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GUSTAVO TEPEDINO

JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES


VANESSA CORREIA MENDES
ANA PAOLA DE CASTRO E LINS
Coordenadores

ANAIS DO
VI CONGRESSO DO
INSTITUTO BRASILEIRO
DE DIREITO CIVIL
ANAIS DO VI CONGRESSO DO
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
GUSTAVO TEPEDINO
JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES
VANESSA CORREIA MENDES
ANA PAOLA DE CASTRO E LINS
Coordenadores

ANAIS DO VI CONGRESSO DO
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Belo Horizonte

2019
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES
VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS........................................ 17

DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA


UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL E SEUS
OBSTÁCULOS REGISTRAIS
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA............................................................................................ 19
1 Introdução.....................................................................................................................................19
2  Do Direito Real de Laje e sua natureza jurídica: direito real sobre coisa própria.............19
3 Análise dos artigos 1.510-A e seguintes do Código Civil..................................................... 21
3.1 Da atecnia da nomenclatura “laje”........................................................................................... 21
3.2  Da possibilidade de coexistência de vários Direitos Reais de Laje recaindo sobre
uma mesma construção-base: graus de laje............................................................................ 21
3.3  Do direito de preferência........................................................................................................... 22
3.4  Das obrigações análogas às obrigações do condômino........................................................ 23
4  Dos obstáculos registrais ao Direito Real de Laje.................................................................. 24
4.1  Exigências urbanísticas.............................................................................................................. 24
4.2  Pode haver Direito Real de Laje em lotes vagos ou sobre construções não averbadas?.. 25
4.3  Constituição do Direito Real de Laje por “mera notícia”. Possibilidades........................... 28
Conclusão..................................................................................................................................... 29
Referência..................................................................................................................................... 29

BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS


DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS.................................................................................. 31
1  Introdução.....................................................................................................................................31
2  Boa-fé objetiva no Direito brasileiro..........................................................................................31
3  Os negócios jurídicos processuais: noções introdutórias..................................................... 36
4  Negócios jurídicos processuais: uma análise conceitual...................................................... 39
5  A aplicação da boa-fé objetiva nos negócios jurídicos processuais.................................... 42
6  Considerações conclusivas........................................................................................................ 43
Referências................................................................................................................................... 44
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR................................................................................... 47
1  Considerações iniciais................................................................................................................ 47
2  Comércio eletrônico viabilizado por meio dos contratos eletrônicos:
aspectos controversos................................................................................................................. 48
3  Globalização e comércio eletrônico: impactos sobre o direito dos contratos.................... 59
4  Considerações finais................................................................................................................... 67
Referências................................................................................................................................... 68

O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS


DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL................................................................. 71
1  Introdução.................................................................................................................................... 71
2  A globalização, a nova ordem global e a relação entre as empresas e os direitos
humanos....................................................................................................................................... 73
3  As “cláusulas éticas”: a utilização dos contratos como meio de proteger e promover
os direitos humanos ................................................................................................................... 81
4  Os aspectos positivos e negativos das cláusulas éticas e a questão cultural..................... 84
5  Considerações finais................................................................................................................... 88
Referências................................................................................................................................... 89

REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE


(EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS....................................................... 93
Introdução.................................................................................................................................... 93
1 A teoria da quebra eficiente (efficient breach theory) no Direito estadunidense.................. 94
1.1 Origem e conceito da teoria da quebra eficiente.................................................................... 94
1.2  Objeções à teoria da quebra eficiente....................................................................................... 96
1.2.1  A violação à moralidade............................................................................................................. 96
1.2.2  O fundamento em falsas premissas......................................................................................... 98
1.2.3  A desconsideração dos custos de transação e a exclusão ex ante da prestação
específica....................................................................................................................................... 98
1.2.4  A proximidade com o comportamento oportunista............................................................ 100
2  Incorporação da teoria da quebra eficiente no Direito brasileiro.......................................101
2.1  Possíveis caminhos para a adoção da teoria da quebra eficiente no Direito brasileiro..104
Considerações finais..................................................................................................................108
Referências..................................................................................................................................109
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES
DE CONSUMO
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO..................... 111
Introdução...................................................................................................................................111
1  Da vulnerabilidade à hipervulnerabilidade – a evolução do direito do consumidor.....112
2  O conceito de pessoa com deficiência no modelo social adotado pela
Lei nº 13.146/15............................................................................................................................117
3  A hipervulnerabilidade da pessoa com deficiência e sua caracterização casuística.......119
Considerações finais..................................................................................................................121
Referências................................................................................................................................. 122

ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA


PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
LYGIA MARIA COPI........................................................................................................................... 125
1  Introdução.................................................................................................................................. 125
2  A proteção jurídica da infância e da juventude .................................................................. 126
3  A capacidade de agir, a lógica patrimonial subjacente e a inadequação para
os direitos existenciais.............................................................................................................. 127
4  Os direitos da personalidade, o regime de incapacidades e a necessidade de
uma lógica diversa.................................................................................................................... 129
5  O discernimento como fundamento do exercício dos direitos da personalidade
por crianças e adolescentes.......................................................................................................131
6  Do cuidado à emancipação: o poder familiar e seus novos contornos............................. 134
7  Considerações finais................................................................................................................. 135
Referências................................................................................................................................. 136

RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA


INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
CÍCERO DANTAS BISNETO............................................................................................................ 139
1  Introdução...................................................................................................................................139
2  Origens do direito ao esquecimento e aplicação do instituto no Direito
Comparado .................................................................................................................................141
3  Contornos do instituto no Direito Pátrio................................................................................147
4  Responsabilização civil por infringência ao direito ao esquecimento............................. 153
5  Conclusão................................................................................................................................... 156
Referências..................................................................................................................................157

ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE


VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
FERNANDA PONTES PIMENTEL................................................................................................... 161
Introdução ..................................................................................................................................161
1  As fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado e seus reflexos na
autonomia da vontade...............................................................................................................162
2  A manifestação de vontade como fonte de vínculos jurídicos e negociais ......................167
Conclusão....................................................................................................................................171
Referências..................................................................................................................................171

A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS


EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
JACQUELINE LOPES PEREIRA........................................................................................................ 173
1  Introdução...................................................................................................................................173
2  Capacidade legal: limites e possibilidades descortinadas pela Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência......................................................................................174
3  Cenário dos sistemas de apoio na América do Sul e as propostas do Peru e da
Argentina.................................................................................................................................... 177
3.1  Trâmite da reforma legislativa peruana.................................................................................179
3.2  Sistema de “apoyos” argentino................................................................................................182
4 A Tomada de Decisão Apoiada do artigo 1.783-a do Código Civil Brasileiro................ 184
5  Conclusão................................................................................................................................... 190
Referências..................................................................................................................................191

LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO


EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO.............................................. 195
1  Introducción................................................................................................................................195
2 La cuestión en el Derecho Comparado...................................................................................196
2.1 Precisiones generales.................................................................................................................196
2.2  Bolivia..........................................................................................................................................197
2.3  Colombia......................................................................................................................................198
2.4  Ecuador........................................................................................................................................199
3 La constitucionalización del derecho de daños, en la doctrina judicial de la
Corte Suprema de Justicia de la Argentina........................................................................... 201
3.1 Fundamentación constitucional del derecho de daños....................................................... 201
3.2  Fundamentos constitucionales para la prevención del daño............................................. 203
3.3  Fundamentos constitucionales para la cuantificación del daño........................................ 204
4 El Código Civil y comercial argentino como modelo paradigmático de la
constitucionalización del derecho de daños......................................................................... 206
4.1 Fundamentos............................................................................................................................. 206
4.2  La función preventiva.............................................................................................................. 207
4.3  Cuantificación del daño........................................................................................................... 208
5  Conclusiones.............................................................................................................................. 208
Referencias................................................................................................................................. 209
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO
EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS DE PLANO DE
SAÚDE: ENSAIO PRELIMINAR
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE............. 211
I  Um aparte necessário................................................................................................................211
II  O marco regulatório do sistema de saúde suplementar no Brasil......................................212
III  Do processo de judicialização da saúde suplementar no Brasil.........................................214
IV  Da revisão dos pressupostos da responsabilidade civil e do surgimento de novas
espécies de dano e sua incidência nas demandas de saúde suplementar. O dano
existencial....................................................................................................................................219
Considerações finais................................................................................................................. 224
Referências................................................................................................................................. 224

A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DAS PESSOAS COM


DEFICIÊNCIA: UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL
AURICELIA DO NASCIMENTO MELO, JOANA DE MORAES SOUZA MACHADO...... 227
Introdução ................................................................................................................................. 227
1  O modelo de atenção social e os deficientes.......................................................................... 228
1.1  As principais alterações no Estatuto da Pessoa com Deficiência...................................... 229
2  A capacidade jurídica das pessoas com deficiência............................................................. 230
3  A assistência social e os deficientes físicos........................................................................... 231
4  A previdência social e os direitos das pessoas com deficiência........................................ 232
Considerações finais................................................................................................................. 235
Referências................................................................................................................................. 235

DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA


NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ANA CLÁUDIA REDECKER............................................................................................................. 237
1  Introdução.................................................................................................................................. 237
2 Da função social da empresa................................................................................................... 239
2.1 Da função social na Constituição Federal de 1988............................................................... 239
2.2  Do conceito da função social da empresa..............................................................................241
3  Da aplicação do princípio da função social da empresa na jurisprudência.................... 246
4  Conclusão................................................................................................................................... 248
Referências................................................................................................................................. 249

A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS


NAS REDES SOCIAIS
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES....................................................................................... 251
1  Introdução.................................................................................................................................. 251
2  A garantia constitucional da liberdade de expressão e a possibilidade de se limitar
o seu exercício............................................................................................................................ 252
3  O direito fundamental à privacidade e a autonomia privada............................................ 256
4  A liberdade de expressão e a privacidade dos dados pessoais nas redes sociais:
conflito e soluções possíveis.....................................................................................................261
5  Conclusão....................................................................................................................................267
Referências................................................................................................................................. 268

A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS


DENOMINADAS BIG DATA
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA................................................. 271
1  Introdução.................................................................................................................................. 271
2  Tecnologias Big Data: conceito e utilização............................................................................274
3  Os perigos da datificação..........................................................................................................276

3.1  Criação de perfis (“online profile”)........................................................................................... 277


3.2  Mitigação da autodeterminação informacional................................................................... 278
3.3  Violação à intimidade e à vida privada................................................................................. 279
4  Deficiências e insuficiências dos sistemas de proteção de dados face às
tecnologias Big Data ................................................................................................................. 279
5  Conclusões................................................................................................................................. 281
Referências................................................................................................................................. 282

OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA:


A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA............................. 285
1  Introdução.................................................................................................................................. 285
2  A alienação fiduciária em garantia imobiliária: considerações iniciais........................... 286
3  Pacto marciano: do reconhecimento expresso no Direito lusitano ao debate na
doutrina e jurisprudência brasileira...................................................................................... 287
3.1 Pacto marciano e pacto comissório: delineando as diferenças.......................................... 287
3.2  O pacto marciano em terras lusitanas................................................................................... 290
3.3  Pacto marciano em Terra Brasilis: ecoando os ventos lusitanos......................................... 292
3.3.1  O vento lusitano em rota de colisão com a legislação consumerista................................ 294
4  Conclusão................................................................................................................................... 295
Referências................................................................................................................................. 296

A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE


SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO..................................................................................................... 299
Introdução.................................................................................................................................. 299
1  A releitura do Direito Civil à luz da Constituição da República....................................... 301
1.1  Uma análise funcional dos direitos e a alteração qualitativa da autonomia da
vontade........................................................................................................................................ 301
1.2  A tecnologia e o Direito Civil.................................................................................................. 303
2  Breves notas acerca dos novos contornos do direito à privacidade: a sociedade
da vigilância e o paradigma da surveillance.......................................................................... 304
3  A criptografia: um novo direito ou uma nova técnica?........................................................310
4  A possibilidade de quebra da criptografia.............................................................................314
Conclusão................................................................................................................................... 322
Referências................................................................................................................................. 323

AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO


DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES.............................................................. 325
Introdução.................................................................................................................................. 325
1  Pessoa com deficiência e sua dimensão existencial sob a perspectiva
civil-constitucional................................................................................................................... 326
1.1  De sujeito à pessoa: contribuição para o estudo da pessoa com deficiência................... 329
2  O contrato e a tutela mais efetiva da pessoa com deficiência............................................ 331
3 Os impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência no direito do autor......................... 333
3.1 Situações subjetivas existenciais e dúplices no direito do autor e sua prospecção
frente ao Estatuto da Pessoa com Deficiência....................................................................... 333
3.1.1 A problemática das situações jurídicas dúplices e a curatela do autor pessoa
com deficiência; a circulação da obra..................................................................................... 335
3.2  Tutela do autor enquanto pessoa com deficiência e parâmetros limitadores
da atuação do curador.............................................................................................................. 336
3.2.1  Critério da preferencial assistência........................................................................................ 336
3.2.2  Critério da ampla representação funcional sob a perspectiva da consideração
concreta dos anseios existenciais da pessoa com deficiência............................................ 338
3.2.3 O critério da exceção proveniente dos direitos sociais culturais e resguardo ao
patrimônio mínimo.................................................................................................................. 340
Conclusão................................................................................................................................... 341
Referências................................................................................................................................. 342

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO


RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO...................................................................................... 345
Introdução.................................................................................................................................. 345
1  Sociedade de consumo e consumismo: o “caldo de cultura” do
superendividamento dos indivíduos..................................................................................... 346
2  Conceito de superendividamento........................................................................................... 350
3  Superendividamento e crédito responsável ......................................................................... 353
3.1  Credit scoring e cadastro positivo............................................................................................. 358
4  Considerações finais..................................................................................................................361
Referências................................................................................................................................. 362
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015:
A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE
PERSONALÍSSIMAS
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO......................... 365
Introdução.................................................................................................................................. 365
1  Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência:
um novo paradigma? ............................................................................................................... 366
1.1  Lei Brasileira de Inclusão: a internalização do modelo social de deficiência
no sistema de capacidades civis ............................................................................................. 367
2 A tutela da autonomia corporal: direitos sexuais e reprodutivos de pessoas
com deficiência ......................................................................................................................... 369
3  PLS nº 757/2015: uma proposta de correção, regulamentação ou retrocesso?................. 371
3.1  Recepção da proposta de modificação legislativa no âmbito do sistema de
incapacidades civis e dos direitos sexuais e reprodutivos................................................. 372
3.2  Justificativa e consequências da proposta de alteração legislativa: entre a proteção
e a invisibilização do corpo com deficiência......................................................................... 375
3.3  Substitutivo apresentado pela Senadora Lídice da Mata no tema dos direitos
sexuais e reprodutivos...............................................................................................................378
Conclusão................................................................................................................................... 379
Referências................................................................................................................................. 380

HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE


DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES............................................................................................... 383
Introdução.................................................................................................................................. 383
1  Revisão de literatura................................................................................................................. 384
2  Análise das legislações............................................................................................................. 386
3  Principais problemas apontados pela doutrina especializada.......................................... 390
4  Análise no contexto brasileiro................................................................................................. 392
Conclusão................................................................................................................................... 394
Referências................................................................................................................................. 395

O BIG DATA SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE


GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA.................................................. 399
Introdução.................................................................................................................................. 399
1  O desafio da privacidade no mundo hiperconectado.......................................................... 401
2  O Big Data somos nós: entre a exploração econômica e o controle pessoal
dos dados.................................................................................................................................... 405
3  Projetos de gerenciamento pessoal de dados....................................................................... 409
3.1  Digital me......................................................................................................................................410
3.2  Hub of all things (hatdex)..............................................................................................................412
3.3  MyData.........................................................................................................................................414
4  O gerenciamento pessoal de dados como alternativa para proteger a privacidade........417
Considerações finais................................................................................................................. 421
Referências................................................................................................................................. 423

AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE


ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO................................................................................. 427
1  Introdução.................................................................................................................................. 427
2  As transformações do Direito Contratual frente ao dinamismo das relações
econômicas................................................................................................................................. 428
3  O paradigma dos contratos relacionais e seu papel para a compreensão
dos híbridos................................................................................................................................ 432
4  As redes contratuais como nova forma de organização da atividade econômica.......... 434
5  Natureza jurídica das redes contratuais................................................................................ 437
5.1  Redes contratuais como contratos.......................................................................................... 438
5.2  A rede contratual como empresa comum............................................................................. 440
5.3  A rede contratual como grupo econômico............................................................................ 442
5.4  A rede contratual como contratos coligados......................................................................... 444
6  Consequências do acolhimento da noção de rede contratual sobre a dogmática
clássica........................................................................................................................................ 446
6.1  A causa como critério de identificação do vínculo funcional entre as relações
da rede......................................................................................................................................... 447
6.2  A boa-fé objetiva como critério definidor dos padrões comportamentais
a serem observados pelos membros da rede........................................................................ 449
6.3  A necessária reflexão sobre o interesse social para a conciliação de interesses
contrapostos: a noção de “interesse da rede”....................................................................... 452
7  A governança das redes contratuais e a gestão de seus paradoxos essenciais............... 455
7.1  O papel da autoridade nas networks: dependência econômica e o risco do
controle externo......................................................................................................................... 455
7.2  Responsabilidade interna dos membros da rede................................................................. 456
7.3  Responsabilidade externa dos membros da rede................................................................ 458
8  Conclusão................................................................................................................................... 459
Referências................................................................................................................................. 460

A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO


FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
CAROLINE JANAINA MENDES, JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES....................... 465
1 Introdução.................................................................................................................................. 465
2  Terapia gênica............................................................................................................................ 466
3  Direito fundamental à identidade genética frente à técnica de terapia gênica
em células da linha germinativa............................................................................................ 468
3.1  Direito fundamental à identidade genética.......................................................................... 469
4  Considerações finais................................................................................................................. 472
Referências................................................................................................................................. 472

LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO


PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA................................................................................................... 475
1  Considerações iniciais.............................................................................................................. 475
2  A trajetória do sujeito de direito metafísico ..........................................................................476
3  Os paradoxos em torno dos sujeitos de direito compartimentados.................................. 479
4  A título conclusivo: as inquietações quanto à unificação a partir da dignidade
humana....................................................................................................................................... 482
Referências................................................................................................................................. 483

RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O


ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO............................................................................... 485
Introdução.................................................................................................................................. 485
1  A experiência europeia no desenvolvimento de uma política indenizatória cível........ 486
2  O Brasil está pronto para fomentar a responsabilidade civil concorrencial? ..................491
3  Barreiras à indenização cível no Brasil.................................................................................. 494
Conclusão: Road map para desenvolver a responsabilidade civil no Brasil..................... 496
Referências................................................................................................................................. 498

RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO


INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA............. 501
1  Introdução.................................................................................................................................. 501
2  A boa-fé objetiva e o panorama civil-constitucional........................................................... 502
2.1  Os deveres gerais de conduta derivados da boa-fé objetiva............................................... 504
2.2  Deveres gerais de conduta: cooperação, confiança e ética nas relações contratuais...... 505
3  O adimplemento sob a perspectiva da boa-fé objetiva....................................................... 508
3.1  Obrigação jurídica complexa e os deveres gerais de conduta............................................ 509
4  Inadimplemento ético e responsabilidade civil por inobservância a deveres gerais
de conduta...................................................................................................................................510
5  Conclusão....................................................................................................................................512
Referências..................................................................................................................................512

IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO:


DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO DO REGISTRO
CIVIL DE TRANSGÊNEROS
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER........................................................................................ 515
1  Introdução...................................................................................................................................515
2  Sexo, gênero e o direito à identidade pessoal........................................................................516
3  A ratio decidendi da ADI nº 4.275 ............................................................................................ 520
4  Vetores hermenêuticos para a retificação de registro civil de transexuais e a
normativização da decisão pelo Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional
de Justiça..................................................................................................................................... 522
4.1  Dignidade, igualdade e liberdade: reconhecimento da identidade de gênero
enquanto manifestação de personalidade............................................................................ 522
4.2  Sigilo dos dados registrais e o direito ao esquecimento..................................................... 525
4.3  A via de acesso à adequação registral: a gratuidade do procedimento médico e
da retificação do registro..........................................................................................................531
5  Conclusão................................................................................................................................... 533
Referências................................................................................................................................. 534

DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU


“NOVAS ESPÉCIES”?
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS........................................ 537
1  Introdução ................................................................................................................................. 537
2  O dano na responsabilidade civil........................................................................................... 538
3  Danos patrimoniais e danos extrapatrimoniais................................................................... 541
3.1  Dano moral ................................................................................................................................ 543
4  Novos danos............................................................................................................................... 544
Conclusão................................................................................................................................... 548
Referências................................................................................................................................. 548

ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO


À MORTE DIGNA
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA................................................................................................. 551
Introdução.................................................................................................................................. 551
1  Medicalização da vida e modalidades de intervenção médica.......................................... 553
2  O papel da autonomia existencial e as diretivas antecipadas em vida............................ 558
3  Conclusão................................................................................................................................... 564
Referências................................................................................................................................. 564

O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO


CAMILA AGUILEIRA COELHO...................................................................................................... 569
Introdução: a expansão dos danos ressarcíveis, o princípio da reparação integral
e o dano da privação de uso.................................................................................................... 569
1  O direito de uso como interesse jurídico merecedor de tutela ......................................... 571
2  O dano emergente autônomo oriundo da privação de uso.................................................574
3  Privação de uso e lucros cessantes......................................................................................... 579
4  Privação de uso e danos extrapatrimoniais.......................................................................... 581
5  Conclusão................................................................................................................................... 582
Referências................................................................................................................................. 582

A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO


À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
PATRICIA FERREIRA ROCHA......................................................................................................... 585
Introdução.................................................................................................................................. 585
1  Breves apontamentos sobre a solidariedade e sua incidência no âmbito familiar......... 586
2  A solidariedade familiar na obrigação alimentar: uma análise dos seus
pressupostos............................................................................................................................... 588
3  Uma releitura do instituto da legítima sucessória em face da solidariedade
alimentar..................................................................................................................................... 590
Conclusão................................................................................................................................... 595
Referências................................................................................................................................. 596

SOBRE OS AUTORES............................................................................................................................ 599

SOBRE OS COORDENADORES.......................................................................................................... 605


APRESENTAÇÃO

O VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) se realizará no


campus da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), entre os dias 18 e 20 de outubro de
2018, inaugurando um novo formato, que visa à ampliação do debate sobre os novos
desafios impostos à civilística contemporânea.
Sob a macrotemática Autonomia privada, liberdades existenciais e direitos fundamentais,
lançou um edital, convocando a comunidade científica para participar da discussão,
submetendo resumos sobre os subtemas propostos. Atenderam à chamada pública
profissionais titulados com doutorado ou mestrado e estudantes matriculados nos cursos
de pós-graduação stricto sensu em Direito, afiliados a instituições de ensino superior
brasileiras e estrangeiras. Todos os resumos foram avaliados sob o sistema double blind
peer review, e aqueles que lograram aprovação foram selecionados para apresentação
durante o Congresso, nos painéis correspondentes.
Aos aprovados foi dada a oportunidade de apresentar o texto estendido, que,
novamente, foi levado à avaliação no sistema de parecer duplo cego por professores
doutores na área do direito privado. Os autores que tiveram seus textos selecionados
cumpriram o desafio de seguir a macrotemática proposta, respeitando a unidade
metodológica e o rigor científico.
Todo esse processo somente foi possível em virtude do esforço coletivo dos
autores, dos organizadores e, sobretudo, do corpo de pareceristas comprometido com o
propósito do IBDCivil de ampliar o espaço de discussão para novos atores, sem prejuízo
da qualidade e da unidade metodológica.
Os textos que compõem o conjunto da obra analisam a autonomia privada no âmbito
dos negócios patrimoniais ou existenciais a partir da legalidade constitucional. Adotam
os direitos fundamentais e o respeito à dignidade da pessoa humana como parâmetros
referenciais de toda a construção argumentativa, seguindo a diretriz hermenêutica que
visa à máxima adequação das soluções jurídicas à axiologia constitucional. Confirmam o
fenômeno designado como constitucionalização do direito civil, bem presente na atuação
do Judiciário, cada vez mais comprometido com o fortalecimento dos mecanismos de
controle da constitucionalidade.
É com renovada satisfação que concluímos a organização deste trabalho, fazendo
votos de que sua leitura possa contribuir para o crescente desenvolvimento do direito
civil brasileiro, comprometido em garantir os espaços da autonomia privada sempre
em atenção aos direitos fundamentais.

Gustavo Tepedino
Joyceane Bezerra de Menezes
Vanessa Correia Mendes
Ana Paola de Castro e Lins
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES
E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO
NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL
E SEUS OBSTÁCULOS REGISTRAIS

ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA

1 Introdução
O Direito Real de Laje foi criado no ordenamento jurídico (Lei nº 13.465, de 12 de
julho de 2017) brasileiro como importante instrumento a ser utilizado na Regularização
Fundiária Urbana.
Por constituir uma nova modalidade de direito real sobre coisa própria, o Direito
de Laje se torna, ainda, importante mecanismo para obtenção de linhas de financiamento,
pois consiste em nova modalidade de direito real que pode ser dado em garantia. Tal fato
produz importante circulação do crédito, o que pode levar ao aquecimento de setores
da economia nacional.
Entretanto, existem questionamentos sobre os procedimentos registrais de
referido instrumento. Este modesto trabalho busca apresentar à comunidade este valioso
instrumento e contribuir para o debate sobre a construção de meios de superação de
eventuais dificuldades que o seu registro possa apresentar.

2 Do Direito Real de Laje e sua natureza jurídica: direito real sobre
coisa própria
A Lei nº 13.465, de 12 de julho de 2017, trouxe para o Brasil um novo Direito Real.
Trata-se do Direito Real de Laje.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
20 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Inicialmente, tratado por grande parte da doutrina nacional1 como sendo uma
espécie do já existente Direito Real de Superfície, tal entendimento não merece pros­
perar. Trata-se, na verdade, de um novíssimo direito real; de uma nova modalidade
de Direito Real sobre Coisa Própria que veio se juntar ao até então “solitário” (nesta
categoria) Direito Real de Propriedade.
Talvez, esta errônea interpretação de parte da doutrina se justifique mesmo por
culpa da própria Lei, que, para conceituar o novo instituto, o fez da seguinte forma:

Art. 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou


inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela
originalmente construída sobre o solo. 

Uma leitura açodada do artigo 1.510-A leva a uma interpretação equivocada de


que o proprietário de uma construção-base poderia ceder um Direito Real de Superfície
sobre sua construção a fim de que o titular desta nova superfície mantivesse unidade
distinta da construção-base.
Entretanto, em uma interpretação mais cuidadosa do texto, facilmente se percebe
que a palavra superfície fora ali utilizada não para ser compreendida como cessão de um
direito de superfície, mas sim como cessão de uma área superficial.
Dando continuidade à apresentação do novíssimo instituto, podemos afirmar que
estamos, mesmo, diante de uma nova forma de propriedade. Exatamente como já ocorreu
no passado, quando fora criado o condomínio edilício. Deixando bem claro, desde já,
que não se trata o Direito Real de Laje de qualquer forma de condomínio.2 Jamais!
Eis duas razões que demonstram, sobejamente, que o Direito Real de Laje não
pode ser confundido com o Direito Real de Superfície (Direito Real sobre Coisa Alheia)
e se constitui mesmo em um Direito Real sobre Coisa Própria autônomo:
1. Ao ser criado um Direito Real de Laje, ele recebe no Cartório de Registro de
Imóveis uma nova matrícula. Se fosse este direito um direito real sobre coisa alheia,
como a Superfície, este Direito Real de Laje não ganharia matrícula autônoma, pois,
“conforme o princípio registral da unitariedade ou unicidade matricial, a cada imóvel
deve corresponder apenas uma matrícula. Se o Direito Real de Laje fosse um direito real
sobre coisa alheia, ele – por esse princípio registral – não poderia gerar uma matrícula
própria;” (OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O que é o direito real de laje à luz da Lei
nº 13.465/2017? (parte 1) – site da revista Consultor Jurídico – www.conjur.com.br – visitado
no dia 21 de novembro de 2017).
2. Uma vez constituído o Direito Real de Laje, ele é perpétuo. Ou seja: não há
nenhuma causa ou forma de que este direito se resolva e volte para a titularidade
exclusiva do proprietário da construção-base. Exatamente da mesma forma como ocorre
com o direito de propriedade e diferentemente do que ocorre com os direitos reais sobre
coisa alheia, em que a volta do bem às mãos do proprietário é seu pressuposto.

1
Alguns autores com este entendimento: Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de
Farias, Frederico Viegas de Lima. Para estes, o novo direito não passaria da chamada superfície por sobrelevação.
2
§4º A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a
participação proporcional em áreas já edificadas. 
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
21

3 Análise dos artigos 1.510-A e seguintes do Código Civil


3.1 Da atecnia da nomenclatura “laje”
De início, cumpre-nos chamar a atenção para o uso inadequado do termo “laje”
para designar este instituto. Isto porque se entende por laje a cobertura superior que um
imóvel recebe em sua estrutura, com fincas a servir como sua cobertura. Entretanto, este
direito real recém-criado pode ser constituído até mesmo no subsolo. Ou seja: abaixo
do imóvel e não apenas sobre ele:

Art. 1.510-A. O proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou


inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela
originalmente construída sobre o solo.
§1º O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo de terrenos públicos
ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade imobiliária autônoma,
não contemplando as demais áreas edificadas ou não pertencentes ao proprietário da
construção-base.

Em termos jurídicos, estaríamos falando de uma espécie de Direito de Superfície


por sobrelevação. Entretanto, como há muitos anos se encontra difundido entre nós o
termo direito de laje para se referir às várias ocupações irregulares que campeiam pelo
Brasil afora (caso típico das favelas brasileiras), preferiu-se, então, esta nomenclatura –
Direito de Laje. Talvez (e esta é apenas uma conjectura de nossa parte), para reforçar o
caráter popular da Lei nº 13.465, cuja razão é cuidar da Regularização Fundiária. Assim,
o novo Direito Real de Laje não abrange apenas o espaço aéreo acima da laje. Pode
ocorrer, também, sobre o espaço abaixo do solo.

3.2 Da possibilidade de coexistência de vários Direitos Reais de Laje


recaindo sobre uma mesma construção-base: graus de laje
Sobre uma mesma construção-base podem coexistir vários Direitos de Laje. Assim
como um mesmo bem pode ser cedido a várias hipotecas, constituindo graus diferentes
de hipoteca, o mesmo pode ocorrer com o Direito de Laje: podem ser constituídos Direitos
de Laje em diferentes graus.
O grau da laje será conferido, como nas hipotecas, de acordo com a ordem
cronológica de seu registro:

Art. 1510-A (...)


§6º. O titular da laje poderá ceder a superfície de sua construção para a instituição de
um sucessivo direito real de laje, desde que haja autorização expressa dos titulares da
construção-base e das demais lajes, respeitadas as posturas edilícias e urbanísticas vigentes.

A questão que se coloca é: por que algum titular de Direito Real de Laje (já cons­
tituído sobre uma construção) poderia proibir que um novo Direito Real de Laje seja ali
também constituído? Por que, afinal, haveria de ser obrigatória a autorização expressa
dos titulares da construção-base e das demais lajes? Ainda mais se considerando que
não recairá sobre este imóvel qualquer espécie de condomínio?
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
22 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Salvo melhor juízo, entendemos que tal poder não pode ser conferido aos titulares
do imóvel por mero capricho. Tal poder seria incompatível com a liberdade que a Lei
nº 13.465 conferiu aos titulares do Direito Real de Laje.
Imagine: “A” tem um filho que está para casar-se em breve, mas não tem condições
financeiras para comprar um imóvel.
“A” é titular de um Direito Real de Laje sobre uma construção que já suporta
outros dois Direitos Reais de Laje. Como titular deste Direito Real de Laje, “A” tem o
direito de constituir sobre a sua laje um novo direito de laje para o seu filho.
Por qual razão, então, os outros titulares de outros direitos reais que recaiam
sobre aquele imóvel poderiam impedir que “A” concedesse o direito de laje ao seu filho?
Tal restrição é incompatível com a natureza deste direito real autônomo, que,
como de resto nos demais direitos reais, confere o direito de dispor da coisa e a eficácia
erga omnes.
Principalmente se lembrarmos que: a) não existe relação de condomínio entre
os vários titulares de direitos reais daquela construção; portanto, qual a razão de tal
submissão aos demais? b) O §3º do artigo 1.510-A assegura aos titulares da laje os direitos
de dela usarem, gozarem e disporem.3
Desta forma, entendemos que a anuência dos outros titulares de direitos reais
sobre a construção-base somente poderia ser exigida caso a constituição de novo Direito
Real de Laje constituísse perigo para o restante da construção. Caso contrário, ou seja,
por mero capricho dos demais titulares, esta oposição não pode ser considerada.

3.3 Do direito de preferência


Em imóveis sobre os quais recai Direito Real de Laje haverá o direito de preferência
em uma eventual alienação de cada uma das unidades autônomas. Havendo mais de um
Direito Real de Laje, a preferência deverá ser dada sempre aos titulares das lajes mais
próximas. Havendo lajes superiores e inferiores, as lajes superiores terão preferência
sobre as lajes inferiores, “assegurada a prioridade para a laje mais próxima à unidade
sobreposta a ser alienada”.
A não observância deste direito na aquisição do bem possibilitará que o titular
a quem não tiver sido dada a preferência possa, no prazo de 180 dias (a contar da data
da alienação), mediante depósito judicial do respectivo preço, haver para si a parte
alienada a terceiros. É o que dispõe o artigo 1.510-D do Código Civil e seus parágrafos:

Art. 1.510-D. Em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, terão direito de
preferência, em igualdade de condições com terceiros, os titulares da construção-base e da
laje, nessa ordem, que serão cientificados por escrito para que se manifestem no prazo de
trinta dias, salvo se o contrato dispuser de modo diverso. 
§1º O titular da construção-base ou da laje a quem não se der conhecimento da alienação
poderá, mediante depósito do respectivo preço, haver para si a parte alienada a terceiros,
se o requerer no prazo decadencial de cento e oitenta dias, contado da data de alienação. 

3
Art. 1510-A (...) – §3º Os titulares da laje, unidade imobiliária autônoma constituída em matrícula própria,
poderão dela usar, gozar e dispor.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
23

§2º Se houver mais de uma laje, terá preferência, sucessivamente, o titular das lajes
ascendentes e o titular das lajes descendentes, assegurada a prioridade para a laje mais
próxima à unidade sobreposta a ser alienada.

3.4 Das obrigações análogas às obrigações do condômino


Interessante ressaltar também que, não obstante o próprio §4º do artigo 1.510-A4
destacar que não existe condomínio entre o proprietário da construção-base e os titulares
dos direitos de Laje que eventualmente recaiam sobre aquela mesma construção, a todos
estes titulares a Lei nº 13.465 impõe as mesmas obrigações constantes no condomínio
edilício, sobre partes da construção-base que são de uso comum:

Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios
edilícios, para fins do direito real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição
das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum
serão partilhadas entre o proprietário da construção-base e o titular da laje, na proporção
que venha a ser estipulada em contrato. 
§1º São partes que servem a todo o edifício: 
I – os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituam
a estrutura do prédio; 
II – o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso exclusivo do titular
da laje; 
III – as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás,
comunicações e semelhantes que sirvam a todo o edifício; e 
IV – em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo o edifício. 
§2º É assegurado, em qualquer caso, o direito de qualquer interessado em promover
reparações urgentes na construção na forma do parágrafo único do art. 249 deste Código.

Por todo o exposto nos itens 3.3 e 3.4 percebe-se o quão próximo este instituto
se faz do condomínio. Mesmo que, repita-se, jamais se possa considerar a relação
entre a diversidade de titulares de direitos reais sobre a coisa como sendo uma relação
condominial.
Na verdade, o Direito Real de Laje surge exatamente para atuar no hiato que
há entre o Direito Real de Superfície e o Condomínio Edilício. Trata-se de excelente
instrumento para o mercado imobiliário na medida em que possibilita a criação de
várias unidades imobiliárias sobre um mesmo bem sobre o qual não se poderia criar
um condomínio edilício, nem se tenha o interesse em criar um Direito Real de Superfície
em razão de sua temporariedade. “Pode-se valer do direito de laje, para instituir regime
jurídico perene, análogo às unidades imobiliárias autônomas do condomínio edilício”.
(FIUZA, César Augusto de Castro; COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho.
Ensaio sobre o Direito Real de Laje como Previsto na Lei 13.465/2017. p. 6. Civilistica.
com, Rio de Janeiro, ano 6, n. 2, 2017. Disponível em: <http://civilistica.com/ensaio-sobre-
o-direito-real-de-laje/04.04.2017>).

4
§4º A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a
participação proporcional em áreas já edificadas
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
24 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

4 Dos obstáculos registrais ao Direito Real de Laje


Uma vez apresentado o novel instituto, propomo-nos, agora, a debater sobre os
obstáculos que o registro deste direito pode apresentar. Afinal, a nova lei foi omissa em
diversos pontos quanto à questão registral do direito de laje, despertando inúmeras
dúvidas a respeito deste ponto.

4.1 Exigências urbanísticas
Com efeito, o fato de uma lei federal criar um novo direito real não significa que o
referido instituto possa ser aplicado em qualquer município. Ou ao menos sem qualquer
regulação mais específica. Isto porque o Direito Real de Laje pode ser restringido, ou até
mesmo proibido, naqueles municípios em que o ordenamento urbanístico municipal
proíba a existência de construções multifamiliares. Seja por questões arquitetônicas
(imóveis tombados, p. ex.), ambientais (áreas frágeis, susceptíveis a controle habitacional,
p. ex.), sanitárias e outras.
Em sentido contrário, o Professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira, em artigo
escrito para o site Consultor Jurídico em 25 de setembro de 2017,5 assim entende:

A exploração do direito real de laje depende da observância das normas urbanísticas, pois
esse direito é destinado primordialmente à exploração da laje ou do subsolo com autonomia
(artigo 1.510-A, §§ 5º e 6º, do CC). Daí decorre duas indagações: os cartórios de imóveis
poderão registrar o ato de instituição do direito real de laje sem prévia autorização do
município atestando a sua compatibilidade com as normas urbanísticas?
Ao nosso sentir, não há obstáculo algum ao registro do ato constitutivo do direito real de
laje sem prévia autorização do município, pois a mera instituição de um direito real de
laje não significa que haverá a realização de construção efetiva desse direito. Assim como
o registro de um outro direito real qualquer (como o de usufruto ou de superfície) não
reclama prévia autorização municipal, não há motivos para negar o acesso de um título
constitutivo de um direito real de laje ao álbum imobiliário. Com efeito, é viável que alguém
se interesse em adquirir o direito real de laje apenas com o objetivo de especulação, para, no
futuro, quando as normas urbanísticas se tornarem favoráveis, explorar a laje ou aliená-la.
Não há motivos para impedir a constituição de um direito real.
Isso, todavia, não significa que, instituído o direito real de laje, o seu titular poderá livre­
mente edificar um “andar” (aéreo ou subterrâneo), pois as regras locais de construção
exigem autorização do município. Nem significa que ele poderá ocupar a laje, se houver
vedação da legislação municipal. Isso significa que, se o titular fizer alguma construção
sobre a área de seu direito real de laje, o cartório de registro de imóveis não poderá averbar
esse fato na matrícula (ou seja, averbar a construção), salvo se for apresentado beneplácito
municipal por meio do “habite-se” ou de outro documento que ateste a compatibilidade
da obra com as regras urbanísticas.
Em resumo, as regras urbanísticas não impedem a constituição do direito real de laje, mas
apenas a averbação de futuras construções feitas pelo seu titular. O que a Municipalidade
pode restringir é o uso da laje ou a edificações sobre elas, mas não impedir a mera
constituição de um direito real de laje.

5
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2007-set-25/direito-civil-atal-direito-real-laje-luz-lei-134652017-
parte2>.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
25

Data venia, não concordamos com tal posicionamento. Ora, como justificar o
registro imobiliário de um direito real sobre um imóvel se ele não pode se prestar a
qualquer alargamento de seu uso?
Como justificar que se possa registrar um Direito Real de Laje, podendo ser
proibida, no entanto, a averbação de qualquer construção fundada sobre este direito?
Então, pergunta-se: se não se pode usufruir de um direito, por qual razão haveria de
adquiri-lo?
O autor reforça a informação de que normas urbanísticas podem proibir a
averbação de novas construções sobre ou sob um edifício, assim como podem impedir
a mera ocupação de lajes. Pois bem, então não faz sentido algum que o Cartório de
Registro de Imóveis registre um Direito Real de Laje sobre imóvel que não possa receber
qualquer tipo de construção. Caso contrário haveria a aberração jurídica de se ter um
direito estéril (incapaz de produzir os frutos desejados).

4.2 Pode haver Direito Real de Laje em lotes vagos ou sobre


construções não averbadas?
Respondendo ao questionamento que dá nome ao presente tópico, entendemos
que não. Pelo próprio nome (Direito de Laje) conclui-se que a existência de uma
construção-base é pressuposto para a criação de um Direito de Laje. Ao menos no que
se refere às lajes superiores (construídas sobre a construção já existente).
E por razões semelhantes entendemos não ser possível a constituição de Direito
Real de Laje sobre imóvel não averbado. Isto porque o Direito Real de Laje deve ser
gravado, exatamente, sobre uma construção-base. Se esta não é averbada (formalmente
não existe, pois), por óbvio, ficam prejudicados todos e quaisquer direitos que dependam
desta averbação.
Ademais, o §6º do artigo 1.510-A exige que tanto a edificação que receberá o
Direito Real de Laje como a própria laje estejam em consonância com as posturas locais
de edificação. Mais uma razão, portanto, que nos faz concluir não ser possível constituir
Direito Real de Laje sobre construções não averbadas. Nas palavras de Couto:

Assim, parece lógico que, para se constituir direito de laje, deva-se (i) estar regularmente
averbada a construção na matrícula do imóvel e (ii) existir alvará de construção aprovado
referente à edificação a ser realizada sobre a já existente ou algum outro documento do
ente público certificando que existe potencial construtivo. Entendimento diverso implicaria
na constituição de um direito real que teria objeto ilícito (construção proibida), ferindo o
art. 104, inciso II, do Código Civil (COUTO, p. 14)

Entretanto, como a Lei nº 13.465 admite a criação de lajes subterrâneas (ou infe­
riores), no caso destas últimas (destaque-se) entendemos não ser necessária a existência
de qualquer construção no imóvel. Afinal, neste caso, o subsolo do imóvel constituirá a
base sobre a qual se fundará o direito de laje.
Por outro lado, é de se perguntar sobre a situação dos imóveis que já se encon­
travam nesta condição antes da entrada em vigor da Lei nº 13.465.
Entendemos que, se a prima ratio desta legislação é ser um instrumento no processo
de regularização fundiária, os imóveis que já se encontravam com este tipo de construção
antes da entrada em vigor desta lei não podem ser excluídos.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
26 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

E mais: entendemos que na busca por tal regularização dos espaços urbano
e rural, os governos federal, estaduais e municipais deveriam mesmo desenvolver
políticas públicas com ações agressivas de estímulo a estes imóveis (que já se encontram
nesta condição informal de Direito de Laje) a oficializarem suas situações jurídicas em
conformidade com a nova legislação.

(...) nada impede que seja instituído por meio de escritura de constituição de direito de
laje, na qual compareçam o proprietário registral e o titular da laje, estabelecendo-se a área
da construção sobreposta, que será objeto da laje, abrindo-se a matrícula correspondente
para o novo direito real, com o consequente registro desse direito em nome do beneficiário.
Mostra-se viável, outrossim, a instituição, por escritura pública, somente pelo titular
registral, de direitos de laje sobre construção já averbada em seu imóvel, com abertura
das respectivas matrículas, para que posteriormente possam ser alienados a terceiros estes
direitos. A realidade demonstra que, para fins de financiamento imobiliário, as instituições
financeiras exigem matrícula própria com construção averbada, para fins de concessão do
empréstimo e registro da garantia (COUTO, p. 14).

Vale destacar a importância da regularização destas construções por meio de um


novo direito real, exatamente, a possibilidade da inserção desta construção no ambiente
de crédito.
Neste ponto, vale citar trecho do livro “Reflexões sobre o direito à propriedade”,6
do Professor Denis Lerrer Rosenfield:

Um país constituído de proprietários no sentido amplo do termo, um país que valorize a


propriedade, um país que assegure aos seus o usufruto de seus bens, é um país em que
vigora o estado de direito e onde a sociedade se desenvolve socialmente com crescimento
econômico. (...) Neste sentido, se enfocarmos o problema a partir das favelas brasileiras,
a tarefa estatal deveria consistir em fazer valer o direito de propriedade em seu sentido
pleno nesses lugares em que as normas propriamente estatais não regem.(...)
Num país como o Brasil, onde milhões de pessoais vivem em situações precárias em
relação à posse de moradia, onde esse tipo defectivo (grifos nossos) de propriedade não é
reconhecido pelo sistema legal da sociedade, tornar essas posses precárias propriedades7
no sentido estrito da palavra seria uma política de ampla repercussão econômica, social e
política (grifos nossos) (ROSENFIELD, ps. 81 e 82).

E aqui explicamos melhor:


a) Repercussão econômica: porque esses indivíduos se sentiriam mais encorajados
em empregar seu empreendedorismo em um direito formalizado do que em uma posse
informal.

6
Note que o título do livro é “Reflexões sobre o direito à propriedade” e não reflexões sobre o direito da
propriedade. Não é questão de semântica. De fato, em sua obra, o autor destaca o impacto que o direito formal da
propriedade privada provoca na vida de cada indivíduo e, em última análise, para o progresso de um país. Mas
destaca que a propriedade é um bem escasso e que, além da impossibilidade material de se conferir propriedade
a todos os indivíduos de um país, muitos destes indivíduos não suportariam os ônus que a propriedade privada
impõe.
7
A obra do Professor Denis é de 2008. Já aqui o autor sugeria que as situações possessórias fossem elevadas
à categoria de uma propriedade formal. Tal elevação de status destas “posses precárias” implicaria enormes
ganhos sociais. Pois bem, o novíssimo Direito Real de Laje consiste, exatamente, em elevar estas posses a um
patamar de direito real sobre coisa própria sem, no entanto, conferir aos possuidores do imóvel a condição de
proprietários. Entretanto, formalmente, estão equiparados a tanto.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
27

A Lei nº 13.465, ao criar o Direito Real de Laje, não limitou que o seu uso fosse
apenas para fins de moradia. Portanto, o titular de um Direito Real de Laje pode utilizar
de sua unidade imobiliária até mesmo para fins comerciais. Tal possibilidade descortina
um novo cenário que, inegavelmente, se constitui em importante instrumento de
circulação de riqueza.
Isto sem falar de outra importância econômica estimulada por este instrumento
que, aliás, foi expressamente destacada na Lei nº 13.465: a possibilidade de que este novo
direito real possa ser utilizado como garantia real na obtenção de linhas de financiamento
a fim de estimular o crédito.
b) Repercussão social: elevando os possuidores a uma condição de titulares de um
direito real, estar-se-ia possibilitando a estes as mesmas condições de acesso a vários
serviços que hoje são restritos a proprietários de imóveis. Portanto, significaria para
estes possuidores um ingresso no mercado formal como “cidadãos e não como cidadãos
de segunda categoria no mercado. (...) pois esses indivíduos, pela valorização dos seus
ativos, poderiam melhorar a vida dos seus familiares, vindo a gozar de uma melhor
condição social” (ROSENFIELD, p. 82).
c) Repercussão política: conforme Couto, “pode-se extrair da exposição de motivos
da MP 759/2016, convertida na Lei 13.465/17, que o principal motivo para a criação do
novo direito real foi a ‘regularização fundiária de favelas’”: Veja-se:

113. VI – SOBRE O DIREITO REAL DE LAJE. Em reforço ao propósito de adequação do


Direito à realidade brasileira, marcada pela profusão de edificações sobrepostas, o texto
prevê a criação do direito real de laje.
114. Por meio deste novo direito real, abre-se a possibilidade de se instituir unidade
imobiliária autônoma, inclusive sob perspectiva registral, no espaço aéreo ou no subsolo
de terrenos públicos ou privados, desde que esta apresente acesso exclusivo. Tudo para
que não se confunda com as situações de condomínio.
115. O direito de laje não enseja a criação de codomínio sobre o solo ou sobre as edificações
já existentes. Trata-se de mecanismo eficiente para a regularização fundiária de favelas.

Portanto, politicamente, os moradores destas áreas “se tornariam menos submissos


a políticas clientelistas e, mesmo, poderiam se libertar, com ajuda do aparelho estatal,
do crime organizado” (ROSENFIELD, p. 82).
Neste sentido:

Também uma política habitacional, com juros acessíveis e prestações fixas, propiciaria a
aquisição de moradia própria para os que ainda não a possuem. Haveria tanto a satisfação
de uma necessidade básica quanto o desenvolvimento do mercado imobiliário, com mais
empregos, renda e salários. Indivíduos proprietários são menos propensos ao clientelismo
político, que termina se desenvolvendo pela ausência mesma de direitos.
As favelas constituem um terreno particularmente favorável para uma política de
regula­rização fundiária, que possibilitaria a substituição da precariedade da posse pela
propriedade privada.8 A outorga de um título de propriedade9 faz com que o cidadão

8
Mais uma vez destaca-se: o que o autor sugeria em sua obra de 2008, com a transformação das posses (denominadas
de posses precárias pelo autor, numa alusão ao seu caráter de fragilidade) a um status da propriedade formal, é
alcançado com primor e maestria pela transformação das situações possessórias em Direito Real de Laje.
9
Podendo ser lido agora como a outorga de um título de Direito Real de Laje.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
28 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

venha a ser senhor dos seus bens, podendo, segundo a sua livre escolha, dispor deles.
(ROSENFIELD, p. 82).

4.3 Constituição do Direito Real de Laje por “mera notícia”.


Possibilidades
Na Regularização Fundiária de Interesse Social (REURB-S) o Poder Público poderá
empregar vários institutos jurídicos na busca de conferir ao ocupante precário de uma
área o direito real que seja mais adequado à sua realidade. Portanto, para tal fim, o Poder
Público poderá conferir a este indivíduo desde a propriedade regular de uma área, assim
como o direito real de laje e a concessão de direito real de uso.
Mas, para além da concessão destes direitos, o Poder Público poderá, também,
facilitar que se registre a edificação existente, independentemente da apresentação de
pagamento da contribuição previdenciária relativa à construção.
O art. 63 da Lei nº 13.465/2017 permitiu, ainda, que a construção seja averbada
com base em ‘mera notícia’, independentemente de emissão de habite-se e certidão
previdenciária:

Art. 63. No caso da Reurb-S, a averbação das edificações poderá ser efetivada a partir de
mera notícia, a requerimento do interessado, da qual constem a área construída e o número
da unidade imobiliária, dispensada a apresentação de habite-se e de certidões negativas
de tributos e contribuições previdenciárias.

Em outros termos: uma das maiores razões da informalidade que campeia nas
favelas reside no fato dos altos custos que são cobrados para a averbação das construções
ali erguidas, além de um processo extremamente demorado por exigência de tantas
burocracias.
Estamos tratando de área cuja característica maior de seus habitantes é a sua baixa
renda. Portanto, um dos maiores entraves à regularização dos terrenos ali encontrados
é o valor cobrado nos Cartórios de Imóveis. Tornar-se-ia inviável ao fim que se procura
atingir (regularização fundiária de interesse social) a exigência das formalidades, tais
como: averbação de construções, recolhimentos previdenciários.
Nas palavras de Couto:

(…) fora da esfera da regularização fundiária de interesse social, os trâmites para regularizar
uma construção junto ao ente municipal, para obter a certidão de quitação previdenciária
relativa à obra realizada e para averbar essa edificação no Registro de Imóveis é bastante
complexo, demorado e custoso. O resultado disso é a ausência de averbação de construção
na grande maioria das matrículas.
Toda essa burocracia representa um entrave na concretização do que se poderia chamar
de princípio da correspondência entre a situação fática e a matricial. Se o novo direito
real visa, de fato, possibilitar a regularização da situação registral de pessoas que ocupem
essas edificações sobrepostas, deveria facilitar o ingresso das construções na matrícula.
Um primeiro passo seria permitir que o município expeça o “Habite-se”, quando a
construção realizada, mesmo que em contrariedade às normas municipais de edificação,
já esteja concluída e consolidada pelo decurso do tempo, de modo que a demolição se
demonstre inviável.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
29

Conclusão
Por todo o exposto, comemoramos a criação de um instrumento jurídico, no seio
do Livro Direito das Coisas (outrora visto como o livro mais egoístico de nosso direito
Civil), que, efetivamente, se apresenta como forte meio de regularização do espaço
urbano e rural através da possibilidade conferida ao proprietário de, sem abrir mão de
sua propriedade e mantendo-a incólume e inviolável, permitir que terceiras pessoas se
utilizem do espaço aéreo e subsolo de sua construção-base sobre/sob a qual não tem
mais interesses ou condições de continuar a construir.
Constitui-se, portanto, em instrumento interessantíssimo a permitir o desmem­
bramento da propriedade privada em outros direitos autônomos, sem em nada diminuir-
lhe o valor ou sua tutela.
Como toda novidade, este instrumento precisa de maturação. A formalidade
registral, por exemplo, constituirá sério entrave ao que este instituto se propõe a fazer
(regularização fundiária em área de interesse social) se não houver a flexibilização de
alguns procedimentos registrais.

Referência
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito
de superfície. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-jan-02/direito-laje-
nao-direito-real- direitosuperficie>. Acesso em: 03 jan. 2017.
CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Salvador: Juspodivm, 2014, v. 5.
FIUZA, César Augusto de Castro; COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho. Ensaio sobre o Direito
Real de Laje como Previsto na Lei 13.465/2017. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 6, n. 2, 2017. Disponível em:
<http://civilistica.com/ensaio-sobre-o-direito-real-de-laje/04.04.2017>.
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Curso de direito civil. São Paulo: Atlas, 2015. v. 5.
ROSENFIELD, Denis Lerrer. Reflexões sobre o direito à propriedade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Disponível em: <https://www.
nelsonrosenvald.info/single-post/2017/09/14/O-direito-real-de-laje-como-nova-manifestação-de-propriedade>.
Acesso em: 25 nov. 2017.
SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. O direito de superfície na legislação brasileira. Boletim
do IRIB em Revista, São Paulo, ed. 325, p. 88-97, mar./abr. 2006.
STOLZE, Pablo. Direito real de laje: primeiras impressões. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/54931>.
Acesso em: 5 jan. 2017.
WEINGARTEN, Marcelo; CYMBALISTA, Renato. Direito de laje: desafios. Disponível em: <http://sites.usp.br/
outrosurbanismos/direito-de-laje-2/>. Acesso em: 3 jan. 2017.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito Real de Laje: potencialidades e desafios para sua utilização na
ocupação do espaço urbano e rural e seus obstáculos registrais. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.).
Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 19-29. E-book.
ISBN 978-85-450-0591-9.
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS
JURÍDICOS PROCESSUAIS

DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS

1 Introdução
O texto que aqui se inicia tem por objeto justificar e demonstrar a aplicação do
princípio da boa-fé objetiva nos negócios jurídicos processuais atípicos. Tal aplicação,
conforme será abordado, é necessária pelo fato de que estes são contratos estipulados
pelas partes, nos termos do artigo 190, do CPC, com o intuito de estipularem regras
e condições novas ao processo judicial, buscando sua maior efetividade e celeridade.
Em um primeiro momento, será abordado o conceito da boa-fé objetiva, bem
como a comparação de como esta é aplicada em nosso ordenamento jurídico, no Canadá,
Inglaterra, Grécia e como se faz presente na CISG.
Posteriormente, será demonstrado o conceito dos negócios jurídicos processuais,
com uma breve análise histórica.
Por fim, serão correlacionados os negócios jurídicos processuais com a boa-fé
objetiva, especialmente pelo fato de que o CPC, em seu artigo 5º, já prevê a sua aplicação
no Código de Processo Civil.

2 Boa-fé objetiva no Direito brasileiro


Nas palavras de Clóvis do Couto e Silva: “A influência da boa-fé na formação dos
institutos jurídicos é algo que não se pode desconhecer ou desprezar”.1

1
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 32.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
32 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A autonomia privada em relação ao negócio jurídico contratual, embora represente


o ápice da liberdade para a circulação de riquezas representada pela livre pactuação de
contratos pelos agentes de Direito, possui, no entanto, limites impostos pelo ordenamento
jurídico de Direito Público e Privado, além dos princípios norteadores, como boa-fé
objetiva e função social.2 Assim, a liberdade contratual não pode contrariar os princípios
da boa-fé, a ordem pública ou os bons costumes, nem pode representar um abuso em
desfavor de uma das partes.3
É sabido que o Código Civil de 2002 consolidou importantes dogmas jurídicos
do Direito Contratual. A recepção do princípio da boa-fé objetiva como regra geral de
interpretação dos negócios privados, nos termos do artigo 113,4 do Código Civil e como
norma de criação de deveres de conduta a serem seguidas pelas partes, conforme dispõe
o artigo 422,5 do Código Civil.6
A boa-fé objetiva, assim, seria uma ideia de regras de condutas fundadas na
honestidade, na retidão, lealdade. Assim, distancia-se daquela ideia de má-fé, que, por
sua vez, é relacionada com a ideia de boa-fé subjetiva.7 8
A boa-fé objetiva, então, como mandamento de conduta (ou mandamento de
consideração), engloba todas as partes envolvidas no negócio jurídico e estabelece, entre
eles, um elo de cooperação, em face do fim objetivo a que visam.9
Com o intuito de conceituar a boa-fé objetiva, fundamental trazer à baila o estudo
feito por Ricardo Lupion sobre o tema:

Essa boa-fé objetiva não é no sentido apontado pelo Código Civil de 1916, chamada de boa-
fé subjetiva, pois percebe-se que, além do elemento interno do contratante de julgar estar
agindo conforme procedimentos condizentes com a boa-fé, espera-se dele um plus exterior,
baseado no compromisso de lealdade, que pode ser resumido na obrigação de informação
e de cooperação que se expressa no dever de facilitar o cumprimento obrigacional, com
base nos critérios e limites usuais ditados pelos usos, costumes e boa-fé.10

Pode-se afirmar que a boa-fé objetiva representa o dever de agir de acordo


com padrões socialmente reconhecidos de lisura e lealdade. São esses padrões que
traduzem confiança necessária à vida de relação e ao intercâmbio de bens e serviços.

2
REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica do contrato. 1. ed. São Paulo: Almedina,
2017, p. 70/71.
3
HÖSTER, Heinrich Ewald. A parte geral do Código Civil Português – teoria geral do direito civil. 5ª reimpressão.
Coimbra: Almedina, 2009, p. 53/54. Apud REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica
do contrato. 1. ed. São Paulo: Almedina, 2017, p. 71.
4
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
5
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
6
DRUCK, Tatiana Oliveira. O Novo Direito Obrigacional e os Contratos. In: TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito
de Empresa e Contratos. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 45.
7
Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos: “A boa fé surge aqui como portadora de critérios de actuação honeste
a honrada, como padrão ou ‘standard’ jurídico. [...] A boa fé subjectiva e objectiva não são duas realidades
distintas, mas antes e apenas duas perspectivas distintas, ou dois diferentes pontos de partida, para submeter
as condutas jurídicas a um juízo de honestidade, de honradez e de decência” (VASCONCELOS, Pedro Pais de.
Teoria geral do direito civil. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 22/24.
8
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 412.
9
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 33.
10
GARCIA, Ricardo Lupion. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, páginas 41/42.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
33

Consequentemente é dever de cada parte agir de forma a não defraudar a confiança


da contraparte, indispensável para a tutela da segurança jurídica, para a garantia da
realização das expectativas legítimas das partes.11
Para Cláudia Lima Marques, a boa-fé objetiva:

(...) significa uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro
contratual, respeitando-o, respeitando os seus interesses legítimos, suas expectativas
razoáveis, seus direitos, agindo com realidade, sem abuso, sem obstrução, sem causar
lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o
cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.12

Ou seja, é dever de cada parte guardar fidelidade à palavra dada e não defraudar
a confiança ou abusar da confiança alheia.13
A jurisprudência também já reconhece essa conceituação da boa-fé objetiva.14
É evidente que muitos dos deveres derivados de contratos não serão exigíveis
no caso de um acordo processual, tanto pelo fato de que os deveres emanam das
necessidades dos contratos quanto por cada acordo processual ter características próprias;
contudo, deveres como o de informação e declaração fazem bastante sentido quando
se leva em conta essas convenções das partes, principalmente nos casos envolvendo
pessoas em situação de vulnerabilidade, como nos contratos de adesão, de evidente
disparidade entre as partes, dentre outros.15
A doutrina reconhece três funções desempenhadas pela boa-fé objetiva nas
relações contratuais, quais sejam: i) função interpretativa, que consiste em interpretar
o contrato à luz do próprio princípio, conforme dispõe o artigo 422, do Código Civil;
ii) função supletiva ou integrativa, que, por sua vez, visa suprimir a existência de lacunas
e impõe o surgimento de deveres anexos ou laterais16 às partes (como dever de informar,
esclarecer e manter sigilo nas negociações; iii) função corretora,17 a qual possibilita ao

11
GARCIA, Ricardo Lupion. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 50.
12
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – o novo regime das relações contratuais.
2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 107.
13
PASQUALOTO, Adalberto. A boa-fé nas obrigações civis. Revista da Faculdade de Direito da PUCRS: o ensino
jurídico no limiar do novo século. Antonio Paulo Cachapuz Medeiros (Org.). Porto Alegre: EDIPURS, 1997,
p. 111.
14
O STJ, através do Resp n° 981.750/MG, da 3ª Turma, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, dissertou o
seguinte sobre o conceito da boa-fé objetiva: “A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade,
modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria
conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal”.
15
MANTOVANI, Alexandre Casanova. O princípio da boa-fé e os negócios jurídicos processuais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 3, n. 3, p. 128/129, 2017.
16
O Enunciado nº 24 da I Jornada de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça dispõe o seguinte: “Em virtude
do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui
espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.
17
Neste ponto, Judith Martins-Costa dispõe o seguinte: “(...) ao princípio da boa-fé é atribuída função de
controle/correção da conduta contratual cujo espectro tem sido progressivamente fixado por obra da doutrina
e da jurisprudência, traduzindo-se em cambiantes figuras parcelares. Estas atinem, basicamente, à coibição de
comportamentos deslealmente contraditórios e à vedação ao exercício disfuncional ou ao exercício excessivo de
posição jurídica. Exemplificamente, as figuras da supressio, venire contra factum proprium, tu quoque”. (MARTINS-
COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e do direito
civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono (Org.). A
Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 128/129).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
34 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Poder Judiciário18 realizar o controle judicial dos contratos com base na boa-fé objetiva,
visando evitar cláusulas abusivas e restaurar o equilíbrio econômico-financeiro do
contrato,19 conforme dispõe o artigo 187,20 do Código Civil.21
Diferentemente da interpretação (que deve ser feita em vista do conjunto e em
vista da finalidade econômico-social do negócio que marca o elemento teleológico), que
opera mediante palavras, textos, comportamentos, a integração opera sobre um vazio,
uma lacuna, preenchendo algo que deveria estar lá, mas não está.22 A função integrativa
da boa-fé objetiva, como fonte de deveres instrumentalmente necessários à realização

18
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PACTA SUNT SERVANDA. POSSIBILIDADE
DE MITIGAÇÃO. PRECEDENTES. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. CULPA EXCLUSIVA DA CONS­
TRUTORA. SÚMULAS 5 E 7/STJ. DIREITO À RESTITUIÇÃO INTEGRAL DAS PARCELAS. ENTENDIMENTO
CONSOLIDADO NO STJ. DANO MORAL. OCORRÊNCIA. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO DESPROVIDO. 1. A
ju­risprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que o princípio do pacta sunt servanda pode ser
relativizado, principalmente diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do
dirigismo contratual. 2. Tendo a Corte de origem concluído que o descumprimento contratual decorreria de
culpa exclusiva da construtora, eventual conclusão no sentido de afastar a sua responsabilidade esbarraria
no óbice dos Enunciados n. 5 e 7/STJ. 3. Formada a convicção de que a rescisão contratual decorreu de culpa
exclusiva da recorrente, a restituição das parcelas pagas pela promissária compradora deve se dar de forma
integral, conforme entendimento consolidado nesta Corte Superior. 4. A alteração das conclusões adotadas pela
Corte de origem acerca da ocorrência do dano moral demandaria, necessariamente, reexame do acervo fático-
probatório, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto no Enunciado n. 7 deste Tribunal
Superior. 5. Agravo interno desprovido (AgInt no AREsp 1214641/AM, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO
BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 13.03.2018, DJe 26.03.2018).
CIVIL E PROCESSO CIVIL. CONTRATOS. DISTRIBUIÇÃO. CELEBRAÇÃO VERBAL. POSSIBILIDADE. LIMITES.
RESCISÃO IMOTIVADA. BOA-FÉ OBJETIVA, FUNÇÃOSOCIAL DO CONTRATO E RESPONSABILIDADE
PÓS-CONTRATUAL. VIOLAÇÃO. INDENIZAÇÃO. CABIMENTO. DANOS MORAIS E HONORÁRIOS
ADVO­CATÍCIOS. REVISÃO. POSSIBILIDADE, DESDE QUE FIXADOS EM VALOR IRRISÓRIO OUEXOR­BI­
TANTE. SUCUMBÊNCIA. DISTRIBUIÇÃO. CRITÉRIOS. 1. De acordo com os arts. 124 e 129 do CC/16 (cuja
essência foi mantida pelo art. 107 do CC/02), não havendo exigência legal quanto à forma, o contrato pode ser
verbal ou escrito. 2. Até o advento do CC/02, o contrato de distribuição era atípico, ou seja, sem regulamentação
específica em lei, de sorte que sua formalização seguia a regra geral, caracterizando-se, em princípio, como um
negócio não solene, podendo a sua existência ser provada por qualquer meio previsto em lei. 3. A complexidade
da relação de distribuição torna, via de regra, impraticável a sua contratação verbal. Todavia, sendo possível,
a partir das provas carreadas aos autos, extrair todos os elementos necessários à análise da relação comercial
estabelecida entre as partes, nada impede que se reconheça a existência do contrato verbal de distribuição. 4. A
rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por meio de conduta desleal e abusiva – violadora
dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade pós-contratual – confere à
parte prejudicada o direito à indenização por danos materiais e morais. 5. Os valores fixados a título de danos
morais e de honorários advocatícios somente comportam revisão em sede de recurso especial nas hipóteses
em que se mostrarem exagerados ou irrisórios. Precedentes. 6. A distribuição dos ônus sucumbências deve
ser pautada pelo exame do número de pedidos formulados e da proporcionalidade do decaimento das partes
em relação a esses pleitos. Precedentes. 7. Recurso especial não provido (STJ - REsp: 1255315 SP 2011/0113496-
4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 13.09.2011, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de
Publicação: DJe 27.09.2011).
19
Com relação a modificações econômicas drásticas entre as partes durante o contrato, o nosso ordenamento
jurídico prevê, nos artigos 478 e 480, ambos do Código Civil, a teoria da onerosidade excessiva do contrato. No
âmbito dos contratos internacionais, existe a cláusula hardship, que prevê a possibilidade de revisão contratual
entre as próprias partes. Ver: GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva; RODRIGUES, Gabriela Wallau. A Utilização
de Cláusula Hardship nos Contratos Nacionais à Luz dos Contratos Internacionais. In: Direito internacional em
expansão: vol. 6. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 19/32.
20
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
21
REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica do contrato. 1. ed. São Paulo: Almedina,
2017, p. 74/75
22
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 124.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
35

daqueles fins e à manutenção de uma conduta contratual correta, visa a criação de


deveres especiais de cooperação, informação, sigilo, de proteção à integridade da esfera
jurídica dos contratantes.23 Ou seja, os contratantes não devem apenas aquilo devidamente
estipulado no contrato, mas tudo aquilo que em cada situação impõe a boa-fé.24
Nas palavras de Judith Martins-Costa:

(...) a boa-fé objetiva atua como mandamento imposto ao juiz de não permitir que o
contrato, como regulação objetiva, dotada de um específico sentido, atinja finalidade
oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista de seu escopo econômico-social,
seria lícito esperar.25

Nas Cortes canadenses, por exemplo, o princípio da boa-fé é utilizado como


forma de evitar que uma parte tire vantagem sobre a outra, bem como impor mínimas
exi­gências de conduta por parte dos envolvidos nos contratos.26
No Código Civil grego, por exemplo, em seu artigo 288, fica estabelecido que o
contrato não será apenas interpretado com base no princípio da boa-fé, mas que todas
as suas obrigações contratuais estarão de acordo com a boa-fé. Ainda, a necessidade das
regras contratuais estarem de acordo com a boa-fé não pode ser mitigada ou retirada
por acordo entre as partes, sob pena de nulidade.27

23
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 124.
24
AGUIAR JR., Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: resolução. Rio de Janeiro: Aide,
1991, p. 91/92.
25
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 125.
26
“The logic of Justice Cromwell’s approach to good faith in common law Canada emerges as examples are
multiplied. As Justice Cromwell observes, the general good faith principle provides the foundation for
unconscionability, for example – which, after all, is based on fairness and a refusal by the judiciary to permit
one party from taking undue advantage of the other”. As another example, contractual interpretation uses good
faith as a touchstone because “considerations of good faith” help give effect to the intention of the parties at time
of contractual formation: parties “may generally be assumed to intend certain minimum standards of conduct”.
As a third example, the law of implied terms (particularly those terms implied by operation of law) are in the
words of the Supreme Court of Canada, used to redress “power imbalances in certain classes of contracts such
as employment, landlord lessee, and insurance contracts. And good faith obligations are regularly imposed by
statute law”. (Ver: O’BYRNE, Shannon; COHEN, Ronnie. The contractual principle of good Faith and the duty of
honesty in Bhasin v. Hrynew. Alberta Law Review, 53, 1, 1-34, Oct. 2015, p. 12).
27
“In Greek civil law the provisions of good faith are firmly grounded in the Germanic tradition. The Greek Civil
Code adopted a verbatim translation of the German good faith provision which was inserted at the same place
within the structure of the code. In German law, the concept of good faith is governed by the German Civil Code
(Bürgerliches Gesetzbuch) in Article 242 which states that the debtor has to perform his obligation according
to the requirements of good faith, taking customary practice into consideration. The correspondent article in
Greek Civil Code is Article 288 which stipulates that the debtor shall be bound to fulfill the performance in
accordance with the requirements of good faith taking also into consideration business usage. Even if the source
of inspiration of Article 288 is German law, this article goes further than Article 242 of German Civil Code,
stating that the debtor shall be bound to fulfill the performance in accordance with the requirements of good
faith. In other words, this means that the contractual obligations are not to be only interpreted in good faith,
but, moreover, each contractual obligation has to be adapted according to the demands of good faith. Therefore,
the provision of Article 288 is mandatory law. Consequently, the observance of good faith in the performance of
obligations cannot be limited or excluded in advance by a waiver or an agreement. According to Article 174 of
Greek Civil Code such a waiver or an agreement is null and void” (IFTIME, Emanuela. Good Faith in Greek civil
code. Journal of Public Administration. Finance & Law, 133-141, Jan. 2, 2015, p. 134).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
36 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

No Direito inglês, no entanto, não é aplicado, aos contratos, o princípio da boa-fé.


Tal posicionamento foi estabelecido pela House of Lords no caso paradigmático Walford v.
Miles. Uma justificativa para isto seria o fato de que as partes envolvidas nos contratos
buscam apenas os seus interesses, sem a necessidade de pensarem nos interesses das
outras partes.28
No que se refere à Convenção das Nações Unidas para os Contratos de Compra
e Venda Internacional de Mercadorias (CISG), em seu artigo 7º,29 estão dispostas as
possibilidades de preencher lacunas30 e da aplicação da boa-fé31 nos contratos de compra
e venda internacionais.
Assim, a boa-fé está presente em diversos ordenamentos jurídicos, demonstrando
a sua relevância e vasta aplicabilidade em diversos negócios jurídicos firmados no âmbito
nacional e internacional.
Portanto, diante do aqui demonstrado e fundamentado, a boa-fé objetiva aplica-
se diretamente ao Processo Civil e, em conformidade com o objeto do presente estudo,
aos negócios jurídicos processuais.

3 Os negócios jurídicos processuais: noções introdutórias


Após a entrada em vigor do CPC/2015, muitos advogados e juristas olharam com
desconfiança para os artigos 19032 e 191.33 Para muitos, a possibilidade das partes esti­
pularem alterações nas regras do processo, em comum acordo, sem o consentimento
prévio do juiz, parecia, no mínimo, ilógico.

28
“The first explanation is deeply rooted in English contract law and its traditional foundation in an individualistic
ethic. This tradition implies that contractors will pursue their own (one-sided) economic interests and are under
no obligation to concern themselves with other party’s interests. Parties are under no legal obligation to cooperate
within the framework of this adversarial model. On the contrary, one can assume that each party will endeavor
to pursue only their narrow interests in the contractual process”. (Ver: PIERS, Maud. Good Faith in English Law –
Could a Rule Become a Principle? Tulane European & Civil Law Forum, 26, 1, 123-169, Jan. 2011, p. 130/131).
29
Artigo 7º (1) Na interpretação desta Convenção ter-se-ão em conta seu caráter internacional e a necessidade de
promover a uniformidade de sua aplicação, bem como de assegurar o respeito à boa fé no comércio internacional.
(2) As questões referentes às matérias reguladas por esta Convenção que não forem por ela expressamente
resolvidas serão dirimidas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, à falta destes, de acordo com a lei
aplicável segundo as regras de direito internacional privado.
30
MISTELIS, Loukas. Preenchendo as lacunas da CISG – Artigo 7º e documentos relacionados à CISG –
Sobreposição, contradições e preenchimento de lacunas. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael
Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono (Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de
mercadorias: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 105.
31
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 118 e seguintes.
32
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes
estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus
ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou
a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação
somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se
encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
33
Art. 191.  De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando
for o caso. §1º  O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados
em casos excepcionais, devidamente justificados. §2º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato
processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
37

Tal inovação tem relação direta com as alterações do papel atribuído ao juiz,
passando a dar mais liberdade às partes e retirando, consequentemente, a autonomia
do magistrado. Andrea Proto Pisani, desta forma, já dissertou sobre o assunto:

O caráter privado disponível do direito objeto do processo civil, por outro lado, fundamenta
o princípio da normal correlação entre titularidade do direito material e titularidade do
direito ou poder de ação, a excepcionalidade das hipóteses de legitimação extraordinária
dos sujeitos privados não titulares do direito substancial, assim como a excepcionalidade
do poder de ação e da obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público. Ademais,
o direito privado disponível do direito objeto do processo é tido como fundamento de
institutos tais como a conciliação judicial, o deferimento e a referência ao compromisso
legal, a eficácia da prova legal da confissão, da admissibilidade do recurso ao juízo arbitral
etc., institutos estes que podem ser previstos ou não em cada ordenamento positivo.34

Assim, a prevalência do componente privatista no processo acarretará alguns


reflexos, como: i) afirmar o monopólio das partes no que concerne aos fatos a serem
alegados e os meios de prova a serem produzidos em juízo; ii) introduzir regas de prova
legal ligadas em sentido lato à autonomia privada, tais como os limites à prova para as
teste­munhas dos contratos; iii) exaltar o poder das partes na admissão da prova teste­
munhal; dentre outras possibilidades.35
A partir da Constituição de 1988, em nosso ordenamento jurídico, busca-se um
equilíbrio entre a autonomia privada e autonomia pública, o que já significa pensar o
espaço público numa dimensão democrática. Desse modo, já não se mostra mais crível
falar numa prevalência do interesse público sobre o privado, nem do interesse privado
sobre o público, já que nem o público pode ser mais visto como estatal, nem o privado
como sinônimo de egoísmo.36 O processo, assim, teria uma conotação mais participativa
por parte das partes envolvidas, possibilitando a elas uma maior inserção e busca pelos
seus direitos.37
A concepção publicista do processo relegou por muito tempo a segundo plano
a reflexão acadêmica sobre os limites da autonomia da vontade das partes a respeito
da multiplicidade de questões que podem ser suscitadas no processo ou, apenas, a
considerá-la sempre vinculada à homologação do Magistrado, este como representante
do interesse público.38

34
PISANI, Andrea Proto. Público e Privado no Processo Civil na Itália. Revista da EMERJ, v. 4, n. 16, p. 24, 2001.
35
PISANI, Andrea Proto. Público e Privado no Processo Civil na Itália. Revista da EMERJ, v. 4, n. 16, p. 24, 2001.
36
RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo civil: negócios jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o
direito à participação na construção do caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 88.
37
“Destarte, a democracia participativa avulta para destacar o papel não só de maior inserção do indivíduo nas
escolhas administrativas e legislativas, mas também e principalmente a partir do âmbito judicial, pois o acesso
ao Poder Judiciário é irrestrito, bastando lesão ou simples ameaça a direito para que este abra suas portas ao
indivíduo, ao povo – assumindo este a conotação ampla anteriormente exposta. Esta abertura, por assim dizer,
cria para os indivíduos em sociedade a possibilidade de exigir do Estado a concretização das promessas ainda
não realizadas e que dificilmente o serão através do Executivo e do Legislativo. Nesta perspectiva, o processo
passa a ser um valioso instrumento público posto a serviço do povo para viabilizar a essência da democracia que
está configurada nos direitos e garantias fundamentais” (RIBEIRO, Darci Guimarães. Da Tutela Jurisdicional às
Formas de Tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 103).
38
GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – Primeiras reflexões. In: Revista Eletrônica de Direito
Processual, 1. ed., p. 7, out./dez. 2007.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
38 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Para o presente estudo, o conceito de negócios jurídicos (espécie de ato jurídico)


torna-se essencial, tendo em vista que os negócios jurídicos processuais são apenas uma
derivação deste, legalmente positivados no CPC/2015.39
Negócio jurídico é geralmente identificado, definido ou qualificado como ato de
autonomia privada. A autonomia privada, por sua vez, é, em regra, identificada como
autodeterminação, autorregulação, autovinculação e, até mesmo, autarquia, sendo
definida como um poder criador ou fonte de direito ou, pelo menos, de produção de
efeitos que incidam sobre situações jurídicas. A característica marcante dos negócios
jurídicos é a vontade ou a vontade declarada.40
Passou-se a defender, então, que o negócio jurídico consistiria numa declaração de
vontade voltada a produzir efeitos jurídicos, enquanto o ato jurídico em sentido estrito
decorreria de uma mera manifestação de vontade, com vistas a obter efeitos jurídicos
já estabelecidos em lei.41
Desta forma, a vontade humana, nesta premissa, produziria efeitos jurídicos tanto
de direito material quanto processual.
Os negócios jurídicos derivam do direito fundamental à liberdade, nos termos
do artigo 5º, caput, da CF. Dentro do direito à liberdade, está o do autorregramento.
A au­to­nomia privada ou autorregramento da vontade é um dos pilares da liberdade e
dimensão inafastável da dignidade da pessoa humana.42
Pode-se localizar o poder de autorregramento da vontade em quatro zonas de
li­berdade: a) liberdade de negociação (zona das negociações preliminares, antes da
consumação do negócio); b) liberdade de criação (possibilidade de criar novos modelos
negociais atípicos que mais bem sirvam aos interesses dos indivíduos); c) liberdade de
estipulação (faculdade de estabelecer o conteúdo do negócio); d) liberdade de vinculação
(faculdade de celebrar ou não o negócio).43
A partir desta compreensão de liberalismo, o processo (anteriormente conhecido
apenas um ramo do Direito Público) começa a tomar contornos de Direito Privado,
tra­zendo à baila noções de Direito Civil e de autonomia privada das partes. Assim, a
partir destes contornos de Direito Privado, a boa-fé objetiva se faz presente e necessária.
O Direito Processual Civil, embora ramo do Direito Público,44 ou talvez exata­men­
te por isso, também é regido por essa dimensão da liberdade. O princípio da liberdade

39
GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Análise Econômica dos Negócios Jurídicos Processuais. Revista de
Processo, vol. 278, p. 497-519, abr. 2018, p. 503.
40
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do
Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 29.
41
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do
Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 30.
42
DIDIER JR., Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no Processo Civil. In: CABRAL,
Antonio do Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 20.
43
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil – Teoria Geral. Coimbra: Coimbra, 1990, p. 78-80, v. II. Apud DIDIER
JR., Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do Passo;
NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 20.
44
O Professor Joan Picó i Junoy, em seu livro “O Juiz e a Prova”, defende o processo com uma visão mais “publicista”,
que o concebe como instrumento necessário para o exercício da função jurisdicional do Estado. Tal entendimento
é contrário à doutrina que sustenta que o processo civil seria um negócio particular e com um fim privado: a
defesa dos interesses pessoas (PICÓ I JUNOY, Joan. O juiz e a prova: estudo da errônea recepção do brocardo iudex
iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientizam e sua repercussão atual. Tradução Darci
Guimarães Ribeiro. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 98).
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
39

também atua no processo, produzindo um subprincípio: o princípio do respeito ao


autorregramento da vontade no processo.45
Resumindo, a partir do reconhecimento do princípio do autorregramento como
fundamental, também, no âmbito do processo civil, fez com que o processo se tornasse
um espaço propício para o exercício da liberdade individual das partes.46
Portanto, feita essa análise da origem dos negócios jurídicos, passa-se então a
discorrer sobre suas características trazidas pelo Código de Processo Civil.

