas que o direito encontra

 
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grande dificuldade de alcance, abre espaço para o avanço da lógica do mercado”26.


Esse mesmo mercado que há décadas, como demonstrado no início deste escrito,
tem se esforçado para afastar de Brasília os brasilienses.
Uma decisão sobre a intervenção federal no governo local não pode tomar
como norte a lógica da economia (até mesmo porque, até onde consta, os
empresários locais não deram uma guinada de santidade para defender os interesses
de seus empregados, senão os seus mesmos), mas a plena realização do princípio
republicano – o de tornar público o que pertence à nossa comunidade política.
Uma visão como a que aqui rebatemos recai na resposta mais fácil de
manutenção do estado das coisas, restringindo-se a uma visão de desenvolvimento
que não abarca a inclusão política e nem, em última instância, a liberdade. O que aqui
se propõe é uma visão mais ampla, aberta, livre da própria liberdade, para muito além
de seu aspecto econômico-capitalista-neoliberal. É definir, nas palavras de Amartya
Sen:

A liberdade não pode produzir uma visão do desenvolvimento


que se traduza prontamente em alguma “fórmula” simples de
acumulação de capital, abertura de mercados, planejamento
econômico eficiente [...]. O princípio organizador que monta
todas as peças em um todo integrado é a abrangente preocupação
com o processo de aumento das liberdades individuais e o
comportamento social de ajudar para que isso se concretize.27

                                                            
26 BENVINDO (2009, pp. 163-164).
27 SEN (2000, p. 336).
 
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CONCLUSÃO

Esta não é, pois, mais que uma defesa da transparência e da publicidade dos
atos públicos que, em consequência, levará a uma necessária ampliação da discussão
sobre as estruturas governamentais do Distrito Federal.
O povo desta unidade da federação há muito está afastado – não por
vontade própria – das instituições que elegem o seu destino. A esse povo tem sido
negado, continuamente, o direito de livre participação na esfera pública democrática
e a plena realização e efetividade dos direitos políticos fundamentais. Subvertidos
pelo economicismo, os processos eleitorais não encontram mais legitimidade.
Resta, como esperança para um futuro em que se concretize a abertura
comunicativa do Estado e o pluralismo social, a alternativa institucional de uma
intervenção da União sobre os poderes locais submetida a controles que busquem
garantir “uma pluralidade de perspectivas, estilos de discurso e maneiras de expressar
a particularidade de situações sociais, bem como a aplicabilidade dos princípios”28
constitucionais.
É preciso enxergar o pós-crise como momento de oportunidade política
para uma guinada democrática, que mantenha em perspectiva a necessidade de
incremento das liberdades públicas e que tenha em mente todo o processo de
opressão no qual mergulhou o Distrito Federal ao longo de sua história.
Pensar na lógica dos direitos, no presente momento, é ter como
fundamento o próprio direito, na medida em que se realiza como ideia democrática
de autolegislação, que confere a si mesmo a validade de que necessita para uma
realização dos princípios constitucionais de igualdade e liberdade assegurados nas
lutas políticas da modernidade.

                                                            
28 YOUNG (2001, pp. 385-386).
 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CATTONI, Marcelo (coord.). Jurisdição e hermenêutica constitucional no Estado Democrático


de Direito. 1 ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

CORSI, Giancarlo. Sociologia da Constituição. Trad. Juliana Neuenschwander


Magalhães. Revista Jurídica UNIGRAN, v. 4, n. 8, jul-dez. 2002. Dourados-MS:
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COSTA, Lúcio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Anais do I Seminário de estudos dos
problemas urbanos de Brasília. Brasília: Senado Federal, 1974.

DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press,


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FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3 ed. Rio
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HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 2 ed. Rio de


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LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Biblioteca Tempo Universitário. n. 80. 1


ed. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

 
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_______. A constituição como aquisição evolutiva. Trad. Menelick de Carvalho Netto,


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acadêmicos.

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NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.


SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
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SOUSA JUNIOR, José Geraldo. Brasília, capital da cidadania. Revista Humanidades, n.


56, dez. 2009. Brasília: Editora UnB, 2009 (pp. 19-25).

YOUNG, Iris Marion. “Comunicação e o outro: além da democracia deliberativa”.


In: SOUZA, Jessé. Democracia Hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea.
Brasília: Editora UnB, 2001 (pp. 365-386).

 
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A POLÍTICA DA JUSTA MEMÓRIA DE PAUL RICOEUR*

Luiz Philipe de Caux**

RESUMO

O trabalho busca reconstruir a idéia de justa memória como desenvolvida por Paul
Ricoeur, a partir de uma análise sistemática e não-linear da obra "A memória, a
história, o esquecimento" e numa interpretação orgânica que leva em conta outros
momentos de sua obra. Tal esforço justifica-se ao inserir-se no contexto de debate
sobre justiça de transição no Brasil, reanimado na atualidade, por exemplo, pela
ADPF que questiona a interpretação corrente da Lei de Anistia no Supremo ou pelas
diretrizes sobre Direito à Memória e à Verdade instituídas pelo Terceiro Plano
Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Por justa memória Ricoeur compreende
uma memória sem excessos: nem o esquecimento absoluto, apagamento das
recordações, nem a memória obsessiva, incapaz de esquecer. Ambas as hipóteses
teriam por consequência a repetição do passado, seja pela não-assimilação de suas
lições, seja pelo que Freud chamou de "passagem do pensamento ao ato". Não se
trata, todavia, de um justo termo aristotélico da memória. A justa memória só pode
ser entendida como uma memória pública livre de coerções e abusos e na qual se
reconheçam todos os seus titulares, sendo, portanto, indissociável de uma
democracia radical.

Palavras-Chave: Memória Pública, Direito à Memória, Paul Ricoeur.


Mots-Clés: Memoire Publique, Droit à la Memoire, Paul Ricoeur.

                                                            
* Uma primeira versão deste artigo foi apresentada como trabalho final da disciplina de graduação
“Tópicos em Teoria e Metodologia da História: Paul Ricoeur e a História: Tempo e Narrativa,
Memória e Esquecimento”, do Departamento de História/UFMG, ministrada pelo Prof. José Carlos
Reis no 2º semestre de 2009. Agradecimentos ao Professor José Carlos pela rica experiência intelectual
de seus seminários, e ao amigo David Francisco Lopes Gomes por sua leitura atenta e suas
importantes sugestões.
** Graduando em Direito pela UFMG.

 
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INTRODUÇÃO

“Lembra-te!”, eis a injunção que o século XX legou à posteridade. Um dever


de memória se impõe em relação às catástrofes políticas desses tempos, por um lado,
em respeito às suas vítimas, por outro, como uma lição pública – dolorosa e nunca
completamente assimilada – cujo fim é evitar que tais desastres se repitam.
Entretanto, repisar eternamente os traumas do passado, além de obstruir o
prosseguimento da vida, leva ao sério risco, fundado na atualização diária dos
mesmos rancores, de ensejar exatamente o que deveria impedir.
Assim, se não é possível nem recomendável simplesmente deixar de lado o
passado, tampouco é salutar remoê-lo irrestritamente. Se o dever de memória se
converte num fardo que nos prende eternamente ao passado e impede a
continuidade da vida, é justo que se questionem os seus limites.
Haveria, então, um ponto justo entre o excesso de esquecimento e o excesso
de memória? É o que propõe Paul Ricoeur em A memória, a história, o esquecimento1.
Nessa obra, que veio a público em 2000 e passou a ser considerada uma das mais
importantes da vasta produção de Ricoeur, o filósofo francês se debruça
filosoficamente sobre a temática da história sem, no entanto, empreender uma
filosofia da história. Interessam a Ricoeur sobretudo duas questões, distinguíveis e,
contudo, indissociáveis, como se verá.
A primeira delas – da ordem da razão teórica – diz respeito à pretensão de
correspondência da memória e da história em relação ao passado. O enigma
instaurado pela ontologia do passado, que ao mesmo tempo em que foi, já não é mais,
imporá fortes dúvidas quanto à possibilidade de se possuir uma representação
seguramente verdadeira sobre ele.

                                                            
1 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.
 
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A segunda questão – da ordem da razão prática – é a da justa memória. Este


tema, expresso por Ricoeur como a “preocupação pública” que o levou a escrever a
obra, a atravessa do início ao fim, tendo por horizonte o epílogo dedicado ao
“perdão”.
É a este segundo problema que se dirige o foco deste artigo, sendo o
primeiro problema tratado acessoriamente. Tentarei esboçar, a partir de uma análise
sistemática e não-linear de A memória, a história, o esquecimento e numa interpretação
orgânica que leva em conta outros momentos de sua obra, o que se pode
compreender, em Ricoeur, por “justa memória”.

I JUSTIÇA E VERDADE

O primeiro aspecto da memória a ser posto em discussão é o de sua relação


com a verdade, isto é, sua característica de fidelidade ao passado. Quando Ricoeur
predica o adjetivo ‘justo’ à memória, o faz tanto no sentido de ‘justiça’ quanto no de
‘justeza’ (precisão, exatidão). É necessário, portanto, mostrar como é que as duas
grandes questões que estruturam A memória, a história, o esquecimento, a epistemológica
e a ético-política, se entrelaçam.
Já em Justiça e verdade, Ricoeur defendia expressamente que “o justo
arregimenta de alguma maneira o verdadeiro em sua circunscrição”2. Sua tese é de
que a filosofia teorética, dedicada à ideia de verdade, e a filosofia prática, dedicada à
ideia de justiça, seriam de níveis iguais, não sendo nenhuma delas a filosofia primeira
em relação à outra. Para Ricoeur, as noções de justiça e de verdade “podem ser
formuladas independentemente uma da outra”, mas “se entrecruzam de maneira
                                                            
2 RICOEUR, Paul. Justiça e verdade. In: _______. O justo 2: Justiça e verdade e outros estudos. São

Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 64.


 
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rigorosamente recíproca”3. No entanto, nesse ensaio Ricoeur se limita a discorrer


sobre a implicação do verdadeiro no justo, deixando em aberto a questão reversa.
Um dos exemplos teóricos utilizados por Ricoeur para ilustrar essa
implicação é justamente a descrição de Ronald Dworkin do juízo de aplicação da
norma penal no judiciário. Para Dworkin, dirá Ricoeur,

A análise do juízo penal mostra que aquilo que se chama de


aplicação consiste em coisa bem diferente da subsunção de um
caso particular sob uma regra; nesse aspecto, o silogismo prático
constitui apenas a roupagem didática de um processo muito
complexo que consiste em adaptar um ao outro dois processos
paralelos de interpretação: a interpretação dos fatos ocorridos, que
é em última instância de ordem narrativa, e a interpretação da
norma quanto à questão de saber em que formulação, ao preço de
que extensão e até de que invenção ela é capaz de “bater” com os
fatos.4

Assim, o exemplo limite do processo penal, no qual a apuração dos fatos


assume a maior relevância, serve para explicitar a lógica de aplicação de toda e
qualquer norma jurídica e de todo juízo ético-moral. Na aplicação, apuram-se e
interpretam-se dialeticamente os fatos e as normas cabíveis, até o ponto de
adequação mútua que Dworkin chamou de “ponto de equilíbrio”.
Após essa última demonstração, conclui Ricoeur: “A cada vez, a verdade
consiste na adequação do juízo à situação. Falar-se-ia com bons motivos de justeza
somada à justiça”5.
Deste modo, se a justa memória é também justa no sentido de justeza, surge
um grave problema: que tipo de garantias podemos ter quanto à veracidade da
memória?

                                                            
3 RICOEUR. Justiça e verdade, cit., pp. 63-64.
4 RICOEUR. Justiça e verdade, cit., p. 76.
5 RICOEUR. Justiça e verdade, cit., p. 77.
 
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Da herança da filosofia grega, Ricoeur faz emergir duas concepções, em


Platão e em Aristóteles, que levam a uma forte suspeita da memória em função de
sua relação íntima com a imaginação. Da leitura do Teeteto de Platão, Ricoeur reflete
sobre a metáfora da cera proposta por Sócrates.

Pois bem, concede-me propor, em apoio ao que tenho a dizer, que


nossas almas contêm em si um bloco maleável de cera [...]
digamos que se trata de um dom da mãe das Musas, Memória:
exatamente como, à guisa de assinatura, imprimimos a marca de
nossos anéis, quando pomos esse bloco de cera sob as sensações e
os pensamentos, imprimimos nele aquilo que queremos recordar,
quer se trate de coisas que vimos, ouvimos ou recebemos no
espírito. E aquilo que foi impresso, nós o recordamos e o
sabemos, enquanto a sua imagem (eidolon) está ali, ao passo que
aquilo que é apagado, ou aquilo que não foi capaz de ser impresso,
nós esquecemos (epilelesthai), isto é, não o sabemos.6

Dessa metáfora provêm duas conclusões importantes: a primeira diz respeito


à diferença entre aquilo que foi experienciado num certo momento e a imagem dessa
experiência impressa na alma; a segunda revela o caráter imagético das lembranças, e,
nesse sentido, seu parentesco com a imaginação. Memória e imaginação tem em
comum o fato de serem “representação presente de uma coisa ausente”.
Aristóteles faz a distinção entre memória e reminiscência. Por reminiscência
(anamnesis), Aristóteles designa a busca ativa de uma lembrança, reservando memória
(mneme) para a simples presença da lembrança no espírito, a afecção na alma.
Aristóteles sublinha, entretanto, algo que passara despercebido por Platão na
distinção memória-imaginação: “A memória é do passado”7 (do grego tou genomenou,
“o que aconteceu, o que adveio”, acrescenta Ricoeur). Se essa característica distintiva,
à primeira vista, parece óbvia e de muito pouca ajuda – afinal, a grande dificuldade
permanece: como distinguir, no espírito, se determinada imagem de fato adveio do
                                                            
6 PLATÃO apud RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 28.
7 ARISTÓTELES apud RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 35.
 
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passado, isto é, aconteceu na realidade, ou se é fruto da imaginação? –, ela traz, no


entanto, uma contribuição fundamental. A análise deste truísmo (a memória é
memória do passado) revela duas premissas: aquilo que aconteceu e foi por um
sujeito experienciado fica marcado em sua alma, e aquilo que pode ser lembrado é
lembrado com a pretensão de ter de fato acontecido. Se a memória não está imune à
distorção pela imaginação, ela segue sendo o último recurso de acesso ao passado e
mantém a pretensão de fidelidade a ele. “Se podemos acusar a memória de se
mostrar pouco confiável, é precisamente porque ela é nosso único recurso para
significar o caráter passado daquilo de que declaramos nos lembrar”8, acrescenta
Ricoeur.
Ricoeur opta, não sem fundamentos, por dar um voto de confiança à
memória. É, sobretudo, o fenômeno do reconhecimento que proporciona a certeza
da memória como grandeza cognitiva – uma certeza menos da ordem da
demonstração do que da ordem da atestação. O reconhecimento de algo como
lembrança é o reencontro, em si mesmo, de uma lembrança que, a partir de então,
pode-se concluir que estivera sempre disponível. Em Percurso do reconhecimento, em
capítulo dedicado a Bergson, Ricoeur conclui: “O reconhecimento consiste na
resolução efetiva desse enigma da presença da ausência graças à certeza que o
acompanha: ‘É ela! É ele!’”9. O “milagre do reconhecimento”, como o chama
Ricoeur, ainda será relevante ao filósofo na sua tematização do esquecimento, que
será aqui trabalhado adiante.
É a confiabilidade da memória, em última análise, que conferirá à história o
direito à sua própria pretensão de verdade. Afinal, são os testemunhos pessoais a
fonte primária do fazer historiográfico. Arquivos e outros tipos de textos não
passam, ao fim, de testemunhos de indivíduos não mais presentes.
                                                            
8 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento,cit., p. 40.
9 RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. pp. 136-137.
 
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E não vejo como se poderia remontar além da tríplice declaração


da testemunha: 1) Estava lá; 2) Acreditem em mim; 3) Se não
acreditarem, perguntem a outra pessoa. Caçoarão do realismo
ingênuo do testemunho? É possível. Mas isso seria esquecer que o
germe da crítica está implantado no testemunho vivo, a crítica do
testemunho alcançando aos poucos toda a esfera dos documentos,
até o último enigma do que se dá, sob o nome de rastro, como o
efeito-signo de sua causa. Ocorreu-me dizer que não temos nada
melhor do que a memória para certificar a realidade de nossas
lembranças. Dizemos agora: não temos nada melhor do que o
testemunho e a crítica do testemunho para dar crédito à
representação historiadora do passado.10

Culmina na ideia de representância (Representance) a reflexão ricoeuriana sobre


a confiabilidade da memória e a história. Este conceito, derivado da noção de
intencionalidade histórica11, desenvolvida por Ricoeur no tomo I de Tempo e
Narrativa, prolonga a discussão iniciada nesta obra sobre a epistemologia da disciplina
histórica. A palavra representância “designa a expectativa ligada ao conhecimento
histórico das construções que constituem reconstruções do curso passado dos
acontecimentos”12. Essa expectativa se dá no pacto tácito entre o escritor e o leitor
da obra historiográfica.

Diferentemente do pacto entre um autor e um leitor de ficção que


se baseia na dupla convenção de suspender a expectativa de
qualquer descrição de um real extralinguístico e, em contrapartida,
reter o interesse do leitor, o autor e o leitor de um texto histórico
convencionam que se tratará de situações, acontecimentos,
encadeamentos, personagens que existiram realmente
anteriormente, isto é, antes que tenham sido relatados, o interesse
ou o prazer de leitura resultando como que por acréscimo.13

                                                            
10 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 292-293.
11 “Entendo por isso o sentido do desígnio poético que constitui a qualidade histórica da história e a
preserva de se dissolver nos saberes aos quais a historiografia vem se juntar”. RICOEUR, Paul. Tempo
e narrativa, tomo I. Campinas: Papirus, 1994. p. 257.
12 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 289.
13 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 289.

 
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Por força desse pacto, conta-se com “um leitor desconfiado, que espera dele
[do historiador] não somente que narre, mas que autentifique sua narrativa”.14 É ao
leitor que se dirige, na verdade, a confiança de Ricoeur. Se nada pode garantir, a priori,
a fidelidade ou a veracidade dos discursos que tem por referência o passado, é na
recepção desses discursos – não uma recepção passiva, mas ativa e crítica – e na sua
ampla discussão que está a chave para prevenir a cristalização de seu sentido como
verdadeiro. Na hermenêutica de Ricoeur, o que o leitor visa ao interpretar um texto
não é simplesmente compreender o texto, mas a si mesmo e a seu mundo.15 Assim,
do mesmo modo como a compreensão completa do mundo é impossível (ao menos
se aceitarmos o desafio de Ricoeur de não sucumbir à “hybris da reflexão total”), o
sentido de um texto deve permanecer aberto. É no leitor crítico que se encontra a
maior garantia – uma garantia externa – de que a representação presente do passado
é, em alguma medida, fiel a ele.
Todavia, na transição da dimensão passiva e individual da memória para a sua
dimensão pragmática e coletiva (aí incluída a história, que preserva, contudo, sua
peculiaridade), surgem novas barreiras à sua fidelidade aos acontecimentos passados.
Ricoeur propõe uma tipologia de possíveis abusos da memória exercitada. No
nível patológico-terapêutico, fala-se de uma memória impedida por recalques e/ou
traumas. No nível prático, a memória pode ser manipulada intencionalmente, tendo
seu conteúdo modificado e/ou apagado. Por fim, no nível ético-político, é possível
“obrigar” a memória pelos meios institucionais, tais como as comemorações oficiais
e o dito dever de memória, que pode ser considerado um abuso na medida em que se
impõe de modo absoluto, vinculando o futuro a jamais esquecer. Mas aqui já se
adentra na problemática da justa medida do lembrar e esquecer.

                                                            
14RICOEUR. Tempo e narratica, tomo I. cit., p. 253.
15Cf. a ideia de círculo hermenêutico da tríplice mimese, capítulo 3 da parte I de Tempo e narrativa:
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo I. cit., pp. 85-132.
 
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II A MEMÓRIA COMO ESQUECIMENTO, O ESQUECIMENTO COMO


MEMÓRIA

De início, adverte-se que a justa memória proposta por Ricoeur não é


mensurada em termos de o quanto ou o quê se deve se lembrar e o quanto ou o quê
é necessário esquecer. A busca de Ricoeur não é pelo meio-termo justo aristotélico
entre memória e esquecimento. Pois, se, de fato, há uma espécie de esquecimento, a
resultante de disfunções ou danos cerebrais, que ameaça a memória a seu
apagamento definitivo, a experiência normal (no sentido de livre de patologias
neuronais) e cotidiana do esquecimento revela justamente a preservação das
lembranças, mesmo quando não visadas pela consciência. O próprio recordar só é
possível porque, antes, a coisa lembrada foi esquecida, isto é, posta fora do alcance
da consciência, mas a ela disponível. Pode-se falar, assim na “ideia paradoxal segundo
a qual o esquecimento pode estar tão estreitamente confundido com a memória, que
pode ser considerado como uma de suas condições”.16 No entanto, a esse
esquecimento de reserva – disponível – contrapõe-se a dita memória impedida. Tais
impedimentos à memória, além, é claro, de lhe barrarem o acesso, projetam para o
futuro a sucessiva repetição do evento traumático que os geraram. A psicanálise
freudiana e as especulações filosóficas de Henri Bergson são, nesse sentido, a matriz
das reflexões de Ricoeur sobre a justa memória e os meios de se alcançá-la.
É preciso também justificar o emprego do arcabouço teórico psicanalítico e
de seu vocabulário – antes apropriado à prática clínica – para análise dos fenômenos
da memória coletiva. Na verdade, as possíveis objeções a esse tipo de analogia são as
mesmas que poderiam ser formuladas à própria ideia de memória coletiva e
decorrem de concepções ainda aferradas a uma filosofia centrada no sujeito e cega à

                                                            
16 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 435.
 
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idéia e intersubjetividade. De todo modo, escapa aos objetivos deste texto essa
discussão. Admita-se, ao menos, o caráter heurístico destes conceitos na investigação
de Ricoeur antes de se lhe dar prosseguimento.
Para Ricoeur, o trato dispensado pela neurociência à questão do
esquecimento é cientificamente irrepreensível, mas as questões que a filosofia postula
são de outra ordem17.

Nas ciências neuronais, costuma-se enfrentar diretamente o


problema dos rastros mnésicos, visando a localizá-los ou a
subordinar as questões de topografia às de conexidade, de
hierarquia de arquiteturas sinápticas; daí, passa-se às relações entre
organização e função e, com base nessa correlação, identifica-se o
correspondente mental (ou psíquico) do cortical em termos de
representações e de imagens, entre as quais as imagens mnésicas.
O esquecimento é então evocado nas proximidades das disfunções
das operações mnésicas, na fronteira incerta entre o normal e o
patológico.18

É em termos de apagamento de rastros corticais que a neurociência lida com


o problema do esquecimento, entende Ricoeur. É na transição dos rastros corticais
para os rastros psíquicos – sendo estes irredutíveis àqueles – que Ricoeur pode “erigir
[...] [o] estatuto de sobrevivência das imagens num segundo paradigma de
esquecimento, concorrente daquele do apagamento dos rastros”.19
Os dois capítulos centrais de Matéria e Memória, de Henri Bergson, descrevem
a dinâmica da sobrevivência das imagens do passado na alma, atestada pelo
reconhecimento mnemônico, isto é, a recordação, no presente, de um evento
passado, acompanhada da certeza de que tal evento realmente aconteceu.

Uma imagem me acode ao espírito; e digo em meu coração: é ele


sim, é ela sim. Reconheço-o, reconheço-a. Esse reconhecimento
                                                            
17 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 428.
18 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 428.
19 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 439.

 
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pode assumir diferentes formas. Ele já se produz no decorrer da


percepção: um ser esteve presente uma vez; ausentou-se; voltou.
Aparecer, desaparecer, reaparecer. Nesse caso, o reconhecimento
ajusta – ajunta – o reaparecer ao aparecer por meio do
desaparecer.20

Na reconnaissance bergsoniana, o sujeito reconhece a imagem como referente


ao passado, mas, ao mesmo tempo, reconhece a si mesmo como quem vivenciou
aquele passado. É o que revela a estrutura reflexiva do verbo “lembrar-se”: lembrar-se
de algo é lembrar-se de si. Assim, reconhecer uma memória é reconhecer a si
próprio, pois é do acúmulo das experiências passadas que sobrevivem no presente
como memória que se molda uma identidade.21
Da experiência cotidiana do reconhecimento, é possível concluir que a
imagem reconhecida – o rastro psíquico – não fora apagada definitivamente. De
alguma forma, todas as imagens um dia percebidas duram, permanecem. “Foi
preciso que algo permanecesse da primeira impressão para que dela eu me lembre
agora. Se uma lembrança volta, é porque eu a perdera; mas se, apesar disso, eu a
reencontro e reconheço, é que sua imagem sobrevivera”.22
É nesse sentido que se pode dizer que memória e esquecimento,
aparentemente contrários, dizem respeito a fenômenos complementares: a memória
enquanto reservatório de lembranças, o esquecimento como subtração das
lembranças à consciência. A memória só é memória quando não é consciência, ou
seja, quando encontra-se esquecida. “O esquecimento designa então o caráter
despercebido da perseverança da lembrança, sua subtração à vigilância da consciência”23,
afirma Ricoeur.

                                                            
20 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 437.
21 Cf. o capítulo 3 do Segundo estudo: “Reconhecer-se a si mesmo” em RICOEUR. Percurso do
reconhecimento. Cit., pp. 123-145.
22 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 438.
23 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 448.

 
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Sobre essa concepção de memória e esquecimento, Ricoeur assentará sua


política de uma justa memória. Contra o excesso de recordação e contra a sua falta, a
justa memória não é a que delimita a exata proporção. A justa memória se dá, em sua
configuração coletiva assim como na individual, na forma de “esquecimento de
reserva”. Isso significa que é preciso garantir, por assim dizer, a “saúde” da memória
pública, de modo a que se possa ter a ela a máxima acessibilidade. Muitos são os
obstáculos à acessibilidade da memória, que pode, como já dito, ser impedida. Assim
é que os abusos da memória podem macular o projeto da justa memória. Ricoeur
assim o expressa:

Por um lado, confio na capacidade originária de durar e


permanecer das inscrições-afecções, capacidade sem a qual eu não
teria acesso algum à compreensão parcial do que significa
presença da ausência, anterioridade, distância e profundidade
temporal; mas também desconfio dos entraves impostos ao
trabalho de memória, os quais, por sua vez, se converteram em
oportunidade de usos e abusos para o esquecimento. É assim que
chegamos a confundir impedimentos potencialmente reversíveis
com um apagamento incontornável.24

Há, contudo, meios de se enfrentar esses abusos da memória e do


esquecimento. Como disse Ricoeur, tais impedimentos são potencialmente
reversíveis. Mas como? Se é em termos psicanalíticos que se fala de uma memória
impedida no nível patológico, é igualmente nesses termos que se pode propor uma
terapêutica da memória coletiva. Dois ensaios de Freud serão conjugados por
Ricoeur para compreender os impedimentos à memória e o modo de se alcançar uma
memória saudável.

                                                            
24 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 437.
 
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O primeiro deles é o texto Rememoração, repetição, perlaboração e, como indica o


subtítulo da tradução brasileira25, trata-se de “recomendações sobre a técnica da
Psicanálise”, de indicações para a prática clínica. Freud identifica as resistências do
recalcamento impostas como barreira à recordação de lembranças traumáticas como
responsáveis pelo que chama de “compulsão à repetição”. Para conservar a
estabilidade da economia libidinal, tais lembranças, impossibilitadas de encontrar
vazão em sua forma original, mas impondo forte pressão à barreira do recalque, tem
sua energia libidinal desviada, passando de lembrança a ato, repetindo, de alguma
forma, a dor que originou o trauma. Caracteriza a compulsão à repetição “uma
tendência à passagem ao ato (Agieren), que Freud diz “substituir a lembrança”. O
paciente “não reproduz [o fato esquecido] em forma de lembrança, mas em forma de
ação: ele o repete sem, obviamente, saber que o repete” ([FREUD], Gesammelte
Werke, t. X, p. 129)”.26 As propostas terapêuticas de Freud a esse problema
condensam-se na noção de perlaboração (ou “elaboração”, terminologia já
consagrada pela tradução brasileira – do alemão Durcharbeiten). A idéia chave, para
Ricoeur, é a de trabalho (labor, Arbeit). É o “trabalho de rememoração” que pode
reverter o impedimento da memória e liberá-la da compulsão à repetição. Este
trabalho é justamente o “falar sobre”, a narração de si travada em uma peleja contra
as próprias resistências psíquicas: é um trabalho porque não é uma prática fácil, exige
do analisando um esforço e lhe gera um desgaste.

Assim, trabalho é a palavra repetida várias vezes, e simetricamente


oposta à compulsão: trabalho de rememoração contra compulsão
de repetição, assim se poderia resumir o tema desse precioso
pequeno ensaio. Também pertencem a esse trabalho tanto a
paciência do analista para com a repetição canalizada pela
                                                            
25 FREUD, Sigmund. Recordar, repetir, elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise
II). In: _______. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. V. 12. Rio de Janeiro:
Imago, 1976.
26 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 84.

 
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transferência como a coragem requerida do analisando de se


reconhecer enfermo, em busca de uma relação verídica com seu
passado.27

O segundo ensaio é o “Luto e melancolia”. O luto é visto, sobretudo, como


trabalho de luto. É “sempre a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma
abstração erigida em substituto dessa pessoa, tal como: pátria, liberdade, ideal etc”28.
É uma reação normal e temporária, e seu trabalho culmina na reconciliação com a
coisa perdida, a aceitação da perda. Todavia, o luto pode dar lugar, em alguns casos, à
melancolia. Esta é duradoura e importa uma diminuição no “sentimento de si”, o que
não existe no luto. É como se o trabalho de luto frustrado ou inconcluso desse
ensejo à fixação do pensamento da perda, que, a partir de um nível inconsciente, não
cessaria de atormentar a consciência. Surge aí um paralelo, por um lado, entre
trabalho de luto e trabalho de rememoração e, por outro, melancolia e compulsão à
repetição.
É preciso, portanto, transpor tais categorias do nível individual para o nível
coletivo da memória. E é neste momento que se delineia o próximo passo rumo à
justa memória.

A transposição de categorias patológicas para o plano histórico


justificar-se-ia mais completamente caso se conseguisse mostrar
que ela não se aplica apenas às situações excepcionais evocadas
acima, mas que elas se devem a uma estrutura fundamental da
existência coletiva. O que se deve evocar aqui, é a relação
fundamental da história com a violência. [...] Aquilo que
celebramos como acontecimentos fundadores são essencialmente
atos violentos legitimados posteriormente por um estado de
direito precário. A glória de uns foi humilhação para outros. À
celebração, de um lado, corresponde a execração, do outro. Assim
se armazenam, nos arquivos da memória coletiva, feridas
simbólicas que pedem uma cura. Mais precisamente, o que, na

                                                            
27 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 85.
28 FREUD apud RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 85-86.
 
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experiência histórica, surge como um paradoxo, a saber, excesso de


memória aqui, insuficiência de memória ali, se deixa reinterpretar
dentro das categorias da resistência, da compulsão de repetição e,
finalmente, encontra-se submetido à prova do difícil trabalho de
rememoração.29

Assim é que se pode dizer que a justa memória de Ricoeur é uma memória de
reserva e sem impedimentos, o que só é possível mediante o trabalho público de
memória, a discussão no espaço público. É no “falar sobre”, no debate sujeito à
contra-argumentação e que não se furta de trazer à tona os assuntos mais sensíveis de
uma sociedade, que se abre a possibilidade de uma reconciliação com o passado. É
nesse trabalho público de rememoração, para ir, com Ricoeur, além de seu texto, que
o reconhecimento de si se iguala ao reconhecimento mútuo, perfazendo a lacuna
semântica na “polissemia regrada” do reconhecimento30. Se, como dito, no lembrar-
se, o sujeito se lembra de algo e, reflexivamente, lembra-se de si, reconhecendo-se na
lembrança, na rememoração pública, o sujeito que se lembra não é mais o indivíduo,
mas o coletivo social que, no trabalho de rememoração, se reconhece enquanto
coletivo de indivíduos co-partícipes de um processo histórico. O momento do
reconhecimento-reconnaissance de Bergson encontra o do reconhecimento-Anerkennung
hegeliano, esta outra acepção filosófica do termo, significando não uma simples
identificação cognitiva, “mas sim, tendo esse ato como premissa, a atribuição de um
valor positivo a essa pessoa, algo próximo do que entendemos por respeito”.31

                                                            
29 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 92.
30 Cf. a introdução de RICOEUR. Percurso do reconhecimento, cit. A hipótese de Ricoeur nesta obra é que
há uma polissemia regrada, a meio caminho entre a homonímia e a univocidade, para as acepções
filosóficas do termo “reconhecimento”, da Rekognition kantiana, passando, não linearmente, pela
Reconnaissance bergsoniana, até o Anerkennung hegeliano. Estes três momentos seriam equivalentes,
respectivamente ao reconhecimento-identificação, ao reconhecimento de si e ao reconhecimento
mútuo.
31 ASSY, Bethânia; FERES JÚNIOR, João. Reconhecimento. In: BARRETO, Vicente de Paulo

(coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 705.
 
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Sintetizando, portanto, o que se obtém desse trajeto: a justa memória deve


assumir a forma de esquecimento de reserva, isto é, uma memória que, mesmo
quando não posta em foco, encontra-se disponível, seja em arquivos, seja nas
memórias privadas e compartilhadas dos indivíduos. Em outras palavras, o
esquecimento de reserva possibilita a aprendizagem social com a história. Assim,
sempre que, no palco da história, surgir novamente a ameaça de repetição daquilo
que, face a esse aprendizado, tornou-se indesejável, as reminiscências encontrarão
condições de emergir para enfrentar a ameaça. Benjamin já tinha uma concepção
semelhante à de Ricoeur: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-
lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de um perigo”.32 Para tanto, é preciso manter a memória livre e
desimpedida, de modo que, na forma de reserva, seja, na medida máxima, acessível.
Isso só é possível após um trabalho público de rememoração, após o enfrentamento
do dissenso (sem, contudo, nunca ultrapassá-lo) e a discussão ilimitada de todos os
temas, especialmente os mais sensíveis, os tidos por tabu. Esse trabalho de
rememoração é a forma de assimilação pedagógica do passado histórico na
consciência de uma sociedade. A discussão pública e crítica garante também, em
alguma medida, a fidelidade da representação que essa sociedade tem para si de seu
passado, evitando, por um lado, o abuso da manipulação da memória por meio da
fixação de sentido de um evento, e por outro, o abuso da obrigação institucional da
memória, se as decisões políticas e legislativas forem suficientemente legitimadas
pelos fluxos comunicativos de todo o corpo social.

                                                            
32BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ________. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 224. Grifo meu.
 
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III O PERDÃO COMO EPÍLOGO

O horizonte da reflexão de Ricoeur sobre a memória, a história e o


esquecimento é o tema do perdão. O perdão é o último e mais difícil passo (difícil,
dirá Ricoeur, nem fácil, nem impossível) rumo à reconciliação com o passado e com
o outro social considerado responsável pela falta no passado. É, por fim, o ato que
apazigua a memória, liberta-a dos rancores obsessivos característicos da memória
melancólica, no sentido freudiano. Não é o esquecimento de uma falta, mas a
anulação de uma dívida, a liberação de uma culpa, devendo a memória da falta ser
preservada como condição do perdão.33 Apenas com o perdão os atores sociais –
tanto aquele que oferece o perdão, quanto aquele que o recebe – veem-se liberados
para dar prosseguimento à vida em comum com confiança e esperança.
Ricoeur reconhece, entretanto, as limitações que o perdão enfrenta. Afinal, o
perdão é sempre uma questão privada – somente o ofendido pode perdoar, e muitas
vezes ele não pode, independentemente de sua vontade. Ninguém pode perdoar
ninguém em nome de outra pessoa. Num sentido público, como aqui esboçado,
pode-se falar em anistia, mas não em perdão. Por isso, se o perdão constitui a
“escatologia da representação do passado”, o “horizonte comum da memória, da
história e do esquecimento”, é, por outro lado, como todo horizonte, sempre fugidio,
imprimindo “o selo do acabamento na empreitada inteira”.34 É nesse sentido que é
preciso interpretar a inclusão por Ricoeur da noção de perdão como telos de sua
política da justa memória. O perdão é desejável, mas não nos cabe decidir por ele. O
que devemos, sim, é dar-lhe condições de possibilidade. Isso só pode ser alcançado
pelo trabalho público de memória livre de coerções. Se daí irá advir o perdão, não se

                                                            
33 Cf. RICOEUR, Paul. Sanção, reabilitação, perdão. In _______. O justo I: a justiça como regra moral
e como instituição. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
34 RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, cit., p. 465.

 
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pode saber. Se não for o caso, só a punição pode afrontar a ameaça do esquecimento
irrefletido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSY, Bethânia; FERES JÚNIOR, João. Reconhecimento. In: BARRETTO,


Vicente de Paulo (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio
de Janeiro: Renovar, 2006.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In _________. Magia e técnica, arte


e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir, elaborar (Novas recomendações sobre a


técnica da Psicanálise II). In: ________. Edição standard brasileira das obras completas de
Sigmund Freud. V. 12. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, tomo I. Campinas: Papirus, 1994.

RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007.

RICOEUR, Paul. Sanção, reabilitação, perdão. In: _________. O justo I: a justiça


como regra moral e como instituição. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

RICOEUR, Paul. Justiça e verdade. In: ________. O justo 2: Justiça e verdade e


outros estudos. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

 
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ANÁLISE DA PROTEÇÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS


FUNDAMENTAIS E HUMANOS E SEUS REFLEXOS NO BRASIL

Rainner Jerônimo Roweder

1 INTRODUÇÃO

O que se convencionou chamar “direitos humanos”, são exatamente os


direitos correspondentes à dignidade dos seres humanos. São direitos que possuímos
não porque o Estado assim decidiu, através de suas leis, ou porque nós mesmos
assim o fizemos, por intermédio dos nossos acordos. Direitos humanos, por mais
pleonástico que isso possa parecer, são direitos que possuímos pelo simples fato de
que somos humanos .( RABENHORST, 2007).
Em 1969 se aprovou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que
entrou em vigor em 1978 e que foi ratificada em setembro de 1997 por 25 países:
Argentina, Barbados, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica,
República Dominicana, Equador, El Salvador, Grenada, Guatemala, Haiti, Honduras,
Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname, Trindade e Tobago,
Uruguai e Venezuela. A Convenção define quais os direitos humanos que os Estados
ratificantes se comprometem internacionalmente a respeitar e a dar garantias de
cumprimento. No mesmo documento, foi criada a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, definindo as atribuições e procedimentos tanto para a Corte quanto para a
CIDH. A CIDH mantém poderes adicionais anteriores à Convenção e que não
decorrem diretamente dela, dentre eles, o de processar petições individuais relativas a
Estados que ainda não são parte da Convenção.
 
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A idéia de que a proteção dos direitos humanos pode desafiar a soberania


do Estado ganhou relevo, de modo que sua proteção não deve ser confiada
exclusivamente ao ordenamento jurídico interno de um país. Nesse contexto,
formou-se um sistema normativo internacional para resguardar os direitos humanos,
integrado por instrumentos de alcance geral - como os pactos de direitos civis e
políticos, e de direitos econômicos, sociais e culturais firmados em 1966, no âmbito
das Nações Unidas1. - e de escopo mais restrito - como as convenções específicas
sobre tortura, discriminação racial, direito das mulheres, das crianças etc2.
Paralelamente a esse sistema global de proteção aos direitos humanos
surgem subsistemas regionais na Europa, América e África. Em 1977, a resolução
32/127 da Assembléia Geral da ONU formalmente endossou a formação desses
instrumentos continentais3, considerando os sistemas global e regionais
complementares, legitimando, assim, a faculdade do indivíduo de usar em seu favor
aquele que lhe melhor adequar.
Nesse contexto, este artigo propõe-se a (1) descrever o funcionamento do
sistema continental de proteção aos direitos humanos; (2) examinar a efetividade das
recomendações e decisões emitidas por seus dois principais órgãos, a Comissão e a
Corte de Direitos Humanos, e seu impacto no ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, foi adotado, como método, a análise de bibliografia relevante

                                                            
1 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos,

Culturais e Sociais foram adotados pela Resolução 2200 da Assembléia Geral da ONU, em dezembro
de 1966, e começaram a viger em 1976, quando atingiram o número mínimo de ratificações. O
primeiro impele os Estados-parte a respeitarem os direitos civis e políticos, incluindo aí o direito à
vida, a liberdade de expressão e os princípios do devido processo legal e da ampla defesa. O segundo
contempla direitos como à saúde, à educação, ao trabalho e trabalhistas, e a uma condição digna de
vida.
2 GOMES, Flavio. O Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000. Página 30.


3 Lê-se na resolução: “[The General Assembly] appeals to States in areas where regional arrangements in the field of

human rights do not yet exist to consider agreements with a view to establishing within their respective regions of suitable
regional machinery for the promotion and protection of human rights.”
 
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acerca do tema, bem como o levantamento, compilação e exame de documentos


publicados pelos órgãos acima referidos.

2 ANÁLISE DOS IMPACTOS DA CONVENÇÃO AMERICANA DE


DIREITOS HUMANOS

Os dois principais órgãos da Convenção Americana de Direitos Humanos


são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
Composta por sete autoridades em direitos humanos, a Comissão tem por
objetivo observar a proteção dos direitos humanos no continente americano, com
uma competência que se estende a todos os Estados-parte do Pacto de San José. De
acordo com a Convenção, a Comissão exerce seu papel ao fazer recomendações aos
governos (art. 41, b), preparar estudos e relatórios (art. 41, c), requisitar informações
dos governos para monitorar a aplicação da Convenção (art. 41, d) e levar à
Assembleia Geral da OEA um relatório anual (art. 41, g).
Segundo Hector Fix-Zamudio4, a Comissão tem funções conciliadora, entre
os governos e grupos sociais; assessora, aconselhando os governos; crítica, apontado
descumprimentos aos direitos humanos; legitimadora, ao atestar que as medidas
tomadas pelos governos corrigem as violações aos direitos humanos; e promotora, ao
efetuar estudos sobre direitos humanos para promover o respeito a eles. Além disso,
ostenta função protetora, ao solicitar a adoção de medias cautelares para conter
ameaças iminentes ou flagrantes infrações aos direitos.
                                                            
4 FIX-ZAMUDIO, Héctor. El sistema americano de proteción de los derechos humanos. In: Cuadernos del
Instituto de Investigaciones Jurídicas. La protección internacional de los derechos humanos. Normas y
procedimientos. Cidade do México: Instituto de Investigaciones Jurídicas, 1986.
 
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Conforme consta no texto da Convenção, a Comissão é o órgão que recebe


as petições propostas por indivíduos ou entidades não-governamentais (art. 44),
trazendo denúncias de violações aos direitos nela resguardados. O Estado-parte
aceita essa possibilidade de ser denunciado automaticamente ao se tornar signatário
do Pacto de San José (art. 45). Os pedidos à Comissão, no entanto, só podem ser
apresentados uma vez que tenham se esgotado os recursos internos ao dispor da
vítima para fazer valer os direitos (art. 46, a).
Seguindo o processo determinado na seção 4 da Convenção, se a Comissão
reconhece que a petição pode ser admitida, solicita então informações ao governo
denunciado. Tenta-se estabelecer uma solução amistosa entre as partes, mas, se ela
não ocorrer, a Comissão redige um relatório com suas conclusões e recomendações
de ação para o país. Nos próximos três meses, o caso poderá ser solucionado pelas
partes ou a Comissão terá a faculdade de encaminhá-lo à Corte Interamericana de
Justiça.
A adesão à Convenção não subentende o aceite da Corte. Conforme o art.
62 do tratado, os países que integram o Pacto de San José têm que declarar sua
adesão à competência contenciosa da Corte – no caso brasileiro, isso foi feito apenas
em 1998.
Somente a Comissão Interamericana e os Estados-parte da Convenção
podem submeter um caso à atenção da Corte (art. 61, I). Um Estado pode denunciar
a violação praticada por outro país perante a Corte, apenas se ambos reconhecerem,
expressamente, esse tipo de faculdade a seus pares5.
Composta de sete juízes, todos de nacionalidades diferentes (art. 52, II), a
Corte tem competência consultiva e contenciosa (seção 2, do capítulo VII da
Convenção). Ao lado da sua equivalente européia, a Corte Interamericana é o único
                                                            
5GOMES, Flavio. O Sistema Interamericano de proteção aos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. Página 41.
 
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órgão judicial de direitos humanos existente com jurisdição supranacional, capaz de


impor suas decisões ao ordenamento jurídico de um país soberano. “Os Estados-
parte na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em
que forem partes”, afirma o art. 68.
A competência consultiva da Corte pode ser solicitada em relação aos
termos da Convenção ou de qualquer outro tratado de direitos humanos que opere
no continente americano (art. 64).
Dentre os pareceres da Corte, destaca-se o emitido acerca da
impossibilidade da adoção da pena de morte na Guatemala, opinião solicitada pela
Comissão Interamericana. Nesse caso, a Corte decidiu que a Convenção impõe uma
proibição absoluta quanto à extensão da pena de morte a crimes adicionais, que um
país não punia de tal maneira quando tornou-se signatário6.
Já a competência contenciosa só pode ser exercida em relação aos Estados
que, além da Convenção, ratificaram o estatuto da Corte (art. 62). Quando
examinando um caso contencioso, a Corte irá julgar o mérito e determinará a adoção
de medidas para restaurar o direito violando (art. 63, I). As compensações à vítima
que a Corte fixa em um desses casos valem como título executivo no direito interno
dos países-parte (art. 68, II).
Na jurisdição contenciosa, caso paradigmático é o “Velasquez Rodriguez“,
homem que desapareceu em Honduras na década de 80. A Corte condenou o Estado
a indenizar a família da vítima alegando que a Convenção impõe aos seus signatários
o dever de investigar violações dos direitos humanos e punir seus praticantes. A
vítima houvera sofrido tortura e desaparecimento forçado, perpetrado pela polícia

                                                            
6 PIOVESAN, Flávia. Direito Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais
europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.
 
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hondurenha7.
Como a Corte pode impor medidas provisórias (art. 63, II) e a Comissão
medidas cautelares (art. 48, I, f) - ambas com o fim de evitar a continuação de uma
violação dos direitos humanos enquanto um caso é analisado - a Convenção
Interamericana torna-se o único mecanismo de direitos humanos no mundo a
possuir o instituto de medidas preliminares.
A Corte recebe casos contenciosos dos Estados-parte ou da Comissão (art.
61), em geral uma vez que essa tenha aguardado o cumprimento de suas
recomendações feitas a um Estado infrator e esse não o fez (art. 63, II). Tendo em
vista que a decisão do envio é faculdade discricionária da Comissão, essa pode
mesmo decidir submeter o caso à Corte juntamente com o envio das recomendações
ao país infrator.
Como a maior parte das questões tende a passar pela análise anterior na
Comissão, elas atingem a Corte já com uma decisão prévia e com recomendações
dirigidas ao Estado infrator. Não há na Convenção, no entanto, termo que afirme
que essa decisão anterior vincule os juízes do organismo – portanto, eles podem
decidir adversamente da Comissão.
Uma vez iniciado o julgamento, quando a Comissão é demandante, seu
papel é análogo ao de um Ministério Público na causa (art. 33 do Regulamento da
Corte Interamericana de Justiça - RCIJ). Ainda que a vítima não tenha acesso à
Corte, seu advogado pode participar diretamente como representante da parte, ou,
para honrar ao devido processo legal, a Comissão pode agir em sua defesa (art. 33
do RCIJ).
Finalizando o processo, a Corte emite uma sentença é definitiva, inapelável
e estabelece as medidas que o Estado deve tomar para se finalizar com as infrações
                                                            
7 PIOVESAN, Flávia. Direito Humanos e Justiça Internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais
europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.
 
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cometidas (art. 67). Algumas sentenças paradigmáticas já proferidas pela Corte foram,
no caso Loayza Tamayo8, a ordem de por a ré em liberdade porque sua prisão fora
arbitrária e não seguira o devido processo legal; e, no caso Castillo Petruzzi9, a ordem
de que fosse realizado um novo julgamento porque o que levara à condenação de
Petruzzi não seguira o devido processo. No caso Aloeboetoe10, a Corte ordenou que
fosse reaberto um poso de saúde numa aldeia indígena no Suriname.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão principal e
autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge
com a Carta da OEA e com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
representando todos os países membros da OEA. Está integrada por sete membros
independentes que atuam de forma pessoal, os quais não representam nenhum país
em particular, sendo eleitos pela Assembléia Geral.
A CIDH se reúne em Períodos Ordinários e Extraordinários de sessões
várias vezes ao ano. Sua Secretaria Executiva cumpre as instruções da CIDH e serve
de apoio para a preparação legal e administrativa de suas atribuições.
Uma vez descrito, em resumo, o funcionamento do sistema interamericano
a partir dos seus dois principais órgãos, examinaremos agora a questão da sua
efetividade. Para tanto, descreveremos uma análise do real cumprimento das
resoluções emitidas pela Comissão Interamericana nos Estado Latino-americanos, no
período de 2001 a 2007.
Para a melhor compreensão de tal análise faz-se mister a conceituação do
termo efetividade. Se analisarmos o conteúdo etimológico do termo veremos que
efetividade é a qualidade do que é efetivo, é a atividade real, o resultado verdadeiro
(AURELIO,2009),. Ou seja, efetividade é a capacidade de produzir um efeito, seja ele
                                                            
8Caso Loayza Tamayo Vs. Peru. Sentença de 17 de setembro de 1997. 
9 Caso Castillo Petruzzi e outros Vs. Peru. Sentença de 4 de setembro de 1998.  
10 Caso Aloeboetoe e outros Vs. Suriname. Senteça de 4 de dezembro de 1991.
 
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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positivo ou negativo, um fazer ou não fazer. Neste sentido, Luís Roberto Barroso
(BARROSO,1993) assim a define:
“A efetividade significa, portanto, a realização do direito, o
desempenho de sua função social. Ela representa a materialização,
no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a
aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser
normativo e o ser da realidade social”.

No período mencionado (2001-2007), a Comissão emitiu 115 resoluções


sendo que 97 envolvem a América Latina.
Tal análise é possível de ser feita, pois a Comissão faz um acompanhamento
do caso, mesmo depois de proferida a recomendação. Conforme o descrito no artigo
46 do Regulamento da Comissão Interamericana de Direito Humanos:

“Artigo 46. 1. Publicado um relatório sobre solução amistosa ou


quanto ao mérito, que contenha suas recomendações, a Comissão
poderá adotar as medidas de acompanhamento que considerar
oportunas, tais como a solicitação de informação às partes ou a
realização de audiências, a fim de verificar o cumprimento de
acordos de solução amistosa e de recomendações.”

Com base no acompanhamento de suas recomendações, a Comissão


Interamericana de Direitos Humanos produz, anualmente, um relatório que é
apresentado à Assembléia Geral da OEA. A comissão sublinha que algumas
recomendações formuladas são de cumprimento de trato sucessivo e não imediato e
que algumas delas requerem um certo tempo para serem concretizadas. Portanto o
quadro apresenta o estado atual em que se encontra o cumprimento da resolução ou
acordo amistoso. Nesta perspectiva, a Comissão avalia se as recomendações são
implementadas ou não e se já houve um início (ou uma tentativa) de implementação
de tais recomendações.
Neste quadro cada caso pode se encontrar em uma das três categorias a
seguir:

 
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o Cumprimento total: São aqueles casos em que o Estado cumpriu


plenamente com todas as recomendações feitas pela Comissão. Nestes
casos ela considera que foram plenamente aplicadas as recomendações e
que o Estado iniciou e concluiu com êxito procedimentos que lhe foram
recomendados.
o Cumprimento parcial: São aqueles casos em que o Estado tem
parcialmente cumprido as recomendações feitas pela Comissão. Seja por
que ele cumpriu apenas algumas das recomendações ou por que ele cumpriu
todas de maneira incompleta.
o Cumprimento inexistente (pendente de cumprimento): São aqueles casos
em que a Comissão considera que não foi cumprida a recomendação, pois o
Estado não fez nenhum esforço para que a recomendação seja cumprida.
Nestes casos o Estado pode, de antemão, ter informado a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos que não cumprirá a recomendação ou
não informou a ela sobre o andamento do cumprimento da recomendação.

Tendo como base a análise destes dados e em resoluções de cada caso


pode-se aferir as seguintes considerações:
O número total de normas emitidas é de 97(100%) considerado o período
de 2001 até 2007 e apenas os casos que já tiveram o seu mérito apreciado e uma
norma emitida, sendo que 8 (8,24%) possuem efetividade plena, 66 (68,04%)
possuem efetividade parcial e 23 (23,72%) não possuem qualquer efetividade.
O gráfico trata de números da América Latina, portanto dele foram
excluídos os EUA, o México e o Canadá.
Nota-se um grande número de normas que possuem efetividade parcial.
Isto se dá, pois a Comissão normalmente emite recomendações complexas que
abrangem desde reparações econômicas até a produção ou aperfeiçoamento de um

 
971 
 
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diploma normativo para um determinado Estado. Ou seja, são recomendações que


exigem um efetivo esforço do Estado para o seu cumprimento pleno.
Tomemos como exemplo o relatório 54 de 2001 que concluiu pela omissão,
negligência e tolerância do Estado Brasileiro em relação à violência doméstica e
familiar contra as mulheres do país, o famoso caso Maria da Penha, que estabeleceu
recomendações específicas ao Brasil para: 1) completar o processamento penal do
responsável; 2) proceder à investigação e responsabilização sobre as irregularidades e
atrasos injustificados no processo; e 3) prover a reparação simbólica e material à
vítima; 4)recomendações de políticas públicas, no sentido de prosseguir e intensificar
o processo de reforma que evite a tolerância Estatal e 5)combater o tratamento
discriminatório à violência doméstica contra mulheres no Brasil, adotando medidas
específicas no sentido de capacitar funcionários judiciais e policiais especializados; 6)
simplificar procedimentos judiciais penais, sem afetar direitos e garantias do devido
processo; 7) promover formas alternativas de solução de conflitos no âmbito
familiar; 8) multiplicar o número de delegacias especializadas, seus recursos e apoiar o
Ministério Público nos informes judiciais; e, por fim, 9)incluir, nos planos
pedagógicos, unidades curriculares sobre respeito à mulher, seus direitos, a
Convenção de Belém do Pará e manejo de conflitos intrafamiliares.
Observa-se que a Comissão considerou necessárias 9 medidas para a
resolução do conflito brasileiro, e mesmo com a criação da lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006) que veio para cumprir, de uma só vez, vários pontos da recomendação
a Comissão considera o caso como de Cumprimento Parcial e que a efetividade de
sua resolução foi parcial.
Passemos agora para uma análise da Corte Interamericana de Direitos
Humanos que se auto define, em seu sitio (www.corteidh.or.cr), como uma
instituição judicial autônoma da Organização dos Estados Americanos, criada em

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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1979, cujo objetivo é a aplicação e interpretação da Convenção Americana sobre


Direitos Humanos e outros tratados concernentes a esta matéria.
É formada por juristas da mais alta autoridade moral e amplamente
reconhecida competência na área dos Direitos Humanos, que são eleitos a título
individual.
Tal Corte possui tripla competência: a contenciosa, que profere decisão final
sobre o litígio, mas que está condicionada ao consentimento das partes. A
provisional, que foi feita para evitar iminentes evitar danos à pessoa e a consultiva
que funciona como um parecer que a Corte dá em determinados casos. Segundo
Antônio Augusto Cançado Trindade “a Corte Interamericana de Direitos Humanos
exerce a importante função de interpretação da letra e espírito da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos”( TRINDADE, 1999).
A sentença da Corte tem eficácia previamente aceita, principalmente para os
países que reconhecem sua competência, conforme o artigo 1.1 da convenção que
prevê que:

“Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a


respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu
livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua
jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer natureza,
origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou
qualquer outra condição social.” (grifos nossos).

Nota-se que as decisões da Corte tornaram-se, em regra, obrigação geral de


observância imperativa. O Estado signatário assume um compromisso de respeitar os
direitos e liberdades reconhecidos pela Convenção e a jurisdição desta. A Corte vem
para garantir e assegurar o cumprimento destes Direitos, caso os Estados que se
comprometeram a cumpri-los, os ignorem.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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As decisões, basicamente, se restringem a condenar o Estado infrator a


reparar o dano causado, o que não implica na reforma das decisões internas de cada
Estado. Este, para assegurar o exercício dos direitos humanos assume uma obrigação
de fazer, que se materializa no compromisso de se fortalecer de estruturas aptas a
prevenir, investigar e punir toda violação de direito humanos, seja ela pública ou
privada.
As sentenças relativas à pecúnia obedecem, de maneira geral, ao processo
interno de execução de sentença contra o Estado. No Brasil, por exemplo, a
execução da sentença se dá com base em título executivo judicial.
Porém, em alguns Estados, principalmente na América Latina, a demora
para pagar a dívida Estatal é muito grande. Ou seja, a efetividade das sentenças da
Corte é colocada em xeque devido à morosidade no pagamento.
Como dito, as sentenças se reduzem, basicamente, a condenar o Estado ao
pagamento de uma indenização. Mas, a força da sentença não se restringe a isto. A
jurisprudência da Corte, como já dizia José Roberto Gomes Albéfaro, tem sido
agente vetor de transformação nas legislações internas de alguns países
(ALBEFÁRO, 2007).
A título de exemplos podem ser citados:
• O Caso Olmedo Bustos e Outros vs Chile (Última Tentação de Cristo,
2001) – este julgamento permitiu a discussão e a subseqüente reforma da
legislação sobre a liberdade de expressão, ocorrida no Chile após o
julgamento pela Corte;
• O Caso Bairros Altos vs Peru (mérito, 14/05/2001) - entendeu a Corte
que as leis peruanas que auto-anistiavam os responsáveis por violações aos
direitos humanos “eram manifestamente incompatíveis com a letra e o

 
974 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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espírito da Convenção Americana”. A sentença foi acatada e os


responsáveis vêm sendo punidos exemplarmente naquele País.
A Corte, segundo o relatório anual de 2008, emitiu 192 sentenças no
período de 1979 a 2008. Mas, nem todos os casos possuem cumprimento total ou
parcial das obrigações expedidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Neste mesmo relatório a Corte estima que 19 por cento dos casos com o mérito
julgado e que já possuem tempo hábil para o cumprimento da obrigação imposta por
este organismo internacional estão pendente de cumprimento. Ou seja, grande parte
dos Estados nada faz para o adimplemento desta obrigação internacional. Este dado
se amplia se apenas os casos da América Latina forem estudados, devido ao maior
tempo médio do processo interno de execução da dívida e a própria condição
financeira mais escassa destes Estados.

3 CONCLUSÃO

Recentemente foi publicado DOU(diário oficial da União) n° 75, o decreto


n° 7.158, de 20 de abril de 2010, que “autoriza a Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República a dar cumprimento a sentença exarada pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no
uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e
considerando a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso
Arley José Escher e outros; considerando a existência de previsão orçamentária para
pagamento de indenização a vítimas de violação das obrigações contraídas pela União
por meio da adesão a tratados internacionais de proteção dos direitos humanos;
decreta: Art. 1° Fica a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
autorizada a promover as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte
 
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Interamericana de Direitos Humanos, expedida em 6 de julho de 2009, referente ao


caso Arley José Escher e outros, em especial a indenização pelas violações dos
direitos humanos às vítimas ou a quem de direito couber, na forma do Anexo a este
Decreto.” Nota-se um esforço do Estado brasileiro para cumprir as resoluções e
sentenças da Convenção Americana.
Cerca de 75% das recomendações da Comissão são parcial ou totalmente
atendidas. Tendo em vista que outros organismos internacionais não-judiciais –
como a Assembleia Geral da ONU – também tem efetividade limitada, pode-se
admitir que um índice de cumprimento nos ¾ é bastante significativo. Corrobora a
tese de boa efetividade da Comissão o fato de que, se o Estado não cumprir sua
recomendação, isso não necessariamente significa que ele permaneceu infrator dos
direitos humanos, pois os casos não resolvidos nesse órgão podem ser encaminhados
à Corte de Direitos Humanos.
Em relação à efetividade do órgão judicial do Sistema Interamericano, já foi
relatado acima que cerca de 20% das decisões não são implementadas pelos Estados
condenados. Novamente, apesar dessa parcela de não cumprimento ser significativa,
há de se reconhecer que a maior parte das infrações aos direitos humanas é total ou
parcialmente solucionada.
Com base na exposição acima, portanto, concluímos que, contrariamente às
opiniões majoritárias na cultura jurídica brasileira relativas à efetividade do Pacto de
San José, a Convenção Americana de Direitos Humanos é um instrumento que tem
sido aplicado e tem possibilitado a cidadãos americanos a fazerem seus Estados
respeitarem direitos que lhes estavam sendo negados.

4 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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CIDADANIA E DEMOCRACIA: DA TRAJETÓRIA SÓCIO-


POLÍTICA DA DEMOCRACIA DIRETA NA ANTIGUIDADE
CLÁSSICA À ALEGÓRICA DEMOCRACIA BRASILEIRA

Renata Cristina Macedônio de Souza*

RESUMO

O presente trabalho de pesquisa tem por escopo demonstrar a formação dos


princípios e valores engendrados pelo Estado moderno e suas implicações para a
construção de um regime democrático, que na prática, no Brasil, remonta uma
cultura política estadista com implicações nefastas à formação da cidadania brasileira
na contemporaneidade. Assim, partiremos, inicialmente, da noção de democracia na
Grécia antiga, verificada na etimologia da expressão democracia, a cuja concepção de
“governo do povo” é seu alicerce. Posteriormente, passaremos ao estudo dos
princípios e fundamentos, consolidados no século XVIII, os quais servirão de base
para organização do Estado Democrático de Direitos. E, por fim, verificaremos as
implicações que a tentativa da aplicação dos princípios e valores do Estado
Democrático de Direitos trouxe para a formação da cidadania e democracia no
ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-Chave: Cidadania, Democracia Direta e Indireta, Estado Democrático de


Direito.

ABSTRACT

This research work aims at demonstrating the formation of the principles and values
engendered by the modern state and its implications for the construction of a
democratic regime, in practice, in Brazil, goes back a political culture statesman with
adverse implications for the formation of Brazilian citizenship nowadays. Thus, we
will, initially, the concept of democracy in ancient Greece, found in the etymology of
the term democracy, whose conception of "government of the people" is its
foundation. Later, we will study the principles and fundamentals, consolidated in the
eighteenth century, which form the basis for organization of the Democratic State
Rights. And finally we check the
 
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implications of the attempted application of the principles and values of the


Democratic State Rights brought the formation of citizenship and democracy in the
Brazilian legal system.

Keywords: Citizenship, Direct and Indirect Democracy, democratic state of law.

Para tratarmos da ideia de democracia no Brasil, será necessário,


compreendermos os princípios consolidados pelo Estado Democrático, verificando-
se, os meios utilizados para a sua efetiva aplicação e as conseqüências havidas dessas
tentativas. Todavia, há que recorrermos, primeiramente, aos primórdios do instituto
em tela através da etimologia contida na expressão democracia, a qual remonta a
noção de “governo do povo”.
Sob esse aspecto, vai-se evidenciando a noção histórica de povo, uma vez
que esta noção tem variado conforme o tempo. Ora, é bem verdade a assertiva de
que inexiste democracia sem povo, no entanto, o problema central está em saber
quem é esse povo e de que modo ele deve governar. Por isso, sustenta Silva (2008, p.
126), que “a democracia da antiguidade grega não é a mesma dos tempos modernos;
nem a democracia burguesa capitalista corresponde à democracia popular.”
Desse modo, devemos conceber a democracia não como um fim, mas
como um meio de se realizar os valores fundamentais necessários à convivência
humana, verificados, pela estruturação dos direitos fundamentais do homem os quais
são acrescidos de novos conteúdos a cada etapa do envolver social. Silva (2008).
Nesse sentido, afirma Silva (2008), ser a democracia “um processo de
afirmação do povo e de garantia dos direitos fundamentais que o povo vai
conquistando no correr da história.” Assim, verifica-se a acepção dialética do
instituto em tela, de modo que a partir da construção de seu conceito na história,
verificaremos a tentativa de romper os contrários, as antíteses, tendo em vista a

 
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preservação dos valores surgidos para a consolidação de novos direitos reivindicados


pelo cenário popular.
Assim, vale ressaltar conforme observa Bobbio (2000, p. 372) que os
antigos quando pensavam em democracia imediatamente a relacionava a imagem de
uma praça ou de uma assembleia onde os cidadãos eram chamados a tomar as
decisões as quais lhes diziam respeitos. E, ainda, conforme sustenta o mencionado
autor:

“Democracia” significava o que a palavra designa literalmente:


poder do démos, e, não como hoje, poder dos representantes do
démos. Se depois o termo démos, entendido genericamente como a
“comunidade dos cidadãos, fosse defendido dos mais diferentes
modos, ora como os mais, os muitos, a massa, os pobres em
oposição aos ricos, e portanto se democracia fosse defendida ora
como poder dos mais ou dos muitos, ora como poder do povo ou
da massa ou dos pobres, não modifica em nada o fato de que o
poder do povo [...] não era aquele de eleger quem deveria decidir
por eles, mas de decidir eles mesmos [...] sobre toda gama de
atividades governativas.

Desse modo, conforme acima mencionado, a ideia de povo como corpo


coletivo nos remete à imagem da praça ou da assembleia vistas do alto. E assim o
substantivo democracia era o único substantivo capaz de coletivizar em um único
corpo quais eram os sujeitos indicativos da democracia, no caso, o povo. É o que
sustenta Bobbio (op.cit., p. 377), ao afirmar que,

A idéia de démos como corpo coletivo deriva da imagem da praça


ou da assembleia olhadas do alto. Mas se nos aproximarmos delas,
perceberemos que a praça ou a assembleia são compostas de
muitos indivíduos que, quando exercem o seu direito, aprovando
ou desaprovando as propostas dos oradores, contam
singularmente um. Portanto, também a democracia, não
diversamente [...] da aristocracia, é composta de indivíduos.

 
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Logo, no que se refere ao sistema da democracia direta, cujas origens


históricas se encontram na antiga Grécia (Atenas de Clístenes e de Péricles) e Roma,
iremos, nos deparar com a noção aristotélica de povo. Para Aristóteles, a democracia
é um governo de números. Essa premissa redunda em certo abstracionismo do
conceito de igualdade ao qual, conforme salienta Mendonça (1976, p. 31), “não se
põe em termos de mérito, mas de número com a igualdade fundada no mérito”. É o
que fundamenta a teoria da ascendência hereditária por ele desenvolvida, que
preconiza ser necessário, no entender de Mendonça (1976),

contrabalancear a igualdade fundada no número. Uns são


superiores aos outros pela nobreza de sangue, mas podem ser
inferiores pelas virtudes civis; uns são superiores pela riqueza,
outros pelas virtudes cívicas. Para Aristóteles o governo ideal seria
composto de elementos democráticos e oligárquicos, fundado
numa vasta classe média, na qual se equilibravam as várias
pretensões ao poder das várias classes sociais.

Da exposição do pensamento grego, acima mencionado, acerca da


democracia constatamos uma séria advertência, uma vez que ao entregar ao povo,
diretamente, o poder de votar as leis que o governam, corremos o risco se ver-se
concretizar a anarquia ou a tirania das massas, manifestadas por meio da adesão às
decisões arbitrárias as quais partem da afirmação caprichosa da vontade particular e
foge aos verdadeiros interesses comuns. Mendonça (1976).
Ainda, com base no pensamento aristotélico é de se constatar da leitura do
livro III de A Política, sua classificação de governos. Segundo essa concepção, o
governo poderia muito bem pertencer a um só indivíduo, grupo ou mesmo a todo o
povo, mas pertencia, sobretudo, conforme Dallari ( 2005, p. 146),

àqueles que tivessem parte na autoridade deliberativa e na


autoridade judiciária. E diz taxativamente que a cidade-modelo
não deverá jamais admitir o artesão no número de seus cidadãos.

 
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Isto porque a vitude política que é a sabedoria para mandar e


obedece , só pertence àqueles que não têm necessidade de
trabalhar para viver, não sendo possível praticar-se a virtude
quando se leva a vida de artesão ou mercenário.

É de se verificar que essa limitada ideia de povo teve seus dias contados
com o início da concepção democrática desenvolvida no sécculo XVIII por meio da
supremacia do poder político da burguesia sobre a monarquia e a nobreza, o que irá
deflagrar na substituição da democracia direta ou participativa pelo sistema
representativo.
Ao nos filiarmos a visão restrita, ora mencionada, de que o povo precisa
atender à alguns pressupostos especiais necessários à existência da democracia,
estaremos, equivocadamente, aderindo à visão elitista, a qual no dizer de Silva
( 2008, p. 126) “não é apenas uma posição distinta a democracia, governo do povo,
mas é algo a ela oposto.” Essa acepção deturpada de democracia é ainda muito
corrente no pensamento político contemporâneo e se limita a sustentar o “elitismo
de dirigentes”. Silva ( 2008, p. 127).
O legado grego para a sistematização dos princípos do Estado Democrático
foi de grande valia, uma vez terem eles questionado a competência do povo simples
para a tomada se decisões políticas. Afinal, um dos princípios da democracia grega e,
que passou a ser adotado por todos os Estados democráticos assentados na tese de
que se existem ofícios em que a capacitação técnica é um dos pressupostos essenciais,
a democracia não está entre eles. Para a decisão do bem estar comum e correta
aplicação dos valores de liberdade e igualdade há de se conceber que todos são iguais
e por isso, não há que falar em filósofo, rei e nem em tecnocrata. Silva ( 2008).
Deve-se considerar que a sociedade grega não conheceu a complexidade da
economia moderna, os cidadãos tão somente abordavam assuntos ligados a guerra e

 
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a paz, e políticos. Assim, vale frisar, que a maior parte de suas discussões giravam
em torno da religião e das festas. Silva (2008).
Logo, nota-se uma evidente contradição à concepção plena de democracia,
uma vez que esta pressupõe a obtenção de requisitos para a caracterização da
democracia por meio de um regime antidemocrático. Segundo a visão elitista, o
governo somente pode afirmar-se democrático quando do atendimento de
pressupostos essencialmente elitistas, tais como, destaca Silva (2008),

os de que o povo precisa ser preparado para a democracia, de que


esta pressupõe certo nível de cultura, certo amadurecimento
social, certo desenvolvimento econômico [...] e outros
semelhantes que no, fim das contas, preparam os fundamentos
doutrinários do voto de qualidade e restritivo.

Nesse sentido, nota-se uma alarmante contradição à concepção plena de


democracia, uma vez que esta pressupõe a obtenção de requisitos para a democracia
por meio de um regime antidemocrático. Nisso a tese é invertida, conquanto serem
a educação, a cultura, o amadurecimento social, o desenvolvimento econômico, não
pressupostos da democracia, mas objetivos a serem exigidos e alcançados por meio
da adoção do regime democrático, Silva (2008).
Para haver democracia, não há que falar em requisitos especiais, bastando,
para tanto, a existência de um povo. Silva (op. cit., p. 128). Desse modo é possível
afirmar que o elitismo democrático da contemporaneidade, encontra suas origens nos
primórdios da democracia participativa ou direta, quando depreendermos a
democracia aristotélica a partir de sua máxima “é um governo de números”.
Mesmo assim, é válido ressaltar que na antiguidade clássica, conhecia-se a
democracia direta ou participativa, onde o povo se reunia na àgora para votarem as
leis que iriam lhes governar. No entanto, essa participação direta era,
verdadeiramente possível, quanto menos fosse o número dessas comunidades

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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políticas, já que o povo deve atuar diretamente, sem necessitar de qualquer


intermediário para fazê-lo.
Hoje, todavia, apenas é possível encontrar a democracia direta em alguns
cantões suiços onde os cidadãos se reúnem para votar as leis de seu governo.
Evidente que essa modalidade de democracia se tornou inconcebível nos dias atuais
em razão da grande extenção territorial, bem como, da densidade demográfica
verificada nos Estados modernos. Bastos (2002, p. 137).
Os defensores da democracia direta, tais como, Rousseau, viam nela a
forma ideal de governo, já que o povo exerce livre e diretamente sua vontade. É o
que podemos vislumbrar por meio da análise do pensamento do citado filósofo,
realizada por Bastos (2002), ao sustentar que, “Rousseau sempre se mostrou avesso
ao sistema da representação política, pois nele os representantes eleitos pelo próprio
povo poderiam a qualquer momento desvirtuar a vontade popular e seguir apenas os
seus interesses próprios.”
A descrença de Rousseau na possibilidade de o povo deixar-se representar
por deputados, fê-lo propor algumas medidas que atenuariam sua contrariedade.
Primeiramente, defendeu a substituição rápida dos representantes e,
secundariamente, elencou a obrigatoriedade de os representantes se vincularem à
obediência de suas propostas e prestarem contas de sua conduta ao Parlamento.
Indignou-se ele com o que se insurgia no Parlamento Inglês que, após, entregar o
poder supremo aos seus representantes, sequer era capaz de controlar o abuso que
pudessem vir a praticar durante os sete anos de mandato. Bastos (op. cit., p. 145).
A proposta supracitada por Rousseau, acerca democracia representativa,
sustenta os alicerces para formatação da teoria do mandato imperativo, fundada na
ideia de que “qualquer vontade asssumida pelo eleito contra a vontade do eleitor é
nula e de nenhum efeito”. Bastos (op.cit., p. 135).

 
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Todavia é de se verificar que não foi essa a teoria adotada pelo Estado
liberal, mas sim, a teoria do mandado representativo ou livre, a qual defende haver
uma relação de confiança entre o mandante e mandatário. Por meio dessa, o
mandante recebe poderes do eleitor para decidir de forma autônoma. Assim,
Rousseau, afirmou, acertamente, a premissa de que a liberdade na democracia
representativa só existia no momento de votar. Bastos (2002).
É possível concluir que a noção de democracia enquanto governo do povo
foi essencial para o surgimento do governo democrático, no entanto, deveria esta
concepção ser readequada com vista a atender um grande número de habitantes do
Estado. Assim, conforme afirma Dallari (2005, p.147),

a preferência à prática da democracia em algumas cidades gregas


[...], seria insuficiente para determinar a preferência pela
democracia, que se afirmou a partir do século XVIII em todo
hemisfério ocidental, atingindo depois o resto do mundo. Foram
as circunstâncias históricas, num momento em que em que a
afirmação dos princípios democráticos era o caminho para o
enfraquecimento do absolutismo dos monarcas para a ascensão
política da burguesia.

Conforme acima mencionado, é de se verificar que o Estado Democrátido


de Direito nasceu da repugnância ao sistema de governo absolutista e, sobretudo, da
afirmação dos direitos naturais da pessoa humana, o que repercutirá no papel
preponderante a que tiveram os jusnaturalistas, tais como: Locke e Rousseau, para a
estruturação dos princípios necessários à estruturação do Estado Democrático de
Direito.
Locke, afirmou pensamento contrário à citada teoria da ascendência
hereditária, desenvolvida por Aristóteles e reafirmada, em fase posterior, pelo
cristianismo na idade média, sobretuto, por Tomáz de Aquino, para sustentar a
concepção absolutista a cuja supremacia do poder deve permanecer nas mãos da

 
986 
 
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Igreja e do Estado. Segundo a teoria tomista, conhecida por “teoria da hierarquia


ascendente”, conforme aduz Haile ( 1966, p. 19),

Os homens instruídos poderiam aprofundar-se na pesquisa por


via racional, ao passo que os iletrados dependem, sobretudo, da
luz da fé. E a Igreja, que era nesse tempo, o baluarde da razão
tanto quanto a guardiã da revelação, apresentava-se como a
autoridade adequada à afirmação do valor relativo de todas as
coisa de todos os homens e à interpretação dos designíos de Deus.

Nesse sentido, é fácil constatar que essa concepção nos conduz a uma visão
do mundo hierarquizada e que, portanto, redunda em uma distorção do conceito da
expressão igualdade, uma vez que os homens, aos olhos de Deus jamais são tidos
como seres iguais. É o que claramente nos explica Haile (op. cit., p. 36),

Embora aos olhos da Igreja, todas as almas sejam iguais perante


Deus, os homens não são de modo ialgum iguais neste mundo. É,
na verdade, evidente que a concepção como “hierarquia”
sancionava, e mais ainda, tornava necessária uma ordem política e
social que não era democrática. Era de fato, ao contrário,
francamente aristocratica.

O conformisto cristão presente na ideologia, tomista-aristotélica, defendida


na da Idade Média será vergastado com o advento do iluminismo, sobretudo,
conforme aludido, por Locke, o qual rebate a premissa baseada na igualdade alheia à
essência da liberdade, preconizada, posteriormente, pelo Estado democrático o que
redundará no novo conceito de igualdade, amplamente difundido pelo Estado
Democrático Moderno, o qual sustenta, conforme Haile ( 1966), que,

Todos os homens nasceram para serem livres, como iguais. A


razão disto é que, não havendo qualquer superioridade fruto da
herança, nenhum homem pode ter sobre os demais qualquer
autoridade natural - nem na igreja nem no Estado.

 
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Desse modo, verificamos no pensamento filosófico de Locke, a doutrina de


que todos os homens foram criados iguais e livres. Esse fundamento constitui a
premissa conclusiva de sua teoria denominada “substância mental da página em
branco”. Por ela, segundo Locke, ao nascermos, nossa substância mental pode ser
comparada a uma página em branco que a partir do contato com outras substâncias
mentais, vão-se preenchendo nessas páginas tudo o que foi recebido e registrado ao
longo de toda a nossa existência.
Portanto, não há, segundo Locke, ideias inatas, preconcebidas
hierarquicamente, de sorte, que também, inexiste princípios morais inatos. Diante
disso, nossos códigos de moral, são oriundos dos sentidos. Estes chegam-nos de
modo direto, em forma de ideias simples, ou por meio da razão que as compara e as
organiza sistematicamente. E, assim, mesmo a ideia de Deus, somente pode vir a
cada indivíduo por meio de sua própria experiência durante a vida. Haile ( op.cit.,
p.36).
Conforme mencionamos, Rousseau, também contribui muito para a
consolidação dos princípos democráticos. É por meio de seu pensamento acerca do
ideal de governo democrático é que serão identificados os fundamentos do Estado
democrático de Direito a serem defendidos pelo Estado moderno.
Assim, admite o citado pensador, a prática do governo democrático, por
meio da democracia direta ou participativa, no entanto, pretende vê-la possível
somente nos pequenos Estados, motivo pelo qual parte da premissa de que o povo
que governar sempre bem não requer sequer governante algum para lhe governar e
conclui, ainda, em sua obra, “O Contrato Social”, que inexiste verdadeira democracia
e jamais existirá, uma vez que somente se existisse um governo de deuses, ela se daria
em sua plenitude, mas, conquanto, governada pelo povo, não há que falar em
perfeição. Dallari (op.cit., p. 147).

 
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Embora contrário à democracia representativa, Rosseau, influenciou de


sobremaneira o desenvolvimento da ideia de Estado Democrático, podendo-se
afirmar que estão expressos em sua obra seus princípios consagrados, a serem
aplicados a todo Estado que pretenda ser democrático.
Não obstante a cristalização de pensamentos de cunho moral tão elevado,
esses somente migrarão do plano teórico para fazer parte da aplicação prática por
meio de três movimentos político-sociais, quais sejam: a Revolução Inglesa, a
Revolução Americana e por fim, a Revolução Francesa.
No que tange a Revolução Inglesa, fortemente inflenciada pelas ideias de
Locke e que teve sua expressão mais significativa através do Bill of Rights, de 1689,
dois fatores hão de ser destacados: a intenção de limitar o poder absoluto do
monarca e a influência da reforma protestante. Ambos ensejaram na afirmação dos
direitos naturais dos indivíduos, os quais, segundo Locke, nascem livres e iguais.
Essas ideias culminaram na preferência por um governo da maioria baseado no
exercício do legislativo ao qual deveria assegurar a liberdade dos cidadãos. Dallari
(op.cit.p. 148).
Nesse sentido, sustenta Comparato ( 1999, p. 95),

A instituição-chave para a limitação do poder monárquico e a


garantia das liberdades na sociedade civil foi o Parlamento. A
partir do Bill of Rights britânico, a ideia de um governo
representativo, ainda que não de todo o povo, mas pelo menos de
suas camadas superiores, começa a firma-se como uma garantia
institucional insdispensável das liberdades civis.

Desse modo, ficou evidenciado ser o Parlamento uma assembléia


deliberativa que visa representar os interesses de uma nação, cujo interesse é o do
todo e o bem estar social deve servir de diretriz. Assim, ao se escolher um membro
para compor a Assembléia Parlamentar, restou claro, que o dever do escolhido não
está na representação isolada de seus interesses particulares, mas sim, dos interesses
 
989 
 
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do povo. Bastos ( 2002 ). De certa forma, houve o reconhecimento de que a maneira


mais adequada para assegurar a liberdade dos governados e prevenir os abusos de
poder, consiste em separar as funções legislativa, executiva e judiciária, conforme
proposto por Montesquieu. Comparato ( op. cit., p. 99).
As ideias iluministas do final do século XVII, deram ensejo a sistematização
teórica e, por fim, à publicação da Declaração Inglesa de Direitos, de 1688, a que
proclamava as liberdades e os direitos do povo e, também, a aprovação do
documento denominado Bill of Rights, sendo este o meio para ratificar aquela
Declaração e afirmar a supremacia do Parlamento. Dallari (2005).
No entanto, é válido ressaltar que o Bill of Rights foi institucionalizado
como direitos inerentes ao povo inglês e não como direitos da humanidade. Nesse
sentido, a idéia de Constituição está ligada apenas aos direitos naturais ou tradicionais
de um povo e surgem mais como explicações do que como de um direito novo.
Comparato (1999).
Apenas no século seguinte, nos Estados Unidos da América, os direitos
naturais serão tidos como ato supremo da vontade política popular, sobretudo,
porque essa concepção atendia aos anseios de liberdade dos colonos.
Findada a Guerra dos Cem anos entre a França e a Inglaterra pela ocupação
do Canadá, aumentou-se de forma exacerbada as despesas do governo Inglês. Isso
levou, então, os ministros a reforçarem o poder imperial sobre as colônias
americanas e elevar abusivamente os seus impostos. Comparato (1999, p. 37).
Por meio da cobrança desenfreada de impostos, as colônias americanas
passaram a ser vítimas da dominação inglesa. Nesse contexto era necessário aos
colonos elevarem a idéia de governo democrático. Diante da afirmação das idéias
antiabsolutista e da influência do protestantismo, os norte-americanos estavam
conquistando sua independência e o fato de possuírem um parlamento ou mesmo

 
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uma nobreza que se opusesse ao governo absoluto, certamente redundaria na


afirmação de governo pelo próprio povo. Dallari (op.cit., p.149).
Seguindo esses preceitos, podemos afirmar que os norte-americanos não se
limitaram a serem sujeitos passivos das ideias iluministas: foram mais além e
transformaram os direitos naturais em direitos positivos, reconhecendo-os “como de
nível superior a todos os demais”. Nesse contexto, é de se verificar que a
Constituição é uma criação norte-americana. Comparato ( op. cit., p. 95).
Assim, com base nos ideais de liberdade e igualdade, se organizaram,
inicialmente, as colônias da américa do norte e , mais tarde, os Estados Unidos da
América, o qual procurou, segundo Dallari (2005), assegurar o atendimento de três
garantias:

a supremacia da vontade do povo, a liberdade de associação e a


possibilidade de manter um permanente controle sobre o governo.
E., com base na afirmação da igualdade direitos, afirmou-se, como
um dogma, asupremacia da vontade da maioria.”

No entanto, cumpre destacar que os americanos, com exceção de Thomas


Jefferson, estavam mais interessados em estabeler sua independência e concretizar o
seu próprio poder político a ter que expandir a ideia de liberdade a outros povos.
Comparato (1999).
O terceiro movimento consagrador dos princípios democráticos foi a
Revolução Francesa. As condições políticas na França apresentava-se em um cenário
diferente das constatadas nas colônias americanas.
A França contava com uma organização política intensificada pelo
absolutismo, já que a intervenção do Estado na ordem econômica deflagrou na
crescente desigualdade social. Isso levou os franceses a pensarem na ideia de unidade,
o que colimou no surgimento de uma nação, a fim de se unificar a vontade e os
interesses. Comparato (1999).
 
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Outro fator que desencadeou a Revolução Francesa, fora o fato de Estado


e igreja serem inimigos. Isso ensejou a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789. Ao declará-los a França se coloca no diapasão da humanidade,
uma vez ser ela a responsável pela universalização dos direitos de liberdade e
igualdade. É o que sustenta Dallari (2005, p.150) ao afirmar que pela Declaração
Universal,

declara-se que os homens nascem e permanecem livres e iguais em


direitos. Como fim da sociedade política aponta-se a conservação
dos direitos naturais e imprescindíveis do homem, que são a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.
Nenhuma limitação pode ser imposta ao indivíduo, a nã oser por
meio da lei, que é a expressão da vontade geral.

Assim, com vista a atender os anseios do Estado Democrático dentro da


perspectiva francesa, estabeleceu-se que todos os cidadãos possuem o direito de
concorrer direta ou indiretamente, mediante representação para a formação da
vontade de todos. Por esse motivo, propugnou-se, no Estado Moderno, pela
participação do povo no governo com o fim de se assegurar a aplicabilidade dos
direitos naturais.
E, ainda, no que tange o significado alçado pela universalização dos direitos
individuais, observa Silva (op.cit., p.162) que “o sentido universalizante das
declarações de direitos , de caráter estatal, passou a ser objeto de reconhecimento de
caráter supra-estatal em documentos declaratórios de feição multinacional ou mesmo
universal.”
Logo, podemos concluir serem esses movimentos e pensamentos advindos
do século XVIII, os determinates para a nova acepção de Estado sob a forma
democrática tida como ideal supremo. Isso deflagrou na repugnância generalizada
aos governos que não fossem democráticos.

 
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Nesse sentido, podemos afirmar que a democracia contemporânea do


século XIX e metade do século XX foram determinadas pela concretização dos
princípios ora defendidos no Estado Moderno, os quais elencaram como sendo
essencial a participação do povo na organização política do Estado e, bem como,
pela premissa de que é por meio da expressão livre da vontade soberana que o
Estado poderá assegurar a consolidação da liberdade e da igualdade.
Contudo, não há como sistematizarmos as heranças legadas pela democracia
moderna, sem aludirmos também a concepção de cidadania engendrada no Estado
moderno. Para tanto, não podemos deixar de mencionar a tese do modelo
evolutivo construída por Marshall acerca da ordem cronológica de desenvolvimento
da cidadania. Segundo ele o progressivo alargamento do status de cidadania é fruto
do desdobramento dos direitos civis em políticos, e destes em direitos sociais, os
quais foram discutidos intensificamente no século XX. Assim, em síntese, é possível
caracterizar a cidadania moderna e contemporânea por meio da reunião de quatro
elementos a ela inerentes: universalidade, territorialização, princípio plebiscitário e
índole estatal nacional. Marshall (1949, p. 63-108).
O primeiro elemento, universalidade da cidadania, incorpora à cidadania
um status de direito universal para integração de categorias sociais definidas
formalmente, devendo-se deixar de lado o sistema de castas ou classes sociais
como qualidades substantivas a ela inerentes.
O segundo elemento, territorialização da cidadania, não pode ser concebido
sem o anterior, uma vez que para se delimitar a cidadania politicamente é preciso
tratar o território como conceito horizontal em substituição aos princípios
corporativos.
O terceiro elemento, princípio plebiscitário da cidadania ou
individualização da cidadania, consiste na generalização dos vínculos diretos entre o
indivíduo e o Estado enquanto forma de se legitimar a subordinação política,
 
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expurgando-se não só a ideia preconizada pelo remoto princípio funcional da tutela


das antigas corporações, como também a de governo indireto, contido na ideia de
delegação das funções do Estado às camadas locais intermediárias entre os poderes
centrais e os donos de terras, os mercenários, o clero, e às mais variadas modalidades
de oligarquias.
O quarto e último elemento, índole estatal-nacional da cidadania, ressalta a
importância da existência da cidadania para a edificação do Estado-nação. De sorte
que graças à construção histórica contida nessa relação, a qual concebe o território
como detentor de um poder centralizado, de um lado, e, do outro, a população
constituída enquanto comunidade política, foi possível vislumbrar o Estado como
órgão administrativo hábil a representar os interesses de seus cidadãos.
Nesse sentido , o autor acima citado, constrói sua tese acerca da evolução
da cidania partindo da intensa valorização aos direitos civis no século XVIII, em
seguida, segundo ele, surgem os direitos políticos do século XIX e, por último, os
direitos sociais do século XX. Destarte, a cidadania é considerada como um status
concedido aos indivíduos que são membros integrais de uma sociedade. Aqueles,
portanto, que possuem status de cidadão são considerados iguais e têm direitos e
deveres pertinentes a esse status. Em suma: a igualdade de status foi tida como mais
importante do que a igualdade de classe, de modo a ser mais importante do que o
acúmulo geral de renda. Logo é possível afirmar que os direitos políticos foram
empreeendidos como concessões e não como conquistas.
Desse modo, Dahrendor, (1992, p. 52) ao tratar do conflito da sociedade
moderna e das desigualdades por ele geradas, acrescenta dados à teoria evolutiva
concebida por Marshall ao prescrever que,

O conflito social moderno já não se dá mais em torno da


eliminação de diferenças que “tem o caráter impositivo essencial
da lei”. O princípio da cidadania destruiu essas diferenças. O
 
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conflito social diz respeito ao ataque às desigualdades que


restringem à participação cívica integral por meios políticos,
econômicos ou sociais, e ao estabelecimento de prerrogativas que
constituam um status integral de cidadania.

Desse modo, conforme já afirmado, os direitos civis constituem o centro


das aspirações do Estado moderno. Todavia, as leis podem ser patrimonialistas, e,
portanto, tendentes a atender os interesses de uma classe minoritária. Motivo este
pelo qual o governo legalista pode afetar seriamente o equilíbrio econômico
redundando em nefastas desigualdades sociais. Por outro lado, os direitos políticos
nada são sem que as pessoas possuam educação e cultura letrada para deles fazer um
bom uso. Todavia, os direitos sociais naufragaram, uma vez que se mostraram
pouco duradouros ante o fato de representar um ideal a ser ainda conquistado.
Nesse contexto, vale atentar para a forma com a qual o Estado
Democrático da contemporaneidade reconheceu os direitos reivindicados através
das revoluções sócio-políticas do século XVIII como legítimos, uma vez que para
Bobbio ( 1986, p. 18), a democracia compreende,

um conjunto de regras primárias ou fundamentais que


estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e
com quais procedimentos. [...] A regra fundamental da democracia
é a regra da maioria, na qual são consideradas as decisões
coletivas.

Todavia, Bobbio, sustenta não bastar qualificar a democracia como: o


direito de participar direta ou indiretamente das decisões políticas. Tampouco ela
deve se cingir ao estabelecimento de regras atinentes a participação da maioria. É
necessário que os responsáveis pela decisão estejam aptos a fazê-la, de modo a ter
condições reais para decidir com criticidade entre um ou outro caminho político.
Logo para que isso ocorra faz-se essencial a concretude dos direitos de expressão, de
associação. Direitos, esses, erigidos pelo Estado de Direito do século XVIII.

 
995 
 
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O conceito de democracia alia-se, nesse sentido, ao de cidadania, uma vez


que para adquirir a primeira é preciso que haja cidadãos preparados à utilizar as
regras de participação democrática e, para tanto, é preciso ter havido a real
conquista da igualdade social bem como que os mecanismos instituídos pela
representação sejam, verdadeiramente, democráticos.
No entanto, é no final do século XX, que a participação direta do povo nas
decisões políticas, se manifesta através das manifestações coletivas de aprovação das
proposições de políticas públicas. Tal prática, denominada “democracia participativa”
vem sendo objeto de novos estudos teóricos acerca da efetivação dos princípios
contidos na democracia. Dallari (op.cit, 155). Essa evolução do processo político
trouxe implicações positivas ao desenvolvimento histórico da cidadania, uma vez
que, conforme ensina Silva ( 2008, p. 140),

A evolução do processo político vem incorporando outros


elementos na democracia representativa que promovem uma
relação mais estreita entre os mandatários e o povo, especialmente
os instrumentos de coordenação e expressão da vontade popular:
partidos políticos, sindicatos, associações políticascomunidades de
base, imprensa livre, de tal sorte que a opinião pública – expressão
da cidadania- acaba exercendo um papel muito importante no
sentido de que os eleitos prestem mais atençãoàs reivindicações
do povo.

No entanto, conforme alude Dallari (2005), a participação direta do povo


no governo tem suas limitações e não pode abranger todas as decisões da
administração pública e assim, a participação popular pode ser vista como benéfica
para o bem estar comum, sendo mais uma maneira de direcionar os governos e os
representantes eleitos no que tange o pensamento do povo sobre o interesse de
todos.

 
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Assim, a impossibilidade da concretização prática aos processos de


democracia direta, bem como as limítrofes impostas ao uso da democracia
semidireta, propiciaram uma preferência pela democracia representativa.
Isso porque pela adoção contemporânea do sistema de partidos políticos o
mandato político passou a ter cunho mais imperativo, uma vez que os representantes
partidários devem estar comprometidos ao cumprimento de programas e diretrrizes
contidos em suas agremiações. Razão essa pela qual a natureza de mandato
imperativo passa a ser ainda mais intensamente uma vinculação com o povo, na
medida em que os partidos realizem a democracia por meio de seus órgãos
dependentes da vontade dos que a eles se filiarem. Silva (2008).
É importante retomar que a democracia somente poderá existir se
obedecidos os seus dois princípios, os quais resultam de seu conceito. O primeiro é o
princípio da soberania popular, o qual determina ser o povo a fonte única de poder, à
luz da regra de que “todo poder emana do povo”; o segundo princípio é o da
participação direta e indireta, “do povo no poder para que este seja a efetiva
expressão da vontade popular; nos casos em que a participação é indireta, surge um
princípio derivado ou secundário: o da representação” Silva ( op. cit. p. 131).
Assim, pelo sistema de partidos verificados através da consolidação dos
princípios supra: sufrágio universal e representação proporcional, a democracia
representativa passou a ser vista a partir de um sentido mais real, ao se acresccer a ela
a ideia de participação, o que faz perder a noção individualista do eleitor isolado, mas
a coletivização organizada dessa participação. Válido é salientar que a eleição não
realiza a democracia participativa em sua essência. Eleição é um dos princípios da
democracia representativa, segundo a qual “o eleito pratica atos em nome do povo”
Silva ( op. cit. p. 141).
No ordenamento pátrio brasileiro, o exercício da democracia participativa é
assegurada por meio do pluralismo político. Assim, estão previstos na Carta Política
 
997 
 
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de 1988 três instrumentos de participação popular: o referendo, o plebiscito e a


iniciativa popular. Tais instrumentos constituem os institutos da democracia
semidireta, que combinam os institutos da participação direta com institutos da
participação indireta.
Cumpre-nos analisar cada um deles, começando pelo referendo. Através
desta modalidade participação semi-direta, o eleitor pode aprovar ou rejeitar um
projeto de lei que tenha sido previamente aprovado pelo Legislativo. É o que
prescreve o art. 14, II da Constituição Federal.
A segunda modalidade, o plebiscito, é verificada quando o eleitorado decide
ou mesmo toma uma decisão acerca de uma questão específica. Conforme estatui os
arts. 49, 18 §§ 3º e 4º. É mister firsar que o Conggresso poderá convocá-lo em
situações outras, contidas no art. 49, XV).
A terceira e última modalida de participação semi-direta é a iniciativa
popular, por meio dela o eleitor apresenta ao Poder Legislativo um projeto de lei.
Este deve ser subscrito por 1% de todo eleitorado Nacional. Os eleitores também
poderão apresentar tais projetos às Assembléias Legislativas de seus Estados, bem
como, às Câmaras municipais, conforme dispõe o art. 61,§2º, da Constituição
Federal. Ainda no caso do Município, da cidade ou mesmo de bairros , é preciso
haver a manifestação de ao menos cinco por cento do eleitorado. Conforme dispõe o
art. 29, XIII, da Constituição Federal. Nesse sentido segundo Silva ( op. cit. p. 143),
optar por uma sociedade pluralista significa:

acolher uma sociedade conflitiva de interesses contraditórios e


antinômicos. O problema do pluralismo está precisamente em
construir o equilíbrio entre as tensões múltiplas e por vezes
contraditórias, em conciliar a sociabilidade e o particularismo, em
administrar os antagonismos e evitar discussões irredutíveis.

 
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Conforme verificamos pela citação acima , o papel do pluralismo político é


promover por meio da edição de medidas adequadas ao pluralismo social à
consolidação do pluralismo social, por meio do pluralismo de opiniõe das opiniões
entre os cidadãos , al iverdade de reunião e de associação entre os partidos políticos.
Ainda, verificamos a democracia participativa no ordenamento jurídico
brasileiro por meio da ação popular (art. 5º, LXXIII); da participação de
trabalhadores e empregados em colegiados de órgãos públicos (art. 10); da
contestação, advindas dos contribuintes, que impugnam as contas apresentadas
pelos Municípios (art. 31, § 3º).
Embora a Carta Política de 1988 tenha adotado um regime democrático,
por meio da recorrência à democracia representativa e semi direta, conforme
verificado pelos dispositivos normativos ora descritos acima, verdade é que no no
Brasil nunca houve uma verdadeira democracia. Isso porque ela só se efetiva quando
uma cultura política faz parte da vida dos cidadãos, os quais transpõem uma real
mudança dos valores políticos tradicionais.
Uma das dificuldades brasileiras se deve ao fato de que a sequência
cronológica descrita por Marshal foram invertidas no Brasil, uma vez de os direitos
sociais terem sido os primeiros a serem concebidos em um período de total
supressão aos direitos políticos e ainda de sob um contexto em que os direitos civis
foram reduzidos por um ditador que se tornou popular.Carvalho ( 2001, p. 219).
Dessarte, acerca dos direitos políticos no Brasil, observa Carvalho (op.cit. 220),

A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período


ditatorial, em que os órgãos de representação política forma
transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda
hoje muitos direitos civis, continuam inacessíveis à maioria da
população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para
baixo.

 
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Na sequência inglesa, conforme observa o autor, patente era a sequência


lógica a que vislumbrava um sentido de crença social no regime democrático. Ao
contrário do Brasil, na Inglaterra, primeiro vieram às liberdades civis asseguradas pela
organização independente dos poderes executivo e judiciário. Finda essa etapa,
primou-se pela independência do poder legislativo para assegurar as liberdades, que
passou a ser concretizada pelos partidos políticos e pelo Legislativo. Somente após
todas essas conquistas, foram alvos de atenção os direitos sociais, concretizados pelo
Executivo. Esclarece nos Carvalho (op.cit. 221).
Assim, quando a pirâmide se coloca invertida por meio da constatação em
que os direitos sociais são a contrario senso, a sua base, o gravame é verificado pela
hiper valorização do Poder Executivo. Se os direitos sociais foram implantados em
períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado ou era apenas
decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do
executivo. Carvalho (2002).
A inversão da pirâmide reforçou em nós brasileiros a supremacia do Estado,
através do cultivo desenfreado da cultura estadista a que serviu de embasamento para
o pseudo desenvolvimento sócio-político brasileiro. Concepção de democracia esta,
arraigada a herança rural patrimonialista, que tratava os interesses privados como
extensão do direito público e, assim, se servia das leis para atender apenas os
interesses próprios de sua classe aristocrata. Nesse sentido, maestricamente, conclui
Holanda (1989, p.119),

A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido.


Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de
acomodá-la, onde fosse possível aos seus direitos e privilégios, os
mesmos privilégios , no Velho mundo, o alvo daluta da burguesia
contra os aristocratas. E assim puderam incorporar á situação
tradicional, ao menos como fachada ou ou decoraçãoexterna,
alguns lemas que pareciam os mais acertados para a época e eram
exaltados nos livros e discursos.
 
1000 
 
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Outro fator que trouxe um efeito nefasto a verdadeira concretização da


essência democrática foram às mudanças advindas do renascimento liberal. Este
período acarretou em um intenso crescimento da cultura de consumo entre a
população, sobretudo, a da mais excluída. Um dos exemplos, conforme comenta
Carvalho (op.cit. 228),

foi a invasão pacífica de um shopping Center de classe média no


Rio de Janeiro por um grupo de sem-teto. Os sem-teto
reivindicavam o direito de consumir. Ou melhor, a cidadania que
reivindicavam era a do direito do consumo, era cidadania pregada
pelos novos liberais. Se o direito de comprar um telefone, um
tênis, um relógio da moda consegue silenciar ou prevenir entre os
excluídos a militância política, otradicional direito político, as
perspectivas de avanço democrático se vêem diminuídas.

Nesse sentido, é de se verificar que o real problema de se tornar tão lento o


desenvolvimento da cultura democrática na vida dos cidadãos brasileiros está na
ausência de capacidade do sistema representativo em alcançar resultados concretos
acerca da redução da desigualdade social.
Outro exemplo, mais recente, acerca da cultura do consumo viciada pelo
clientelismo e paternalismo é a tragédia ocorrida no Rio de Janeiro. O fenômeno
natural, trazido pela tempestade, denunciou a indústria da favelização, uma vez terem
sido levadas pela avalanche, dezenas de casebres construídos irregularmente sobre
um lixão desativado. O desabamento, segundo os dados obtidos por meio
reportagem da revista Veja ( ed. 2160,14/04/2010, p. 71), propiciou 27 mortes com 200
vítimas desaparecidas e arrastou cinqüenta dentre os 100 barracos irregularmente
construídos no morro Bumba, em Niterói. Conforme é sabido, os barracos
começaram a ser construídos desde os anos 80, ao contrário, “os sucessivos prefeitos
promoveram melhorias na área, proporcionando água encanada, energia elétrica e
ruas asfaltadas, o que só fez atrair moradores.”

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

E mais: dois relatórios técnicos encomendados pela prefeitura os quais


foram engavetados por terem contraindicado à construção de qualquer casa naquela
região por causa da incidência de lixos no subsolo tida como fator de risco a um
inevitável deslizamento e, também, pela presença do gás metano, oriundo do
acúmulo de detritos deteriorados e que poderia, ensejar uma inevitável explosão.
Tudo isso pode ser sintetizado pela premissa exteriorizada pelo vice-
governador Darcy Ribeiro, na reportagem acima aludida, Veja (op. cit., p. 77) ao
afirmar que, “Favela não é problema, é solução.” A favelização é um bom negócio
para a manutenção de um cargo político. É o que destaca ainda a reportagem da
revista acima mencionada, VEJA (2010), ao denunciar que,

Nada menos do que treze dos 51 integrantes da Câmara de


Vereadores e 21 dos setenta deputados mantêm centros sociais em
favelas. Em troca de votos, eles prestam todo gênero de
assistência aos moradores – de distribuição de dentaturas a
atendimento médico. Quando algum governante lança a ideia de
remover uma favela, esses políticos são os primeiros a fazer
pressão contra. Resume o cientista político Alberto Carlos
Almeida, autor do livro A cabeça do brasileiro: “Grassa nos
morros do Rio a indústria da favelização, alimentada por políticos
com o único interesse de ter mais e mais pessoas dependentes
deles.

Eis por meio da citação alhures, a deflagração da ordem democrática


brasileira, erigida pela favelização não só engendrada por barracos desabados, mas
pela ausência do sentido democrático verificada na alienação maciça do brasileiro
mais pobre ao mais rico.
Nisso vale destacar que não há que falar em democracia sem cidadania.
Mormente a Constituição trata deste instituto como mero alistamento, traduzido no
direito de votar e ser votado. Desse modo, se podemos trocar votos por objetos
pessoais, plano de saúde ou por uma dentadura, os índios ao menos foram menos
atrozes, trocavam a confiança por u m objeto inusitado, apresentado pelos
 
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portugueses. Isso porque nunca souberam previamente quais seriam os resultados


que aquele inocente escambo poderia causar após 1500 anos da declaração de
independência do Brasil.
Ora, o cheiro da podridão exalada pelo desmoronamento dos barracos
cariocas, exala o odor da cultura democrática no Brasil culminada pelo
individualismo e alienação da massa, que ao invés de solidária e fraterna, conforme
aduz o preâmbulo constitucional, se cinge ao individualismo de seus próprios
anseios. Ou então prefere se curvar à cultura consumista proposta pela globalização
em forma quadrada, global, obsoleta, emergente, que faz a todos esquecer o caos ou
com a nova dança ou por meio da atriz global, embora negra, rica e bem vestida.
Tudo isso sem embargo de que a Carta Política de 1988 prescreve um
regime democrático consubstanciado nos objetivos de igualdade por via dos direitos
sociais e da universalização de prestações sociais (seguridade, saúde, previdência). A
democratização dessas prestações, ou seja, a estrutura desses modos democráticos
(universalização e participação popular) constitui o fundamento do Estado
Democrático de Direito, no art. 1º. Resta-nos, contudo, esperar que essa
normatividade constitucional se realize na prática. Logo resta-nos, tão logo, ligar o
quadrado global dás 21h e assistir à atriz negra, modelo, rica que nos rouba a cena e
acena para essa realidade democrática tão idealizada.

Referências

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atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005.

BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 1986.

 
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Janeiro: Civilizações Brasileira, 2001.

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HAILE, Pennington. Raízes Filosóficas: Da democracia e do comunismo. Rio


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SARTO, Giovanni. Teoria Democrática. São Paulo: Fundo de Cultura, 1965.

 
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CONFERÊNCIA LIVRE DOS PRESOS: RECONHECIMENTO E


PARIDADE PARTICIPATIVA

Noelle Coelho Resende1

RESUMO

O presente artigo pretende, com base no instrumental teórico desenvolvido


pela Teoria do Reconhecimento de Nancy Fraser, analisar a experiência construída
no âmbito da Conferência Livre dos Presos, realizada em 2009 pelo Núcleo
Interdisciplinar de Ações para a Cidadania (NIAC/UFRJ) durante o período
preparativo para a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública.
O objetivo é, partindo de critérios de análise propostos pela teoria, – com
ênfase no conceito de justiça social como paridade participativa – discutir as
possibilidades oferecidas pelo processo da Conferência Livre no que tange à
construção de um espaço para participação democrática da população das
carceragens que compuseram o evento.
A construção do trabalho se dará a partir de uma exposição acerca dos
principais conceitos trabalhados na Teoria do Reconhecimento de Nancy Fraser.
Após essa exposição inicial, serão abordadas as principais características construtivas
da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública. Essa segunda etapa servirá para a
melhor compreensão do lugar ocupado pela Conferência Livre no amplo processo de
diálogo democrático referente à segurança pública proposto pela Conferência
Nacional. Será, então, analisado especificamente o processo de desenvolvimento da
Conferência Livre dos Presos.
A partir dos conceitos trabalhados pela teoria do reconhecimento será
abordada a hipótese de que a atual situação de completa exclusão vivenciada pela
população carcerária brasileira ocasiona a permanente estigmatização desses
indivíduos, determinando a sua não reinserção social e corroborando para a sua

                                                            
1Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (PPGD-
FND), pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Ações para a Cidadania da UFRJ (NIAC/UFRJ), e
pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
 
1006 
 
I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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permanente condição de disparidade no que tange a participação na interação e


construção da vida em sociedade.
O objetivo primordial do presente artigo é, a partir do subsídio teórico
fornecido pela teoria estudada, trabalhar a constatação da completa exclusão desses
atores sociais dos processos democráticos de participação, a necessidade de
reconhecimento dos mesmos, e abordar a garantia de paridade participativa como um
caminho para a construção da justiça social.

Palavras-Chave: Teoria do Reconhecimento, Conferência Livre dos Presos,


Participação Política; Recognition Theory, Prisioner’s Open Conference; Political
Participation.

1) Paridade Participativa como Justiça: A Teoria do Reconhecimento de


Nancy Fraser

A construção do critério de justiça social de Nancy Fraser2 parte da


desconstrução da oposição entre redistribuição e reconhecimento. A autora, contrária
à tradicional afirmação de que políticas de redistribuição estão ligadas unicamente
com políticas de classe e que políticas de reconhecimento estão ligadas
exclusivamente a políticas de identidade (lutas relacionadas a demandas de gênero,
etnia, sexualidade, raça, entre outras), constrói sua teoria a partir da inter-relação e
interdependência das demandas por redistribuição e por reconhecimento,
expressando ambas perspectivas distintas acerca da justiça social.
Afirmando a essencial interconexão entre os dois paradigmas de justiça
social, a autora defende que demandas ligadas a políticas de classe, primordialmente
tratadas como demandas por redistribuição podem atingir questões ligadas a
demandas por reconhecimento, sendo também o contrário verdadeiro. No entanto,
                                                            
2 A análise da Teoria do Reconhecimento de Nancy Fraser baseou-se essencialmente na obra
“Redistribution or Recognition: A Political-Philosophical Exchance” escrita por Nancy Fraser e Axel
Honneth. Foram usados como subsidio teórico outros artigos e entrevistas da autora.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

para a análise de ambos os conceitos e a melhor compreensão de como estes podem


coexistir em uma noção de justiça social, é necessário abordar as principais diferenças
entre redistribuição e reconhecimento.
Reconhecimento e redistribuição partem de diferentes concepções de
injustiça. O primeiro entende a injustiça como cultural, ligada a subordinação de
status, e originada em padrões de representação social. O paradigma da redistribuição,
por sua vez, concebe o critério de injustiça como socioeconômico, originado pela
estrutura econômica da sociedade. Concebendo a injustiça de forma diversificada, os
paradigmas trabalhados propõem diferentes formas para solucioná-la,
respectivamente: mudança simbólica ou cultural e reestruturação econômica.
Partindo de concepções de injustiça diferenciadas, os paradigmas também
consideram de forma diversa as coletividades vítimas de injustiça. Para o paradigma
da redistribuição os sujeitos que sofrem injustiça são diferenciados em termos de
classes sociais, enquanto para o paradigma do reconhecimento, os sujeitos vítimas de
injustiça são definidos por relação de prestigio, estima e respeito.
Por fim, os paradigmas trabalham com compreensões diversas acerca das
diferenças existentes entre os grupos sociais. Para o paradigma da redistribuição as
diferenças são sempre socialmente construídas e injustas, devendo ser abolidas, não
valorizadas. Já para o reconhecimento, as diferenças podem ser variações culturais
pré-existentes, cuja construção social determinou uma interpretação injusta das
mesmas, ou as diferenças podem ser construídas conjuntamente com a sua
desvalorização cultural. No primeiro caso o objetivo seria reinterpretar as diferenças
culturais, valorizando características historicamente excluídas ou consideradas
inferiores, já na segunda hipótese, desconstruir os fundamentos sociais que
determinaram o surgimento dessas diferenças.
Considerando essas e outras diferenças entre demandas por redistribuição e
por reconhecimento, muitos teóricos desenvolveram a hipótese de que esses seriam
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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paradigmas de justiça inconciliáveis. Ou se pensaria a justiça a partir da necessidade


de reconhecimento dos grupos culturalmente excluídos e marginalizados, ou a partir
da redistribuição de recursos para a superação da opressão social. O conceito de
paridade participativa construído por Nancy Fraser, a partir da constatação da
complexidade da sociedade contemporânea e da necessidade de se trabalhar com
hipóteses abrangentes que possam lidar com as demandas resultantes dessa
complexidade, surge como um esforço para responder aos problemas atuais de
justiça social.
A sociedade contemporânea se caracteriza exatamente por sua
complexidade. Não existem esferas estanques da vida social, as realidades são cada
vez mais dinâmicas. Dessa forma, analisar, por exemplo, a exclusão social sofrida por
uma pessoa homossexual, não significa apenas analisar uma demanda por
reconhecimento. O padrão cultural dominante caracterizado pela heterossexualidade
não implica apenas na estigmatização dos indivíduos homossexuais. O tipo de
exclusão analisado pode vir a influenciar a condição sócio econômica dos indivíduos.
Por exemplo, a proibição de casamento homossexual pode influenciar diretamente na
renda familiar, em questões de herança e questões previdenciárias. Durante muito
tempo, e ainda hoje em dia em algumas esferas, o mercado de trabalho é mais
acessível para indivíduos heterossexuais.
Ou seja, o que em uma primeira análise parece um clássico exemplo de
exclusão cultural (demanda por reconhecimento) revela uma esfera de análise de
exclusão sócio econômica (demanda por redistribuição). Isso se repete em outros
campos de análise como, gênero, raça, e classe. Dependendo do âmbito, pode
predominar a subordinação de status, ou a subordinação sócio econômica, porém, o
que cumpre notar é que atualmente não existem esferas totalmente separadas entre si,
as dinâmicas se inter relacionam constantemente. Esse é o conceito que a autora
chama de subordinação bidimensional. O desafio é, portanto, pensar políticas que
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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abordem o tema da injustiça a partir da análise de ambas as dimensões de


subordinação social.
Diversos aspectos devem ser abordados para a reflexão acerca da correlação
entre reconhecimento e redistribuição, e para a concepção de um conceito de justiça
que permita integrar ambos os paradigmas. A autora, em sua teoria, organiza essa
analise através da divisão entre problemas da Filosofia Moral, da Teoria Social, e da
Teoria Política (englobando nesse âmbito uma análise referente a aspectos políticos
práticos). Para o presente artigo serão abordados apenas alguns dos temas levantados
pela autora, com o objetivo de estudar especificamente aqueles que se relacionam
diretamente com o objeto deste trabalho.
Inicialmente, é importante afirmar que a concepção adotada pela autora
acerca do paradigma do reconhecimento é que este é uma questão de justiça e não de
auto-realização3. Dessa forma, falar sobre reconhecimento é compreender a injustiça
presente na construção social que determina que alguns indivíduos não participam
igualmente das relações sociais devido a padrões culturais institucionalizados
estigmatizantes e opressores. Os padrões culturais influenciam diretamente no status
social dos indivíduos, determinando alguns como inferiores e excluídos (de diferentes
formas) e impedindo a participação paritária na construção da vida social.
Pensar em políticas de reconhecimento é, portanto, pensar em formas de
desinstitucionalização de padrões subordinantes e construção de meios de garantia de
paridade participativa para os diversos atores sociais. Entendido como justiça o
reconhecimento passa a integrar o mesmo universo normativo que a redistribuição
possibilitando a sua integração em uma concepção ampla de justiça social.
O segundo importante tema abordado pela autora, que se relaciona com o
presente trabalho, é a construção de um conceito de justiça bidimensional. Como já
                                                            
3 Reconhecimento como auto-realização é a posição defendida por Axel Honneth. “Redistribution as

Recognition: A Response to Nancy Fraser”.


 
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descrito anteriormente, Nancy Fraser concebe que redistribuição e reconhecimento


constituem duas perspectivas e dimensões da justiça que não podem ser consideradas
isoladamente, nem podem ser subsumidas uma à outra. Para trabalhar esse conceito
bidimensional de justiça, a autora constrói o conceito de paridade participativa,
constituindo este de um âmbito objetivo (redistribuição de recursos) e de um âmbito
subjetivo (superação de padrões excludentes institucionalizados). O conceito de
paridade participativa permite a integração entre redistribuição e reconhecimento
sem reduzi-las nem isolá-las.
A abordagem utilizada pela autora, para o trabalho com o conceito de
justiça bidimensional e de paridade participativa, é a do dualismo perspectivo. Essa
abordagem constitui reconhecimento e redistribuição não como duas esferas isoladas,
nem como esferas que podem ser incluídas uma na outra, mas sim como duas
perspectivas analíticas diferentes que podem ser utilizadas para pensar tanto o
reconhecimento como a distribuição. Através dessa abordagem é possível pensar o
reconhecimento e a redistribuição de forma integrada, e conseqüentemente trabalhar
a implicação dos padrões culturais instituídos em questões socioeconômicas e a
implicação da forma de distribuição dos recursos na constituição de padrões culturais
excludentes. Essa abordagem, portanto, permite que a análise dos problemas de
injustiça social englobe tanto o âmbito objetivo quanto subjetivo da paridade
participativa, se coadunando com a complexidade das questões presentes na
sociedade contemporânea.
No âmbito dessa discussão, a autora enfrenta alguns temas especificamente
relacionados ao reconhecimento4 e que são essenciais para o trabalho aqui proposto.

                                                            
4 Os critérios que serão examinados são essenciais para o julgamento também de demandas por
redistribuição. Como visto, redistribuição e reconhecimento estão integrados em uma concepção
ampla de justiça social representada pelo conceito de paridade participativa. O foco do presente
trabalho, no entanto, estará na teoria do reconhecimento.
 
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Como se podem justificar demandas por reconhecimento? Quais demandas são


justas e merecem serem consideradas?
Inicialmente, é necessário demonstrar que os padrões sociais vigentes
impedem a participação igualitária dos indivíduos nas relações sociais. É necessário,
portanto, que os demandantes por reconhecimento não se encontrem em condições
de paridade participativa com outros atores sociais. Através da paridade participativa
podem ser analisadas também as medidas exigidas para remediar os problemas de
reconhecimento, pois elas devem ser de fato efetivas para sanar desigualdades
participativas entre os atores sociais. Por fim é necessário demonstrar que as
demandas por reconhecimento de determinados atores sociais não provocarão o
surgimento ou o aprofundamento de outros padrões de exclusão social e de outras
formas de injustiça5.
Ainda especificamente no âmbito do reconhecimento é necessário pensar
sobre a seguinte consideração: a justiça sob a perspectiva do reconhecimento
significa a consideração e valorização das diferenças existentes entre grupo e
indivíduos, ou a consideração de sua humanidade comum? A autora defende que essa
resposta apenas pode ser alcançada através de uma análise caso a caso, que, portanto,
não existe uma resposta certa a priori.
O remédio para injustiças sob a perspectiva do reconhecimento deve ser
adequado ao mal a ser combatido, por exemplo, no caso da escravidão foi necessário
o reconhecimento da humanidade comum, o reconhecimento da cidadania igual
entre negros e brancos. Nesse caso o que era negado era o status igualitário aos
negros e não o reconhecimento de sua distinção. Em outros casos pode ser
necessário, para um grupo culturalmente subordinado, que sejam reconhecidas e

                                                            
5 As praticas que buscam reconhecimento não podem significar uma manutenção de disparidades
participativas dentro do próprio grupo excluído. Assim, esse último requisito deve ser analisado
intergrupos (dominantes X excluídos) e intragrupos.
 
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respeitadas suas diferenças, como é o caso de muitas demandas relacionadas aos


povos quilombolas e indígenas. É necessário, portanto, uma abordagem pragmática,
e não uma reposta pré-determinada e fechada.
Todos esses questionamentos levantados acerca dos problemas relacionados
ao debate sobre reconhecimento, redistribuição, e conseqüentemente sobre o
conceito de paridade participativa como critério de justiça revelam uma ultima e
essencial discussão. A paridade participativa não pode ser encarada como um
conceito dado, e pensar seus critérios e parâmetros, sob a perspectiva conjunta do
reconhecimento e da redistribuição, não pode ser encarado como um mero processo
de decisão. Apenas o debate amplo e democrático, apenas espaços sociais dialógicos
podem pensar a justiça sob o critério da paridade participativa. Apenas esses espaços
podem pensar, discutir, argumentar, e decidir sobre as demandas por
reconhecimento e redistribuição a partir da ampla participação cidadã.
Concluindo a discussão aqui levantada, é necessário pensar que medidas
podem efetivamente garantir paridade participativa considerando a mútua imbricação
entre reconhecimento e redistribuição. Com esse objetivo a autora analisa o impacto
de medidas afirmativas e de medidas transformistas6 como resposta as demandas por
ambos os paradigmas considerados.
Com o intuito de contrastar medidas afirmativas e medidas transformistas,
algumas considerações são necessárias: de uma forma geral (desconsiderando
contextos específicos, para a realização de uma análise ampla) medidas afirmativas
aplicadas a demandas de reconhecimento, por não considerarem os problemas
estruturais que instituíram os padrões culturais dominantes e excludentes, acabam
por simplificar a compreensão das identidades coletivas, negar a complexidade das
                                                            
6 Ações afirmativas lidam com as conseqüências de determinada estrutura social injusta, sem, no
entanto, mudar a própria estrutura que constrói padrões injustos de interação social. Medidas
transformistas têm o objetivo de atingir essas conseqüências através da reestruturação das bases sociais
que as instituíram.
 
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questões que constituem a estrutura social vigente, gerar a conformação dos


indivíduos com determinados padrões e grupos culturais, simplificando uma reflexão
intrinsecamente complexa, e, conseqüentemente, reafirmando diferentes formas de
subordinação.
Quando aplicadas a demandas por redistribuição, medidas afirmativas,
podem também gerar efeitos reflexos em problemas ligados ao reconhecimento. O
exemplo utilizado pela autora trata de medidas de assistência pública voltada para
ajudar financeiramente determinados indivíduos, mas que não alteram a estrutura
socioeconômica que determinou o estado de pobreza desses indivíduos. Além de não
solucionar o problema econômico, por não alterar a estrutura econômica da
sociedade e não transformar de forma efetiva a realidade desses indivíduos, ao longo
do tempo desenvolve-se uma imagem desses indivíduos como incapazes e inúteis,
intensificando problemas na esfera do reconhecimento.
Medidas transformativas, por sua vez, superariam esses problemas.
Alterando a estrutura social opressora essas medidas permitem a compreensão, no
que tange a demandas por reconhecimento, da complexidade sociocultural existente.
No âmbito da redistribuição são também medidas mais efetivas, pois promovem a
reestruturação econômica reduzindo as iniqüidades, sem promover a intensificação,
portanto, de problemas ligados ao reconhecimento.
No entanto, as dificuldades das medidas transformistas residem exatamente
em seu poder alterador das estruturas sociais, e em seu efeito a longo prazo. Os
grupos socialmente dominantes tendem a exercer resistência política em relação a
medidas transformativas, que são potencialmente alteradoras da estrutura de poder
vigente. Já os indivíduos e grupos vítimas de injustiças sociais tendem a exigir e se
articular em prol de medidas que respondam a suas demandas mais rapidamente.
Assim a concretização de medidas transformativas exige circunstâncias e

 
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possibilidades específicas, sendo mais difíceis de efetivar na prática apesar de sua


possível maior adequação a real satisfação das demandas por justiça social.
Abordando essas questões, Nancy Fraser desenvolve o conceito de reforma
não reformista. São ações que apesar de terem caráter afirmativo, atuando em
primeiro lugar através de medidas conjunturais e não estruturais, podem,
dependendo da forma como são desenvolvidas, e do contexto em que estão
inseridas, terem conseqüências estruturalmente transformadoras. Assim, encontra-se
um ponto intermediário entre ações transformativas, que são mais efetivas, pois
alteram a estrutura social causadora de determinada injustiça, mas são na prática
politicamente difíceis de serem concretizadas, e ações afirmativas, que são
politicamente concretizáveis, mas falham em alterar substancialmente a estrutura
social opressora.
Foram analisados neste tópico alguns conceitos centrais da teoria de Nancy
Fraser. Não se pretendeu, no entanto, esgotar o assunto, mas levantar alguns
aspectos cruciais para instrumentalizar a concretização do trabalho aqui proposto. O
conceito de reconhecimento, de paridade participativa como critério de justiça, de
espaço dialógico para o debate amplo e democrático, e as alternativas desenvolvidas
para pensar os problemas e demandas por reconhecimento serão essenciais para a
análise proposta acerca da experiência realizada no âmbito da Conferência Livre dos
Presos.

2) Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública

Não se pretende nessa sessão esgotar os detalhes acerca do processo de


construção, da metodologia de elaboração, dos debates, e dos resultados alcançados
pelas etapas Eletivas, Preparatórias, e pela Conferência Nacional. O objetivo é
 
1015 
 
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desenvolver um panorama geral acerca da 1ª Conseg com o intuito de contextualizar


o processo das Conferências Livres, especificamente da Conferência Livre dos
Presos realizada pelo NIAC/UFRJ, no âmbito do amplo espaço de participação
democrática deflagrado pelo processo de construção da Conferência Nacional.
A primeira Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg) ocorreu
entre os dias 27 e 30 de agosto de 2009, em Brasília. A 1ª Conseg contou com a
participação de mais de três mil pessoas, entre trabalhadores do setor de segurança
pública (30%), sociedade civil (40%) e poder público (30%)7, dos 27 estados da
federação.
O ponto de partida da organização da 1ª Conseg foi o reconhecimento
acerca da posição central que o tema da segurança pública ocupa na atual conjuntura
social brasileira e a conseqüente necessidade de construção de um amplo espaço de
participação democrática para o debate e formulação de políticas públicas de
segurança. Relacionada diretamente ao Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania (PRONASCI) a conferência teve como meta primordial a elaboração de
diretrizes para uma Política Nacional de Segurança Pública baseada na participação
cidadã e na prevenção à violência (segurança cidadã).
O objetivo geral da 1ª Conseg foi definir princípios e diretrizes, a partir da
participação de diversos atores sociais, em um processo amplo de participação
democrática, para a Política Nacional de Segurança Pública com o intuito de efetivar
a segurança publica como direito fundamental.
Entre os objetivos específicos da 1ª Conseg estavam, entre outros: o
fortalecimento do Sistema Único de Segurança Pública (Susp); promover e fortalecer
redes sociais sobre o tema da segurança pública; consolidar a participação dos
                                                            
7 Essa divisão representativa acabou por determinar uma sub-representação da sociedade civil, pois
60% dos participantes da Conferência eram representantes de setores ligados à Segurança Pública.
Esse fato influenciou determinantemente no estabelecimento de pautas de discussão e na votação de
propostas de princípios e diretrizes, ocasionando disparidade representativa na Conferência.
 
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trabalhadores do setor, da sociedade civil, e do poder público na efetivação de uma


segurança publica cidadã; fortalecer a implementação do PRONASCI através da
reflexão sobre segurança publica com cidadania entre os estados e municípios; e
fortalecer o conceito de segurança publica como direito humano.
Para garantir a ampla participação popular e o caráter verdadeiramente
nacional do debate proposto acerca da segurança pública, a metodologia
desenvolvida para a 1ª Conseg foi construída a partir de etapas estaduais e
municipais. Todas as etapas tiveram como diretriz metodológica para os debates os
eixos temáticos detalhados pelo Texto-base – elaborado pelo Ministério da Justiça,
entidades participantes do Fórum Preparatório8, e da Comissão Organizadora
Nacional9 da 1ª Conseg –, documento que serviu como guia pedagógico para as
discussões realizadas e para a elaboração das propostas.
Essas etapas de consolidação da estruturação da 1ª Conseg foram divididas
entre: Eletivas – Conferências Estaduais e Conferências Municipais – e Preparatórias –
Conferências Municipais, Conferências Livres10, Conferências Virtuais, Seminários
Temáticos, e Projetos Especiais – envolvendo os trabalhadores do setor de segurança
publica, a sociedade civil, e o poder público, com o intuito de ampliar e concretizar a
participação cidadã no processo de construção da conferência.
As Conferências municipais e estaduais de caráter eletivo, elegeram cerca de
2.000 representantes com direito à voto para, na etapa nacional, decidir as diretrizes e
princípios para o Plano Nacional. As etapas preparatórias serviram como
                                                            
8 É um espaço de caráter consultivo – envolvendo diversos segmentos da sociedade, totalizando cerca
de 200 instituições e entidades - para a construção do processo da 1ª Conseg. Sua função primordial
foi qualificar a mobilização social e as discussões para a 1ª Conseg.
9 Instância máxima de deliberação da 1ª Conseg. Possuiu a função de formular, orientar e regular as

etapas da Conferência. Foi composta por 37 cadeiras, divididas de maneira tripartite, com membros da
sociedade civil, poder publico e trabalhadores do setor de segurança pública.
10 Por ser o objeto do presente artigo, o processo de desenvolvimento das Conferências Livres,

integrantes da etapa preparatória da 1ª Conseg, será detalhado de forma pormenorizada no tópico


seguinte do presente artigo.
 
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ampliadoras do debate para a construção e envio de propostas a serem votadas


durante a 1ª Conseg. Todas as etapas que constituíram o processo de construção da
1ª Conseg tiveram como produto um relatório final, contendo princípios e diretrizes,
cujo conteúdo foi sistematizado em um Caderno de Propostas (pela Coordenação
Nacional da Conferência) que serviu como base para as deliberações realizadas na
Conferência Nacional11.
No próximo tópico será realizada a análise específica da Conferência Livre
dos Presos com a apresentação da forma como foi estruturado o processo da mesma
e a observação dos resultados da 1ª Conseg, que se relacionam com as propostas
formuladas pelos presos como resultado da Conferência Livre.
Será, por fim, realizada a reflexão acerca do papel representado pelo
processo da Conferência Livre, como espaço de ampla participação democrática, a
partir do instrumental da Teoria do Reconhecimento de Nancy Fraser trabalhado no
presente artigo.

3) A Conferência Livre dos Presos: Espaço de Participação

O processo de Conferência Livre foi instituído como etapa Preparatória


para a realização da 1ª Conseg com o intuito de garantir a ampla participação dos
diversos setores e atores componentes da sociedade brasileira. As Conferências
Livres constituíram um importante exercício da democracia, possibilitando a criação
de espaços dialógicos referentes a temáticas essenciais no que tange à segurança
pública em âmbitos muitas vezes excluídos dos processos de participação
democrática.
                                                            
11 Entre as críticas realizadas á Conferência Nacional está o fato de que entre os princípios e diretrizes

aprovados encontram-se propostas incompatíveis entre si.


 
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O desenvolvimento de Conferências Livres possibilitou que os mais


diversos setores da sociedade, obedecendo ao procedimento metodológico básico
criado para a realização dessa etapa, elaborassem mecanismos e instrumentos
próprios, de acordo com a especificidade dos atores sociais envolvidos, para a
realização de debates acerca da segurança publica e o desenvolvimento de propostas
de princípios e diretrizes para serem submetidos à 1ª Conseg.
Importante ressaltar que o procedimento metodológico, com a observância
da proposta metodológica geral da 1ª Conseg, elaborado para o processo de
Conferência Livre incluiu etapas como: a discussão da temática de acordo com os
eixos propostos pelo Texto-base, a produção de um relatório final seguindo o
modelo disponível na página virtual da 1ª Conseg, e a realização das conferências e
envio dos relatórios nos prazos pré-estabelecidos. São, portanto, orientações
metodológicas básicas, a forma específica de organização de cada Conferência
dependeu do contexto em que foi realizada e dos componentes que participaram do
processo. A liberdade para a estruturação do processo de Conferência Livre foi
essencial para a efetivação da ampla participação democrática, garantindo a
autonomia social dos participantes e a adequação do processo através do uso de
instrumentos cotidianos aos espaços de discussão e aos atores sociais envolvidos. O
processo se Conferência Livre se constrói, portanto, de forma dinâmica, criativa, e
participativa.
A concepção da Conferência Livre dos Presos surge a partir de uma
parceria já existente entre o NIAC/UFRJ e a 52ª Delegacia de Polícia de Nova
Iguaçu. Em fevereiro de 2009 o NIAC passou a atuar na 52ª DP através da realização
de atendimentos interdisciplinares, integrando as faculdades de Serviço Social,
Psicologia e Direito, à população carcerária. A constatação das condições vivenciadas

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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pelos presos12, e da perene violação de direitos dos mesmos, fomentou a concepção


desses como importantes atores sociais – especialmente no que tange a discussão
acerca da Segurança Pública –, permanentemente excluídos dos processos de
participação democrática. Nesse contexto, e com o inicio das etapas preparatórias
para a 1ª Conseg, surge a iniciativa de realizar a Conferência Livre dos Presos.
A metodologia específica pensada para a concretização da Conferência
envolveu a realização de etapas preparatórias, com o objetivo de ampliar o número
de presos participantes, em sete carceragens do estado do Rio de Janeiro: Pavuna
(10/07), Grajaú (10/07), Neves (11/07), São João de Meriti (18/07), Caxias (18/07),
Mesquita (unidade feminina – 23/07), e Nova Iguaçu (etapa preparatória 23/07,
Conferência Livre 31/07). Em cada etapa preparatória foram levantados princípios e
diretrizes, e selecionados representantes para estarem presentes na Conferência Livre.
Anteriormente ao início das etapas da Conferência, foi realizada pelos
supervisores do NIAC/UFRJ a capacitação dos alunos bolsistas que exerceriam a
facilitação e a relatoria d todas as etapas. Foi realizada também, pela Comissão
Organizadora Estadual da Conferência Nacional, uma capacitação envolvendo os
bolsistas do NIAC e os chefes das carceragens participantes.
Os encontros das etapas preparatórias contavam com a participação, entre
representantes do Comando Vermelho, Terceiro Comando, e Seguro13, de 10 a 30
presos. A metodologia do trabalho foi estruturada a partir de uma sensibilização
inicial baseada no Texto-base da 1ª Conseg, no que tange aos eixos temáticos V
“Prevenção social do crime e das violências e construção da cultura de paz” e
VI “Diretrizes para o sistema penitenciário”.
                                                            
12 A existência de presos mantidos em Delegacias de Polícia representa uma séria irregularidade

administrativa. Os presos que aguardavam julgamento são reservadas, por lei, as Casas de Custódia, e
aos já condenados as Penitenciárias.
13 O Seguro é um espaço reservado para presos cuja integridade física poderia estar ameaçada no

convívio com outros presos. São pessoas acusadas de terem praticado os crimes previstos nos artigos
213 e 214 do Código Penal, policiais, e milicianos.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Logo após essa sensibilização inicial os bolsistas facilitadores estimulavam e


organizavam os debates14 sobre as propostas dos presos para a formulação de
princípios e diretrizes para a Política Nacional de Segurança Pública no que tange aos
eixos trabalhados. Durante esse processo os bolsistas relatores iniciavam a
sistematização das propostas sugeridas durante os debates.
No período da tarde, a sistematização dos princípios e diretrizes realizada
pela equipe era exposta aos presos para que estes debatessem e definissem a ordem
de prioridades entre os princípios e diretrizes, e ainda, se fosse o caso, sugerissem
algumas alterações finais na redação do documento elaborado. Por fim era realizada
uma avaliação acerca da opinião e percepção dos presos sobre todo o processo
desenvolvido durante o evento.
Cada etapa preparatória teve como produto um relatório final com as
diretrizes e os princípios selecionados em ordem de prioridade. A equipe responsável
pela sistematização organizou os princípios e diretrizes elencados em cada uma das
sete carceragens que compuseram o processo preparatório em temas referenciais,
com o intuito de expô-los em cartazes durante a realização da Conferência Livre no
dia 31/07/09.
Na primeira parte da Conferência Livre dos Presos foi realizada uma
sensibilização acerca do Texto-base transmitida a todas as celas da carceragem. Em
um segundo momento, foram apresentadas e debatidas, pelos representantes eleitos
de cada carceragem – o grupo de representantes, composto por presos tanto do
Comando Vermelho quanto do Terceiro Comando, realizaram os debates
conjuntamente, sem perpetuar a separação entre facções vivenciada fora e dentro das
carceragens –, as propostas de princípios e diretrizes sistematizadas a partir do

                                                            
14 Dependendo do numero de presos participantes das etapas, esses eram subdivididos em grupos de
trabalho para possibilitar a melhor organização dos debates.
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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resultado das etapas preparatórias. Para o encerramento do encontro foram


socializados os resultados alcançados pela Conferência Livre dos Presos.
Como produto final da Conferência Livre foi elaborado pela equipe do
NIAC/UFRJ, relatório final, seguindo o modelo padrão exigido, para o envio e
validação dos princípios e diretrizes formulados pelos presos. Conforme descrito no
tópico anterior, as propostas contidas nesse relatório foram, pela equipe da 1ª
Conseg, sistematizadas em um Caderno de Propostas, e debatidas no âmbito da
Conferência Nacional.
Cumpre aqui ressaltar alguns princípios e diretrizes definidos pela 1ª Conseg
como prioritários para a construção da Política Nacional de Segurança Pública que se
coadunam com as propostas formuladas pelos presos durante a Conferência Livre15.

• Princípios:

1ª Conseg Conferência Livre


3) Ser pautada pela defesa da 3) A política de Segurança Pública
dignidade da pessoa humana, com deve estar pautada na valorização da
valorização e respeito à vida e à cidadania, dignidade humana e no respeito à
assegurando atendimento humanizado a igualdade de direitos.
todas as pessoas, com respeito às diversas
identidades religiosas, culturais, étnico-
raciais, geracionais, de gênero, orientação

                                                            
15 A correspondência entre alguns princípios e diretrizes não significa que a aprovação dos mesmos

tenha sido conseqüência apenas das demandas levantadas pela Conferência Livre. Os princípios e
diretrizes aprovados pela Conferência Nacional são resultado de uma ampla mobilização nacional
realizada durante as etapas preparatórias para a Conferência. Demonstra, no entanto, a importância
das demandas levantadas pelos presos durante a conferência livre, e a necessidade de se dar voz a
esses atores sociais que vivenciam no dia a dia os problemas da Política de Segurança Publica
brasileira.
 
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sexual e as das pessoas com deficiência.


Deve ainda combater a criminalização da
pobreza, da juventude, dos movimentos
sociais e seus defensores, valorizando e
fortalecendo a cultura de paz.
7) Reconhecer a necessidade de 1) A política de Segurança Pública
reestruturação do sistema penitenciário, deve ser orientada pela garantia de direitos
tornando-o mais humanizado e (educação, trabalho e saúde), assegurando o
respeitador das identidades, com mesmo tratamento pelo sistema judiciário e
capacidade efetiva de ressocialização executivo, sem distinção da condição
dos apenados, garantindo legitimidade e social e econômica e contra todas as
autonomia na sua gestão, privilegiando formas de criminalização e discriminação
formas alternativas à privação da aos presos e egressos
liberdade e incrementando as estruturas de 7) As políticas de prevenção do
fiscalização e monitoramento. crime devem priorizar formas alternativas
ao encarceramento e a execução sumária.

• Diretrizes:

1ª Conseg Conferência Livre


2) Promover a autonomia e a 42) Capacitação dos diferentes
modernização dos órgãos periciais policiais na abordagem do suspeito e no
criminais, por meio de orçamento levantamento das provas periciais,

próprio, como forma de incrementar sua aprimorando setores de inteligência,


garantindo investigação mais
estruturação, assegurando a produção
qualificada.
isenta e qualificada da prova material,

 
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bem como o princípio da ampla defesa e


do contraditório e o respeito aos direitos
humanos.
17) Garantir o acesso à justiça e 7) Estabelecer um defensor
assistência jurídica gratuita àqueles em público no momento da prisão, não no
conflito com a lei, por intermédio da momento da ciência do processo,
implementação e fortalecimento das garantindo assistência jurídica desde o
defensorias públicas, assegurando maior momento da prisão, durante a fase do
celeridade aos processos e aos benefícios da processo e execução penal. Para tal é
Lei de Execução Penal. importante que haja um defensor de plantão
nas delegacias à disposição para atendimento
dos presos
20) Reestruturar o Conselho 21) Ampliar a democracia e
Nacional de Segurança Pública e transparência na gestão prisional.
reformular os Conselhos estaduais e
municipais, considerando os princípios
de democracia, representatividade,
paridade, autonomia, transparência, e
tendo como foco principal o combate à
corrupção, a prestação de serviços de
qualidade à população e a articulação
permanente com as forças sociais. Para isso:
eleger seus membros bienalmente, por meio
de conferências e fóruns nos quais haja plena
participação social; adequar suas ações às
realidades locais e regionais, operando os
instrumentos democráticos de controle
com monitoramento de dados

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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quantitativos e qualitativos das situações


de violência e ocorrências criminais;
trabalhar em ações de caráter consultivo,
propositivo, fiscalizatório e deliberativo,
adequando suas resoluções às orientações e
regulamentações do Ministério da Justiça;
manter estreita relação com todos os
conselhos da área de segurança e outros, de
modo a facilitar a articulação de ações; gerir
todos os seus recursos participativamente,
cuidando para que sejam efetivamente
utilizados no alcance de seus objetivos.
Elaborar e aprimorar a estrutura político-
administrativa do Conselho Nacional de
Segurança Pública em harmonia legal
com os conselhos estaduais e municipais
de segurança, considerando os princípios
de democracia, representatividade,
paridade, autonomia e transparência,
focado no combate à corrupção e na
qualidade de prestação de serviço a
população
22) Priorizar na agenda política, 13) Implantar penas alternativas
administrativa e financeira dos governos às penas restritivas de liberdade e
para a estruturação de um Sistema priorizá-las no caso de réu primário e para
Nacional de Penas e Medidas crimes de menor potencial ofensivo
Alternativas, criando estruturas e
mecanismos nos Estados e o Distrito

 
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Federal, no âmbito do Executivo,


estruturando e aparelhando os órgãos da
Justiça Criminal e priorizando as penas e
medidas alternativas, a justiça restaurativa
e a mediação de conflitos.
25) Definir diretrizes 21) Ampliar a democracia e
norteadoras para a gestão transparência na gestão prisional.
democrática do sistema prisional,
estabelecendo normas nacionais, com
fortalecimento, reforma, oficialização e
incentivo à criação de Conselhos
Penitenciários Federal, Estadual e
Municipais como instância deliberativa e
órgão de fiscalização, de ouvidorias e de
corregedorias do sistema, com ampla
composição e participação, com
incumbência de fomentar a gestão
compartilhada, facilitar o controle
social através de mecanismos
autônomos e paritários.
35) Melhorar os serviços de 1) Efetivar a política nacional de
saúde dos reclusos e profissionais, saúde prisional preconizada no SUS e
atendendo às especificidades de idade e garantir políticas de saúde em seus níveis
gênero. Implantação do programa de saúde básico, de emergência, tratamento de
da família com profissionais de todas as enfermidades e dependência química dos
áreas, em número suficiente. Fornecer presos nas carceragens e no sistema
alimentação adequada. Construir hospitais prisional.

 
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penitenciários em todos os estados.


Considerar os princípios de reforma 3) Melhorar as condições de
psiquiátrica. Criação de CAPS para higiene, alimentação e infra-estrutura das
tratamento dos dependentes de álcool, carceragens.
drogas e pessoas com sofrimento mental,
com participação familiar. 19) Garantir acompanhamento
psicológico, social, jurídico e médico aos
presos e seus familiares, tanto nas
carceragens quanto no sistema penitenciário,
garantindo sua efetividade.

52) Garantir assistência


psicossocial especializada para os
acautelados que tenham dependência
química

54) Garantir assistência médica a


todos os presos considerando as
especificidades de gênero, sendo assegurado
a todas as mulheres o tratamento
ginecológico
36) Fortalecer a Defensoria 7) Estabelecer um defensor
Pública, com a sua estruturação em todas as público no momento da prisão, não no
comarcas do país, como instrumento momento da ciência do processo,
viabilizador do acesso universal à justiça garantindo assistência jurídica desde o
e à defesa técnica, bem como criar os momento da prisão, durante a fase do
juizados especiais em âmbito nacional e processo e execução penal. Para tal é
ampliar a efetivação dos já existentes, como importante que haja um defensor de plantão
forma de aperfeiçoar a prestação nas delegacias à disposição para atendimento
 
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jurisdicional. dos presos.

23) Garantir a ampla defesa e


voz de todos os envolvidos no processo

4) Exclusão Democrática no Sistema Prisional e a Necessidade de


Reconhecimento

A função primordial da pena privativa de liberdade é a ressocialização. Sem


pretender abordar o paradoxo inserido na afirmação anterior, pois afinal a completa
exclusão social, não parece, à primeira vista, a forma mais efetiva de garantir a
ressocialização dos indivíduos, pretende-se refletir aqui sobre a exclusão da
participação democrática e da vida política dos presos (provisórios ou condenados) a
partir dos conceitos trabalhados ao longo do presente trabalho, e utilizando a
experiência da Conferência Livre relatada no tópico anterior.
Não se pretende aqui abordar as amplas reformas institucionais estruturais
que seriam necessárias para o sistema prisional. Não é o objetivo também analisar de
forma profunda a estrutura social estigmatizante que leva à prisão, majoritariamente,
pobres e negros. O objetivo é levando em consideração essa mesma estrutura social,
refletir sobre esses indivíduos como atores sociais importantes cuja participação
democrática deve ser garantida.
Partindo-se da constatação de que a maioria da população carcerária
brasileira é composta por indivíduos pobres e negros, a hipótese aqui trabalhada é a
de que a atual lógica de funcionamento do sistema prisional perpetua a estrutura
social vigente. A permanente exclusão desses indivíduos dos processos de discussão

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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democrática durante o período de encarceramento, reafirma o padrão cultural


dominante que determina esses indivíduos como seres à margem da sociedade.
Longe de trabalhar para a reinserção social dos presos, o sistema prisional define a
impossibilidade de novas formas de interação social para as pessoas encarceradas.
A não participação na construção democrática da sociedade em que
vivemos define esses indivíduos como seres invisíveis perante a sociedade e
consolida nos mesmos a sensação de permanente exclusão. O padrão cultural
instituído determina que os indivíduos encarcerados são pessoas que devem
permanecer excluídas da interação social, a lógica de funcionamento do sistema
prisional reafirma esse padrão vigente, impede a ressocialização e define a
permanente exclusão desses indivíduos mesmo após o término da pena privativa de
liberdade. A constante reincidência na prática de condutas previstas como crimes é,
muitas vezes, resultado dessa lógica social opressora.
Partindo-se agora dos conceitos trabalhados pela Teoria do
Reconhecimento de Nancy Fraser, pode-se refletir acerca da experiência da
Conferência Livre. Não é possível, com certeza, desconsiderar a influência
determinante de questões ligadas a problemas de distribuição (paradigma da
redistribuição) e sua influência nas demandas por reconhecimento, no que tange ao
tema trabalhado. No entanto, no âmbito do estudo proposto, optou-se por analisar a
perspectiva do reconhecimento, e sua influência na garantia de paridade participativa.
Como afirmado anteriormente, o padrão cultural vigente determina não
apenas a criminalização de uma parcela específica da população, como também a sua
perpétua estigmatização. Estamos, portanto, diante de um problema de justiça ligado
à subordinação de status, ou seja, ao paradigma do reconhecimento. Os padrões
culturais vigentes determinam os indivíduos aprisionados como inferiores e não
dignos de paridade de interação social.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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Levando-se em consideração que a demanda por reconhecimento aqui


analisada não influencia em novas formas de subordinação e exclusão social,
intragrupos ou intergrupos, e que remédios ligados ao reconhecimento seriam de fato
capazes de alterar a estrutura institucionalizada, essa é, uma demanda legítima de
acordo com os critérios estudados. A justiça social, representada pelo conceito de
paridade participativa e analisada sob a perspectiva do reconhecimento no âmbito do
trabalho proposto, apenas pode ser alcançada mediante a valorização desses
indivíduos como atores essenciais para a reflexão dos rumos da nossa sociedade, e
através de sua reinserção nos processos democráticos de discussão.
A Conferencia Livre dos Presos é um exemplo paradigmático de uma ação
de reconhecimento voltada à garantia de paridade participativa desses atores sociais.
Reconhecendo esses como indivíduos igualmente dignos e importantes para os
processos de decisão democrática vividos pela sociedade brasileira, a Conferência
Livre foi capaz de dar voz a grupos afetados pelos problemas discutidos no âmbito
de uma Conferência Nacional de Segurança Pública. A Conferência Livre,
isoladamente, não é capaz de alterar os padrões institucionalizados, mas sinaliza para
um caminho que precisa ser percorrido.
Ações, como a desenvolvida pela Conferência Livre, são exemplares para se
refletir e agir sobre o problema de exclusão democrática vivenciado pelos presos. O
sistema prisional necessita de amplas reformas estruturais, que são, no entanto, por
razoes já analisadas nesse trabalho, muitas vezes difíceis de serem consolidadas. A
garantia de reconhecimento e o alcance da paridade participativa passam pela
consideração, tanto das peculiaridades dos indivíduos encarcerados, como da
humanidade comum a todos os indivíduos componentes de nossa sociedade.
O exemplo da Conferência Livre, isoladamente, tem um efeito mínimo na
realidade desses indivíduos. No entanto, a repetição de exemplos como esse pode, a
longo prazo, significar uma verdadeira mudança cultural na realidade hoje
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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constituída. É um exemplo claro de reforma não reformista. Uma ação tipicamente


afirmativa que pode proporcionar um efeito verdadeiramente transformador na
realidade vigente.
Atingir um modelo democrático que esteja baseado na paridade
participativa de todos os indivíduos componentes da sociedade não é uma tarefa
simples. O fomento a espaços amplos de discussão democrática, que abranjam
grupos comumente excluídos da interação social e que proponham o debate acerca
dos padrões de dominação cultural institucionalizados, é o primeiro e talvez mais
significativo passo para a mudança simbólica exigida para o trabalho com demandas
por reconhecimento e para a perpetuação de uma mudança cultural já há muito
necessária em nossa sociedade.

Referências Bibliográficas

FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A Political-


Philosophical Exchange.

FRASER, Nancy. A justiça social na globalização. Redistribuição, reconhecimento e


participação.

FRASER, Nancy; GOMEZ−MULLER, Alfredo; ROCKHILL, Gabriel. Global


justice and the renewal of critical theory. A dialogue with Nancy Fraser.

FRASER, Nancy. Rethinking Recognition.

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética.


 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
Edições Uberlândia e Belo Horizonte

Relatório Final da Conferência Livre dos Presos.

Sites Utilizados
www.conseg.org.br

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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DIREITOS HUMANOS-FUNDAMENTAIS E A JUSTICIABILIDADE


DOS DIREITOS SOCIAIS1

Décio de Abreu e Silva Júnior2


Nathália Lipovetsky e Silva3

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO; 2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS


FUNDAMENTAIS; 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS NA HISTÓRIA; 3.1 As
Constituições brasileiras; 4 AS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS;
5 A JUSTICIABILIDADE E O PAPEL DO JUDICIÁRIO; 6 REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS.

Palavras-Chave: direitos humanos; direitos fundamentais; direitos sociais;


justiciabilidade.

1 INTRODUÇÃO

A expressão “direitos fundamentais” e sua formulação jurídico-positiva é


um fenômeno recente, que aparece na França, em 1770, no marco do movimento
político que conduziu à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,
articulando-se de modo especial na Alemanha, onde foi consagrada na Constituição

                                                            
1 Trabalho em coautoria proveniente da junção dos estudos realizados em sede de dissertação e
monografia de graduação, ambos sob orientação da Profa. Dra. Mariá Brochado.
2 Mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
3 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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de Weimar, em 1919. No entanto, suas raízes filosóficas remontam aos avatares


históricos do pensamento humanista4.
Já na Antiguidade fez-se referência a um Direito superior, dado aos homens
pelos deuses, que pode ser encontrada na Antígona, de Sófocles, e no diálogo De
legibus, de Cícero5.

Antígona se recusa a cumprir as determinações de Cléon,


afirmando que ela não sabia que ele tinha poder para estabelecer
leis e muito menos para estabelecer leis que contradissessem o
direito estabelecido para todos os tempos pelos deuses (...)
O direito não é o que o legislador declara, o direito é algo que
projeta o justo e, consequentemente, independe, como o justo, da
mera vontade dos homens. Esta é, sem dúvida, a raiz mais
profunda dos direitos fundamentais. (...)
Em um dos diálogos de Cícero, De legibus, encontramos a
afirmação de que o verdadeiro direito é aquele que nasce com o
homem. Esse direito prevalece sobre a lei escrita. É a non scripta sed
nata lex, ou seja, a lei natural.”6

Na doutrina estóica, a unidade universal dos homens ou afirmação cristã de


igualdade essencial de todos os seres humanos diante de Deus, aponta um despertar
da consciência da dignidade humana7.
Do pensamento tomista se depreende a exigência de submeter-se o direito
positivo ao direito natural, que é expressão da natureza racional humana, criando,
assim, um direito de resistência ao governo em caso de não conformidade entre

                                                            
4 PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1998, p. 29-33. Para uma
discussão mais profunda sobre as raízes filosóficas da cultura dos Direitos Humanos na Antiguidade,
cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2008, p. 1-44.
5 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2007,

p. 9.
6 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A cultura dos direitos fundamentais. In SAMPAIO, José

Adércio Leite (Org.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 240.
7 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 30-3.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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direito positivo e direito natural8. Na Suma teológica é apresentada uma hierarquia


entre a lei eterna, apenas conhecida por Deus Ele próprio; seguida, por um lado, da lei
divina, que é a parte da lei eterna revelada por Deus ou declarada pela Igreja e, por
outro lado, da lei natural, que é aquela que o homem pode descobrir através da razão;
por último, vem a lei humana, positivada pelo legislador9.
HUGO GRÓCIO foi o responsável pela laicização do direito natural,
defendendo que determinados direitos decorrem da natureza humana, não sendo
criados nem outorgados pelo legislador. Esses direitos são identificados pela “reta
razão” que avalia sua conveniência ou inconveniência em face da natureza razoável e
sociável do ser humano10. Com base nessa laicização do direito natural, o caminho
está aberto para as especulações que prepararam as revoluções liberais e a Revolução
Francesa, no final do século XVIII, com o surgimento das teorias contratualistas11.
No pensamento de LOCKE, a defesa dos direitos naturais à vida, à liberdade
e à propriedade se convertem no fim prioritário da sociedade civil e no princípio
legitimador básico do governo. Na teoria do contrato social de ROUSSEAU, a vontade
geral formada pelas vontades de cidadãos em condições de igualdade será o
fundamento para constituir-se a lei que garante e limita a liberdade de todos os
cidadãos12.
Em KANT culmina o processo da depuração das doutrinas jusnaturalistas de
elementos empíricos e pseudo-históricos, fundando-se o direito natural apenas em
princípios a priori (enquanto exigências absolutas da razão prática). KANT contribuiu
diretamente para a formação do conceito de Estado de Direito, equiparando o direito

                                                            
8 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 30-3.
9 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 10.
10 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 10.
11 FERREIRA FILHO, A cultura dos direitos fundamentais, cit., In SAMPAIO, Jurisdição..., op. cit., p.

242.
12 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 30-3.

 
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natural ao direito à liberdade enquanto esta possa coexistir com as liberdades dos
demais segundo um imperativo categórico13.

2 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS

As expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” são utilizadas,


muitas vezes, como sinônimas, ensejando diversas tentativas doutrinárias de
distinção. Em excelente síntese, PEREZ LUÑO as divide em dois grupos: um primeiro
que define “direitos fundamentais” como aqueles direitos positivados internamente, e
“direitos humanos” como aqueles direitos naturais positivados nas declarações e
convenções internacionais e para as exigências básicas relacionadas à dignidade,
liberdade e igualdade da pessoa que não alcançaram um estatuto jurídico positivo; um
segundo grupo define “direitos fundamentais” como aqueles garantidos
constitucionalmente aos cidadãos enquanto membros de um determinado Estado, e
“direitos humanos” seriam aqueles formulados positivamente nos textos
constitucionais com validade geral para todos os homens, sem reduzi-los a um grupo
de pessoas. Esta segunda tese seria, segundo o autor, a menos convincente, uma vez
que confunde os conceitos de direitos fundamentais com direitos civis e de direitos
humanos com direitos pessoais14.
MARCELO GALUPPO, partindo do pressuposto que os direitos humanos se
transformam em direitos fundamentais através do princípio do discurso, ou seja,
“quando a argumentação prática dos discursos morais se converte em argumentação
jurídica limitada pela faticidade do direito, que implica sua positividade e
coercibilidade, sem, no entanto, abrir mão de sua pretensão de legitimidade”, afirma
                                                            
13 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 30-3.
14 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 44-6.
 
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que os direitos fundamentais não podem ser reduzidos a uma única realidade, por
terem sido construídos historicamente, o que implica na impossibilidade de se
encontrar um conceito conotativo absoluto de direitos fundamentais. Para o autor, os
direitos fundamentais representam a “constitucionalização daqueles direitos humanos
que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história dos discursos morais,
que são, por isso, reconhecidos como condições para a construção e o exercício dos
demais direitos”. Assim, pode-se dizer que os direitos fundamentais “são os direitos
que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado
momento histórico, se quiserem que o direito por eles produzido seja legítimo, ou
seja, democrático”15.
BONAVIDES entende que a expressão “direitos humanos” consagra as raízes
históricas dos direitos do homem antes de seu ingresso nos Códigos e Constituições
e que, ao passarem ao estado de concretude deixam de ser direitos naturais e se
convertem em direitos positivos, indo da área programática para o espaço normativo
dos sistemas constitucionais, mantendo seu caráter de universalidade tutelar e
passando a designar-se pela expressão “direitos fundamentais”16.
A proposta que traz PEREZ LUÑO de definição para as duas expressões se
baseia no grau de concreção positiva dessas categorias, sob a justificativa de que o
termo “direitos humanos” aparece como um conceito de contornos mais amplos e
imprecisos que a noção dos “direitos fundamentais”. Assim, “direitos humanos”
seriam “o conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico,
concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as
quais podem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível
nacional e internacional” enquanto a expressão “direitos fundamentais” se refere
                                                            
15 GALUPPO, Marcelo Campos. O que são direitos fundamentais? In SAMPAIO, Jurisdição..., op. cit.,
p. 233-6.
16 BONAVIDES, Paulo. Os direitos humanos e a democracia. In SILVA, Reginaldo Pereira e (Org.).

Direitos humanos como educação para a justiça. São Paulo: LTr Editora, 1998, p. 16-17.
 
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“àqueles direitos humanos garantidos pelo ordenamento jurídico positivo, na maior


parte dos casos em sua esfera constitucional, e que costumam gozar de uma tutela
reforçada”.17
Desse modo

os direitos humanos congregam, a sua significação descritiva


daqueles direitos e liberdades reconhecidos nas declarações e
convenções internacionais, uma conotação prescritiva ou
deontológica, ao abarcar também aquelas exigências mais
radicalmente vinculadas ao sistema de necessidades humanas, e
que devendo ser objeto de positivação, não o foram. Os direitos
fundamentais possuem um sentido mais preciso e estrito, já que
tão somente descrevem o conjunto de direitos e liberdades jurídica
e institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo Direito
positivo. Se trata sempre, portanto, de direitos delimitados
espacial e temporalmente, cuja denominação responde ao seu
caráter básico ou fundamentador do sistema jurídico-político do
Estado de Direito.18

PEREZ LUÑO conclui que os direitos fundamentais aparecem,


historicamente, como a fase mais avançada do processo de positivação dos direitos
naturais nos textos constitucionais do Estado de Direito, processo que teria seu
ponto intermediário de conexão nos direitos humanos. Assim, os direitos
fundamentais são fruto de uma dupla confluência: por um lado supõem o encontro
(que acontece no Estado de Direito) entre a tradição filosófica humanista
representada, prioritariamente, pelo jusnaturalismo de orientação democrática, e as

                                                            
17PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 44-6.
18 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 47 (tradução livre). No original: “Los derechos humanos
aúnan, a su significación descriptiva de aquellos derechos y libertades reconocidos en las declaraciones
y convenios internacionales, una connotación prescriptiva o deontológica, al abarcar también aquellas
exigencias más radicalmente vinculadas al sistema de necesidades humanas, y que debiendo ser objeto de
positivación no lo han sido. Los derechos fundamentales poseen un sentido más preciso y estricto, ya
que tan sólo describen el conjunto de derechos y libertades jurídica e institucionalmente reconocidos y
garantizados por el Derecho positivo. Se trata siempre, por tanto, de derechos delimitados espacial y
temporalmente, cuya denominación responde a su carácter básico o fundamentador del sistema jurídico
político del Estado de Derecho.”
 
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técnicas de positivação e proteção das liberdades, próprias do movimento


constitucionalista; de outro lado, representam um ponto de mediação e síntese entre
as exigências das liberdades tradicionais de caráter individual com o sistema de
necessidades radicais de caráter social19.

3 DIREITOS FUNDAMENTAIS NA HISTÓRIA

Na Antiguidade não se encontra nenhuma referência relevante ao tema dos


direitos fundamentais; durante o período medieval há documentos, principalmente
do monarca reconhecendo alguns limites ao exercício de seu poder em favor da
Igreja ou de senhores feudais ou de comunidades locais20.
Sem dúvida, o documento medieval de maior importância histórica é a
Carta Magna, assinada na Inglaterra em 1215, que teve decisivo papel no processo de
desenvolvimento das liberdades inglesas21. A Carta Magna consiste na enumeração de
prerrogativas garantidas a todos os súditos da monarquia, reconhecendo direitos e,
portanto, limitando o poder do monarca. Nela são apontados, por exemplo, a
judicialidade, a liberdade de ir e vir, a propriedade privada e a graduação da pena ao
delito22.
O art. 39 da Carta Magna, ao enunciar que nenhum homem seria privado de
sua liberdade ou de seus bens sem juízo prévio, foi o ponto de partida para a Petition
of rights, em 1628, que reclama o respeito ao princípio do consentimento na
tributação, no julgamento pelos pares para a privação da liberdade, ou da
propriedade, na proibição de detenções arbitrárias, entre outros; para o Habeas
                                                            
19 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 43-4.
20 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 33-8.
21 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 33-8. Cf. ainda, COMPARATO, A afirmação..., cit., p. 71-87.
22 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 11-12.

 
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Corpus, em 1679; e para o Bill of rights, em 1689, que trata da independência do


Parlamento, dando um decisivo passo para a separação dos poderes23.
As liberdades enunciadas vão de delimitadoras do status social, jurídico e
político no campo privado a liberdades gerais de direito público, ampliando seu
campo de atuação e de destinatários. Nas colônias americanas esses direitos foram
sendo reconhecidos com inspiração em pressupostos jusnaturalistas e individualistas.
Destinam-se a todos pelo mero nascimento, irrestritamente, pois são emanados das
leis da natureza e o direito positivo não lhes pode contradizer ou criar, mas apenas
declarar e garantir24.
As declarações norte-americanas, assim como documentos da Europa
continental reconhecedores da tolerância e da liberdade religiosa, e os pressupostos
racionalistas e contratualistas da Escola do Direito Natural exerceram direta
influência para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada pela
Assembléia constituinte francesa revolucionária em 1789. Esse documento consagra
direitos de caráter universal, cuja validade se considera absoluta por fundar-se na
razão. Seus pressupostos são individualistas, listando os direitos do homem, por
natureza, como sendo a sua liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão. Apenas a lei pode limitar o exercício desses direitos, na medida em que
garanti-los a todos, como expressão da vontade geral25.
Ao longo do século XIX, as Constituições de países como Alemanha,
Bélgica, Itália, Espanha e França incluem uma série de direitos e liberdade, mais ou
menos ampla, segundo o predomínio da inspiração liberal de seus redatores, sempre
marcadas pela ideologia individualista. No mesmo século XIX, o proletariado
começa a adquirir protagonismo histórico, desenvolvendo-se uma consciência (e,
                                                            
23 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 11-12. Cf. ainda, COMPARATO, A afirmação..., cit., p.
92-98.
24 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 33-8.
25 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 33-8. Cf. ainda, COMPARATO, A afirmação..., cit., p. 99-166.

 
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portanto, uma demanda), por direitos econômicos e sociais frente aos clássicos
direitos individuais26.
Com o avanço do liberalismo econômico e político, o quadro social se
deteriorou, devido à concentração de riquezas nas mãos dos empresários – enquanto
a classe trabalhadora vivia na penúria. Os salários eram baixos devido à grande oferta
de mão de obra e da introdução de máquinas na produção, o trabalho de crianças
não era impedido, as jornadas de trabalho eram muito longas, dentre outros. Desse
quadro, surgiu o que se chama “questão social” ou “luta de classes”, consequência da
marginalização da classe operária e do sentimento de hostilidade que se instalou entre
esta e os empresários. Uma situação assim ameaçava a estabilidade das instituições
liberais e a continuidade do processo de desenvolvimento econômico, donde brotou
uma batalha intelectual e política visando realizar mudanças27.
No ano de 1848, foi publicado, por MARX e ENGELS, o Manifesto
Comunista, seguindo a tendência de exigência de proteção jurídica aos direitos ao
trabalho, a seus frutos e à seguridade social. Fazendo eco a estas exigências, foi
promulgada a Constituição francesa nesse mesmo ano, buscando relacionar os
princípios revolucionários de 1789 à esfera social e econômica do momento.
Enquanto a Declaração de 1789 tinha sido a declaração da liberdade, a de 1848 seria
a da igualdade28. Os direitos ao trabalho e à educação (embora com menor ênfase
para o segundo) aparecem garantidos no preâmbulo do texto constitucional daquele
que pode ter sido o principal documento em se tratando da evolução dos direitos
fundamentais para a consagração dos direitos econômicos e sociais29.
Em consonância com o Manifesto, foi publicada na então União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, a Declaração dos Direitos do Povo
                                                            
26 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 33-8.
27 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 42-3.
28 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 38-9. Cf. ainda, COMPARATO, A afirmação..., cit., p. 167-172.
29 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 45-6.

 
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Trabalhador e Explorado, em 1918, cujo texto foi em seguida incorporado à


Constituição soviética. Direitos individuais não eram reconhecidos nessa Declaração
e os limites do exercício de qualquer direito por parte dos cidadãos se limitava ao
interesse da coletividade30.
A Constituição mexicana de 1917 foi a primeira tentativa de se conciliar
direitos sociais com direitos de liberdade, superando a oposição individualismo /
coletivismo.31 É um documento que antecipa alguns desdobramentos típicos dos
direitos sociais, apresentando como novidades o nacionalismo, a reforma agrária, a
hostilidade em relação ao poder econômico e um elenco dos direitos do trabalhador
(não propriamente um direito ao trabalho)32.
No ano de 1919 foi assinado o Tratado de Versalhes, após a Primeira
Guerra Mundial, em que se encontra a Constituição da Organização Internacional do
Trabalho – a OIT –, consagrando os direitos do trabalhador, fundamentais e
obrigatórios para todos os Estados signatários do Tratado33. Também em 1919, foi
promulgada a Constituição de Weimar, em que as liberdades individuais tradicionais
se somam a direitos sociais de proteção à família, à educação e ao trabalho. Esse
texto constitucional inspirou diversos outros que buscaram conjugar em seu sistema
de direitos fundamentais as liberdades com os direitos econômicos, sociais e
culturais, sobretudo no após a Segunda Guerra Mundial, a exemplo da França (1946),
Alemanha (1949), Itália (1947), Grécia (1975), Portugal (1976) e Espanha (1978)34.
EROS GRAU critica as Constituições mexicana de 1917 e de Weimar de
1919, por serem ambas meramente programáticas, ou seja, definem direitos que não
garantem e se transformam em um “mito”. Afirma o Ministro que

                                                            
30 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 38-9.
31 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 38-9. Cf. ainda, COMPARATO, A afirmação..., cit., p. 177-188.
32 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 46.
33 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 47.
34 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 39-40. Cf. ainda, COMPARATO, A afirmação..., cit., p. 189-199.

 
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na medida em que esses direitos só assumem eficácia plena


quando implementados pelo legislador ordinário ou por ato do
Executivo, – consubstancia um instrumento retórico de
dominação.
Na mesma linha prosperam as Constituições formais capitalistas
que se seguem a elas, seja na provisão da institucionalização de um
‘Estado Social’, seja na implantação do ‘capitalismo social’, noção
que não resiste nem mesmo à contradição dos vocábulos que
integram a expressão que a designa – só o processo de produção é
social; o processo de acumulação capitalista é essencialmente
individualista.35

No plano internacional, em 1948 foi promulgada pela Organização das


Nações Unidas – ONU – a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a que se
seguiram a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades
Fundamentais, assinada em Roma no ano de 1950; os Pactos Internacionais de
Direitos Civis e Políticos e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e o
Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, que declara os direitos humanos e prevê
uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos e uma Corte Interamericana de
Direitos Humanos36.
O Tribunal Penal Internacional, estabelecido pelo Tratado de Roma em
1998, existe para processar e julgar crimes definidos no Tratado como genocídio,
escravização, crimes de guerra, entre outros, que violem direitos fundamentais37.
JOSÉ AFONSO DA SILVA traz um panorama geral de classificação das
constituições contemporâneas que merece ser destacado:

                                                            
35 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988, 9.ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.
26-9.
36 PEREZ LUÑO, Los derechos..., cit., p. 41-2 e FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 92-4. Para

mais sobre essas e outras Declarações, Cf. COMPARATO, A afirmação..., cit., p. 213-524.
37 FERREIRA FILHO, Direitos humanos..., cit., p. 95.

 
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(1) constituições liberais, as que consubstanciam primordialmente os


elementos liberais individuais, que são de dois tipos: (a) liberais
típicas – não contém declaração de direitos sociais, como a dos
Estados Unidos e da Bélgica; (b) liberais com reconhecimento de direitos
sociais, como as da Itália, da República Federal da Alemanha, da
Suécia, da Dinamarca, do México e dos países da América Latina
em geral, (...) da França, ainda que só de modo indireto ao
estabelecer no preâmbulo o reconhecimento dos direitos do
homem estabelecidos pela Declaração de 1789, ‘confirmada e
integrada pelo preâmbulo da Constituição de 1946’, que
enunciava, nessa integração, os direitos sociais;
(2) constituições transformistas, que prometem explícita ou
implicitamente a transição para o socialismo democrático
pluralista, como a de Portugal, de 1976 com a revisão de 1982, a
da Espanha, de 1978, a do Brasil (por seu conteúdo social, sem
prometer o socialismo), mais distante um pouco a do Peru, de
1993, e a da Guatemala;
(3) constituições socialistas (socialismo real, autoritário), as que
consubstanciam elementos sociais da igualdade, restando ainda
com essa pretensão as da Algéria, de Cuba, da China Popular, da
Coréia do Norte, da Mongólia e a do Viet-Nam; mas esses
Estados e respectivas constituições passam, neste momento, por
profundas transformações, mais se aproximando hoje do tipo
ditatorial, do que de um sistema conceitualmente socialista (...);
(4) constituições ditatoriais, as que não reconhecem formalmente nem
permitem se desenvolvam substancialmente os direitos do
homem, nas suas dimensões liberais nem nas sociais, assim como
as que, embora formalmente os enunciem, contenham elementos
formais que os nulifiquem ou são simplesmente ineficazes por via
de uma estrutura de poder dominante; temos, pois, nesse grupo:
(a) constituições que não enunciam os direitos do homem ou o
fazem muito vagamente, como as de Gana, de Tanganica, do
Ceilão, do Brunei, do Camboja (de 1959), de Sabá, de Sarawak, de
Cingapura; (b) constituições que trazem uma afirmação dos
princípios, mas introduzem longa enumeração de exceções e de
pormenores de aplicação, que nulificam aqueles princípios, como
as dos Estados árabes e africanos em geral, assim as da Arábia
Saudita, do Irã, do Egito, da Etiópia, do Marrocos, da Nigéria, de
 
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Uganda, de Serra Leoa, e também algumas da Ásia , como as da


Birmânia, do Nepal; (c) constituições que reconhecem os direitos
individuais e sociais do homem, mas dominadas por estrutura de
poder que torna de pouca valia suas normas e princípios, como,
não raro, têm sido os regimes da América Latina em geral,
felizmente em processo de afirmação democrática.38

A plena universalização dos direitos fundamentais encontra dificuldades de


várias ordens, a principal delas, talvez, seja o fato de a cultura dos direitos
fundamentais ser um traço da cultura ocidental. Esse traço não é nativo em outras
culturas e não se pode ignorar tampouco que outras culturas existem. As culturas
orientais não pregam, de modo genérico, a liberdade de religião ou a igualdade entre
homens e mulheres, por exemplo. Levar a cultura dos direitos fundamentais a essas
culturas é, de certo modo, convertê-las (ou, no mínimo, convencê-las da) à cultura
ocidental. MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO conclui:

é indispensável procurar uma convergência, não a subjugação de


outras culturas pelo nossa, ‘ocidental’. Para tanto, é mister
identificar o que é realmente fundamental entre os direitos
fundamentais.
Disso decorre que não é multiplicando os direitos fundamentais
declarados e desdobrando certos direitos realmente fundamentais
em outros não fundamentais, apenas instrumentais e acidentais,
mas batizados de fundamentais, que será obtida essa
universalização.
[...]
Para obter essa desejável universalização – ínsito – é preciso
procurar a convergência, levando em conta que nós ocidentais não
fomos escolhidos por Deus para civilizar o mundo. É preciso
contentar-se com o fundamental do fundamental dentre os direitos
humanos, um mínimo – um mínimo denominador comum – que possa

                                                            
38 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 31.ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.

168-170.
 
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ser aceito por todas as culturas, sem que qualquer delas renegue
suas concepções básicas.39

Acrescenta KARINE SALGADO:

Ao contrário do que se pode pensar, a idéia de direitos humanos


universais, assim como o cosmopolitismo kantiano como um todo
não suprimem regionalismos e o pluralismo cultural, mas
permitem que a diversidade dos povos conviva de maneira
harmoniosa através do respeito mútuo.
As dificuldades para a implementação dos direitos humanos não
estão somente entre os povos cuja cultura se diferencia
substancialmente da cultura ocidental. A distância entre o
reconhecimento destes direitos e a sua real efetivação é um
problema de ordem global. Isso, contudo, não compromete o
valor que os direitos humanos expressam, mas deve servir de
estímulo para a busca constante de sua efetivação. O grande
desafio que a humanidade se impõe hoje é buscar um respeito
absoluto e global aos direitos humanos, o que só será possível
mediante a superação do determinismo econômico40.

3.1 As Constituições brasileiras

A Constituição do Império do Brasil de 1824 foi a primeira constituição do


mundo a subjetivar e positivar os direitos do homem. Ainda que não sob a rubrica de
“Declaração de Direitos”, sob os títulos de “Das Disposições Gerais” e “Garantias
dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros” ela trazia 35 incisos
dedicados aos direitos e garantias individuais41.
A Constituição seguinte, de 1891, trazia uma “Declaração de Direitos”,
assegurando a brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos
                                                            
39 FERREIRA FILHO, A cultura dos direitos fundamentais, cit., In SAMPAIO, Jurisdição..., op. cit., p.
248-50.
40 SALGADO, Karine. A paz perpétua de Kant. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008, p. 222. 
41 SILVA, Curso de..., cit., p. 170-1.

 
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direitos concernentes à liberdade, à segurança e à propriedade, já com a indicação de


que a enumeração não era exaustiva – regra adotada pelas Cartas seguintes42.
A partir da Constituição de 1934, os direitos fundamentais consagrados já
não eram apenas os individuais ou de liberdade, mas também os de nacionalidade, os
políticos e os econômicos e sociais do homem (embora os últimos o tenham sido de
maneira pouco eficaz). Apenas três anos após sua promulgação, essa Constituição foi
substituída pela Carta de 1937, ditatorial “na forma, no conteúdo e na aplicação, com
integral desrespeito aos direitos do homem, especialmente os concernentes às
relações políticas”43.
As Constituições de 1946, de 1967 e sua Emenda 1/69 asseguravam, num
panorama geral, garantias muito semelhantes: direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, além do direito à subsistência e dos
direitos econômicos e sociais, já mais bem estruturados que na Constituição de 1934.
Pode-se perceber que todas as constituições brasileiras abrigaram declarações de
direitos do homem, com exceção, é claro, da Carta de 193744.
A Constituição vigente adota técnica mais moderna, contendo um título
sobre os princípios fundamentais e em seguida outro sobre os direitos e garantias
fundamentais, incluindo os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos
sociais, os direitos da nacionalidade, os direitos políticos e os partidos políticos45.

                                                            
42 SILVA, Curso de..., cit., p. 170-1.
43 SILVA, Curso de..., cit., p. 170-1.
44 SILVA, Curso de..., cit., p. 170-1.
45 SILVA, Curso de..., cit., p. 170-1.

 
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4 AS GERAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Como visto, direitos humanos guardam íntima relação com direitos


fundamentais, sendo estes direitos positivados, cujo conteúdo remete àqueles.
Sintetizando a estreita ligação entre eles, MARIÁ BROCHADO ressalta que

os termos direitos humanos e direitos fundamentais muitas vezes são


empregados como sendo sinônimos, mas não se confundem, pois
se entende por humanos aqueles valores ínstitos à pessoa humana,
indispensáveis ao seu desenvolvimento e sua tripla dimensão bio-
psíquica-espiritual, não necessariamente positivados pelas Cartas
Constitucionais. São conteúdo ou materialidade dos assim chamados
direitos fundamentais, que dão a formalização nas ordens jurídicas
internas a tais conteúdos jurídicos.46

Convém ressaltar que a digressão histórica aqui realizada serviu para mostrar que
as expressões imbricam-se, e para identificar basicamente os momentos: 1) de tomada de
consciência desses direitos; 2) de positivação deles em diversos textos constitucionais; 3)
dificuldades e lutas para concretização desses dirietos. Conforme ensina JOAQUIM CARLOS
SALGADO, a evolução dos direitos fundamentais

obedece a um processo histórico de três momentos


respectivamente: o seu aparecimento como consciência em
determinadas condições históricas, a sua declaração positiva como
aceitação formal de todos os ordenamentos e a sua realização,
como concretos e eficazes.47

                                                            
46 BROCHADO, Mariá. Direito e Ética: a eticidade do Fenômeno Jurídico. São Paulo: Landy Editora,
2006, p. 122.
47 SALGADO, Joaquim Carlos apud BROCHADO, Mariá. A Eticidade..., cit., p. 125.

 
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Comenta MARIÁ BROCHADO em relação a esses três momentos que “naquele


primeiro momento é que temos propriamente os direitos humanos e no segundo, os direitos
fundamentais”48.
Os direitos fundamentais não surgem, não nascem todos de uma vez. A
configuração de direitos fundamentais assegurados nas cartas constitucionais atuais, por
exemplo na brasileira de 1988, foi precedida por um longo processo histórico de gradual
aparecimento, quiçá, conquista desses direitos.
Assim, é comum encontrar-se na doutrina a divisão dos direitos fundamentais em
gerações – primeira, segunda e terceira (também quarta) – segundo a ordem cronológica em
que passaram a ser declarados em cartas de direitos49. É encontrada também a classificação
em dimensões, para que a palavra geração não cause a (falsa) impressão de que houve uma
substituição gradativa da anterior pela seguinte, como se após a satisfatória concretização de
uma geração houvesse se iniciado a implementação de outra ao longo de um processo
histórico50.
A primeira geração ou dimensão de direitos está associada à tutela da
liberdade, significando possibilidade de o indivíduo opor-se ao próprio poder estatal,
contido em favor da liberdade (individual). PAULO BONAVIDES preleciona que

os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os


primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a
saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte
correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do
constitucionalismo do Ocidente. [...] Já se consolidaram em sua
projeção de universalidade formal, não havendo Constituição
digna desse nome que não os reconheça em toda a extensão.51

                                                            
48 BROCHADO, Mariá. Direito e Ética..., cit., p. 125.
49 Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992.
50 Cf. nesse sentido, a título meramente exemplificativo, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos

Direitos Fundamentais. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005 e SILVA, José Afonso da. Curso
de Direito Constitucional Positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. 
51 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 563.

 
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O indivíduo é, portanto, o titular desses direitos que estão ligados sobretudo


a um não-fazer do Estado. Permitem ao indivíduo atuarem perante o Estado, e terem
garantida sua liberdade.
Os direitos fundamentais de segunda dimensão são “os direitos sociais,
culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades,
introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social”52.
Comenta ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ que a

[...] segunda geração de direitos consolida a perspectiva de


tratamento privilegiado do hipossuficiente econômica e
socialmente, dando colorações distintas ao princípio da igualdade
[...]. A igualdade deixa seu aspecto meramente formal, assumindo
uma concepção material e inovadora, permitindo a consecução da
máxima: “Tratar-se desigualmente os desiguais na medida de sua
desigualdade”.53

É no conjunto dessa segunda dimensão que se encontram os direitos


sociais, cuja possibilidade efetivação via judiciário é tema deste trabalho. O direitos
sociais expressam o direito de igualdade, não simplesmente formal, perante a lei, mas
notadamente material. Assevera MARIÁ BROCHADO que

[...] os direitos sociais são garantias ao indivíduo como elemento


integrante da sociedade, [...] seriam direitos-fim, na medida em que
existem para garantir condições necessárias ao desenvolvimento
do indivíduo inserido numa sociedade, sob a égide de uma ordem
posta.54

                                                            
52 BONAVIDES, Paulo. cit., p. 564.
53 SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Processo constitucional e a efetividade dos direitos
fundamentais. In: SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de [org.]; SAMPAIO, José Adércio Leite [org.].
Hermenêutica e jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 209.
54 BROCHADO, Mariá. Direito e Ética..., cit., p. 127.

 
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Como será melhor desenvolvido no tópico seguinte, pressupõem atuação


estatal para sua concretização, sendo que, historicamente,

[...] passaram por um ciclo de baixa normatividade ou tiveram


eficácia duvidosa, em virtude de sua própria natureza de direitos
que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem
sempre resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial
de meios e recursos.
De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à
chamada esfera programática [...].55

Se fossem tidos apenas como normas programáticas, a justificativa para a


carência de efetividade encontraria guarida na própria baixa densidade normativa
peculiar a esse tipo de norma, além, é claro, da escassez de recursos. Continua PAULO
BONAVIDES, aduzindo que

atravessaram, a seguir uma crise de observância e execução, cujo


fim parece estar perto, dese que recentes Constituições, inclusive a
do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos
direitos fundamentais.56

Vale lembrar dos direitos de terceira dimensão. MARIÁ BROCHADO afirma


que “o direito à paz, ao meio ambiente saudável, à copropriedade do patrimônio
comum do gênero humano, entre outros, ditos de ‘solidariedade’, são denominados

                                                            
55 BONAVIDES, cit., p. 564. Vale lembrar a clássica divisão das normas realizada por José AFONSO
DA SILVA em: I – normas constitucionais de eficácia plena; II – normas constitucionais de eficácia
contida; III – normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida. Cf. AFONSO DA SILVA, José.
Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 1999, p.82-3: “Normas de eficácia
limitada são todas as que não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos
essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria,
uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão
do Estado”.
56 BONAVIDES, cit., p. 564.

 
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‘direitos de terceira geração’”57. ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ, reforça que a


terceira geração

ultrapassa as fronteiras da Nação e segue uma vocação


universalista irresistível. [...] As diferenças do homem passam a
merecer um tratamento destacado. É nesse marco que a
Constituição Brasileira tutela os direitos da pessoa portadora de
deficiência, os direitos dos idosos, e que os tribunais brasileiros
finalmente reconhecem os direitos dos homossexuais.58

Comenta ainda o autor que

a igualdade assume uma nova perspectiva, agora como igualdade


de oportunidades, de auto-realização e de participação na vida
política das esferas intercambiantes e interseccionadas das
autonomias pública e privada. [...] Por fim, alguns autores, dentre
os quais perfila-se, na doutrina nacional, Paulo BONAVIDES,
concebem a chegada de uma nova onda de direitos fundamentais
ligados ao fenômeno do progresso tecnológico e das novas e
complexas relações sociais de uma sociedade pluralista e
informatizada.59

5 A JUSTICIABILIDADE E O PAPEL DO JUDICIÁRIO

A nova interpretação constitucional, também denominada hermenêutica


constitucional, confere especial atenção aos princípios, conjugando-se com a efetivação
dos direitos sociais. “A abertura da interpretação” gera condições de efetivação de
princípios, ainda que programáticos, instituidores de direitos sociais. Evidentemente

                                                            
57 BROCHADO, Mariá. Direito e Ética..., cit., p. 129.
58 SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Processo constitucional e a efetividade..., cit., p. 210-11.
59 SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Processo constitucional e a efetividade..., cit., p. 211-12.

 
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que se trata de uma abertura que não dispensa o bojo de regras, mas considera os
princípios como normas, a orientar e capazes de embasar decisões judiciais.
Abertura que possibilita tutelas jurisdicionais ou justiciabilidade60 de direitos a
prestações positivas do Estado, em especial dos direitos sociais. É importante
remontar à ideia de supremacia da Constituição, que a torna vetor interpretativo de
todo ordenamento. Uma vez que o próprio texto constitucional traz a aplicabilidade
imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º,
parágrafo 1º), não podem ser os direitos sociais relegados à esfera programática, sob
argumentação de carência de recursos, tampouco pela pendência de instituição de
norma regulamentadora capaz de conferir eficácia a normas que os garantem.
ROBERT ALEXY sustenta que

a existência de um direito não pode depender exclusivamente de


sua justiciabilidade, não importa como ela seja definida; pelo
contrário, se um direito existe, ele é justiciável. O fato de os
direitos fundamentais sociais dependerem de uma configuração
infraconstitucional não é uma objeção decisiva, pois também
competências e procedimentos dependem desse tipo de regulação.
[...] Como demonstra a jurisprudência do Tribunal Constitucional
Federal, um tribunal constitucional não é, de modo algum,
impotente em face de um legislador omisso.61

Entretanto, encontram esses direitos contenção e restrição no sopesamento


frente a outros direitos fundamentais e à disponibilidade de recursos, o que não pode
significar escusa para implementação aquém das expectativas da sociedade e das
condições do Estado.

                                                            
60 Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 461-70; SILVA,
Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009,
p. 242-244.
61 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos fundamentais, cit., p. 514.