4 Negócios jurídicos processuais: uma análise conceitual


Neste capítulo, busca-se trazer à tona o conceito, propriamente dito, dos negócios
jurídicos processuais, a partir da doutrina pertinente, bem como a sua aplicação no
mundo jurídico. Os negócios jurídicos a serem aqui analisados serão os contratos, quando
as vontades das partes dizem respeito a interesses contrapostos.47
Os negócios jurídicos processuais, no CPC/2015, são oriundos do direito funda­
mental à liberdade.48 A grande inovação do CPC/2015 para o CPC/1973 era que no
antigo não havia a possibilidade de justamente as partes firmarem um negócio jurídico
processual atípico, conforme dispõe o artigo 190 do CPC.49
No CPC/2015, assim, ampliou-se a possibilidade dos negócios jurídicos proces­
suais. Estas novas modalidades refletem traços ideológicos alinhados com a cooperação
e maior participação das partes no processo, mediante a redistribuição das atividades
entre estas e o juiz.50
Da mesma forma, possuem como base fundamental o princípio da cooperação,51
elencado no artigo 6º52 do CPC/2015. A partir desta mudança principiológica trazida pelo
CPC/2015, o processo passa a ter um modelo cooperativo, em busca de uma divisão

45
GAJARDONI, Fernando Fonseca. Flexibilização procedimental. São Paulo: Atlas, 2008, p. 215.
46
GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Análise Econômica dos Negócios Jurídicos Processuais. Revista de
Processo, vol. 278, p. 497-519, abr. 2018, p. 504.
47
DIDIER JR., Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no Código de Processo Civil de 2015. Revista Brasileira
da Advocacia, vol. 1, p. 3, 2016.
48
“Liberdade. Ao que nos parece, esta é a palavra de ordem do novo Código de processo Civil (CPC), tendo dois
eixos principais de sustentação: celebração de negócios processuais típicos pelas partes e estímulo à utilização
dos métodos alternativos de solução de controvérsias”. LIPIANI, Júlia; SIQUEIRA, Marília. Negócios Jurídicos
processuais sobre mediação e conciliação. In: DIDIER JR., Fredie (Coord.). Justiça Multiportas: mediação,
conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 141.
49
ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Negócios Jurídicos Materiais e Processuais – Existência, validade e
eficácia – Campo-invariável e campos-dependentes: sobre os limites dos negócios jurídicos processuais. Revista
de Processo, ano 40, vol. 244, p. 395/396, jun. 2015.
50
MÜLLER, Julio Guilherme. Negócios Processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 93.
51
Daniel Mitidiero, por sua vez, utiliza o termo “colaboração”. O autor, ao dissertar sobre este princípio, dispõe o
seguinte: “A colaboração é um modelo que visa dividir de maneira equilibrada as posições jurídicas do juiz e das
partes no processo civil, estruturando-o como uma verdadeira comunidade de trabalho, em que se privilegia o
trabalho processual em conjunto do juiz e das partes. Em outras palavras: visa a dar feição ao aspecto subjetivo
do processo, dividindo de forma equilibrada o trabalho entre todos os seus participantes – com um aumento
concorrente dos poderes do juiz e das partes no processo civil” (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil:
pressupostos sociais, lógicos e éticos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 52).
52
Art. 6º - Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão
de mérito justa e efetiva.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
40 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

equilibrada de trabalho entre o juiz e as partes, no qual todos trabalham em conjunto,


sem o protagonismo de apenas um dos autores.53
O CPC/2015 possibilita, então, uma maior participação das partes no processo,
com maior valorização da autonomia privada das partes, viabilizando, assim, os negócios
jurídicos processuais.
Por certo que tais mudanças paradigmáticas do CPC/73 para o CPC/2015 possuem
relação direta com o que dispõe o seu artigo 1º,54 em que, conforme caput do dispositivo
legal, no Código de Processo Civil será ordenado, disciplinado e interpretado com
base nos valores e normas fundamentais estabelecidas na Constituição Federal.55 Este,
portanto, é o Processo Civil no Estado Democrático de Direito.56
Uma das grandes inovações do CPC/2015 foi a implementação das convenções/
contratos processuais, em seu artigo 190 (atípicos), que permite a conformação do
procedimento e posições processuais por meio da autonomia da vontade. Tal previsão
legal, portanto, possibilita uma customização do processo e sua maior adequação à
vontade das partes.57
Os negócios jurídicos processuais, por sua vez, nas palavras de Benedito Mário
Vitiritto possuem características estritamente relacionadas à vontade das partes. Assim,
dispõe da seguinte forma: “Negócio jurídico processual é o resultante de declaração
dispositiva de vontade da parte, ou das partes, com o fim de constituir, modificar ou
extinguir a relação processual”.58
Diogo Assunção Rezende de Almeida, ao trazer o seu conceito, afirma que

são os pactos firmados entre duas ou mais pessoas, com a finalidade de fixação de regras
entre elas e que servirão para normatizar – de forma distinta daquela prevista em lei –
algum aspecto processual ou procedimental da solução de eventual litígio que venha a
surgir, podem ser chamados de acordos, contratos ou convenções processuais.59

Nas palavras de José Miguel Garcia Medina, os negócios jurídicos podem ser típicos
ou atípicos. São típicos aqueles que se encontram, além de referidos expressamente,
também disciplinados na legislação. Atípicos, por sua vez, são os negócios processuais

53
ABREU, Rafael Sirangelo de. Customização processual compartilhada o sistema de adaptabilidade do novo CPC.
Revista de Processo, vol. 257, p. 52, jul. 2016.
54
Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais
estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
55
O processo civil é estruturado a partir dos direitos fundamentais que compõem o direito fundamental ao
processo justo, o que significa dizer que o legislador infraconstitucional tem o dever de desenhá-lo a partir do
seu conteúdo. Em outras palavras, o processo civil é ordenado e disciplinado pela Constituição, sendo o Código
de Processo Civil uma tentativa do legislador infraconstitucional de adimplir com o seu dever de organizar um
processo justo. Vale dizer: o Código de Processo Civil constitui direito constitucional aplicado (MARINONI, Luiz
Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO. Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 153).
56
Para melhor compreender o processo no Estado Democrático de Direito, ver: RIBEIRO, Darci Guimarães.
Da tutela jurisdicional às formas de tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
57
JOBIM, Marco Félix; MEDEIROS, Bruna Bessa de. O Impacto das Convenções Processuais sobre a Limitação de
Meios de Prova. Revista de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, ano 11, vol. 18, n. 1, p. 330, jan./abr. 2017.
58
VITIRITTO, Benedito Mário. Reflexões sobre o Negócio Jurídico Processual. In: O Julgamento Antecipado da Lide e
Outros Estudos. Belo Horizonte: Lemi, p. 112.
59
ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo das convenções processuais no processo civil.
São Paulo: LT, 2015, p. 112.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
41

cujo regime não se encontra previsto em lei. O CPC/2015 refere-se, textualmente, à


possibilidade de as partes realizarem acordo sobre procedimentos, ônus, poderes,
faculdades e deveres processuais60
O negócio processual atípico tem por objeto as situações jurídicas processuais –
ônus, faculdades, deveres e poderes (“poderes”, neste caso, significa qualquer si­tuação
jurídica ativa, o que inclui direitos subjetivos, direitos potestativos e poderes pro­pria­
mente ditos). O negócio processual atípico também pode ter por objeto o ato proces­
sual – redefinição de sua forma ou da ordem de encadeamento dos atos, por exemplo.
Não se trata de negócio sobre o direito litigioso – essa é a autocomposição, já bastante
conhecida. No caso, negocia-se sobre o processo, alterando suas regras, e não sobre o
objeto litigioso do processo.61
No negócio processual atípico, as partes podem definir outros deveres e
sanções, distintos do rol legal de deveres e sanções processuais, para o caso de seu
descumprimento. É isso que diz o Enunciado 17 do Fórum Permanente de Processualistas
Civis: “As partes podem, no negócio processual, estabelecer outros deveres e sanções
para o caso do descumprimento da convenção”.62
Podem, ainda, os negócios jurídicos processuais estar previstos dentro de outro
contrato (ex.: contrato de locação). Neste caso, terão o nome de cláusulas de diferindo,63 que
são disposições contratuais que disciplinam eventual disputa processual para execução
ou renegociação do contrato. Essa hipótese, no entanto, não é objeto do presente estudo.
Para que os negócios jurídicos processuais prosperem, é fundamental que haja
confiança entre os advogados e juízes.64 No common law, por exemplo, identifica-se essa
confiança no juízes.65 Tal requisito que, poucas vezes é mencionado pela doutrina, é de
fundamental importância na prática. Por muitas vezes, a confiança entre advogados e
magistrados é muito pequena (e, não seria absurdo dizer que, em algumas situações,
sequer existe). Assim, a desconfiança existente, de certa forma, influenciará o Juízo no
momento de sua apreciação sobre os termos do contrato realizado.
A confiança recíproca é, em todos os campos das relações humanas, uma força
simplificadora. Confiança quer dizer solidariedade, sociabilidade, compreensão. Também

60
MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao
CPC/1973. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 337.
61
DIDIER JR., Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no Código de Processo Civil de 2015. Revista Brasileira
da Advocacia, vol. 1, p. 4, 2016.
62
DIDIER JR., Fredie; LIPIANI, Júlio; ARAGÃO, Leandro Santos. Negócios Jurídicos Processuais em contratos
empresariais. Revista de Processo, vol. 279, p. 44, maio 2018.
63
ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo das convenções processuais no processo civil.
São Paulo: LT, 2015, p. 112.
64
Para melhor compreender a relação de confiança entre advogados e juízes, ver: CALAMANDREI, Piero. Processo
e Democracia: Conferências realizadas na Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma do México.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 83/96.
65
Gustav Radbruch, ao analisar a competência do parlamento inglês, dispôs o seguinte: “A Rule of Law (autonomia
legislativa do magistrado) se apresenta de forma concorrente à soberania do parlamento. O grande jurista Coke
esforçou-se durante um tempo para vincular o parlamento e a legislação à Common Law, para declarar como
ilegais leis que violassem o Direito e a razão, mas mais tarde ele abandonou essa ideia a favor da soberania do
parlamento. O parlamento inglês era capaz de tudo, só não de transformar uma mulher em um homem e vice-
versa. Assim, pôde o parlamento anular ou modificar princípios jurídicos que a Common Law desenvolvera
na forma de precedentes. A competência ilimitada do parlamento encontra seus limites, em parte, no poder da
opinião pública e no prestígio do tribunal, e em parte na sábia autolimitação do parlamento”. (RADBRUCH,
Gustav. O Espírito do Direito Inglês e a Jurisprudência Anglo-Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 50).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
42 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

nos processos, a astúcia, tão prestigiada pelos causídicos de menor envergadura, é


responsável pelas complicações e pelos retardos no andar do processo.66
Assim, para a disseminação do costume na utilização dos negócios jurídicos pro­
cessuais atípicos na prática jurídica forense, a confiança entre juízes e advogados faz-se
imprescindível.
A seguir, passa-se à análise conjunta dos negócios jurídicos processuais e da boa-
fé objetiva, com o intuito de fundamentar a aplicação desta naqueles.

5 A aplicação da boa-fé objetiva nos negócios jurídicos processuais


Conforme já dito, os negócios jurídicos processuais atípicos (ao menos como
objeto aqui analisado) são contratos. Assim, pelo fato de serem contratos,67 aplicam-se
as normas de Direito Privado vigentes em nosso Código Civil.
A aplicação por analogia evidentemente deve ceder às particularidades de cada
acordo processual, sendo possível antever que serão importantes limitações a essas
convenções a relatividade dos contratos e o princípio da boa-fé.68
Os negócios jurídicos processuais seguem os requisitos de validade do Código
Civil. Ou seja, serão nulos nos casos do artigo 166 do CC e anuláveis mediante ação
autônoma, por uma das partes interessadas.69 Ainda, alguns requisitos são obrigatórios:
(i) possuir forma escrita; (ii) licitude do objeto pactuado; (iii) capacidade das partes;
(iv) inexistência de vício na manifestação de vontade de qualquer das partes.70 Com
relação à presença de advogados, a validade do negócio não está condicionada a sua
presença. Todavia, a sua presença é totalmente desejável, tendo em vista que seja de
matéria não conhecida pela parte leiga.
Não sendo o bastante, o próprio artigo 190 do CPC prevê limites adicionais, como
a necessidade da convenção ser sobre direitos que admitam autocomposição e que
nenhuma das partes possa estar em situação de vulnerabilidade.71

66
CALAMANDREI, Piero. Processo e Democracia: Conferências realizadas na Faculdade de Direito da Universidade
Nacional Autônoma do México. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 92.
67
Enzo Roppo dispõe o seguinte: “O contrato é, por regra, um ato, um negócio, bilateral. Isto é, para que exista
um contrato é necessário, por regra, que existam pelo menos duas partes, e que cada uma delas exprima a
sua vontade de sujeitar-se àquele determinado regulamento das recíprocas relações patrimoniais, que resulta
do conjunto de cláusulas contratuais. É necessário, em concreto, que uma parte proponha aquele determinado
regulamento, e que a outra parte aceite. O contrato forma-se precisamente quando essa proposta e essa aceitação
se encontram, dando lugar àquilo que se chama o consenso contratual”. (ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra:
Almedina, 2009, p. 73).
Luciano Benetti Timm, ao dissertar sobre o conceito de contrato, dispõe o seguinte: “Normalmente os juristas
enquadram o estudo do contrato dentro do campo das obrigações, entendendo o contrato como espaço de
autonomia privada, isto é, das regras que indivíduos se impõem mediante livre negociação, dentro do esboço
concedido pelo ordenamento jurídico”. (TIMM, Luciano Benetti. Artigos e ensaios de direito e economia. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 31/32).
68
MANTOVANI, Alexandre Casanova. O princípio da boa-fé e os negócios jurídicos processuais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano, n. 3, p. 119, 2017.
69
YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In: CABRAL,
Antonio do Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 77.
70
YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In: CABRAL,
Antonio do Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015,
p. 67/77.
71
MANTOVANI, Alexandre Casanova. O princípio da boa-fé e os negócios jurídicos processuais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano, n. 3, p. 120, 2017.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
43

O próprio Código de Processo Civil, em seu artigo 5º, prevê a necessidade das
partes comportarem-se de acordo com a boa-fé. A doutrina estabelece que a boa-fé
mencionada em tal dispositivo legal se refere à boa-fé objetiva.72
Antonio do Passo Cabral, ao dissertar sobre a boa-fé nos negócios jurídicos
processuais, afirmou o seguinte:

Assim, ao celebrarem um negócio jurídico processual, as partes devem sempre agir de


acordo com os princípios da boa-fé e da cooperação. A prestação adequada de informações,
com clareza e precisão, é também uma exigência cooperativa que remete à cognoscibilidade
do conteúdo dos acordos e à previsibilidade do vínculo assumido. Essa diretriz também
se justifica na proteção da confiança e a segurança das expectativas legítimas formadas
no processo, tanto das partes como terceiros. Um acordo entre as partes pode sinalizar a
terceiros um padrão de conduta voluntária que, por vezes, exigirá uma atuação do juiz
para proteger a expectativa criada.73

Desta forma, cabe ao juiz, em seus poderes de condução do processo, controlar


e observar a existência dos deveres derivados da boa-fé e da cooperação nos negócios
jurídicos processuais.74
Caso, por ventura, os deveres conexos à boa-fé objetiva não estejam presentes,
poderá a parte prejudicada requerer a sua anulação, mediante comprovação e
fundamentação por quebra da boa-fé objetiva.

6 Considerações conclusivas
O ensaio aqui realizado, longe de chegar a qualquer conclusão definitiva, provocou
a leitura dos negócios jurídicos processuais, a partir da aplicação da boa-fé objetiva,
tendo em vista a presença dos conceitos de Direito Privado aplicados ao processo civil.
O Código de Processo Civil de 2015 trouxe, diferentemente do CPC/1973, maior
liberdade às partes em privilegiarem a autonomia privada, bem como a composição,
sendo os negócios jurídicos processuais um reflexo desta mudança.
No curso da pesquisa, diante das mudanças entre componentes privatistas e
pu­blicistas, foi possível, na entrada em vigor do CPC/2015, permitir um caráter mais
privatista entre as partes, deixando de lado, em certa forma, o protagonismo do juiz.
Diante dessa mudança de paradigma publicista para o privatista, a aplicação dos
fundamentos de Direito Privado ao processo se faz necessária e importante. Assim, o
estudo dos negócios jurídicos processuais é tema atual e fundamental na prática jurídica.

72
Cássio Scarpinella Bueno, ao analisar o artigo 5º, do CPC, dispõe o seguinte: “O art. 5º impõe a todos os que
participarem do processo – todos os sujeitos processuais, portanto – o dever de comportar-se de acordo com
a boa-fé. Trata-se de boa-fé objetivamente considerada e, por isso, vai além dos deveres de probidade de que
trata o art. 77 e, de resto, não se confunde com nem restringe às diversas situações em que a ausência de boa-fé
subjetiva é reprimida pelo CPC de 2015. A doutrina ensina que a boa-fé objetiva é verdadeira cláusula geral – e é
tratada como tal pelo art. 5º –, que encerra uma séria de comportamentos desejados ou esperados dos agentes em
geral e que, no plano do processo, de todos os sujeitos processuais que, em última análise, conduzem à proteção
da confiança legítima”. (BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018, p. 105).
73
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 318.
74
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 318.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
44 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
46 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Boa-fé objetiva nos negócios jurídicos processuais. In: TEPEDINO,
Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum,
2019. p. 31-46. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
O CONTRATO ELETRÔNICO
NO COMÉRCIO GLOBALIZADO

GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR

1 Considerações iniciais
Já há algum tempo, o espaço virtual não se limita às fronteiras do computador,
já que dispositivos móveis utilizam tecnologia multimídia, trazem a nota distintiva da
portabilidade e estão onipresentes, conectando pessoas nos mais diversos pontos do
planeta. Novos aparelhos são lançados com uma periodicidade avassaladora, tornando
os modelos anteriores rapidamente defasados e gerando a ânsia, nos consumidores, de
apresentar, nos círculos sociais, o último exemplar de dispositivo móvel. É o apelo ao
consumismo descomedido, traço indelével da sociedade da informação.
A disseminação, em escala mundial, de informações e de imagens mediante a
utilização das mídias digitais e o exponencial desenvolvimento dos meios informáticos
vêm fomentando o trabalho de pesquisadores para entender o alcance do fenômeno.
O advento da internet, em especial, tem provocado mudanças no desenvolvimento das
relações humanas e o Direito, reflexo que é da sociedade, vem sofrendo o influxo dessas
transformações, o que impõe enormes desafios aos juristas, legisladores e aplicadores.
As sociedades empresárias detectaram, nesse novo ambiente de pessoas
conectadas, um novo foco de atuação e começaram a expandir a atividade comercial
para essas áreas, indo ao encontro das demandas que então já se faziam prementes. São
travadas, então, relações virtuais que importam efeitos jurídicos. Os contratos eletrônicos
utilizam um sistema informatizado que permite ao consumidor concluir o negócio com
o fornecedor do bem ou serviço. Essa relação despersonalizada difere em grande medida
da clássica relação negocial levada a efeito em lojas físicas.
É amplo o campo de ação dos contratos eletrônicos, que demandam a criação de
uma lógica jurídica que reflita a complexidade virtual em que se encontra a sociedade,
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
48 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

capaz de interpretar a realidade social e adequar a solução ao caso concreto na mesma


velocidade das mudanças geradas pelos avanços tecnológicos. Atualmente, inúmeros
acordos são formalizados por meio de contratações a distância, conduzidas por meios
eletrônicos e sem a presença física simultânea dos contratantes no mesmo local.
Nesse prisma de crescente avanço nos sistemas informacionais que intensificam as
interações econômicas, políticas e culturais, vivencia-se um período de transição entre o
velho e o novo modelo de contratação. A intensificação dessas relações proporcionadas
pelo avanço nas telecomunicações e na informática assumiu proporções tais que se
pode questionar se com isso se inaugurou um novo modelo de desenvolvimento social.
Não obstante, não ocorreu, ainda, uma migração completa para as novas formas de
contratação, haja vista a abertura e a indefinição que marcam o tempo atual, pontuado
por leituras ainda incipientes e contraditórias.
Diante desse quadro, tem-se que o Direito não tem desenvolvido soluções que
abarquem todo o fenômeno, o que tem gerado insegurança jurídica aos usuários quando
da efetivação da contratação eletrônica, em especial quanto à autenticidade das mani­
festações de vontade. Daí por que o Direito não pode manter-se inerte, sob pena de
não mais atender aos anseios da sociedade. Deve, por conseguinte, adequar-se à nova
realidade para proporcionar a necessária estabilidade e segurança jurídica reclamada
pelo cidadão. O Direito é responsável pelo equilíbrio das relações sociais e este só poderá
ser alcançado com a adequada interpretação da realidade social, instituindo normas que
garantam a segurança das expectativas e que incorporem as transformações por meio
de uma estrutura flexível que possa sustentá-la no tempo.
São inúmeros os desafios frente a uma economia globalizada que não tem mais
fronteiras rígidas e que estimula a livre-iniciativa e a livre concorrência, tornando-se
imprescindível que as leis que protegem o internauta ganhem maior relevo em sua
exegese, na incessante busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas, mormente
quando se tem em conta a complexidade, o imediatismo e a interatividade da sociedade
atual. Alie-se a isso o fato de a vida econômica e social não poder desenvolver-se sem
que haja o mínimo de segurança jurídica do contrato: sem ela, as garantias de tutela do
ato jurídico perfeito e do direito adquirido tornar-se-iam meramente retóricas, despindo-
se de sua finalidade estabilizadora e construtiva no relacionamento jurídico. Nesse
contexto, este artigo versará sobre as vicissitudes pelas quais o contrato está passando
na atual economia globalizada, pontuando-se a crise de confiança nos mecanismos da
teoria contratual para fornecer respostas às prementes questões que surgem no âmbito
do comércio eletrônico. Dessa forma, serão abordados alguns aspectos controversos da
contratação eletrônica no ambiente globalizado e seu correspondente impacto sobre o
direito dos contratos.

2 Comércio eletrônico viabilizado por meio dos contratos eletrônicos:


aspectos controversos
O desenvolvimento dos meios informáticos, em especial no último quartel do
século XX, acarretou o surgimento de uma nova forma de contratação, baseada na rede
internacional de computadores. Essa contratação realizada no meio virtual conduz
a declarações de vontade que não se coadunam com as tradicionais condutas que se
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
49

perfazem entre pessoas presentes. É largo o campo de ação dos contratos eletrônicos, que
demandam a criação de uma lógica jurídica que reflita a complexidade virtual em que
se encontra a sociedade, capaz de interpretar a realidade social e adequar a solução ao
caso concreto na mesma velocidade das mudanças geradas pelos avanços tecnológicos.
O comércio eletrônico desponta como uma das atividades de maior relevância
econômica com o advento da internet. Hoje, inúmeros acordos são formalizados por
meio de contratações a distância, conduzidas por meios eletrônicos e sem a presença
física simultânea dos contratantes no mesmo local. Sobre esse fenômeno:

Nos anos recentes, a penetração da Tecnologia da Informação nas aplicações da vida real
transformou a maneira pela qual os negócios são transacionados. Uma dessas aplicações são
os Contratos Eletrônicos, que tornaram os negócios simples ao modelarem e gerenciarem
eficazmente os processos e tarefas envolvidos. Um contrato eletrônico (e-contract) é um
contrato modelado, especificado, executado, controlado e monitorado por um sistema de
software. Nos contratos eletrônicos, todas as (ou certo número de) atividades são realizadas
eletronicamente, superando os atrasos no sistema manual, assim como preconceitos do
corpo de empregados.1

Especial relevo deve ser dado à questão da legislação regulamentadora dos novos
institutos jurídicos que brotam nessa área. Não se trata, aqui, de tolher os avanços
tecnológicos, mas de prover um arcabouço normativo que zele pela confiança e proteção
do consumidor que contrate utilizando-se do meio virtual. Nesse sentido, qualquer
normatização que venha a tratar do assunto deverá ter o necessário grau de generalidade
e de flexibilidade para não se quedar defasada no tempo e para atender às características
próprias dessa seara na qual as marcas são a velocidade e a dinamicidade das mudanças.
Nessa linha, foi aprovado o “Marco Civil da Internet” (Lei nº 12.965, de 23 de abril
de 2014), iniciativa legislativa que visa à regulação da internet no Brasil, estabelecendo
princípios, garantias, direitos e deveres para os usuários da rede, além de disciplinar
a atuação do poder público no estabelecimento de mecanismos de governança multi­
participativa, transparente, colaborativa e democrática, com a colaboração do governo,
do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica. A propósito, o
inventor do World Wide Web, Sir Tim Berners-Lee, divulgou uma declaração de apoio
ao marco civil brasileiro.2
A disseminação, em escala mundial, de informações e de imagens mediante a
utilização das mídias digitais e o exponencial desenvolvimento dos meios informáticos
vêm fomentando o trabalho de pesquisadores para entender o alcance do fenômeno.
O advento da internet, em especial, tem provocado mudanças no desenvolvimento das
relações humanas, e o Direito, reflexo que é da sociedade, vem sofrendo o influxo dessas
transformações, o que impõe enormes desafios aos juristas, legisladores e aplicadores.
Sobre o processo de globalização e o surgimento da internet, diz Boaventura de Sousa
Santos:

1
KARLAPALEM, Kamalakar; DANI, Ajay R.; KRISHNA, P. Radha. A Frame Work for Modeling Electronic
Contracts. Lecture Notes in Computer Science, Berlim: Springer-Verlag, 2001, v. 2224, p. 193 (tradução nossa).
2
Informação disponível em: <http://www.webfoundation.org/2014/03/marco-civil-statement-of-support-from-sir-
tim-berners-lee/>. Acesso em: 12 abr. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
50 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Nas últimas três décadas, as interacções transnacionais conheceram uma intensificação


dramática, desde a globalização dos sistemas de produção e das transferências financeiras,
à disseminação, a uma escala mundial, de informação e imagens através dos meios de
comunicação social ou às deslocações em massa de pessoas, quer como turistas, quer como
trabalhadores migrantes ou refugiados. A extraordinária amplitude e profundidade destas
interacções transnacionais levaram a que alguns autores as vissem como ruptura em relação
às anteriores formas de interacções transfronteiriças, um fenômeno novo designado por
“globalização”, “formação global”, “cultura global”, “sistema global”, “modernidades
globais”, “processo global”, “culturas da globalização” ou “cidades globais”.3

Na formação dessa nova cultura, a internet é um elemento imprescindível, pois


permite a experimentação de um tipo de comunicação global, que vem se consolidando
como uma estrutura básica mundial.4 A transmissão de informações por esse meio
está diretamente vinculada à banda na qual transitam os dados, que são codificados e
decodificados, comprimidos e descomprimidos, de modo que a velocidade de trânsito
das informações seja otimizada para chegar ao usuário no menor tempo possível.5
Há algum tempo, o espaço virtual não se limita às fronteiras do computador, já
que dispositivos móveis utilizam tecnologia multimídia, trazem a nota distintiva da
portabilidade e estão onipresentes, conectando pessoas nos mais diversos pontos do
planeta. Novos aparelhos são lançados com uma periodicidade avassalante, tornando
os modelos anteriores rapidamente defasados e gerando a ânsia, nos consumidores, de
apresentar, nos círculos sociais, o último exemplar de dispositivo móvel. É o apelo ao
consumismo descomedido, traço indelével da sociedade da informação.
As sociedades empresárias detectaram, nesse novo ambiente de pessoas conec­
tadas, um novo foco de atuação e começaram a expandir a atividade comercial para essas
áreas, indo ao encontro das demandas que então já se faziam prementes. São travadas,
então, relações virtuais que importam efeitos jurídicos. Os contratos eletrônicos utilizam
um sistema informatizado que permite ao consumidor concluir o negócio com o forne­
cedor do bem ou serviço. Essa relação despersonalizada difere em grande medida da
clássica relação negocial levada a efeito em lojas físicas. A propósito, Rodotà6 chama a
atenção para aspectos do direito da personalidade nessas relações:

O comércio eletrônico implica, hoje, não só do ponto de vista estritamente da conclusão de


um contrato entre o consumidor e um fornecedor de bens de serviço, mas antes de tudo,
e como base, um contrato que não é aquele clássico de quem entra em uma loja e compra
um bem, mas um contrato em que há a utilização da tecnologia e a modalidade de contato
intersubjetivo é toda nova, a aquisição se junta aos elementos necessários para concluir o
contrato e uma parte da pessoa do contraente. Se eu entro na loja aqui em frente à minha
casa, compro algo, a minha imagem desaparece no momento em que saio da loja, ao menos
que eu não use um cartão de crédito, e aqui entramos em uma outra dimensão. Mas se
eu faço isso na rede, eu deixo uma marca e dou um pedaço de mim, isto é, das minhas
informações a este outro sujeito que poderá utilizá-las além da relação que foi estabelecida.

3
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 25.
4
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 69.
5
ZITTRAIN, Jonathan L. The Generative Internet. Harvard Law Review, v. 119, n. 7, p. 1993-1994, maio 2006.
6
RODOTÀ, Stefano. Entrevista. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, Padma, ano 3, v. 11, p. 251-252,
jul./set. 2002.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
51

Portanto, isso implica necessariamente que além da relação contratual clássica, seja também
utilizada a inovação da assinatura eletrônica e os contratos telemáticos; assim dizendo, há
um aspecto que faz referência à pessoa.

Não só os aspectos atinentes à pessoa são afetados, mas toda a multiplicidade


de estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais da sociedade também o são.
A internet tornou-se a grande vitrine de oportunidades do mundo moderno. Com o
crescente aumento no número de pessoas conectadas, constata-se que o efeito dessa
teia de relações é sentido em todos os cantos do globo, em virtude da possibilidade
de comunicação em tempo real entre pessoas separadas por milhares de quilômetros.
O amplo espectro de funcionalidades já existentes, assim como a velocidade com que
são criados novos aplicativos, fomenta o germe imaginativo do ser humano com vistas a
novos usos que certamente serão associados à rede. Estuda-se, inclusive, o analfabetismo
digital, decorrente da exclusão de pessoas do mundo virtual, consubstanciando um novo
tipo de excluído, que não tem acesso ao variado leque de oportunidades que a internet
oferece. “Aqueles que não tiverem existência virtual dificilmente sobreviverão também
no mundo real, e esse talvez seja um dos aspectos mais aterradores dos novos tempos”.7
Em outras palavras, instalou-se um novo tipo de ignorância, o que certamente vai exigir
a adoção de políticas públicas com vistas a tornar disponíveis aos cidadãos equipamentos
com acesso à rede, assim como capacitação adequada para que os usuários possam
fazer uso de seus recursos.8 Essa ignorância digital constitui fenômeno amplo e atinge
não somente a população de baixa renda, mas também outros grupos, como idosos9 e
portadores de necessidades especiais, o que demanda a necessidade de inclusão digital
do consumidor, em plena consonância com os objetivos visados na Política Nacional
das Relações de Consumo (art. 4º, II, CDC), sendo pouco realista esperar que a inclusão
digital desses grupos seja conseguida apenas pelo crescimento do mercado, sem que
haja intervenção estatal para combater a desigualdade de acesso e de incorporação de
tecnologias da informação.10
Outro aspecto interessante relaciona-se ao uso cada vez mais individualista e
menos socialmente participativo. A população de um país não está mais circunscrita
a um território, mas é uma população global que realiza atos e celebra negócios em
qualquer parte do mundo, conduta que muitas vezes escapa ao controle jurídico dos
Estados. Ressalta Greco:

A tecnologia, especialmente a informática, trouxe a pulverização da participação social.


O indivíduo não é mais uma figura abstrata que possa ser tratada e ter sua conduta
disciplinada genericamente; não é mais um “objeto” do processo político e da criação de
normas jurídicas. O indivíduo é alguém que, a todo instante, pode estar praticando atos,

7
PECK, Patricia. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 20.
8
BEHRENS, Fabiele. Assinatura Digital & Negócios Jurídicos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 117-121.
9
SCHMITT, Cristiano Heineck. A “Hipervulnerabilidade” do Consumidor Idoso. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 18, n. 70, p. 139-171, abr./jun. 2009.
10
MORATO, Antonio Carlos. O Conceito de Hipossuficiência e a Exclusão Digital do Consumidor na Sociedade
da Informação. In: MORATO, Antonio Carlos; NERI, Paulo de Tarso (Org.). 20 Anos do Código de Defesa do
Consumidor: Estudos em Homenagem ao Professor José Geraldo Brito Filomeno. São Paulo: Atlas, 2010, p. 11-13.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
52 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

ativamente, que repercutem na estrutura de poder; é um verdadeiro “agente” que instaura


múltiplas relações com outros indivíduos em qualquer parte do mundo, sem que a estrutura
estatal possa controlar ou, muitas vezes, sequer tenha conhecimento.11

Nesse prisma de crescente avanço nos sistemas informacionais que intensificam


as interações econômicas, políticas e culturais, vivencia-se um período de transição entre
o velho e o novo modelo de contratação. Não ocorreu, ainda, uma migração completa
para as novas formas de contratação, haja vista a abertura e a indefinição que marcam
o tempo atual, pontuado por leituras ainda incipientes e contraditórias. Nessa linha,
aduz Boaventura de Sousa Santos:

(...) Trata-se, pois, de um período de grande abertura e indefinição, um período de bifur­


cação cujas transformações futuras são imperscrutáveis. A própria natureza do sistema
mundial em transição é problemática e a ordem possível é a ordem da desordem. Mesmo
admitindo que um novo sistema se seguirá ao actual período de transição, não é possível
estabelecer uma relação determinada entre a ordem que o sustentará e a ordem caótica
do período actual ou a ordem não caótica que a precedeu e que sustentou durante cinco
séculos o sistema mundial moderno. Nestas circunstâncias, não admira que o período
actual seja objecto de várias e contraditórias leituras.12

Diante desse quadro, tem-se que o Direito não tem desenvolvido soluções que
abarquem todo o fenômeno, o que tem gerado insegurança jurídica aos usuários quando
da efetivação da contratação eletrônica, em especial quanto à autenticidade das mani­
festações de vontade. Daí por que o Direito não pode manter-se inerte, sob pena de
não mais atender aos anseios da sociedade. Deve, por conseguinte, adequar-se à nova
realidade para proporcionar a necessária estabilidade e segurança jurídica reclamadas
pelo cidadão. O Direito é responsável pelo equilíbrio das relações sociais e este só poderá
ser alcançado com a adequada interpretação da realidade social, instituindo normas que
garantam a segurança das expectativas e que incorporem as transformações por meio
de uma estrutura flexível que possa sustentá-la no tempo.
Analisando essa multiplicidade de condutas na qual o indivíduo pode expressar-
se, comunicar-se e interagir sobre qualquer tema com uma pluralidade de sujeitos em
todo o mundo, Lorenzetti constata o surgimento de um netcitizen, um navegador feliz,
mas socialmente isolado e sem capacidade crítica:

A realidade mostra que assistimos um processo de regulação heterônoma das condutas,


mediante a publicidade indutiva, a criação de modelos culturais, incentivo a determinadas
condutas, o que vai criando regras comuns. Esta homogeneidade do indivíduo médio leva
ao padrão de gostos e preferências, o que desencadeia um processo lesivo das liberdades.
Como descreveu Huxley, este mundo é “feliz” porquanto ninguém é consciente do controle
social e os sujeitos tomam decisões induzidos pelos outros, mas crendo firmemente que
são suas próprias decisões.13

11
GRECO, Marco Aurelio. Internet e Direito. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2000, p. 14.
12
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 89.
13
LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 45.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
53

Essa realidade aumenta a vulnerabilidade do indivíduo. Sua capacidade de


controle fica limitada em função das características da rede, em que fica evidente a
assimetria existente nas relações travadas virtualmente. Devido a essa situação de
debilidade, torna-se premente a criação de um contexto institucional de regras que
tornem possível a utilização da internet em condições paritárias, sem, entretanto, tolher
a liberdade de expressão individual.
No meio virtual, as informações relativas ao bem ou serviço adquirido também
impõem uma vulnerabilidade especial ao consumidor, mormente quando o objeto da
prestação é a própria informação. Devido à sua intangibilidade, esse produto constitui
um verdadeiro desafio para o consumidor, que tem dificuldades em entendê-lo em sua
completude. Em especial no que concerne às características que dominam o tempo atual
– a ubiquidade, a velocidade e a liberdade14 – verifica-se que o consumidor experimenta
uma nova vulnerabilidade no mundo virtual e globalizado que não tem mais fronteiras
rígidas e que estimula a livre-iniciativa e a livre concorrência.
De fato, o acesso aos sites de fornecedores de bens e de serviços pode dar azo à
coleta irregular de informações sobre o consumidor, registrando seus dados pessoais,
hábitos de consumo e, muitas vezes, ocorre a instalação não autorizada de programas
que captam informações sensíveis do usuário para formar banco de dados que,
frequentemente, é compartilhado com terceiros. Esses dados cadastrais são utilizados
para envio de material publicitário, sob a forma de mala direta não solicitada pelo
consumidor, configurando, amiúde, publicidade abusiva. A intromissão na vida
privada fica facilitada com a multiplicação de processos informáticos que permitem uma
radiografia da vida digital do cidadão, o que termina por agravar sua vulnerabilidade.

Com a Internet chega-se a resultados espantosos. O navegante na Internet, que pensa que
realiza uma pesquisa que não deixa indícios, está afinal a deixar atrás de si algo que é como
que o seu retrato. Os seus movimentos são gravados. Com eles consegue-se, através de
programas apropriados, traçar o perfil de cada internauta. E assim, quando ele se dirige a
um site comercial, por exemplo, o “navegador” (programa de busca) elaborou já com base
nos pedidos anteriores a informação que lhe concerne. A resposta que lhe é dada não é
uma resposta objetiva e uniforme, contra o que se supõe, mas uma resposta já adequada
às preferências detectadas daquele internauta.15

Qualquer tipo de banco de dados formado a partir de informações do consumidor


deve ser expressamente autorizado por ele, cabendo ao site elaborar sua política de
privacidade de forma transparente e solicitar autorização ao usuário para a transferência
de dados a terceiros. O que está em causa é a defesa da vida privada e, por conseguinte,
a defesa da personalidade diante dos meios informáticos. Daí, são aplicáveis ao espaço
virtual as normas que resguardam a privacidade do usuário, inclusive as regras da
legislação consumerista, mas, nesse espaço, há a necessidade de um manto protetor mais
robusto de modo a compensar a vulnerabilidade especial do consumidor no comércio
eletrônico.16

14
MARQUES, Claudia Lima. Confiança no Comércio Eletrônico e a Proteção do Consumidor: (um Estudo dos Negócios
Jurídicos de Consumo no Comércio Eletrônico). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 40.
15
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 160.
16
REINALDO FILHO, Demócrito. A Privacidade na “Sociedade da Informação”. In: REINALDO FILHO,
Demócrito (Coord.). Direito da Informática: Temas Polêmicos. São Paulo: Edipro, 2002, p. 39-40.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
54 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Surge, então, a questão da regulação da internet. Como salientado, o Brasil optou


pela regulação de alguns aspectos da internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014). Não
obstante, posições antagônicas são defendidas, seja a favor da regulação estatal, seja da
autorregulação. Mas como regular um ambiente que se desenvolve, se forja e se recria
fora das fronteiras nacionais? Cabe, então, ao Direito perceber o fenômeno e adequar-se
às transformações da sociedade, fazendo face a essas questões prementes. Nessa linha:

O direito não é um corpo estático de regras inflexíveis e de tradições inalteráveis. O di­na­


mismo da evolução econômica, cultural e tecnológica contemporânea exige que o direito
se adapte às demandas atuais. Tentativas de transplantar sistemas legais arcaicos para
aplicação a circunstâncias que mudam constantemente resultam numa luta para harmonizar
questões novas com estruturas jurídicas antiquadas. Atualmente, as cortes de justiça e o
poder legislativo estão enfrentando questões atinentes aos negócios conduzidos na internet.
Fracassado na tentativa de abranger os desenvolvimentos atuais, o velho direito deixa os
novos problemas expostos ao litígio e exige que advogados e juízes explorem os mares
desconhecidos da complexidade jurídica.17

Duas visões são apresentadas por Lorenzetti18 no que concerne à questão da


regulação do ambiente virtual: para a corrente ontológica, estar-se-ia diante de um mundo
novo, que demanda um Direito diferente e, para a corrente instrumental, dever-se-iam
transplantar as regras já existentes mediante o emprego da analogia.
Para a corrente ontológica, o mundo digital demandaria uma nova concepção
do mundo para a qual o Direito não estaria ainda apto a contribuir com sua regulação.
Existem matizes variantes desse ponto de vista, que englobam desde a proposta de
autorregulamentação, calcada na elasticidade dos usos e costumes, seguindo o modelo
de descentralização com diferentes focos de decisão, até a proposição de não regulá-
la, haja vista a inexequibilidade de editar regras que escapam ao território nacional e
atingem frontalmente a liberdade de expressão.
A corrente instrumental advoga a tese de que o Direito no ambiente virtual é
apenas uma extensão do Direito comum, devendo-se utilizar, por analogia, os atuais
instrumentos para a dirimição de conflitos surgidos no espaço virtual. As questões
surgidas no âmbito da autenticidade das manifestações de vontade, existência, validade e
eficácia de atos jurídicos, responsabilidade por danos, impossibilidade de ver e manipular
o produto, perda do valor desembolsado na compra, demora na entrega do produto ou
serviço, uso indevido de dados pessoais e financeiros, dificuldade de prova da transação,
envio de produto com características diversas daquele adquirido, entre outros, poderiam
ser resolvidas mediante o emprego dos institutos já existentes.
Na análise do cerne dessas duas posições, parece que um caminho que não con­
sidere os extremos de cada corrente teria maior acolhida. A posição ontológica tem a
pretensão de aclamar um mundo novo paralelo, mas apartado do mundo real, não sujeito
ao sistema normativo. Por seu turno, a visão instrumental não é bastante para abarcar

17
KIDD, Donnie L. Jr.; DAUGHTREY, William H. Jr. Adapting Contract Law to Accommodate Electronic Contracts:
Overview and Suggestions. HeinOnline’s Law Journal Library. Disponível em: <http://heinonline.org/HOL/Land
ingPage?collection=journals&handle=hein.journals/rutcomt26&div=12&id=&page=>. Acesso em: 12 abr. 2018
(tradução nossa).
18
LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 68-81.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
55

o fenômeno, uma vez que especificidades inerentes a determinadas situações não são
levadas em conta. A questão, ademais de ser complexa, não admite uma única solução
que reflita a multiplicidade de fatores que a vida digital engendra. Por conseguinte, cabe
ao Direito servir de ponto de referência para evitar que a internet seja uma terra livre e
sem barreiras, onde impere a desconfiança nas relações jurídicas. É necessário preservar
a fluidez das relações e a democracia interna da rede, mas sem olvidar que a preservação
dos direitos individuais é e sempre será o objetivo maior a ser colimado. Flexibiliza-se o
Direito para adaptar-se às novas situações sem criar obstáculos ao livre desenvolvimento
da rede e ao comércio eletrônico em particular, que, com as incontáveis sociedades
empresárias que criaram oportunidades em todo o mundo, se tornará uma atividade
cada vez mais lucrativa e que impactará quase todas as organizações no longo prazo.19
No contrato eletrônico, emprega-se, total ou parcialmente, o meio digital para sua
celebração, cumprimento ou execução, ou seja, a transação é levada a efeito mediante
a transmissão de dados sobre redes de comunicação, abrangendo todas as atividades
negociais juridicamente relevantes e incluindo as fases anteriores e posteriores à
contratação. Não há limite para a territorialidade, pois o ambiente virtual não considera
as fronteiras nacionais e a documentação digital daí resultante vale como manifestação
de vontade e serve de registro não só dos dados da operação em si, mas também dos
relativos ao ofertante, ao aceitante e ao interceptor (no caso dos provedores de acesso
à internet).
As regras gerais concernentes aos contratos realizados em meio não digital, em
especial quanto à capacidade, objeto e efeitos contratuais, são plenamente aplicáveis, em
princípio, às transações realizadas no ambiente virtual. O consenso das partes, veiculado
eletronicamente, as vinculará. Por seu turno, o suporte eletrônico cumpre as mesmas
funções do papel. O meio virtual tem a atribuição de registrar o acordo de vontade e seus
consequentes efeitos jurídicos, como se um substrato escrito existisse, de modo que seja
possível efetuar o controle no âmbito negocial, jurídico, econômico e fiscal. Arquivam-se
em um banco de dados virtual todos os registros pertinentes à negociação, o que provê
a necessária segurança jurídica ao viabilizar a utilização de senhas criptografadas e de
assinaturas eletrônicas. Assim, vige o princípio da equivalência funcional, de modo que
não se pode considerar inválido ou ineficaz um contrato pelo simples fato de ter sido
registrado em meio magnético ou ter sido celebrado mediante transmissão eletrônica
de dados. Não pode, pois, o contrato eletrônico sujeitar-se a exigências diversas das
requeridas para os contratos celebrados pela via tradicional em papel. O art. 104, do
Código Civil, a propósito, prescreve a necessidade de capacidade das partes, de objeto
lícito, possível, determinado ou determinável, e de forma prescrita ou não defesa em
lei. Atendidos esses pressupostos, não há razão para se negar validade aos contratos
eletrônicos.
A declaração de vontade será imputável àquele a cuja esfera de interesses per­
tença o programa utilizado na manifestação declarativa, pois o meio eletrônico apenas
operacionaliza o encontro de vontades entre os contratantes. Utiliza-se, aqui, a teoria
da aparência:20 o contratante que se dispõe a utilizar-se do meio eletrônico para efetivar

19
WARKENTIN, Merrill. Business to Business Electronic Commerce – Challenges and Solutions. Hershey: Idea Group
Publishing, 2002, p. i.
20
LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 283.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
56 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

suas transações, criando uma aparência de que aquele meio pertence à sua esfera
de interesses, deve suportar os riscos do negócio e responsabilizar-se pelo ônus de
demonstrar o contrário. Em razão da confiança no tráfico jurídico, a aparência criada
e a atuação baseada na confiança admitem que sejam imputadas obrigações, mesmo
que não tenham sido expressamente estabelecidas. Releva ressaltar a observância dos
deveres anexos impostos às partes, como o de informar sobre o meio utilizado para a
comunicação e o de utilizar um ambiente seguro. Essa aparência de que o meio digital
pertence à esfera de interesses do contratante não é absoluta e admite prova em contrário
de que o suposto emissor da mensagem não a enviou.
Quando a declaração é feita por intermédio de meio eletrônico, a oferta deverá
estar consubstanciada numa declaração unilateral de vontade, de caráter receptício,
direcionada a uma pessoa determinada, contendo a intenção de vincular-se no âmbito
de um negócio jurídico. Por seu turno, a aceitação também é uma declaração unilateral
de vontade com características similares à oferta. Ambas são passíveis de revogação,
podendo o declarante retirar-lhe o efeito, conforme estabelece o Código Civil, no art. 427:
“a proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos
dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”. Entretanto, o art. 428, IV,
esta­belece que deixa de ser obrigatória a proposta “se, antes dela, ou simultaneamente,
chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente”. Os contratos eletrô­
nicos tornam praticamente impossível a retratação em função da velocidade com que são
perfectibilizados. Não obstante, se a retratação chegar à esfera de controle do receptor,
será factível a retirada dos efeitos da declaração volitiva.
O anonimato na internet é uma questão problemática. São inúmeros os casos de
mensagens enviadas por hackers, spams, páginas clonadas, ações de grupos virtuais etc.
Diante dessa situação, cabe à tecnologia fornecer as soluções possíveis ao problema da
identificação da autoria das informações na rede, de modo a determinar inequivocamente
a responsabilidade pelo envio de dados indesejáveis ou nocivos. A regra de identificação
é um ônus que deve recair sobre quem estiver em condições de cumpri-la com os menores
custos. Em princípio, são os intermediários da cadeia de comunicação digital que podem
representar esse papel, uma vez que contam com a possibilidade de estabelecer meca­
nismos de controle para a identificação dos usuários. A evolução tecnológica propor­
cionará os meios necessários para o cumprimento desse mister, cabendo aos juízes,
auxiliados por peritos, analisar objetivamente as possibilidades concretas em cada caso.
Se não tiver sido utilizado o mecanismo de controle adequado, o intermediário poderá
ser responsabilizado, pois não se muniu dos recursos necessários, objetivamente aferíveis,
para prover a identificação dos usuários que se utilizam de seus serviços. É evidente
que, nesse processo, não devem ser feridas a privacidade ou a liberdade de expressão
dos sujeitos intervenientes.
Questão bastante discutida é a que diz respeito ao local de celebração do contrato
eletrônico, uma vez que sua determinação fixará a competência, a lei aplicável e o caráter
nacional ou internacional do contrato.21 Há que se ressaltar que os contratantes, em regra,

21
É possível que as partes estabeleçam cláusula fixando o foro e a lei aplicável. A cláusula de eleição de foro é válida
em contratos comerciais nacionais (Súmula 335, STF: é válida a cláusula de eleição de foro para os processos
oriundos do contrato) e nos contratos internacionais (veja-se ARAÚJO, Nádia de. Contratos Internacionais. 2. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 243 e seguintes). Nos contratos de consumo, nacionais ou internacionais, não
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
57

possuem domicílio no mundo real e que, nas cláusulas contratuais, são estipulados
os locais de cumprimento e as cláusulas de eleição de foro, em virtude de tratar-se de
direito dispositivo. Assim, em princípio, os locais de celebração e de cumprimento do
contrato são determinados quando de sua celebração, mas, na ausência de estipulação
pelas partes, o estabelecimento do local de celebração será aquele ditado pela legislação
(o Código Civil, nessa linha, reputa celebrado o contrato no lugar em que foi proposto –
art. 435). Se as partes residirem em países diferentes, a Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, em seu art. 9º, §2º, estabelece que a obrigação resultante do contrato
reputa-se concluída no lugar em que residir o proponente. Não obstante, em se tratando
de relação de consumo, adota-se o domicílio do consumidor como lugar de celebração,
em razão de sua vulnerabilidade. Essa perspectiva está em consonância com o princípio
constitucional de defesa do consumidor, pois, de outro modo, agravaria seu acesso à
justiça. Deve prevalecer, por conseguinte, a regra que beneficie o consumidor, em especial
no âmbito dos contratos eletrônicos internacionais.22
Ponto importante refere-se ao fato de a contratação eletrônica ser entre presentes
ou entre ausentes, uma vez que o meio utilizado não obedece a questões geográficas.
No Direito brasileiro, estabelece o Código Civil, no art. 433, que “considera-se inexistente
a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante”.
O art. 434 dispõe que “os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a
aceitação é expedida, exceto: I – no caso do artigo antecedente; II – se o proponente se
houver comprometido a esperar resposta; III – se ela não chegar no prazo convencionado”.
Nessa linha, se o contrato é celebrado instantaneamente, não se trata de contrato
entre ausentes, mas entre presentes, uma vez que não há transcurso de tempo entre a
oferta e a aceitação. Se não o é, há um lapso temporal entre a oferta e a aceitação, podendo
ocorrer algum evento que impeça o aperfeiçoamento do negócio. Nesse caso, o contrato
se perfectibiliza quando o aceitante exterioriza sua vontade, enviando uma mensagem
eletrônica contendo sua aceitação, que ingressa no computador do ofertante. Ao chegar à
esfera de controle do destinatário, fecha-se o ciclo, ocorrendo a confluência de vontades
que constituirá o negócio. A aceitação, então, ocorre com a entrada da informação na
esfera de controle do proponente.
De tudo aqui exposto, conclui-se que, no que tange a seus aspectos essenciais, o
contrato eletrônico distingue-se com relação aos demais contratos no tocante à forma
e ao meio eleito para a veiculação da declaração de vontade. Não é espécie que difira

é válida a cláusula de eleição de foro (veja-se GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor: Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 567 e seguintes).
Nos contratos internacionais, não é válida a cláusula de eleição da lei, mas é válida a cláusula de arbitragem
(veja-se ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 311 e seguintes e
p. 415 e seguintes). A propósito, o art. 9º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, estabelece que
“para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. Seu §2º dispõe que
“a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente”. No caso do
citado art. 9º, essa regra será aplicada ao contrato eletrônico, pois existe disposição expressa acerca do lugar de
cumprimento da obrigação.
22
Essa visão não é compartilhada por parte da doutrina. Fábio Ulhoa Coelho adverte que “o contrato de consumo
internacional rege-se pelas cláusulas propostas pelo fornecedor estrangeiro, e às quais adere o consumidor
brasileiro. O Código de Defesa do Consumidor não se aplica a essa relação de consumo, porque a lei de regência
das obrigações resultantes de contrato, segundo o direito positivo nacional, é a do domicílio do proponente
(LICC, art. 9º, §2º)”. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 42.
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58 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

substancialmente dos demais, podendo qualquer contrato em espécie ser utilizado


no ambiente virtual. Ademais, no tocante aos contratos eletrônicos de consumo, as
regras atinentes à proteção do consumidor são plenamente aplicáveis. As informações
dispensadas pelos fornecedores devem ser apresentadas em vernáculo de forma clara,
correta e precisa, consignando eventuais riscos à saúde e à segurança (art. 31, CDC),
tendo o fabricante o dever de identificar-se pelo nome e endereço (art. 33, CDC), em
cumprimento ao dever de transparência da informação veiculada. Se as informações
são incompletas, incongruentes, contraditórias ou obscuras, prevalece a condição mais
benéfica ao consumidor (arts. 30 e 47, CDC). Se não forem verdadeiras, caracteriza-se
vício de fornecimento, configurando-se vício de qualidade se houver discrepância entre
a realidade e as indicações constantes na publicidade (arts. 18 e 20, CDC). A propósito, a
publicidade não pode ser simulada, enganosa ou abusiva (arts. 36 e 37, CDC), sob pena
de caracterizar-se a responsabilidade civil, penal ou administrativa. Ressalte-se que o
art. 49, do CDC, que assegura ao consumidor o direito de arrependimento, é aplicável
ao comércio eletrônico, pois a legislação consumerista protege o consumidor em todas
as situações em que a contratação é realizada fora do estabelecimento comercial,
concedendo-lhe o prazo de sete dias para arrepender-se do negócio, sendo-lhe assegurada
a devolução dos valores eventualmente pagos, monetariamente atualizados, caso exerça
o referido direito dentro do prazo de reflexão.
Dessa forma, a validade do negócio jurídico realizado pela internet submete-se,
como qualquer negócio, aos requisitos estabelecidos no art. 104, do Código Civil, que
requer agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e forma
prescrita ou não defesa em lei. A forma do contrato é, em regra, livre (arts. 107, 108 e 109,
CC). Não obstante, a imposição do dever de informar é imprescindível para minimizar
o déficit informacional e técnico que envolve o consumidor.
No ambiente virtual, as informações fornecidas deverão incluir o meio tecnoló­
gico utilizado e suas condições de segurança, a completa identificação do ofertante,
inclusive contendo endereço físico, esclarecimentos sobre como aceitar a oferta, dados
sobre as características do bem objeto da contratação, informações sobre o direito de arre­
pendimento e aspectos legais atinentes às condições da contratação. A transparência nas
informações e nas práticas do comércio eletrônico é o princípio fundamental a ser seguido
pelo fornecedor para que seja minimizado o desequilíbrio (déficit informativo) entre as
partes. A transparência é o instrumento por meio do qual será despertada a confiança
do consumidor e que proporcionará a equidade informacional entre os contratantes.
A regulação da matéria e a adoção de uma hermenêutica pró-consumidor
direcionam-se no sentido de criar a confiança no comércio eletrônico de consumo e
construir a transparência no meio virtual, proporcionando segurança às relações jurídicas,
que devem ser pautadas pela boa-fé das partes no que se refere à privacidade dos dados
transitados e ao dever de criar um ambiente seguro para a contratação. Ter consciência
dos desafios e dos problemas inerentes à contratação eletrônica é um passo importante
para desenvolver ações que visem à restituição da confiança que deve reger todas as
relações jurídicas.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
59

3 Globalização e comércio eletrônico: impactos sobre o direito dos


contratos
O mundo é, em regra, maior do que se pressupõe e, por isso, a ideia de globalização
é uma metáfora justificada por um universo (o universo da globalização) que é um
subconjunto do universo propriamente dito.23 É um fenômeno complexo marcado
pela livre circulação mundial de fatores produtivos, de informação e de modelos
socioculturais e está intimamente relacionado com a mobilidade econômica e cultural.
Emergem novos atores transnacionais e predominam novos fatores econômicos e novéis
lógicas de especialização e de competição. Consolida-se um novo paradigma econômico
em que releva o papel proeminente das redes de comunicação e da imaterialidade do
funcionamento desses sistemas que interligam instantaneamente pontos mais longínquos
do planeta. As explicações para esse fenômeno certamente não podem ser centradas na
particularização de uma causa ou de outra, como se, monoliticamente, fosse possível
expressar as multiplicidades de aspectos que o fenômeno engendra. Nessa linha,

Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos
perante um fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas,
culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Por esta razão, as explicações
monocausais e as interpretações monolíticas deste fenómeno parecem pouco adequadas.
Acresce que a globalização – globalização como homogeneização e uniformização – sus­
tentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto pelas teorias da modernização, como pelas
teorias do desenvolvimento dependente, parece combinar a universalização e a eliminação
das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade
étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro. Além disso, interage de modo muito
diversificado com outras transformações no sistema mundial que lhe são concomitantes,
tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e,
no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental,
os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a
falência ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente orga­
nizado, a democracia formal como condição política para a assistência internacional, etc.24

Não há um padrão ou regularidade que possa ser incutido no desenvolvimento


do fenômeno globalizante. A noção de que seja possível descobri-los na progressão
dos eventos históricos é, de fato, atrativa para aqueles seduzidos pelo sucesso das
ciências naturais com seu frêmito de classificar, correlacionar e, sobretudo, prever o
com­portamento de tudo. Procuram estender o conhecimento histórico para preencher
as lacunas da ciência aplicando métodos metafísicos ou empíricos mediante a utilização
de dados questionáveis tomados como verdades absolutas, o que termina por fornecer
interpretações dúbias acerca dos fenômenos estudados. Esse mecanismo afeta não só
o modo de observar ou descrever as atividades ou características dos seres humanos,
mas também as atitudes morais, políticas e religiosas. Entre os pontos que sobrelevam

23
REIS, José. A Globalização como metáfora da perplexidade? Os Processos Geoeconômicos e o “Simples”
Funcionamento dos Sistemas Complexos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A Globalização e as Ciências
Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 105.
24
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 26.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
60 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

nesse contexto, de como e por que os seres humanos agem e vivem, estão questões
relacionadas à motivação e à responsabilidade de quem o faz, que, no mais das vezes,
obstruem a realidade e confundem a comunidade.25
Para Teubner e Fischer-Lescano,26 há distintos mercados globais, cada um com
regimes regulatórios próprios e com instâncias decisórias individuais, o que constituiria
uma “globalização policêntrica”. Seu motor primário seria uma acelerada diferenciação
da sociedade em sistemas sociais autônomos, cada qual se movendo dentro de suas
fronteiras territoriais, mas não se restringindo apenas aos mercados, e sim englobando
ciência, cultura, tecnologia, saúde, transporte, turismo, assim como política e direito,
cada um formando um sistema global autônomo.
Nesse encadeamento de ideias, falar das características da globalização pode
transmitir a falsa concepção de que se trata de um processo histórico linear e consensual.
Longe disso, é um extenso campo de conflitos que envolvem interesses hegemônicos,
Estados, grandes corporações e grupos sociais os mais diversificados, dentro dos quais
proliferam correntes e divisões significativas. No entanto, pairando por sobre todos
esses conflitos, o campo hegemônico atua na base do consenso entre seus membros mais
influentes, o que confere à globalização suas características dominantes, legitimando-as
como as únicas possíveis ou adequadas.27 Esse acordo sustenta-se, em grande medida,
na área econômica, escorada pelo consenso econômico neoliberal, caracterizado pelas
restrições à regulação estatal da economia e pela subordinação dos Estados nacionais
a agências multilaterais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco
Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Esses organismos têm uma
atuação mais significativa nos chamados países periféricos, dependentes do mercado
mundial e cujo desenvolvimento é vinculado ao desempenho das economias centrais
desenvolvidas,28 haja vista a imposição de agências multilaterais como os citados FMI
e Banco Mundial no sentido de que os países periféricos promovam ajustamentos
estruturais de suas economias a fim de viabilizar o financiamento de suas dívidas. Não
obstante, tendo em conta a lógica financeira que domina a economia real, mesmo os
Estados centrais estão tendo que ajustar-se em função das recentes crises financeiras
que têm abatido países de economia até então consideradas sólidas. Quando há bolhas
de consumo, inflação de ativos e expectativas irreais, seguem-se as crises no sistema
econômico, cujos prejuízos contaminam outras economias e repercutem nos pontos
mais distantes do mundo, disseminando as perdas globalmente, mesmo que a raiz do
problema atenha-se a um único país.29
Crises financeiras que possuem impacto global decorrem muitas vezes não de
questões financeiras, mas legais, uma vez que resultam na falta de confiança das pessoas

25
BERLIN, Isaiah. Historical Inevitability. In: BERLIN, Isaiah. The Proper Study of Mankind: an Anthology of Essays.
London: Pimlico, 1998, p. 121-122 e 190.
26
TEUBNER, Gunther; FISCHER-LESCANO, Andreas. Regime-Collisions: The Vain Search for Legal Unity in the
Fragmentation of Global Law. Michigan Journal of International Law, v. 25, n. 4, p. 1005-1006, 2004.
27
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 27.
28
FRANKLIN, Rodrigo Straessli Pinto. Um Ensaio sobre a Dependência a partir das Relações Econômicas do Brasil
Contemporâneo. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2012, p. 9.
29
SADDI, Jairo. Notas sobre a Crise Financeira de 2008. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 11, n. 42, p. 34, out./dez. 2008.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
61

nos papéis emitidos, quer pelas instituições financeiras, quer pelos governos, que,
hoje em dia, representam a maior parte da propriedade e do fluxo mundial de valores
consubstanciados em contratos, títulos de propriedade, imóveis, garantias, entre outros.30
Essas crises poderiam ser contornadas ou minimizadas se os governos estabelecessem
padrões de conduta nos mercados e compelissem as instituições a manter seus regis­tros
contábeis transparentes, tudo sob o império do Estado de Direito. Isso favoreceria a
segurança nas relações jurídicas, mormente quando essa crise centra-se na percepção da
falta de capacidade estatal para lidar com os novos fenômenos contratuais. Nessa linha, o
restabelecimento da ordem e da confiança nas instituições representa um grande desafio,
uma vez que diversos fatores contribuíram para a formação de uma nova mentalidade
que deve permear o direcionamento das políticas públicas: a incerteza generalizada no
futuro, o reconhecimento de que a sociedade atual é de risco, a ruptura que ameaça o
capitalismo e as modificações do sistema mundial de forças políticas.31
Essas crises mundiais, um singelo reflexo do fenômeno da globalização, exigem
um trabalho de reconstrução do Direito no sentido de ajustar-se às evoluções econômicas,
sociais e tecnológicas que repercutem não só no mundo financeiro, como nos exemplos
apresentados, mas, sobretudo, nas instituições jurídicas básicas, como a família, o
contrato, a propriedade e a responsabilidade civil. Essa atualização do Direito faz-se
necessária em função da insuficiência ou da obsolescência das normas do Direito clássico
para acompanhar as inovações que se fazem presentes e as crises que não cessam de
abalar os alicerces da sociedade. Cabe, então, ao Direito acompanhar as novas técnicas
econômicas, financeiras e industriais com o fito de criar comandos regulatórios no seio
da ordem jurídica. Resume Arnoldo Wald:

O jurista detectou a crise quando, na comparação das curvas do movimento dos fatos e
das leis, sentiu que tinha surgido uma nova problemática referente à adequação da norma
à realidade social e econômica. Trata-se, pois, de assegurar igual velocidade à evolução
jurídica e ao progresso tecnológico, evitando-se a mora do Direito em relação aos fatos,
que pode provocar a revolta dos fatos contra os códigos.
A arritmia entre a realidade e as normas provoca um nó de estrangulamento na vida
social e econômica. A mora do Direito pode decorrer tanto da falta de velocidade e de
criatividade do legislador, ou, ainda, de falhas técnicas dos juristas, como do misoneísmo
e do conservantismo das classes dominantes. Estas, efetivamente, podem negar ao país as
estruturas jurídicas correspondentes às necessidades que decorrem do seu desenvolvimento
econômico e social, como, ao contrário, podem antecipar-se aos fatos e apresentar soluções
justas e eficientes em relação aos novos problemas que estão surgindo, ou cujo aparecimento
pode ser previsto.
Cabe ao jurista acompanhar a realidade, vivendo os problemas do seu tempo, a fim de
poder realizar integralmente a sua função e combater no front movediço em que se constrói,
diariamente, o Direito de hoje e de amanhã.32

30
SOTO, Hernando de. The Crisis: It’s about Paper and not Bubbles. Revista de Direito Bancário e do Mercado de
Capitais, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 12, n. 45, p. 183-186, jul./set. 2009.
31
WALD, Arnoldo. O Direito da Crise e a Nova Dogmática. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 12, n. 43, p. 23, jan./mar. 2009.
32
WALD, Arnoldo. O Direito da Crise e a Nova Dogmática. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 12, n. 43, jan./mar. 2009, p. 32.
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62 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A responsabilidade que subjaz a essa questão está direcionada ao estabelecimento


de um mercado financeiro mais humano, com uma visão de longo prazo mais responsável
e mais adequada às necessidades reais da economia. Ao Direito, cabe atuar de maneira
inovadora, formulando regras que possam acompanhar a velocidade das mudanças, em
especial no que concerne às questões econômicas, de regulação do sistema financeiro
e de funcionamento das sociedades creditícias, de forma a garantir a estabilidade, a
segurança jurídica e o respeito aos direitos individuais e sociais. A crise pode ter o efeito
de uma destruição criativa:33 o processo de mutação industrial e as novas tecnologias
destroem, ao mesmo tempo em que criam novas técnicas e metodologias. O novo ocupa
o espaço do velho e as novas estruturas aniquilam as antigas. O progresso, então, é
consequência desse processo destruidor e criativo. Nesse diapasão, a crise pode ser o
elemento dinamizador do Direito na medida em que poderá atualizá-lo para fazer frente
à incessante marcha do processo de globalização vivenciado hoje.
Esse processo de globalização está orientado à homogeneização das relações
jurídico-econômicas e, entre seus efeitos, podem ser apontados a paulatina substituição
dos ordenamentos jurídicos nacionais pela lex mercatória e o reforço do poder econômico
privado, em especial das empresas transnacionais, de modo a paulatinamente minimizar
a atuação do Estado no domínio econômico, privatizando a prestação de serviços
públicos, desregulamentando a economia, flexibilizando direitos laborais e eliminando
entraves à maximização dos lucros.34 O fenômeno, evidentemente, carreia, de um lado,
os benefícios nos campos do desenvolvimento tecnológico, da afirmação da democracia,
da velocidade na transmissão das informações e do respeito aos direitos humanos,
mas, de outro, traz desvantagens ao aumentar o fosso entre ricos e pobres, ao agravar
os riscos ambientais, ao disseminar o uso das drogas e ao insuflar o crime organizado
e as ações terroristas.
Esse fenômeno, no que concerne à aspiração humana de ultrapassar os limites
de sua aldeia, não é recente. Remontando aos primórdios da civilização ocidental,
gregos e fenícios cruzavam o Mediterrâneo para estabelecer relações econômicas, os
romanos engendraram tratativas comerciais com os povos do Oriente e os mercadores
medievais, por meio do comércio, unificaram a Europa, que era, à época, fragmentada
em milhares de pequenos principados.35 Isso demonstra a existência de um constante e
corajoso desejo humano de cruzar fronteiras e de efetuar trocas mercantis entre povos
pertencentes a diferentes civilizações e grupos étnicos, o que indica que a história
moderna nada mais é do que a perpetuação desse contínuo anseio de ultrapassar os
limites impostos pela geografia ou pelos interesses locais. Essa aventura humana não
se confunde, entretanto, com a globalização mundial gerada pelo estabelecimento da
economia de mercado, consequência de fatores e vetores específicos sem precedentes
nos fatos históricos mencionados.

33
SCHUMPETER, Joseph. Capitalism, Socialism and Democracy. 2. ed. New York: Harper & Brothers, 1950, p. 83.
34
CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Globalização e o Conceito de Humanidade: Racionalidade e Irracionalidade
Desafiando o Tratamento Jurídico das Relações Econômicas Internacionais. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira
da; PEZZELLA, Maria Cristina Cereser (Coord.). Mitos e Rupturas no Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008, p. 114.
35
IUDICA, Giovanni. Law & Globalization. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista
dos Tribunais, ano 13, n. 47, jan./mar. 2010, p. 175.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
63

Podem-se apontar três causas para o triunfo da globalização dos mercados.36


A primeira é a eficiência intrínseca da economia de mercado, pois o sistema de produção
capitalista provou ser o mais efetivo mecanismo de geração e de distribuição de riqueza,
que é tanto maior quanto mais o mercado se expande, as transações econômicas são
liberalizadas ou o fluxo de informação se torna mais ágil. Em segundo lugar, tem-se o
simultâneo declínio do modelo socialista, cujo sistema burocrático carecia de eficiência
e era baseado na centralização das decisões e dos meios de produção. Por fim, o terceiro
fator que impulsionou o sucesso da economia de mercado foi a formidável revolução
tecnológica dos últimos decênios, seja nos meios de transporte e de comunicação, seja
nos meios de comercialização de bens e serviços. Essa extraordinária e multifacetada
revolução tecnológica impactou fortemente a economia real, trazendo progressos para
o desenvolvimento do capital financeiro, com consequências não só para a geopolítica,
mas também para as sociedades e, por extensão, aos indivíduos tomados isoladamente.
Emerge, assim, o protagonismo da economia global de mercado.
Esse protagonismo comporta três visões:37 a que diz respeito a uma vontade política
forte dos Estados, aquela vinculada a um fenômeno realmente planetário e a que diz
respeito a uma financeirização aguda da economia.
No tocante à primeira visão, após as duas guerras mundiais e a crise de 1929, era
imperativo promover uma reforma que assegurasse a estabilidade do sistema financeiro
internacional e liberasse as trocas internacionais, eliminando os obstáculos ao comércio e
ao investimento. Para realizar esses objetivos, os acordos de Bretton Woods dão origem
ao nascimento do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Mais tarde, surge
o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), que seria substituído pala Organização
Mundial do Comércio (OMC), que tem por objetivo reduzir os obstáculos às trocas, abolir
as práticas abusivas da livre concorrência de mercado, reforçar a proteção do direito de
propriedade intelectual, além de representar a jurisdição responsável pelo julgamento
de eventuais conflitos. O principal resultado desses acordos está na liberalização do
acesso aos mercados de bens e serviços dos diferentes países nos ramos de atividades
os mais diversos, servindo de instituição reguladora do comércio mundial.
A segunda visão indica que o fenômeno planetário da globalização mudou a face
do mundo. Na Alemanha, caiu o muro de Berlim, e a China transformou-se em grande
potência ao fazer crescer seu PIB a taxas elevadíssimas em virtude da industrialização
de sua economia e da produção de bens exportados para todo o mundo. Novos centros
econômicos florescem, fazendo com que suas populações deixem de viver à margem da
linha de pobreza e passem a consumir mais. Com a internet, não há mais limites para a
inovação tecnológica nos domínios da informação e da comunicação.
Quanto à terceira visão, a crescente financeirização da economia resulta da evo­
lução profunda do liberalismo e do capitalismo que, cada vez mais, conquistam o planeta.
Nos anos 1980, concretizaram-se grandes programas de desregulamentação em todas
as áreas, liberando os mercados, o que proporcionou o crescimento impressionante dos

36
IUDICA, Giovanni. Law & Globalization. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista
dos Tribunais, ano 13, n. 47, p. 176-177, jan./mar. 2010.
37
PAILLUSSEAU, Jean. L’Influence de la Mondialisation sur le Droit des Activités Économiques. Conference 4
Février 2008 – Grand’Chambre de la Cour de Cassation. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 11, n. 41, p. 255-257, jul./set. 2008.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
64 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

ativos e do poder dos fundos de investimento, em especial dos fundos de pensão, que
passaram a deter a maior parte do capital de diversas sociedades. Seu poder sobre o
mercado é determinante. Mais tarde, passaram a ser criadas novas formas de ativos e
de instrumentos financeiros, como os hedge funds e os fundos soberanos, que dispõem
de capital considerável e de participações societárias substanciais em todos os recantos
do planeta. A proliferação de produtos financeiros cada vez mais sofisticados é a nova
face do capitalismo.
A globalização, assim, se afigura como um processo oriundo da formação da
economia de mercado, aliado ao desenvolvimento das relações internacionais e à
necessidade de os Estados participarem desse processo histórico em que a correlação de
interesses é complexa e plural. Esse fenômeno está demarcado pelas forças do Estado,
do mercado e da sociedade civil, que, em conjunto, dão feição ao fenômeno e forçam a
reconfiguração de novas formas de agir e de encarar as relações, tanto na área pública
como no setor privado, dando nova dimensão, inclusive, a institutos jurídicos como a
família, a propriedade e o contrato.
Conforme aponta Eros Grau:

De outra parte, a globalização é, essencialmente, globalização financeira; é isso que a distingue


da característica internacionalizante do capitalismo.
(...)
Ademais – anotei em outra ocasião – o modo de produção social globalizado dominante,
além de conduzir não apenas à perda de importância dos conceitos de “país” e “nação”,
mas também ao comprometimento da noção de Estado, nos coloca diante do desafio,
enunciado por Dahrendorf, da quadratura do círculo entre crescimento econômico (criação
de riqueza), sociedade civil (coesão social) e liberdade política: como harmonizar esses
valores no clima do mercado global?
E mais: a globalização ameaça a sociedade civil, na medida em que: (i) está associada a novos
tipos de exclusão social, gerando um subproletariado (underclass), em parte constituído
por marginalizados em função da raça, nacionalidade, religião ou outro sinal distintivo;
(ii) instala uma contínua e crescente competição entre os indivíduos; (iii) conduz à
destruição do serviço público (= destruição do espaço público e declínio dos valores
do serviço por ele veiculados). Enfim, a globalização, na fusão de competição global e de
desintegração social, compromete a liberdade.38

Especialmente no tocante ao contrato, com a globalização da economia, os agentes


econômicos escolhem aqueles modelos contratuais que melhor se adaptam às suas
necessidades e que respondem mais eficazmente às exigências de um mercado sempre
ávido por inovações. O Direito, agora global, é analisado pelos operadores econômicos
com vistas a, utilizando técnicas de engenharia jurídica, fornecer os arranjos normativos
que mais lhe convenham. No caso de sistemas normativos que dificultem ou inviabilizem
a consecução da operação desejada, escolhe-se outro cujos parâmetros sejam mais dúcteis.
No âmbito do Direito Internacional, são normas flexíveis e que permitem interpretações
e aplicações adaptadas às necessidades das partes envolvidas num acordo internacional
ou submetidas às recomendações de uma agência de autorregulação de caráter

38
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e Crítica. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 40 (grifos no original).
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
65

internacional. São conhecidas como droit doux ou soft law, que compreendem regras
cujo valor normativo é menos constringente que o das normas jurídicas tradicionais,
elaboradas por operadores da economia global sob os auspícios das organizações jurí­
dicas internacionais e intimamente relacionados ao mundo econômico-financeiro dos
negócios internacionais, sob a égide do Direito Internacional do comércio.
Nesse panorama, o Direito positivo estatal elenca um conjunto de contratos
para os quais estabelece um regramento específico, segundo um modelo fixado pelo
legislador. São os contratos típicos ou nominados. No entanto, a lei deixa certa margem
para a livre convenção das partes, desde que não contrariem as normas cogentes que não
permitem estipulação convencional de conteúdo. Por seu turno, os contratos atípicos ou
inominados são modelos negociais que não possuem previsão expressa na legislação e
são livremente elaborados pelas partes contratantes para regrar interesses particulares.
Nos novos modelos contratuais, as relações jurídicas são mais complexas, o que não
permite enquadrá-los rigidamente em uma categoria ou outra, mesmo que esparsamente
previstos em legislações específicas, como é o caso do factoring, joint-venture, leasing,
know-how e franchising.