 
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Os direitos fundamentais possuem custos para sua efetivação. Requerem


recursos notadamente financeiros para que sejam concretizados. VIRGÍLIO AFONSO
DA SILVA ressalta que

[...] boa parte dos requisitos fáticos, institucionais e legais para


uma produção (quase) plena dos efeitos das liberdades públicas já
existe, enquanto as reais condições para o exercício dos direitos
sociais ainda têm que ser criadas. [...] Assim, enquanto boa parte
dos custos das liberdades públicas é aproveitado de maneira global
por todas elas – legislação, organização judiciária etc. –, cada
direito social exige uma prestação estatal exclusiva que só é
aproveitada na sua realização, mas não na realização de outros.62

O custo mais elevado dos direitos sociais justifica-se, então, por


demandarem uma ação do Estado – uma prestação positiva – e pela alocação
específica de recursos para cada direito, dificultando a soma de esforços. Prossegue
VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA:

[...] enquanto as liberdades públicas exigem, em geral, um não-fazer, os


direitos sociais exigem, também em geral, um fazer. O cerne das
liberdades públicas é, portanto, de fato, a exigência de uma
abstenção estatal. Enquanto direitos sociais exigem sobretudo
prestações estatais.63

Os direitos fundamentais de primeira geração possuem evidentemente


custos para sua implementação, o que se depreende da passagem acima. Contudo,
mostram-se expressivos os custos dos direitos sociais, fazendo-se necessário
considerá-los, o permite identificar um limite à efetivação. Todavia, há um mínimo
realizável, dito mínimo existencial, que “é aquilo que é possível realizar diante das

                                                            
62 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo:
Malheiros, 2009, p. 241.
63 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais..., cit., p. 243.

 
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condições fáticas e jurídicas, que, por sua vez, expressam a noção, utilizadas às vezes
de forma extremamente vaga, de reserva do possível”64.
O que se pretende aqui realçar é que existem custos para a concretização
sobretudo dos direitos sociais e que sua efetivação deve ser maximizada, inclusive
valendo-se da justiciabilidade, sem que isso signifique desmedida aplicação
principiológica que coloque em risco a separação dos poderes e a segurança jurídica.
Não há de prevalecer

[...] nem a simples inação do Poder Judiciário, [...] nem o ativismo


incontrolado. Ou seja: para dar ensejo a alguma intervenção do
Judiciário nesse âmbito, não basta que se verifique que uma ação
que poderia eventualmente realizar um direito fundamental não
tenha sido realizada, [...] é necessário, além dessa verificação, que
se analise se há, ou não há, fundamentação jurídico-constitucional
para a omissão.65

Quando o Estado, por meio do Executivo e Legislativo, faltar


injustificadamente no cumprimento de sua obrigação de prestação positiva, no
sentido de concretizar um direito social, a tutela jurisdicional desse direito torna-se
possível, como afirma PAULO BONAVIDES,

de tal sorte que os direitos fundamentais da segunda geração


tendem a tornar-se tão justiciáveis quanto os da primeira; pelo
menos esta é a regra que já não poderá ser descumprida ou ter sua
eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada
no caráter programático da norma.66

                                                            
64 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais..., cit., p. 205. [sic]
65 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais..., cit., p. 251.
66 BONAVIDES, cit., p. 565.

 
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Conclui VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA que a “dificuldade na justiciabilidade


dos direitos sociais reside, portanto, no fato de que é seu cerne que está em jogo, que
é a exigência de uma prestação positiva por parte do Estado”67.
Não é objeto, por se tratar de extensa e merecedora discussão própria, a
forma de tutela dos direitos socias pelo Judiciário, via ações constitucionais, por
recursos versando sobre matéria constitucional, por controle de políticas públicas.
Foi limitada a discussão na definição desses direitos e na inserção deles no rol de
direitos fundamentais, cujo conteúdo não é outro senão de direitos humanos, bem
como na justiciabilidade que possuem e os riscos de uma busca desenfreada por
efetivação, deturpando a própria separação de poderes.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1992.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2007.

BROCHADO FERREIRA, Mariá Aparecida. Direito e Ética: a eticidade do


Fenômeno Jurídico. São Paulo: Landy Editora, 2006.

                                                            
67 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais..., cit., p. 243.
 
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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 6. ed. São
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PEREZ LUÑO, Antonio E. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1998.

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DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA


ENQUANTO REALIDADE INDISSOCIÁVEL

Carla Patrícia Pereira Queiroz1

RESUMO

Partindo-se do marco teórico de autores como Norberto Bobbio, Robert


Dahl e Flávia Piovesan, do paradigma do Estado Democrático de Direito e, mais
recentemente, do Estado Constitucional, de uma análise histórica da questão, e sem
ignorar as eventuais divergências conceituais sobre os institutos em estudo, o
presente artigo tem por escopo a delimitação da interface entre a democracia e os
direitos humanos fundamentais.
Para que se verifiquem conclusões de maior solidez, um estudo dessa
estirpe não pode ser feito ignorando-se uma perspectiva internacional e histórica, de
modo a ampliar o horizonte de análise. Importa notar que isso é especialmente
verdadeiro levando-se em consideração que o histórico de democracia e respeito aos
direitos humanos fundamentais é, no Brasil, recentíssimo. E justamente em razão
disso a questão adquire tamanho relevo na agenda política, social e jurídica de nosso
país atualmente.
Erigem-se, assim, três propostas centrais: (i) apesar da idéia de democracia
não ser unívoca, certo é que -- ainda que haja sufrágio e alternância de poder -- não
se pode conceber democracia sem respeito aos direitos humanos fundamentais,
especialmente das minorias; (ii) em ambientes democráticos, observa-se
historicamente maior grau de respeito aos direitos fundamentais; (iii) a democracia é
ela própria um direito humano decorrente da autodeterminação dos povos.
Conclui-se que a democracia é indispensável para a real efetividade dos
direitos fundamentais e que o respeito a tais garantias tem por conseqüência o
aprimoramento da própria democracia, em uma dinâmica que revela que a
democracia e os direitos fundamentais são tão interdependentes que um é verdadeiro
pressuposto do outro.

                                                            
1 Mestre em Direito Internacional pela Università degli Studi di Torino, Itália; bacharel em Direito pela

UFMG.
 
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Palavras-Chave: Direitos Fundamentais, Democracia, Estado Constitucional.


Fundamental Rights, Democracy, Constitutional State.

SUMÁRIO

1. Introdução - 2. Histórico dos Direitos Humanos – 3. Direito Internacional dos


Direitos Humanos – 4. Os Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos Humanos face ao
Sistema Universal – 5. Etapas de afirmação dos direitos humanos fundamentais – 6.
Direitos humanos: universalismo e relativismo cultural – 7. Democracia moderna e
dos antigos – 8. Justificação e características da Democracia – 9. Democracia &
Direitos Humanos Fundamentais – 10. Considerações finais – 11. Referências
bibliográficas.

1. Introdução

Os direitos humanos fundamentais e a democracia possuem uma relação de


interdependência. Tendo em vista que o histórico de democracia e respeito aos
direito humanos no Brasil é bastante recente, a questão adquire grande relevo na
agenda política, social e jurídica de nosso país atualmente.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 disciplina os
direitos e garantias fundamentais sob uma perspectiva mais detalhada do que havia
sido feito até então em Constituições pretéritas no país. A Constituição de 1988
demarca o processo de redemocratização brasileiro, vez que rompe com o regime
militar autoritário que vigorava desde 1964. As liberdades fundamentais e as
instituições democráticas consolidadas na Constituição de 1988 foram responsáveis
por transformar a postura brasileira concernente aos direitos humanos fundamentais,
garantindo seu maior reconhecimento no plano interno, bem como as correlatas
obrigações na esfera internacional.

 
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Partindo destas premissas, o presente artigo fará uma análise em separado


sobre a democracia e os direitos humanos fundamentais e um estudo histórico e
internacional da questão, de modo a delimitar a interface entre os institutos.

2. Histórico dos Direitos Humanos

O conceito moderno de direitos humanos tem como pilar um conjunto de


normas que visa proteger o indivíduo contra a invasão arbitrária do Estado. Mediante
a assinatura do Tratado de Versalhes, em 1919, esse ideal foi redigido em um
documento e reconhecido pela comunidade internacional pela primeira vez. A partir
de então se inicia a busca pela efetividade dos direitos humanos ao redor do mundo.
A ampliação e transformação dos direitos humanos fundamentais no
decorrer da história dificulta a apresentação de uma definição sintética e precisa.
Ademais, vez que várias expressões são utilizadas para designá-los, esta dificuldade
torna-se ainda maior. Dentre estas expressões encontram-se: direitos naturais, direitos
humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades
fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais do homem.
Importante ressaltar que, conquanto a importância dos direitos humanos no
cenário internacional seja amplamente reconhecida, há certa confusão no tocante ao
significado de “direito” e o papel que desempenham no direito internacional. O
significado de “direito” não constitui entendimento pacífico, e a jurisprudência vem
conferindo um intenso debate ao tema. Entretanto, insta salientar que a dignidade
humana é considerada o conceito chave em relação a esses valores e o objetivo final
buscado pela comunidade mundial detentora de valores democráticos2.

                                                            
2 SHAW, Malcom N. International Law. 5 ed. Cambridge University Press. 2003.p. 247-249.
 
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O tratamento dispensado pelos Estados aos cidadãos dentro dos seus


limites territoriais foi, tradicionalmente, considerado questão de direito interno. Uma
exceção a essa visão foi o reconhecimento, no Direito Romano, das obrigações dos
Estados para os estrangeiros3.
No final do século XIX tratados foram celebrados por governos Europeus
com a finalidade de se proteger minorias étnicas no contexto da sucessão de Estados,
embora se possa afirmar que o único exemplo claro da internacionalização dos
direitos humanos, que remonta ao século XIX, se refere à escravidão. Países aboliram
a escravidão neste período e a sua proibição se tornou uma meta internacional, assim
como o tráfico de escravos se tornou ilegal.
Cabe ressaltar também que as doutrinas de intervenção humanitária, assim
como as regras humanitárias relativas à guerra possuem raízes que remontam aos
séculos XVII e XVIII. O termo intervenção humanitária foi usado, sobretudo durante o
século XIX, para conceituar as incursões militares realizadas por potências em
territórios alheios, à vista de tumultos internos, com o pretexto de proteger a vida e o
patrimônio de seus nacionais que ali se encontrassem4.
No início do século XX, com a criação da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), após a Primeira Guerra Mundial, passa-se a dar um maior
reconhecimento ao direito internacional dos direitos humanos. A OIT estabeleceu
princípios universais básicos relativos ao trabalho e ao bem-estar social; desde então
foram promulgadas mais de cem convenções. Após a Primeira Guerra Mundial
tratados foram celebrados promovendo a proteção às minorias nacionais, religiosas,
lingüísticas e étnicas na Europa Central e do Leste. A declaração da Liga das Nações
também criou um sistema através do qual, obrigatoriamente, as colônias formadas
sob o controle Alemão ou Turco deveriam ser protegidas.
                                                            
3 MALONE, Linda A. International Law. The Professor Series. Emmanuel, Aspen Law & Business. p. 116.
4 RESEK, Francisco. Direito Internacional Público. 10 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 219.
 
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A definição moderna de direitos humanos começa a se configurar a partir


dos resultados das reações mundiais ao Holocausto e às outras atrocidades cometidas
antes e durante a Segunda Guerra Mundial5. Este conceito moderno de direitos
humanos internacional foi a baliza para a formação da Organização das Nações
Unidas, em 1945, a qual tem como um de seus objetivos principais a promoção e a
proteção dos direitos humanos. A fundação das Nações Unidas marcou o início das
preocupações consistentes e organizadas sobre o tema dos direitos humanos dentro
da perspectiva do direito internacional público6.
A Carta das Nações Unidas tem por objetivo a eliminação de todos os tipos
de discriminação, promovendo direitos e liberdades iguais para todos os seres
humanos – independentemente de seu sexo, raça, língua ou religião:

ARTIGO 1 - Os propósitos das Nações unidas são:


(...)
3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os
problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou
humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção
de raça, sexo, língua ou religião;

A Declaração Universal dos Direitos do Homem7 foi aclamada em 10 de


Dezembro de 1948, consubstanciando-se como inspiração para as convenções
posteriores. A Declaração Universal dos Direitos Humanos proclamou direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais.
Os direitos humanos fundamentais abrangem o direito da autodeterminação
dos povos, direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, a proibição da

                                                            
5International Law. The Professor Series, op.cit., p. 117.
6Direito Internacional Público, op.cit., p. 218.
7 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal de Direitos do Homem. Paris,

Secretaria da Assembléia Geral da ONU, 1948


 
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escravidão, do genocídio e de crimes contra a humanidade, a proibição de


discriminação, a liberdade contra a tortura, os direitos dos refugiados, além dos
direitos recém emergidos e dos direitos fundamentais assim reconhecidos através do
costume pelo direito internacional. Assim, proclamou seu preâmbulo:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a


todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e
inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a
consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em
que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da
liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi
proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos
pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido,
como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,
Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações
amistosas entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na
Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e
no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens
e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e
melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a
desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito
universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a
observância desses direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e
liberdades é da mis alta importância para o pleno cumprimento
desse compromisso,
A Assembléia Geral proclama (...)

 
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Insta ressaltar que, conforme assevera Malone, “although the basic concept of
international human rights law is now firmly established, its relatively recent emergence results in a
body of law characterized by evolving ideas, institutions and procedures”8.

3. Direito Internacional dos Direitos Humanos

O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge como uma disciplina


autônoma ao direito internacional público a partir de uma necessidade de garantir
proteção e efetividade aos direitos humanos. A disciplina confere a utilização de
normas gerais tuteladoras de bens da vida primordiais e prevê instrumentos políticos
e jurídicos de implementação dos direitos da pessoa humana.9
O Direito Internacional dos Direitos Humanos consubstancia-se como um
direito subsidiário e suplementar ao direito nacional de forma a superar as
deficiências e omissões dos direitos internos. Em outras palavras, o Estado tem a
responsabilidade primária de proteção desses direitos e a comunidade internacional
tem a responsabilidade subsidiária.

                                                            
8 International Law. The Professor Series, op. cit., p. 117. Apesar dos conceitos do direito internacional dos
direitos humanos estarem hoje firmemente estabelecidos, sua fixação relativamente recente resulta em
um corpo normativo caracterizado por idéias, instituições e procedimentos ainda em evolução.
(tradução livre).
9 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. rev. ampl. e atual.

São Paulo: Saraiva, 2006. p. 153; Neste sentido ver também: MORAES, Alexandre de. Direitos
Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil,
doutrina e jurisprudência. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 17
 
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4. Os Sistemas Regionais de Proteção aos Direitos Humanos face ao Sistema


Universal

As ferramentas necessárias para a proteção dos direitos humanos podem ser


criadas em sistemas regionais10. Os sistemas regionais de proteção dos direitos
humanos são tão fortes e eficazes quanto se encontre a unidade da região em questão
e o seu compromisso com a democracia e com o direito dos indivíduos. Apesar do
Direito Internacional e, mais especificamente, dos direitos humanos não
necessariamente precisarem estar vinculados a sistemas políticos específicos, os
sistemas de direitos humanos só podem se desenvolver em democracias
representativas11.
A este respeito, preconiza o artigo 29, c da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos -- Normas de interpretação:

Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no


sentido de: c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes
ao ser humano ou que decorrem da forma democrática
representativa de governo;

Confirmando este pensamento, a observação Geral nº 3, do Comitê sobre


direitos econômicos, sociais e culturais, no par. 8 também dispõe:

8. The Committee notes that the undertaking "to take steps ... by
all appropriate means including particularly the adoption of
legislative measures" neither requires nor precludes any particular
form of government or economic system being used as the vehicle
for the steps in question, provided only that it is democratic
and that all human rights are thereby respected.

                                                            
10 BROWNLIE, Ian. Principles of public international law. 6 ed. rev. atual. New York: Oxford University
Press, 2003. p. 542.
11 BEDERMAN, David J. International Law Frameworks Foundation Press, 2001. p.99.

 
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Os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos e o sistema


universal não se sobrepõem. Os Estados que aderem ao sistema regional tendem a
ratificar os instrumentos internacionais e, de modo concreto, os dois sistemas são
mutuamente complementares.
Confirmando este pensamento, o preâmbulo da Convenção Americana de
Direitos Humanos12 dispõe que:

Reconhecendo que os direitos essenciais do homem não derivam


do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do
fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana,
razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza
convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece
o direito interno dos Estados americanos; Considerando que
esses princípios foram consagrados na Carta da Organização dos
Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, e que foram reafirmados e desenvolvidos em outros
instrumentos internacionais, tanto em âmbito mundial como
regional; Reiterando que, de acordo com a Declaração Universal
dos Direitos do Homem, só pode ser realizado o ideal do ser
humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas
condições que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos
econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e
políticos.

As Convenções regionais de direitos humanos podem descrever alguns


direitos humanos com uma maior especificidade e particularidade que os
instrumentos universais. Isso ocorre muito em função de um consenso maior poder
ser atingido no que se refere aos valores regionais, além destes documentos refletirem
as diferenças regionais no tocante a certos direitos.

                                                            
12 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Proteção dos Direitos

Humanos, de 22 de novembro de 1969. Secretaria Geral da OEA, San Jose da Costa Rica, 1969.
 
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5. Etapas de afirmação dos direitos humanos fundamentais

Ao longo de uma progressiva afirmação dos direitos humanos


fundamentais, Norberto Bobbio13 observa que várias etapas se passaram. A primeira
destas etapas foi responsável por transformar uma aspiração ideal secular em um
direito público subjetivo, ainda que restritivamente ao âmbito de um Estado. Trata-se
da constitucionalização dos direitos do homem através das Declarações de Direito
inseridas nas pioneiras constituições liberais e, posteriormente, nas constituições
liberais e democráticas surgidas nos séculos seguintes. Destarte, passam-se os direitos
humanos fundamentais, de direitos naturais, a direitos positivos.
A segunda etapa no processo de afirmação dos direitos humanos
fundamentais foi a sua progressiva extensão. A primeira maneira de extensão ocorreu no
âmbito dos direitos de liberdade, que foram ampliados. A segunda forma de extensão
ocorreu a partir do momento em que passou-se a reconhecer os direitos políticos
além dos civis, culminando com a concessão do sufrágio universal masculino e
feminino. A introdução dos direitos sociais marca a terceira fase no processo de
progressiva extensão dos direitos humanos.
A terceira etapa no processo de afirmação dos direitos humanos
fundamentais, que marca o debate da atualidade, é a universalização. Esta etapa teve
seu início a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, responsável por,
pioneiramente, transpassar a proteção do sistema interno para o sistema universal,
fazendo do indivíduo um sujeito de direito internacional com a possibilidade de
exigir a sua proteção contra o próprio Estado.

                                                            
13 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. Organizado por

BOVERO, Michelangelo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 481


 
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A quarta etapa no processo de afirmação dos direitos humanos


fundamentais seria, segundo Bobbio14, a especificação dos direitos. Esta etapa faz-se
necessária vez que algumas especificidades apontam para a necessidade de se prover
uma proteção mais especifica, quer sejam em relação ao sexo, às fases da vida, ou
ainda em relação às condições, normais ou excepcionais da existência humana.

6. Direitos humanos: universalismo e relativismo cultural

Os direitos humanos enquanto uma concepção universal sofrem resistências


dos adeptos do movimento do relativismo cultural. A divergência entre os
universalistas e os relativistas culturais se pauta no alcance das normas de direitos
humanos: para os primeiros tratar-se-iam de regras universais, enquanto para os
segundos as regras de direitos humanos seriam culturalmente relativas. O movimento
internacional dos direitos humanos flexibiliza as noções de soberania nacional e de
jurisdição doméstica, uma vez que consagra um parâmetro internacional mínimo, que
todos os Estados devem respeitar, no que concerne à proteção dos direitos
humanos15.
Os relativistas culturais entendem que a pretensão de universalidade dos
direitos humanos seria uma tentativa do mundo ocidental de universalizar suas
próprias regras, o que implicaria em uma destruição da diversidade cultural. Os
universalistas, por outro lado, sustentam que o relativismo cultural seria um
argumento utilizável para justificar graves casos de violações dos direitos humanos.
Ademais, argumentam os universalistas que se diversos Estados consentiram em
respeitar os direitos humanos mediante a opção por ratificar instrumentos
                                                            
14 Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, op. cit., p. 482
15 Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, op. cit., p. 142
 
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internacionais que os respeite, o fizeram por concordar em respeitar tai direitos, não
cabendo, portanto, isentar-se do controle da comunidade internacional na hipótese
de violação a estes direitos e, assim, no descumprimento de obrigações
internacionais16.
Em meio a tais argumentos surge um universalismo de confluência, que
demarcaria um universalismo de chegada e não como ponto de partida. O
universalismo de confluência representa a busca por um diálogo no sentido de
respeitar as culturas, mas chegando-se a um mínimo ético irredutível para proteger a
dignidade e os direitos universais. Destarte, protegem-se os direitos humanos
fundamentais, sem se olvidar das diversidades culturais de cada povo.

7. Democracia moderna e dos antigos

O termo demokratia surge por volta da transição do 5º ao 4º séculos A.C.,


depois que uma revolta em Atenas retirou uma dinastia de tiranos do poder.
Demokratia significava a regra (kratos) do povo (demos). Embora a democracia não
tenha estado presente durante toda a história desde o seu surgimento, o seu conceito
continuou a existir no cenário político. Entretanto, o conceito de democracia sofreu
alterações ao longo da história, adquirindo feições diversas.
A democracia dos antigos difere-se da democracia dos modernos tanto no
seu sentido descritivo quanto valorativo17. A democracia dos modernos é entendida
como uma democracia representativa, enquanto os antigos entendiam a democracia
como direta. Atualmente o voto que se considera relevante é aquele para eleger quem
irá decidir, e não para decidir. O processo de democratização ocorrido no século
                                                            
16 Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, op. cit., p. 145
17 Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, op. cit., p. 371
 
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XIX refere-se à ampliação progressiva do direito de eleger os representantes em


diversos países, ou então à extensão do processo eleitoral a partes do Estado, como a
Câmara alta, na qual os membros eram tradicionalmente nomeados pelo soberano18.
A democracia moderna se diferenciou da democracia antiga em razão das
alterações das condições históricas e também a partir das diferentes concepções
morais de mundo. A substituição da democracia direta pela representativa ocorreu
em decorrência de uma questão de fato, a transformação da cidade-Estado para os
grandes Estados, de vastos territórios. No que concerne ao juízo sobre a democracia
como uma forma de governo, a variação na interpretação deveu-se a uma questão de
princípios. A emissão de um juízo positivo sobre a democracia ocorreu na
modernidade, na medida em que a referência a um corpo coletivo como o demos foi
destituído de um caráter pejorativo que o acompanhava por uma longa tradição, que
o confundia com a “massa”, a “plebe”, inter alia.
O termo democracia hoje possui uma conotação notadamente positiva.
Regimes, mesmo que autocráticos, sempre gostam de serem chamados de
democráticos. Ademais, a partir da auto-definição dos regimes é possível afirmar que
não existem no mundo regimes não democráticos. Neste sentido, as ditaduras que
existem são explicadas pelos autocratas como um modo de restaurar, o mais
brevemente possível, a democracia.
Segundo Bobbio19, o juízo positivo sobre a democracia dos modernos
depende essencialmente do reconhecimento dos direitos do homem. Na democracia
moderna o soberano não é o povo – abstração falaciosa – mas sim todos os cidadãos,
incluindo-se todos seus interesses e individualismos. Não sem razão, afirma o mesmo
autor, que o fundamento das democracias modernas está nas Declarações dos
Direitos do Homem e do Cidadão, não pertencentes à democracia dos antigos.
                                                            
18 Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, op. cit., p. 372
19 Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos, op. cit., p. 378
 
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8. Justificação e características da Democracia

A democracia tem sido defendida como sendo o melhor sistema político a


ser adotado e, indiscutivelmente, apresenta características que comprovam a sua
importância. Nos dizeres de Bobbio20:

A justificação da democracia, ou seja, a principal razão que nos


permite defender a democracia como a melhor forma de governo
ou a menos ruim, está precisamente no pressuposto de que o
indivíduo singular, o indivíduo como pessoa moral e racional, é o
melhor juiz do seu próprio interesse. Qualquer outra forma de
governo é fundada no pressuposto contrário, vale dizer, no
pressuposto de que há alguns indivíduos superiores, ou por
nascimento, ou por educação, ou por méritos extraordinários, ou
porque mais afortunados, ou mesmo um único indivíduo, que são
capazes de julgar qual seja o bem geral da sociedade entendida
como um todo, melhor do que poderiam fazer os indivíduos
singularmente.

Robert Dahl21 apresenta um conjunto de vantajosas características da


democracia:

                                                            
20Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássico, op. cit., p. 424.
21 DAHL, Robert. Democracy. In: Encyclopædia Britannica, Encyclopædia Britannica 2006 Ultimate
Reference Suite DVD. (1) A democracia ajuda a prevenir governos de autocratas cruéis; (2)
Democracias representativas modernas não travam guerras umas com as outras; (3) Países com
governos democráticos tendem a ser mais prósperos que países com formas de governos não
democráticos; (4) A democracia tende a estimular o desenvolvimento humano – quantificados pela
saúde, educação, renda pessoal e outros indicadores – mais integralmente que outras formas de
governo. Outras características da democracia que também seriam consideradas desejáveis pela
maioria das pessoas, apesar de que para alguns elas seriam entendidas como menos importantes que
os itens (1) a (4) descritos acima são: (5) a democracia ajuda as pessoas a proteger seus interesses
fundamentais; (6) a democracia garante aos cidadãos direitos fundamentais que sistemas não
democráticos não garantem e não podem garantir; (7) a democracia assegura aos cidadãos uma maior
gama de liberdades pessoais que qualquer outra forma de governo Finalmente, existem algumas outras
características da democracia que algumas pessoas – os críticos da democracia – jamais considerariam
desejáveis, apesar de que a maioria das pessoas, após reflexão, as consideraria ao menos de algum
valor: (8) apenas a democracia concede ao povo oportunidade máxima de viver sob leis por ele
escolhidas (9) apenas a democracia concede ao povo oportunidade máxima de suportar
 
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(1) democracy helps to prevent rule by cruel and vicious autocrats;


(2) modern representative democracies do not fight wars with one
another;
(3) countries with democratic governments tend to be more
prosperous than countries with nondemocratic governments; and
(4) democracy tends to foster human development—as measured
by health, education, personal income, and other indicators—more
fully than other forms of government do.
Other features of democracy also would be considered desirable by
most people, though some would regard them as less important
than (1) through (4) above:
(5) democracy helps people to protect their fundamental interests;
(6) democracy guarantees its citizens fundamental rights that
nondemocratic systems do not, and cannot, grant; and
(7) democracy ensures its citizens a broader range of personal
freedoms than other forms of government do.
Finally, there are some features of democracy that some people—
the critics of democracy—would not consider desirable at all,
though most people, upon reflection, would regard them as at least
worthwhile:
(8) only democracy provides people with a maximum opportunity
to live under laws of their own choosing;
(9) only democracy provides people with a maximum opportunity
to take moral responsibility for their choices and decisions about
government policies; and
(10) only in a democracy can there be a relatively high level of
political equality.

Ainda segundo Robert Dahl22, a democracia representativa deve conter as


seguintes características:

                                                                                                                                                                   
responsabilidade moral pelas suas escolhas e decisões sobre políticas de governo (10) apenas em uma
democracia pode-se ter um nível relativamente alto de igualdade política. (tradução livre)
22 Democracy, op. cit. Eleições livres, justas e freqüentes – os cidadãos podem participar nas eleições

como eleitores ou candidatos (embora restrições por idade e domicílio possam ser impostas).
Liberdade de expressão – os cidadãos podem expressar-se publicamente em uma extensa variedade de
assuntos politicamente relevantes sem receio de punições. Fontes independentes de informação –
existem fontes de informação política que não estão sob o controle do governo, ou de um grupo
único, cujo direito de publicar ou disseminar informação é protegido por lei; além disso, todos os
cidadãos têm o direito de buscar e utilizar estas fontes de informação. Liberdade de associação – os
cidadãos possuem o direito de formar e participar de organizações políticas independentes, inclusive
partidos e grupos de interesse. (tradução livre)
 
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- Free, fair, and frequent elections. Citizens may participate in such


elections both as voters and as candidates (though age and
residence restrictions may be imposed).
- Freedom of expression. Citizens may express themselves publicly
on a broad range of politically relevant subjects without fear of
punishment. - Independent sources of information. There exist
sources of political information that are not under the control of
the government or any single group and whose right to publish or
otherwise disseminate information is protected by law; moreover,
all citizens are entitled to seek out and use such sources of
information.
- Freedom of association. Citizens have the right to form and to
participate in independent political organizations, including parties
and interest groups.

Diante das características erigidas e das vantagens apresentadas como


responsáveis por tornar a democracia o melhor sistema político possível, não restam
dúvidas sobre suas vantagens – inclusive pela ausência, até o presente momento, de
um sistema político que se mostre mais vantajoso do que o democrático.

9. Democracia & Direitos Humanos Fundamentais

A democracia e os direitos humanos fundamentais manifestam-se de forma


absolutamente interdependente. Norberto Bobbio23 afirma que:

Direitos do homem, democracia e paz são três momentos


necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do
homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem
democracia, não existem condições mínimas para a solução pacifica
dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos
cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são
reconhecidos alguns direitos fundamentais.

                                                            
23 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, 1992, Campus, p.1
 
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A visão ocidental de democracia combina, de forma indissociável, o


governo pelo povo e a limitação de poder. Em regimes democráticos o povo escolhe
os seus representantes que, como mandatários, tomarão as decisões sobre o futuro
do Estado24 -instando ressaltar que o poder delegado pelo povo não é absoluto.
Dentre as limitações concernentes aos poderes delegados pelo povo aos seus
representantes encontram-se a previsão dos direitos humanos fundamentais.25
Os Estados Democráticos entendem que uma de suas funções precípuas
seria a proteção aos direitos humanos fundamentais, alcançada mediante a
supremacia da vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade de direitos26.
Os Estados Democráticos de Direito reúnem os princípios do Estado Democrático e
do Estado de Direito, revelando um conceito novo que os supera, uma vez que altera
o status quo. O Estado Democrático de Direito possui a função basilar de superar as
desigualdades sociais e regionais, instaurando uma democracia que realize a justiça
social. Mais recentemente, a partir da visão do Estado Constitucionalista, o respeito
aos preceitos Constitucionais torna-se ainda mais forte e o respeito aos direitos
fundamentais contidos na Constituição uma de suas funções essenciais.
A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais representa a
plena positivação de direitos, vez que concebe aos cidadãos a possibilidade de exigir a
tutela perante o Poder Judiciário de forma a concretizar a democracia. É
imprescindível a proteção judicial para que os direitos humanos fundamentais

                                                            
24 Cabe ressaltar que atualmente a idéia de democracia meramente representativa é insuficiente para
explicar o fenômeno democrático. Isto é, em uma democracia moderna e participativa a participação
direta do cidadão na tomada das decisões políticas é cada vez mais premente. A este respeito ver:
GONÇALVES, Thomas de Oliveira. Democracia Participativa no Brasil, Estados Unidos e Suíça: Um Estudo
Histórico e Comparado. Belo Horizonte, 2006.
25 Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República

Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência, op. cit., p. 2


26 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p.

112.
 
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previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e no


ordenamento jurídico em geral possam ser efetivados.27

10. Considerações Finais

A democracia e os direitos humanos fundamentais encontram-se


relacionados de forma indissociável. Percebe-se que a perspectiva do Estado
Constitucional, a concepção de democracia na atualidade e os direitos humanos
fundamentais não são passíveis de serem entendidos senão como integrantes de uma
mesma realidade.
Interessante notar que os requisitos mínimos de qualquer democracia são
eles próprios direitos humanos fundamentais: princípio republicano, isonomia,
autodeterminação dos povos, informação, publicidade, inter alia. Com efeito, é
impossível se cogitar democracia em um ambiente em que não haja direitos
fundamentais
Por outro lado, estes mesmos direitos fundamentais, bem como outros, não
possuem condições de expansão ou sequer de estabilidade em um sistema que não
tenha por objeto indissociável sua preservação. Ademais, o regime que se mostra
mais vocacionado para a preservação dos direitos humanos é a democracia.
A partir de uma análise histórica e internacional sobre a democracia e os
direitos humanos erigem-se, assim, três conclusões centrais: (i) apesar da idéia de
democracia não ser unívoca, certo é que -- ainda que haja sufrágio e alternância de
poder -- não se pode conceber democracia sem respeito aos direitos humanos
fundamentais, especialmente das minorias; (ii) em ambientes democráticos, observa-
                                                            
27 Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República

Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência, op.cit., p.2


 
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se historicamente maior grau de respeito aos direitos fundamentais; (iii) a democracia


é ela própria um direito humano decorrente da autodeterminação dos povos.
Conclui-se que a democracia é indispensável para a real efetividade dos
direitos fundamentais e que o respeito a tais garantias tem por conseqüência o
aprimoramento da própria democracia, em uma dinâmica que revela que a
democracia e os direitos fundamentais são tão interdependentes que um é verdadeiro
pressuposto do outro.

11. Referências Bibliográficas

BEDERMAN, David J. International Law Frameworks. Nova York: Foundation Press,


2001. 284P.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Campus, 1992.

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos.
Organizado por BOVERO, Michelangelo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
717P.

BROWNLIE, Ian. Principles of public international law. 6. ed. rev. atual. ed. New York:
Oxford University Press, 2003. 742P.

DAHL, Robert. Democracy. In: Encyclopædia Britannica, Encyclopædia Britannica 2006


Ultimate Reference Suite DVD.

GONÇALVES, Thomas de Oliveira. Democracia Participativa no Brasil, Estados Unidos e


Suíça: Um Estudo Histórico e Comparado. Belo Horizonte, 2006. 140P.

 
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Edições Uberlândia e Belo Horizonte

MALONE, Linda A. International Law. The Professor Series. Nova York: Emmanuel,
Aspen Law & Business. 271P.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts.
1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 7.ed. São
Paulo: Atlas, 2006. 331P.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal de Direitos do


Homem. Paris, Secretaria da Assembléia Geral da ONU, 1948.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos


Humanos, de 22 de novembro de 1969.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 7. ed. rev.


ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. 516P.

RESEK, Francisco. Direito Internacional Público. 10 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva,
2005. 415P.

SHAW, Malcom N. International Law. 5. ed. Cambridge University Press. 2003.1288P.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo:
Malheiros, 2002. 878P.

 
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DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA: UMA VISÃO


CONTEMPORÂNEA

Anna Cristina Oliveira Cabral1


Ciro Antônio da Silva Resende2

RESUMO

Nas sociedades contemporâneas ocidentais, inexiste a possibilidade de desvincular a


ideia de democracia do conceito de direitos fundamentais. Isto significa que, em um
primeiro momento, seria impossível conceber uma sociedade democrática violadora
desses direitos. Todavia, tal compreensão acerca da realidade está sujeita à
problematização, pois é possível perceber, fazendo uma comparação com o conceito
marxista de ideologia, um caráter falso a partir do instante que se maquia o real.
Nesse contexto, a existência de uma sociedade democrática onde imperam
desigualdades sociais e preconceitos é questionada, visto que ocorre uma
incompatibilidade entre essas noções. Sendo assim, seria a democracia a melhor
forma de garantir os Direitos Fundamentais e a obrigatoriedade do voto um ato
perspicaz? Vale ressaltar que, a indevida eleição dos representantes da democracia
(no caso brasileiro) acarreta problemas na garantia dos direitos fundamentais. A título
de exemplo, o direito à educação, propício a um desenvolvimento completo de
qualquer sociedade, quando não garantido permite a muitos despreparados exercer
suas escolhas à medida que votam em pessoas incapacitadas e, assim, perpetuam a
ideia de uma democracia ineficaz e meramente ideológica.

Palavras-Chave: Democracia; direito fundamental; teoria crítica.


Keywords: Democracy; basic right; critical theory.

                                                            
1 Graduanda em Ciência do Estado e da Governança Social pela Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG) e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
annacristina_3@hotmail.com.
http://lattes.cnpq.br/6566579154920043. 
2 Graduando em Ciência do Estado e da Governança Social pela Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG). ciro.sr@hotmail.com. http://lattes.cnpq.br/2302278054590078 


 
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1 – DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Nas sociedades contemporâneas ocidentais, inexiste a possibilidade de


desvincular a ideia de democracia do conceito de direitos fundamentais. Essa
inerência foi muito disseminada durante a transição da ditadura militar para o período
democrático, quando segmentos diversos da sociedade brasileira, como jornalistas,
intelectuais, políticos e até mesmo cidadãos comuns, viam-se completamente
entusiasmados, perpetuando a ideia de que, enfim, todos os direitos do homem
passariam a ser respeitados e vigorariam. Os anos anteriores de desrespeito a
liberdade deveriam ficar para a história, como um período digno de esquecimento e,
ao mesmo tempo, de aprendizagem. O trecho a seguir permite-nos ter uma noção
acerca do sentimento e da expectativa que pairavam sobre a sociedade:

Os veículos de comunicação tiveram papel importante nesse


processo, já que mantiveram, por pelo menos 16 meses
ininterruptos, a nação informada acerca dos trabalhos da
Constituinte. Se a atuação da imprensa foi de fundamental
importância para a formação de uma opinião pública, não menos
relevante foi a possibilidade de participação popular na elaboração
do anteprojeto, mediante a entrega das chamadas “emendas
populares”3.

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de


outubro de 1988, define, em seu artigo 1º, nosso país como sendo um Estado
Democrático de Direito, possuindo como fundamentos a soberania, a cidadania, a
dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o
                                                            
3 ALMEIDA, Eneá de Stutz e; FRANCISCHETTO, Gilsene Passon Picoretti e SARANDY, Flávio

Marcus Silva. O contexto de inserção dos direitos fundamentais no Brasil após a


redemocratização. Reforma do Estado e direitos fundamentais no Brasil. Disponível em:
<http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/
recife/direitos_fundam_enea_de_stutz_e_outros.pdf>.
 
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pluralismo político. Vale ressaltar que uma leitura de caráter leigo desse artigo
proporciona um raciocínio inadequado, associando, desde já, democracia a direitos
fundamentais, o que impossibilita análises distintas de tais conceitos, dificultando,
assim, a busca por falhas em nosso sistema estatal.
Dessa forma, perpetuada a imagem do regime democrático como um
assegurador absoluto dos direitos fundamentais, torna-se difícil acreditar que existam
desigualdades, desrespeito a dignidade da pessoa humana, desemprego e ineficiência
dos sistemas de saúde e educação. Todavia, os fatos mencionados acima se fazem
presentes na realidade brasileira, tornando-se sua ocorrência extremamente
corriqueira. Assim, a esperança e o entusiasmo que antecederam a promulgação da
Constituição em vigência tornam-se meros ideais do passado. A realidade é
completamente distinta e a ela caberia perfeitamente o conceito de ideologia utilizado
por Karl Marx. Segundo ele, ideologia é a consciência falsa da realidade. Aplicando
esse conceito ao contexto em que vivemos, é perceptível que o sistema democrático,
tal como aplicado no Brasil, é falho com relação ao asseguramento dos direitos
fundamentais. Nessa instância, merecem destaque o desenvolvimento dos direitos
bem como seus aspectos históricos:

(...) os direitos do homem por mais fundamentais que sejam, são


direitos históricos, ou seja, nascidos de certas circunstâncias,
caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma
vez e nem de uma vez por todas4.

(...) ainda que fossem necessários os direitos não nascem todos de


uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem
quando o aumento do poder do homem – que acompanha
inevitavelmente o progresso técnico, isto é o progresso da
capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens
                                                            
4GORCZEVKI, Clovis e REIS, Jorge Renato dos. O Constitucionalismo Contemporâneo na
Construção de uma Sociedade Justa e Fraterna. A Concretização dos Direitos Fundamentais.
Porto Alegre: Norton Editor, 2007. Página 17.
 
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– ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo ou permite


novos remédios para as suas indigências: ameaças que são
enfrentadas através de demandas de delimitações de poder5.

Destacado o surgimento e o caráter mutável inerente aos direitos, humanos


e fundamentais, uma diferenciação faz-se requerida:

Direitos fundamentais são direitos humanos reconhecidos e


positivados pelo direito constitucional de um Estado, enquanto
direitos humanos guardam relação com documentos de ordem
internacional, são posicionamentos jurídicos-políticos que
reconhecem direitos e liberdade ao ser humano, independente de
sua vinculação a determinada constituição, portanto revelam um
caráter supranacional6.

Assim, sendo os direitos fundamentais aqueles positivados por determinada


constituição, torna-se impensável, mediante um Estado Democrático de Direito, uma
sociedade na qual imperam desigualdades e preconceitos. Difere dessa concepção,
um Estado apenas democrático, como ocorrera nos primórdios da democracia em
Atenas, no qual a existência de desigualdades entre cidadãos não era tolerável,
entretanto, preconceitos não foram combatidos, pois não feriam o ideal de
democracia na concepção dos cidadãos, respaldando-se esse nos conceitos de
liberdade e igualdade. De tal modo, com os olhos do presente, voltemo-los para o
passado:

(...) ficamos com a ligeira impressão de que a igualdade entre os


cidadãos de Atenas fora realmente alcançada. Porém, o conceito
de cidadania dos atenienses não englobava, de fato, a maioria da
população. Somente os homens livres, de pai e mãe ateniense,
maiores de 18 anos e nascidos na cidade eram considerados
cidadãos. As mulheres, escravos e estrangeiros não desfrutavam
                                                            
5Idem. Página 16.
6 GORCZEVKI, Clovis e REIS, Jorge Renato dos. O Constitucionalismo Contemporâneo na
Construção de uma Sociedade Justa e Fraterna. A Concretização dos Direitos Fundamentais.
Porto Alegre: Norton Editor, 2007. Página 16.
 
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de nenhum tipo de participação política. Dessa forma, a


democracia ateniense era excludente na medida em que somente
um décimo da população participava do mundo político
ateniense7.

2 – ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E


CONTEMPORANEIDADE

O Estado moderno consolidou-se, ao longo do século XIX, sob o formato


de Estado de Direito, o qual foi adotado, em grande parte dos países europeus, com
a fórmula de monarquia constitucional. O núcleo essencial das primeiras
constituições escritas é composto por normas de repartição e limitação de poder,
visando proteger os direitos fundamentais em face do Estado. Diante da
incorporação à discussão de ideias como fonte legítima de poder e representação
política, a noção de democracia começou a se desenvolver. Com seus avanços do
século XX, complementando–se termos de complexa equação, como quem decide
(fonte do poder), como decide (procedimento adequado) e o que pode ou não pode
ser decidido (conteúdo das obrigações positivas e negativas dos órgãos do poder), é
que se resulta o Estado democrático de direito.
Segundo Ferrajoli “a transformação do Estado absoluto em estado de
direito acontece justamente com a transformação do súdito em cidadão, é dizer um
sujeito titular de direitos já não apenas naturais, mas constitucionais em face do
estado, que a eles fica vinculado. O chamado contrato social, uma vez traduzido em
pacto constitucional, deixa de ser uma hipótese filosófico-política para converte-se
em um conjunto de normas positivas que obrigam entre si ao estado e ao cidadão,

                                                            
7 BRASIL ESCOLA. Democracia Ateniense. Disponível em:
<http://www.brasilescola.com/historiag/ democracia-ateniense.htm>.
 
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fazendo deles sujeitos com soberania reciprocamente limitada”8. Contudo, essa


doutrina alemã de Rechsstaat é bastante perigosa, visto que é flexível suficientemente
para abarcar Estados autoritários e mesmos totalitários, os quais estabelecem ou
seguem algum tipo de legalidade.
Com relação à democracia, pode-se considerá-la em uma dimensão
predominantemente formal, incluindo a ideia de governo da maioria e de respeito aos
direitos individuais. A democracia, em sentido material, dá alma ao Estado
Democrático de Direito, ultrapassando os limites conceituais de um governo da
maioria ao passo que não se discutem, aqui, apenas as perspectivas das minorias, mas
também de grupos com menor expressão política, como é o caso de pobres e
mulheres.
O constitucionalismo democrático, ao final da primeira década do século
XXI, ainda se debate com as complexidades da conciliação entre soberania popular e
direitos fundamentais; entre governo da maioria e vida digna e em liberdade para
todos, em um ambiente de justiça, pluralismo e diversidade. Continua a ser este,
ainda, um bom projeto para o milênio.

3 – DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva


de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando
nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que asseguram a pessoa para tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garanti as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos

                                                            
8 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. 4. Ed. Madrid:Trotta, 2000.
 
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destinos da própria existência e da vida em comunhão com os


demais seres humanos9.

A dignidade da pessoa humana para Sarlet, como percebemos pela citação


acima, está intrinsecamente ligada ao conceito de direitos fundamentais10. Sendo
assim, qualquer comportamento abusivo (ato de cunho degradante e desumano), não
pode ser resguardado pelo direito. Visto que caso o fosse estaria atingindo
diretamente o Estado Democrático de Direito em seu princípio mais caro que é o da
dignidade da pessoa humana.
Outro aspecto importante a ser ressaltado nesse tópico está na relação
interessante a respeito Estado democrático de direitos e os valores nele contido.
Afinal esses valores nele presente são potencialmente conflitantes na medida em que
vivemos em uma sociedade plural e democrática onde se prega o respeito à
diversidade ideológica em que os interesses de todos os grupos sociais devem ser
tratados com igual consideração. Por isso, que se torna tão importante a utilização
adequada das teorias dos princípios, da ponderação de valores e da argumentação,
tão discutidas na contemporaneidade11.
Finalizando, a democracia é a melhor forma de governo, na medida em que
garante o pluralismo, o respeito ao próximo, a liberdade de expressão. Enfim, a
democracia é a única forma de governo que garante, a priori, às pessoas os direitos
fundamentais e preserva em seu fundamento a idéia de dignidade da pessoa humana.
Afinal, em um governo opressor não há lugar para uma vida digna.
                                                            
9 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988.2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2002,p.62).
10 Os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à idéia de dignidade da pessoa

humana e de limitação de poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado


Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o
ordenamento jurídico.
11 V. Barroso, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo - os conceitos

fundamentais e a construção de um novo modelo. 1.ed. Saraiva,2009; Bonavites, Paulo. Curso de


direito constitucional. 23. ed. Malheiros Editores,2008.
 
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4 – REFORMA POLÍTICA E OBRIGATORIEDADE DO VOTO

Constatada a situação em que se encontra a democracia brasileira, na qual,


contraditoriamente, imperam desigualdades sociais e o não asseguramento de uma
série de direitos fundamentais, coloca-se em pauta uma reformulação de nossa
estrutura política. A priori, destacaremos a obrigatoriedade do voto, buscando sua
justificativa ao passo que questionar-se-á sua ocorrência em “terras tupiniquins”. Para
principiar esta discussão expandamos nossos olhares aos demais países, verificando
em quais a escolha também se faz obrigatória. E nesse intuito, a reportagem de Hugo
Pasarello Luna, publicada na revista online OpiniónSurJoven em fevereiro de 2008, é de
imensa valia:
(...) existem 32 países que mantêm o voto obrigatório - vários
deles centrais -, total ou parcialmente, a nível nacional ou regional.
Eles são: a Argentina, a Austrália, a Áustria (Tyro)l e a Áustria
(Vorarlberg), a Bélgica, a Bolívia, o Brasil, o Chile, a Costa Rica, o Chipre,
a Republica Dominicana, o Equador, o Egito, as ilhas Fidji, a França (só
Senado), o Gabão, a Grécia, a Guatemala, Honduras, a Itália,
Liechtenstein, Luxemburgo, o México, Nauru, a Holanda, o Paraguai, o
Perú, as Filipinas, Singapura, a Suíça (Schaffhausen), a Tailândia, a
Turquia e o Uruguai. Nos países centrais com voto obrigatório e
com uma tradição democrática mais antiga, os números de
participação são mais altos do que os mencionados na América
Latina. Por exemplo, na Austrália em 2004 votou 94.3% e desde
1946 mantêm aproximadamente essa porcentagem. Na Bélgica a
situação é semelhante: 91,1% dos eleitores sufragaram em 2007.

Contata-se, dessa maneira, que outros países juntam-se ao Brasil nesta


opção de tornar obrigatória a escolha eleitoral. E fato inquietante diz respeito a
ausência das nações mais desenvolvidas do mundo nesta listagem. Evita-se, aqui,
qualquer tipo de comparação, pois cada país possui características peculiares, fato o
qual possibilita que um sistema obtenha sucesso em alguns lugares ao passo que em
outros não.

 
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Que o "dever" cívico de votar, consagrado na tradição autoritária


brasileira, seja um dos responsáveis pela diminuição do adequado
respeito pelo cidadão que quer votar, será o primeiro argumento
favorável à abolição dessa obrigação jurídica. Mas é pouco, porque
se pode dizê-lo mera suposição ou lucubração mal-intencionada.
Será preciso vencer todos os argumentos favoráveis à obrigação
de votar, inclusive o mais poderoso deles, o da inércia de uma
suposta tradição. O Congresso Constituinte de 1988, conquista
democrática que buscou dar ao país um arcabouço jurídico que
revogasse o então chamado "entulho autoritário" do regime
militar, lamentavelmente deixou de acolher no texto constitucional
o progresso democrático-liberal do voto facultativo. Não que não
houvesse constituintes para formular a proposta do voto
facultativo, mas porque optou a maioria pela tradição
constitucional, autoritária, consagrando no texto a obrigatoriedade
do voto12.

O tema, extremamente polêmico, é discutido em diversas instâncias da


sociedade. Anteriormente a qualquer conclusão, definindo, assim, nossa visão acerca
da obrigatoriedade, buscaremos algumas perspectivas visando descortinar o
pensamento do brasileiro mediante a tão polêmica discussão. Há treze anos, no dia
03 de abril de 1997, o Senador José Fogaça (PMDB-RS), durante reunião da
comissão que discutia a obrigatoriedade do voto, afirmou, com imensa presteza:

"(...) Sempre fui adepto do voto obrigatório e mudei radicalmente a


minha posição após o plebiscito que consolidou o presidencialismo no
Brasil. Percebi que 95% das pessoas que iam para os locais de votação
não tinham clara idéia do que estavam votando. Percebi também que
quando um cidadão não tem idéia do que está votando ele prefere
manter o conhecido, mesmo que ruim, a votar no desconhecido. O voto
obrigatório é uma tendência ao retrocesso, ao atraso, porque podemos
obrigar um cidadão a votar, mas não há quem o obrigue a se deter, a
estudar, a analisar, a avaliar um assunto complexo, como é o sistema de
governo, por exemplo. Certas pessoas se interessam e outras não. Aliás, é
um direito institucional do cidadão não se interessar por determinado
                                                            
12 AYDOS, Marco Aurélio Dutra. Da miserável obrigação de votar. Disponível em:
<http://www2.prsc.mpf.gov.br/conteudo/servicos/biblioteca/producao-cientifica-
dosprocuradores/documentos/ obrigacao-de-votar.pdf>.
 
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assunto. (...) entendo que o voto facultativo tem outra qualidade que
deveria ser ressaltada: quando houver voto facultativo, estados,
municípios e o próprio país poderão fazer com muito maior liberalidade,
em número muito maior, plebiscitos e referendos. Há países, como a
Suíça, que fazem plebiscito para tudo - para criar um imposto há
plebiscito, para entrar ou não na União Econômica Européia há
plebiscito, ou seja, há plebiscito para tudo na Suíça -, mas o voto não é
obrigatório. Então se pode fazer até dois plebiscitos em um dia porque
votarão as pessoas interessadas, as pessoas que estudaram o assunto. Da
mesma forma, a experiência vale nos Estados Unidos e em outros países
europeus. De modo que o voto facultativo vai aperfeiçoar essa
democracia participativa popular, vai permitir que ela seja mais ampla,
mais abrangente do que é hoje."

O gráfico abaixo apresenta o resultado da pesquisa “Perfil do eleitor


brasileiro: voto, eleições e corrupção eleitoral”, divulgada pela Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) e o Instituto Vox Populi no dia 12 de agosto de 2008,
mediante escuta de eleitores de todo território nacional:

 
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Diante das respostas dadas por todos os indagados pela pesquisa, observa-
se que a maioria (51%) possui convicção da extrema importância inerente ao voto e,
assim, permaneceriam executando tão brilhante ato cívico. Ater-nos-emos a esta
parcela de entrevistados, visto que os 49% restantes aproximam-se ou já se decidiram
pela opção de não votar. Tem-se a ideia de que são necessários os votos da maioria
absoluta dos votantes para que o processo eleitoral seja legitimado. Contrapondo-se a
isso, questiona-se a conduta dessa parcela que não faz tanta questão do voto: teriam
real consciência de seu poder, da importância que possui um mero clique no
“confirma” das urnas? É evidente que um grande número de eleitores não se importa
com tal alto, escolhendo candidatos por razões completamente descabidas. Para se
permitir uma ligeira noção acerca do que foi anteriormente citado, candidatos são
escolhidos devido à aparência física, aos eventos realizados durante a campanha
eleitoral (showmícios, por exemplo, quando esses eram permitidos) bem como
outros fatores tão inimagináveis quanto aos já transcritos. O questionamento, enfim,
torna-se o seguinte: a obrigação à qual se vêem submetidos os eleitores não prejudica
a escolha de nossos governantes? A resposta, simples diante das diversas
circunstâncias aqui já trabalhadas, é positiva. O prejuízo é imenso. Fosse o voto
facultativo, exerceriam a cidadania aqueles que realmente estivessem interessados
com o processo eleitoral.
A perspectiva que aqui se tem, refere-se ao trecho, transcrito na
sequência, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:

CAPÍTULO IV
DOS DIREITOS POLÍTICOS
Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e
pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da
lei, mediante:
I - plebiscito;
II - referendo;

 
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III - iniciativa popular.


§ 1º - O alistamento eleitoral e o voto são:
I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos;
II - facultativos para:
a) os analfabetos;
b) os maiores de setenta anos;
c) os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

Verifica-se, acima, mediante ao título do capítulo IV, que se trata de direitos


políticos. Chegamos ao ponto no qual se faz necessário indagar acerca da
obrigatoriedade do voto, classificada, então, com um direito. Em sua primeira
acepção para o verbo obrigar, o Dicionário Aurélio fornece-nos o seguinte: “pôr na
obrigação, no dever”. Lançando mão, ou nem isso devido à obviedade que se
exprimi, da significação supracitada, chocar-nos-emos com a dicotomia direito-dever
inerente ao voto. É evidente que a possibilidade de escolher nossos representantes
foi uma gigantesca conquista. O voto, para quem se preocupa com a democracia e o
futuro de sua nação, é sinônimo de poder, é ação que os permite escolher, participar.
Adiante, o termo participação merecerá atenção maior. Todavia, caminhando rumo à
compreensão de questões tão polêmicas, vislumbramos o voto facultativo diante de
sua capacidade de conceder a todos este direito político. Não restringe ninguém. Sua
fundamentação encontra-se na possibilidade da parcela desinteressada, a qual pouca
noção possui da importância relativa a um processo eleitoral, optar por manter-se
distante das urnas. Benefícios diversos poderão ser verificados. A título de exemplo,
analisemos a estreita relação existente entre eleitor despreparado e a eleição de
representantes incapacitados. Aquele, pouco preocupado com a vida pública e
desconhecedor da importância inerente ao processo eleitoral, ao votar, opta por um
candidato qualquer por motivos impensados, como já se discutiu anteriormente, ou
por alguns favores, “trocados”, benefícios diversos. Eleger-se-á, portanto, na imensa
maioria das vezes, aquele que mais puder oferecer ou possuir características

 
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marcantes e atrativas ao eleitorado. O resultado desse processo obrigatório não pode


ser outro se não a inexistência de políticas públicas coerentes com a realidade social,
capazes de atenuar ou sanar uma diversidade de problemas que agridem setores,
como a saúde e a educação. E falta de investimento em educação é sinônimo de não
preparação de eleitores aderentes à causa pública, permitindo, assim, a perpetuação
de escolhas equivocadas e medidas governamentais, ainda mais.
Focar na questão da obrigatoriedade do voto é apenas uma forma de avaliar
a situação política brasileira. Não se encontra no dia da eleição a única forma de se
participar. Tal verbo, não simplesmente pode, mas deve ser conjugado durante os
pleitos eleitorais bem como ao longo de todo o mandato, fiscalizando, cobrando,
enfim, exercendo a cidadania. Nesse sentido, é digno de elucidação um contraponto
entre as democracias hoje existente e a que se verificou na Grécia. Nossa democracia
é denominada representativa, ou seja, através do voto, obrigatório ou não,
escolhemos aqueles que por nós decidirão. Entre os gregos, a democracia era
participativa, isto é, todos os cidadãos (conceito bem limitado) discutiam, na Ágora
(praça principal na constituição da polis), as decisões acerca da cidade-estado. Em
momento algum, faz-se, aqui, apologia à instalação de uma democracia participativa
(como verificada no passado grego) em território brasileiro, visto a concomitância de
diversos fatores, como extensão territorial, densidade demográfica e outros. Todavia,
tal discussão não é plausível. Quer-se, nessa instância, lançar mão de um conceito
grego totalmente adequado à contemporaneidade:

Do latim idiota (l a ), originado do grego antigo ἴδιώτης (idhiótis)


( g r c ) , "um cidadão privado, individual", derivado de ἴδιος (ídhios)
( g r c ) , "privado". Usado depreciativamente na antiga Atenas para se

referir a quem se apartasse da vida pública13.

                                                            
13 WIKCIONÁRIO. Idiota. Disponível em: <http://pt.wiktionary.org/wiki/idiota>.
 
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A eficácia é um atributo associado às normas e consiste na


consequencia jurídica que deve resultar de sua observância,
podendo ser exigida judicialmente se necessário.

Dessa forma, já desenvolvido o nosso posicionamento acerca da


obrigatoriedade inerente ao voto, é preciso salientar que este é apenas um tópico de
uma complexa Reforma Política, a qual se faz extremamente necessária para o
sistema político brasileiro. A título de citação, discute-se, nesse sentido, a
implementação de lista fechada ou flexível, a democratização interna dos partidos, o
financiamento exclusivamente público de campanha e muitos outros.

5 – A BUSCA POR EFICÁCIA NO REGIME DEMOCRÁTICO


BRASILEIRO

A eficácia é um atributo associado às normas e consiste na


consequencia jurídica que deve resultar de sua observância,
podendo ser exigida judicialmente se necessário14.

Partindo desse conceito de eficácia podemos responder ao último dos


questionamentos aqui vigentes: Como podemos fazer para tornar o regime
Democrático de Direito realmente eficaz? A resposta é relativamente simples,
entretanto, a aplicação torna-se complexa. A princípio, é necessário que ocorra a
reaproximação entre Direito e a Ética (conceito esse, a nosso ver, que complementa
o Direito e por isso não pode ser retirado dos alicerces do ordenamento jurídico,
correndo o risco, caso isso ocorra, de presenciarmos barbáries, como presenciamos
na segunda guerra mundial).

                                                            
14 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios: o princípio da dignidade da

pessoa humana,2002,p.59 e s.
 
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A reaproximação entre Direito e Ética tem como conseqüência a


centralidade dos direitos fundamentais, os quais ganham tamanha força no
ordenamento jurídico, que se tornam soberanos e por isso não podem ser revogados
por uma regra a posteriori e nem poderão interpor leis que os violem. Todavia, esses
fatos já ocorrem no ordenamento jurídico brasileiro. O que não ocorreu e que ainda
buscamos é a efetivação destes direitos fundamentais, na medida em que esses
direitos deixem de estarem presentes apenas nas reflexões filosóficas e passem a
pertencer à prática jurisprudencial, produzindo efeitos positivos sobre a realidade.
Nessa perspectiva, o Direito permitiria a superação das desigualdades, a emancipação
das pessoas, a tolerância política, a transformações das estruturas e o avanço social.
Em suma, garantiria a efetividade do Estado Democrático de Direito.

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Eneá de Stutz e; FRANCISCHETTO, Gilsene Passon Picoretti e


SARANDY, Flávio Marcus Silva. O contexto de inserção dos direitos
fundamentais no Brasil após a redemocratização. Reforma do Estado e direitos
fundamentais no Brasil. Disponível em:
<http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/direitos_fundam_enea_d
e_stutz_e_outros.pdf>. Acesso em: 18 de abril de 2010.

AYDOS, Marco Aurélio Dutra. Da miserável obrigação de votar. Disponível em:


<http://www2.prsc.mpf.gov.br/conteudo/servicos/biblioteca/producao-cientifica-
dosprocurado res/documentos/obrigacao-de-votar.pdf>. Acesso em: 19 de abril de
2010.

 
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BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo - os


conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. 1º ed. Saraiva,
2009.

BONAVITES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23º ed. Malheiros Editores,


2008.

BRASIL ESCOLA. Democracia Ateniense. Disponível em:


<http://www.brasilescola.com/historiag/democracia-ateniense.htm>. Acesso em:
18 de abril de 2010.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. Capítulo I. Páginas 17-24.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. 4. Ed. Madrid:Trotta, 2000.

GORCZEVKI, Clovis e REIS, Jorge Renato dos. O Constitucionalismo


Contemporâneo na Construção de uma Sociedade Justa e Fraterna. A
Concretização dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Norton Editor, 2007.
Página 16-17.

JUSBRASIL. Pesquisa revela que 47% dos eleitores não


acreditam em promessas de campanha. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/notic ias/93469/pesquisa-revela-que-47-dos-
eleitores-nao-acreditam-em-promessasdecampanha>. Acesso em: 23 de abril de
2010.

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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LUNA, Hugo Pasarello. A obrigação de escolher. Disponível em:


<http://opinionsur.org.ar/joven/A-obrigacao-de-escolher>. Acesso em: 20 de abril
de 2010.

PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do


Brasil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiC3%A7ao.htm>.
Acesso em: 21 de abril de 2010.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos


fundamentais na Constituição Federal de 1988.2.ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002,p.62).

WIKCIONÁRIO. Idiota. Disponível em: <http://pt.wiktionary.org/wiki/idiota>.


Acesso em: 18 de abril de 2010.

 
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LIBERDADE E SEGURANÇA: UM CONFLITO ENTRE DIREITOS


FUNDAMENTAIS?

João Andrade Neto1

RESUMO

O texto apresentado adota como campo de estudo a hermenêutica constitucional,


mais especificamente, a dos direitos fundamentais. Objetivou-se demonstrar que,
embora a noção de antinomia entre os valores/princípios de liberdade e de segurança
seja muito difundida, senão predominante – como se houvesse situações em que a
liberdade do indivíduo tem de ceder à concretização da segurança da comunidade –,
o conteúdo das duas normas é coincidente no ordenamento jurídico positivo.
Adotando como marco teórico a concepção de reciprocidade entre direitos e deveres,
pôde-se comprovar que ambos os princípios são correspectivos, e a suposta
antinomia entre eles é apenas aparente. Isso porque, na Modernidade, a liberdade se
realizou historicamente com os direitos humanos, e a segurança, com a positivação
desses direitos, e a atribuição de sua proteção à ordem jurídica estatal. Portanto, cabe
ao intérprete reconhecer aos dois princípios, simultaneamente, a incidência e a
eficácia. Qualquer solução diversa se mostra falaciosa e temerária, pois pressupõe que
o aplicador do Direito pode, arbitrariamente, negar validade a uma norma
constitucional. Se quem o faz é uma autoridade judiciária, ela extrapola as atribuições
que lhe competem, e comete assim abuso de poder no exercício da jurisdição.

Palavras-Chave: Liberdade, Segurança, Direitos humanos; Liberty, Security,


Fundamental Rights.

                                                            
1Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa “Poder e Cidadania no Estado Democrático de Direito”;
Analista judiciário – área judiciária do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG).
 
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SUMÁRIO

1 Introdução: Um problema hermenêutico contemporâneo; 2 A breve genealogia de


uma dualidade; 3 Liberdade e segurança como valores; 4 Liberdade ou liberdades
(direitos fundamentais); 5 Liberdade e segurança como princípios; 6 Segurança ou
positivação (juridicidade, ordem e institucionalização); 7 Conclusão: Uma antinomia
entre princípios? 8 Referências Bibliográficas.

1 Um problema hermenêutico contemporâneo

No período compreendido entre 23:00 e 06:00 horas, nenhuma


criança ou adolescente, desacompanhada de seus pais,
responsáveis legais (tutor, o curador ou o guardião) ou
acompanhantes (demais ascendentes ou colaterais maiores até o
terceiro grau - avós, irmãos e tios - comprovado
documentalmente o parentesco), poderá permanecer em
logradouros públicos, espaços comunitários, bailes, festas,
promoções dançantes, shows, boates e congêneres. (PATOS DE
MINAS, 2009).

O texto citado acima reproduz com fidelidade o art. 15 da Portaria n.º 3/09,
de autoria do Juiz da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Patos de Minas,
Joamar Gomes Vieira Nunes. O magistrado pretendeu com ela disciplinar o acesso
de crianças e adolescentes daquele município a locais públicos. Entre os motivos
oferecidos para tanto, numa série de considerações que precedem a parte
verdadeiramente normativa do ato administrativo, chama atenção o argumento de
que
[...] o direito da criança e do adolescente de ir, vir e permanecer
não significa que podem locomover-se nos logradouros públicos
não são absolutos, porque sua condição jurídica impõe
limitações à sua liberdade de locomoção visando a proteção

 
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integral (artigo. 16 da Lei 8.069/90); (PATOS DE MINAS, 2009,


grifo nosso).

Outra das considerações da portaria trata da competência que o juiz entende


possuir para estabelecer tal norma:

[...] nos termos do artigo 149 da Lei 8.069/90 (Estatuto da


Criança e do Adolescente), compete ao Juiz da Infância e da
Juventude disciplinar, de forma abrangente e uniforme, através de
portaria ou autorizar mediante alvará, a entrada e a permanência
de adolescente em bailes ou promoções dançantes, boates ou
congêneres, inclusive estabelecimentos onde se comercializa
bebida alcoólica; (PATOS DE MINAS, 2009).

A lei mencionada como fundamento da decisão, o Estatuto da Criança e do


Adolescente, dispõe, no art. 15, que “A criança e o adolescente têm direito à
liberdade [...]” (BRASIL. Lei 8.069..., 1990), e, no inciso I do art. 16, que esse direito
compreende, entre outros, o de “[...] ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços
comunitários, ressalvadas as restrições legais [...].” (BRASIL. Lei 8.069..., 1990, grifo
nosso). Os limites a que a regra legal se refere estão nela mesma previstos, nos
incisos I e II do art. 149. As alíneas ali listadas enumeram os locais em que a entrada
e a permanência dos menores podem ser restringidas e os eventos nos quais a
participação deles pode ser limitada. Os dispositivos definem, portanto, as condições
negativas para o exercício da competência que os juízes encarregados das Varas de
Infância e Juventude possuem para expedir portarias e alvarás:

Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de


portaria, ou autorizar, mediante alvará:
I - a entrada e permanência de criança ou adolescente,
desacompanhado dos pais ou responsável, em:
a) estádio, ginásio e campo desportivo;
b) bailes ou promoções dançantes;

 
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c) boate ou congêneres;
d) casa que explore comercialmente diversões eletrônicas;
e) estúdios cinematográficos, de teatro, rádio e televisão.
II - a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza. (BRASIL. Lei 8.069, 1990).

É forçoso perceber que não consta do rol mencionado acima a


possibilidade de vedação da permanência de crianças e adolescentes em todos os
“logradouros públicos”. Nesse sentido, não decorre da lei a autorização para impor
tal proibição, como feito pelo art. 15 da Portaria n.º 3/09. Ademais, cumpre
reconhecer que, ao editar a norma infralegal proibitiva, o juiz responsável não
enfrentou a importante restrição contida no §2º do art. 149 do Estatuto: “As medidas
adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso,
vedadas as determinações de caráter geral.” (BRASIL. Lei 8.069..., 1990, grifo
nosso).
Tais argumentos foram suscitados no Procedimento de Controle
Administrativo (PCA) n.º 2009.10.00.0023514, em que o Ministério Público do
Estado de Minas Gerais (MPMG) requereu ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a
“desconstituição” da citada portaria. No julgamento, por maioria, o plenário do CNJ
declarou ilegal o ato. Na decisão, prevaleceu o voto divergente apresentado pelo
Conselheiro Jorge Hélio Chaves de Oliveira. De acordo com ele, ”Em nome de uma
proteção à criança e ao adolescente, alguns juízes estão extrapolando suas funções.”
(BRASIL, 2009).
Sem considerar qual das interpretações do texto da Lei n.º 8.069/90 é
melhor, parece-nos curioso que várias autoridades estatais, em diversas cidades
brasileiras, tenham adotado solução semelhante à do juiz Joamar Nunes para conter
o problema da violência praticada contra crianças e adolescentes ou por eles. A
consulta ao banco de dados do jornal “Folha de São Paulo” mostra que, em pelo
 
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menos 21 cidades de oito estados – Bahia, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul,
Paraíba, Paraná, São Paulo e Santa Catarina –, impuseram-se restrições semelhantes à
liberdade de ir e vir de crianças e adolescentes, o que a imprensa vem denominando
“toque de recolher” (21 CIDADES..., 2009). Em todos esses casos, “Por meio de
uma medida judicial, uma lei aprovada pela Câmara de Vereadores ou uma decisão
do Executivo municipal, adolescentes e jovens dessas localidades são proibidos de
sair de suas casas no período noturno.” (MIRAGLIA, 2009).
No que interessa a este trabalho, a justificativa para tais atos normativos se
ampara num discurso que enxerga na restrição da liberdade uma estratégia de
segurança. “Manter os jovens longe das ruas evitaria que consumissem bebidas
alcoólicas, se envolvessem em episódios violentos ou com o universo infracional e
reduziria, assim, o número de crimes nessas cidades.” (MIRAGLIA, 2009). Ou seja,
por trás das decisões que restringem o direito de ir e vir de indivíduos, e dos motivos
mais imediatos e concretos alegados para sustentá-las, subjaz a premissa da existência
de um conflito entre segurança e liberdade, da incompatibilidade lógica de que ambos
os valores se realizem simultaneamente.
No âmbito da opinião pública, esse confronto adquire a forma de um
dualismo entre expectativas de liberdade e de segurança. Mas, tão logo o dualismo
ultrapassa essa esfera e ganha respaldo no debate teórico, ele assume, para muitos, a
imagem de uma antinomia jurídica, que, a depender de como resolvida pelo
intérprete, impacta a hermenêutica dos dispositivos constitucionais positivados e a
aplicação de tais normas pelo Judiciário.
É amplamente disseminada entre juristas a ideia de que, nos dizeres de
Bobbio (1999, p. 90), “[...] a garantia da liberdade causa dano, comumente, à
segurança, e a garantia da segurança tende a restringir a liberdade; em conseqüência,
um ordenamento inspirado em ambos os valores se diz que descansa sobre
princípios antagônicos [...].” Todavia, contrariando o pensamento do doutrinador
 
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italiano, pretendemos demonstrar que a antinomia entre liberdade e segurança, se


existe, é apenas aparente, baseada na radicalização da definição desses conceitos, sem
bases históricas ou racionais que a sustentem.

2 A breve genealogia de uma dualidade

Conforme enunciado no Preâmbulo da Constituição de 1988 (CRF/88), a


liberdade e a segurança são “valores supremos” que a República Federativa do Brasil
está destinada a assegurar à sociedade. No caput do art. 5º da CRF/88, os dois termos
são novamente mencionados, desta vez, como “direito” à liberdade e à segurança,
cuja inviolabilidade é garantida aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País.
(BRASIL, 1988).
A redação do art. 5º quase repete a do art. 153 da Emenda Constitucional
(EMC) n.º 1/69, que assegurava a “inviolabilidade dos direitos concernentes” à
liberdade e à segurança (BRASIL, 1969). No entanto, a ordem constitucional vigente
difere da anterior num aspecto essencial. A CRF/88 não trouxe em seu texto
determinação equivalente à do art. 86 da EMC 1/69, segundo o qual, “Tôda pessoa,
natural ou jurídica, é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em
lei.” (BRASIL, 1969). Ao contrário, consagrou a segurança, no art. 144, “[...] dever do
Estado, direito e responsabilidade de todos [...]” (BRASIL, 1988, grifo nosso). Tal
mudança foi por muitos entendida como uma opção da comunidade política
constituída em 1988 pela liberdade, em detrimento da segurança.
Contudo, se tal concepção pôde se gabar de notória maioria, principalmente
nos anos seguintes à promulgação do novo texto, não o pode mais. Nas duas últimas
décadas, assistiu-se, no Brasil, a um notável aumento de 130% na taxa de homicídios
(INSTITUTO..., 2004). Tal crescimento, acompanhado da elevação dos índices de
 
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ocorrência de outros tipos de crimes, produziu considerável ampliação da percepção


da violência pelos cidadãos e repercutiu na opinião pública. Segundo a “Síntese de
Indicadores Sociais 2000”, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), a proporção de mortes violentas entre jovens de 15 a 19 anos
saltou de 63% para 68% no País, entre 1992 e 1998 (INSTITUTO..., 2004). Ainda de
acordo com a autarquia,

[...] entre 1980 e 2000, foram vítimas de homicídios 598.367


pessoas; dois terços delas (369.101) na década de 1990. [...].
Enquanto nos anos 80 os acidentes de trânsito eram a principal
causa externa dos óbitos masculinos, na década de 90, os
homicídios assumiram a liderança. Entre 1980 e 2000, a taxa de
mortalidade por homicídios para ambos os sexos no Brasil
aumentou 130% (de 11,7 para 27 por 100 mil habitantes). [...] De
1980 a 2000, as taxas masculinas de mortalidade por homicídios
saltaram de 21,2 para 49,7. Entre 1991 e 2000, [...] aumentaram
em 95% as taxas de mortalidade por homicídios com uso de
armas de fogo, entre homens de 15 a 24 anos. [...] Em números
absolutos, em 1991, foram vítimas de homicídio 5.220 homens
nessa faixa de idade, com uso de armas de fogo, e outros 12.233
foram mortos da mesma forma, em 2000 [...]. (INSTITUTO...,
2004).

Os números, porém, podem ser maiores que os divulgados. Uma pesquisa


realizada pelo Ministério da Justiça em quatro capitais brasileiras revelou a existência
de sub-registro nas ocorrências policiais em todas elas (BRASIL. MINISTÉRIO...,
2009).
De qualquer maneira, em razão dos altos índices de criminalidade (real ou
percebida) das cidades brasileiras, os órgãos públicos envolvidos na elaboração das
leis criminais e na aplicação desses dispositivos têm sido, especialmente desde a
década de 90, pressionados a aumentar o rigor da atuação estatal de repressão a
delitos. Nesse contexto, o espaço de diálogo entre as instituições oficiais e a
 
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sociedade civil, não raramente mediado pelos veículos de comunicação, assumiu a


forma de uma arena em que os interlocutores podem, sem muita dificuldade, ser
agrupados em polos opostos, de acordo com duas perspectivas distintas: uma, da
liberdade; outra, da segurança.
Os que se posicionam a favor da segurança alegam que, diante da crescente
ameaça a bens jurídicos tradicionalmente tutelados pelo Direito, como a vida, a
propriedade e a integridade física dos indivíduos, o Estado deve agir para garantir a
paz social, mesmo que ao custo de eventuais restrições da liberdade. A insegurança
pública, elevada a motivo fundamental, é por eles considerada justificativa suficiente
para a imposição forçada da ordem e a eventual limitação de direitos individuais.
Pois, como acertadamente denuncia Höffe (2001), encarados como vantagens
atribuídas a cada ser humano singularmente considerado, ou confundidos com
privilégios individuais egoístas, os direitos humanos devem ser sacrificados em favor
de uma eventual vantagem maior da totalidade social. Não obstante o autor faça tal
afirmação num contexto de crítica antiutilitarista, a ideia se aplica sem ressalvas à
argumentação sobre o conflito entre liberdade e segurança – o que sugere o caráter
utilitarista das manifestações pró-segurança que defendem o sacrifício de direitos
fundamentais. Não é acidental, portanto, o frequente apelo ao “interesse público” e à
“preservação da ordem pública” por quem advoga a necessidade de reforma –
mesmo que pontual – de liberdades juridicamente garantidas.
Nos casos em que movimentos pró-segurança são bem-sucedidos, a revisão
ocorre tanto na atividade jurígena, tipicamente confiada aos órgãos do Poder
Legislativo, quanto na de interpretação e aplicação das normas, a cargo, em cada
caso, dos Poderes Executivo e Judiciário e do Ministério Público, órgão auxiliar da
Justiça. De qualquer forma, o ativismo revisionista não se dá sem protestos dos que
se posicionam pela liberdade, em geral, agentes políticos favoráveis à ampliação, ou,
ao menos, à manutenção das garantias institucionais conquistadas desde a CRF/88.
 
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Um ato normativo federal que ilustra o cenário de polarização dos


intérpretes acerca do dualismo entre segurança e liberdade é a Lei n.º 8.072/90.
Produzida sob forte pressão popular e midiática, a Lei dos Crimes Hediondos
representa a positivação do ideal de segurança pública do período que se inicia nos
anos 90 e se estende até hodiernamente. A redação original do §1º de seu art. 2º
previa, para os delitos ali arrolados, “Os crimes hediondos, a prática da tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo [...]”, o cumprimento
integral da pena em regime fechado, sem possibilidade de progressão (BRASIL. Lei
8.072..., 1990). Todavia, a aplicação do artigo suscitou o ajuizamento de inúmeros
habeas corpus que lhe arguíam a inconstitucionalidade.
O Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a questão e, em 2003, editou,
em resposta, a Súmula 698, segundo a qual, “Não se estende aos demais crimes
hediondos a admissibilidade de progressão no Regime de execução da pena [...].”
(BRASIL, 2003). Em 2006, entretanto, o STF reviu o entendimento anterior e, sob
argumento de que “Conflita com a garantia da individualização [...] a imposição,
mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado [...]”,
declarou inconstitucional o §1º do art. 2º da Lei 8.072/90 (BRASIL, 2006). A decisão
levou o Poder Legislativo a elaborar a Lei n.º 11.464/07, que deu nova redação ao
§1º do art. 2º da Lei n.º 8.072/90 e lhe apôs o §2º, de modo que os crimes hediondos
passaram a ter regime próprio de progressão, e a pena a eles prevista, a ser cumprida
apenas inicialmente em regime fechado (BRASIL, 2007).
A fim de superar as limitações da discussão pública não qualificada, que se
presta a dar voz a interesses nem sempre bem definidos da mídia e de outros agentes
econômicos, e comumente resvala para o sensacionalismo, faz-se necessária uma
reflexão mais profunda: de que se fala quando se apela à liberdade ou à segurança?

 
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3 Liberdade e segurança como valores

A construção jurídica da noção de liberdade e segurança antecede em muito


o constitucionalismo moderno. Pensando a história como uma progressiva, mas
lenta, realização de ideias fundamentais – seja na acepção hegeliana de espírito do
povo (HEGEL, 2004), seja na liberal, de moralidade pública da comunidade política
(DWORKIN, 2007) –, os dois valores podem ser apontados já na formação do
direito penal consuetudinário, que protegia, mediante sanções, direitos fundamentais
como corpo, vida, honra e propriedade (HÖFFE, 2001). A proibição de matar, por
exemplo, foi historicamente reconhecida em praticamente todas as comunidades
políticas, e, sem grandes dificuldades, podemos identificá-la como um princípio que
concretiza simultânea e reciprocamente os valores da liberdade e da segurança
(HÖFFE, 2001).
Não ignoramos que a denominação valor seja controversa. Vários autores a
usam para se referir a princípios, sem distinção entre os termos. No entanto, parece
pertinente observar que não se trata de mero detalhe semântico. A opção por
diferenciar ou não princípios e valores reflete necessariamente uma concepção acerca
do que é o Direito e de como o ordenamento jurídico se relaciona com a moral
pública (ou ética). Se se admite que ambas as esferas são idênticas, não há sentido em
fazer a diferenciação. Neste texto, sem enfrentar diretamente a questão da identidade
ou não do Direito e da moralidade política, fazemos uso do termo “valor” como
sinônimo de diretriz ética, da qual advêm “exigências”, e de “princípio” como diretriz
ética qualificada, porque o conjunto de intérpretes confere-lhe um status diferenciado
na interpretação: o status normativo. Ou seja, presume-se ou declara-se que um
determinado valor integra o Direito daquela comunidade como norma jurídica
(princípio), da qual advêm obrigações, proibições ou permissões positivas ou
negativas.
 
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Independentemente da nomenclatura utilizada, o intérprete que se


proponha a debruçar sobre o sentido da liberdade e da segurança, não como
abstrações vazias, mas como ideias historicamente realizadas, deparar-se-á com a
noção de reciprocidade (BOBBIO, 1999) ou correspectividade (MELLO, 2004). O
fato de que a todo dever corresponde um direito (BOBBIO, 1999; MELLO, 2004)
coloca sob nova luz a comuníssima observação de que o problema da moral foi
originalmente considerado mais do ângulo da sociedade que da perspectiva do
indivíduo. Para Bobbio (2004), por exemplo, os primeiros ordenamentos,
exemplificados pelo Código de Hamurabi, pela Lei das Doze Tábuas e pelos Dez
Mandamentos, eram essencialmente proibitivos, porque elaborados a partir da
perspectiva da segurança. Entretanto, disso não decorre, como quer o jurista italiano,
que o dever, não, o direito, seja “[...] a figura deôntica originária [...]” (BOBBIO,
2004, p.52). Nem que a função primária dessas antigas leis fosse “[...] a de comprimir,
não a de liberar; a de restringir, não a de ampliar, os espaços de liberdade [...]”
(BOBBIO, 2004, p. 53).
Ora, comprimir ou restringir um tipo de liberdade fora, desde o princípio,
um meio de garantir liberdades. Logo, embora as positivações penais originárias
certamente não tenham chegado a consumar a liberdade, não se pode dizer que a
desprezaram. A grande mudança acontecida no ocidente a partir da concepção cristã
da vida, que, secularizada, se converteu na doutrina do individualismo – que abrange
tanto o individualismo ético, “[...] segundo o qual todo indivíduo é uma pessoa moral
[...]” (BOBBIO, 2004, p. 57), quanto o ontológico, que pressupõe a “[...] autonomia
de cada indivíduo com relação a todos os outros [...]” e a “[...] igual dignidade de cada
um deles [...]” (BOBBIO, 2004, p. 57) –, não foi a descoberta ou a invenção da
liberdade – pois ela não era desconhecida –, mas a elevação desse valor a um patamar
diverso do que gozava até então.

 
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Na verdade, o notável acontecimento da Idade Moderna foi o


reconhecimento expresso do valor da liberdade, antes implícito. Primeiro, junto da
segurança, ela consta dos Bill of Rights americanos, a começar pela Carta da Virgínia,
de 1776, que a admite como um dos direitos inerentes (unalienable Rights), necessário à
efetivação da segurança (Safety) e da felicidade (Happinness) (ESTADOS UNIDOS…,
1776). Depois, em 1789, ambos são anunciados pela Assembléia Nacional francesa
na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “A finalidade de toda
associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.
Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”
(FRANÇA, 1789, tradução nossa).

4 Liberdade ou liberdades (direitos humanos)

Publicamente reconhecido no século XVIII, o valor da liberdade encontrou


uma definição no art. 4º da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”,
segundo o qual,

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o


próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem
não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros
membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites
apenas podem ser determinados pela lei. (FERREIRA FILHO,
1978).

Embora decorra de uma tradição política que remete pelo menos a


Montesquieu (1979), tal enunciado é insatisfatório. Como reconhece Isaiah Berlin
(2002, p. 229), o significado da liberdade é “[...] tão poroso que não parece capaz de
resistir a muitas das interpretações.” Trata-se, sem dúvida, de um termo que admite
 
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concepções variadas, muitas delas divergentes. Teorias sobre o sentido histórico do


conceito são incessantemente realizadas, e, entre as mais lembradas, está a do
mencionado autor britânico.
Para Berlin (2002), há duas acepções centrais do sentido político de
liberdade. Uma, positiva, está implicada na “[...] resposta à pergunta: ‘O que ou quem
é a fonte de controle ou interferência capaz de determinar que alguém faça ou seja
uma coisa em vez de outra?’” (BERLIN, 2002, p. 229). Aqui se trata da liberdade
como autodomínio, ou liberdade dos antigos (BERLIN, 2002). A outra acepção,
negativa, responde à questão: “Qual é a área em que o sujeito [...] é ou deve ter
permissão de fazer ou ser o que é capaz de fazer ou ser, sem a interferência de outras
pessoas?” (BERLIN, 2002, p. 229). Trata-se da liberdade dos modernos, do direito
de agir sem se submeter à coerção, ou seja, sem “[...] interferência deliberada de
outros seres humanos [...]” (BERLIN, 2002, p. 230).
É amplamente difundida a crença de que, a partir desta noção moderna de
esfera individual de não interferência (BERLIN, 2002), a ideia abstrata de liberdade
“[...] se foi progressivamente determinando em liberdades singulares e concretas (de
consciência, de opinião, de imprensa, de reunião, de associação), numa progressão
ininterrupta que prossegue até hoje [...]” (BOBBIO, 2004, p. 58). O processo de
determinação ocorreu porque, em face de uma situação histórica concreta, o ideal
político (valor) teve de fornecer respostas realizáveis, sob pena de ser abandonado. A
liberdade de religião, por exemplo, só se torna uma questão em virtude de uma
mudança de condições históricas: “[...] a Roma pré-cristã permitia aos povos
vencidos exercer seus próprios cultos; o cristianismo que se tornara religião de estado
suprime esta tolerância.” (HÖFFE, 2001, p. 355).
Nesse sentido, para Bobbio (2004), da luta contra o dogmatismo das Igrejas
e o autoritarismo dos Estados, provieram as primeiras exigências concretas de
liberdade:
 
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[...] durante as guerras de religião, surgiu a exigência da liberdade


de consciência contra toda forma de imposição de uma crença
[...]; e [...] da época que vai da Revolução Inglesa à Norte-
Americana e à Francesa, houve a demanda de liberdades civis
contra toda forma de despotismo. (BOBBIO, 2004, p. 68-69).

Vários autores negam a outrora disseminada crença de que as primeiras


declarações de direitos ocorreram na Grã-Bretanha pré-moderna. Para Morange
(2004, p. 5), “O reconhecimento das liberdades era lá [...] muito estreitamente
vinculado à história do povo inglês e a seu empirismo.” O autor francês afirma que,
embora as liberdades na Inglaterra se encontrem “[...] enunciadas em um certo
número de textos famosos: a Magna Carta de 1215, a Petição de Direitos de 1627, o
Bill of Rights (ato de direitos) de 1688 e o Ato de Sucessão de 1701 [...]”
(MORANGE, 2004, p. 5), esses documentos “[...] não têm e não pretendem ter
nenhum caráter transcendente.” (MORANGE, 2004, p. 5). Não se trata de “[...]
grandes declarações de princípios [...]” (MORANGE, 2004, p. 5), mas de “[...]
procedimentos jurídicos, permitindo preservar tal direito ou tal liberdade.”
(MORANGE, 2004, p. 5). No mesmo sentido, com ênfase no fato de serem
privilégios medievais concedidos a certas classes pelo soberano, manifestam-se Sarlet
(2009, p. 41) e Höffe (2001, p. 417).
Fato incontroverso é o de que, a fim de pôr limites aos poderes opressivos
supraindividuais, estatais ou não, a comunidade política formulou exigências de
garantia de esferas individuais de liberdade, preservadas em relação aos outros
homens e às organizações políticas (BOBBIO, 2004, p. 70). Assim, a liberdade, por
meio de um processo de determinação desencadeado em virtude de condições
históricas específicas, deu origem a direitos humanos ou liberdades públicas,
exigências concretas negativas dirigidas contra todos – também contra o Estado.

 
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Mas tal conclusão não admite uma concepção inicial de liberdade como a
fornecida por Berlin (2002, p. 229), da qual aparentemente decorre.
Ora, na medida em que se fala em direitos humanos subjetivos, em
pretensões ou exigências “[...] que qualquer homem pode reivindicar [...]” (HÖFFE,
2001, p. 354), pressupõe-se a existência de uma relação social coercitiva entre aquele
que reivindica o direito e os demais, que se veem obrigados a respeitá-lo. Dito de
outro modo, na medida que um indivíduo faz valer sua liberdade, ele impõe a cada
um dos membros da comunidade política uma renúncia ao exercício da liberdade
própria. Pois, como acertadamente percebe Höffe (2001), um direito humano é, em
si, um mandato para exercício da coerção contra outros homens. Aqui, porém, não se
deve entender coerção como sinônimo de opressão, agressão, ou

[...] inclinação natural ou produzida por situações sociais de se


voltar contra seus semelhantes ou feri-los, ofendê-los ou
prejudicá-los de qualquer outra maneira. ‘Coerção’ significa muito
antes, de modo formal e neutro, a restrição à liberdade por parte
dos outros, portanto, de fora. (HÖFFE, 2001 p. 361).

Encarada dessa maneira, a ideia de direitos humanos é incompatível com


uma concepção licenciosa e não intervencionista de liberdade – como a de Berlin
(2002). Porque a liberdade, entendida como direito de agir sem se submeter à coerção
(BERLIN, 2002), em vez de ampliada pelos direitos humanos que visam a
concretizá-la, seria por eles restringida, eis que implicam o reconhecimento a cada um
de mandatos individuais para exercício da coerção contra todos (HÖFFE, 2001).
Embora muitos pensadores ignorem tal incoerência, ela não passou
despercebida a Dworkin (2007). Para ele, parece “absurdo” supor que haja “[...]
qualquer direito geral à liberdade [...]” (DWORKIN, 2007, p. 411), pelo menos do
modo como ela “[...] tem sido tradicionalmente concebida por seus defensores [...]”
(DWORKIN, 2007, p. 411), como a ausência de restrições impostas “[...] ao que um
 
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homem poderia fazer, caso desejasse.” (DWORKIN, 2007, p. 411). O autor propõe,
então, uma distinção entre duas concepções do termo. A primeira, da liberdade como
licença, equivale ao sentido moderno, negativo, do conceito. Diz respeito ao “[...]
grau em que uma pessoa está livre das restrições sociais ou jurídicas para fazer o que
tenha vontade [...]” (DWORKIN, 2007, p. 404). A segunda, da liberdade como
independência, refere-se ao “[...] status de uma pessoa como independente e igual e
não como subserviente.” (DWORKIN, 2007, p. 404).
Uma vez que “Toda lei prescritiva diminui uma liberdade como licença,
antes disponível para os cidadãos [...]” (DWORKIN, 2007, p. 405), a compreensão
da liberdade nesses termos só pode ser conciliada com os direitos humanos se
justificada por algum “valor contrastável”, como a segurança, que leva em
consideração, não, os direitos do próprio indivíduo, mas os interesses dos demais e
as metas da coletividade. Mas, se se supõe que as liberdades individuais são
justamente “[...] salvaguardas contra a intervenção [...]” (BERLIN, 2002, p. 231), não
se poderia admitir que elas fossem restringidas por um valor estranho interveniente,
externo a elas, e residente no outro – quiçá, como querem alguns, não em um
indivíduo, mas numa coletividade. O próprio Berlin (2002, p. 232) reconhece ser “[...]
uma confusão de valores dizer que, embora minha liberdade ‘liberal’ individual seja
jogada fora, algum outro tipo de liberdade [...] é aumentada.” Logo, se direitos
humanos nascem como pretensões de liberdade do indivíduo, eles não podem ser
justificados com base em outro valor que não a própria liberdade individual.
Como “Ainda assim continua verdadeiro que a liberdade de alguns deve ser
às vezes restringida para assegurar a liberdade dos outros [...]“ (BERLIN, 2002, p.
232), o impasse só se resolve com o abandono da concepção de liberdade como
licença.
Admitindo-se a liberdade como não submissão, pode-se considerar que as
leis proibitivas do homicídio, por exemplo, não ameaçam a independência dos
 
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cidadãos em geral. Antes, são necessárias para protegê-la. Nesse sentido, consideram-
se perdas de liberdade apenas “[...] situações nas quais os homens fossem [forem]
impedidos de fazer alguma coisa que [...] devem [poder] fazer” (DWORKIN, 2007,
p. 412), ou seja, restrições “[...] a atos particulares considerados especialmente
importantes [...]” (DWORKIN, 2007, p. 277), como as liberdades individuais. A
independência é ameaçada por decisões políticas que negam a qualquer indivíduo
respeito. Pois pressupõe a pretensão de ser tratado com igual consideração por todos
(DWORKIN, 2007, p. 405), e exige, “[...] contra a exploração e a humilhação, contra
o abuso da autoridade pública [...]” (BERLIN, 2002, p. 232), o reconhecimento de
liberdades concretas a cada membro da comunidade.
A distinção proposta por Dworkin (2007) remete a Montesquieu (1979, p.
148), cuja concepção de liberdade política está exposta na sentença: “Uma
constituição pode ser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas que
a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite.” O pensador francês, no entanto,
chamou de “independência” (MONTESQUIEU, 1979, p. 148) – ou, noutras
passagens, de “liberdade filosófica” (MONTESQUIEU, 1979, p. 170) – o que aqui se
denominou liberdade como licença, e de “liberdade política” (MONTESQUIEU,
1979, p. 147-148) – ou apenas “liberdade” (MONTESQUIEU, 1979, p. 147-148) –, a
liberdade como independência. Apenas nesses termos se pode compreender a
seguinte passagem, do Livro XI de “Do espírito das Leis”:

É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer;


mas a liberdade política não consiste nisso. Num Estado, isto é,
numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir
senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser
constrangido a fazer o que não se deve desejar.
Deve-se sempre ter em mente o que é independência e o que é
liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis
permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem,

 
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não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal


poder. (MONTESQUIEU, 1979, p. 170).