São contratos que absorvem um número ilimitado de cláusulas cada vez mais explícitas e
completas, de modo a excluir a apreciação dos contratos pelos tribunais, ensejando sempre
uma interpretação literal. Todas as formas de interpretação pelos princípios, divulgadas
no plano dos contratos continentais, tais como boa fé, equidade, intenção das partes, usos
e costumes, doutrina, etc., são vistas como elementos que perturbam a imagem de certeza
do contrato, criando “zonas de risco” não mais toleráveis na atualidade negocial.
Todas essas hipóteses constituem momentos de intersecção entre o direito (global) dos
contratos e o direito positivo estatal. Tal convergência pode ser explicada em razão da
cultura pragmática e flexível do sistema anglo-americano, base do direito global e fundada
no empirismo inglês e no evolucionismo biológico darwiniano da segunda metade do
século XIX. (...).39

O pluralismo dessas novas formas contratuais mostra quão dinâmico é o mercado


no desenvolvimento de estruturas que comportem seus interesses, rompendo, no
mais das vezes, com arquétipos já consagrados na literatura jurídica. Nessa flexibili­
zação das situações contratuais, aumenta-se o poder das partes contratantes mediante
a possi­bilidade de escolha da legislação regedora do acordo e da jurisdição que, na
visão dos contratantes, oferecer uma solução para o litígio que esteja em consonância
com as diretrizes traçadas na relação contratual, o que parece indicar uma preferência
dos opera­dores econômicos pela não contratualização, ou seja, pela concretização das
relações con­tratuais de fato. Nessa visão, o Direito estatal operaria como um empecilho,
dificultando o rápido desenrolar das negociações e a posterior efetivação do negócio.
O Estado atua deixando de regular determinados aspectos negociais do mercado,
mas põe em ação, por meio de agências reguladoras independentes, por exemplo,
mecanismo de controle e de normatização das atividades nesse campo. Formam-se
estruturas dentro da administração estatal que atuam como uma longa manus que passam
a compor o direito global e a ocupar as frestas normativas deixadas pelos mecanismos

39
FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia
Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 270.
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66 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

de mercado. A extensão desse fenômeno, que consagra o desgaste da forma tradicional


de conceber o contrato, é capitaneada pela tendência sempre crescente de inovação
por parte dos agentes econômicos, sequiosos de elucubrar estratégias para beneficiar
seus negócios com o beneplácito da interpretação generalizante das normas jurídicas,
criando um direito próprio e passando ao largo da atuação do Estado e de suas estruturas
jurídicas. Nesse passo, cabe ao Estado o papel de mediador dos anseios dos agentes
econômicos e daqueles da sociedade em geral, encontrando o ponto de equilíbrio nas
questões inerentes aos negócios globais justamente no cruzamento das lógicas que
permeiam o agir econômico, político, social e jurídico.
Dessa forma, com o processo de globalização dos mercados comerciais e finan­
ceiros, com suas peculiaridades e exigências de tratamento das questões de maneira
mais rápida e eficaz, o Direito dos contratos tem sido posto à prova. A expansão das
práticas de mercado, em regra levadas a cabo por conglomerados multinacionais, tem
exigido a necessidade de adequação do Direito para abarcar essas novas configurações
contratuais. Passando a certa distância do Direito estatal, menos célere e mais regulado,
essas corporações preferem movimentar-se por terreno mais propício às suas atividades.
No que concerne a esse processo, nota-se que o cerne das novas relações econômicas
reside no alargamento das fontes contratuais. Sob esse novo olhar, o Estado deixa
de ser o centro exclusivo de poder e passa a conviver com o direito supranacional e
pluralista dos regramentos privados produzidos ao alvedrio da seara estatal. É fato
que, com a globalização, houve um aumento na complexidade do sistema em virtude
do estabelecimento de um nível legal e econômico de interação acima do Estado, ou,
pelo menos, em virtude da coexistência de múltiplas fontes legais.40 Cada uma dessas
dimensões normativas coexiste com e estão sujeitas à dimensão global e o Estado, por
conta de sua história, de seus instrumentos e de sua natureza, não pode fazer face às
dimensões dos problemas globais: como é possível regulamentar atividades que não
conhecem fronteiras e que nenhum regulador supranacional está investido no poder
de fazê-lo?41
O contrato, no ambiente globalizado atual, é o centro de uma considerável evo­
lução, adquirindo novas facetas e significações, num complexo inter-relacionamento
com perfis pouco nítidos entre o modelo tradicional e os novos modelos propostos
pelo avassalador empreendedorismo do mercado. Como já ressaltado, as inovações
tecno­lógicas, no contexto da atual globalização da sociedade, trazem em seu bojo a
oportu­nidade de aprofundar posições e conceitos disseminados na cultura jurídica.
O avassa­lador desenvolvimento dos meios de comunicação e de informática observados
desde o final do século XX vem fomentando o germe imaginativo e criativo dos
pesquisadores em prol da redefinição da arquitetura conjuntural do mundo em que vive
o ser humano, plasmada por alterações vertiginosas da forma como é visto e sentido.
Em particular, o desenvolvimento dos meios informáticos acarretou o surgimento de
uma forma de contratação realizada no meio virtual, o que engendra desafios para os

40
IUDICA, Giovanni. Law & Globalization. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista
dos Tribunais, ano 13, n. 47, p. 189, jan./mar. 2010.
41
MATTOUT, Jean-Pierre. Les Crises Bancaires et Financières: une Question de Régulation? La Régulation en
Question? Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 13, n. 47,
p. 167, jan./mar. 2010.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
67

operadores do Direito. Superaram-se os dogmas de segurança, certeza e formalismo com


os quais foi forjado, ao tempo em que se relativizou seu embasamento jurídico em virtude
da multiplicidade de fontes de Direito alicerçadas na normatividade do mercado global.
O espectro do pacta sunt servanda conformou-se às novas e dinâmicas situações, deixando
de ser visto como o ponto para o qual confluem os interesses antagônicos das partes para
ser o sítio de cooperação entre elas. “É manifesto, assim, que a autonomia da vontade e
a teoria das fontes das obrigações, que com ela se vincula, se encontram em período de
transformação e de reelaboração dogmática”.42 É a esse período de transformação que
deve o direito volver seu olhar e perceber a estrutura dinâmica do complexo organismo
sobre o qual se assenta, articulando as diversas forças que movimentam o caminhar
humano para albergar a multiplicidade de manifestações que o põem à prova e que
confirmam que o contrato se assenta em contornos de múltiplas perspectivas.

4 Considerações finais
O fenômeno da globalização é moldado pela ausência de limitações territoriais
ou geográficas no que tange à atuação humana, sendo caracterizado pela virtualidade
e por mecanismos tecnológicos que encurtam as distâncias e promovem a comunicação
instantânea, sobressaindo-se, nesse ambiente, as novas formas de comunicação, que
adquiriram relevo com o surgimento da internet.
Os juristas debruçam-se sobre as questões levantadas pelo mundo virtual, dire­
cionando esforços não só no sentido de regular determinados aspectos do mundo virtual,
mas também de criar a confiança naquele que utiliza a rede mundial de computadores.
Essa mobilização de forças tem como sustentáculo a necessidade de construir a trans­
parência no meio virtual, proporcionando segurança às relações jurídicas, que devem ser
pautadas pela boa-fé das partes no que se refere à privacidade dos dados transitados e
ao dever de criar um ambiente seguro para a contratação. Ter consciência dos desafios e
dos problemas inerentes à utilização da internet é um passo importante para desenvolver
ações que visem à restituição da confiança que deve reger todas as relações jurídicas.
Em especial no que concerne aos aspectos controversos da contratação eletrônica,
o Direito aplicável ao mundo digital também tem guarida na maioria dos princípios
do Direito aplicável ao mundo físico. O novo olhar que lhe deve ser dirigido está,
principalmente, relacionado à postura de quem o interpreta. A tecnologia não cria espaços
imunes à aplicação do Direito. Partindo do pressuposto de que a sociedade está inserida
no processo de globalização, o grande desafio do operador do Direito é ser flexível o
bastante para adaptar seu raciocínio às novas situações e não criar obstáculos ao livre
desenvolvimento da rede. Assim, permitir-se-á maior adequação à realidade social,
provendo a dinâmica necessária para acompanhar a velocidade das transformações no
mundo virtual.
Presencia-se, nesse contexto, uma alteração nos paradigmas empresariais, um
maior poder de informação para o consumidor, uma maior agilidade na consecução de
suas transações (comerciais ou de cunho pessoal), configurando uma mudança de cos­tu­
mes propiciada pela era da tecnologia, na qual se põe em evidência o conhecimento. Nesse

42
COUTO E SILVA, Clóvis do. A Obrigação como Processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 31.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
68 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

panorama, função relevante é atribuída ao Direito com o fito de fornecer a necessária


segurança aos partícipes das relações virtuais, provendo-lhes a correta prestação
jurisdicional e protegendo o ambiente virtual das práticas nocivas que acarretam danos ao
internauta, mormente quando este se encontra na posição de consumidor. O Direito deve
estar coadunado com as novas práticas que surgem a todo o momento, acompanhando
de perto as inovações tecnológicas e, por conseguinte, promovendo um ambiente social
mais próximo da segurança que deve nortear as relações jurídicas.
São essas possíveis e contraditórias leituras acerca do estado atual da sociedade que
fazem com que seja tão rico e complexo o fenômeno globalizante da internet, exigindo do
Direito a maleabilidade necessária para regular as repercussões dessa nova ferramenta
na vida de cada um. O Direito, reflexo que é do caminhar evolutivo da sociedade,
também é influenciado por essa nova realidade: a dinâmica da era da informação exige
uma mudança na própria forma como é exercido e pensado.
É indubitável, portanto, que a internet tem papel fundamental como dinamizador
desses avanços, significando uma profunda alteração na forma como devem ser encaradas
as relações sociais. As transformações tecnológicas propiciaram mudanças sociais e,
nesse contexto, o Direito não pode manter-se inerte, sob pena de não mais atender aos
anseios da sociedade. Sua capacidade de adequação à nova realidade determina a própria
segurança do ordenamento, proporcionando a necessária estabilidade e segurança
jurídica reclamada pelo cidadão. O Direito é responsável pelo equilíbrio das relações
sociais e este só poderá ser alcançado com a adequada interpretação da realidade social,
instituindo normas que garantam a segurança das expectativas e que incorporem as
transformações por meio de uma estrutura flexível que possa sustentá-la no tempo.

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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
70 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

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O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO
E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS:
AS CLÁUSULAS ÉTICAS

PAULO NALIN

MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL

1 Introdução
Falar em violações aos direitos humanos nos dias de hoje é, de modo intuitivo,
ir muito além daquela visão que coloca o Estado como o único e último protetor e
vio­lador destes direitos. Quando pensamos nas violações aos direitos humanos que
envolvem, por exemplo, a utilização de mão de obra em condições análogas à escravidão;
a discriminação sistemática de minorias no mercado de trabalho; os grandes desastres
ambientais; a desocupação forçada de comunidades de seus locais de convívio em
detrimento da implantação de fábricas ou indústrias; somos automaticamente levados
a pensar nos abusos cometidos por entes privados, principalmente pelas empresas no
desenvolvimento de suas atividades comerciais.
Este cenário de abusos cometidos pelas empresas em detrimento dos direitos
humanos, que se perpetuou principalmente com o fenômeno da globalização econômica,
não passou desapercebido pela sociedade civil e pelos organismos internacionais de
proteção e promoção dos direitos relacionados à dignidade da pessoa humana, que
passaram a reivindicar a adoção de um atuar pautado na ética pelas empresas e a buscar
medidas para evitar e punir o abuso e as violações cometidas pelas empresas.
Frente às crescentes campanhas e processos de ativistas e organismos internacio-
nais e, ainda, à publicidade negativa que a violação aos direitos humanos desencadea­
va, as próprias empresas (principalmente as transnacionais) perceberam a necessidade
de assumir responsabilidades pelos direitos humanos, estabelecendo iniciativas, sob a
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
72 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

nomenclatura da Responsabilidade Social Corporativa, para atender a normas e princí-


pios éticos, visando mitigar ou prevenir os prejuízos por elas causados.
A adoção destas medidas pelas empresas para o atendimento a valores éticos
restou reproduzida, também, nas relações contratuais travadas no âmbito empresarial,
passando os contratos celebrados pelas empresas a contar com “cláusulas éticas” que
visam, entre outros aspectos, a proteção e a promoção dos direitos humanos nas relações
empresariais.
Estas cláusulas acabam por refletir a concepção contemporânea de que o “instituto
contrato” deve servir como instrumento para a consagração da pessoa humana, o que,
no contexto das disposições contratuais em questão, ocorre a partir da incorporação de
diretivas excepcionais do ponto de vista do mercado nos contratos (eis que guardam
relação com os direitos humanos e com as políticas de emancipação social).
E é exatamente este pano de fundo – que envolve a aproximação das empresas
e dos direitos humanos e a incorporação de padrões éticos nos contratos celebrados no
âmbito comercial – que permeia o presente artigo.
O trabalho – dentro de suas limitações, já que se apresenta na forma de um artigo –
tem como objetivo examinar como as mudanças ocasionadas pela globalização econômica
aproximaram a atividade empresarial dos direitos relacionados à dignidade humana,
e se a incorporação de standards éticos nos contratos é, de fato, uma ferramenta para a
efetivação dos direitos humanos e fundamentais nas relações empresariais.
A investigação se justifica na medida em que, apesar da crescente incorporação
das cláusulas éticas nos instrumentos contratuais, tanto no âmbito internacional quanto
no nacional, o assunto ainda conta com pouquíssimas incursões acadêmicas no cenário
brasileiro, sendo de fundamental importância uma análise mais acurada acerca desta
importante ferramenta de efetivação dos direitos relacionados à dignidade humana.
Em sua metodologia, o presente trabalho será dividido em três partes principais.
A primeira delas cuidará, ainda que brevemente, do fenômeno da globalização e como
este contribuiu para a paradoxal aproximação entre as empresas e os direitos humanos.
A segunda trata do tema específico das cláusulas éticas, perpassando por sua definição
e tipos de contrato em que estão inseridas. A terceira e última parte do artigo analisa
os “pesos e contrapesos” destas disposições contratuais, bem como a questão cultural
que as permeia.
Ao fim e ao cabo, portanto, o que se pretende demonstrar neste trabalho é que
as cláusulas éticas, as quais já fazem parte da prática contratual, mostram-se como
um exemplo concreto de que é possível se falar em ética e solidariedade no campo
das relações econômicas, com a efetiva proteção e promoção dos direitos humanos e
fundamentais1 pelos entes privados.

1
No presente artigo as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” serão utilizadas de forma
apartada, mas terão um sentido de complementaridade, para não se perder de vista que todos estes direitos
convergem à ideia de realização da dignidade da pessoa humana, de modo que seus sentidos podem – e devem –
se somar em busca da efetiva proteção das pessoas concretas que visam proteger. A diferenciação, como bem
ressalta Melina Fachin e Marcos Gonçalves, “deve ser razão da promoção de direitos, tomados em sua relação
integral de complementariedade, e não de divisão, subjugação e hierarquização de determinadas categorias em
face de outros”. (FACHIN, Melina Girardi; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. De fora, de cima, de baixo –
todos os sentidos da dignidade no discurso dos direitos. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais,
Curitiba, v. 2, n. 2, p. 78-94, jul./dez. 2016, p. 91).
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
73

2 A globalização, a nova ordem global e a relação entre as empresas e


os direitos humanos
Há alguns anos, a atividade comercial e os direitos humanos eram searas tão
autô­nomas e destacadas, que chegavam a ser vistas como totalmente contraditórias.2
Economistas renomados, como Milton Friedman, chegavam a dizer que “the business of
business is business”.3
Os direitos humanos eram encarados como uma responsabilidade do poder estatal
e de suas políticas públicas, de modo que os particulares (neste contexto, as empresas)
não poderiam ou deveriam interferir.4 Com efeito, as normas de Direito Internacional
e, também, os ordenamentos jurídicos nacionais preconizavam a salvaguarda destes
direitos a partir da imposição de barreiras aos abusos do Estado, em uma direção
“vertical”, o que acabava por isentar as corporações transnacionais e as suas atividades
comerciais.5
Todavia, os direitos fundamentais passaram a vincular, além dos Estados, os entes
particulares.6 No âmbito empresarial, com o avanço da globalização e com o impacto

2
“A visão ética dos negócios na maior parte da história tem sido quase totalmente negativa [...]. Muito
recentemente, é que uma maneira mais moral e mais respeitável de ver os negócios começou a dominar o âmbito
comercial”. Tradução livre de: “The ethical view of business for most of history has been almost wholly negative [...]. It is
only very recently that a more moral and a more honorable way of viewing business has begun to dominate business talk”.
(FERNANDO, Emmanuel Q. Business law and ethics. Manila, Philippines: Rex Book Store, 2012, p. 361-362).
3
FRIEDMAN, Milton. The social responsibility of business to increase its profits. The New York Times Magazine,
New York, 13 set. 1970. Disponível em: <http://www.nytimes.com/1970/09/13/archives/article-15-no-title.html>.
Acesso em: 28 set. 2017.
4
“Os direitos humanos eram vistos como pertencentes às responsabilidades dos governos e não das companhias,
e as violações aos direitos humanos eram vistas como matéria de políticas internas, nas quais as companhias não
deveriam, a princípio, intervir”. Tradução livre de: “Human rights were seen as belonging to the realm of government
concerns, not of companies, and human rights violations as internal political issues, with which companies should not,
on principle, interfere” (LEISINGER, Benjamin; SCHWENZER, Ingeborg. Ethical values and international sales
contracts. In: CRANSTON, Ross; RAMBER Jan; ZIEGEL Jacob. Commercial Law Challenges in the 21º Century.
Uppsala, Sweden: Iustus Förlag, 2007, p. 250).
5
“De acordo com o direito internacional tradicional, somente os Estados soberanos podem ser responsabilizados
diretamente pelas violações dos direitos humanos. Os atores não estatais (como rebeldes, organizações de
guerrilhas, corporações transnacionais e organizações criminosas) ou indivíduos não são responsáveis ​​por tais
violações. Sempre que os atores não estatais violam os direitos humanos, somente os estados envolvidos podem
adotar medidas legais e serem obrigados a cessar tais violações tomando medidas nacionais adequadas. [...].
Como o processo de globalização, sob as condições do neoliberalismo, tende a aumentar ainda mais o poder
dos atores não estatais à custa do poder governamental, tais limitações do direito internacional representam um
grave problema estrutural e, ao mesmo tempo, são um grande desafio para o sistema internacional de direitos
humanos do século XXI”. Tradução livre de: “According to traditional international law, only sovereign states can be
held directly responsible for human rights violations. Non-state actors (such as rebels, guerilla organizations, transnational
corporations and criminal organizations) or individuals are not answerable to such violations. Whenever non-state actors
are found to violate human rights, only the states concerned are liable to legal action and may be obliged to put an end to
such violations by taking appropriate national measures. […]. As the process of globalization under the conditions of neo-
liberalism tends to further increase the power of non-state actors at the expense of governmental power, such limitations of
international law pose a serious structural problem and at the same time are a major challenge for the international human
rights system of the 21st century” (NOWAK, Manfred. Introduction to the International Human Rights Regime. Boston:
Martinus Nijhoff Publishers, 2003, p. 54).
6
“Com efeito, com a ampliação crescente das atividades e funções estatais, somada ao incremento da participação
ativa da sociedade no exercício do poder, verificou-se que a liberdade dos particulares – assim como os demais
bens jurídicos assegurados pela ordem constitucional – não carecia apenas de proteção contra ameaças oriundas
dos poderes públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, advindas da esfera
privada [...] Nesse contexto, cumpre referir que expressivo rol de doutrinadores tem reproduzido a tendência
(por sua vez, não completamente imune a críticas) de reconduzir o desenvolvimento da noção de uma vinculação
dos particulares aos direitos fundamentais ao reconhecimento de sua dimensão jurídico-objetiva, de acordo
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
74 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

de seus efeitos colaterais negativos, a proteção e promoção dos direitos humanos e


fundamentais passaram a ser encaradas como um papel a ser assumido, de forma
voluntária, pelas empresas.
O quadro até então existente no que concerne “às empresas e aos direitos hu­
manos”7 mudou diametralmente.
A nova ordem global transformou não só as relações econômicas, mas também
as relações sociais e políticas.8
Boaventura de Sousa Santos, ao discorrer sobre a globalização, aponta a erosão
seletiva do Estado-nação e o surgimento da sociedade civil global, do governo global
e da equidade global.9 O autor, em busca de uma definição de globalização sensível
às dimensões sociais, políticas e culturais, defende a existência não de uma, mas de
diversas “globalizações”, enquanto feixes de relações sociais, que envolvem conflitos
e, por isso, vencedores e vencidos.10 Para ele, a globalização seria o “processo pelo qual
determinada condição ou entidade local consegue estender a sua influência a todo o
globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição
social ou entidade rival”.11
Zygmunt Bauman, quando discorre sobre a nova ordem global instaurada no
pós-guerra, destaca as mudanças ocorridas dos séculos passados para os dias atuais:
os sistemas de poderes locais, mantidos por Estados-nações, deram espaço às potências
privadas globais. A superação das fronteiras físicas e a influência de atores “não
estatais” nas relações entre Estados ensejaram “a redistribuição mundial de soberania,
poder e liberdade de agir”,12 desencadeada, também, pelo salto radical na tecnologia
da velocidade.13
John Gray, por sua vez, encara a globalização como “a expansão mundial da
produção industrial e de novas tecnologias promovida pela mobilidade irrestrita do

com a qual os direitos fundamentais exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar,
mas também promover e proteger, valores esses que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo o
ordenamento jurídico – público e privado – razão pela qual há muito os direitos fundamentais deixaram de
poder ser conceituados como sendo direitos subjetivos públicos, isto é, direitos oponíveis pelos seus titulares
(particulares) apenas em relação ao Estado” (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Boletim Científico:
Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, ano 4, n. 16, p. 193-259, jul./set. 2005, p. 205).
7
Referência à conhecida expressão “business and human rights” adotada na literatura especializada sobre o assunto.
8
O fenômeno da globalização pode ser analisado sob diversos ângulos, especialmente nos campos: econômico,
social, político, cultural e financeiro (BENACCHIO, Marcelo; VAILATTI, Diogo Basílico. Empresas Transnacionais,
globalização e direitos humanos. In: BENACCHIO, Marcelo (Coord.); VAILATTI, Diogo Basílio; DOMINIQUINI
Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e Direitos Humanos. Curitiba: CRV,
2016, p. 15).
9
SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, Coimbra, n. 48, p. 13, jun. 2007.
10
Ibidem, p. 14.
11
Ibidem, loc. cit.
12
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999, p. 67
e 68.
13
“É possível, portanto, concluir que duas tendências acompanharam o desenvolvimento da globalização
econômica, e hoje, assim como o referido fenômeno, também são consideradas irreversíveis: i) a tendência de
diminuição da capacidade de controle dos Estados soberanos, sendo possível falar em uma introversão do
pensamento nacional de soberania; e ii) a tendência de redistribuição mundial da soberania, como a consequente
expansão subjetiva do DIP, marcada pelo surgimento e incremento da capacidade dos atores não estatais”
(PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional – Um estudo comparativo dos sistemas regionais
europeu, e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23.)
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
75

capital e a total liberdade de comércio”,14 espectro este acabou por desencadear inúmeros
fenômenos, como ilustra Fernanda Schaefer:

A unificação de mercados financeiros; regionalização do mercado econômico e formação de


blocos regionais; generalização de associações entre empresas transnacionais (agentes do
mercado global); coordenação das principais políticas econômicas; grande mobilidade das
empresas transnacionais e, por consequência, uma nova divisão internacional do trabalho
(flexibilização das relações de trabalho); contribui para o declínio dos Estados-Nação
(miniaturização dos Estados com ocupação dos espaços públicos por entes privados);
conquistas sociais do Estado-Nação vão sendo suprimidas (os direitos sociais deixam de
ser uma conquista para serem considerados um privilégio); há o esvaziamento dos espaços
públicos e as fronteiras territoriais começam a perder importância em benefício dos centros
decisórios supranacionais.15

Sob tal perspectiva, é a essência da globalização, consistente na mudança da


dimensão espacial das relações humanas, que sublinha o impacto transformador do
fenômeno nas relações sociais e econômicas. Com a globalização, estamos interconectados
em um grau nunca antes visto na história da humanidade. Fundamentalmente, a
globalização intensificou a percepção do “mundo como um todo”,16 de modo que
“acontecimentos, decisões e atividades em determinada região do mundo têm significado
e consequências em regiões muito distintas do globo”.17
E nesse contexto, as empresas transnacionais – definidas no presente artigo
como sociedades que possuem fim lucrativo, que trabalham em setores de larga escala,
detêm uma política global que atende às regras e normas da economia mundial e,
“desempenham atividades que transcendem suas fronteiras nacionais, às quais estão
vin­culadas juridicamente, estabelecendo subsidiárias em outros Estados e estando ao
sistema jurídico destes vinculadas”18 – constituem, atualmente, uma das principais
expressões da interdependência e da globalização econômica crescentes na comunidade
internacional:

As corporações transnacionais são atualmente uma das expressões mais cristalinas da


interdependência e da globalização crescentes na sociedade internacional, tornando-se
um dos principais agentes econômicos em termos de volume de atividades e de influência

14
GRAY, John. Falso amanhecer: os equívocos do capitalismo global. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 16.
15
SCHAEFER, Fernanda. Direitos Humanos e globalização econômica: compatibilidade de princípios? Constituição,
Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n. 1, p. 76-96, ago./dez.
2009, p. 83.
16
“Em termos reais, as fronteiras limites tornam-se mais porosas - sabemos mais sobre o que acontece além de
nossas fronteiras, viajamos mais facilmente além de nossas fronteiras, nossas ações afetam outros além de
nossas fronteiras de maneiras mais notáveis, estamos cientes desses efeitos e temos novas e mais profundas
oportunidades para nos envolvermos no comércio além de nossas fronteiras”. Tradução livre de: “In real terms,
boundaries become more porous – we know more about what happens beyond our boundaries, we travel more easily beyond
our boundaries our actions affect others beyond our boundaries in more pronounced ways, we are aware of these effects,
and we have new and more profound opportunities to engage in commerce beyond our boundaries.” (GARCIA, Frank
J. Between Cosmopolis and Community: Globalization and the Emerging Basis for Global Justice. New York
University Journal of International Law & Politics, Forthcoming, New York, v. 46, n. 1, research paper n. 298, p. 5-6,
2013).
17
CAMPOS, Luís; CANAVEZES, Sara. Introdução à globalização. Lisboa: Instituto Bento Jesus Caraça, 2007, p. 10.
18
CARDIA, Ana Cláudia Ruy. Empresas, direitos humanos e gênero: desafios e perspectivas na proteção e na
emancipação da mulher pelas empresas transnacionais. 2014, 198 p. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2014, p. 17.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
76 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

sobre os diferentes aspectos da vida econômica e social. Especificamente, há alguns anos,


tem-se uma certa preocupação com a influência que essas empresas podem ter sobre o
exercício dos direitos humanos pelas populações onde se estabelecem.19

A década de 1990 é interpretada como a “época de ouro” para a mais recente onda
de globalização corporativa. As empresas transnacionais emergiram de forma robusta,
em quantidade e escala nunca antes vistas. Tais empresas conseguiram criar núcleos
de atividade econômica transnacionais, “sujeitos a uma única visão global estratégica,
operando em tempo real, conectadas e ao mesmo tempo ultrapassando economias
meramente ‘nacionais’ e suas transações ‘internacionais’”.20
Pode-se dizer que metade do comércio mundial passou a ser composto por tran­
sações “internas” dentro de redes de entidades corporativas interconectadas, dei­xando
para trás os tradicionais negócios “externos” e imparciais realizados entre países.21 22
O Fundo Monetário Internacional (FMI), inclusive, quando trata da globalização,
relaciona o fenômeno de modo direto à interdependência econômica crescente entre os
países do mundo, provocada pelo aumento do volume e da variedade das transações
transfronteiriças de bens e serviços, assim como dos fluxos internacionais de capital, ao
mesmo tempo em que pela difusão acelerada e generalizada da tecnologia.23
As transnacionais, nesse cenário, “saíram-se bem, assim como as pessoas e
os países que souberam tirar proveito das oportunidades criadas por esse processo
transformador”.24 25
Nesta linha, José Renato Nalini é preciso ao destacar que: “sobrevivido às
intempéries, a instituição que pode ser considerada vencedora no século XX é a empresa.

19
Tradução livre de: “Las empresas transnacionales constituyen actualmente una de las expresiones más acabadas de la
interdependencia y la globalización crecientes en la sociedad internacional, configurándose como uno de los principales
agentes económicos tanto por su volumen de actividades como por su influencia en los diferentes aspectos de la vida
económica y social. En concreto, desde hacia ya varios años se viene mostrando una cierta inquietud en torno al influjo
que estas empresas pueden tener en el disfrute de los derechos humanos por parte de las poblaciones donde se asientan”
(ISA, Felipe Gómez. Empresas transnacionales y derechos humanos: desarrollos recientes. Lan Harremanak.
Revista de Relaciones Laborales, País Vasco, ed. especial, p. 55-94, 2006, p. 57).
20
RUGGIE, John Gerard. Quando negócios não são apenas negócios: as corporações multinacionais e os direitos
humanos. Tradução: Isabel Murray. São Paulo: Editora Planeta Sustentável, 2014, p. 17.
21
Ibidem, loc. cit.
22
Já em 1997, apontava José Eduardo Faria: “Essa fragmentação geoespacial das atividades produtivas vem
tornando possível uma ampliação sem precedentes do comércio intrafirmas (PETRELLA, 1996), com importantes
consequências para as engrenagens jurídicas do Estado-nação. Hoje, pelo menos 1/3 das atividades e negócios das
37 mil empresas transnacionais que atuam na economia globalizada – por meio de 200 mil filiais e subsidiárias –
é realizado entre elas próprias” (FARIA, José Eduardo. Direitos humanos e globalização econômica: notas para
uma discussão. Estudos avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, p. 43-52, 1997, p. 45).
23
FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. World economic outlook: a survey by the staff of the International
Monetary Fund. Washington, D.C.: The Fund, 1980, p. 3. Disponível em: <http://www.imf.org/external/pubs/
WEOMAY/chapter1.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2017.
24
RUGGIE, Op. cit., p. 17.
25
No mesmo sentido, Giovani Iudica: “Os protagonistas, os atores principais, desta moderna forma de globalização,
que tem como palco o mercado planetário, são os comerciantes [...]. Os comerciantes que atuam hoje como
protagonistas da economia globalizada são os hipercomerciantes [...].”. Tradução livre de: “I protagonisti, gli
attori principali, di questa moderna forma di globalizzazione, che há come treatro il mercato planetário, sono i mercanti [...].
I mercatores che agiscono oggi come protagonisti dela economia mondializzata sono gli ipermercatores [...].” (IUDICA,
Giovanni. Globalizzazione e diritto. In: GUIMEZANES, Nicole. Leçons du droit civil: mélanges en l’honneur de
Françis Chabas. Bruxelles: Bruylant, 2011, p. 466).
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
77

Enquanto o Estado se encontra às voltas com a perda da soberania, conceito cada vez
mais relativizado, a empresa integra um sistema competente”.26
Entretanto, muitos outros tiveram menos sorte.
Com efeito, as empresas transnacionais27 e suas subsidiárias auxiliaram sobre­
maneira no desenvolvimento e na melhoria da qualidade de vida em várias localidades
do globo. Contudo, tais empresas são amplamente conhecidas “pela violação de direitos
humanos e pelo menosprezo em minimizar os riscos que suas atividades causam para
os direitos humanos”.28
Não é novidade alguma as consequências desencadeadas pelo processo de globa-
lização econômica: surgiram muitas evidências de trabalho em condições análogas às de
escravo em fábricas que prestavam serviços a famosas marcas internacionais; comunida-
des nativas locais foram desalojadas sem qualquer assistência ou posterior reparação para
darem lugar a empresas de petróleo e gás; o trabalho infantil, de crianças de pouquíssima
idade, foi desvelado, principalmente em plantações de propriedade de em­presas de ali-
mentos e bebidas; provedores de serviços de internet e empresas da área de tec­nologia
da informação entregaram informações de seus usuários a agentes do governo.29
Com a globalização e a propagação das empresas transnacionais, o nível de
exclusão social e de opressão por parte dos poderes sociais, “cuja influência tem crescido
vertiginosamente na mesma proporção em que o Estado se demite ou é demitido de
suas funções regulatórias e fiscalizatórias”,30 aumentou imensuravelmente. E algumas
das possíveis causas do problema são observadas por John Ruggie:

Empresas que operam globalmente não são regulamentas como tal. Em vez disso, cada
uma das entidades que as compõem individualmente está sujeita à jurisdição nas quais
ela atua. Mas, mesmo nos países em que as leis nacionais condenam a conduta abusiva, o
que não pode ser sempre subestimado, os Estados muitas vezes deixam de implementá-
las – devido à falta de capacidade, ao medo das consequências que podem ser geradas
pela con­corrência ou porque seus líderes colocam ganhos particulares acima do bem-estar
público.31

26
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 297.
27
Sobre o assunto, Julia Ruth-Maria Wetzel: “A importância, a influência e o poder das corporações transnacionais
se desenvolveram com o comércio global em expansão. No entanto, com esse crescente impacto corporativo
na economia e na sociedade humana, surgiram problemas crescentes de violações aos direitos humanos: as
tribos indígenas queixaram-se de violações de direitos humanos, as quais incluíram assassinatos, destruição de
propriedade, ou expropriação cometidas por governos nacionais com o apoio de corporações transnacionais”.
Tradução livre de: “The importance, influence and power of transnational corporations developed with expanding global
trade. With this growing corporate impact on economy and human society, however, came increasing human rights problems:
native tribes complained of human rights violations including murder, property destruction, rape or expropriation committed
by national governments with the backing of transnational corporations”. (WETZEL, Julia Ruth-Maria. Human Rights
in Transnational Business: translating human rights obligations into compliance procedures. Luzern, Switzerland:
Springer, 2015, p. 1).
28
DANIELE, Anna Luisa Walter de Santana; PAMPLONA, Danielle Anne. Empresas de tecnologia e direitos
humanos: diagnósticos e avanços no setor. In: GOMES, Eduardo Biacchi; LEAL, Mônica Clarissa Henning;
PAMPLONA, Danielle Anne (Coord.); FACHIN, Melina Girardi; ROSSI, Amélia do Carmo Sampaio (Org.).
Direitos Humanos sob a perspectiva global: estudos em homenagem à Flávia Piovesan. Curitiba: Instituto Memória,
2017, p. 372.
29
RUGGIE, 2014, p. 17-18.
30
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, “mínimo existencial” e o direito privado: alguns aspectos
da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO,
Flávio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 578.
31
RUGGIE, Op. cit., p. 18.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
78 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Conforme observam Frederico Neto e Rosana Passarelli, principalmente nos


países emergentesn “o poder do Estado fica adstrito, e outras vezes, à mercê do poder
de barganha dessas empresas que, muitas vezes, são as únicas fontes de manutenção
econômica e social de determinadas localidades”.32
No mesmo sentido, apontam Danielle Anne Pamplona e Ana Rachel Freitas da
Silva que muitos Estados que recebem o investimento das transnacionais não possuem
incentivo para endurecer as condições quando barganham com essas empresas, de tal
forma que “a proteção internacional acaba limitada à vontade dos Estados de agir nos
limites de seus territórios, deixando muitos indivíduos sem alternativas na ausência de
comprometimento estatal”.33
Nesse cenário econômico transformado, além do fato de que os governos não
podiam ou não estavam dispostos a executar suas leis domésticas – aliado à ausência
de normas internacionais que responsabilizassem (e responsabilizem) diretamente as
empresas34 –, as empresas transnacionais, há alguns anos, não estavam preparadas para
a necessidade de administrar os riscos e prejuízos causados pela violação dos direitos
humanos provocada por suas atividades comerciais.35
E, se, em um primeiro momento “o aparato protetivo dos direitos humanos
ambicionava responder à relação entre estados e indivíduos [...], na atualidade emergem
relações mais complexas a envolver, de um lado, empresas; por outro, coletividades e
grupos vulneráveis”.36
Como se fossem movidos por uma espécie de força dialética, os indivíduos e as
coletividades afetados de forma negativa pela globalização econômica começaram a fazer
o uso da linguagem dos direitos humanos para exteriorizar suas queixas, preocupações,
resistências e desejos. O discurso dos direitos humanos “tornou-se um terreno comum
com base no qual começaram a questionar e buscar um ressarcimento para os custos
humanos da globalização corporativa”.37
Em face das crescentes campanhas e processos de ativistas e, ainda, da publi­
cidade negativa que a violação aos direitos humanos desencadeava,38 as próprias

32
CARVALHO NETO, Frederico da Costa; PASSARELLI, Rosana Pereira. Empresas transnacionais, ordem
econômica e direitos humanos. In: BENACCHIO, Marcelo (Coord.); VAILATTI, Diogo Basílio; DOMINIQUINI,
Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e Direitos Humanos. Curitiba: CRV,
2016, p. 15.
33
SILVA, Ana Rachel Freitas da; PAMPLONA, Danielle Anne. Os princípios orientadores das Nações Unidas sobre
empresas e direitos humanos: houve avanços? In: BENACCHIO, Marcelo (Coord.); VAILATTI, Diogo Basílio;
DOMINIQUINI Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e Direitos Humanos.
Curitiba: CRV, 2016, p. 150.
34
“Somente em algumas circunstâncias as leis internacionais de direitos humanos chegaram diretamente às
companhias – por exemplo, se elas cometem ou são cúmplices em violações claras aos direitos, como em casos de
genocídio, crimes de guerra, tortura, execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados ou práticas análogas
à escravidão. Mas, mesmo nesses casos, a lei só pode ser aplicada em jurisdições nas quais as acusações possam
ser feitas contra as companhias” (RUGGIE, 2014, p. 35).
35
Ibidem, p. 29.
36
PIOVESAN, Flávia. Empresas e direitos humanos. O Globo, Rio de Janeiro, 2 fev. 2017. Disponível em: <https://
oglobo.globo.com/opiniao/empresas-direitos-humanos-20859445#ixzz4rXiANySw>. Acesso em: 2 set. 2017.
37
RUGGIE, Op. cit., p. 18.
38
Como apontam Doreen McBarnet e Patrick Schmitd, a tecnologia serviu, também, para expandir a comunicação
global e para tornar uma notícia instantânea no mundo todo. Desta forma, não há mais como as grandes
companhias “esconderem” suas condutas antiéticas. Nas palavras dos autores:
“Há agora, como é frequentemente dito, nenhum lugar seguro para a atividade corporativa. A internet fornece
um fórum pronto para a crítica e a publicidade, assim como no caso de Mike Kasky em sua campanha contra
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
79

empresas (principalmente as transnacionais) perceberam a necessidade de assumir


responsabilidades pelos direitos humanos:

Nos últimos anos, famosas empresas, especialmente as que atuam a nível global,
começaram a perceber que o comportamento ético pode, de fato, ter um impacto positivo
e, inversamente, um comportamento não ético, pode ter um impacto negativo sobre os
negócios. Um estudo recente de Claude Fussler concluiu que a performance responsável
compensa financeiramente. [...] Dados os fatores diferentes que também desempenham
um papel em tais estudos e que influenciam o resultado e o desempenho, talvez seja mais
convincente tomar a abordagem oposta e mostrar que o comportamento em desarmonia
com padrões éticos não compensa.39

O setor privado, consciente da deterioração de sua imagem e de sua responsa­bi­


lidade quanto às violações de direitos humanos, “tem estabelecido iniciativas voluntárias
para incorporar normas e princípios éticos e de direitos humanos em suas atuações”.40
A conduta empresarial, nesse contexto, não tem se limitado tão somente à pro­du­
tividade econômica, voltando-se, outrossim, à observância de padrões éticos. A violação
de direitos simboliza um alto custo para as empresas, sob o prisma econômico-finan­
ceiro e penal, e, ainda, sob o prisma da identidade e reputação empresarial.41 De igual
maneira, “promover direitos simboliza não apenas um alto ganho empresarial (estudos
apontam o quanto a diversidade é lucrativa), mas, sobretudo, um ganho na identidade
e reputação empresarial”.42
Ao contrário do que acontecia nas décadas passadas, hodiernamente enxerga-se
uma grande proximidade entre a atividade empresarial e a proteção e promoção dos
direitos humanos. Se antes o dever de proteção dos direitos humanos vinculava apenas
os Estados, sendo o ente estatal o grande violador e protetor de tais direitos, atualmente
os agentes não estatais43 desempenham importante papel neste cenário.44

a Nike”. Tradução livre de: “There is now, it is frequently said, ‘no hiding place’ for corporate activity. The internet
provides a ready forum for instant criticism and publicity, with websites on all kinds means ever one person can have
a major impact, as in the case of Mike Kasky in this campaigns against Nike.” (MCBARNET, Doreen; SCHIMITD,
Patrick. Corporate social responsibility beyond law, through law, for law: the new corporate accountability.
In: CAMPBELL, Tom; MCBARNET, Doreen; VOICULESCU, Aurora. The new corporate accountability: Corporate
Social Responsibility and the Law. New York: Cambridge Press, 2007a, p. 15).
39
Tradução livre de: “During recent years, publicy listed firms, especially those acting on a global level, have started to
realize that ethical behavior can, in fact, have a positive impact, and, conversely, unethical behaviour a negative impact on
their business. A recent study by Claude Fussler concluded that responsible excellence pays. [...] Given the different factors
that also play a role in such studies and that influence the outcome and the performance, it is perhaps more convincing to
take the opposite approach and show that unethical behavior does not pay.” (LEISINGER, Benjamin. SCHWENZER,
Ingeborg. Ethical values and international sales contracts. In CRANSTON, Ross; RAMBER Jan; ZIEGEL Jacob.
Commercial Law Challenges in the 21º Century. Uppsala, Sweden: Iustus Förlag, 2007, p. 250-251).
40
Tradução livre de: “ha establecido iniciativas voluntarias para tratar de incorporar normas y principios éticos y de derechos
humanos en sus actuaciones” (ISA, 2006, p. 59).
41
PIOVESAN, 2017.
42
PIOVESAN, 2017.
43
“O argumento para a responsabilização direta das corporações transnacionais pelos direitos humanos é inspirado
principalmente pelo papel crescente dos atores não estatais no sistema internacional em geral”. Tradução livre
de: “The case for direct human rights responsibility of transnational corporations is mainly inspired by the changing
role of non-state actors in the international system generally […]” (BRABANDERE, Eric de. Non-state actors and
human rights: corporate responsibility and the attempts to formalize the role of corporations as participants
in the international legal system. In: D’ASPREMONT Jean. Participants in the international legal system: multiple
perspectives on non-state actors in international law. Abingdon: Routledge, 2011, p. 270).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
80 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

44
A aproximação entre as empresas e os direitos humanos, muitas vezes referida
sob o enfoque da “ética” nas empresas,45 é resultado, em grande parte, do trabalho
desenvolvido pela Organização das Nações Unidas (e de outros órgãos internacionais),
que, desde a década de 1970, vem lançando inúmeras iniciativas com o propósito de
buscar alternativas para promover os direitos humanos na atividade comercial,46 o que
acabou por influenciar as empresas a adotarem, de forma voluntária, medidas voltadas
à proteção dos direitos humanos, sob o viés da Responsabilidade Social Corporativa.47
Com efeito, a responsabilidade das empresas e das grandes transnacionais abran­ge
as dimensões econômica, social e ética, sendo esperado que tais entes conduzam seus
negócios com boa-fé e em observância aos direitos humanos.48 Atualmente, o valor da
aderência aos “human rights standards” é substancial no mundo corporativo, eis que os
próprios padrões éticos se tornaram globalizados e altamente visíveis.
O atendimento ao dever de proteção aos direitos humanos no âmbito empresarial
acontece, em grande medida, por intermédio dos contratos celebrados pelas empresas,
principalmente nos contratos internacionais firmados entre empresas de diferentes
países. A adoção das medidas de Responsabilidade Social Corporativa pelas empresas
para o atendimento a valores éticos restou reproduzida nas relações contratuais, através
da inserção de disposições contratuais que proíbem, previnem ou sancionem violações
a direitos humanos.
Assim, como será pormenorizadamente explicitado a seguir, a aproximação das
empresas e dos direitos humanos ensejou a incorporação de padrões éticos nos contratos
celebrados no “mundo dos negócios”, sendo esta uma das mais importantes ferramentas
para a problemática que circunda as graves violações aos direitos humanos provenientes
da atividade empresarial.

44
“Os Estados eram os principais alvos das regras e regulamentos de direitos humanos, porque acreditava-se que
eles eram os únicos capazes de violá-los. O papel tradicional do Estado, como principal infrator e promotor
dos direitos humanos, foi desafiado nos últimos anos, quando o aumento das grandes corporações fez com que
estas assumissem funções similares às do Estado. Com este novo equilíbrio de poder no direito internacional
surgiu uma nova compreensão de deveres e responsabilidades: os direitos dos indivíduos dão origem a uma
variedade de deveres, bem como a uma variedade atores que devem respeitá-los” Tradução livre de: “States were
the primary targets of human rights rules and regulations because it was believed that they alone were capable of violating
them. The traditional role of the state, as primary violator and promoter of human rights, has been challenged in the last few
years when the rise of big corporations saw them take on similar functions as the state. With this newfound power balance
in international law comes a new understanding of duties and responsibilities: rights of individuals give rise to a variety of
duties as well as to a variety of duty holders.” (WETZEL, 2015, p. 93).
45
“A observância de direitos fundamentais pode ser vista como o núcleo das práticas negociais éticas”. Tradução
livre de: “The observance of fundamental human rights can be said to lie at the heart of ethical business practical”.
(MUCHLINSKI, Peter. Human rights and multinational enterprises. In: CAMPBELL, Tom; MCBARNET Doreen;
VOICULESCU, Aurora. The new corporate accountability: Corporate Social Responsibility and the Law. New York:
Cambridge Press, 2007, p. 437).
46
Entre outras entidades internacionais, a Organização das Nações Unidas foi e é uma das grandes responsáveis
pelo desenvolvimento de medidas concretas que visam aproximar as empresas e os direitos humanos, para
que os entes privados se vinculem a estes direitos e respondam por eventuais violações. A ONU, inclusive,
lançou os “Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos” (“Guiding Principles on Business
and Human Rights for implementing the UN Protect, Respect and Remedy Framework”) – que ficaram conhecidos
como “Princípios Ruggie”, uma plataforma normativa e recomendações para políticas de alto nível para o
fortalecimento da proteção dos direitos humanos frente às violações causadas por empresas.
47
Historicamente, a Responsabilidade Social Corporativa, que surgiu no seio da academia de Economia, focou no
voluntarismo corporativo e na responsabilidade das empresas frente ao seu papel desempenhado na sociedade.
O debate sobre a RSC teve início na década de 1930, tomando força em 1950, e apenas décadas depois é que a RSC
se aproximou dos temas atinentes aos direitos humanos, em particular, em um primeiro momento, daqueles que
tocam às normas antidiscriminatórias e aos direitos trabalhistas.
48
MUCHLINSKI, Op. cit., p. 435.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
81

3 As “cláusulas éticas”: a utilização dos contratos como meio de


proteger e promover os direitos humanos
Como exposto, o papel das empresas mudou diametralmente com o fenômeno da
globalização. Se, em um primeiro momento, o propósito único e principal da atividade
empresarial era a geração de lucros, hoje, é possível dizer que as empresas buscam
muito mais do que isso – assumindo responsabilidades e obrigações que sempre foram
vistas como deveres dos Estados,49 como a proteção e a promoção dos direitos humanos.
A mudança de paradigma no âmbito empresarial se deve, entre outros motivos,
aos benefícios que as empresas colhem quando se comprometem com políticas de
responsabilidade social. Segundo Claude Fussler, 76 companhias de capital aberto e
publicamente comprometidas com políticas de responsabilidade social, conforme o Dow
Jones Sustainability Index (DJSI World Index), tiveram uma sobreavaliação de suas ações
de 3,7%, entre junho de 2001 e junho de 2004, o que demonstra que a reputação social
de uma empresa pode se converter em benefícios econômicos.50
D’outra sorte, uma abordagem oposta demonstra que um comportamento antié­
tico não gerará lucros: “se você pensa que se adequar a padrões éticos é caro, tente não
se adequar”, provocam Klaus Leisenger e Ingeborg Schewenzer .51
O desenvolvimento de uma política interna de direitos humanos no âmbito das
empresas pode encontrar expressão em diversos mecanismos para a sua efetivação.
A incorporação de standards éticos nos contratos celebrados por estas empresas é um
deles.
Como uma consequência desta nova tendência mundial de aproximação entre as
empresas e os direitos humanos, atualmente, há uma grande preocupação das empresas
com a conduta de seus fornecedores e parceiros contratuais, afastando-se aqueles que,
de alguma forma, possam estar violando direitos humanos (seja porque se utilizam de
trabalho escravo/infantil, ou porque violam normas ambientais).
Para se alcançar um patamar mais efetivo, os padrões éticos passaram a fazer parte
dos contratos propriamente ditos, a partir da inserção das denominadas cláusulas éticas.
A observância dos direitos humanos e a sua promoção, portanto, tornam-se obrigações
contratuais, que estão sujeitas a todos os efeitos desta concepção.
Partindo da premissa de que o contrato não serve apenas para a circulação
de riquezas, mas também para auxiliar na emancipação da pessoa humana52 e na

49
“Embora seja dever primordial dos Estados salvaguardar seus cidadãos e seu bem-estar, ou seja, implementar
direitos humanos universalmente aceitos, isso pode ser difícil na prática. Nesse sentido, tornou-se mais difícil
fazer isso em um mundo globalizado, eis que os abusos aos diretos humanos geralmente ocorrem muito longe
da sede da corporação, como a poluição na Nigéria ou o uso das condições de trabalho inseguras em Bangladesh.
As empresas multinacionais geralmente geram lucros maiores do que os Estados”. Tradução livre de: “While it is
primaly the duty of states to safeguard its citizens and their well-being, in other words implementing universally accepted
human rights, this can be difficult in practice. In one sense, it has become harder to do this in a globalized world and human
rights abuses often occur far away from the corporation’s headquarters, like the pollution in Nigeria or use of the unsafe
working conditions in Bangladesh. Multinational corporations often generate profits larger than states”. (BUTLER, Pietra.
The CISG – A secret weapon in the fight for a fairer world. In: SCHENZER, Ingeborg. 35 years CISG and beyond.
Haia: Eleven International Publishing. 2016, p. 296).
50
As estatísticas foram extraídas do texto: LEISINGER; SCHWENZER, 2007.
51
Tradução livre de: “if you think compliance with ethical criteria is expensive try non-compliance” (LEISINGER;
SCHWENZER, 2007, p. 251).
52
O contrato, como expõe Carlos Pianovski Ruzyk, pode ser visto como “um instrumento de livre desenvolvimento
da personalidade”, para a realização de aspirações existenciais. (RUZYK, Pianovski. Institutos fundamentais do
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
82 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

implementação de políticas que visam ao desenvolvimento da sociedade, não é difícil


visualizar que obrigações relacionadas aos direitos humanos estão sendo inseridas nos
instrumentos contratuais.
A implementação e a efetivação das políticas de direitos humanos nas empresas
por intermédio de cláusulas contratuais decorrem, em sua grande maioria, pela
incorporação das disposições previstas nos códigos de conduta das empresas nos
instrumentos contratuais, transformando-se uma obrigação antes “voluntária” em uma
obrigação legal.53
As “cláusulas éticas” correspondem, justamente, a um mecanismo jurídico para
o cumprimento de obrigações relacionadas aos direitos humanos. Katerina Peterkova
Mitkidis, utilizando-se da nomenclatura “sustainability contractual clauses”, apresenta
uma definição do que seriam estas disposições contratuais. Segundo ela, as “cláusulas
contratuais de sustentabilidade” são previsões em contratos celebrados por empresas
que acobertam questões sociais e ambientais, as quais não são diretamente conectadas
com o objeto principal do contrato, mas prescrevem de que forma as partes devem se
comportar na condução daquele contrato.54
Tendo como base a definição proposta por Katerina Mitkidis, pode-se dizer
que as cláusulas éticas expressam obrigações acessórias – que não estão diretamente
relacionadas com a prestação principal do contrato, mas que podem com ela guardar
relação –, as quais estipulam o modus operandi que devem seguir as partes contratantes
antes, durante e depois do período contratual.55
A maioria das questões cobertas pelas cláusulas éticas56 (ou cláusulas de sus­
tentabilidade) relaciona-se com a proteção dos direitos humanos, com as condições de
trabalho dos empregados das empresas contratantes, com a proteção ao meio ambiente
e, ainda, com previsões anticorrupção.57 Tal “lista” demonstra que as cláusulas éticas

Direito Civil e a liberdade: repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de
Janeiro: GZ Editora, 2011, p. 274).
53
“Um método de transformação de padrões privados em leis é usado pelos próprios atores particulares: as
obrigações contratuais que visam ao cumprimento de determinadas normas sociais podem ser criadas através
da incorporação de códigos de conduta em contratos privados”. Tradução livre de: “One method of transformation
of private standards into hard law is used by the private actors themselves: contractual obligations of compliance with
certain social standards can be created by incorporating Codes of Conduct into private contracts”. (KOCHER, Eva. Private
standards between soft law and hard law: the German case. International Journal of Comparative Labour Law and
Industrial Relations, v. 18, n. 3, p. 265-280, fall 2002, p. 266).
54
MITKIDIS, Katerina Peterkova. Sustainability Clauses in international supply chains contracts: regulations,
enforceability and effects of ethical requirements. Nordic Journal of Commercial Law, n. 1, p. 5, 2014.
55
“Quanto à consideração da relação contratual como um todo complexo, que leva em conta não apenas o período
de duração do contrato, mas, também, os momentos pré e pós contratuais, além das obrigações que não se
esgotam naquelas relacionadas à prestação principal, destacamos a conhecida concepção da ‘obrigação como
processo’, que tem como principal expoente Clóvis de Couto e Silva, para quem a obrigação é uma totalidade
orgânica donde advém o “conceito de vínculo como uma ordem de cooperação, formadora de uma unicidade
que não se esgota na soma dos elementos que a compõem” (SILVA, Clóvis Veríssimo de Couto e. A obrigação como
processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 22).
56
A adoção do termo “cláusulas éticas” encontra respaldo no vocábulo utilizado por Ingeborg Schwenzer. A jurista
alemã, que foi uma das primeiras a tratar do tema e é considerada como um dos principais marcos teóricos deste
trabalho, utiliza a expressão ethical standards em diversos textos em que cuida do assunto, como, por exemplo,
nos artigos “Ethical values and international sales contracts” e “Ethical standards in CISG contracts” e no livro “Global
sales and contract law”.
57
Quanto às previsões anticorrupção, destaca-se o avanço da legislação brasileira que, na famigerada Lei
Anticorrupção (Lei nº 12.846/ 2013), a qual entrou em vigor no ano de 2014, regulamenta a responsabilização
administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou
estrangeira.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
83

protegem os interesses gerais da sociedade em detrimento dos interesses privados das


partes contratantes, sendo as matérias por elas abordadas concernentes a pessoas que
estão “fora” da relação contratual.
A utilização dos contratos para a proteção de interesses extracontratuais social­
mente relevantes não corresponde à concepção “tradicional” que coloca os instrumentos
contratuais como mero instrumento de otimização de lucros; ao reverso, as empresas
estão mais preocupadas em proteger seus interesses “a longo prazo” (como, por exemplo,
com a construção de suas reputações) do que em maximizar lucros em uma relação
contratual em específico.
A conhecida mudança de paradigma no âmbito do Direito Contratual, desta
forma, é espelhada nas cláusulas éticas, consoante aponta Katerina Peterkova Mitkidis:

O uso de contratos para fins não relacionados à troca privada também altera a noção de
contrato como tal. Da troca de promessas exigíveis juridicamente, os contratos estão se
tornando ferramentas relacionais. Dos quadros das transações privadas, eles se movem para
a regulamentação do comportamento em geral. De contratos entre partes independentes,
eles se aproximam de um tipo de organização. Essas mudanças podem ser observadas
em vários contratos comerciais internacionais. Contudo, é nas cláusulas contratuais de
sustentabilidade que todas elas estão presentes ao mesmo tempo.58

As cláusulas éticas, nesse contexto, são mecanismos jurídicos privados para a


proteção dos interesses sociais, que abrangem, mas não se limitam, a defesa e a promoção
dos direitos humanos. Os valores éticos preconizados e defendidos pelas empresas são
incorporados aos contratos, transformando-se em disposições contratuais válidas e
passíveis de serem executadas,59 de modo que a corporificação do respeito aos direitos
humanos em obrigações contratuais dá às partes contratantes inúmeras possibilidades
de “forçar” o seu cumprimento.
É possível afirmar, por tais motivos, que este instrumento normativo privado
constitui uma das mais importantes alternativas para a mobilização do envolvimento
do setor privado nas questões sociais, razão pela qual está sendo cada vez mais utilizado
no âmbito do comércio internacional.60 61
As cláusulas éticas são encontradas, principalmente, em contratos de consumo, em
contratos de trabalho, em contratos públicos, em contratos de prestação de serviços entre

58
Tradução livre de: “The use of contracts for other than private exchange related purposes also shifts the notion of contract
as such. From enforceable exchange of promises, contracts are becoming relational tools. From frameworks of private
transactions, they move towards regulation of behaviour in general. From contracts between independent parties, they come
closer to a type of organization. These shifts can be observed in a number of international business contracts. But it is in
sustainability requirements that all of them are present at once.” (MITKIDIS, 2014, p. 6).
59
SCHWENZER, Ingeborg; HACHEM, Pascal; KEE, Chistopher. Global Sales and Contract Law. Oxford: Oxford
University Press. 2012, p. 381.
60
SCHWENZER, Ingeborg. Ethical standards in CISG contracts. Uniform Law Review, Oxford, v. 22, p. 122-131, mar.
2017.
61
Apesar de a discussão acadêmica sobre o assunto ser recente, a utilização de cláusulas éticas pelas empresas é
de longa data. Michel P. Vandenbergh aponta que a empresa General Eletric, por exemplo, começou a incluir
cláusulas em seus contratos relacionadas ao meio ambiente, à saúde e à segurança de funcionários desde 1997,
muito embora tal medida não fosse publicamente divulgada. (VANDENBERGH, Michael P. The New Wal-Mart
Effect: the role of private contracting in global governance. UCLA Law Review, Los Angeles, v. 54, n. 4, p. 913-970,
abr. 2007, p. 924).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
84 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

empresas, em contratos de investidores, em contratos de compra e venda de mercado­


rias – incluindo-se, nestes últimos, contratos celebrados entre empresas transnacionais
e seus fornecedores.
O aprimoramento do diálogo entre os atores, com a utilização do contrato como
um instrumento formal para a vinculação das partes aos direitos humanos, nesse
cenário, abre uma variedade de possibilidades para a efetivação destes direitos no
âmbito empresarial.

4 Os aspectos positivos e negativos das cláusulas éticas e a questão


cultural
Tem sido referido ao longo do texto que os valores existenciais – ou éticos –
passaram a ser incorporados nas atividades empresariais, do que, certamente, não estão
excluídas as relações contratuais travadas pelos entes privados no âmbito comercial.
A convergência entre os contratos e os valores éticos, como bem aponta Julia
Ruth-Maria Wetzel, criou padrões éticos mínimos a serem seguidos pelas corporações, de
forma que a submissão a regras e standards na atividade empresarial resultou na criação
de uma cultura corporativa viável e sustentável.62 As cláusulas éticas, nessa conjectura,
aparecem como ferramentas para o diálogo entre os direitos humanos e as atividades
empresariais, auxiliando na integração dos standards éticos aos negócios.
A importância da incorporação das cláusulas éticas nos contratos celebrados por
empresas decorre, principalmente, do fato de que, ao tornar a observância dos direitos
humanos uma obrigação contratual, as partes estão sujeitas aos regimes jurídicos que
regulamentam a relação contratual travada, abrindo-se um leque de possibilidades para
a efetivação destes direitos:

Quaisquer falhas na implementação ou observação da política de direitos humanos nas


empresas devem ser sancionadas imediatamente. A máxima “o que está medido está
feito” encontra aplicação particular aqui. Somente através de sanções, pode-se sublinhar
a dedicação da empresa aos direitos humanos e exemplificar que as violações não serão
toleradas. Isso não só enviará uma mensagem clara aos funcionários e parceiros de negócios,
mas também refletirá positivamente nos compradores, nos investidores e nos clientes.
Basear-se exclusivamente em declarações como ‘Nós respeitamos os direitos humanos’,
‘Aderimos ao Pacto Global das Nações Unidas’ ou qualquer política interna de direitos
humanos é insuficiente para garantir o cumprimento dos standards éticos e para compensar
a falência corporativa no exterior, além de não proteger o negócio e sua reputação em caso
de violação de direitos humanos. As declarações de intenção são um ponto de partida
decente para as empresas que desejam criar uma política de direitos humanos, mas por si
só permanecem inadequadas para enfrentar os desafios modernos dos direitos humanos
nas operações comerciais transnacionais.63

62
WETZEL, 2015, p. 217.
63
Tradução livre de: “Any failures to implement or observe the company’s human rights policies must be sanctioned
immediately. The maxim ‘what gets measured get done’ finds particular application here. Only through sanctions can the
company’s dedication to human rights be underlined and exemplify that breaches of policy will not be tolerated. This will
not only send a clear message to employees and business partners, it will also positively resonate with buyers, investors
and customers. Relying solely on declaratory statements such as ‘We respect human rights’, ‘We adhere to the UN Global
Compact’ or any internal human resource policies are insufficient to ensure corporate compliance with human rights
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
85

Conforme aponta Wetzel, a adoção de medidas “voluntárias” pelas empresas –


como a aderência a códigos de conduta voluntários ou a iniciativas propostas pela
ONU – é insuficiente para garantir o respeito aos direitos humanos no âmbito empresarial,
sendo extremamente importante que instrumentos jurídicos “exequíveis” – como os
contratos com cláusulas éticas – sejam utilizados pelos entes privados.
Esse não é o único viés benéfico das cláusulas éticas, contudo. Partindo do exemplo
da China – que até hoje é um campo de batalha para a promoção, proteção e realização
dos direitos humanos – Fiona McLeay destaca o impacto positivo da incorporação
dos códigos de conduta nos contratos celebrados naquele país, apontando que as
iniciativas das empresas transnacionais ali atuantes serviram para pressionar o governo
a implementar direitos, principalmente aquelas relacionados à representação sindical.64
A utilização de cláusulas éticas em países em desenvolvimento, nesse aspecto,
pode servir para auxiliar na implementação de normas de direitos humanos nestes
Estados, os quais não podem ou não querem aderir aos standards de promoção e proteção
dos direitos concernentes à dignidade humana.
Sobre o tema, Doreen McBarnet e Marina Kurkchiyan apontam que os standards
éticos previstos nos contratos celebrados no âmbito do comércio internacional vão além
da proteção conferida pela legislação local de determinado país, de forma que a inserção
de cláusulas éticas se mostra como um mecanismo potencial para a implementação de
normas internacionais, “compensando-se” as falhas na legislação nacional.65
De acordo com os autores, muitos códigos de conduta das empresas que são
incorporados aos contratos deixam claro que as normas protetivas de Direito Internacional
se sobrepõem às normas de Direito local.66 A Marks&Spencer, por exemplo, em seu “Global
Sourcing Principles”, estipula que seus fornecedores devem respeitar integralmente as
normas locais e nacionais, mas que, independentemente da regulamentação local, os
trabalhadores das empresas fornecedoras devem ter no mínimo quinze anos.67
Este aspecto, contudo, não é livre de problemas e tensões.
Veja-se que, ao se impor nos contratos cláusulas que proíbem a violação aos direitos
humanos, é possível que existam embaraços quanto ao que as partes entendem como
pontos passíveis de proteção. É o caso, por exemplo, da proibição do trabalho infantil
mencionado, que em muitas culturas é perfeitamente aceito e considerado como parte
da formação do indivíduo, encontrando respaldo na própria legislação local.
O problema cultural, portanto, é uma realidade quando se trata de cláusulas éticas.

standards and do not compensate for corporate failure abroad nor will they protect a business and its reputation in case of
human rights violations. Statements of intent are a decent starting point for businesses wishing to create a human rights
policy, but on their own remain inadequate in addressing the modern challenges of human rights in transnational business
operations”. (WETZEL, 2015, p. 220-221).
64
MCLEAY, Fiona. Corporate codes of conduct and the human rights accountability of transnational corporations:
a small piece in a larger puzzle. In: SCHUTTER, Olivier de. Transnational Corporations and Human Rights. Portland:
Hart Publishing, 2006, p. 226.
65
MCBARNET, Doreen; KURKCHIYAN, Marina. Corporate social responsibility through contractual control?
Global supply chains and ‘other-regulation’. In: CAMPBELL, Tom; MCBARNET, Doreen; VOICULESCU,
Aurora. The new corporate accountability: Corporate Social Responsibility and the Law. New York: Cambridge
Press, 2007, p. 66.
66
Ibidem, p. 67.
67
MARKS AND SPENCER PLC. Global Sourcing Principles da Marks & Spencer. Londres, nov. 2016, p. 2. Disponível
em: <https://corporate.marksandspencer.com/documents/plan-a-our-approach/global-sourcing-principles.pdf>.
Acesso em: 09 dez. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
86 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O relativismo cultural, como aponta Eva Kocher, constitui um problema fundamental


para a implementação e exigibilidade de standards “universais”,68 existindo um entrave
para a conciliação entre obrigações impostas contratualmente e a prática cultural de
determinadas empresas. Os exemplos trazidos por McBarnet e Kurkchiyan quanto ao
tema são extremamente pertinentes:

Como eles devem impor a igualdade de gênero na empresa que opera em uma sociedade
ferozmente sexista? Como serão harmonizadas as políticas de RSC sobre o trabalho
de menores de idade com um conceito local sobre infância, quando existem diferentes
conjuntos de expectativas sociais sobre quando a infância acaba e começa a vida adulta?
Como devem ser levadas em conta as questões como a autonomia familiar, o papel central
da tradição e a primazia do dever filial?
O assunto torna-se ainda mais complicado quando as questões morais são consideradas no
contexto local. [...] Como se pode justificar a proibição do trabalho infantil nas indústrias
de exportação que remuneram de forma mais adequada, se a consequência inevitável de
tal proibição seria que as crianças em questão são obrigadas a buscar emprego em piores
situações, típicas das empresas que apenas abastecem o mercado interno?69

Consoante expõem os autores, muitas vezes a incorporação de padrões éticos sem


que sejam consideradas as peculiaridades culturais que permeiam a relação contratual
pode levar a consequências indesejadas: é o caso de crianças que são proibidas de
trabalhar junto a fornecedores de empresas transnacionais e acabam vendendo sua força
de trabalho para empresas nacionais que não têm qualquer vinculação com padrões
éticos e que oferecem piores condições de trabalho. Fiona McLeay também aborda a
questão, concluindo que: “a implementação de direitos humanos sem prévia consulta e
programas de compensação [...] simplesmente desloca os abusos aos direitos humanos
para outro domínio”.70
A crítica feita pela teoria crítica dos direitos humanos quanto à pretensão de
universalidade destes direitos, dessa forma, também se aplica às cláusulas éticas.
Consoante aponta Joaquin Herrera Flores,71 desde o século XVI até nossos
dias, a questão acerca da nova natureza que assumia a “condição humana” – dotada
abstratamente de direitos – foi um tema recorrente. Tais polêmicas confluíram no
século XX à categorização do humano sob o conceito “aparentemente” universal de
direitos humanos, que foram concretamente formulados pela primeira vez, sob essa

68
KOCHER, Eva. Codes of conduct and framework agreements on social minimum standards – Private regulation?
In: DILLING, Olaf; HERBERG, Martin; WINTER, Gerd. Responsible business: Self-Governance and Law in
Transnational Economic Transactions. Portland: Oxford and Portland Oregon, 2008, p. 74.
69
Tradução livre de: “How are they to enforce gender equality in an enterprise that operates in a fiercely sexist society? How
are they to harmonize CSR policy on under-age labor with an accepted local concept of childhood when there are different sets
of social expectations on when childhood ends and adulthood starts? How are they to take account of such matters as family
autonomy, the central role of tradition and the primacy of filial duty? The matter becomes even more complicated when
moral issues are considered in local context. [...] How can a ban on child labor in the relatively better paid export industries
be justified, if the inevitable consequence of such ban would be that the children concerned are forced to seek employment in
the much worse conditions typical od enterprises that only supply the domestic market?” (MCBARNET; KURKCHIYAN,
2007b, p. 72).
70
Tradução livre de: “Enforcement of human rights without consultation and programs to compensate workers […] simply
shifted human rights abuses to another domain” (MCLEAY, 2006, p. 235).
71
Sobre a complexidade cultural dos direitos humanos: FLORES, Joaquin Herrera. A (re)invenção dos direitos
humanos. Tradução: Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido
Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
87

denominação, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este conceito, que surgiu
em um contexto particular (Ocidente), difundiu-se por todo o globo como se fosse o
mínimo ético necessário para se lutar pela dignidade.
Todavia, em grande quantidade de ocasiões tentam se impor direitos humanos
universais em face de concepções culturais que nem sequer têm em sua bagagem
linguística o conceito de direito. Isso gera graves conflitos de interpretação em relação
aos direitos humanos que se deve saber gerir sem imposições nem colonialismos.72
Sobre o pluralismo e os direitos humanos, aponta Chantal Mouffe a necessidade
de reconhecimento das especificidades de cada cultura e de aceitação da existência de
diversas formas de dignidade humana.73
No contexto das cláusulas éticas, portanto, o caminho não pode ser outro se
não o diálogo. A prática de tolerar o intolerável,74 por ser pautada na igual dignidade de
todos os homens e mulheres e suas respectivas identidades culturais, deve levar em
consideração distintas formas de viver e, por isso, as cláusulas éticas, que perpassam o
objeto deste artigo, devem ser devidamente acordadas e não impostas por apenas uma
parte contratante que considera universal a sua perspectiva de direitos humanos.
McBarnet e Kurkchiyan destacam, também, que os problemas culturais podem
ser contornados com cláusulas que sejam mais amplas e flexíveis, para que as partes
contratantes tenham liberdade de decidir o que é apropriado e razoável no contexto em
que estão inseridas.75
Outro problema que exsurge com relação às cláusulas éticas diz respeito às
dificuldades de implementação de standards éticos por empresas que possuem baixo
poder aquisitivo, como é o caso das fornecedoras que se encontram em países em
desenvolvimento. Assim como a observância aos direitos humanos é custosa aos
Estados,76 ela também o é no âmbito dos entes privados.
Especificamente sobre as dificuldades de implementação de standards éticos
na cadeia de fornecedores, explicitam McBarnet e Kurkchiyan que: “para alguns for­
necedores as despesas com auditorias e com o cumprimento das recomendações dos
compradores são muito altas se comparadas a sua renda”.77 Para a solução deste problema,
o que os autores sugerem é que a parte contratante com maior poder aquisitivo – neste
contexto, as transnacionais – harmonize seus interesses comerciais com a capacidades
dos fornecedores, auxiliando na adoção dos standards éticos, para que, ao mesmo tempo,
os fornecedores façam todos os esforços necessários para adotar os valores éticos.78

72
Ibidem, p. 37.
73
MOUFFE, Chantal. Can human rights accommodate pluralism? In: WILLIAMS, Wes (Ed.). Religion and Rights The
Oxford Amnesty Lectures. Manchester: Manchester University Press. 2011.
74
JERÔNIMO, Patrícia. Os direitos do homem à escala das civilizações: proposta de análise a partir do confronto
dos modelos ocidental e islâmico. Coimbra: Almedina, 2001, p. 254 Apud FACHIN, Melina Girardi. Fundamentos
dos Direitos Humanos: teoria e práxis na cultura da tolerância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 265.
75
MCBARNET; KURKCHIYAN, 2007b, p. 70.
76
Consoante estudo realizado por Cass Sunstein, em que se verificou que todos os direitos custam e demandam
uma atuação positiva do Estado (SUSTEIN, Cass. The Cost of rights: why liberty depends on taxes. New York:
W.W. Norton & Co., 1999).
77
Tradução livre de: “It is clear that for some suppliers the expenses of facing a full-scale audit and the having to act on the
recommendations are too high for their resources.” (MCBARNET; KURKCHIYAN, Op. cit., p. 87.)
78
MCBARNET; KURKCHIYAN, 2007b, p. 88.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
88 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O que se percebe é que há diversas questões problemáticas que circundam a


incorporação de padrões éticos nos contratos.
Entretanto, é possível dizer que as cláusulas éticas podem ser um mecanismo
útil para a proteção e promoção dos direitos humanos pelas empresas. Consideradas as
peculiaridades da cada relação contratual, tais disposições contratuais podem, além de
garantir juridicamente a observância a valores éticos – com todas as consequências que
disso decorre –, trazer benefícios indiretos, como criar uma cultura ética no mundo dos
negócios, auxiliar na educação dos próprios empregados e administradores das empresas
quanto a questões relacionadas aos direitos humanos e, em alguns casos, influenciar
Estados a adotarem medidas mais protetivas em matéria de direitos humanos, mostrando
que a observância de valores éticos não é incompatível com o crescimento econômico.79
Desta forma, a incorporação de valores éticos nos contratos empresariais deve ser
incentivada, respeitando-se as suas limitações e maximizando-se seus impactos benéficos.
A utilização de cláusulas éticas, ressalta-se, é apenas uma parte do complexo
problema causado pela globalização e proliferação de atividades nocivas à dignidade
humana pela atividade empresarial. A sua utilização, entretanto, pode auxiliar na
complexa e multifacetada problemática, legitimando o contrato como um instrumento
de emancipação da pessoa humana e de realização de políticas de emancipação social.

5 Considerações finais
Ultrapassadas as digressões propostas pelo presente estudo, faz-se importante
tentar colher os frutos que até aqui restaram maduros.
Com o advento da globalização econômica e de seus impactos negativos, a
busca de soluções para os problemas ocasionados pelo desenvolvimento de atividades
comerciais passou a ser uma preocupação do mercado, que, reagindo à pressão da
sociedade em geral e às iniciativas provenientes de organismos internacionais e
nacionais, passou a adotar medidas eticamente responsáveis, visando mitigar os prejuízos
causados à sociedade. Tais iniciativas, conhecidas principalmente sob a linguagem da
Responsabilidade Social Corporativa, proliferaram-se ao redor do globo, principalmente
entre as empresas transnacionais.
E, como não poderia deixar de ser, em um cenário marcado por intensas transações
econômicas, os standards éticos que passaram a fazer parte de toda a operação – interna
e externa – das empresas, começaram a ser inseridos nos contratos por elas celebrados,
a partir do que denominamos aqui de cláusulas éticas.
Consoante explicitado, as cláusulas éticas vinculam os contratantes a obrigações
concernentes, entre outros aspectos, à promoção e à proteção dos direitos humanos.
Através delas, as partes tornam-se jurídica e contratualmente responsáveis por respeitar
direitos humanos que, na maioria das vezes, não guardam relação direta com o objeto
contratual.
A inserção destas cláusulas nos contratos, então, é um mecanismo para que
deveres atinentes à dignidade humana possam ser juridicamente exigidos. Isto significa,
em termos práticos, que a não observância, por uma das partes, a estes standards éticos

79
MCLEAY, 2006, p. 237.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
89

implica consequências legalmente previstas, como, por exemplo, a rescisão contratual


e o pagamento de multas ou indenizações.
Tal aspecto, somado a outros benefícios, tais como a criação uma cultura ética
no mundo dos negócios; o auxílio na educação dos empregados e administradores das
empresas quanto a questões relacionadas aos direitos humanos; o reflexo de iniciativas
eticamente responsáveis em outros parceiros contratuais e, em alguns casos; a influência
exercida em Estados para que estes adotem medidas mais protetivas em matéria de
direitos relacionados à dignidade humana; demonstra a importância da utilização das
cláusulas éticas nos contratos celebrados entre as empresas.
Muito embora este instrumento não esteja isento de críticas, conforme visto neste
trabalho, entendemos que as cláusulas éticas podem contribuir, e muito, para o respeito
e a promoção dos direitos humanos no campo dos negócios.
Frente à concepção de que o contrato é um instrumento de emancipação da pessoa
humana, as cláusulas éticas se mostram como um exemplo concreto – e muito cristalino
– de que é possível se falar em ética e solidariedade no campo das relações econômicas,
com a efetiva proteção e promoção dos direitos humanos pelos entes privados.
Afinal, como brilhantemente defende o mestre Pietro Perlingieri, são os
argumentos éticos “que merecem prioridade e fornecem à economia um fundamento
ético que, na concreta realidade histórica, saiba conjugar eficiência econômica e direitos
humanos, mercado e democracia”.80

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92 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA
DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY)
NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO

JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS

Introdução
A teoria da quebra eficiente talvez seja um dos temas mais conhecidos dentro da
Análise Econômica do Direito e, ao mesmo tempo, um dos mais criticados. Afinal, parece
trazer em sua origem uma grande contradição: enquanto o ordenamento jurídico reforça
a necessidade de que as obrigações contraídas sejam adimplidas, a teoria da quebra
eficiente incentiva o inadimplemento quando houver alternativa em que os ganhos
serão maiores do que o cumprimento. Para tanto, indeniza-se o credor para que ele não
fique em situação inferior àquela em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido e o
devedor está livre para negociar com terceiro que fez proposta mais vantajosa.
Concebida modernamente no Direito estadunidense, aos poucos a teoria da
quebra eficiente passa a ser difundida no Brasil, tendo em vista que ela invariavelmente
propicia um maior dinamismo no mercado, consequência esta adequada ao estado
atual do capitalismo globalizado e de imediatismo nas relações comerciais. No entanto,
embora pareça ser interessante economicamente, ela encontra diversas barreiras jurídicas
apontadas já pelos seus críticos no Direito estadunidense e reforçadas no Direito
brasileiro.
Este estudo se propõe a, em primeiro lugar, esclarecer o desenvolvimento nos
Estados Unidos e o conceito da teoria da quebra eficiente. Em seguida, apontar as
principais críticas feitas a ele pelos próprios norte-americanos. Depois, refletir sobre
uma possível recepção no Direito brasileiro, incorporando as críticas e avançando em
sua concepção, numa tentativa de formular uma teoria da quebra eficiente propriamente
brasileira.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
94 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

1 A teoria da quebra eficiente (efficient breach theory) no Direito


estadunidense
1.1 Origem e conceito da teoria da quebra eficiente
A ideia moderna da quebra eficiente nos contratos tem origem em artigo de
Robert L. Birmingham,1 de 1970, no qual identifica como socialmente eficiente a quebra
contratual quando ocorrida em determinados casos e condições. Afastando a premissa
de que as medidas indenizatórias em favor da parte prejudicada seriam meras aplicações
de conceitos de justiça natural, ou seja, a partir de juízos morais, compreende que o
fundamento da eficiência econômica é suficiente para eleger um ou outro remédio como
resposta à inadimplência. Neste sentido, as partes serão encorajadas a buscar a alocação
otimizada dos fatores de produção e das mercadorias sem que as expectativas sejam
violadas. Para tanto, o adimplemento poderia ser substituído por uma compensação
monetária, já que deixaria a parte prejudicada na mesma situação em que estaria caso o
contrato fosse cumprido. E reafirmando as conclusões obtidas por Robert L. Birmingham,
Richard Posner incorporou a ideia em sua obra Economic Analysis of Law, o que ajudou
a difundi-la.
Após quase uma década, Charles J. Goetz e Robert E. Scott2 estabeleceram a
expressão efficient breach theory (teoria da quebra eficiente) para designar esta ideia,
tornando definitivo o encontro da Análise Econômica do Direito com o Direito Contratual
no tema da inadimplência voluntária, envolvendo a sua justa compensação, a liquidação
de danos e a devida aplicação de penalidades. A ideia é que as partes têm uma maior
capacidade de defesa de seus interesses e não o Estado. Assim, deve-se deixar para
que elas, voluntariamente, estabeleçam cláusulas contratuais que liquidem os danos
e, por conseguinte, compensem devidamente as consequências do inadimplemento.
A conversão da obrigação inadimplida em pecúnia atende melhor aos interesses das
partes e ao mercado, haja vista que aloca eficientemente os recursos.
Dessa forma, a efficient breach theory diz que a quebra de um contrato é eficiente
e desejável se o ganho da parte culpada pela inadimplência excede seu lucro esperado
com o adimplemento, além de exceder os gastos que tem com a compensação pelas
perdas e danos da parte contrária. Após todas as operações, ninguém fica em situação
pior que a anterior e ao menos uma das partes se encontra em situação melhor. Ou seja,
em termos propriamente econômicos, em situação Pareto superior.3 Portanto, diante de
tais circunstâncias, a quebra é economicamente esperada e incentivada a ser cometida,4
pois maximiza o bem-estar social.5
Por ter surgido e ganhado força em países filiados à tradição do common law, a
efficient breach theory evidencia a sua preferência pelo remédio da compensação pecuniária

1
BIRMINGHAM, Robert L. Breach of Contract, Damage Measures, and Economic Efficiency. Articles by Maurer
Faculty, p. 273-292, 1970.
2
GOETZ, Charles J.; SCOTT, Robert E. Liquidated damages, penalties and the just compensation principle: some
notes on an enforcement model and a theory of efficient breach. Columbia Law Review, v. 77, p. 554-594, 1977.
3
WILKINSON-RYAN, Tess. Do Liquidated Damages Encourage Breach? A Psychological Experiment. Michigan
Law Review, v. 108, n. 5, p. 633-671, 2010. p. 638.
4
POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9. ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2014. p. 131.
5
LINZER, Peter. On the Amorality of Contract Remedies – Efficiency, Equity and the Second Restatement.
Columbia Law Review, v. 81, n. 111, p. 111-139, 1981. p. 114.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
95

dos prejuízos ao invés da prestação específica. Seria, em regra, indiferente para a parte
vítima do inadimplemento se beneficiar da prestação principal ou receber a indenização
correspondente, já que, se este remédio foi assim negociado, significaria que a parte se
contenta tanto com um quanto com outro resultado do negócio. Por isso que alguns
autores, como MacLeod,6 Daniel Markovits e Alan Schwartz,7 veem a prestação principal
e a indenização pelos prejuízos como obrigações alternativas.
Além de ter por finalidade a otimização da alocação dos recursos, a teoria da
quebra eficiente do contrato serve também como um dos instrumentos para justificar
a existência das chamadas expectation damages (danos pela expectativa) existentes nos
países de common law, que, no Brasil, seria o equivalente aos lucros cessantes. Em 1936,
Lon Fuller e William Perdue publicaram um artigo8 em que identificam três interesses
que devem ser protegidos e compensados na relação contratual quando ocorre um
inadimplemento.
O primeiro deles é a indenização pelas despesas havidas com a confiança de que
o contrato seria cumprido. Neste sentido, se a parte inocente investiu para a consecução
do objetivo negocial, a parte inadimplente deverá compensá-la. São os chamados danos
pela confiança (reliance damages). O segundo é o interesse na restituição. Se a parte ino­
cente adiantou algum benefício para a parte culpada para a realização do contrato,
ele deverá ser restituído por serem danos de restituição (restitution damages). Por fim,
a parte inadimplente deverá providenciar à parte inocente os ganhos esperados com
a transação (expectation damages), colocando esta na mesma posição que teria ocupado
caso o contrato fosse cumprido.
Assim como argumentam Lon Fuller e William Perdue, a proteção contra os danos
de confiança e de restituição são fáceis de intuir, tendo em vista que houve mudança
de situação da parte inocente em razão da avença: investiu ou transferiu recursos
para a execução do contrato e, por isso, é justo que retorne ao status quo ante mediante
indenização. Difícil, por outro lado, é identificar igual fundamentação para os danos
pela expectativa, já que haveria uma compensação à parte por algo que ela nunca teve.9
Neste momento é que a ideia da eficiência se torna um dos ingredientes que
auxiliará a solucionar o problema. Um contrato ineficiente, isto é, que resulta em um
uso ineficiente de recursos, não deverá ser cumprido, já que os remédios contra o
inadimplemento são apenas um incentivo ao cumprimento quando for benéfico à parte, e
não verdadeiramente uma punição. Servirá de alternativa em favor da parte que verificar
uma alocação Pareto superior dos recursos que estariam vinculados à relação contratual.
E dentre os três interesses, somente os danos gerados pela expectativa do cumprimento
do contrato é que providenciam este incentivo de deixar as partes na mesma situação
ou em situação melhor do que estaria com o cumprimento do contrato.

6
MACLEOD, W. Bentley. Reputations, Relationships and Contracts Enforcement. Journal of Economic Literature,
v. 45, n. 3, p. 595-628, set. 2007.
7
MARKOVITS, Daniel; SCHWARTZ, Alan. The myth of efficient breach: new defenses of the expectation interest.
Virginia Law Review, v. 97, n. 8, p. 1939-2008, dez. 2011.
8
FULLER, Lon L.; PERDUE JUNIOR, William M. The Reliance Interest in Contract Damages: 1. Yale Law Journal,
v.46, p. 52-96, 1936.
9
FULLER, Lon L.; PERDUE JUNIOR, William M. The Reliance Interest in Contract Damages: 1. Yale Law Journal,
v. 46, p. 52-96, 1936, p. 52-53.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
96 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A ideia é relativamente simples e sedutora, mas não deixa de ser bastante


problemática e, por conseguinte, muito criticada. Referidas críticas serão expostas a
seguir.

1.2 Objeções à teoria da quebra eficiente


Em que pese substancial aceitação da teoria da quebra eficiente em países de
common law, sobretudo no Direito estadunidense, isto não significa que ela não seja
objeto de críticas. Oliver Wendell Holmes10 já defendia que tornar o remédio para o
inadimplemento uma alternativa é desfavorecer o cumprimento do pactuado.
Em 1983, ano da publicação do Restatement (Second) of Contracts, a teoria da
quebra eficiente já era de amplo conhecimento daqueles que se dedicavam aos estudos
dos contratos, a ponto de impactar na sua redação, que, nas Notas Introdutórias de seu
Capítulo 16, faz menção crítica à efficient breach theory:

O foco nos aspectos pecuniários da quebra falha em levar em conta as noções de santidade
do contrato e a resultante obrigação moral de honrar com a promessa. A análise da quebra
contratual em termos puramente econômicos assume uma habilidade de medir valor
com uma certeza que não é frequentemente possível em um processo judicial. A análise
também ignora os “custos de transação” inerentes ao processo de negociação e na solução
de disputas, um defeito que é especialmente significativo quando o montante controvertido
é pequeno.11

Neste excerto estão sintetizadas três grandes críticas à quebra eficiente: o problema
da sua moralidade, a estruturação em supostas falsas premissas e a exclusão dos
custos de transação para aferir a eficiência. Não são as únicas. Também são apontadas
recorrentemente como problemáticas a dificultosa distinção do oportunismo e a exclusão,
como premissa, dos demais remédios contra a inadimplência.

1.2.1 A violação à moralidade


Inicialmente acerca do problema da moralidade, aqueles que se utilizam deste
argumento para criticar a teoria da quebra eficiente a apontam como imoral, tendo em
vista que há no contrato uma promessa de adimplemento, isto é, de cumprimento daquilo
que é seu objeto. Houve previamente um acordo de vontades, um compromisso, que
deve ser honrado pelos envolvidos. Não se pode desnaturar o instituto da indenização
chamando-a de obrigação alternativa, pois não deixa de ser um remédio, um instrumento
de reequilíbrio da relação obrigacional. Contratos, inafastavelmente e de maneira mais
explícita em países de civil law, são regidos por uma base de princípios morais e éticos
que devem ser respeitados, o que é o oposto quando se permite a traição da expectativa
pelo pagamento de indenização pelos prejuízos.12 E, efetivamente, a presunção de que

10
HOLMES, Oliver Wendell. The Path of the Law. Harvard Law Review, v. 10, p. 457-462, 1897.
11
Tradução livre do original.
12
Cf. FRIED, Charles. Contract as Promise: a theory of contractual obligation. Oxford: Oxford University Press, 1981.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
97

a parte prejudicada é indiferente entre o adimplemento e o pagamento da indenização


pela quebra é falsa na maioria dos casos.13
Neste sentido, só haveria espaço para uma obrigação alternativa se o compro­
misso em si também tivesse por característica ser disjuntivo ou condicional. Só assim é
que poderia produzir efeitos de escolha para a parte entre cumprir a prestação principal
ou indenizar.14 Em outras palavras, a teoria da quebra eficiente incentiva atos que a lei
deveria condenar.15
Em que pese tal ponto de vista, é certo que, ao menos no Direito estadunidense, a
posição é minoritária. Afinal, a própria cultura jurídica daquele país promove a eficiência
econômica dos contratos. O princípio do pacta sunt servanda pouco faz sentido nela, já
que o contrato verdadeiramente só adquire exigibilidade após a consideration, isto é, do
momento em que se inicia a sua execução, ao contrário dos países de civil law, em que
o mero acordo de vontades já é suficiente para dizer que o contrato está celebrado.16
A pouca refutação completa da teoria não significa também que há aceitação plena.
Pode-se dizer com alguma certeza que existem mais adeptos de uma posição parcial,
admitindo a teoria da quebra eficiente em um conjunto bastante extenso de casos, mas,
caso algumas condições não sejam cumpridas, o inadimplemento mesmo sendo eficiente
é de indubitável imoralidade. E isso fica evidente nos julgados das Cortes estaduni­denses
que concedem maiores indenizações nas situações em que a inadimplência é decorrente
de evidente e comprovada intenção (willful breach), isto é, não há um mínimo de zelo
pela parte contrária a ponto de beirar aquilo que denominamos de má-fé. Esta atitude do
Poder Judiciário estadunidense é encarada como meio de reduzir o incentivo à quebra.17
O inadimplemento, por si só, não é moralmente condenável, até porque é uma das
consequências previsíveis de um contrato e integra o risco inerente à atividade negocial. O
grande debate consiste na forma como este inadimplemento ocorre, o que, para alguns, a
mera alegação de que há um melhor contrato com terceiro não é moralmente suficiente.18
Nesta esteira, para Seana Shiffrin os danos pela expectativa devem ser ocasionais,
de acordo com as circunstâncias em que é plenamente aceitável para ambas as partes a
compensação monetária ao invés dos bens ou serviços. Isto porque o motivo do con­trato
foi a comutatividade, o interesse mútuo das prestações opostas. Em termos abso­lutos
trabalhados por Shiffrin, se a compensação por danos pela expectativa se tornasse o
padrão, então ninguém conseguiria o que verdadeiramente quer, pois o dinheiro, ao
invés do bem ou serviço em si, seria a contraprestação de todos os contratos. E o efeito
último seria a inexistência de contratos, porque ninguém nunca conseguiria o que quer.19

13
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 370.
14
Dito desta forma para a utilização das mesmas nomenclaturas, haja vista que, em uma obrigação disjuntiva,
ambas as opções seriam obrigações principais.
15
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 368.
16
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. 5. ed. Harlow: Pearson Addison-Wesley, 2008. p. 197-199.
17
THEL, Steve; SIEGELMAN, Peter. Willful breach: an efficient screen for efficient breach. In: BEN-SHAHAR,
Omri (Ed.). Fault in American Contract Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 161.
18
SHIFFRIN, Seana. “Could” Breach of Contract Be Immoral? Michigan Law Review, v. 107, n. 8, p. 1551-1568, jun.
2009. p. 1567-1568.
19
Ibidem.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
98 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Daniel Friedmann também observa as mesmas dificuldades que Shiffrin, sobretudo


na sociedade atual. Para ele, contratos são também formas de riqueza e precisam da
adequada proteção. Sendo assim, não há como se admitir que alguém seja privado de
sua conta bancária, seguro ou pensão em troca de mera compensação monetária, ainda
mais se ela só vir com uma decisão judicial, que não só poderá ter demorado muito
tempo para apreciar a questão como pode não ter apreciado corretamente o prejuízo.20

1.2.2 O fundamento em falsas premissas


Outra crítica realizada à teoria da quebra eficiente diz respeito às falsas premis­
sas sobre a realidade das coisas, fechando-se em um modelo teórico que ignora
inten­cionalmente aspectos relevantes que impactariam na relação contratual e, por
conse­guinte, demonstrariam que em nada é eficiente o inadimplemento. Seria necessário,
portanto, uma análise muito mais condizente e honesta com a realidade.
Recorrentemente se critica o papel das partes, pela insistência no modelo do
homo economicus, um sujeito idealmente racional, ao mesmo tempo egoísta e nunca em
descompasso com o interesse comum e geral, tendo como guia a eficiência econômica
de seu comportamento. É inconcebível alguém realizar determinada conduta com o
simples intuito de prejudicar o outro ou até mesmo se prejudicar. Além disso, sendo
constatada a eficiência das operações, ninguém se sentiria traído ou prejudicado com
o inadimplemento.
Esta dita falsa premissa origina outra que também se relaciona com a crítica acerca
da moralidade: somente a responsabilidade legal é que interessa e deve ser levada em
consideração. Outras, como a reputação da parte inadimplente, não são relevantes quando
se opera com eficiência. Mesmo que alguém deixe de cumprir inúmeros contratos, se for
de maneira eficiente, não terá um déficit de confiança pelos novos contratantes a ponto
de ser relevante e prejudicial para o desenvolvimento de suas atividades.21
Presume-se também com a teoria da quebra eficiente que as partes se encontram
em um estado de simetria de informações, isto é, ambas estão devidamente informadas
sobre todos os aspectos da relação contratual, inclusive sobre as circunstâncias da parte
contrária. Isto, por óbvio, é uma impossibilidade facilmente perceptível, já que na maioria
dos contratos – senão em todos – as partes não têm acesso a todos os dados que envolvem
o seu relacionamento. Com isso, não podem avaliar por completo os aspectos relevantes
que digam respeito à eficiência ou não da quebra.

1.2.3 A desconsideração dos custos de transação e a exclusão ex ante da


prestação específica
Crítica contundente também é realizada quanto à desconsideração dos chamados
custos de transação pela teoria da quebra eficiente. De fato, só são apreciados os custos

20
FRIEDMANN, Daniel. The efficient breach fallacy. The Journal of Legal Studies, v. 18, n. 1, p. 1-24, jan. 1989.
p. 23-24.
21
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 370-371.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
99

dos contratos, ignorando que para a relação negocial outras despesas são realizadas, como
com equipamentos de comunicação entre as partes, transporte, materiais de escritório,
profissionais especializados, etc. A teoria da quebra eficiente, portanto, só é admitida
em um mundo hipotético em que os custos de transação são iguais a zero.
Em um mundo real aqueles exemplos e tantos outros custos acabam ampliando o
gasto da parte com o contrato, sem que sejam necessariamente contabilizados no valor
do contrato, ainda que o encareçam na sua execução. Neste diapasão, a quebra pode
parecer eficiente se levados em consideração apenas o valor dos contratos e os ganhos
obtidos pelas partes, mas, se forem levados em conta os demais gastos, ela é, na verdade,
ineficiente. Consequentemente, os danos pela expectativa não mais são suficientes para
indenizar a parte.
Ian MacNeil também demonstra outra suposta falha no raciocínio feito pelos
adeptos da teoria da quebra eficiente. Em um mundo em que os custos de transação
são iguais a zero, a prestação específica ou os danos pela expectativa como remédios
são equivalentes quando mensurados pela eficiência. No caso de danos de expectativa,
a parte pagará o equivalente devido e o inadimplemento será indiferente para a vítima,
que já havia pactuado por receber a prestação ou indenização, estando contente com
um ou outro. No caso da prestação específica, o resultado seria o mesmo: a parte que
quiser quebrar o contrato comunicará à parte contrária que aceitará o valor indenizatório
equivalente ao invés da prestação. Afinal, a parte culpada não quer mais cumprir o
contrato e se a parte prejudicada criar alguma resistência, exigindo o pactuado, acabará
por criar custos de transação, destruindo a premissa do modelo.22 Portanto, não havendo
custos de transação para a parte para realizar a prestação, obrigá-la a cumprir o pactuado
ou indenizar terão os mesmos resultados.
Admitir a prestação específica ao final para demonstrar a ineficiência por gerar
custos de transação e ignorar a solução pelos danos pela expectativa é evidenciar a
incoerência do modelo econômico e, substancialmente, da teoria. Exclui completamente
os custos de transação no início e durante o raciocínio, mas os considera ao final somente
se a opção for pela prestação específica. No entanto, parece evidente que os danos
pela expectativa também podem gerar custos de transação e devem ser considerados.23
Por isso, não há como realizar uma dedução meramente por um modelo da microeco­
nomia, mas determinados indutivamente em cada caso concreto.24
Ulen,25 em consonância com o posicionamento de Ian MacNeil de que não há
como criar uma regra geral definitiva em um modelo, tenta ao menos trazer algumas
pistas sobre como as partes devem escolher o remédio apropriado. Defende que,
quando os custos de transação são baixos, a prestação específica encorajaria as partes
a transacionarem o direito ao cumprimento de maneira voluntária e eficiente. Por
outro lado, se os custos de transação são altos, deve haver intervenção de uma Corte
compelindo uma indenização. Tanto que ao final conclui que na maioria das vezes os

22
MACNEIL, Ian R. Efficient Breach of Contract: Circles in the Sky. Virginia Law Review, v. 68, n. 5, p. 947-969, maio
1982. p. 951-952.
23
Ibidem.
24
Idem. p. 957.
25
ULEN, Thomas S. The Efficiency of Specific Performance: Toward a Unified Theory of Contract Remedies.
Michigan Law Review, v. 83, n. 2, p. 341-403, nov. 1984. p. 401-402.
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100 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

custos de transação de uma relação contratual são baixos, sendo a prestação específica,
contraditoriamente com a teoria da quebra eficiente, o melhor remédio.

1.2.4 A proximidade com o comportamento oportunista


Existem aqueles que enxergam na quebra eficiente um oportunismo que deve
ser rechaçado pelo ordenamento jurídico. Afinal, inadimplir intencionalmente para
aumentar o próprio lucro é um posicionamento que agrediria a transparência e a
cooperação inerentes a um contrato. O oportunismo ocorre, portanto, quando a parte
culpada pelo inadimplemento tenta receber os ganhos decorrentes do contrato sem que
arque com os prejuízos anteriormente acordados. É a tentativa da parte inadimplente
de ganhar mais do que fora negociado às custas da parte contrária.26 Desse modo, ao
invés de promover a eficiência, a teoria promoveria a ineficiência.
Isto porque não haveria a transferência dos recursos produtivos para um uso
mais valioso, mas o seu consumo, pois as partes investirão mais em recursos para se
proteger do oportunismo ou para criá-los. Os oportunistas tentarão encontrar lacunas
nos contratos para enganar a parte contrária sem sofrer quaisquer consequências.
As vítimas, por sua vez, tentarão impedir o oportunismo tendo um cuidado maior na
busca de parceiros contratuais, elaborando contratos mais detalhados e gastando mais
recursos para monitorar a prestação da parte contrária,27 ou seja, tentando ao máximo
reduzir a assimetria das informações.
Oportunismo e quebra eficiente, no entanto, não se confundem. Steve Thel e
Peter Siegelman notam que as quebras realizadas com evidente e total intenção (willful
breach) e que poderiam ser evitadas com custos reduzidos deveriam ser prevenidas
ou dissuadidas.28 No entanto, não existe relação direta entre a intenção de quebrar a
promessa e o prejuízo em si. Faz-se necessária a distinção entre a intenção que causa
prejuízo daquela que existiria ex ante a celebração do contrato caso uma proposta melhor
de terceiro existisse. No primeiro caso o ânimo de prejudicar é evidente e existente
desde a celebração do contrato, sendo a quebra oportunista. No segundo, o contrato só
foi celebrado porque era a melhor proposta naquele momento. Caso contrário, nem ao
menos teria sido pactuado. E este é o caso da quebra eficiente.29
E as consequências jurídicas são diversas. Para a quebra eficiente, como visto, há
a indenização por danos pela expectativa, havendo manutenção do lucro obtido pela
parte culpada com a operação eficientemente realizada. Já na quebra oportunista há
a perda de todos os ganhos30 que conseguiu com a quebra do contrato original, como
forma de manter a credibilidade das avenças realizadas.31

26
DODGE, William S. The Case of Punitive Damages in Contracts. Duke Law Journal, v. 48, n. 4, p. 629-699, fev. 1999.
p. 652.
27
DODGE, William S. The Case of Punitive Damages in Contracts. Duke Law Journal, v. 48, n. 4, p. 629-699, fev. 1999.
p. 654.
28
THEL, Steve; SIEGELMAN, Peter. Willful breach: an efficient screen for efficient breach. In: BEN-SHAHAR,
Omri (Ed.). Fault in American Contract Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 161-162.
29
DODGE, William S. The Case of Punitive Damages in Contracts. Duke Law Journal, v. 48, n. 4, p. 629-699, fev. 1999.
p. 652-653.
30
POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9. ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2014. p. 129.
31
THEL, Steve; SIEGELMAN, Peter. Willful breach: an efficient screen for efficient breach. In: BEN-SHAHAR,
Omri (Ed.). Fault in American Contract Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 171.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
101

2 Incorporação da teoria da quebra eficiente no Direito brasileiro


Diante de tantas dificuldades já no Direito estadunidense, indaga-se se realmente
é possível transportar teoria tão polêmica para o Direito brasileiro. Não se nega que, sob
um ponto de vista econômico, a alocação de recursos propiciada pela teoria da quebra
eficiente seria interessante para as operações nacionais, sobretudo porque traria maior
dinamismo para o Direito Contratual, característica tão bem quista principalmente pelos
atores comerciais. Por outro lado, é fato que o ordenamento jurídico brasileiro possui
normas jurídicas que desestimulam este comportamento defendido ou trazem restrições
capazes de impossibilitar a sua aplicação.
Se no Direito estadunidense argumentos de moralidade já causam um certo deses­
tímulo à quebra eficiente mesmo com a incorporação e grande aceitação de uma teoria
econômica do contrato, no Brasil, em que impera um maior fundamento ético contratual
no sentido de o contrato ser uma promessa, um compromisso que deva ser cumprido
com os melhores esforços, a aceitação da ideia de um inadimplemento desejável e bem
quisto soa estranha e, se não, contraditória. Com bases no Direito romano e influências
francesa, italiana e alemã, o Direito Contratual brasileiro agracia e promove a vontade
das partes e o encontro destas, considerando que o contrato está celebrado a partir do
acordo, mesmo que verbal, conforme exercício hermenêutico dos artigos 104 e 107 do
Código Civil.
Este fundamento ético, reforçado pelo pacta sunt servanda e pelo princípio da boa-
fé, resulta em um sistema estruturado com a finalidade de obrigar que os contratantes
cumpram com aquilo que foi prometido. O pacta sunt servanda perderia em muito sua
força, haja vista que a qualquer momento uma parte poderia quebrar um contrato,
deliberadamente, em busca do lucro. O princípio da boa-fé, por sua vez, seria violado
no seu dever anexo de cooperação, pois é imposto às partes que se auxiliem na escorreita
execução do contrato.32
Dentro deste contexto, os remédios contra o inadimplemento têm a função
precípua de fazer com que o credor seja satisfeito com a prestação a que tinha direito
(prestação específica) e, na impossibilidade disto, que receba o equivalente em perdas
e danos.33
Os exemplos normativos são vários. No Título I do Livro I da Parte Especial do
Código Civil, concernente às modalidades das obrigações, os dispositivos legais deixam
bastante nítida a prevalência pela prestação específica. O artigo 239 admite a indenização
por perdas e danos quando a coisa, objeto de uma obrigação de dar, se perder por culpa
do devedor. Os artigos 247 e 248 do Código Civil admitem a conversão em perdas e danos
da obrigação de fazer se o devedor se recusar a cumpri-la e só por ele for exequível ou
só a ele imposta, ou se a prestação se tornar impossível por sua culpa, respectivamente.
Adiante no Código Civil, o artigo 389 impõe a responsabilidade por perdas e danos
diante do inadimplemento da obrigação, isto é, desde que a prestação específica já não
seja mais do interesse do credor ou esteja impossibilitada diante das circunstâncias por

32
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.
p. 219-228.
33
PELA, Juliana Krueger. “Inadimplemento eficiente” (efficient breach) nos contratos empresariais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 2, n. 1, p. 1091-1103, 2016. p. 1099.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
102 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

culpa do devedor. Não há extinção da obrigação ou criação de obrigação alternativa,


mas mera mutação objetiva em perdas e danos.34 A inexecução de promessa por fato
de terceiro se converte em perdas e danos (artigo 439). Se o estipulante não executar
o contrato preliminar, a parte contrária poderá considerá-lo desfeito e pedir perdas e
danos (artigo 465).
Muitas outras hipóteses materiais poderiam ser mencionadas, mas a coerência do
sistema jurídico brasileiro em privilegiar a prestação específica também fica evidente no
Código de Processo Civil, a partir do momento em que nos artigos 497 a 501 regulamenta
a tutela específica a ser concedida em ações relativas às obrigações de dar coisa certa,
de fazer ou de não fazer. Havendo procedência do pedido, o juiz concederá a tutela
específica para que haja o resultado prático esperado pela parte, ou seja, para o tema
em estudo, o cumprimento do estipulado contratualmente. E a conversão em perdas e
danos ocorrerá somente se o autor a requerer ou se impossível a tutela específica ou a
obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, nos termos do artigo 499.
Dessa forma, duas grandes barreiras já surgem de pronto para a adoção da teoria
da quebra eficiente: o Direito brasileiro valora positivamente aquele que cumpre sua
palavra e adimple o contrato e, havendo inadimplemento, aquilo que foi estipulado
será cumprido forçadamente em juízo. Se o ordenamento jurídico brasileiro quisesse
efetivamente que as perdas e danos fossem uma alternativa à prestação específica no
sentido que é defendido pela teoria da quebra eficiente, então teria dado à matéria
o mesmo tratamento do artigo 252 do Código Civil, que disciplina as obrigações
alternativas.
Ainda que tais barreiras atreladas à prevalência da prestação específica fossem
superadas por novel previsão legislativa ou interpretação mais favorável a uma liberdade
contratual em favor da eficiência econômica, subsiste o obstáculo da própria previsão
das perdas e danos no Código Civil, seja na sua extensão conforme os artigos 402 a 405,
seja na forma como foram estipuladas as regras sobre a cláusula penal, nos termos dos
artigos 408 a 416.
No tocante à extensão, ainda persistem dúvidas no Direito brasileiro acerca
da delimitação da responsabilidade do devedor inadimplente, já que a vagueza da
expressão “efeito direto e imediato”, constante no artigo 403 do Código Civil, ainda
admite interpretações múltiplas. Como a própria doutrina aponta, a apuração acaba
por se submeter a um juízo de probabilidade com sutilezas infindas.35 Assim, o que, de
fato, seria um efeito direto e imediato que tem o condão de atrair a responsabilidade
do devedor inadimplente?
A origem da polêmica se encontra na leitura feita da obra de Pothier, da qual
serviu de inspiração a criação do dispositivo em comento. Pothier36 retoma o exemplo
romano da venda dolosa do animal doente que contamina todo o rebanho. O vendedor
seria responsável pela morte da vaca pestilenta e pela infecção que atingiu o resto
do rebanho, sendo excluídas as perdas sofridas pelo comprador: a terra não ter sido

34
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações Vol. II. 21. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 361.
35
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações Vol. II. 21. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006. p. 374-375.
36
POTHIER, Robert Joseph. Traité des Obligations: Tome Premier. Paris: Debure l’ainé, 1761. p. 182-184.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
103

cultivada e a perda de seus bens em favor de seus credores como consequência de não
ter conseguido pagar suas dívidas por não ter explorado o seu rebanho nem cultivado
a terra. Afinal, estas são consequências indiretas e remotas que quebram a relação de
causalidade: o comprador poderia ter evitado os danos com a compra de outros gados
ou alugando ou subarrendando as terras para que outrem a cultivasse.
A necessariedade do dano é fundamental para se compreender aqueles que devem
ser imputados ao devedor. No entanto, diferentemente do exemplo resgatado por Pothier,
nem sempre esta constatação é simples, o que resulta em conclusões divergentes sobre
a extensão da responsabilidade do devedor. Transportando esta dificuldade para o
problema da quebra eficiente, nota-se que dada a complexidade de determinada relação
contratual, já será de início muito difícil para as partes preverem qual será o montante
que comporá os danos emergentes e os lucros cessantes. Até porque a quantificação
das oportunidades perdidas – os custos de oportunidade – é de difícil avaliação. Por
conseguinte, não será possível examinar se o inadimplemento será eficiente ou não.
Pairará dúvida se a indenização foi integral ou não.37
No aspecto formal, deve-se ter cuidado no transporte da concepção de cláusula
de danos liquidados (liquidated damages clause) do Direito estadunidense para o Di­
reito Pátrio, haja vista que não há coincidência entre ela e a cláusula penal brasileira.
A liquidated damages clause tem por objetivo antecipar a estipulação do valor da
indenização na hipótese de inadimplemento. Normalmente constam em contratos em
que o prejuízo é incerto diante das circunstâncias concretas e, principalmente, quando
não há mercado para o objeto do contrato que possibilite uma operação substitutiva
ou parâmetro satisfatório para medir as perdas com o inadimplemento.38 O valor nela
estipulado engloba todos os danos imputáveis ao devedor, não tendo limitação senão
a própria razoabilidade.
A cláusula penal brasileira, por sua vez, funciona por outro regime. Quando
estipulada para o caso de inadimplemento total da obrigação – uma cláusula penal
compensatória –, ela opera como uma alternativa em benefício do credor (artigo 410 do
Código Civil). Ou seja, caberá ao credor optar pela exigência da cláusula penal ou da
prestação específica, e não ao devedor, o que já violaria o preceito primordial imposto
pela teoria da quebra eficiente.
No tocante ao valor, é limitada ao valor da obrigação principal (artigo 412 do
Código Civil), salvo acordo de possibilidade de exigência de indenização suplementar
(artigo 416, parágrafo único do Código Civil). Isto é, se os prejuízos excederem o valor da
prestação principal – por exemplo, com o inadimplemento, a parte prejudicada precisou
realizar despesas para uma operação substitutiva –, eles não serão compensados. E a
solução de exigência de indenização suplementar não é suficiente, pois o credor terá que
provar o prejuízo excedente e, diante da alta litigiosidade brasileira, provavelmente em

37
AKAISHI, Juliana Tiemi Mizumoto. Quebra eficiente dos contratos bilaterais e teoria dos incentivos. Economic
Analysis of Law Review, v. 1, n. 2, p. 241-253, jul./dez. 2010, p. 245.
38
O instituto é encontrado no §356(1) do Restatement (Second) of Contracts: §356. Prejuízos Liquidados e Penalidades
(1) Prejuízos pelo inadimplemento por qualquer das partes podem ser liquidados em acordo mas somente em
um montante que é razoável à luz da antecipada ou atual perda causada pelo inadimplemento e as dificuldades
de sua prova. Um termo fixando uma não razoável alta liquidação dos prejuízos não é exigível por razões de
ordem pública como uma penalidade (Tradução livre do original).
A mesma orientação, só com redação diferente, é encontrada na Seção 2-718(1) do Uniform Commercial Code.
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104 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

juízo, o que acarreta despesas com custas processuais, honorários advocatícios, entre
outros custos de transação que subtraem a eficiência da quebra.
Ainda há outra diferença que explicita um entrave no ordenamento jurídico brasi­
leiro: o valor da cláusula penal poderá ser reduzido equitativamente pelo magis­trado
se o montante se mostrar manifestamente excessivo diante da finalidade ou natureza
do negócio (artigo 413 do Código Civil). Em outras palavras, a previsão das partes em
despesas além daquelas inerentes ao próprio negócio – como da operação substi­tutiva
referenciada – pode ser desconsiderada em juízo e a penalidade reduzida, descarac­
terizando a razão eficiente do inadimplemento.
Assim, diante de tantos obstáculos, questiona-se se será efetivamente possível
incorporar a teoria da quebra eficiente no Direito Civil brasileiro.

2.1 Possíveis caminhos para a adoção da teoria da quebra eficiente no


Direito brasileiro
A perspectiva de incorporação no Direito brasileiro da teoria da quebra eficiente
em sua modalidade clássica parece bastante ruim, já que são acrescentados mais
obstáculos além dos já tradicionalmente aventados no Direito estadunidense. Por isso,
se há interesse e benefício em sua adoção, é preciso dar um passo à frente e ajustá-la
conforme as exigências normativas.
Alguns autores estadunidenses já dão algumas pistas sobre um avanço da teoria,
apontando para uma revisão quase que completa de sua estrutura, mas mantendo a
conclusão de que a efficient breach theory é importante e necessária para uma melhor
alocação dos recursos nas relações contratuais. E para diferenciar suas propostas da
concepção clássica, costumam chamar esta de simple efficient breach theory.39
Daniel Markovits e Alan Schwartz, em seu artigo “The myth of efficient breach”,
argumentam que em um mercado competitivo as partes se valem da tese da equivalência
distributiva: sendo elas suficientemente sofisticadas, seja o que for que uma delas
perca no uso de remédios para a compensação das expectativas, ela já foi beneficiada
com um preço menor ou alguma outra estipulação contratual que lhe é favorável.
A compensação, portanto, ocorre não só ex post no momento da quebra com o remédio,
mas já se desenvolve desde as negociações entre as partes das cláusulas do contrato.
Três presunções da simple efficient breach theory são derrubadas pelos autores. Todo
o trâmite contratual, desde a negociação até a sua execução e exaurimento, envolve os
chamados custos de transação, que não são desconsiderados, inclusive se necessária a
renegociação. Há investimentos feitos pelas partes que devem ser considerados no preço.
Por fim, nem sempre a parte pode adimplir aquilo que foi pactuado.40
A partir disto, argumentam que a negociação para estipular e o cumprimento da
indenização pelos prejuízos são mais adequados que a prestação específica, pois en­
volvem menores custos de transação. Ou seja, a teoria tradicional da quebra eficiente tinha

39
A título exemplificativo: KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law.
Oxford: Oxford University Press, 2013. p. 367; MACNEIL, Ian R. Efficient Breach of Contract: Circles in the Sky.
Virginia Law Review, v. 68, n. 5, p. 947-969, mai. 1982. p. 949.
40
Cf. MARKOVITS, Daniel; SCHWARTZ, Alan. The myth of efficient breach: new defenses of the expectation
interest. Virginia Law Review, v. 97, n. 8, p. 1939-2008, dez. 2011. p. 2006.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
105

visto vantagem na indenização por perdas e danos ex post, mas, mesmo considerando
o período ex ante, sua vantagem permanece. Chegar a um acordo para o cumprimento
forçado da obrigação demanda considerar muito mais situações que ensejariam a quebra
contratual, o que acarreta uma maior complexidade na formulação dos preços.
Consequentemente, apenas indenizar é mais lucrativo do que obrigar o cumpri­
mento, já que haverá uma distribuição equivalente que se iniciará ex ante ao invés de
depender de uma negociação ex post.41 Não é preciso realizar a realocação dos riscos
se estes já foram devidamente feitos ex ante. Renegociar só terá verdadeiro interesse
se houver a obrigação da prestação específica, pois há um incentivo para a parte que
quebrou o contrato compartilhar parte de seus ganhos com a vítima para que não tenha
que realizar a prestação específica ou a restituição do bem.42
A sugestão é interessante para justificar uma possível mudança de posição do
Direito brasileiro para abandonar a relação subsidiária entre os remédios e torná-la
disjun­tiva. Há opção para a parte: cumprir o pactuado ou pagar a indenização. Por isso
que os autores chamam sua teoria de dual-performance hypothesis (hipótese do desem­
penho dual).43
E resolveria, em sua linha de raciocínio, os argumentos de violação à moralidade,
tendo em vista que a opção pela indenização não é um inadimplemento, mas o
cumprimento de uma obrigação alternativa. Violar o contrato é, verdadeiramente, não
cumprir a prestação nem indenizar, o que deve acarretar a repreensão pelo ordenamento
jurídico, pois se trata de um comportamento oportunista.44 Portanto, a quebra eficiente
não existe de verdade, porque quebrar o contrato é agir de maneira contrária à eficiência
de Pareto.45
Entretanto, não deixa de ser apenas um argumento persuasivo, já que as normas
jurídicas vigentes não permitem tal exercício hermenêutico. Mais que isto, presume uma
sofisticação das partes – uma racionalidade – que nem sempre é verdadeira. E como
efeito disto, tem-se que a alocação de recursos e riscos ex ante pode não espelhar o ima­
ginário eficiente. E este ponto a Economia comportamental já se atentou, pois as escolhas
podem ser movidas pelo sentimento e circunstâncias outras alheias à relação contratual.
Por isso que, a partir das conclusões de Daniel Markovits e Alan Schwartz, é
interessante desenvolver a ideia de Gregory Klass sobre a eficiência dos remédios à
disposição das partes. Em linhas gerais, Klass defende que todos os remédios contra
o inadimplemento são potencialmente eficientes. O que definirá isto é a alocação dos
recursos e riscos.
Nota-se que a premissa é idêntica à de Markovits e Schwartz, sendo diferente na
conclusão. Enquanto deve haver a verificação ex ante e ex post para aferição da eficiência –
em atenção aos custos de transação, portanto –, a alocação dos recursos pode tornar até
mesmo a prestação específica eficiente no caso do inadimplemento.

41
Idem. p. 1966-1969.
42
Idem. p. 1942-1943 e 2005.
43
MARKOVITS, Daniel; SCHWARTZ, Alan. The myth of efficient breach: new defenses of the expectation interest.
Virginia Law Review, v. 97, n. 8, p. 1939-2008, dez. 2011. p. 1948.
44
Idem. p. 1988-1990.
45
Idem. p. 1948-1949.
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106 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A condição para tanto é a intensidade das concessões feitas pelas partes na


negociação. Se escolhida a indenização por perdas e danos como remédio, o comprador
demandará um preço menor pelo produto ou serviço para já haver uma compensação
ex ante caso ocorra o inadimplemento, sabendo que poderá não ser compensado
completamente ex post. Por outro lado, se a opção for pela prestação específica, o vendedor
demandará um preço maior pelo produto ou serviço, pois dessa forma poderá negociar
uma liberação do contrato com maior lucratividade e maior facilidade para compartilhá-
la com o comprador. Ao final, nota-se que, quanto mais caro for o remédio para a parte,
maior será o preço cobrado no início.46
Esta constatação atrai as consequências benéficas de superação de muitos
obstáculos já ventilados. Alegar imoralidade da quebra eficiente começa a carecer de
sentido, haja vista que a compensação pelo preço já é uma demonstração do montante
que as partes consideram devidas na ocorrência do inadimplemento. Os ganhos recebidos
ex post com o remédio contratualmente eleito complementam aqueles já havidos ex ante
na forma de cláusulas contratuais mais favoráveis.47 Há a consideração dos custos de
transação justamente pela negociação prévia do preço. Supera-se em profundidade –
mas não completamente porque se trata de medida impossível de fato – a assimetria
das informações.
Contudo, ainda se mantêm os problemas da premissa de racionalidade das partes
e da prevalência legal da prestação específica. O primeiro talvez se possa reputar de
impossível solução, até porque se costuma recorrer ao homem médio ou a uma razoável
racionalidade para justificar a intervenção Estatal na relação contratual. Sempre haverá
aqueles que fogem à regra e dependerá da análise do caso concreto. Em outras palavras,
não é um problema exclusivo da quebra eficiente, mas central do próprio Direito em si.
Já o da prevalência legal da prestação específica, Gregory Klass traz argumento
adicional contra a opção do sistema por um dos remédios. Para ele, em consonância com
Fuller e Perdue Junior,48 a consequência deve ser determinada pelas próprias partes e não
por uma autoridade. Afinal, elas sabem muito melhor o que querem do que legisladores
ou Cortes.49 Portanto, não há um remédio mais eficiente que deve ser adotado para todos
os casos, e sim, o mais adequado às necessidade individuais e específicas das partes.
Neste sentido, o padrão estabelecido pela lei de um remédio contra o inadim­
plemento deveria estar restrito aos casos de não ter sido previamente definido pelas
partes ou por exigência restrita em conformidade com a espécie contratual em apreço.
Em outras palavras, a prevalência de um ou outro remédio se dá somente de maneira
supletiva e excepcional.
E a repetição de soluções com sucesso contra o inadimplemento propiciará, no
entendimento de Gregory Klass, a padronização de modelos contratuais de acordo com
as necessidades. A liberdade contratual, num argumento que parece até ser paradoxal,

46
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 383.
47
Ibidem.
48
FULLER, Lon L.; PERDUE JUNIOR, William M. The Reliance Interest in Contract Damages: 1. Yale Law Journal,
v.46, p. 52-96, 1936. p. 52-53.
49
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 387.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
107

fomentará a manutenção de certos remédios para determinadas relações. E, sendo uma


mera padronização, ainda será adaptável diante de necessidades específicas.50
Restringir a solução contra o inadimplemento a um ou outro remédio desenvolve
o efeito perverso de distorção do mercado, haja vista que os preços serão estipulados
em patamar apto a atender ao interesse de apenas uma das partes e evitar perdas que
porventura possam incorrer, nos termos expostos alhures. Assim, uma legislação que
prevê como remédio obrigatório a prestação específica ou qualquer outra solução, como
danos punitivos, só aparentemente traz um benefício para os compradores.
Trazendo o fundamento para a realidade brasileira, nota-se que a prestação
espe­cífica como regra tem – ou deveria ter – o efeito de encarecer os negócios. Afinal,
se o vendedor tiver que cumprir forçadamente com o pactuado, ao menos ele já teve
– ou deveria ter tido – ganhos ex ante que poderão compensá-lo das despesas que
terá com o cumprimento e, até mesmo, conceder-lhe uma margem para a barganha
de compartilhamento dos ganhos, visando a negociação da liberação do contrato. É a
regra econômica dos incentivos aplicada aos contratos.51 Se Gregory Klass argumenta
corretamente, sem dúvidas a medida distorce o mercado e tem potencial de produzir
efeitos negativos sobre ele, mas, na estreita via da verificação da efficient breach theory, a
solução permite uma aplicação sua, ainda que mais restrita, no Direito Pátrio.
Também se supera a barreira da desconsideração dos custos de transação já que,
efetivamente, eles são contabilizados nos ganhos e perdas havidos com o contrato, desde
a sua negociação até o exaurimento da relação contratual. Não se afirma que seja uma
medida simples, pois, a depender da complexidade do negócio em análise, muitas são
as transações envolvidas ou, até mesmo, são de difícil verificação. Vide, por exemplo,
as despesas judiciais caso o litígio contratual seja levado a juízo: ainda que as custas
sejam previamente estabelecidas, ainda é preciso levar em consideração os gastos com
advogados, reuniões, possíveis condenações por litigância de má-fé, indenização por
dano moral, erro judiciário, etc. Ainda assim, na nova perspectiva da efficient breach
theory, referidos gastos precisam ser levados em conta pelas partes.
Logo, com a queda do dogma da indenização por perdas e danos como único
remédio para se ter uma quebra eficiente, abre-se uma via para uma teoria da quebra
eficiente à brasileira. Fica superado o obstáculo da base em falsa premissa e do remédio
utilizado.
Não se ignora, contudo, que a prestação específica não é a primeira solução
obrigatória para todo e qualquer contrato. E nestes a teoria da quebra eficiente tem
maior liberdade de aplicação.
Um dos casos ocorre nas obrigações alternativas previstas nos artigos 252 e
seguintes do Código Civil. Com o consentimento dos contratantes, as partes poderão
estipular a prestação específica ou a uma prestação pecuniária equivalente como obri­
gações à escolha de quem deverá cumprir ou se beneficiar do cumprimento. Trata-se de
hipótese que se aproxima da ideia defendida pela teoria clássica da quebra eficiente e
por Alan Schwartz e Daniel Markovitz, mas com a diferença de que deve ser acordada

50
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 388.
51
SAPPINGTON, David E. M. Incentives in Principal-Agent Relationships. Journal of Economic Perspectives, v. 5,
n. 2, p. 45-66, primavera de 1991. p. 62-63.
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108 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

expressamente pelas partes, e não uma simples presunção motivada por uma mudança
cultural. Em outras palavras, é uma solução que serve a uma circunstância específica.
Mais restrita ainda é a observância de que poderá haver mais claramente uma
quebra eficiente em obrigações infungíveis. Com efeito, havendo a negativa de o devedor
cumprir o pactuado que só a ele cabia adimplir, não há alternativa senão a conversão da
obrigação em perdas e danos, dada a sua impossibilidade, nos termos do artigo 247 do
Código Civil. Desse modo, escolhendo o devedor de obrigação infungível não cumprir
o pactuado, ele terá, forçadamente, a opção de pagar pela sua liberação do contrato,
como se quebra eficiente fosse.
No tocante ao oportunismo confundido com a quebra eficiente, parece que os
contra-argumentos já desenvolvidos no Direito estadunidense são mais do que suficientes
para distinguir as duas situações. Para o oportunismo já é admitido no Direito brasileiro
a figura dos danos emergentes no artigo 403 do Código Civil para o ressarcimento no
âmbito contratual, além de danos morais se houver nexo causal com uma lesão a direito
da personalidade, no âmbito extracontratual.52 Com isso, a intenção pretérita de prejudicar
a parte contratante contrária já possui solução adequada53 no sistema.
Por fim, interessante destacar a reflexão de Juliana Krueger Pela sobre o tema.54
Focada nos contratos empresariais, defende, acompanhando Paula Forgioni,55 que é
preciso estruturar uma teoria própria dos contratos empresariais, com especificações
diversas da teoria geral do Direito Contratual, unificado com o advento do Código Civil
em 2002. Como se trata de um contrato entre profissionais, enxerga haver neste caso
um incremento na racionalidade das partes, o que faz com que haja uma análise muito
mais sofisticada da alocação dos riscos.
Além disso, o Direito Contratual precisaria se aproveitar das lições do Direito
Concorrencial, já que o descumprimento deliberado do contrato pode ter – e muitas
vezes têm – motivação anticoncorrencial. Neste contexto haveria um ganho objetivo,
além de meros argumentos de moralidade e de aplicação do princípio da boa-fé, na
verificação se a quebra foi oportunista ou eficiente. Seria constatado se houve abuso do
poder econômico ou de posição dominante, monopólio, oligopólio, etc.56

Considerações finais
Diante de todo o exposto, nota-se que a adoção da teoria da quebra eficiente no
Brasil é bastante tormentosa. As barreiras, tanto jurídicas quanto morais, são enormes, o
que faz com que não tenha o mesmo alcance que o instituto teve no Direito estadunidense.
Há, conforme visto neste estudo, algumas alternativas, ainda que restritas, para a
sua aplicação além de uma mera alteração legislativa. Para que talvez seja incorporada

52
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. Doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 1678-1679.
53
Inclusive para os que entendem ser possível a fixação de indenização por danos extrapatrimoniais com natureza
punitiva.
54
PELA, Juliana Krueger. “Inadimplemento eficiente” (efficient breach) nos contratos empresariais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 2, n. 1, p. 1091-1103, 2016. p. 1099-1101.
55
Cf. FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
56
PELA, Juliana Krueger. “Inadimplemento eficiente” (efficient breach) nos contratos empresariais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 2, n. 1, p. 1091-1103, 2016. p. 1101-1102.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
109

em toda e qualquer espécie contratual, é preciso dar um passo além e admitir que a
efficient breach theory pressupõe circunstâncias irreais e é insuficiente diante de uma
realidade plural. Deve-se avançar assumindo que recaem custos de transação sobre
toda a operação e que devem ser contabilizados pelas partes. Também a indenização por
perdas e danos não é a única solução eficiente para o inadimplemento, haja vista que as
partes podem através do preço negociado buscar uma indenização prévia, compensando
futuras e possíveis perdas.
Ainda assim, mesmo com a diferenciação entre um comportamento oportunista e
um visando a eficiência, é certo que a cultura jurídica brasileira preza pelo cumprimento
do pactuado, mesmo que signifique uma operação que acarretará prejuízo para o devedor.
É notável a influência das origens dos sistemas jurídicos brasileiro e estadunidense:
enquanto neste o período da barganha ainda não é dotado de exigibilidade (enforcement),
naquele o encontro das vontades já é suficiente para tanto.
Mesmo assim, a ideia tradicional da quebra eficiente não é descartável e pode
ser aproveitada pelo Direito brasileiro. Independentemente dos problemas apontados,
verificou-se que nas obrigações alternativas e infungíveis há, de certa maneira, um
meio de aplicá-la. Portanto, ainda que não seja nos exatos mesmos moldes do Direito
estadunidense, há sim um espaço restrito para uma teoria da quebra eficiente à brasileira.

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ISBN 978-85-450-0591-9.
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS

NARDEJANE MARTINS CARDOSO

Introdução
O fenômeno da “contratualização” vem se expandindo na contemporaneidade,
permeando todas as relações entre particulares e até mesmo entre o Poder Público e
os particulares, em um contexto de consensualismo e negociação no Direito. Como
fenômeno direto da expansão da importância dos contratos, o Direito do Consumidor
é campo de amplas possibilidades para a emergência dos tratados bilaterais (ou pluri­
laterais), marcado pela presença da heteronomia entre as partes, traduzida no conceito
de vulnerabilidade, essencial do direito consumerista e estampado no art. 4º, I, da Lei
nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Os contratos de consumo, enquanto marcados por uma relação de desigualdade
entre as partes, são regidos por normas protecionistas, como corolário do princípio
da isonomia material, reconhecendo, por um lado, a diferença entre consumidor e
fornecedor e, por outro lado, tratando de maneira igual todos os consumidores, como
necessidade de se conceder uma máxima eficácia ao sistema protetivo do consumidor.
Em uma sociedade plural e eminentemente desigual, pontuada pela existência
de grupos distintos, com interesses singulares e peculiaridades, a igualdade entre os
consumidores vem perdendo força, sendo reconhecida a hipervulnerabilidade de alguns
grupos de consumidores, tais quais os idosos e as crianças e adolescentes.
O reconhecimento casuístico da hipervulnerabilidade demanda alguns conceitos
fundamentais, de modo a objetivar sua aplicação ao caso concreto, fortalecendo a certeza
e a exigibilidade do Direito.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
112 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O presente trabalho investiga o conceito e os elementos da hipervulnerabilidade


e as situações em que poderá ser reconhecida à pessoa com deficiência, enquanto consu­
midora. Ato contínuo, dialoga-se com ambas as normas protetivas – Código de Defesa
do Consumidor (CDC) e Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPCD) – em especial sob
o conceito social de pessoa com deficiência (PCD) e a legitimidade de uma diferenciação
da vulnerabilidade e da hipervulnerabilidade entre os consumidores e até mesmo entre
os consumidores com deficiência.
O método deste trabalho será o crítico-dialético, adotando-se o método histórico
e comparativo, abordando a evolução do conceito de vulnerabilidade do consumidor,
típico da primeira fase de positivação de seus direitos, a uma segunda fase de hipervul­
nerabilidade e até a uma eventual terceira fase de diferenciação endógena dos grupos de
consumidores. Quanto à forma de abordagem, tratar-se-á de uma pesquisa qualitativa, de
documentação e bibliografia, utilizando principalmente a legislação em vigor, decisões
judiciais selecionadas e pesquisas monográficas acerca do tema.

1 Da vulnerabilidade à hipervulnerabilidade – a evolução do direito


do consumidor
A crescente importância conferida aos contratos na sociedade contemporânea, o
reconhecimento da sua função social e a consequente complexidade de acordos bi(ou
multi)laterais acarretaram uma maior atenção de juristas e legisladores a esse fenômeno
social. Em paralelo, a complexidade das relações sociais que acarreta figuras impensáveis
no modelo clássico de contrato, como os contratos relacionais,1 contratos envolvendo
situações extrapatrimoniais, incluindo indivíduos indefinidos e reconhecendo a exis­
tência de diferenças nas posições contratuais, levou o constituinte originário a prever
a necessidade de uma disposição normativa específica envolvendo as relações consu­
meristas. A legislação especial das relações de consumo é fenômeno decorrente da
ordem econômica e necessária à garantia da igualdade material, da livre concorrência e
outros valores presentes na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88).
Com efeito, quanto à massificação da produção e do consumo de bens e serviços em
um ambiente mercadológico marcado pela impessoalidade das relações, é indispensável
o tratamento normativo pormenorizado destas relações, visando à proteção não apenas
do consumidor individual, mas, de maneira geral, de toda uma classe consumerista
indispensável às relações capitalistas da era pós-moderna.2 As normas de ordem protetiva
suplantaram as diretivas e as relações eminentemente privadas ganharam contornos
publicistas.3
A edição do CDC marcou uma revolução nas bases do Direito Privado brasileiro,
reconhecendo uma flexibilização de conceitos tradicionais como a igualdade e a auto­
nomia privada, que são decorrentes direto da máxima (formal) da igualdade e liberdade
que regiam irrestritamente o Direito Contratual.

1
MACEDO JR., Ronaldo. Contratos relacionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
2
AZEVEDO, Fernando Costa. O reconhecimento jurídico da hipervulnerabilidade de certos grupos de consumidores como
expressão de um sentido material de justiça no contexto da sociedade de consumo contemporânea. Disponível em: <https://
goo.gl/Hu1GR5> . Acesso em: 28 jul. 2017.
3
AZEVEDO, Antonio Junqueira. O direito pós-moderno. In: Revista USP, São Paulo, n. 42, p. 96-101, jun. 1999.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
113

O reconhecimento da vulnerabilidade como elemento inato ao consumidor, no


art. 4º, I, do CDC, consagra uma superação das estruturas contratuais liberais para o
reconhecimento da isonomia material, consubstanciada na inegável superioridade do
fornecedor sobre o consumidor, que geram, mesmo sob a égide da Lei nº 8.078/90, desi­
gualdades nas relações e vantagens exageradas, que devem ser minimizadas através de
institutos jurídicos que visam à equalização entre as partes.
A superação do paradigma liberal do contrato para um padrão intervencionista
e social ficou consagrada no CDC com a previsão direta de aplicação de direitos
fundamentais às relações privadas.4 Neste ponto, o reconhecimento ex lege da vulne­
rabilidade a todo consumidor é o caractere legitimador da norma protetiva, ao passo
que identifica uma relação fática desigual e a necessidade do intervencionismo estatal
para prover uma igualdade jurídica (ficta) entre consumidores e fornecedores. Essa
vulnerabilidade, apesar de não ser exclusiva das relações consumeristas, “aparece quando
se faz necessário compensar desigualdades consideradas como naturais e resultantes
de um fato considerado objetivo”.5
A vulnerabilidade, enquanto característica do consumidor, pode ser definida como
um “estado da pessoa, um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva
de interesses identificados no mercado”,6 sendo uma situação dos consumidores tratados
individual ou coletivamente. A vulnerabilidade, assim, é o elemento que fundamenta
o tratamento heteronômico conferido pela Lei nº 8.078/90, o elemento de discrímen7 que
confere justificativa à intervenção estatal nestas relações privadas.
Por conseguinte, relevante torna-se determinar o conteúdo exato de cada
termo, haja vista que a vulnerabilidade, elemento material e legal que determina todo
consumidor, individual ou coletivo, não se confunde com a hipossuficiência, conceito
fático e processual que pode, ou não, estar presente em uma relação, fundado em uma
discrepância no caso concreto. A hipossuficiência é causa, por exemplo, para a decretação
da inversão do ônus probatório e deve ser reconhecida casualmente, segundo disposto
no art. 6º, VIII, do CDC.
O reconhecimento da vulnerabilidade foi importante elemento de suplantação do
conceito liberal de contrato para a consagração da necessidade da intervenção estatal
em relações privadas marcadas pela desigualdade, como o são, exemplificativamente,
as relações trabalhistas e as consumeristas. Supera-se o paradigma do Estado Liberal,
substituindo tal modelo estatal pelo Estado Social (Welfare State), que segue ao Estado
Democrático de Direito, compreendido como o que busca o equilíbrio entre os direitos
sociais e a possibilidade de livre-iniciativa. Para o modelo estatal hodierno, os direitos
fundamentais incidem também nas relações entre particulares, pois estes são destina­
tários, tanto quanto o Estado, dos mandamentos e deveres constitucionais.8

4
O art. 6º da Lei nº 8.078/90 e a cláusula de abertura do art. 7º do referido diploma legal são previsões diretas de
aplicação de direitos consagrados no rol do art. 5º da Constituição Federal às relações consumeristas.
5
GAUDENCIO, Aldo Cesar Filgueiras. Da vulnerabilidade à hipervulnerabilidade: proteção contratual dos
consumidores nos direitos da União Europeia, Portugal e Brasil. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2015. p. 33.
6
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa
do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 120.
7
MELLO, Celso Antônio Bandeira. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
8
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
114 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Com a densificação das relações sociais na sociedade de consumo contemporâneo,9


marcada pela globalização e massificação,10 o tratamento isonômico entre todos os
consumidores passou a ser uma noção utópica e distante da realidade, diante da emer­
gência e fortalecimento de grupos sociais com características e interesses próprios e
singulares, como, por exemplo, os idosos, as crianças e adolescentes e as pessoas com
deficiência.
A primeira fase do Direito do Consumidor, marcada pelo reconhecimento da
vulnerabilidade,11 teve importante papel de conquista de direitos, reconhecimento da
autonomia do Direito do Consumidor e de sua magnitude12 no ordenamento jurídico
pátrio e foi marcada pela centralidade do CDC nas relações de consumo, com base na
proteção constitucionalmente prevista.13
O advento de novas normas protetivas reconhecendo situações de vulnerabili­
dade diferenciada de certos grupos sociais – da criança e do adolescente, com a Lei
nº 8.069/90, idoso, através da Lei nº 10.741/03 e da pessoa com deficiência, com a Lei
nº 13.146/15 – forçou o reconhecimento de uma vulnerabilidade acentuada destes grupos
em certas situações. Essa perspectiva importa no reconhecimento de que a proteção geral
(sistema homogêneo) dos direitos humanos num espectro geral não é suficiente, sendo
imprescindível a existência de instrumentos jurídicos específicos que garantam a proteção
especial (sistema heterogêneo) para equilíbrio e igualdade nas relações intersubjetivas.14
O reconhecimento da discrepância e, por conseguinte, do tratamento diferenciado
a certos grupos de consumidores não pode se dar somente sob a ótica do CDC, mas deve
provir de uma normatização dialogada entre as diversas normas, em uma interpretação
sistemática, simultânea e coordenada de uma pluralidade de normas e situações fáticas,
tratada doutrinariamente como diálogo das fontes. Deve-se compreender, sobretudo, que a
CRFB/88 guarda a unidade do ordenamento jurídico; pela Teoria do Diálogo das Fontes,
encontra-se o aprimoramento da correção das antinomias no ordenamento jurídico.
A ideia de diálogo entre as normas presentes no ordenamento jurídico significa
que há uma unidade de programa entre os diplomas normativos, que visam sobretudo à

9
AZEVEDO, Fernando Costa. Op. cit. p. 5.
10
Nesse sentido, observa-se a crítica de Zygmunt Bauman para com a sociedade contemporânea e a globalização,
que alerta sobre as consequências desse fenômeno que acarreta mudanças na condição humana. Segundo o
autor, vive-se numa sociedade de consumo, o que significa que os indivíduos se encontram presos ao dilema:
viver para consumir, ou consumir para viver. Assim, nessa sociedade as discrepâncias entre os grupos aumentam
e, de certa forma, a proteção estatal é importante para corrigir as disparidades de tratamento que surgem com
o processo globalizante. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus
Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 8;29;87.
11
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Resp. 1.324.712, Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Disponível em: <http://
www.stj.jus.br>. Acesso em: 28 jul. 2017.
12
É de reconhecer que os tribunais pátrios reconhecem o CDC como norma de ordem pública de caráter
constitucional, não apenas em seu sentido formal, dado o mandamento expresso do art. 48 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias, que estabelece prazo de cento e vinte dias para a promulgação de
Código de Defesa do Consumidor, como em seu sentido material, em virtude da consubstanciação da igualdade,
do reconhecimento do consumidor como elemento da ordem econômica e financeira, dentre outros. Dentre
vários arestos, cite-se o REsp 586.316. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 28 jul. 2017.
13
AZEVEDO, Fernando Costa. Op. cit. p. 6.
14
ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente:
Lei n. 8.069/90 comentado artigo por artigo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
115

consonância com os princípios constitucionais e objetivos presentes no plano normativo


da Constituição Brasileira de 1988. A finalidade das normas é a concretização dos escopos
presentes no artigo 3º da CRFB/88,15 com a manutenção da ideia de unidade e harmonia
do sistema normativo, assim:

Em última análise, o diálogo de fontes normativas, nacionais e transnacionais, deve repre­


sentar técnica hermenêutica destinada à harmonização do sistema, não à sua fragmentação.
A partir dos valores constitucionais e da dogmática construída pelo direito civil ao longo de
sua história, o Código de Defesa do Consumidor encontra justificativa axiológica voltada
para a busca da diminuição das desigualdades e das assimetrias informativas. Trata-se de
esforço hermenêutico em favor da pessoa humana e de suas relações existenciais, ponto
de partida e de chegada da legalidade constitucional.16

A Teoria do Diálogo das Fontes aprimora a correção das antinomias ideali­zada


por Norberto Bobbio. Ao contrário de exclusão de uma norma por outra, de acordo
com determinados critérios (cronologia, especialidade, hierarquia), compreende-se que
o ordenamento está coordenado. A teoria foi criada pelo autor alemão, Erik Jayme, e
trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, esta, por sua vez, defende a aplicação da
Teoria do Diálogo das Fontes nas relações de consumo.17
Nesse sentido, o que se verifica é a amplificação da proteção às pessoas com
deficiência inseridas em relações de consumo. Haja vista a condição de vulnerabilidade
com maior potencial, é preciso que a defesa do consumidor pessoa com deficiência seja
mais profusa, compreendendo os diplomas jurídicos vigentes que acordem com os
paradigmas dos direitos fundamentais presentes na CRFB/88.
Além disso, ao se utilizar da perspectiva disposta pelo diálogo das fontes, não se
restringe a coerência do ordenamento apenas à legislação. Analisam-se as antinomias
também na jurisprudência e costumes, pois seguindo a ideia de que não se trata apenas
de tratar conflitos e sim da busca por coerência e unidade do sistema normativo.18
O reconhecimento da vulnerabilidade acentuada – ou somente hipervulnerabi­
lidade – é um consectário lógico desta interpretação dialogada e do reconhecimento
da desigualdade entre os próprios grupos de consumidores. As normas do sistema

15
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e
solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”. BRASIL. Planalto. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(grifou-se). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 13 fev. 2018.
16
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VOLUME%205%20|%20Jul-Set%202015&category_id=97&arquivo=data/revista/volume5/rbdcivil-volume-5.
pdf>. Acesso em: 14 fev. 2018.
17
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do código de defesa do consumidor e o necessário diálogo das fontes na perspectiva de consolidação normativa
do direito do consumidor. Rev. Jur., Brasília, v. 10, n. 90, p. 1-38, abr./maio 2008. Disponível: <www.planalto.gov.
br/revistajuridica>. Acesso em: 13 fev. 2018.
18
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Acesso em: 9 fev. 2018. p. 8.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
116 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

espe­cífico de proteção não se excluem, ao contrário, devem ser aplicadas em conjunto,


e de acordo com a hermenêutica constitucional, com a interpretação mais benéfica à
dignidade humana.
Portanto, esta segunda fase do Direito do Consumidor pode ser marcada como
uma evolução de uma desigualdade do consumidor frente ao fornecedor, típica da
primeira fase para um reconhecimento de uma desigualdade interna, ou seja, entre os
diversos grupos sociais consumidores. Desta forma, é “preciso tratar de modo desigual
não apenas os consumidores em geral nas suas relações com os fornecedores, mas
também os consumidores entre si, a partir da identificação das diferenças entre grupos
vulneráveis e hipervulneráveis”.19
A hipervulnerabilidade pode ser conceituada como um grau excepcional juri­
dicamente relevante da vulnerabilidade do consumidor, marcada por uma fraqueza ou
ignorância excessiva do consumidor em decorrência de situações pessoais (ou típicas
de algum grupo, como, por exemplo, a idade), que independe do conhecimento prévio
do fornecedor.
O conceito utilizado, para justificar um tratamento diferenciado, encontra limites
no próprio sistema jurídico, como, por exemplo, a proibição de o fornecedor abusar
da fraqueza ou ignorância do consumidor (art. 39, IV, CDC), pela presença de normas
específicas protetivas de crianças e pessoas com deficiência no CDC (art. 6º, parágrafo
único, art. 37, §2º, art. 43, §6º), além do reconhecimento de características especiais de
alguns grupos extraídos da análise jurisprudencial, como, exemplificativamente, caso
em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a hipervulnerabilidade de
consumidor que fora ludibriado por propaganda enganosa de suposto fármaco que
seria a cura para o câncer. Neste aresto, o STJ entendeu que a pessoa acometida de
neoplasia maligna, ao assistir à propaganda televisiva de um remédio que seria a cura
para todos os males, tem seu direito à informação violado, sobretudo em decorrência
de sua situação especial agravada ou potencializada.20
A distinção primordial é o caráter casuístico da hipervulnerabilidade ao passo
da caracterização geral e indistinta da vulnerabilidade aos consumidores. Enquanto o
reconhecimento desta é decorrente da mera caracterização da pessoa como consumidora,
a hipervulnerabilidade é reconhecida em cada caso concreto, de acordo com características
do indivíduo. Aquela é caractere da pessoa natural ou jurídica consumidora; esta deve
ser reconhecida somente à natural, pois decorrente de caracteres pessoais próprios de
cada consumidor.
A caracterização da hipervulnerabilidade ao consumidor pessoa natural não
impede, contudo, que este seja tratado coletivamente. Ao observar as características
específicas, a hipervulnerabilidade pode ser reconhecida em grupos determinados de
pessoas, não sendo necessário observar-se apenas um indivíduo em situação isolada.
A própria ideia de proteção do consumidor e da pessoa com deficiência relaciona-se à
noção de pertencimento a determinado grupo ou segmento da população. É o caso, por
exemplo, da reconhecida hipervulnerabilidade do idoso que é

19
AZEVEDO, Fernando Costa. Op. cit. p. 10.
20
BRASIL. STJ. REsp 132.955-6/SP. Disponível em: <http://www.stj.jus.br> . Acesso em: 28 jul. 2017.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
117

potencializada pela vulnerabilidade fática e técnica, pois é um leigo frente a um especialista


organizado em cadeia de fornecimento de serviços, um leigo que necessita de forma
premente dos serviços, frente à doença ou à morte iminente, um leigo que não entende a
complexa técnica atual dos contratos cativos de longa duração denominados de ‘planos’
de serviços de assistência à saúde ou assistência funerária.21

O reconhecimento da vulnerabilidade agravada ao consumidor idoso ou à criança


decorre da mera classificação destas pessoas, de acordo com os critérios objetivos
estabelecidos pelos referidos diplomas legais. Enquanto o indivíduo que conte com
idade igual ou superior a sessenta anos será considerado, em uma relação de consumo,
hipervulnerável em razão de sua idade, a criança e o adolescente o serão quando contem
com até dezoito anos incompletos, de acordo com o disposto na Lei nº 8.069/90. Estes
indivíduos terão proteção jurídica potencializada em razão de sua vulnerabilidade
acentuada, quer em razão de inexperiência ou desenvolvimento incompleto (crianças
e adolescentes), quer em razão de idade avançada e decréscimo de funções físicas e
fisiológicas (quanto ao idoso).22
Pode-se dizer, portanto, que a hipervulnerabilidade é consectário direto do diálogo
das fontes, tutelando-se direitos de consumidores em adição a outros diplomas protetivos
de grupos especiais – como o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente,
por exemplo –, que, em razão de características específicas, devem ser protegidos de
forma mais incisiva pelo Estado, criando uma situação de hipervulnerabilidade quando
estiverem em uma relação consumerista.

2 O conceito de pessoa com deficiência no modelo social adotado pela


Lei nº 13.146/15
A edição da Lei nº 13.146/15, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência
ou Lei Brasileira de Inclusão, veio consolidar no Brasil a adoção do modelo social de
tratamento à pessoa com deficiência, em complementaridade à Convenção de Nova
York, internacionalizada pelo Direito brasileiro com status de emenda constitucional,
de acordo com o disposto no art. 5º, §3º, da CRFB.
Pode-se dizer que a Lei nº 13.146/15, ao lado do Decreto nº 6.949/09 e de outros
diplomas legais específicos (como o Tratado de Marrakesh, aprovado pelo Decreto
Legislativo nº 347/2015, que, apesar de não ter sido internalizado através de decreto
presidencial, já fora ratificado pelo governo brasileiro), caracteriza um microssistema
jurídico específico das pessoas com deficiência.
O EPCD conceitua o modelo social de abordagem à PCD, que a classifica como
uma interação de uma característica do indivíduo que, em inter-relação com uma ou
mais barreiras, tem sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de
condições com as demais pessoas obstruída. O conceito, em termos matemáticos, é uma

21
PINHEIRO, Rosalice Figaldo; DETROZ, Derlayne. A hipervulnerabilidade e os direitos fundamentais do
consumidor idoso no Direito brasileiro. In: Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, vol. II, 2012. Disponível
em: <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/72701/hipervulnerabilidade_direitos_fundamentais_pinheiro.
pdf>. Acesso em: 29 jul. 2017.
22
Idem, ibidem. On-line.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
118 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

multiplicação de uma característica pessoal com uma barreira (entrave, obstáculo, atitude
ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa), donde, havendo
um fator 0 às barreiras, não há que se falar em deficiência.23
A principal novidade adotada pelo modelo social adotado explicitamente na
Convenção de Nova York e na Lei nº 13.146/15, a par da mudança de nomenclatura
(pessoa com deficiência substituindo pessoa portadora de deficiência ou portadora
de neces­sidades especiais), é a concepção da deficiência como um conceito externo ao
indivíduo, portanto a utilização da nomenclatura “social”, uma vez que a deficiência é
advinda de barreiras (sociais, arquitetônicas, urbanísticas, etc.) e não mais somente de
características individuais.
Um importante paradigma reforçado pelo modelo social é a superação do antigo
conceito de dependência da pessoa com deficiência. Ao deslocar a deficiência para a
sociedade e voltar as atenções ao indivíduo, tem-se que todos os seres humanos são
interdependentes e, por isso, não há que se tratar eventuais cuidados especiais a algumas
pessoas sob um viés preconceituoso, mas, tão somente, um aspecto de sua característica
pessoal. As diferenças entre as pessoas não são mais qualitativas – entre pessoas com ou
sem deficiência – mas tão somente quantitativas, com relação a quais e em qual medida
cada indivíduo se faz dependente de outros.
Em decorrência disso, a deficiência é conceito eminentemente dinâmico, seja pela
possibilidade da gradual superação de barreiras pela sociedade (fator externo) ou, ainda,
pela adoção ou surgimento de novas técnicas médicas, assistenciais ou tecnológicas que
sejam capazes de superar as limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais do
indivíduo. Ademais, a pessoa com deficiência é gênero por demais amplo, abrangendo
pessoas com impedimentos de longo prazo (natos ou adquiridos), de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, nos mais variados níveis. Por tal razão, o EPCD concebeu
institutos de isonomia material, permitindo uma diferenciação endógena, como a
facultatividade de a PCD gozar dos direitos previstos na Lei nº 13.146/15 (art. 4º, §1º),
em institutos de assistência social que citam a categoria da “pessoa com deficiência em
situação de dependência”, dentre outros.
A caracterização da pessoa com deficiência não é, ao contrário do que ocorre com
o idoso, adolescente a criança, critério objetivo e de caracterização automática. Não
basta um critério cronológico (sessenta anos, para o idoso, até doze anos incompletos,
para criança, ou até dezoito anos incompletos, para adolescente), sendo necessária a
inter-relação entre características pessoais (impedimentos de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial) com uma ou mais barreiras que sejam capazes
de obstruir a participação plena e efetiva do indivíduo na sociedade.
Deve-se ver ainda que há vários graus de deficiência que levarão a múltiplas
consequências no plano fático e social, desde a livre opção da pessoa com deficiência
de não fruir dos direitos previstos na legislação específica até, em casos extremos, a
possibilidade da decretação da curatela24 como ultima ratio.

23
LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA FILHO, Waldir Macieira (Coord.). Comentários
ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2017.
24
MENEZES, Joyceane Bezerra. O Direito protetivo no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa com
deficiência: impactos do novo CPC e do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Civilistica, Rio de Janeiro, ano 4,
n. 1, p. 1-34, jan./jun. 2015. Disponível em: <http://civilistica.com/o-direito-protetivo-no-brasil/>. Acesso em: 31
ago. 2017.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
119

3 A hipervulnerabilidade da pessoa com deficiência e sua


caracterização casuística
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), órgão vinculado
à Organização das Nações Unidas (ONU), de 2011, no mundo existe 1 (um) bilhão de
pessoas que vivem com alguma deficiência. Desse contingente, cerca de 80% residem
em algum Estado que se encontra em desenvolvimento. Além disso, de acordo com a
UNICEF, cerca de 150 milhões de pessoas com deficiência são crianças ou adolescentes.25
A quantidade de pessoas indica a necessidade de se analisar a importância da proteção,
haja vista que existem graus diferentes de deficiência, e os Estados e a sociedade devem
envidar esforços para garantir a inclusão das pessoas com deficiência.
Especificamente, com relação ao contingente de pessoas com deficiência no
Brasil, segundo o último censo do IBGE de 2010,26 há 45.606.048 de pessoas com alguma
deficiência, física ou mental. Esse número representa 23,9% da população brasileira,
como apontado na tabela.

Tabela 1 – Percentual da população com deficiência – Brasil 2010

Pessoas com ao menos uma deficiência 23,9%

Pessoas com deficiência visual 18,8%

Pessoas com deficiência auditiva 5,1%

Pessoas com deficiência motora 7,0%

Pessoas com deficiência mental 1,4%

Fonte: IBGE, Censo Demográfico, 2010.

Os dados apresentados demonstram a quantidade expressiva do segmento da


população que pode encontrar barreiras adicionais no exercício de sua capacidade e
direitos. Atualmente, observa-se que existem políticas que visam à inclusão das pessoas
que antes eram discriminadas. Nessa sociedade busca-se a igualdade de oportunidades,
não com base em regramentos e políticas generalistas, mas com a observância da
diversidade humana e, também, da existência de situações específicas, nas quais é
necessário observar a importância da construção de uma sociedade inclusiva.27
Especialmente no que se refere às relações de consumo e sua relação com o Poder
Judiciário e a hipervulnerabilidade, observa-se o Recurso Especial nº 931.513/RS, julgado
em 25 de setembro de 2009 pelo Superior Tribunal de Justiça, o ministro relator do caso

25
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. A ONU e as pessoas com deficiência. Disponível em: <https://
nacoesunidas.org/acao/pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 15 fev. 2018.
26
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Demográfico de 2010: resultados gerais
de amostra. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/99/cd_2010_resultados_
gerais_amostra.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2018.
27
MANFREDINI, Adile Maria Delfino; BARBOSA, Marco Antonio. Diferença e igualdade: o consumidor pessoa
com deficiência. Revista Dir. Gar. Fund., Vitória, v. 17, n. 1, p. 91-110, jan./jun. 2016. Disponível em: <http://sisbib.
emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/635>. Acesso em: 10 fev. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
120 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Herman Benjamin abordou a questão da hipervulnerabilidade do consumidor pessoa


com deficiência. No caso, uma Ação Civil Pública, de autoria do Ministério Público,
requeria o fornecimento de prótese auditiva pelo Estado do Rio Grande do Sul, o mesmo
recorreu alegando a ilegitimidade do MP para o assunto. O STJ compreendeu que, além
de ser legítima a ação do parquet, há proteção especial à pessoa com deficiência. O relator
do caso enfatiza, antes mesmo da criação do EPCD/15, que com relação à pessoa com
deficiência deve-se buscar a valorização, capacitação e inclusão na sociedade.28
Em outro julgado, do Supremo Tribunal Federal, a ministra relatora, Rosa Weber,
do Recurso Extraordinário com Agravo nº 849.794/SP, julgou, em 19 de março de 2012,
improcedente o recurso por questões processuais, contudo, no caso, o empresário
(particular) teve de acatar a decisão judicial e fornecer bula de remédios em braile, para
que pessoas com deficiência ocular pudessem ter acesso às informações. A ação, que
havia sido iniciada pela Associação Nacional de Defesa da Cidadania e do Consumidor
contra a Latinofarma Indústrias Farmacêuticas Ltda., demonstra a importância do acesso
à informação para o consumidor, e é interessante pelo número expressivo de brasileiros
com deficiência visual, como apontado na tabela anterior.29
Diante da atual perspectiva de integração da pessoa com deficiência é fulcral
observar que o escopo precípuo é a possibilidade de autonomia conjugada com a máxima
proteção estatal. Garantir o equilíbrio entre a intervenção do Estado e a liber­dade indi­
vidual é o cerne dos diplomas legais que garantem os direitos às pessoas consi­deradas
vulneráveis.
A CRFB/88 demonstra força normativa, enquanto que as normas infraconstitu­
cionais devem guardar consonância e coerência com os valores e princípios constitucio­
nais. Assim, deve-se compreender que “[...] A pluralidade de fontes normativas, portanto,
não pode perder de vista a unicidade do ordenamento, que, em sua complexidade,
mantém-se em harmonia graças à rigidez da tábua de valores determinada pela ordem
pública constitucional”.30
A vulnerabilidade não pode ser vista como uma restrição ao exercício de di­
reitos, mas como uma discrepância da realidade que deve ser resolvida por institutos
e instrumentos jurídicos legítimos, capazes de concretização da justiça nas relações da
pessoa com o Estado e com particulares. Assim como o idoso, a pessoa com deficiência
pode ter a vulnerabilidade acentuada no mercado de consumo. O consumo deve ser
compreendido como um direito humano, e as situações de vulnerabilidade devem
corrigir a disparidade que há entre o consumidor e o fornecedor, que detém mais
conhecimentos técnicos dos produtos e serviços.31

28
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. Recurso Especial n. 931.513-RS. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/
docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-eletronica-2010_220_capPrimeiraSecao.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2018.
29
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – STF. Recurso Extraordinário com Agravo n. 849.794-SP. Disponível em: <http://
www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=283281516&tipoApp=.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2018.
30
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e relações privadas na experiência das cortes superiores brasileiras.
B. Cient. ESMPU, Brasília, ano 7, n. 28/29, jul./dez. 2008, p. 191-208. Disponível em: <http://boletimcientifico.
escola.mpu.mp.br/boletins/bc-28-e-29/normas-constitucionais-e-relacoes-privadas-na-experiencia-das-cortes-
superiores-brasileiras>. Acesso em: 14 fev. 2018. p. 207.
31
SCHMITT, Cristiano Heineck. A “hipervulnerabilidade” como desafio do consumidor idoso no mercado de
consumo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, v. 3, n. 1, p. 94-111,
jan./jun. 2017. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/article/view/11958>.
Acesso em: 10 fev. 2018.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
121

Considerações finais
O Código de Defesa do Consumidor, considerando a massificação da sociedade
de consumo, veio a regulamentá-la, consistindo em corpo jurídico protetivo de classe
percebida legalmente como hipossuficiente e, por isso, tendo reconhecida a vulnera­
bilidade enquanto princípio norteador da Política Nacional das Relações de Consumo.
A evolução da sociedade nas décadas subsequentes mostrou que a categoria
“consumidor” é decomposta em diversas camadas, sendo necessária uma adaptação
normativa para que seja alcançada a almejada isonomia material. Com isso, reconhecendo-
se a importância do consumo de crianças, idosos, superendividados ou pessoas com
deficiência, conceitos trazidos pela Lei nº 8.078 no início da década de noventa devem
ser vistos sob outra ótica, adaptando-se à nova realidade.
Nesse viés, à vulnerabilidade, entendida como um atributo ínsito a todo consu­
midor, deve ser atribuída nova leitura. Deste modo, emerge o conceito de hipervul­ne­
rabilidade nos contratos de consumo envolvendo pessoas com características específicas.
Vê-se, assim, a evolução de um paradigma liberal do contrato para um paradigma social
a fim de alcançar os diversos matizes da sociedade.
A doutrina bem como a jurisprudência abordam a hipervulnerabilidade do idoso e
da criança, através da aplicação do diálogo das fontes de modo a permitir a aplicação de
uma rede protetiva múltipla a essas pessoas, constando não apenas no Código de Defesa
do Consumidor, bem como no Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente
e outras leis normativas.
A autonomia conferida à pessoa com deficiência, em especial após o advento
da Convenção de Nova York e, em especial, a edição da Lei nº 13.146/15, coloca-a em
igualdade com os demais, para realizar quaisquer atos da vida civil. Sendo, assim, as
pessoas com deficiência são consumidores em potencial. A despeito de sua autonomia
legal e independência jurídica, o reconhecimento da deficiência, conforme seu marco
legal, comporta diversos graus de incidência, devendo ser reconhecida, a estes, a mesma
proteção já estendida a outros segmentos sociais, como o idoso e a criança.
Com o aumento do número de pessoas com deficiência no Brasil e o reconhecimento
de sua independência jurídica, o conceito tradicional de vulnerabilidade previsto pelo
Código de Defesa do Consumidor não é mais suficiente para emprestar a proteção
adequada e necessária. Faz-se imprescindível estender-lhes uma proteção agravada,
reconhecendo o pertinente diálogo entre instrumentos protetivos através de uma
aglutinação entre Código de Defesa do Consumidor, Lei Brasileira da Inclusão e outros
diplomas normativos protetivos.
O reconhecimento jurisprudencial da hipervulnerabilidade ao idoso, à criança e
ao adolescente deve ser estendido, pois, à pessoa com deficiência, avaliando-se casuisti­
camente, de modo a não excluir a autonomia e independência que a Lei nº 13.146/15
reconhece às PCD.
A avaliação da pessoa com deficiência não se faz através de critérios objetivos,
tal qual ocorre com o idoso ou a criança, sendo, por isso, mais difícil de ser realizado.
Contudo, a dificuldade em sua implementação de critérios não pode consistir em um
óbice ao necessário reconhecimento da hipervulnerabilidade às pessoas com deficiência
que necessitarem da ampliação protetiva que confiram o acesso aos bens humanos
comuns e à própria formação da personalidade.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
122 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

LEMOS, Rafael Diogo Diógenes; CARDOSO, Nardejane Martins. A hipervulnerabilidade da


pessoa com deficiência nas relações de consumo. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do
VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 111-123. E-book.
ISBN 978-85-450-0591-9.
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA:
O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE
POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES

LYGIA MARIA COPI

1 Introdução
Pretende-se analisar, neste trabalho, a temática referente ao exercício dos direitos
da personalidade por crianças e adolescentes. Muito embora a Constituição Federal e
o Estatuto da Criança e do Adolescente expressamente garantam o direito à liberdade
aos menores, o regime das incapacidades do Código Civil, ao instituir a representação
e a assistência como regra, afasta a possibilidade de exercício autônomo de atos da vida
civil por aqueles que não atingiram a maioridade – inclusive em questões referentes à
própria existência.
Sustentado na igualação entre sujeito de direito e pessoa humana e tendo por
escopo assegurar relações patrimoniais, o Código Civil, ao dispor o regime das incapa­
cidades, não se atentou às especificidades dos interesses extrapatrimoniais e se afastou
do indivíduo concreto dotado de desejos e necessidades. Moldada originalmente para
relações de cunho patrimonial, a categoria da capacidade de agir não se revela adequada
às situações jurídicas subjetivas existenciais. A afirmação é possível diante da diversidade
da lógica subjacente às situações jurídicas patrimoniais e existenciais: enquanto as
primeiras têm por fundamento a liberdade para atos proprietários, as segundas visam
ao livre desenvolvimento da personalidade humana.
A partir do fenômeno de constitucionalização do Direito Civil, o foco deixa de estar
no sujeito-proprietário abstrato e volta-se ao sujeito real, concreto e vulnerável – diante
do que são requeridas novas respostas do Direito. Assim, exige-se tutela aos interesses
das mulheres, dos idosos, das crianças e dos adolescentes, dos deficientes físicos,
dos portadores de doenças psiquiátricas, dos pacientes em estado de terminalidade.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
126 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Impõe-se a garantia de voz à totalidade das pessoas, resguardando seu direito ao livre
desenvolvimento como modo de contornar as próprias vulnerabilidades.
A infância e a adolescência são caracterizadas como processos de contínua evo­
lução, nos quais novas capacidades são adquiridas e novas vivências são experimentadas.
Mencionada evolução, no entanto, não ocorre em saltos ou em blocos, nem de modo
homogêneo. O ritmo das alterações é individualizado, o que faz com que menores da
mesma idade apresentem graus de desenvolvimento diversos – diferença essa relacio­
nada principalmente aos estímulos, ao ambiente, à educação e às experiências vividas.
Sendo o amadurecimento da criança e do adolescente um processo heterogêneo e
gradual, é possível que, antes mesmo de atingir a maioridade, o jovem se encontre apto
a tomar decisões autônomas referentes a questões que tocam sua própria existência.
Assim, emergem os seguintes questionamentos: devem os direitos personalíssimos dos
menores ser exercidos na totalidade dos casos por representantes/assistentes ou é possível
o exercício exclusivo pelas crianças e adolescentes? Quais condições os autorizariam
a proceder a escolhas existenciais? Qual é o procedimento necessário para verificar o
discernimento dos menores?
De modo a garantir o livre desenvolvimento da personalidade das crianças e
adolescentes, impõe-se a utilização do discernimento como critério para exercício das
situações jurídicas existenciais, afastando-se o critério etário – fictício e neutro – disposto
no Código Civil. Busca-se, assim, um resgate da pessoa concreta e vulnerável, dotada
de desejos, necessidades e especificidades.