Essa concepção concilia a liberdade com as restrições impostas pela lei.


Permite entender que toda prescrição coletiva constrange a vontade dos indivíduos
sobre os quais incide, sem que por isso eles se tornem necessariamente menos livres.
Mas a constatação de que as regras jurídicas não constituem restrições inevitáveis à
liberdade política dos homens não dá ao Estado licença para legislar a esmo.
Dworkin (2007) não admite, como poderia decorrer da radicalização da teoria de
Montesquieu (1979), que os indivíduos sejam constrangidos por qualquer ato político
da comunidade. Ao contrário, a concepção de independência que propõe aprofunda
a relação da liberdade com a dignidade da pessoa humana, o que gera consequências
inafastáveis:

O governo deve tratar aqueles a quem governa com consideração,


isto é, como seres humanos capazes de sofrimento e de
frustração, e com respeito, isto é, como seres humanos capazes de
formar concepções inteligentes sobre o modo como suas vidas
devem ser vividas, e de agir de acordo com elas. (DWORKIN,
2007, p. 419).

Podemos encontrar uma definição de “respeito” compatível com as


afirmações de Dworkin (2007) em Hannah Arendt (2008, p. 254-255), que o compara
com a “[...] philia politike aristotélica, [...] uma espécie de ‘amizade’ sem intimidade ou
proximidade; [...] uma espécie de consideração pela pessoa, nutrida à distância que o
espaço do mundo coloca entre nós [...].” Para a autora, essa consideração “[...]
independe de qualidades que possamos admirar ou de realizações que possamos ter
em alta conta.” (ARENDT, 2008, p. 255). Ao contrário, “[...] se dirige
exclusivamente à pessoa [...]” (ARENDT, 2008, p. 255), a quem ela é, não, aos
atributos que possui (ou o que é).
 
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5 Liberdade e segurança como princípios

Conforme se esclarecera, os direitos do homem são exigências morais


históricas, surgidas na Idade Moderna a partir das lutas contra o Estado absoluto.
Aqui, o uso do termo “exigências” para se referir aos direitos humanos não é
acidental. Corresponde à diferenciação feita por Bobbio (2004) entre direitos morais
ou em sentido fraco (moral rights) e positivos ou em sentido forte (legal rights).
Segundo o jurista italiano, a distinção entre direitos naturais e positivos
predomina na Europa continental; a entre moral rights e legal rights, na Inglaterra e nos
Estados Unidos. Todavia, a segunda contraposição, de direitos morais a legais, ocupa
na comunidade anglófona o mesmo espaço que a primeira, de direitos naturais a
positivos, desempenha na dos países de tradição romano-germânica. (BOBBIO,
2004). A diferença é que,

Na distinção entre moral rights e legal rights, o critério é o


fundamento; na distinção entre ‘direitos naturais’ e ‘direitos
positivos’, é a origem. Mas, em todos os quatro casos, a palavra
‘direito’ faz referência a um sistema normativo, seja ele chamado
de moral ou natural, jurídico ou positivo. (BOBBIO, 2004, p. 7).

O importante é perceber que “Uma coisa é um direito [em sentido forte];


outra, a promessa de um direito futuro [em sentido fraco]. Uma coisa é um direito
atual; outra, um direito potencial.” (BOBBIO, 2004, p. 77). Os direitos atuais ou em
sentido forte são expectativas que podem ser satisfeitas porque são protegidas
juridicamente (BOBBIO, 2004, p. 73), ou seja, pela “[...] forma de controle social que
é o poder [...]” (BOBBIO, 2004, p. 38). Já as exigências (direitos potenciais ou em
sentido fraco) são expectativas de direitos futuros, direitos não constitucionalizados

 
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que se pretendem reconhecer como positivos. Essas pretensões2 de proteção futura


de certos valores, motivadas por argumentos históricos e racionais, “[...] validadas
doutrinariamente, ou até mesmo apoiadas por uma forte e autorizada opinião pública
[...]”, têm origem em ordenamentos morais, mas aspiram a tornarem-se jurídicas
(BOBBIO, 2004, p. 75).
Dizer que têm origem na moralidade implica pressupor originalmente um
sistema normativo moral (de valores) do qual decorrem, e “[...] cuja fonte não é a
autoridade munida de força coativa [...]” (BOBBIO, 2004, p. 74). Afirmar que
aspiram a se tornarem direitos jurídicos significa que “[...] buscam validade a fim de
se tornarem eventualmente direitos num novo ordenamento normativo,
caracterizado por um diferente modo de proteção [...]” (BOBBIO, 2004, p. 75). Pois
apenas diretos jurídicos gozam da proteção efetiva garantida pela jurisdição penal, ou
seja, por uma “[...] corte de justiça capaz de reparar o erro e, eventualmente, de punir
o culpado.” (BOBBIO, 2004, p. 73).
Para Bobbio (2004), na medida em que só há reciprocidade entre institutos
de mesma natureza, de forma que a uma obrigação moral pode corresponder
somente uma exigência moral, nunca um direito jurídico, não se deveria chamar tais
exigências (direitos que devem ser) de direitos (que são) enquanto não forem
acolhidas num ordenamento jurídico positivo.
Ocorre que, historicamente, os direitos do homem experimentaram a
passagem de um sistema de direitos em sentido fraco, baseado em normas naturais
ou morais, para um de direitos em sentido forte, o ordenamento jurídico dos Estados
nacionais (BOBBIO, 2004). Por meio desse processo de diferenciação, como
optamos chamá-lo, os direitos humanos passaram a ser reconhecidos como direitos

                                                            
2 Fazemos uso do termo pretensão, embora o autor hesite em utilizá-lo por considerá-lo
“demasiadamente forte”. (BOBBIO, 2004, p. 73).
 
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subjetivos públicos, direitos fundamentais de comunidades jurídicas específicas; e os


valores, como princípios, normas juridicamente reconhecidas.

6 Segurança ou positivação (juridicidade, ordem e institucionalização)

Não há dificuldade em reconhecer que os direitos humanos nascem


historicamente como exigências morais, mas desenvolvem-se como direitos
positivos. O que pode não ter ficado suficientemente nítido até este ponto da
argumentação é que a positivação de tais exigências – o reconhecimento jurídico dos
direitos fundamentais – decorre ela mesma de uma demanda histórica por segurança.
Pode-se encontrar uma concepção moderna de segurança no art. 8º da
“Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” admitidos pela Convenção
Nacional francesa em 1793: “A segurança consiste na proteção concedida pela
sociedade a cada um dos seus membros para a conservação da própria pessoa, seus
direitos e propriedades.” (FRANÇA, 1793, tradução nossa). Dessa definição, é
possível inferir que, diversamente do que se costuma pensar, a segurança:
a) não é um direito da sociedade, mas um dever a ela atribuído;
b) não se impõe sobre e contra a liberdade do indivíduo, senão decorre da
própria exigência individual de direitos (ou liberdades); e
c) não se limita à conservação física do indivíduo e de suas posses, vez que
garante a incolumidade da pessoa, na condição de ente dotado de
personalidade, membro de uma comunidade jurídica e titular de direitos.
Noutras palavras, assim como, sob pena de incorreção histórica, não se
pode conceber a liberdade positivada como licença, é inadequada a concepção da
segurança como um valor antinômico ao de liberdade, ou apto a restringir as

 
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liberdades individuais. Pois ela só pode ser compreendida como uma pretensão
dirigida à conservação destas.
Ora, a segurança, entendida como exigência de conservação da pessoa
humana e de seus direitos, realiza-se quando esse valor se traduz nas pretensões de
juridicidade, ordem e institucionalização, por meio das quais os direitos humanos são
positivados (determinados em regras formalmente reconhecidas) e impostos por um
poder jurídico, o Estado, que detém o monopólio da coerção (HÖFFE, 2001). Não é
coincidência que imediatamente após (e quase simultaneamente a) o reconhecimento
dos direitos humanos, ocorrido nas primeiras declarações da Modernidade, no
Virginia Bill of Rights, em 1776, e na Déclaration dés droits de l’homme et du citoyen, 1789,
tenha-se dado a positivação dessas exigências nas sucessivas constituições do período
revolucionário francês e na carta norte-americana. A mera declaração dos direitos do
homem na condição de pretensões morais abstratas não lhes garante efetividade
numa comunidade real. A menos que sejam precisa e publicamente definidos, sua
realização fica a depender da disposição moral dos membros da coletividade.
(HÖFFE, 2001). Apenas com a positivação, com a delimitação exata e comum
realizada com o auxílio de um poder, pode-se superar tal “déficit de realidade”
(HÖFFE, 2001, p. 386).
Logo, o processo de determinação da segurança está intrinsecamente
ligado ao de diferenciação das liberdades em direitos fundamentais. O princípio da
segurança jurídica, a que apelam os movimentos históricos de positivação do Direito,
impõe exigências formais à passagem das pretensões morais (diretos humanos) ao
ordenamento jurídico. Para Bobbio (2004, p. 77), as condições consistem
basicamente no fato de se tornarem, “[...] de objeto de discussão de uma assembléia
de especialistas, [...] objeto de decisão de um órgão legislativo dotado de poder de
coerção.”

 
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Na medida em que os direitos humanos são reconhecidos como direitos


jurídicos, os valores de que decorrem, a liberdade e a segurança, adentram os
ordenamentos jurídicos positivos como princípios. Assim ocorreu também no Brasil,
e, desde a Independência, eles foram expressamente mencionados em todas as
constituições. Na de 1824, constavam do caput do art. 179: “A inviolabilidade dos
Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que têm por base a liberdade, a
segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela
maneira seguinte.” (BRASIL, 1824). Em seguida, aparecem no art. 72 da Constituição
de 1891, “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes [...]” (BRASIL, 1981). As demais constituições
repetiram o texto, quase sem alterá-lo. Isso ocorreu no art. 113 da de 1934, no art.
122 da de 1937, no art. 141 da de 1946, no art. 150 da de 1967, no art. 153 da de
1969 e no art. 5º da CRF/88, em vigor.
Aqui, cabe uma observação. Embora comumente se associe o processo de
determinação positiva dos valores e direitos morais à atividade legislativa ordinária e
constitucional, não há razão para assim o limitar. Se é verdade que Bobbio (2004, p.
77), por exemplo, expressamente afirma que a legislação é a única fonte capaz de
transformar direitos que devem ser em direitos que são, e, assim, realizar a passagem
deles do ordenamento moral para o jurídico, tal conclusão não decorre
necessariamente da premissa lançada pelo próprio autor acerca do que o Direito é.
Ao afirmar a exclusividade da fonte legislativa, o jurista restringe indevidamente o
universo de fontes jurídicas possíveis, e exclui, sem justificar por quê, todas as demais
que atendem aos requisitos estabelecidos em seu argumento anterior.
Pois, no mesmo capítulo, havia-se postulado que: “A existência de um
direito, seja em sentido forte ou fraco, implica sempre a existência de [...] tanto o
mero fato exterior de um direito histórico ou vigente quanto o reconhecimento de
 
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um conjunto de normas como guia da própria ação.” (BOBBIO, 2004, p. 74). Ora,
uma vez que, como se tem observado com cada vez maior frequência, as decisões
judiciais são também aptas a afirmar a existência de um direito como um fato exterior
e de reconhecer a existência de uma norma como guia para a ação, ainda que nem o
direito nem a norma tenham sido “[...] objeto de decisão de um órgão legislativo [...]”
(BOBBIO, 2004, p. 77), não há razão para excluir a jurisdição das fontes do Direito.

7 Conclusão: Uma antinomia entre princípios?

Uma vez que tratamos de dois princípios expressamente declarados no


texto constitucional – sobre cuja existência jurídica, portanto, não se têm dúvidas –, a
solução do dualismo entre liberdade e segurança não é possível por meio da rejeição
de um deles, nem da de ambos. Cada um dos dois subsiste no Direito e em grande
medida o fundamenta, sem que algum deles seja capaz de fazê-lo por si. Ambos são
necessários, mas, ao menos numa percepção inicial, excluem-se mutuamente.
Importa, portanto, examiná-los e superar-lhes a contradição de maneira dialética.
A Teoria do Direito não desconhece a ideia de antinomias entre normas
com alto grau de abstração. Bobbio (1999) refere-se a elas como antinomias
impróprias, em oposição às próprias, que ocorrem entre regras. Para ele, as
antinomias de princípio não são propriamente jurídicas. O uso do termo, nesse caso,
não se refere à relação conflituosa entre padrões normativos abstratos, mas ao fato
de um ordenamento jurídico inspirado em valores contrapostos (em opostas
ideologias) poder gerar regras antinômicas.
O jurista italiano tem razão quando afirma que antinomias de princípio
podem ser “[...] uma fonte de normas incompatíveis [...]” (BOBBIO, 1999, p. 90). E,
uma vez que o mesmo autor expõe, como condições de antinomia, não apenas que as
 
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duas normas pertençam ao mesmo ordenamento jurídico, mas que tenham, ao


menos parcialmente, o mesmo âmbito de validade (BOBBIO, 1999, p. 86-89), parece
correto, também, distinguir o conflito entre regras, cujas hipóteses de validade (ou
incidência) são textualmente definidas (antinomia própria), do entre princípios, que
têm esfera de incidência controversa (antinomia imprópria).
Revela-se apressado, no entanto, concluir, a partir de tais premissas:
a) que a incompatibilidade de regras não explícitas, deduzidas de princípios
antinômicos resulte em, para usar a linguagem do autor, “antinomias
insolúveis” ou “reais”, que ocorrem “[...] pela falta de um critério [de
solução da antinomia] ou por conflito entre os critérios dados [...]”
(BOBBIO, 1999, p. 92); e
b) que as antinomias entre princípios, por serem impróprias, não são
jurídicas (BOBBIO, 1999).
No primeiro caso, porque a máxima de que duas normas válidas, do mesmo
nível, contemporâneas e incompatíveis não podem ser simultaneamente eficazes – de
modo que a aplicação de uma ao caso concreto tenha necessariamente de excluir a da
outra – só se aplica a hipóteses de antinomias próprias, das quais os princípios estão
excluídos (BOBBIO, 1999). No segundo, porque, sendo os princípios normas
jurídicas, as antinomias entre eles são, por óbvio, jurídicas, embora não reais
(insolúveis). Mostram-se, portanto, aptas a serem resolvidas dentro do Direito, como
o são as antinomias aparentes (solúveis) entre regras, mas segundo critérios diferentes
dos destas.
A natureza normativa dos princípios, o fato de serem espécies do gênero
normas, é expressamente reconhecida por Dworkin (2007), Alexy (2008), Grau
(2007) e Bonavides (2008), entre outros. Não se deve descartar, contudo, a
possibilidade de inferir a mesma conclusão de Bobbio (1999). Discorrendo sobre a
norma fundamental, este jurista afirma sê-la não expressa – portanto, não elaborada
 
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por um órgão legiferante –, mas “[...] uma proposição evidente que é posta [pelo
intérprete] no vértice do sistema para que a ela se possam reconduzir todas as
normas.” (BOBBIO, 1999, p. 62). Ainda assim, segundo ele, ela “[...] está na base do
Direito como ele é (o Direito positivo) [...]” (BOBBIO, 1999, p. 67) e dá ao poder
“[...] uma legitimação jurídica, não moral [...]” (BOBBIO, 1999, p. 67). Isso sugere
que o autor reconhece o caráter jurídico de proposições que, embora não sejam
regras, têm força normativa. Ademais, noutra passagem, o pensador italiano atesta
que “[...] a juridicidade de uma norma se determina não através de seu conteúdo
(nem pela forma [...]), mas simplesmente através do fato de pertencer ao
ordenamento [...]” (BOBBIO, 1999, p. 69).
No que se refere à questão do conflito normativo, Bobbio (1999, p. 74),
partindo da noção de que “[...] para julgar a oposição de duas regras é necessário
examinar o seu conteúdo [...]”, sugere ser possível conservar duas normas
incompatíveis se demonstrado “[...] que a incompatibilidade é puramente aparente,
que a pressuposta incompatibilidade deriva de uma interpretação ruim, unilateral,
incompleta ou errada de uma das duas normas ou de ambas.” Nesse caso, mantêm-se
as normas e elimina-se a própria incompatibilidade. (BOBBIO, 1999).
Tal modelo de solução de conflitos entre normas, se aplicado aos princípios,
extrai conclusões diversas das de Dworkin (2007) e Alexy (2008) – ou, pelo menos,
em relação ao primeiro, das da maioria dos intérpretes brasileiros dele. Os dois
juristas reconhecem que os princípios não se aplicam de modo “tudo-ou-nada”
(ALEXY, 2008, p. 173; DWORKIN, 2007, p. 39). Todavia, não faltam na obra do
renomado teórico alemão casos em que a um princípio incidente e supostamente
conflitante não foi dada eficácia alguma (ALEXY, 2008), o que suscita algumas
questões.
Pois, uma vez que uma norma é existente e válida, ocorridos os fatos que
lhe constituem o suporte fático, ela incide “[...] incondicionalmente, fatalmente,
 
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infalivelmente, isto é, independentemente do querer das pessoas [...]” (MELLO,


1986, p. 73) – independentemente, também, de ser um princípio ou uma regra. A
diferença é que, no caso das regras explícitas, a vigência depende do reconhecimento
formal de sua existência e aparente validade, atestadas pela autoridade positivamente
designada para tanto, em geral, os Poderes Legislativo e Executivo. Em se tratando
de princípios, o reconhecimento de sua normatividade implica a presunção de
existência e validade, a despeito de inexistir um procedimento juridicamente
estabelecido que as declare formalmente.
A ponderação entre princípios, ou o sopesamento deles, só pode ser
entendida, portanto, como considerações, no momento da aplicação, acerca do peso
– não, da incidência. O que torna problemáticos os esquemas de ponderação
propostos por Alexy (2008) é a defesa de que uma norma incidente (ainda que seja
um princípio) possa não gerar efeito jurídico algum, sem que a normatividade dela
esteja comprometida. Pois, embora o princípio não ofereça uma resposta
incontroversa ao caso concreto, ele aponta para certa direção, que tem de ser
considerada por quem se encarrega de decidir. O aplicador deve escolher uma das
soluções possíveis e justificar a escolha.
A distinção entre incidência e aplicação normativa tem aqui uma
importância fundamental. As normas jurídicas incidem sobre o seu suporte fático
desde que esse se compõe. Quando se dá a uma autoridade judiciária a
discricionariedade para aplicar a norma ou, se o entender, não a aplicar, não foi “[...] a
aplicação que se fez dependente da vontade, do arbitrium, [...] foi a incidência
mesma.” (MIRANDA, 1960, p. 365, grifo do autor).
Cabe mencionar a lição de Pontes de Miranda (1960) a respeito da matéria,
posto que formulada num contexto diverso. As conclusões pontianas são
esclarecedoras se aplicadas à hermenêutica dos princípios. E, embora no trecho
destacado, o autor se refira a regras jurídicas (espécie) e autoridades administrativas, é
 
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possível estender a tese a normas (gênero) e magistrados no exercício da jurisdição:


“[...] diferentes são aplicação e incidência [...]. Dizer-se que a autoridade administrativa
pode aplicar R, ou não-R, é dar-lhe poder legislativo de edictar, no momento e in
casu, a regra jurídica R, ou a regra jurídica não-R. (MIRANDA, 1960, p. 365-366,
grifo do autor).
Por óbvio, a hipótese de incidência dos princípios não é textualmente
definida como ocorre com a da maioria das regras. Nem o são as relações jurídicas
decorrentes dessa operação mental. Nas palavras de Dworkin (2007, p. 40), aquelas
normas “[...] não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem
automaticamente quando as condições são dadas.” Trata-se de matéria sujeita, em
cada caso, a controvérsia e argumentação. Entretanto, uma vez que o intérprete
esteja convencido de que a situação submetida a juízo se subsume a uma regra que
decorre logicamente de um princípio, ou seja, uma vez que haja razão para afirmar a
incidência do princípio em questão, não se autoriza o aplicador a afastá-lo.
Nessas circunstâncias, o apelo a uma norma conflitante de igual hierarquia
frequentemente encobre a deliberada decisão de negar efeitos a outra norma
publicamente reconhecida. Pois, se derivam dos princípios direitos que não levam em
conta normas concorrentes, isso se dá em abstrato. Uma vez concretizado um fato
em tese subsumível a tais princípios, os direitos concretos a serem declarados no
julgamento devem necessariamente refletir o impacto de tal concorrência. Não, negá-
la, pela afirmação da absoluta prevalência de um dos padrões concorrentes, contra o
total aniquilamento dos demais. (DWORKIN, 2007).
Especificamente nos casos tratados por este trabalho, o modelo de solução
de antinomias que oferece a possibilidade de que as normas aparentemente
conflitantes sejam simultaneamente aplicadas sem que a eficácia de uma delas tenha
de ser negada produz os melhores resultados. Porque, por tudo o que se expôs,
parece claro que a antinomia entre liberdade e segurança baseia-se na definição
 
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desses termos em bases absolutas, sem fundamentos históricos que a sustentem. O


valor da segurança, levado ao extremo, tende ao dogmatismo jurídico, ao Positivismo
rigoroso do Direito, que “[...] consiste na carta branca ou no irrestrito assentimento
[...]” (HÖFFE, 2001, p. 9) à entidade estatal. A liberdade, ao contrário, uma vez
retirada da história das instituições políticas, implica a licença extrema, a recusa
descompromissada de qualquer ordem jurídica, a negação total do Direito, o
ceticismo jurídico (HÖFFE, 2001).
A absoluta impossibilidade de reconciliação dos conceitos só ocorre em
abstrato, a-historicamente, sem levar em conta o desenvolvimento das instituições
jurídicas do ocidente. Pois o projeto político da Modernidade parece ser a realização
recíproca e simultânea de ambos os valores. Diante da ameaça da guerra civil, as
exigências da comunidade política se traduziram em segurança; diante da opressão
política, em liberdade. (HÖFFE, 2001). Tais concepções, contudo, devem sempre
poder reunirem-se no conceito original: “Como a justiça exige que todos os
indivíduos tenham direito a um mínimo de liberdade, todos os outros indivíduos
devem ser necessariamente coibidos, se preciso for pela força, de privar alguém da
liberdade.” (BERLIN, 2002, p. 233). A partir dessa constatação, fala-se não em
princípios da liberdade e da segurança, mas em princípio de liberdade e segurança.
Ressalte-se, por fim, que a eliminação da incompatibilidade não é apenas
possível – nem somente preferível. Ela é devida, e exatamente por razões de
liberdade e segurança.
Poder-se-ia dizer que o princípio da segurança impõe o respeito à ordem
positiva. Afinal, decorre da juridicidade a garantia de que, uma vez concretizada a
hipótese fática de uma norma jurídica, ela incide; e de que, se incide, gera efeitos
jurídicos, aos quais se tem que dar eficácia concreta (aplicação). (MELLO, 1986).
Mas se poderia chegar à mesma conclusão pela perspectiva da liberdade.
Pois tanto a fonte da autoridade judiciária, encarregada de declarar a incidência da
 
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norma e de dar-lhe aplicação, quanto, simultaneamente, as restrições ao exercício da


jurisdição se fundamentam no direito dos indivíduos à não submissão. Essa
independência em relação aos demais membros e à própria comunidade pressupõe o
adequado tratamento pelo Estado, o respeito à dignidade de cada homem e a
proibição do arbítrio do soberano. Decorre dela a vinculação das instituições estatais
ao Direito (DWORKIN, 2007).
Sucintamente, o que liberdade e segurança asseguram são os direitos
fundamentais, inclusive o de se submeter ao Direito, não, à incerteza. Para o
intérprete, especialmente para o oficial, o juiz, isso gera três conseqüências práticas
que não podem ser desprezadas.
A primeira diz respeito às contingências empíricas. Inevitavelmente, haverá
quem alegue, diante da unidade conceitual do princípio de liberdade e segurança, que,
embora não se trate de normas distintas e eventualmente conflitantes, ainda é
verdadeiro que, contra certos fatos, certas demandas da realidade, as previsões
normativas abstratas têm de ceder. E não faltarão situações de calamidade e urgência
que ilustrem essas hipóteses. Acerca de tais argumentos, porém, é oportuno lembrar
a advertência de Dworkin (2007, p. 21): “É evidente que pode haver conflitos entre
esses princípios e as necessidades práticas, mas estas não são ocasiões para
compromissos eqüitativos, mas antes, se os princípios tiverem que ser desonrados,
ocasiões para vergonha e pesar.”
A segunda consequência hermenêutica se refere ao conflito entre o
princípio e uma regra explícita. Tal oposição é pressuposta pelos argumentos em
favor da relativização de dispositivos expressos, mediante o apelo a normas mais
abstratas, a despeito de a linguagem do artigo constitucional ou legal em questão
conferir-lhe um sentido não contestado. Resta reconhecer que, nessa situação, seria
ilegítimo se o intérprete oficial ampliasse as restrições às liberdades positivadas no
momento da aplicação das regras, sob alegação de efetivar um princípio jurídico de
 
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igual hierarquia, a segurança. Pois a segurança não é um princípio externo ao de


liberdade nem diverso do dele. Antes, ambos são recíprocos, de forma que os limites
a serem buscados devem ser internos, relativos ao âmbito de incidência do
dispositivo da CRF/88 – à hipótese da regra –, não, à esfera externa, de eficácia e
aplicação dele.
Pois, se é certo que, como afirma Jean Morange (2004, p. XX-XXI), “[...]
nenhuma liberdade pode ser ilimitada [...]”, e, “Mesmo aos olhos dos liberais mais
extremados, a liberdade de cada um deve cessar onde começa a liberdade de outrem
[...]” (MORANGE, 2004, p. XX-XXI), é certo também que muitos desses limites,
“[...] a preservação da ordem pública, os dados técnicos, as contingências sociais, a
necessidade de uma ética social [...]” (MORANGE, 2004, p. XX-XXI), já foram
ponderados pelo legislador constituinte originário quando da declaração positiva dos
direitos fundamentais, vez que inerentes ao princípio de liberdade e segurança.
Por fim, a terceira consequência hermenêutica se relaciona às hipóteses em
que, dada a inexistência ou a inadequação das convenções explícitas, o caso requer a
aplicação direta do princípio, não mediada por regras legisladas. Mediante
argumentos de que, diante de uma situação concreta, princípios contrários têm de ser
ponderados (o que deveria ocorrer na esfera da eficácia e somente diante de um
conflito real), recusa-se incidência a um deles, normalmente, à liberdade. Assim, a
falácia hermenêutica da contraposição dos dois princípios cria ocasiões em que o juiz
se vê investido de um poder que, na verdade, não decorre do Direito.
Como se verifica em qualquer um dos três exemplos expostos, o erro
parece servir a uma finalidade temerária: o abuso do poder jurisdicional. A aparência
de conflito difunde a crença da regular aplicação de princípios, quando encobre a
ocorrência de antijuridicidades. Na prática, permite que o aplicador negue total ou
parcialmente, e sem justificativa, a força de uma norma constitucional. Ao fazê-lo,
afasta o Direito, e institui o arbítrio.
 
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O PROCESSO ADMINISTRATIVO E A DIGNIDADE DA PESSOA


HUMANA

Shirlei Silmara de Freitas Mello1


Estanislau Correia Almeida Junior2

RESUMO

Este trabalho propõe-se a analisar o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa


humana no contexto do processo administrativo. Partindo da teoria geral dos
princípios, como espécies de normas jurídicas basilares que informam o
ordenamento do Direito, o trabalho enfoca a dignidade da pessoa humana,
fundamento da República Federativa do Brasil, como valor imprescindível aos
ditames de proteção do ser humano, especialmente na via administrativa. Para tanto,
foram manejados elementos básicos concernentes à teoria e prática do processo
administrativo, bem como outras fontes específicas da dignidade da pessoa humana,
envolvendo material bibliográfico e jurisprudencial adequados. O método adotado
pautou-se pelo raciocínio dedutivo.

Palavras-chave: (A) Processo Administrativo; (B) Princípio Jurídico; (C) Dignidade


da Pessoa Humana.

ABSTRACT

This work intends to analyze the content of the principle of the dignity of the human
person in the context of the administrative proceeding. Starting from the
general theory of the principles, as species of fundamental rules that inform the
order of Law, the presente work focuses finally on the dignity of human person,

                                                            
1 Doutora em Direito pela UFMG. Professora Adjunta da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de
Assis” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). 
2 Bacharelando do curso de Direito da Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade

Federal de Uberlândia (UFU). 


 
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basis of the Federative Republic of Brazil, as essential value to the dictate of


protection of the human being, especially in the administrative process. To reach the
mentioned goal, it has been employed basic knowledge concerning the general
theory of administrative proceeding, as well as other specific sources of the dignity of
the human person theory involving bibliographical material and proper
jurisprudential. The adopted method was deductive reasoning.

Keywords: (A) Administrative Process, (B) Principle of Law (C) Dignity of Human
Person.

1. INTRODUÇÃO

A processualidade ampla implica reconhecer o processo como instrumento


legitimador das funções estatais. Destarte, a figura do processo administrativo
surge como o meio pelo qual a Administração Pública aplica o do direito ao caso
concreto, de ofício ou mediante provocação, para satisfazer os imperativos do
interesse público, com relativa definitividade.
Tendo em mira a importância do processo administrativo, verdadeiro
legitimador da função administrativa, emerge a necessidade de tomá-lo sob ótica
protecionista da pessoa humana, fim último do próprio Estado.
Posto isso, o presente trabalho tenciona sopesar e considerar tal
desiderato, ajustando as finalidades do processo administrativo aos
imperativos de proteção de direitos fundamentais da pessoa humana, tais como
direito de defesa defesa, contraditório, liberdade filosófica, sigilo, acesso aos autos,
devido processo legal administrativo, entre outros.
Para tanto, far-se-á inicialmente uma abordagem inicial da teoria geral do
processo administrativo e dos princípios jurídicos, no intuito de meditar acerca de
suas naturezas jurídicas, funções, características e importância social para, em estágio

 
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mais maduro, focar-se com mais detença a dignidade da pessoa humana, que
permeia a própria razão de ser dos conceitos anteriormente abordados, vez que se
trata de princípio aglutinador de vários direitos do ser humano.

2. PROCESSO ADMINISTRATIVO

O Estado exerce determinadas funções que só se imbuem de legitimidade


uma vez respeitados os ditames regentes de processos específicos. Sendo assim, a
função administrativa, por intermédio da qual o Estado busca realizar o direito no
caso concreto, de ofício ou mediante provocação, a fim de contemplar o interesse
público sem definitividade, instrumentaliza-se mediante prévio e regular processo
administrativo, da mesma forma que a feitura das leis requer precedente processo
legislativo e a sentença, processo judicial. Logo, a ideia de processo não é exclusiva
da seara jurisdicional, vez que vigora a noção de processualidade ampla nas relações
do Estado com os destinatários dos comportamentos
públicos.

De fato, o exercício da função administrativa se dá através de um


procedimento. Isso significa que a edição de qualquer ato
administrativo pressupõe uma série de atos antecedentes,
necessários à formação da vontade da Administração. (...) É
assim porque a formação da vontade estatal não é livre, ao
contrário do que ocorre nas relações privadas. O agente
administrativo está vinculado a normas e princípios jurídicos,
que disciplinam o modo de formação do ato que por ele
será editado. Isso porque o ato administrativo não é a
manifestação de vontade do próprio agente que o pratica, mas
sim do ente estatal. (MELLO, 2007, p. 223)

 
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A natureza do processo administrativo não é assunto remansoso na


doutrina. A par das correntes privatistas3, a muito superadas, a doutrina moderna se
biparte entre duas correntes publicistas do processo. Corrente minoritária atribui ao
processo a índole de uma situação jurídica. De acordo com esta propugnação, cujo
maior patrono foi James Goldschimidt, o direito estático sofre uma mutação
estrutural quando se convola em direito dinâmico (processo): enquanto estático, o
direito é puramente subjetivo, porém quando se modifica, passa a incorporar uma
miríade de possibilidades, expectativas, perspectivas e ônus, em resumo, “chances”
em obter-se o reconhecimento do direito, por intermédio da prática de atos
tendentes a alcançar o resultado almejado. A pessoa, quando ingressa no
processo, passa a ocupar situação distinta da anterior.
Para a corrente majoritária, inspirada em Büllow, o processo é relação
jurídica. Isso indica que o processo administrativo apresenta a natureza de vínculo
intersubjetivo (pois travado entre Administração e administrados) que sofre a
incidência de regra jurídica de direito público estabelecendo direitos e deveres
entre os envolvidos. Daí seu caráter jurídico. Tal relação jurídico-processual
administrativa apresenta as características básicas das relações jurídicas em geral4,
além de atributos próprios, quais sejam: a hierarquização dos sujeitos
participantes5 e a finalidade preestabelecida em lei.6 O processo é nexo que liga dois

                                                            
3 As teorias privatistas são aquelas que atribuem ao processo a natureza jurídica de contrato ou

quase contrato. De acordo com elas, ressalvadas pequenas particularidades, o processo


consubstanciaria em seu bojo um plexo de direitos e obrigações a serem pactuados em juízo.
4 É assim, complexa, pois apresenta-se como soma de uma série de posições ativas e passivas; é

autônoma, pois sua validade independe de qualquer relação de direito material; é una, pois todos os
atos componentes do procedimento visam à emissão de um provimento imperativo.
5 De acordo com MOREIRA (2003, p. 27): “A Administração possui poderes e regalias

extraordinárias, que afetam o vínculo intersubjetivo. São as chamadas ‘prerrogativas da


Administração’, limitadas e exercitadas em atenção aos ‘direitos dos administrados’”. 
6 Tal relação jurídica não se estrutura aleatoriamente. Os poderes manejados pelo agente estão

atrelados a um fim preestabelecido pela lei, de modo que só serão validamente exercidos se
contemplarem os específicos deveres legais.
 
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ou mais sujeitos, atribuindo-lhes poderes, direitos, faculdades e os correspondentes


deveres, obrigações, sujeições e ônus.
Processo não se confunde com procedimento. Procedimento é aspecto
externo daquele vínculo jurídico, é sua forma externa, o rito que se desdobra
temporalmente em sequência de atos lógica e juridicamente encadeados, visando à
decisão final do Estado. Cada ato administrativo processual apresenta nexo de
causalidade em relação aos demais e ao mesmo tempo, devem resguardar sua
autonomia, ou seja, individualidade jurídica, incorporando finalidade própria dentro
do conjunto.7 Muitos autores modernos definem o processo administrativo como
espécie de procedimento, qual seja, o participativo.
A ideia de procedimento participativo indica que o processo é vínculo
jurídico que se expressa numa seqüência harmônica de atos deve ser realizado em
contraditório, permitindo que os interessados possam dialeticamente influir na
formação do provimento que afetará suas esferas jurídicas. Nesse sentido, a noção
de procedimento é mais ampla que a de processo e, segundo orientação de Calmon
de Passos apud Carvalho Filho (2006, p. 813), traduz “o processo em sua dinâmica,
é o modo pelo qual os diversos atos se relacionam na série constitutiva de um
processo.” (PASSOS apud CARVALHO FILHO, 2006, p.813). Mello (2003, p. 43)
entende que procedimento é gênero e processo é modalidade específica de
procedimento, realizado em contraditório, assim:

Acolher a expressão processo administrativo significa admitir que


o procedimento no qual atuem os interessados em contraditório
acontece também na Administração Pública. Processo caracteriza-
se então por: formas procedimentais particulares, debate

                                                            
7 Para PEREZ apud MELLO (2006, p. 470), os requisitos para que existam um procedimento são: a)
autonomia relativa dos atos, b) conexão em vista da unidade de efeito jurídico que se expressa no ato
final e c) relação de causalidade , de tal modo que um dado ato suponha o anterior e o ato final
suponha a todos eles.
 
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contraditório, certa dose de formalismo e publicidade,


viabilizando destarte a formação da decisão final motivada.

Assim, todo processo é procedimento, mas nem todo procedimento é


processo. O processo administrativo é o modus operandi da função administrativa,
ou seja, a via pela qual o Estado aplica o direito ao caso concreto, de ofício ou
mediante representação, para contemplar o interesse público sem definitividade e
que permite debate contraditório entre os interessados.
O processo administrativo tem por finalidades: a) assegurar atuação
administrativa eficiente, (através da disciplina dos meios pelos quais a
Administração Pública toma decisões), vez que o pré-estabelecimento de um
caminho a seguir representa, ao lado de segurança jurídica, importante fator de
economia processual e b) garantir a maximização dos direitos dos administrados.
Neste sentido, o processo administrativo é “instrumento de participação, proteção e
garantia dos direitos individuais. Caso prestigiado, o cidadão terá convicção de
que o ato administrativo é legítimo e perfeito” (MOREIRA, 2003, p. 63).
Tendo em vista tais finalidades, abordar-se-á a importância do processo
administrativo na salvaguarda do princípio da dignidade da pessoa humana, tido
como fundamento da República Federativa do Brasil, de acordo com o que se
encontra insculpido no art.1º, III da Constituição da República.

3. PRINCÍPIOS E REGRAS

Na seara filosófica, princípio é vislumbrado como o indicativo do local em


que brota, nasce, origina-se o conhecimento, revelando o sítio de onde se irradia

 
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sua existência.8 Na geometria, em sentido não dissonante, o vocábulo princípio


designa as “verdades primeiras”. Sendo assim, cada sistema científico (político,
filosófico, jurídico, econômico, físico, matemático, dentre outros) é guarnecido por
ideologia própria que contempla um arcabouço particular de princípios,
funcionando estes como verdadeiros sustentáculos do particular objeto enfocado
por cada sistema, fornecendo coerência a seus elementos.9
No campo do Direito, pode-se estabelecer conceito de princípio como
orientação ou diretriz, dotada de caráter geral e emanada da conexão sistemática
das normas, que serve como sustentáculo de aplicação, interpretação e
subordinação do ordenamento jurídico.

Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto


considerada como determinante de uma ou de muitas outras
subordinadas, que a pressupõe, desenvolvendo e especificando
ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos
gerais), das quais determinam e, portanto, resumem
potencialmente o conteúdo, sejam, pois, estas efetivamente
postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo
princípio geral que as contém. (CRISAFULLI apud
BONAVIDES, 2008, p.275):

                                                            
8 “Princípio (...) é momento em que algo tem origem; é a causa primária ou o elemento
predominante da constituição de um todo orgânico” (NUCCI, 2008, p.8).
9 Brüning (2007, p.94), em arremate, nos comprova, em interessante constatação, a farta presença dos

princípios no nosso trato diário com as ciências, de modo geral: “Quem observa a natureza e todo o
Universo verá que seu funcionamento é guiado por princípios, como o da atração e repulsa, no
sistema solar, que proporciona estabilidade nas distâncias e nos movimentos dos astros. No reino
animal, algo semelhante se passa no conhecido princípio da seleção das espécies, formulado por
Darwin. As ciências físicas submetem-se a vários princípios, a exemplo do aumento dos corpos em
temperaturas elevadas, e o de Arquimedes, segundo o qual, um corpo imerso em líquido perde uma
quantidade de peso igual ao peso da quantidade de peso igual ao peso da quantidade de fluido
deslocado. As ciências humanas ou comportamentais, como a psicologia, as economia, a política e a
religião também têm seus princípios com uma certa particularidade, sendo, via de regra, instituídos
pelo homem. O Direito também possui seus princípios, a exemplo da supremacia da Constituição,
da anterioridade da lei penal, da anualidade tributária, da liberdade contratual e assim por diante.” 
 
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Partindo-se do pressuposto de que princípios são verdadeiras bússolas,


vigas-mestras para qualquer indivíduo que se envereda pelos quase sempre
tormentosos caminhos da via jurídica, acabam exercendo uma miríade de funções
no escopo de tornar o ordenamento jurídico mais tangível e coeso.
Neste sentido, os princípios cumprem as seguintes funções, de acordo com
Brüning (2007, p. 96-97):

a) Função fundamentadora: os princípios consagram valores


fundamentais, supremos que nortearam a elaboração de determinada
norma jurídica, revelando sua gênese, os motivos de seu nascedouro. Daí a
razão pela qual exercem função fundamentadora.
b) Função interpretativa: os princípios funcionam também como
verdadeiros vetores a guiar o intérprete quando surge para este a
necessidade de solucionar determinados problemas jurídicos, motivados
pela complexidade do ordenamento jurídico e pela reiterada conflitância
entre suas espécies normativas. Portanto, o jurista deve se embeberar da
fonte principiológica e agir em conformidade com seus ditames para
solucionar querelas jurídicas.
c) Função integrativa: os princípios funcionam como amálgamas
ou ligas, no sentido de completar as lacunas e vaguezas de outra ordem
presentes ocasionalmente em algum texto de lei. Representariam assim,
elementos promovedores da efetividade da norma viciada ou defeituosa.

Princípios são espécies de normas, daí serem qualificados


como normas principiológicas. Apresentam, portanto, a natureza jurídica de normas

 
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jurídicas (ao lado das regras), vez que dizem o que deve ser, impondo certo
comportamento.10
O gênero norma jurídica é resultado de atividade interpretativa, por
intermédio da qual, o aplicador ou cientista do direito, pautando-se por método
de interpretação (literal, histórico, teleológico, sistemático), analisa determinado
texto (ou enunciado) normativo, atribuindo (ou não) sentido a seus dispositivos11.

Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos


construídos a partir da interpretação sistemática de textos
normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no
objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. O
importante é que não existe correspondência entre norma e
dispositivo, no sentido de que sempre que houver um
dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma
norma, deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.
(ÁVILA, 2005, p.30)

Sendo assim, o intérprete realiza verdadeiro trabalho de reconstrução,


pois, parte do texto normativo limitador e manipula a sua linguagem,
                                                            
10 A respeito da polêmica do conceito de norma, essencial torna-se a lição de Alexy (2008, p.52):
“Dessa forma, a fundamentação daquilo que se sustenta variará conforme se entenda norma como ‘o
sentido (objetivo) de um ato pelo qual se ordena ou se permite e, especialmente, se autoriza uma
conduta’ ou uma ‘expectativa de comportamento contrafaticamente estabilizada’, como um
imperativo ou uma modelo de conduta que ou é respeitado ou, quando não, tem como
conseqüência uma reação social, como uma expressão com uma forma determinada ou uma regra
social”.
11 Em interessante posicionamento, Cesare Beccaria, na tradução de Lucia Guidicini e Alessandro Berti

Contessa (2005, p. 46), entende ser a interpretação das leis um expediente pernicioso, ou sem suas
palavras, um verdadeiro mal: “Nada é mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário
consultar o espírito da lei. É como romper um dique à torrente das opiniões. Esta verdade, paradoxal
às mentes vulgares mais abaladas por uma pequena desordem de momento que pelas
conseqüências funestas, mas remotas, que nascem de um falso princípio enraizado numa nação,
parece-me demonstrada. Todos os nossos conhecimentos e as nossas ideias estão conectadas
reciprocamente; quanto mais complicados, mais numerosos são os caminhos que até eles
chegam e deles partem. Cada homem tem o seu ponto de vista; o mesmo homem, em épocas
diferentes tem pontos de vista diferentes. O espírito da lei seria, portanto, o resultado da boa ou da
má lógica de um juiz, de uma digestão fácil ou difícil; dependeria da violência de suas paixões, da
fraqueza de quem sofre, das relações do juiz com o ofendido e de todas aquelas mínimas forças que
mudam as aparências de cada objeto no espírito flutuante do homem.” 
 
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incorporando núcleos de sentido àquele texto original (ÁVILA, 2005, p.34). Esse
trabalho de reconstrução conduz o intérprete a duas ordens de normas: princípios e
regras, cuja distinção será objeto do próximo item do presente capítulo.
Os princípios são assim, normas que fornecem coerência e ordem a um
conjunto de elementos, sistematizando-o (WAMBIER et al 2002, p.65). Os
princípios são, portanto, espécies de normas jurídicas, como as regras. Assim como
elas, os princípios impõem deveres e vinculam os indivíduos, mesmo quando não
expressos. Suas principais características são, segundo a compilação doutrinária de
BRÜNING (2007, p.97-100):

a) Generalidade: na medida em que não tecem pontuações


específicas referentes a hipóteses concretas, mas, por outro lado,
estabelecem diretrizes gerais fornecedoras de fundamentos que serão
utilizados por norma superveniente.
b) Primariedade: os princípios dão origem a outros princípios,
sendo que estes últimos são tidos como sub-princípios dos anteriores. É o
caso do princípio da legalidade administrativa, que impõe ao agente público
o dever de agir em conformidade com os ditames do ordenamento legal.
Deste princípio-mãe surgem vários sub-princípios, tais como a finalidade e
razoabilidade.
c) Poliformia: no sentido de que os princípios não apresentam
conteúdos imutáveis, pois admitem renovações de acordo com os
incontigentes anseios sociais, apresentando assim, substância política ativa.
Essa característica vincula-se à faceta pela qual os princípios são dotados
de abertura e inexauribilidade.

 
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d) Abstratividade: os princípios alcançam número infinito de


situações concretas, ao contrário das regras que apenas incidem sob o
amparo de uma específica hipótese de incidência.
e) Sistematicidade: os princípios não podem ser tomados
isoladamente, mas imbricados em sistema interdependente que guarnece
outras inúmeras normas principiológicas.
f) Limitabilidade: os princípios não são absolutos, vez que, em
determinadas situações de conflito com outros princípios, sua força jurídica
deve ser relativizada, em prol da coerência do sistema.
g) Dimensão axiológica: os princípios refletem o ideal de justiça
de determinada sociedade, em determinado período. Revelam seu conteúdo
ético.
h) Informatividade: os princípios são a base de todo o
ordenamento jurídico, informando-o.

Base do sistema constitucional, como reiteradamente lembrado,


fazem-se fonte de todas as ordenações jurídicas. Todas as
regulações jurídicas que adentram o sistema têm, na
principiologia constitucional o berço das estruturas e instituições
jurídicas. (ROCHA, 1994, p.97).

A norma é o gênero, ou seja, da atividade interpretativa, pela qual o


cientista ou julgador do direito se debruça sobre texto normativo e com o apoio
de um método, confere sentidos que transcendem a mera descrição do que
consta nos dispositivos do texto, reconstruindo-o, pode-se chegar a duas ordens
de normas: os princípios e as regras.
Imperioso ressaltar, como passo inicial, os pontos de contato existentes
entre as duas espécies normativas. Como já foi dito, ambas possuem a mesma
natureza jurídica, ou seja, são normas, pois enunciam o que é devido. Tanto

 
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princípios quanto regras são formulados com base em expressões dêonticas básicas,
quais sejam: o dever, a permissão e a proibição. Ambas as espécies de normas
também constituem razões para juízos concretos de dever-ser. (ALEXY, 2008,
p.87)
Contudo, mesmo que o expediente distintivo entre as espécies de normas
seja alvo de debate dotado de relativa longevidade na seara do Direito, faz-se mister
realizar breve análise dos critérios mais difundidos na tentativa de disseptar tais
espécies normativas, tendo em vista os fins a que se propõe o presente trabalho.
Sem dúvidas, o critério mais difundido é aquele que se atém ao grau de
generalidade ou âmbito de incidência imanente a cada espécie normativa. De acordo
com tal critério, os princípios incidem sobre alcance ilimitado, enquanto que as
regras já contêm em seus bojos a “hipótese de incidência” em que são aplicadas
(WAMBIER, 2002, p.65).

Segundo esse critério, princípios são normas com grau de


generalidade relativamente alto, enquanto o grau de generalidade
das regras é relativamente baixo. Um exemplo de norma de grau
de generalidade relativamente alto é a norma que garante a
liberdade de crença. De outro lado, uma norma de grau de
generalidade relativamente baixo seria a norma que prevê que
todo preso tem o direito de converter outros presos à sua crença.
Segundo o critério de generalidade, seria possível pensar
e classificar a primeira norma como princípio e a segunda, como
regra. (ALEXY, 2008, p.87-88)

Existem outros inumeráveis critérios que se ocupam em promover a


distinção entre as espécies normativas. Contudo, em atenção à fluidez e aos
propósitos deste trabalho, ater-nos-emos à análise daqueles mais difundidos na
doutrina nacional e estrangeira.
Pelo critério do caráter hipotético - condicional, as regras são dotadas de
estrutura peculiar, que abrange uma hipótese (se...), seguida por uma conseqüência

 
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jurídica (então...). A decisão estaria predeterminada por essa estrutura, na medida


em que elas já guarneceriam todo o conteúdo necessário em seu bojo descritivo.
Já os princípios apenas funcionariam como postulados indicadores do fundamento
normativo a ser utilizado para guiar ulteriormente o julgador quando da procura
pela regra mais adequada ao caso concreto. Os princípios, por esse critério,
estabelecem somente uma diretriz.
Pelo critério do modo final de aplicação, cujo maior expoente foi o jurista
Ronald Dworkin na obra Taking Rights Seriously, o princípio é distinto das regras
pela maneira diversa como são aplicados, pois as regas últimas são aplicadas de
maneira absoluta tudo ou nada (all-or-nothing), enquanto que os princípios são
aplicados de forma gradual, mais ou menos. Isso significa que uma vez preenchida
a hipótese de incidência nela prevista, em sendo a regra válida, a consequência
normativa deve ser aceita, a menos que a regra seja como inválida, caso em que o
cientista deverá encontrar uma exceção à regra. Por outro lado, os princípios ao
serem aplicados de modo gradual, não são diretamente determinantes para se
atingir uma decisão, pois fornecem os fundamentos, que muitas vezes devem ser
conjugados com os fundamentos de outros princípios. (ÁVILA, 2005, pg.44)
Pelo critério que distingue as espécies de normas jurídicas por intermédio
da análise da solução a ser alcançada em caso de conflito normativo,12 a antinomia
das regras somente pode ser resolvida mediante a declaração de invalidade de uma
das regras conflitantes, eliminando-a do ordenamento ou com a criação de uma
exceção, que esmoreça a contradição que vicia seus conteúdos.

                                                            
12 Segundo Alexy (2008, p.91-92), tal critério é o dotado de maior clareza entre os critérios

diferenciadores: “A diferença entre regras e princípios mostra-se com maior clareza nos casos de
colisões entre princípios e de conflitos entre regras. Comum às colisões entre princípios e aos
conflitos entre as regras é o fato de que duas normas, se isoladamente aplicadas, levariam a resultados
inconciliáveis entre si, ou seja, a dois juízos concretos de dever-ser jurídico contraditórios. E elas se
distinguem pela forma de solução do conflito.
 
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O conflito entre regras pode ser solucionado se se introduz, em


uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito,
ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida. Um
exemplo para um conflito entre regras que pode ser resolvido por
meio da introdução de uma cláusula de exceção é aquele entre a
proibição de sair da sala de aula antes que o sinal toque e o dever
de deixar a sala se soar o alarme de incêndio. Se o sino ainda
não tiver sido tocado, mas o alarme de incêndio tiver soado, essas
regras conduzem a juízos concretos de dever-ser
contraditórios entre si. Esse conflito deve ser solucionado por
meio da inclusão, na primeira regra, de uma cláusula de exceção
para o caso do alarme de incêndio. Se esse tipo de solução não
for possível, pelo menos uma das regras tem que ser declarada
inválida e, com isso, extirpada do ordenamento jurídico.
(ALEXY, 2008, pg.92)

Por outro lado, ainda pelo critério do conflito normativo, a colisão entre
princípios requer método de compatibilidade diverso, pois implica em
ponderações de sopesamento e atribuição de peso a cada norma principiológica em
combate.

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma


completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que
ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um
princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos
princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o
princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele
deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o
que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face de
outro sob determinadas condições. (ALEXY, 2008, p.93)

Para os defensores desse critério distintivo, é a solução adotada em caso de


conflito entre normas que conduz o cientista a clara e simples caracterização das
espécies normativas, na medida em que a colisão entre regras situa-se no plano de
validade, enquanto que a solução do conflito entre princípios aloca-separa a
dimensão do peso.

 
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Alexy (2008, p.90), em conclusão, aprovisiona nova e interessante


diferenciação entre as modalidades de espécies normativas, ao considerar os
princípios como normas que contém em seu bojo deveres de otimização, de
aplicação variável conforme as possibilidades normativas e fáticas, podendo ser
aplicados em diferentes graus, de acordo com a variação daquelas possibilidades.
Por outro lado, as regras não apresentam tal caráter, devendo ser cumpridas ou não,
pois contém determinações que afastam a possibilidade de aplicação graduada. O
autor acaba alocando a questão em termos qualitativos e não meramente relacionada
a distinção entre distintos graus de generalidade,

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que


princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na
maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e
fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte,
mandamentos de otimização, que são caracterizados por
poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a
medida devida de sua satisfação não depende somente das
possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.
O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos
princípios e regras colidentes. Já as regras são normas que são
sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale,
então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem
mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações
no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso
significa que a distinção entre regras e princípios é uma
distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma
é ou uma regra ou um princípio. (grifos nossos) (p.90-91)

Ademais, princípios são normas finalísticas, na medida em que estabelecem


uma finalidade a ser atingida, enquanto que as regras são normas meramente
descritivas. Os princípios determinam um conteúdo para o alcance de seu fim, que
traduz um comportamento. O princípio da eficiência, por exemplo, estabeleceu
como fim a produção do efeito desejado pelo interesse público com qualidade e
sem burocracia. Para a efetivação desse estado ideal de coisas, impôs o dever de
 
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que os agentes públicos se aperfeiçoassem pessoal e tecnicamente, a fim de


exteriorizar aquela finalidade contida no princípio. Por outro lado, as regras apenas
descrevem diretamente, e podem ser classificadas como comportamentais, quando
contém proibição ou permissão de determinada conduta, ou constitutivas, quando
atribuem efeitos jurídicos a determinados fatos, atos ou situações.13
Por todo o exposto, restou clara a diferenciação existente na substância das
duas espécies de normas jurídicas. Os princípios são dotados de grau de
generalidade maior, fornecem fundamentos que direcionam o intérprete na
integração do ordenamento, são normas imediatamente finalísticas, dotadas de
objetividade, abstração, relatividade frente a outros princípios, primariedade, e
informatividade. As regras, por sua vez, se restringem á descrição de um
comportamento proibido ou permitido, incidindo sobre uma hipótese específica.

4. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Merece inconcussa acolhida a diretriz propugnadora do respeito a todos os


seres e coisas existentes. É princípio geral de Direito. Mas entre todos os seres
vivos, é o ser humano quem se enfatiza por sua extraordinária condição biológica,
emocional, moral, espiritual, estética e racional, conferindo-lhe excepcional dignidade
no reino animal.
O ser humano é dotado de capacidade para elaborar juízos de valor, vez
que dotado de singular racionalidade, o que lhe permite impor sua vontade sobre

                                                            
13 Para Ávila (2005, p.81-82), as regras constitutivas podem ser reconstruídas a partir dos seguintes
dispositivos: dispositivos relativos à atribuição de competências, dispositivos relativos ao exercício de
competência; dispositivos relativos à delimitação material de competência; dispositivos relativos à
reserva de competência e dispositivos relativos à delimitação substancial de competência.
 
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as vicissitudes naturais, tornando-se emocional e espiritualmente superior às


demais criaturas que com ele compartilham a vida no planeta.

Concebidos como filhos de uma Divindade, capazes de emitir


juízos de valor, possuindo sentimentos, racionalidade, senso
estético, livre arbítrio e, sendo responsáveis por seus atos e, além
do mais, destinatários de toda evolução, os homens têm
inigualável dignidade no reino da criação. (BRÜNING, 2007,
p.39)

O reconhecimento da necessidade de respeito incondicional à existência


condigna do ser humano implica inicialmente no dever de abordá-lo como algo
superior a uma comezinha porção material de células. Significa reconhecer sua
superioridade sobre as demais coisas da natureza, em decorrência de sua destacada
destinação espiritual, de sua missão existencial.14
Bloch (apud SANTOS, 2001) enfatiza as duas dimensões do princípio da
dignidade da pessoa humana: a positiva e a negativa. A dimensão positiva ressalva a
necessidade do desenvolvimento pleno de cada homem, propugnando a
consideração de sua total autodiponibilidade, de modo a impedir qualquer
interferência interna a limitar a capacidade de atuação própria de cada pessoa e
também enfatiza a autodeterminação, originada da razão em sua projeção histórica e
não pela natureza.
Já a dimensão negativa da dignidade da pessoa humana refere-se à proteção
da incolumidade do homem15, que jamais deverá ser tomado como alvo de
humilhações.

                                                            
14 “Mesmo as teorias chamadas materialistas, que não querem aceitar a espiritualidade da pessoa

humana, sempre foram forçadas a reconhecer que existe em todos os seres humanos uma parte não-
material. Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte
dos direitos humanos.” (DALLARI, 1999. p. 9).
15 Em consonância à dimensão negativa da dignidade da pessoa humana, o art.5º, III da

Constituição da República assevera que “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano ou degradante”.
 
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Impõe-se, por conseguinte, a afirmação da integridade física e


espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua
individualidade autonomamente responsável; a garantia da
identidade e integridade da pessoa através do livre
desenvolvimento da personalidade; a libertação da “angústia da
existência da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre
os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de
condições existenciais mínimas.”( SANTOS, 2001)

A expressão “dignidade da pessoa humana” revela dois conceitos


fundamentais, vez que contém dois valores jurídicos: a pessoa humana e a dignidade,
merecedores de abordagem acentuada.

4.1. A pessoa humana

Na antiga Grécia, o homem era tratado como animal político ou social,


pertencendo ao Estado. A vida do homem em sociedade confundir-se-ia com a vida
do próprio Estado, que sobrepor-se-ia sobre os próprios indivíduos, ou cidadãos da
polis grega. Deste modo, a dignidade do ser humano era atributo vinculado à
integridade do Estado, que, para manter sua incolumidade, poderia valer-se da
imolação ou extermínio de seus componentes. O homem vivia para e em função do
Estado.
Foi o Cristianismo, retomando ensinamentos judaicos e gregos, que lançou
o homem à posição de ente dotado de fins absolutos, possuindo valor em si mesmo.
A evangelização procurou propalar no mundo a noção de que o homem possuía
valor absoluto, já que Jesus Cristo chamou todos os homens para procurarem sua
salvação. O ser humano, com o posterior advento das filosofias patrística e

                                                                                                                                                                   
 
 
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escolástica, passou a ser considerado ente com subjetividade própria, destinatário


de direitos fundamentais e merecedor de dignidade. A partir de então, o Direito
deslocaria atenção do plano do Estado para o plano individual, reconhecendo a
independência da vida social do homem em relação à vida do Estado. Passou- se a
buscar equilíbrio entre liberdade e autoridade.
O filósofo alemão Immanuel Kant, na sua revolucionária investigação
acerca da teoria do conhecimento, no século XVIII, posicionou o homem no
centro de suas atenções. No processo cognitivo, não é mais o ser cognoscente quem
deve amoldar-se aos objetos que toma como objeto de análise, mas, por outro lado,
os próprios objetos é que devem se adequar ao conhecimento do indivíduo. O
sujeito, dessa forma, passa a ser considerado o elemento decisivo na elaboração do
conhecimento.
A partir de Kant, o homem foi definitivamente tomado como ser que
indicava um fim em si mesmo, diferentemente das coisas, representativas apenas de
um meio, para se alcançar outra coisa. O homem é guarnecido, portanto, de valor
absoluto, vez que sua natureza racional existe como fim em si mesmo. Só o ser
humano, como ser racional que é, pode ser chamado de pessoa, designação que não
se estende aos demais seres e objetos.
Assim sendo, em virtude da contribuição de Kant, a pessoa humana é tida
como centro de imputação jurídica, vez que o Direito deve existir para possibilitar
seu desenvolvimento. As Ciências Jurídicas só existem em virtude do homem, como
necessárias à sua incolumidade e bem-estar.

 
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4.2. A Dignidade

Todos os elementos, no reino dos fins, são dotados quer de preço, quer
de dignidade. O preço representa valor que permite a substituição por outro
objeto equivalente. Sendo assim, aos objetos atribui-se um preço, vez que sua
valoração está condicionada às vicissitudes do mercado. Cada objeto, por portar
um preço, acaba por revelar extrinsecamente superioridade ou inferioridade sobre
outros objetos, em cotejo de valores economicamente aferíveis. O objeto que vale
mais, ostentando preço maior, evidentemente vale mais, é superior, aos dotados
de preços mais módicos.
Por outro lado, tal raciocínio não se aplica ao ser humano, já que este não
possui um mero preço, mas sim dignidade, própria de sua condição humana. A
dignidade é superior a qualquer preço, pois é insuscetível de substituição por outra
“dignidade equivalente”. Indica valor interno, comum a todos os homens,
imiscuindo-se em sua condição existencial. Todos os homens possuem a mesma
dignidade, o mesmo “valor”, não sendo admissível qualquer tentativa de
sobreposição de um homem sobre outro, como ocorre com as coisas.

A dignidade é atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana,


único ser que compreende um valor interno, superior a
qualquer preço, que não admite substituição equivalente.
Assim, a dignidade entra e se confunde com o próprio ser
humano. ( SILVA, 1998, p. 93)

Portanto, a dignidade significa que todo ser humano revela essência por
intermédio da qual outro homem é impedido de submeter ser semelhante aos
ditames de seu alvitre. Nenhum ser humano pode ser considerado como meio para
os outros, porque é um fim em si mesmo, possuindo valor incomensurável,

 
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superior a qualquer outro ser ou coisa.16 Cabe ao Estado, conforme se


demonstrará a seguir, atuar de modo a efetivar essa existência condigna do ser
humano.

4.3. A proteção constitucional da Dignidade da Pessoa Humana

Na órbita internacional, a dignidade da pessoa humana encontra escora na


Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela Organização das
Nações Unidas em dezembro de 1948, logo após o execrável período da Segunda
Guerra Mundial, na qual cinqüenta e cinco milhões de pessoas perderam suas vidas.
In verbis:

Preâmbulo: Considerando que o reconhecimento da dignidade


inerente a todos os membros da família humana e dos
seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da
liberdade, da justiça e da paz do mundo.(...)Artigo I: Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns
aos outros com espírito de fraternidade.17

Foram motivos históricos, portanto, que impulsionaram o processo de


positivação interna do referido princípio, normalmente em momentos subsequentes
a períodos totalitários e despóticos, fomentadores de profunda transgressão à
dignidade da pessoa humana tais como o nazismo alemão, o franquismo espanhol e

                                                            
16 Kant nos diz, de acordo com a tradução de Paulo Quintela (1989): “O homem, e, duma maneira

geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso
arbitrário desta ou daquela vontade”. (1989, p.45)
17 No original, em inglês, “Preamble: Whereas recognition of the inherent dignity and of the equal and

inalienable rights of all members of the human family is the foundation of freedom, justice and peace in the world.
(…) Article 1: All human beings are born free and equal in dignity and rights. They are endowed with reason and
conscience and should act towards one another in a spirit of brotherhood.” 
 
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o salazarismo português. Houve uma espécie de inserção valorativa nos


ordenamentos, principalmente após as Grandes Guerras do Século XX, que
procurou sobrepor características mais compassadas à existência que ao patrimônio.
O Brasil, palco de igualmente desumano regime ditatorial conhecido pela
História como Ditadura do Regime Militar (1964-1985), alçou, após a derrocada do
regime repressivo, a dignidade da pessoa humana à posição de fundamento da
República Federativa, no art.1º, inciso III de sua Carta Maior.18
Como consequência do reconhecimento do princípio da dignidade da
pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, o Estado
Brasileiro deve existir em função das pessoas que o compõe, e não o contrário. Isso
implica na necessidade de promover uma verdadeira inversão na prioridade política,
social, econômica e jurídica até então existente. Na visão de Martins passa-se, a
partir de 1988, “ a ter consciência constitucional de que a prioridade do Estado
(política, social, econômica e jurídica) deve ser o homem, em todas as suas
dimensões, como fonte de sua inspiração e fim último. Mas não o ser humano
abstrato do Direito, dos Códigos e das Leis, e sim, o ser humano com concreto, da
vida real.” (2003, p.72). A pessoa humana, assim sendo, deve ser encarada como o
holofote de qualquer atividade estatal, seja ela administrativa, jurisdicional ou
legislativa.

Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob
pena de inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa
humana, considerando se cada pessoa é tomada como fim em si
mesmo ou como instrumento, como meio para outros objetivos.
Ela é, assim, paradigma avaliativo de cada ação do Poder
Público e "um dos elementos imprescindíveis de atuação do
Estado brasileiro.” (SANTOS, 2001)

                                                            
18 Art.1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana
 
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A pessoa humana é a razão de ser do Estado, sua raiz antropológica


constitucionalmente estruturante, ou seja, todo o aparato econômico, político e
jurídico do Estado deve se fundamentar no arrimo, na salvaguarda do homem.19
A pessoa humana, ao ter sua dignidade elevada à categoria de fundamento
da República, representa assim, o valor último e supremo da democracia.20 É visto
como supremo, pois atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem,
desde o direito à vida. (SILVA, 1996, p.107). A dignidade da pessoa humana é
princípio absoluto, pois a pessoa, “é um minimum invulnerável que todo estatuto
jurídico deve assegurar.” (SANTOS, 2001)
Silva (1998, p.92) entende que o princípio da dignidade da pessoa humana
como fundamento da República, transcende a órbita do Direito e implica em
reconhecer a posição predominante do homem em todas as esferas vitais. Nesse
sentido:

Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num


valor fundante da República, da Federação, do País, da
Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio de
ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social,
economia e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque
está na base de toda a vida nacional.

                                                            
19 “Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art.
170), a ordem social visará a realização da justiça social (art.193), a educação, o desenvolvimento da
pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art.205) etc., não como meros enunciados
formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.
(SILVA, 1998, p.107)
20 “Ademais, sublinhar a dignidade da pessoa humana como fundamento implica agregar à própria

noção de República e de Estado Democrático de Direito um valor histórico e concretamente


condicionado, ou se preferirmos, um dado empírico, já que o valor dignidade da pessoa humana só
se pode aferir a partir de uma perspectiva concreta que contemple a pessoa humana como ser dotado
de uma dignidade própria; não enquanto categoria jurídica meramente ideal e abstrata, mas enquanto
pessoa real. Isso significa que no constitucionalismo brasileiro contemporâneo os conceitos de
Estado, República e Democracia são funcionalizados a um objetivo, a uma finalidade, qual seja, a
proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.”(MARTINS, 2003, p. 73). 
 
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Santos (2001) adverte-nos acerca impropriedade da concepção


individualista da dignidade da pessoa humana, que propugnaria o privilégio irrestrito
do indivíduo sempre que este se colocasse em posição conflitante com o Estado.
Para Santos (2001), dever-se-ia adotar uma concepção personalista da dignidade, que
procurasse encontrar um ponto de equilíbrio, compatibilizando os valores coletivos
e individuais, de acordo com as circunstâncias do caso em concreto. Não haveria
assim, predomínio apriorístico do indivíduo sobre o todo.
Contudo, mesmo diante de caso em que se torna necessária a
adoção de regra consoante o valor coletivo em detrimento do individual, a
concepção personalista do princípio da dignidade da pessoa humana dita o dever
segundo o aquela escolha, jamais poderá ferir ou sacrificar o valor da pessoa.

5. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO


PROCESSO ADMINISTRATIVO

Tendo em mira as nobres funções desempenhadas pelo processo


administrativo, que surgiu em decorrência da necessidade da salvaguarda dos
interesses básicos dos homens em contraposição à prepotência do Estado
Absolutista, bem como considerando a relevância da valorização da dignidade da
pessoa humana na gama principiológica que ampara nosso ordenamento
administrativo-constitucional, alocando o ser humano como fim absoluto e valor
supremo do Estado Democrático de Direito, mister faz-se a compatibilização da via
administrativa ao arcabouço protetor dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Em virtude da brevidade do presente trabalho, serão enfocados aqueles
direitos e garantias mais importantes, que se destacam nas relações travadas pela
administração pública no bojo de processos administrativos. A proteção desses
 
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direitos e garantias revela, indubitavelmente, proteção à dignidade da pessoa


humana, em suas dimensões positiva e negativa.

• Direito à intimidade, honra, vida privada e imagem das pessoas:


no curso de processo administrativo, o órgão julgador deve zelar pelo
escorreito amparo dos direitos em foco, em todas as fases e atos
processuais, evitando a exposição desnecessária das partes. De acordo
com Brüning, a transparência administrativa não é licença para expor à
execração pública a vida íntima, a honra e a imagem das pessoas.

• Igualdade perante a lei: é regra que consubstancia o devido


respeito à dignidade da pessoa humana no processo administrativo, vez
que implica na imposição de dever ao agente público em dispor tratamento
equânime às partes, especialmente no momento de colheita de
provas,quando o julgador deverá conceder oportunidades igualitárias a
ambos os contendores, a fim de influir, em pé de igualdade, na formação
da decisão daquele. Nesse sentido, administração e particular deverão,
respeitadas as óbvias disparidades competitivas, ocupar posições
equivalentes que pressuponham tratamento de igualdade.

• Proibição de penas cruéis: na seara administrativa, tal regra


significa a vedação de punições desarrazoadas, em descompasso ao
princípio da proporcionalidade. O órgão processante deve abster-se de
infligir penalidade excessiva a qualquer ente que ocupe um dos pólos da
relação processual administrativa pelo simples fato de agir motivado por

 
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sentimentos pessoais, de vingança.,21 Aqui, tem crucial importância o


princípio da proporcionalidade, como foi dito.
Em seu sentido estrito, o princípio da proporcionalidade veda a
imposição de sanções administrativas excessivas e
desproporcionais à situação fática que serve de motivo para a
imposição da punição. (...) A intensidade da conduta ilícita
praticada pelo infrator: quanto mais grave a conduta, mais intensa
deve ser a sanção. (MELLO, 2007, p.173-174)

• Liberdade de convicção religiosa, filosófica e política: no processo


administrativo deve ser assegurado o respeito à diversidade de pensamento
e convicções de toda ordem aos seus participantes, não sendo admitida o
império de qualquer pré-concepção destoante da linha cultural da
autoridade processante. Brüning (2007, p.84) lembra-nos de que é bastante
comum, na gestão pública a presença de candidatos da oposição
disputando a direção de órgãos e demais instituições com candidatos da
situação. O devido respeito à diversidade filosófica-política impõe a
necessidade de ilidir qualquer preconceito em torno desses elementos.

• Direito de petição: nesta garantia reside, de acordo com Brüning,


(2007, p.84) o campo de maior incidência da processualidade
administrativa, vez que ela se espraia pelos mais diversos tipos de conflito.
Corolário da democracia participativa, o direito de petição consubstancia
proteção à dignidade da pessoa humana porque permite a qualquer

                                                            
21 “À medida que os suplícios se tornam mais cruéis, os espíritos humanos que, como os fluidos,

se nivelam sempre com os objetos que os cercam, endurecem, e a força sempre viva das paixões
faz com que, após cem anos de cruéis suplícios, a roda assuste tanto quanto antes a prisão assustava.
Para que uma pena produza o seu efeito, basta que o mal que ela mesma inflinge exceda o bem que
nasce do delito e nesse excesso de mal deve ser levada em conta a infalibilidade da pena e a
perda do bem que o delito devia produzir. Tudo o mais é supérfluo e, portanto, tirânico.”
(BECCARIA, 2005, p.92-93)
 
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interessado recorrer às vias administrativas para reclamar acerca de algo e


obter resposta fundamentada. Sejam pedidos de indenização, licenças,
denúncias, sugestões ou queixas, o direito de petição tem crucial
importância na sistemática do processo administrativo, vez que é o
instrumento técnico adequado que permite ao cidadão tomar parte em seu
bojo, assegurando a proteção a seus direitos e funcionando como eficaz
meio de fiscalização dos particulares sobre as atividades administrativas.
Dá azo à possibilidade de efetivação do contraditório e da participação
popular na administração pública. Neste sentido é o posicionamento de
Siedentopf (apud SOARES, 1997, p.148):

Para Siedentopf, a participação dos cidadãos nas decisões


administrativas objetiva o seguinte: a) racionalização das
decisões administrativas através de uma informação melhor e
disponível; b) previsibilidade do cidadão quanto ao conteúdo
das decisões administrativas; c) vontade reforçada da ação
administrativa através da publicidade e transparência; d) maior
legitimação da decisão administrativa tomada; e) integração do
cidadão e grupos de cidadão à decisão administrativa tocada
pelo bem comum; f) desenvolvimento da autodeterminação e da
emancipação do cidadão na sua comunidade.

• Acesso à informação: impõe respeito às necessidades de mirar o


conteúdo das informações contidas em termos e certidões processuais
administrativas, tendo como limite a proteção da intimidade de acordo
com as vicissitudes do caso concreto. É corolário da transparência
administrativa e democracia participativa.

• Ampla defesa e contraditório: implica, além de posicionar as


partes em posições equânimes no intuito de guarnecê-las efetivamente de
“armas” para influir no convencimento da autoridade julgadora, a ciência a
ambas as partes acerca dos atos praticados por todos os sujeitos do
 
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processo, possibilitando a cada um a faculdade de debatê-los e


refutá-los, em sua inteireza ou parcialidade. A ampla defesa decorre do
contraditório, pois representa este em sua concretude, ou seja, uma vez
proporcionado o contraditório, ambas as partes terão a possibilidade de
efetuar defesas coesas e preparadas, consubstanciando o que a doutrina
designa por “equipotência” ou “equivalência de forças”.

• Exigência do devido processo legal: qualquer restrição à esfera


patrimonial ou às liberdades públicas de uma pessoa só é legitimada
quando respeitados os ditames do devido processo legal administrativo.
Ou seja, exemplificativamente, a liberdade de peticionar, de acessar cargos
públicos, de participar dos negócios da Administração, de opor-se à
abusos, tudo isso só pode ser mitigado se observados forem os princípios
e regras que contemplam o devido processo legal.

Assim, se uma empresa se inscreve num procedimento


licitatório, não poderá ser privada de participar do certame sem o
devido processo legal. Também, ninguém poderá sofrer uma
desapropriação sem o devido processo legal. (...) Nem sempre
isso ocorre, lamentavelmente. Vez por outra, as garantias
materiais e processuais são atropeladas por licitações dirigidas e
desapropriações a preços irrisórios, para não falar de outras
situações freqüentes na administração pública brasileira.
(BRÜNING, 2007, p.142)

Dessa forma, o devido respeito à pessoa humana deve ser, como


analisado, alvo de proteção também pela processualidade administrativa. Abusos,
discriminações, humilhações, defesas hipossuficientes, tratamentos iníquos, dentre
outras violações às garantias fundamentais não poderão ser toleradas no Estado
Democrático de Direito. A dignidade da pessoa humana é fundamento, valor
fundante e supremo da República e por isso, deve ter seu conteúdo respeitado não

 
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apenas na esfera jurídica, mas também social, econômica, cultural, política, em suma,
em toda a vida do homem em sociedade. O processo administrativo demorado,
desleal, desonesto, tendencioso, desnecessário, tendencioso e excludente
desrespeita a dignidade da pessoa humana. (BRÜNING, 2007, p.41)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Processo administrativo é relação ou situação jurídica que se desdobra


temporalmente em harmônica sequência de atos administrativos (processuais) lógica
e juridicamente concatenados, visando uma decisão final imperativa do Estado e
que se realiza mediante a participação dos interessados em contraditório.
Princípio jurídico é postulado basilar que confere sistematização a um
ordenamento, representando comando geral e superior, verdadeira viga-mestra do
sistema do Direito. A transgressão de um princípio pode acarretar a anulação de
ato ou até mesmo a ocorrência de delito (improbidade administrativa, verbi
gratia), passível de sanção nas esferas administrativa, civil e penal. Apresentam
função integrativa, fundamentadora e interpretativa.
Atrelado a tais conceitos, a dignidade da pessoa humana surge,
especialmente após momentos beligerantes do século XX, como princípio
positivado em diversas Cartas Internacionais, e em especial, a Declaração dos
Direitos Humanos promulgada pela ONU em 1948. No Brasil, o princípio é alçado
à categoria de fundamento da República Federativa, no art.1º, III, CF/1988,
representando “valor supremo”, aglutinador de inúmeros direitos fundamentais dos
seres humanos.

 
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A necessidade de salvaguarda desse importante princípio, o qual aloca o


ser humano em posição central de toda atividade estatal, como ente dotado de fins
absolutos, conduziu à presente reflexão que pretendeu ajustar a necessidade de
proteção dos direitos fundamentais do homem no âmbito da seara processual
administrativa.
Posto isso, é inegável que ao homem são asseguradas garantias básicas
constitucionais no curso do processo administrativo. Além das tradicionais garantias
reservadas aos processos em geral, como ampla defesa, contraditório e devido
processo legal, o presente trabalho objetivou também afirmar a imprescindibilidade
de salvaguardar sua liberdade filosófica ou religiosa no curso do procedimento, o
direito de petição como fundamento da cidadania participativa, o direito à honra,
intimidade, sigilo, igualdade, guarnecendo o processo administrativo de garantias
fundamentais aptas a assegurar, proteger e alçar o indivíduo como razão de ser
também do processo administrativo.

REFERÊNCIAS

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PÓS-MODERNIDADE E RACIONALIDADE: A FUNDAMENTAÇÃO


DAS DECISÕES JUDICIAIS COMO ELEMENTO CONCRETIZADOR
DA DEMOCRACIA

Ricardo Rocha Viola1

RESUMO

Pós-modernidade, a moldura dentro da qual quase tudo se acomoda. O hoje é pós-


moderno. O Positivismo mostrou-se aliado das atrocidades humanas mais recentes.
A Teoria Pura do Direito esvaziou-se e ruiu. Veicula-se a derrocada da razão, que,
supostamente, mostrou-se incapaz de explicar as perplexidades da experiência
humana. Dentre estas perplexidades, especificamente no âmbito jurídico e político,
estão a quase insuperável descrença no poder estatal; a inaceitável separação entre
Direito e justiça; a abissal distância entre a validade da norma jurídica e a sua
efetividade. Na contramão da descrença, acredita-se que está próxima a completude
do sentido da expressão constitucional do Estado Democrático de Direito. O Poder
Estatal que já esteve centrado no Poder Executivo, e já teve no Poder Legislativo a
sua maior expressão, agora encontra no Poder Judiciário a sua manifestação
justificadora e salvadora. Nunca antes a Constituição esteve tão em evidência na
experiência jurídica brasileira. Toma-se a técnica legislativa das cláusulas abertas e dos
conceitos indeterminados como qualidade indispensável à democracia, uma vez que,
é justamente por esta abertura semântica que o sistema demonstra capacidade de
adequação às constantes mudanças sociais. Mas esta abertura não pode ser
desmesurada. Não pode ela importar em colmatação irracional do sistema jurídico, o
que vulnera a homoestase sistêmica e põe em risco o próprio Estado Democrático de
Direito. Surge então o questionamento fundamental: como preencher seguramente
os conteúdos de significação das decisões jurídicas fundamentais? Mais uma vez
aclama-se a racionalidade como elemento capaz de por bom termo à questão. A
racionalidade, que no Direito se manifesta pela argumentação jurídica, é o
instrumental que se mostra hábil a permitir que os fundamentos filosóficos dos
Direitos fundamentais enfim adentrem no sistema jurídico e ocupem o lugar que lhes

                                                            
1 Mestrando em Direito Público pela Faculdade de Direito “Prof. Jacy de Assis” da Universidade

Federal de Uberlândia. 
 
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é devido. A razão e argumentação jurídicas estão a serviço desta empreitada épica da


nova era.
Palavras-Chave: Pós-modernidade, Direito, Democracia.
Keywords: Postmodernity, Reasons, Democracy.

INTRODUÇÃO

O propósito deste artigo é demonstrar os desafios aos quais se encontra


submetido o modelo do Estado Democrático de Direito no contexto da pós-
modernidade, que, enquanto movimento cultural instalado repercute fortemente no
âmbito jurídico. Por um lado pensa-se que a influência da pós-modernidade no
ambiente jurídico redunda na exaltação perniciosa do subjetivismo decisório. Por
outro enfoque, na pós-modernidade jurídica verifica-se a reaproximação entre o
Direito, a Filosofia e a Sociologia, o que manifesta a consolidação da essencial
prevalência da racionalidade objetiva que deve permear as decisões jurídicas.
Num cenário onde os fenômenos do ativismo judicial, da judicialização da
política e da politização do Judiciário são intensamente debatidos, o
esquadrinhamento da referida racionalidade objetiva das decisões judiciais é elemento
central para o balizamento democrático da atividade jurisdicional. Sem este
balizamento corre-se o sério risco de ver-se o Poder Judiciário deixar o posto de
guardião da democracia para transformar-se em protagonista de uma ditadura
déspota. Afirma-se assim que a racionalidade jurídica objetiva é o elemento capaz de
concretizar a comunhão entre Direito e democracia.
A demonstração do acima mencionado dar-se-á no contexto da pós-
modernidade, que em Direito assume a roupagem dos eflúvios do pós-positivismo.
O pretexto adotado é o debate contemporâneo acerca dos Direitos fundamentais. O

 
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texto terá assento na teoria dos sistemas, na teoria da linguagem, no construtivismo


lógico-jurídico e na teoria da argumentação jurídica.
1. O CONTEXTO: A TRANSIÇÃO DA MODERNIDADE PARA A
PÓS-MODERNIDADE E A REPERCUSSÃO DESTA TRANSIÇÃO NOS
QUADRANTES JURÍDICOS.

Como já afirmado na introdução deste artigo o contexto na esteira do qual


se desenvolve o problema é o da pós-modernidade, mais especificamente, o da
transição cultural da modernidade para a pós-modernidade e as implicações que esta
transição dispara em relação ao Direito.
A modernidade pode ser concebida enquanto um modus vivendi relacionado
ao projeto de mundo da sociedade liberal burguesa, que, instalou-se com a
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América de 1776 e com a
Revolução Francesa de 1789, e desenvolveu-se pela força visceral do modo de
produção capitalista expansionista.
O liberalismo dava o tom para a humanidade. Seja no âmbito intelectual,
econômico ou político, o centro das atenções era sempre a liberdade individual em
oposição às maciças interferências estatais verificadas no período do absolutismo. É
nesta época que são consagrados os ideais de liberdade e de Estado de Direito
enquanto limitação à voracidade estatal absolutista. Decorrências do capitalismo, a
propriedade privada e o livre mercado assumem feição sacrossanta. Está criado,
portanto, o cenário adequado para o desenvolvimento do positivismo. Sobre o
positivismo, afirmaram Giovane Reale e Dario Antiseri (2005:287):

“... o movimento de pensamento que dominou parte da cultura


européia em suas expressões não só filosóficas, mas também
políticas, pedagógicas e literárias (é este o período do verismo e do
naturalismo) desde cerca de 1840 ate os inícios da primeira guerra

 
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mundial. Os traços de fundo do ambiente sociocultural que o


positivismo interpreta, exalta e favorece são: uma substancial
estabilidade política, o processo de industrialização e
desenvolvimentos por vezes portentosos da ciência e da
tecnologia. O marxismo interpretará de modo muito diferente a
revolução industrial e seus males (desequilíbrios sociais,
exploração do trabalho de menores, etc.). Os positivistas não
ignorarão estes males; tinham porém confiança na força da ciência
e do espírito científico, a seu ver mais que adequados a repor em
seu lugar todo o corpo social”.

Reflexo deste movimento cultural geral, na cultura jurídica desenvolveu-se e


consolidou-se o positivismo jurídico que submeteu o Direito a um modelo de
enfrentamento equivalente ao das ciências exatas e naturais. (BARROSO, 2004:348)
Para os positivistas o cerne do Direito é a norma jurídica, importando apenas a sua
validade e não a sua justiça. O enfrentamento do Direito é avalorativo. Seu elemento
essencial é a força segundo a qual os desígnios normativos podem ser perseguidos. A
lei assume o papel de fonte primeira do Direito. Os princípios jurídicos e os valores
são elementos extrajurídicos, que, geralmente encartados nas Constituições, assumem
feição preponderantemente política, não vinculante em termos jurídicos, meros
aconselhamentos para o legislador e para o administrador. O ordenamento que
alberga as normas jurídicas denota suposta coerência e completude, inexistindo
espaço para as antinomias e para as lacunas. O Direito há de ser interpretado e
aplicado de forma mecânica pelo intérprete/juiz, a quem não cabe qualquer
interferência criativa. (BOBBIO, 1999:131) No ambiente jurídico o debate restringe-
se à validade. Justiça e legitimidade são questões a serem debatidas em outros foros.
(BARROSO, 2004:349)
Após certo período de estabilidade, já no século XX, as metanarrativas
mostram suas vísceras e suas fragilidades que são percebidas em diversos momentos
históricos. A crise do liberalismo econômico que culminou com o crack da bolsa de
Nova Iorque em 1929, as duas grandes guerras mundiais e a derrocada do mundo
 
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soviético são exemplos marcantes de que algo estava mudando na sociedade. Era a
chegada da pós-modernidade, o momento em que os metarrelatos que orientavam a
sociedade caíram em descrédito. (LYOTARD, 2006:xvi)
Esta incredulidade que acabou por decretar que a metanarrativa totalizante
do capitalismo liberal não é suficiente para proporcionar felicidade à humanidade.
Por outro lado, também mostrou que o metarrelato marxista não deu conta da
complexidade social que deixou para traz a dicotomia burguesia vs. proletariado.
O estatuto do saber modificou-se gravemente em relação à época moderna.
Ocorre a fragmentação das ciências num movimento de especialização jamais visto.
As universidades transformam-se em um sem número de institutos. (LYOTARD,
2006:71)
É o momento da pluralidade, do império das diferenças. O que une as
pessoas não é mais o estandardizado, mas o customizado. Mais do que nunca é
imperativo tratar os desiguais na medida de suas desigualdades. Os elos comunitários
de antes que exigiam o contato pessoal dos conviventes, agora são virtualizados.
Qualquer um que tenha acesso à grande rede de computadores é um cidadão sem
fronteiras. Num click vinculam-se instantaneamente um cidadão brasileiro, outro
libanês, e um chinês. Não há mais tempo nem distância para a troca de informações.
A superação das coordenadas de tempo e espaço, condicionantes da fugacidade
humana, impacta de forma drástica o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. As
informações trafegam em velocidade e volume fantásticos entre os cidadãos
espalhados pelo mundo. Basta um bom processador. A natureza pós-moderna é
cibernética.
A onda, ou melhor, a tsunami pós-moderna repercute em todos os
quadrantes culturais, e, obviamente, o Direito não está a salvo destas repercussões.
Ainda bem!

 
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Se na modernidade o Direito adotou o modelo positivista, essencialmente


formal, mecânico, estandardizado, avalorativo, na pós-modernidade vem à tona a
essência do Direito, seu conteúdo material. Os valores e os princípios jurídicos
assumem definitivamente sua condição vinculante, justamente em função da
percepção de força normativa das Constituições (HESSE, 1991). Surgem diversos
microssistemas normativos para tratar dos diferentes, como no caso brasileiro do
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.
Cláudia Lima Marques (2004:49), referindo-se a seu mestre, o alemão Erick
Jayme, assevera:

“... E se a pós-modernidade, segundo Erick Jayme, é a época do


pluralismo,com reflexos no Direito na pluralidade de leis especiais,
de agentes a proteger, de sujeitos de uma relação de consumo,
certo é que, segundo este pensador alemão, a este pluralismo se
une o Leitmotive do renascimento dos Direitos humanos, sendo o
revival da importância dos Direitos fundamentais, individuais ou
mesmo coletivos, contrapondo-se antinomicamente ao
movimento de aproximação e de abertura comercial mundial”.

Como afirmado acima, neste cenário pós-moderno o debate jurídico em


torno dos Direitos fundamentais ganha extrema importância, pois, a sociedade plural
e extremamente complexa já não mais está satisfeita com a simples previsão dos
Direitos e de suas garantias. A sociedade exige que o Estado dê efetividade aos
Direitos fundamentais.
Surge então um novo problema, falso (VIOLA, 2009:15), mas um
problema, qual seja, como dar efetividade aos Direitos fundamentais, considerando a
baixíssima densidade normativa dos seus respectivos enunciados prescritivos, já que,
via de regra, foram eles vazados com base na técnica legislativa das cláusulas abertas e
dos conceitos indeterminados. Se o sistema jurídico não reduz a abertura semântica,

 
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p.e., do enunciado veiculador do Direito à saúde, não é por isso que o cidadão
poderá ser alijado do gozo pleno do referido Direito fundamental.
Este tipo de debate promove uma importante alteração no jogo de forças
políticas estatais. O poder estatal que já esteve centrado no Poder Executivo e já teve
no Poder Legislativo a sua maior expressão, agora encontra no Poder Judiciário a sua
manifestação justificadora e salvadora, indicando estar próxima a completude do
sentido da expressão constitucional do Estado Democrático de Direito.
Surge o neoconstitucionalismo, cujas características podem ser organizadas
em dois grupos, as metodológico-formais e as materiais. No primeiro grupo
encontram-se o reconhecimento da força normativa da Constituição, a supremacia
sistêmica de suas normas e a centralidade sistêmica da Carta Política. No segundo
grupo estão a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos
constitucionais e a expansão de conflitos específicos e gerais entre as opções
normativas e filosóficas encartadas no bojo do próprio sistema constitucional.
(BARCELLOS, 2005:2)
O Poder Judiciário ganha em importância política, na medida em que agora
a capacidade criativa do intérprete é fundamental para que os conceitos
indeterminados albergados nos textos normativos ganhem densidade e toquem o
plano da realidade social em erupção. O Direito não é abstraído da norma, mas
construído a partir do enfrentamento pleno dos enunciados prescritivos.
O Direito não mais é hermeticamente fechado às influências de outras
ciências afins, tais como a filosofia e sociologia. Ao contrário, os influxos filosóficos
dos Direitos fundamentais são indispensáveis para uma construção semântica
tendente à completude, à plenitude.
Luis Roberto Barroso (2005) assim manifesta-se acerca deste momento:

 
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“O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não


despreza o Direito posto; procura empreender uma leitura moral
do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A
interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser
inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar
voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No
conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste
paradigma em construção incluem-se a atribuição de
normatividade aos princípios e a definição de suas relações com
valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação
jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o
desenvolvimento de uma teoria dos Direitos fundamentais
edificada sobre o fundamento da dignidade humana. Nesse
ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a
filosofia”.

É o momento do ativismo judicial, da judicialização da política e da


politização do Judiciário. É o momento dos Direitos fundamentais e da consolidação
da democracia.

2. O PRETEXTO E O TEXTO: O DEBATE CONTEMPORÂNEO EM


TORNO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DEVER
CONSTITUCIONAL DE FUNDAMENTAR RACIONALMENTE AS
DECISÕES JUDICIAIS.

Os Direitos fundamentais são judicializáveis? Qual a densidade normativa


dos Direitos fundamentais? É legítima a atuação judicial que dá concretude a um
Direito fundamental enunciado em cláusula aberta? É possível determinar o
conteúdo jurídico geral e abstrato de um Direito fundamental? Como resolver
eventuais conflitos entre Direitos fundamentais?