2 A proteção jurídica da infância e da juventude


A conhecida afirmação “criança não tem que querer nada” retratava o entendi­
mento – consolidado até um passado recente – de que o desejo dos menores não merecia
consideração nos âmbitos familiar e social. Tendo em vista que o Direito se inclina a
acompanhar a realidade vigente na sociedade, esta noção se revelava compatível com a
abordagem tradicional do Direito de Família em relação às crianças e aos adolescentes.
Anteriormente ao cenário originado pela Constituição Federal de 1988, o trata­
mento conferido aos menores vinculava-se às características do Direito de Família
tradicional e, dentre elas, merece destaque o patriarcalismo. Nessa sistemática, enquanto
o homem desempenhava o papel de provedor, a mulher cuidava dos assuntos domésticos
e da educação dos filhos, cabendo ao marido administrar os principais aspectos da
entidade familiar. Os filhos, juntamente à mãe, encontravam-se em papel secundário.1
Sobre eles incidia o pátrio poder – considerado como direito subjetivo –, o qual era
exercido especialmente pelo pai, principal responsável por tomar decisões em nome
da prole. Em tal contexto, a tendência era que os filhos, inclusive os que estavam na
adolescência, contassem com pouca autonomia e baixo poder decisório.2

1
CARBONERA, Silvana Maria. Guarda de filhos na família constitucionalizada. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2000. p. 24-25. Em sentido semelhante, Ana Carla Harmatiuk Matos explica que “a mulher e os filhos, no
modelo clássico, encontram-se em posição hierarquicamente inferior. Edificada sobre os alicerces da crença em
uma ‘natural’ condição de superioridade masculina por razões de autoridade e força física, a história reservou
um espaço de inferioridade à mulher.” (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos
jurídicos e sociais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 09).
2
Diego Carvalho Machado, ao afirmar a ausência de autonomia na adolescência, aponta que o adolescente, neste
contexto, era “[...] o filho (legítimo, legitimado, legalmente reconhecido ou adotivo) submetido ao poderoso pai,
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
127

Com as alterações que tocaram à noção de família, responsáveis pela substituição


do matrimonialismo, do patriarcalismo e do transpessoalismo pela afetividade,
pela igualdade entre os membros e pela solidariedade, as crianças e os adolescentes
abandonaram o papel de coadjuvantes no cenário familiar.
Os menores, nas últimas décadas, foram reconhecidos como sujeitos vulneráveis
e, a partir dessa constatação, sobreveio a exigência de priorização do seu cuidado por
parte da família, do Estado e da sociedade como um todo. Nesse sentido, previu a
Constituição Federal, em seu artigo 227,3 a tutela prioritária das crianças e adolescentes,
reconhecidos como pessoas humanas dotadas de direitos fundamentais. Dentre eles,
cite-se o direito à dignidade e à liberdade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, decorrente da ratificação da
Convenção sobre os Direitos da Criança, em seu artigo 15, define que “a criança e o
adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas
em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais
garantidos na Constituição e nas leis”.4 No que atine à liberdade, dentre outras previsões,
garante aos menores o direito de opinião e de expressão.
No entanto, apesar de a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do
Adolescente expressamente garantirem o direito à liberdade aos menores, o regime das
incapacidades do Código Civil, ao instituir a representação e a assistência como regra,5
inviabiliza o exercício autônomo de atos da vida civil por aqueles que não atingiram a
maioridade – inclusive em questões referentes à própria existência.

3 A capacidade de agir, a lógica patrimonial subjacente e a


inadequação para os direitos existenciais
O Código atual, mantendo o intento da codificação anterior, definiu quem são os
indivíduos relativa e absolutamente incapazes, impossibilitando ou limitando seus atos
negociais com o fito de proteger-lhes o patrimônio, “uma vez que submetê-lo à simples
vontade do titular possibilitaria a ruína de seus próprios interesses”.6 O fundamento do

titular da pater potesta (pátrio poder), assumindo um status jurídico equivalente ao de coisa, ou seja, de objeto de
direito”. (MACHADO, Diego Carvalho. Capacidade de agir e pessoa humana: situações subjetivas existenciais sob a
ótica civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2013. p. 159). A despeito de não se concordar com a alegada coisificação
do adolescente, faz-se uso da passagem citada para demonstrar a posição secundária destinada ao jovem antes
da Constituição Federal de 1988.
3
Prevê o caput do artigo 227 da Constituição Federal que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”. (BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988).
4
BRASIL. Lei nº 8.069, de 16 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 1990.
5
A representação e a assistência são consideradas como institutos de proteção aos incapazes. A representação,
necessária em relação aos absolutamente incapazes, “consiste na substituição do incapaz por uma pessoa capaz,
na prática de um ato jurídico. O exercício dos direitos defere-se a um sujeito que possa agir por sua conta e
em nome do incapaz, o representante (...)”. A assistência, necessária, por sua vez, aos relativamente incapazes,
“consiste na intervenção conjunta do relativamente incapaz e do seu assistente na prática do ato jurídico”.
(AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 8. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 287).
6
RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.).
A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 14.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
128 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

regime das incapacidades, assim, é a tutela daqueles que, por presunção, não apresentam
condição para a administração de seus interesses de cunho patrimonial.
A partir da análise do regime das incapacidades disposto no ordenamento
civil pátrio, verifica-se que a categoria da capacidade, moldada originalmente para
relações de cunho patrimonial,7 não se revela adequada às situações jurídicas subjetivas
existenciais – circunscritas especialmente nos direitos da personalidade.8 Isso porque é
diversa a lógica subjacente às situações jurídicas patrimoniais e existenciais: enquanto
as primeiras têm por fundamento a liberdade para atos proprietários – comprar, vender,
doar, testar e herdar, em especial –, as segundas buscam garantir o livre desenvolvimento
da personalidade humana.
Ao se tratar de direitos existenciais, torna-se questionável a separação entre titu­
laridade e exercício, uma vez que é possível a violação à autonomia individual quando
o direito é exercido por terceiro.9 Os institutos de suprimento da capacidade no caso de
menores – representação e assistência –, a despeito do propósito protetivo, devem ser
repensados quando estão em pauta os direitos da personalidade.
Sobre esta temática, Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira ques­
tionam: “a presunção de incapacidade de um indivíduo menor de 16 anos, ou menor de
18 anos, é absoluta? Não poderiam estes indivíduos decidir sobre questões existenciais
que digam respeito a sua autobiografia, ou a presunção de incapacidade impede seja
construída sua pessoalidade?”.10

7
A noção de capacidade está intimamente vinculada às noções de sujeito de direito e de personalidade jurídica
e à categoria da relação jurídica. Na perspectiva clássica, sujeito de direito é o elemento subjetivo das relações
jurídicas, o qual tem aptidão para ser titular de direitos e deveres na ordem civil. Aludida aptidão é conceituada
como personalidade jurídica. A capacidade, por sua vez, é a medida de personalidade; é a averiguação de seu
quantum. Esta configuração de relação jurídica foi originada em vistas à circulação de patrimônio na sociedade.
Nesta perspectiva tradicional, a pessoa, circunscrita à noção de sujeito de direito, perfazia-se num mero conceito
despido de valor, construído sob o rigorismo científico, com o fito de permitir sua inclusão nos polos das relações
jurídicas, estas dotadas de conteúdo patrimonial. A capacidade, a seu turno, era a medida da aptidão do sujeito
para realizar atos jurídicos de cunho negocial. (RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no novo
Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 29.)
8
Os direitos existenciais são voltados à proteção da dignidade e não coadunam com a lógica dos direitos subjetivos
– voltados à tutela de interesses patrimoniais. Pietro Perlingieri, nessa esteira, esclarece que: “À matéria dos
direitos da personalidade não é possível a aplicação do direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’.
Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser [...]. Onde
o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial
natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do
direito e o ponto de referência objetivo da relação. [...] A personalidade é, portanto, não um direito, mas um
valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas
quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem
necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unitariedade do valor
envolvido” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução
Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p 155- 156). Preferível, assim, a adoção da categoria
da situação jurídica subjetiva, que abarca de modo mais amplo as formas do agir humano, compreendendo os
direitos subjetivos, os deveres jurídicos, os direitos potestativos, a sujeição, o ônus, o poder-dever, dentre outros.
(MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 19).
9
Consoante afirmam Joyceane B. de Menezes e Renata V. Multedo, “não parece razoável atribuir-se a alguém
a titularidade de uma situação existencial sem lhe conceder a capacidade de exercício”. MENEZES, Joyceane
Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela. A autonomia ético-existencial do adolescente nas decisões judiciais
sobre o próprio corpo e a heteronomia dos pais e do Estado no Brasil. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana
Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao
professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 317.
10
SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e
diretivas antecipadas de vontade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 169-170.
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
129

A aquisição da autonomia é um dos principais aspectos da infância e da adoles­


cência. Neste momento que antecede a vida adulta, o menor se desenvolve e constrói sua
personalidade e identidade, edificando suas bases espirituais, corporais e biopsíquicas
para que possa decidir sobre seu próprio destino.11 A obtenção de autonomia depende do
processo educacional ao qual o menor se encontra submetido. Enquanto são educados –
no ambiente familiar e na instituição de ensino, principalmente – a criança e o adolescente
gradualmente adquirem condições para tomar decisões.12
Duas são as principais características do processo de autonomização da criança
e do adolescente: a progressividade e a heterogeneidade. De um lado, a capacidade de
autodeterminação não é atingida como um todo quando atingida a maioridade, mas
obtida ao longo desse percurso. Por outro lado, o desenvolvimento da autonomia é
heterogêneo, o qual depende do ambiente, dos estímulos e das experiências vividas
por cada um. É possível, assim, que antes mesmo de atingir a maioridade, o jovem se
encontre apto a tomar decisões autônomas referentes a questões que tocam sua própria
existência – o que, no entanto, é vedado pelo regime de incapacidades.

4 Os direitos da personalidade, o regime de incapacidades e a


necessidade de uma lógica diversa
Na medida em que a vontade do menor ganha relevância no cenário social e jurí­
dico, as regras de capacidade dispostas na codificação se mostram inaptas à resolução
das situações concretas. De acordo com Rose Melo Vencelau Meireles, “o reconhecimento
da criança e do adolescente como sujeitos de direitos, na condição peculiar de pessoas
em desenvolvimento [...], submete o instituto da capacidade jurídica a um repensar”.13
Isso porque, enquanto nas situações jurídicas patrimoniais busca-se a segurança
jurídica – diante do que é estabelecida de forma pontual e artificial uma idade para
seu exercício autônomo –, nas situações jurídicas existenciais o escopo é o livre
desenvolvimento da personalidade. É especialmente no que atine ao exercício dos direitos
personalíssimos que o regime das incapacidades revela sua inadequação.
De acordo com Elimar Szaniawski, os direitos da personalidade se voltam à
proteção dos atributos da personalidade humana.14 Carlos Alberto da Mota Pinto, ao
tratar sobre os direitos personalíssimos no contexto português, afirma que estes “cons­
tituem um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da
esfera jurídica de cada pessoa”.15 Quando se fala em direitos da personalidade, assim,
trata-se do espaço de proteção jurídica à existência humana, incidindo prioritaria­mente

11
MACHADO, Diego Carvalho. Capacidade de agir e pessoa humana: situações subjetivas existenciais sob a ótica civil-
constitucional. Curitiba: Juruá, 2013. p. 167.
12
Nas palavras de Diego Carvalho Machado, “se percebe com nitidez que a liberdade ou autodeterminação
do menor toma forma de modo gradual, à medida que é educado, sendo que o adolescente com certeza já é
sujeito portador de considerável maturidade, isto é, espaço de autogoverno (ainda em edificação), respeitadas,
evidentemente, as particularidades da concreta formação do discernimento em cada indivíduo” (Ibidem, p. 168).
13
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 132-133.
14
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005. p. 19.
15
PINTO, Carlos Alberto Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 209.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
130 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

sobre a vida, a saúde, a integridade física, a honra, a liberdade psicofísica, o nome, a


imagem e a intimidade da pessoa.16
Não restam dúvidas, deste modo, de que os direitos da personalidade dizem res­
peito à esfera de intimidade e de autorrealização do indivíduo. Nesse sentido, questiona-
se se o exercício dos direitos personalíssimos dos menores deve, na totalidade dos casos,
ser realizado por seus pais ou responsáveis, através dos institutos de representação e
assistência, ou se deve ser garantido às crianças e aos adolescentes âmbito de autonomia
para decisões existenciais.
Os doutrinadores que se voltam a essa questão tendem a posicionamentos
polarizados: de um lado, parcela da doutrina defende que o exercício dos direitos da
personalidade dos menores pelos pais ou responsáveis é uma garantia ao melhor interesse
das crianças e dos adolescentes; de outro, são diversos os teóricos que afirmam que os
direitos personalíssimos devem ser exercidos pelo próprio titular, mesmo quando este
não tenha atingido a maioridade.
Os autores que adotam posicionamento tradicional tendem a defender que os
institutos de representação e de assistência, relacionados ao poder familiar, se destinam
à proteção do indivíduo e que, em razão disso, devem ser igualmente aplicados aos
direitos da personalidade. É o caso de Rivera, para quem “o consentimento para os
atos de disposição dos direitos da personalidade deve ser prestado pelo representante
legal do menor”.17 Em sentido semelhante, Capelo de Sousa afirma que as incapacidades
são instituídas em vistas da proteção dos interesses do menor e para tutelar a sua
personalidade.18
Em outra perspectiva, Adriana Espíndola Corrêa, a partir da compreensão de
que a previsão legislativa das incapacidades visa a tutelar primordialmente a segurança
jurídica, questiona se o sistema do Código Civil é aplicável quando estão em discussão
direitos da personalidade – para os quais a segurança deixa de ser valor relevante.
Segundo a autora, as matérias de cunho personalíssimo podem “ser decididas apenas
pela própria pessoa, excluindo-se, portanto, a possibilidade de decisão por parte do
representante ou assistente”.19
Para Rose Melo Vencelau, “nas situações existenciais, a pessoa não tem apenas
um vínculo de titularidade, como ocorre com as demais situações jurídicas subjetivas.
A pessoa é o próprio interesse”.20 Tais situações jurídicas se dirigem à proteção do ser,
em que não há separação entre sujeito e objeto. A partir disso, depreende-se do ensina­
mento da autora a impossibilidade de pais e representantes exercerem os direitos da
personalidade pelos menores.

16
PINTO, Carlos Alberto Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 209.
17
RIVERA apud MARX NETO, Edgard Audomar. Exercício dos direitos da personalidade por crianças e
adolescentes: entre o exercício exclusivo e regime de incapacidade. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 13,
n. 100, p. 363, jul./set. 2011.
18
CAPELO DE SOUSA apud MARX NETO, Edgard Audomar. Exercício dos direitos da personalidade por crianças
e adolescentes: entre o exercício exclusivo e regime de incapacidade. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 13,
n. 100, p. 363, jul./set. 2011.
19
CORRÊA, Adriana Espíndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações jurídicas. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010. p. 119.
20
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 34.
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
131

De acordo com Perlingieri, autor que adota posicionamento tendente ao volunta­


rismo, há “incongruência em separar a titularidade da possibilidade de exercício do
direito, quando estão em questão interesses existenciais, pois estes são concebidos com
a finalidade de promover o próprio desenvolvimento da personalidade humana”.21 Para
o teórico, o exercício de situações subjetivas existenciais, por se referir à esfera mais
íntima do indivíduo, não poderia se concretizar mediante assistência ou representação.
Segundo o doutrinador italiano, as restrições ao exercício dos direitos existenciais
pelos considerados incapazes deve ser exceção. No seguinte excerto – referente aos
deficientes mentais, porém extensível aos menores – fica claro seu posicionamento:

É preciso [...] privilegiar sempre que for possível as escolhas de vida que o deficiente
psíquico é capaz, concretamente, de exprimir, ou em relação às quais manifesta notável
propensão. [...] Quando concretas, possíveis, mesmo se residuais, faculdades intelectivas
e afetivas podem ser realizadas de maneira a contribuir para o desenvolvimento da
personalidade, é necessário que sejam garantidos a titularidade e o exercício de todas
aquelas expressões de vida que, encontrando fundamento no status personae e no status
civitatis, sejam compatíveis com a efetiva situação psicofísica do sujeito.22

De acordo com essa perspectiva, ao se delegar o poder de escolha relativo a


situações jurídicas existenciais a terceiros, essa medida representaria violação à dignidade
humana e à liberdade da pessoa.23 É contrário à lógica das situações jurídicas existenciais
que seu exercício ocorra mediante representação ou assistência em decorrência do não
atin­gimento da plena capacidade pelo titular. Isso porque, em tais atos, a referência é a
própria pessoa portadora do direito, bem como seus interesses e escolhas existenciais.24

5 O discernimento como fundamento do exercício dos direitos da


personalidade por crianças e adolescentes
O posicionamento dos autores os quais afirmam que os direitos da personali­dade
devem ser exercidos pelo próprio titular mostra-se de grande relevância, uma vez que
revela a incoerência do regime das incapacidades tal como disposto. No entanto, não
é factível a afirmação de que na totalidade dos casos deve ser possibilitado às crianças
e aos adolescentes o exercício dos seus direitos da personalidade – tendo em vista, em
diversas situações, a ausência de maturidade e de compreensão mínimas para a reali­
zação de escolhas existenciais.
O fundamento para o exercício dos direitos personalíssimos por menores deve
ser o discernimento – o qual permite a conciliação entre o exercício do poder familiar
dos pais e a autonomia das crianças e adolescentes, uma vez que se baseia no grau de
amadurecimento do menor.

21
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução Maria Cristina
de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 122.
22
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 164-165.
23
RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.).
A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
p. 25-26.
24
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 126.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
132 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Desse modo, impõe-se seja aferida a concreta condição de discernimento do


titular a fim de se averiguar se é eficaz a manifestação de vontade proferida por aquele
que, de acordo com a legislação, é incapaz para os atos da vida civil.25 Nesse sentido é o
conteúdo do Enunciado nº 138 aprovado na III Jornada de Direito Civil, que interpretou
o artigo 3º do Código Civil do seguinte modo:

Art. 3º: A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º, é
juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes,
desde que demonstrem discernimento bastante para tanto.26

A Convenção sobre os Direitos da Criança – da qual o Brasil é signatário – men­


ciona em seu artigo 5º a evolução da capacidade do menor, inserindo a ideia de envolving
capacities.27 Aludida noção aponta para o desenvolvimento progressivo e heterogêneo
do menor, com respeito às diferenças ambientes, culturais e educacionais.28
Evidencia-se, assim, que mesmo antes de atingida a maioridade pode o menor
apresentar plenas condições de discernir e de se autodeterminar. Certo é, no entanto, que
tal constatação somente pode ser operada caso a caso, ou seja, deve ser realizada a partir
da análise concreta da criança e do adolescente, de acordo com critérios estabelecidos e
por meio de procedimento específico – tendo em vista a exigência de segurança jurídica.
A experiência estrangeira – tanto legislativa quanto doutrinária – oferece subsídios para
o problema ora estudado.
Na Inglaterra vige desde 2005 o Mental Capacity Act, segundo o qual ninguém
será considerado incapaz a menos que se verifique a ausência de capacidade.29 Define o
documento que a incapacidade não é decorrência direta da idade,30 mas estabelecida em
razão da impossibilidade de compreensão acerca das informações necessárias à decisão
e pela inviabilidade de comunicação da escolha.31
Na Argentina, em virtude do Código Civil que entrou em vigor em 1º de agosto
de 2015, houve importante alteração do regime de incapacidades. No que toca à temática
deste estudo, a legislação civil argentina é destacável em dois principais aspectos:

25
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 129.
26
CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS. III Jornada de Direito Civil. Ruy Rosado (Org.). Brasília, DF: CJF, 2004.
p. 507. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/215>. Acesso em: 15 maio 2018.
27
Artigo 5º: “Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, quando for o
caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme determinem os costumes locais dos tutores
ou de outras pessoas legalmente responsáveis por proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e
acordes com a evolução de sua capacidade, no exercício dos direitos reconhecidos na presente Convenção”
(BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança.
Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 nov. 1990).
28
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 172.
29
Define o Mental Capacity Act, em sua seção 1, que: “(2) A person must be assumed to have capacity unless it
is established that he lacks capacity.” (REINO UNIDO. APA 6th: Department of Health. Mental Capacity Act.
Londres: HMSO, 2005. Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2005/9/contents>. Acesso em: 13
maio 2018).
30
Na seção 2, o documento estabelece que: “(3) A lack of capacity cannot be established merely by reference to – (a)
a person’s age or appearance [...]” (Ibidem).
31
Na seção 3, define quando alguém será considerado como incapaz para a tomada de uma decisão: “(1) For the
purposes of section 2, a person is unable to make a decision for himself if he is unable – (a) to understand the
information relevant to the decision, (b) to retain that information, (c) to use or weigh that information as part of
the process of making the decision, or (d) to communicate his decision (whether by talking, using sign language
or any other means)” (Ibidem).
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
133

primeiro, por presumir que o adolescente entre treze e dezesseis anos tem aptidão
para decidir sobre tratamentos que não são invasivos nem comprometem seu estado
de saúde ou provocam risco grave à vida e à sua integridade; segundo, por definir que
a partir dos dezesseis anos o adolescente é considerado como um adulto para tomar
decisões referentes ao cuidado de seu corpo. O Código Civil Argentino, muito embora
reconheça expressamente a importância de o próprio titular exercer direitos referentes
ao próprio corpo e trabalhe com um conceito maleável (“grado de madurez suficiente”),
não apresenta parâmetros para a aferição do grau de maturidade dos menores – o que
provavelmente ficará a cargo da doutrina e dos tribunais.
No âmbito doutrinário português, merece destaque a teoria da capacidade para
consentir, que representa “terceira esfera do gênero ‘capacidade’, atuando, portanto
como um círculo distinto da capacidade jurídica, ou de gozo e da capacidade negocial,
ou de exercício”.32 Conforme explica Dias Pereira, a capacidade para consentir se trata de
um “ramo paralelo ao da capacidade negocial, que parte do mesmo tronco, que partilha
algumas preocupações, mas com finalidades distintas, com um regime que deverá ser
diverso e com sistemas de representação diferentes”.33
A utilização de aludida categoria, proposta especificamente para atos existen­ciais
em matéria de saúde, afasta-se da taxatividade das definições legais acerca da capaci­dade
e impõe avaliar no caso concreto, por meio de equipe multidisciplinar, se o paciente
conta com o discernimento necessário para aceitar ou afastar determinada terapia.
É verificado, nesse procedimento, o grau de maturidade do enfermo e a necessidade e
a serie­dade da intervenção.34
Remetendo-se à construção do doutrinador germânico Amelung, Pereira Dias
expõe as exigências impostas para que se reconheça a capacidade para consentir: a
capacidade de decidir acerca de valores, a capacidade de entender os fatos, a capacidade
de compreensão acerca das alternativas e a capacidade de se autodeterminar a partir
das informações que foram apresentadas ao paciente.35 Ausente algum desses elementos,
não pode a pessoa ser considerada capaz de consentir. Embora específica para questões
de saúde, a teoria da capacidade para consentir permite, ao menos de forma introdutória,
a compreensão dos requisitos para a averiguação do discernimento.
O discernimento – critério proposto para o exercício dos direitos da personalidade
por menores – significa a viabilidade da pessoa de fazer escolhas com base na análise
dos fatos, das consequências e das circunstâncias. De acordo com Thaís Sêco, devem ser
analisados os efeitos da decisão que se pretende realizar – se reversíveis ou irreversíveis –,

32
MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres tornadas incapazes pelo uso
de drogas: notas para uma aproximação entre a técnica jurídica e a reflexão bioética In: ______; MÖLLER, Letícia
Ludwig (Org.). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 324.
33
PEREIRA, André Gonçalo Dias. A Capacidade para Consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da
Reforma de 1975: A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.
p. 203-204.
34
CORRÊA, Adriana Espíndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações jurídicas. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010. p. 120.
35
PEREIRA, André Gonçalo Dias. A Capacidade para Consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da
Reforma de 1975: A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.
p. 209-213.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
134 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

bem como considerar a conveniência e a adequação do adiamento da decisão para


depois da maioridade.36
Não restam dúvidas, assim, de que se trata de fator heterogêneo, o qual somente
pode ser analisado concretamente, a partir das condições funcionais e conjunturais
específicas da pessoa.37 Análises particularistas das crianças e adolescentes tendem a se
revelar vantajosas, ainda que complexas. Isso porque definir que a tomada de decisões
acerca dos direitos personalíssimos será sempre heterônoma, mesmo quando o menor
apresenta discernimento suficiente, tendo por base unicamente os critérios ficcionais da
lei, obstaculiza a promoção do livre desenvolvimento da personalidade.

6 Do cuidado à emancipação: o poder familiar e seus novos contornos


O exercício de direitos da personalidade por crianças e adolescentes tensiona
especialmente com o exercício do poder familiar. Isso porque, “de um lado, tem-se o
direito-dever dos pais de conduzir a criação e a educação dos filhos; de outro lado, estão
as crianças e os adolescentes a quem são garantidos os direitos de liberdade, respeito e
dignidade como pessoas em processo de desenvolvimento”.38 Cumpre frisar, no entanto,
que o instituto do poder familiar, em seus novos contornos, é funcionalizado ao melhor
interesse e à emancipação dos filhos.39
A promulgação da Constituição Federal em 1988 é o marco da passagem da con­
cepção institucional de família para a concepção eudemonista40 e também da alteração
quanto à tutela das crianças e dos adolescentes. No que se refere ao Direito de Família,
a Constituição inaugurou uma nova concepção de entidade familiar, direcionada à
realização pessoal dos indivíduos que a compõem.41

36
SÊCO apud MENEZES, Joyceane Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela. A autonomia ético-existencial do
adolescente nas decisões judiciais sobre o próprio corpo e a heteronomia dos pais e do Estado no Brasil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito
e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 320.
37
MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres tornadas incapazes pelo uso
de drogas: notas para uma aproximação entre a técnica jurídica e a reflexão bioética In: ______; MÖLLER, Letícia
Ludwig (Org.). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 320.
38
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito
e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 45.
39
Nesse sentido, afirmam Joyceane B. de Menezes e Renata V. Multedo: “Nesse contexto é que se confia aos
pais a tarefa de determinar aquilo que constitui o melhor para seus filhos. Exercentes de um poder familiar
funcionalizado, pautado na responsabilidade e no cuidado, pressupõe-se que saberão identificar o que constitui
o melhor interesse, o ‘bem’ para os seus filhos”. MENEZES, Joyceane Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela.
A autonomia ético-existencial do adolescente nas decisões judiciais sobre o próprio corpo e a heteronomia
dos pais e do Estado no Brasil. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor
(Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 318.
40
Carmen Sílvia Maurício de Lacerda resume tal passagem: “A família, extrapolando os limites de um modelo
único, matrimonializado, desigual e hierarquizado, converte-se em um local de realização das pessoas que a
integram, não importando a origem ou a forma de constituição, na medida em que o objetivo final da proteção
estatal deverá incidir na pessoa humana e no desenvolvimento de sua personalidade” (LACERDA, Carmen
Sílvia Maurício de. Famílias monoparentais: conceito. composição. responsabilidade. In: ALBUQUERQUE, F. S.;
EHRHART JR., M.; OLIVEIRA, C. A. de. Família no Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz
Netto Lôbo. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 169).
41
De acordo com Pietro Perlingieri, em análise acerca do Direito de Família italiano, a entidade familiar é protegida
pela Constituição “não como portadora de um interesse superior e superindividual, mas, sim, em função da
realização das exigências humanas, como lugar onde se desenvolve a pessoa” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
135

Esse novo paradigma altera a compreensão anterior acerca da posição assumida


pelas crianças e adolescentes. Ao ser afastada a superioridade do pai/marido, o menor
que está na faixa dos 12 aos 18 anos é reconhecido como sujeito de igual importância
no cenário familiar. Na realidade, é possível, inclusive, verificar uma inversão de priori­
dades: enquanto antes o pátrio poder existia em prol do genitor, hoje o poder familiar
se justifica para tutelar os interesses das crianças e dos adolescentes.42
Se antes o pátrio poder era reconhecido como direito subjetivo, no contexto de
igualdade e de democracia na comunidade familiar o papel desenvolvido pelos pais em
relação aos filhos recebe novos contornos. Nesse sentido, o que se verifica é a substituição
do poder dos pais sobre os filhos (pátrio poder) pela autoridade natural dos genitores
em relação a eles (autoridade parental).43 Pode-se afirmar, com isso, que o exercício do
poder familiar deve ser realizado com vistas à promoção dos interesses da criança e do
adolescente e à obtenção de autonomia por estes. Consoante afirma Perlingieri,

O interesse do menor identifica-se também com a obtenção de uma autonomia pessoal e


de juízo e pode concretizar-se também na possibilidade de exprimir escolhas e propostas
alternativas que possam ter relação com os mais diversos setores, dos interesses culturais
àqueles políticos e afetivos, desde que seja salvaguardada a sua integridade psicofísica e
o global crescimento da sua personalidade.44

A prioridade se torna, então, o atendimento dos interesses dos menores, incumbindo


aos pais educar, assistir, promover a personalidade e edificar a autonomia dos menores
em vistas a contornar suas vulnerabilidades e assumir responsabilidades.45 Neste mesmo
sentido, adotando uma perspectiva emancipatória, o Código Civil Argentino define,
dentre os princípios que regem a autoridade parental, a autonomia progressiva do filho
conforme suas características psicofísicas, aptidões e desenvolvimento, e o direito dos
menores de serem ouvidos e de terem sua opinião considerada segundo a idade e o
grau de maturidade.
Deste modo, é possível afirmar que “o papel da autoridade parental transita do
cuidado à emancipação”, diante do que a heteronomia dos pais deve paulatinamente
ceder em prol da promoção da autonomia responsável dos filhos.46

7 Considerações finais
Foi defendido, neste estudo, que o regime das incapacidades – abstrato e patri­
mo­nialista – não se revela adequado às situações jurídicas existenciais, as quais, na

Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007. p. 243).
42
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 75.
43
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 297.
44
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução Maria Cristina
de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 260.
45
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 178.
46
MENEZES, Joyceane Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela. A autonomia ético-existencial do adolescente nas
decisões judiciais sobre o próprio corpo e a heteronomia dos pais e do Estado no Brasil. In: TEPEDINO, Gustavo;
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em
homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 318.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
136 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

sistemática codificada, somente podem ser exercidas livremente por indivíduos maiores.
Isso porque, consoante sustentado, delegar a terceiros decisões referentes a aspectos
existenciais do indivíduo permite a perpetração de violações à dignidade e à autonomia.
Com isso, e tendo em vista que o amadurecimento de crianças e adolescentes
é heterogêneo e gradual, é defensável o abandono do critério etário estabelecido no
Código Civil, quando estão em causa questões que envolvem o desenvolvimento da
personalidade do sujeito, e a adoção do critério do discernimento. É apenas na análise
do caso concreto, a partir das condições funcionais e conjunturais específicas da pessoa,
que se torna possível aferir a capacidade de discernir do menor.
A adoção do discernimento como critério para o exercício dos direitos da
personalidade por crianças e adolescentes é compatível com a noção constitucionalizada
de poder familiar, segundo a qual cabe aos pais, mais que impor decisões heterônomas
aos filhos, estimulá-los à autonomia responsável de acordo com o seu grau de
amadurecimento.
Ao se questionar o regime das incapacidades e suas abstrações, questiona-se, em
verdade, o tratamento conferido pelo ordenamento jurídico à pessoa. Consoante afirma
Luiz Edson Fachin, “a incapacidade, ao contrário do que possa parecer, não é apenas
um conceito técnico, mas também ideológico, que tem um valor situado no momento
anterior à definição jurídica”.47 Simbolicamente, a capacidade de fato representa uma
chave que permite ao indivíduo o acesso à autonomia e à autorrealização. Na égide
da subordinação do Direito Civil aos valores constitucionais, o porvir requer que cada
vez mais indivíduos se tornem possuidores desta chave, de modo a efetivar um regime
verdadeiramente inclusivista.48

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47
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 200.
48
Um importante passo em direção a um regime inclusivista foi dado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei
nº 13.146 de 2015, ao prever, em seu artigo 6º que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”.
A despeito das críticas dirigidas à novel legislação, o Estatuto revela sua importância afastar a premissa de
que o portador de deficiência necessariamente não apresenta discernimento, tornando-se necessária a análise
particular da situação para que se defina a medida da limitação da pessoa.
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
137

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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
138 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

COPI, Lygia Maria. Entre representação e autonomia: o exercício de direitos da personalidade por crianças
e adolescentes. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito
Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 125-138. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS
DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA
DO DIREITO AO ESQUECIMENTO

CÍCERO DANTAS BISNETO

1 Introdução
Vivenciamos a era da informação.1 Tempo em que as notícias são disseminadas
de forma fluida e célere, reputações são destruídas ao toque do teclado, ao passo que
personagens são alçadas à condição de estrelato instantâneo, adquirindo os conteúdos e
dados transmitidos/armazenados no mundo virtual a fugacidade típica de uma sociedade
marcadamente superficial e ávida por novidades, ainda que desprovidas de veracidade
ou sustentáculo no mundo dos fatos.
Paradoxalmente, a efemeridade das informações repassadas, consumidas de forma
descartável,2 convive, em razão das novas tecnologias empregadas, com a eternização
dos conteúdos gravados na rede, permanecendo compilados, à disposição de todos, por
lapso temporal indefinido.3
A privacidade,4 antes espaço sagrado do ser, cede espaço à divulgação da vida
íntima de modo indiscriminado, tornando tênue, quiçá inexistente, a divisão outrora

1
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque; NUNES, Danyelle Rodrigues de Melo; PORTO, Uly de
Carvalho Rocha. Direito ao esquecimento segundo o STJ e sua incompatibilidade com o sistema constitucional
brasileiro.  Revista de informação legislativa: RIL, v. 54, n. 213, p. 63-80, jan./mar. 2017. Disponível em: <http://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p63>. Acesso em: 25 jul. 2017.
2
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 183.
3
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 170.
4
O tema da privacidade, enquanto direito, foi tratado originalmente no trabalho intitulado Right to Privacy,
publicado na Hard Law Review, de autoria de Samuel Warren e Louis Brandeis. Nesta obra, os autores entendem
se tratar a privacidade de uma necessidade humana: “The intensity and complexity of life, attendant upon advancing
civilization, have rendered necessary some retreat from the world, and man, under the refining influence of culture, has
become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have become more essential to the individual; but modern
enterprise and invention have, through invasions upon his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater
than could be inflicted by mere bodily injury”. (WARREN S. D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard
Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 196).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
140 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

estanque entre espaço público e esfera privada.5 Tal como no romance de George Orwell,
1984, os recintos mais recônditos da pessoa humana são auscultados, relativizando-se a
proteção da intimidade enquanto valor jurídico, admitindo-se o tráfego econômico de
informações e imagens pessoais.6
A difusão e o armazenamento ilimitados de dados, com seus gravosos corolários
no domínio particular do indivíduo, trouxeram a lume a necessidade de se repensar a
teoria e proteção de clássicos direitos da personalidade, ante a nova realidade que exsurge
do mundo virtual, dando novos contornos jurídicos ao instituto da memória, e tornando
imperioso o aprofundamento de temas como o direito ao esquecimento, figura ainda
controvertida no âmbito doutrinário e praticamente ausente dos anais jurisprudenciais.
Interessante exemplo, que bem caracteriza os novos desafios relacionados ao
tratamento conferido ao armazenamento de dados na rede social de computadores,
é veiculado por Adam Liptak, no The New York Times. Relata o escritor que Andrew
Feldmar, um psicoterapeuta de Vancouver, no verão de 2006, tentou cruzar a linha
entre Canadá e EUA, quando um guarda de fronteira, ao utilizar um sistema de busca
na internet, verificou que Feldmar havia afirmado, num jornal interdisciplinar, ter feito
uso de LSD nos anos 1960. Mesmo já tendo atravessado o território norte-americano mais
de cem vezes e não ostentando qualquer condenação criminal, o terapeuta foi proibido
de ingressar em solo americano, estando hoje impedido de entrar nos Estados Unidos,
onde atuava ativamente no campo profissional e onde os seus dois filhos residem.7
Destarte, o desenvolvimento de revolucionárias tecnologias, permitindo o acesso
instantâneo a informações e conteúdos remotos, bem como o armazenamento ilimitado,
no tempo e no espaço, de dados, aliado à constatação da quase inexistência de legislação
sobre o tema, tem fomentado o debate acerca da necessidade de proteção jurídica de um
fenômeno outrora cingido exclusivamente à seara biológica: o esquecimento.8
O direito da pessoa humana de ter o seu passado ou fatos a ela relacionados não
conhecidos tem povoado hodiernamente as discussões jurídicas travadas nos grandes
centros mundiais, tendo adquirido especial relevância no seio nacional em razão de
ter sido a matéria enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do
Resp 1.334.097/RJ e do Resp 1.335.135/RJ, ambos relatados pelo ministro Luis Felipe
Salomão. Outrossim, o tema chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso
Extraordinário 1010606, com repercussão geral reconhecida, tendo sido realizada

5
COSTA JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p. 16-17.
6
DOTTI, René Ariel. A liberdade e o direito à intimidade. R. Inf. Legisl. Brasília, ano 17 n. 66, abr./jun. 1980.
Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181214/000369546.pdf?sequence=3>.
Acesso em: 7 jul. 2017.
7
LIPTAK, Adam. The nation’s borders, now guarded by the net. The New York Times [online], New York, May 2007.
Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/05/14/us/14bar.html>. Acesso em: 6 jul. 2017.
8
Discorrendo sobre o tema, sustenta Bernardo de Azevedo e Souza: “A memória é, em suma, um fenômeno
biológico, fundamental e extremamente complexo, que pode ser analisado sob diferentes vieses (biológico,
neurológico, social, psicológico). A despeito de todos os avanços das neurociências nos últimos anos, após o
término da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, continua a ser um dos grandes enigmas da humanidade. Dada
a complexidade da memória, destaca-se que suas quatro etapas (aquisição, formação, conservação e evocação
das informações) jamais se sustentariam se as informações acumulassem ao longo do tempo. É necessário que
o esquecimento exista para termos uma vida útil e para que haja memória funcional. Daí por que não somos
somente aquilo que lembramos: somos também aquilo que esquecemos”. (SOUZA, Bernardo de Azevedo e.
A tutela jurídica da memória individual na sociedade da informação: compreendendo o direito ao esquecimento.
Disponível em: <https://pucrs.academia.edu/BernardodeAzevedoeSouza>. Acesso em: 06 jul. 2017).
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
141

audiência pública sobre a temática no dia 12 de junho do corrente ano, presidida pelo
ministro Dias Toffoli.
O tema tratado tem especial relevância na seara da responsabilidade civil, gerando
inúmeros questionamentos acerca da matéria. Deve-se, em primeiro lugar, enfrentar, por
meio da análise da origem do instituto no direito alienígena, o debate sobre a existência,
no âmbito do Direito Pátrio, de um direito ao esquecimento, evoluindo, posteriormente,
em caso de resposta positiva, para a fixação de seus contornos jurídicos e limites, de
acordo com as peculiaridades de nosso sistema jurídico, afigurando-se imprescindível
ainda o estudo das consequências em razão do descumprimento e as formas de tutela
da novel figura jurídica.
Diversas, portanto, são as questões que pululam da temática apresentada, de
modo que este trabalho tem o escopo de abordar as principais e recentes discussões, com
o desiderato de investigar a aplicabilidade e a abrangência do direito ao esquecimento
no campo da responsabilidade civil, tracejando os limites da incidência do dever de
indenizar, seja na forma pecuniária ou por meio de reparação específica, em caso de
agressão a este novel direito da personalidade. Com o presente estudo, busca-se muito
mais levantar os fundamentais questionamentos que se colocam em torno da matéria,
sem a pretensão de encontrar respostas definitivas ou novidadeiras, visto que as soluções
certamente advirão do desenvolvimento do tema ao perpassar do tempo.

2 Origens do direito ao esquecimento e aplicação do instituto no


Direito Comparado
Atribui-se o surgimento do direito ao esquecimento à discussão travada no
conhecido caso Red Kimono. Como nos ensina o professor René Ariel Dotti,9 Gabrielle
Darley, prostituta durante alguns anos, foi acusada de homicídio e absolvida nos idos
de 1918. Após o fato, casou-se com Bernard Melvin, passando, a partir de então, a
conduzir sua vida de forma honrada e reta, merecendo o bom conceito dos amigos do
casal e da comunidade em que vivia. Ocorre que, em 1925, o produtor de cinema Doroty
Davenport Reid lançou a obra cinematográfica cunhada de Red Kimono, que relatava a
história de Gabrielle e seu histórico de prostituição, além de fazer menção ao processo
criminal enfrentado pela mesma. A publicidade negativa proporcionada pelo filme fez o
seu marido Melvin ingressar com uma demanda judicial perante a Corte da Califórnia,
pleiteando reparação por danos, tendo o órgão jurisdicional, embora sem declarar
expressamente, reconhecido a existência de um direito ao esquecimento.
Outro precedente de elevada repercussão, lembrado pelo professor paranaense,10 e
também citado no voto do Ministro Relator Luis Felipe Salomão, no Resp. 1.335.153/RJ, e
que em muito contribuiu para o desenvolvimento da ideia de um direito ao esquecimento,
deu-se em dezembro de 1950, ocasião em que a revista France Dimanche publicou três
artigos contendo memórias inéditas de Marlene Dietrich. Já que não havia autorização

9
DOTTI, René Ariel Dotti. É possível defender um direito ao esquecimento? Gazeta do Povo. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/justica/colunistas/rene-ariel-dotti/e-possivel-defender-um-direito-ao-
esquecimento-i-238ckdlqgpguwr2djwoy59gbm>. Acesso em: 06 jul. 2017.
10
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
142 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

para os escritos, a atriz ingressou com uma demanda judicial no Tribunal Civil do Sena,
tendo este, em 30 de junho de 1952, condenado a editora a pagar nada menos que 50 mil
francos de indenização, como forma de reparar os danos sofridos. Após a interposição
de recurso de apelação por ambas as partes, o Tribunal de Apelação de Paris elevou o
quantum arbitrado para o patamar de R$ 1,2 milhão de francos, cerca de vinte e quatro
vezes a soma anterior.11
Não há falar ainda em direito ao esquecimento sem se recordar obrigatoriamente
do badalado caso Lebach, ocorrido em território alemão, no ano de 1969. O nome do
famoso case originou-se do local onde decorreram os fatos, um pequeno vilarejo situado
na República Federativa da Alemanha. Neste, um pequeno grupo de quatro soldados, que
guardava um depósito de arma e munições, restou vítima, durante o sono, de violenta
chacina, tendo sido condenados à prisão perpétua dois dos acusados, sendo que um
terceiro, mero partícipe, recebeu a pena de seis anos de reclusão.12
Dois anos após os fatos, uma emissora de televisão alemã (Zweites Deutsches
Fernsehen) produziu documentário (Der Soldatenmord von Lebach), escrito por Jürgen
Neven-du Mont, Rainer Söhnlein e Karl Schütz, que retrataria o delito, mediante
reconstituição dramatizada por atores contratados, incluindo, entretanto, fotos reais
e nomes de todos os condenados, mencionando inclusive o suposto envolvimento
homossexual existente entre eles.13 A produção artística seria exibida numa noite de sexta-
feira, poucos dias antes do terceiro condenado deixar a prisão, o que o levou, irresignado
com o fato, a promover demanda judicial para impedir a divulgação do programa, não
tendo o pleito sido acolhido na instância ordinária, visto terem o Tribunal Distrital e
o Tribunal Regional Superior entendido que havia interesse público na informação e
que as liberdades de expressão e de comunicação deveriam ser protegidas, resultando
em interposição de reclamação constitucional ao Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha.14
O Tribunal alemão, ao se debruçar sobre o inédito caso, entendeu que, embora
em regra deva prevalecer o interesse público da informação, a “ponderação, em função
do transcurso do tempo desde os fatos (o julgamento é de junho de 1973), deve levar
em conta que o interesse público não é mais atual e acaba cedendo em face do di­rei­
to à ressocialização”.15 Deste modo, de acordo com o decisium lavrado pelo Tribunal

11
No histórico julgamento, assentou, com propriedade, a corte parisiense que “as recordações da vida privada
de cada indivíduo pertencem ao seu patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem
intenção malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a vida”. O direito
ao esquecimento, como uma das importantes manifestações da vida privada, estava então consagrado
definitivamente pela jurisprudência, após uma lenta evolução que teve, por marco inicial, a frase lapidar
pronunciada pelo advogado Pinard em 1858: “O homem célebre, senhores, tem o direito a morrer em paz”.
(DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92).
12
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 7 jul. 2017.
13
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Direito ao esquecimento na perspectiva do STJ. Revista Consultor Jurídico.
<http://www.conjur.com.br/2013-dez-19/direito-comparado-direito-esquecimento-perspectiva-stj>. Acesso em:
7 jul. 2017.
14
ROCHA, Maria Vital da; LYRA, Laís Gomes Monte de. Direito ao esquecimento ou direito à privacidade? Disponível
em: <http://www.adfas.org.br/admin/upload/conteudo/27092016%20LaisLyra.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2017.
15
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 07 jul. 2017.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
143

Constitucional da Alemanha,16 ainda que se sustente que, numa primeira análise,


prevalece o interesse público na divulgação de fatos, as intervenções subsequentes nos
direitos da personalidade não podem mais ser toleradas, ante a impossibilidade de se
aplicar nova sanção social aos autores do crime.17
Ocorre que, mesmo após o posicionamento do TCF, o caso Lebach foi novamente
alvo de debate na corte alemã. Neste novo capítulo da trama judicial, a rede de televisão
SAT 1 produziu uma série cujo tema principal era uma variedade de delitos que entraram
para a história, dentre eles, o latrocínio em Lebach. Neste caso, entretanto, diferentemente
do quanto ocorrido no primeiro case, a emissora televisiva não fez uso dos nomes ver­
dadeiros dos envolvidos, nem mesmo reproduziu imagens ou informações privadas, o
que não evitou a propositura de nova demanda com o escopo de evitar a transmissão
do documentário.18
Neste caso, entretanto, o TCF sustentou que o direito geral de personalidade “não
assegura aos autores de crimes um direito subjetivo no sentido de que a opinião pública
não possa mais ser confrontada com os fatos, direito que também não poderia – segundo
o tribunal – ser extraído do julgamento de 1973”.19 A corte alemã, neste segundo caso,
entendeu que, passados mais de trinta anos da ocorrência do delito, os riscos para a res-
socialização dos condenados haviam sido bastante minorados, sendo certo que a atuação
do Tribunal Constitucional, em matéria civil, somente deve ocorrer em caso de violação
completa do direito fundamental posto, e em caráter de reserva. Concluiu ainda o jul-
gado que “o mero fato de ter cumprido a pena de prisão não significa que o criminoso
adquiriu o direito a ser deixado em paz (ou, mais literalmente, direito a ser deixado só)”.20
Talvez o caso mais paradigmático sobre a matéria, e que certamente teve larga
reper­­cussão mundial, deu-se no embate entre o Google e a Agência Espanhola de Prote­
ção de Dados, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em 13 de maio
de 2014.21

16
O inteiro teor do acórdão pode ser conferido em: SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal
Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006. p. 486-493. Disponível em: <http://www.
kas.de/wf/doc/kas_7738-544-1-30.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2017.
17
Explicitando os argumentos utilizados na decisão, discorre Alexy: “Un ejemplo lo ofrece el caso Lebach del
Tribunal Constitucional alemán, en el que se trataba de una información televisiva repetida, no amparada
ya por un interés informativo actual, sobre un delito grave, emitida poco antes de la excarcelación del autor
. La argumentación del tribunal se desarrolla en tres niveles. En el primer nivel constata una colisión entre la
protección fundamental e igual de la personalidad y la libertad de información. En el segundo nivel establece
que bajo una condición determinada y relativamente abstracta, esto es, la de una información actual sobre un
delito grave, existe una prioridad de principio o prima facie en favor de la libertad de información. En el tercer
nivel decide finalmente que bajo cuatro condiciones que se dan en el caso Lebach, a saber, una 1) información
televisiva repetida, 2) no amparada ya por un interés informativo, 3) sobre un delito grave, 4) que pone en
peligro la resocialización del autor, la protección de la personalidad prevalece sobre la libertad de información”.
(ALEXY, Robert. Sistemas jurídicos, Princípios jurídicos y Razón práctica. Doxa, v. 5, 1988, p. 139-151).
18
ROCHA, Maria Vital da; LYRA, Laís Gomes Monte de. Direito ao esquecimento ou direito à privacidade? Disponível
em: <http://www.adfas.org.br/admin/upload/conteudo/27092016%20LaisLyra.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2017.
19
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 07 jul. 2017.
20
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Não há tendências na proteção ao direito ao esquecimento. Revista Consultor
Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparado-nao-tendencias-protecao-
direito-esquecimento#_ftnref7>. Acesso em: 07 jul. 2017.
21
ROSENVALD, Nelson. Do direito ao esquecimento ao direito a ser esquecido. Disponível em: <https://www.
nelsonrosenvald.info/single-post/2016/11/16/Do-direito-ao-esquecimento-ao-direito-a-ser-esquecido>. Acesso
em: 07 jul. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
144 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Neste, em 1998, o jornal espanhol La Vanguardia publicou dois editais, em sua


edição impressa, com o escopo de divulgar a realização de leilão de propriedade do
cidadão espanhol Mario Costeja González, em virtude da existência de débitos para com
a Seguridade Social. As referidas publicações foram digitalizadas, de forma que, ao se
proceder à busca no Google em nome da pessoa, se era levado aos arquivos do jornal
mencionado, local em que se fazia referência ao leilão por dívidas do terreno. Em razão
deste fato, o Sr. González, entendendo que o acesso a tal informação lhe trazia prejuízos
de ordem pessoal, ajuizou reclamação, após requerimentos formulados diretamente ao
periódico e ao Google, junto à Agência Espanhola de Proteção de Dados, tendo sido
afastada a responsabilidade do jornal La Vanguardia¸ mas, de outro lado, determinando-
se à empresa de busca que removesse quaisquer dados ou links que pudessem levar ao
resultado questionado.22
Irresignado com a decisão, o Google demandou judicialmente à Agência Espa­
nhola e González nos tribunais espanhóis,23 que, por seu turno, submeteram a querela
ao Tribunal de Justiça da União Europeia.24 Em julgamento histórico, em razão da
conclusão a que se chegou, bem como em virtude do ineditismo da temática, o referido
órgão, ao se debruçar sobre a Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu do Conselho,
de 24 de outubro de 1995, entendeu que a atividade de um motor de busca deve ser
qualificada como tratamento de dados pessoais, de modo que, quando essas informações
contenham dados individuais, o operador dos mecanismos de busca deve ser considerado
responsável pelo dito tratamento.25
Diante da apresentação dos principais julgamentos que formaram a compreen­são
da existência do direito ao esquecimento no âmbito jurisdicional, há de se rememorar que,
em sede de doutrina, atribui-se a Viktor Mayer-Schönberger, professor de Gover­nança
e Regulação da Internet da Universidade de Oxford a utilização, pela primeira vez, do
termo “the right to be forgotten”,26 centrando sua preocupação no sentido de demonstrar
a inveracidade da ideia comumente aceita de que o ato de deletar dados pessoais na
rede mundial de computadores realmente garante a definitiva exclusão do conteúdo.27

22
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
23
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Direito de apagar dados e a decisão do tribunal europeu no caso Google
(parte 2). Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-28/direito-comparado-
direito-apagar-dados-decisao-tribunal-europeu-google-espanha>. Acesso em: 07 jul. 2017.
24
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 07 jul. 2017.
25
Para melhor compreensão do tema, faz-se imprescindível a leitura do inteiro teor do acórdão, disponível em:
<http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?doclang=PT&text=&pageIndex=1&part=1&mode=req&do
cid=152065&occ=first&dir=&cid=201752>. Acesso em 07 jul. 2017.
26
No capítulo de abertura de seu trabalho mais difundido, “Delete: the virtue of forgetting in the digital age”, o autor
explicita a origem da nomenclatura: “It all began with a half page of notes titled “the right to be forgotten” in February of
2007. I quickly forgot about the notes, but remembered the idea. When journalist and friend Kenneth N. Cukier called to ask
for new perspectives on ubiquitous computing and privacy, I pitched to him the importance of forgetting, and he included it
in his report. My April 2007 working paper was quickly picked up by the media, somewhat to my surprise. My idea seemed
to have hit a nerve. In the two years since my argument evolved, my idea has spread, and to my delight many others have
advocated it or proposed something similar”. (MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the
digital age. New Jersey: Princeton University, 2009, p. 8).
27
LIMA, Erik Noleta Kirk Palma. Direito ao esquecimento: discussão europeia e sua repercussão no Brasil. Revista
de informação legislativa, v. 50, n. 199, jul./set. 2013. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/handle/
id/502929>. Acesso em: 07 jul. 2017.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
145

Na via legislativa, por sua vez, impulsionada pelas relevantes discussões travadas,
foi publicado, em 04.05.2016, no âmbito da União Europeia, o que se pode denominar
de “Legislação Europeia de Proteção de Dados Pessoais”, composta pelo Regulamento
2016/679, Diretiva 2016/680 e Diretiva 2016/681, que certamente terá larga utilização,
em escala global, não apenas no que tange à elaboração de legislação sobre o tema, mas
também servindo como relevante vetor hermenêutico na resolução de casos concretos
postos à apreciação do Judiciário.
A Seção 3 (arts. 16 a 18) do Regulamento 2016/79 cuida justamente da “retificação
e apagamento” de dados, de modo que o direito de retificação tem alcance alargado,
abrangendo não apenas o imediato acesso à correção de dados pessoais inexatos que
digam respeito à pessoa, como ainda o direito a que os dados pessoais incompletos
sejam completados. Por sua vez, o direito ao apagamento dos dados (right to erasure) é
denominado de “direito a ser esquecido” (right to be forgotten). Ele será exercitado, sem
demora injustificada, quando se aplique um dos seguintes motivos, dentro os quais vale
a pena se destacar: a) Os dados pessoais deixaram de ser necessários para a finalidade
que motivou o seu tratamento; b) O titular retira o consentimento em que se baseia o
tratamento dos dados satisfeitos determinados pressupostos; c) O titular opõe-se ao
tratamento e não existem interesses legítimos prevalecentes que justifiquem o tratamento;
d) Os dados pessoais foram tratados ilicitamente.28
Recentemente, duas decisões polêmicas na França, em razão de sua larga abran­
gência, ocasionaram, após o julgamento em segunda instância, a determinação para
que a Google francesa e a matriz Google Inc. efetivassem a desindexação dos termos
discutidos no processo não apenas na localidade em que a disputa se dava, mas por
meio de um filtro global, englobando todos os países, inclusive aqueles que não fazem
parte da União Europeia, acarretando a exclusão mundial do referencial pesquisado.29
Após natural resistência da empresa em cumprir a decisão, fato este que inclusive
ocasionou a fixação de multa pela CNIL (Commission Nationale de l’Informatique et des
Libertés), o Google apresentou recurso, argumentando que, em que pese o direito ao
esquecimento atualmente constitua lei na Europa, não pode ser considerado norma
global, asseverando ainda que existem inúmeros exemplos ao redor do mundo, pelos
quais se apreende que, ainda que uma determinada matéria seja considerada ilegal sob
a regência das leis de certos países, podem ser taxadas de lícitas em outros, apontando
também para a desnecessidade e desproporcionalidade da medida adotada.30
Em decisão datada de 10 de março de 2016, o recurso apresentado não foi acatado,
tendo a Comissão Nacional se posicionado no sentido de não haver efetividade em se
restringir apenas localmente o alcance das buscas,31 motivo pelo qual o Google levou o
caso ao Conselho de Estado Francês, restando ainda pendente de conclusão a matéria.

28
ROSENVALD, Nelson. Do direito ao esquecimento ao direito a ser esquecido. Disponível em: <https://www.
nelsonrosenvald.info/single-post/2016/11/16/Do-direito-ao-esquecimento-ao-direito-a-ser-esquecido>. Acesso
em: 07 jul. 2017
29
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
30
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
31
Os fundamentos da decisão foram registrados nos seguintes termos: “The Google search engine service represents a
single processing operation and the different geographic extensions (“.fr”, “.es”, “.com”, etc.) cannot be considered separate
processing operations. The company originally operated its service using the “.com” extension, then created extensions as
time went by to provide a service adapted to each country’s national language. This means that, for people residing in France
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
146 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Nos EUA, por sua vez, país de cariz eminentemente liberal, não existe uma
demanda específica com o fim de desvincular uma URL dos índices de pesquisa. Em
verdade, constituem situações distintas a possibilidade de se litigar em face do provedor
originário da informação e a faculdade de ingressar no Judiciário em busca da respon­
sabilização do intermediário que facilita o acesso aos dados, apresentando o buscador
imunidade de tratamento conferido por lei.32 Esta imunidade deriva da seção 230, c) 1)
do CDA (Communications Decency Act), que discorre a respeito da “Proteção ao Bom
Samaritano” (Good Samaritan), dispondo que “[...] nenhum provedor ou usuário de
um serviço de computador interativo deverá ser tratado como um editor ou orador de
qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo”.33
Destarte, a imunidade jurídica de tratamento, aliada ao fato da superlativização
da liberdade de expressão, torna peculiar o regramento do direito ao esquecimento em
terras americanas, revelando a tensão constante entre os postulados libertários, de um
lado, e a proteção à privacidade, de outro, constatando-se uma tendência nos tribunais
no sentido de se privilegiar o funcionamento dos buscadores e a liberdade empresarial.34
No embate entre o right of privacy e a liberdade assegurada pela Primeira Emenda, as
cortes têm se inclinado pela garantia desta última, de forma quase que irrestrita.35
Em que pese a preocupação extremada em se preservar a liberdade informativa,
não se pode olvidar da existência, em solo americano, de regramento sobre a temá­
tica ora apresentada. De fato, mais especificamente na Califórnia, foi editada a Lei
SB-56821,36 também conhecida como eraser law, que passou a viger em 1º de janeiro de
2015, garantindo aos menores de idade o direito de apagar informações embaraçosas
constantes de sites de Internet, principalmente das redes sociais, tais como Facebook,
Twitter e Tumblr.37

to effectively exercise their right to be delisted, in accordance with the CJEU’s decision, the delisting must be applied to the
entire processing operation, i.e. to all of the search engine’s extensions. Contrary to Google’s statements, applying delisting
to all of the extensions does not curtail freedom of expression insofar as it does not entail any deletion of content from the
Internet. At a physical person’s request, it simply removes any links to website pages from the list of search results generated
by running a search on the person’s first name and surname. These pages can still be accessed when the search is performed
using other terms”. Disponível em: <https://www.cnil.fr/en/right-be-delisted-cnil-restricted-committee-imposes-
eu100000-fine-google>. Acesso em 12 jul. 2017.
32
GONÇALVES, Luciana Helena. O Direito ao esquecimento na Era Digital: Desafios da regulação da desvinculação de
URLs prejudiciais a pessoas naturais nos índices de pesquisa dos buscadores horizontais. 2016. 144 fl. Dissertação
(mestrado) – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2016. Disponível em: <http://
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16525/Dissertacao_Luciana_Goncalves_finaliSsimo.
pdf?sequence=7&isAllowed=y>. Acesso em: 12 jul. 2017.
33
Section 230 c) 1) Protection for “Good Samaritan” blocking and screening of offensive material (1) Treatment of
publisher or speaker: no provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or
speaker of any information provided by another information content provider. Disponível em: <https://www.
law.cornell.edu/uscode/text/47/230>. Acesso em: 12 jul. 2017.
34
GONÇALVES, Luciana Helena. O Direito ao esquecimento na Era Digital: Desafios da regulação da desvinculação de
URLs prejudiciais a pessoas naturais nos índices de pesquisa dos buscadores horizontais. 2016. 144 fl. Dissertação
(mestrado) – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2016. Disponível em: <http://
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16525/Dissertacao_Luciana_Goncalves_finaliSsimo.
pdf?sequence=7&isAllowed=y>. Acesso em: 12 jul. 2017.
35
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
36
ESTADOS UNIDOS. Califórnia. Senate Bill nº 568. Disponível em: <http://leginfo.legislature.ca.gov/ faces/
billNavClient.xhtml?bill_id=201320140SB568>. Acesso em: 06 jun. 2015.
37
Há quem defenda, também no plano doutrinário, a existência do direito ao esquecimento em solo americano.
É o caso, por exemplo, de Mark T. Andrus, em artigo publicado no sítio da American Bar Association, intitulado
The Right to be Forgotten in America. Disponível em: <https://www.americanbar.org/publications/blt/2016/05/05_
andrus.html>. Acesso em: 12 jul. 2017.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
147

3 Contornos do instituto no Direito Pátrio


Em terras nacionais, em face da ausência de regulamentação explícita sobre o
tema, operou-se verdadeira cizânia doutrinária acerca da possibilidade de tutela jurídica
do direito ao esquecimento, levantando-se vozes respeitáveis em ambos os sentidos.
De fato, há quem vislumbre verdadeira colisão entre a proteção do direito à
memória particular e a tutela das liberdades individuais, mais especificamente as de
expressão e imprensa, ante a prevalência explicitamente assegurada pelas normas
constitucionais às liberdades comunicativas. Sustenta-se, nesta toada, a apriorística
e incondicional preponderância do direito à informação, quando envolvido interesse
público, em confronto com o amparo jurídico à privacidade. Alça-se, deste modo, a
liberdade de expressão ao patamar de sobredireito da personalidade ou “direito mãe”,38
afigurando-se ilegítima a imposição de restrições ao seu exercício em nome de um
pretenso direito ao esquecimento, não consagrado em qualquer norma jurídica consti­
tucional ou infraconstitucional.39
Este parece ter sido o caminho trilhado pelo Supremo Tribunal Federal na decisão
tomada no emblemático caso da autorização de biografias não autorizadas. Com efeito, na
ADI nº 4.815, relatada pela ministra Cármen Lúcia, a Corte Suprema assentou a posição
preferencial da liberdade de expressão (preferred position), quando em contraposição
a outros direitos fundamentais, restando o entendimento sufragado explicitamente
mencionado em parte dos votos dos demais ministros, alinhando-se à posição adotada,
de há muito, na Inglaterra e nos Estados Unidos.40
Alude-se ainda, no campo doutrinário, à imprecisão dos lindes do instituto em
estudo, salientando-se a impossibilidade de demarcação de seus contornos jurídicos
precisos, de modo que se correria o risco de sujeitarem-se as decisões acerca da proble­
mática a um subjetivismo desenfreado, tendendo-se a um efeito censor sobre a liberdade
de imprensa, silenciando os titulares das liberdades comunicativas, a fim de se evitar
futuras e incertas responsabilizações criminais e cíveis.41
Em parecer exarado no ARE 833.248-RJ, em caso submetido à sistemática de
repercussão geral, o Ministério Público Federal posicionou-se pelo não reconhecimento
do direito ao esquecimento, ante a ausência, na atualidade, de parâmetros seguros de
definição, mostrando-se desprovidas de suficiente densidade normativa as conceituações
oferecidas na literatura brasileira sobre o tema e nos casos já analisados pelos tribunais
nacionais. Evidenciou-se ainda a possibilidade de a tutela conferida ser utilizada como
pretexto para determinadas pessoas indevidamente requererem indenização por danos
materiais e morais, bastando unicamente a afirmativa de que as obras nas quais foram

38
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema
Social, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 370 e ss.
39
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque; NUNES, Danyelle Rodrigues de Melo; PORTO, Uly de
Carvalho Rocha. Direito ao esquecimento segundo o STJ e sua incompatibilidade com o sistema constitucional
brasileiro.  Revista de informação legislativa: RIL, v. 54, n. 213, p. 63-80, jan./mar. 2017. Disponível em: <http://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p63>. Acesso em: 25 jul. 2017.
40
SARLET, Ingo Wolfgang. Liberdade de expressão e biografias não autorizadas – notas sobre a ADI 4.815. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-19/direitos-fundamentais-liberdade-
expressao-biografias-nao-autorizadas#_ftn1>. Acesso em: 25 jul. 2017.
41
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque; NUNES, Danyelle Rodrigues de Melo; PORTO, Uly de
Carvalho Rocha. Direito ao esquecimento segundo o STJ e sua incompatibilidade com o sistema constitucional
brasileiro.  Revista de informação legislativa: RIL, v. 54, n. 213, p. 63-80, jan./mar. 2017. Disponível em: <http://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p63>. Acesso em: 25 jul.2017.
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148 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

retratadas lhes causaram lembranças desagradáveis, carecendo a temática, portanto, de


maior amadurecimento.
O fato é que, embora não se possam desprezar as oposições levantadas, a tutela do
direito ao esquecimento não constitui tema novo no cenário nacional,42 e são inúmeras
as formas de proteção à memória individual encontradas no ordenamento jurídico.
Com efeito, aponta-se a sua origem histórica no campo do Direito Penal.43 Assim
é que, por exemplo, o instituto da reabilitação, previsto no art. 93 e seguintes do
Código Penal, tem como escopo maior estabilizar as conexões havidas entre o passado
e o presente, possibilitando àqueles que já cumpriram a condenação criminal, ou aos
que foram absolvidos pela prática de algum delito, os benefícios do sigilo de sua folha
de antecedentes, bem como a exclusão de registros na condenação no Instituto de
Identificação.44 De igual modo, pacificou-se o entendimento no Supremo Tribunal Federal
no sentido da impossibilidade de utilização de condenações transitadas em julgado,
ultrapassado o prazo de cinco anos previsto no art. 64, I, do Código Penal, para fins
de exasperação da pena base, a título de maus antecedentes. Concluiu-se, com elevado
acerto, que tais condenações não poderiam ser invocadas ad eternum, ante a vedação de
penas perpétuas.45
Não é de hoje, também, que a discussão acerca da necessidade de esquecimento
do passado reverbera na seara laboral, havendo acesa controvérsia no que tange à
possibilidade de rememoração de fatos pretéritos relacionados ao trabalhador para fins de
contratação, exercício do poder diretivo do empregador e desligamento do subordinado.
Noticia-se que não era infrequente, para o exercício de determinadas profissões ou
atividades, a exigência de atestados de boa conduta ou certidão de antecedentes criminais.
A Lei nº 6.242, de 1975, em seu art. 3º, II e III, por exemplo, condiciona a concessão
do registro do guardador ou lavador de veículos na Delegacia Regional do Trabalho
competente à apresentação dos documentos aludidos. Por sua vez, a Lei nº 5.859, de
1972, no art. 2, II, determinava ao doméstico que apresentasse atestado de boa conduta
para fins de admissão no emprego.46
Já se posicionava a doutrina justrabalhista, acertadamente, no sentido de que a
possibilidade de restrição de investigação de fatos ou acontecimentos passados ligados à
figura do trabalhador não encontrava óbice de natureza absoluta, devendo perquirir-se
acerca da relação de pertinência entre a atividade a ser exercida e os antecedentes cri­mi­
nais do postulante ao emprego, em verdadeiro exercício de ponderação, apresentando-se
legítima a tutela de interesses outros, também dignos de proteção, já que determinadas
funções, em face da relevância social constatada, não permitem a separação total e
absoluta entre os antecedentes penais do empregado e a atividade a ser desempenhada.47

42
SARLET, Ingo Wolfgang. Tema da moda, direito ao esquecimento é anterior à internet. Revista Consultor
Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mai-22/direitos-fundamentais-tema-moda-direito-
esquecimento-anterior-internet>. Acesso em: 25 jul. 2017.
43
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 170.
44
No mesmo sentido, ainda, o art. 748 do Código de Processo Penal: “A condenação ou condenações anteriores não
serão mencionadas ria folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo
quando requisitadas por juiz criminal”.
45
Neste ponto, merece referência o voto proferido pelo ministro Dias Toffoli no recurso em HC 118.977/MS.
46
MALLET, Estevão. Igualdade e discriminação em direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2013, p. 60-61.
47
O Tribunal Superior do Trabalho já teve oportunidade de se manifestar sobre a questão no. RR n. 155700-
07.2004.5.05.0020, Rei. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, julg. em 6.5.2009 in DJU 15.5.2009.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
149

Assim, por exemplo, mostra-se paradigmático o caso do exame de antecedentes criminais


relacio­nados ao tráfico de drogas de trabalhador que deve lidar com medicamentos
de igual gênero, bem como de candidata à vaga da função de babá que já tenha sido
condenada, em passado recente, por crime contra os costumes ou tipificado no Estatuto
da Criança e do Adolescente. Em todo caso, porém, operada a reabilitação criminal, nos
termos do art. 93 do Código Penal, esvai-se a legitimidade de qualquer conduta que vise
diferenciar os postulantes ao trabalho.48
Embora o tema já tivesse sido enfrentado em diversas oportunidades pelos
Tribunais de Justiça dos Estados,49 e, como aludido, não se apresente verdadeiramente
como problemática nova no cenário jurídico nacional, ganhou relevante destaque, no
meio civilista, a partir de março de 2013, após a realização da VI Jornada de Direito
Civil do Conselho da Justiça Federal, ocasião em que foi redigido o Enunciado nº 531,
afirmando-se que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade de informação
inclui o direito ao esquecimento”. Na justificativa apresentada, argumentou-se que o
instituto em análise “não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a
própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos
fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.50
A preocupação recente sobre o assunto restou aflorada após o julgamento de
dois relevantes casos pelo Superior Tribunal de Justiça, em 28 de maio de 2013, sob a
relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, tendo sido reconhecido expressamente o
direito ao esquecimento.
O primeiro deles, objeto de discussão do Recurso Especial nº 1.334.097 – RJ,
cuida de ação indenizatória proposta por Jurandir Gomes de França em face da TV
Globo Ltda., tendo o autor informado ter sido indiciado como partícipe da sequência de
homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, episódio popularmente conhecido como
“Chacina da Candelária”, mas que, ao final, restou absolvido pelo Tribunal do Júri, pela
unanimidade dos membros do Conselho de Sentença, por negativa de autoria. Narrou
ainda o demandante que foi procurado pela empresa ré com o intuito de ser entrevistado
para o programa “Linha Direta Justiça”, tendo, entretanto, recusado o convite, embora
posteriormente tenha sido o programa veiculado em junho de 2006, ocasião em que foi
apontado como um dos envolvidos na chacina, ainda que se tenha mencionado o fato
de sua absolvição.
O pleito não restou acolhido em primeira instância, mas a sentença de piso
acabou reformada, por maioria, condenando-se a ré ao pagamento do importe de
R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Mediante a interposição de recurso especial, a questão
bateu às portas do Superior Tribunal de Justiça. O relator, após longa digressão sobre o
histórico do instituto, bem como a análise de intricadas questões, tais como a liquidez da

48
MALLET, Estevão. Igualdade e discriminação em direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2013, p. 60-65.
49
Colaciona-se, a propósito, a título exemplificativo, acórdão lavrado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
“Responsabilidade Civil. Dano moral. Reportagens publicadas em jornal envolvendo ex-traficante de drogas em
lavagem de dinheiro, com fotos batidas seis anos antes, após o mesmo encontrar-se completamente recuperado,
convertido à religião evangélica, da qual se tomou pastor, casado, com filhos, dando bons exemplos à sociedade.
É livre a liberdade de manifestação da expressão e de informação jornalística, direitos que devem ser exercidos
com responsabilidade, sem preocupação de fazer sensacionalismo [...]”. (TJRJ, Apelação Cível 2002.001.07149,
Rei. Des. Carlos Lavigne de Lemos, 26.11.2002).
50
Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-vi-jornada/view>.
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150 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

sociedade contemporânea, a censura à liberdade de imprensa e o interesse da coletividade


em relação a matérias de natureza criminal, reconheceu a existência do direito ao
esquecimento no cenário local, obtemperando que “a permissão ampla e generalizada a
que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo –
a pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo abuso
à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado”.
O segundo caso, por sua vez, cujo debate se desenrolou no Recurso Especial nº
1.335.153-RJ, envolveu, no polo ativo, os únicos irmãos vivos de Aída Curi, vítima de
homicídio no ano de 1958, delito que foi nacionalmente divulgado à época, e, no polo
passivo, mais uma vez, a TV Globo Ltda. Sustentaram os demandantes que o crime
fora esquecido com o passar do tempo, tendo a emissora revivido o fato mediante a
exploração da imagem da falecida, através da transmissão do programa “Linha Direta
Justiça”. Pleitearam, deste modo, a condenação da empresa jornalística em danos morais,
uma vez que o caso foi utilizado, depois de passados muitos anos, para auferir lucros
com a audiência e publicidade, tornando ilícita a conduta.
O Juízo de Direito da 47ª Vara Cível da Comarca da Capital/RJ julgou improceden­
tes os pedidos dos autores, tendo a sentença sido mantida em grau de apelação, motivo
pelo qual foi interposto recurso especial.
Embora agasalhando o direito de ser esquecido, a Corte Cidadã, em atenção às
peculiaridades do caso posto à decisão, entendeu não haver abuso na cobertura do crime,
registrando que o reconhecimento daquele, em tese, não conduz necessariamente ao
dever de indenizar. Em conclusão deveras importante, afirmou-se ainda que o perpassar
do tempo gera, como consequência inexorável, a diminuição da dor em virtude da reme­
moração de fatos passados, de forma que a revisitação de acontecimentos pretéritos pode
mesmo causar desconforto, mas não mais o abalo psíquico de outrora. Pontuou-se, neste
trilhar, que os eventos haviam se desenrolado há mais de cinquenta anos, não havendo
razoabilidade em se restringir, in casu, a liberdade de imprensa, antes a ponderação de
valores na hipótese concreta. Realçou-se, ao final, que o episódio fora retratado mediante
dramatizações por atores contratados, tendo a imagem da vítima sido veiculada apenas
uma única vez, de molde que, diferentemente do quanto acontecido no caso das biografias
não autorizadas, o cerne da reportagem centrou-se no fato delituoso em si, e não na
exploração da imagem da falecida.
O recurso especial em questão, não provido pela Quarta Turma, deu ensejo ao RE
1010606-RJ, submetido à repercussão geral, ante a relevância do tema.
Em audiência pública realizada na data de 12 de junho de 2017, firmaram-se, em
simplificação, três correntes sobre o tema. A primeira delas, pró-informação, advoga
a tese da inexistência de um direito ao esquecimento, invocando o recente precedente
do Supremo Tribunal Federal formado no julgamento da já citada ADI nº 4.815, sob o
argumento da prevalência do direito à informação, aliado ao fato de que o instituto não
encontra guarida na legislação pátria. Os defensores do direito à proteção da memória
individual, por sua vez, amparados na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça
no caso da “Chacina da Candelária” e na experiência europeia, enalteceram a relevância
da tutela à privacidade e intimidade, caracteres ínsitos à própria dignidade humana,
de modo que não haveria de se falar em prevalência da liberdade comunicativa acerca
de fatos pretéritos. Esta foi a posição sustentada pelo IBCCrim – Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais, tendo inclusive sido proposto um prazo de cinco anos, contados
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
151

do cumprimento da pena, a partir do qual as informações relativas a condenações


deveriam ser eliminadas da internet. Por fim, terceira corrente se formou no sentido da
inexistência de hierarquização prévia e abstrata entre os princípios constitucionais em
colisão, afigurando-se necessária a ponderação de valores no caso concreto, sopesando-
se as liberdades informativas e o direito à privacidade de acordo com as peculiaridades
e especificidades casuísticas. Esta foi a bandeira levantada pelo Instituto Brasileiro
de Direito Civil – IBDCivil, que, relativamente ao caso posto em debate, formulou
interessantes parâmetros concretos para o sopesamento dos valores em discussão,
como, por exemplo, o critério da fama prévia, havendo de se distinguir as vítimas que
já possuíam reconhecimento público notório antes dos acontecimentos daquelas que
foram alçadas à projeção pública em razão unicamente do delito veiculado, prevalecendo
o direito à liberdade de expressão apenas no primeiro caso.51
Postas as principais problemáticas sobre o tema, ainda que respeitados os limites
deste trabalho, bem como colacionados os julgamentos de maior impacto em âmbito
nacional, não vislumbramos ser escorreita a ideia de prevalência absoluta do direito
de liberdade de expressão, em suas variadas facetas, sobre a privacidade, intimidade,
honra e imagem, valores que também encontram assento constitucional (artigo 5º,
inciso X), tese defendida por parte expressiva da doutrina e que conta com a simpatia
da Suprema Corte.
Ainda que se admita a superioridade em abstrato, e de forma apriorística, quando
envolvido interesse público, das liberdades comunicativas sobre as demais, inclusive
as de estatura constitucional, posição esta que não está imune a críticas, não se mostra
razoável elevar o direito de expressão, ao patamar de direito incondicional, imune a
qualquer tipo de restrição, uma vez que cabível, mediante o exercício de ponderação,
a prevalência de valor outro no caso concreto, ante as especificidades da casuística
apresentada.52 A vantagem inicial e argumentativa em prol do exercício pleno da liber­
dade de comunicação é capaz de ceder, e em muitos casos isso ocorrerá, frente à proteção
e tutela de espectros também relevantes da personalidade da pessoa humana, quando
aquela, ao ser posta em prática, inviabilizar a concretização e o desenvolvimento da
esfera mais íntima do homem.53
Esta foi inclusive a conclusão a que chegou o Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha, no já mencionado caso Lebach, ao se afirmar, com elevada dose de acerto que
“em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população
merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso”. Concluiu,
porém, o tribunal alemão que “deve ser observado, além do respeito à mais íntima e
intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade”.
De outro lado, mostram-se vazias as críticas inicialmente formuladas no sentido
de não estar o instituto previsto em norma constitucional ou infraconstitucional, bem
como não possuir o direito ao esquecimento relevante e precisa densidade normativa,

51
SCHREIBER, Anderson. As três correntes do direito ao esquecimento. Jota. Disponível em: <https://jota.info/
artigos/as-tres-correntes-do-direito-ao-esquecimento-18062017>. Acesso em: 28 jul. 2017.
52
ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales y el principio de proporcionalidad. Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 91, p. 15-19, ene./abr. 2011.
53
SARLET, Ingo Wolfgang. Liberdade de expressão e biografias não autorizadas – notas sobre a ADI 4.815. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-19/direitos-fundamentais-liberdade-
expressao-biografias-nao-autorizadas#_ftn1>. Acesso em: 25 jul. 2017.
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152 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

apresentando vagueza e indeterminação54 que impossibilitariam a sua aplicação de forma


segura. Em que pese não haja expressa menção no ordenamento nacional a um direito
de preservação da memória individual, tal como sói ocorrer no Direito europeu, a tutela
do esquecimento apresenta-se como natural desdobramento da proteção à intimidade
e privacidade do indivíduo, valores constitucionalmente consagrados no art. artigo 5º,
inciso X, da Carta Maior. Também em âmbito infraconstitucional, da leitura do Código
Civil, em seus arts. 11, 20 e 21, extrai-se a denotada preocupação do legislador em
proteger a esfera mais íntima da pessoa humana de ingerências externas, salvo quando
devidamente justificadas por fins maiores, tais como quando necessárias à administração
da justiça ou à manutenção da ordem pública.
Não se há de sustentar, entretanto, um direito ao esquecimento que resvale para
o puro campo do arbítrio pessoal do interessado, a possibilitar que cada indivíduo, por
mero capricho, postule a remoção de notícias ou impossibilite a divulgação de fatos, ante
o seu desagrado íntimo, tornando-o verdadeiro proprietário de acontecimentos pretéritos.
Esta visão voluntarista do fenômeno não encontra respaldo no texto constitucional,
devendo a interpretação do instituto ser balizada por critérios constitucionais objetivos,
permitindo-se a aplicação da figura jurídica de modo desvinculado da vontade pessoal
do indivíduo, esvaziando-se, destarte, as críticas disparadas no sentido da indetermina­
bilidade do conteúdo do direito e acerca do risco do subjetivismo exacerbado de futuras
decisões judiciais.55
Outrossim, a ausência de determinação prévia acerca do resultado do balizamento
entre dois princípios igualmente assegurados constitucionalmente é nota característica
de qualquer colisão de valores supralegais, ante a impossibilidade de definições aprio­
rísticas matemáticas, aspecto distintivo da ciência jurídica em geral, dependentes da
análise pormenorizada das peculiaridades do caso concreto. Exsurge daí, entretanto, a
necessidade de estabelecimento de critérios seguros e objetivos de aplicação, bem como
a análise e pacificação do tema no âmbito dos tribunais superiores.
Embora desborde deste estudo a análise pormenorizada de cada um dos parâ­
metros utilizados pela doutrina na fixação de limites hermenêuticos no emprego da
figura em comento, é certo que se tem avançado, a passos largos, na construção de
critérios de aplicação do direito ao esquecimento, tais como a relevância histórica dos
acontecimentos retratados, a conservação do contexto original da informação pretérita
divulgada, a preservação dos direitos da personalidade no momento da rememoração
e a utilidade e atualidade da informação, dentre outros.56
Destarte, o direito ao esquecimento, dentro de balizas constitucionalmente
delimitadas, e segundo critérios rígidos de incidência, mediante a aplicação do método
ponderativo, há de encontrar guarida no ordenamento jurídico nacional, constituindo
verdadeira esfera de proteção do indivíduo relativamente à divulgação ilimitada de
acontecimentos e fatos pretéritos.