 
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Sem querer exaurir a questão, todos os questionamentos acima


mencionados traduzem o debate contemporâneo em torno dos Direitos
fundamentais. Não é possível responder a todas as referidas questões neste pequeno
artigo, mas, espera-se ofertar singela contribuição para a evolução do debate.
Assim entende-se indispensável definir o que vem a ser um Direito
fundamental para que o debate possa ter sequência, o que, apesar de parecer uma
postura de viés positivista, é em verdade uma empresa dogmática de caráter
construtivista lógico-jurídico.
Mas, antes de propor o conceito é indispensável ofertar dois
esclarecimentos.
Em primeiro lugar esclareça-se que está sendo adotada a idéia de que
enunciado prescritivo e norma jurídica são entidades relacionadas, porém distintas.
Enunciado prescritivo é o suporte físico da mensagem deôntica (permitido, proibido
ou obrigado) considerada na sua ambiência. Norma jurídica é o produto do
preenchimento semântico do enunciado, verificado a partir do contato intelectual do
sujeito cognoscente (sujeito de Direito) com o objeto cognoscível (enunciados
prescritivos). Enunciado prescritivo é o objeto da interpretação, norma jurídica é o
produto da atividade interpretativa.
Paulo de Barros Carvalho (2008:129) anota o que segue:

“Uma coisa são os enunciados prescritivos, isto é, usados na função


pragmática de prescrever condutas; outras as normas jurídicas, como
significações construídas a partir dos textos positivados e
estruturadas consoante a forma lógica dos juízos condicionais,
compostos pela associação de duas ou mais proposições
prescritivas”. (grifos do autor)

Segundo, adota-se a idéia de que o Direito pode ser apreendido em duas


dimensões lógicas, quais sejam, a dimensão sistêmica (dever-ser) e a dimensão fática

 
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(entrechoque do dever-ser com o ser), em outras palavras, o plano das normas gerais
e abstratas e o plano das normas individuais e concretas.
Feitas estas considerações, alerta-se o leitor para o fato de que está sendo
proposto um conceito para Direitos fundamentais compreensível no plano do
ambiente dos enunciados prescritivos, i.e., no plano sistêmico, geral e abstrato, enfim,
no plano do dever-ser, e frisa-se, isto nada tem de redução meramente formal, mas
traduz apenas um primeiro passo na compreensão integral do fenômeno, já que
entende-se que a compreensão adequada do plano normativo seja indispensável para
proporcionar a adequada compreensão do contato da normatividade com a
facticidade.
Desta forma, aqui, Direitos fundamentais são tomados como enunciados
prescritivos encartados na Constituição Federal, ou por ela alcançados, intangíveis
prejudicialmente pelo legislador ordinário, e que, por serem dotados de aplicabilidade
imediata, e assim serem inobstáveis sob qualquer pretexto, traduzem modelos
normativos para a efetividade dos fundamentos e dos objetivos republicanos, bem
como para os princípios de convivência internacional, em função de nota
intransponível de sua fundamentalidade, entendida como a incondicionabilidade de
sua efetividade.
Fixado o conceito aqui adotado, retomar-se-á o debate contemporâneo em
matéria de Direitos fundamentais. Eis a justificativa para a escolha.
Os enunciados veiculadores de Direitos fundamentais normalmente estão
cravados em nosso sistema jurídico com a utilização da técnica legislativa dos
conceitos indeterminados, i.e., na construção enunciativa do suporte físico textual
jurídico o legislador, ciente ou não, da necessária inexauribilidade dos textos
prescritivos em análise, optou por construí-los com palavras que admitem inúmeros
significados, termos plurissignificativos.

 
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Referindo-se aos conceitos indeterminados, Cademartori e Duarte


asseveram (2009:45):

“Já, quanto aos conceitos indeterminados, a lei refere-se a uma


esfera de realidade cujas delimitações não são precisas no seu
enunciado, mas assim mesmo ela tenta delimitar uma hipótese
concreta, ...”.

E mais adiante (CADEMARTORI E DUARTE, 2009:46):

“Em tais contextos, apesar de que a lei não determina com


precisão os limites de tais conceitos, posto que eles não possuem
uma quantificação ou determinação rigorosa, está sim se referindo
a hipóteses de realidade que, a despeito da sua conceituação
indeterminada, podem tornar-se mais precisas na sua avaliação no
momento da incidência no caso concreto. Vale dizer, estes
conceitos que em princípio se apresentam como
plurissignificativos, ao serem deparados com situações específicas,
podem tornar-se unívocos no seu sentido, portanto, a forma de
encaminhar tais delimitações de sentido desloca-se, de uma
dimensão puramente sintáxica e semântica – insuficiente para
estes casos -, em direção a uma abordagem pragmática de
determinação significativa”.

Luis Roberto Barroso assim refere-se aos conceitos jurídicos


indeterminados (2010:313):

“Conceitos jurídicos indeterminados são expressões de sentido


fluido, destinadas a lidar com situações nas quais o legislador não
pode ou não quis, no relato abstrato do enunciado normativo,
especificar de forma detalhada suas hipóteses de incidência ou
exaurir o comendo a ser dele extraído”.

Por conta da utilização desta técnica legislativa é exigida do juiz em face do


sistema uma postura muito mais construtiva do conteúdo de significação possível dos
enunciados sob análise do que uma atitude simplesmente declarativa.

 
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É justamente aqui que surgem as figuras do ativismo judicial, da


judicialização da política e da politização do Judiciário, por conta das quais há que se
permitir e desenvolver o controle da racionalidade da atividade jurisdicional, sob
pena do agigantamento do poder atribuído ao Judiciário, que ao invés de agir com
base no sistema jurídico, agirá com base em subjetivismos exacerbados,
caracterizando uma ditadura déspota.
Mas se a utilização dos conceitos indeterminados é tão perigosa, por que
motivo o legislador resolveu utilizar-se desta técnica?
Justamente em função da necessária inexauribilidade semântica acima
anunciada. Ora, considerando que a sociedade atual é mais dinâmica do que nunca,
notadamente plural, extremamente complexa e em constante mutação, não parece
producente, seguro e adequado que o sistema jurídico que funcionará como
mecanismo redutor da complexidade social seja em sua integralidade portador de alta
densidade normativa, o que redundaria na necessidade sistêmica de constantes
incrementos deliberativos. Esta necessidade desaguaria no estrangulamento dos
poderes republicanos e no engessamento do Estado e da sociedade, provocando ou
aumentando as crises de legitimidade do poder estatal.
Deste modo, com a introdução de conceitos indeterminados no seio dos
enunciados prescritivos veiculadores de Direitos fundamentais, outorga-se fluidez
semântica aos referidos enunciados, possibilitando a constante adequação do sistema
jurídico a contornos sociais altamente voláteis, afastando a necessidade de
intervenção legislativa, sabidamente lenta e condicionada a interesses de governo e
não de Estado, ainda mais em matérias de alta indagação ético-social.
Mas se por um lado a fluidez ou baixa densidade normativa é, em certa
medida, proveitosa para os Direitos fundamentais, por outro, como já afirmado
acima, devem ser fornecidos mecanismos de contenção de riscos de exageros por
parte do Poder Judiciário.
 
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A seguir serão elencados alguns meios de controle da racionalidade da


atividade jurisdicional.
A primeira idéia que há de ser considerada é a de que o juiz não exerce
função legislativa, sequer atipicamente. O julgador não recebe da população qualquer
legitimação de representação que o autorize a inovar substancialmente o sistema
jurídico de determinado país. Isto equivale a dizer, que ao julgar, a atividade do
magistrado deverá estar adstrita aos limites das normas postas pelo poder estatal
detentor legítimo da competência legiferante, o Poder Legislativo.

“Juízes não são legisladores: não detêm um mandato eletivo que


os legitimem como representantes da vontade popular. Por
definição, sua atividade, por mais criativa e inovadora que possa
ser, deve se enquadrar nos limites ditados pelo Direito positivo e
pelas estruturas de organização do poder do Estado”.
(RODRIGUEZ, 2005:282)

É certo que o juiz tem liberdade de convencimento, mas este


convencimento livre não equivale a convencimento ilimitado. Quando o sistema
outorga ao julgador a liberdade acima mencionada a concede com as amarras
institucionais necessárias como se pode perceber do art. 2º de nossa Carta Política,
que estabelece a convivência independente e harmônica entre os Poderes da União.
Ora, não se pode conceber esta independência e harmonia sem que sejam muito bem
delimitados os campos de atuação e as funções dos poderes conviventes, o que é
perfeitamente desenhado pela doutrina dos freios e contrapesos indubitavelmente
acolhida em nosso Direito constitucional. Para garantir esta harmonia e
independência, vários são os mecanismos normativos, mas aquele que mais interessa
ao presente estudo está lançado no art. 93, IX da Carta, e tem a seguinte redação:

 
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“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal


Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os
seguintes princípios:
...
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos,
às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em
casos nos quais a preservação do Direito à intimidade do
interessado no sigilo não prejudique o interesse público à
informação;
...”

É fácil constatar que a Constituição Federal elevou à categoria de princípio,


o dever imposto ao Poder Judiciário de fundamentar todas as suas decisões. Mas aqui
cabem algumas breves considerações.
O ato de decidir é levado a efeito por uma operação lógica silogística pelo
modelo dedutivo aristotélico. Assim, este silogismo judicial formar-se-á por uma
premissa maior preenchida por uma norma jurídica; uma premissa menor preenchida
por um conjunto fático obtido pela leitura da realidade fenomênica; e uma conclusão,
preenchida pela situação juridicamente prevista no conseqüente da norma jurídica
instalada na premissa maior. Trata-se de um processo de construção lógico-jurídico.
Explicar-se-á mais adiante.
Todavia, antes de adentrar na questão acima mencionada, é oportuno
manifestar uma discordância em face do que tem sido veiculado doutrinariamente em
relação à quase total sucumbência do modelo dedutivo aristotélico em face da técnica
da ponderação. (BARROSO, 2004:356)
A questão gira em torno da idéia dos denominados casos fáceis e difíceis.
Esta classificação foi amplamente debatida por Robert Alexy (2008) e Ronald
Dworkin (2007). Para a solução dos casos fáceis, bastam as regras. Para a solução dos
casos denominados difíceis, os princípios são chamados à ação. Neil MacCormick

 
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(2006) afirma que para os casos fáceis, basta a justificação interna da decisão, sendo
que para os casos difíceis há de concorrer a justificação externa do julgamento. Na
primeira hipótese, o fundamento da decisão residirá em regras. No segundo caso, os
fundamentos da decisão residirão em elementos normativos que para ele,
considerando o momento em que escreveu sua Teoria da Argumentação, ainda eram
exteriores ao sistema jurídico. Refere-se o escocês aos princípios e aos valores.
Sem querer adentrar na polêmica distinção das regras e princípios, por
apreço à questão metodológica, mister adotar aqui um posicionamento acerca destas
categorias jurídicas.
As regras são enunciados prescritivos portadores de alta densidade
normativa que alocam no antecedente de sua estrutura enunciativa a previsão
hipotética de uma conduta à qual imputam uma consequência, entendida enquanto
uma situação jurídica que deverá instalar-se caso a hipótese normativa verifique-se
integralmente no plano da facticidade.
Já os princípios, são enunciados prescritivos portadores de baixa densidade
normativa, implícitos ou explícitos no sistema jurídico, que alocam em seu
antecedente ou um valor jurídico ou um limite à atuação dos sujeitos de direito
destinatários e que desempenham quatro funções, a saber:

a) Orientam a produção normativa;


b) Orientam a interpretação normativa;
c) Orientam a aplicação normativa; e
d) Na falta de regras explícitas aplicáveis direta ou diretamente a casos
concretos, incidem diretamente sobre os fatos como se regras fossem.

No cenário doutrinário atual afirma-se que quando ao juiz é submetido um


caso dito fácil, utiliza-se o modelo dedutivo clássico. Inexistem problemas para o
 
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preenchimento dos elementos silogísticos. A premissa maior é imediatamente


identificável no sistema jurídico. A premissa menor é captada de simples exame
probatório. A adequação entre a hipótese normativa e o fato jurídico captado no
plano da experiência não requer maiores esforços exegéticos do intérprete, que em
face desta tranqüilidade conceitual, define facilmente a consequência normativa
aplicável ao caso sob análise, decidindo a questão sem maiores transtornos
sistêmicos. Enfim, para a solução do problema bastam as regras estampadas no
sistema.
Surgem os casos denominados de difíceis quando as regras se mostram
insuficientes para a solução do caso concreto, o que torna necessária a utilização dos
princípios.
Nestas hipóteses, pode ocorrer ainda que concorram dois ou mais
princípios para a solução do caso concreto, o que faz necessária a aplicação do
método jurídico denominado de ponderação.
A crítica que aqui se formula direciona-se à afirmação de que nos casos
difíceis não se utiliza o modelo dedutivo com a aplicação normativa por subsunção,
devendo sim ser utilizado o mecanismo da ponderação. (BARROSO, 2010:312) Aqui
defende-se a idéia de que ponderação e subsunção são métodos de aplicação
normativa absolutamente conciliáveis. Explica-se.
A ponderação não é aqui considerada como o método de solução do caso
concreto. Ela é considerada como método de definição da norma que ocupará o
posto de premissa maior no silogismo jurídico.
Nos casos difíceis, é com a ponderação que escolhe-se a norma a ser
aplicada ao caso concreto, afastando as demais normas que não serão utilizadas para
a definição dos contornos jurídicos definitivos do caso. Uma vez definida a norma da
premissa maior, é pela aplicação do método dedutivo, pela lógica subsuntiva que as
conseqüências jurídicas serão disparadas em direção ao universo da experiência.
 
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2.1. A CONSTRUÇÃO SEMÂNTICA DA PREMISSA MAIOR DO


SILOGISMO JUDICIAL

Ao ser convocado a manifestar-se pela dedução das partes litigantes, cabe


ao juiz selecionar no sistema jurídico a que está adstrito, aqueles enunciados
prescritivos que poderão servir de base para a formação da premissa maior. Pinçados
estes enunciados no seio do sistema jurídico, o juiz haverá de desenvolver ou até
mesmo construir o conteúdo de significação dos mesmos, i.e., deverá o juiz externar
claramente a norma jurídica que ocupará a função de premissa maior de seu
silogismo. A toda evidência esta empresa não pode divorciar-se do sentido possível
dos vocábulos lançados pelo legislador no seio dos enunciados. Ora, o Direito é
objeto cultural que se manifesta em linguagem. Assim, há de tomar de empréstimo a
língua pátria do povo que dele se servirá para que edifique entendimento a todos os
seus destinatários, inclusive, ou melhor, preferencialmente, ao cidadão não possuidor
de conhecimento jurídico especializado, sob pena de assim não sendo, correr-se o
risco de ineficácia normativa.
Nesse contexto, a imprecisão natural da língua comumente utilizada acaba
por ser inserida no texto legislado forçando o magistrado a enveredar-se na tarefa
hermenêutica. Esta tarefa deve ser orientada por um enfrentamento sintático,
semântico e pragmático do enunciado prescritivo (FERRAZ JR, 2006).
O enfrentamento sintático impõe que os enunciados prescritivos
selecionados no seio do sistema jurídico para ocupar o posto de premissa maior
 
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haverão de ser interpretados levando-se em conta as relações com a sua ambiência,


ou seja, com os demais enunciados prescritivos que co-habitantes do referido sistema
jurídico.
Já o enfrentamento de caráter semântico equivale á aferição da congruência
entre o enunciado prescritivo e aquelas entidades ou situações às quais ele pretende
significar.
Por fim, o enfrentamento pragmático corresponde à relação entre
enunciado e os utentes deste enunciado, em outras palavras, como os destinatários
dos referidos enunciados pretendem ou devem utilizar este enunciado observando-
se, evidentemente, aspectos axiológicos e teleológicos subjacentes aos textos
legislados.
Cabe ao juiz então aferir se os enunciados prescritivos selecionados detêm
validade, vigência, eficácia técnica e congruência material, para em seguida dar início
à delimitação ou construção de seus possíveis conteúdos de significação.
Na tarefa de preenchimento semântico da premissa maior do silogismo
podem ocorrer percalços diversos, situação em que o juiz haverá de lançar mão das
ferramentas hermenêuticas fornecidas pelo próprio sistema jurídico. No caso
brasileiro, por exemplo, pela Lei de Introdução ao Código Civil, em seus artigos 3º,
4º e 5º.
Haverão de ser empregados, outrossim, os métodos tradicionais de
interpretação jurídica (BARROSO, 2010:292):

“A interpretação, portanto, deve levar em conta o texto da norma


(interpretação gramatical), sua conexão com outras normas
(interpretação sistemática), sua finalidade (interpretação
teleológica) e aspectos do seu processo de criação (interpretação
histórica)”.

 
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Ocorrerão situações em que os métodos tradicionais de interpretação acima


apontados apresentar-se-ão insuficientes para o adequado preenchimento do
conteúdo de significação dos enunciados prescritivos candidatos a ocupar o posto de
premissa maior do silogismo jurídico. Nestas hipóteses, considerando-se que a
temática envolvida refere-se a Direitos fundamentais, e, portanto, em regra está
alocada constitucionalmente, entram em cena os princípios jurídicos constitucionais,
sejam eles os instrumentais, sejam eles os materiais. (BARROSO, 2004) Pode ser o
caso de verificar-se o fenômeno do ativismo judicial (BARROSO, 2009:6):

“Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo


específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o
seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de
retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a
classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas
sociais sejam atendidas de maneira efetiva”.

2.2. A CONSTRUÇÃO SEMÂNTICA DA PREMISSA MENOR DO


SILOGISMO JUDICIAL.

Uma vez ultrapassada a premissa maior, deve ser construída a premissa


menor do silogismo jurídico, i.e., a sua base fática.
É a fase do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Às
partes haverá de ser oportunizada a oferta do máximo de informações acerca dos
fatos que sustentam haver ocorrido e que dão respaldo às suas pretensões. Todas as
modalidades probatórias, desde que evidentemente, pertinentes ao caso, haverão de
ser utilizadas pelas partes litigantes, cada qual em estrita observância de seu ônus
probatório nos exatos termos da legislação processual civil em vigor.

 
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Cabe ao julgador, quando da prolação de sua decisão, fazer vasta referência


aos fatos catalisadores de sua decisão, seja referindo-se detalhadamente aos fatos que
considera comprovados, declinando os elementos probatórios que o conduziram ao
convencimento quanto à ocorrência fática subjacente; seja desenhando os contornos
fenomênicos dos fatos mencionados.
Tais cuidados são indispensáveis à decisão, pois, se há um forte e
indispensável apego à construção semântica das hipóteses normativas alocadas na
premissa maior do silogismo, da mesma forma deve concorrer um apego no
esquadrinhamento dos fatos a serem alocados na premissa menor do silogismo.
Tudo em função do fato de que é da comparação entre estes dois aspectos é que será
ou não autorizada a incidência da norma no caso concreto.
O detalhamento da hipótese alocada na premissa maior e do fato jurídico
instalado na premissa menor, verificados pela subsunção, é que abrem a possibilidade
do entrechoque entre as dimensões existenciais do Direito, ou seja, a aproximação do
dever-ser e do ser.

2.3. A CONSTRUÇÃO SEMÂNTICA DA CONCLUSÃO DO


SILOGISMO JUDICIAL

Definidas a premissa maior e menor do silogismo judicial, é chegada a hora


de definir qual a conseqüência será aplicada ao caso concreto.
Aqui surgem problemas de variadas nuances. Normalmente não são
verificados maiores problemas hermenêuticos em relação à formação conceitual do
teor do consequente normativo. O que não exclui a possibilidade de necessidade de
utilização de ferramentas hermenêuticas.

 
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Assim, primeiramente hão de ser identificados ou construídos os possíveis


significados destes conseqüentes. Aqui hão de ser aplicados os mesmos critérios
interpretativos mencionados na abordagem relacionada à premissa maior silogística.
Uma vez definidos os significados possíveis, cabe ao intérprete escolher dentre estes
significados, qual aquele que melhor resolve o caso concreto deduzido.
Considerando que o Direito é um objeto cultural, fruto da abstração
racional humana, que foi concebido e criado pela e para a humanidade com vistas a
prevenir e solucionar conflitos de interesses, este objeto cultural não pode
desvincular-se demasiadamente da realidade a que serve, sob pena de perder seu
sentido existencial. Deste modo, ao definir os contornos das consequências jurídicas
a serem empreendidas no plano da experiência, o julgador deve aferir se estas
conseqüências serão adequadamente absorvidas pela sociedade. É o denominado
consequencialismo decisório.
Mais uma vez colhe-se nas lições de Luis Roberto Barroso um trecho que
muito bem refere-se à questão em observação (2010:344):

“Em terceiro lugar, o intérprete constitucional não pode perder-se


no mundo jurídico, desconectando-se da realidade e das
consequências práticas de sua atuação. Sua atuação envolverá um
equilíbrio entre a prescrição normativa (deontologia), os valores
em jogo (filosofia moral) e os efeitos sobre a realidade
(consequencialismo)”.

2.4. A AFERIÇÃO DA RACIONALIDADE DECISÓRIA

Tudo o quanto foi até agora afirmado não é suficiente para a aferição da
racionalidade da decisão judicial, traduzindo apenas os primeiros passos
indispensáveis para que os elementos de racionalidade estejam adequadamente

 
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justapostos e à disposição da sociedade. A construção das premissas maior e menor e


a definição das consequências são o detalhamento do método de construção da
decisão. A aferição da racionalidade está próxima, quando se tem uma decisão que
pode ser dada ao caso concreto.
Mas afinal, como é possível esta aferição de racionalidade?
Entende-se que a racionalidade deve ser aferida por critérios formais e
materiais indissociáveis.

2.4.1. CRITÉRIO FORMAL DE AFERIÇÃO DA RACIONALIDADE


DECISÓRIA – A VALIDADE

Em termos formais ter-se-á como racional a decisão que seja válida.


Explica-se.
Uma decisão jurídica emitida por um juiz é um ato institucional. A
sociedade complexa depositou no Poder Judiciário a função típica de dizer o Direito
no caso concreto. Por conta desta atribuição constitucional, foi criada toda a
estrutura orgânica do Poder Judiciário, de sorte tal que foram criados os diversos
órgãos e funções deste Poder Republicano e a cada um destes foram atribuídas as
suas respectivas competências.
Além disso, a Constituição fixou as linhas procedimentais mestras a serem
observadas pelos julgadores quando da produção de suas decisões judiciais. Faz-se
aqui referência ao devido processo legal.
Feitas estas considerações, afirma-se que ter-se-á uma decisão jurídica válida
toda vez que for ela formulada pela autoridade competente e com estrito respeito às
formalidades processuais estabelecidas pelo sistema jurídico, i.e., em estrita

 
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observância ao devido processo legal, a ampla defesa, ao pleno contraditório e com


esgotamento das vias jurisdicionais.
Há de se frisar neste ponto, que o comando insculpido no inc. IX do art. 93
da Carta Magna, por certa ótica, também corresponde a um aspecto formal da
decisão, pois, ela deve trazer em seu bojo referências explícitas e exaurientes quanto
aos fundamentos de fato e Direito que motivaram a opção manifestada na decisão.
2.4.2. CRITÉRIOS MATERIAIS DE AFERIÇÃO DA RACIONALIDADE
DECISÓRIA

Para que se tenha uma decisão racional, contudo, não basta a sua
racionalidade formal. É preciso invadir a essência da decisão e submetê-la a testes de
consistência e de refutabilidade. Diante desta necessidade, pode-se afirmar que uma
decisão será materialmente racional quando:

a) A decisão tiver assento em normas jurídicas válidas, vigentes e eficazes;


b) A decisão tiver assento em normas jurídicas substancialmente
congruentes em face do sistema jurídico;
c) O ato de decidir deve considerar as consequências da decisão;
d) Os princípios jurídicos invocados e colidentes sejam preservados;
e) For possível a recondução normativa da decisão;
f) A decisão alinhe-se aos precedentes;
g) A decisão alinhe-se com a doutrina;
h) As razões de decidir sejam universalizáveis.
Não se tem aqui a pretensão de esgotar os possíveis critérios de aferição da
racionalidade jurídica. Apenas pretende-se apontar alguns critérios que sejam hábeis
ao objetivo proposto por este artigo. A seguir serão brevemente analisados cada um
destes requisitos.
 
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a) A decisão deve ter assento em normas jurídicas válidas, vigentes


e eficazes
Consagrado no inciso II do artigo 5º da Constituição Federal, está o
princípio de legalidade segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Por força do referido princípio a
atividade jurisdicional não é ilimitadamente livre. O juiz ao decidir deve sempre
lastrear este ato em enunciados prescritivos que integrem o sistema jurídico. É dizer,
quando o juiz busca no sistema jurídico os enunciados que funcionarão como
premissa maior do silogismo em construção, deve ele observar se estes enunciados
apresentam-se como válidos, vigentes e eficazes.
Cabe frisar que ante o objetivo deste pequeno artigo, não é possível
adentrar no debate acerca das categorias jurídicas acima apontadas, assim são fixados
os conceitos para que seja possível desenvolver a temática central do artigo.
Aqui toma-se validade como categoria de índole estritamente formal, e,
assim, ter-se-á por válido o enunciado prescritivo produzido por autoridade
competente em estrito respeito ao processo de criação normativa estabelecido pelo
sistema jurídico. (CARVALHO, 2008:403)
Vigência é entendida aqui como o conjunto das coordenadas de tempo e
espaço em que o enunciado prescritivo exerce a sua força cogente, o seu vigor.
Eficácia é categoria que pode assumir contornos distintos. A doutrina trata
da categoria principalmente em três sentidos, a saber, eficácia jurídica, eficácia técnica
e eficácia social ou efetividade.
Para Paulo de Barros Carvalho (2008:413) eficácia jurídica:

 
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“... é a propriedade de que está investido o fato jurídico de


provocar a irradiação dos efeitos que lhe são próprios, ou seja, a
relação de causalidade jurídica, no estilo de Lourival Vilanova”.

Eficácia técnica é noção verificável no plano geral e abstrato do fenômeno


jurídico e que está relacionada a estrutura lingüística do enunciado prescritivo, de
sorte tal que ter-se-á por eficaz o enunciado que possua estrutura enunciativa
completa e, via de conseqüência, condições técnicas de atingir a realidade
fenomênica. Tomando de empréstimo a noção do juízo hipotético condicional - Se H
deve-ser C - (CARVALHO, 2008:413), toda vez que um ou mais enunciados
prescritivos possibilitarem a construção de seu conteúdo de significação completo,
estar-se-á diante de enunciados eficazes.
Já a eficácia social ou efetividade é noção verificada no plano da facticidade.
Ter-se-ão enunciados efetivos toda vez que estes exaurirem o ciclo da normatividade,
i.e., quando uma vez disparados em direção ao plano dos fatos, atingirem esta
dimensão e esgotarem a sua trajetória lógica, cumprindo seus desígnios anteriormente
fixados pelo legislador.(CARVALHO, 2008:414)
Feitas estas considerações acerca da eficácia, neste primeiro momento da
aferição da racionalidade jurídica é a eficácia técnica ou jurídica que importa. A
eficácia social ou efetividade é noção a ser aferida em outra oportunidade.

b) A decisão deve ter assento em normas jurídicas


substancialmente congruentes em face do sistema jurídico
Já se foi o tempo em que o plano da validade enunciativa estritamente
formal era suficiente para lastrear uma decisão jurídica. Em tempos pós-modernos o
que importa é a essência da decisão. Não se pode perder de vista que os valores
consagrados pelo sistema jurídico e os fins almejados por ele devem sempre estar em
alça de mira. Assim, em toda decisão jurídica contemporânea, ao interpretar as
 
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normas que comporão a premissa maior do silogismo judicial, o juiz deve considerar
os aspectos axiológicos e teleológicos subjacentes ao sistema jurídico. Para a hipótese
de identificar desalinhamento substancial entre os enunciados potencialmente
utilizáveis como premissa maior, deverá esforçar-se a fim de construir uma
interpretação que mostre-se congruente com aqueles aspectos. Uma vez não
encontrada ou construída esta interpretação, o enunciado não deve integrar a
premissa maior do silogismo, ou porque foi declarado inválido, ou por que foi
afastado em função da incidência de outros enunciados.

c) O ato de decidir deve considerar as consequências da decisão


O Direito não deve ser tratado enquanto objeto divorciado da realidade.
Deve-se ter em mente sempre que o Direito é um objeto cultural criado pela e para a
sociedade com vistas a prevenir e decidir conflitos de interesses, ou seja, o Direito
deve interferir na realidade prática. Assim, nenhuma racionalidade terá uma decisão
que imponha consequências impossíveis de serem implementadas na prática ou que
imponham consequências piores que o estado de coisas anterior ao debate deduzido
pelas partes. O Direito deve melhorar a vida das pessoas e não inviabilizar a
convivência harmônica dos sujeitos de Direito. Entrem em cena então, os
denominados argumentos consequencialistas. (MACCORMICK, 2006:165)

d) A necessária preservação dos princípios jurídicos invocados e


colidentes
Já foi afirmado que no pós-positivismo, quando as regras mostram-se
insuficientes para a solução do caso concreto os princípios devem ser acionados para
funcionarem como lastro normativo da decisão. Nestas hipóteses podem ocorrer
colisões entre princípios, que como já se sabe, deve ser resolvida pelo método da

 
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ponderação. Na ponderação o juiz deve esforçar-se ao máximo para conciliar os


princípios inauguralmente colidentes, para que na medida do possível a colisão seja
afastada e ocorra a convergência daqueles princípios. É o que Ana Paula de Barcellos
denomina de concordância prática. (2005:133)

e) Deve ser possível a recondução normativa da decisão


No processo de interpretação, pode ocorrer que no trajeto do enunciado até
a norma individual e concreta materializada pela decisão vá-se aumentando
demasiadamente o abismo conceitual entre a primeira e a segunda categorias acima
mencionadas, de sorte tal que ao final, não seja possível identificar na decisão qual o
seu arrimo normativo.
Diante disso, o juiz deve esforçar-se para deixar claramente consignado em
sua decisão o percurso realizado entre o enunciado prescritivo, geral e abstrato, e a
norma jurídica, individual e concreta, aplicada ao caso sob sua análise, de sorte tal
que seja possível a partir da norma jurídica construída retornar ao enunciado
prescritivo invocado como lastro normativo. Trata-se de um teste de refutabilidade
lógico-normativa para aferir a consistência decisória.

f) A decisão deve alinhar-se à jurisprudência


A segurança jurídica é um fim caro ao Direito. Na tripartição dos poderes
republicanos coube ao Poder Judiciário a função jurisdicional, que pode ser
resumidamente conceituada como a função de dizer a última palavra na hipótese de
um conflito concreto de interesses juridicamente tutelados. Não seria nada
proveitoso para a sociedade que cada um dos inúmeros juízes investidos na função
judicante pudesse prolatar decisões divergentes para casos similares.

 
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Sem dúvida alguma, nesta situação estariam sendo frustradas as expectativas


legítimas da sociedade, que não saberia como comportar-se em face da multiplicidade
de entendimentos judiciais, por vezes contraditórios entre si. É em função deste
cenário que surge a necessidade de que uma decisão, na medida do possível alinhe-se
aos julgamentos anteriores acerca da mesma matéria.
Ainda que apenas as súmulas vinculantes detenham força condicionante
para a atividade jurisdicional, é útil e producente que seja mantida certa estabilidade e
previsibilidade no ato decisório.
Deste modo, também a jurisprudência funciona como uma baliza para a
aferição da racionalidade da decisão jurídica.
Ora, se vários magistrados adotam uma mesma orientação para decidir,
presume-se que esta seja a melhor solução para o caso concreto.
Por óbvio que o magistrado tem liberdade de convencimento, mas sempre
que quiser colocar-se em posição oposta a um entendimento jurisprudencial
majoritário ou dominante, atrai para si o ônus da argumentação que demonstre de
forma clara e exauriente os fundamentos de sua divergência.

g) A decisão deve alinhar-se à doutrina


A doutrina não exerce força cogente sobre o magistrado. Não está o
julgador adstrito ao entendimento manifestado por este ou aquele jurista. Não se
pode sucumbir à força do argumento de autoridade, mas deve-se ceder à força da
autoridade do argumento.
Ora, a ciência jurídica ocupa-se justamente de observar o fenômeno jurídico
para tentar contê-lo dando-lhe contornos científicos, e, portanto, racionais e
previsíveis. Não se pode abdicar das construções jurídico-científicas subjacentes a
todo ordenamento jurídico. Não existem dúvidas de que o jurista cientista tem mais

 
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tranquilidade para observar o fenômeno jurídico que o juiz, assoberbado pela


impensável carga de trabalho que lhe é imposta.
Assim, se uma questão jurídica goza de largo respaldo doutrinário, isto é
forte indício de que este entendimento seja consistente. Assim, caso o juiz convença-
se de que deve posicionar-se contrariamente ao entendimento doutrinário
dominante, também atrai para si o ônus argumentativo nos mesmos moldes
assinalados no item anterior.

h) As razões de decidir devem ser universalizáveis.


O art. 5º da Constituição Federal dispõe que “todos são iguais perante a
lei”. A igualdade projetada pelo Constituinte não é apenas a igualdade no sentido de
que todos os indivíduos da comunidade têm os mesmos Direitos e as mesmas
garantias, apenas abstratamente considerados. Posto que o Direito de hoje exige a
efetividade, especialmente em matéria de direitos fundamentais, a igualdade deve ser
verificada, sobretudo, nos atos de aplicação do Direito, o que equivale a dizer que o
Direito aplicado para um cidadão, também o deve ser para os demais integrantes da
mesma comunidade, salvo se a diferenciação for plena e racionalmente justificável.
Esta idéia de isonomia pode ser traduzida na de universalizabilidade, encontrada, por
exemplo, em Habermas, MacCormick e em Kant.
Jürgen Habermas (1997:156) afirma que:

“... para alguém poder tomar uma posição, dizendo ‘sim’ ou ‘não’,
é preciso que o outro esteja disposto a fundamentar, caso se torne
necessário, uma pretensão levantada através de atos de fala. Uma
vez que os sujeitos que agem comunicativamente se dispõem a
ligar a coordenação de seus planos de ação a um consentimento
apoiado nas tomadas de posição recíprocas em relação à
pretensões de validade e no reconhecimento dessas pretensões,
somente contam os argumentos que podem ser aceitos em
comum pelos partidos participantes”.

 
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Em Habermas (1997) a validade argumentativa de uma decisão funda-se na


reciprocidade da aceitação dos argumentos tomados como razões de decidir por
parte dos sujeitos comunicativos, de forma consensual. É aqui que reside à idéia de
universalizabilidade.
Da Teoria da Argumentação Jurídica de Neil MacCormick (2006) é possível
abstrair que a idéia de universalizabilidade traduz-se na possibilidade de tomar-se a
razão de decidir de um caso como razão de decidir de todos os demais casos
semelhantes. Não seria racional, diante de casos semelhantes, a adoção de diversas
razões de decidir, todas customizadas para cada caso em análise. Assim, cabe ao
julgador, no momento de construir sua decisão, refletir se a razão que dá respaldo ao
seu entendimento poderá ou não ser tomada como lastro de decisões para casos
similares.
Resta, por fim, analisar o tema da universalidade em Kant. Na sua Crítica da
Razão Prática, o autor traz a lei fundamental da razão pura prática, o imperativo
categórico, o supremo princípio da moralidade, que vem assim entalhado:

“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te


sempre como princípio de uma legislação universal”. (KANT,
2001:26)

O homem deve agir por ter de agir e pronto. Mas este agir incondicionado
não é impensado, irrefletido, senão não seria racional, mas sim instintivo, como nos
animais irracionais. Inevitavelmente, há na base de qualquer pensamento humano, e,
portanto, na base de qualquer raciocínio, uma justificação, que repousa na idéia de
que esta possa adquirir o valor de lei universal, isto é, ser adotada para os demais
casos similares por outras pessoas em iguais condições. Sem esta característica, uma
ação passa a ser injustificável racionalmente o que levaria a sua ruína. (KANT,
2006:30)
 
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É exatamente esta noção a que subjaz à noção de universalizabilidade, pois,


o juiz ao decidir um caso concreto deve cumprir o seu dever constitucional
incondicionalmente, é dizer, sem levar em conta suas inclinações pessoais e tendo em
mira que sua decisão, considerada em seus fundamentos, poderá servir como modelo
decisional em outros casos similares.

2.5. OS LIMITES DA RACIONALIDADE DECISÓRIA

Uma decisão poderá ser, portanto, considerada racional quando todos os


aspectos acima mencionados estiverem presentes. Na falta de um destes aspectos, a
racionalidade decisória de caráter estritamente jurídico poderá estar comprometida.
Nesta hipótese, certamente estar-se-á diante de uma decisão jurídica vazada em
argumentos extrajurídicos o que proporcionará reverberação ruidosa no âmbito do
sistema jurídico em que estará ela inserida. (CARVALHO, 2005)
Nesta oportunidade, caso a decisão portadora de elemento estranho
permaneça integrada ao sistema, mesmo depois de submetida aos procedimentos de
checagem de congruência formal e material oferecidos pelo próprio sistema jurídico,
estar-se-á diante de uma readequação estrutural e substancial do sistema jurídico
proporcionada por força da introdução forçada de mensagem vazada em código
típico dos outros micro-sistemas sociais co-habitantes do macro-sistema social que o
alberga.
É importante admitir que o sistema jurídico não é imune à interferências
ruidosas oriundas de seu entorno. Ao contrário, considerando que o sistema jurídico
é operacionalmente fechado e cognoscitivamente aberto (NEVES, 1992:274),
existirão situações em que o sistema jurídico será invadido por mensagens alienígenas

 
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forjadas em códigos de linguagem não admitidos de plano, como por exemplo, os


códigos comunicacionais político e econômico.
Nestas oportunidades, das duas uma, ou o sistema entra em colapso e rui,
ou demonstra capacidade de manter sua homoestase e acaba por absorver as
mensagens ruidosas incorporando-as ao seu acervo estrutural transformando-as em
mensagens vazadas em código jurídico.
Mas de outra monta é de se considerar que não é apenas o sistema jurídico
que haverá de adaptar-se aos códigos estranhos. Por vezes, é o sistema jurídico que
lança mensagens vazadas em código que lhe é próprio para o interior dos outros
micro-sistemas sociais que habitam o seu entorno, dentre estes o sistema político,
p.e., naquelas situações em que o Judiciário controla políticas públicas. (BARROSO,
2005) Trata-se do fenômeno da judicialização (BARROSO, 2009:3):
“Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão
política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder
Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o
Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se
encontram o Presidente da República, seus ministérios e a
administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização
envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com
alterações significativas na linguagem, na argumentação e no
modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas
múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial;
outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional
brasileiro. ...”.

É nestas situações extremas que a fundamentação racional das decisões


jurídicas se apresenta como elemento concretizador da democracia, na medida em
que preserva a independência e a harmonia entre os Poderes Republicanos
Constituídos. Ora, tem-se democracia quando há efetiva participação popular na
condução dos desígnios do país. Neste matiz, se o Judiciário julga com base no que
está determinado pelo sistema jurídico democraticamente construído, está

 
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simplesmente dando eco ao que as urnas determinaram. Lado outro, quando o


Judiciário admite que o sistema jurídico receba influências externas de caráter
político, ainda que a via seja oblíqua, estará novamente respaldando a representação
popular. De outro modo, quando é o Sistema Jurídico que invade a intimidade dos
outros subsistemas sociais, há de se exigir da respectiva mensagem a carga
argumentativa jurídica necessária para a sua aceitabilidade em terrenos localizados
além das fronteiras jurídicas. Numa situação ou noutras, o essencial é que a
racionalidade seja não apenas aparente, mas efetivamente evidente.

CONCLUSÃO

Conclui-se assim, que ter-se-á por concretizada a democracia toda vez que
houver comunicação aceita entre os sistemas que integram o sistema social, na
medida em que ter-se-ão preservados os micro-sistemas sociais conviventes e
garantida a convivência social pacífica que permanecerá na busca incessante da
felicidade humana. A racionalidade das decisões jurídicas que é aferida pela
consistência de sua fundamentação é um elemento a ser considerado para efeitos de
consecução deste objetivo republicano.

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QUAL CIDADANIA? – PEQUENAS REFLEXÕES PARA UMA


TEORIA DO RECONHECIMENTO

Gabriel Rezende de Souza Pinto1

Resumo

A palavra Cidadania se tornou um problema incontornável na atualidade.


Incontornável porque conjuga ao menos três ordens distintas de problemas que se
relacionam de modo não-dialético. Em primeiro lugar, há uma dificuldade evidente
para a Teoria do Direito e para a prática dos conceitos e categorias jurídicas. Entendo
que, neste sentido epistemológico, a cidadania desafia o teorizar. Em segundo lugar, há
um obstáculo gerado ao mesmo tempo para a Teoria Moral e para a Filosofia do
Direito, desde que estas se pretendam pós-metafísicas. Ora, aparentemente, não é
possível deslocar o conceito de sua gramática e de sua pragmática, o que tem nos
obrigado a fazer vir com ele toda uma metafísica que o encarcera ao lado de outros
tantos: Estado, Soberania, Nação. Por fim, ao se exigir da cidadania uma mediação
entre direitos fundamentais e soberania popular, a teoria constitucional da
democracia corre o risco da perplexidade em face de sua impotência, de sua
fragilidade e de sua incomensurabilidade. Pretendo defender a tese de que é possível
reformular a noção de cidadania a partir da Teoria do Reconhecimento, uma vez que
esta se afirme como Teoria Crítica – e crítica de si própria. Tal empreitada assumirá
ao fim dois vieses co-extensivos: a cidadania, por um lado, deixa de significar a
fruição de direitos fundamentais, mas o direito por excelência de reinventar o Direito
por meio de lutas por reconhecimento; e, por outro lado, a cidadania é alçada à
condição de ferramenta reconstrutiva da Justiça, do Direito e da Democracia (por vir).

Palavras-Chave: Teoria do Reconhecimento, Cidadania, Democracia. Théorie de la


Reconnaissance, Citoyenneté, Démocratie.

                                                            
1 Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
 
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1. Introdução

A argumentação que proponho a seguir não pode ser destacada do pano de


fundo político e social que lhe é próprio. Ficará óbvio que estou defendendo uma
noção de cidadania que seja minimamente responsável e comprometida com o
horizonte de emancipação social no qual se insere. É por esta razão, que defendo a
reformulação da noção de cidadania para que nos sejam fornecidos instrumentos
hábeis a apreender toda a diversidade do fenômeno. Um novo conceito amplo de
cidadania que não estou sequer certo de que possa ser chamado de conceito.
Na primeira parte deste artigo pretendo desenvolver os aspectos contextuais
da cidadania. Sobretudo, sustento que a característica primordial da cidadania foi a
imensa criatividade dos atores políticos para reinventá-la. Com efeito, o político
adquiriu contornos antes inimagináveis, penetrou esferas antes desconhecidas para
ele e para a teoria incumbida da tarefa de pensá-lo. A cidadania não surpreendeu
apenas o pensamento que a tinha como objeto, mas surpreendeu, num certo sentido,
a si própria.
Em seguida, trato da tripla ordem de problemas que são gerados pela atual
situação da cidadania. Introduzirei ali a noção de fantasmas da cidadania, os espectros
que a acompanham em razão de determinada metafísica dos conceitos que ainda a
sustenta. Refiro-me, especificamente, aos termos Soberania, Nação e Estado-Nação.
A questão da cidadania, que decomponho em três, trazem à baila um problema
epistemológico, um problema relativo à filosofia prática e, por fim, um problema
para a teoria constitucional da democracia.
No terceiro momento do artigo, enfatizo o modo como creio contribuir a
Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth para se repensar a cidadania no
contexto exposto. O resultado será um novo princípio para conceber a cidadania,

 
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que se baseie numa teoria normativa da sociedade e que lance mão de um transversal
conceito de justiça.
Na conclusão, retomo estes resultados, mas deixo claro que os mesmos
ainda se encontram muito distantes da solução dos problemas levantados. Há a
necessidade de se pensar criticamente uma a Teoria do Reconhecimento, visando
abrir novas perspectivas de investigação que se preocupem com uma abertura
fundamental ao outro; abertura incondicional, incalculável e que não conjugue
expectativas de reciprocidade. Anuncia-se uma orientação da cidadania em direção à
hospitalidade incondicionada de Jacques Derrida.

2. A cidadania inantecipável

Entendo que pensar a cidadania é um esforço a que a própria cidadania nos


impele. A prática política do pós-guerra se viu inúmeras vezes preenchida por este
signo. Não foram poucos os movimentos de ação política ou, se assim preferirmos,
os movimentos sociais que lançaram mão desta palavra para descrever o sentido e o
argumento subjacentes a seus atos, a seus discursos, a suas reviravoltas, a suas
revoluções. Noto aqui o uso intensivo de um vocabulário moral, o qual fará mais
sentido quando o argumento tomar as feições da teoria do reconhecimento. Cumpriria
sublinhar, neste estágio, que a cidadania serviu não apenas como móbil das mais
variadas ações políticas, mas foi também o efeito da prática de construção discursiva
de justificações racionais.
A cidadania setornou lugar comum no irrompimento do político. Se é
assim, não podemos deixar de concordar que a forma que esta cidadania veio a
assumir foi tão mais variada quanto maior era a diversidade de locais onde eclodia.
Arrisco dizer que poucas vezes na história mundial vimos tamanha diversidade de
 
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demandas políticas, de planos de ação, de estratégias, de consensos: lutas pela


descolonização, feminismo, movimentos de afirmação racial, movimentos de
afirmação de identidades sexuais, movimentos de transição democrática, movimentos
ecológicos, movimentos de defesa dos animais, etc. A América Latina foi e continua
sendo ambiente fértil de reinvenção da cidadania. Para Boaventura de Sousa Santos,
as lutas sociais neste continente são o que de mais inovador surgiu nos últimos anos
em termos de cidadania (SANTOS, 2009, p. 33). O Brasil, ao contrário de certo
discurso dominante que pretende esvaziar de sentido nossa democracia, foi também
pródigo em reinvenções do tema cidadania: após sua redemocratização (1985-88),
observamos uma ordem constitucional que soube gerar as condições para a
experiência do orçamento participativo (AVRITZER, 2002), por exemplo.
Contudo, é justamente neste presente histórico, neste contexto global e, por
isso mesmo local, que entendo ter a cidadania se tornado um conceito tão
problemático quanto admirável. Ao mesmo tempo em que se transformou num
caminho para a emancipação – e para a teorização da mesma -, a cidadania também
se fez conceito carregado de dificuldades e limitações que estão a sugerir, na opinião
de alguns, o seu abandono2. Se não assim, ela fundamentalmente instaurou um
regime de precariedade para o pensamento que a tinha como objeto.
Identifico três grandes dificuldades decorrentes da cidadania e de seu uso: a)
uma para a Teoria do Direito enquanto arte de formação de categorias; b) Um
problema para a teoria moral e para a Filosofia do Direito; c) um problema para a
Teoria Constitucional Democrática.
Tratarei, em seguida, de destrinchar cada um dos problemas que apresentei,
ressaltando os aspectos políticos de tais considerações.

                                                            
2 Referir-me-ei fundamentalmente, aqui, a alguns escritos de Jacques Derrida. Penso, por exemplo, no
abandono da cidadania em prol de um hospitalidade sem condições, que é tema de obras importantes
da fase final de sua vida. Cf. DERRIDA (1994); e DERRIDA (2003).
 
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3. O problema epistemológico: a cidadania enquanto questão para a


epistemologia jurídica

Preliminarmente, quero esclarecer o uso que faço do termo epistemologia.


Sem adentrar as discussões mais profundas, as quais os limites materiais deste
trabalho não permitem a problematização adequada, dou ao adjetivo epistemológico o
sentindo amplo de um pergunta sobre o saber. O saber que penso ser afetado pela
cidadania é justamente o saber jurídico, ou seja, o conjunto de saberes, de matrizes de
geração de conhecimento que circundam o Direito. Contudo, creio que – ainda que
não se restringindo a ele – os reflexos deste problema atingirão prioritariamente o
Direito que se pretende científico, de modo que o termo epistemologia receberá, por
vezes, acepção próxima àquela defendida por Christian Atias, isto é, saber científico
em sentido amplo (ATIAS, 1994).
Este primeiro grande problema, de uma série de três, poderia ser resumido
da maneira que se segue. Sabe-se que a cidadania é um conceito essencialmente
diverso e diversificador. Um pensamento que pretende pensá-la desta maneira,
resguardando essa organização inorganizável, terá dificuldades para enquadrá-la
numa ciência do direito. É possível fazer uma ciência do direito que tenha como
objeto a cidadania? A ciência em geral, e do Direito em particular, trabalham com
unidades semânticas que se pretendem claras e precisas – ao menos numa
determinada concepção de Ciência, a qual não pretendo debater aqui. Em sendo
assim, que tipo de teoria é possível fazer sobre a cidadania? De que modo podemos
visualizá-la e, além disto, apreendê-la, tomar-lhe aquilo que lhe é próprio quando,
segundo a concepção descrita por mim, seu próprio é o de não possuir próprio. Sua
essência é não-essência, é reinvenção, é criatividade, é alteração e, neste sentido, é
justiça e desconstrução (DERRIDA, 1994a). Penso aqui, em sentido amplo, em todas
as escolas de pensamento que, numa dada fração, conceberam o Direito como
 
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Ciência – ainda que não se restringindo a ele, em alguns casos. De Hans Kelsen à
Karl Olivecrona3, todos terão dificuldade para nos responder. Todos se sentirão
ameaçado por um conceito que conceitualmente seja a recriação de si mesmo.
A título de exemplo, por se tratar de um relevante filósofo do Direito, e por
seu viés de diálogo com o positivismo, mas de duras críticas à Kelsen, tomo a obra
de Alf Ross como apoio para esta discussão. Ross trabalhou a noção de conceitos
jurídicos em ao menos quatro de seus textos: “Tû-Tû”, , “Sur les concepts d'État et
organes d'État”, “La délégation de pouvoir” e“La définition en Droit”4. Em Ross, a
ideia de conceitos jurídicos é de patente importância, uma vez que é a existência de
conceitos claros que expliquem nossa linguagem cotidiana o que permite a existência
de um discursos autônomo e, portanto, de uma ciência do direito (BRUNET, 2002).
Ross baseou sua noção de conceitos jurídicos inicialmente na filosofia de
Bertrand Russel, notadamente a teoria das descrição definidas. Em seguida – e é isso
que alguns de seus comentadores resistem em observar – Ross abandonou tal linha
de pensamento, passando a se basear na escola pragmática da linguagem. O
resultado disto foi uma concepção fundada em dois axiomas: a) “os enunciados
jurídicos não se referem a realidades extra-linguísticas”; e b) “estes não podem ser
compreendidos com o auxílio de enunciados de fato” (BRUNET, 2002). Os
conceitos jurídicos só podem ser entendidos em seu uso, o que equivale a dizer que
sua análise é, e sempre é, uma análise do sistema jurídico no qual eles se encontram.
“O conceito de direito subjetivo é um instrumento para a técnica de apresentação
que serve exclusivamente a fins sistemáticos, e que em si não significa mais nem
menos que 'tû-tû'” (ROSS, 2004, p. 54).

                                                            
3 Sobre as obras de referência, ver: KELSEN (2003); OLIVECRONA (1971).
4 Os três primeiros se encontram traduzidos para o francês em livro que recolhe diversos textos do
autor: ver ROSS (2002). O último deles se encontra aqui: MATZNER (2000).
 
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Em Ross, somos levados a nos demandar o por quê de se valer de um


conceito jurídico X para auxiliar na descrição (jurídica) de um sistema (jurídico) Y.
Minha opinião é que, mesmo após o giro pragmático de que se vale Ross,
resta uma lacuna a ser preenchida caso se pretenda acolher o conceito jurídico de
cidadania nos termos em que me propus a pensá-la. Como poderemos investigar
sistematicamente a cidadania se, num certo sentido, é ela que permite a própria
existência do sistema? Como pensar sistematicamente algo que é fundamental para a
sustentação do sistema, mas que no entanto o atravessa e o excede? Chegaremos
então à ideia de que a cidadania é inútil para a descrição do direito, colocando-a para
fora de sua ciência? A cidadania é um fato bruto? A cidadania é um falso-problema ou
um problema desprovido de significação, como diriam os positivistas lógicos do
Círculo de Viena?
Creio que se deve produzir uma epistemologia jurídica capaz de responder
às exigências da cidadania. Ross não nos dá uma resposta pronta, apesar de que
acredito ser possível tomar alguns desenvolvimentos de sua obra para engendrar algo
nesta direção.
Quero me defender de uma possível objeção. É possível arguir que um
pensamento sem conceitos é ao mesmo tempo inverossímil e indesejável. De fato,
precisamos de conceitos para nos comunicar em nossa vida cotidiana e é dificilmente
defensável que um ramo qualquer do saber possa operar sem deles lançar mão.
Em verdade, espero ter deixado claro que não tenho ainda resposta para o
problema colocado. Ainda que a tivesse, este não seria o espeço ideal para apresentá-
la. Não estou a advogar a tese dos fins dos conceitos em direito, tampouco lhes
retirando a utilidade; estou apenas a avançar a hipótese de que a doutrina dos
conceitos, tal qual a conhecemos hoje, não é suficiente para apreender a cidadania.
Jacques Derrida trabalhou uma crítica da noção de categoria que poderia
nos conduzir a uma outra direção. Katêgoreuô, em sua origem grega, possui o sentido
 
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de acusação, de culpabilização e também o de dar a conhecer. Deste modo, a


categorização pertenceria originariamente e residualmente a um vocabulário do juiz
de instrução ou do promotor (DERRIDA, 2007, p. 238). Para além desta
epistemologia da acusação, recorro ao restante de sua obra: Derrida se preocupou
com o pensamento que é anterior à épistémê, sobretudo seguindo as ideias de
Émmanuel Lévinas. Um pensamento que gera as condições de possibilidade de toda
ontologia, de toda epistemologia; a sombra para além da luz do Bem; uma pré-
metafísica (DERRIDA, 1967, p. 122). “A filosofia primeira é uma ética” (LÉVINAS,
1982, p. 77) (tradução minha)5. Haveria aí uma possível separação entre pensar e
conceituar; e é neste sentido específico que defendo a urgência de pensar a cidadania
e não, simplesmente, conceituá-la.

4. Os fantasmas da cidadania

Tratarei dos dois problemas seguintes de uma só vez, porquanto estejam


intimamente ligados. Há uma dificuldade grande para a Filosofia Moral e para a
Filosofia do Direito, que se pretendam pós-metafísicas, na utilização do termo
cidadania. A dificuldade reside na própria construção deste último: não pretendo aqui
fazer uma genealogia da cidadania, retornando a seu nascimento na antiguidade grega
e, sobretudo, sua estruturação jurídica em Roma. Basta, para os fins propostos,
sublinhar o surgimento de civitas em paralelo com outros dois termos: populus e natio
(HABERMAS, 1996, p. 494). Palavras que permanecem razoavelmente fora do
vocabulário político até sua reinvenção com a tradição do contratualismo e, em
seguida, com a Revolução Francesa, onde encontrarão solo fértil para reaparecem
novamente em conjunto, como nos alerta Habermas. Ali todos elas voltam a ter um
                                                            
5 No original: “La philosophie première est une éthique”.
 
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sentido político, mas vão passar a se ligar muito intimamente, como não acontecia
anteriormente.
O surgimento do Estado-Nação inaugura uma cadeia de conceitos
autorreferenciais que se explicam, e só se explicam, mutuamente: Estado, Nação,
Soberania e Cidadania. Exemplo lapidar é o Capítulo VI do Livro I de Do contrato
social. Ali, Jean-Jacques Rousseau se pôs a definir esses termos, mas, por outro lado,
deixou evidente que não poderia fazê-lo sem as referência internas: conceituar, neste
caso, nada mais é do que substituir um termo do sistema pelos demais. A cidadania
se acha, portanto, não numa definição abstrata, mas no complexo de conceitos que
lhe permite vir à tona e, ademais, que lhe confere sentido. “Em relação aos
associados, eles recebem coletivamente o nome de povo; e se chamam, em particular,
cidadãos, enquanto participantes da autoridade soberana e sujeitos, como aqueles
submetidos às leis do Estado6” (ROUSSEAU, 1822, p 25) (tradução minha).
Logo, a cidadania é pensada como inclusão de alguém no contrato social,
como inclusão na comunidade política soberana. É a soberania deslocada para a
Nação que perfaz o sentido próprio da cidadania: soberania popular e autogoverno a
carregam de elementos diferenciadores em relação à civitas romana. Habermas
identifica muito bem esta relação de interdependência surgida. Para ele, a aparição
conjunta deste conceitos é o efeito do republicanismo moderno nascente que
encontrou espaço para sua expansão (HABERMAS, 1996, p. 495 et seq.). O Estado
pós-Antigo Regime precisava de um sistema de conceitos que motivassem a
integração social e o comprometimento com o espaço público que se estava criando.
A nação passava a ser identificada com o poder político, enquanto a cidadania era o
poder individualizado, dividido e recebido. Cidadania sempre fora e, desde então,

                                                            
6 No original: “À l'égard des associés, ils prennent collectivement le nom de peuple, et s'appellent em
particulier citoyens, comme participant à l'autorité souveraine, et sujets, comme soumis aux lois de
l'État”.
 
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tem sido assunto relativo ao pertencimento. Nas palavras de Derrida, o cidadão passa
a ser uma singularidade contável ligada à Nação e ao Estado (DERRIDA, 1994b, p.
40); uma unidade identificável, mas que só pode ser apreendida, contabilizada, a
partir de sua relação com o todo soberano da nação.
A pergunta fundamental que me coloco é esta: como pensar a cidadania
para além deste quadro teórico que não estamos mais dispostos a endossar?, como
pensar a cidadania numa era pós-Hobbesiana – crítica, portanto, da soberania
estatal?, uma cidadania que exceda os limites impostos por um Estado Canalha7?,
como pensar a cidadania numa perspectiva do cosmopolitismo da diferença8?, como
pensar a diferença para além do comunitarismo, da comunidade de valores?
É a partir destas questões que formulo os problemas da cidadania. Ora, por
um lado, a Filosofia do Direito e a Filosofia Moral vistas sob a perspectiva de um
pensamento pós-metafísico9, veem-se em dificuldade em face de uma remissão
metafísica ao conceito de cidadania, que o faz ser acompanhado, em sua prática, de
vários de seus fantasmas: Soberania, Nação, Estado-Nação. Por outro lado, para a
Teoria Constitucional da Democracia, localizar a cidadania como espaço de mediação
entre a autonomia pública e privada, vê-la como fruição de direitos fundamentais –
que incluem direitos comunicativos - , é muito arriscado. É muito arriscado, ao
menos, enquanto não conseguirmos retirá-la-la devidamente deste complexo de
conceitos que estão a assombrá-la.
Jürgen Habermas adota a estratégia da separação em nível conceitual : a
ocorrência conjunta destes conceitos na modernidade nascente não pode perder de
vista que eles se separam conceitualmente (HABERMAS, 1996, p. 496 et seq.). Isto

                                                            
7 O uso da expressão Estado Canalha é equivalente aproximado para traduzir Rogue State. A conhecida
categoria – relembro o sentido de acusação -, cunhada no governo Bill Clinton, foi objeto das
indagações de Jacques Derrida. Cf. (2003).
8 Expressão que tomo emprestada de Giacomo Marramao. Cf. MARRAMAO (2007).
9 Sobre a noção de pensamento pós-metafísico, ver: HABERMAS (2002).
 
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equivale a dizer que cada um dos termos não se confundirá na ordem dos conceitos,
para além do uso histórico que deles possamos fazer. No entanto, por não
desenvolver mais a tese da autonomia conceitual da cidadania, Habermas acaba
desenhando uma teoria mais metafísica do que ele desejaria. E o faz contradizendo
toda a filosofia da linguagem que lhe serviu de suporte. Ao partir de uma separação
muito acentuada entre a prática histórica do conceito e sua autonomia num plano
abstrato, Habermas só poderá justificar a distinção em nível conceitual com recurso a
uma espécie de platonismo.
Jacques Derrida chama atenção para o retorno da metafísica quando se
pretende rejeitá-la com um simples gesto, como o fizeram Nietzsche, Heidegger ou
Freud. “Ora, como estes conceitos não são elementos, não são átomos, como eles
são tomados em uma sintaxe e um sistema, cada empréstimo determinado faz vir a
ele toda a metafísica”10 (DERRIDA, 1967, p. 413) (tradução minha). É impossível
retirar um termo de seu sistema, da metafísica de seus conceitos, com uma mera
atitude destrutiva. Não é destruindo a metafísica que podemos superá-la.
É o que ocorre com a cidadania: quando invocarmos seu nome estaremos,
ainda que muito indiretamente, fazendo vir com ele a Soberania, a Nacionalidade, o
Estado-Nação hobbesiano e toda a metafísica que o sustentou. Faremo-lo, ao menos,
se não tomarmos o cuidado necessário: uma atitude de atenção extrema, a qual
Derrida talvez desse o nome de desconstrução11.
Finalmente, são estes os problemas postos para a filosofia prática e para a
teoria constitucional democrática. Como se libertar do sistema de conceitos em que a
cidadania se viu encerrada, sem recurso a categorias metafísicas que pretendam
                                                            
10 No original: “Or comme ces concepts ne sont pas des élements, des atomes, comme ils sont pris
dans une syntaxe et un système, chaque emprunt determiné fait venir à lui toute la métaphysique”.
11 De tudo o que fora escrito e não escrito sobre a desconstrução, chega a ser uma atitude arrogante
remeter o leitor a qualquer obra que vise esclarecer-lhe o sentido. Contudo, acredito que valha a pena
partilhar das interrogações de Derrida sobre sua própria obra em Le toucher, Jean-Luc Nancy. Ver:
DERRIDA (2000).
 
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explicá-la? Por outro lado, como pensar uma teoria constitucional da democracia,
cujo elemento central, a cidadania, responsável pela mediação entre autonomia
pública e privada, não se encontre mais submetida aos sentidos que lhe acrescentam a
Soberania, a Nação e o Estado-Nação?

5. Possível contribuição da Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth

Sublinhei no item anterior a tripla ordem de problemas colocados pela


cidadania na contemporaneidade. Permito-me apenas indicar as linhas de possíveis
contribuições que a teoria do reconhecimento de Axel Honneth poderia nos fornecer para
repensá-la.
Acredito que a Teoria do Reconhecimento, ao invés da estratégia teórica da
rejeição do termo cidadania – como parecem propor alguns textos de Jacques
Derrida12 – permitiria dar um novo fôlego, uma nova vida a ela. Em suma, seria
possível uma reconstrução da cidadania por meio da teoria do reconhecimento. Ou,
se me for permitido tomar de empréstimo este termo que é tão caro a Honneth, o
que pretendo aqui é realizar uma reatualização da cidadania por meio da Teoria do
Reconhecimento.
Infelizmente não poderei aqui percorrer minuciosamente os meandros da
obra de Honneth. Tal tarefa ultrapassaria muito os limites materiais de que disponho.
Seria necessário um aprofundamento maior nas próprias razões históricas e teóricas
de sua proposta, em especial em relação ao diálogo com Jürgen Habermas. Não há
espaço aqui para tanto.

                                                            
12 Derrida criticou arduamente a cidadania em razão dos limites que ela representa. No ponto final de
sua proposta, Derrida propõe a substituição da cidadania, do direito de asilo, do refúgio e de outras
tantas categorias por uma única: a hospitalidade incondicionada. Cf. DERRIDA, (2003, p. 204).
 
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Elenco aquilo que considero serem os três grandes pontos de vantagem


representados pela Teoria do Reconhecimento. É através deles que, ao fim, enuncio
uma possível nova noção de cidadania.

a) A Teoria do Reconhecimento é uma teoria normativa da sociedade


(HONNETH, 2003, p. 23). É uma teoria normativa sem reservas: preocupa-se, em
todos os espaços sociais, com o conjunto de normas, de idealidades, de consensos
que são partilhados pelos agentes. Honneth repudia, portanto, qualquer tipo de
análise da realidade social que acabe por encobrir os fundamentos morais de
integração (HONNETH, 1991, p. 292 et seq.). Suas ideias abrem espaço para pensar a
sociedade, sob um ponto de vista normativo informado continuamente por lutas
morais entre grupos sociais. A consequência disto é, sinteticamente, que a motivação
da vida social não é um cálculo racional-utilitarista como em Hobbes , originando-se
antes no desejo humano de se ver incluído na sociedade (RICŒUR, 2006, p. 202). Já
se começa a delinear algo próximo à cidadania.

b) A Teoria do Reconhecimento é também fruto da negação da estreiteza da


pragmática universal (HONNETH, 2007, p. 72), enquanto estratégia de teorização
do social. Para Honneth, localizar os parâmetros sociais de justiça – e toda a
moralidade social - nos pressupostos linguísticos da comunicação livre é via por
demais estreita. O filósofo alemão pretende uma teoria que se preocupe também com
os momentos pré-argumentativos, pré-discursivos que os participantes já partilham, e
partilham desde sempre. É sob a lógica da mudança social, pensando no agir não de
uma macro-sujeito ou de um sujeito-nenhum, mas no embate entre os diversos
grupos sociais, que Honneth investiga as condições estruturais de reconhecimento
mútuo que orientam a vida ética. A reconstrução destas estruturas sociais se dá por
meio das lutas históricas no curso da formação das identidades (HONNETH, 2003,
 
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p. 213). A justiça representa, neste diapasão, uma referência a estas estruturas. Uma
sociedade que realize as condições histórias de reconhecimento, postas por si mesma,
é uma sociedade justa. Isto significa que o justo em Honneth, ou ainda, a justiça
social atravessa o direito e compreende outras esferas de interação e integração. O
direito é seguramente muito importante para esta análise, mas a justiça não se limita a
ele: há um justo que excede o Direito.

c) Honneth propõe um modelo tripartite de reconhecimento. Para ele, são


três as esferas de ação – que encontram substrato empírico em nossas sociedades –
onde se dão relações de reconhecimento: o amor, o direito, a solidariedade. Demais
disto, o fundamento motivacional da luta por reconhecimento é sempre uma negação
– referência clara à obra de Hegel. Com efeito, aos três modelos de reconhecimento
existirão correspondentes três modos de desrespeito, ou menosprezo: maus-tratos,
negação de direitos e ofensa (à honra). Esta tensão entre reconhecimento e não-
reconhecimento é fundamental para a reflexão proposta : com ela podemos pensar
que a cidadania não é simplesmente um status de pertencimento jurídico, mas é este
direito basilar de lutar por reconhecimento no interior das estruturas históricas que
este possibilita. Por ser a luta por reconhecimento motivada por um desrespeito, uma
negação, poder-se-ia esboçar uma concepção de cidadania que não se assimila à
fruição de direitos fundamentais (autonomia pública e privada no interior de um
Estado, sob uma constituição), mas significa a condição universal (cosmopolita) de
lutar por reconhecimento - no interior e ao longo de todas suas esferas – em face de
uma negação. O contrário da cidadania não seria a negação exclusiva de direitos: seria
a invisibilidade13.

                                                            
13 Honneth desenvolveu as ideias sobre invisibilidade em: HONNETH (2001).
 
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A partir de uma teoria do reconhecimento, a cidadania passaria a ser


entendida como este conjunto de condições para lutar por reconhecimento. Um
conjunto de condições e estruturas muito mais amplo e ligado à formação de
identidade pessoais e coletivas livres de violência, portanto, justas.

6. Conclusão: Posteriores desafios à cidadania para que a teoria do


reconhecimento não se transforme numa pequena reflexão

Apesar dos pontos de vantagem que apresenta a teoria do reconhecimento,


não entendo que as questões que levantei anteriormente estejam resolvidas em sua
completude. Ainda que tenhamos agora acesso a uma nova possibilidade de pensar a
cidadania, o apoio nos escritos de Axel Honneth é limitado. A teoria apresenta certas
aporias em face destes problemas: sobretudo no que diz respeito aos fantasmas da
cidadania.
A teoria do reconhecimento permitiu conceber a cidadania para além da
afirmação de direitos e para além do direito mesmo. Permitiu encontrar um
fundamento moral para a cidadania que ultrapasse as estreitezas das condições
argumentativas, localizando-a na luta, na reivindicação, no poder de apresentar
expectativas de justiça. Num certo sentido, arriscaria dizer que cidadania é justiça.
O reconhecimento é, por outro lado, problema da identidade. É questão que
concerne, em Honneth, aos dados antropológicos essenciais da formação livre de
identidades pessoais; é a autoconstrução e a autorrealização social. A formação do Eu
por meio do Outro através de relações sadias de reconhecimento recíproco é o lugar
do reconhecimento: o seu significado. Munido dos dados da psicologia social de
G.H. Mead – da empiria da psicologia social –, Honneth poderá assentar suas
intuições em bases “naturalistas”, supostamente deixando para trás a metafísica. Nas
 
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linhas que se seguem, gostaria de esboçar duas críticas à proposta de Honneth e


traçarei as linhas de investigação que se abrem a partir deste ponto.
Em primeiro lugar, creio que Honneth não foi capaz de enxergar o risco das
opções finais de sua teoria. Exemplo disto é a categoria da Eticidade, Solidariedade
ou Estima Social. É passo fundamental de seu argumento a rejeição dos pressupostos
comunitaristas – ao menos de um certo comunitarismo. A razão disto é que, caso
Honneth sustentasse que as condições de reconhecimento são uma vinculação dos
indivíduos ao marco moral de suas comunidades, sua teoria perderia o caráter
universalista, o qual é basilar para a explicação das dinâmicas de evolução social. Sua
premissa, ao contrário, é a de que os indivíduos se reconhecem mutuamente segundo
determinadas estruturas, as quais devem preencher os requisitos de reconhecimento
(baseados no conhecimento que possuímos das propriedades de formação da
identidade livre, os chamados universais antropológicos) para realizarem a justiça.
Entretanto, é inegável que o modelo último de reconhecimento, a
Solidariedade, não funciona com esta lógica. No mínimo, somos todos obrigados
concordar que que é difícil sua defesa em face da acusação de comunitarismo. Ora,
estamos diante de uma esfera que opera com a categoria da honra e com o princípio
do mérito: vocabulário típico de uma ética dos valores. Entendo ter a Solidariedade
tomado contornos axiológicos viciados por uma lógica comunitarista.
Em segundo lugar, e aqui estaria o ponto primordial de meu interesse, a
teoria do reconhecimento precisa desenvolver argumentos hábeis a enfrentar os
desafios da cidadania. Ao centrar a análise do reconhecimento nas expectativas
trazidas pelos participantes da interação social, a fim de optimizar suas construções
identitárias, temo haver um fechamento para a vinda do outro inantecipável, do evento
incalculável que, em resumo, nada mais é do que democracia do porvir (DERRIDA,
2003, p. 28). Em verdade, penso que a teoria do reconhecimento deve começar a

 
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estudar a formação de identidades não-identitárias, deve se preocupar com a


criatividade infinita que circunda a cidadania. Da identidade à alteridade.
A grande questão é que Honneth parece rejeitar essa hipótese. Em seu
debate com Nancy Fraser, o filósofo crê não haver motivos para se pensar um quarto
padrão de reconhecimento – para além do amor, do direito e da solidariedade. Em
sua opinião, este quarto princípio, ligado às minorias culturais que pretendem exceder
os padrões de igualdade de reconhecimento, não existe. Não existe porque isso
significaria conceber minorias culturais como bens em sin mesmas, sem nenhum tipo
de mensuração em relação à gramática moral da sociedade (HONNETH, 2003b, p.
167). Honneth dirá que não há pretensão normativa a um reconhecimento deste tipo,
posto que ele é muito mais afeito à simpatia (HONNETH, 2003b, p. 168).
Este possível quarto princípio seria exatamente o que para mim significa a
democracia do porvir. É no absolutamente outro, o qual se recebe com hospitalidade,
que reside a cidadania; a cidadania que rompe com seus fantasmas. Uma cidadania
pronta para lidar com o alter, pronta para lidar com o diferente, pronta para recebê-lo
naquilo que ele tem de inantecipável. Enfim, uma cidadania que rompe com a lógica do
pertencimento, da unidade contável ligado ao Estado, à Nação e à sua soberania.
Sustentei ao longo deste artigo a impossibilidade do cálculo da cidadania, o
seu potencial diferenciador, suas surpresas, suas inovações, suas reconstruções de si
mesma, suas desconstruções. A opção de Honneth é por um modelo de justiça
aristotélico de “dar a cada um o que lhe é devido”. Para além da geometria da justiça,
creio que os tempos são de pensar a justiça como dom, sem reciprocidade, sem
sinalagma. A cidadania que nos surpreendeu ao longo dos últimos cinquenta anos
não opera com cálculos, não faz economia da justiça. Ela é a desconstrução do
cálculo de distribuição de estima, é sua reinvenção. Precisamos pensar, como propõe
Derrida, uma justiça que seja desorganização (1993, p. 15): uma justiça surpreendente
que esteja por vir. E sempre por vir.
 
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Enquanto a teoria do reconhecimento não se abrir para a hospitalidade


incondicionada (DERRIDA, 2003, p. 204), seu projeto de cosmopolitismo estará
distante, e os fantasmas da cidadania continuarão a assombrá-la, sem que possamos
fazer nada a respeito.

7. Referências bibliográficas

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la izquierda?. In: El Viejo Topo, 256, 2009, p. 29-37.

 
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REAJUSTES NO PLANO DE SAÚDE: CONFLITO ESTATAL

Marlus Keller Riani*

RESUMO

Passados dez anos de vigência da Lei nº 9.656/98, que surgiu para disciplinar a
relação jurídica entre consumidores/beneficiários e fornecedores/operadoras de
plano de saúde, muito se discute nos Tribunais de Justiça, órgãos de defesa do
consumidor (Procon’s) e na própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)
sobre a legalidade em reajustar a mensalidade dos contratos. Com base no
acompanhamento das decisões judiciais e administrativas observou-se divergência de
entendimento das leis e dos atos normativos vigentes, o que possibilita discutir sobre
os riscos que esta atividade econômica está sujeita, bem como sobre a insegurança
jurídica. O direito à informação clara e precisa consagrado no Código de Defesa do
Consumidor (art. 6º, III) e na própria Lei de Plano de Saúde deve ser respeitado
pelos fornecedores que atuam no mercado de saúde suplementar. Por outro lado,
deve ser observado, em cada caso concreto, as presenças da ilegalidade ou
abusividade do reajuste praticado, sob pena de instituir decisões meramente
protecionistas e de cunho social, gerando um paternalismo pretoriano.

Palavras-chave: Plano de Saúde. Reajuste. Anual. Faixa Etária.

ABSTRACT

After ten years of legal effect of the Law n. 9656/98, created to regulamentate the
relationship between consumers and health plans, there are still a lot of discutions on
courtes, Procon´s and ANS about de legality (or lawfulens) of the reajustement of the
mounthly payment on contracts. Based on the judicial and administrative decisions, it
can be seen the the divergency on the understanding of laws and officials acts, wich
leads to a discution about the economical riscks and juridic unsafety of that activity.
The right for the acess of clear and precise information aclamated on the CDC (code
 
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used to defende consumers) must be respected by the health plans suppliers.On the
other hand, in each case must be observed the presence of ilegality or abusiveness on
the use of the reajustement, avoiding protecionist and not only social decisions,
creating a harmful paternalism.

Keywords: Health plan. Readjustement. Anual. Age range.

1 INTRODUÇÃO

Após o advento da Lei de Plano de Saúde (Lei nº 9.656/98) as empresas


que exercem atividade econômica no mercado de saúde suplementar foram obrigadas
a adequarem seu modus operandi, principalmente em relação ao consumidor, sendo
exigido mais transparência e informação nos contratos a serem celebrados. Com a
nova regulamentação, surgiram também vários aspectos polêmicos em torno do tema
saúde suplementar, sendo um deles o reajuste na mensalidade do consumidor.
O assunto reajuste já chegou ao Superior Tribunal Justiça, sendo que o voto
da Ministra Nancy Andrighi no Recurso Especial nº 809.3291, o qual foi amplamente
divulgado na mídia televisa e escrita, que trata especificamente sobre a forma de
reajuste por mudança por faixa etária, gerou repercussões em todo território
brasileiro.
Na pesquisa feita na página eletrônica do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais (TJMG)2, usando o critério “reajuste e plano e saúde”, foram registrados 1254
acórdãos, o que demonstra a atualidade do tema deste trabalho para a comunidade
jurídica, sendo que algumas destas decisões servirão de supedâneo para sustentar a

                                                            
* Mestrando em Direito Empresarial da Faculdade de Direito Milton Campos
1 Origem Rio de Janeiro (2006/00033783-6) – Recorrente: Amil Assistência Médica Internacional

Ltda. Recorrido: Oracy Pinheiro Soares da Rocha.


2 Fonte: www.tjmg.jus.br

 
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diferença de opiniões em relação ao reajuste e posicionarmos sobre o que


entendemos como mais equânime neste conflito de interesses.
Observou-se, também, as decisões administrativas expedidas pelo Núcleo
Regional Atendimento e Fiscalização de Minas Gerais (NURAF-MG), órgão
vinculado a Diretoria de Fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar,
ficando evidenciado a divergência de entendimento entre o Estado-Juiz e o Estado-
Regulador nesta matéria, o que traz uma insegurança jurídica para empresas que
exercem esta atividade econômica.
Ressalte-se que o controle e a fiscalização da ANS3 tem limites,
especialmente no que diz respeito ao reajuste de plano coletivo, haja vista que o
índice anual divulgado é válido somente para os contratos individuais.
No decorrer da aplicação da Lei nº 9.656/98 e dos atos normativos
expedidos pela ANS, que versam sobre o assunto, surgiu o Estatuto do Idoso4,
trazendo mais ingredientes para a discussão, principalmente, sobre o reajuste por
faixa etária.
Parte da jurisprudência que comparam os consumidores que adquiram
plano de saúde antes do Estatuto do Idoso com àqueles que contrataram
posteriormente a sua entrada em vigor, possibilita discussão sobre violação ao
princípio do ato jurídico perfeito previsto no art. 5º, XXXVI, da Constituição da
República de 1988.
No presente trabalho propõe-se expor todas as formas legais previstas para
reajustamento da mensalidade do plano de saúde e como evidenciar a interpretação
do Judiciário e da ANS mediante casos concretos, para que o intérprete possa

                                                            
3 Lei nº9.961/2000, art. 4º, inciso XVII “autorizar reajustes e revisões das contraprestações
pecuniárias dos planos privados de assistência à saúde, ouvido o Ministério da Fazenda;”
4 Lei Federal nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (vigência 01/01/2004)

 
1225 
 
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discernir sobre qual entendimento deve prevalecer para se atingir à harmonia nos
interesses desta relação de consumo.

2 FORMAS DE REAJUSTE

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) divulga na sua página


eletrônica5 a possibilidade de reajuste de duas formas, por variação de custos ou por
mudança de faixa etária.
Salienta-se que é legalmente possível ocorrer, no mesmo ano, aplicação
destas duas formas de reajuste, contudo, deve ser observado o contrato e
especificamente para os planos individuais respeitar o índice divulgado pela ANS.
No intuito de elucidar algumas polêmicas em torno do tema, propõe-se
analisar cada forma de reajuste e suas repercussões.

2.1 Reajuste por variação de custos

Pode-se afirmar que o reajuste anual é sinônimo de reajuste por variação de


custos, sendo que a ANS conceitua como sendo “o aumento anual de mensalidade do
plano de saúde em razão de alteração dos custos, ocasionada por fatores como inflação e uso de novas
tecnologias”6.
Para aplicação do reajuste anual deve-se observar primeiramente a data de
comercialização do contrato firmado, ou seja, se é anterior ou posterior à Lei nº

                                                            
5 http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/guia_reajuste_mensalidade.pdf
6 Idem 5.
 
1226 
 
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9.656/98 e, em seguida, se o contratante é pessoa física ou jurídica, pois a regra de


aplicação é distinta.
Apesar do foco deste trabalho ser o reajuste por faixa etária, cumpre
esclarecer que o reajuste por variação de custos nos contratos individuais é possível
de acordo com o índice anual divulgado pela ANS e para os contratos coletivos
obedece ao índice previsto no contrato firmado entre a operadora e a pessoa jurídica
contratante.

2.2 Reajuste por mudança de faixa etária

Mais uma vez nos reportamos a conceituação da ANS, agora para o reajuste
por faixa etária, a qual estabelece ser “o aumento decorre da alteração de idade do
consumidor”.
O reajuste por mudança de faixa é possível, pois está esculpido no nosso
ordenamento jurídico no artigo 157 da Lei nº 9.656/98, restando estabelecido que
para sua devida aplicação é necessário que as operadoras de plano de saúde façam a
devida previsão no contrato, tanto das faixas quanto os percentuais, preservando
assim, o direito à informação (art. 6, III e 46, ambos do CDC).
Pode-se afirmar que na grande maioria dos contratos de plano de saúde, que
foram firmados antes da Lei nº 9.656/98, consta a possibilidade do reajuste por faixa
etária, contudo, é bem verdade que não informa o percentual a ser aplicado em cada
uma delas, o que leva o assunto para o Judiciário decidir sobre sua legalidade ou não.

                                                            
7 “Art. 15.A variação das contraprestações pecuniárias estabelecidas nos contratos de produtos de que

tratam o inciso I e o §1º do art. 1º desta Lei, em razão da idade do consumidor, somente poderá
ocorrer caso estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes
incidente em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS, ressalvando o disposto no art.
35-E.”
 
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Neste sentido, serão evidenciados alguns aspectos polêmicos que versam


sobre o reajuste por mudança de faixa etária, apontando aplicação necessária do
Código de Defesa do Consumidor aos contratos celebrados antes da vigência da Lei
nº 9.656/98, bem como as regras legais impostas pela ANS entre 02 de janeiro de
1999, data de início da obrigação de comercialização dos contratos “novos” e a
repercussão desta matéria quando do advento do Estatuto do Idoso.

2.2.1 Reajuste por mudança de faixa etária para pessoa física ou jurídica
anterior à lei nº 9.656/98

No reajuste por mudança de faixa etária, diferentemente do que expusemos


no reajuste por variação de custos (anual), não há distinção na regra por se tratar de
pessoa física ou jurídica, eis que a estipulação deve constar no contrato firmado entre
operadora e contratante.
O que nos interessa evidenciar neste item do trabalho é aplicação direta do
Código de Defesa do Consumidor quando houver abuso por parte do fornecedor ao
reajustar de maneira excessivamente onerosa, unilateralmente ou sem informação
clara e precisa.
Um bom exemplo foi à ação civil pública movida pelo Movimento das
Donas de Casa e Consumidores, ano de 1999, em desfavor da Golden Cross
Assistência Internacional de Saúde e da Unimed Belo Horizonte Cooperativa de
Trabalho Médico, sendo determinado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais8 um

                                                            
8 Recurso de Apelação nº 2.0000.00.442496-4/000(1), julgado em 20/09/2005. Trata-se de decisão
definitiva, pois não houve por parte da autora da ação interposição de recurso especial ou
extraordinário.
 
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reajuste máximo de 50% para todos os usuários das operadoras que mudaram de
faixa etária no curso do processo ou que irão sofrer tal reajuste ao longo do contrato.
Na referida ação foi obtida tutela antecipada impedindo que as operadoras
aplicassem qualquer reajuste por mudança de faixa etária para os clientes de contratos
“antigos”, sendo que transcorridos mais de 06 anos, o TJMG decidiu que:

Por outro lado, deve-se atentar também que é razoável que os


aderentes de faixa etária de maior risco paguem uma contribuição
um pouco superior aos de faixa etária de menor risco, contudo, o
reajuste não pode significar uma verdadeira "cláusula-barreira",
cuja finalidade é justamente o de fazer com que o contratante se
exclua do plano, por não conseguir suportar o aumento das
contribuições.
(...)
Considerando tudo isso, é necessário, agora, verificar se o
percentual de aumento previsto nos contratos é razoável e
proporcional ou não, e voltando ao laudo pericial, mais
precisamente aos demonstrativos de aumentos por mudança de
faixa de etária da Unimed-BH (f. 666) e da Golden Cross (f. 668),
verifico que quanto à Unimed, os diversos tipos de contrato
prevêem, em sua maioria, um aumento na média de 70% quando
o contratante atinge a idade de 60 anos, e mais 30%, em média,
quando o contratante atinge a idade de 70 anos, ao passo que a
requerida Golden Cross, prevê um aumento na média de 120%
quando o consumidor atingir a idade de 59 anos, e mais 90%, em
média, quando atingir 70 anos, ambos com valores diferenciados
conforme o plano adquirido.
(...)
A solução que se propõe aqui, utilizando-se a idéia contida no
julgado abaixo transcrito, é a permissão de reajustes quanto ao
aumento das faixas etárias, porém, estes deverão ter como "teto"
o percentual de 50%, aplicando-se este limite a ambas as faixas
etárias dos consumidores de idade acima de 59 anos, figurando
este índice como teto para os diversos planos que constam das
referidas planilhas de f. 666 e 668, prevalecendo, contudo, os
índices que foram aplicados inferiores ao "teto" acima
estabelecido.

 
1229 
 
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Na prática, as operadoras puderam retroagir a cobrança do reajuste por


mudança de faixa etária, eis que ficou consignado no voto do relator que “Como os
reajustes foram suspensos em cumprimento da liminar deferida às f. 121-129, deverá a diferença que
se deixou de cobrar em razão do cumprimento da ordem judicial ser rateada entre as mensalidades
futuras, dividas pelo mesmo número de meses em que estiveram suspensas.”, e, ainda continuar
aplicando para os demais consumidores de planos “antigos”, respeitando o limite
máximo de 50%.
Vale ressaltar que os contratos em discussão não continham previsão dos
percentuais que poderiam ser aplicados em cada faixa etária, em verdadeira ofensa ao
artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece como direito
básico à informação adequada e clara.
A questão supra, restou sendo resolvida por meio da perícia judicial,
contudo, nos contratos que não possuem a informação sobre o percentual a ser
aplicado em cada faixa, caberá as operadoras em cada caso concreto provar que não
praticam reajuste de forma indiscriminada, ou seja, dependendo do “freguês” e do
equilíbrio financeiro do seu contrato poderá variar o percentual, isto é totalmente
unilateral e discriminatório.
Como a operadora poderá provar que o percentual que está sendo aplicado
corresponde à variação existente entre a faixa anterior e a faixa etária posterior? A
justificativa encontrada pelas operadoras, inclusive aceita pela ANS, é trazer para os
autos do processo cópias dos contratos de outros consumidores que adquiriram
plano idêntico, com vigência para a mesma data e que possuam preço de venda da
época, possibilitando assim, evidenciar o percentual de reajuste em cada faixa etária
do contrato.
Cabe destacar que o tema está sub judice perante o Supremo Tribunal
Federal, haja vista que foi concedida liminar (21.08.2003) na ADIN nº 1931/DF,
considerando inconstitucional o art. 35-E da Lei nº 9.656/98, que determinava à
 
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autorização prévia da ANS para qualquer variação na contraprestação pecuniária para


consumidores com mais de sessenta anos de idade que estava vinculado aos ditos
“planos antigos”.

2.2.2 Reajuste por mudança de faixa etária para pessoa física ou jurídica
posterior à Lei nº 9.656/98 e anterior ao Estatuto do Idoso

Reafirma-se que a Lei nº 9.656/98 pôs fim a qualquer discussão sobre a


legalidade ou não da aplicação de reajuste por mudança de faixa etária, isto porque
preconizou em seu artigo 15 a possibilidade de sua existência nos contratos, bem
como determinou a forma e maneira como o consumidor deverá ser informado.
Antes da criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar, ocorrida no
ano de 2000, existia o Conselho de Saúde Suplementar (CONSU) que era presidido
pelo Ministro da Saúde, o qual expediu a Resolução nº 6, de 3 de novembro de 1998,
dispondo “sobre critérios e parâmetros de variação das faixas etária”, sendo previsto no
artigo 1º “Para efeito do disposto no artigo 15 da Lei 9.656/98, as variações das contraprestações
pecuniárias em razão da idade do usuário e de seus dependentes, obrigatoriamente, deverão ser
estabelecidas nos contratos de planos ou seguros privados a assistência à saúde, observando-se as 07
(sete) faixas etárias discriminadas abaixo:”9.
O supracitado ato normativo começou a vigorar a partir de 02 de janeiro de
1999 e continua valendo para os contratos celebrados até 31 de dezembro de 2003,
pois ANS em 22 de dezembro de 2003, expediu a Resolução Normativa nº 63,
adotando dez faixas etárias para todos os contratos comercializados a partir de 1º de

                                                            
9 As 07 (sete) faixas etárias são: 0 a 17 anos; 18 a 29 anos; 30 a 39 anos; 40 a 49 anos; 50 a 59 anos; 60

a 69 anos e 70 anos idade ou mais.


 
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janeiro de 2004, isto em virtude da entrada em vigor do Estatuto do Idoso. A


repercussão desta alteração feita pela ANS será tratada no próximo tópico.
Os principais pontos de discussão que giram em torno deste tema reside no
parágrafo único do artigo 15 da Lei nº 9.656/98 que aduz “É vedada a variação a que
alude o caput para consumidores com mais de sessenta anos de idade, que participarem dos produtos
de que tratam o inciso I e o §1º do art. 1º, ou sucessores, há mais de dez anos.”
Pela redação do diploma legal citado, identificam-se dois pressupostos que
devem ser preenchidos pelo beneficiário/consumidor para que não seja aplicada em
sua contraprestação pecuniária qualquer percentual a título de mudança por faixa
etária, que podem ser assim apresentados:
- ter mais de 60 anos de idade;
- estar participando de plano de saúde há mais de dez anos.
Sobre o primeiro aspecto, ter mais de 60 anos de idade, vale dizer que o
Núcleo Regional de Fiscalização de Minas Gerais (NURAF-MG), órgão da Diretoria
de Fiscalização da ANS, a partir de 2008, tem punido com multa as operadoras que
aplicam reajuste por mudança de faixa etária quando o beneficiário sai da faixa de 50
a 59 anos e vai para a faixa 60 a 69 anos e já possuem mais de dez anos de plano.
Esse é um dos pontos polêmicos, pois a norma traz a expressão
“consumidores com mais de sessenta anos de idade”, e não “consumidores com idade igual ou
superior a sessenta anos”. A interpretação literal do artigo não admite outra conclusão
que não seja a de que o beneficiário possua mais de sessenta anos na data do reajuste,
sendo esta realizada no mês seguinte ao seu aniversário.
Nos autos do processo administrativo nº 25779.000766/2009-61 extraiu o
posicionamento do NURAF-MG sobre esta controvérsia:

Cumpre dizer que a interpretação da Norma deve levar em conta


a hermenêutica jurídica, onde se tem, por método, a interpretação
teológica e a sistemática, eis que a literalidade pode levar a
 
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equívocos dissonantes do sistema legal e constitucional pátrio,


incluindo-se a extensividade da norma, como parte da
hermenêutica, sem que isso possa ser considerado “violação ao
princípio da legalidade”.

Lado outro, entende-se que a interpretação extensiva da norma não é


aplicável no âmbito do Direito Administrativo, pois, tal modalidade de interpretação
pode ensejar a “criação” de uma nova norma, em patente violação ao princípio da
legalidade, conforme assevera Reinaldo Moreira Bruno (2005, p.19) in verbis:

Constitui-se em regra inaplicável às normas administrativas por


causa da relevância da lei como instrumento limitador da ação
estatal – tal modalidade de interpretação levaria à criação de nova
norma.
Ressalta-se que não se admite para o Direito Administrativo uma
interpretação extensiva – tal como ocorre no Direito Privado,
pois, neste caso, estaria sendo criada norma administrativa nova
em afronta ao princípio da legalidade, conforme lição de Hely
Lopes Meirelles.

Imperioso registrar que não coadunamos com a tese desenvolvida pela


ANS, pois entendemos ser perfeitamente possível aplicação do percentual de reajuste
para o consumidor que estiver completando sessenta anos de idade, haja vista que
não preenche um dos requisitos da Lei que é ter mais de 60 anos de idade.
Encontramos alguns doutrinadores que já manifestaram sobre o tema idade,
não especificamente sobre o artigo 15 da Lei nº 9.656/98, mas que serve de guarida
para sustentar nosso posicionamento que é contrário da ANS, sendo o primeiro deles
o jurista Damásio de Jesus (2004)10, que explica a inequívoca diferenciação entre o
sujeito possui exatos 60 (sessenta) anos e aquele de que possui mais de 60 (sessenta)
anos, veja-se:

Há diferença. No dia do aniversário, o sujeito tem idade igual a 60

                                                            

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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(sessenta) anos; no dia posterior, já é maior de 60 (sessenta).


Dessa forma, se o sexagenário vier a ser vítima de homicídio
doloso no dia seguinte ao seu aniversário, incidirá a causa de
aumento da pena do art. 121, § 4º, segunda parte, do CP. Se
contudo, for ferido na data em que completa 60 (sessenta) anos,
morrendo no dia posterior, quando já era maior de 60 (sessenta), o
autor não sofrerá a agravação da pena, uma vez que, aplicada a
teoria da atividade na questão do tempo do crime, não era maior
de 60 (sessenta) anos no momento da agressão.

Esse entendimento é ainda comungado por Flávio Augusto Monteiro de


Barros (2004, p.500-501)11, in verbis:

Isso, consoante a agravante em apreço, com redação dada pela Lei


nº 10.741/2003, é a pessoa com idade superior a 60 anos. Adotou-
se o critério cronológico, em vez do biológico, de modo que o
crime cometido contra pessoa com envelhecimento precoce não
tem a sua pena agravada. Acrescente-se, ainda, que o delito
cometido no dia do aniversário de 60 anos a vítima também não
tem a pena agravada, porque o Código Penal utilizou a expressão
'maior de 60 anos'; portanto, essa agravante só é aplicada nos
delitos praticados no dia seguinte ao aniversário de 60 anos.

Ainda nessa linha de raciocínio, manifestou Teles (2004, p.280) sustentando


que o sujeito “maior de 60 anos” é aquele que contar com 61 anos.
No meio acadêmico é disseminado que o Judiciário do Rio Grande do Sul é
vanguardista, inovador e também pró-consumidor, razão pela qual, fez-se uma rápida
pesquisa jurisprudencial tendo encontrado os acórdãos a seguir:

PLANO DE SAÚDE. AUMENTO DA MENSALIDADE EM


RAZÃO DA MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA. contrato
firmado em 10.10.1994 com previsão expressa de reajuste das
mensalidades no momento em que o beneficiário completasse 60
e 70 anos de idade (cláusula 21, § 6º).
Não há violação ao direito de informação do beneficiário-
contratante de plano de saúde se no contrato consta

                                                            

 
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expressamente o percentual e o momento em que se dará o


aumento da mensalidade. Recurso a que se dá provimento.12

PLANO DE SAÚDE. REAJUSTE POR FAIXA ETÁRIA.


DISPOSIÇÕES CONTRATUAIS COM PREVISÃO CLARA E
EXPRESSA DE AUMENTO.
Constando expressamente e desde o início do contrato que, a
partir dos 60 (sessenta) anos, o pagamento seria REAJUSTADO
EM PERCENTUAL PRÉ-ESTABELECIDO, não há como
afirmar TENHA A RÉ violado direito de informação. NÃO
CARACTERIZADA A abusividade da cláusula. Recurso
provido.13

Fato é que há conflito entre Estado-Regulador, eis que por interpretação da


Diretoria de Fiscalização da ANS as operadoras de plano de saúde estão sendo
multadas14, noutro giro, o Estado-Juiz vem decidindo pela manutenção da aplicação
do reajuste, desde que haja informação adequada e o percentual não seja abusivo,
para os consumidores que completam sessenta anos de idade. Precisa-se de uma
uniformização sobre o tema, sob pena da insegurança jurídica para todos os
participantes desta relação de consumo.
Entende-se que o legislador tentou proteger e evitar a saída do consumidor
que já tinha mais de 60 anos do sistema de saúde suplementar, haja vista que tem
uma idade considerável, pagou por mais de 10 anos um plano de saúde para
operadora e sua capacidade econômica geralmente é diminuída pela aposentadoria,
mas não aquele que estava entrando na fase mais crítica de uso, qual seja, o
beneficiário de 60 anos. Por isso, que para a última faixa etária prevista na RN nº
6/1998, 70 anos de idade ou mais, o consumidor não poderá mais sofrer o reajuste.
Em relação ao outro pressuposto, participando de plano de saúde há mais
de dez anos, a controvérsia reside em saber como se faz a contagem deste tempo.

                                                            
12 Recurso Inominado nº 71001519131 – Segunda Turma Recursal Cível - Comarca de Porto Alegre.
13 Recurso Inominado nº 71001625664 - Segunda Turma Recursal Cível - Comarca de Porto Alegre
14 Multa de R$45.000,00 (quarenta e cinco mil reais) – Art. 57 da RN nº 124/2006.

 
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Trazemos a baila o final da redação do parágrafo único do artigo 15 da Lei nº


9.656/98 que assim dispõe: “que participarem dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do
art. 1º, ou sucessores, há mais de dez anos.”.
O CONSU ajudou em parte o entendimento sobre o tema, ao editar a
Resolução Normativa nº 6/1998 que estabelece em seu artigo 2º, § 2º: “A contagem do
prazo estabelecido no parágrafo anterior deverá considerar cumulativamente os períodos de dois ou
mais planos ou seguros, quando sucessivos e ininterruptos, numa mesma operadora,
independentemente de eventual alteração em sua denominação social, controle empresarial, ou na sua
administração, desde que caracterizada a sucessão.”.
Para melhor compreensão da existência de controvérsias sobre este item,
resolvemos elaborar os seguintes questionamentos:
- os produtos15 do inciso I16 e o § 1º do art. 1º da Lei nº 9.656/98 são
somente os ditos “planos novos”?
- sucessores seriam somente os ditos “planos antigos”?
- os produtos do inciso I e o § 1º do art. 1º da Lei nº 9.656/98 e sucessores
seriam somente os ditos “planos novos”?
A definição da palavra “sucessores” contida na norma é de suma
importância, pois de acordo com a interpretação que for dada, em cada caso
concreto, pelo Estado-Juiz, Estado-Regulador, Operadoras e o próprio Consumidor,
poderá ficar evidenciado o preenchimento ou não do pressuposto participando de
plano de saúde há mais de dez anos.
Duas situações fáticas visam demonstrar com clareza essa controvérsia, a
primeira que o consumidor adquiriu um produto (plano) em 1994 e depois adaptou17

                                                            
15 Produto se assemelha a plano ou seguro saúde, sendo que para a comercialização pelas operadoras é

necessário obter registro de produto, conforme determina a Resolução Normativa nº 85/2004.


16 Definição de plano privado de assistência à saúde.
17 Adaptação é firmar novo contrato de plano de saúde com a operadora absorvendo todos os direitos

da Lei nº 9.656/98 e suas regulamentações aos direitos já consagrados no antigo plano.


 
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em 2002, frise-se, antes do Estatuto do Idoso, completando sessenta anos em junho


de 2007. Caso a palavra sucessor seja interpretada somente como “plano novo”, este
usuário não terá preenchido o requisito legal de estar participando de plano de saúde
há mais de dez anos. Lado outro, se a interpretação for como “plano antigo” terá
preenchido o pressuposto legal.
A ANS em sua página eletrônica denomina e conceitua “Plano Sucessor é
aquele contrato pelo mesmo titular com a mesma operadora, que substitui, sem interrupção de tempo,
o plano ao qual o consumidor estava vinculado. Também são considerados sucessores os contratos
relacionados à transferência de carteira entre operadoras”18
Faltou o que estamos questionando, para a contagem dos 10 anos deve ser
levado em consideração o tempo do beneficiário no plano antigo ou não?
O NURAF-MG interpreta “sucessores” como “planos antigos”, servindo
tal posicionamento para multar as operadoras que atuam em sua área de atuação,
Minas Gerais e Espírito Santo. Este também é nosso entendimento, lembrando que
o consumidor que possui somente o “plano antigo” não pode se valer desta regra,
pois ela só tem validade para quem firmou contrato a partir de 02 de janeiro de 1999
ou adaptou o plano após essa data.

2.2.3 Reajuste por mudança de faixa etária para pessoa física ou jurídica
posterior à lei nº 9.656/98 e posterior ao Estatuto do Idoso

Antes do advento do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) a ANS expediu a


Resolução Normativa nº 63, de 22 de dezembro de 2003, determinando inserção
pelas operadoras nos contratos de plano privados de saúde, tanto para pessoas físicas

                                                            
18 Fonte: http://www.ans.gov.br/portal/upload/biblioteca/guia_carencia_doenca_urgencia.pdf 
 
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como para jurídicas, firmados a partir 1º de janeiro de 2004 de dez faixas etárias19 e
não sete faixas como anteriormente previsto20.
Esta nova regra trouxe consigo uma discussão para o cenário jurídico, qual
seja, a irretroatividade do Estatuto do Idoso para os contratos celebrados antes da
sua vigência.
A tese desenvolvida e sustentada em algumas recentes decisões judiciais
para não aplicação de reajuste para pessoas com idade igual ou maior de sessenta
anos foram embasadas pelo voto da Ministra Nancy Andrighi que explicou:

Isso porque a cláusula de reajuste por faixa etária é de caráter


aleatório, cujo aperfeiçoamento condiciona-se a evento futuro e
incerto. Explico: não sabemos se o consumidor atingirá a idade
preestabelecida na cláusula contratual, que decorre de lei. Dessa
forma, enquanto o contratante não atinge o patamar etário
predeterminado, os efeitos da cláusula permanecem
condicionados a evento futuro e incerto, não se caracterizando o
ato jurídico perfeito, tampouco se configurando o direito
adquirido da empresa seguradora, qual seja, de receber os valores
de acordo com o reajuste predefinido.
[...]
Assim, se o implemento da idade, que confere à pessoa a condição
jurídica de idosa, realizou-se sob a égide da Lei nova, não estará o
consumidor usuário do plano de saúde sujeito ao reajuste
estipulado no contrato e permitido pela lei antiga. Estará
amparado, portanto, pela Lei nova.

Observa-se que esta tese traz repercussões em relação ao princípio da


isonomia que está esculpido no caput do artigo 5º da Constituição da República de
198821 a igualdade de todos perante a lei, é imposto um dever de tratar

                                                            
19 Faixas etárias: 0 a 18 anos; 19 a 23 anos; 24 a 28 anos; 29 a 33 anos; 34 a 38 anos; 39 a 43 anos; 44 a

48 anos; 49 a 53 anos; 54 a 58 anos; 59 anos ou mais.


20 Resolução CONSU nº 06/1998. Idem 17.
21 Artigo 5ª, caput, da Constituição da República de 1998 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes”:
 
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isonomicamente as partes, que “significa tratar igualmente os iguais e desigualmente


os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”.22
Salienta-se que antes da nova regra o consumidor tinha um intervalo de 10
em 10 anos para sofrer reajuste por faixa etária, atualmente o prazo é de 05 em 05
anos, portanto, o consumidor de 52 anos que adquiriu um plano “A” em dezembro
de 2003 ao completar 60 anos não sofria reajuste (isso pela tese supra) e o
consumidor de 52 anos que adquiriu o mesmo plano “A” em janeiro de 2004 sofreria
dois reajustes por mudança de faixa etária (54 a 58 e depois 59 anos), no final
teríamos duas pessoas iguais (idade e mesmo plano) pagando valores totalmente
discrepantes um do outro.
Igualar o consumidor que possui contrato anterior ao Estatuto do Idoso
com aquele que celebrou posteriormente a sua entrada em vigor, rompe o equilíbrio
contratual da carteira de usuários que é baseada no mutualismo, fazendo com que
pessoas que tenham o mesmo direito à prestação de serviço paguem valores muito
diferentes.
Outro princípio consagrado da Constituição da República artigo 5º,
XXXVI,23 é o ato jurídico perfeito, que proíbe que uma lei nova venha prejudicar a
relação jurídica existente. Não havendo qualquer vício de informação que possa
macular o contrato firmado entre as partes, espera-se que produza todos seus efeitos
de acordo com as obrigações assumidas e não que uma parte seja beneficiada com
entrada de nova regra.
Cumpre relembrar a discussão que está sendo travada no Supremo Tribunal
Federal por meio da ADIN 1931 sobre ato jurídico perfeito, o qual foi considerado
inconstitucional por decisão liminar que suspendeu o artigo 35-E da Lei nº 9656/98.
                                                            
22 Veja Nery Junior, Nelson. Constituição Federal comentada e legislação constitucional - São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2006.
23 Artigo 5º, XXXVI da Constituição da República de 1988 “XXXVI – a lei não prejudicará o direito

adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”


 
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Entre outras hipóteses, autorizava a ANS a conceder ou não reajuste por variação de
faixa etária aos consumidores com mais de 60 anos. A decisão consiste em preservar
o ato jurídico perfeito nos casos de reajuste de mensalidade de contrato antigo,
entendimento diferente não pode existir para reajuste de clientes que contrataram
antes do advento do Estatuto do Idoso.
Mesmo por ser tratar de uma lei de ordem pública deve-se submeter à
norma constitucional que preserva o ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Neste
sentido GRECO FILHO (1991, pág. 380) “As normas de intervencionismo
contratual aplicam-se aos contratos celebrados a partir de sua vigência”.
Do voto do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Castro Filho que
divergiu da Ministra Nancy Andrighi, extrai-se o seguinte texto:

“Logo, além do reajuste oficial anunciado pela Agência Nacional


de Saúde Suplementar (ANS), que vale para os contratos
assinados a partir de 1º de janeiro de 1999, pode ocorrer outro
aumento, que resulta da mudança de faixa etária, que se justifica
em razão da mudança do perfil de uso dos serviços de saúde,
estimado com base em estatísticas, e com regras específicas. Há de
se respeitar, por conseqüência a cláusula livremente pactuada pela
ora recorrida.”

Pela certidão de julgamento do Recurso Especial nº 809329/RJ,


publicada em março de 2008, temos que a Terceira Turma, por maioria (3
Ministros), não conheceu do recurso, sendo vencidos dois Ministros, o que
demonstra a polêmica do tema.

 
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CONCLUSÃO

Vê-se que existe a legalidade do reajuste por mudança de faixa etária, sendo
que as regras para sua aplicação variam de acordo com a data de celebração do
contrato.
As regras jurídicas que surgem ao longo do tempo contribuem para
incrementar a complexidade do setor de saúde suplementar, provocando um cenário
de extrema insegurança para empresas que atuam nesta atividade econômica.
Imperioso que haja uma unificação de entendimento sobre as regras que
envolvem os contratos de plano de saúde, tornando-se necessário o julgamento da
ADIn 1.931-8, para evitar decisões contraditórias e de caráter meramente
paternalista.
O tema reajuste afeta diretamente o interesse econômico das partes, de um
lado o consumidor que é compelido a pagar um valor que não estava previsto no seu
orçamento doméstico e de outro a operadora de plano de saúde que tem interesse em
receber para manter o equilíbrio financeiro da carteira de clientes. Essa situação é
agravada quando se trata de reajuste por faixa etária
Vale lembrar que hoje temos uma acentuada intervenção estatal nos
contratos de consumo que são celebrados entre as operadoras de plano de saúde
(OPS) e consumidores, sendo que, em curto ou médio prazo, poderá acarretar um
descontrole do mercado.
Por arremate, é cediço que as normas jurídicas ou as decisões baseadas
nelas, podem predizer, estimular ou, no caso que ora mais interessa, desestimular os
conflitos entre fornecedores e consumidores.
A insegurança jurídica e econômica está instalada na relação de consumo de
plano de saúde, haja vista a falta de harmonização de entendimento entre o Estado-
Juiz e o Estado-Regulador. Daí, a necessidade da busca da equidade entre os
 
1241 
 
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participantes desta relação, com vistas a uma Justiça distributiva e não assistencialista,
preservando o equilíbrio econômico financeiro dos contratos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. Volume 1. 4ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 500-501

BRUNO, Reinaldo Moreira. Direito Administrativo.1ª ed. Belo Horizonte: Del


Rey, 2005. p. 19

FERNANDES NETO, Antônio Joaquim. Plano de saúde e direito do


consumidor. Belo Horizonte, Del Rey, 2002.

FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Curso de Direito de Saúde Suplementar: Manual


jurídico de planos de seguros de saúde. São Paulo: MP Editora, 2006.

GRECO FILHO, Vicente. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor.


São Paulo: Saraiva, 1991, pág. 380.

GREGORI, Maria Stella. Planos de Saúde: a ótica da proteção do consumidor.


São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

JESUS, Damásio E. de. Conceito de idoso na legislação penal brasileira. 2004.


Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5122>. Acessado
em 09/07/2009.
 
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Edições Uberlândia e Belo Horizonte

NERY JUNIOR, Nelson. Constituição Federal comentada e legislação


constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Regulamentação dos planos de saúde e


proteção da pessoa humana. Revista Direito do Consumidor, n. 51, p. 101-111, jul.-set.
2004.

RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. O Código de Defesa do Consumidor e os


planos de saúde: o que importa saber. Revista de Direito do Consumidor, n. 48,
São Paulo, RT, p. 85-88. out.-dez. 2003.

SAMPAIO JR, Rodolpho Barreto. Intervenção e Privatização sob uma ótica


político-econômica. Revista do Instituto Carlos Campos, v. 1, p. 221-250, 1995.
_________. A defesa do consumidor e o paternalismo jurídico. In: XVI
Congresso Nacional CONPEDI, 2007, Belo Horizonte. Anais do XVI Congresso
Nacional CONPEDI. Florianópolis : Fundação Boiteux, 2007. p. 4817-4836.

TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II, São Paulo: Atlas, 2004, p. 280.

 
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SOCIOLOGIA JURÍDICA NAS RUAS: A EXPERIÊNCIA DA


FACULDADE DE DIREITO DA UFMG

Luiza Oliveira Guedes1

RESUMO

O presente artigo é baseado em uma pesquisa realizada na cidade de Belo Horizonte


por discentes da Faculdade de Direito da UFMG. Com um questionário específico,
foi verificada a relação dos cidadãos com os direitos constitucionais, considerando o
nível sócio-econômico e cultural dos entrevistados. O grupo de entrevistados
representou diferentes classes sociais e foram utilizadas duas variáveis para identificar
e classificar os mesmos: a renda mensal familiar e o grau de instrução. Percebeu-se,
após o recolhimento dos questionários de entrevista, uma relação direta entre a
informação que o entrevistado tinha acerca de seus direitos constitucionais e o seu
nível de escolaridade e de renda. Quanto mais instruídos, maiores eram os
percentuais de pessoas que citavam direitos políticos e trabalhistas. A porcentagem
daqueles que não sabia ou, que não conhecia os direitos lhes assegurados pela
Constituição, era de pessoas que ganhavam até dois salários mínimos e tinham
estudado até o segundo grau completo. Porém, a maioria dos entrevistados, inclusive
os de maior escolaridade, citou apenas direitos mais populares como educação e
liberdade. Isso indica que mesmo a população mais bem instruída não consegue
apontar direitos constitucionais variados, apenas os mais conhecidos. Assim, impõe-
se uma discussão sobre o papel do conhecimento do direito para formação da
cidadania, assim como a relação dessa com o exercício de direitos constitucionais.

Palavras-Chave: Direitos constitucionais, Cidadania.


Keywords: Constitucional Rigths, Citizenship.

                                                            
1 Graduanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG
 
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1. Introdução

Essencial para todo cidadão, como instrumento que lhe assegura direitos e
garantias individuais, a Constituição Federal de 1988 ainda é pouca conhecida pela
maioria da população.
Grande parte dos direitos constitucionais visa à proteção das pessoas
desfavorecidas socialmente, mas esses não se verificam na realidade. Não é porque
são garantidos que o Estado oferece possibilidades reais de aplicação. O
conhecimento desses direitos por esse grupo é de fundamental importância para sua
concretização, é o primeiro passo para o seu exercício.
O presente artigo é baseado em um trabalho realizado na cidade de Belo
Horizonte por discentes da Faculdade de Direito da UFMG. A finalidade do trabalho
foi verificar se o cidadão tem conhecimento dos direitos que lhe são assegurados pela
Constituição. A partir da pesquisa sociológica proposta foram elaboradas hipóteses e
chegou-se a conclusões. Com um questionário específico, aplicado em 96 pessoas,
foi verificada a relação dos cidadãos com os direitos constitucionais, considerando
seu nível sócio-econômico e cultural. O grupo de entrevistados representou
diferentes classes sociais e foram utilizadas duas variáveis para identificar e classificar
os mesmos: a renda mensal familiar e o grau de instrução.
Percebeu-se, após o recolhimento dos questionários de entrevista, uma
relação direta entre a informação que o entrevistado tinha acerca de seus direitos
constitucionais e o seu nível de escolaridade e de renda. Quanto mais instruídos,
maior era o percentual de pessoas capazes de reconhecer e citar os direitos
constitucionais. A maioria dos pesquisados que não sabiam ou, que não tinham
nenhuma noção acerca dos direitos lhes assegurados pela Constituição, eram de
pessoas que ganhavam até dois salários mínimos e tinham estudado até o segundo
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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grau completo. Porém, a maioria dos entrevistados, inclusive os de maior


escolaridade, citou basicamente os direitos individuais, negligenciando os políticos e
trabalhistas. Isso mostra que mesmo a população mais bem instruída não é capaz de
apontar direitos constitucionais variados, porque realmente não os conhece muito
bem ou não considera os outros grupos de direitos tão importantes quanto os
individuais. O porquê de as pessoas terem se concentrado nos direitos individuais é
desconhecido. Pode-se relacioná-lo a um contexto individualista ou simplesmente à
maior divulgação dos direitos individuais e um descaso para com os direitos políticos
e os demais. Mas seria necessária uma pesquisa mais aprofundada sobre a questão. O
fato é que esse descaso para com os direitos políticos representa uma barreira na
busca pela cidadania, que depende da participação da população nas decisões sociais
e na busca pela concretização dos direitos constitucionais.
Assim, impõe-se uma discussão sobre o papel do conhecimento do direito
para a realização da cidadania, assim como a relação dessa com o exercício de direitos
constitucionais.

2. Metodologia Utilizada

Segundo Sabadell, (SABADELL, 2008), existe sempre a possibilidade de


erros, causados por problemas não previstos. Isso pode acarretar desvios em uma
pesquisa sociológica. É importante, dessa forma, seguir uma metodologia científica
para que esses desvios sejam pequenos e o trabalho se aproxime ao máximo da
realidade social existente.
Foi utilizado o método indutivo para efetuar a pesquisa e chegar às
estatísticas que mostram as probabilidades que indicam as conclusões obtidas. O

 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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processo indutivo tenta, a partir do exame de casos particulares, extrair conclusões


mais gerais.
A questão concreta pesquisada foi a relação dos cidadãos com os direitos
constitucionais, considerando seu nível sócio econômico e seu grau de instrução.
Para verificar essa questão foram consideradas:
• Variável dependente: Conhecimento dos direitos fundamentais
presentes na Constituição de 1988
• Variáveis independentes: Renda familiar mensal e Grau de instrução.
Como a pesquisa foi realizada no Município de Belo Horizonte, com um
número pequeno de entrevistados, e com um extrato não representativo de todos os
níveis sociais, significa que essa não corresponde a toda realidade brasileira, mas sim
à do nosso município. Porém, representa um início da discussão acerca do acesso aos
direitos fundamentais e, apesar de se tratar de probabilidade e não de conceitos
absolutos, fala-se de indícios ou tendências.

2.1. Desenvolvimento da pesquisa

Dentro da metodologia utilizada, optou-se pela aplicação de um a


questionário e pela observação não participante. O questionário prima pela maior
objetividade e facilidade de levantamento das questões.
Assim, foi possível observar, como um espectador, a reação dos
pesquisados, sem influenciar em sua resposta. Em busca dessa maior objetividade
também foi garantido o anonimato uma vez que a maioria das pessoas evita
responder perguntas sinceramente quando identificadas. É importante salientar que,
mesmo utilizando um questionário, a subjetividade sempre estará presente, visto que
essa é uma característica inerente ao homem. Mesmo a observação da forma como as
 
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pessoas respondem as perguntas pode influenciar nas conclusões extraídas da


pesquisa.
No questionário foram utilizadas perguntas fechadas e abertas. Nas
primeiras, as pessoas escolhem uma reposta, dentre algumas opções importantes,
para se chegar a conclusões precisas. A partir delas é possível, por exemplo, construir
gráficos e comparar porcentagens. Essa categoria foi importante para relacionar as
variáveis independentes com a dependente, ou seja, entre o nível sócio econômico e
os direitos constitucionais.
As perguntas fechadas continham alternativas para informação do nível
educacional e da renda familiar mensal do entrevistado. O grau de instrução foi
dividido em nove categorias, de 1o grau incompleto a doutorado. Por sua vez, a renda
familiar mensal, de até um salário mínimo a mais de dez. Além dessas, havia uma
pergunta fechada, em que os pesquisados deveriam responder sim ou não para a
questão “Você conhece os direitos que lhes são assegurados pela Constituição?”. Em
caso afirmativo, foi solicitado a eles que citassem três direitos que julgassem mais
importantes.
Depois da elaboração do questionário, procurou-se levantar hipóteses para
posteriormente serem testadas e, a partir delas, extrair conclusões. A primeira
hipótese é a existência de uma relação proporcional entre o conhecimento dos
direitos constitucionais e o grau de instrução, assim como entre esses e a renda
familiar mensal. A segunda, é que o grau de instrução influenciaria de forma mais
decisiva que a renda. Essas hipóteses foram formuladas no sentido de problematizar
a influência da desigualdade social para o contato com os direitos constitucionais.
Para que a pesquisa fosse válida, seria necessário entrevistar diferentes
grupos sociais. Assim, o grupo de pesquisa foi composto por pedestres que andavam
pelo centro da cidade, moradores de um conjunto habitacional, funcionários de uma

 
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empresa pública, estudantes da faculdade de direito, trabalhadores de fábricas e


outros.

3. Análise dos resultados

Como o questionário é bem abrangente e apresenta questões relativas a


vários níveis de escolaridade, assim como a inúmeras faixas salariais, para facilitar a
tabulação dos resultados e relacionar as variáveis optou-se por utilizar uma árvore de
decisões. As variáveis escolhidas, nível de escolaridade e faixa salarial, foram
separadas em dois grandes grupos. A primeira, em pessoas com até o segundo grau
completo e pessoas com ensino superior e acima. A variável faixa salarial também foi
dividida em dois grupos: indivíduos que recebiam até dois salários mínimos e que
recebiam mais de dois salários mínimos. Dessa forma o número de opções para
análise ficaria mais reduzido e fácil de ser analisado sem prejudicar, de forma
substancial, a questão a ser verificada.
Na raiz da árvore foram colocados os dois níveis de escolaridade e a partir
dele foram distribuídas as respostas correspondentes aos dois níveis salariais. Em
cada ramo do ultimo nível foram colocados os valores correspondentes a variável
dependente pesquisada: o número de pessoas que tinham conhecimento dos direitos
assegurados pela Constituição. A Figura 1 mostra a distribuição dos dados coletados.

 
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Figura 1. Tabulação do resultado da pesquisa

Observando a árvore fica simples analisar os resultados. Das 21 pessoas


com até o segundo grau completo, 23% responderam que sabem pelo menos alguns
dos seus direitos constitucionais, enquanto que, das 75 pessoas com curso superior
completo e acima, esse percentual passou para 78%. Por esse resultado pode-se
inferir que a escolaridade tem uma grande influencia no conhecimento que as pessoas
têm de seus direitos.
A outra variável analisada, a faixa salarial, teve uma influencia semelhante a
da escolaridade: das pessoas entrevistadas com uma renda familiar de ate dois salários
mínimos, 33% responderam sim, que conhecem pelo menos um pouco dos direitos

 
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constitucionais, e das 78 pessoas com mais de dois salários mínimos, 74%


responderam sim.

4. Considerações sobre a pesquisa

A primeira hipótese, de que a escolaridade e renda familiar mensal têm uma


grande influência no conhecimento que as pessoas têm de seus direitos, se verifica. A
segunda hipótese, de que a escolaridade influenciaria mais do que a renda para tal
conhecimento também se verificou, mas não de forma tão acentuada quanto o grau
de instrução. A diferença entre o percentual de pessoas, com curso superior e o de
pessoas com até segundo grau, que foi capaz de citar os direitos constitucionais foi
de 55%. Já a diferença levando em consideração a renda foi de 44%. Isso significa
que a instrução influencia mais que a renda para o conhecimento dos direitos em
questão. Esse resultado é coerente, visto que, geralmente, as pessoas com maior
escolaridade também são as que possuem melhores salários.
A pesquisa constatou que a maioria das pessoas com baixa escolaridade e
com menores salários, conhece pouco de seus direitos. Mesmo aqueles que disseram
conhecer e foram capazes de citar direitos constitucionais, apontaram basicamente os
direitos individuais e sociais, tais como: a igualdade, a segurança, a vida, a liberdade, a
educação e a saúde. Noventa e dois por cento dos direitos citados se encontram na
classificação mencionada. Isso indica que mesmo a população mais bem instruída
não apontou com frequência direitos constitucionais políticos, porque realmente não
os conhecem ou porque não os julgam tão importantes quanto os demais.
Com uma observação subjetiva que me permito realizar, apesar dessa
discrepância entre os grupos pertencentes a diferentes níveis sócio-econômicos,
muitas pessoas com nível educacional elevado, apesar de conhecerem melhor os
 
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direitos constitucionais, mostraram-se receosas em fazê-lo. A pergunta parecia


constranger os entrevistados, que se mostravam de certa forma surpresos, inclusive,
algumas admitiram nunca ter pensado nisso. Muitos, mesmo que fosse pedido que
não consultassem nenhuma fonte para citar os direitos, tentavam olhar na internet
disfarçadamente. Isso demonstra certo reconhecimento da população da necessidade
em se conhecer a Constituição. Outros se mostraram também, de certa forma,
inibidos. Ao final do questionário confessaram que reconheciam a importância de ter
pelo menos uma noção de seus direitos, mas que nunca tinham se preocupado com
isso.

5. O papel do conhecimento do direito para formação da cidadania, assim


como a relação dessa com o exercício de direitos constitucionais.

A pesquisa constatou que a maioria das pessoas conhece muito pouco de


seus direitos, principalmente os indivíduos menos escolarizados e de baixa renda. A
partir dessa constatação foi possível estabelecer uma conexão entre a desigualdade
social e o contato com os direitos, enfatizando a importância de conhecer melhor a
Constituição para a formação da cidadania.
Muitos avanços na defesa de direitos fundamentais podem ser observados
na Constituição de 1988. Se antes as necessidades das camadas menos favorecidas
eram negligenciadas, elas passaram a ser, pelo menos, consideradas. Como aponta
Paulo Bonavides (BONAVIDES, 2009) os direitos existem com abundância na
Constituição, as promessas constitucionais são inúmeras. Mas isso não é suficiente, é
necessário que esses sejam efetivamente aplicados. Uma das barreiras para a
efetivação desses direitos é o fato de que o acesso ao sistema jurídico ainda está
fortemente atrelado à condição sócio-econômica. Isso se deve tanto à falta de
 
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recursos, como a de informação. Esse acesso elitizado implica em uma serie de


conseqüências sociais. Por exemplo, na esfera penal, lamentavelmente 98% dos
presos não têm condições econômicas para contratar um advogado, segundo o censo
penitenciário de 1933 (SABADELl, 2008). Essa situação representa uma negação da
cidadania (mesmo quando os recursos lhe são teoricamente favorecidos, as pessoas
não conseguem ter acesso à justiça).
Nesse sentido, o conceito de cidadania é de fundamental importância. Não
é fácil chegar a uma definição precisa, uma vez que o conceito é mutável, elástico e
abrange diversas esferas, como a social, existencial e política. (HERKENHOFF,
2001). Ele varia de acordo com o doutrinador e o tempo. Mas, atualmente, a maioria
dos autores considera que ser cidadão não é apenas ter direitos e desempenhar
deveres para com o estado e a comunidade, significa também a verificação desses
direitos na realidade, afirmando valores como a dignidade da pessoa humana, a
igualdade, a justiça, dentre outros direitos previstos na Constituição de 1988. Assim a
idéia de cidadania está em grande parte atrelada à Constituição, porque é ela que
garante os direitos e deveres dos indivíduos de uma sociedade. Portanto, uma
tentativa de definir cidadania seria relacioná-la à concretização dos direitos
fundamentais constitucionais, não apenas incorporá–los ao patrimônio jurídico das
pessoas.
Mas como concretizar os direitos fundamentais? Um passo importante é o
conhecimento dos direitos por parte dos cidadãos. Afinal, não é possível lutar pela
afirmação / realização de direitos que não são sequer reconhecidos pela sociedade.
Como colocam, de forma muito contundente, Adla Betsaida, Natália Freitas e Lucas
Pereira, (BETSAIDA, FREITAS, PEREIRA, 2009), um desafio importante seria
educar os cidadãos para que eles percebam que conhecimentos jurídicos são
extremamente necessários e, assim saiam da posição de sujeito passivo, que apenas
espera por justiça, para a de sujeito ativo, capaz de reclamar por justiça. Nota-se,
 
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nesse sentido o importante papel da informação na construção da cidadania. Mas não


basta o conhecimento jurídico ser ampliado, é necessária, também uma
transformação do uso dessa informação. Nesse sentido, Miracy Gustin, (GUSTIN,
2009) em seu artigo “Uma pedagogia da emancipação aplicada à educação em
direitos humanos“ enfatiza a necessidade de uma transformação na educação, não
apenas no sentido de informar a população acerca de seus direitos, o que também é
de substancial importância, mas também a partir de uma pedagogia emancipadora,
em que a própria sociedade também seja participante na acepção e construção desse
conhecimento.

5. Referências Bibliográficas

BETSAIDA, Adla, FREITAS, Natália e PEREIRA, Lucas, Qual escola queremos?


Educação em direitos humanos. Em: Educação em Direitos Humanos: uma
contribuição mineira / Organização: Mariá Brochado, Décio Abreu, Natália Freitas. -
Belo Horizonte: Ed. UFMG: Proex, 2009.

BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, 24 ed. Atualizada e ampliada.


São Paulo, Editora Malheiros, 2009.

GUSTIN, Miracy B. S., Uma Pedagogia da Emancipação Aplicada à Educação em


Direitos Humanos, em: Educação em Direitos Humanos: uma contribuição mineira
/ Organização: Mariá Brochado, Décio Abreu, Natália Freitas. - Belo Horizonte: Ed.
UFMG: Proex, 2009.

 
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Edições Uberlândia e Belo Horizonte

HERKENHOFF, J. B.. Ética, Educação e Cidadania. 2. p.201, ed. Porto Alegre:


Livraria do Advogado, 2001.

SABADELL, Ana Lúcia, Manual de Sociologia Jurídica: introdução a uma leitura


externa do direito, 4. ed. Ver., atual e ampl, p 217. – São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2008.

 
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FUNDAMENTOS INTER
E TRANSDISCIPLINARES
DO DIREITO

 
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A “BARRA DE TERRA” E A “BARRA DE SAIA”:


OBSESSÃO, CONQUISTA E MORTE EM SÃO BERNARDO

Natália Silva Teixeira Rodrigues de Oliveira1

RESUMO

O texto trabalha a relação entre Direito e Literatura, analisando a obra São Bernardo,
de Graciliano Ramos, na perspectiva das obsessões de Paulo Honório, seu
protagonista. Ao escrever suas memórias, a personagem destaca o envolvimento
dramático com duas das mais relevantes causas de crime no Brasil: a “barra de terra”
e a “barra de saia”, revelando seus mecanismos violentos de conquista. Os conflitos
agrários sempre se revelaram como uma das principais causas de violência no Brasil,
desde os primórdios da colonização, que fora efetivada pelo sistema de sesmarias e
capitanias hereditárias, ou seja, tipicamente vinculada à terra. Graciliano Ramos
evidencia isto em São Bernardo, ao criar uma personagem tão arraigada aos contornos
do Brasil rural, em especial da região Nordeste. De acordo com o mapa da violência
no Brasil (IBGE) os maiores índices desta não estão concentrados em estados como
Rio de Janeiro e São Paulo, mas sim naqueles em que são frequentes as mais graves
questões agrárias, como grilagem de terras, desmatamento, tentativas de efetivação de
reforma agrária, invasões violentas de fazendas pelos sem-terra, etc. Enfim, a “barra
de terra” ainda continua sendo a grande causa de homicídios no Brasil, em especial
nas regiões Norte e Nordeste, seja pelo excesso ou pela falta dela. Por outro lado, a
obsessão de Paulo Honório pela “barra de saia”, ou seja, por Madalena, revela um
assédio psicológico e moral, que marca a vida conjugal de muitos casais,
representando a violência doméstica também uma das várias causas de crimes no
Brasil e no mundo. Essa, inclusive, foi a razão para a edição de uma legislação
específica sobre o tema em nosso País, a denominada “Lei Maria da Penha” em
salvaguarda da mulher, vítima da opressão masculina.

Palavras-chave: direito (law), literatura (literature), violência (violence).

                                                            
1 A autora é Mestre e Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
 
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“O extremo egoísmo do sonho engendra o motivo principal do romancista:


cobiça de propriedade. Propriedade de terra, de mulher, em São Bernardo.”
Otto Maria Carpeaux

1. Introdução

Encontrava-me com a difícil tarefa de escrever algo sobre a obra de


Graciliano Ramos2 e, preferencialmente, aliar o tema ao cenário jurídico penal,
relacionando Direito e Literatura3. Pois bem, depois de muito refletir, escolhi São
Bernardo4 para desenvolver esta engenhosa relação, tentando determinar o que mais

                                                            
2 Desenvolver um trabalho de pesquisa na era da internet, na realidade, é uma tarefa árdua e perigosa

pois, ao mesmo tempo em que o acesso às fontes é facilitado, acaba por tornar a pesquisa quase que
infinita, sobretudo quando se trata de um dos mais importantes autores de nossa literatura, haja vista a
infinidade de artigos, dissertações, teses, comentários, enfim, toda a vastidão cultural que desperta a
sua obra.
3 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy esclarece que “Direito e Literatura pode suscitar interações

frutíferas, conduzindo o debate relativo às possibilidades e limites da compreensão do direito”.


GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura. Os pais fundadores: John Henry
Wigmore, Benjamin Nathan Cardozo e Lon Fuller. Disponível em www.buscalegis.ccj.ufsc.br.
Acessado em 25/04/2010. O mesmo autor conclui que a relação entre Direito e Literatura é estreita,
íntima, mesmo que pautada por premissas diversas: “Convergem as duas grandezas, Direito e
Literatura, no entanto, mesmo quando se transita em âmbito de ficcção.” GODOY, Arnaldo Sampaio
de Moraes. Direito e Literatura em Paul Gewirtz. Disponível em www.buscalegis.ccj.ufsc.br.
Acessado em 25/04/2010.
4 Na obra de Graciliano Ramos, sem dúvida que Memórias do Cárcere revela autêntica relação entre

Direito e Literatura, representando um importante documento histórico-literário sobre as imperfeições


do processo penal brasileiro. Apesar de transitar pelo Estado Novo, não deixa de comprovar as
eternas mazelas do sistema jurídico-penal em nosso País. Todavia, não se pode perder de vista que o
autor, nas suas mais variadas narrativas, apresenta, ao fundo, um tema que se repercute no direito,
como as sagas dos protagonistas de São Bernardo e de Angústia. Como elucida Hermenegildo Bastos:
“A trajetória de Graciliano Ramos, de Caetés a Memórias do Cárcere, configura um universo de temas,
problemas e técnicas trabalhados e retrabalhados de modo obsessivo pelo autor perseguindo um ideal
de realização literária. Mas a literatura não é um fim em si mesma, nem mesmo se pode dizer que seja
meio ou instrumento. Ela é, tudo indica, um método, o da verossimilhança, método de conhecimento
da realidade.” BASTOS, Hermenegildo. Memórias do cárcere, literatura e testemunho. Brasília:
UNB, 1998, p. 15.
 
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me marcou na leitura das memórias de Paulo Honório, seu protagonista, por sua
característica emblemática, um misto de econômico, social, psicológico e moral.
Cheguei à conclusão de que dois dos maiores ícones motivadores dos
crimes, a “barra de terra” e a “barra de saia”, ganham relevo em São Bernardo e são,
sem dúvida, o cerne da vida de Paulo Honório, que o levam tanto à conquista sócio-
econômica quanto à morte psicológico-moral.
Graciliano Ramos tinha o dom de escrever sobre os vários dramas da vida
sem, contudo, ser dramático. Ao contrário, suas obras eram pautadas pela redação
clara, sem verborragia5, descrevendo o cotidiano de seus protagonistas, mesmo que
repleta de tragédias, de forma áspera mas quase cômica. Em São Bernardo não foi
diferente, pois seu conteúdo é magnificamente denso, mas a linguagem é simples e
seca, sem delongas, mesmo porque destaca a vida no agreste e no sertão brasileiros.6
Renato Lima traduz São Bernardo como uma das “obras-primas de
Graciliano Ramos”, fusão de social e psicológico:

O social e o psicológico se fundem em São Bernardo para criar


uma obra de profunda análise das relações humanas. Este é, sem
dúvida, um dos romances mais densos da literatura brasileira. Uma
                                                            
5 É como descreve Otto Maria Carpeaux:”Estilo é escolha entre o que deve perecer e o que deve

sobreviver. Vamos ver o que Graciliano Ramos escolhe. É muito meticuloso. Quer eliminar tudo o
que não é essencial: as descrições pitorescas, o lugar-comum das frases feitas, a eloqüência
tendenciosa. Seria capaz de eliminar ainda páginas inteiras, eliminar os seus romances inteiros, eliminar
o próprio mundo.” CARPEAUX, Otto Maria. A visão de Graciliano Ramos - Uma amostra dos
Ensaios Reunidos de Otto Maria Carpeaux. Disponível em http://www.olavodecarvalho.org.
Acessado em 25/04/2010. Numa das descrições do livro na internet, encontrei esta síntese: “O autor
tem um estilo seco, conciso, direto, desprovido de qualquer marca de sentimentalidade. Ele
combinava o ambiente dos seus romances com as personalidades das personagens que neles viviam.”
Novidades da Livraria. Disponível em http://www.pco.org.br. Acessado em 26/04/2010.
6 “A atitude literária de Graciliano Ramos é, segundo ele, sua única ferramenta para diagnosticar o seu

tempo. E que tempo é esse? O resultado a que chega sua literatura é uma razão pessimista, na qual não
sobra espaço para idealizações saudosistas de passado, nem para futurismo ufanista. O Brasil e, mais
precisamente, o Nordeste que Graciliano vê nascer, não comportam idealismos de nenhuma ordem –
sejam literários ou políticos.” MENDES, Francisco Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo,
fome, fala e poder em “Vidas Secas e “São Bernardo”. UFC/História, pp. 1-204, p. 25.
Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 26/04/2010. 
 
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das obras-primas de Graciliano, é narrado em primeira pessoa por


Paulo Honório, que se propõem a contar sua dura vida em
retrospectiva, de guia de cego a proprietário da Fazenda São
Bernardo. Ele sente uma estranha necessidade de escrever, numa
tentativa de compreender, pelas palavras, não só os fatos de sua
vida como também a esposa, suas atitudes e seu modo de ver o
mundo. A linguagem é seca e reduzida ao essencial. 7

2. São Bernardo e a saga de Paulo Honório

Desde a escolha do nome São Bernardo, o autor parece querer nos dizer
algo. “São Bernardo”, o Santo, Bernardo de Claraval8, é o oposto de Paulo Honório,
do físico ao moral. Bernardo, homem belo e cheio de virtudes, que convencia as
pessoas pela argumentação inteligente e persuasiva; Paulo Honório, esteriótipo da
feiura, como o próprio o descreve9, alheio à temperança e que aprendeu a resolver as

                                                            
7 LIMA, Renato. São Bernardo – Graciliano Ramos. Disponível em www.sitedoescritor.com.br.
Acessado em 26/04/2010.
8 Nos dizeres da Revista Catolicismo: “O menino era extremamente bem dotado. Além de boa

aparência física, tinha Bernardo uma inteligência viva e penetrante, elegância de dicção, suavidade de
caráter, retidão natural de alma, bondade de coração, uma conversa atraente e cheia de encanto. Ao
par disso, uma modéstia e uma propensão ao recolhimento, que o faziam parecer tímido.” “Era tão
intenso o dom de persuasão que possuía esse homem cheio do amor de Deus, que, ao pregar, as
mulheres seguravam os maridos e as mães escondiam os filhos, por medo de que o seguissem.”
Oferecido pela Revista Catolicismo. Disponível em
http://www.lepanto.com.br/dados/HagBClar.html. Acessado em 30/04/2010.
9 “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter coração miúdo, lacunas no

cérebro, nervos diferentes dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos
enormes. Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio. Fecho os olhos,
agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.” RAMOS,
Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 221. A descrição é quase que lombrosiana,
induzindo o leitor a fazer uma relação natural entre o tipo físico e o tipo psicológico de Paulo
Honório. Cesare Lombroso, um dos precursores da Antropologia Criminal, chamado de “pai da
Criminologia”, pela sua importância na formação desta ciência, baseava a sua teoria do criminoso nato
muito nas pesquisas em “medicina legal, dos caracteres físicos e fisiológicos, como o tamanho da
mandíbula, a conformação do cérebro, a estrutura óssea e a hereditariedade biológica como atavismo”.
Prefácio do livro L’Uomo delinquente. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. São Paulo: Ícone
Editora, 2007.
 
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desavenças apenas na violência, seja física ou moral, nunca na conciliação. Talvez a


única semelhança entre eles é a perseverança e a capacidade de conquista: Bernardo
de Claraval conquistava pessoas, fazendo ampliar o número de fiéis ordenados pela
Igreja Católica na Idade Média10; Paulo Honório, terras, patrimônio e, por fim, a
própria mulher com quem resolve, a qualquer custo, se casar.
São Bernardo, o romance, se passa no Brasil da década de trinta, marcado
pelo Coronelismo, já no final da “Política do Café com Leite” e dos Governadores,
tendo atravessado o Tenentismo e a Coluna Prestes, adentrando pelo período da
Revolução de 30 e Movimento Constitucionalista de 32, enfim na transição entre a
República Velha e a República Nova:

Um dia o Azevedo Gondim trouxe boatos de revolução. O sul


revoltado, o centro revoltado, o nordeste revoltado.11
E lá vinham notícias de violências desnecessárias, desnecessárias,
vinganças, comissões de sindicância lavando roupa suja.12

Este o perfil histórico que domina a saga de Paulo Honório, alagoano do


agreste, que se aventura a escrever as suas memórias. Graciliano Ramos fez questão
de diferenciá-lo do sertanejo:

Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo
de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou
inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida
agreste, que me deu uma alma agreste. 13
                                                            
10 Bernando de Clavaral foi um dos maiores conquistadores da Igreja Católica pois, conforme consta
na enciclopédia livre Wikipédia, “fundou 72 mosteiros, espalhados por toda Europa: 35 na França, 14
na Espanha, 10 na Inglaterra e Irlanda, 6 em Flandres, 4 na Itália, 4 na Dinamarca, 2 na Suécia e 1 na
Hungria. Fora muitos outros que se filiaram à Ordem.” Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bernardo_de_Claraval. Acessado em 30/04/2010.
11 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 203.
12 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 207.
13 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 117. Apesar de Graciliano

Ramos afirmar que Paulo Honório era um homem do agreste e não do sertão, nas palavras de
Francisco Fabiano Mendes, ele (Paulo Honório) “denuncia o maior esquecimento que tanto a
literatura como as ciências sociais promoveram: o sertanejo é humano e no sertão as relações de poder
 
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E foi talvez a vastidão confusa de sua alma agreste que fez com que Paulo
Honório, ao conseguir finalmente realizar o sonho de ser proprietário da fazenda
“São Bernardo”, bem como de se casar com Madalena, passe a ter com a propriedade
e com a mulher uma relação obsessiva de conquista e poder, pautada pela violência
moral e psicológica, temperada por uma insensata insegurança.
Com o trágico suicídio de Madalena na Capela da fazenda e a decadência
econômica de sua propriedade, o protagonista resolve escrever sua saga,
conscientizando-se de seus atos.
Inicialmente Paulo Honório tenta escrever suas memórias a “várias mãos”,
por meio da colaboração dos amigos, cada qual com a incumbência de realizar a
porção do trabalho que, em princípio, ele os identificava: o padre, o jornalista, o
advogado. Destinaria a si mesmo o planejamento, o custo do trabalho, o
fornecimento dos dados, tendo, ao final, o direito de “colocar o nome na capa”14.

                                                                                                                                                                   
se dão entre sertanejos. A eterna tentativa de ver nesse homem o ‘sedimento básico da nação’ e, ao
mesmo tempo, o sertão como o lugar por excelência da ingenuidade, da permanência, da salvação do
passado e do isolamento, isso tudo levou ao equivocado olhar sempre lançado sobre o litoral,
buscando enxergar eternos ‘colonizadores e bandeirantes’ – fatores externos – por trás dos males do
torrão nordestino”. A narrativa de Graciliano Ramos demonstra, mais uma vez, como o autor narra
em seus livros um pouco da sua própria vida, não se desvencilhando também da saga difícil e
sacrificada que caracterizou o seu cotidiano. MENDES, Francisco Fabiano de Freitas Mendes. Ponto
de fuga: tempo, fome, fala e poder em “Vidas Secas e “São Bernardo”. UFC/História, p. 1-204,
p. 20. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 26/04/2010. O mesmo Francisco
Fabiano Mendes descreve, em sua Dissertação, que “O autor alagoano tem sua vida e sua obra
marcadas pelo controle, pela disciplina e pela punição. Sua infância está repleta de episódios que
traduzem várias situações que mais tarde irá pôr em suas obras de ficção. Os castigos para aprender a
ler e a punição sumária sofrida por delitos não cometidos, bem como a sequidão dos pais ou a
ausência de comunicação entre os membros da família, esses acontecimentos irão formar o conceito
de justiça que estará a conviver com ele durante toda sua vida.” MENDES, Francisco Fabiano de
Freitas Mendes. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e poder em “Vidas Secas e “São Bernardo”.
UFC/História, p. 1-204, p. 39. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acessado em
26/04/2010.
14 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 7.

 
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Não dando certo a empreitada, assumiu Paulo Honório toda a redação e de


forma primorosa15, já que adequa com perfeição a “escrita e a coisa a dizer” 16
.
Atende, assim, ao “chamado da coruja”17, animal de rapina misto de mau agouro e
sabedoria, símbolo da noite, tido como o elemento externo que o protagonista reputa
responsável por arrastá-lo à escrita.
Por se tratar da narrativa de uma saga, ocorre o que Godofredo de Oliveira
Neto, no Posfácio da obra, traduz como “uma constante transição entre passado e
presente, já que o narrador, além de nós, leitores, é também o destinatário da história
que tenta reeditar”18.
Paulo Honório não tinha a menor idéia do que fora a sua origem e este fato
provoca no mesmo um misto de dor e orgulho pois, não ter família, é sinal de
tristeza, mas também de autonomia, “um rompimento com algum passado
desgraçado, um forte traço de individualismo”19:

                                                            
15 Conforme consta em análise da obra São Bernardo, de Graciliano Ramos. Disponível em

www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/s/sao_bernardo. Acessado em
27/04/2010: “Há um aspecto que atenta contra a sua verossimilhança, que é um célebre problema de
incoerência: como um romance tão bem escrito pôde ter sido produzido por um semi-analfabeto
como Paulo Honório? É uma narrativa muito sofisticada para um narrador de caráter tão tosco.”  
16 Godofredo de Oliveira Neto, no Posfácio de São Bernardo, esclarece que o estilo da escrita tem

que acompanhar o “como se diz” e somente o próprio Paulo Honório tinha capacidade para fazer tal
adequação: “A língua escrita não consegue dar conta do ímpeto de contador de Paulo Honório.”
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 226.
17 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.11.
18 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 224.
19MENDES, Francisco Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e poder em “Vidas

Secas e “São Bernardo”. UFC/História, pp. 1-204, p.48. Disponível em


www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 26/04/2010. “Sou pois o iniciador de uma família, o que,
se por um lado me causa alguma decepção, por outro lado me livra da maçada de suportar parentes
pobres, indivíduos que de ordinário escorregam com uma sem vergonheza da peste na intimidade dos
que vão trepando” MENDES, Francisco Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e
poder em “Vidas Secas e “São Bernardo”. UFC/História, pp. 1-204, p.16. Disponível em
www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 26/04/2010. Sobre a origem de Paulo Honório, Francisco
Fabiano de Freitas Mendes também esclarece: “É esse o grande problema de Paulo Honório: quem ele
é de fato? A qual tempo pertence? qual o seu lugar na sociedade? é burguês? é senhor, aos moldes
feudais? é um empreendedor com fins conservadores? é uma caricatura de liberal? é um coronel
remanescente do Império?” MENDES, Francisco Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome,
 
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Era um obstinado, marcado pelo pelo sonho de adquirir a fazenda “São


Bernado”, local em que já havia sido trabalhador rural, bem como de promover a
recuperação da terra decadente. Adquire a propriedade utilizando-se de métodos não
muito defensáveis20 e, em meio a conflitos agrários, marcados sobretudo pela
usurpação de terras, decorrente da eliminação de seus donos e de evidente
exploração de seus empregados, acaba realmente por transformar o latifúndio em
invejável empreendimento. 21
Com o sucesso da conquista e a consequente ascensão social, adquire o
respeito da sociedade a que pertencia, em todas as esferas, destacando-se o
envolvimento com a imprensa, a Igreja Católica e o Poder Judiciário.
Em sua relação com imprensa fica evidenciada a grande influência desta em
nosso País: de um lado, aparece Azevedo Gondim, redator e chefe do “Cruzeiro”,
jornal de Viçosa (cidade em que se passa a narrativa), sempre apoiando o fazendeiro
e o latifúndio; de outro, tem Costa Brito, chefe da Gazeta de Maceió, com quem o
protagonista teve um violento entrevero, por não aceitar a extorsão do jornalista,
                                                                                                                                                                   
fala e poder em “Vidas Secas e “São Bernardo”. UFC/História, pp. 1-204, p.48-49. Disponível em
www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 26/04/2010.
20 Paulo Honório descreve a aquisição de “São Bernardo” como “quase um esbulho”: “No outro dia,

cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e
entreguei-lhe sete contos, quinhentos e cinquenta mil-réis. Não tive remorsos.” RAMOS, Graciliano.
São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 30.
21 Pode-se dizer que Paulo Honório realmente efetivou melhorias em sua fazenda, podendo ser

comparado a um verdadeiro empreendedor rural. Francisco Fabiano de Freitas Mendes traduz Paulo
Honório como sendo “conectado às exigências do mercado, à política do aumento da produção e até
às relações de trabalho: ‘Devagarinho, foram clareando as lâmpadas da iluminação elétrica. Luzes
também nas casas dos moradores. Se aqueles desgraçados lá embaixo, ao pé das cercas de Bom-
Sucesso, tinham pensado em alumiar-se com eletricidade! Luz até meia-noite. Conforto! E eu
pretendia instalar telefones.’ Paulo Honório se gaba da sua condição de provedor do conforto para
aqueles ‘desgraçados’ que são hoje o que ele foi ontem. Essa condição tem uma dupla importância.
Trazer essas ‘benfeitorias’ aos trabalhadores da São Bernardo ao mesmo tempo que evidencia ser o
seu proprietário um homem de visão, de ‘planos volumosos’, projetos arrojados e modernos, rumo ao
futuro, realça também a diferença que havia entre Paulo Honório e eles.” MENDES, Francisco
Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e poder em “Vidas Secas e “São
Bernardo”. UFC/História, pp. 1-204, p.54. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acessado
em 26/04/2010.
 
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levando este a publicar um artigo sobre o fazendeiro, insinuando que o mesmo teria
assassinado o vizinho Mendonça. A imprensa defensora e que se sustenta às custas
dos “donos do poder”.
A amizade estreita com o Pároco da cidade é uma clara manifestação da
importância da Igreja Católica na formação da sociedade, marca forte da história, não
só no Brasil, mas em todo o mundo ocidental.
Por fim, a afinidade com o Poder Judiciário permite que Paulo Honório
trave autêntico tráfico de influência com o Juiz de Viçosa, Dr. Magalhães, revelando
“o poder de transformação que há nas relações sociais e econômicas via capitalismo
liberal, no qual o indivíduo depende de sua própria iniciativa” 22.
Tais relações demonstram a força dos coronéis no Nordeste, apesar do
protagonista não ser a figura típica do coronel tradicional, não possuindo sequer uma
linhagem:

não conta com símbolos ou brasões de família nobre, não traz nas
costas herança de terras ou de títulos enferrujados que datam do
Império. No entanto, a organização política e econômica que
compreende a “lactente” República permite-lhe desenvoltura
análoga à dos velhos coronéis no desfile de uma sociedade que
com ele vive em liame e parece estar sempre à soleira da porta.23

                                                            
22 .” MENDES, Francisco Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e poder em
“Vidas Secas e “São Bernardo”. UFC/História, pp. 1-204, p.51. Disponível em
www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 26/04/2010. Sobre a relação com o Poder Judiciário, este
mesmo autor descreve: “Com a lei – o juiz, Dr. Magalhães – a relação era de favores envolvendo
questões de terra e vistas grossas, não enxergando ‘pequenos’ delitos, ‘pequenas violências’. Nesses
casos, aparecia a figura eficiente do advogado João Nogueira. MENDES, Francisco Fabiano de
Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e poder em “Vidas Secas e “São Bernardo”.
UFC/História, pp. 1-204, p.37. Disponível em www.dominiopublico.gov.br. Acessado em
26/04/2010.
23 .MENDES, Francisco Fabiano de Freitas. Ponto de fuga: tempo, fome, fala e poder em “Vidas

Secas e “São Bernardo”. UFC/História, pp. 1-204, p. 51. Disponível em


www.dominiopublico.gov.br. Acessado em 26/04/2010. Raimundo Faoro enfatiza a importância da
fidelidade ao coronel: “Um ‘simples’ crime de morte, tratado pela lei, com o delegado, o promotor e
os jurados e o juiz não advertidos, dará cadeia. Outro será o resultado se o réu ou o contribuinte
tiverem um compadre ou um padrinho – ‘quem tem padrinho não morre pagão’; - agora, o bom
 
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3. A obsessão pela “barra de terra”: Paulo Honório e a realidade brasileira

A narrativa é marcada pela intensa obsessão que Paulo Honório tinha por
“São Bernardo”, passando a viver em função da propriedade. O seu trabalho árduo
era para o sucesso do empreendimento rural e sua personalidade dura e sem rodeios
era fruto de sua vida de privação24. Não admitia, em nenhuma hipótese, desperdícios
e malandragem 25.
A importância exacerbada que Paulo Honório dava à terra, ao trabalho na
terra, à luta pela terra levou-o ao extremo, como tantos outros latifundiários, grileiros
e trabalhadores rurais sem terra, de matar pela terra. É nessa toada que, sem maiores
remorsos, manda assassinar o proprietário vizinho, Mendonça, para usurpar uma

                                                                                                                                                                   
atendimento torna-se questão de prestígio, que, desprezado, trará represálias, as duras represálias do
sertão e do campo.” FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Formação do patronato político
brasileiro. 3ª. ed. São Paulo: Editora Globo, 2009, p. 713.
24 Conforme consta em análise da obra São Bernardo, de Graciliano Ramos. Disponível em

www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/s/sao_bernardo. Acessado em
27/04/2010: “Mas Paulo Honório, por sua vez, é modalidade duma força que o transcende e em
função da qual vive: o sentimento de propriedade. E o romance é, mais que um estudo analítico,
verdadeira patogênese desse sentimento. De guia de cego, filho de pais incógnitos, criado pela preta
Margarida, Paulo Honório se elevou a grande fazendeiro, respeitado e temido, graças à tenacidade
infatigável com que manobrou a vida, ignorando escrúpulos e visando atingir o seu alvo por todos os
meios. É um homem que supervaloriza a propriedade, tipo de gente para quem o mundo se divide em
dois grupos: os eleitos, que têm e respeitam os bens materiais, e os réprobos, que não os têm ou não
os respeitam.” 
25 “A princípio o capital se desviava de mim, e perseguia-o sem descano, viajando pelo sertão,

negociando com redes, gado, imagens, rosários, miudezas, ganhando aqui, perdendo ali, marchando
no fiado, assinando letras, realizando operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia
dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros, efetuei transações comerciais de armas
engatilhadas.” RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 17. “- Ó Padilha,
gracejei, você já fechou cigarros? Padilha comprava cigarros feitos. - É mais cômodo, concordei, mas é
mais caro. Pois, Padilha, se você tivesse fechado cigarros, sabia como é difícil enrolar um milheiro
deles. Imagine agora que dá mais trabalho ganhar dez tostões que fechar um cigarro. E um conto de
réis tem mil notas de dez tostões. Vinte contos de réis são vinte mil notas de dez tostões. Parece que
você ignora isto. Fala em vinte contos assim com essa carinha, como se dinheiro fosse papel sujo.
Dinheiro é dinheiro.” RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 24.
 
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parte de sua propriedade, o fazendo de maneira sorrateira, mas bem à moda dos
coronéis do Nordeste: utiliza-se de seu fiel “capanga” desde os tempos em que
trabalhava de mascate pelo sertão nordestino, Casimiro Lopes, enquanto se
encontrava em Viçosa de “prosa” com o Padre Silveira, criando um álibi autêntico.
Relação típica de coronel e jagunço.
Para Raimundo Faoro, em “Os donos do poder”:

O coronel tem capangas, elementos sem vontade própria, como


os têm os subcoronéis. Entre os coronéis e subcoronéis, bem
como entre os dois e os não dependentes imediatos (empregados,
moradores em suas terras) há um laço de amizade, que atenua e
ameniza a subordinação. Em regra o compadrio une os aderentes
ao chefe, chefe enquanto goza da confiança do grupo dirigente
estadual e enquanto presta favores, com o domínio do mecanismo
policial, muitas vezes do promotor público, não raro expresso na
boa vontade do juiz de direito. As autoridades estaduais –
inclusive o promotor público e o juiz de direito – são removidas,
se em conflito com o coronel. Até a supressão da comarca, seu
desmembramento, elevação de entrância são expedientes hábeis
para arredar a autoridade incômoda. 26

Os conflitos agrários sempre se revelaram como uma das principais causas


de violência no Brasil, desde os primórdios da colonização, que fora efetivada pelo
sistema de sesmarias e capitanias hereditárias, ou seja, tipicamente vinculada à terra.
Graciliano Ramos evidencia isto em São Bernardo, ao criar uma personagem tão
arraigada aos contornos do Brasil rural, em especial da região Nordeste.27
Infelizmente, a situação no campo não se alterou. Ao contrário, continua
cada vez mais marcada pela busca da sonhada “barra de terra” a qualquer custo. De
                                                            
26 FAORO, Raimundo. Os donos do poder. Formação do patronato político brasileiro. 3ª. ed.

Saõ Paulo: Editora Globo, 2009, p. 711.


27 “Graciliano Ramos expõe sem rodeios um país – e um Nordeste, mais agudamente – que sangra (e

se avilta e se anula) por todos os poros. Ajudou-o nesse campo o penoso convívio com a realidade
concreta de desequilíbrios, fome, miséria, privação, compadrio da autoridade com a corrupção e
desvios de toda ordem.” ARAÚJO, Jorge de Souza. Graciliano Ramos e o desgosto de ser
criatura. Maceió: UFAL, 2008, p. 54.
 
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acordo com o mapa da violência no Brasil (IBGE)28, os maiores índices desta,


diversamente do que imaginamos, não estão concentrados em estados como Rio de
Janeiro e São Paulo, mas sim naqueles em que são frequentes as mais graves questões
agrárias, como grilagem de terras, desmatamento, tentativas de efetivação de reforma
agrária, invasões violentas de fazendas pelos sem-terra, etc. Enfim, a “barra de terra”
ainda continua sendo a grande causa de homicídios no Brasil, em especial nas regiões
Norte e Nordeste, seja pelo excesso ou pela falta dela.
A concentração de terras no Brasil faz parte de sua cultura, retratando tal
concepção a “república dos fazendeiros”, que não era característica apenas da
República Velha ou do Brasil Colônia, mas continua a marcar a vida de milhões de
brasileiros.
Recentemente a discussão política sobre o tema ganhou relevo no cenário
brasileiro, tendo em vista a aprovação, pelo Congresso Nacional, e a sanção, pelo
Presidente Lula, da MP 458, chamada de “MP da Grilagem”, que autorizou a
regulamentação das invasões a milhares de hectares de terras públicas na Amazônia,
figurando, de um lado, os ruralistas, árduos defensores da citada lei e, de outro, os
ambientalistas, que condenaram-na por acreditarem que a mesma estimulará ainda
mais as invasões e o desmatamento ilegal na região.
Por outro lado, os conflitos agrários não se evidenciam apenas com a
dominação do mais fraco pelo mais forte, mas também em razão desta. São notórios
                                                            
28“De acordo com o levantamento, feito durante o ano de 2006, o segundo estado mais violento é o
Mato Grosso (22,2%), com o Amapá em terceiro lugar (22%). Dos dez estados com maior percentual
de mortes violentas, seis pertencem à região amazônica, incluindo Roraima (19,4%), Pará (19,2%) e
Tocantins (17%). São áreas basicamente rurais, de grande extensão de florestas e que abrigam
empreendimentos agropecuários de larga escala.” Estados com conflitos agrários têm maior índice de
mortes violentas mostra IBGE. Disponível em www.cut.org.br/content/view. Acessado em
30/04/2010. De 1985 a 2005, foram cometidos 1426 homicídios ligados a conflitos agrários no Brasil.
Apenas 76 casos foram levados a julgamento, 16 mandantes foram condenados. Nenhum foi preso.
Recentíssimo evento, de 07 de julho de 2009, dá conta de que cinco pessoas foram assassinadas
enquanto trabalhavam em um assentamento de sem terra, localizado em Brejo da Madre de Deus, no
agreste pernambucano.  
 
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os movimentos gerados pela concentração de terras, em que os mais fracos buscam


demarcar seu território, se rebelando contra a opressão dos grandes proprietários de
terra, exploração da mão de obra, falta de oportunidade no campo. Na história
brasileira, percebe-se tal fenômeno desde o movimento do cangaço29 até o
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, o MST.30

                                                            
29 Nos termos de Rui Facó: “Num meio em que tudo lhe é adverso, podia o homem do campo
permanecer inerte, passivo, cruzar os braços diante de uma ordem de coisas que se esboroa sobre ele?
Euclides da Cunha já compreendera que o ‘o homem do sertão (...) está em função direta da terra’. Se
a terra é para ele inacessível, ou quando possui uma nesga de chão vê-se atenazado pelo domínio do
latifúndio oceânico, devorador de todas as piores torpezas, que fazer, senão revoltar-se? Pega em
armas, sem objetivos claros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é o seu. Então,
espantados, os homens das classes dominantes não sabem explicar por que ele se revoltou. Ele,
sempre tão cordato e humilde mesmo, que não falava ao senhor sem tirar da cabeça o largo chapéu de
palha ou de couro, toma de uma arma, torna-se cangaceiro, arregimenta companheiros de infortúnio e
forma um grupo – um bando. Por quê?” (...) “Xavier de Oliveira, filho do Cariri: reconhece ele
textualmente: ‘o homem honesto e trabalhador de outrora é um bandido agora, por causa de questão
de terra’...(...) Estes homens – é a conclusão lógica – tinham forçosamente que ser revoltados. Sem
terra, sem ocupação certa, a mais brutal exploração de seu trabalho, revoltar-se-iam qualquer que fosse
a dosagem de seu sangue, sua origem racial, o meio físico que atuasse sobre seu organismo.” FACÓ,
Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 38-41. Modernamente,
entretanto, o movimento do cangaço vem ganhando uma nova conotação, como colacionada na
enciclopédia livre Wikipédia: “Finalmente, não podemos deixar de lembrar o movimento liderado por
Lampião no nordeste brasileiro, no período de 1917 até 1938, na medida em que este possa ser tido
como uma forma de banditismo ‘social’, cujas causas encontrariam-se na exclusão dos pequenos
agricultores - como Lampião, por origem familiar, o era - das estruturas de poder político regional
dominadas pelo latifúndio. Esta colocação, no entanto, muito favorecida pela historiografia marxista
brasileira dos anos 1960 - muito especialmente pelo historiador Rui Facó, e recuperada mais tarde pelo
historiador inglês Eric Hobsbawn tem sido severamente contestada recentemente, na medida em que
o banditismo do cangaço tem chegado a ser visto muito mais como vivendo numa relação de
comensalidade com o latifúndio do que opondo-se a ele, como o messianismo.” Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/cangaço. Acessado em 30/04/2010.
30 Na atualidade, o MST – Movimento do Trabalhadores Sem Terra - representa o que o cangaço

representava no final do século XIX, início do século XX, embora com objetivos diversos. De acordo
com a enciclopédia livre Wikipédia: “O MST é um movimento pela reforma agrária, marcando um
fase de reorganização política dos camponeses com o término da ditadura militar e da retomada da
democracia no Brasil.” Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/cangaço. Acessado em
30/04/2010. Todavia, como todo movimento, por mais organizado que seja, acaba se desviando em
abusos. Um exemplo do desvio dos objetivos do MST é o excesso de violência que, muitas vezes,
pauta as suas lutas pela terra. Não são poucos os homicídos vinculados aos abusos cometidos pelas
invasões, por vezes ocorridas em terras produtivas.
 
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Paulo Honório não diverge, pois, dessa concepção capitalista marcada pela
exploração do lavrador pelo ruralista.31 Teve sorte pois, apesar da característica
tipicamente opressora com que se relacionava com todos os que o rodeavam, em
especial seus empregados, nenhum destes se rebelou.
Podemos mirar este comportamento opressor em face de seus empregados
na sua relação com Marciano e sua mulher Rosa. Ele, o exemplo do oprimido; ela,
além de oprimida, tinha que satisfazer a lascívia de seu patrão:

- Você está se fazendo de besta, seu corno? Mandei-lhe o braço ao


pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando,
recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A
última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de
cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o
nariz, que escorria sangue. 32

4. O assédio moral e o sofrimento: Paulo Honório e a “barra de saia”

“São Bernardo”, a propriedade, era a grande condicionante dos planos de


Paulo Honório. Até mesmo seu casamento fora planejado com o intuito único de ter
um herdeiro para a propriedade, apesar de, para seus propósitos, a escolha da esposa
não ter sido bem sucedida33, representando, talvez, a falha que custaria o sucesso do

                                                            
31 Conforme consta em análise da obra São Bernardo, de Graciliano Ramos: “Com o mesmo

utilitarismo estreito analisa a sua conduta: ‘A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos
bons e quais foram os maus. Fiz coisas boas que me trouxeram prejuízo; fiz coisas ruins que me
deram lucro.’ A aquisição e a transformação da Fazenda São Bernardo levam, todavia, o instinto de
posse de Paulo Honório a arraigar-se num sentimento patriarcal, naturalmente desenvolvido - tanto é
verdade que o seu modo de agir depende em boa parte das relações com as coisas.
Disponível em www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/s/sao_bernardo.
Acessado em 27/04/2010.
32 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 126.
33 Para seus propósitos, ideal seria ter se casado com Dona Marcela, a filha do Juiz, Dr. Magalhães.

 
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empreendimento.34 De início, porém, acreditava que estava escolhendo a pessoa


certa, conforme demonstram suas próprias palavras:

– (...)Para ser franco, essa história de escola foi tapeação.(...) O


que vou dizer é difícil. Deve compreender... Enfim, para não
estarmos com prólogos, arreio a trouxa e falo com o coração na
mão.
Tossi encalistrado.
– Está aí. Resolvi escolher uma companheira. E como a senhora
me quadra... 35

Madalena era professora por profissão, mas acaba cedendo às tentações do


casamento.36 Entretanto, talvez pela própria cultura que possuía, não se conforma
com a forma com que o marido se relaciona com os empregados e tenta implementar
mudanças nestas relações, para modernizar São Bernardo.37 Este seu comportamento
inconformado faz com que Paulo Honório a oprima, já que não suportava qualquer
discordância de seus métodos e opiniões, sobretudo vindo de sua mulher. Além

                                                            
34 Isto porque, tendo em vista seu fracassado casamento, não conseguiu aceitar seu filho e o rejeitava
com uma veemente repulsa: “Se ao menos a criança chorasse...Nem sequer tenho amizade ao meu
filho. Que miséria!” RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.221.
35 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 101.
36 Autêntica união do econômico com o cultural: "- O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu

Paulo Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira,
estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Jó, entende? - Não fale assim,
menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a acordo,
quem faz um negócio supimpa sou eu." RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record,
2008, p. 102.
37 “Dinâmica e cheia de iniciativas, reveladas, essencialmente nos setores intelectual e social, Madalena

modifica o clima na fazenda do marido. A verdade é que a esforçada e competente professora não
podia relegar, à inércia, os conhecimentos e as convicções que os estudos lhe possibilitaram. Assim,
impõe-se como mulher inteligente, que sabe dizer não a um pretenso senhor todo-poderoso, com
manifestações oportunas de instrução e solidariedade.” MEDEIROS, Heloísa Marinho de Gusmão. A
mulher na obra de Graciliano Ramos. Maceió: Sargasa, 1994, p. 50.
 
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disso, sua cultura, beleza, aliada à insensata insegurança do marido, faz com que este
a violente moralmente com insanos acessos de ciúme.38
O assédio psicológico e moral marca a vida conjugal de muitos casais,
representando a violência doméstica também uma das várias causas de crimes no
Brasil e no mundo. Essa, inclusive, foi a razão para a edição de uma legislação
específica sobre o tema em nosso País, a denominada “Lei Maria da Penha”39, em
salvaguarda da mulher, vítima da opressão masculina:

A violência possui diversas formas. Xingamentos, ofensas,


ameaças, empurrões, tapas, roupas ragadas, socos, pontapés,
tortura, estupro, assassinato. E o que é mais assustador: além da
grande maioria dos casos ocorrer dentro de casa, os agressores são
geralmente homens com quem a mulher tem algum tipo de ligação
afetiva espontânea, como namorados, noivos, maridos.40

Uma passagem da obra revela bem este sentimento febril, passional em


Paulo Honório. Ao ser chamado de assassino pela esposa, lembra-se do caso de um
tal Jaqueira, traído pela mulher, como se sentisse tentado a agir como o mesmo:

Toda gente dormia com a mulher do Jaqueira. Era só empurrar a


porta. Se a mulher não baria logo, Jaqueira ia abrir, bocejando e
ameaçando:
- Um dia eu mato um peste.
Matou. Escondeu-se por detrás de um pau e descarregou a
lazarina bem no coração de um freguês. No júri, cortaram a

                                                            
38 No capítulo XXV, Paulo Honório reconhece: “Comecei a sentir ciúmes”. Ob. cit. p. 157. “Fui indo
sempre de mal a pior. Tive a impressão que me achava doente, muito doente. Fastio, inquietação
constante e raiva.(...) O meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca.”
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 163. 
39 Lei 11.340/06. De acordo com estatística divulgada na Revista Leis e Letras, “a cada 15 segundos,

um mulher é agredida no Brasil, que passa a ser o 18° país da América Latina a contar com uma lei
específica para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher”. Leis e Letras – Direito e
Informação. São Paulo: Leis e Letras, 2007, p. 11.
40 Leis e Letras – Direito e Informação. São Paulo: Leis e Letras, 2007, p. 11.

 
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cabeça por seis votos (patifaria). Saiu da cadeia e tornou-se um


cidadão respeitado. Nunca mais ninguém buliu com o Jaqueira.41

Nesse cenário pautado pelas relações opressoras, não soube Paulo Honório
poupar Madalena, aquela que escolhe para casar e quem, indiscutivelmente mas a seu
modo, amava, sendo a total inabilidade para lidar com este sentimento a grande causa
de sua derrocada psicológica:

Com efeito, o patriarca à busca de herdeiro termina apaixonado,


casando-se por amor; e o amor em vez de dar a demão final na
luta pelos bens, revela-se, de início, incompatível com eles. Para
adaptar-se, teria sido necessária a Paulo Honório uma reeducação
afetiva impossível à sua mentalidade, formada e deformada. O
sentimento de propriedade, acarretando o de segregação dos
homens, o distancia das pessoas, porque origina o medo de perder
o que já conquistou, e o seu convívio com outros resume-se em
relações de mera concorrência. O amor, pelo contrário, unifica e
totaliza. Madalena, a mulher - humanitária, mão-aberta -, não
concebe a vida como uma relação de possuidor e coisa possuída.
Daí o horror com que Paulo Honório vai percebendo a sua
fraternidade, o sentimento, para ele incompreensível, de participar
na vida dos desvalidos.42

5. Conclusão

O protagonista era bem entrosado com a realidade dos anos 30 no Brasil,


pautado, como se disse, pelo coronelismo, “política dos governadores”, voto do
cabresto, a concentração agrária, os homicídios em virtude da “barra de terra”, o
casamento indissolúvel e a posição inferiorizada da mulher, enfim, a “Tradição, a
Família e a Propriedade”.
                                                            
41RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.168.
42Análise da obra São Bernardo, de Graciliano Ramos. Disponível em
www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/s/sao_bernardo. Acessado em
27/04/2010.
 
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Todavia, o enredo de São Bernardo nos leva a crer que, para Paulo Honório,
a conquista da “barra de saia” não foi bem sucedida quanto a da “barra de terra”, já
que não contava o protagonista com um importante diferencial: o sentimento que,
desde à primeira vista, nutriu por Madalena. Este sentimento, também obsessivo,
tinha concepção distinta daquele vinculado ao sonho de adquirir a terra. Concepções
distintas, mas não opostas pois, apesar da obsessão por “São Bernardo” fortalecer
Paulo Honório e a por Madalena enfraquecer-lhe, ambas levaram-no à destruição da
alma.43
E mais, estas duas obsessões são as condicionantes da sua tragédia pessoal.
O excessivo apego à terra levou Paulo Honório a incluir todos, inclusive Madalena,
em objetos de conquista, não aceitando transigir com ninguém, sob nenhuma
condição, mesmo porque era marcado pela dureza de sua vida e não soube se
desvencilhar dela na lida com as pessoas que o cercavam. O seu jeito excessivamente
intransigente e conservador acaba oprimindo todos os que estão ao seu redor,
afastando-os do seu convívio até o extremo do suicídio de sua Madalena.
As dificuldades passadas e a origem desconhecida fizeram um Paulo
Honório cheio de complexos, sobretudo em relação a sua condição física e cultural.
Isto se tornou um verdadeiro círculo vicioso em sua vida: quanto mais insegurança
sentia, mas apego destinava a “São Bernardo” e, quanto mais obsessivo se tornava
em relação a sua propriedade, mais afastava e amedrontava as pessoas, em especial
Madalena.
                                                            
43 “Para alcançar sua ascensão social, o narrador paga um preço altíssimo, que é a destruição do seu

caráter afetivo. Na verdade, a perda de sua humanidade pode ser entendida como fruto do meio em
que vivia. Massacrado por seu mundo, acaba tornando-se um herói problemático, defeituoso (parece
haver aqui um certo determinismo, na medida em que o homem seria apresentado como fruto e
prisioneiro das condições mesológicas).” Análise da obra São Bernardo, de Graciliano Ramos.
Disponível em www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/s/sao_bernardo.
Acessado em 27/04/2010.

 
 
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Mas, afinal, o que Madalena representou no inventário de conquistas de


Paulo Honório? Madalena representou um marco. Foi ela quem, com seu
inconformismo e sua não rendição à personalidade do marido, acabou por levá-lo a
mais profunda reflexão de sua existência: a conclusão de que aquilo que,
aparentemente, o fez vitorioso, na realidade, foi o que o levou a sua franca e
inexorável derrota moral.
Graciliano Ramos sabia como ninguém descrever a angústia de seus
protagonistas e vincular a obsessão por algo à tragédia de suas vidas. Foi assim em
São Bernardo. Paulo Honório sonhou e conquistou “São Bernardo” e Madalena. Mas,
pela obsessão, matou por “São Bernardo” e levou à morte Madalena.
Em virtude disto, Paulo Honório também assistiu a sua própria morte,
psicológica, moral, decadente, num cenário imutável pela escravidão ao passado, a
impotência pela construção do presente e pela ausência de perspectiva do futuro:

Sou um homem arrasado (...) Nada disso me traria satisfação (...)


Quanto às vantagens restantes — casas, terras, móveis,
semoventes, consideração de políticos, etc. - é preciso convir em
que tudo está fora de mim. Julgo que me desnorteei numa errada
(...) Estraguei minha vida estupidamente (...) Madalena entrou aqui
cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os
propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu
egoísmo.44

E foi assim que os mais notórios motivos de crimes foram igualmente as


duas vertentes da vida deste emblemático protagonista, a “barra de terra” e a “barra
de saia”, Direito e Literatura enlaçados de forma sutil, porém magistral em São
Bernardo, na excelência literária do nosso Velho Graça.

                                                            
44 RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 216, 218, 220 e 221.

 
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6. Referências Bibliográficas

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A GUARDA DE ANIMAIS DOMÉSTICOS COMO UMA NOVA


PERSPECTIVA DO DIREITO À PROPRIEDADE DE SEMOVENTES:
UM RELATO DA CONSTRUÇÃO DO DIREITO ANIMAL DA FAUNA
DOMÉSTICA NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE – MG

Nathalie Santos Caldeira Gomes1

Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da


criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-
lo a amar seus semelhantes. (Albert Schweitzer)

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo dissertar sobre a necessidade da mudança de


perspectiva do direito à propriedade de semoventes para o direito à guarda animal na
doutrina e legislação nacionais. Para enriquecer a discussão e ilustrá-la, será realizado
um relato da construção do Direito Animal da fauna doméstica do Município de Belo
Horizonte, capital do estado de Minas Gerais. Será apresentada uma visão da
Filosofia contemporânea acerca da necessidade de inclusão dos animais não-
humanos na Ética, e analisada a influência da ação humana no condicionamento do
comportamento animal. O artigo dissertará sobre a escassa legislação nacional
referente à propriedade de animais domésticos e a necessidade da sua revisão para a
efetiva proteção da fauna doméstica contra a irresponsabilidade de seus proprietários.
No âmbito do Município estudado, será analisado o avanço da legislação, das
políticas públicas, da atuação governamental, não-governamental, e parceria entre o
poder público e a sociedade civil para a construção do Direito Animal da fauna
doméstica.

Palavras-chave: Direito Animal. Ética. Propriedade. Guarda. Fauna Doméstica.

                                                            
1Mestranda em Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG
Especialista em Direito Material do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes do Rio De Janeiro –
UCAM/RJ Orientadora de pesquisas em Direito Animal e Advogada.
 
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ABSTRACT

This article has as main objective disserting upon the necessity of a perspective
change from animal property rights to the rights to animal guardianship in Brazilian
jurisdiction. With the goal of enriching and illustrating the discussion, we will make a
report on the construction and consolidation of the pets' Animal Rights in the city of
Belo Horizonte, state capital of Minas Gerais, Brazil. We will present a viewpoint on
the contemporary Philosophy about the necessity of the inclusion of non-human
animals in Ethics, and analyze the influence of human action on the conditioning of
animal behavior, the lack of national legislation on the animal property rights and the
necessity of its correction for the proper protection of pets against the
irresponsibility of their owners. In the scope of the studied city, we will analyze the
advance of legislation, of the public policies and of the performances of the
Government, of non-governmental entities and of the partnerships between the
public authorities and the society for the construction of the Animal Rights.

Keywords: Animal Rights. Ethics. Property. Guardianship. Domestic Fauna.

1. Introdução

1.1. A convivência entre a espécie humana e outras espécies animais

A convivência entre a espécie humana e outras espécies animais, suas


conseqüências e sua história constituem tema de reiterados estudos e discussões
promovidos pela ciência, nas mais variadas ramificações, dando origem às mais
diversificadas correntes de pensamento.
Apresenta-se neste artigo uma breve introdução a algumas das teorias que
foram consideradas pela autora como relevantes à compreensão do relacionamento
humano-animal na contemporaneidade e as suas conseqüências na construção – e na
reconstrução – da Ética, do Direito, do ordenamento jurídico nacional e das políticas
 
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públicas locais direcionadas à proteção da fauna doméstica urbana, que é composta


predominantemente pelos animais adjetivados como “de guarda” ou “de
companhia”.

1.2. Aspectos do estudo da convivência entre as espécies na Biologia

A Biologia estuda como a convivência entre as espécies as modifica em


termos comportamentais e fisiológicos. À ramificação que estuda as relações e
interações entre os seres vivos e destes com o meio-ambiente dá-se o nome de
Ecologia.
O termo ecologia deriva da aglutinação dos termos gregos oikos (casa) e logos
(estudo), tendo o significado semântico de “estudo da casa”. A oikos dos seres vivos é
o ambiente onde estão inseridos, sem o qual não seria possível a sua existência.
Nessa casa comum a todos os seres vivos, ocorrem interações entre as
espécies sem as quais não haveria vida. Os seres vivos dependem uns dos outros,
diretamente ou indiretamente, para a sua subsistência. Formam-se cadeias de relações
alimentares, e a luta pela sobrevivência dos seres vivos depende da eficácia de suas
armas, de como o indivíduo reage ao ambiente, o transforma e se transforma diante
dele por meio da sua capacidade de adaptação.
Para a Ecologia2, os agrupamentos de indivíduos de uma mesma espécie em
estado harmônico e de colaboração, sem aglutinação, são denominados sociedades,
agrupamentos ou bandos.

                                                            
2 BEGON, M.; TOWNSEND, C.R.; HARPER, J.L. Ecologia de indivíduos a ecossistemas. 4ª

Edição. Porto Alegre: Artmed Editora, 2007.


 
 
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As sociedades, agrupamentos e bandos são formas de relacionamento


intraespecíficas (entre uma mesma espécie), e o relacionamento entre espécies
diferentes é denominado interespecífico.
Os relacionamentos interespecíficos são classificados pela Ecologia em
conformidade com as vantagens ou prejuízos causado às espécies analisadas. As
formas de convivência que não são desvantajosas para quaisquer das espécies são
chamadas harmônicas, as outras são chamadas desarmônicas.
Os relacionamentos interespecíficos harmônicos são o mutualismo, a
protocooperação, a epibiose ou inquilinismo e o comensalismo. No mutualismo, ambas as
espécies possuem vantagens em sua convivência e necessitam dessa convivência para
sobreviverem. Na protocooperação, ambas as espécies analisadas se beneficiam com sua
convivência, mas esta não é necessária à sua sobrevivência. Na epibiose ou inquilismo,
uma das espécies se aproveita da outra utilizando-a como abrigo, sem causar-lhe
prejuízo ou benefício. No comensalismo, apenas uma das espécies se beneficia com a
convivência analisada, e esta é irrelevante para a outra espécie.
As formas desarmônicas de relacionamento interespecífico são o esclavaismo
ou sinfilia, o parasitismo, o predatismo e o amensalismo ou antibiose. No esclavaismo ou
sinfilia, uma das espécies se aproveita do trabalho da outra. No parasitismo, uma das
espécies se beneficia da convivência, retirando da outra a matéria para a sua
sobrevivência, prejudicando-a de alguma forma. No predatismo, uma das espécies se
alimenta da outra. No amensalismo ou antibiose uma das espécies prejudica a
reprodução ou o crescimento da outra espécie.
Existem em diversas pesquisas científicas, conforme verificado em Dethier
(1975), indícios fisiológicos de mudanças evolucionais ocorridas em função da
convivência interespecífica. No presente artigo, por uma questão de recorte
metodológico, serão analisadas exclusivamente as mudanças comportamentais
derivadas da relação entre seres humanos e animais domésticos.
 
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1.3. Aspectos da convivência entre as espécies na Psicologia

O Behaviorismo e suas vertentes, compreendidos na Psicologia Empírica e


Comportamental, é o ramo da Psicologia que estuda o comportamento dos seres
humanos e dos animais, atribuindo a resposta comportamental dos indivíduos aos
estímulos externos sofridos por estes.
O comportamento animal (seja esse animal humano ou não) depende não
apenas de processos psicológicos internos, mas também está condicionado às
experiências vividas pelos indivíduos e é modificado por estas. É estudada a relação
entre homens e animais, a adaptação de uma espécie à outra e os laços de servidão e
afeto que as unem.
Os animais tendem a entender os seres humanos com os quais convivem
como membros de sua “família” – aqui entendida como uma sociedade animal, ou
agrupamento de animais que se protegem e convivem em um mesmo habitat sem que
necessariamente existam laços de descendência ou ascendência entre eles, mas laços
afetivos - ao invés de distingui-los em razão de sua espécie.
Portanto, protegem aos seus “donos” como se o fizessem em relação à sua
“família”, e grande parte dos animais domésticos “de guarda” ou “de companhia”
estão dispostos a morrerem pelos seus protegidos. Há relatos na antiguidade de que
pequenos grupos de seres humanos criavam filhotes de lobos (ou seja, os
domesticavam) para protegê-los dos ataques de alcatéias, e que muitas vezes a
simples presença dos lobos domésticos afastava os lobos selvagens. Por outras vezes,
os antigos lobos domésticos lutavam por sua “alcatéia” humana, travando com os
selvagens de sua espécie lutas que geralmente resultavam em mortes de ambos os
lados.

 
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Por outro lado, alguns seres humanos desenvolvem laços emotivos com os
animais de outras espécies, fato reiteradamente justificado pela sua comoção diante
da lealdade e afetividade que eles demonstram.
O processo de domesticação de animais é também estudado pela Psicologia
Animal e Psicologia Comparada. Muitas espécies de animais não-humanos
demonstram capacidade de raciocínio e a inteligência. São capazes de aprender e de
condicionar seu comportamento conforme o que foi ensinado pelos seres humanos
em suas experiências, pela associação de fatos a conseqüências. São, portanto,
capazes de fazer escolhas e solucionar problemas.
Embora seja demonstrada a similaridade entre o processo de raciocínio e
aprendizado das espécies, o comportamento social dos animais não-humanos é
definido predominantemente pelos instintos de sobrevivência peculiares de cada
espécie. Por exemplo, a função de “guarda” determinada pelos humanos aos cães
tem sucesso não apenas pela afeição no animal aos seres humanos, mas também pelo
comportamento territorial imanente aos canídeos. Justamente por se tratar de um
instinto, explica-se a tendência de determinadas raças de cães a serem guardas mais
“eficientes” do que outras.
Por esse motivo, um cão com fortes instintos territoriais atacará aquele que
invadir seu território independentemente de ter a quem proteger. Outro exemplo de
comportamento instintivo nos cães é rosnar ou atacar aquele que ameaçar retirar-lhe
a comida. Embora seja um comportamento instintivo, cães adestrados pelos seres
humanos modificam esse comportamento.
As espécies domesticadas pelos seres humanos modificam seus hábitos e até
mesmo a sua fisiologia para adaptarem-se à humanidade – estudos de Dethier (1975)
demonstram a tendência à gradual perda de pêlos em cães e gatos domesticados,
provavelmente por se tornarem desnecessários quando eles não precisam dormir em

 
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locais mais frios – por outro lado, os seres humanos têm modificado a sua fisiologia
em razão das facilidades de sobrevivência proporcionada pela domesticação animal.

1.4. Aspectos da convivência entre as espécies na Filosofia e na Ética


contemporâneas

Na Filosofia contemporânea, há duas correntes de pensamento que


defendem a atribuição de direitos aos animais e a sua inclusão na Ética. São
denominadas “defensorismo” ou “liberalismo” dos animais e “abolicionismo” dos
animais. Diferem-se em suas teorias e argumentos, assim como na sua finalidade.
Enquanto a primeira defende o reconhecimento de direitos aos animais e a
sua convivência digna com os seres humanos em um mesmo habitat, a segunda defende
o abolicionismo dos animais, alegando que todos eles são escravos dos seres humanos e
devem ser devolvidos a seu habitat, exercendo seu direito a viver longe dos seres
humanos, sem a sua interferência.
A primeira corrente, de maior representatividade, tem como representante o
filósofo americano Peter Singer. O autor afirma que os argumentos utilizados para a
não inclusão dos animais não-humanos na Ética enquanto membros da comunidade
e para a negação de seus direitos é o mesmo que foi utilizado outrora para a negativa
dos direitos das mulheres e dos escravos.
O autor ilustra sua teoria com o fato de que a obra da feminista Mary
Wollstonecraft Vindication of the Rights of Woman, de 1792, foi satirizada na época pelo
filósofo Thomas Taylor, de Cambridge, quem escreveu A Vindication of the Rights of
Brutes. A intenção do filósofo era refutar os argumentos utilizados pela feminista
utilizando-se do sarcasmo, intencionando demonstrar que se os direitos dos homens
pudessem ser aplicados seriamente às mulheres, deveriam ser aplicados também aos
 
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cães, gatos e cavalos. Para o senso comum da época, era absurdo afirmar que
quaisquer animais não-humanos pudessem ser sujeitos de direito, uma vez que estes
eram vistos exclusivamente como propriedades humanas destinadas à satisfação de
seus interesses.
Na obra intitulada Liberação Animal, Singer (2004) cita por diversas vezes o
filósofo inglês Jeremy Bentham, fundador da escola utilitarista. Este era a favor dos
direitos dos animais por uma razão diferente daquela que leva Singer a atribuí-los: a
capacidade de sofrimento. É importante ressaltar que, na época, ainda era
questionável a capacidade de sofrimento dos animais.

Poderá existir um dia em que o resto da criação animal adquirirá


aqueles direitos que nunca lhe poderiam ter sido retirados senão
pela mão da tirania. Os franceses descobriram já que a negrura da
pele não é razão para um ser humano ser abandonado sem mercê
ao capricho de um algoz. Poderá ser que um dia se reconheça que
o número de pernas, a vilosidade da pele ou a forma da
extremidade dos sacrum são razões igualmente insuficientes para
abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que outra coisa
poderá determinar a fronteira do insuperável? Será a faculdade da
razão, ou talvez a faculdade do discurso? Mas um cavalo ou cão
adultos são incomparavelmente mais racionais e mais
comunicativos do que uma criança com um dia ou uma semana
ou mesmo um mês de idade. Suponhamos que eram de outra
forma – que diferença faria? A questão não é: Podem eles
raciocinar? Nem: Podem eles falar? Mas: Podem eles sofrer?3

Singer vai além do questionamento de Bentham, afirmando que a


capacidade de sofrer e de sentir alegria é um pré-requisito para que se tenha interesses.
Argumenta que não faria sentido se falar no interesse de uma pedra em não ser
chutada uma vez que ela não poderia sentir dor ou sofrer, diferentemente de um rato
na mesma situação.