54
Ronaldo Lemos. “Direito ao esquecimento é mais veneno que remédio”. Folha de São Paulo de 19.05.2014.
55
Esta foi a posição defendida pelo professor Anderson Schreiber, em nome do Instituto Brasileiro de Direito Civil,
na mencionada audiência pública realizada no dia 12 de junho de 2017 (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Direito ao esquecimento não é apagar fatos ou reescrever história, afirma professor da UERJ. Disponível em: <http://www.
stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346401>. Acesso em: 28 jul. 2017).
56
MARTINEZ, Pablo Dominguez. Direito ao Esquecimento: A proteção da memória individual na sociedade da
informação. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 174-191.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
153

4 Responsabilização civil por infringência ao direito ao esquecimento


Admitindo-se a aplicação do instituto no cenário nacional, há de se perquirir as
consequências pelo seu descumprimento, centrando-se o estudo especificamente nos
atos praticados pelos veículos de comunicação.
A doutrina tradicional, em que pese a divergência reinante, em atenção ao quanto
disposto nos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil, tem optado por uma classificação
tripartida dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva, cujos elementos, de
forma simplificada, seriam: a) conduta culposa do agente; b) nexo causal e c) dano. Uma
vez reunidos, está-se diante de um ato ilícito, defluindo deste ato o dever de indenizar.57
Malgrado a análise detalhada dos requisitos elencados extrapole os objetivos do
presente trabalho, impõe-se o exame das peculiaridades de cada um destes elementos em
relação ao novel instituto em análise, apontando os principais questionamentos reinantes
sobre a matéria, visto que a figura jurídica em apreço possui contornos singulares que a
distingue, em alguns pontos nevrálgicos, dos demais direitos da personalidade.
No que toca ao pressuposto da culpabilidade, tem-se perfilhado, majoritariamente,
o entendimento de que a responsabilidade civil dos veículos de comunicação é subjetiva,
exigindo-se a comprovação da culpa na divulgação da notícia. No caso de inveracidade
da informação repassada, caberia ao demandante demonstrar cabalmente que o órgão
de imprensa tinha ou deveria ter conhecimento da falsidade dos dados divulgados (STJ,
Resp 984.803, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., DJ 19.08.2009), eximindo-se da culpa se
provado que a atividade investigativa cumpriu os trâmites exigidos da profissão, com a
busca de fontes fidedignas e a oitiva das diversas partes interessadas (STJ, Resp 1.414.887,
Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T., DJ 28.11.2013). Na mesma linha, em se tratando de
matéria veiculada pela imprensa, defende-se que o dever de indenizar surge quando
o texto evidencia a intenção de injuriar, difamar ou caluniar (STJ, Resp 1.390.560, Rel.
Min. Villas Bôas Cueva, 3ª T. DJ 14.10.2013).
Ocorre que a prova da intenção da ofensa, ou a má-fé da publicação, de cunho
nitidamente subjetivo, torna muito difícil, quiçá impossível, a responsabilização do
veículo de comunicação autor da notícia, configurando-se verdadeira prova diabólica,
o que levou parte da doutrina a estender aos meios de comunicação a ideia de risco, de
atividade geradora de risco, o que culmina na aplicação da responsabilidade objetiva,
não havendo incompatibilidade aparente entre esta e a liberdade de imprensa.58
Em se tratando do direito ao esquecimento, a exigência do animus injuriandi por
parte do veículo de imprensa tornaria praticamente inaplicável o instituto em apreço,
visto que, na grande maioria dos casos, como, por exemplo, nos julgamentos proferidos
pelo STJ mencionados, o objetivo da rede transmissora, ou do jornal impresso, é veicular
fatos que possuem nítido apelo comercial, incrementando a audiência do programa
de rádio ou televisão, ou mesmo a venda de exemplares, e não a degradação moral
da pessoa retratada. Estes obstáculos, entretanto, certamente não se estendem aos
denominados programas sensacionalistas, diariamente veiculados nas grandes redes
televisivas brasileiras, situação em que se afigura claro o exercício abusivo da liberdade
de expressão, ensejando a responsabilização independentemente de culpa.59

57
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 40.
58
PIZARRO, Ramón Daniel. Responsabilidad civil de los medios massivos de comunicación. Buenos Aires: Hammurabi,
1999, p. 391.
59
Dispõe o Enunciado nº 37 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “A responsabilidade civil
decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
154 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ante a dificuldade relatada na produção da prova da intenção de produzir o


dano, atentando-se, porém, à importância da liberdade de expressão, que, segundo
entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, é alçado à condição de posição
preferencial, em cotejo com outros direitos fundamentais, talvez o caminho mais razoável
a se trilhar seja a adoção da teoria da culpa presumida, invertendo-se o ônus probatório,
cabendo ao órgão de imprensa demonstrar, uma vez provado o dano à personalidade,
que a veiculação de notícia ou acontecimento decorreu da imperiosa necessidade de se
alcançar determinado interesse público, restando imprescindível a restrição à privacidade
e à intimidade do indivíduo. O tema, entretanto, em razão de sua elevada importância
e de importantes reflexos em um dos mais caros valores do sistema constitucional
brasileiro, carece de maior aprofundamento e análise.
Relativamente ao nexo causal, cumpre verificar se a divulgação de determinado
evento pretérito deu-se por ato de terceiro ou decorreu de vontade própria do indivíduo,
por meio de autoexposição. De fato, não se imputar responsabilidade ao veículo de
comunicação se os acontecimentos já haviam sido tornados públicos por conduta
atribuível à própria pessoa que pleiteia a condenação. Tendo a própria vítima fomentado
o debate sobre o caso, não se há de invocar o direito ao esquecimento, na tentativa de
se impor versão única e exclusiva dos fatos. Neste ponto, o caso Aída Curi adquire
especial relevo, tendo em vista que um de seus familiares teria publicado mais de um
livro contando detalhes do acontecido, incluindo na obra escrita fotografias do cadáver
sendo examinado, bem como cenas do enterro e detalhes da vida privada da falecida.
Há de se inquirir, neste ponto, se, uma vez lançada ao público a notícia do aconte­
ci­mento, por ato de um dos seus familiares, estaria a vítima, acaso viva, legitimada
a requerer a indenização por violação a suposto direito ao esquecimento, após nova
veicu­lação por parte da mídia. Na mesma toada, em tendo a vítima sucumbido diante
do delito, caberia a um de seus parentes invocar o instituto, mesmo tendo o fato sido
publi­ci­zado por outro familiar?
Embora polêmica a questão, ousamos asseverar que a resposta há de ser negativa
em ambas as hipóteses. Uma vez tornado público o fato, a mera reprodução por parte da
imprensa não tem a aptidão de ensejar o direito à reparação, em razão do rompimento
do nexo de causalidade, visto não ter sido a empresa jornalística responsável pela
rememoração dos fatos, ante a sua anterior divulgação por um dos familiares da vítima.
Como já afirmado, não merece tutela jurídica o mero desejo de que os acontecimentos
sejam narrados ou lembrados de uma ou outra forma, ao bel-prazer do postulante, salvo
quando notoriamente contenham inverdades devidamente comprovadas. No caso em
debate, entretanto, o homicídio de Aída Curi sempre fora apresentado ao público com
versões conflitantes, não havendo certeza absoluta sobre o exato desenrolar dos fatos, de
modo que não se mostraria cabível a pretensão de veiculação de versão exclusivamente
intentada pela família.
Em relação ao pressuposto do dano, tem-se reconhecido, com acerto, que o juízo
de merecimento de tutela de determinado interesse jurídico há de ser realizado no plano
concreto, derivado de uma análise precisa e dinâmica, não resultando em aceitações
gerais pretensamente válidas para todos os casos, mas que se limite a ponderar interesses
à luz de circunstâncias peculiares. O dano, neste trilhar, passa a desempenhar a atípica
função de cláusula geral, permitindo-se que se verifique, na casuística apresentada, se o
interesse supostamente lesado ou violado, pela ótica do ordenamento vigente, é digno de
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
155

proteção, não apenas sob o espectro estrutural e estático da responsabilidade civil, mas
sobretudo pela comparação entre o merecimento de tutela que o ordenamento reserva,
em concreto, aos interesses da vítima e do pretenso responsável.60
A tradicional conceituação de responsabilidade civil, fulcrada na existência
de ato ilícito, cede terreno à noção de dano injusto, apresentando-se incongruente a
tese que superpõe ambos os conceitos.61 A seleção de interesses merecedores de tutela
compensatória, tal como ocorre no Direito italiano, por força da aplicação do art. 2.043 do
Codice Civile, deixa de se fundar única e exclusivamente no elemento da culpabilidade,
encontrando porto seguro no papel desempenhado pelo dano injusto, constituindo o
elemento qualificante da responsabilidade civil.62
Assim é que o dano injusto, apto a ser indenizado, se apresenta como aquele
relevante mediante a realização de ponderação de interesses constitucionalmente
qualificados, diferenciando-se, portanto, do mero fato lesivo ou prejuízo econômico,
ainda que decorrente de ato ilícito, não encontrando este necessariamente proteção
jurídica ante a mediação dos interesses em jogo, admitindo-se, inclusive, em razão da
desvinculação dos conceitos de ilicitude e injustiça, o nascimento do dever de indenizar
em consequência da prática de atos lícitos, por não se mostrar razoável manter-se a
vítima sem ressarcimento, ao efetivar-se o sopesamento de valores no caso concreto.63
No que toca mais de perto o tema em questão, há de se considerar que a mera
existência de ilicitude, ou de prejuízo, seja material ou moral, não gerará, de forma
automática, o dever de indenizar por parte do veículo de comunicação. De fato, ainda
que a divulgação de fatos pretéritos venha a se apresentar, no mundo fático, como
lesivo aos interesses da pessoa afetada pela conduta, há de verificar, em concreto, se os
prejuízos são justificados num juízo de ponderação exercitado em cotejo com o exercício
de liberdade de comunicação.
No badalado caso Aída Curi, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, em
que pese deva se reconhecer a violação do direito ao esquecimento, esta circunstância,
por si só, no caso concreto, não ensejaria o dever indenizatório, considerando-se que o
passar do tempo teria ocasionado a diminuição da dor suportada pela família, deixando
de gerar o abalo moral de outrora, subsistindo apenas mero desconforto.
O entendimento sufragado pela Corte Cidadã merece reparos. Com efeito, a
tendência jurisprudencial, e que conta com suporte de boa parte da doutrina nacional
e estrangeira, se apresenta no sentido da desconsideração do elemento subjetivo na
aferição do dever de indenizar, ante a absoluta impropriedade de mensuração do
sofri­mento da vítima, verificando-se a lesão ao interesse extrapatrimonial no momento
em que o bem objeto de tutela é afetado. A consequência da lesão (dor, sofrimento ou
frustração) mostra-se irrelevante para a verificação do dano injusto, devendo servir

60
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 163-164.
61
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil:
responsabilidade civil. 4. ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 246.
62
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral – indenização no Código Civil. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 180.
63
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil:
responsabilidade civil. 4. ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 247.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
156 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

apenas de parâmetro para a constatação da extensão deste, no momento da quantificação


da indenização a ser concedida.64
Em verdade, no julgamento sob análise, sequer há de se cogitar da existência de
nexo causal entre a conduta da rede televisiva e o suposto dano alegado, visto que, como
já mencionado, os acontecimentos já haviam sido alvo de diversas outras publicações,
inclusive de membro da família da vítima, de forma que se pode afirmar que a veiculação
do programa pouco ou nada contribuiu para a rememoração dos fatos, já bastante
difundidos e conhecidos à época da divulgação do programa televisivo.
No que toca ao modo de ressarcimento dos danos causados, deve-se considerar
que a reparação não pecuniária dos danos extrapatrimoniais experimentados pode se
mostrar, em muitos casos, muito mais adequada aos objetivos perseguidos, atendendo
de forma mais plena aos anseios da vítima ou de sua família, evitando-se ainda a
superproliferação das demandas que visem o ressarcimento pela via patrimonial, bem
como a manutenção da falsa conclusão de que, mediante o pagamento de determinado
montante, se franqueia a todos a possibilidade de violação de direitos da personalidade.65
Assim é que, por exemplo, a retração pública, o direito de resposta e a publicação
da sentença se afiguram como meios idôneos de reparar o dano sofrido, ainda que a
parte tenha apenas postulado a indenização pecuniária, restando ao magistrado ampla
liberdade para estabelecer o remédio adequado ao caso concreto, permitindo-se, assim,
o atendimento do direito material vindicado, qual seja, a integral reparação do dano.66
É certo, entretanto, que, em algumas situações, a tentativa de recolocação da vítima
no estado em que antes se encontrava se mostrará infrutífera, em razão de se operar
apenas de forma aproximativa ou conjetural,67 de modo que, de forma subsidiária, deve-
se permitir a condenação ao pagamento de espécie, ou, a depender do caso concreto, a
combinação de ambas as modalidades reparatórias.

5 Conclusão
A disseminação da informação na sociedade moderna constitui fato inegável
e tem revelado diversos desdobramentos no campo jurídico, mormente no campo da
privacidade e da intimidade do indivíduo. A memória e o esquecimento, fenômenos
outrora relegados ao campo biológico, adquirem especial relevância jurídica, merecendo
tutela e proteção, em face da nova realidade tecnológica vigente e o consequente estrei­
tamento entre os espaços público e privado.
O direito ao esquecimento, ao perpassar do século passado, encontrou amparo
em diversas decisões judiciais, ganhando contornos próprios, como nova modalidade de
direito da personalidade, recebendo maior aderência nas nações da Europa continental,

64
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 133-134.
65
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 193-201.
66
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 201-202.
67
MARTINS-COSTA, Judith. Do inadimplemento das obrigações. In: Comentários ao novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. v. V, t. II.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
157

onde a regulamentação do tema alcançou a via legislativa. Nos EUA, por sua vez, a
tradição jurídica liberal impediu que o instituto tomasse a dimensão vivenciada em
terras europeias, inclinando-se as cortes locais pela preponderância das liberdades
comu­nicativas, ante a previsão da Primeira Emenda.
No Brasil, em face da ausência de disciplina legislativa sobre a problemática,
instauraram-se vozes dissonantes na doutrina acerca da aplicação do instituto em solo
nacional, tendo ganhado relevo a discussão a partir da divulgação do Enunciado nº 531
do Conselho Nacional de Justiça, em março de 2013, e do julgamento de dois recursos
especiais por parte do Superior Tribunal de Justiça, em 28 de maio de 2013, ambos da
relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. A temática será enfrentada ainda pelo Supremo
Tribunal Federal, por meio da análise do RE 1010606-RJ, submetido à repercussão geral,
tendo sido realizada audiência pública no último 12 de junho do corrente ano.
Concluiu-se, por meio da análise da compatibilidade da novel figura jurídica com
o ordenamento pátrio, pela sua aplicabilidade em território nacional, mediante juízo de
ponderação exercido no caso concreto, ainda que diante da posição preferencial inicial
das liberdades comunicativas, quando em cotejo com outros direitos fundamentais, bem
como superadas as críticas formuladas por parcela doutrinária no sentido da ausência
de previsão normativa e indeterminação do instituto.
Na seara da responsabilidade civil, com foco prioritário nos atos praticados por
veículos de comunicação, procedeu-se ao exame dos pressupostos da reparação do dano,
perfilhando-se a tese da aplicação da culpa presumida, bem como se sublinhou o fato
de que a autoexposição constitui causa de rompimento do nexo causal. Defendeu-se
ainda a utilização do dano como espécie de cláusula geral da responsabilidade civil,
invertendo-se o foco outrora centrado na figura da ilicitude, identificando-se os interesses
merecedores de tutela por meio da ponderação casuística.
Por fim, sustentou-se a prevalência da reparação não pecuniária dos danos
extra­patrimoniais advindos da infringência do direito ao esquecimento, e, somente
subsidia­riamente, a condenação em pecúnia, em caso de não se mostrar possível o
restabe­lecimento da situação anterior.

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ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:
UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE
E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS

FERNANDA PONTES PIMENTEL

Introdução
A partir do estabelecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil as relações
privadas passaram por um redimensionamento axiológico. Houve a transcendência às
garantias de liberdade e igualdade consagradas no ideário burguês e surgiram novas
dimensões dos direitos fundamentais individuais que convergiram para a proteção da
pessoa humana.
Nesse movimento, esgaçaram-se as históricas fronteiras entre o Direito Público
e o Direito Privado, em um processo usualmente denominado de publicização, onde
se privilegia a supremacia dos valores sociais e coletivos em detrimento dos valores
individuais. Em paralelo, floresce o fenômeno da “despatrimonialização” e o delinear
de um caminho de redimensão da face pecuniária que marcou o desenvolvimento do
Direito Civil e Comercial e trouxe a mitigação da supremacia da autonomia da vontade
na constituição e efeitos dos negócios jurídicos entabulados.
Diante desse cenário, esse artigo se propõe a analisar os limites entre os supra­
mencionados ramos do Direito e demonstrar que, mesmo sob a inteligência de novos
vetores hermenêuticos, a autonomia da vontade deve ser mantida como um eixo
estruturante das relações jurídicas privadas.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
162 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

1 As fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado e seus


reflexos na autonomia da vontade
Através da herança romanística, adota-se nos sistemas jurídicos ocidentais a
dicotomia1 entre os Direitos Público e Privado, sendo parte integrante da história do
pensamento político e social do Ocidente e sobrevivendo a inúmeras transformações
profundas sofridas pela sociedade, pelo Estado e pelo Direito (BARROSO, 2011:75).
Fortalecendo-se como categoria conceitual definidora do campo de estudos,
especialmente nos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, a polarização entre
os Direitos Público e Privado se caracteriza pelo estabelecimento de um modus operandi na
interpretação e aplicação das normas através da fixação dos interesses a serem tutelados.
Diante da assimilação destas categorias e de sua utilização ao longo de séculos,
tal distinção foi uma categoria a priori para a formação, compreensão e aplicação das
normas jurídicas. Assim, adquire a força de uma das “grandes dicotomias” das quais
uma ou mais disciplinas,

neste caso não apenas as disciplinas jurídicas, mas também as sociais e em geral históricas,
servem-se para delimitar, representar, ordenar o próprio campo de investigação, como por exemplo,
para ficar no âmbito das ciências sociais, paz/guerra, democracia/autocracia, sociedade/comunidade,
estado de natureza/estado civil. Podemos falar corretamente de uma grande dicotomia quando
nos encontramos diante de uma distinção da qual se pode demonstrar a capacidade:
a) de dividir um universo em duas esferas, conjuntamente exaustivas, no sentido de
que todos os entes daquele universo nelas tenham lugar, sem nenhuma exclusão, e
reciprocamente exclusivas, no sentido de que um ente compreendido na primeira não pode
ser contemporaneamente compreendido na segunda; b) de estabelecer uma divisão que
é ao mesmo tempo total, enquanto todos os entes aos quais atualmente e potencialmente
a disciplina se refere devem nela ter lugar, e principal, enquanto tende a fazer convergir
em sua direção outras dicotomias que se tornam, em relação a ela, secundárias (BOBBIO,
2007:13).

Polarizando-se em relação ao Direito Público, o Direito Privado se consolida no


desenvolver do Estado Liberal, uma vez que dava condições para o florescimento e
consolidação da sociedade burguesa, com o amparo das relações fundadas na liberdade
individual e que não se confundiam com as relações políticas e as normas constitucionais.
Nesse período, havia uma supremacia dos interesses privados em relação ao interesse
público, com o fortalecimento de um direito constitutivo da sociedade burguesa
dominante, em um fenômeno apontado por Hesse em que o Direito Privado informava
a elaboração de um direito constitucional (2011:38-40).
Com a consolidação do Estado Social ao longo do século XX as Constituições foram
fortalecidas, sendo instalada uma mudança qualitativa quanto ao alcance das normas
constitucionais – a despeito da preservação de valores típicos do Estado Liberal em
um conjunto de previsões normativas características dos princípios jurídicos privados,
como a preservação da vontade, autonomia negocial, da propriedade privada e da

1
“Ius publicum est quod ad statum rei romanae spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem”. Digesto, Livro I, Título
I, §2º, Ulpiano, que considerava o Direito Público como aquele que trata das coisas do Estado e Direito Privado o
ramo onde os interesses individuais eram tutelados. Disponível em: <https://digitalis.uc.pt/pt-pt/fundo_antigo/
corpus_iuris_civilis_O>, acesso em: 14 jan. 2014.
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
163

livre-iniciativa, com a manutenção do regime capitalista – que podem ser identificadas


como uma aproximação axiológica entre o Direito Público e o Direito Privado.
Nesse processo, tem-se uma relativização no dogma da autonomia da vontade,
que altera a unidade soberana do Direito Privado. Cresce ainda a submissão das
questões privadas aos tribunais, especialmente com a elevação de direitos privados à
categoria de direitos fundamentais, contrariando o tratamento historicamente ligado
à legislação infraconstitucional (HESSE, 2001:12). Estabelece-se uma tensão entre as
auto­nomias privada e pública, em uma relação dialética que se firma na possibilidade
de insti­tucionalização do status de um cidadão dotado de competências para “dizer” e
estabe­lecer o Direito a partir das normas de direito coercivo,2 em um “processo racional
de formação de opinião” a partir da instituição de aspectos procedimentais do uso
público da razão (HABERMAS, 2002:87).
Comungam os interesses públicos e privados, em uma inédita interseção entre
tais ramos do Direito, para que se efetive a proteção da pessoa humana, abrindo-se
espaço para uma reflexão que leve em conta uma superposição entre os espaços públicos
e privados na previsão normativa atual. A Constituição da República, como fonte de
princípios e regras, vai assinalando as bases informadoras do Direito Privado,3 da
organização da economia e da sociedade civil. Questões típicas dos particulares, como
a organização familiar, genética humana, reprodução assistida e aspectos do contrato,
são albergadas pela noção de “interesse público” e, na existência de eventuais conflitos,
são analisadas e dirimidas à luz de valores que transcendem a esfera privada.4
Lorenzetti aponta para um movimento de “privatização” do público, através da
coexistência crescente entre o Estado e iniciativa privada, bem como pela diminuição
do ius imperium¸ seja pelos limites impostos pela norma constitucional ou pela assunção
do papel de mediador entre interesses setoriais integrantes da sociedade, em uma
permanente revisão do que é o interesse público. Destaca ainda que as Constituições
trazem disposições de conteúdo civilista aplicáveis ao Direito Privado.
Para o supracitado autor, o Direito Privado se tornou o campo do Direito Consti­
tucional aplicado, pois tem o condão de detectar o “projeto de vida em comum imposto
pela Constituição” e representa direitos sociais de vigência efetiva (LORENZETTI,
1998:225). Todavia tal concepção reduz a efetividade da proteção constitucional à pessoa
humana às hipóteses previstas no Direito Privado, o que certamente desconsidera a

2
Partindo da definição kantiana de legalidade, Habermas define o direito coercivo como aquele que se estende
apenas às relações exteriores entre pessoas e está “endereçado à liberdade de arbítrio de sujeitos que precisam
orientar-se tão somente pelas respectivas concepções do que seja bom” (2002:86).
3
O conteúdo civil das normas constitucionais deve ser delimitado em função do conteúdo material, estando
constituído por aquelas regulamentações referentes à pessoa, à sua dimensão familiar e patrimonial e às relações
jurídicas privadas gerais. Acresça-se um critério de índole formal, derivado do caráter de norma destinada a fixar
as bases mais comuns e abstratas das relações civis (LORENZETTI, 1998:253).
4
Na história recente do Supremo Tribunal Federal esta interseção tem se manifestado com clareza, a exemplo
da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 132/RJ, que trataram do reconhecimento das famílias igualitárias ou homossexuais, da manifestação sobre
as pesquisas científicas sobre as células-tronco e a questão dos embriões excedentários na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.510/DF, de decisões que afetam o exercício da empresa, tal como no reconhecimento
da inconstitucionalidade da cobrança de tarifas básicas de telefonia na Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 4.478/AP e do reconhecimento da isonomia sucessória entre cônjuges e companheiros a partir da declaração
de inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, conforme o acórdão de repercussão geral no Recurso
Extraordinário nº 646721/MG. Disponíveis em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia>, acesso em: 9 fev.
2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
164 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

gama de direitos sociais e coletivos dotados de grande eficácia. Também cabe ressaltar
a tendência a um reducionismo teórico em se apregoar uma total unificação, pois os
interesses tutelados pelas normas reconhecidas como de Direito Privado se mantêm em
um campo de incidência próprio e não se confundem totalmente com o Direito Público
(FACHIN, 2011:6).
A despeito de uma aproximação axiológica entre os dois ramos do Direito,
ainda persiste a classificação sobre as relações jurídicas a eles pertinentes. Diferencia-se
inicialmente a natureza jurídica do interesse em questão a partir da análise dos sujeitos
envolvidos, se particulares ou entes públicos – em regra, sempre que o Estado for parte,
a relação é regida por normas de Direito Público.5 Também se estabelece a distinção entre
o Direito Público e o Direito Privado através da avaliação do objeto do interesse da parte.
É principalmente nesse aspecto que o esmaecimento das fronteiras entre os dois ramos
se faz bastante evidente. Tradicionalmente, o objeto da proteção do Direito Público
incide sobre questões que envolvam a proteção de bem coletivo ou do interesse social.
Nesse processo, o necessário diálogo instaurado entre os dois ramos do Direito
deve-se postar ao largo da histórica polarização entre ambos e valorizar a supremacia
hierárquica da Constituição e seu papel de garantidora dos direitos assegurados aos
particulares. Citando o artigo 1º, nº 3 da Lei Fundamental Alemã,6 Canaris (2009:22)
aponta que os direitos fundamentais constituíam para o legislador de Direito Privado
simples “asserções programáticas” e hoje devem ser compreendidas como direito
“imediatamente vigente”, incidindo no plano da aplicação com eficácia imediata
(2009:24).
Destarte, sendo o Direito Constitucional um ramo do Direito Público, além da
fina­lidade de regular a proteção aos interesses do Estado, é dotado da função precípua de
promover a tutela aos interesses da pessoa humana para que esta possa se desenvolver
com dignidade. Assim, incidem normas de Direito Público na tutela de interesses
tradicionalmente tidos como espaços do Direito Privado, tal como a propriedade indi­
vidual, o exercício da empresa e a formação da família, aplicados sobre a eficácia imediata
dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente.
Contudo, ainda segue a fundamentação da dicotomia em análise pela verificação
se uma relação jurídica7 é baseada em um estado de coordenação entre os interessados ou
pelo exercício do Estado de seu imperium, em uma subordinação do particular ao interesse
público. Como relação jurídica privada, pode ser compreendida como o conjunto de
relações cujo conteúdo, isto é, os poderes e os deveres, é definido pela autonomia dos
particulares e não subordinados à manifestação do Estado como ente soberano.
Bobbio identifica que, na transformação das relações jurídicas e negociais, a
partir da modernidade, instalaram-se simultaneamente um processo de publicização

5
Destaquem-se hipóteses em que o Estado celebra onde o poder de imperium não está presente, não havendo
supremacia jurídica. Citem-se como exemplo as situações em que o Estado adquire equipamentos de uma rede
distribuidora privada ou veículos de uma determinada concessionária. Ainda assim, Barroso ressalta que, a
despeito da inexistência do poder de império, tal negócio jurídico está submetido às normas específicas que
regulam o Direito Público, tal como a Lei de Licitações, previsão orçamentária e outras (2011:77).
6
“Os direitos fundamentais que se seguem vinculam a legislação, o poder executivo e a jurisdição como direito
imediatamente vigente”.
7
Consistem nas relações sociais de que os indivíduos participam e que, pela possiblidade potencial de gerarem
conflitos de interesses, são reguladas pelo Direito (AMARAL, 2006:160).
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
165

do privado e outro de privatização do público. Tais movimentos caminham juntos e se


fundem de maneira complementar. Para o autor, o primeiro movimento está claramente
refletido na subordinação dos interesses dos particulares aos interesses da coletividade,
representada pelo Estado, e pode-se estender tal compreensão à proteção que o Estado
deve conferir às relações privadas, saindo do papel de Estado-Juiz, que interferia quando
havia uma violação a um interesse subjetivo, para uma ação político-jurídica de promoção
do bem-estar e dignidade humana. Como segundo movimento, trata de uma espécie de
“revanche” dos interesses privados

através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance
dos próprios objetivos. O Estado pode ser corretamente representado como o lugar onde se
desenvolvem e se compõem, para novamente decompor-se e recompor-se, estes conflitos,
através do instrumento jurídico de um acordo continuamente renovado, representação
moderna da tradicional figura do contrato social (BOBBIO, 2007:27).

Logo, a constitucionalização atua como fundamento de validade da norma


infracons­titucional, “compreendendo uma teoria da interpretação inspirada no persona­
lismo e na preeminência da justiça sobre a letra dos textos” (PERLINGIERI, 2008:54).
Destaca Hesse que em um Direito Privado/Civil que seja forte e que tenha como fun­
damento a liberdade individual, a proteção dos direitos da personalidade e da autonomia
privada é fundamental para a responsabilização do indivíduo perante si mesmo, sua
família e perante o Estado. A capacidade de autodeterminação e a responsabilidade são
essenciais para a efetivação de uma ordem constitucional legítima e democrática – para
o autor,

só sobre os homens que pensam, julgam e atuam por si mesmos descansa o potencial das
novas ideias, concepções e iniciativas indispensáveis para a comunidade, sem as quais esta
com o tempo irá empobrecer-se, se não fossilizar-se, cultural, econômica e politicamente, e
dos quais dependerá de forma crescente em um tempo de mudanças fundamentais como
o nosso (2001:70, 87).

Na atualidade, pensar esta inter-relação é conceber que a Constituição, expressão


máxima da normatividade vigente, é dotada de parâmetros axiológicos e normativos
para a aplicação das normas privadas e das decisões judiciais a ela referentes. Tal fe­
nômeno não se parece propriamente com um processo de publicização, mas sim de uma
relação dinâmica entre a lex magna e os dispositivos infraconstitucionais que regulam
as ações privadas, em uma proposição de efetividade, garantia, orientação e estímulo à
constituição de tais vínculos (Hesse, 2001:73-74, 83).
Transcende-se a função de regular a autodeterminação dos interesses individuais,
passando as relações de Direito Privado a serem balizadas por fundamentos de igualdade
material e justiça social, na assunção de princípios jurídicos até então dissociados dos
institutos de Direito Privado. Aponte-se que a assunção de novos valores axiológicos
pelo Direito Privado não lhe tirou a função de preservação das relações individuais, da
livre manifestação negocial e titularização de bens e direitos, mantendo-se como espaço
da prática da liberdade individual.
Assim, para a efetiva coexistência dos espaços de regulamentação dos interesses
públicos e privados, Habermas aponta ser necessário identificar a coesão interna entre
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
166 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

os direitos subjetivos das pessoas em particular e a autonomia pública dos cidadãos do


Estado, participantes da construção dos sistemas jurídicos aplicáveis sobre a coletividade.
Aponta o autor que há uma imbricada relação entre as autonomias pública e privada,
uma vez que os direitos subjetivos de particulares somente serão plenos de liberdades
subjetivas se os seus titulares tiverem clareza quanto aos interesses e parâmetros justos,
com vistas a tratar com “igualdade o que é igual, e com desigualdade o que é desigual”
(HABERMAS, 2002:295).
Na efetivação das liberdades subjetivas, o Direito Privado se firma como o ramo do
Direito destinado à solução de conflitos entre particulares, o Direito Privado é dotado na
atualidade de uma racionalidade própria – o proprium, isto é, sua característica essencial –,
onde se permite vislumbrar o consenso como mecanismo primeiro para resolver as
questões surgidas em sua área de incidência. Desta maneira, entendendo-se a composição
entre os sujeitos implicados em uma relação privada como principal critério para a
formação de uma ordem jurídica de Direito Privado, supera-se a percepção da subsunção
a um comando hierárquico normatizado como eixo dos laços entre particulares.
Identifica-se que existe uma formação autônoma-privada, que deve ser vista dento
de um quadro de ordem política – assegurado por um conjunto de normas típicas de
Direito Público fortes – que garanta os pressupostos básicos para o “exercício fático da
autonomia privada contra as ameaças decorrentes do poder privado” (GRUNDMANN,
2014:234). Partindo desse prisma, pode-se perceber que hoje o centro do Direito Privado
não está tão somente na autonomia privada, mas especialmente na tensão entre esta
autonomia e a função de proteção do Estado,8 imprescindível para a preservação da
autonomia material (fática) de todos os concernidos.
Aponta-se como elemento central da supracitada tensão a identificação de um
necessário ponto de equilíbrio entre a incidência da autonomia privada como corolário
da liberdade individual e a valorização da dignidade da pessoa humana, especialmente
em casos em que o comportamento do particular assume dimensões que incidem sobre
a dignidade como um “bem social” e proteja-se sobre o conjunto de valores firmados
na sociedade.9

8
Grundmann exemplifica esta tensão através da proteção ao direito de propriedade, exemplo plenamente
aplicável ao contexto do Direito Privado brasileiro. Narra o autor que no Direito Constitucional alemão a
garantia da propriedade, como direito fundamental central para a ordem jurídica privada, compreende também
os direitos obrigacionais e societários. Mas a tensão entre a autonomia privada e a proteção estatal emerge na
vinculação social da propriedade, nos termos do artigo 14, parágrafo 1º, alínea 2 da Lei Fundamental Alemã, que
é permanentemente confrontada com a liberdade de ser proprietário (2014:235).
9
Instado a se manifestar sobre a constitucionalidade da disposição das células-tronco e a utilização dos embriões
excedentários nos termos do artigo 5º da Lei nº 11.105, de 25 de março de 2005, o Supremo Tribunal Federal
entendeu pela legalidade da sua utilização e ainda que o emprego das técnicas de fertilização in vitro e
armazenamento dos embriões excedentários estão protegidos pela autonomia privada e o livre planejamento
familiar assegurados pela Constituição da República, entendendo que “a opção do casal por um processo
in vitro de fecundação artificial de óvulos é implícito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para
esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que
se revelem geneticamente viáveis. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo
binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos recorrer a técnicas de reprodução assistida
que incluam a fertilização artificial ou ‘in vitro’. De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público
subjetivo à ‘liberdade’ (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade”.
Quanto ao questionamento de que as pesquisas com as células-tronco seriam procedimentos que violariam a
dignidade humana e a proteção constitucional à vida, caracterizando uma espécie de aborto, a Suprema Corte se
manifestou no sentido que só há formação da vida se houver a fixação do embrião à parede intrauterina e ainda
que o direito à pesquisa está no plano das liberdades individuais, fortalecidas pelo direito à saúde como direito
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
167

Diante do panorama traçado, pode-se perceber um caminho de superação da


histórica polarização entre os ramos do Direito Público e Privado. Contudo, para efeitos
didáticos e, especialmente, procedimentais, ainda se faz relevante a identificação das
áreas de incidência dos dois ramos do Direito. Mas se faz necessária a instalação de um
diálogo entre a atuação pública e os interesses privados, hoje marcados, sobretudo através
da ação do Poder Judiciário, para que cessem potenciais lesões à dignidade humana
como princípio constitucional objetivo e autônomo, cotejado com a livre manifestação
de vontade como fruto da autonomia privada (STEINMETZ, 2004:228).

2 A manifestação de vontade como fonte de vínculos jurídicos e


negociais
Cada ser, como sujeito de sua história, desenvolve uma consciência de si mesmo
como uma espécie de entidade separada, que lhe permite racionalizar sobre a duração
da vida, seu nascimento, morte e aleatoriedade de uma gama de acontecimentos que
fogem à ação humana, tais como o não estabelecimento de relacionamentos pretendidos, a
ruptura indesejada de vínculos ou, ainda, a morte prematura de entes queridos (FROMM,
2000:11), que o coloca em uma permanente tensão com a alteridade na construção de
sua identidade e racionalidade. Essa racionalização da consciência compõe a condição
humana, que está inexoravelmente vinculada à vontade como capacidade interna de
decisão e à autonomia, poder de autorregulamentação de interesses segundo o querer
manifestado por seu titular (MEIRELES, 2009: 100). Procura-se através da vontade
manter uma espécie permanente de libertação da consciência de que o ser humano é só
e impotente perante as forças da natureza e da sociedade.
A vontade tem fundamentação em uma aspiração, um desejo, sendo definida por
Kant (2003:62) como a “faculdade do desejo cujo fundamento determinante – e daí até
mesmo o que lhe é agradável – se encontra na razão do sujeito”. Há um livre arbítrio na
esfera das escolhas do indivíduo que é informado pela razão pura, em um processo de
firmar suas opções de vida e construir uma subjetividade que lhe permita se constituir
como ser dotado de autonomia. Tal arbítrio não se confunde com a escolha animal, o
arbitrium brutum, mas consiste em uma escolha que, embora possa ser realmente afetada
por impulsos, “não pode ser determinada por estes, sendo, portanto, de per si, (à parte
de uma competência da razão) não pura, podendo, não obstante isso, ser determinada
às ações pela vontade pura” como uma faculdade do desejo tida como fundamento de
uma escolha de ação (KANT, 2003:63).
Tal manifestação do desejo passa a ser concebida na proteção aos interesses dos
particulares como norteadora das relações negociais, delineando-se como vontade e
concretizada como o princípio da “autonomia da vontade” desde o Direito Romano.

fundamental, não havendo “ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com
células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração
solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade
e do viver com dignidade”. Este caso demonstra claramente a tensão existente entre interesses particulares
contrapostos e os reflexos de determinadas ações em uma “moral social”, sendo imprescindível a ação do
Estado-Juiz na composição dos conflitos já deflagrados e os potencialmente existentes. STF, Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.510/DF, relator Ministro Ayres Britto, julgado em 29.05.2008, disponível em: <http://
www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia>, acesso em: 9 fev. 2014.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
168 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Contudo, chega a seu ápice na Revolução Francesa, consolidando-se como princípio


com o liberalismo econômico dominante nos países ocidentais ao longo dos séculos
XVIII e XIX.
Com o advento do Código Civil de Napoleão, a autonomia da vontade passa a ser
princípio informador do sistema jurídico de Direito Privado, em uma consolidação do
voluntarismo contratualista (MARTINS-COSTA, 2000: 203). Desta forma, ao longo da
trajetória cumprida pelas pessoas na modernidade, as relações entre particulares foram
pautadas pela concepção de que a autonomia da vontade garantiria a preservação dos
interesses das partes envolvidas. Como princípio, a autonomia da vontade é desenvolvida
por Kant, que a compreende como uma manifestação do próprio querer que, respeitando
critérios universais, se firme como uma escolha individual, sendo a própria razão e
fundamento da ação pretendida. Para o autor

é impossível pensar uma razão que com a sua própria consciência recebesse de qualquer
outra parte uma direção a respeito de seus juízos, pois que então o sujeito atribuiria não à
sua razão, mas a um impulso, a determinação da faculdade de julgar. Ela deve considerar-se
a si mesma como autora dos seus princípios, independentemente de influências estranhas;
por conseguinte, como razão prática ou como vontade de um ser racional, deve considerar-
se a si mesma como livre; isto significa que a vontade desse ser não pode ser a vontade
própria senão sob a ideia da liberdade, e, portanto, tal vontade é preciso atribuir, em sentido
prático, a todos os seres racionais. (KANT, 2004:81).

A vontade como exteriorização dos quereres deve ser informada a partir de uma
lei moral marcada por três imperativos categóricos,10 de modo que o manifestante deve
sempre se portar de modo que sua máxima, como verdade, possa se tornar lei universal.
Deve-se também agir como se a máxima da ação devesse se tornar, por ato da vontade
do próprio declarante, uma lei universal da natureza. Por fim, deve-se agir de tal modo
que a humanidade, tanto na pessoa do emitente da vontade quando qualquer outro
ser humano, possa sempre ser vista como um fim em si mesmo e não apenas como um
instrumento ou meio para se alcançar os objetivos pretendidos (KANT, 2004: 59-67).
Nas reconfigurações das relações sociais, o indivíduo inserido na sociedade
contemporânea tem uma trajetória marcada pela necessidade de uma existência indi­
vidual, autônoma e livre das “amarras” impostas pelo Estado como soberano. Procura-
se através da norma e do Direito alcançar o pleno exercício da liberdade humana e de
sua autonomia, em um constante intercâmbio entre os atores envolvidos nos processos
sociais – indivíduo, sociedade e poder estatal. Tratada como soberana na constituição
dos negócios jurídicos, existe uma racionalidade própria do Direito na aceitação da
livre manifestação volitiva. No pensamento hegeliano (1997:40), cabe ao Direito e, por
conseguinte, ao Estado o papel fundamental de se orientar por uma moralidade objetiva
e universal com o fim de refrear a moral subjetiva humana, com suas manifestações que
tendem à irracionalidade e potencialmente lesivas à coletividade. Esse papel visa garantir
ao ser humano o exercício da liberdade e da subjetividade sob um balizador racional.

10
Imperativo categórico, na concepção kantiana, configura-se como um “mandamento absoluto”, insuscetível de
subordinação a nenhuma condição exterior. É tido como um valor absoluto da moralidade em Kant, fundando-se
na razão pura. Traduz-se em um mandamento que contém uma máxima universal, impondo-se por si mesmo e
por esta razão deverá ser respeitada no plano empírico e não apenas no mundo ideal (2004:51).
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
169

Assim, sendo a vontade livre um ponto de partida do Direito, sua “base própria”
e corolário da liberdade individual, constitui a sua substância e seu destino, uma vez que
o “sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido
como uma segunda natureza a partir de si mesmo”, mas sempre marcada pela ação do
estado normatizador (HEGEL, 1997:12).
Partindo-se do pressuposto de que a ação do Estado é normatizadora da vontade
no âmbito privado, é possível se dividir a concepção de liberdade no aspecto subjetivo e
objetivo. No aspecto subjetivo, a liberdade pode ser compreendida como autonomia da
vontade, sendo a faculdade do sujeito de direito criar, modificar e extinguir suas relações
jurídicas. Em seu aspecto objetivo, a liberdade pode ser compreendida como um poder
jurídico normativo, capaz de criar juridicamente essas relações, estabelecendo-lhes
o respectivo conteúdo e disciplina, denominando-se autonomia privada (AMARAL,
2006:22-23). Assim, a despeito de limitações individuais, a vontade segue sua trajetória
como um dos eixos da sociedade ocidental, manifestando-se por uma face pública e outra
privada estruturada a partir dos valores fundamentais privados expressos no Código
de Napoleão: o indivíduo como sujeito de direito, conferindo um formato jurídico novo
à tutela dos interesses humanos.
Criadora de direitos e deveres, a vontade manifestada na forma da lei se revela
como constitutiva de situações jurídicas subjetivas que dependem de sua manifestação
para que se caracterizem e produzam efeitos. É expressão da liberdade individual no
surgimento de relações obrigacionais, especialmente de natureza contratual, onde o
sujeito é dotado de uma faculdade de autorregulamentação de interesses na criação
e efeitos do negócio pretendido, a despeito da fixação de limites pelo direito objetivo.
Delineia-se desta forma a subjetividade, que, como uma construção jurídico-normativa,
faculta ao seu titular a possibilidade de manifestar o seu querer de maneira autônoma.
Como fruto das liberdades subjetivas, a manifestação de vontade se dirige ao outro
e necessita gerar um reconhecimento intersubjetivo entre o declarante e o declaratário,
pois, como elementos da ordem jurídica, pressupõe a “colaboração de sujeitos que
se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos
uns aos outros, como membros livres e iguais do direito” (HABERMAS, 2002:126) e,
por consequência, da ordem jurídica. A construção da relação jurídica se irrompe na
força da exteriorização volitiva, no exercício do direito subjetivo como poder de agir
para realização de um interesse, apoiando-se no reconhecimento mútuo de sujeitos de
direito que cooperam entre si. Dessa maneira, os interesses manifestados se revestem
da juridicidade inerente aos direitos subjetivos em razão de sua coorigem com o direito
objetivo.
A construção da intersubjetividade é fundamental para a eficácia das manifesta­
ções de vontade, uma vez que, em decorrência da vinculação dos efeitos da vontade à
previsão legal, a existência da vontade exarada de forma livre e consciente por si só não é
capaz de atrair a proteção do Direito, que confere legitimação às manifestações efetivadas
em conformidade com os princípios e regras do ordenamento vigente, analisando-a a
partir do campo do dever ser. Faz-se necessária a existência de uma vontade juridicamente
qualificada e dirigida ao alcance de determinado interesse para que se possa alcançar
a eficácia pretendida (SANTORO-PASSARELLI, 1961: 228-229). A vontade também se
manifesta como elemento estruturante nas situações jurídicas subjetivas onde o sujeito de
direito tem o condão de estabelecer seus próprios vínculos e relações, mas cujos efeitos
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
170 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

estão subordinados à previsão legal, a exemplo da constituição voluntária de direitos


reais sobre coisa alheia, como o usufruto, o direito real de superfície, servidões, e os de
garantia, como a hipoteca, o penhor e a alienação fiduciária (AMORIM, 2008:60-61).
Vislumbra-se ainda a força estruturante da vontade nas situações jurídicas subje­
tivas onde a lei dispõe sobre sua criação e efeitos, a exemplo das relações jurídicas de
direito de família. Nesses casos, a vontade tem o papel preponderante na configuração
dos vínculos, compondo como elemento categorial11 dos atos jurídicos constituídos,
mas em regra é despida da capacidade de produzir efeitos jurídicos, preestabelecidos
por lei – ressalve-se a questão da possibilidade de fixação dos limites da comunhão
patrimonial, onde a manifestação volitiva tem força jurígena.
Concebida como princípio jurídico, a autonomia da vontade é dotada de um
caráter subjetivo que confere ao sujeito de direito uma condição de expressar a liberdade
individual, demonstrando uma proteção à vontade psicológica do agente. Forjado como
fundamento jurídico de uma política econômica liberal, tem por finalidade precípua
garantir a vontade do indivíduo como causa principal das relações jurídicas. Em Kant se
pode compreender que a autonomia da vontade deve ser capaz de gerar uma vinculação
entre a sua manifestação e os efeitos jurídicos pretendidos e que é dotada da

propriedade que a vontade possui de ser lei para si mesma (independentemente da natu­
reza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, pois: escolher sempre de modo
tal que as máximas de nossa escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo, como leis
universais, no ato de querer. Que esta regra prática seja um imperativo (2003:32).

Esta manifestação volitiva autônoma assegura ao indivíduo a condição de ter sua


vida privada e seus desejos respeitados. Aquilo que o sujeito deseja para si mesmo deve
ser respeitado como expressão de sua liberdade e individualidade, a menos que o seu
“querer” seja potencialmente lesivo à sociedade ou aos interesses primordiais do Estado.
Mas é fundamental para a manutenção do Estado de Direito que o indivíduo não seja
coagido em sua vontade (ARAÚJO, 2014:427) e que ela seja protegida de maneira que
sua manifestação seja um elemento viabilizador da relação jurídica pretendida.
Contudo, as transformações socioeconômicas empreendidas ao longo do século
XX trouxeram uma crescente intervenção do Estado nas relações privadas, o que gerou
uma tensão entre o interesse supraindividual e a soberania do querer. Destarte, dá-se um
afrouxamento da autonomia da vontade como eixo da constituição dos atos negociais,
que, para Tepedino,

a noção de autonomia da vontade, como concebida nas codificações do Séc. XIX dá lugar
à autonomia privada, alterada substancialmente nos aspectos subjetivo, objetivo e formal.
No que se refere ao aspecto subjetivo, observa-se a passagem do sujeito abstrato à pessoa
concretamente considerada. O ordenamento jurídico, que desde a Revolução Francesa,
graças ao princípio da igualdade formal, pôde assegurar a todos tratamento indistinto,
passa a preocupar-se, no direito contemporâneo, com as diferenças que inferiorizam a
pessoa, tornando-a vulnerável (2003-2004:171).

11
Os elementos categoriais são tomados como aqueles que caracterizam a natureza jurídica dos negócios jurídicos
constituídos, decorrentes não da vontade da parte, mas da ordem jurídica. A lei e o modo de sua interpretação
pela doutrina e jurisprudência são definidores dos elementos essenciais a cada tipo de negócio, sendo tais
elementos inafastáveis pela vontade das partes celebrantes (AZEVEDO, 2000:35-36).
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
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Assim, transmuta-se da autonomia da vontade, como princípio norteador da


liberdade de agir baseada no discernimento e livre-arbítrio de seu titular, para a auto­
nomia privada, que assume o status de princípio estruturante das relações negociais
celebradas entre sujeitos dotados de uma presumida igualdade material outorgada pela
lei e que se firma como fonte de direitos e obrigações nos negócios jurídicos privados.

Conclusão
A consolidação do princípio da dignidade da pessoa humana como fundante da
nova ordem jurídica e como vetor da proteção do Estado e do respeito da comunidade
traz a necessária aplicação de um complexo de direitos e deveres que devem repelir as
práticas discriminatórias ou degradantes. Em franca superação à herança patrimonialista
do liberalismo, a autonomia da vontade passa a ser informada pela valorização existencial
em detrimento da soberania dos pactos individuais, levando a um redimensionamento
do Direito Privado. A pessoa humana é guarnecida de uma nova potencialidade de
querer e buscar seus objetivos em condições de igualdade substancial.
A tutela efetiva ao sujeito de direito traz uma necessária sinergia entre os dois
ramos do Direito e parece que, mais que pensar em publicização do Direito Privado, está
em curso uma constitucionalização da proteção aos particulares. Constitucionalização
que importa inicialmente em uma espécie de “lastro” à concepção e aplicação do Direito
Privado. Contudo, reduzir esta interação a esta finalidade é ignorar o movimento em que
as tarefas, a natureza das questões tratadas e as funções de cada um dos ramos do Direito
são submetidas a uma justaposição, em uma relação recíproca de complementaridade
e dependência.
Há o desenrolar de um possível processo de constitucionalização que consiste em
uma elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais de Direito Civil, com
a finalidade de submeter o direito positivo aos fundamentos de validade estabelecidos
pela Lei Maior, admitindo o “embaralhamento” de interesses públicos e privados dentro
de um só princípio fundante ou em uma determinada relação jurídica.
Nesse cenário, mais que estabelecer-se a supremacia de interesses públicos ou
privados, faz-se necessária a construção de um Direito que convirja para a tutela da
pessoa humana em suas relações civis e empresariais de maneira a assegurar-lhe uma
existência digna e capaz de trazer ganhos reais para toda a sociedade.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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PIMENTEL, Fernanda Pontes. Entre o público e o privado: um estudo sobre a manifestação de vontade
e seus efeitos nas relações negociais. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 161-172. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA
NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS
PERUANA E ARGENTINA

JACQUELINE LOPES PEREIRA

1 Introdução
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi assinada há mais
de uma década e, dentre os direitos contemplados nesse tratado internacional, ganham
relevo as noções de capacidade legal e medidas de apoio para o seu exercício, impressas
em seu artigo 12, relativas às pessoas com deficiência mental ou intelectual.
O desafio de compatibilizar a ideia de igual capacidade dessas pessoas é comum
a todos os países signatários da Convenção. Especialmente nos países de tradição Civil
Law, a adequação de conceitos presentes nos códigos, como é o caso do regime das
capacidades no Direito brasileiro, é uma tarefa que incumbe à legislação e também à
doutrina.
Nesse sentido, a capacidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual é
provida por medidas de apoio que ofereçam o instrumental mais adequado possível
às necessidades de sua capacidade cognitiva. A ideia de tomada de decisão com apoio
ganha notoriedade para o atendimento dessa exigência do tratado internacional.
Partindo deste cenário, a pesquisa se divide em três seções. Na primeira, o artigo
explora a interpretação de “capacidade legal” e investiga o sentido pretendido pelos
sistemas de apoio à capacidade das pessoas com deficiência mental ou intelectual.
Em segundo tópico, o trabalho demonstra o panorama geral de internalização da
Convenção nos países da América do Sul, expondo de modo ilustrativo o movimento
de alteração do Código Civil peruano e as alterações na legislação argentina sobre a
tomada de decisão com apoios. Tal análise pretende demonstrar quais as propostas
legislativas desses dois Estados, que despontam na região com suas iniciativas no sentido
de atender à CDPD.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
174 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Por fim, a pesquisa verticaliza a Tomada de Decisão Apoiada prevista no


ordenamento jurídico brasileiro e sua compatibilidade com as orientações do tratado
internacional, apresentando alguns dos desafios presentes para sua efetividade.

2 Capacidade legal: limites e possibilidades descortinadas pela


Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
Há inquietude quanto à aplicação e coerência das alterações propostas pela
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, doravante CDPD, no Direito
Civil. Os países de tradição Civil Law ou “romano-germânica” signatários do referido
tratado e a sociedade civil pautaram a redação do tratado mirando o lema “Nada sobre
nós sem nós”.
A CDPD teve a pretensão de abarcar sob o signo “pessoa com deficiência” uma
pluralidade de diferentes formas de existir, adotando em seu artigo 1º um conceito
relacionado à interação de impedimentos da pessoa com os obstáculos (físicos ou não)
presentes em seu entorno.1
Essa definição tem como marco o chamado “modelo social” de abordagem da
deficiência.2 Segundo Rafael de Asís, esse modelo afirma que a vulnerabilidade da
vivência da pessoa com deficiência é fruto de sua relação com o ambiente e as barreiras
a ele inerentes.3 Tal visão abandona o “modelo médico”, que segregava as pessoas com
deficiências mentais ou intelectuais com o fim de “tratá-las” ou “normalizá-las”, o que
representou o padecimento de muitas em instituições manicomiais.
Como passo adiante ao próprio modelo social, Agustina Palacíos e Javier
Romañach propõem o “modelo da diversidade” fundamentado na igualdade material e
tratamento do ser humano conforme as características que o individualizam, substituindo
a “deficiência” por “diversidade funcional” ou “diversidade orgânica”.4

1
Artigo 1º. O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo
de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o
respeito pela sua dignidade inerente. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.  (BRASIL.
Decreto n. 6.949/2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 25 maio 2018).
2
Débora Diniz e Marcelo Medeiros explicam que o modelo social guarda suas origens no Reino Unido, década
de 1960, e a partir de corrente político-teórica denominada “Social Disability Movement”, embasada na noção de
deficiência como “experiência resultante da interação entre características corporais do indivíduo e as condições
da sociedade em que ele vive” (Diniz, Débora; Medeiros, Marcelo. Envelhecimento e Deficiência. In: Muito
além dos 60: os novos idosos brasileiros. Rio de Janeiro: IPEA, 2004. p. 108). Ana Paula Barbosa-Fohrmann e
Sandra Kiefer complementam que esse modelo centraliza-se na busca de direitos para a fruição das condições
humanas básicas com cuidado e apoio (BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula; KIEFER, Sandra Filomena Wagner.
Modelo social de abordagem dos direitos humanos das pessoas com deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra
de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: convenção sobre os direitos da
pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 74).
3
ASÍS, Rafael de. “Derechos humanos y discapacidad” – Algunas reflexiones derivadas del análisis de la
discapacidad desde la teoria de los derechos. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com
deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei
Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 3-30.
4
PALACÍOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidad: una nueva visión de la bioética desde
la perspectiva de las personas con diversidad funcional (discapacidad). In: Intersticios: Revista Sociológica de
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
175

Seja pelo modelo social, seja pelo modelo da diversidade, uma conclusão é
inevitável: a de que as pessoas com deficiência demandam diferenciada forma de
tratamento, na medida de suas desigualdades e potencialidades, em harmonia com o
corolário de igualdade substancial.
Colhe-se contributo de Judith Butler para compreender as noções de “precariedade”
e de “condição precária” da vida humana. Segundo a autora, toda vida é dotada de
precariedade, todavia, “a condição precária designa a condição politicamente induzida
na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e
ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte”.5
Desse modo, o sentido circunstancial da condição precária justifica a elaboração
de normas protetivas a pessoas com deficiência em direção a um cenário mais igualitário.
E quando se trata da pessoa com deficiência mental ou intelectual, as medidas de apoio
para assegurar a capacidade legal emergem como tema exigente de especial zelo.
A respeito da elaboração da Convenção, cita-se a aguçada análise de Amita Dhanda
sobre os trabalhos do Comitê Ad Hoc.6 Instaurado em 2001 pela Resolução nº 56/168 da
Assembleia Geral da ONU, esse comitê tinha o objetivo de elaborar uma convenção
internacional com redação ampla e integral visando garantir e promover os interesses,
direitos e dignidade das pessoas com deficiência.7
Destaca-se que houve consenso quanto à noção de que toda pessoa com deficiência
seria dotada da “capacidade de direito”, o que não ocorreu nas discussões sobre a
“capacidade de exercício”.8 Evidenciou-se a necessidade de estabelecer instrumentos de
apoio e salvaguardas proporcionais às exigências das pessoas com deficiência mental
ou intelectual para exercer a capacidade legal.
A redação final do artigo 12 da CDPD9 adotou a “capacidade legal” em seu sentido
conglobante, isto é, como sinônimo da conhecida “capacidade jurídica”, e imersa na
perspectiva de apoios e suportes à pessoa com deficiência de forma gradual para o

Pensamento Crítico, v. 2, (2), 2008. Disponível em: <http://www.intersticios.es/article/view/2712/2122>. Acesso


em: 25 maio 2018.
5
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
p. 46-47.
6
DHANDA, Amita. Legal capacity in the disability rights Convention: stranglehold of the past or lodestar for the
future? In: Syracuse Journal of International Law & Commerce, v. 34. 429-462, 2007.
7
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe del Comité Especial encargado de preparar una convención
internacional amplia e integral para protegery promover los derechos y la dignidad de las personascon discapacidad sobre su
quinto período de sesiones. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/enable/rights/ahc5reports.htm>. Acesso
em: 25 out. 2017.
8
DHANDA, Amita. Legal capacity in the disability rights Convention: stranglehold of the past or lodestar for the
future? In: Syracuse Journal of International Law & Commerce, 2007, v. 34. p. 438-439.
9
Artigo 12. Reconhecimento igual perante a lei. 1. Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm
o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas perante a lei. 2. Os Estados Partes reconhecerão
que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em
todos os aspectos da vida. 3. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas
com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal. 4. Os Estados Partes assegurarão
que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas
para prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas
assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as
preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e
apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à
revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas
serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa. 5. Os Estados
Partes, sujeitos ao disposto neste Artigo, tomarão todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar às
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
176 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

exercício de suas liberdades. De acordo com Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk e Luiz
Alberto David Araújo, esse conceito funda-se em “juízo concreto sobre as potencialidades
humanas”.10
O citado artigo 12 da CDPD determina que os Estados signatários façam as
alterações necessárias em suas legislações internas para consolidar o sentido conglobante
da “capacidade legal” e criar medidas que possibilitem o acesso de pessoas com
deficiência mental ou intelectual ao suporte e a redes de apoio para tomada de decisões.
Segundo Volker Lipp, estudioso europeu da Convenção, as medidas de apoio a
serem construídas pelas legislações devem se atrelar às potencialidades individuais das
pessoas com deficiência mental ou intelectual e seria possível manter institutos como
a guarda ou a curatela nos diplomas de Direito Civil, desde que sua função priorize
o suporte à tomada de decisão da pessoa com deficiência, sem excluir ou limitar sua
capacidade legal.11
Nessa toada, é importante observar a diferenciação entre “capacidade legal”
e “capacidade mental”. Mary Keys afirma que enquanto a capacidade legal envolve
a “habilidade de ter direitos e deveres”, a capacidade mental se refere à habilidade
de comunicação que varia de uma pessoa com deficiência a outra, que não pode ser
desconsiderada ou solapada pela imposição de decisão de terceiro sobre sua vida.12
Assim, permitir que a pessoa com deficiência tome decisões contando com
instrumentos e redes de apoio é um modo de respeitar seus direitos e desenvolver suas
potencialidades, em conformidade com as diretrizes lançadas pela Convenção.
Em conclusão a esse primeiro tópico, denota-se que a noção de “capacidade
legal” descortinada pela CDPD é sinônimo de “capacidade jurídica”, englobando
tanto a capacidade de direito quanto a capacidade de exercício. Não obstante, o tratado
internacional vai além. Ele desafia os Estados signatários a promover alterações em seus
sistemas internos para construir medidas de apoio que condigam com as potencialidades
das pessoas com deficiência mental ou intelectual, em superação ao sistema clássico de
substituição da vontade.

pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual
acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas
com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens. (BRASIL. Decreto n. 6.949/2009: Promulga a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em
Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
decreto/d6949.htm>. Acesso em: 25 maio 2018).
10
ARAUJO, Luiz Alberto David; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A perícia multidisciplinar no processo de
curatela e o aparente conflito entre o estatuto da pessoa com deficiência e o código de processo civil: reflexões
metodológicas à luz da teoria geral do direito. In: Revista de direitos e garantias fundamentais, Vitória, vol. 18, n. 1,
p. 233, jan./abr. 2017. Disponível em: <http://sisbib.fdv.br/index.php/direitosegarantias/article/viewFile/867/330>.
Acesso em: 25 maio 2018.
11
LIPP, Volker. Guardianship and Autonomy: Foes of Friends? In: ARAI, Makoto; BECKER, Ulrich; LIPP, Volker.
Adult Guardianship Law for the 21st Century: Proceedings of the First World Congress on Adult Guardianship Law
2010. Munique: Nomos Verlagsgesellschaft, 2013. p. 110.
12
“Legal capacity provides the opportunity to make key quality of life decisions that non-disabled people take for granted,
instead of decisions being made by others such that over time capability for decision-making skills not only is not developed
as is the norm but also is weakened or lost”. Em tradução livre: “Capacidade legal fornece a oportunidade de tomar
decisões-chave de qualidade de vida que pessoas sem deficiência têm como garantia, ao invés de decisões serem
feitas por outros, de modo que ao longo do tempo a capacidade de tomar decisões não apenas não se desenvolve,
como também é enfraquecida ou perdida.”. (KEYS, Mary. Article 12 [Equal recognition before the law]. In:
CERA, Rachele; DELLA FINA, Valentina; PALMISANO, Giuseppe. The United Nations Convention on the rights of
persons with disabilities: a commentary. Cham: Springer, 2017. p. 269-270).
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
177

Tal desafio é visualizado globalmente e é pertinente observar o cenário regional


da América do Sul no desenvolvimento de respostas ao objetivo desejado pela CDPD.

3 Cenário dos sistemas de apoio na América do Sul e as propostas do


Peru e da Argentina
Antes de analisar o estado da arte da legislação brasileira em atendimento ao
artigo 12 da CDPD, propõe-se contextualizar em que passo estão os demais Estados da
região continental no tratamento da temática. Não é pretensão deste exame promover
um estudo de Direito Comparado, mas sim visualizar “como” e “se” os países sul-ame­
ricanos signatários estão atendendo ao contido na Convenção.
Em primeiro lugar, nota-se que todos os países sul-americanos aderiram à
CDPD13 e o último Estado da região a ratificá-la foi o Suriname, em 2017,14 o qual ainda
não alterou sua legislação interna a respeito da capacidade da pessoa com deficiência
mental ou intelectual.
Quanto aos demais países, são tecidas breves notas sobre os atuais estágios de
implementação do comando previsto no artigo 12 da CDPD.
Em 2016, a Bolívia publicou a Lei nº 223, conhecida como “Ley general para
Personas con Discapacidad”, que dispõe em seu artigo 20 sobre o direito de pessoas com
deficiência tomarem decisões independentes segundo suas possibilidades e meios.15 Tal
legislação, porém, apenas constrói normas gerais sobre a autodeterminação das pessoas
com deficiência, sem promover recorte àquelas com deficiência mental ou intelectual.
Ademais, não houve até então qualquer alteração no Código Civil boliviano, que mantém
a categoria de “interdicto declarado” como pessoa com incapacidade “de obrar” (art. 5º16).
A situação do Chile não difere da boliviana. O país ratificou a CDPD em 200817 e
editou uma série de leis em simetria à CDPD, principalmente em temas afetos a direitos

13
Com exceção da Guiana Francesa, território ultramarino da França, todos os Estados que compõem a América do
Sul assinaram e ratificaram a CDPD (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Status of Ratification Interactive
Dashboard: Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Disponível em: <http://indicators.ohchr.org/>.
Acesso em: 25 maio 2018).
14
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Suriname ratifies CRPD on 29 March 2017 (total: 173). Disponível
em: <https://www.un.org/development/desa/disabilities/news/dspd/suriname-ratifies-crpd-on-29-march-2017-
total-173.html>. Acesso em: 25 maio 2018.
15
“Artículo 20. (DERECHO A TOMAR DECISIONES INDEPENDIENTES). Las personas con discapacidad intelectual y
mental, leve y/o moderada, tienen el derecho a ser consultadas respecto a todas las decisiones que se refieran a su vida, salud,
educación, familia, seguridad social, según sus posibilidades y medios, proyectándose a la vida independiente”. (BOLIVIA.
Ley nº 223: Ley General para Personas con Discapacidad. Disponível em: <http://www.comunicacion.gob.bo/
sites/default/files/dale_vida_a_tus_derechos/archivos/Ley%20223%20General%20para%20Personas%20con%20
Discapacidad.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018).
16
“ARTÍCULO 5. (INCAPACIDAD DE OBRAR).- I. Incapaces de obrar son: 1. Los menores de edad, salvo lo dispuesto
en los parágrafos III y IV de este artículo y las excepciones legales. 2. Los interdictos declarados. II. Los actos civiles
correspondientes a los incapaces de obrar se realizan por sus representantes, con arreglo a la ley. III. Sin embargo el menor
puede, sin autorización previa de su representante, ejercer por cuenta propia la profesión para la cual se haya habilitado
mediante un título expedido por universidades o institutos de educación superior o especial. IV. El menor puede también
administrar y disponer libremente del producto de su trabajo”. (BOLIVIA. Código Civil. Disponível em: <http://www.
oas.org/dil/esp/codigo_civil_Bolivia.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018).
17
CHILE. Decreto n. 201/2008 del Ministerio de Relaciones Exteriores. Disponível em: <https://www.senadis.gob.cl/
pag/291/1547/constitucion_politica_y_tratados_internacionales_en_materia_de_discapacidad>. Acesso em: 25
maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
178 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

sociais, como trabalho,18 saúde e educação.19 Todavia, não empreendeu reformas em


seu Código Civil (promulgado em 2000), que trata como incapazes de exercer tutela ou
curatela os “cegos”, “mudos”, “dementes, ainda que não estejam sob interdição”, além
de outras hipóteses.20
Quanto à Colômbia, suas leis após a ratificação da CDPD também têm a caracte­
rística de dar prioridade à garantia de direitos sociais desse contingente populacional.
Desde 2008, foram promulgadas expressivas leis sobre saúde, proteção social, trabalho
e emprego.21 Em 2013, adveio a “Ley Estatutaria 1.618” com o objetivo de “garantir o
pleno exercício dos direitos das pessoas com deficiência”22 e em seu artigo 24 trata
da participação das pessoas com deficiência e suas organizações, ressaltando harmo­
nicamente ao artigo 12 da CDPD a garantia do direito de atuar por si mesmas, tomando
decisões com ou sem apoio, na medida de suas potencialidades.23 Em que pese tal
previsão, não constam alterações de seu Código Civil para disciplinar instrumentos
jurídicos inovadores ao exercício da capacidade legal.24
A Venezuela, mesmo antes de ratificar a CDPD, tinha legislação específica sobre
as pessoas com deficiência (Lei nº 38.598 de 05.01.2007).25 O Estado não alterou seu
Código Civil para fazer valer os comandos do tratado internacional, permanecendo seu
artigo 393 a prever que o maior de idade e o menor antecipado em condição “habitual
de defeito intelectual que os torne incapazes de prover seus próprios interesses serão
submetidos à interdição, ainda que tenham intervalos lúcidos”.26

18
CHILE. Ley de Inclusión Laboral para personas con discapacidad: un Chile más inclusivo lo hacemos todos. Dispo­
nível em: <https://www.gob.cl/noticias/ley-de-inclusion-laboral-para-personas-con-discapacidad-un-chile-mas-
inclusivo-lo-hacemos-todos/>. Acesso em: 25 maio 2018.
19
CHILE. Leyes y decretos con fuerza de Ley en matéria de Discapacidad. Disponível em: <https://www.senadis.gob.cl/
pag/292/1548/leyes_y_decretos_con_fuerza_de_ley_en_materia_de_discapacidad>. Acesso em: 25 maio 2018.
20
Art. 497. Son incapaces de toda tutela o curaduría: 1º. Los ciegos; 2º. Los mudos; 3º. Los dementes, aunque no estén bajo
interdicción; 4º. Los fallidos mientras no hayan satisfecho a sus acreedores; 5º. Los que están privados de administrar sus
propios bienes por disipación; 6º. Los que carecen de domicilio en la república; 7º. Los que no saben leer ni escribir; 8º. Los
de mala conducta notoria; 9º Los condenados por delito que merezca pena aflictiva, aunque se les haya indultado de ella;
10. Suprimido; 11. El que ha sido privado de ejercer la patria potestad según el artículo 271; 12. Los que por torcida o
descuidada administración han sido removidos de una guarda anterior, o en el juicio subsiguiente a ésta han sido condenados
por fraude o culpa grave, a indemnizar al pupilo. (CHILE. Código Civil. Disponível em: <https://www.leychile.cl/
Navegar?idNorma=172986>. Acesso em: 25 maio 2018).
21
COLOMBIA. Normativa: leyes. Disponível em: <https://www.minsalud.gov.co/Paginas/Norm_Leyes.aspx>.
Acesso em: 25 maio 2018.
22
COLOMBIA. Ley Estatutaria 1.618. Disponível em: <http://discapacidadcolombia.com/index.php/legislacion/145-
ley-estatutaria-1618-de-2013>. Acesso em: 25 maio 2018.
23
Artículo 24. Participación de las personas con discapacidad y de sus organizaciones. Se garantizará la participación de las
personas con discapacidad y de sus organizaciones, particularmente en los siguientes ámbitos y espacios propios del sector:
[...] 6. Las personas con discapacidad tendrán derecho a actuar por sí mismas, teniendo en cuenta sus capacidades, respetando
la facultad en toma de decisiones con o sin apoyo. En caso contrario se les garantizará la asistencia jurídica necesaria para
ejercer su representación. (COLOMBIA. Ley Estatutaria 1.618. Disponível em: <http://discapacidadcolombia.com/
index.php/legislacion/145-ley-estatutaria-1618-de-2013>. Acesso em: 25 maio 2018).
24
COLOMBIA. Código Civil. Disponível em: <https://www.oas.org/dil/esp/codigo_Civil_Colombia.pdf>. Acesso
em: 25 maio 2018.
25
VENEZUELA. Ley para las personas con discapacidad. Disponível em: <http://www.sipi.siteal.iipe.unesco.org/sites/
default/files/sipi_normativa/ley_para_personas_con_discapacidad-venezuela.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
26
Artículo 393. El mayor de edad y el menor emancipado que se encuentren en estado habitual de defecto intelectual que
los haga incapaces de proveer a sus propios intereses, serán sometidos a interdicción, aunque tengan intervalos lúcidos.
(VENEZUELA. Código Civil. Disponível em: <https://www.oas.org/dil/esp/Codigo_Civil_Venezuela.pdf>. Acesso
em: 25 maio 2018).
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
179

Equador, Uruguai, Paraguai e Guiana (esta última com predominante tradição


Common Law) ratificaram a CDPD, porém não houve alterações significativas em suas
respectivas legislações acerca da capacidade legal e medidas de apoio às pessoas com
deficiência psíquica ou intelectual.27 28 Quanto ao Estado paraguaio, o informe da Relatora
Especial sobre os direitos das pessoas com deficiência em 2016 revelou preocupação com
a inércia na revisão de sua legislação civil:

Es preocupante que el Paraguay no haya iniciado aún la revisión de su legislación para


ajustarla a la Convención. El Estado debe reformar todas las disposiciones del Código Civil
que permiten la declaración de incapacidad por motivo de discapacidad y que imponen
medidas de sustitución en la tomas de decisiones por medio de figuras como la “curatela”.
Estas disposiciones deben ser remplazadas por un sistema de apoyo para el ejercicio de la
capacidad jurídica, que garantice que las personas con discapacidad puedan ejercer todos
sus derechos, incluidos los de acceder a la justicia, votar, contraer matrimonio o elegir un
lugar de residencia.29

O alerta destinado ao Paraguai poderia ser estendido aos demais países que
ratificaram e ainda não alteraram suas legislações internas quanto aos sistemas de apoio
e igual capacidade legal das pessoas com deficiência mental ou intelectual.
Em meio a essa conjuntura, vislumbra-se que Peru, Argentina e Brasil parecem
ter dado passo um pouco adiante em relação aos demais Estados da região. Por isso, o
artigo dedicará análise sobre os dois primeiros a seguir e, adiante, um tópico autônomo
sobre a Tomada de Decisão Apoiada prevista no Código Civil Brasileiro.

3.1 Trâmite da reforma legislativa peruana


O Peru ratificou a CDPD em 30 de janeiro de 200830 e atualmente possui projeto
de lei que visa à reforma de seu Código Civil quanto à capacidade legal das pessoas
com deficiência mental ou intelectual e prevenção de medidas de apoio ao seu exercício.
O diploma civil Peruano é de 1984 e prevê a possibilidade de tornar absoluta ou
relativamente incapaz a pessoa com deficiência mental ou intelectual através de processo
de “interdição”.