                                                            
3 BENTHAM (1823), apud SINGER (2004) p.9.
 
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Demonstra o padrão comum existente na negativa de direitos no racismo


(preconceito em razão da raça), sexismo (preconceito em razão do sexo) e especismo
(preconceito em razão da espécie – palavra esta criada pelo autor na obra citada). O
padrão comum às três formas de preconceito apontado pelo filósofo é o argumento de
que os interesses dos membros de um determinado grupo são predominantes diante dos interesses de
outro grupo.
Nas conclusões da obra citada, Singer afirma que não existem razões
válidas, científicas ou filosóficas para que os animais humanos neguem direitos aos
animais não-humanos, e que o princípio ético sobre o qual assenta a igualdade
humana nos obriga a ter igual consideração para com as outras espécies de animais.
O filósofo americano Tom Regan é conhecido internacionalmente como o
propulsor da corrente de pensamento denominada abolicionismo animal. Contrariando
Singer, apesar de terem publicado obras conjuntamente, como o livro The Case for
Animal Rights e Animal Rights and Human Obligations, o autor afirma que há a
necessidade de uma ruptura total da exploração animal para que os direitos dos
animais sejam exercidos, argumentando que os animais não deixarão a sua posição de
servidão enquanto estiverem em convivência com os seres humanos.
A atribuição de direitos aos animais nas obras de Regan é baseada na
proposição de que eles possuem direitos inatos. O autor critica a associação feita por
Singer entre a senciência e os interesses dos seres vivos para a consideração destes,
afirmando que os interesses dos animais devem ser respeitados incondicionalmente.
As duas correntes de pensamento coincidem em propor a adoção de um
estilo de vida vegetariano pelos seres humanos, defendido por Singer, em sua obra
Ética da alimentação, e por Regan em sua obra Jaulas Vazias. Embora ambas as
correntes defendam o vegetarianismo, possuem finalidades diferentes: Singer defende
o vegetarianismo pela liberação animal ( incluído o ser humano no conceito de animal),
afirmando a sustentabilidade do vegetarianismo como solução problemas
 
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enfrentados pelos seres humanos em razão de seus hábitos alimentares atuais, e


Regan defende o veganismo afirmando que o direito inato à vida dos animais não
pode ser desrespeitado pelos seres humanos em razão da sua capacidade para
compreendê-los.

2. Os animais sob a ótica do direito brasileiro

Para o direito brasileiro convencional, a relação entre a espécie humana e as


demais espécies animais limita-se à tutela dos animais pelo poder público em função
da sua utilidade enquanto fauna brasileira intrínseca ao meio ambiente equilibrado e
ao instituto da propriedade dos animais.
Alguns doutrinadores brasileiros inovadores, dentre os quais se destacam
juristas como Edna Cardozo Dias, Fernando Laerte Levai, Danielle Tetü Rodrigues,
Luciano Rocha Santana e Heron Santana Gordilho, defendem a existência de um
Direito Animal, ou seja, de direitos garantidos aos animais não-humanos enquanto
sujeitos, e não simplesmente como objetos de direito.
Com exceção da espécie homos sapiens, o direito brasileiro não reconhece os
animais como sujeitos. São objetos, res, passíveis ou não de apropriação pelos
indivíduos humanos, de acordo com a sua natureza silvestre, doméstica ou
domesticada.
A Constituição da República de 1988 contém em seu artigo 225 uma norma
que protege aos animais, independentemente de sua origem ou classificação. Porém,
a proteção que lhes é garantida possui um argumento puramente utilitarista: os
animais, como integrantes da fauna brasileira, são protegidos com a finalidade de
garantir um habitat saudável às atuais e futuras gerações humanas.

 
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A Lei 9.605 de 1998, denominada Lei de Crimes Ambientais prevê em seus 82


artigos algumas das normas de proteção destinadas aos animais em razão de sua
proteção constitucional. Porém, a sua pena máxima prevista é a privativa de liberdade
que poderá ser substituída pela restritiva de direitos, aplicável a Lei 9.099/95 aos crimes
ambientais. Os crimes contra o meio ambiente são, portanto, crimes de menor potencial
ofensivo. Esse é o nome atribuído aos crimes que, pela sua natureza e gravidade não
são capazes de causar dano considerável ao bem jurídico tutelado.
Desprovidos de valor próprio ou da relevância jurídica de suas vidas no
Direito Penal, os animais (ou a fauna brasileira) são tema de Direito Civil. Ainda são
estudados na atualidade brasileira sob influência do Direito Romano, como simples
coisas semoventes, como se desprovidos fossem da capacidade de sentirem dor ou
apego. Em jurisprudência majoritária, são apenas objetos que possuem a capacidade de
mover por si, e que podem acrescentar lucros aos seus proprietários.

2.1. Tutela jurídica dos animais silvestres e domesticados em âmbito federal

Em consonância com a legislação brasileira, via de regra, apenas os animais


domésticos são passíveis de apropriação. Os espécimes silvestres não podem sofrer
interferência humana, com exceção de quando expedida licença ou autorização do
órgão responsável. A definição de animal silvestre provém do Decreto Federal n.
24.645/34 e do art. 29, §3º da Lei 9.605/98, transcrito este abaixo:

São espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às


espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou
terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida
ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas
jurisdicionais brasileiras.

 
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Animais domesticados são aqueles provenientes da fauna silvestre, mas que


sofreram interferência humana. Como resultado dessa interferência, sua
sobrevivência em habitat natural torna-se incerta em razão da sua adaptação a um
ambiente por vezes menos hostil e com abundância de alimento. Os animais
domesticados não se confundem com os animais domésticos porque a sua
domesticação é um evento isolado e acidental, a contrário do que acontece com a
domesticação habitual.
Alguns dos animais domesticados apreendidos pela polícia ambiental
brasileira têm sua guarda concedida aos indivíduos humanos que os criaram por não
terem como sobreviver em seu ambiente natural, e aqueles que têm condições de
sobrevivência em seu habitat são reabilitados e devolvidos à vida selvagem.
As penas demasiadamente leves imputadas aos infratores da Lei 9.605/98
são um incentivo à domesticação de animais da fauna silvestre brasileira e as
formalidades exigidas para a criação licenciada de um animal silvestre somadas aos
elevados valores das licenças são atrativos para a criação ilegal e o tráfico de animais.

2.2. Tutela jurídica da propriedade de animais domésticos em âmbito federal


e sua problemática

Animais domésticos são aqueles com os quais os indivíduos humanos


convivem e têm uma relação de esclavaismo ou sinfilia. Eles servem aos seres humanos
de alguma forma: seja como companhia, guarda, adorno, fornecedor de alimento (leite ou corte),
fornecedor de couro, dentre outras funções. Em ambientes rurais, onde há disposição de
espaço e tempo por parte dos criadores, é comum haver uma grande diversidade

 
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espécies de animais domésticos e domesticados servindo a um mesmo indivíduo ou


família.
No ambiente urbano, com o crescimento da industrialização e a redução do
espaço para moradia, conseqüentemente para a criação de animais, a procura por
animais domésticos é observada predominantemente nas modalidades de companhia,
vigia ou adorno (por vezes a junção da terceira modalidade com a primeira, a segunda
ou ambas).
A tutela jurídica dos animais domésticos no Brasil é regida pelo Decreto
Federal n. 24.645/34, responsável também pela regulamentação do tratamento de
animais silvestres. A Lei de crimes ambientais prevê a sua aplicação aos animais
domésticos apenas no tocante ao crime de maus-tratos e crueldade, em estrito
cumprimento à previsão constitucional.
Conforme entendimento do Ministro Humberto Martins, do Superior
Tribunal de Justiça – STJ, é inaplicável aos animais o disposto no art. 1.263 do
Código Civil – CC brasileiro. Os animais, enquanto seres que são capazes de sentir
dor e demonstrar afeto, não podem ser considerados da mesma forma como as
outras coisas, como se desprovidos fossem de sinais vitais. Cabe ao poder público
respeitá-los enquanto seres detentores do direito à vida previsto no art. 1º da
Declaração Universal dos Direitos dos Animais da Unesco, tratado internacional
assinado pelo Brasil em 1978.
Há uma manifesta escassez de legislação federal, e deficiência na pouca
legislação existente sobre a regulamentação da posse e propriedade de animais
domésticos. O emprego dos termos posse e propriedade aos animais já é equivocado,
conforme relevante observação de Luciano Rocha Santana e Thiago Pires Oliveira:

A importância de se mudar “posse responsável” para “guarda


responsável” abrange muito mais do que uma simples questão de
estética. O emprego do termo “posse” apresenta uma ideologia
 
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implícita em sua semântica: o animal ainda continuaria a ser considerado


um “objeto”, uma “coisa”, que teria um “possuidor” ou “proprietário”, visão
que consideramos já superada, sob a ótica dos direitos dos animais, visto que o
animal é um ser que sofre, tem necessidades e direitos; frisando-se, ainda, o
fato de, tradicionalmente, ser o animal o mais marginalizado de
todos os seres, ao ser “usado” e “abusado” sob todas as formas
possíveis, e, sem, ao menos, a possibilidade de se defender, visto
sua notória dificuldade de se manifestar perantes os “racionais”
seres humanos, tal como já ocorreu, em passado, não tão remoto,
com os “surdos-mudos”, “mulheres”, “loucos de todo o gênero”,
“índios” e “negros”. (SANTANA e OLIVEIRA)

Destacados os animais não-humanos como seres protegidos pela legislação


brasileira, é mais adequado falar-se em guarda de animais domésticos ao invés de posse
ou propriedade. Afinal, no Direito, aquele que detém a guarda de alguém possui
responsabilidades e obrigações, e os “proprietários” de animais domésticos também
possuem responsabilidades e obrigações adquiridas ao abrigar um animal em sua
casa. A palavra guarda possui uma conotação de proteção, de amparo, de abrigo e
conservação. É, portanto, o termo mais hábil para definir a relação jurídica do ser
humano com o animal doméstico.

3. Direito Animal da fauna doméstica no Município de Belo Horizonte - MG

Para efeitos de nomenclatura, entende-se por Direito Animal no Município


de Belo Horizonte no presente artigo o conjunto do ordenamento jurídico, políticas
públicas e jurisprudência incidente sobre o tema, no âmbito do território belo-
horizontino.

 
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3.1. Código Sanitário Municipal e Centro de Controle de Zoonoses

O Código Sanitário de Belo Horizonte, constituído atualmente pela Lei


Municipal n. 8.565/03, que substituiu o antigo código, o Decreto Municipal n.
5.616/87, é o principal documento legislativo do Município de Belo Horizonte
acerca da tutela os animais domésticos urbanos.
É instituído pelo código o Centro de Controle de Zoonoses - CCZ da PBH,
que tem como objetivo o controle da disseminação de doenças contagiosas em
âmbito municipal.
O Código Sanitário de 1987 já vedava o extermínio de animais sadios,
assim como a legislação vigente. O novo Código Sanitário, porém, prevê o controle
reprodutivo de cães e gatos como uma de suas competências, estabelecida no inciso
IX de seu art. 98:

oferecer à população, programa de controle reprodutivo de cães e


gatos com esterilização ou outro método contraceptivo, por meio
de serviço próprio ou em parceria com as universidades,
estabelecimentos veterinários, organizações não governamentais
de proteção animal e iniciativa privada conforme regulamento da
Secretaria Municipal de Saúde.

3.2. A “Lei dos Pitbulls” de 2002

Em meados de 2001 e início de 2002, uma série de ataques de cães da raça


conhecida por pitbull e de outras raças de grande porte a seres humanos ganharam

 
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destaque na mídia belo-horizontina, quando alguns destes ataques resultaram na


morte ou mutilamento de seres humanos.
A comunidade, de modo geral, voltou-se contra os cães envolvidos nos
ataques e estes foram exterminados, atribuída a eles a culpa pelos acidentes
ocorridos. Depois de muitos debates promovidos entre a comunidade e o poder
público local, foi elaborado um projeto de lei que regulamentava a propriedade e a
posse de pitbulls e rottweilers, as raças que mais se envolveram em acidentes graves no
Município. O projeto de lei foi aprovado com vetos, excluindo-se os rottweilers do seu
rol.
É relevante observar que um indivíduo adulto da raça pitbull atinge entre 35
a 50 cm de altura e pesa entre 13 a 27 kg. Segundo o Kennel Club, sociedade
internacional que estabelece os padrões das raças para o certificado de origem dos
animais denominado pedigree, os cães que deram origem aos american pit bull terriers
(nome oficial da raça conhecida como pitbull) foram criados pelos seres humanos
para combates - também conhecidos como rinhas - com touros, um “esporte” muito
apreciado na Inglaterra nos séculos XVIII a XIX, que foi proibido pelo governo
inglês em 1835 devido à sua brutalidade.
A raça se origina da mistura de buldogs (cães fortes, porém sem habilidade)
com terriers (cães de caça ágeis e destemidos). Aos indivíduos mesclados das duas
raças foi inicialmente atribuído o nome pit terrier ou pit buldog – que significam
respectivamente meio terrier e meio buldog.
Criadores de cães americanos tiveram interesse nos animais mesclados e
alguns indivíduos foram levados aos Estados Unidos, onde foram realizadas seleções

 
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genéticas para que os animais maiores e mais agressivos prevalecessem. Esses animais
foram os primeiros a ganharem o nome american pit bull terrier.4
Ainda do cruzamento entre os buldogs e os terriers ingleses, surgiu uma raça
denominada american staffordshire terrier, nome dado aos indivíduos de mesma origem
dos vulgos pitbulls, mas que foram selecionados geneticamente pelas características de
obediência, comportamento mais dócil e tamanho reduzido.
Em 24 de abril de 2002 entrou em vigor a Lei Municipal 8354/02, que
dispõe sobre propriedade, importação, adoção, comercialização, criação e
manutenção de cães da raça pitbull(a lei trata os cães pelo nome vulgo da raça) e
cruzamentos da mesma. Prevê a obrigatoriedade de observação de vacinas, da
esterilização dos animais, do uso de coleira e mordaça para conduzi-los a locais
públicos, o registro dos animais, e a idade mínima de 18 anos para a condução do
animal em vias e logradouros públicos.
As sanções para os infratores da lei são a perda da propriedade do animal,
apreensão e multa no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais). Observa-se no cotidiano
belo-horizontino que o baixo valor da multa e a falta de pessoal para fiscalização
prejudica a amplitude da sua eficácia. Durante entrevista realizada com integrante do
poder público5, foi apontado como problema a prática de combates de pitbulls dos
quais são expectadores indivíduos humanos de grande poder aquisitivo e as penas
demasiadamente brandas para os infratores da Lei 9.605/98, que tipifica penalmente
em seu art. 32 o crime de maus-tratos aos animais.

                                                            
4 Note-se que o termo “bull” significa touro, em apologia aos touros que os animais enfrentavam em

combate. A tradução do nome oficial da raça poderia ser feita como “meio-touro-terrier americano”.
5 OLIVEIRA, F. S. Legislação, projetos de lei e políticas públicas sobre fauna doméstica em Belo

Horizonte. [16 de março, 2010]. Belo Horizonte. Entrevista concedida a Nathalie Santos Caldeira
Gomes.
 
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4. Políticas Públicas do Município de Belo Horizonte em relação à fauna


doméstica

Sob influência do 6º Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde –


OMS, publicado por esta em 1973, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte - PBH
centralizou suas políticas públicas destinadas ao controle populacional de cães e gatos
abandonados na prática da eutanásia dos animais não-humanos, recolhidos pelos
funcionários do CCZ com o escopo do controle de doenças nocivas à saúde humana.
No entanto, eram eutanasiados não apenas os animais doentes, mas
também os animais sadios encontrados em vias públicas, com a finalidade de
controle populacional. Fato é que não havia (e ainda não há) no Município
disposição de espaço e verbas suficientes para abrigo de todos os animais
abandonados. Por não ter como mantê-los, são exterminados em nome da saúde
pública.
No ano de 1992, a OMS publicou o seu 8º Informe Técnico, constatando
que a eliminação dos animais de rua é meio ineficaz para o controle de sua população
e de doenças por eles disseminadas. O documento preconiza o controle de natalidade
dos animais e a promoção de educação da comunidade como solução para o
problema, admitindo que não há uma solução a curto prazo uma vez que as
populações de animais em vias públicas renovam-se constantemente em razão de sua
reprodução intensa e desenfreada.
O cientista veterinário Pedro Acha, autor de diversas publicações cientistas
sobre saúde humana e animal, criou uma organização para desenvolvimento de
pesquisa veterinária direcionada à solução de doenças comuns aos seres humanos e
seres não-humanos. O autor relaciona a saúde humana à saúde das outras espécies,
propondo um desenvolvimento não-especista da saúde pública. Em sua obra Zoonosis
y enfermidades transmisibles comunes al hombre y a los animales, exemplifica que uma única
 
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cadela pode originar, direta ou indiretamente (por meio de seus filhotes e gerações
provenientes destes), 67.000 cães em um período de seis anos.
A possibilidade de gerar novos filhotes a cada período estimado em 6 meses
e a gestação em média de 58 a 64 dias é um fator complicador do controle
populacional da espécie canina, o que é agravado quanto analisado o ciclo de
reprodução dos gatos. As gatas possuem um período de gestação de 60 a 64 dias,
mas a possibilidade de uma fêmea gerar novos filhotes é maior: o cio destas pode
chegar a ocorrer de 21 em 21 dias durante a primavera e o verão, e ocorre em média
de 3 em 3 meses nas outras estações do ano.
Diante dos dados estatísticos inseridos na obra de Acha (2003), torna-se
claro o motivo pelo qual a eliminação de animais abandonados não pode solucionar
o problema das superpopulações: elas tendem a se multiplicar ao invés de diminuir
quando não há controle de natividade.
Em observância ao novo Código Sanitário Municipal, publicado no ano de
2003, o CCZ começou a trabalhar na implantação do controle de natalidade animal.
Porém, foi editada no mesmo ano a Portaria 025/2003, que contrariava
manifestamente o novo Código Sanitário Municipal ao prever o extermínio de
animais sadios.
A portaria 025/2003 foi revogada somente no ano de 2008, substituída pela
Portaria 020/2008, que estabelece que somente os cães e gatos que apresentem
zoonoses que coloquem em risco a saúde da população ou dos animais serão
eutanasiados. Porém, a efetivação da portaria ainda não se tornou possível em razão
dos grandes números de animais recolhidos diariamente das ruas do Município e da
impossibilidade do CCZ de manter todos os animais vivos com os recursos que
possui.
Em 2005 teve início a esterilização e castração de cães e gatos fornecidos
gratuitamente pelo CCZ belo-horizontino. Os últimos dados estatísticos sobre o
 
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número de cirurgias realizadas no Município foram fornecidos pela Comissão


Interinstitucional de Saúde Humana na sua Relação com os Animais, conforme
disposto a abaixo:
• 2005: 293 cirurgias
• 2006: 501 cirurgias
• 2007: 981 cirurgias
• 2008: 4205 cirurgias
• 2009: 2634 cirurgias (Até o dia 30/04/2009)
• TOTAL: 8.614 cirurgias
Observa-se pelos dados acima que o crescimento do número de
esterilizações e castrações realizadas pela PBH é significativo. Sua tendência é de
maior crescimento em razão da melhora da infraestrutura do CCZ, divulgação dos
serviços prestados gratuitamente e da sua importância, e trabalho de conscientização
da comunidade.

5. Atuação de ONG´s e associações de protetores dos animais em Belo


Horizonte-MG, conforme relato do Assessor para assuntos da fauna urbana
da Secretaria Municipal de Meio Ambiente da PBH

Em entrevista com o Assessor para assuntos da fauna urbana da Secretaria


Municipal de Meio Ambiente da PBH, Franklin Soares de Oliveira, foram apontadas
algumas das ONG´s e organizações não estatais do Município que atuam no
recolhimento, atendimento veterinário, promoção de adoção e castração ou
esterilização de animais da fauna urbana belo-horizontina.

 
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A ONG Sociedade Mineira Protetora dos Animais – SMPA foi a


primeira organização de protetores dos animais do Município, fundada em 1925,
antes que houvesse qualquer lei criada para a proteção dos animais no Brasil.
Atualmente a associação mantém cerca de 800 cães e 200 gatos abrigados e não
recebe qualquer benefício estatal para a sua manutenção, que é possível por meio de
doações. O antigo terreno onde eram abrigados os animais foi doado à organização,
e o atual abrigo para animais foi comprado através de uma cotização dos membros
do grupo. A organização foi declarada como de utilidade pública pela Lei Municipal
n° 3.783 de 14 de junho de 1984, assinada pelo prefeito Hélio Garcia.
Em quase um século de atuação, a SMPA teve como membros
personalidades como o jurista Milton Campos, falecido em 1972, cujo nome foi dado
à faculdade que possui um dos mais tradicionais e renomados cursos de Direito da
região metropolitana, e o político, jurista, e historiador Diogo de Vasconcelos,
falecido em 1927, que foi membro da Academia Mineira de Letras e hoje empresta
seu nome a uma praça e escola belo-horizontinas.
A Liga de Prevenção contra a Crueldade Animal – LPCA foi fundada
em 1982 pela jurista Edna Cardozo Dias, autora de diversas publicações sobre
Direito Animal, com o intuito de desenvolver a ação internacional pela conservação
do meio ambiente e para assistir, defender e proteger a população animal. Para
alcançar sua meta, a organização colabora com órgãos governamentais na
implementação de medidas de proteção aos animais e desenvolve programas de
educação ambiental para a conscientização da população.
Seus representantes participaram da conferência das Nações Unidas
denominada RIO/92 e de outros eventos científicos e governamentais de relevância
no cenário ambiental nacional e internacional. No âmbito legislativo, participou
como convidada da reunião da Comissão de Defesa do Consumidor, da Assembléia
Legislativa do Estado de Minas Gerais, em 1996, para aprovação do projeto de lei
 
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I Congresso da Associação Mineira de Pós-Graduandos em Direito
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sobre abate humanitário de animais de consumo. A organização está presente na


atualidade em vários estados brasileiros e na França e suas publicações são utilizadas
comumente em trabalhos científicos no Brasil e no exterior.
A Associação Bichos Gerais – ABG foi modelo para a instituição de
políticas públicas da PBH através seu avançado projeto de castração e esterilização de
animais domésticos. A associação não possui fins lucrativos e é composta por um
grupo de veterinários. Oferece assistência veterinária a preço de custo: consultas,
vacinas, castração/esterilização e medicamentos. Sua manutenção se dá através de
doações e do numerário arrecadado pelos seus serviços.
A ABG está desenvolvendo atualmente um projeto denominado Centro de
Conservação de Fauna, voltado para a proteção da fauna silvestre e combate ao
tráfico animal, através da produção de conhecimento científico sobre o assunto e
firmamento de convênio com instituições como a Universidade Federal de Minas
Gerais e Universidade Federal de Viçosa. Pretende criar um banco de embriões de
animais silvestres atualmente ameaçados de extinção e reabilitar animais apreendidos
para a vida silvestre.
A Adocão é uma associação de protetores belo-horizontinos que atua na
promoção da adoção de animais domésticos, através do recolhimento de animais das
ruas e divulgação dos mesmos em seu blog. Grande parte de seus membros
participam também de outras organizações e da Comissão Interinstitucional de Saúde
Humana na sua Relação com os Animais, que será relatada no próximo item.
A Cão Viver é uma organização que possui um abrigo para animais
abandonados, além de atuar na esterilização e atendimento veterinário de baixo custo
à comunidade.
A SOS Bichos é uma organização de defensores que recolhe e divulga
animais de rua para adoção. É atualmente uma das organizações que mais tem obtido
sucesso na doação de animais devido à grande popularidade de seu sítio eletrônico.
 
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A ONG Sexta-feira atua na castração e esterilização de animais domésticos


na comunidade do Morro das Pedras, aglomerado localizado no final da Avenida
Silva Lobo. Já foram esterilizados mais de 3000 animais da comunidade em um
período de 3 anos de funcionamento da organização.

6. Parceria entre a sociedade civil e a Prefeitura na atuação pelos direitos dos


animais no Município de Belo Horizonte-MG

A Comissão Interinstitucional de Saúde Humana na sua Relação com os


Animais é formada por uma parceria entre o MPE, a sociedade civil e a PBH. Suas
reuniões são abertas ao público e ocorrem nas primeiras segundas-feiras de cada mês,
na sala de reuniões do Conselho Municipal de Saúde.
A PBH atua principalmente através do Assessor Franklin Soares de
Oliveira, que encaminha os relatórios, as propostas e os clamores do Conselho ao
Secretário Municipal de Meio Ambiente. Da Comissão Interinstitucional de Saúde
Humana na sua Relação com os Animais já surgiram diversos projetos de lei de
proteção animal e seu número de participantes é crescente, o que indica ao interesse
da sociedade civil local na consolidação do Direito Animal.

7. Análise da Jurisprudência relativa ao ingresso de Ação Civil Pública do


MPE em litisconsórcio com a SMPA contra o Município de Belo Horizonte
no âmbito de Direito Animal

Em 2003, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais ingressou com


Ação Civil Pública contra o Município de Belo Horizonte em razão:
 
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I - da eutanásia de animais sadios;


II - do pouco prazo existente entre o recolhimento do animal e a eutanásia -
impossibilitando por vezes o resgate do animal por seu dono em hipótese de perda;
III - da forma como os animais recolhidos das ruas do Município eram eutanasiados:
coletivamente e sem sedação prévia, em uma câmara de gás saturada por monóxido
de carbono proveniente de motor de veículo.
7.1. Análise da decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

7.1.1. Voto vencido – Relator Des. Caetano Levi Lopes

O Ministério Público teve provimento negado aos seus pedidos em primeira


instância, tendo a sentença reformada parcialmente a seu favor na segunda instância.
O acórdão proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça não foi unânime, tendo o
Relator Des. Caetano Levi Lopes votado pelo desprovimento da apelação.
Na fundamentação do voto do Relator observam-se os dados juntados pelo
órgão ministerial relativos aos dados estatísticos do sacrifício de animais no ano de
2003:

Conforme informado no documento de f. 432, apenas no ano de


2003, foram sacrificados 22.439 cães. Desta quantidade, 8.077
eram portadores de Leishmaniose Visceral Canina, 6.845 foram
recolhidos em domicílio a pedido de proprietários e 811 foram
encaminhados pelos próprios donos. Finalmente, 6.706 eram
animais errantes e potenciais transmissores de doenças por falta de
acompanhamento veterinário.

O Des. Caetano Levi Lopes afirma ainda que o Código Civil de 2002 dá aos
animais o tratamento de coisas, aplicando a eles o disposto em do Art. 1263 do CC,
colacionando erroneamente doutrina a respeito:

 
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É coisa de tudo o que existe no universo e que, sendo útil para a


satisfação das necessidades humanas, se torna valioso e, por isso
mesmo, objeto de apropriação. Há coisas úteis mas não
apropriáveis, como as coisas comuns (res communes) a luz, o ar, o
mar, o sol, as estrelas. Não são de ninguém e são de todos. E há
coisas que embora suscetíveis de apropriação, como os animais de
caça, os peixes, coisas abandonadas (res derelictae), não pertencem a
ninguém (res nullius). Os animais são coisas, porém objeto de
proteção jurídica especial, por si mesmo e como salvaguarda
dos sentimentos das pessoas. (AMARAL NETO, 2006, p.309,
grifo nosso)
Em uma argumentação desprovida de lógica sistemática, o desembargador
procura justificar a sua teoria de que a Administração Pública pode dar aos animais a
destinação que lhes for conveniente, devidamente amparada pelo Art. 1263 do Código
Civil, através do trecho da doutrina colacionada acima.
Porém, basta uma simples leitura do trecho colacionado pelo
desembargador para a dedução de que o entendimento do jurista Amaral Neto (2006)
não é o mesmo. Em consonância com a doutrina abordada, os animais, embora
sejam considerados como coisas, são tutelados por diversas leis que os protegem
da arbitrariedade humana. São protegidos pelo Estado nos termos da CR/88, do
Decreto nº 24.645/34, da Lei 9.605/98 e da Declaração Universal dos Direitos dos
Animais, dentre outras formas legislativas de teor similar.
O desembargador, olvidando-se da legislação protetora dos animais no
ordenamento jurídico brasileiro, utiliza-se de um argumento medonho: de que não
há necessidade ou viabilidade de manter vivos os animais recolhidos pelo Centro
de Controle de Zoonoses do Município de Belo Horizonte, e que a municipalidade
deve realizar os sacrifícios com os meios que possui, independentemente da
crueldade destes.
Afirma ainda que o Município não possui recursos para promover medidas
de esterilização dos animais para controle populacional e que não foi demonstrada
crueldade na modalidade de extermínio dos animais nas câmaras de gás veicular. O
 
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voto do desembargador foi vencido, eis que o Revisor e o Vogal não concordaram
com a análise das provas e abordagem jurídica do Relator.

7.1.2. Voto do Revisor e Relator do Acórdão - Des. Francisco Figueiredo

Ao contrário do que entende o Relator vencido, o Des. Francisco


Figueiredo afirma que há um farto e substancial registro nos autos de que a
municipalidade belo-horizontina tem adotado “medieval e abominável prática no
extermínio dos animais coletados nas vias públicas, sejam eles abandonados ou
portadores de moléstias, mediante o sistema cruel de câmara de gás, sem prévia
sedação e até com torturas”.
O desembargador afirma que há no caso um conflito entre dois direitos: o
direito à vida e preservação dos animais e o direito à saúde e segurança da
comunidade, ambos previstos pela CR/88. Afirma que os animais devem ser
respeitados de maneira geral, mas que devem ser retirados do convívio com a
comunidade quando se tornam uma ameaça à sua saúde e segurança.
Entende que o controle populacional realizado pelo Centro de Controle de
Zoonoses é legal, consonante com o Art. 196 da CR/88 e amparado pelo poder de
polícia sanitária, mas que a discricionariedade do poder público não pode ser
desvirtuada para a prática de crimes. Observa corretamente que o termo “eutanásia”,
disposto no Código Sanitário Municipal significa possibilitar a um doente terminal
uma morte serena, sem dor e sem sofrimento.
Admitindo que não há como resguardar a ambos os direitos em conflito, o
julgador aponta uma forma de conciliação de medidas, que não cause prejuízos
desnecessários à vida humana ou animal:

 
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Diversas ações alternativas merecem ser apresentadas na tentativa


de solucionar o problema, todas a envolverem o Poder Público e a
sociedade civil, como a implantação de um programa de castração
de animais de rua e de conscientização da população para a
adoção e não abandono de animais, além da utilização da forma
correta de eutanásia, quando estritamente necessária.
Observa a ilegalidade e crueldade da Portaria da Secretaria de Saúde
Municipal de n. 025/03, que determinava o abate de todos os animais recolhidos pelo
Centro de Controle de Zoonoses e enquadrados como de “origem desconhecida”.
O Revisor deu parcial provimento ao recurso, assegurando que nas
hipóteses em que a eliminação dos animais seja necessária, de acordo com decisão
fundada em laudo veterinário, seja a medida adotada com prévia e regular sedação.
Determinou também o decurso do prazo de 03 dias da data da apreensão do animal
para a sua execução.

7.1.3. Voto do Vogal – Des. Nilson Reis

O Des. Nilson Reis seguiu o Revisor Francisco Figueiredo em seu voto,


lamentando a falta de recursos do Município para a adoção de uma política pública
eficaz que reconheça o direito dos animais. Lembra a decisão recorrida no tocante à
necessidade de que os representantes do povo tomem conhecimento da situação e
possam estabelecer convênios com entidades colaboradoras para possibilitar uma
mudança da situação dos animais domésticos. Ressalta que o laudo veterinário deverá
ser promovido pelo profissional pertencente ao quadro administrativo do Poder
Público Municipal.

7.2. Decisão do STJ em Recurso Especial


 
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A decisão do Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais foi objeto de


Recurso Especial do Município de Belo Horizonte ao Superior Tribunal de Justiça,
que a manteve em intensa fundamentação referente à limitação do poder de
propriedade sobre os animais domésticos.
O Município de Belo Horizonte alegou, com base na argumentação do Des.
Caetano Levi Lopes, vencido na segunda instância, a violação do Art. 1236 do CC.
O Relator, Ministro Humberto Martins, afirmou em sua fundamentação que
ao recorrente não assite razão por dois motivos:

o primeiro está em considerar os animais como coisas, res, de


modo a sofrerem o influxo da norma contida no Art. 1.236 do
CC. O segundo, que é uma conseqüência lógica do primeiro,
consiste em entender que a administração pública possui
discricionariedade ilimitada para dar fim aos animais da forma
como lhe convier.

O Ministro discursa sobre o sistema nervoso desenvolvido dos animais, que


os permite sentir dor e ter afeto. Afirma que possuem vida biológica e psicológica e
que não podem ser considerados como objetos materiais desprovidos de sinais de
vida. O Relator refuta a pretensa aplicabilidade do Art. 1263:

A consciência de que os animais devem ser protegidos e


respeitados, em função de suas características naturais que os
dotam de atributos muito semelhantes aos presentes na espécie
humana, é completamente oposta à idéia defendida pelo
recorrente, de que animais abandonados podem ser considerados
coisas, motivo pelo qual, a administração pública poderia dar-lhes
destinação que convier, nos termos do art. 1.263 do CC.

O julgador relembra a Declaração Universal dos Animais, que estabelece


que se for necessário matar um animal, ele deverá ser morto instantaneamente, sem
dor e de modo a não provocar-lhe angústia. Afirma que a CR/88 dispõe no mesmo

 
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sentido em seu inciso VII do §1º do Art. 225, quando veda submissão dos animais a
crueldade. Por fim, aponta a definição de maus tratos pelo Decreto Federal n. 24.645
de 1934, que complementa o Art. 32 da Lei 9.605/1998.
O Relator ainda faz uma apologia aos campos de concentração nazistas,
onde os seres humanos eram tratados como “bichos”, tratados e exterminados de
forma cruel:

Ao arrepio de toda essa legislação protetiva, é comum nos Centros


de Controle de Zoonose, e o presente caso é uma prova disso, o
uso de procedimentos cruéis para o extermínio de animais, tal
como morte por asfixia, transformando esses centros em
verdadeiros “campos de concentração”, quando deveriam ser um
espaço para promoção da saúde dos animais, com programas de
controle de doenças.

É citado na fundamentação do Ministro o erro cometido pelo 6º Informe


técnico da OMS, de 1973, que foi corrigido no 8º Informe técnico da mesma, em
1992. Na própria documentação, a organização confirma a falha da exterminação de
animais para o controle de disseminação de doenças, aconselhando a esterilização e a
educação da população como medida hábil. Ainda cita-se a obra de Pedro Acha, já
abordada com relevância no presente artigo.
É observado que a lei concede a discricionariedade ao administrador para
que ele encontre a melhor solução possível para o atendimento do interesse público,
e que essa discricionariedade não pode ser usada como justificativa para a prática de
crueldade contra os animais. Aduz que pode haver liberdade na escolha dos métodos
de extermínio desde que eles sejam equivalentes em menor crueldade.

8. Conclusão

 
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A relação de convivência entre seres humanos e as demais espécies animais


existentes no planeta, habitat comum a todos, é benéfica atualmente apenas à espécie
humana. As demais espécies animais foram arbitrariamente excluídas da proteção da
Ética, submetidas ao esclavaismo ou sinfilia, e têm negados os seus direitos na
atualidade assim como tiveram negados os seus direitos as mulheres, negros e índios
em determinado momento histórico.
Há duas correntes de pensamento filosófico que defendem a inclusão dos
animais na Ética, o “defensorismo” ou “liberalismo” e “abolicionismo”. Sob
influência delas, o direito brasileiro tem avançado na teoria da existência de um
Direito Animal, defendida por juristas renomados, dentre eles membros de
organizações não estatais, acadêmicos, membros do Ministério Público e
magistrados.
A legislação brasileira é escassa e deficiente quanto à guarda de animais
domésticos, e sua terminologia é inadequada para alcançar aos seus fins de proteção
aos animais enquanto seres vivos, capazes de sentir sofrimento e que necessitam de
cuidados humanos para a sua sobrevivência e bem-estar, devido ao domínio do seu
habitat comum pela humanidade.
Embora ainda não sejam considerados como sujeitos de direito pela legislação
brasileira, os animais também não podem ser classificados como simples coisas. A eles
não se aplica o disposto no art. 1263 do CC, e tampouco pode o poder público dar a
eles o fim que lhe convier sem observar os limites legais dos seus poderes, que não
podem jamais serem elasticizados para alcançarem o ato ilícito da crueldade, dos
maus-tratos ou do extermínio desnecessário de animais.
O comportamento dos animais é fortemente condicionado pelos seres
humanos. Como exemplo, o comportamento agressivo dos cães da raça pitbull –
motivo da criação de lei no Município de Belo Horizonte e no estado de Minas
Gerais – foi manipulado pelos criadores que originaram sua espécie. O
 
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condicionamento dos animais à agressividade é conseqüência da irresponsabilidade e


falta de Ética humana no tratamento animal. Diante desse fato, é necessário que a
legislação brasileira vede expressamente o condicionamento do animal à
agressividade para que ele não sofra posteriormente por não se adaptar à sociedade
humana.
O Direito Animal da fauna doméstica no Município de Belo Horizonte
pode ser considerado como um bom exemplo para outros municípios brasileiros
porque tem avançado através da legislação, das políticas públicas, da atuação do
Ministério Público Estadual e da participação da sociedade civil na sua construção e
consolidação.
A interação entre os interessados na promoção do Direito Animal da fauna
doméstica na capital mineira tem tornado possível avanços que dificilmente teriam
sido alcançados sem ela, como a esterilização/castração de animais gratuita, a
promoção da adoção de animais abandonados e a discussão conjunta de políticas
públicas e projetos de leis que são encaminhados à Câmara Municipal.
O papel das organizações não-estatais no Brasil é imprescindível para a
promoção do Direito Animal da fauna doméstica, pela falta de recursos (financeiro e
pessoal) do Estado. A conscientização da população é necessária para solucionar o
problema do abandono animal e da superpopulação de animais nos municípios, e
convém incentivar a participação popular a denunciar o abandono e atuar como
fiscalizadora. Conscientizar a população é notoriamente mais eficaz do que investir
inutilmente recursos financeiros com uma população ignorante que não saberá
aproveitá-los.
A saúde humana está relacionada com a saúde animal na medida em que há
doenças comuns a várias espécies, que podem ser transmitidas entre elas. Portanto,
políticas públicas que promovam a saúde animal também serão benéficas aos seres
humanos, como a vacinação e a promoção de atendimento veterinário gratuito ou de
 
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baixo custo. Tendo em vista a precariedade da saúde pública humana no Brasil,


torna-se utópico promover a saúde animal com verbas públicas. Uma alternativa
sugerida pela autora deste artigo é a firmação de convênios com entidades não
governamentais para a redução dos custos veterinários. A redução de impostos a
veterinários que atuarem em convênio com o poder público e outras medidas
poderiam ser adotadas no país para o incentivo da saúde animal.
Ações coletivas educacionais bem planejadas não pressupõem grandes custos
para o Estado, e geralmente há a disponibilidade de voluntários provenientes das
comunidades e de organizações não estatais para executá-las em nome da defesa dos
animais.
A esterilização/castração de animais domésticos, embora implique a
princípio amensalismo ou antibiose, é medida de urgência necessária ao controle
populacional no país. A sua gratuidade pelo poder público local é a melhor forma de
promovê-la, e o simples extermínio dos animais já foi demonstrado ineficiente para o
combate de zoonoses.
A jurisprudência do STJ sobre o extermínio de animais no Município de
Belo Horizonte é inovadora, relevante, e pode ser utilizada pelos juristas brasileiros
como instrumento para a modificação da realidade de outros municípios. O
Ministério Público, atuando na defesa do Direito Animal, pode firmar Termos de
Ajustamento de Conduta com municípios com base na jurisprudência estudada, ou
mesmo ingressar com outras Ações Civis Públicas com identidade de pedido ou de
causa de pedir.
A promoção do Direito Animal da fauna doméstica no Brasil depende
fundamentalmente da adoção de novas perspectivas da propriedade de animais
domésticos como o instituto inovador da guarda animal. A inserção dos animais na
Ética é tão necessária quanto o reconhecimento de seus direitos. Afinal, conforme
disposto no art. 225 da CR/88, é dever do Poder Público da coletividade defender e
 
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proteger o meio ambiente. E não devemos nos olvidar, enquanto seres humanos
racionais que somos, que no conceito de meio ambiente está inserida a fauna
negligenciada pela legislação infraconstitucional, que divide – embora desigualmente
– com o ser humano a imensidão da oikos denominada Terra.

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A INFLUÊNCIA DA FRANÇA NA BELLE ÉPOQUE TROPICAL:


A MODA FRANCESA E A SOCIEDADE BRASILEIRA NO INÍCIO DO
SÉCULO XX

Gabriela Barbosa1∗

RESUMO

Este artigo propõe uma discussão sobre a influência francesa no período da Belle
Époque brasileira (primeiras décadas do século XX), relacionando questões sócio-
culturais referentes aos conceitos de moda e consumo. O objetivo é apontar as
características da Belle Époque tropical a partir dos ideais franceses de modernidade e
civilidade. Nesse sentido, pergunta-se: a sociedade brasileira, durante a Primeira
República, adequou-se aos parâmetros franceses de moda e consumo? A sedução da
modernidade é expressa neste trabalho por meio de reflexões sobre o “consumo à
francesa” na Belle Époque tropical.

Palavras-chave: Belle Époque, Sociedade de Consumo; Belle Époque, Consumer


Society.

1 Introdução

Belle Époque é um termo usado para definir um período importante da


sociedade moderna, relacionado com reformas tecnocientíficas ocorridas em fins do

                                                            
1 Graduanda do 3º período no curso de Publicidade e Propaganda pelo Centro Universitário Newton

Paiva.
 
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século XIX (no caso brasileiro, nas primeiras décadas do século XX). Tais reformas
projetaram inúmeras inovações práticas para o cotidiano das pessoas, como o
telefone, o rádio e a iluminação elétrica. No final do século XIX, Paris se tornou a
capital cultural do mundo, lançando muitos artistas, escultores, pintores e,
principalmente, novos estilistas.
Com todo afã da Cidade Luz, o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, decide
se reformar também para mostrar toda sua “civilidade” aos países estrangeiros
seguindo os padrões franceses.

2 A França da Belle Époque

2.1 Breve histórico francês: os anos de ouro

A França, pouco antes do final do século XIX, passou por um momento


crítico tanto na economia quanto no comércio. Após perder a Guerra Franco-
Prussiana, sua dívida econômica com a Alemanha, prejudicou o desenvolvimento
industrial e uma depressão acompanhou o desemprego e a decadência de alguns
comerciantes da época. Apenas na década de 1890, a Terceira República continuou
estimulando a expansão colonial (KHVOSTOV, 1986). A luta pela posse da Ilha de
Madagascar durou dois anos, de 1894 a 1896, e teve um resultado positivo para a
França. A conquista da ilha e movimentos reacionários devolveram o otimismo ao
povo francês.
Os anos franceses que compreendem o final do século XIX e perduraram até
o início da Primeira Guerra Mundial são chamados de Belle Époque que, em português
quer dizer “bela época”. Durante esse período, a França vivenciou seu momento

 
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mais próspero para a burguesia e desfrutou de uma atmosfera harmoniosa em relação


aos demais países europeus. Fervilhavam idéias novas nos setores de cultura, de lazer
e de tecnologia e Paris era a capital-modelo para qualquer lugar do mundo. Nesses
tempos tão eufóricos, jamais passaria pela cabeça dos cidadãos parisienses que esse
período próspero culminaria numa Grande Guerra.
A revolução tecnológica foi uma das principais razões pela empolgação
francesa. A burguesia pôde aproveitar de benefícios totalmente novos para os
padrões da época. Campos industriais como o químico, o farmacêutico e o
petrolífero foram gerados e outras invenções passaram a ser – e continuam sendo –
fundamentais, como a iluminação elétrica, o telefone e o rádio. Consequentemente,
os meios de transporte ficaram mais velozes e fizeram o mundo andar mais rápido.

2.2 Uma linguagem móvel

A história sobre a capital francesa da Belle Époque não estaria completa sem
um panorâmico sobre a moda, já que é nesse período que Paris se consolida como
referência em alta-costura:

A moda é um reflexo móvel de como somos e dos tempos em que


vivemos. A roupa foi utilizada como instrumento social para
exibir riqueza e posição, da mesma forma que a deliberada rejeição
de símbolos de status transmite outras mensagens. As roupas
podem revelar nossas prioridades, nossas aspirações, nosso
liberalismo ou conservadorismo. Elas fazem muito para satisfazer
necessidades emocionais simples ou complexas e podem ser
usadas consciente ou inconscientemente para transmitir
mensagens sexuais sutis ou diretas. Emprestam elegância e cor ao
nosso ambiente e dão forma a nossos sentimentos. São a primeira
e a última palavra da linguagem que é a moda (O’HARA, 1992, p.
9).

 
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Ainda sobre a relação “cultura, vestuário e moda”, a romancista Alison


Lurie afirma:

Como a maioria das línguas escritas e faladas, o idioma das


roupas está sempre mudando. Novas ideias e fenômenos exigem
além de palavras novas, estilos novos. [...] a maioria das
tendências políticas, sociais e culturais se espelhou não apenas no
que dissemos, mas no que vestimos, de modo que mesmo que
não acompanhemos s notícias, podemos adivinhar o que está
acontecendo à nossa volta (LURIE, 1997. p. 7).

A moda viu a sua grande oportunidade na Belle Époque, já que o capitalismo


estava, cada vez mais, penetrando na vida social e econômica da burguesia. Homens
e mulheres de alto nível social exibiam a sua riqueza em uma linguagem facilmente
identificável. O grau de luxo e ornamentos nas confecções das roupas femininas
indicavam a sua posição e classe.
A Psicologia tenta explicar a relação entre o sujeito e seu modo de vestir e o
psicanalista inglês John Carl Flugel argumenta que é uma questão de contrariedade
entre o pudor e a necessidade de se enfeitar.

Esta oposição essencial entre os dois motivos de enfeite e pudor


é, creio eu, o fator fundamental em tôda psicologia das roupas.
Implica que nossa atitude com relação à roupa seja ab initio
“ambivalente”, para usar o inestimável têrmo que foi introduzido
na psicologia pelos psicanalistas; por meio de nossas roupas
tentamos satisfazer duas tendências contraditórias e, portanto,
tendemos a considerá-las de dois pontos de vistas incompatíveis:
de um lado, como meio de exibir nossos atrativos; de outro, como
meio de ocultar nossa vergonha (FLUGEL, 1966, p. 15).

As vestimentas diurnas eram recatadas, cobrindo a maior parte do corpo


com saias que se arrastavam e braços fechados por mangas compridas. A gola subia
um pouco pelo pescoço e as luvas cobriam os pulsos, punhos e dedos. Durante a

 
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noite, os decotes surgiam no busto e as mangas desapareciam, deixando o corpo


feminino em evidência. O contraste entre a roupa do dia e a roupa da noite
justificava uma tímida entrega das mulheres aos homens, mas sem ofender a moral
burguesa conservadora. Os chapéus também eram muito comuns e, quanto mais
ornados com plumas de avestruz, maior era o status.
Nesse contexto, Paris torna-se o centro mundial da moda e um grande
cenário para criadores. Assim, surge o inglês Charles Frederick Worth que, aos 20
anos, muda-se para a Cidade Luz. E ao final do século XIX, dirige sua própria casa
de costura, mas ainda não é denominado de estilista, mas de couturier, palavra
inventada, pois apenas existiam couturières, costureiras de corte simples. Seu trabalho
foi caracterizado por uma confecção luxuosa, mesclando o corte inglês impecável e a
elegância francesa, o que levou à expressão de “alta costura” (SEELING, 2000).
Apesar de não revolucionar tanto as formas clássicas, ele foi conhecido por
promover suas vendas apresentando as suas coleções anualmente, introduzindo
mudanças constantes à moda, o que os estilistas de hoje ainda fazem.
As mulheres dos primeiros anos de 1900 ainda herdaram algumas
características do século XIX. O espartilho era um vestígio do século passado que
muitas reclamavam. O desconforto era criticado também por médicos, que
consideravam uma agressão ao corpo, já que o espartilho prejudicava a formação dos
ossos e funcionamento dos órgãos internos. Nenhuma mulher conseguia, sozinha,
colocá-lo ou livrar-se dele.
O primeiro francês que conseguiu compreender os dramas da mulher típica
da Belle Époque foi Paul Poiret, o primeiro estilista. Ele pode ser considerado como o
libertador da moda feminina, pois, em suas criações, o espartilho teve seus dias
contados (SEELING, 2000). Os modelos de Poiret eram para mulheres que
gostariam de aparentar uma simplicidade jovem e desfrutar da liberdade dos
movimentos, sem os espartilhos para comprometê-los. Sua mulher, Denise Boulet,
 
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foi a mais elegante de Paris e, de repente, todas as mulheres desejavam ser como ela.
Cintura dos vestidos abaixo do busto, decotes mais cavados e saias cada vez mais
apertadas também fizeram parte da revolução do vestuário que Paul Poiret estava
propondo. A característica europeia de absorção de culturas diferentes foi uma
importante influência estética para o estilista. Roupas com motivos orientais, cores
chamativas, turbantes, véus e túnicas fizeram a cabeça das mulheres que o seguiam
fielmente. E, bem antes de Coco Chanel, foi o primeiro costureiro a lançar seu
próprio perfume.
Diante dos luxos proporcionados, os habitantes de Paris usufruíam muito
da vida cheia de novidades, cultura rica e tecnologia abundante. A aura de paz era tão
grande que quase ninguém acreditou quando a Primeira Guerra Mundial foi iniciada.
Toda a pujança burguesa se esvaiu com os anos trágicos e desastrosos da guerra.
Nesse momento, a sociedade percebeu que a tecnologia poderia tanto trazer uma
vida mais prática, quanto poderia pôr fim em grande parte da humanidade.

3 A Belle Époque tropical

3.1 Cenário político brasileiro em 1889 e a vida à francesa

Para entender como emergiu o período da Belle Époque no Brasil, e como ela
influenciou no cotidiano, é necessário evidenciar o contexto político. A Belle Époque
compreende, segundo Nicolau Sevcenko (1998), o período que vai de 1889 a 1922.
No início do ano de 1889, o Brasil ainda em um regime monárquico, tendo como
imperador Dom Pedro II. O império estava perdendo sua credibilidade, já que boa
parte da população, principalmente a que detinha grande porcentagem do dinheiro,

 
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começava a ficar insatisfeita com diversos fatores deficientes no governo. Em 15 de


novembro de 1889, instaurava-se a república no país, a qual pôs fim no governo de
Dom Pedro II através de um golpe militar, liderado por Marechal Deodoro da
Fonseca, futuro presidente do Brasil.
A fase da Primeira República brasileira coincide com a fase denominada
Belle Époque tropical: ideais de modernidade e civilidade estavam em voga nos
discursos políticos, na imprensa. As revistas ilustradas traziam as novidades da
tecnologia mundial, “atrativos para as mulheres, trajes modernos para os homens,
além de um emaranhado de adereços que compunham o necessário para participar
do convívio com a boa sociedade” (FERREIRA, 2009, p. 5).
Diante da reforma política, o Brasil buscou uma nova fonte de inspiração
para o novo ciclo de transformações, inclusive nos hábitos sociais. Naquele
momento, Paris era a capital mundial da cultura e estava no seu auge científico. A
Cidade Luz era o exemplo de modernização e tecnologia, características que todas as
capitais do mundo quiseram copiar. Logo, a Belle Époque brasileira caracterizou-se por
uma completa influência francesa nos costumes sociais. Nos passeios da Avenida
Central do Rio de Janeiro, era possível identificar as modas importadas pelas
mulheres da elite. Cercadas pela arquitetura art nouveau, elas mostravam seus chapéus
vindos da França que, quanto mais elaborados, mais evidenciavam a sua riqueza.
O período foi de grande lucro para as camadas mais privilegiadas. Havia
uma atmosfera cosmopolita da qual toda a elite brasileira aproveitava. As viagens à
França eram frequentes, apenas para ter o conhecimento das novidades em Paris,
capital do século XIX, e levá-las para o Brasil, mesmo que seu clima tropical não
fosse o ideal para as vestimentas importadas.
O principal meio para descobrir as novas modas da capital francesa eram as
revistas. Um exemplo de publicação famosa da época, a Fon-Fon!, “seguia o modelo
dos periódicos europeus” (ZANON, 2005, p. 2), que incluía até um vocabulário
 
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integralmente francês às suas colunas. O periódico se encarregava de fornecer tudo


sobre moda, literatura e também algumas charges satirizando a política e a vida social.
Os neologismos empregados pela revista, como diz Maria Cecília Zanon,
não eram necessários, pois já havia palavras semelhantes na língua portuguesa, mas
emprestar vocabulários da França era uma maneira de mostrar prestígio, já que a
cultura do país estrangeiro era tão venerada e tão poderosa detentora de status.
Mostrando, assim, que a Fon-Fon! era feita apenas para as camadas mais abastadas da
sociedade.

3.2 A mulher em meio a mudanças

Com tantas mudanças na vida social brasileira, a imagem da mulher foi


acompanhando a evolução e começava a se desvincular de antigos costumes. Nas
cidades mais cosmopolitas, ela podia observar e trocar ideias sobre moda. Maluf e
Mott (1998) destacam no capítulo “Recônditos do mundo feminino”, do livro
“História da Vida Privada no Brasil”, um parágrafo da “Revista Feminina” - de
agosto de 1920:

Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas,


passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se
a um templo se evadisse um ídolo. É como se a um frasco se
evolasse um perfume. A vida exterior, desperdiçada em
banalidades, é um criminoso esbanjamento de energia. A família
se dissolve e perde a urdidura firme e ancestral dos seus liames.
‘Rumo à cozinha!’ eis o lema do momento (REVISTA
FEMININA apud MALUF; MOTT, 1998, p. 372).

A mistura de desgosto e medo por parte dos homens os fazia pensar duas
vezes antes de casar. Foi uma época tensa para a relação entre homens e mulheres, já

 
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que os primeiros relutavam contra essa mudança de comportamento. Mas a imagem


que a mulher começava a questionar, se voltava contra ela.

A imagem da mãe-esposa-dona de casa como a principal e mais


importante função da mulher correspondia àquilo que era pregado
pela Igreja, ensinado por médicos e juristas, legitimado pelo
Estado e divulgado pela imprensa. Mais que isso, tal representação
acabou por recobrir ser mulher – e a sua relação com as suas
obrigações passou a ser medida e avaliada pelas prescrições do
dever ser (MALUF; MOTT, 1998, p. 374).

Todas as revistas femininas da época enfatizavam como era importante o


papel de dona de casa para o mundo feminino. Mesmo buscando uma mudança, as
mulheres apenas teriam apoio nelas mesmas. Sob a sombra de um pseudônimo,
mulheres falavam sem medo nas revistas sobre suas indignações, principalmente em
relação aos homens, enquanto até a justiça claramente discriminava as funções de
cada sexo:

Vários preceitos do Código Civil de 1916 sacramentavam a


inferioridade da mulher casada ao marido. Ao homem, chefe da
sociedade conjugal, cabia a representação legal da família, a
administração dos bens comuns do casal e dos particulares da
esposa segundo o regime matrimonial adotado, o direito de fixar e
mudar o local de domicílio da família. Ou seja, a nova ordem
jurídica incorporava e legalizava o modelo que concebia a mulher
como dependente e subordinada ao homem, e este como senhor
da ação. A esposa foi, ainda, declarada relativamente inabilitada
para o exercício de determinados atos civis, limitações só
comparáveis às que eram impostas aos pródigos, aos menores de
idade e aos índios (MALUF; MOTT, 1998, p. 375).

Uma característica evidente da sociedade nessa época era a falta de


igualdade de direitos. O homem era o pilar do casamento, cabendo a ele todos os
poderes sobre sua esposa. Ainda segundo o capítulo “Recônditos do mundo

 
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feminino”, do livro “História da Vida Privada no Brasil”, era necessário um


consentimento dele se caso a mulher quisesse trabalhar fora de casa e seus poderes
iam além da lei, permitindo punir com agressões físicas a esposa que o
desobedecesse.

3.3 O Brasil da reforma desigual

A efervescência brasileira se realizava em uma esperança no progresso e no


crescimento dos negócios, que se concretizava a partir dos resultados de mudanças
na capital. As várias reformas no Rio de Janeiro tinham como objetivo um modo
francês de vida, que foi empreendido pelo engenheiro urbanista Pereira Passos e pelo
médico sanitarista Osvaldo Cruz, entre os anos de 1903 e 1906, inspirando-se nas
reformas parisienses realizadas pelo barão de Haussmann. Era de fundamental
importância que uma boa imagem da capital do país fosse passada aos países
estrangeiros, já que o interesse eram as trocas comerciais.
O eixo desse projeto foi a Avenida Central, marco da Belle Époque
brasileira, que recebeu uma arquitetura art nouveau, cheia de floreios em mármores e
cristal, em contraponto com a arquitetura clássica. Para concretizar os “projetos de
regeneração”, como foi chamado na época, o governo se utilizou inclusive de força
física para retirar refugiados das antigas casas do século XIX que ainda permaneciam
no centro do Rio de Janeiro.
Assim como em Paris, as reformas que foram feitas na então capital
brasileira procuravam criar ambientes mais “polidos” aos seus habitantes, já que estes
estavam cada vez mais “civilizados”. Aqueles que não se imunizavam de doenças,
como parte de um trabalho intenso de saúde pública, eram brutalmente reprimidos.

 
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Essa realidade mostrava que a época não era só feita de uma elite concentrada, mas
também contava com miseráveis que não acompanhavam a extrema modernização.
O escritor João Paulo Alberto Coelho Barreto (1881-1921), conhecido pelo
pseudônimo de João do Rio, traduz crônicas em seu livro “A Alma Encantadora das
Ruas” sobre o cotidiano das pessoas presentes na Belle Époque carioca. Seu principal
espaço de inspiração era a rua. As ruas do Rio de Janeiro se tornavam personagem
principal de suas crônicas. João do Rio desconstruiu a sociedade denunciando seus
costumes e preconceitos e transcreveu a extrema desigualdade social que permeava a
vida na cidade. Se de um lado a elite brasileira vivenciava um culto aos costumes
franceses, do outro a periferia sofria com a marginalização e a miséria. A camada
mais carente da sociedade é uma parte importante de suas crônicas. João do Rio
descreveu a situação dos espaços urbanos na periferia em um texto publicado em
1904, pela Gazeta de Notícias, encontrado no artigo de Luciana Calado:

Íamos caminhando pela rua da Misericórdia, hesitantes ainda


diante das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos
de vagabundos e desordeiros desapareciam ao nosso apontar e,
afundando o olhar pelos becos estreitos em eu a rua parece vazar
a sua imundície, por aquela rede de becos, víamos outras lanternas
em forma de foice, alumiando portas equívocas. Havia casas de
um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas,
hermeticamente fechadas, pegadas uma à outra, fronteiras,
confundindo a luz das lanternas e a sombra dos balcões. Os
nossos passos ressoavam num desencontro nos lajedos
quebrados. A rua, mal iluminada, tinha candeeiros quebrados, sem
a capa auer, de modo que a brancura de uns focos envermelhecia
mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos pareciam
ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas
arrebentadas algumas. De repente uma porta abria, tragando, num
som cavo, algum retardatário. Trechos inteiros de calçada, imersos
na escuridão, encobriam cafajestes de bombacha branca,
gingando, e constantemente o monótono apito do guarda noturno
trilava, corria como um arrepio na artéria do susto, para logo
outro responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar o seu
áspero trilo. No alto, o céu era misericordiosamente estrelado e
 
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uma doce tranqüilidade parecia escorrer do infinito (JOÃO DO


RIO apud CALADO,1997, p. 280).

A Belle Époque foi vivenciada apenas pelas camadas mais ricas da sociedade
brasileira, elites que lucravam com a exportação, principalmente de café, e olhavam
de cima o resultado de um histórico colonialista e escravocrata. A desigualdade social
era evidente. Os costumes da população negra foram reprimidos em nome de uma
reforma na então capital do Brasil. É o caso da capoeira, que teve sua prática
proibida. Características históricas dos escravos negros foram eliminadas para a
implantação do que era chamado “civilização” nessa época: o modo de vida francês.
Em meio a esse governo tumultuado, comandado pela política café-com-
leite, com um capitalismo cada vez mais forte no país, um movimento chamou a
atenção da sociedade brasileira. O modernismo - apresentado à população por meio
da Semana de Arte Moderna de 1922 - assustou por querer renovar um ambiente
artístico totalmente conservador. A intensa influência francesa incomodava essa nova
vanguarda estética que surgia. Seus poemas e suas músicas não seguiam regras e seu
objetivo era absorver o que tinha de melhor na Europa e mesclar com a cultura
brasileira, criando um estilo único. O movimento buscava uma cultura nacional
própria, sem repetições de países europeus para, principalmente, valorizar os recursos
e talentos nacionais, o que foi inicialmente rejeitado e muito criticado, inclusive pela
imprensa. Entretanto, como este movimento trazia à tona uma nova forma de pensar
os costumes e a própria cultura nacional, acabou por questionar os antigos valores,
contribuindo para a quebra dos paradigmas da Belle Époque tropical.

4 Considerações finais

 
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A Belle Époque, sem dúvida, trouxe uma revolução nos pensamentos e nos
costumes que permeavam todo o século XIX, apresentando inovações tecnológicas,
que sequer a sociedade havia cogitado, e que ainda hoje fazem parte da vida
cotidiana. Mesmo com o advento da internet, o telefone continua sendo um meio de
comunicação necessário. Outro exemplo dessa perenidade é a energia elétrica, sem a
qual não se pode imaginar a vida humana.
A influência francesa marcou uma época em que o Brasil considerava
civilizado tudo que era estrangeiro. “Civilização” foi a palavra de ordem para as
profundas reformas que mudaram muito o cotidiano brasileiro. Na atualidade, essa
influência europeia permanece poderosa, mas conjugada com outra também de
visibilidade nos costumes brasileiros da atualidade: a norte-americana, principalmente
no que diz respeito à política e às relações internacionais.
No âmbito da moda, Paris não perdeu seu glamour da Cidade Luz
exportadora de talentos incríveis, porém não está só. É possível encontrar artistas em
todas as partes do mundo se destacando no cenário da moda. A influência, agora,
vem de diversos países que decidiram mostrar o esplendor de sua cultura ao mundo,
inclusive o Brasil, que possui uma evidência positiva no exterior.
As saias encurtaram, os braços estão à mostra e a mulher tem se mostrado
cada vez mais capaz de ocupar os mesmos cargos de trabalho que os homens. Não é
possível dizer, na atualidade, que ela conquistou plenamente seu espaço, mas está,
sim, em busca dele.
A sociedade passou por diversas mudanças no período da Belle Époque, e
continua a sofrê-las ainda hoje. A velocidade da informação acelerou e tornou a
compreensão do mundo acessível a todos. Todavia, com tantos benefícios, ainda é
gritante a desigualdade social. A utopia está longe de ser alcançada. Porém a
esperança hoje é maior do que há um século, pois agora existe o engajamento da
sociedade e grande parte dela luta por uma condição de vida mais humana e
 
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igualitária, talvez em consequência dessa acessibilidade às notícias e aos fatos que


acontecem no mundo.
De todos os fatores que são influenciados pela sociedade, a moda pode ser
considerada o mais visível, por ter um alcance mundial e imediato. Cada época, cada
tribo e cada modo de vida têm em comum em sua característica a singularidade de
suas vestimentas, e estas se mesclam com a própria sociedade. Como disse Gilberto
Freyre, “modo e moda tendem a confluir a serviço do ser humano” (1987, p. 12).
Não se pode separar a moda da história, pois a intenção de cobrir-se virou uma
exigência do exprimir-se. O acaso se juntou à necessidade e a arte, à indústria.

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APRENDER
DEIXAR LIVRE

Rosana Ribeiro Felisberto1

RESUMO

O artigo propõe uma abordagem do ensino jurídico a partir de uma leitura pouco
usual da palavra aprender. Parte-se da ideia de que a aprendizagem se daria na
linguagem, de modo a preservar a relação adequada com o meio e com os outros,
seria dependente da história e da experiência de cada um. Essa noção de
aprendizagem não descarta o papel do professor, porém reconhece que existe a
necessidade de participação, de modo que não haja autoritarismos ou negação do
outro enquanto sujeito na relação intersubjetiva. Por suas características, a
aprendizagem ocorre também no campo emocional e não puramente racional. Para
que haja aprendizagem, é importante que o professor estimule os estudantes para que
saiam de uma posição de passividade e iniciem um processo de aprendizagem
autônoma e crítica, modificando suas posturas que se encaixam no sistema de
repetição de padrões experienciados por ele.

Palavras-Chave: aprendizagem – linguagem – relação intersubjetiva.


Keywords: learning – language – intersubjective relationship.

Longe se vai sonhando demais


Mas onde se chega assim
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim
(Caçador de Mim – Milton Nascimento)

                                                            
1 Mestre e Doutoranda em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-
professora substituta da UFMG. Professora da Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte.
Advogada.
 
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Aprender = Deixar livre

A ideia de fazer esse artigo surge a partir da disciplina “Metodologia do


Ensino Superior”, ministrada pela professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin, em
2007, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade
Federal de Minas Gerais. O artigo também busca inspiração em experiências pessoais
e observações sobre o ensino/aprendizagem em instituições formais.
O mote inicial para a elaboração da argumentação abaixo trazida é uma
reinterpretação da palavra “aprender” como metáfora para uma conseqüente
reinterpretação da prática de ensino-aprendizagem nos cursos superiores e outras
instituições formais de ensino.
Os teóricos e pedagogos não falam mais apenas em ensino, mas em ensino-
aprendizagem, colocando em destaque a participação ativa do aluno no processo de
construção de conhecimento. Partindo-se da palavra “aprender”, pode-se, então,
conferir a ela uma interpretação diferente das interpretações oficialmente previstas na
língua portuguesa. Ao se considerar o “a” como prefixo de negação e o “prender”
como ato de manter alguém preso, pode-se conferir o sentido metafórico de “deixar
livre” à palavra “aprender”. Esse sentido metafórico representaria a necessidade de o
professor não obstruir o processo de conhecimento do aluno, bem como a
importância de o aluno assumir um papel ativo no seu processo de aprendizagem e
construção do conhecimento.

 
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Linguagem e aprendizagem

Humberto Maturana, ao desenvolver sua teoria sobre a “biologia do


conhecimento”, destaca o papel da linguagem no processo de aprendizagem dos
indivíduos.
A linguagem não seria um mero conjunto de signos, mas algo em que os
seres estão, algo apenas no qual os seres são capazes de estabelecer inter-relações
entre si e com o meio e se modificarem ao mesmo tempo em que o meio também se
modifica.
Segundo Maturana:

A linguagem se constitui quando se incorpora ao viver, como


modo de viver, este fluir em coordenações de conduta de
coordenações de conduta que surgem na convivência como
resultado dela – quer dizer, quando as coordenações de conduta
são consensuais. 2

Seria, então, a linguagem, algo que só existe na história, pois se refere às


coordenações de condutas de outras coordenações de condutas anteriores. Dessa
forma, o indivíduo se modifica, juntamente com o meio, a partir das experiências que
vivencia.
Se a linguagem é esse elemento que nos permite interagir com o meio e com
os outros, é também nela que se desenvolve o processo de aprendizagem.
Aprender implica em se modificar, na linguagem, de modo a preservar a
relação adequada com o meio e com os outros, que também se modificam. Aprender,
portanto, depende da história e da experiência de cada um, ainda que seja uma
experiência oriunda apenas da expressão verbal.
                                                            
2 MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Trad. José Fernando Campos

Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 98p. p.59.


 
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Como vivemos em um meio compartilhado e em relação com outros, temos


uma história em comum, que nos cria condições de possibilidades para a nossa
modificação em uma direção, permitindo que nos reconheçamos enquanto partes de
um determinado grupo; como juristas, como engenheiros, como estudantes, como
mineiros, como brasileiros, como católicos, como protestantes...
Nos reconhecemos parte de um grupo porque compartilhamos um meio,
uma história, uma cultura que nos possibilita nos modificarmos em certa direção.
Isso, entretanto, não significa que exista um determinismo do meio para o indivíduo.
O que existe são condições de possibilidades, já que não somos determinados, mas
condicionados, como defende Paulo Freire:

Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser


condicionado mas, consciente do inacabado, sei que posso ir mais
além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e
o ser determinado.3

A educação, e por que não a aprendizagem, se justifica pelo fato de sermos


“seres inacabados”, seres em constante modificação e interação. Se fôssemos seres
determinados ou imutáveis, não seríamos capazes de aprender, de construir coisas
novas.
Aprendizagem envolve participação, envolve a vivência de experiências
onde estão presentes relações com o meio e com os demais seres. Ela se dá de
maneira que um ser não negue o outro, que um reconheça a autonomia do outro,
reciprocamente. A aprendizagem, portanto, se daria no campo emocional e não
puramente racional, pois o amor, entendido no sentido de respeito mútuo e
cooperação, seria a emoção que funda tal processo de construção de conhecimento.

                                                            
3 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,

1996. 35ª edição. 148p. p.53.


 
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Ao colocar o amor como essencial à aprendizagem e à educação, Maturana


estabelece uma implicação necessária de que, para haver aprendizagem, deve haver
relações do indivíduo para com os demais, incluindo o meio em que se insere, pois é
através desse contato estabelecido na linguagem que os seres adquirem experiências
que servirão de base para as explicações do mundo que os cerca. Assim, embora a
aprendizagem dependa de interação entre os seres cada ser “percebe” a experiência
de uma forma particular, pois, mesmo que semelhante, é um indivíduo diferente dos
demais.

Aprendizagem e relações intersubjetivas

Existem, portanto, dois aspectos relativos à aprendizagem: ela é algo social,


já que se realiza na linguagem, e é também algo individual, pois cada indivíduo possui
percepções diferenciadas de uma experiência e as experiências não são as mesmas
para todos os indivíduos:

De modo que é da vida cotidiana que se retiram os elementos para


fazer proposições explicativas – cada um, da sua vida cotidiana.4

Tendo em vista que a aprendizagem se dá a partir das experiências de cada


um, Maturana chega a afirmar que não somos responsáveis pelo que cada um escuta,
já que se trata de uma percepção individual da experiência, mas somos responsáveis
pelo que dizemos, pois isso se constituirá em experiência a partir da qual se
desencadeará um processo de transformação e aprendizagem.

                                                            
4 MATURANA, Humberto. Cognição, Ciência e Vida Cotidiana. Org. e Trad. Cristina Magro, Victor

Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 203p. p.80


 
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Somos responsáveis pelo que dizemos porque a aprendizagem exige que


haja respeito mútuo e uma situação de cooperação e não de competição, de maneira
que não haja negação do outro. A negação do outro seria a negação do próprio
indivíduo, já que o “mito” de uma verdade única e universal não se sustenta. Existem
várias verdades, válidas ou não de acordo com a aceitação por parte dos outros, o
que implica em uma escolha de âmbito emocional e não puramente racional.

Ensino e aprendizagem

Ensino e aprendizagem são coisas distintas. Enquanto esta destaca a


importância do ser que aprende na construção de seu próprio conhecimento e de sua
própria história, aquele concentra o foco na figura daquele que ensina, como se fosse
o maior, ou único, responsável pela “transmissão” de conhecimento a outros seres,
numa atitude hierárquica, numa via de sentido único. Capella destaca a diferença
entre ambos:

Aprender não guarda uma relação muito estrita com ensinar,


como bem sabes. Há pessoas para quem se realizam operações de
ensino tanto como para ti e sem dúvida não têm aprendido o que
tu porque não realizam as correspondentes operações de
aprendizagem.5

Se a aprendizagem depende tanto daquele que aprende e constrói seu


conhecimento e de suas experiências, o processo de aprendizagem é diferente em
relação a cada ser, daí também é diferente em relação a cada turma. Cada turma tem

                                                            
5CAPELLA, Juan Ramón. El aprendizaje del aprendizaje. Madrid: Trotta, 1995. p.30:
“Aprender no guarda una relación estricta con enseñar, como bien sabes. Hay gentes para quienes se
han realizado operaciones de enseãnza tanto como para ti y sin embargo no han aprendido lo que ti
porque no han realizado las correspondientes operaciones de aprendizaje.”
 
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sua própria identidade, sua própria personalidade e, por isso, cada aula é diferente da
outra, ainda que a disciplina ministrada seja formalmente a mesma. Cada indivíduo é
único e cada turma é uma turma única, embora possam ser mais ou menos
semelhantes entre si.
A experiência de lecionar para graduandos em direito do primeiro período é
diferente da de lecionar para graduandos do terceiro período. E mais diferente ainda
é lecionar para turma de graduandos em “ciências exatas”.
Sendo a aprendizagem uma via de mão dupla, onde todos os seres
envolvidos na experiência possuem possibilidades de aprender, já que se faz na
linguagem, o professor, tanto quanto os alunos, aprende com as aulas. Parece retórica
a afirmativa acima, contudo a aprendizagem que o professor tem com as aulas é
diferente da dos alunos, não apenas porque se trata de seres diferentes, mas porque
aprender não significa acumular “conhecimento” padronizado, validado por opiniões
cientificas e difundido sobre um determinado assunto.
Enquanto o aluno aprende quais e como funcionam os princípios gerais do
contrato ou as técnicas legislativas que se usa no cotidiano jurídico, o professor
aprende quais as melhores maneiras de desencadear o processo de aprendizagem em
seus alunos. Não basta colocar os alunos em contato com o assunto e ministrar uma
aula expositiva, é necessário que o aluno apreenda a experiência e se transforme para
que realmente haja aprendizagem. Afinal, aprendizagem exige transformação.

Aprender a partir da semelhança

Como a aprendizagem se dá na linguagem, é necessário que haja também


um mínimo de semelhança para que o processo se desencadeie. É necessário,
portanto, identificar pontos comuns, ou semelhantes, de experiências anteriores dos
 
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seres envolvidos para que possa se dar início à comunicação. Iniciada a comunicação
entre os seres, as experiências anteriores de cada um devem ser compartilhadas para
que se tornem experiências para os demais e assim sejam criadas as condições de
possibilidades para sua aprendizagem.
Crê-se que seja impossível ocorrer aprendizagem sem que haja a
comunicação, ou estabelecimento de uma relação intersubjetiva entre os seres, a
partir de um ponto comum ou semelhante. Primeiro porque a aprendizagem se dá na
linguagem. Segundo porque a aprendizagem exige historicidade por se dar a partir de
experiências. Terceiro porque é a partir de um ponto comum ou semelhante que
identificamos e reconhecemos o outro e que, por isso, conseguimos nos comunicar e
estabelecer uma relação de troca de experiências com o outro.
Talvez seja uma conclusão prematura, mas é necessário encontrar esse
ponto de semelhança para que haja aprendizagem. Imagine-se o quanto
aprenderíamos se, conhecendo apenas a língua-pátria e as línguas componentes do
padrão curricular escolar mínimo nos deparássemos com um professor de filosofia
que lecionasse exclusivamente em mandarim. Não há como negar que pudéssemos
aprender com ele algumas coisas, como pontualidade, que um determinado símbolo
se refere à uma idéia de um filósofo ou a um objeto, e outros. Contudo, se
conseguimos aprender que um símbolo ou uma palavra se refere a determinado
objeto, nós só o conseguimos porque tanto nós quanto ele possuímos uma
experiência semelhante anterior em relação àquele objeto. Ou seja, se conseguimos
aprender que o símbolo “X” corresponde ao objeto árvore, é porque conseguimos
identificar o objeto a partir de nossas experiências anteriores, assim como ele
também consegue identificar o mesmo objeto.
Pode parecer um tanto inverossímil tal exemplo. Imagine-se, contudo,
como seria se a turma fosse composta por alunos de engenharia, já no último
semestre do curso, o professor fosse formado exclusivamente em direito e a
 
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disciplina fosse sobre direito e legislação. Imagine-se como seria começar uma aula
dizendo inúmeras palavras em latim, falando sobre mandado de segurança, princípio
da “primazia da realidade” ou “direito líquido e certo” para graduandos, quase
engenheiros, que jamais tiveram uma aula sobre direito ou sequer têm algum colega
próximo que cursa direito.
No exemplo, como encontrar o ponto de semelhança para que se
desencadeie o processo de aprendizagem? Repetir para alunos de engenharia
conceitos mais facilmente apreensíveis a alunos do quinto período de direito não é a
forma mais adequada de se colocar em marcha a aprendizagem deles. Daí a
importância das experiências prévias dos alunos e de se identificar pontos de
semelhança. Por exigir historicidade, a aprendizagem parte de algo já existente, não se
dá com uma inesperada “iluminação” que faça a passagem no “desconhecido” para o
“conhecimento” de maneira imediata.
Os alunos de engenharia, embora não tenham tido aulas de direito
anteriormente, possuem um contato direito com o direito em suas vidas. Eles já
fizeram ou fazem estágios, muitos trabalham, alguns já enfrentaram algum impasse
com a universidade, alguns já tiveram problemas com contratos, prestações de
serviço, consumo, alguns se interessam e se preocupam com a questão e legislação
ambiental e outros.
Como se percebe, o direito faz parte do cotidiano dessas pessoas, apenas
ainda não foi tratado de maneira sistemática e acadêmica. Essas experiências e
interesses anteriores, portanto, formam um ponto de semelhança bastante
interessante de onde se pode partir para desencadear o processo de aprendizagem
nos alunos, pois eles trabalharão sobre algo que já tiveram contato e terão a
capacidade de transformar essas experiências de maneira a construir um novo
conhecimento para si. Partir da explicação sobre o estágio e suas diferenças em

 
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relação ao emprego/trabalho pode ser uma boa forma para dar início à
aprendizagem.
Semelhança e percepção

Identificar o ponto de semelhança que permita o estabelecimento da relação


entre professor e aluno para a aprendizagem, contudo, não basta. É preciso sempre
se estar atento ao fato de que não vemos as coisas da mesma forma, ainda que
“objetivamente” as coisas sejam as mesmas.
Fernando Pessoa já disse uma vez que somos do tamanho do que vemos e
não do tamanho de nossa altura6. De fato, embora vejamos o mesmo objeto, nossa
percepção acerca dele não é igual. Se vemos um carro, por exemplo, alguns vão
gostar, outros não, alguns o verão como meio de transporte, outros como emissor de
poluição, outros como desnecessário, outros, indiferentes, sequer notarão o carro.
Todos terão uma visão diferente, mas todos verão o “mesmo” objeto. Em sala de
aula, o professor deve, portanto, estar atento às percepções dos alunos acerca
daquele ponto de semelhança, pois pode ser que o modo de ver o objeto comum não
ajude a desencadear o processo de aprendizagem a partir dele.
Um exemplo que poderia esclarecer a importância da percepção talvez
pudesse ser esse: Em uma aula sobre princípios contratuais, no curso de direito, um
dos alunos levanta a questão da arbitragem e o assunto passa a ser discutido por
outros colegas. Ao final dessa aula, um dos alunos, que não havia se manifestado
durante o horário normal, procura o professor e, após esclarecer que era de outro
curso e fazia a disciplina como eletiva7, disse que, “árbitro”, para ele, era “juiz de

                                                            
6PESSOA, Fernando. O Guardador de Rebanhos. Poemas de Alberto Caieiro. Arquivo eletrônico.
Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000001.pdf>, acessado em
13/01/2008. p. 6: “Porque sou do tamanho do que vejo / E não, do tamanho da minha altura...”
7 Disciplina eletiva é aquela disciplina de outro curso ou área que não compõe o currículo obrigatório

do curso do aluno.
 
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futebol”. Provavelmente, mesmo agora sabendo o que seria o árbitro no direito, esse
aluno não se lembrará da discussão que se deu em sala e terá perdido uma chance de
aprender algo mais.
Observa-se, nesse ponto, o âmbito “individual” da aprendizagem. Não é
possível ninguém aprender por ninguém, cada um aprende por si e a partir de suas
experiências pessoais. A percepção que cada um de nós tem acerca de um objeto é
diferente e com isso aprendemos de maneiras diversas, mantendo a diferença entre
nós, embora acresçamos nossas semelhanças.
Humberto Maturana vai além e afirma que, não só possuímos percepções
diferentes, como nos é impossível diferenciar entre o que é percepção e o que é
ilusão:

(...) os seres humanos, os seres vivos em geral não podemos distinguir na


experiência entre o que chamamos de ilusão e percepção como afirmações
cognitivas sobre a realidade.8

Já que há diversas formas de se ver o mesmo objeto, devemos não só


admitir como válidas outras formas de percepções como devemos deixar que os
alunos se expressem e construam seu conhecimento. Se o professor não reconhece
que o aluno tem suas experiências e vivências anteriores e nem permite que ele se
expresse da sua maneira, o professor cai numa imposição hierarquizada de
informações, não estabelecendo uma verdadeira relação com o aluno, cerceando sua
criatividade e possibilidade de aprender.
Já de disse que aprender implica em interagir com o meio e com os outros
seres de modo a se transformar ao mesmo tempo que o meio também se transforma.
No mesmo sentido Paulo Freire diz que:

                                                            
8 MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Trad. José Fernando Campos

Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 98p. p.44. (grifos no original)
 
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Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o


que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito.9

Se cada um tem suas percepções e aprender implica em construir o


conhecimento, a escola ou o professor não pode impor um “conhecimento” ou uma
“verdade”. Essa imposição implicaria em negar o outro enquanto ser,
impossibilitando que haja uma relação social, uma cooperação que leve à construção
do conhecimento. Segundo Maturana10, essa negação do outro e a conseqüente falta
de relação social implicaria na imposição autoritária de regras, pois, se houvesse
relação social, estaria presente o amor e o respeito mútuo, onde os seres se
reconheceriam como semelhantes.

Construção do conhecimento e respeito

Quando se impõem regras e informações, como ocorre em algumas escolas,


cria-se um obstáculo à criatividade e autonomia dos estudantes, dificultando seu
processo de aprendizagem. Não há construção do conhecimento sem uma interação
entre os seres em que haja respeito. Entenderia-se o conhecimento como acúmulo de
informações complexas e tecnológicas, não havendo, portanto, a construção de um
conhecimento que implique em lidar de forma harmônica com o meio e com os
outros, sem destruir nenhum dos envolvidos. Exemplos simples, mas marcantes,
ocorrem no nosso dia-a-dia, em situações das quais muitas vezes não nos damos
conta.
                                                            
9 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996. 35ª edição. 148p. p.69. (grifos no original)
10 MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Trad. José Fernando Campos

Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 98p.


 
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Imagine-se que, em uma primeira situação, uma criança da quarta série


primária desenha e colore um mapa, colorindo de azul os mares e oceanos e de um
azul de tonalidade diferente alguns países. Ao ver o trabalho, a professora diz:

- Seu mapa está errado!


- Onde?! – diz a criança.
- Você coloriu alguns países de azul.
- Mas é outro azul!
- Azul é só pra mares, rios e oceanos.
- Dá pra ver que é país.
- Desmanche e colora de outra cor!

Já em uma segunda situação, em atitude diversa da tomada na primeira


situação, após pedir que os alunos da quinta série primária que desenhassem e
colorissem uma paisagem que lhes agradasse, a professora recolhe os desenhos e
começa a exibi-los na sala para que a turma discutisse a respeito. Analisando um dos
desenhos, a turma discute:

- O que é isso? – pergunta uma aluna.


- É um rio! – responde outro.
- Parece uma estrada... – diz a aluna.
- Talvez seja uma estrada. – intervém a professora.
- Não! – diz o aluno – É azul! Só pode ser um rio!
- E por que a estrada de quem desenhou não poderia ser azul?! –
diz a professora – Afinal, a Terra não é azul?!...

Na primeira situação a professora impõe um padrão de informação ao


aluno, sem discutir ou deixar que expresse sua criatividade e percepções. Atitudes
como essa acabam por cercear o processo de aprendizagem, implicando em
dificuldade do aluno em se tornar um ser autônomo, capaz de expressar suas
impressões de maneira coerente com suas experiências.
 
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Já a segunda situação traz um momento em que a pessoa que fez o desenho


não teve suas impressões e expressões enquadradas em padrões rígidos pré-
estabelecidos. Também o aluno que afirmou os padrões existentes não foi tolhido ou
negado, mas “convidado” a pensar a possibilidade de existirem outras impressões
válidas sobre o mesmo objeto. Uma atitude como essa ajuda a incluir o aluno e fazer
com que ele não seja negado, ajuda para que haja relações entre os seres, sem
imposição.

Criatividade

É preciso deixar que a criatividade e impressões dos alunos se manifestem,


pois o conhecimento é construído e não algo dado. Manoel de Barros escreveu:

O olho vê. A lembrança revê.


Mas é a imaginação que transvê,
que transfigura o mundo.11

Observe-se que o ato de ver não se resume à irradiação da luz refletida no


objeto e que chega aos nervos óticos. Ver, na maioria dos casos, envolve também os
outros sentidos e a (re)construção da imagem, pois é a partir de uma combinação
complexa de sentidos e de experiências anteriores que formamos nossas impressões,
nossas imagens, portanto “vemos”.
O pequeno trecho de Manoel de Barros ilustra bem o processo de
aprendizagem: primeiro, é necessário que haja uma experiência, é necessário que
“vejamos” algo, que entremos em contato com algo diferente de nós. Depois, é
                                                            
11 BARROS, Manoel de. in Olhar Diamantina /Clébio Maduro... [et al]; Concepção / Coordenação Fabrício

Fernandino. Belo Horizonte: DAC/UFMG, 2005. 88p.:il. p.05.


 
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necessário refletir e “relembrar” essa experiência, trazer novamente essa experiência


para que possamos então “reformular” essa experiência e construir o conhecimento,
transformando a nós mesmos e o meio. Em outras palavras, as nossas experiências
anteriores, a nossa história, servirão para que possamos chegar a algo diferente delas,
para que possamos construir algo.
Maturana faz em sua obra12 a diferença entre a mera repetição e a recursão das
experiências. Para o autor, não basta apenas repetir o que já se vivenciou, ou a
informação recebida, é preciso transformá-la, ela deve servir de base para se chegar a
algo novo, mas que tenha referências com o passado. O autor traz um exemplo
matemático para ilustrar sua posição, dizendo que a mera repetição implicaria em
dizer que √a=a’, portanto √a=a’, √a=a’... e assim indefinidamente. Já a recursão
partiria do mesmo ponto, mas não se limitaria a repeti-lo, implicando em construção
de novas expressões com a mesma lógica da primeira, assim √a=a’, √a’=a’’, √a’’=a’’’...
A escola e o professor devem, então, não apenas não cercear a
“imaginação” dos alunos, como devem incentivá-la, pois é a partir dela que os alunos
construirão conhecimento, de maneira crítica e autônoma, deixando de ser meros
repetidores de informações acumuladas.

Recursos para aprendizagem

Não se sabe quais recursos seriam mais aptos a despertarem a curiosidade


dos alunos e desencadear o processo de aprendizagem, fazendo com que eles
busquem construir de maneira crítica e autônoma seu conhecimento. Não existe uma

                                                            
12 MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Trad. José Fernando Campos

Fortes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. 98p.


 
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fórmula pronta para isso, existem alguns recursos mais ou menos eficazes para cada
turma, para cada aluno.
O levantamento de problemas reais para os quais se deve procurar soluções
pode ser um bom recurso para estimular os alunos. Permitir que os alunos trabalhem
um pouco com sua área de interesse também pode ajudar – por exemplo, um
trabalho que solicite ao aluno que realize um processo similar ao legislativo, criando
um ato normativo tratando de tema a sua escolha pode ser desenvolvido de forma
interessante no ensino jurídico.
Outro recurso que pode ajudar é a intertextualidade com obras literárias e
artísticas. Trazer esse tipo de obra pode estimular os alunos a saírem dos padrões de
ensino baseados na repetição. As obras de arte estimulam as impressões de cada um e
ajudam a compreender que é possível a coexistência de várias impressões e
expressões válidas sobre o mesmo objeto, sem que se excluam mutuamente e, o fato
de às vezes se excluírem não as invalida, apenas demonstra uma preferência de
interpretação.
Quando vemos um quadro de René Magritte (1898-1967), em que está
pintada a figura de um cachimbo, com os dizeres “Isto não é um cachimbo”, somos
levados a nos perguntar a que expressão nos ater: à figura do cachimbo, ou à
inscrição que diz não o ser. Tem-se nessa situação, ao menos duas possibilidades.
Pode-se aceitar que é sim um cachimbo, portanto a inscrição estaria deslocada. Mas
esse entendimento não invalida a interpretação de que não se trata de um cachimbo,
e sim de um “quadro” com a pintura de um cachimbo. Ambas as interpretações,
portanto, seriam válidas e podem ou não se excluírem, dependendo de nossas
preferências.
Diante de tal constatação, o professor não deve, exigindo “a” resposta
correta, reprimir as impressões e expressões do aluno, desde que coerentes com suas
referências.
 
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Deve-se despertar os alunos da posição de passividade que muitas vezes


assumem, pois, uma vez que iniciem um processo de aprendizagem de maneira
autônoma e crítica, exigirão uma mudança de postura dos professores que se
encaixam no sistema de repetição de padrões.
Quando ocorre a aprendizagem e o conhecimento é construído, ele não
apenas nos transforma, mas também persiste, finca raízes em nossa história e o
levaremos para nossas vivências futuras, assim como a poesia para Neruda:

Em cada época deram por morta a poesia, mas ela se vem


demonstrando vitalícia, ressuscita com grande intensidade, parece
ser eterna.
A poesia acompanhou os agonizantes e estancou as dores,
conduziu às vitórias, acompanhou os solitários, foi ardente como
fogo, ligeira e fresca como a neve, teve mãos, dedos e punhos,
teve brotos como a primavera: fincou raízes no coração do
homem.13

Retomando Maturana e Freire, o professor deve agir de maneira ética, sua


conduta deve se fundar no amor, o professor deve gostar de seu trabalho e de seus
alunos, a aula deve se desenvolver em um ambiente de harmonia e cooperação, onde
haja respeito mútuo, evitando-se a competição destrutiva e, valendo-nos de Bobbio,
o professor deve cultivar a virtude da serenidade, contrária ao despotismo e
arrogância, a virtude da mittezza:

A mittezza é, antes de tudo, o contrário da arrogância, entendida


como uma opinião exagerada de seus próprios méritos que
justifica o despotismo.14

                                                            
13 NERUDA, Pablo. Presente de um Poeta. Trad. Thiago de Mello. Cotia, SP: Vergara & Riba Editoras,
2004. 100p. p. 80.
14 BOBBIO, Norberto. Elogio da Mittezza. In BOBBIO, Norberto. O final da longa estrada:considerações

sobre a moral e as virtudes. Trad.: Lea Novaes. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2005. p.68.
 
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Por fim, muitas vezes, os professores, vivenciam enquanto alunos um


sistema de ensino baseado em repetição de padrões pré-estabelecidos que pouco
colaboraram para o desenvolvimento de um aprendizado crítico e autônomo.
Principalmente por isso, não parece uma tarefa fácil trazer novas formas e novos
estímulos para as aulas, de modo a iniciar um processo de aprendizagem crítica e
autônoma com os alunos. Não se pode, porém, usar as experiências como alunos
para justificar a inadequação como professores. É preciso que, acima de tudo, se
reconheça os alunos como seres com quem se pode estabelecer um diálogo capaz de
originar conhecimento para todos os envolvidos, inclusive professores.

REFERÊNCIAS

BARROS, Manoel de. in Olhar Diamantina /Clébio Maduro... [et al]; Concepção /
Coordenação Fabrício Fernandino. Belo Horizonte: DAC/UFMG, 2005. 88p.:il.

BOBBIO, Norberto. Elogio da Mittezza. In BOBBIO, Norberto. O final da longa


estrada:considerações sobre a moral e as virtudes. Trad.: Lea Novaes. Rio de Janeiro: Tempo
brasileiro, 2005.

CAPELLA, Juan Ramón. El aprendizaje del aprendizaje. Madrid: Trotta, 1995.FREIRE,


Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
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EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS E PERSPECTIVAS


DA IMPLANTAÇÃO DE UMA PAIDEIA JURÍDICA NA ESCOLA

Angélica Barroso Bastos1


Valéria Cássia Dell'Isola2

RESUMO

O termo "Paideia Jurídica" originou-se da concepção de Paideia grega, na qual a


formação da pessoa deve ser realizada de modo pleno, contemplando a formação
moral, constituída através de uma consciência jurídica, que somente poderá se
realizar através da educação. Logo, a educação deve ser analisada à luz da formação
jurídica básica, uma vez que o conceito de cidadania engloba não somente “votar e
ser votado”, mas cumprir com deveres e efetivar direitos. Porém, a grande parte dos
cidadãos brasileiros desconhece por completo os direitos e deveres dos quais é
sujeito. Dada a exigibilidade de conhecimento jurídico básico representada
principalmente pela presunção absoluta de conhecimento da lei (art. 3º da LICC), e
ainda, por ser um direito humano, a educação jurídica é algo latente e de suma
importância, principalmente como objeto de estudo e pesquisa, já que uma de suas
maiores dificuldades é o fato de como será sua efetiva implementação. Ademais, a
Lei Estadual nº. 15.476/2005 determina a implantação de disciplinas de Direitos
Humanos na escolas, de modo a construir a cidadania, que será desenvolvida na
forma interdisciplinar. Nós juristas, em transdisciplinariedade com a Pedagogia
visamos atuar como agentes multiplicadores no processo de formação do docente,
para que este adquira conhecimentos acerca dos Direitos Humanos, e assim possa
buscar meios pedagógicos para desenvolver seu trabalho de classe, formando os
futuros cidadãos. As autoras do presente possuem pesquisas e trabalhos de campo
desenvolvidos nessa temática que visam à formação jurídica básica como efetivadora
da democracia. Deste modo, o presente trabalho representa, acima de tudo, o
compromisso com a educação para a cidadania, na qual nossa contribuição para a
                                                            
1 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto; Pós-graduanda em Ciências
Penais pela Uniderp; Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2 Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Especialista em
Direito Público pela ANAMAGES.
 
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concretização deste objetivo social é a informação/formação dos profissionais da


educação para este modelo cuja construção é dever do Estado e de todos: a
cidadania-ética.

Palavras-chave: Educação, Cidadania, Direito.


Parole chiave: Educazione, Cittadinanza, Diritto.

SUMÁRIO

Resumo; 1- Introdução; 2- Paideia Grega / Paideia Jurídica; 3- A educação no


Direito Constitucional; 3.1- A educação ao longo das constituções brasileiras; 3.2- A
efetivação da educação como um direito constitucional; 4- O Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos; 5- O Estatuto da Criança e do Adolescente e a
necessidade de ações para efetivação da Paideia Jurídica; 6- A Paideia Jurídica na
escola; 7- Conclusão.

1- Introdução

A educação em direitos humanos é tema recorrente em pesquisas e estudos,


vez que representa um elemento essencial para a inserção plena do cidadão no
mundo. Entretanto, esse tema não pode abordar somente a educação em nível
escolar, mas em todos os seus sentidos, visto que os processos educativos
acompanham a pessoa em toda a sua vida; desde o nascimento até sua morte a
pessoa está em constante aprendizado e aperfeiçoamento.
Por se tratar de tema de relevante importância é que a educação vem sendo
tratada desde a Grécia, de onde temos os primeiros relatos, a cerca de 800 anos antes
de Cristo, através do filósofo Homero, que tratava da educação como uma virtude do
ser humano, valorizada pelo heroísmo, bravura, honra e coragem, de modo que a
educação baseava-se na ginástica e na música (valorização do corpo e da alma).

 
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Por volta de 450 a.C. na Grécia, um grupo de mestres e filósofos itinerantes


revolucionou a forma de pensar a educação. Eles se autodenominavam sofistas e
ganhavam a vida ensinando, educando os cidadãos gregos para que estes pudessem
participar dos processos democráticos que iniciavam-se naquela época e, para isto era
de suma importância que eles dominassem a retórica, ou seja, a arte de falar bem.
Todavia, foi um filósofo deste período chamado Sócrates, que se
diferenciava dos demais sofistas, vez que não cobrava por suas exposições e também
porque não se apresentava como uma pessoa muito instruída3 que desempenhou um
papel essencial na história da educação. Sócrates defendia uma idéia de educação que
não pretendia formar apenas um homem, mas também um cidadão livre e virtuoso,
baseado na razão humana, que seria o alicerce seguro para os conhecimentos.

2- Paideia Grega / Paideia Jurídica

Dado este momento histórico, temos o surgimento do termo Paideia,


entendido como a formação da criança não só para a vida adulta, mas para as mais
diversas situações da sociedade, já que sua educação seria essencialmente ética,
voltada para a alma humana.
A Paideia Jurídica seria assim, a formação da criança não só baseada na
educação formal, mas também voltada para a sua formação moral, para que essa
criança torne-se, no futuro, um cidadão livre, ético e consciente de seus direitos e
deveres.
Essa idéia de formação completa dos educandos tem em muito influenciado
as mudanças educacionais brasileiras. Como exemplos podemos citar a Lei de
                                                            
3 Para ilustrar esse momento vale a pena lembrarmos de sua célebre frase, que o marcou por toda a
eternidade, extraída da Apologia de Sócrates escrita por Platão: “Só sei que nada sei”.
 
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Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº. 9394/96) e, mais recentemente, o


Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2003).
Da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) devemos
destacar os artigos 1º (caput) e 2º:

“Art. 1º: A educação abrange os processos formativos que se


desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas
instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações
da sociedade civil e nas manifestações culturais.

Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos


princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por
finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Tais artigos abordam esta formação plena do educando, que não deve
envolver somente a educação escolar e formal, mas também afirmar o exercício da
cidadania como uma das finalidades da educação.
Antes, porém, de adentrarmos em minúcias ao Plano Nacional de
Educação, passemos a uma abordagem da constitucionalidade da esfera da educação.

3- A Educação no Direito Constitucional

A educação sempre fora objeto de preocupação da lei, seja no plano


nacional ou no plano internacional. Antes mesmo de existir um constitucionalismo
preocupado efetivamente com a educação no Brasil, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, veio a abarcar em seu texto legal, os seguintes termos:

Artigo 26:
I – Todo o homem tem direito à instrução. A instrução será
gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A
 
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instrução elementar será obrigatória. A instrução técnica


profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior,
esta baseada no mérito.
II – A instrução será orientada no sentido do pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento
do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades
fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a
tolerância, a amizade entre todas as Nações Unidas em prol da
manutenção da paz.

Dito isto, voltemos ao conceito inicial de paideia: educar o cidadão no


espírito das melhores leis. Desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem já
se preocupava com uma educação pautada no “fortalecimento do respeito pelos
direitos do homem e pelas liberdades fundamentais”. Portanto, a educação não se
deve restringir ao letramento ou às resoluções da aritmética. A educação deve ser
completa, ética. E esta vem sendo aclamada de forma cada vez mais latente no
decorrer da história.

3.1 – A educação ao longo das Constituições Brasileiras:

A educação teve seu grau de importância sendo destacado ao longo da


história do Direito Constitucional Brasileiro. Desde as Constituições mais antigas, a
tentativa fora de se efetivar a educação como um direito fundamental aos indivíduos.
Cumpre ressaltar que nas primeiras Constituições, quais sejam, as de 1824 e
1891, as referências à educação são bastante escassas. A presença de artigos
relacionados com o tema cresce gradativamente nas Constituições posteriores, quais
sejam, as de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988.

 
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A Constituição de 1934 foi a primeira a abordar a educação de forma mais


significativa, ao esboçar um Plano Nacional de Educação, bem como trazer as
competências do Conselho Nacional de Educação.
A Constituição de 1937 não trouxe muitas novidades, porém, incluiu
valores cívicos e delimitou competências para legislar sobre o assunto.
Em 1946, cria-se, com a nova Constituição, a competência dos Estados para
cuidarem do ensino de sua territorialidade, e, cabendo à União, cuidar das diretrizes e
bases da educação.
O texto constitucional de 1967 remete-se de forma inovadora, às bolsas de
estudo a serem oferecidas pelo sistema de ensino particular.
Atualmente, com a Constituição de 1988, o direito à educação encontra-se,
principalmente abarcado na Constituição da República de 1988 em seus artigos 6º e
205 a 214, os quais se esmiuçarão a seguir.

3.2 – A efetivação da educação como um direito constitucional:

No artigo 6º, temos o rol dos direitos sociais, que são, todavia, direitos e
garantias fundamentais do homem. São liberdades positivas, de observância
obrigatória pelo Estado Democrático de Direito, o qual a Constituição traz em seu
bojo o consagrado direito à educação.
O artigo 205 da Constituição elucida ainda mais a necessidade da Paideia
Jurídica na escola. Isto porque, conforme se pode depreender:

Art. 205: A educação, direito de todos e dever do Estado e da


família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu

 
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preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o


trabalho. (grifo nosso)

Primeiramente, analisemos a expressão “pleno desenvolvimento da pessoa”;


- isto nada mais é do que a paideia grega, onde, a educação, na Grécia Antiga,
englobava a construção da ética como um todo; daemonia; auto-realização da razão;
preparar o indivíduo através de um produto da educação ética - .
Somente com o pleno desenvolvimento da pessoa, pode-se falar em
cidadania. O que é cidadania? Há tempos, o conceito de meramente “votar e ser
votado”, se tornara retrógrado. Atualmente, apenas o exercício de tais direitos não
torna uma pessoa cidadã. Ser cidadão, no ponto de vista do Estado Democrático de
Direito é buscar e efetivar os seus direitos. Para tanto, é preciso conhecê-los.
Cidadania, portanto, envolve primeiramente o conhecimento dos direitos
humanos básicos, para que, assim, o indivíduo possa ter instrumentalidade para
pleitear os direitos.
A maioria da população desconhece por completo os direitos humanos.
Muitos sequer abriram o texto constitucional alguma vez ao longo de suas vidas. Mas
se os ditames constitucionais são para todos, como se pode afirmar que o poder
emana do povo se a população não possui conhecimento acerca do exercício desse
poder?
Exemplificando, temos que, plebiscito, referendo, ação popular e iniciativa
popular, que são os direitos mais básicos, instrumentos de efetivação dos exercícios
direto do poder pelo povo, são completamente desconhecidos pela maior parte da
população. Conhecimento este, restrito a apenas uma pequena parcela de cidadãos,
quais sejam, os mais letrados ou os juristas, que adquirem este conhecimento nas
cadeiras da universidade.

 
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Direitos basilares como estes e vários outros não podem ser restritos aos
estudiosos do Direito. Se a educação se preocupa com a construção integral da
cidadania, deve se preocupar em fornecer esse conhecimento para a população desde
a pré-escola.
Um exemplo que merece ser destacado para exemplificar a incoerência
entre a educação positivada e a educação prática é a figura do homem médio.
Segundo doutrinas do Direito, o homem médio é aquele que, dada uma situação
jurídica, possui o discernimento de decidir pela melhor atitude, que é a atitude
juridicamente correta. Ocorre que é humanamente impossível que este homem, que
nunca teve formação jurídica básica, tome a melhor decisão, e que esta, seja a decisão
juridicamente válida. Como ponderar direitos se o chamado homem médio não
possui um padrão para ser levado em consideração, visto que não tem conhecimento
sobre os direitos básicos?
Não é justo cobrar tal incumbência da população, se a cidadania que lhe é
garantida positivamente não o é na prática. Fazer valer o direito constitucional à
educação que envolve a formação ética, é, antes de tudo, o exercício pleno do Estado
Democrático de Direito.
Um outro ponto trazido pelo artigo 205 da Constituição da República é a
qualificação para o trabalho. Tal qualificação é também objeto da Paideia Jurídica.
Isto porque, os estudantes, além da obrigatoriedade em adquirirem conhecimento
teórico para o exercício das profissões, devem ainda, conhecer do mercado de
trabalho, das condições e da legalidade que envolve os direitos básicos do exercício
de uma profissão.
Em um trabalho de campo desenvolvido em uma escola municipal da rede
de ensino de Belo Horizonte, as autoras do presente artigo puderam trabalhar com
adolescentes da faixa etária de 12 a 17 anos, onde, percebeu-se que, cem por cento
dos participantes desconheciam a legalidade acerca do trabalho do menor aprendiz.
 
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Muitos sequer teriam ouvido falar em um Estatuto da Criança e do Adolescente que


permite aos jovens entre 14 e 18 anos incompletos trabalharem de forma legal, em
um trabalho que acrescente à sua formação profissional e não prejudique sua vida
escolar.
Esclarecer sobre direitos básicos desde a mais tenra idade pode mudar o
rumo da vida de muitos jovens que, na maioria das vezes, não buscam seus direitos
por total desconhecimento. Na medida em que a escola trabalhar as questões de
direitos humanos básicos, a consciência cidadã será formada, e, por conseguinte, ao
almejado comportamento ético, onde, além de o cidadão se ver como um sujeito de
direitos, ele também os reconhecerá no outro.

4- O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos:

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos foi instituído em


2003, e teve sua primeira versão lançada em 2006. Foi apoiado em documentos
nacionais e internacionais de proteção dos Direitos Humanos e na Década da
Educação em Direitos Humanos das Nações Unidas (1995 a 2004), inserindo o Brasil
no cenário mundial das políticas públicas de proteção e garantia desses direitos. Por
reconhecer o caráter transversal da educação, o plano está dividido em cinco eixos,
os quais foram considerados de maior relevância, quais sejam: educação básica,
educação superior, educação não-formal, educação dos profissionais dos sistemas de
justiça e segurança e educação e mídia.
Os direitos humanos têm como valor primordial o respeito à diversidade e à
dignidade humana e, por esta razão, o processo educacional é essencial, pois para
entendermos e exigirmos os nossos direitos nós precisamos, acima de tudo, conhecer
como funcionam e se aplicam esses direitos. A educação, deste modo, possui como
 
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premissa apresentar e contextualizar a origem das diferentes dimensões e aplicações


dos direitos humanos na sociedade, respeitando o pluralismo, as diversidades
culturais, regionais, sociais e educacionais.
Assim, a educação em direitos humanos é constituída por uma série de
métodos e processos utilizados para a discussão e a divulgação dos fundamentos e
preceitos desses direitos, de modo que a comunidade, a escola e a empresa, de
maneira espontânea (já que isto se tornaria natural da moral humana) sintam a
necessidade da divulgação e conscientização sobre os direitos humanos ou, de outra
forma, da tão falada “educação para a cidadania”.
Porém, na maioria das vezes em que tratamos da cidadania associamos
somente ao direito de votar e ser votado, como dito anteriormente, esquecendo de
seu papel essencial, que é ser a condição social que confere a uma pessoa a
possibilidade de usufruir dos direitos que lhe permite participar da vida política e
social daquela comunidade a qual é pertencente.
Porém, a maior dificuldade está em como começar, como aplicar, nas
situações cotidianas, os preceitos fundamentais de direitos humanos? Aliás, como
exigir que tais premissas sejam aplicadas na prática escolar e social, se o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos carece de força normativa?
É aqui que percebemos a real necessidade de aplicação e implementação de
uma Paideia Jurídica, na qual os indivíduos necessitam de conscientizar-se sobre seus
direitos e conhecer quais são os mecanismos jurídicos utilizados para garanti-los. O
direito não deve ser visto como algo distante e inatingível pelos cidadãos, tratável
apenas por juristas, mas como algo seu “por direito”, conquistado por muitas lutas e
reivindicações.
Sob este prisma, vele destacar o pensamento de Mariá Brochado sobre o
tema:

 
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Essa percepção sobre o fenômeno jurídico tem de ser transmitida,


ensinada aos indivíduos, que há pouco mais de dois séculos
experimentam o Estado de Direito, sem ter a oportunidade de
(re)pensar o direito em termos tais: como “direito de direitos”. A
ordem jurídica é uma conquista libertária; não faz sentido nos
tornarmos “reféns” dela, por ignorância quanto aos seus
princípios, suas manifestações, sua indelével finalidade eunômica.4

No entanto, como vimos, o Plano Nacional de Educação em Direitos


Humanos não define como as atuações se darão na sociedade, mas apenas define
diretrizes para sua aplicação. Por este motivo é que devemos nos valer de
mecanismos legais já existente e que podem auxiliar, de forma subsidiária ou direta,
na efetividade do cumprimento e garantia desses direitos. Isto pode acontecer através
da implementação de certas políticas públicas do Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei nº. 8069/90) e de outras legislações como acima citadas.

5- O Estatuto da Criança e do Adolescente e a necessidade de ações para


efetivação da Paideia Jurídica

No que se refere ao ECA, mister se faz destacarmos os artigos 3º e 4º que


ilustram claramente a importância de uma educação formadora plena para as crianças
e adolescentes, ainda mais que estes encontram-se em condição peculiar de pessoas
em desenvolvimento, devendo ter uma educação especial.

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos


fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da

                                                            
4 BROCHADO, Mariá. Pedagogia jurídica para o cidadão: formação da consciência jurídica a partir
de uma compreensão ética do Direito. in Revista da Faculdade de Direito. Universidade Federal de Minas
Gerais, v. 48, 2006. p. 186-187. 

 
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proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei


ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim
de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, espiritual e
social, em condições de liberdade e de dignidade.

Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em


geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade,
a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:


a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de
relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais
públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude. (Grifamos)

Dessa forma, a formação de um ser humano ético-moral passa pela


construção de um desenvolvimento humano que se dê em condições de dignidade,
mas para que isso aconteça é necessário instrumentalizar ações para que se possa
atuar enquanto projeto pedagógico educacional nesse sentido. Assim, não basta mera
sugestão é preciso uma política de comprometimento ao ponto de se ter uma ação
com responsabilização e ao final formação e conscientização de deveres e direitos a
serem exercidos, sempre respeitando os sujeitos envolvidos no processo.

6- A Paideia Jurídica na escola

O grande desafio da Paideia Jurídica é como implementar uma educação em


direitos humanos nas escolas. Os juristas multiplicadores desta visão devem buscar
 
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uma transdisciplinaridade com a pedagogia, a psicologia e vários outros ramos que


atuam na educação que possuam conhecimento pedagógico necessário para a
implementação desta tarefa.
Para tanto, é necessário uma preparação dos docentes para que,
primeiramente, os mesmos adquiram conhecimento sobre a temática de direitos
humanos, e, após essa preparação, que eles possam desenvolver os conteúdos de
maneira interdisciplinar.
Precípuo salientar os entendimentos de Adla Betsaida, Lucas Carvalho e
Natália Freitas:

Argumentamos aqui sobre a necessidade de uma educação em


direitos humanos para docentes e estudantes como um dos
esforços para a garantia de uma sociedade pacífica. Entendemos
que o conhecimento jurídico, acompanhado de uma noção desse
saber pode proporcionar o empoderamento do indivíduo como
cidadão de direitos, e ainda que a escola possa responder como
um espaço privilegiado para a elaboração de projetos em que esses
conhecimentos ganhem sentido nas vidas dos indivíduos –
educando, pais e membros da comunidade escolar.5

A Lei Estadual No. 15.476/2005 determina a inclusão de conteúdos


referentes à cidadania nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio em
Minas Gerais. Diz a referida lei, nos seguintes termos:

Art.1° – As escolas de ensino fundamental e médio


integrantes do Sistema Estadual de Educação incluirão em seu
plano curricular conteúdos e atividades relativos à cidadania, a
serem desenvolvidos de forma interdisciplinar.

                                                            
5 BROCHADO, Mariá e outros (Org.) Educação em Direitos Humanos – Uma contribuição Mineira. Belo
Horizonte: Ed. UFMG: PROEX, 2009, p.43
 
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Art. 2° – Integram os conteúdos a que se refere o art. 1° os


seguintes temas:
I – direitos humanos, compreendendo:
a) direitos e garantias fundamentais;
b) direitos da criança e do adolescente;
c) direitos políticos e sociais.
II – noções de direito constitucional e eleitoral;
III – organização político-administrativa dos entes
federados;
IV – (Vetado);
V – educação ambiental;
VI – direitos do consumidor;
VII – direitos do trabalhador;
VIII – formas de acesso do cidadão à justiça.

Em cada disciplina é possível se estudar os direitos humanos, adequando os


contextos a cada conteúdo. Como exemplo, podemos dizer que nas aulas de
ciências/biologia, pode-se estudar a educação ambiental (Art. 2º., V da Lei 15.476);
os direitos do trabalhador, bem como os direitos políticos e sociais podem ser
trabalhados em estudos sociais/história (Art. 2º., I c, VII da Lei 15.476); a
organização político-administrativa dos entes federados pode ser contextualizada
em geografia (Art. 2º., III da Lei 15.476); a literatura poder-se-ia incumbir dos
direitos das crianças e adolescentes (Art. 2º. I b da Lei 15.46), correlacionando
diferentes leituras que tratam da temática, dentre várias outras formas de abordagem.
Desta forma, a Paideia Jurídica estaria incrustada nos conteúdos que já são
lecionados, sem alterar significativamente o sistema educacional. A inclusão desses
conteúdos deve ser de forma natural, despertando no pequeno cidadão o
conhecimento dos direitos que lhe são basilares.
Deve-se buscar ministrar o conhecimento através da maiêutica, despertando
no aluno o sentimento de cidadania, através de suas próprias pré-compreensões.

 
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Assim, intercalando-se aulas expositivas dentro dos conteúdos já existentes com as


experiências de cada um, a compreensão e a formação do aluno tende a ser mais
frutífera.
É de solar importância, pois, que os professores estejam capacitados para tal
incumbência. Não faria sentido colocar juristas em salas de aula para lecionar para os
alunos da rede de ensino! Então, a aplicação desta lei somente é possível através dos
próprios professores, que, atualizando-se sempre, buscarão este padrão de ensino a
ser alcançado a médio prazo.

7- Conclusão

Face exposto alhures, conclui-se que, por ser uma questão social tratada
desde sempre, a educação merece atenção especial. E sendo que a educação não
engloba somente o ensino regular, a formação deve ser buscada em todas as searas da
vida do sujeito.
Educar para a cidadania é muito mais do que uma aprovação no exame
vestibular. Deve-se buscar a construção ética do indivíduo enquanto sujeito de
direitos.
Para tanto, além do conhecimento acerca de direitos humanos básicos, o
professor deve se valer da dialética, utilizando de técnicas de interdiscursividade para
fazer o aluno apreender o conhecimento. Desta forma, poderá o professor utilizar-se
de casos concretos em sala de aula para ilustrar os direitos humanos a serem
lecionados, e, a partir daí, ministrar os conteúdos, como foi dito no item anterior.
A problemática da educação não pode ser perpetuada como instrumento de
verborragia de final de discurso político, em que se discutem diversos problemas
sociais do Brasil, e por fim, encerra-se dizendo que o problema do país está na
 
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educação. Não se deve, portanto, pontuar-se desta forma sem se planejar o que deve
ser feito para reverter esse quadro.
A Paideia Jurídica vem como uma das formas de auxiliar na construção ética
do cidadão. Logicamente, existe o papel da família e da sociedade, mas a escola ainda
é um dos maiores palcos para o desenvolvimento dessa consciência ética.
No dizer de Paulo Freire, por meio da educação, os sujeitos podem se
constituir senhores de suas vidas, autores de sua história.
Cabe, portanto, ao Estado, fomentar o desenvolvimento da educação em
direitos humanos básicos, a qual, vencendo estes desafios, alcançará a almejada
paideia e formará verdadeiros cidadãos éticos.

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LENÇO NO PESCOÇO, FUZIL NO BOLSO:


UMA ANÁLISE DA CRIMINALIDADE E DO DIREITO PENAL A
PARTIR DE MALANDROS CANTADOS NA MÚSICA POPULAR
BRASILEIRA

Jéssica Oníria Ferreira de Freitas1

RESUMO

Na presente pesquisa empreende-se uma análise de fenômenos criminais a


partir de canções da Música Popular Brasileira, sobretudo os sambas que retratam o
personagem do malandro. Parte-se da hipótese de que as canções constituem
produção discursiva que se encontra mais próxima das transformações em curso na
sociedade, sendo capaz de captar vozes, imagens e percepções que escapam ao
Direito, mas que são relevantes para sua compreensão.
O malandro, por sua vez, é figura representativa que habita o imaginário
popular brasileiro, sendo retratado de diferentes formas em diferentes épocas,
estando inserida, portanto, em um contexto histórico, político, social e,também,
jurídico.
O objetivo da pesquisa é analisar em que medida a figura do malandro,
presente nas canções brasileiras, pode refletir a configuração do crime e do Direito
Penal de determinada época. Outrossim, por meio das mudanças por que passou a
conformação deste personagem, é possível constatar alterações históricas da
criminalidade e sua repercussão no Direito Penal brasileiro.
Procurou-se, a princípio, fundamentar as relações propostas entre a Música
Popular Brasileira e o Direito, no intuito de revelar as inter-relações entre esses
campos e a possibilidade de se estudar o tema jurídico pretendido através das
canções. Analisou-se, na seqüência, a figura do malandro, explicitando a relevância
do estudo deste personagem, bem como sua configuração e representatividade de
fenômenos jurídico-criminais em dois contextos: entre as décadas de 20 e 40; e a
partir da década de 70.

                                                            
1 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. 

 
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A relevância deste trabalho emerge da necessidade de interseção do Direito


com outros campos do saber. Pretende-se caminhar contrariamente a uma visão
tecnocrática do Direito, buscando-o em fenômenos comumente tidos como
irrelevantes para o meio jurídico. Assim, acredita-se contribuir para a aproximação do
Dreito com a realidade social, tornando-o capaz de responder de maneira mais
adequada aos anseios e necessidades da comunidade para a qual se volta.

Palavras-chave: criminalidade; música popular brasileira; malandro.


Keywords: criminality; brazilian popular music; “malandro”.

1 - INTRODUÇÃO

Ao discorrer sobre a ideologia dos discursos dos sistemas penais, Eugenio


Raúl Zaffaroni chama a atenção para o papel da formação dos operadores dos órgãos
judiciais. Constata o penalista uma densa massificação do ensino, acarretada, dentre
outros fatores, pela redução da bibliografia, que resulta em "uma adestrada
incapacidade para vincular fenômenos e, em geral, uma degradação tecnocrática do
direito que, escassamente, supera o nível exegético de preparação de empregados
com título.” 2
Não dista esta situação da realidade vivenciada hoje em nosso país. A
proliferação dos cursos de Direito, ocasionada, em grande parte, pelas atrativas
opções de empregos e salários a que podem ter acesso bacharéis em tal curso,
tornam-no cada vez mais técnico e profissionalizante. As interseções com outros
campos do saber, outras ciências, são gradativamente marginalizadas, relegadas à
inutilidade de tudo o quanto não é manifestamente jurídico. Prende-se, assim, ao
domínio de uma suposta utilidade, voltando a produção bibliográfica, muitas vezes,
às exigências do vantajoso mercado de obras jurídicas.
                                                            
2 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas:a perda da legitimidade do sistema penal. 5 ed.

Rio de Janeiro: Revan, 2001.p.133. 


 
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Seguiremos, neste trabalho, um caminho diverso. O que ora afirmamos é


que as leis não se bastam, e que o Direito não é construído apenas por textos
normativos, doutrinários e jurisprudenciais. Estudar Direito exige "precisão e rigor
científico”, afirma Tércio Sampaio Ferraz Jr., "mas também abertura para o humano,
para a história, para o social”3. Assim, é sempre possível buscar novas fontes, novas
idéias, novas relações, ora redescobrindo algo já existente, ora buscando o Direito
onde menos se espera encontrá-lo. E, neste misto de crimes e notas musicais,
esperamos, através deste, clarear fenômenos e semear idéias, contribuindo, assim,
para a compreensão do Direito em um contexto mais amplo, através de sua
percepção em fenômenos comumente tidos como irrelevantes para o meio jurídico.

2- “POR QUE CANTAR?”

Em obra sobre o Novo Direito Penal, datada de 1972, Roberto Lyra tece
interessantes considerações acerca da configuração deste ramo jurídico. Em palavras
quase poéticas, ressalta o “conteúdo humano”, a “palpitação social” e a “intensidade
dos dramas” com que trabalham os penalistas.
“O Direito Penal visita museus e arquivos, freqüenta lançamentos e
inaugurações. Preocupa filosofias, religiões, ciências, artes, técnicas, serviços”4,
assevera o jurista. “Perpassa, por todos os casos e fases, a majestade da dor humana
que qualquer um pode decifrar nas legendas da letra, do som, da imagem” 5.

                                                            
3 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2003.p.22 
4 LYRA, Roberto. Nôvo Direito Penal. Vol.1. Rio de Janeiro: Editora Borsoi, 1972.p.20 
5 Idem. 

 
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Verifica-se, assim, a importância de dados sociais, culturais, artísticos, dentre


outras manifestações que provêm da sociedade, para a construção e compreensão da
ciência penal. Um Direito Penal que se funda na dignidade da pessoa humana não
pode afastar-se de tudo quanto circunda o homem, reduzindo-o a expressões
pronominais. Pelo contrário, deve "tatear o fremir, o crispar e o gemer do homem
dentro da sociedade” 6 posto que desta extrai seu objeto de estudo, e a ela voltam-se
seus fins. Aliás, pertinente, neste sentido, a lição de Eugenio Raúl Zaffaroni:

O saber penal não se nutre unicamente do conhecimento da lei


penal, porque ninguém pode interpretar o objeto que uma ordem
do saber põe dentro do seu horizonte de projeção, sem valer-se de
dados e sem submeter-se a condicionamentos de seu saber, os
quais provêm de âmbitos que não só estão fora desses limites,
como também dele se encontram inegavelmente afastados.7

Desponta, então, a relevância das mais variadas formas de expressão


humana para a o alcance dos horizontes de projeção do saber penal. Da análise dos
textos legais e doutrinários escapa, muitas vezes, o sentido e o alcance da norma, bem
como a percepção da sociedade acerca do sistema penal. É válido ressaltar que, nem
sempre, a produção doutrinária de determinada época é atenta ao contexto histórico
vivenciado. Em pesquisa publicada na Revista Brasileira de Ciências Criminais, o
historiador Carlos Henrique Aguiar Serra nos remete a essa conclusão. Afirma que a
produção jurídico-penal das principais revistas do período estudado “descola-se da
reflexão acerca da realidade social, envolvendo-se pouco com as questões mais
cadentes do acontecer social.”8.

                                                            
6 Idem. P.56. 
7 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. V.1 –

Parte Geral. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.p.113. 
8 SERRA, Carlos Henrique. Revistas jurídicas e o debate ideológico. In Revista Brasileira de Ciências

Criminais. Ano 16, n. 72, maio-junho de 2008.p.207-252. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2008. p.209. 
 
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Dessa forma, não se pode desprezar a importância das manifestações


artísticas para o estudo do Direito. Sobre as relações entre estes dois campos, ensina
Mônica Sette Lopes:
O direito tem uma eficácia criadora. A vida que ele se apropria é a
mesma que prende o ser humano ao mundo, mas ele a reinterpreta
e traduz seus movimentos para a previsão de padrões de
comportamento que indicam o modo de ser próprio.
A arte também reinventa e reinterpreta a humanidade. Entretanto
a traduz numa linguagem diversa, variegada, livre, que se abre para
a compreensão, num círculo, a partir do foco do observador.9

A música, por sua vez, constitui elemento relevante para a compreensão da


sociedade. Se a arte imita a vida, ou a vida que imita a arte, não é possível definir. O
certo é que ela revela a vida, o homem, com certa fluidez e sensibilidade que falta ao
Direito. Por isso, Direito e Música podem caminhar juntos: se nas letras das canções
são retratados temas relativos ao objeto de estudo da ciência jurídica, pode o jurista
buscar, através destas músicas, compreender o Direito, a forma como ele atua na
sociedade e a visão que esta possui acerca dos fenômenos jurídicos.
Dantas10, discorrendo sobre o discurso poético, o apresenta como resultado
de uma tensão dialética entre a linguagem e a realidade. O poeta popular - a quem o
autor equipara os compositores populares - assume relevância nesse contexto, uma
vez que "acolhe fatos e pessoas muitas vezes esquecidos pela história oficial” 11.
Abordam, assim, "a história que não acontece", das possibilidades, dando voz a
personagens marginalizados, tais como prostitutas, vadios, bêbados, homossexuais,
etc.
Empreenderemos, neste trabalho, uma análise fundada nas letras das
canções, partindo da idéia de que estas estão mais próximas das transformações em
                                                            
9 LOPES, Mônica Sette. Uma Metáfora: Música e Direito. São Paulo: LTr, 2006. p.147. 
10DANTAS, José Maria de Souza. O canto e a canção: MPB. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico,
1988.p.20. 
11 Idem. 

 
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curso na sociedade. Focaremo-nos no papel de destaque assumido, neste sentido,


pela música popular brasileira. Sua presença forte e constante permite que, através
dela, conheça-se muito do passado e do presente do Brasil. Aliás, é de se ressaltar que
esta forma de produção discursiva, por sua maior difusão e permeabilidade, é capaz
de captar vozes, imagens e percepções que escapam ao Direito, mas que são
relevantes para sua formação, bem como para seu estudo.
Conforme assevera Dantas12, a música popular brasileira investiga o real,
permitindo um considerável acréscimo de conhecimento e de vivência por meio da
palavra. Pertinente, então, a reflexão desenvolvida por Helena Bomeny:

A música, a meu ver, expressão maior e mais pura da manifestação


da cultura, será sempre, no caso do Brasil – país de larga, bem-
sucedida e reconhecida tradição musical -, reveladora dos instantes
de afirmação de nossa identidade como nação, como grupo ou
como povo. (...). O que escapa dos livros, o que não conseguimos
capturar com nossos artifícios racionais mais herméticos, desliza
com desenvoltura e pontaria certeira nas notas dos compositores
antenados com o mundo cotidiano, os tão propalados processos
sociais, com os arranjos (e desarranjos políticos) e, por fim, e mais
importante, com o movimento afetivo-emocional das pessoas
comuns.13

Arremata a autora que “a música tem esse dom de transporte sem fronteira,
sem censura, sem constrangimento”14, revelando, como nas lendas, muita coisa
verdadeira acerca da sociedade que reflete.
O samba, por sua vez, constitui documento representativo de determinada
época. Ensina Cláudia Matos que as letras de samba por muito tempo constituíram o
principal, senão o único documento verbal que as classes populares do Rio de Janeiro
                                                            
12 Idem. 
13 BOMENY, Helena. Os dezessete e setecentos. In Decantando a República. – inventário histórico e político

da canção popular moderna brasileira. Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling e José Eisenberg
(org.). V.2: Retrato em Branco e Preto da Nação Brasileira Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo:
Fundação Perseu Abrano, 2004 P.135. 
14 Idem. 

 
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produziam autônoma e espontaneamente. Através delas, então, vários segmentos da


população habitualmente relegados ao silêncio histórico impuseram sua linguagem e
sua mensagem a ouvidos freqüentemente cerrados à voz do povo15. Possuía, assim,
um papel de agente unificador e mantenedor da identidade sócio-cultural, em especial
da comunidade negro-proletária.
Foi através do samba, portanto, que o malandro – representando sobretudo
os negros e proletários urbanos – fez-se conhecer pelas classes dominantes. O samba
malandro empreende um papel de relativização de alegrias e tristeza, no qual a ficção
aproxima-se da crônica social, apresentando íntimas relações com o contexto
vivenciado.
Restringiremos nosso estudo, assim, a essa figura que habita o imaginário
do povo brasileiro, e cuja presença faz-se constante em diversas canções: o malandro.
Este personagem é retratado de diferentes formas em diferentes épocas, o que
evidencia sua relação com o momento histórico em que é apresentado. Emerge,
então, como representativo de determinado contexto, especialmente quando
associado à música popular. Por isso, a partir do estudo deste conjunto – canções
que abordam o tema da malandragem, em especial dos “sambas malandros” –
pretendemos trazer à tona alguns pontos relativos ao Direito Penal brasileiro,
revelando, assim, a relação deste com a música popular brasileira.

3- “AQUELA TAL MALANDRAGEM...”

Chapéu de lado, tamanco arrastando, lenço no pescoço, navalha no bolso. A descrição


apresentada por Wilson Batista, na canção Lenço no Pescoço, somada ao terno branco e
                                                            
15 MATOS, Cláudia. Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1982. p.23. 


 
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sapato bicolor refletem o estereótipo do malandro que habita o imaginário nacional.


Este personagem perpassa toda a história da música popular brasileira, sendo tema,
inclusive, de análises literárias e sociológicas. Constitui, assim, mais que mera
representação folclórica e artística: através da análise da malandragem, podemos
estudar também traços do povo brasileiro, de sua cultura e, porque não, do Direito
pátrio.
Cláudia Matos assevera que o malandro constitui "uma metáfora
coletivamente instituída e formalizada por alguns: um mito"16, que encarnaria uma
utopia comunitária e, ao mesmo tempo, procederia a uma crítica velada da sociedade.
DaMatta, por sua vez, abordando a temática dos mitos e rituais, assevera que estes,
bem como os personagens, "são criações sociais, refletindo ambos os problemas e
dilemas básicos da formação social que os engendram"17. Assim, afirma o autor, que
o mito e o ritual seriam “dramatizações ou maneiras cruciais de chamar a atenção
para certos aspectos da realidade social, facetas que, normalmente estão submersas
pelas rotinas, interesses e complicações do cotidiano."18
Verifica-se, por outro lado, que o discurso malandro é marcado pela
ambigüidade e dialogia, e é justamente por meio destas características que ele
evidencia e problematiza o universo que reflete. Como ser que se situa na fronteira,
entre afirmação e negação, verdade e fantasia, licitude e ilicitude, articula o malandro
o limite entre dois mundos sem, contudo, pertencer a nenhum. Proveniente de
classes baixas mostra-se, todavia, como uma caricatura do burguês, transita na
fronteira das classes sem, no entanto, cruzá-la. Evidencia-a, porém, expondo a

                                                            
16 MATOS, Cláudia. Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982. p. 186 
17 DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis – Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed.

Editora Rocco: Rio de Janeiro, 1997.p.40. 


18 Idem. p.42 

 
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contradição e desarmonia existente na sociedade, colocando em questão, por meio de


uma linguagem "de fresta", valores essenciais da ideologia pequeno-burguesa.
Assim, apresentando-se escorregadia e ambivalente, a palavra malandra
conserva sua eficácia, utilizando-se da prerrogativa que Gilberto Vasconcelos lhe
reconhece: a descrição crítica dos sintomas de evolução histórica19. Estes constituem
fatos do cotidiano, pequenos acontecimentos da vida comunitária que, contudo, são
repletos de significados. Reflete, então, as histórias que se passam em seu mundo,
através de um discurso marginal e relativizado, pelo qual fala, sobretudo, a
comunidade negro-proletária das décadas de 20 e 30. Nas palavras do jornalista
Juarez Barroso, o registro social empreendido pelos sambistas que tematizam a
malandragem "não reflete um tipo de visão sobre uma época. Ele é sua própria
época.".20 Ou, como cantava Noel Rosa, em Não tem tradução, "tudo aquilo que o
malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro, já passou de português."
A análise do personagem ora escolhido não se revela, portanto, despicienda.
A cultura da malandragem está inserida em um contexto histórico, político, social, e,
portanto, também jurídico. Não é estranha a associação dos malandros à
delinqüência, seja em práticas contravencionais que remontam à malandragem das
décadas de 20, 30 e 40, seja os malandros de "contrato, gravata e capital", cantados
por Chico Buarque em referência à criminalidade econômica. Não se pode olvidar,
também, do malandro que habita o universo do crime organizado, do tráfico de
drogas e crimes correlatos, a que se referem músicas mais atuais.
Neste sentido, Jessé Souza nos chama a atenção para as metamorfoses do
malandro. Afirma o sociólogo que a tematização deste personagem apresenta pelo
menos três fases subseqüentes. A primeira delas seria a “fase heróica”, de exaltação
da malandragem, perceptível por meio de uma grande variedade de músicas que
                                                            
19 MATOS, Cláudia. Op.cit. p.211. 
20 Idem. p.214.  

 
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enaltecem o malandro pra valer. Este seria “uma espécie de síntese da


brasilidade”21.Sagaz, esperto, transitaria entre a licitude e a ilicitude, buscando sempre
a maior vantagem com o menor esforço.
A segunda fase representaria a “desconstrução do malandro”. O
personagem é retratado de forma decadente, não mais glorificado e exaltado como
em outros tempos. Conforme afirma Souza, “aqui o malandro não é mais o rei do
morro, o barão da ralé ou a quintessência da brasilidade” 22.
A terceira fase do malandro seria, enfim, seu “instante de desvanecimento”.
Já não existiriam malandros, bem como manés, sendo todos agora, “elos de uma
corrente maior e impessoal”23, resultante de uma criminalidade organizada que
mistura mocinhos e bandidos, policiais e infratores, na qual não é possível distinguir o
papel assumido por cada ente.
Enveredaremo-nos, então, na análise dos malandros em dois contextos: o
apogeu e a decadência da nata da malandragem, retratada, especialmente, em sambas
das décadas de 30 e 40; e os malandros atuais, refletidos em músicas a partir dos anos
70. A escolha se justifica em virtude do contraste verificado entre estas e aquelas
figuras, que refletem, também, diferenças na criminalidade de cada período abordado.

                                                            
21 SOUZA, Jessé. As metamorfoses do malandro. In Decantando a República – inventário histórico e

político da canção popular moderna brasileira. Berenice Cavalcante, Heloísa Maria Murgel Starling e
José Eisenberg (org.). V3: A cidade não mora mais em mim Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São
Paulo: Fundação Perseu Abrano, 2004.p.47. 
22 Idem. 
23 Idem. P.48. 

 
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4- "A NATA DA MALANDRAGEM" OU “MALANDRO É MALANDRO,


MANÉ É MANÉ”

Na clássica definição de Antônio Cândido, o malandro se situa na "dialética


entre a ordem e a desordem"24. Roberto Goto25 o define como aquele que habita os
intervalos da estrutura social. Não se enquadrando na ordem legal nem se
extraviando fora dela, estaria posicionado 'entre' o cidadão comum e o bandido.
Situa-se, o malandro, assim, num tênue limite entre a licitude e a ilicitude,
valendo-se do famoso jeitinho brasileiro para levar vantagem. Segundo DaMatta, o
personagem ora analisado possui "uma capacidade sutil, audaciosa e, acima de tudo,
inteligente de manipular todas as leis, regulamentos, fórmulas, portarias, regras e
códigos em seu próprio benefício."26.
Não se pode deixar de associar o apogeu da malandragem com o período
histórico em que ele se deu. Momento de intensificação do processo de
industrialização, na década de 30 tem-se um aumento considerável da população
urbana e proletária. A ordem social mantém-se hierarquizada e excludente, e as
condições de trabalho são, via de regra, precárias. É neste contexto que surge a figura
do malandro, como aquele que recusa as condições de trabalho e a ordem vigente.
Interessante a reflexão desenvolvida por Ruben Georgen Oliven, que assim descreve
o surgimento da malandragem:

                                                            
24CÂNDIDO, Antônio. Dialética da Malandragem. Disponível em:
http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/leitura/DIALETICA_MALANDRAGEM.rtf.
Acesso em 13 de outubro de 2008. 
25 GOTO, Roberto. Malandragem Revisitada: uma leitura ideológica de “Dialética da Malandragem”. Campinas,

SP: Pontes, 1988.p.101. 


26 DAMATTA, Roberto. O carnaval como um rito de passagem, in: ____ . Ensaios de antropologia

estrutural. Petrópolis, Vozes, 1973, p.154. Apud. OLIVEN, Ruben George. Violência e Cultura no
Brasil.3ªed. Editora Vozes: Petrópolis, 1986.p.34. 
 
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Neste processo de aclimatação do favor ao contexto urbano


industrial, o jeitinho, o galho-quebrado, o pistolão, a panelinha e a
malandragem são instituições fundamentais. Todas estas práticas
implicam, de diferentes formas, a burla da perspectiva
universalista contida na ideologia burguesa. Elas significam que a
lei é feita para os inimigos e o trabalho para o otário. (...).
Como se sabe, o fim da escravidão no Brasil não significou o
surgimento de uma sociedade mais aberta, mas a continuidade do
padrão de dominação oligárquica. Mesmo com a intensificação da
industrialização, o trabalho assalariado não se tornou uma forma
de qualificação, pois a ordem social continua sendo fortemente
excludente. Assim, a malandragem, ao recusar o trabalho
assalariado, se configura numa alternativa - transformada em
estratégia de sobrevivência - numa sociedade que marginaliza o
trabalhador, não lhe assegurando condições de viver
decentemente do fruto de seu labor. 27

A “fase heróica” da malandragem, por sua vez, é claramente perceptível


através de músicas que exaltam o personagem, associando-o a uma figura esperta,
porém, dócil, que é alheio ao mundo do trabalho sem, contudo, ser associado
necessariamente ao mundo do crime. Assim é a clássica representação do malandro
realizada por Wilson Batista, em Lenço no Pescoço:

Meu chapéu de lado


Tamanco arrastando
Lenço no Pescoço
Navalha no Bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio
Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
                                                            
27 OLIVEN, Ruben George. Violência e Cultura no Brasil.3ªed. Editora Vozes: Petrópolis, 1986. p.31. 
 
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tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão

Nesta mesma linha de representação destacam-se canções como Conversa de


Botequim, de Noel Rosa, A volta do malandro, de Chico Buarque e Malandro é malandro,
mané é mané, de Bezerra da Silva.
O malandro, nestas canções, opõe-se a valores inerentes à sociedade
burguesa. Primeiramente, vislumbra-se uma recusa ao trabalho. Tal recusa decorre,
todavia, de um descrédito e desilusão relativamente às compensações oferecidas pela
atividade laborativa. Devido à posição subalterna que lhe é reservada na sociedade, a
sina do trabalhador honesto e dedicado seria o confinamento dentro da pobreza, não
sendo visualizada qualquer hipótese de mobilidade social. Daí a associação entre
operários e "otários".
Dessa forma, os valores consagrados pela ideologia dominante, responsável
pela marginalização do trabalhador, deveriam ser excluídos do espaço do samba,
substituídos por outros que proporcionassem alguma valorização das classes
retratadas nas canções: o malandro, a vadiagem, a orgia, as festas e, inclusive, o
próprio samba, conforme se verifica nas canções abaixo:

Se eu precisar algum dia


De ir pro batente
Não sei o que será
Pois vivo na malandragem
E vida melhor não há
(...)
O trabalho não é bom
Ninguém pode duvidar
Oi, trabalhar só obrigado
Por gosto ninguém vai lá
(O que será de mim, Ismael Silva).

Ai patrão
Sou um homem liquidado
 
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No meu barraco chove


Meu terno está furado
Ai patrão
Trabalhar não quero mais
Eu não sou caranguejo
Que só sabe andar pra trás
(Nasci cansado - Wilson Batista e Henrique Alves)

Decorre, daí, a fase “heróica” ou de “exaltação”, conforme a definição de


Jessé de Souza. A contraposição entre trabalho e malandragem é marcante: enquanto
esta representaria uma vida desejável, o trabalho constituiria um ônus que, contudo,
sequer apresentaria as contraprestações esperadas: embora já cansado, o proletário
continua sem casa, com comida escassa e o terno furado. O trabalho é, assim,
equiparado a "andar pra trás". O malandro, por isso, empreenderia pequenos
expedientes, valendo-se, inclusive, da prática de atividades ilícitas para sobreviver.
Esta fase de valorização da malandragem, todavia, tem seu declínio,
sobretudo com o início do governo Vargas. As mudanças nas diretrizes políticas, e
também da legislação penal neste período é refletida nas letras das canções, em
especial na alteração do tratamento conferido ao malandro, conforme abordaremos a
seguir.

5- “O MALANDRO TÁ NA GRETA, NA SARJETA DO PAÍS”

O governo Vargas e a política estado-novista foram decisivos para uma


mudança significativa na abordagem conferida ao malandro. A instituição de uma
ideologia do culto ao trabalho e uma política ao mesmo tempo paternalista e
repressiva relativamente à cultura popular fizeram com que o malandro, até então
exaltado, caísse na clandestinidade. Embora não tenha deixado de habitar a fronteira
entre as classes, posto que mesmo internalizando a caricatura de pequeno-burguês
 
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continuou perseguido por agentes da "lei e da ordem", esta polarização foi


enfaticamente atenuada. Ao malandro caberia assumir os valores burgueses impostos
pelo regime, de valorização do trabalho e abandono da vida "vadia" ou então manter-
se em sua posição marginal, porém, agora, mais duramente repreendida e
criminalizada. Foi necessário, então, tirar o lenço do pescoço e largar a navalha,
como sugere Noel Rosa em Rapaz Folgado:

Deixa de arrastar tamanco


Pois tamanco nunca foi sandália
Tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora essa navalha que te atrapalha
Com o chapéu de lado deste rata
Da polícia eu quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis
Arranje um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve para tirar
Todo valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.

O controle foi acentuado e, sobretudo devido à criação do DIP -


Departamento de Imprensa e Propaganda -, esta mudança fez-se sentir nas letras das
canções. A alusão aos malandros de outros tempos, avessos ao trabalho, era proibida
e censurada. Estes eram associados à criminalidade e subversão, e deveriam ser
duramente reprimidos por meio do aparato policial. Como forma de manutenção de
seu discurso e de sobrevivência, o malandro assume, então, nova feição: compra
sapato e gravata, rebusca o vocabulário e, inclusive, passa a recusar a associação à
malandragem. Vislumbra-se, então, um processo de decadência dos velhos
malandros, sendo substituído por uma nova figura: o malandro regenerado.

 
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A música O Malandro nº 2, que integra o musical Ópera do Malandro, de


Chico Buarque, ambientado no governo de Vargas, retrata a decadência do
personagem, ao afirmar que o malanadro tá na greta/ na sargeta do país, e quem
passa/acha graça, na desgraça do infeliz.A "morte” do malandro é, assim, transferida
para o plano físico. A canção nos remete, todavia, à decadência daquele malandro
que, na dureza/senta à mesa do café/bebe um gole de cachaça/acha graça/ e dá no
pé, cantado em O Malandro nº. 1, logo no início do musical. Todavia, ao fim da
música, o compositor nos dá indícios que o malandro, apesar de tudo, não encontrou
ainda seu fim, uma vez que "ele ainda se move” (o cadáver/ do indigente/ é
evidente/ que morreu/ no entanto/ ele se move/ como prova/ o Galileu). O
personagem adquire, então, novas feições, ressurgindo com um discurso regenerado,
em virtude das diretrizes políticas e criminais a que é então submetido.

5.1 – “Quem trabalha é quem tem razão, eu digo e não tenho medo de errar”

Na década de 40, o conceito de malandragem passou por uma significativa


mudança, na medida em que mudou a forma de a sociedade e o governo encararem
tal personagem. O jogo do malandro torna-se ilícito, seu proceder e seu discurso caem
na ilegalidade. É necessário, então, cobrir-se de novos adereços, com padrões e
valores burgueses, para atingir a respeitabilidade que se esperava do samba e escapar
de uma ordem social que reprimia, cada vez mais, aqueles que se colocavam à sua
margem.
O personagem se sujeita, então, a uma mudança de atitude, sobretudo com
o abandono da boemia e o início de uma vida regrada e honesta. O trabalho surge
como o elemento de redenção - adotando a ideologia dominante, o malandro dedica-

 
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se ao labor, em busca de uma possibilidade de ascensão sócio-econômica. Tal


mudança é perceptível na música Bonde São Januário, de Wilson Batista, em cuja letra
são cultuados valores opostos aos cantados pelo mesmo compositor alguns anos
antes (por exemplo, em Lenço no Pescoço):

Quem trabalha é que tem razão


Eu digo e não tenho medo de errar
O bonde São Januário
Leva mais um operário:
Sou eu que vou trabalhar
Antigamente eu não tinha juízo
Mas resolvi garantir meu futuro
Vejam vocês:
Sou feliz, vivo muito bem
A boemia não dá camisa a ninguém
É, digo bem

Verifica-se, assim, o surgimento do malandro regenerado, que reconhece o


valor do trabalho em contraposição ao desvalor da boemia. Encena-se, então, uma
atitude bem comportada, revelando, mesmo que dissimuladamente, a imposição do
comportamento adotado. Nesse mesmo sentido, a canção Se não fosse eu, também de
Wilson Batista, composta em 1941 em parceria com Haroldo Lobo:

E hoje posso provar minha idoneidade


Eu tenho até
Carteira de Identidade
Usei navalha salto alto
Lenço no pescoço
Mas hoje
Hoje eu sou bom moço

Em outras canções são retratados os resultados da mudança de


comportamento do malandro: valoriza-se não o trabalho em si, como forma de
construir a dignidade do homem, mas sim o resultado proveniente deste labor. O
malandro regenerado é apresentado como bem-sucedido e feliz com sua vida

 
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disciplinada, como em O Bonde Piedade, de Geraldo Pereira e Ari Monteiro (gravada


em 1945) e Eu trabalhei, de Roberto Roberti e Jorge Faraj:

A princípio meu ordenado


Era pouco e muito trabalho
Agüentei o galho e o tempo passou
Agora fui aumentado
Passei a encarregado
A minha situação melhorou
(O Bonde Piedade)

Eu hoje tenho tudo que um homem quer


Tenho dinheiro automóvel e uma mulher
Mas para chegar até o ponto em que cheguei
Eu trabalhei trabalhei trabalhei
Eu hoje sou feliz
E posso aconselhar
Quem faz o que já fiz
Só pode melhorar
E quem diz que o trabalho
Não dá camisa a ninguém
Não tem razão não tem não tem
(Eu trabalhei)

Todavia, mesmo em sua fase regenerada, não escapa o malandro da


associação à delinqüência. Talvez por seu passado vadio que, embora veladamente,
ainda marca sua imagem, ou porque sua mudança de comportamento não é vista
com credibilidade e segurança pelo poder instituído. O controle da malandragem é
realizado não somente por meio de diretrizes políticas, mas, também - e é o que se
mostra mais relevante neste trabalho - através do sistema penal.
Com o advento do Estado Novo, a malandragem, bem como seu discurso,
passou a ser duramente reprimida, seja por meio da censura que fez com que
mudasse o perfil das canções, seja por meio da política criminal repressiva e
autoritária que transformou o malandro em um delinqüente nocivo à segurança
pública e à paz social.

 
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Mesmo vestido com outras roupas, assumindo signos e padrões de


comportamento burgueses, o malandro ainda trazia consigo vestígios de seu proceder
passado. Assim, acabava, vez ou outra, caindo nas mãos da polícia, mesmo
injustamente. Embora tentasse se justificar, alegando sua regeneração, não raro via-se
vítima de um sistema em que suas escusas não eram suficientes para afastá-lo da sua
posição de marginal, conforme se verifica nas canções abaixo:

Senhor delegado
Seu auxiliar está equivocado comigo
Eu já fui malandro
Hoje estou regenerado
Os meus documentos
Eu esqueci mas foi por distração (comigo não)
Sou rapaz honesto
Trabalhador, veja só minha mão (sou tecelão)
Se ando alinhado
É porque gosto de andar na moda
Se piso macio
É porque tenho um calo que me incomoda (na ponta do pé)
Se o senhor me prender
Vai cometer uma grande injustiça (na Lapa)
Amanhã é domingo
Tenho que levar minha patroa à missa (na Penha)
(Senhor Delegado, Moreira da Silva)

Seu Martins Vidal, eu moro no Lins e sou o tal


Que há muito tempo exerço uma fiel profissão
Eu não sou mais aquele antigo trapalhão
(...)
Pois há tempos atrás eu fui o Morengueira, o rei da trapalhada
Retratos e fichas tenho na Central, em todo lugar,
Fiz, no duro, juro, muito chefe de família chorar
Mas hoje em dia, eis porque me desespero,
Posso ver a maior galinha morta ali, não quero
Pinta brava como sou, sei o que acontece
Quando a gente não se abre, não resolve
Tem que assinar o processo, artigo 399
De repente uma voz, do Zé dos Anzóis, quase dou um acesso
Chegou a hora fatal, vou assinar o meu mal, que injusto processo

 
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(...)
(Averiguações, Moreira da Silva )

Fui intimado a comparecer a vara criminal


Mas isto agora é que foi mal
Não sei a razão desta intimação
Se não matei, nem sou ladrão
Acho que o Senhor Juiz está enganado
Deram-lhe o nome trocado
Acabei de crer que sou mesmo pesado
Não posso viver sossegado
No dia marcado eu compareci, falei com um doutor
Devia ser o promotor
"Rapaz, o seu caso está um pouco encrencado
Quem é o seu advogado?"
Eu respondi, "Nem sequer sei o motivo da minha presença neste
conselho de sentença.
Pois eu sou, ora se sou, pobre mas trabalhador.
Pode crer nisso, seu Doutor?"
(...)
"Logo após reunir o conselho di-lho a ordem do dia
José Cordeiro de Faria, condenado a dez anos de prisão
Porque voltou a orgia
Trabalhador, mas de que é que tem valia"
(Vara Criminal, Moreira da Silva)

As três canções acima têm em comum a referência a uma injusta atuação do


sistema penal diante do malandro. Se antes este era vadio - o que, por sinal, é por ele
confessado – já não mais faria parte do mundo da delinqüência. Todavia, ainda assim
era submetido ao aparato policial e judicial. Vislumbra-se, então, a inutilidade do
engajamento do malandro no sistema da "ordem" e do trabalho, posto que, mesmo
com a mudança de comportamento, permaneceu marginalizado dentro desse sistema,
não escapando à arbitrariedade dos poderosos.
Dessa forma, verifica-se que não só medidas de caráter político - como a
censura imposta pelo DIP ou as campanhas de valorização do trabalho e do
trabalhador - eram utilizadas a título e controle de condutas "indesejadas". A polícia,
o sistema judiciário e, portanto, o sistema penal assumem um papel relevante nesse
 
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contexto, posto que se prestam - mesmo em diferentes épocas e lugares - à tarefa do


controle social institucionalizado, através da repressão advinda do monopólio estatal
da violência.

6 – CONTROLE PENAL DA MALANDRAGEM

É clássico o entendimento que o Direito Penal atua selecionando bens


jurídicos de maior relevância para a sociedade e, a partir daí, tipificando condutas que
lesionam ou expõem a risco estes bens. Sustenta-se, então, que a atuação deste ramo
do Direito deve ser mínima, subsidiária e fragmentária, entrando em cena apenas
quando o conflito não possa ser resolvido satisfatoriamente por meio de outros
ramos jurídicos. Isso porque, por deter o monopólio quase exclusivo da sanção mais
severa existente no ordenamento jurídico - a restrição da liberdade e, em alguns
lugares, da própria vida - a atuação penal reveste-se de maior gravidade, interferindo,
de forma mais incisiva, na esfera privada do indivíduo.
Outrossim, não se pode negar que a carga negativa advinda da intervenção
penal supera em muito suas conseqüências fáticas. A estigmatização decorrente da
sujeição criminal acompanha o indivíduo submetido a este processo. A condenação,
assim, apresenta efeitos que vão além daqueles previstos nas leis penais. Aliás, o
simples fato de ser réu em um processo penal - mesmo que o resultado seja a
absolvição - já é suficiente para marcar e estigmatizar o sujeito.
A escolha das condutas a serem criminalizadas, por outro lado, é resultado
de uma política criminal que varia conforme o tempo e espaço. Esta apresenta
função de guia e de crítica e consiste, conforme ensina Zaffaroni, “na ciência ou a
arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e

 
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penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela”28. Não se pode olvidar,
contudo, que a política criminal, assim como a ciência jurídica, se vale de uma
ideologia que, por sua vez, pode encobrir, ocultar ou mesmo criar realidades,
"privilegiando uma ideologia e descartando (ou reprimindo, limitando o
desenvolvimento ou ocultando) as que considere perigosas ou negativas para ela."29.
Emerge, então, um papel de controle exercido pelo sistema penal. Embora
as condutas criminalizadas sejam resolvidas por um meio institucional comum, é
certo que, individualmente, cada uma apresenta um significado social distinto. Assim,
o delito não seria uma realidade social individualizável, mas uma "construção
destinada a cumprir certa função sobre algumas pessoas e acerca de outras.”30.
Haveria um processo de seleção das pessoas classificadas como "delinqüentes", e não
simplesmente uma seleção de ações e condutas qualificadas como tais.
Zaffaroni define o controle social como a "influência da sociedade
delimitadora do âmbito de conduta do indivíduo” 31. Este controle pode ser exercido
tanto por meios difusos e menos evidentes, como os meios de comunicação de
massa, a educação, as manifestações artísticas, etc., como por meios mais específicos
e institucionalizados, como o sistema penal Por meio deste sistema, por sua vez, é
empreendida uma criminalização seletiva dos marginalizados, seja para conter os demais
integrantes desta mesma classe, seja para garantir a sensação de tranqüilidade dos
setores hegemônicos.
A análise empreendida anteriormente das canções que retratam o fenômeno
da malandragem é exemplificativa da atuação do controle social tanto difuso quanto
institucionalizado. O primeiro é manifestado por meio das canções que, após o

                                                            
28 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. V.1 –

Parte Geral. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.p.114. 
29 Idem. p.60.  
30 Idem. p.58 
31 Idem. 

 
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início do Estado Novo passaram a refletir a ideologia defendida pelos setores


hegemônicos. Vargas buscou apoio nos sambistas para conquistar a simpatia das
massas ao mesmo tempo em que as letras que não interessavam ao governo eram
progressivamente censuradas. A malandragem passou, então, a ser abordada como
subversiva e improdutiva, sendo cultuada, ao contrário, a vida regrada e o trabalho
como preferíveis. Paralelamente, contudo, intensificavam-se o controle exercido pelo
Estado sobre as manifestações culturais do povo. Dessa forma, vislumbra-se que as
canções populares - especialmente o samba - eram vistas como importante meio de
controle e veiculação da ideologia oficial.
Todavia, também o controle social institucionalizado teve impactos
substanciais na mudança do perfil do malandro. A criminalização e estigmatização do
personagem fizeram com que fosse, pouco a pouco, desconstruído no imaginário
popular. As condutas a ele associadas, contrárias aos interesses da burguesia e a um
projeto de valorização do trabalho oficialmente instituído, passaram a ser mais
duramente reprimidas. A vida boêmia, ou de qualquer forma associada à vadiagem
era reprimida também por meio do sistema penal, uma vez que este, por seu poder
punitivo, poderia revelar-se mais eficaz. Verifica-se, então, uma criminalização
voltada antes às pessoas dos "malandros", com o fim de reprimir todo seu proceder,
do que a condutas que lesionassem sobremaneira bens jurídicos relevantes na
sociedade à época.
A lei penal, por sua vez, cumpre o papel de orientar a atuação do sistema,
fixando um âmbito dentro do qual há o processo de criminalização. Embora este
possa por vezes ultrapassá-la, pela análise dos dispositivos legais aufere-se os bens
que são tidos como mais caros para a sociedade em dado momento.
Vale lembrar que foi no período ora estudado - mais especificamente em
1941 -, que entraram em vigor o Código Penal (DL 2.848/40), o Código de Processo
Penal (DL 3.689/41) e a Lei de Contravenções Penais (DL 3.688/41), vigentes até os
 
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dias atuais. Por certo, estas leis não foram imunes à ideologia prevalecente e foram
determinantes, também, para a definição do tratamento penal conferido aos
malandros.
Francisco Campos, um dos mentores intelectuais do Código Penal de 1940
interpretava-o como "um instrumento adequado para a repressão do crime"32. Na
exposição de motivos do Código de Processo Penal, o mesmo Ministro acentua o
objetivo de "maior eficiência e energia contra os que delinqüem", clamando por uma
"rigorosa e expedita aplicação da justiça penal" contra o indivíduo "que vem se
mostrar rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade". Verifica-se, então,
o caráter marcantemente autoritário, compatível com a política da época.
Outrossim, o Código Penal conferiu significativa proteção ao patrimônio,
criminalizando, ainda, condutas atentatórias contra os costumes e o ultraje público ao
pudor. A Lei de Contravenções Penais, por sua vez, traz previsões nitidamente
atinentes à ideologia de valorização do trabalho e direcionadas a determinado grupo
de pessoas, como Provocação de tumulto. Conduta inconveniente (art. 40); Perturbação do
trabalho ou do sossego alheios (art. 42); Jogo de azar (art. 50); Jogo do bicho (art. 58); Vadiagem
(art. 59); Mendicância (art. 60); Embriaguez (art. 62); etc.
A música “Hino de Duran”, de Chico Buarque, e que faz parte do musical
Ópera do Malandro pode apresentar-se como uma síntese das idéias aqui apresentadas.
A Ópera se passa durante o governo de Vargas e o eu-lírico da canção mencionada –
Duran, favorável ao governo e que sustenta orgulhosamente seu status de
trabalhador e cumpridor de seus deveres legais – dirige-se a um malandro,
acentuando todo o discurso criminalizador e estigmatizante desenvolvido sobre o
personagem:

                                                            
32 SERRA, Carlos Henrique. Revistas jurídicas e o debate ideológico. In Revista Brasileira de Ciências
Criminais. Ano 16, n. 72, maio-junho de 2008.p.207-252. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2008. p.211. 
 
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Se tu falas muitas palavras sutis


Se gostas de senhas sussurros ardis
A lei tem ouvidos pra te delatar
Nas pedras do teu próprio lar
Se trazes no bolso a contravenção
Muambas, baganas e nem um tostão
A lei te vigia, bandido infeliz
Com seus olhos de raios X
Se vives nas sombras freqüentas porões
Se tramas assaltos ou revoluções
A lei te procura amanhã de manhã
Com seu faro de dobermam
E se definitivamente a sociedade
só te tem desprezo e horror
E mesmo nas galeras és nocivo,
és um estorvo, és um tumor
A lei fecha o livro, te pregam na cruz
depois chamam os urubus
Se pensas que burlas as normas penais
Insuflas agitas e gritas demais
A lei logo vai te abraçar infrator
com seus braços de estivador
Se pensas que pensas estás redondamente enganado
E como já disse o Dr Eiras,
vem chegando aí, junto com o delegado
pra te levar...

Essa letra apresenta a ideologia jurídico-penal que fez com que o malandro
fosse reprimido e progressivamente abandonasse o cenário urbano que era por ele
habitado. Tratado como um tumor que deveria se extirpado, não escapou aos braços
fortes da lei penal.
O mito, todavia, sobreviveu. E ressurge, posteriormente, com novas
feições. Mais uma vez, contudo, a malandragem não é dissociada da criminalidade e,
por esta razão, analisaremos, a seguir, “os novos malandros”, e sua relação com o
fenômeno criminal na atualidade.

 
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7- “EIS O MALANDRO NA PRAÇA OUTRA VEZ...”

“Aquela tal malandragem, não existe mais”, prenuncia Chico Buarque nos
idos da década de 70. Na canção Homenagem ao Malandro, o compositor relata que, ao
tentar fazer “um samba em homenagem à nata da malandragem”, deparou-se com
uma nova realidade: aquele malandro, cantado nos sambas primordiais, “aposentou a
navalha”, casou-se, tem filhos, emprego. Não há mais aquele ser da liminariedade, da
dialética entre a ordem e a desordem, como descreveu Antônio Cândido. Tal figura foi
varrida do cenário cultural e substituída por um novo perfil de malandragem, mais
condizente com as atuais circunstâncias sócio-econômicas.
Surgem, então, os “malandros de colarinho branco”, conforme apresentado
na letra de “Homenagem ao Malandro”:

Eu fui fazer um samba em homenagem


à nata da malandragem, que conheço de outros carnavais.
Eu fui à Lapa e perdi a viagem,
que aquela tal malandragem não existe mais.
Agora já não é normal, o que dá de malandro
regular profissional, malandro com o aparato de malandro oficial,
malandro candidato a malandro federal,
malandro com retrato na coluna social;
malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá
mal.
Mas o malandro para valer, não espalha,
aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal.
Dizem as más línguas que ele até trabalha,
Mora lá longe chacoalha, no trem da central

Essa canção, na qual Chico Buarque apresenta um novo perfil da malandragem,


consiste numa “espécie de atestado de óbito do ‘malandro pra valer’”33. Deste resta-

                                                            
33ROCHA, Gilmar. “Eis o malandro na praça outra vez”: a fundação da discursividade malandra no Brasil dos
anos 70. SCRIPTA, Belo Horizonte, v.10, n.19, p.108-121, 2º sem.2006. Disponível em:
http://www.pucminas.br/imagedb/documento/DOC_DSC_NOME_ARQUI20070621145500.pdf.
Acesso em 10 de outubro de 2008 p.108/109. 
 
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nos tão somente “uma imagem (ou imagens), muitas vezes pintada com as
tonalidades da nostalgia e de um certo romantismo, atingindo por vezes colorações
quase folclóricas.”34. Entram em cena, então, os novos malandros.
O personagem atual, conforme retratado na música de Chico Buarque,
adquire outra feição, ligada mais à associação com o crime do que com a posição
marginal e excluída. O malandro de “antigamente” transitava entre o lícito e o ilícito,
utilizando de artifícios e estratagemas para sobreviver sem precisar submeter-se ao
trabalho pesado e desvalorizado que lhe cabia na sociedade. O de hoje também
mistura atividades lícitas com ilícitas, utilizando-se destas para obter vantagens
vultosas que, mesmo com suas profissões valorizadas e com relevo social, não
atingiriam. O malandro de antes carregava consigo um estigma que ia além dos
delitos que cometiam. Os de hoje, embora possam praticar crimes de elevado
impacto, pertencem à classes mais bem favorecidas e, também, são menos (ou quase
nada) estigmatizados. São os malandros de “contrato, gravata e capital”, que “nunca
se dá mal”.
Os delitos, sobretudo, são outros. As transformações pelas quais passaram a
sociedade culminaram em novas situações para as quais o Direito Penal clássico não
apresenta resposta. Surgem novos bens que, embora estranhos ao legislador de 1940,
reclamam por proteção jurídica. Novos bens jurídicos acarretam, todavia, também
novas condutas lesivas, que apresentam o desvalor inerente às ações delituosas. É
nesse contexto que surgem, por exemplo, os crimes contra a ordem econômica e
tributária. Pertinentes, então, as considerações de Silva-Sanchez

A delinqüência da globalização é econômica, em sentido amplo (ou,


em todo o caso, lucrativa, ainda que se ponham em perigo outros
bens jurídicos). Isso significa que a reflexão jurídico-penal tem

                                                            
34 Idem. 

 
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pela primeira vez como objeto essencial de estudo delitos


claramente diversos do paradigma clássico (o homicídio ou a
delinqüência patrimonial tradicional). Trata-se de delitos
qualificados criminologicamente como crimes of powerfull.35

Assim, verifica-se que resposta penal aos crimes econômicos é, por certo,
diferida. A impunidade em que resultam muitas dessas condutas, acentuada pelo
alarde normalmente empreendido pela imprensa, gera um descrédito na atuação da
Justiça e, sobretudo, uma revolta por parte da população, em especial dos grupos
sociais que estão submetidos a maiores processos de criminalização. Vê-se
institucionalizado o tradicional jeitinho brasileiro, porém em proporções cada vez
maiores. Nesse sentido, a música Pega Ladrão!, de Gabriel, O Pensador:

(...)
Tira esse malando do poder executivo!
Tira esse malandro do poder judiciário!
Tira esse malandro do poder legislativo!
Tira do poder que eu já cansei de ser otário!
Tira esse malandro do poder municipal!
Tira esse malandro do governo estadual!
Tira esse malandro do governo federal!
Tira a grana deles e aumenta o meu salário!
"- Tá vendo essa mansão sensacional?
Comprei com o dinheiro desviado do hospital.
- Ah! E o meu cofre cheio de dólar?
É o dinheiro que seria pra fazer mais uma escola.
- Precisa ver minha fazenda! Comprei só com o dinheiro da
merenda!
- E o meu filhão? Um milhão só de mesada!
E tudo com o dinheiro das crianças abandonadas.
- E a minha esposa não me leva à falência

                                                            
35 SANCHÉZ, Jesús-María Silva. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-
industriais.tradução: Luiz Otávio Oliveira Rocha. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. -
(Série as ciências criminais no século XXI; v.11). P.76/77. 
 
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Porque eu tapo esse buraco com o rombo da Previdência.


- Vossa excelência, cê não viu meu avião?
Comprei com uma verba que era pra construir prisão!
- E a superlotação?
- Problema do povão! Não temos imunidade? Pra nós não pega
não."

Assim, verifica-se que, não obstante a denominação de malandros, estas


figuras apresentam características diferentes. A estigmatização não se mostra tão
presente e a repreensão às condutas ilícitas praticadas se dá antes por parte da
população do que pelo Estado e, em especial, pelo sistema penal.

8- OUTROS NOVOS MALANDROS

Conforme já apresentado anteriormente neste trabalho, Jessé de Souza,


discorrendo sobre as metamorfoses do malandro, retrata esse personagem em três
momentos distintos. O terceiro momento seria seu "instante de desvanecimento": já
não existiriam malandros, sendo estes, agora, elos de uma corrente maior e
impessoal. Assevera o autor que "o crime na sua face monopolista e organizada
mistura bandido e polícia, morro e asfalto, soldado e general do morro. Todos somos
vítimas de um algoz abstrato e sem rosto"36.
Também João Cézar de Castro Rocha, em ensaio sobre a caracterização da
cultura brasileira contemporânea37, afirma que o conceito de malandragem, tal como
desenvolvido por Antônio Cândido e Roberto DaMatta envelheceu, sendo
atropelado pela violência que atinge toda sociedade. A Dialética da Malandragem,
                                                            
36 SOUZA, Jessé. As metarmofoses do malandro. p.48. 
37 ROCHA, João Cezar de Castro. Dialética da marginalidade - caracterização da cultura brasileira
contemporânea. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/03/275292.shtml.
Acesso em 10 de outubro de 2008. 
 
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classicamente definida por Antônio Cândido como a "dialética entre a ordem e a


desordem", e consubstanciada na figura plástica e multifacetária do malandro, é
substituída por um novo modelo: a dialética da marginalidade.
Esta é alicerçada em uma ordem na qual o conflito já não pode mais ser
mascarado sob a aparência de um convívio "carnavalizante"38. A violência passa a ser
o denominador comum, retratada em produções variadas (músicas, romances, filmes,
programas de televisão, etc.), e através da qual é desenhada uma nova imagem do
país. Assim, diferentemente das teorias de Cândido e DaMatta - que, segundo o
ensaísta, apresentam formas de mediação social -, na dialética da marginalidade não
se busca conciliar as diferenças, mas sim evidenciá-las, "recusando-se a improvável
promessa de meio-termo entre o pequeno círculo dos donos do poder e o crescente
universo dos excluídos"39. Nesse contexto, marginal representa também a parcela da
população que se apresenta "à margem" no que se refere aos direitos mais
elementares, não possuindo, assim, conotação pejorativa.
Conclui Rocha, então, que a dialética da marginalidade "tem como alvo o
dilema coletivo e se caracteriza por um esforço sério de interpretação dos
mecanismos de exclusão social, pela primeira vez realizado pelos próprios
excluídos"40. Eis, então, um processo de definição da própria imagem, através de
manifestações culturais.
Verifica-se, assim, uma nova tematização, presente nas mais diversas formas
de manifestações artísticas atuais. A violência, o medo, os discursos de segurança
pública, seja relativo à criminalidade de massa ou organizada, tornam-se objeto de
constantes discussões nas mais diferentes esferas – ora retratados realisticamente, ora
eivados de traços marcantes de sensacionalismo. A figura do malandro, todavia,
                                                            
38 Referência à obra de "Carnavais, Malandros e Heróis - Para uma sociologia do dilema brasileiro", de
Roberto DaMatta. 
39 ROCHA, João Cezar de Castro. op. cit.  
40 Idem.  

 
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subsiste, fazendo-se presente - embora com contornos diversos - nessa nova


realidade.
Maria Thereza Rocha de Assis Moura e Marta Saad, discorrendo sobre os
crimes patrimoniais hodiernos, apontam características da sociedade atual que
influenciam sobremaneira no fenômeno da criminalidade:

o alargamento da exclusão social; a desmontagem do Estado-


nação; a colocação dos meios de comunicação social em defesa do
fundamentalismo de mercado; a criação de uma sociedade de
valores hedonistas na qual poucos têm acesso aos bens materiais,
mas todos são instados a dela participar; a violência, como
resultado do esgarçamento do tecido social e sua dramatização
contagiadora para efeito de produção do sentimento de
insegurança coletiva e individual, etc.41

Vive-se, assim, com uma constante sensação de medo e insegurança face


aos riscos presentes na sociedade. O crime, sobretudo quando associado à violência,
assume papel de destaque neste contexto. Clama-se por maior controle, por mais
segurança, pelo combate aos agentes do crime, que se consubstancia, conforme
assevera Beatriz Vargas, na metáfora da guerra contra o crime, do combate policial
contra o criminoso sendo que, hoje em dia, tal guerra tem seu alvo principal no
tráfico de drogas e na figura do traficante, o inimigo público número 1.42 Também a
criminalidade de massa, composta sobretudo por delitos patrimoniais - em especial
furtos e roubos - assusta grande parte da população, que exige, assim, respostas
imediatas, consistentes em leis mais severas e um modelo de segurança pública

                                                            
41 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis e SAAD, Marta. Código Penal e sua Interpretação: Doutrina e

Jurisprudência/ coordenação Alberto Silva Franco, Rui Stoco. – 8. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo:
Editora Revista dos Tribunaism 2007. p.773. 
42 VARGAS, Beatriz. Sobre segurança pública, violência, Sherlock Holmes e capitão Nascimento. In PEREIRA,

Flávio Henrique Unes, DIAS, Maria Tereza Fonseca (Org.). Cidadania e Inclusão Social: Estudos em
homenagem à Professora Miracy Barbosa de Sousa Gustin. p.65-72. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2008.p.67/68. 
 
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rigoroso, resultando em uma política criminal pouco compatível com um Estado


Democrático de Direito.
O malandro não desceu do morro. Não mudou o padrão de vida. O retrato,
todavia, é bem diferente. A navalha foi substituída pelos fuzis e outros armamentos,
e o desejo de obter vantagens, mesmo que de forma ilícita, reveste-se agora de caráter
mais enfático e violento. Não há mais aquele ser que anda de viés, transitando entre a
licitude e a ilicitude. O malandro de hoje assumiu definitivamente uma posição. E, tal
qual o personagem dos tempos idos, orgulha-se de sua condição.
Contudo, talvez seja refletido, atualmente, não mais nas letras dos sambas
como nas décadas de 20, 30 ou 40. Pois o samba, sim, mudou, e não se apresenta
mais com o mesmo caráter popular de suas origens. “Hoje em dia o mundo do
samba parece ter dissolvido quase completamente suas fronteiras e se
descaracterizado enquanto formação sócio-cultural ligada a uma comunidade
especificamente proletária e negro-mestiça”43, afirma Cláudia Matos. Por isso, sem
abandoná-lo, é possível verificar também um caráter de auto-representação em outras
canções que, atualmente, se apresentam como mais "populares", como o rap, o hip-
hop e o funk.
Carlos Roberto Oliveira - mais conhecido por Dicró - nos dá um retrato do
malandro dos dias atuais. Na canção "O Malandro", o compositor "sobe o morro", e
tenta argumentar com um jovem traficante sobre as desvantagens de sua opção pelo
crime.

O malandro morre cedo


Mas faz o que quer
Muito ouro, muita grana e muita mulher
Eu disse pra ele, não é bem assim
De repente sua vida vai chegar ao fim
                                                            
43 MATOS, Cláudia. Acertei no Milhar: Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1982. p.36. 


 
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E o malandro então me respondeu


Que não abre mão de seu trêsoitão
Prefere morrer com vinte anos
Do que com sessenta bancando o peão
(...)
[o malandro discursa, em ritimo de rap:]
Com certeza, se eu passar
dos vinte é sorte
Várias vezes já me livrei da morte
Mas fazer o quê, se não tem outro jeito
Tô sem estudo e também
quero ser direito.
(...)
E o meu bacuri, quem vai sustentar?
Minha velha ta doente
e tem remédio pra comprar
(...)
[Segunda voz:] Pára com isso, rapaz
Eu quero sair, Dicró, mas vou pra onde?
Os nossos governantes
não estão nem ligados
É polícia, é bandido,
todo mundo abandonado

Na música apresentada, o malandro é identificado com o traficante, que é


tido como um dos principais inimigos da sociedade. O tráfico, todavia, é tratado -
pelo malandro - como única alternativa à sua sobrevivência. Eu quero sair, Dicró, mas
vou pra onde?. A falta de perspectiva é refletida na afirmação de que "não tem estudo",
do descaso dos governantes, pelo que, a vida no tráfico, mesmo reconhecidamente
efêmera, é a opção para suprir as necessidades
Vislumbra-se, por outro lado, uma dualidade de valorações da figura do
malandro. Da mesma forma que o personagem de “Lenço no Pescoço”, cantado por
Wilson Batista foi confrontado por Noel Rosa, que sugeriu não fosse chamado
malandro, “mas sim rapaz folgado”, existem visões positivas e negativas sobre o atual
personagem - remontando à velha dicotomia malandro-otário. As positivas

 
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geralmente são sustentadas pelos próprios, enquanto as negativas por pessoas que os
rodeiam.
Assim, há também canções que exaltam o malandro-traficante, ressaltando
o papel social que este cumpriria na favela, por assumir funções que, não obstante
deveriam resultar de políticas públicas, dependem da atuação dos “líderes do morro”.
Por exemplo, “Malandro Consciente”, de Bezerra da Silva:

Malandro, você toma conta da favela


É você que espanta a fera que vive assombrando a gente
É que você é o malandro consciente
(...)
Você ajuda a nossa comunidade
Não deixa que o nosso salário de miséria
Mate de fome os filhos da gente
Você dá leite para as crianças
Remédio para quem está doente
E comida para os mais carentes
Ainda dá uma segurança total
Aquilo que a favela nunca teve
Que é assistência social
(...)
Parabéns bom malandro

Por conseguinte, é inegável a perspicácia dessas letras ao retratar posições


hoje sustentadas pela sociedade acerca do crime e do criminoso. Tal hipótese é
corroborada pela análise de depoimentos dos próprios sujeitos identificados como
malandros, ou que habitam o “terreno da malandragem”. É nítida a proximidade com
os retratos desenhados nas canções.
Nesse sentido, vale mencionar a pesquisa desenvolvida por José Ricardo
Ramalho, publicada sob o título “O Mundo do Crime: a ordem pelo avesso”44. O
autor retrata o fenômeno criminal a partir da ótica de seus próprios agentes – mais

                                                            
44 RAMALHO, José Ricardo. O Mundo do Crime: a ordem pelo avesso. 3 ed. – São Paulo: IBCCRIM, 2002. 
 
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especificamente de encarcerados. Da análise dos relatos apresentados, vislumbra-se a


relevância assumida por dois conceitos: massa do crime e malandragem.
O primeiro consiste em um conjunto de normas de “proceder” daqueles
que integram o mundo do crime. Neste ínterim, o malandro constitui a figura principal
da massa do crime, reunindo as qualidades tidas como positivas e ideais para os presos:
a experiência decorrente da prática de muitos delitos; a habilidade para escapar
sempre da polícia; o cumprimento das regras do "proceder" da massa; a não
"cagüetagem" (delação aos policiais de atos irregulares praticados por outros presos);
a solidariedade para com os companheiros, etc45.
Conforme afirma o pesquisador:

No mundo do crime, o malandro era a figura principal. Ser malandro era


ter adquirido uma série de características próprias de quem
pertencia à massa, principalmente no que se refere à experiência e
ao “conhecimento” de suas regras de procedimento. Quando os
presos qualificavam o malandro em malandro positivo e malandro
negativo estavam se referindo ao contexto do procedimento ou das
relações entre os membros da massa, embora os presos tivessem
restringido este aspecto às regras do “proceder” dentro da cadeia
(...). O malandro positivo (ou bom malandro) se caracterizava por
cumprir as regras do “proceder” da massa, era o que adiantava
“pro lado dos outros presos”, e assim se tornava uma pessoa
benquista na massa. O malandro negativo era imediatamente
identificado como cagüeta, que só fazia “prejudicar os outros”, que
atrasava o “lado dos outros” e que pelo seu próprio “proceder”
desrespeitava profundamente as leis da massa.46

Corroborando tal explanação, os depoimentos de alguns dos presos


entrevistados:

O malandro é um cara que é marginal nato, mas aqui na cadeia ele


tem um procedimento, ele tem uma certa conduta. Então é ele é
um cara que não cagüeta. Se ele pede 2 pacotes de cigarro
                                                            
45 Idem.p.77. 
46 Idem.p.75. 

 
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emprestado, ele paga certo. Se ele é um camarada respeitável, que


veio da massa, esse é o malandro.47

O malandro mesmo é aquele que pratica a delinqüência, assalto,


roubo, tudo quanto é tipo de criminalidade. Esse é o verdadeiro
malandro.48

É enfatizada, ainda, uma contraposição entre bons e maus malandros, que


nos remete, em princípio, à música “Malandro é malandro, mané é mané”, composta
por Bezerra da Silva, e já analisada anteriormente. Nesta canção, aos malandros são
associadas características positivas, diferenciando-o do mané, que seria, na linguagem
dos presos, o falso malandro.
Assim, o falso malandro reúne características que se opõem àquelas
valorizadas pela massa. O verdadeiro malandro, por sua vez, já dominava as “leis da
massa”, e não precisava ficar mostrando qualidades.

A malandragem aqui tem uma série de tipos. Um fala que é


malandro e não é malandro, é aquele tal que cagüeta, que eles
tratam de cabra. (Cabra?) É. Nego que só serve pra atrapalhar a
vida dos outros, fica caguetando o companheiro de xadrez, fica
prejudicando... (Cagüetando como?) Por exemplo, eles não podem
ver nada que se passa dentro da cadeia que eles já correm no
ouvido do chefe de disciplina, uma coisa ou outra.49

A dualidade bons/ maus malandros faz- se presente, também, em canções


atuais. Todavia, assume configuração diferente. Enquanto nos depoimentos
apresentados constata-se a apreciação do malandro sob uma ótica do próprio
criminoso, sendo aquele valorado conforme os padrões da massa e do mundo do crime,
nas canções a visão é distinta. O malandro pra valer é retratado distante do mundo do

                                                            
47 Idem.p.75. 
48 Idem.p.76. 
49 Idem.p.69. 

 
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crime, lembrando, inclusive, o malandro regenerado, já analisado anteriormente. Seguem


algumas músicas em que essa situação pode ser constatada:
Um bom malandro não leva sacode
Niguém é bicho caro
Meliante réu culpado
São milhões de culpados
Sistema mostra assim
(...)
Hoje me lembrei do bom malandro
Que as drogas e o sistema levou também
(...)
Presenciei o fim
O bom malandro um dia disse assim:
Subiu com a lata na cabeça
você nem trisca, irmão
Televisão que não é sua
Deixa quieto ladrão
Compromisso aqui é isso
Faça chuva ou faça sol eu permaneço nisso
(...)
Sei lá se recusou a traficar
Como pôde ver a mãe chorar
A molecada passando fome eis a lei do homem
O bom malandro só sofre nunca morre permanece sempre
nobre
(Bom Malandro,Guind’art 121)

Tu pensas que és malandro


Que malandro é esse que apanha para viver?
A tua sorte é que a galera ainda gosta de você
Acerte teus passos que é para o corpo não ir ao chão
Pra não se arrepender não, não
(...)
Essa é pro vacilão, pro vaçilão, podes crer
Vou mandar pro vacilão, pro vacilão, podes crer
Tu pensas que és malandro
Que malandro é esse que apanha para viver?
(O Vacilão, Cidade Negra)

Hei, malandro
Malandragem mesmo é saber viver, malandro
 
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Cuidado nessa vida onde tu anda


E o que você vai fazer, malandro
Eu conheci um cara
Que se achava malandro
Andava cabuloso, embecado, cheio de moral
No movimento com um cano
(...)
Mas esse cara, ironia do destino,
Foi achado como um bicho num terreno baldio
E eu pergunto do que adiantou
A dor do parto da sua mãe e o suor do teu pai
Ao ver uma vida tão jovem que eles
Criaram brutalmente jogada e jaz
Será que você não entende
É isso que Babilônia quer
É ter você como um fora da lei
Pra te jogar numa prisão
E te apagar como um bicho qualquer
(Malandro, Reação)

Nessas três canções verifica-se a oposição entre um suposto malandro e o


malandro de verdade. Na primeira, permeada por um tom nostálgico, constata-se
uma série de qualidades associadas ao bom malandro. Este, todavia, constitui apenas
uma lembrança, uma vez que levado pelas drogas e pelo sistema. Os que não "entram nessa
vida" acabam, todavia, sendo por ela anulados. Na segunda, o malandro é
contrastado com o vacilão, que muito se parece com o mané.
A terceira letra, bem como a anterior, aconselha um suposto malandro a
abandonar "a vida onde anda". A "vida do crime" mostra-se como inevitavelmente
efêmera e indigna, pelo que deveria ser deixada antes que o suposto malandro fosse
levado por este destino fatalista.

Reza aquela lenda que malandragem não tem


Malandro que é malandro não fala pra ninguém
Antigamente era a seda, hoje a camisa é larga
A noite começa em qualquer lugar
E acaba é na Lapa
 
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O que era calça branca, agora virou bermudão


Mas continua o anel, a pulseira e o cordão
(...)
(É isso que tu qué pra tua vida parceiro
fuma um e tira onda, encher o bolso de dinheiro
Malandro que é malandro tem a cabeça feita
e a tal história da procura da batida perfeita?)
(...)
Malandro que é malandro
Chega de pilantragem
O rap é com samba
Então aumenta que tá bom
E esse sim..
É o malandro de verdade
(...)
Malandro isso, malandro aquilo..
Vê só quem fala
Se fosse um tempo atrás eu carregava a navalha
(...)
(Um filme Malandragem, Marcelo D2)

A música de Marcelo D2, além da ambigüidade de malandros já analisada


nas anteriores, traz outros aspectos interessantes. Em primeiro lugar, é estabelecida
uma comparação entre os "malandros de antes" e os "malandros de hoje".
Antigamente era a seda, hoje a camisa é larga; o que era calça branca agora virou bermudão/ Mas
continua o anel, a pulseira e o cordão; se fosse um tempo atrás eu carregava a navalha. Vale
lembrar que os trajes sempre foram um importante elemento identificador do
malandro. Da mesma forma, as roupas identificam o suposto malandro atual: a
camisa de seda foi substituída por alguma que "é larga", a calça branca pelo
bermudão. Permanecem, contudo, o cordão, anel e a pulseira, como símbolos de
afirmação e ostentação de uma pretensa riqueza.
Outro elemento que vale ser ressaltado, e que também configura um
paralelo com os "malandros de antigamente", é a referência que o compositor faz ao
rap. Assim como a malandragem dos tempos idos tinha no samba seu locus e seu
discurso, hoje o rap assume, em partes, esse papel. O samba não é deixado de lado, o
 
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que é evidenciado pela referência à Lapa e à conjugação dos dois estilos musicais: O
rap é com samba/ Então aumenta que ta bom. Emergem, todavia, outros ritmos que
constituem meios de auto-representação, de veiculação da imagem que se tem da
sociedade e, também, de afirmação social.
Verifica-se, por tudo quanto exposto, que a figura do malandro não
constitui apenas pretérito folclore em nossa cultura. Subsiste ainda hoje, tendo
passado por várias fases, conforme o contexto vivenciado: o malandro exaltado,
reprimido, regenerado... O certo é que não perdeu seu caráter de representatividade,
inclusive em relação à criminalidade de cada época, posto que, direta ou
indiretamente, sempre esteve a ela relacionado.
Hoje o discurso malandro é mais difuso. Porém não perdeu seu aspecto
elementar. Embora tenhamos nos referido aos "malandros de colarinho branco", o
discurso da malandragem continua sendo representativo das classes menos
favorecidas, marginalizadas - devendo tal expressão ser compreendida, conforme
aduz Rocha50, também como referência à população que se apresenta "à margem",
excluída da efetivação de seus direitos fundamentais.
Assim, embora possa o medo ser, atualmente, um grande fantasma que a
todos assombra, e a violência ser vista como iminente e rotineira, não se deve pensar,
todavia, em medidas simplesmente de controle e repressão. As canções apresentadas
nos auxiliam ver o "problema" sob outra ótica: uma visão interna, de quem vive mais
próximo a esta realidade, confrontando-se com ela diariamente, em uma tensão
constante entre crime e "vida honesta". Embora aquele seja, muitas vezes, o meio
mais hábil a garantir a subsistência, já que se apresenta como forma de suprir as

                                                            
50 ROCHA, João Cezar de Castro. Dialética da marginalidade - caracterização da cultura brasileira
contemporânea. Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/03/275292.shtml.
Acesso em 10 de outubro de 2008 
 
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necessidades básicas não atendidas por meio do trabalho lícito, nem todos recorrem
às atividades delituosas.
Dessa forma, a partir dos discursos analisados, pode-se chegar a uma
conclusão comum: a questão da criminalidade - sobretudo de massas - transcende o
universo estrito do Direito Penal. Não bastam a edição de novas leis, o agravamento
das sanções, a construção de novos presídios ou a instituição de outros meios de
controle repressivos. A política criminal não pode ser identificada com a segurança
pública.Deve-se buscar soluções que, todavia, não se restrinjam a medidas
rigorosamente penais, mas, sim, que abranjam todas aquelas necessárias e suficientes
à efetivação dos direitos fundamentais, previstos constitucionalmente mas tantas
vezes negligenciados pelo sistema penal.

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