27
EQUADOR. Normas Jurídicas en Discapacidad Ecuador. Disponível em: <https://www.consejodiscapacidades.gob.
ec/wp-content/uploads/downloads/2014/08/Libro-Normas-Jur%C3%ADdicas-en-DIscapacidad-Ecuador.pdf>.
Acesso em: 25 maio 2018.
28
URUGUAI. Código Civil. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/codigo_civil_uruguay.pdf>. Acesso em:
25 maio 2018.
29
Em tradução livre: “É preocupante que o Paraguai não tenha iniciado ainda a revisão de sua legislação para
ajustá-la à Convenção. O Estado deve reformar todas as disposições do Código Civil que permitem a declaração
de incapacidade em razão de incapacidade e que impõem medidas de substituição nas tomadas de decisões por
meio de figuras como a ‘curatela’. Essas disposições devem ser substituídas por um sistema de apoio para o
exercício da capacidade jurídica, que garante que as pessoas com deficiência possam exercer todos seus direitos,
incluídos os de acessar a justiça, votas, contrair matrimônio ou eleger um lugar de residência”. (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre los derechos de las personas con discapacidad sobre su
visita al Paraguay. Disponível em: <http://www.refworld.org.es/docid/58b00acb4.html>. Acesso em: 25 maio
2018).
30
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Sistema de las Organizaciones Unidas en el Peru: Personas con
Discapacidad. Disponível em: <http://onu.org.pe/temas/personas-con-discapacidad/>. Acesso em: 25 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
180 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Após a assinatura da CDPD, o Peru promulgou a Lei nº 29.973 em 24 de dezembro


de 2012, conhecida como “Ley General de la persona con discapacidad”,31 que tem por escopo
promover a igualdade das pessoas com deficiência no Estado peruano em diversas
frentes, como direito à moradia, à saúde e à educação.
A lei dispõe que o Código Civil do país seja modificado para disciplinar um sistema
de apoios e garantir a capacidade legal.32 Na ocasião, o legislador alterou a redação de
alguns dispositivos do Código Civil atinentes ao testamento e determinou a criação da
“Comisión Revisora del Código Civil”, doravante “CEDIS”, para discutir demais mudanças
necessárias quanto à capacidade legal e medidas de apoio.
A “CEDIS” foi instaurada em 05 de dezembro de 2013 e é presidida pelo deputado
Jhon Reynaga S.,33 que, em 2015, propôs projeto de lei contando com a participação
direta da sociedade civil e cujas principais propostas atinentes ao sistema de apoios são
apresentadas nas sugestões de redação dos artigos 45 e 564 a 569.34 O texto do Código
Civil peruano atualmente adere a um panorama de substituição da vontade da pessoa
com deficiência:

Artículo 43. Incapacidad absoluta. Son absolutamente incapaces:


1.- Los menores de dieciséis años, salvo para aquellos actos determinados por la ley. 2.- Los
que por cualquier causa se encuentren privados de discernimiento
Artículo 44. Incapacidad relativa. Son relativamente incapaces:
1.- Los mayores de dieciséis y menores de dieciocho años de edad.
2.- Los retardados mentales. 3.- Los que adolecen de deterioro mental que les impide
expresar su libre voluntad. 4.- Los pródigos. 5.- Los que incurren en mala gestión. 6.-
Los ebrios habituales. 7.- Los toxicómanos. 8.- Los que sufren pena que lleva anexa la
interdicción civil.
Artículo 45. Los representantes legales de los incapaces ejercen los derechos civiles de
éstos, según las normas referentes a la patria potestad, tutela y curatela.35

31
PERU, Ley n. 29.973. Disponível em: <https://www.mimp.gob.pe/webs/mimp/herramientas-recursos-violencia/
contenedor-dgcvg-recursos/contenidos/Legislacion/Ley-general-de-la-Persona-con-Discapacidad-29973.pdf>.
Acesso em: 25 maio 2018.
32
“Artículo 9. Igual reconocimiento como persona ante la ley. 9.1 La persona con discapacidad tiene capacidad jurídica en
todos los aspectos de la vida, en igualdad de condiciones que las demás. El Código Civil regula los sistemas de apoyo y
los ajustes razonables que requieran para la toma de decisiones. Em tradução livre: “Artigo 9. Igual reconhecimento
como pessoa ante a lei. 9.1. A pessoa com deficiência tem a capacidade jurídica em todos os aspectos da vida,
em igualdade de condições às demais. O Código Civil regula os sistemas de apoio e os ajustes razoáveis que
requeiram para a tomada de decisões”.
33
PERU. Comisión Especial Revisora del Código Civil en lo referido al ejercicio de la capacidad jurídica de la persona con
discapacidad – CEDIS. Disponível em: <http://www4.congreso.gob.pe/comisiones/cedis/index.html>. Acesso em:
19 nov. 2017.
34
PERU. Anteproyecto de Ley de reforma del Código Civil peruano en lo referido a la persona con discapacidad. Disponível
em: <https://issuu.com/cedis1/docs/anteproyectocedis>. Acesso em: 25 maio 2018.
35
Em tradução livre: “Artigo 43. Incapacidade absoluta. São absolutamente incapazes: 1. Os menores de dezesseis
anos, salvo para aqueles atos determinados para a lei; 2. Os que por qualquer causa se encontrem privados
de discernimento. Artigo 44. Incapacidade relativa. São relativamente incapazes: 1- Os maiores de dezesseis e
menores de dezoito anos de idade; 2. Os retardados mentais; 3. Os que adoecem de deterioração mental que os
impede de expressar sua vontade livre; 4. Os pródigos; 5. Os que incorrem em má gestão; 6. Os ébrios habituais;
7. Os toxicômanos; 8. Os que sofrem pena que leva anexa a interdição civil. Artigo 45. Os representantes legais
dos incapazes exercem os direitos civis destes, segundo as normas referentes ao pátrio poder, tutela e curatela.”.
(PERU. Codigo Civil: decreto legislativo n. 295. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/pdfs/mesicic4_per_
cod_civil.pdf >. Acesso em: 25 maio 2018).
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
181

Depreende-se dessa redação que a incapacidade absoluta e a relativa são


tratadas como adjetivos e que as pessoas com deficiência mental ou intelectual podem
ser identificadas em ambas as hipóteses: seja na qualidade de absolutamente incapaz
por qualquer causa que as prive de capacidade cognitiva (no caso, referida como
“discernimento”); seja na condição de relativamente incapaz por “retardo mental”.
O projeto sugere nova redação a esses artigos, priorizando a garantia de liberdade
de escolha à pessoa com deficiência mental ou intelectual em eleger “apoiadores” para
suas tomadas de decisão:

Artículo 45. Las personas con discapacidad pueden designar representantes o contar con
apoyos de su libre y voluntaria elección según las disposiciones de este Código y de las
leyes especiales. [...]
Artículo 564. La persona con discapacidad puede acceder de manera libre y voluntaria a
los apoyos que considere pertinentes para posibilitar su capacidad de ejercicio.36

A redação proposta ao artigo 565 define as medidas de apoio como formas de


auxílio à pessoa com deficiência para o exercício de seus direitos, inclusive quanto à
comunicação, manifestação da vontade e compreensão de atos jurídicos e suas respectivas
consequências.37 Esse apoio pode ser exercido por uma ou mais pessoas naturais ou por
pessoas jurídicas sem fins lucrativos, sendo sua designação entabulada ante notário ou
juiz.38
Por fim, sobre a atuação do Poder Judiciário, o projeto de lei prevê a hipótese
excepcional de o magistrado definir os apoios à pessoa com deficiência impossibilitada
de manifestar sua vontade.
O projeto peruano se esforça em responder à determinação da CDPD em criar
instrumentos de apoio condizentes com as potencialidades das pessoas com deficiência
mental ou intelectual. Percebe-se que o curso escolhido pelo legislador peruano busca

36
Em tradução livre: “Artigo 45. As pessoas com deficiência podem designar representantes ou contar com
apoios de sua livre e voluntária eleição segundo as disposições deste Código e das leis especiais. [...] Artigo 564.
A pessoa com deficiência pode acessar de maneira livre e voluntária os apoios que considere pertinentes para
possibilitar sua capacidade de exercício.” (PERU. Anteproyecto de Ley de reforma del Código Civil peruano en
lo referido a la persona con discapacidad. Disponível em: <https://issuu.com/cedis1/docs/anteproyectocedis>.
Acesso em: 25 maio 2017).
37
Artículo 565º.- Los apoyos son formas de asistencia que se prestan a la persona con discapacidad para facilitar el ejercicio
de sus derechos, incluyendo el apoyo en la comunicación, la comprensión de los actos jurídicos y sus consecuencias, y la
manifestación de la voluntad. Em tradução livre: “Os apoios são formas de assistência que se prestam à pessoa
com deficiência para facilitar o exercício de seus direitos, incluindo o apoio na comunicação, a compreensão
dos atos jurídicos e suas consequências, e a manifestação da vontade.”. (PERU. Anteproyecto de Ley de reforma
del Código Civil peruano en lo referido a la persona con discapacidad. Disponível em: <https://issuu.com/cedis1/docs/
anteproyectocedis>. Acesso em: 25 maio 2018).
38
A possibilidade de instituir o apoio por meio de escritura pública é delineada no artigo 568-A do projeto: Toda
persona mayor de edad puede designar por escritura pública el o los apoyos que considere necesarios en previsión de requerir
en el futuro asistencia para su capacidad de ejercicio. Asimismo, la persona puede disponer en qué personas o instituciones
no debe recaer tal designación, así como la forma, alcance, duración y directrices del apoyo a recibir. En la escritura pública
debe constar el momento en que estas directivas entran en vigor. Em tradução livre: “Toda pessoa maior de idade pode
designar por escritura pública o ou os apoios que considere necessários antecipando a necessidade de assistência
futura para sua capacidade de exercício. Da mesma forma, a pessoa pode determinar em que pessoas ou
instituições não deve recair tal designação, assim como a forma, alcance, duração e diretrizes de apoio a receber.
Da escritura pública deve constar o momento em que essas diretivas entram em vigor.” (PERU. Anteproyecto de
Ley de reforma del Código Civil peruano en lo referido a la persona con discapacidad. Disponível em: <https://issuu.com/
cedis1/docs/anteproyectocedis>. Acesso em: 25 maio 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
182 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

cumprir o lema “Nada sobre nós sem nós”, ao permitir a participação das pessoas
destinatárias da norma em seu processo de redação através da “CEDIS”.
Ainda não há previsão para a conversão desse projeto em lei, o que é aguardado
para o efetivo cumprimento do igual reconhecimento da capacidade legal das pessoas
com deficiência, previsto no artigo 12 da CDPD.

3.2 Sistema de “apoyos” argentino


O Código Civil argentino está vigente desde 1871 e passou por reformas legislativas
ao longo do século XX, dentre as quais sobressai a operada pela Lei nº 17.711 em 1968,
que previu a figura do inhabilitado, cujo grau de capacidade cognitiva seria maior do
que o dos dementes e contaria com o auxílio de um “curador assistente”.
Após ratificar a CDPD, a Argentina sancionou a Lei Nacional de Saúde Mental
(Lei nº 26.657/2010), incluindo no Código Civil o dever de o julgador estabelecer com
clareza os limites dos representantes ou assistentes da pessoa com deficiência mental ou
intelectual. A reforma, no entanto, não previu outras medidas de apoio condizentes com
as potencialidades da pessoa com deficiência, mantendo os apoios da tutela e curatela.
Em 2011, designou-se comissão para elaborar um projeto de lei para a reforma
do Código Civil argentino. A comissão teve como principais componentes os juristas
Aída Kelemelmajer de Carlucci, Elena Highton de Nolasco e Ricardo Luis Lorenzetti,
aos quais foi atribuída a tarefa de propor modificações no Título I (“Persona Humana”),
Capítulo 2 do diploma civil, a fim de adequá-lo à CDPD; e desse trabalho resultaram
as alterações vigentes desde agosto de 2015.39 Dentre os dispositivos reformados, ora
se salienta a redação do artigo 43, que disciplina os “sistemas de apoio ao exercício da
capacidade”:

Sistemas de apoyo al ejercicio de la capacidad


Artículo 43. Concepto. Función. Designación. Se entiende por apoyo cualquier medida
de carácter judicial o extrajudicial que facilite a la persona que lo necesite la toma de
decisiones para dirigir su persona, administrar sus bienes y celebrar actos jurídicos en
general. Las medidas de apoyo tienen como función la de promover la autonomía y facilitar
la comunicación, la comprensión y la manifestación de voluntad de la persona para el
ejercicio de sus derechos. El interesado puede proponer al juez la designación de una o
más personas de su confianza para que le presten apoyo. El juez debe evaluar los alcances
de la designación y procurar la protección de la persona respecto de eventuales conflictos
de intereses o influencia indebida. La resolución debe establecer la condición y la calidad
de las medidas de apoyo y, de ser necesario, ser inscripta en el Registro de Estado Civil y
Capacidad de las Personas.40

39
Em tradução livre: “O Código Civil e Comercial logrou em traduzir soluções legais adequadas ao paradigma
protetor que leva em consideração a pessoa segundo sua posição vital. Abandona-se o regime oitocentista
centrado principalmente nas questões patrimoniais, e se observam os aspectos pessoais, sociais e familiares das
pessoas com deficiência mental. Parte da capacidade como regra, e permite ao juiz valorar e determinar em
cada caso o alcance das funções do curador ou apoios necessários, para não invadir a esfera de autonomia além
da necessidade de sua proteção”. (GALLI FIANT, María Magdalena. Personas con capacidad restringida y su
protección. In: Revista Jurídica argentina La Ley, Buenos Aires, 2016-B. p. 409).
40
Em tradução livre: “Artigo 43 – Conceito. Função. Designação. Entende-se por apoio qualquer medida de
natureza judicial ou extrajudicial que facilite à pessoa que dele necessite para tomar decisões com o fim de
dirigir sua pessoa, administrar seus bens e celebrar atos jurídicos em geral. As medidas de apoio têm como
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
183

A redação aponta que os apoios devem ser priorizados na proporção do interesse


da pessoa com deficiência mental ou intelectual e é admitida a declaração de incapacidade
com substituição da vontade como opção excepcional.
María Magdalena Galli Fiant ressalta que as características da medida de apoio
disposta no artigo 43 do Código Civil e Comercial da Argentina são: a individualização
ou personalização dos atos com o apoio; a modificabilidade da instituição do apoiador
a critério da pessoa apoiada; a possibilidade de construção de uma rede de apoios não
limitada a uma só pessoa; e, por fim, a integralidade da abordagem por um mesmo
magistrado.41
De acordo com a legislação argentina, tal medida de apoio poderá ser judicial ou
extrajudicial e é conferida primazia aos vínculos de confiança existentes entre a pessoa
apoiada e os apoiadores por ela indicados.
Sob a justificativa de proteção à pessoa com deficiência e de publicização do
apoio, o artigo 43 exige que haja inscrição da medida em registro de estado civil e
capacidade das pessoas. Por fim, nota-se que a pessoa que deseja o apoio pode propor
ao Poder Judiciário a designação de uma ou mais pessoas de sua confiança para a função
de fornecer informações, esclarecer o contexto de um negócio jurídico e prováveis
consequências de suas escolhas, incumbindo ao magistrado o dever de delinear os
limites para essa atribuição.
O sistema de apoios constante da legislação argentina não escapa de críticas. Uma
delas consta de Informe Alternativo elaborado pelo Centro de Estudios Legales y Sociales
juntamente à sociedade civil e destinado ao Comitê sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência da ONU.42 Nesse documento, é saliente a preocupação quanto aos efeitos
práticos das modificações do Código Civil argentino.
Uma primeira observação é que as sentenças que determinam os apoios ao
exercício da capacidade jurídica parecem regressar ao modelo tutelar, pois designam
curadores para algumas funções e apoiadores para outras, quando não condensam
na figura do curador tanto a tarefa de representação quanto de prestação de apoio.
Outra preocupação externada no Informe alternativo é de se condicionar a concessão
de benefícios previdenciários ao início de processo judicial de restrição de capacidade
jurídica da pessoa com deficiência.43

função a de promover a autonomia e facilitar a comunicação, a compreensão e a manifestação da vontade


da pessoa para o exercício de seus direitos. O interessado pode propor ao juiz a designação de uma ou mais
pessoas de sua confiança para que lhe prestem apoio. O juiz deve avaliar os alcances da designação e procurar
a proteção da pessoa a respeito de eventuais conflitos de interesses ou influência indevida. A resolução deve
estabelecer a condição e a qualidade das medidas de apoio e, caso necessário, ser inscrita no Registro de Estado
Civil e Capacidade das Pessoas”. (ARGENTINA. Texto del Código Civil y Comercial de la Nación en el Boletín Oficial.
Disponível em: <http://www.nuevocodigocivil.com/wp-content/uploads/2015/texto-boletin-oficial.pdf>. Acesso
em: 25 maio 2018).
41
GALLI FIANT, María Magdalena. Personas con capacidad restringida y su protección. In: Revista Jurídica
argentina La Ley, Buenos Aires, 2016-B. p. 411-412.
42
CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES. Situación de las personas con discapacidad en la Argentina.
Disponível em: <https://www.cels.org.ar/web/wp-content/uploads/2017/10/InformeComiteDerechosPersonas
DiscapacidadAgo2017.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
43
CENTRO DE ESTUDIOS LEGALES Y SOCIALES. Situación de las personas con discapacidad en la Argentina. p. 10.
Disponível em: <https://www.cels.org.ar/web/wp-content/uploads/2017/10/InformeComiteDerechosPersonas
DiscapacidadAgo2017.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
184 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

As medidas de apoio do sistema argentino e a sua concreta aplicação em prol


da autodeterminação e emancipação das pessoas com deficiência mental ou intelectual
não se isentam de críticas. Ainda assim, haja vista a conjuntura da América do Sul,
apresenta-se como um dos sistemas que mais laborou no plano normativo para tentar
atender ao preconizado no artigo 12 da CDPD. Para Joyceane Bezerra de Menezes, o
sistema de apoios argentino se aproxima da Tomada de Decisão Apoiada presente no
Código Civil brasileiro.44 O próximo tópico pretende verticalizar tal figura jurídica e sua
compatibilidade com as previsões da CDPD.

4 A Tomada de Decisão Apoiada do artigo 1.783-a do Código Civil


Brasileiro
O Brasil segue o contexto regional de ter assinado a CDPD em 2007 e a inter­
nalizado por meio do Decreto Presidencial nº 6.949 de 2009 com caráter material e
formalmente constitucional.
Em que pese o caráter constitucional e aplicabilidade direta e imediata das normas
de direitos humanos e fundamentais, as mudanças exigidas à capacidade legal com
medidas de apoio só foram feitas em dimensão infralegal cerca de seis anos depois.
A partir de relatório submetido pelo Brasil em 2012, o monitoramento da ONU
ressaltou que, apesar de a igualdade formal e material das pessoas com deficiência estar
assegurada pelo artigo 5º da Constituição Federal, a legislação interna clamava por
ajustes a fim de garantir adequado exercício da capacidade legal e medidas de apoio.45
Em 2014, o Estado brasileiro publicou documento com comentários à CDPD e
registrou que pretende promover a igualdade formal da capacidade civil, tanto de direito
quanto de fato e, paralelamente, garantir salvaguardas efetivas ao exercício dos atos civis.
Assim, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), doravante “LBI”, foi
moldada como microssistema protetivo e teve por fito tornar operáveis os comandos
contidos no tratado internacional. A LBI esclareceu em seu artigo 84, §3º,46 que a curatela
seria medida protetiva extraordinária e pontual pelo menor período possível, limitada
a atos de natureza patrimonial (artigo 8547).

44
______. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa com
deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 43, jul./set. 2016.
45
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Consideration of reports submitted by States parties under article 35 of the
Convention: Initial reports of States parties due in 2010 Brazil, p. 32. Disponível em: <http://www.un.org/french/
documents/view_doc.asp?symbol=CRPD/C/BRA/1&TYPE=&referer=http://www.ohchr.org/FR/NewsEvents/
Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=16348&Lang=E>. Acesso em: 28 out. 2017.
46
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de
condições com as demais pessoas. §1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela,
conforme a lei. §2º É facultada à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
§3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às
necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. 4º Os curadores são obrigados a
prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
47
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade,
à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. §2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da
sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. §3º No caso de pessoa
em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de
natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
185

O artigo 84, §2º, da LBI dispôs sobre a instituição do instrumento de apoio deno­
minado “Tomada de Decisão Apoiada”, doravante “TDA”, preservando-se a capacidade
legal e, logo adiante, no artigo 116, acrescentou o artigo 1.783-A48 ao Código Civil
brasileiro.
Segundo Joyceane Bezerra de Menezes, a TDA difere de outros institutos
constantes da legislação brasileira e é compatível com a ideia de “vida independente”
disposta no texto da CDPD.49 Não se trata de “institucionalização de um palpite”,50
pois repercute na assunção de deveres de informação, cooperação e proteção a serem
cumpridos pelo apoiador, do qual pode ser inclusive exigida prestação de contas ao
Poder Judiciário.
Desse modo, pode-se dizer que o objeto da TDA não é a decisão em si, numa
perspectiva de substituição da vontade da pessoa que a institui, mas, sim, consiste
na obrigação de prestação de deveres, como de diligência e de informação, a serem
exercidos pelos apoiadores eleitos, os quais devem manter vínculo de confiança com a
pessoa apoiada.
A lei brasileira garante à pessoa com deficiência a faculdade de elaborar termo
escrito com indicação de pelo menos dois apoiadores para aprimorar o exercício da
capacidade legal e alargar a compreensão a respeito das condições concretas que
envolvem uma escolha.
O Conselho Nacional do Ministério Público51 e parte da doutrina52 entendem que,
diante da inexistência de vedação legal, o conteúdo da TDA pode corresponder tanto

48
Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos
2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio
na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que
possa exercer sua capacidade. §1º Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência
e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos
dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses
da pessoa que devem apoiar. §2º O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser
apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput deste artigo. §3º Antes
de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar,
após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. §4º
A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja
inserida nos limites do apoio acordado. §5º Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial
pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função
em relação ao apoiado. §6º Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo
divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público,
decidir sobre a questão. §7º Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as
obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público
ou ao juiz. §8º Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e se for
de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio. §9º A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o
término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada. §10. O apoiador pode solicitar ao juiz a
exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à
manifestação do juiz sobre a matéria. §11. Aplicam-se à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições
referentes à prestação de contas na curatela. 
49
DIAS, Joelson et al. (Org.). Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência. Brasília:
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR)/Secretaria Nacional de Promoção dos
Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), 2014.
50
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, p. 49, jul./set. 2016.
51
BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Tomada de decisão apoiada e curatela: medidas de apoio previstas
na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Brasília: CNMP, 2016. p. 8-9.
52
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (lei n. 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./ set. 2016. p. 47.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
186 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

a questões patrimoniais quanto existenciais. Isto é, a limitação imposta à curatela de


versar apenas sobre conteúdo patrimonial (artigo 85 da LBI53) não seria estendida a esse
caso. Todavia, esse entendimento não é pacífico. Por exemplo, segundo Luciana Berlini,
o instituto deve se restringir a negócios jurídicos mais complexos, pois o seu uso a atos
mais simples ou mesmo a atos existenciais poderia afetar o dinamismo que estes exigem.54
Outro ponto de discussão doutrinária no Brasil refere-se à possibilidade de
concomitância das duas medidas de apoio (TDA e Curatela). Em parecer acerca do
Pro­jeto de Lei do Senado (PLS) nº 757/2015 (texto substitutivo), que visa alterar alguns
dis­positivos da LBI, Joyceane Bezerra de Menezes concluiu ser viável o uso simultâneo
das duas medidas de apoio, inclusive sugerindo o acréscimo de mais um parágrafo
ao artigo 1.783-A, com a seguinte redação: “A tomada de decisão apoiada e a curatela
poderão coexistir, relativamente à mesma pessoa, quando o objeto de cada uma vier a
incidir sobre atos distintos”.
Entretanto, o Enunciado nº 640 da VIII Jornada de Direito Civil, realizada em
Brasília no mês de abril de 2018 pelo Conselho da Justiça Federal, consignou que “a
tomada de decisão apoiada não é cabível, se a condição da pessoa exigir aplicação da
curatela”.55 De acordo com essa interpretação, caso a situação concreta aponte que a
curatela seria a medida mais adequada aos interesses da pessoa com deficiência mental
ou intelectual, deve ser afastada a TDA. Na mesma oportunidade, foi publicado o
Enunciado nº 639, que tratou da legitimidade para a instauração da medida e que também
versou sobre a indicação pela pessoa com deficiência de seus apoiadores se tornarem
seus curadores em caso de curatela:

ENUNCIADO 639 – Art. 1.783-A: A opção pela tomada de decisão apoiada é de legitimidade
exclusiva da pessoa com deficiência. A pessoa que requer o apoio pode manifestar,
antecipadamente, sua vontade de que um ou ambos os apoiadores se tornem, em caso de
curatela, seus curadores.56

A primeira parte do Enunciado nº 639 esclarece que a TDA é opção de legitimidade


exclusiva das pessoas com deficiência. A presente pesquisa compreende que tal
instrumento se restringe às pessoas com deficiência mental ou intelectual, contudo, há

53
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. §1º
A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à
educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. §2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da
sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. §3º No caso de pessoa
em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de
natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
54
BERLINI, Luciana Fernandes. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com deficiência: modificações substanciais. In:
MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas:
convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016.
p. 180.
55
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciados da VIII Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.
cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/
enunciados-publicacao-site.pdf>. Acesso em: 26 maio 2018.
56
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciados da VIII Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.
cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/
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JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
187

quem defenda que pessoas com deficiência física ou sensorial, pessoas idosas, pessoas
com dependência química e pessoas obesas mórbidas também poderiam se valer do
instrumento por interpretação extensiva.57
Em síntese, a TDA trata-se de ato personalíssimo, de legitimidade exclusiva
daquele que dela se beneficiará e nunca deve ser requerida por terceiros. Logo, não
pode o juiz ex officio ou mediante provocação do Ministério Público designar a decisão
apoiada em favor do jurisdicionado, tampouco indicar novos apoiadores em substituição
àqueles indicados pelo apoiado.58 59
Quanto aos apoiadores, a legislação brasileira exige que a pessoa apoiada deva
escolher no mínimo duas pessoas para a tarefa,60 restrição criticada por Ana Luiza Maia
Nevares e Anderson Schreiber, por inferirem que não logra êxito em evitar abusos e
tampouco estimula a participação de apoiadores para o desempenho de uma atividade
conjunta.61
Por outro viés, Joyceane Bezerra de Menezes interpreta essa exigência como
uma possível pretensão de o legislador instituir o compartilhamento do apoio à pessoa
com deficiência.62 Ademais, a autora identifica na legislação brasileira três pressupostos
expressos para a nomeação dos apoiadores: “idoneidade”, “confiança” e “vínculo com
o pretenso apoiado”.
Ainda que se devam considerar os vínculos fáticos que componham a rede
de solidariedade e cuidado da pessoa com deficiência, a lei exige a formalização do
instrumento, no qual devem constar, além dos dados do apoiado e de seus apoiadores, os
limites deste apoio e o tempo de sua duração. Salienta-se que não se exige prazo mínimo,
máximo ou mesmo para a revisão da medida de apoio, sendo tal decisão resultado da
liberdade da pessoa instituidora.
De acordo com o parágrafo 3º do artigo 1.783-A, o termo deverá ser submetido
ao crivo do Poder Judiciário a fim de ser homologado, o que refletiria hipótese de

57
Esses e outros exemplos são encontrados em: ROSENVALD, Nelson. Curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha
(Org.). Tratado de Direito das Famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 760. E também em: MENEZES, Joyceane
Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa
com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, p. 46, jul./set. 2016.
58
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./set. 2016. p. 46.
59
Em julgamento de Agravo de Instrumento originado de Ação de Tomada de Decisão Apoiada, a 1ª Câmara
de Direito Privado do TJ-SP deu provimento ao recurso para afastar curatela provisória determinada de ofício
pelo juiz de 1º grau. No caso, o autor era pessoa com deficiência visual decorrente de doença de diabetes e
analfabeto, sem ter decréscimo de sua capacidade cognitiva. O autor nomeou sua companheira e sua filha como
apoiadoras e pediu a homologação do termo, ao que o julgador decretou a sua curatela provisória e assim se
justificou a interposição do recurso. (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 2049735-
75.2017.8.26.0000, Relator: Des. Rui Cascaldi, 1ª Câmara de Direito Privado, julgado em 18.03.2017).
60
Previsão diversa é a encontrada no sistema argentino, que, como visto, prevê no artigo 43 do Código Civil que
“El interesado puede proponer al juez la designación de una o más personas de su confianza para que le presten apoyo”. Em
tradução livre: “O interessado pode propor ao juiz a designação de uma ou mais pessoas de sua confiança para
que lhe prestem o apoio”.
61
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil.
In: ALMEIDA, Vitor; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O direito civil: entre o
sujeito e a pessoa, estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 53.
62
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./set. 2016. p. 48.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
188 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

“jurisdição voluntária”,63 caracterizada pela presença de “interessados”. Ainda assim,


exige-se a presença e manifestação do Ministério Público e de equipe multidisciplinar.
A participação do parquet é questionada por autores que veem nesse requisito uma
contradição ao reconhecimento da capacidade legal da pessoa com deficiência. Cíntia
Muniz de Souza Konder reflete que o dever institucional do Ministério Público como
fiscal da lei, previsto no artigo 178, inciso II, do CPC, se volta à proteção de vulneráveis
incapazes64 e, portanto, não seria coerente a sua intervenção em um processo de jurisdição
voluntária ajuizado por pessoa reconhecidamente capaz.65
Por outro lado, há opiniões que consideram indispensável tal participação em
decorrência da vulnerabilidade da pessoa com deficiência e do resguardo de seus
interesses, mesmo que reconhecida sua capacidade legal,66 como uma salvaguarda contra
abusos, seguindo a inteligência do artigo 12 da CDPD.
O acompanhamento de equipe multidisciplinar é interpretado de igual modo como
uma salvaguarda oportuna à proteção da vulnerabilidade da pessoa com deficiência.
A oitiva da pessoa apoiada e de seus apoiadores por profissionais não adstritos à medicina
coadunar-se-ia à reafirmação do modelo social da deficiência.67
Após o exame do Poder Judiciário ter transcorrido com a manifestação do
Ministério Público e assistência de profissionais multidisciplinares, é possível que a
decisão seja favorável à homologação da TDA. Segundo a leitura da lei, a partir deste
momento, o instituto jurídico se aperfeiçoa e passa a surtir efeitos, não sendo exigido
expressamente que se leve a órgão de registro de pessoas naturais, tal como ocorre no
sistema argentino. Sobre a omissão legislativa no caso brasileiro, Nelson Rosenvald
sustenta que não há vedação à remessa do termo homologado ao Registro Civil de
Pessoas Naturais para averbação na margem da certidão de nascimento ou casamento
a fim de conceder maior publicidade e segurança jurídica a terceiros contratantes.68
Ressalta-se que o instrumento terá validade e efeitos perante terceiros (artigo
1.783-A, §4º) e que estes podem solicitar a contra-assinatura dos apoiadores em contrato
ou acordo entabulado, com a especificação das funções relativas ao apoiado (artigo

63
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./set. 2016. p. 45.
64
Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem
jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: [...] II - interesse
de incapaz; [...].
65
KONDER, Cíntia Muniz de Souza. A celebração de negócios jurídicos por pessoas consideradas absolutamente
capazes pela Lei nº 13.146 de 2015, mas que não possuem o necessário discernimento para os atos civis por
doenças mentais: promoção da igualdade perante a lei ou ausência de proteção? In: BARBOZA, Heloisa Helena;
MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da
Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017. p. 176.
66
ROSENVALD, Nelson. Curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de Direito das Famílias. Belo
Horizonte: IBDFAM, 2015. p. 758.
67
ARAUJO, Luiz Alberto David; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A perícia multidisciplinar no processo de
curatela e o aparente conflito entre o estatuto da pessoa com deficiência e o código de processo civil: reflexões
metodológicas à luz da teoria geral do direito. In: Revista de direitos e garantias fundamentais, Vitória, vol. 18, n. 1,
jan./abr. 2017, p. 233. Disponível em: <http://sisbib.fdv.br/index.php/direitosegarantias/article/viewFile/867/330>.
Acesso em: 25 maio 2018.
68
ROSENVALD, Nelson. Tomada de decisão apoiada: primeiras linhas sobre um novo modelo jurídico promocional
da pessoa com deficiência. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Famílias nossas de cada dia. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015. p. 512.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
189

1.783-A, §5º). Ao ver de Anderson Schreiber e Ana Luiza Maia Nevares, trata-se de uma
faculdade “inútil”.69
Indicada a referida visão crítica, afirma-se que, de acordo com a atual redação
legislativa, o terceiro contratante tem a faculdade de exigir o registro da homologação da
TDA, especialmente por temer questionamentos quanto à validade de negócio jurídico
celebrado sem a participação dos apoiadores.
Ciente dessa lacuna, causadora de tamanha insegurança, o já mencionado PLS
nº 757 (em redação substitutiva) pretende inserir dispositivo esclarecendo que: “a tomada
de decisão apoiada não será registrada nem averbada no Registro Civil de Pessoas
Naturais” (§14, artigo 1.783-A). Seria esta uma norma inclusiva que poderia dirimir o atual
receio – fundado – de terceiros firmarem negócio jurídico com pessoa com deficiência
mental ou intelectual favorecida de TDA. Caso mantida a redação atual, não há norma
específica que estipule sanção ou vício ao negócio jurídico constituído, pois, reforça-
se, trata-se de pessoa plenamente capaz. A redação do PLS nº 757/2015 não resolve a
questão, conquanto o legislador pretenda repisar a validade dos negócios praticados
pela pessoa com deficiência apoiada, mesmo que sem a participação dos apoiadores.70
O artigo 1.783-A, §6º, trata da hipótese de divergência das opiniões da pessoa
apoiada e seus apoiadores quando se tratar de “negócio jurídico que possa trazer risco ou
prejuízo relevante”. Nessa hipótese, apoiador e apoiado devem requerer a manifestação
do Poder Judiciário com a oitiva do Ministério Público para determinar qual vontade
deve prevalecer, constituindo-se uma decisão heterônoma.
Em caso de ato de negligência, pressão indevida ou inadimplemento de obrigações
por parte dos apoiadores, o art. 1.783-A, §§7º e 8º, do CC prevê que qualquer pessoa
poderá comunicar ao Ministério Público ou o juiz e, apurando-se a sua procedência,
o Poder Judiciário destituirá o apoiador denunciado e, se for de interesse da pessoa
apoiada, nomeará outra pessoa para a tarefa.
A extinção da TDA pode ocorrer a qualquer tempo mediante solicitação da
pessoa com deficiência no bojo do processo que a homologou (artigo 1.783-A, §9º, do
CC), mesmo que o prazo de vigência, por ela mesma determinado, ainda não tenha se
esgotado. Ao ver de Nelson Rosenvald, trata-se de resilição unilateral levada ao exame
do Poder Judiciário, que deve acatar o pedido, por se caracterizar direito potestativo
da pessoa apoiada.71
O §10º do artigo 1.783-A trata da hipótese de o apoiador desejar sua exclusão: nesse
caso, deverá formular o pedido em juízo e aguardar manifestação do Poder Judiciário
para confirmar a liberação da tarefa.

69
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil.
In: ALMEIDA, Vitor; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O direito civil: entre o
sujeito e a pessoa, estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 53.
70
“§12. Os negócios e os atos jurídicos praticados pela pessoa apoiada sem participação dos apoiadores são válidos,
ainda que não tenha sido adotada a providência de que trata o §5º deste artigo” (BRASIL. Senado Federal. Projeto
de lei nº 757, de 2015. Autores: Senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), Senador Paulo Paim (PT/RS). Senado
Federal, Brasília, DF. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124251>.
Acesso em: 25 maio 2018).
71
ROSENVALD, Nelson. Tomada de decisão apoiada: primeiras linhas sobre um novo modelo jurídico promocional
da pessoa com deficiência. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Famílias nossas de cada dia. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015. p. 509.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
190 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Por fim, o §11º do artigo 1.783-A disciplina que a prestação de contas da TDA
deve seguir as mesmas normas do processo de curatela. Logo, os artigos 1.755 a 1.762 do
Código Civil (referentes à tutela) e artigo 84, §4º,72 do EPD incidirão na medida de apoio,
se houver compatibilidade. Deverão os “apoiadores” apresentar ao juízo um relatório
detalhado do balanço do exercício de sua função em benefício da pessoa apoiada no
respectivo ano, sendo que os gastos para a elaboração das contas serão arcados pelo
apoiado (artigo 1.761 do Código Civil73).
Examinados a previsão normativa e posicionamentos doutrinários quanto à TDA
como medida de apoio à pessoa com deficiência mental ou intelectual no ordena­mento
jurídico brasileiro, observa-se de seus traços que há tentativa de atender aos interesses
da instituidora e de cumprir, ainda que com arestas a serem aparadas, o contido no
artigo 12 da CDPD.
Nota-se que a TDA parece criar mecanismos alicerçados na manifestação da
vontade da pessoa com deficiência como instrumento de emancipação e reconhecimento
de sua vontade na qualidade de pessoa capaz para atos da vida civil, em simetria ao
pretendido pela CDPD. Todavia, sua disciplina legal carece de reparos para não recair
em problemas similares aos anunciados pelo Informe Alternativo às reformas argentinas,
como, por exemplo, de se manter um panorama de substituição de vontade sob o título
da TDA ou, então, retirar a efetividade da medida de apoio por óbices burocráticos à
sua formalização.

5 Conclusão
A criação de medidas de apoio ao exercício da capacidade legal em igualdade de
condições por pessoas com deficiência foi determinada pela CDPD e tem como pano
de fundo a perspectiva do modelo social de deficiência, vendo-a como uma condição
precária e de vulnerabilidade que deve ser atenuada com o enfrentamento de barreiras
encontradas na sociedade. A superação das barreiras à plena capacidade legal, todavia,
carece de efetividade nos países signatários no recorte regional da América do Sul.
A ideia conglobante de capacidade legal como sinônimo da capacidade jurídica
ainda é desacompanhada de adequados instrumentos de apoio às potencialidades das
pessoas com deficiência mental ou intelectual de grande parte dos Estados signatários
da CDPD.
Mesmo no caso da Argentina e do Peru, onde, no primeiro, já houve alteração no
Código Civil e, no segundo, há projeto de lei em trâmite no Parlamento, as experiências
retratadas reportam desafios à concretude. Salienta-se que o sistema de apoios presente
no artigo 43 do diploma civil argentino não parece atender seu propósito de auxílio
à tomada de decisões e sim como mecanismo de substituição da vontade da pessoa
apoiada pela de seu apoiador.
No Brasil, a criação da TDA não destitui a capacidade legal plena da pessoa
com deficiência e constrói via alternativa à clássica curatela (mantida no sistema). Em

72
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade
de condições com as demais pessoas. [...] §4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua
administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
73
Art. 1.761. As despesas com a prestação das contas serão pagas pelo tutelado.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
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análise formal, a TDA atende à exigência da CDPD e tem por objetivo não a decisão em
si, mas, sim, a efetiva possibilidade de a pessoa com deficiência apoiada fazer escolhas
que partam de um cenário nutrido por informações suficientes à sua livre manifestação.
A apreensão da TDA pela doutrina e juristas brasileiros está em processo de
intenso desenvolvimento que busca contornar suas insuficiências. A concretização dessa
medida de apoio enfrenta árduo caminho e o diálogo com os principais destinatários da
norma pode contribuir para a superação dos desafios colocados atualmente.

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194 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

PEREIRA, Jacqueline Lopes. A Tomada de Decisão Apoiada no Direito brasileiro e as experiências peruana
e argentina. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito
Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 173-194. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN
DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO
EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS

ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU

MATÍAS LEONARDO NIETO

1 Introducción
Uno de los ejes conceptuales de la reforma de la matriz del sistema jurídico privado
argentino ha sido la llamada constitucionalización del derecho privado que implica interpretar
los derechos subjetivos, de naturaleza privada, incluidos en los códigos decimonónicos
en clave constitucional, reconociendo en la Carta Magna su origen y contornos.
La exposición de motivos del Anteproyecto de Código Civil y Comercial de
la Nación Argentina, vigente desde el primero de agosto de 2015, consignó, en lo
que estimamos más ilustrativo, que la aludida noción “establece una comunidad de
principios entre la Constitución, el derecho público y el derecho privado” y que se
propicia una “reconstrucción de la coherencia del sistema de derechos humanos con el
derecho privado”.
Así, entendemos que el llamado “derecho de daños” constituye tierra fecunda
para el ejercicio de un análisis en clave constitucional, toda vez que estructura sus
funciones para la tutela (preventiva, resarcitoria y disuasiva) de bienes constitucionalmente
amparados e, indudablemente, de aquellos que son objeto de intensa protección por el
sistema internacional de derechos humanos. Nadie podría sostener que el basamento
constitucional del derecho de daños constituya novedad reciente en el derecho argen­
tino, pues ello ya había sido así reconocido por la Corte Suprema de Justicia de la
República Argentina en el año 1986 in re “Luis Federico Santa Coloma y otros c. Empresa
Ferrocarriles Argentinos” (Fallos 308:1160) al entroncar el principio alterum non laedere­
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196 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

en el art. 19 de la Constitución de la Nación Argentina, precepto que opera como norma


de “clausura” del sistema normativo al detraer del conocimiento de los magistrados “las
acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral
pública, ni perjudiquen a un tercero”.
Lo que sí resulta novedoso, es el mandato hermenéutico del reciente Código Civil
y Comercial de la Nación, el que propicia una lectura constitucional de sus institutos
(art. 1º). Todo ello configura una oportunidad histórica para precisar la comunidad
de principios del derecho público y privado en la materia. Creemos que es posible, y
necesaria, la estructuración de una teoría constitucional del derecho de daños, incluso,
como parte de una propedéutica a su estudio.
El objeto de este análisis buscará identificar los principios constitucionales
comunes en la lectura constitucional y civilista: el principio alterum non laedere y el de la
reparación justa, como axiomas de la teoría del derecho de daños.
Seguidamente, se deberá precisar cómo operan estos principios, los que no sólo
guardan fuerza enervante de determinados preceptos o soluciones, sino también son
integrativas e interpretativas. En el punto de análisis crítico, será necesario confrontar
bienes tutelados constitucionalmente que se enfrentan en una pretensión de daños (v.gr:
la congruencia procesal y el derecho a una reparación justa) explorando los aportes
que pueda dar la lectura constitucional a las soluciones clásicas del derecho de daños.
Una necesaria jerarquización de bienes amparados por los textos constitucionales será
necesaria por la predecible tensión en que serán colocados por el moderno derecho de
daños (no será infrecuente que el derecho de trabajar y desarrollar industria lícita se
oponga a la tutela preventiva de otros bienes valiosos y constitucionalmente amparados,
como la libertad de concurrencia de los mercado, o el medio ambiente).
El punto álgido de este análisis se presentará cuando la víctima, o potencial
víctima, sea un sujeto con protección especial por el sistema internacional de derechos
humanos (v.,gr: los niños, las mujeres), en cuyo caso se impondrá la flexibilización de
ciertos criterios tradicionalmente asentados en la materia.

2 La cuestión en el Derecho Comparado


2.1 Precisiones generales
El derecho comparado constituye un instrumento adecuado, práctico y útil para
visualizar tanto las nuevas tendencias hermenéuticas como los movimientos legislativos
que suceden en el mundo. En particular, también exhibe provecho estudiar los diferentes
sistemas constitucionales para indagar en torno a los nuevos derechos incorporados y
las soluciones elegidas en otros países, a fin de analizar su posterior incorporación al
régimen nacional.
Como veremos, en el derecho argentino se interpreta el derecho de daños en
clave constitucional a fin de analizar la razonabilidad del ordenamiento jurídico legal,
posibilitándose la declaración de inconstitucionalidad de aquella ley o norma que
limitara o cercenara un derecho constitucional o una vía reparatoria (ej. Ley de Riesgos
de Trabajo, in re “Aquino”).
Sin embargo, en los últimos veinte años se han producido en los países de
Sudamérica modificaciones importantes en sus textos constitucionales y que tienen
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
197

la particularidad de introducir normas expresas referidas a la materia de daños, ya


sea estableciendo criterios de responsabilidad de derecho público (ej. del Estado en
general o del funcionario público en particular), ya sea regulando aspectos específicos
de los denominados derechos constitucionales de tercera generación (ej. defensa del
consumidor, ambiente, etc.); y, por último, disponiéndose la imprescriptibilidad de
delitos de genocidio o lesa humanidad como también aquellos de desfalco a la deuda
pública.
En definitiva, adelantamos, que del análisis de las reformas constitucionales de
los estados de Bolivia, Colombia y Ecuador hemos podido advertir un movimiento
normativo inverso puesto que se incorporan a los textos constitucionales supuestos
jurídicos expresos y específicos referidos al derecho de daños, a saber: a) Responsabilidad
ambiental, del proveedor en materia de consumo y del funcionario público infiel o
desleal; b) Extensión de responsabilidad; c) Limitaciones.
Pues bien, en este apartado nos proponemos verificar la afirmación antedicha
mediante un esbozo de las normas constitucionales que nos parecen más relevantes.

2.2 Bolivia
La “Constitución Política del Estado de la República de Bolivia” fue sancionada
por el Referéndum Constituyente de enero del año 2009, y de este modo fue abrogada
la Constitución Política del Estado de 1967 y sus reformas posteriores,1 constituyéndose
en un “Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario”.2
En el Título IV “Garantías jurisdiccionales y acciones de defensa”, Capítulo
primero “Garantías jurisdiccionales” (arts. 109 a 124) se incluyen diferentes normas
relativas al derecho de daños, que podemos distinguir en dos planos.
Por un lado, en dos normas (arts. 111 y 112) el constituyente boliviano reglamenta
el instituto de la prescripción extintiva o liberatoria, que admite reglas tanto en materia
de derecho civil como penal. En tal sentido, determina el carácter de imprescriptible para
aquellos “delitos de genocidio, de lesa humanidad, de traición a la patria, crímenes de
guerra” (art. 111). Luego, dispone que los delitos cometidos por servidores públicos
que atenten “contra el patrimonio del Estado y causen grave daño económico, son
imprescriptibles y no admiten régimen de inmunidad” (art. 112). Más adelante, dispone
que serán imprescriptibles las deudas por daños económicos causados al Estado (art. 324).

1
La Carta Magna abrogada carecía de normas expresas referidas al derecho de los consumidores, pero ello no
era obstáculo para que pudieran interpretarse extensivamente otras normas constitucionales favorables a sus
postulados. LÓPEZ CAMARGO, J. Derechos del consumidor: Consagración constitucional en Latinoamérica.
Revista e-mercatoria, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, vol. 2, n. 2, 11 p., 2003: “En suma, a pesar de
que en la Constitución Boliviana no existe una norma específica destinada a la protección de los consumidores, es
claro que sí existen normas de carácter general que de su interpretación y aplicación conducen a la obligatoriedad
de dicha protección. Es así como, en relación con el artículo 7 de la Constitución, debe recordarse que los derechos
de los consumidores son de carácter colectivo, los cuales no pueden perjudicarse en el ejercicio del comercio o
la industria. Además, aplicando los artículos 132 y 133 en concordancia con el artículo 141 de la Constitución, el
sistema económico está sometido a la justicia social, en el que el Estado intervendrá para conservar o restablecer el
equilibrio en el mercado asumiendo una política social más activa de protección al agente económico más débil”.
2
BAZÁN, V., Los derechos fundamentales (particularmente económicos, sociales y culturales) en el Estado
Plurinacional de Bolivia y ciertos desafíos que a su respecto afronta la justicia constitucional, Anuario Iberoamericano
de Justicia Constitucional, Madrid, N° 16, 30 p. 2012. Como sus elementos menciona: la plurinacionalidad, el
pluralismo jurídico y la interculturalidad (sin olvidar la intraculturalidad).
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198 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Por otro lado, se regula el derecho a la reparación o indemnización patrimonial


(art. 113) desde dos puntos de vista: a) Como derecho de las víctimas en virtud que ante
la vulneración de los derechos les concede “el derecho a la indemnización, reparación
y resarcimiento de daños y perjuicios en forma oportuna” (art. 113.I); b) Como deber
del Estado de “interponer la acción de repetición contra la autoridad o servidor público
responsable de la acción u omisión que provocó el daño”, para cuando sea condenado
a la reparación patrimonial de daños (art. 113.II).
Por último, con respecto al medioambiente declara “la responsabilidad por los
daños ambientales históricos y la imprescriptibilidad de los delitos ambientales” (art.
347.I). Acto seguido, dentro de la faz preventiva, impone la obligación para aquellos
que “realicen actividades de impacto sobre el medio ambiente deberán, en todas las
etapas de la producción, evitar, minimizar, mitigar, remediar, reparar y resarcir los
daños que se ocasionen al medio ambiente y a la salud de las personas, y establecerán
las medidas de seguridad necesarias para neutralizar los efectos posibles de los pasivos
ambientales” (art. 347.II).

2.3 Colombia
La Constitución Política de Colombia de 19913 dejó sin efecto la Constitución
Política de 1886 y de este modo modernizó su contenido y catálogo de derechos,
adaptándolo a los postulados del Estado social.4 De este modo, incorporó los derechos
de tercera generación como la protección de los derechos del consumidor y el ambiente,
poniéndose a la vanguardia del derecho latinoamericano.
En el Capítulo 3 “De los derechos colectivos y del ambiente” (arts. 78 a 82)
desarrolla ambos derechos colectivos.
Así, en materia de defensa del consumidor, establece la responsabilidad de los
proveedores de bienes y servicios cuando “atenten contra la salud, la seguridad y el
adecuado aprovisionamiento a consumidores y usuarios”5 (art. 78).
Luego de establecer el derecho a un medioambiente sano (art. 79), le impone
al Estado diversas obligaciones jurídicas y políticas como planificar “el manejo y
aprovechamiento de los recursos naturales, para garantizar su desarrollo sostenible, su

3
Constitución Política de Colombia. Actualizada con los actos legislativos a 2015, Corte Constitucional – Consejo
Superior de la Judicatura-Sala Administrativa, Bogotá. Disponible en <http: www.corteconstitucional.gov.co>.
Acceso en: 2 jun 2018
4
LÓPEZ CAMARGO, J. Derechos del consumidor: Consagración constitucional en Latinoamérica. Revista
e-mercatoria, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, vol. 2, n. 2, 8 p., 2003: “En otras palabras, la formulación
constitucional del ideal de justicia social implica que el Estado Social coloque a las libertades económicas, propias
del mercado, en el marco principal configurado por ese Estado Social y cuyos lineamientos se encuentran
consagrados constitucionalmente, con una presencia más activa del Estado por medio de los mecanismos de
intervención que con base en dicho ideal rompa la regla del equilibrio, para sostener la necesidad de proteger
especialmente al más débil y, así, asegurar la vigencia real del Estado de Derecho”.
5
Constitución Política de Colombia, Art. 78. “La ley regulará el control de calidad de bienes y servicios ofrecidos
y prestados a la comunidad, así como la información que debe suministrarse al público en su comercialización.
Serán responsables, de acuerdo con la ley, quienes en la producción y en la comercialización de bienes y
servicios, atenten contra la salud, la seguridad y el adecuado aprovisionamiento a consumidores y usuarios.
El Estado garantizará la participación de las organizaciones de consumidores y usuarios en el estudio de las
disposiciones que les conciernen. Para gozar de este derecho las organizaciones deben ser representativas y
observar procedimientos democráticos internos”.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
199

conservación, restauración o sustitución”; y, especialmente en materia de daños, le faculta


a prevenir y sancionar la reparación de los daños causados, en estos términos: “Además,
deberá prevenir y controlar los factores de deterioro ambiental, imponer las sanciones
legales y exigir la reparación de los daños causados”6 (art. 80). En este último supuesto,
faculta a promover aquellas acciones civiles necesarias para reparar el daño ocasionado.
En el Capítulo 4 “De la protección y aplicación de los derechos” (arts. 83 a 94), cierra
el sistema, mediante la postulación de las acciones populares (art. 88) para los derechos
de tercera generación, disponiéndose que la ley “regulará las acciones originadas en los
daños ocasionados a un número plural de personas, sin perjuicio de las correspondientes
acciones particulares. Asimismo, definirá los casos de responsabilidad civil objetiva por
el daño inferido a los derechos e intereses colectivos”.
Establece, a continuación, la responsabilidad patrimonial del Estado “por los
daños antijurídicos que le sean imputables, causados por la acción o la omisión de
las autoridades públicas”7 (art. 90), sin perjuicio del derecho de repetición. De este
modo, otorga rango constitucional al deber de responder del Estado, con carácter
extracontractual, para cuando la conducta de las autoridades públicas en general
ocasionen daños a los particulares. Es decir, que no se distingue rango ni función. Basta
que se trate de funcionarios o empleados del Estado colombiano, admitiéndose que
integren el Ejecutivo, Legislativo y Poder Judicial.

2.4 Ecuador
La Constitución de la República del Ecuador de 20088 siguiendo los postulados
del neoconstitucionalismo latinoamericano9 incorporó – en el Título II “Derechos”,
Capítulo tercero “Derechos de las personas y grupos de atención prioritaria”, Sección
novena designada como “Personas usuarias y consumidoras” – varias normas relativas
al derecho de defensa del consumidor (arts. 52 a 55).
En particular, además de resguardar la libertad de elección y de información
de los bienes o servicios que se comercialicen, dispuso que le corresponde a la ley
establecer “los mecanismos de control de calidad y los procedimientos de defensa de

6
Constitución Política de Colombia, Art. 80.- “El Estado planificará el manejo y aprovechamiento de los recursos
naturales, para garantizar su desarrollo sostenible, su conservación, restauración o sustitución. Además, deberá
prevenir y controlar los factores de deterioro ambiental, imponer las sanciones legales y exigir la reparación de
los daños causados. Asimismo, cooperará con otras naciones en la protección de los ecosistemas situados en las
zonas fronterizas”.
7
Constitución Política de Colombia, Art. 90. “El Estado responderá patrimonialmente por los daños antijurídicos
que le sean imputables, causados por la acción o la omisión de las autoridades públicas. En el evento de ser
condenado el Estado a la reparación patrimonial de uno de tales daños, que haya sido consecuencia de la
conducta dolosa o gravemente culposa de un agente suyo, aquel deberá repetir contra este”.
8
Publicada por Registro Oficial 449 de fecha 20 de octubre de 2008. Incluye las reformas aprobadas en el
Referéndum y Consulta Popular de 7 de mayo de 2011 y las Enmiendas Constitucionales publicadas en el
Registro Oficial No. 653 del 21 de diciembre de 2015 (ww.asambleanacional.gob.ec). Hemos consultado su texto
actualizado en Lexis S.A. URL: www.lexis.com.ec. 2 jun 2018
9
MONTAÑA PINTO, J., Teoría utópica de las fuentes del derecho ecuatoriano: perspectiva comparada, 1ª edición, Corte
Constitucional para el Período de Transición, Quito, 2012, 45 p.: “a) la omnipresencia de la Constitución en todas
las esferas jurídicas y en todos los conflictos mínimamente relevantes; b) más principios que reglas; c) coexistencia
de valores tendencialmente contradictorios en lugar de homogeneidad ideológica; d) más ponderación que
subsunción”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
200 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

las consumidoras y consumidores; y las sanciones por vulneración de estos derechos, la


reparación e indemnización por deficiencias, daños o mala calidad de bienes y servicios,
y por la interrupción de los servicios públicos que no fuera ocasionada por caso fortuito
o fuerza mayor”10 (art. 52). Por lo tanto, le corresponde al legislador infraconstitucional
la puesta en práctica de la “reparación e indemnización por deficiencias” producidos
por los bienes y servicios, debiendo regular los presupuestos de responsabilidad.
Establece, luego, la responsabilidad civil del Estado “por los daños y perjuicios
causados a las personas por negligencia y descuido en la atención de los servicios
públicos que estén a su cargo, y por la carencia de servicios que hayan sido pagados”
(art. 54). Asimismo, se dispone la responsabilidad de los servidores públicos por los actos
“realizados en el ejercicio de sus funciones, o por sus omisiones, y serán responsables
administrativa, civil y penalmente por el manejo y administración de fondos, bienes o
recursos públicos”, disponiéndose la imprescriptibilidad de la acción11 (art. 233) por las
responsabilidades “administrativas o civiles causadas por la adquisición y manejo de
deuda pública” (art. 290, inc. 6º).
Se complementa la responsabilidad civil del Estado con la establecida para las
“personas o entidades que presten servicios públicos o que produzcan o comercialicen
bienes de consumo, [ya que] serán responsables civil y penalmente por la deficiente
prestación del servicio, por la calidad defectuosa del producto, o cuando sus condiciones
no estén de acuerdo con la publicidad efectuada o con la descripción que incorpore”; y en
el párrafo siguiente, se agrega – de modo novedoso y original – la responsabilidad por
mala praxis para las personas responsables “en el ejercicio de su profesión, arte u oficio,
en especial aquella que ponga en riesgo la integridad o la vida de las personas”12 (art. 54).
Con respecto al medio ambiente le corresponde al Estado adoptar aquellas
políticas y medidas oportunas “que eviten los impactos ambientales negativos, cuando
exista certidumbre de daño”. El factor de atribución en la responsabilidad por daños
ambientales es objetivo. Asimismo, todo daño al ambiente, además de las sanciones
correspondientes, “implicará también la obligación de restaurar integralmente los

10
Constitución de la República de Ecuador, Art. 52.- “Las personas tienen derecho a disponer de bienes y servicios
de óptima calidad y a elegirlos con libertad, así como a una información precisa y no engañosa sobre su contenido
y características. La ley establecerá los mecanismos de control de calidad y los procedimientos de defensa de las
consumidoras y consumidores; y las sanciones por vulneración de estos derechos, la reparación e indemnización
por deficiencias, daños o mala calidad de bienes y servicios, y por la interrupción de los servicios públicos que
no fuera ocasionada por caso fortuito o fuerza mayor”.
11
Constitución de la República de Ecuador, art. 233.- “Ninguna servidora ni servidor público estará exento
de responsabilidades por los actos realizados en el ejercicio de sus funciones, o por sus omisiones, y serán
responsables administrativa, civil y penalmente por el manejo y administración de fondos, bienes o recursos
públicos. Las servidoras o servidores públicos y los delegados o representantes a los cuerpos colegiados de las
instituciones del Estado, estarán sujetos a las sanciones establecidas por delitos de peculado, cohecho, concusión
y enriquecimiento ilícito. La acción para perseguirlos y las penas correspondientes serán imprescriptibles y, en
estos casos, los juicios se iniciarán y continuarán incluso en ausencia de las personas acusadas. Estas normas
también se aplicarán a quienes participen en estos delitos, aun cuando no tengan las calidades antes señaladas”.
12
Constitución de la República de Ecuador, art. 54.- “Las personas o entidades que presten servicios públicos
o que produzcan o comercialicen bienes de consumo, serán responsables civil y penalmente por la deficiente
prestación del servicio, por la calidad defectuosa del producto, o cuando sus condiciones no estén de acuerdo con
la publicidad efectuada o con la descripción que incorpore. Las personas serán responsables por la mala práctica
en el ejercicio de su profesión, arte u oficio, en especial aquella que ponga en riesgo la integridad o la vida de las
personas”.
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LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
201

ecosistemas e indemnizar a las personas y comunidades afectadas”13 (art. 396). Las


acciones legales para perseguir y sancionar por daños ambientales serán imprescriptibles.

3 La constitucionalización del derecho de daños, en la doctrina


judicial de la Corte Suprema de Justicia de la Argentina
3.1 Fundamentación constitucional del derecho de daños
Para comprender la experiencia argentina, en lo que refiere al proceso de
constitucionalización del derecho de daños, resulta de fundamental importancia efectuar
un abordaje del fenómeno desde la doctrina judicial de su Corte Suprema.
Ello es así, primeramente, porque el diseño constitucional argentino, aún con
la trascendente reforma del año 1994, responde a una matriz de texto constitucional
decimonónico, pensado, esencialmente, como un instrumento de regulación de las
relaciones fundamentales entre Estado y ciudadanos; como regulación del poder, que
requiere ser estructurado, y que se detiene ante las garantías y los derechos de los
particulares. Consecuentemente, no se trata de una Constitución en donde abunden
reglas de regulación entre particulares. Quizás sea por ello, que fue necesaria una
evolución histórica, para dar con una interpretación constitucional que comience a
explicitar, aquellos principios generales del derecho de daños, que se encontraban
implícitos en el texto constitucional.
En estas líneas propondremos un repaso de fallos relevantes para la comprensión
de la construcción hermenéutica constitucional del derecho de daños en la experiencia
argentina. Indudablemente, la doctrina judicial de la Corte Argentina es mucho más
rica, pero un análisis pormenorizado de la misma, excede los límites y objetivos del
presente trabajo.
Para muchos autores,14 el hito está marcado por el precedente “Santa Coloma”.15
El fallo presenta un caso de cuantificación del daño. Dos padres, por sus propios derechos,
e invocando los de uno de sus hijos, reclaman a la Corte Suprema para que corrija el
exiguo monto reconocido por la segunda instancia, por la muerte de tres hijas, y las
lesiones que sufrió el hijo varón, por quien también demandan en dicha causa, y que se
produjeron en un accidente ferroviario en 1981.
El núcleo del análisis, en lo que nos interesa, aparece en el considerando séptimo
del fallo, donde, en memorable pasaje, se consigna que: “la sentencia apelada lesiona
el principio alterum non laedere que tiene fundamento constitucional (art. 19 de la Ley
Fundamental)”.

13
Constitución de la República de Ecuador, art. 396.- “El Estado adoptará las políticas y medidas oportunas que
eviten los impactos ambientales negativos, cuando exista certidumbre de daño. En caso de duda sobre el impacto
ambiental de alguna acción u omisión, aunque no exista evidencia científica del daño, el Estado adoptará
medidas protectoras eficaces y oportunas. La responsabilidad por daños ambientales es objetiva. Todo daño al
ambiente, además de las sanciones correspondientes, implicará también la obligación de restaurar integralmente
los ecosistemas e indemnizar a las personas y comunidades afectadas”.
14
CALVO COSTA, Carlos A., Derecho de las Obligaciones, 1ra ed, Bs. AS., Hammurabi, 2017, 43 p. PIZARRO,
RAMÓN D., y VALLESPINOS CARLOS GUSTAVO, Tratado de Responsabilidad Civil, 1ra ed, Santa Fe,
Rubinzal-Culzoni, 2017, TI, 49 p.
15
CSJN, 5/08/1986 “Recurso de hecho deducido por la actora en la causa Santa Coloma, Luis Federico y otros
c/ E.F.A.”, Fallos, 308:1160.
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202 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

El art. 19 de la Constitución Nacional prescribe que: “Las acciones privadas de los


hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a
un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados.
Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni privado
de lo que ella no prohíbe”.
Como se observa, la regla cobra, a partir de entonces, una doble razón de tras­
cendencia. En efecto, la norma tuvo siempre reconocida, la calidad de ser la norma
kelseniana de clausura del sistema, consagrando el principio de libertad de acción.
Pero, a partir del año 1986, en que se dicta este precedente, el art. 19 de la
Constitución Nacional se confunde con un principio rector del derecho de daños, cual
es la regla de no dañar a nadie.
Sostener que el principio neminem laedere anida en el texto de la ley fundamental,
opera como base de toda construcción y enfoque constitucional del derecho de daños.
Ello no importa, solamente, un espaldarazo axiológico al derecho de daños. Como
importante consecuencia práctica derivada de esta hermenéutica, es dable observar
que la Corte Suprema ha considerado como “cuestión constitucional”, que habilita su
instancia extraordinaria de revisión, aquellas sentencias que reconocen indemnizaciones
insuficientes.
Encontrar una verdad axiomática y fundante del derecho de daños, incluso
en un texto del constitucionalismo de primera generación, permite una formidable
reconstrucción constitucional de esta disciplina, de fecundas y amplias proyecciones.
Es dable preguntarnos, en este punto, qué sucedía, en la doctrina judicial
del Máximo órgano de control constitucional, antes del año 1986. Observamos que,
la mayor parte de los precedentes vinculados con daños y perjuicios, obedecen a
juicios promovidos en contra del Estado Nacional, Provincial o Municipal, por su
responsabilidad. Así, encontramos casos de responsabilidad del Estado por daños a la
propiedad derivados de la realización de obras de interés público;16 o por la deficiente
actuación de sus funcionarios y agentes.17
Como puede observarse, esta línea de pronunciamientos revela una inclinación de
la Corte al conocimiento de cuestiones de responsabilidad del Estado, más vinculadas
a los artículos 17 (derecho de propiedad) y 14 (derecho de trabajar y ejercer toda
industria lícita), en el entendimiento de una necesaria limitación y reglamentación de los
poderes públicos actuados en interés general, frente a los derechos de los particulares.
La afectación de tales derechos, opera como presupuesto de un resarcimiento. Se trata,
en definitiva, de un proceder ajustado al constitucionalismo clásico, pendiente de las
relaciones entre soberano y súbditos.
El día en que se pronuncia el fallo Santa Coloma (5 de agosto de 1986), se dicta otro
fallo relevante para comprender el proceso de hermenéutica constitucional. Nos referimos
al caso “Gunther”.18 En apretada síntesis diremos que el caso trata de un conscripto
que, en cumplimiento del servicio militar obligatorio, realizaba tareas de reparación de

16
CSJN, 24.02.1943 “Piazza Hnos. S.R.L. c. Provincia de Buenos Aires”, Fallos 195:66. CSJN, 16/04/1948 “Labrué
Noema Zavaleta de c. Nación Argentina y Parodi y Figini”, Fallos: 211:46.
17
CSNJ, 26.08.1975 “Noya, Alfonso y otro c. Provincia de Buenos Aires” Fallos 292:428; CSJN, 7.10.1982, “Olmos,
José A. c. Provincia de Córdoba”, Fallos 304:1436.
18
CSJN, 5.08.1986, “Gunther, Raúl F. c/ Ejército Argentino”, Fallos: 308:1118.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
203

una antena en una cantina de oficiales. En aquella ocasión cae del techo, y sufre severas
lesiones que inmovilizan la mitad de su cuerpo, padeciendo una incapacidad laboral
total. Luego de efectuar un análisis técnico para distinguir prestaciones de naturaleza
previsional, de aquellas que son de objeto resarcitorio, en el considerando 14, la sentencia
consigna: “la responsabilidad que fijan los arts. 1109 y 1113 del Código Civil sólo
consagra el principio general establecido en el art. 19 de la Constitución Nacional que
prohíbe a los “hombres” perjudicar los derechos de un tercero. El principio alterum non
leadere, entrañablemente vinculado a la idea de reparación, tiene raíz constitucional y la
reglamentación que hace el Código Civil en cuanto a las personas y las responsabilidades
consecuentes no las arraiga con carácter exclusivo y excluyente en el derecho privado,
sino que expresa un principio general que regula cualquier disciplina jurídica”.
En este último precedente comentado, observamos que la Corte entiende al Código
Civil, en cuanto contiene las disposiciones generales de la responsabilidad civil, como
una reglamentación de ese principio de no dañar a nadie, que se encuentra en el art. 19
de la Constitución Nacional. Se trata de un primer modo de entender la comunicación
propia del proceso de “constitucionalización”, ubicando al derecho positivo de menor
jerarquía, como una reglamentación de preceptos constitucionales, que debe superar un
test de razonabilidad en tanto concreción de aquellos principios que concreta.
También, el 5 de agosto de 1986, se dicta otro precedente de similar contenido,19
también vinculado con un accidente de servicio de un agente del ejército argentino, en
el cual se incorpora la idea de la integridad psicofísica como bien jurídico resarcible
más allá de las meras mermas laborativas, y del daño moral. Sin perjuicio de nuestras
reservas hacia este concepto de valor vida per se,20 encontramos un primer paso del
análisis constitucional en el problema de la cuantificación del daño.

3.2 Fundamentos constitucionales para la prevención del daño


En el año 1997, encontramos otro hito fundamental en el proceso de constitucio­
nalización del derecho de daños, al reconocerse el fundamento constitucional de la
función preventiva. En “Camacho Acosta”,21 la Corte Suprema descalifica la decisión
de los tribunales de grado que denegaron una medida cautelar solicitada en un proceso
de daños y perjuicios. Concretamente, los actores pidieron una medida innovativa
consistente en la provisión de una prótesis de reemplazo del antebrazo izquierdo,
que había sido amputado por una máquina de propiedad del demandado. La medida
cautelar había sido denegada sobre la base de objeciones a la identidad de lo solicitado,
cautelarmente, con el objeto de la pretensión de fondo, lo que haría adelantar,
supuestamente, opinión sobre el thema decidendum.
La Corte, haciendo excepción a la regla de que las resoluciones cautelares no son
objeto de recurso extraordinario federal, ingresa al estudio de la cuestión, y resuelve
conceder la medida solicitada, en el entendimiento de que, de otro modo, el actor sufriría
un perjuicio irreversible para su recuperación física y psíquica.

19
CSJN, 5.08.1986 “Luján, Honorio Juan c/ Nación Argentina”, Fallos: 308:1109.
20
ARIAS CÁU, ESTEBAN J.; NIETO, MATÍAS L. Cuantificación del Daño. Región NOA, 1ra. Ed., 2017, La Ley, Bs As.,
15 p.
21
CSJN, 7.08/.1997 “Camacho Acosta, Maximiliano c/ Grafi Graf SRL y otros”, Fallos: 320:1633.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
204 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

En este precedente es indudable que la jerarquía de los bienes jurídicos tutelados


importó la necesidad de flexibilizar ciertas interpretaciones procesales, para revenir un
daño irreversible sobre la integridad psicofísica del actor. Entendemos que, con este
fallo, se inicia un rico camino para el análisis constitucional de la función preventiva en
el derecho de daños.

3.3 Fundamentos constitucionales para la cuantificación del daño


El 21 de septiembre de 2004 se dicta un fallo central tanto para el derecho del
trabajo, como para la teoría del derecho de daños. El caso “Aquino”22 constituye un
precedente de obligada lectura y análisis para comprender la profundización de la
hermenéutica constitucional en el derecho de daños.
En Argentina, con la sanción de la ley nº 24.557 de riesgos del trabajo, se diseñó,
originalmente, un sistema cerrado de reparaciones de los infortunios laborales. Decimos
que el sistema era cerrado porque sólo contemplaba como resarcibles determinadas
enfermedades laborales que surgían de un listado preparado por el Poder Ejecutivo,
y porque sólo permitía el acceso a las prestaciones dinerarias de dicha ley, sin que el
trabajador pudiera optar por acciones con fundamento en el derecho común.23 En el caso,
un trabajador que cae de gran altura (unos diez metros) padece secuelas incapacitantes
del 100 % de la total obrera.
Para descalificar dicha restricción, que obligaba al trabajador a percibir una
indemnización tarifada, con topes legales, muchas veces insuficientes para reparar la
gravedad de las consecuencias dañosas, la Corte invoca nuevamente el art. 19 de la
Constitución (tal como en “Santa Coloma” y “Gunter”, fallos del año 1986) consignando:
“Que el art. 19 de la Constitución Nacional establece el “principio general” que
“prohíbe a los ‘hombres’ perjudicar los derechos de un tercero”: alterum non laedere, que
se encuentra “entrañablemente vinculado a la idea de reparación”. A ello se yuxtapone,
que “la responsabilidad que fijan los arts. 1109 y 1113 del Código Civil sólo consagra el
[citado] principio general”, de manera que la reglamentación que hace dicho código en
cuanto “a las personas y las responsabilidades consecuentes no las arraiga con carácter
exclusivo y excluyente en el derecho privado, sino que expresa un principio general que
regula cualquier disciplina jurídica”.
De allí se sigue, en el pensamiento de la Corte, que la reparación integral es la
que mejor expresa el principio de “no dañar a otro”, ínsito en el texto constitucional.
Introduce también el principio “pro homine” como base de todo análisis de la
justicia en las compensaciones (“principios humanísticos insertos en la Constitución”).
En este punto es importante recordar que el sistema original de la ley N° 24.557 de
riesgos de trabajo, sólo contemplaba una indemnización tarifada en función de la merma
de las aptitudes laborativas, sin atender a otra cuestión (incluso, omitiendo la reparación
del llamado “daño moral”). Por ello, la Corte entendió que la restricción que impedía
que el trabajador accione con fundamento en el derecho común, era inconstitucional,

22
CSJN, 21.07.2004 “Aquino, Isacio c/ Cargo Servicios Industriales S.A. s/ accidentes ley 9688”, Fallos: 327:3753.
23
El art. 39.1 de la ley 24.557 disponía que: “Las prestaciones de esta ley eximen a los empleadores de toda
responsabilidad civil, frente a sus trabajadores y a los derechohabientes de éstos, con la sola excepción de la
derivada del artículo 1072 del Código Civil”.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
205

no solo por violar la igualdad ante la ley, sino también por ser contraria al art. 19 de la
CN (“alterum non laedere”) como por violar principios humanísticos que son matriciales
en el texto constitucional.
En el precedente “Aróstegui”, 24 encontramos un análisis constitucional del
problema de la cuantificación del daño (cuestión esta que ya era abordada, también, en
el señero precedente “Santa Coloma”). El precedente resulta muy interesante habida
cuenta que, en esta ocasión, el análisis constitucional no se endereza solamente a la tarea
de control de constitucionalidad de normas, sino que apunta, muy especialmente, sobre
el modo de cálculo de una indemnización concreta.
En “Aróstegui” la Corte Suprema emplea el análisis constitucional para invalidar
una fórmula de renta capitalizada empleada por los tribunales del trabajo para calcular
las indemnizaciones con fundamento en el derecho civil. Toda vez que el recientemente
sancionado código civil y comercial de la nación (2014) prevé en su art. 1746, el empleo
de dichas fórmulas para cuantificar reparaciones de daños a la integridad psicofísica,
este precedente asume nuevamente trascendencia.
El pasaje relevante para nuestro estudio se encuentra en el considerando cuarto25,
que eleva la cuestión de la reparación integral a la jerarquía de “cuestión constitucional”
susceptible de ser revisada por el recurso extraordinario federal, ante la Corte Suprema
de Justicia de la Nación.26
En otro tramo, la Corte invoca la necesidad de una comprensión plena del ser
humano, que exige considerar, a los fines de la reparación dineraria, no sólo aquellos
perjuicios vinculados con la merma laborativa, sino también las actividades que despliega
en la esfera social deportiva, y otras, tal como ya lo había dejado sentado en el precedente
“Luján”, dictado el mismo día que el fallo “Santa Coloma”.
En “Aróstegui” encontramos una concreción mayor de la hermenéutica
constitucional, pues con ella, se invalidan parámetros concretos de una fórmula de renta
capitalizada empleada para la reparación de daños a la integridad psicofísica.
Unos años luego, en “Rodríguez Pereyra”,27 nuevamente tratando un reclamo
resarcitorio de un conscripto del ejército, la Corte prosigue en la construcción de esta
línea de pensamiento.
Este fallo es importante por varias razones. Primeramente, porque sostiene la
posibilidad del control constitucional y de convencionalidad, “ex officio”. En segundo

24
CSJN, 8.04.2008 “Arostegui, Pablo Martin c/ Omega Aseguradora de Riesgos del Trabajo S.A. y Pametal Peluso y
Compañía S.R.L. y otro s/inconst. art. 39 LRT”, Fallos 331:570.
25
“Que los agravios del apelante suscitan cuestión federal para su tratamiento por la vía intentada dado que, si bien
remiten a cuestiones de derecho común y procesal, ajenas como regla a la instancia del art. 14 de la ley 48, ello no
resulta óbice cuando el fallo contiene una ponderación de la realidad económica que satisface sólo en apariencia
el principio de la reparación integral, o no constituye una derivación razonada del derecho vigente con arreglo a
las constancias de la causa, u omite el examen de circunstancias relevantes del litigio (Fallos: 299:125; 300:936 y
303:2010, entre otros)”.
26
Como antecedente, debemos señalar que en Fallos 299:125 (“Humberto Francisco Scordo c/Lago Electric S.A. s/
daños y perjuicios”, 8.11.1977), la Corte había entendido que la afectación de las reparaciones, por la depreciación
monetaria, podía dar lugar al recurso extraordinario federal. Incluso mucho antes, en 1967 (Fallos, 268: 112
“Provincia de Santa Fe v. Carlos Aurelio Niccho”) la Corte sentó que la justicia de la indemnización tiene base
en el art 17 de la Constitución Nacional (es importante señalar, que se trataba de un caso de expropiación y
desvalorización monetaria de la indemnización).
27
CSJN, 27.11.2012 “Rodríguez Pereyra Jorge Luis y otra c/ Ejército Argentino s/Daños y perjuicios”, Fallos:
335:2333.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
206 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

lugar, porque reafirma la doctrina constitucional que hace entroncar al principio de la


reparación justa con bases constitucionales.
Se destaca en este fallo una objeción constitucional a los “topes” o parámetros
limitativos de la reparación, con fundamento en el art. 28 de la Constitución Nacional,
lo que constituye un nuevo ejemplo de aplicación constitucional al derecho de daños.
El art. 28 de la Constitución Nacional dispone que “los principios, garantías y derechos
reconocidos por la constitución, no pueden ser alterados por las leyes que reglamentan
su ejercicio”. Con ello, la Corte pudo invalidar una norma que restringía substancialmente
la indemnización de la víctima, a aspectos estrictamente materiales del daño (incapacidad
obrera).

4 El Código Civil y comercial argentino como modelo paradigmático


de la constitucionalización del derecho de daños
4.1 Fundamentos
La exposición de fundamentos elaborada por la comisión designada por el decreto
191/2011, que coordinó la elaboración del Código Civil y Comercial de la Nación, se ha
referido, de modo central, al fenómeno de la constitucionalización del derecho privado,
del cual es parte constitutiva el derecho de daños.
Al respecto, consigna que el Anteproyecto receptó una comunicación de principios
entre el derecho público y el derecho privado. Emplea una expresión que nos parece de
gran riqueza al señalar que se propuso una “reconstrucción de la coherencia del sistema
de derechos humanos con el derecho privado”.
En lo que refiere a nuestro objeto de análisis, dicha reconstrucción principia en
el primer artículo del Código, al señalar que: “Los casos que este Código rige deben ser
resueltos según las leyes que resulten aplicables, conforme con la Constitución Nacional
y los tratados de derechos humanos en los que la República sea parte. A tal efecto, se
tendrá en cuenta la finalidad de la norma” (Art. 1, CCyC).
En su artículo segundo, el Código prevé un diseño del proceso hermenéutico en
los siguientes términos: “La ley debe ser interpretada teniendo en cuenta sus palabras,
sus finalidades, las leyes análogas, las disposiciones que surgen de los tratados sobre
derechos humanos, los principios y los valores jurídicos, de modo coherente con todo
el ordenamiento” (Art. 2, CCyC).
En dicha norma se extrae un contenido valorativo del bloque de constitucionalidad,
el que constituye criterio de interpretación de las normas legales. Los principios cons­
titucionales tienen eficacia interpretativa, como informadora (orientan la legislación
posconstitucional) y directa (cuando se puede invocar de modo inmediato una norma
constitucional).28 Las tres funciones, entendemos, son predicables al derecho de daños.
Ejemplos de eficacia interpretativa, hemos desarrollado ya, en el apartado corres­
pondiente al pensamiento constitucional del derecho de daños de la Corte Suprema de
Justicia. En cuanto a la eficacia informadora, podemos señalar que todas las reformas

28
TOBÍAS, J., en Código Civil y Comercial Comentado. Tratado Exegético (Alterini, Jorge –Dir-), 2da. Ed., Bs. As., La
Ley, 2016, T. I, p. 27.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
207

efectuadas en Argentina a la ley de riesgos del trabajo, han tenido por objeto conjurar
las múltiples y variadas restricciones al principio de reparación integral. Finalmente,
en cuanto a la llamada eficacia directa, advertimos que la invocación de normas
constitucionales ha sido fructífera para la construcción de una teoría de la responsabilidad
del Estado (vgr: art. 16, de igualdad de las cargas públicas, para fundar casos de
responsabilidad por actividad lícita).
El art. 51 del CCyC, ubicado en el Libro Primero, y referido a los derechos y actos
personalísimos, por su parte, consagra el principio de “inviolabilidad de la persona
humana”, el que proyecta su trascendencia tanto sobre la prevención, como en relación
a los principios de resarcimiento del daño causado.

4.2 La función preventiva


Una de las innovaciones del nuevo ordenamiento, consiste en la regulación
de la función preventiva del daño. Entendemos que la prevención del daño ha sido,
históricamente, una de las primeras aproximaciones del pensamiento constitucional
al fenómeno del daño. Esto es tan así, que la misma acción de amparo puede ser útil,
como carril procesal, para encauzar una acción de prevención del daño; sin perjuicio de
la conveniencia de dotarle de una regulación procesal precisa.
Ahora bien, la función preventiva puede exigir una compleja ponderación de
bienes jurídicos. El art. 1713 dispone que “La sentencia que admite la acción preventiva
debe disponer, a pedido de parte o de oficio, en forma definitiva o provisoria, obligaciones
de dar, hacer o no hacer, según corresponda; debe ponderar los criterios de menor
restricción posible y de medio más idóneo para asegurar la eficacia en la obtención de
la finalidad”.
Es el último tramo del precepto, el que más nos interesa destacar. Contiene
un mandato al juez para ponderar el criterio de menor restricción posible. Ello tiene
también un fundamento constitucional, habida cuenta que, con la orden de prevención,
puede afectarse otro derecho constitucionalmente amparado. Así por ejemplo, el
derecho de ejercer toda industria lícita, puede ser válidamente restringido cuando en
su ejercicio afecta al medio ambiente. Ello importa una ponderación de bienes jurídicos
constitucionalmente amparados (el derecho de ejercer industria, y el derecho a un
ambiente sano y equilibrado) haciendo propender el derecho a un ambiente equilibrado,
por sobre el otro. Pero de allí no se sigue que ello deba enervar toda empresa, si ésta
puede emplear tecnología para limitar o anular su incidencia en las variables ambientales.
La rica teoría de la interpretación constitucional en aquello que refiere a la
razonabilidad en el ejercicio de los derechos (art. 28 de la CN) puede ser de suma utilidad
para concretar la función preventiva con el criterio de menor restricción posible, a la vez
que aporta rigor para la ponderación de bienes jurídicos que pueden hallarse enfrentados.
Con relación a esto último, la vida e integridad psicofísica de las personas, en
tanto bien constitucionalmente tutelado, reviste la mayor jerarquía, no sólo por las
disposiciones de los tratados internacionales de derechos humanos, sino también por
constituir los presupuestos del goce de todo otro derecho constitucional.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
208 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

4.3 Cuantificación del daño


El art. 1738 del nuevo Código Civil y Comercial dispone que “la indemnización
comprende la pérdida o disminución del patrimonio de la víctima, el lucro cesante en
el beneficio económico esperado de acuerdo a la probabilidad objetiva de su obtención
y la pérdida de chances. Incluye especialmente las consecuencias de la violación de los
derechos personalísimos de la víctima, de su integridad personal, su salud psicofísica,
sus afecciones espirituales legítimas y las que resultan de la interferencia en su proyecto
de vida”.
La especial referencia a los derechos personalísimos se vincula con el ya citado
art. 51 que consagra el principio de inviolabilidad de la persona humana, y que tiene
raíz constitucional, en los principios humanistas que nutren el texto constitucional.
En este ámbito, la experiencia constitucional argentina ha empleado la
interpretación constitucional para enervar mecanismos de tarifación o imitación en las
reparaciones que se han juzgado irrazonables.
Asimismo, en el importante precedente “Aróstegui”, la Corte Suprema empleó este
nivel de análisis para objetar una fórmula de renta capitalizada, con observaciones que
deberán tenerse presente cuando los magistrados confeccionen las mismas, de acuerdo
a lo que prescribe el reciente art. 1746 del Código Civil.29

5 Conclusiones
En la experiencia argentina, el proceso de constitucionalización del derecho de
daños parte de la interpretación de su norma constitucional de clausura. La amplitud de
dicha norma ha permitido proyectar aplicaciones hermenéuticas concretas en materia
de prevención y cuantificación de daño. Asimismo, ha informado al recientemente
sancionado Código Civil y Comercial de la Nación.
Es posible advertir otro modelo, de tipo inverso, que consiste en una mayor
recepción, en los textos constitucionales sudamericanos, de preceptos propios del derecho
de daños (Bolivia, Ecuador).
En uno u otro caso, el principio de inviolabilidad de la persona humana, hace
sinergia con el principio alterum non laedere, para reconstruir coherencia entre los
preceptos constitucionales y las funciones preventivas y resarcitorias del derecho de
daños.

29
“Indemnización por lesiones o incapacidad física o psíquica. En caso de lesiones o incapacidad permanente,
física o psíquica, total o parcial, la indemnización debe ser evaluada mediante la determinación de un capital,
de tal modo que sus rentas cubran la disminución de la aptitud del damnificado para realizar actividades
productivas o económicamente valorables, y que se agote al término del plazo en que razonablemente pudo
continuar realizando tales actividades. Se presumen los gastos médicos, farmacéuticos y por transporte que
resultan razonables en función de la índole de las lesiones o la incapacidad. En el supuesto de incapacidad
permanente se debe indemnizar el daño aunque el damnificado continúe ejerciendo una tarea remunerada. Esta
indemnización procede aun cuando otra persona deba prestar alimentos al damnificado”.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
209

Referencias
ARIAS CÁU, Esteban J.; NIETO, MATÍAS L. Cuantificación del Daño. Región NOA. 1. ed. Buenos Aires: La
Ley, 2017.
BAZÁN, V. Los derechos fundamentales (particularmente económicos, sociales y culturales) en el Estado
Plurinacional de Bolivia y ciertos desafíos que a su respecto afronta la justicia constitucional. Anuario
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PIZARRO, Ramón D.; VALLESPINOS, Carlos Gustavo. Tratado de Responsabilidad Civil. 1. ed. Santa Fe,
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MONTAÑA PINTO, J. Teoría utópica de las fuentes del derecho ecuatoriano: perspectiva comparada. 1. ed. Quito:
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TOBÍAS, José W. Código Civil y Comercial Comentado. Tratado Exegético (Alterini Jorge –Dir-). 2. ed. Bs. As.:
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CSJN, 7.10.1982 “Olmos, José A. c. Provincia de Córdoba”, Fallos 304:1436.
CSJN, 5.08.1986 “Recurso de hecho deducido por la actora en la causa Santa Coloma, Luis Federico y otros
c/ E.F.A.”, Fallos, 308:1160.
CSJN, 5.08.1986, “Gunther, Raúl F. c/Ejército Argentino”, Fallos: 308:1118.
CSJN, 5.08.1986 “Luján, Honorio Juan c/ Nación Argentina”, Fallos: 308:1109.
CSJN, 7.08.1997 “Camacho Acosta, Maximiliano c/ Grafi Graf SRL y otros”, Fallos 320:1633.
CSJN, 21.07.2004 “Aquino, Isacio c/ Cargo Servicios Industriales S.A. s/ accidentes ley 9688”, Fallos: 327:3753.
CSJN, 8.04.2008 “Arostegui, Pablo Martin c/ Omega Aseguradora de Riesgos del Trabajo S.A. y Pametal Peluso
y Compañía S.R.L. y otro s/inconst. art. 39 LRT”, Fallos 331:570.
CSJN, 27.11.2012 “Rodríguez Pereyra Jorge Luis y otra c/ Ejército Argentino s/ Daños y perjuicios”, Fallos:
335:2333.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

ARIAS CÁU, Esteban Javier; LEONARDO NIETO, Matías. La constitucionalización del Derecho Privado
argentino en el moderno derecho de daños. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 195-209. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL
PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS DE
PLANO DE SAÚDE: ENSAIO PRELIMINAR

DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO

PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE

I Um aparte necessário


A evidência do trabalho fica cristalina quando da verificação da inserção destes
tipos de contratos na realidade da sociedade. Com projeção de 209.078.263 (duzentos e
nove milhões, setenta e oito mil, duzentos e sessenta e três) habitantes1 em 2 de junho
de 2018, um total de 47.435.915 (quarenta e sete milhões, quatrocentos e trinta e cinco
mil, novecentos e quinze) pessoas haviam contratado até março de 2018 algum tipo
de plano privado de assistência médica com ou sem assistência odontológica e outros
23.243.800 (vinte e três milhões, duzentos e quarenta e três mil e oitocentas) pessoas
estavam beneficiários em planos privados exclusivamente odontológicos, o que totaliza
em março de 2018 70.679.715 (setenta milhões, seiscentos e setenta e nove mil, setecentos
e quinze) pessoas beneficiárias de algum tipo de contrato de plano de saúde.
O quadro seguinte traz de forma detalhada um panorama geral de uma década
dos beneficiários em planos privados de assistência médica com ou sem odontologia
e beneficiários em planos privados exclusivamente odontológicos entre dezembro de
2008 e março de 2018.

1
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/
projecao/>. Acesso em: 2 jun. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
212 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ano Beneficiários em planos privados Beneficiários em planos privados


de assistência médica com ou sem exclusivamente odontológicos
odontologia

Dez./2008 41.468.019 11.061.362

Dez./2009 42.561.398 13.253.744

Dez./2010 44.937.350 14.514.074

Dez./2011 46.025.814 16.669.935

Dez./2012 47.846.092 18.538.837

Dez./2013 49.462.313 19.483.503

Dez./2014 50.396.737 20.221.725

Dez./2015 49.176.529 20.982.988

Dez./2016 47.601.550 21.539.834

Dez./2017 47.313.761 22.953.972

Mar./2018 47.435.915 23.243.800

Fonte: Sistema de Informações de Beneficiários – SIB/ANS/MS


Dados atualizados até 03/2018

II O marco regulatório do sistema de saúde suplementar no Brasil


Com o advento do Sistema Único de Saúde pela Constituição de 1988,2 a neces­
sidade de regulamentação deste sistema ficou a cabo da Lei Federal nº 8.080, de 19 de

2
Seção II
DA SAÚDE
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da
lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de
terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem
um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
§1º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade
social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único
renumerado para §1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000).
§2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos
de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 29, de 2000)
I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15%
(quinze por cento); (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155
e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem
transferidas aos respectivos Municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
213

setembro de 1990, conhecida como a Lei do SUS, que “dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências”.3 Regidos pelos seguintes princípios
e diretrizes:

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou


conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo
com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos
seguintes princípios:
I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e
serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos
os níveis de complexidade do sistema;
III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;
IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;
VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização
pelo usuário;
VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos
e a orientação programática;
VIII - participação da comunidade;
IX - descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo:
a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;
b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;

III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o
art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e §3º. (Incluído pela Emenda Constitucional
nº 29, de 2000)
§3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:(Incluído pela Emenda
Constitucional nº 29, de 2000)
I - os percentuais de que tratam os incisos II e III do §2º; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de
2015)
II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das
disparidades regionais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital
e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
IV - (revogado). (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)
§4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de
combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas
atribuições e requisitos específicos para sua atuação. .(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006)
§5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os
Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às
endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 63, de 2010) Regulamento
§6º Além das hipóteses previstas no §1º do art. 41 e no §4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que
exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá
perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006). In: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30
maio 2018.
3
BRASIL. Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L8080.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
214 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico;
XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da
população;
XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e
XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins
idênticos.
XIV - organização de atendimento público específico e especializado para mulheres e vítimas
de violência doméstica em geral, que garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento
psicológico e cirurgias plásticas reparadoras, em conformidade com a Lei nº 12.845, de 1º
de agosto de 2013. [Grifo nosso]

O mesmo texto constitucional permite a exploração do serviço de saúde pelos


agentes econômicos, conforme preceitua o artigo 199: “a assistência à saúde é livre à
iniciativa privada”.4
O marco regulatório da saúde suplementar no Brasil se corporifica, fundamen­
talmente, na Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998, que “dispõe sobre os planos privados
de assistência à saúde”,56 e na Lei nº 9.961, de 28 de janeiro de 2000, que “cria a Agência
Nacional de Saúde Suplementar – ANS e dá outras providências”.7
A ANS possui natureza jurídica de autarquia federal sob regime especial,
vinculada ao Ministério da Saúde, reguladora das atividades que garantam a assistência
suplementar à saúde, regulando a matéria aqui ventilada através de resoluções norma­
tivas e operacionais, instruções normativas, súmulas normativas.
Importante frisar que existem outras normas editadas por outros órgãos da Repú­
blica. A título de exemplo temos a Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério
da Justiça (SENACON), que instituiu, por meio da Portaria nº 47, de 10 de junho de
2014, um grupo de trabalho interinstitucional para estabelecer mecanismos de fortale­
cimento da proteção dos consumidores de planos e serviços de saúde privados, propor
aperfeiçoamentos necessários para melhoria da regulação no setor e ampliar a fiscalização
por desrespeito aos direitos dos consumidores.

III Do processo de judicialização da saúde suplementar no Brasil


É clara a existência dum processo de judicialização em massa do sistema de saúde
suplementar no Brasil que tem de um lado as empresas prestadoras dos serviços de plano
de saúde que tentam manter a lucratividade da empresa e de outro o consumidor que
necessita de tratamentos cada dia mais especializados e de custo elevado. Há argumentos
sólidos de tutela dos direitos em ambos os lados. Lembrando que tais motivos não são o

4
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
5
BRASIL. Lei Federal nº 9.656, de 03 de junho de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L9656.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
6
A Lei Federal nº 9.656, de 03 de junho de 1998, sofreu diversas alterações, grande parte através de medidas
provisórias, um total de 45 MPs foi publicado para alterar o estatuto em comento.
7
BRASIL. Lei Federal nº 9.661, de 28 de janeiro de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L9961.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
215

objeto do trabalho, sem, contudo, deixar de considerar sua importância para a efetivação
do direito das partes.
Já no ano de 2010 o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 31,
de 30.03.2010, que “recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor
subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência
na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde”.8

8
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ, no uso de suas atribuições, e
CONSIDERANDO o grande número de demandas envolvendo a assistência à saúde em tramitação no Poder
Judiciário brasileiro e o representativo dispêndio de recursos públicos decorrente desses processos judiciais;
CONSIDERANDO a relevância dessa matéria para a garantia de uma vida digna à população brasileira;
CONSIDERANDO que ficou constatada na Audiência Pública nº 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal
para discutir as questões relativas às demandas judiciais que objetivam o fornecimento de prestações de saúde, a
carência de informações clínicas prestadas aos magistrados a respeito dos problemas de saúde enfrentados pelos
autores dessas demandas;
CONSIDERANDO que os medicamentos e tratamentos utilizados no Brasil dependem de prévia aprovação pela
ANVISA, na forma do art. 12 da Lei 6.360/76 c/c a Lei 9.782/99, as quais objetivam garantir a saúde dos usuários
contra práticas com resultados ainda não comprovados ou mesmo contra aquelas que possam ser prejudiciais
aos pacientes;
CONSIDERANDO as reiteradas reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da concessão de
provimentos judiciais de urgência e a necessidade de prestigiar sua capacidade gerencial, as políticas públicas
existentes e a organização do sistema público de saúde;
CONSIDERANDO a menção, realizada na audiência pública nº 04, à prática de alguns laboratórios no sentido de
não assistir os pacientes envolvidos em pesquisas experimentais, depois de finalizada a experiência, bem como a
vedação do item III.3, “p”, da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde;
CONSIDERANDO que, na mesma audiência, diversas autoridades e especialistas, tanto da área médica quanto
da jurídica, manifestaram-se acerca de decisões judiciais que versam sobre políticas públicas existentes, assim
como a necessidade de assegurar a sustentabilidade e gerenciamento do SUS;
CONSIDERANDO, finalmente, indicação formulada pelo grupo de trabalho designado, através da Portaria
nº 650, de 20 de novembro de 2009, do Ministro Presidente do Conselho Nacional de Justiça, para proceder a
estudos e propor medidas que visem a aperfeiçoar a prestação jurisdicional em matéria de assistência à saúde;
CONSIDERANDO a decisão plenária da 101ª Sessão Ordinária do dia 23 de março de 2010 deste E. Conselho
Nacional de Justiça, exarada nos autos do Ato nº 0001954-62.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que:
a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto por médicos e
farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões
clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais;
b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença,
inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos,
órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata;
b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA, ou em fase
experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da apreciação de medidas
de urgência;
b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os requerentes fazem parte de
programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em que estes devem assumir a continuidade do
tratamento;
b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a inscrição do
beneficiário nos respectivos programas;
c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa de direito
administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, de acordo com a relação
mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça;
d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados aos Conselhos
Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou conveniadas ao SUS, dispensários
de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como Unidade de Assistência de Alta Complexidade
em Oncologia – UNACON ou Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia – CACON;
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
216 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Neste mesmo ano, o CNJ editou a Resolução nº 107, de 06.04.2010,9 que “institui
o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de
assistência à saúde”.

II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM, à Escola Nacional
de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT e às Escolas de Magistratura Federais
e Estaduais que:
a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de
magistrados;
b) promovam a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde, congregando magistrados,
membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar maior entrosamento sobre a matéria;
Publique-se e encaminhe-se cópia desta Recomendação a todos os Tribunais. In: BRASIL. Conselho Nacional de
Justiça. Recomendação nº 31 de 30.03.2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-normativos?documento=877>.
Acesso em: 30 maio 2018.
9
Resolução Nº 107 de 06.04.2010
Ementa: Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência
à saúde.
Origem: Presidência
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e
regimentais, e,
CONSIDERANDO o elevado número e a ampla diversidade dos litígios referentes ao direito à saúde, bem como
o forte impacto dos dispêndios decorrentes sobre os orçamentos públicos;
CONSIDERANDO os resultados coletados na audiência pública nº 04, realizada pelo Supremo Tribunal Federal
para debater as questões relativas às demandas judiciais que objetivam prestações de saúde;
CONSIDERANDO o que dispõe a Recomendação nº 31 do Conselho Nacional de Justiça, de 30 de março de 2010;
CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na 102ª Sessão Ordinária,
realizada em 6 de abril de 2010, nos autos do ATO 0002243-92.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
Art. 1º Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum Nacional para o monitoramento e
resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de elaborar estudos e propor medidas concretas
e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à
prevenção de novos conflitos.
Art. 2º Caberá ao Fórum Nacional:
I - o monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o fornecimento de
medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares;
II - o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde;
III - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas processuais, à organização
e estruturação de unidades judiciárias especializadas;
IV - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de
estratégias nas questões de direito sanitário;
V - o estudo e a proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do objetivo do Fórum
Nacional.
Art. 3º No âmbito do Fórum Nacional serão instituídos comitês executivos, sob a coordenação de magistrados
indicados pela Presidência e/ou pela Corregedoria Nacional de Justiça, para coordenar e executar as ações de
natureza específica, que forem consideradas relevantes, a partir dos objetivos do artigo anterior.
Parágrafo único. Os relatórios de atividades do Fórum deverão ser apresentados ao Plenário do CNJ
semestralmente.
Art. 4º O Fórum Nacional será integrado por magistrados atuantes em unidades jurisdicionais, especializadas ou
não, que tratem de temas relacionados ao objeto de sua atuação, podendo contar com o auxílio de autoridades
e especialistas com atuação nas áreas correlatas, especialmente do Conselho Nacional do Ministério Público,
do Ministério Público Federal, dos Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos
Advogados do Brasil, de universidades e outras instituições de pesquisa.
Art. 5º Para dotar o Fórum Nacional dos meios necessários ao fiel desempenho de suas atribuições, o Conselho
Nacional de Justiça poderá firmar termos de acordo de cooperação técnica ou convênios com órgãos e entidades
públicas e privadas, cuja atuação institucional esteja voltada à busca de solução dos conflitos já mencionados
precedentemente.
Art. 6º O Fórum Nacional será coordenado pelos Conselheiros integrantes da Comissão de Relacionamento
Institucional e Comunicação.
Art. 7º Caberá ao Fórum Nacional, em sua primeira reunião, a elaboração de seu programa de trabalho e
cronograma de atividades.
Art. 8º As reuniões periódicas dos integrantes do Fórum Nacional poderão adotar o sistema de videoconferência,
prioritariamente.
Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
217

No ano de 2015 o Conselho Nacional de Justiça divulgou uma pesquisa realizada


nos anos de 2013 e 2014 pelo “Estudo multicêntrico sobre as relações entre Sociedade,
Gestão e Judiciário na efetivação do direito à saúde” em parceria com o Laboratório
de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde (LAPPIS/UERJ) com o condão
de analisar os casos de judicialização da saúde nos seguintes Tribunais: Tribunal de
Justiça de São Paulo, Tribunal de Justiça do Paraná, Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Norte, Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do
Sul e Tribunal de Justiça do Acre.
Inicialmente aponta que um dos principais motivos da judicialização seria o
processo de constitucionalização dos direito sociais decorrentes do advento da Consti­
tuição de 1988. Neste sentido assevera:

A progressiva constitucionalização que os direitos sociais passaram na década de 1980,


associada aos desafios de implementação efetiva por parte do Estado, fez que tais direitos
fossem cada vez mais submetidos ao crivo das instituições jurídicas para sua efetivação.
A judicialização do direito à saúde, mais especificamente, tem se direcionado a diversos
serviços públicos e privados, tais como o fornecimento de medicamentos, a disponibilização
de exames e a cobertura de tratamentos para doenças. Não é difícil observar em qualquer
governo no Brasil a existência de ações judiciais que buscam o deferimento de pedidos
sobre estes e outros assuntos. O resultado deste processo é a intensificação do protagonismo
do Judiciário na efetivação da saúde e uma presença cada vez mais constante deste Poder
no cotidiano da gestão em saúde. Seja em uma pequena comarca ou no plenário do STF,
cada vez mais o Judiciário tem sido chamado a decidir sobre demandas de saúde, o que o
alçou a ator privilegiado e que deve ser considerado quando o assunto é política de saúde.10

Dentre os resultados alcançados temos as seguintes considerações:

Foco curativo das demandas: as demandas apresentadas versam de forma predominante


sobre aspectos curativos da saúde (medicamentos, tratamentos, próteses etc.) e menos
sobre aspectos preventivos (vacinas, exames etc.). Isto evidencia que a judicialização da
saúde ainda versa sobre uma dimensão bastante parcial de todas as ações e serviços de
saúde que devem ser prestadas pelo poder público.
Predominância da litigação individual: a proporção entre ações coletivas e ações individuais
é ainda grande, de modo que a maioria radical de demandas judiciais de saúde versem
sobre ações individuais. Isso reforça a ideia de que a microlitigação é um dado em saúde
e o acúmulo de ações individuais gera desafios para as partes, o Judiciário e a própria
gestão em saúde.
Tendência de deferimento final e na antecipação de tutela: na maioria dos casos, houve deferimento
do pedido de antecipação de tutela sem pedido de informações complementares. Além
disso, na maioria dos casos houve confirmação do deferimento do pedido na sentença de
1ª instância e também no acórdão de 2ª instância.
Pouca menção à Audiência Pública do STF: a maioria das decisões não citou ou tomou como
referência a Audiência Pública que o STF realizou em 2009 a respeito da judicialização da
saúde, tampouco adotou quaisquer posições que estiveram presentes nesta audiência.
Pouca menção ao CNJ: a maioria das decisões não citou ou tomou como referência as
contribuições do CNJ sobre o tema, especialmente as Recomendações n. 31 e n. 36, que

10
ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO Roseni (Coord.). Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência. Brasília:
Conselho Nacional de Justiça, 2015, fls. 09.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
218 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

sugerem estratégias de como os juízes devem lidar com a judicialização da saúde pública
e suplementar na atividade judicante.
Pouca menção ao Fórum Nacional e aos Comitês estaduais: a maioria das decisões não citou
ou tomou como referência as contribuições do Fórum Nacional de Saúde e dos Comitês
estaduais na atividade judicante.
Tendência de utilização do NAT, especialmente nas capitais: a maioria das decisões não fez
menção ao NAT como uma estratégia para a atividade judicante em saúde, apesar de se
observar nos dados uma tendência a sua utilização, especialmente nas capitais.

Percebemos que há uma tendência majoritária em deferimento da tutela de


urgência e provimento final dos pedidos requeridos pelo contratante – consumidor,
diante consequentemente da plausibilidade do direito cumulado com a urgência, nas
tutelas provisórias e no lastro probatório sólido a tutelar o direito deste no provimento
final.
Além da tutela pleiteada, o Poder Judiciário lança mão das astreintes no sentido
de garantir a efetividade da decisão judicial e com esta mesma frequência defere o pleito
inicial de dano imaterial pelo inadimplemento contratual pela parte da contratada.
Neste sentindo, podemos tomar como exemplo frequente na ratio decidende que podemos
depurar na ementa do julgado,

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. PLANO


DE SAÚDE. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. TRATAMENTO SOLICITADO PELO MÉDICO.
RADIOTERAPIA. QUIMIOTERAPIA. REVISÃO DE CLÁUSULA CONTRATUAL ABU­
SIVA. DANO MORAL. QUANTUM. RAZOABILIDADE. AGRAVO DESPROVIDO.
1. De acordo com a orientação jurisprudencial do STJ, o plano de saúde pode estabelecer
as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de tratamento utilizado para a cura de
cada uma, sendo abusiva a cláusula contratual que exclui tratamento quando essencial
para garantir a saúde ou a vida do segurado.
2. Nas hipóteses em que há recusa injustificada de cobertura por parte da operadora do
plano de saúde para tratamento do segurado, a orientação desta Corte é assente quanto à
caracterização de dano moral, não se tratando apenas de mero aborrecimento. Precedentes.
3. Agravo interno desprovido.11

Recentemente este mesmo Superior Tribunal de Justiça editou duas súmulas de


grande repercussão no seio da sociedade. A Súmula nº 608, com enunciado: “Aplica-
se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os
administrados por entidades de autogestão”,12 e a Súmula nº 609, que tem o seguinte
enunciado, “a recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente,
é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a
demonstração de má-fé do segurado”.13
Tudo isso para demonstrar a importância e recorrência da matéria no Poder
Judiciário.

11
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1198799/SP, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 17.05.2018, DJe
25.05.2018.
12
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 608, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11.04.2018, DJe 17.04.2018.
13
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 609, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11.04.2018, DJe 17.04.2018.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
219

IV  Da revisão dos pressupostos da responsabilidade civil e do


surgimento de novas espécies de dano e sua incidência nas
demandas de saúde suplementar. O dano existencial
A pergunta que é feita comumente quando da existência de algum fato que gerou
algum desiquilíbrio na esfera jurídica de outrem é: “de quem é a responsabilidade?”.
O sistema de responsabilidade civil é essencial para a construção dum ordenamento
jurídico num Estado Social Democrático de Direito. Nas palavras do Prof. Paulo Lôbo,
“a responsabilidade desponta como um dos mais importantes objetos de análise dos
especialistas e operadores do direito na atualidade. Sem responsabilidade não se pode
assegurar a realização da dignidade da pessoa humana e da solidariedade estatal”.14
Na medida em que o sistema de responsabilidade civil assume uma nova postura,
outrora, jamais tida, o sistema se permite ser visto sob prismas diversos, muitos até
então não explorados.
No âmbito da matéria avençada no trabalho, o Superior Tribunal de Justiça tem
julgado a incidência do dano moral in re ipsa.15
É neste mesmo Tribunal que o julgamento do Recurso Especial nº 1190880/RS,
de Relatoria da Ministra Nancy Andrighi – que tem por partes a Sra. Sara Slomka, de
um lado, e o Bradesco Saúde e Assistência S.A., doutro, e por matéria a negativa de
tratamento para câncer que lançou luzes para as matérias fáticas que o tema traz em
seu bojo. Nos fundamentos do seu voto, a Relatora ultrapassa o mero formalismo que
um positivismo jurídico permite. Neste sentindo, a ratio decidendi do julgado,

Na realidade, a regra geral tem sido excepcionada nas hipóteses em que, a partir da
própria descrição das circunstâncias que perfazem o ilícito material, seja possível
entrever consequências bastante sérias de cunho psicológico como resultado direto do
inadimplemento culposo.
Na hipótese específica destes autos, a recorrente já estava internada e prestes a ser operada –
naturalmente abalada pela notícia de que estava acometida de câncer – quando foi surpreendida
pela notícia de que a prótese a ser utilizada na cirurgia não seria custeada pelo plano de saúde no
qual depositava confiança há quase 20 anos.
Sem alternativa, foi obrigada a emitir cheque desprovido de fundos para garantir a
realização da intervenção cirúrgica. Assim, a toda a carga emocional que antecede uma
operação somou-se a angústia decorrente não apenas da incerteza quanto à própria
realização da cirurgia, mas também acerca dos seus desdobramentos, em especial a alta
hospitalar, sua recuperação e a continuidade do tratamento, tudo em virtude de uma
negativa de cobertura que, ao final, se demonstrou injustificada, ilegal e abusiva.
O diagnóstico positivo do câncer certamente trouxe forte comoção à recorrente. Porém, talvez pior
do que isso, tenha sido ser confortada pela notícia quanto à existência de um tratamento para, em
seguida, ser tomada de surpresa por uma ressalva do próprio plano de saúde – que naquele momento
deveria transmitir segurança e tranquilidade ao associado – que impedia a sua realização, gerando
uma situação de indefinição que perdurou até depois da cirurgia.
Maior tormento que a dor da doença é o martírio de ser privado da sua cura.16

14
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações. Vol. II. 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2018, fls. 321.
15
Sobre o tema as decisões a seguir: REsp 1.243.632/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe
17.9.2012; e AgRg no AREsp 7.386/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe 11.9.2012.
16
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1190880/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 19.05.2011, DJe 20.06.2011.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
220 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

No mesmo julgamento a Ministra Maria Isabel Gallotti proferiu voto nos seguintes
termos:

Com efeito, dos fatos apresentados decorre a situação injusta e delicada imposta à paciente,
a qual, na iminência de cirurgia imprescindível para a recuperação de doença letal, foi
forçada a emitir cheque sem provisão de fundos, fato em tese tipificado como crime, para
pagamento de despesa inesperada e abusiva.
A gravidade da doença e a urgência do procedimento médico evidenciam que a recusa
ilegal por parte da empresa privada operadora do plano causou muito mais do que um
mero dissabor, mas um agravamento do seu estado de angústia e aflição próprios de quem
se submete aos riscos de uma operação.17

Ora, percebem-se que os efeitos do inadimplemento dos contratos de planos


de saúde no que tange à negativa do procedimento necessário para a manutenção ou
recuperação da saúde do contratante extrapolam os meros dissabores da vida cotidiana,
sendo alcançada pelo instituto da responsabilidade civil no que tange à incidência de
um dano moral.
Neste in itinere houve avanços no processo de transferência do núcleo da
responsabilidade civil, uma vez que outrora o núcleo era a culpa do agente, todavia,
agora o núcleo é o dano (proteção da vítima).
Outro efeito seria da relativização dos Pressupostos Gerais da Responsabilizada
Civil por Dano que tomou forma no Código Civil de 2002, quando prevê a responsabilidade
por fato lícito, “Código Civil, Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial,
os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos
danos causados pelos produtos postos em circulação”,18 19 20 a responsabilidade sem dano
efetivo,21 responsabilidade sem nexo de causalidade.22

17
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1190880/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 19.05.2011, DJe 20.06.2011.
18
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 maio 2018.
19
O Código Civil ainda traz o emblemático caso do artigo 188, II que deve ser analisado em cumulação com o artigo
929 também do Código Civil.
“Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo
iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem abso­lu­
tamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.
(...)
Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo,
assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram”.
In: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 fev. 2018.
20
Noutro exemplo o Código Civil traz a obrigação de indenizar do proprietário do imóvel que se utilizar de
servidão de passagem ao proprietário do imóvel serviente. “Código Civil, Art. 1.285. O dono do prédio que não
tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o
vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário”. In: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de
janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro
de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406 compilada.htm#art2044>.
Acesso em: 24 fev. 2018.
21
O Código de Processo Civil em vigor traz em seu bojo que deverá haver a concessão de tutela de urgência sempre
que houver probabilidade de dano. “Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
221

Acerca deste processo que se abateu no sistema de responsabilidade civil, é


22

luminoso o Magistério da Professora Giselda Horonaka,

O contorno fundamental da principiologia de amparo e o matiz de sustentação do viés


axiológico de resguardo de uma tal reestruturação sistemática deverá estar, por isso
mesmo, indelevelmente vinculado ao respeito à dignidade da pessoa humana, esta que é,
enfim, o sentido e a razão de toda e qualquer construção jurídico-doutrinária ou jurídico-
normativa. Tudo exatamente para que o direito, pensado em sua gênese, cumpra seu papel
mais extraordinário, o papel de responsável pela viabilização da justiça e da paz social.23

Daí surge a compreensão da incompletude do sistema de responsabilidade na


tutela dos direitos oriundos destas relações mutáveis e de maior complexidade na
sociedade. Diante dessa realidade surgem novos tipos de espécie de dano imaterial. O
dano que anteriormente se resolvia com a dicotomia dano material e dano imaterial vê
surgir como dano imaterial outras espécies de dano que antes não encontravam lastro
na doutrina, na legislação e nos julgados das Cortes. É neste paradigma que se encontra
o dano existencial como uma espécie de dano imaterial.
Segundo o Professor Paulo Lôbo, esta espécie autônoma de dano imaterial,

Com atributos próprios, há o dano existencial, que diz respeito ao comprometimento


permanente ou duradouro da existência da pessoa humana, nas suas relações com as
outras pessoas e no seu projeto de vida, em virtude, principalmente de violações de
direitos humanos, feitas por agentes do Estado, ou por particulares, que deixam marcas
psicológicas indeléveis nas vítimas.24 25

Nesta mesma esteira segue os resultados apreendidos por Elaine Buarque quando
dos estudos desenvolvidos no doutorado da Universidade Federal de Pernambuco, que
tem por objeto a autonomia do dano existencial frente ao dano moral.

que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. In:
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 17 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 fev. 2018.
22
O Código Civil trata da responsabilidade sem nexo de causalidade quando da responsabilidade do transportador
por acidente por culpa de terceiro. “Código Civil Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por
acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”. In: BRASIL.
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 fev. 2018.
23
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta Evolução de Fundamentos e de
Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 31, n. 1,
2007. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/revfd/article/view/12029/7983>. Acesso em: 24 fev. 2018.
24
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações. Vol. II. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, fls. 353.
25
Celebre é a definição da Matilde Zavala de González ao qual dano existencial “seria uma espécie de dano à vida
de relação como aquele em que há impossibilidade ou dificuldade do sujeito atingido em sua integridade de
reinserir-se nas relações sociais ou de mantê-las em um nível de normalidade. O dano ao projeto de vida atinge
legítimas expectativas que a pessoa tinha com relação a própria existência, variando de uma frustração de menor
alcance até a própria perda de sentido pela vida”. In: ZAVALA DE GONZÁLEZ, Matilde. Resarcimiento de daños.
Daños a las personas (integridad sicofísica). 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 1996, p. 462.
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222 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A figura do dano existencial nasce e se desenvolve na direção da ampliação da tutela dos


valores humanos, entendidos em sua complexidade. Esse dano surgiu do trabalho de
uma doutrina especializada no estudo do dano à pessoa. Foi reconhecido após um árduo
trabalho de pesquisas doutrinárias e da sua evidente aplicação em concreto, resultante
do levantamento do repertório judicial de mérito e de legitimidade, em matéria de
responsabilidade civil.26

Uma vez reconhecendo a existência doutrinária autônoma dessa espécie de dano,


cumpre perguntar: quando o inadimplemento contratual ocasionado pelos planos de
saúde dará causa à incidência do dano existencial?
Não há aqui a intenção de criar mecanismos fechados e não dinâmicos, porque
incorreríamos no equívoco das codificações oitocentistas, tampouco de esvaziar o dano
moral stricto sensu, mas de iniciar um trilhar de caminho em busca de uma tutela de
direitos efetiva, que não comporte meramente a incidência dos danos morais (stricto
sensu).
Neste sentido temos uma grande contribuição do Direito do Trabalho, que através
da Lei Federal nº 13.467/17 – conhecida como “Reforma Trabalhista” – modificou a CLT,
introduzindo de forma inédita na lei, malgrado já reconhecido no âmbito doutrinário
e jurisprudencial, o dano existencial em seu artigo 223-B nos seguintes termos, “causa
dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou
existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à
reparação”27 [grifo nosso].
A incidência do dano existencial teria como requisito essencial o confisco irreversível
do tempo daquele que pleiteia a tutela do bem da vida noutras palavras, de forma mais
depurada para Elaine Buarque28 os critérios para a incidência de um dano existencial
seriam,
a) o dano ao projeto de vida;
b) o dano à vida em relações;
c) o dano estético permanente que impeça a vítima de desenvolver suas atividades
habituais;
d) o dano à prática de esportes, como lazer; e
e) o dano ao prazer de viver e gozar da vida, como antes.
Do ponto de vista relacionado às relações privadas, no que tange a defeito na
prestação de serviço, temos o caso interessante que já em 2009 aponta a maturidade
e incidência do dano existencial. O caso em concreto tem por objeto a gravidez de
mulheres que faziam uso de anticoncepcional que nas provas perícias forneciam cápsulas
contendo farinha.

26
BUARQUE, Elaine Cristina de Moraes. Dano Existencial: para além do dano moral. Tese de Doutorado em Direito.
Universidade Federal de Pernambuco, 2017, fls. 69.
27
BRASIL. Lei Federal nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nºs 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de
11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm>. Acesso em: 02 jun.
2018.
28
BUARQUE, Elaine Cristina de Moraes. Dano Existencial: para além do dano moral. Tese de Doutorado em Direito.
Universidade Federal de Pernambuco, 2017, fls. 240.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
223

Neste sentido é o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo de relatoria do


Desembargador Ênio Santarelli Zuliani, que assevera,

Caso conhecido como das “pílulas de farinha”, sendo de se anotar que o fato de o STJ
admitir a indenização em ação civil pública promovida pelos danos decorrentes da ingestão
do anticoncepcional Microvlar, da Schering [Resp. 866.636 SP], referendando-a em ação
individual [Resp. 1.096.325 SP], constrói modalidade de sentença de efeito erga omnes
quanto ao tema jurídico, desautorizando decisões diversas quando as situações fáticas se
assemelham – Hipótese em que a autora, com a juntada de carteia e duas drágeas restantes
que não possuíam os princípios ativos a que se destinavam, prova ter engravidado pela
falha da indústria em não destruir os produtos manufaturados para testes [placebos] da
máquina empacotadora recém adquirida e pela culpa quanto à guarda desse material
que, infelizmente, foi inserido no comércio como produto regular - Dever de compensar
a mulher pela concepção indesejada ou inesperada, como espécie de dano existencial,
conforme já admitido pelo Tribunal Superior, inclusive em lide ajuizada por defeito de
outro anticoncepcional produzido pela Schering [Resp. 918.257 SP] e de pagar pensão à
filha, aceita essa fórmula de indenizar como reparação pela perda de chance de cumprir
o princípio do cuidado previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do
Adolescente e na Convenção Internacional sobre os Direito da Criança. Agravo retido
não provido e provimento em parte dos recursos [apenas para consignar que a correção
monetária do dano moral tem início a partir da sentença que arbitrou o quantum e para
elevar a verba honorária para 10% do valor atualizado das condenações.29

Nos fundamentos do seu voto o relator faz referência de sólida construção


doutrinária e decisões em Cortes estrangeiras que demonstram a incidência do instituto
em comento.

A mulher que não deseja engravidar possui razões pessoais, familiares, econômicas e
profissionais para não ser fertilizada, e essa sua opção de vida deve ser respeitada, sob
pena de se estabelecer uma certa violência contra predicados íntimos, o que não deixa
de caracterizar ofensa a direitos da personalidade. Ademais, a gravidez não planejada
altera projetos sadios de cônjuges e companheiros, o que é causa de ansiedade e quiçá de
preocupação com os desvios das rotas traçadas, inclusive no plano financeiro. Há, sem
dúvida, frustração quanto ao desejo de uma opção de vida, o que por si só caracteriza
o dano moral indenizável [art. 5º, V e X, da CF], sendo que a doutrina classifica essa
modalidade de dano como “existencial”, com precedente do Tribunal de Monza, de 7.6.1996,
cf. nota de rodapé 72 da obra de ARMANDO BRAGA [A reparação do dano corporal na
responsabilidade civil extracontratual, Almedina, Coimbra, 2005, p, 62].30 [grifo nosso].

Cumpre aos julgadores, utilizando de forma responsável e eficaz as técnicas de


processamento e julgamento das demandas, no caso concreto, aferir se comporta o caso
em concreto do dano existencial.

29
SÃO PAULO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. APL: 4820374000 SP, Relator: Enio
Zuliani, Data de Julgamento: 29.01.2009, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04.02.2009.
30
SÃO PAULO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. APL: 4820374000 SP, Relator: Enio
Zuliani, Data de Julgamento: 29.01.2009, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04.02.2009.
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224 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Considerações finais
A judicialização da saúde suplementar no Brasil ganha contornos dramáticos
na medida em que se verifica que o bem da vida que se pretende tutelar causaria dano
irreparável, caso não efetivamente tutelado, ao projeto de vida do consumidor contratante
de plano de saúde.
Ao mesmo tempo evidencia-se pelas pesquisas indicadas neste estudo que
propostas as ações, quando estas requerem medidas de urgência, tais medidas são
providas pelo Poder Judiciário e na mesma medida uma preponderância de procedência
final dos pedidos que tem por base algum tipo de defeito na prestação do serviço dos
planos de saúde, tudo isto em conformidade com o Código de Defesa do Consumidor.
Os fatos aqui elencados ponderam a atualização do sistema de responsabilização
pelos danos causados.
Nesta seara surge dano existencial como espécie autônoma de dano – um novo
paradigma capaz, pelo menos momentaneamente – de suprir os espaços não alcançados
pelo instituto do dano moral. Assim como o dano moral, é o dano existencial uma espécie
de dano imaterial.
Neste sentindo o “confisco irreversível do tempo”, pelo inadimplemento de
obrigações dos planos de saúde, que, ao incidir no patrimônio jurídico do contratante
ou de terceiros, no que diz respeito ao comprometimento permanente ou duradouro da
existência da pessoa humana, nas suas relações com as outras pessoas e no seu projeto
de vida, tem o condão de atrair a incidência desta espécie de dano.
A contribuição da doutrina e das decisões judiciais que diferencia o dano moral
stricto senso do dano existencial, permitindo, até sua cumulação, como verificamos em
situações do dano estético e dano moral,31 matéria inclusive sumulada no Superior
Tribunal de Justiça, confirma a tendência de que o dano imaterial/moral é gênero e
também espécie de dano.
Os critérios construídos até então por estudiosos do tema dão cabo de alguns
critérios capazes de atrair a incidência do dano existencial, seriam eles a prima face: a)
o dano ao projeto de vida; b) o dano à vida em relações; c) o dano estético permanente
que impeça a vítima de desenvolver suas atividades habituais; d) o dano à prática de
esportes, como lazer; e e) o dano ao prazer de viver e gozar da vida, como antes.
Tais critérios deverão ser utilizados pelo julgador em um juízo de razoabilidade
e ponderação para diferenciar o dano moral stricto sensu do dano existencial, como
também, uma vez configurada a incidência dessa espécie de dano, a busca do quantum
indenizatório capaz de reparar o bem da vida protegido.

Referências
ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO Roseni (Coord.). Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência. Brasília:
Conselho Nacional de Justiça, 2015.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 31 de 30/03/2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.
br/atos-normativos?documento=877>. Acesso em: 30 maio 2018.

31
Súmula 387 - É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral. In: BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. Súmula 387, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26.08.2009, DJe 01.09.2009.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
225

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/
projecao/>. Acesso em: 02 jun. 2018.
BRASIL. Lei Federal nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nºs 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036,
de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de
trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm>. Acesso
em: 02 jun. 2018.
BRASIL. Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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BRASIL. Lei Federal nº 9.656, de 03 de junho de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Leis/L9656.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
BRASIL. Lei Federal nº 9.661, de 28 de janeiro de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Leis/L9961.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa
do Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/
L10406 compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 maio 2018.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da República Federativa
do Brasil, Brasília, DF, 17 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/
L10406 compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 fev. 2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 387, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26.08.2009, DJe 01.09.2009.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 609, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11.04.2018, DJe 17.04.2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1198799/SP, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 17.05.2018, DJe
25.05.2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1190880/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 19.05.2011, DJe 20.06.2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 608, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11.04.2018, DJe 17.04.2018.
BUARQUE, Elaine Cristina de Moraes. Dano Existencial: para além do dano moral. Tese de Doutorado em
Direito. Universidade Federal de Pernambuco, 2017.
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta Evolução de Fundamentos e de
Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 31, n.
1, 2007. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/revfd/article/view/12029/7983>. Acesso em: 24 fev. 2018.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações. Vol. II. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
SÃO PAULO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. APL: 4820374000 SP, Relator: Enio
Zuliani, Data de Julgamento: 29.01.2009, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04.02.2009.
ZAVALA DE GONZÁLEZ, Matilde. Resarcimiento de daños. Daños a las personas (integridad sicofísica). 2. ed.
Buenos Aires: Hammurabi, 1996.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

MERGULHÃO, Danilo Rafael da Silva; ALBUQUERQUE, Paula Falcão. Critérios de incidência de uma
responsabilidade civil por dano existencial pelo inadimplemento dos contratos de plano de saúde: ensaio
preliminar. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito
Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 211-225. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA
DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA:
UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL

AURICELIA DO NASCIMENTO MELO

JOANA DE MORAES SOUZA MACHADO

Introdução
As pessoas que possuem algum tipo de deficiência são como quaisquer outras,
com peculiaridades, contradições e singularidades. São seres humanos que lutam pelos
seus direitos, pela autonomia individual e desejam uma efetiva participação e inclusão
na sociedade, por isso existe a necessidade de políticas públicas e sociais que possam
propiciar a dignidade humana a essas pessoas. Nessa perspectiva, o Brasil dispõe de
uma legislação que avança para assegurar os direitos dessas pessoas e ratificou em 2008
a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações
Unidas.
O presente estudo tem como objetivo analisar o modelo de atenção social e a
partir dele verificar a evolução e o resguardo dos direitos das pessoas com deficiência
na legislação brasileira, de maneira específica a inclusão previdenciária dessas pessoas
e como o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que é a autarquia responsável por
pagar os benefícios previdenciários, vem atuando na concessão desses benefícios.
Não é forçoso lembrar que a deficiência faz parte do ciclo de vida do ser humano,
pois pode ser provocada por incidentes do dia a dia ou ainda ocorrer em decorrência
do envelhecimento, provocando restrições de mobilidade. Diniz (2007, p. 8) afirma que
“a concepção de deficiência como uma variação normal da espécie humana foi uma
criação discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo
fora da norma”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
228 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

As Constituições brasileiras disciplinaram no início de maneira tímida os direitos


das pessoas com deficiência. A Constituição de 1934 trouxe de forma embrionária a
proteção de pessoas com deficiência; a Constituição de 1946 fez menção à garantia
previdenciária e, no Texto Constitucional de 1967 (art. 175, §4º), foi disposta de maneira
expressa a normatização de lei para regular a educação de pessoas com deficiência.
De maneira mais concreta a inserção de direitos para pessoas com deficiên­
cia acontece logo após a Segunda Guerra Mundial, com a consolidação de diplomas
modernos, nos quais houve um compromisso, na verdade uma necessidade do Estado,
de promover a proteção das pessoas com deficiência.
A Constituição de 1988 trata dos direitos das pessoas com deficiência ao longo
de vários artigos. Em 1989 foi aprovada a Lei nº 7.853, que dispõe sobre o apoio e a
integração social das pessoas com deficiência, institui a tutela jurisdicional de interesses
coletivos ou difusos dessas pessoas e disciplina a atuação do Ministério Público, sendo
que as políticas públicas ganharam maior efetividade com o decreto que ratificou a
Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) e de maneira mais específica foi
confeccionada a Lei Complementar nº 142, em maio de 2013, que regulamentou o art.
201, §1º, no tocante à aposentadoria das pessoas com deficiência.

1 O modelo de atenção social e os deficientes


O modelo social de deficiência estruturou-se em oposição ao modelo médico da
deficiência, que reconhece na lesão, na doença ou na limitação física a causa primeira
da desigualdade social e das desvantagens vivenciadas pelos deficientes, ignorando o
papel das estruturas sociais para a sua opressão e marginalização.
Entre o modelo social e o modelo médico há diferença na lógica de causalidade
da deficiência. Para o modelo social, a sua causa está na estrutura social. Para o modelo
médico, no indivíduo. Em síntese, a ideia básica do modelo social é que a deficiência
não deve ser entendida como um problema individual, mas uma questão da vida em
sociedade, o que transfere a responsabilidade pelas desvantagens das limitações corporais
do indivíduo para a incapacidade da sociedade em prever e se ajustar à diversidade
(BAMPI; GUILHEM; ALVES, 2010).
O modelo social surgiu no Reino Unido e provocou reviravolta nos modelos
tradicionais de compreensão da deficiência ao retirar do indivíduo a origem da desi­
gualdade, experimentada pelos deficientes, e devolvê-la à sociedade. Esse modelo discute
de maneira extensa sobre políticas de bem-estar e de justiça social para os deficientes.
Com a adoção do modelo social, a deficiência deixa de ser um problema trágico,
de ocorrência isolada de alguns indivíduos menos afortunados, para os quais a única
resposta era o modelo médico, para ser abordada como uma situação de discriminação
coletiva e de opressão social para a qual a única resposta apropriada é a ação política.
Segundo Diniz (2007, p. 77), com o modelo social os impedimentos físicos, inte­
lectuais e sensoriais passaram a ser diferenciados da opressão pela deficiência: é possível
um corpo com impedimentos não vivenciar a opressão, a depender das barreiras sociais
e da crítica à cultura da normalidade em cada sociedade.
A definição de deficiência não está relacionada à falta de um membro, nem à
redução da visão ou da audição. O que a caracteriza são as dificuldades que as pessoas
com alguma alteração física ou mental encontram em se relacionar ou se integrar na
AURICELIA DO NASCIMENTO MELO, JOANA DE MORAES SOUZA MACHADO
A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL
229

sociedade. A deficiência não deve ser entendida como sinônimo de doença, pois é
fenômeno social que surge com maior ou menor incidência a partir das condições de
vida de uma sociedade, de sua forma de organização, da atuação do Estado,1 do respeito
aos direitos humanos e dos bens e serviços disponíveis para a população (MAIOR, 2005,
p. 25-30).
Pode-se dizer que o Estado, ao atribuir novo paradigma ao princípio da igualdade,
é marcado pela superação da simples proibição de discriminação às minorias, na visão
de Quaresma (2010, p. 941)

A partir de uma visão mais dinâmica acerca do principio da igualdade, impondo ao


Estado, exigências de ações positivas, tanto pelos particulares, quanto pelo próprio poder
público, em favor destas mesmas minorias discriminadas, retrata o momento de transição
do estado liberal para o estado social, desde ao coletivo e difuso e o primado da atualidade
dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, são etapas do processo de evolução do
homem diante de sua vida em sociedade produtiva, digna e respeitosa.

Para Diniz et al. (2009, p. 73), o reconhecimento do corpo com impedimentos


como expressão da diversidade humana é recente e ainda um desafio para as sociedades
democráticas e para as políticas públicas. A autora explica que apenas recentemente
as demandas das pessoas com deficiência foram reconhecidas como uma questão de
direitos humanos.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU é um divisor
de águas nesse movimento, pois institui um novo marco de compreensão da deficiência,
reconhece o tema como questão de justiça (DINIZ et al., 2009, p. 74). Além desse marco
legislativo, o Direito Civil brasileiro reconheceu a mudança paradigmática com as
mudanças formais promovidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/15.

1.1 As principais alterações no Estatuto da Pessoa com Deficiência


Percebe-se que, muito embora a internalização da Convenção Internacional de
Direitos da Pessoa com Deficiência tenha se dado em 2009, somente com a entrada em
vigor da Lei nº 13.146/15 – Estatuto da Pessoa com Deficiência, é que parcela significativa
de civilistas brasileiros parece ter dimensionado os impactos da proteção a tais pessoas.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência promoveu algumas mudanças, sobretudo
no instituto da capacidade. Os artigos 3º e 4º foram os mais atingidos, ao deixar de
elencar no rol dos absolutamente incapazes “aqueles que, por enfermidade ou deficiência
mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” (art. 3º, III),
bem como retirou do rol de relativamente incapazes “os que, por deficiência mental,
tenham o discernimento reduzido” (art. 4º, II) e “os excepcionais, sem desenvolvimento
mental completo” (art. 4º, III).
É importante destacar que, embora a pessoa com deficiência mental ou intelectual
seja reconhecida como destinatária de normas que garantam sua liberdade positiva e

1
A Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência promove ações para a garantia e
defesa de direitos de pessoas deficientes. Na esfera federal têm-se: o Programa Nacional de Direitos Humanos;
Programa de Qualificação de Trabalhadores para Pessoas Deficientes; Política Nacional de Informática na
Educação; Política Nacional de Integração da Pessoa com Deficiência.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
230 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

substancial, como sendo a possibilidade de fazer as suas próprias escolhas, mas, também,
como a possibilidade real de fazer aquilo que se valoriza, não deixa de receber proteção.
Ou seja, percebe-se um perfil dúplice: tanto de promover a liberdade quanto de proteger
a pessoa com deficiência (PEREIRA; OLIVEIRA, 2017).
É exatamente na perspectiva de proteção à pessoa com deficiência que, caso seja
decretada a incapacidade relativa, há a possibilidade de se nomear um curador em
processo de curatela, no entanto, a referida legislação deixa clara a excepcionalidade
da medida. Pode-se também identificar no caráter protetivo a inclusão previdenciária
de tais pessoas, objeto deste trabalho.
Ao se deparar com um caso concreto, o juiz deverá priorizar a manutenção da
capacidade absoluta da pessoa com deficiência. No entanto, a lei faculta a essas pessoas,
nos casos em que envolvem atos patrimoniais, indicar duas pessoas da sua confiança
para apoiarem a sua decisão, o que foi denominado de tomada de decisão apoiada, que
dependerá de decisão judicial. A imprescindibilidade de decisão judicial para se utilizar
a tomada de decisão apoiada fez com que várias críticas fossem perpetradas contra tal
instituto, levando-se em consideração, principalmente, a morosidade do Judiciário.
Vale destacar que a possibilidade de nomeação de curador para pessoa com
deficiência se restringe, tão somente, a atos de natureza patrimonial, já que os atos de
aspecto existencial pertencem somente ao seu titular.2
É inegável que a intenção do legislador foi a inclusão da pessoa com deficiência,
no entanto, a análise do caso concreto é que irá demonstrar se a pessoa, de fato, tem
condições de pessoalmente exercer todos os atos da vida civil. Tal análise dependerá,
inclusive, de laudo pericial multidisciplinar, como dispõe o art. 753, §1º, do Novo CPC,
isto porque a complexidade das questões que têm assolado o crivo jurisdicional impõe
o compartilhamento de responsabilidades com profissionais de variados campos.

2 A capacidade jurídica das pessoas com deficiência


A noção de capacidade jurídica inclui dois elementos: a capacidade de ser titular
de um direito e a capacidade de constituir e exercer o direito, que abrange a possibilidade
de acesso aos tribunais em caso de desrespeito desses direitos. Ambos os elementos são
essenciais ao conceito de capacidade jurídica. Disso deriva o fato de que o reconhecimento
da capacidade jurídica de qualquer grupo ou indivíduo impõe o reconhecimento dos
dois elementos.
O desconhecimento da capacidade jurídica de uma pessoa ou grupo de pessoas
se traduz na negação tanto do direito à personalidade jurídica quanto da capacidade de
constituí-lo e de seu exercício. Em muitas jurisdições, quando se tentou atacar as normas
relativas à capacidade, por serem discriminatórias, o resultado foi sua substituição
legislativa, que normalmente traz um reconhecimento simbólico dos direitos do grupo
excluído, mas que na prática, apesar do reconhecimento da capacidade para ser titular
de direitos, seguem negando a capacidade de exercê-los.

2
O Estatuto da Pessoa com Deficiência deixou de mencionar expressamente o instituto da interdição. No entanto,
o Novo Código de Processo Civil dedica toda uma seção entre os procedimentos de jurisdição voluntária às
medidas necessárias à interdição, o que causou certa divergência na doutrina acerca do fim ou não do instituto
da interdição.
AURICELIA DO NASCIMENTO MELO, JOANA DE MORAES SOUZA MACHADO
A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL
231

Em relação aos direitos da pessoa com deficiência, a Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência afirma em seu art. 12 que:

Os Estados partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade


legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
Os Estados partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com
deficiência ao apoio que necessitarem no exercício legal de sua capacidade legal. Os
Estados partes assegurarão que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade
legal incluam salvaguardas apropriadas e efetivas para prevenir abusos, em conformidade
com o direito internacional dos direitos humanos. Essas salvaguardas assegurarão que as
medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a s vontades e as
preferências da pessoa, sejam isentas de conflitos de interesses e de influência indevida,
sejam proporcionais e apropriadas às circunstancias da pessoa, se apliquem pelo período
mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão
judiciário competente independente e imparcial.

Pelo que se pode verificar, a norma é bem clara ao explicitar a capacidade jurí­
dica das pessoas com deficiência. Essa disposição da Convenção constata o que vem
sendo implementado pelo modelo social, segundo Diniz (2007, p. 79), para primeira
compreensão, no modelo social da deficiência, a garantia da igualdade entre pessoas
com e sem impedimentos corporais não deve se resumir à oferta de bens e serviços
biomédicos, pois a deficiência é essencialmente uma questão de direitos humanos.
A partir dessa análise, pode-se verificar que o modelo social vê a deficiência para
além do deficiente, como um resultado do modo como a sociedade está organizada.
Enfoca as barreiras sociais que precisam ser removidas para que o deficiente possa
assumir o controle de sua vida. A tese central do modelo social permitiu o deslocamento
do tema dos espaços domésticos para a vida pública. A deficiência não é matéria de vida
privada ou de cuidados familiares, mas uma questão de justiça (NUSSBAUM, 2007, p. 35).
É de fundamental importância destacar que a Convenção dos Direitos das Pessoas
com Deficiência (CDPD) assinalou a mudança da assistência para direitos, introduziu o
idioma da igualdade para conceder o mesmo e o diferente a pessoas com deficiências,
reconheceu a autonomia com apoio para pessoas com deficiência e, sobretudo, tornou
a deficiência uma parte da experiência humana. Pode-se afirmar que a Convenção
tentou remediar a profunda discriminação, reconhecendo que todos os indivíduos com
deficiências são pessoas perante a lei com poder de gerir seus próprios assuntos.

3 A assistência social e os deficientes físicos


A seguridade social, segundo Ibrahim (2011, p. 5), pode ser conceituada como
a rede protetiva formada pelo Estado e por particulares, com contribuições de todos,
incluindo parte dos beneficiários dos direitos, no sentido de estabelecer ações para o
sustento de pessoas carentes, trabalhadores em geral e seus dependentes, providenciando
a manutenção de um padrão de vida digna. Dentro da seguridade social está a saúde,
a assistência e a previdência social.
De acordo com a Constituição, a assistência social será prestada a quem dela
necessitar (art. 203), assim o requisito para o auxílio assistencial é a necessidade do
assistido. Dentre os objetivos da assistência social está a habilitação e a reabilitação de
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
232 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária e a garantia


de 1 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência (art. 2º da Lei
nº 8.742/93).
Conforme a descrição de Ibrahim (2011, p. 14), a concessão do benefício assis­
tencial, nessa hipótese, justifica-se a partir do princípio da dignidade humana, o qual
possui como núcleo essencial, plenamente sindicável, o mínimo existencial, isto é, o
fornecimento de recursos elementares para a sobrevivência digna do ser humano.
O Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (BPC/LOAS) corresponde à
garantia de um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência, que comprove não
possuir meios de prover a própria manutenção e também não possa ser provida por
sua família.
De acordo com o art. 20 da Lei nº 8742/93, tem direito ao benefício a pessoa que
tenha impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial,
os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e
efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, que produzam
efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.
A lei ainda explicita que o requerente deve ser brasileiro nato ou naturalizado,
residente e domiciliado no Brasil, que não receba qualquer outro benefício no âmbito
da seguridade social ou de outro regime, nacional ou estrangeiro, inclusive o seguro-
desemprego, salvo o da assistência médica e a pensão especial de natureza indenizatória.
Também pode requerer o indígena com deficiência, que não receba qualquer outro
benefício no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo o da assistência
médica.
Somente possuem direito ao benefício aqueles cuja renda familiar ou grupo
familiar mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo, sendo permitida a acu­
mulação do benefício com a remuneração advinda do contrato de aprendizagem pela
pessoa com deficiência limitada ao prazo máximo de dois anos.
A condição de acolhimento em instituições de longa permanência, assim
entendidas como hospital, abrigo ou instituição congênere, não prejudica o direito do
portador de deficiência ao recebimento do BPC/LOAS. É importante esclarecer que o
beneficio assistencial é intransferível e, portanto, não gera pensão aos dependentes, além
de não receber o abono anual (13º salário) e não estar sujeito a descontos de qualquer
natureza.
Será suspenso o benefício se a pessoa com deficiência exercer atividade remu­
nerada, inclusive na condição de microempreendedor individual, desde que comprovada
a relação trabalhista ou a atividade empreendedora. 

4 A previdência social e os direitos das pessoas com deficiência


A previdência social faz parte do tripé da seguridade social e está disposta na
Constituição Federal e se organiza sob a forma de regime geral de caráter contributivo
e de filiação obrigatória, dentre os benefícios que presta aos segurados, tem-se a
aposentadoria para as pessoas com deficiência física.
No Brasil a legislação previdenciária, que tem por base a Constituição Federal,
explicita os direitos que resguardam as pessoas com deficiência física, especialmente o
art. 201, §1º, diz que:
AURICELIA DO NASCIMENTO MELO, JOANA DE MORAES SOUZA MACHADO
A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL
233

É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria


aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades
exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando
se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar.

O dispositivo constitucional ainda utiliza a expressão “portadores de deficiência”,


que, após a Convenção da ONU, verifica-se que a nomenclatura internacionalmente
adequada é “pessoas com deficiência”, segundo Araújo (2010, p. 912), pois a pessoa não
porta, não conduz a deficiência, ela lhe é própria.
A Constituição Federal, sem dúvida, robustece a proteção aos deficientes ao
prever a reserva de vagas em concursos públicos, que na visão de Araújo (2010, p. 915) é
uma política pública bem determinada, que viu na possibilidade de pessoas deficientes
ingressarem no serviço público uma forma de compensação pelos discriminados pelas
políticas governamentais.
Ao passo que também contemplou, na parte que trata da Previdência Social, os
requisitos para a aposentadoria das pessoas com deficiência, sendo que a regulamentação
dessa norma demandou muito tempo, pois, só depois de 25 anos de promulgação da
Constituição, é que a lei complementar ficou pronta.
Foi aprovada em 8 de maio de 2013 a Lei Complementar nº 142, que regulamenta
a aposentadoria das pessoas com deficiência. A regulamentação desse direito ocorre
como uma exigência da CDPD, pois o deficiente goza de capacidade legal e desempenha
como as outras pessoas suas atividades laborais, o que estava faltando era dispositivo
legal para efetivar a garantia de sua aposentadoria conforme preceito constitucional.
A pessoa com deficiência tem direito à igualdade de condições como as demais
pessoas em todos os aspectos da vida, ela necessita de mecanismos de apoio, pois as
dificuldades enfrentadas podem ter origem em suas limitações pessoais ou nas barreiras
construídas no seu entorno.
É necessário deixar claro que a Lei Complementar nº 142/2013 só se aplica aos
benefícios requeridos e com direito a partir do dia 4 de dezembro de 2013. Benefícios
com datas anteriores à vigência da Lei Complementar nº 142/2013 não se enquadram
nesse direito e nem têm direito à revisão. As pessoas com deficiência terão a redução
da idade de cinco anos, no caso da aposentadoria por idade. Já na aposentadoria por
tempo de contribuição, a vantagem é a redução do tempo de contribuição em dois anos,
seis anos ou 10 anos, conforme o grau de deficiência.
Dessa forma, a Lei garante ao segurado da Previdência Social, com deficiência,
o direito à aposentadoria por idade aos 60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher, e à
aposentadoria por tempo de contribuição com tempo variável, de acordo com o grau
de deficiência (leve, moderada ou grave) avaliado pelo INSS.
Os beneficiários da Lei Complementar nº 142/2013 são aqueles segurados da
Previdência Social com deficiência intelectual, mental, física, auditiva ou visual. Nesse
caso, a pessoa precisa para solicitar a aposentadoria ao INSS, em primeiro lugar, a
realização da perícia, para fins de comprovação da deficiência e do grau e os critérios
que serão averiguados, como ser segurado do Regime Geral da Previdência Social, ter
deficiência na data do agendamento/requerimento, a partir de 4 de dezembro de 2013, a
idade mínima de 60 anos, se homem, e 55 anos, se mulher, e ainda comprovar a carência
de 180 meses de contribuição.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
234 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Para a aposentadoria por tempo de contribuição os critérios para ter o direito ao


benefício partem do pressuposto de que o segurado tenha a deficiência há pelo menos
dois anos na data do pedido de agendamento, deve comprovar carência mínima de 180
meses de contribuição e constatar o tempo mínimo de contribuição, conforme o grau
de deficiência, sendo que para deficiência leve são 33 anos de tempo de contribuição,
se homem, e 28 anos, se mulher. Para a deficiência atestada como moderada, são 29
anos de tempo de contribuição, se homem, e 24 anos, se mulher; sendo a deficiência
considerada grave, são 25 anos de tempo de contribuição, se homem, e 20 anos, se
mulher. Importante destacar que os demais períodos de tempo de contribuição, como
não deficiente, se houver, serão convertidos proporcionalmente.
Segundo o INSS, para classificar a deficiência do segurado com grau leve, mode­
rado ou grave, será realizada a avaliação pericial médica e social, a qual esclarece que o
fator limitador é o meio em que a pessoa está inserida e não a deficiência em si, remetendo
à Classificação Internacional de Funcionalidades (CIF).
A CIF foi aprovada em 2001 e antecipa o principal desafio político na definição
de deficiência proposta pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência: o
documento estabelece critérios para mensurar as barreiras e a restrição de participação
social. Para Diniz (2007, p. 53):

Até a publicação da CIF, a Organização Mundial de Saúde adotava uma linguagem


estritamente biomédica para a classificação dos impedimentos corporais, por isso o
documento é considerado um marco na legitimação do modelo social no campo da saúde
pública e dos direitos humanos.

A CIF surge, então, após um longo processo de reflexão sobre as potencialidades


e os limites dos modelos biomédico e social da deficiência. Em uma posição de diálogo
entre os dois modelos, a proposta do documento é lançar um vocabulário biopsicossocial
para a descrição dos impedimentos corporais e a avaliação das barreiras sociais e da
participação.
O segurado será avaliado pela perícia médica, que vai considerar os aspectos
funcionais físicos da deficiência, como os impedimentos nas funções e nas estruturas
do corpo e as atividades que o segurado desempenha. Já na avaliação social, serão
consideradas as atividades desempenhadas pela pessoa no ambiente do trabalho, casa e
social. Ambas as avaliações, médica e social, irão considerar a limitação do desempenho
de atividades e a restrição de participação do indivíduo no seu dia a dia.
Para avaliar o grau de deficiência, o Ministério da Previdência Social e o INSS,
com participação das entidades de pessoas com deficiência, adequaram um instrumento
para ser aplicado nas avaliações da deficiência dos segurados. Esse instrumento, em
forma de questionário, levará em consideração o tipo de deficiência e como ela se aplica
nas funcionalidades do trabalho desenvolvido pela pessoa, considerando também o
aspecto social e pessoal.
Pelo disposto é relevante destacar a importância da lei para programar a
aposentadoria das pessoas com deficiência, visto que estava pendente de regulamentação
desde a Constituição de 1988. O INSS esclarece que a avaliação das barreiras externas
será feita pelo perito médico e pelo assistente social do INSS, por meio de entrevista com
o segurado e, se for necessário, com as pessoas que convivem com ele. Se ainda restarem
AURICELIA DO NASCIMENTO MELO, JOANA DE MORAES SOUZA MACHADO
A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL
235

dúvidas, poderão ser realizadas visitas ao local de trabalho e/ou residência do avaliado,
bem como a solicitação de informações médicas e sociais (laudos médicos, exames,
atestados, laudos do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, entre outros).

Considerações finais
Pelo disposto ao longo desse estudo, verificou-se que a preocupação com os
deficientes físicos remonta ao pós-Segunda Guerra Mundial, momento a partir do qual
diversos países passaram a se preocupar com uma legislação que pudesse assegurar
direitos e seu exercício. No Brasil a legislação tratou de maneira assistencial os deficientes,
no entanto com o passar do tempo pôde-se constatar a evolução da legislação a partir da
adoção do modelo social da deficiência, que passou a tratar do tema como uma questão
de direitos humanos.
A pessoa que adquire ou nasce com lesão (ausência parcial ou total de um
membro ou mecanismo corporal defeituoso) tem o acesso à sociedade através de meios
dificultosos, pois ela deveria expressar sua forma corporal de estar no mundo, consi­
derando que essa é uma das várias possibilidades para a existência humana O modelo
social da deficiência, ao resistir à redução da deficiência aos impedimentos, ofereceu
novos instrumentos para a transformação social e a garantia de direitos. Não era a
natureza que oprimia, mas a cultura da normalidade que descrevia alguns corpos como
indesejáveis.3
Com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Física das Nações
Unidas, ratificada no Brasil em 2008, houve um significativo avanço, pois o Estado
passou a nortear suas políticas sociais de maneira a garantir os direitos dos deficientes.
Um exemplo dessas ações foi a aprovação da Lei Complementar nº 142/13, que explica
a aposentadoria das pessoas com deficiência, norma que estava pendente de regulação
desde a Constituição de 1988, pois os deficientes que trabalham são segurados e não
podiam ter que cumprir as exigências para os demais segurados, já que a própria
Constituição lhes garantiu critérios diferenciados para a aposentadoria.
Dessa forma, reconhecendo os direitos das pessoas trabalhadoras que são defi­
cientes, o Brasil assegura a plena cidadania a essas pessoas que possuem capacidade
de construir e exercer direitos, pois a maior dificuldade para elas é justamente a
conscientização da sociedade em desenvolver uma cultura inclusiva.

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3
Debora Diniz (Maceió) é uma antropóloga, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de
Brasília, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, membro da diretoria da International
Association of Bioethics, do Council on Health Research for Development e da International Women’s Health
Coallition.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
236 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

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previdenciária das pessoas com deficiência: uma análise do modelo de atenção social. In: TEPEDINO,
Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum,
2019. p. 227-236. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL
DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA
DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ANA CLÁUDIA REDECKER

1 Introdução
O capitalismo, sistema adotado pelo Estado Brasileiro na Constituição Federal,1
originou-se na Europa no final da Idade Média e produziu transformação em toda a
economia mundial, desencadeando uma nova fase econômica marcada pela aceleração
da capacidade produtiva e aumento do consumo, mas também problemas sociais e
ambientais que acabaram desencadeando preocupação em vários segmentos.
Essa preocupação gerou e continua gerando debates no meio governamental,
jurídico, empresarial e social na tentativa de encontrar soluções viáveis para que
o crescimento ocorra de forma mais equilibrada. Assim, chegou-se à conclusão de
que o desenvolvimento econômico deve ser realizado levando em consideração não
só os aspectos econômicos, mas também aspectos sociais e ambientais, ou seja, o
desenvolvimento econômico para ser viável precisa ser sustentável.
A preocupação com o desenvolvimento sustentável começou a ganhar notoriedade
nos anos 60 e 70. Neste momento passou-se a perceber que a atividade econômica só teria
valor se ocorresse em harmonia com o meio ambiente, com o crescimento populacional
e econômico, e com o bem-estar da atual e das futuras gerações.
John Elkington2 criou o termo triple bottom3 line, que corresponde aos pilares:
lucro, social e ambiental e formam o tripé da sustentabilidade, ou seja, o lucro é pilar

1
O legislador constituinte originário optou pela adoção do regime capitalista, o qual se funda na livre-iniciativa e
não apenas aceita mas incentiva a persecução do lucro nas atividades econômicas.
2
WIKIPEDIA. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/John_Elkington> e <https://en.wikipedia.org/wiki/
Triple_bottom_line>. Acesso em: 31 maio 2018.
3
Segundo Luis Roberto Antonik (In: Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial – uma visão prática. Rio
de Janeiro: Alta Books Editora, 2016, p. 177), a expressão “bottom line” é usada em vários contextos, mas na área
de finanças e contabilidade refere-se à Demonstração de Resultados do Exercício (DRE), ou seja, ao lucro líquido
do exercício da empresa.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
238 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

do negócio e os outros dois fatores devem ser levados em consideração no desempenho


empresarial como condições de sua própria permanência no mercado.
A visão de sustentabilidade exige que as empresas não sejam apenas agentes
econômicos destinados a efetuar transações de compra e venda e maximizar lucros.
Precisam também fornecer produto de valor (utilidades) que satisfaça às necessidades de
representantes da sociedade (clientes), por meio da prática de comportamento (conduta)
ética socialmente aceita e ambientalmente correta.4
Luis Roberto Antonik5 leciona que ao longo dos últimos 50 anos os ambientalistas e
defensores da justiça social têm se esforçado para associar os resultados econômicos com
ações ambientais e sociais através de relatórios contábeis, que, para esse fim, devem ser
elaborados de modo claro e compreensível, propiciando visualizar todas as atividades
econômicas da empresa e os impactos sociais e ambientais por ela produzidos.6
Segundo estudiosos do Direito das Empresas, foi nos Estados Unidos que se
originou a discussão acerca da responsabilidade social da empresa.7 O ponto culminante
foi a Guerra do Vietnã, quando a sociedade começou a contestar as políticas que estavam
sendo adotadas pelo país e pelas empresas, principalmente aquelas que estavam
diretamente envolvidas na fabricação de armamentos bélicos8 e, em consequência deste
movimento, surgiram os primeiros relatórios socioeconômicos que objetivavam delinear
as relações da empresa com a sociedade. Tais relatórios, chamados de balanços sociais
(também denominado Relatório de Sustentabilidade ou Relatório da Responsabilidade
Social), se apresentaram como forma de ligação entre empresa, funcionários e
comunidade, pois permitiram a todos os envolvidos na relação social da empresa
visualizar a política de gestão da responsabilidade social adotada pela organização e as
consequentes implicações dessas políticas no processo produtivo empresarial.
Na Europa, por sua vez, a divulgação começou inicialmente na França com o
objetivo de não só divulgar os resultados econômicos e financeiros da empresa, mas
também revelar sua eficácia social em relação aos seus colaboradores. A intenção era
a de melhorar a imagem da empresa, já que as pressões sociais exigiam uma postura
ética das organizações. Isto fez com que as empresas passassem a prestar contas de suas
ações, justificando seu objetivo social para seus consumidores e acionistas.9

4
CANDIL, Sérgio Luiz. In: Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica
e jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Consulta em: 27 maio 2018, p. 37.
5
ANTONIK, Luis Roberto. Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial – uma visão prática. Rio de Janeiro:
Alta Books Editora, 2016, p.177.
6
Luis Roberto Antonik leciona que o tripé da sustentabilidade envolve desenvolvimento sustentável, gestão
organizacional e responsabilidade social (Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial – uma visão prática.
Rio de Janeiro: Alta Books Editora, 2016, p. 210).
7
“A função social da empresa e responsabilidade social corporativa são expressões equivalentes possuidoras do
mesmo conteúdo axiológico. Portanto, as atividades desempenhadas pelas companhias sob o rótulo da
responsabilidade social são manifestações dos deveres sociais impostos pela ordem econômica constitucional”.
Grifei. (MELLO, Maria Theresa Werneck. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, p. 146-165, 2016, disponível
em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista74/revista74_146.pdf>, acesso em: 30 maio
2018, p. 158).
8
BRINDACO, Bruna Victório. A função social da empresa. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/
exibir/7816/A-funcao-social-da-empresa>. Acesso em: 9 maio 2018.
9
CANDIL, Sérgio Luiz. Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica e
jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>, acesso em: 27 maio 2018, p. 108.
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DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
239

No Brasil a ideia do balanço social começou a ser discutida na década de 60, com
a Carta de Princípios do Dirigente Cristão de Empresas (ADCE), publicada em 1965. No
entanto, os primeiros balanços sociais só vieram a ser divulgados a partir dos anos 80. O
assunto ganhou a atenção da mídia graças à atuação do sociólogo Herbert de Souza, o
Betinho, que promoveu campanhas que incentivavam as empresas a produzir e publicar,
voluntariamente, o balanço social. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em uma
tentativa de incentivar a divulgação do balanço social, recomendou sua publicação nos
Pareceres de Orientação nº 15/87 e nº 24/92, que tratam do relatório da administração e
da divulgação da demonstração do valor adicionado das empresas. Em dezembro de
2004 foi publicada a ABNT NBR 16001,10 norma brasileira que contempla os requisitos
em sistema de gestão de responsabilidade social. Atualmente, com o objetivo de dar
continuidade ao desenvolvimento dos documentos complementares à ABNTNBR 16001,
está sendo desenvolvida a ISO 26000 por pessoas de diversas nacionalidades, mas com a
liderança de dois países: o Brasil (com a coordenação da Associação Brasileira de Normas
Técnicas – ABNT) e a Suécia.11 A elaboração e divulgação dos balanços passaram a ser
obrigatórias para as companhias abertas após o surgimento da Lei nº 11.638/07.
O balanço social, em síntese, se constitui como um demonstrativo formal das
informações relacionadas à atuação da empresa na esfera social, humana e ambiental,
seu comprometimento e responsabilidade social.
Nesta perspectiva, o presente trabalho destaca o princípio da função da empresa
na jurisprudência do STJ e procura responder aos seguintes questionamentos: De
que forma é possível desenvolver uma atividade econômica lucrativa e possibilitar
maior desenvolvimento social sem prejudicar o ambiente? No Brasil é factível ter
um desempenho empresarial que vise o bem-estar social e ambiental, privilegiando
o desenvolvimento sustentável, diversidade da força de trabalho, estímulo ao
desenvolvimento cientifico, o tratamento especial à extração de recursos naturais e aos
valores éticos da sociedade? No âmbito de eventual processo de recuperação judicial
como o devedor, ao se enquadrar no benefício deste instituto, poderá visar mais à
coletividade do que à singularidade de cada detentor de crédito ou, ainda, a prevalência
dos seus próprios interesses e dos seus sócios?
Ao final, à guisa de conclusão, serão elaboradas as considerações finais.

2 Da função social da empresa


2.1 Da função social na Constituição Federal de 1988
A estrutura geral do ordenamento jurídico econômico, traçada pela Constituição,
frisa que a ordem econômica pauta-se nos ditames da justiça social (art. 170), indica os

10
Esta norma estabelece os requisitos mínimos relativos a um sistema da gestão da responsabilidade social,
permitindo à organização formular e implementar uma política e objetivos que levem em conta os requisitos
legais e outros, seus compromissos éticos e sua preocupação com a: promoção da cidadania; promoção do
desenvolvimento sustentável e transparência das suas atividades. Compêndio para a Sustentabilidade. BRASIL –
ABNT NBR 16001 ABNT. Disponível em: <http://www.institutoatkwhh.org.br/compendio/?q=node/110>. Acesso
em: 31 maio 2018.
11
BRASIL – ABNT NBR 16001 ABNT. Disponível em: <http://www.institutoatkwhh.org.br/compendio/?q=node/110>.
Acesso em: 31 maio 2018.
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240 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

princípios pelos quais isto deve acontecer, destacando-se: a propriedade e sua função
social (incisos II e III), livre concorrência (inciso IV), defesa do consumidor (inciso V),
defesa do meio ambiente (inciso VI), redução das desigualdades (inciso VII), busca pelo
emprego (inciso VIII) e tratamento favorecido para as pequenas empresas (inciso IX)
e coloca o Estado no papel de agente regulador e normativo da atividade econômica.
Estes princípios e objetivos norteiam o conceito uno de função social da empresa, mas
não devem jamais ser analisados de forma isolada, sendo sempre necessária a ponderação na
sua incidência sobre casos concretos para que seja extraída a regra que melhor conforma
a hipótese aos ditames da função social da empresa.
Nessa ordem de ideias, a função da empresa é racionalizar a produção de forma
a proporcionar preços mais competitivos e possibilitar o atendimento das necessidades
demandadas; todavia, isto deve ser realizado com respeito aos sistemas sociais, culturais
e ambientais da sociedade humana, que pode importar da vizinhança local até a Terra
como um todo, ou seja, deve labutar no desenvolvimento com sustentabilidade ao lado
do poder estatal.
Desta forma é salutar imaginar ser tarefa do Estado exigir das empresas a busca
da sustentabilidade, que significa o uso sustentável dos recursos com a compatibilização
dos sistemas protetivos dos recursos para as gerações futuras.12
Nesse sentido, Marlon Tomazette13 leciona que a Constituição garante a todos
os particulares a propriedade dos meios de produção e consequentemente o exercício
de atividades econômicas empresariais, mas, por outro lado, a própria Constituição
Federal impõe uma limitação a esse direito, asseverando que “a propriedade atenderá
a sua função social” (CF/88 – art. 5º, XXIII).
Assim, uma vez aceita a possibilidade do controle social do Estado, aliada à impo­
sição de comportamentos, mediante disposições legais, coloca-se em questão a consti­
tucionalidade destas imposições legais perante o princípio da liberdade de iniciativa,
compreendida como a liberdade de escolha de, se, e quando produzir,14 pois a orientação
do texto constitucional é aberta e não fornece parâmetros seguros, a que se possa ater o
intérprete, para a compreensão de até onde a função social da propriedade e os ditames
da justiça social podem colidir com a propriedade privada 15
Nessa perspectiva, conforme ensina Vera Helena de Mello Franco,16 é fundamental
ter prudência, pois se a função social traduz-se num dever de colaboração, nada mais
razoável, portanto, que a contribuição do Estado e dos particulares para a realização
daqueles objetivos seja estimulada mediante um sistema de incentivos, subvenções e

12
Cfr. NEVES, Edson Alvisi; SILVA, Marisa Machado; NEVES, Lorrayne Fialho. Função Social da Empresa. Revista
Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 1, p. 34, fev./mar. 2005: “Uma das
formas apontadas para a consecução da tarefa tem sido a adoção do princípio do poluidor-pagador em matéria
tributária, buscando a compensação pelos danos causados. Além da fonte de receita ambiental pode ser buscada
através de outras categorias como taxas de licenciamento ou contribuição de melhorias”.
13
TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito empresarial. Volume 3: falência e recuperação de empresas. São Paulo:
Atlas, 2014, p. 52.
14
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 134, mar. 2008.
15
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 134-135, mar. 2008.
16
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 135, mar. 2008.
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DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
241

estímulos, cabendo ao Estado fiscalizar, por meio de um “controle empresarial” eficaz,


o cumprimento exato das disposições de caráter econômico e social em função das quais
foram concedidos os incentivos ou benefícios.
A Constituição Federal de 1988 confere ao Estado o direito e o dever de intervir
sobre o domínio econômico e também na sociedade civil, por meio de instrumentos
jurídicos normativos e de incentivos, objetivando garantir, além do crescimento
econômico, a implementação do desenvolvimento sustentável.17
A normatização ocorre por meio da função legislativa do Estado, que tem o condão
de criar leis por via de normas gerais abstratas, que inovam a ordem jurídica, buscando
em sua essência o cumprimento dos ditames constitucionais. Conforme preceitua o
art. 174 da Constituição Federal de 1988: “como agente normativo e regulador da ati­
vidade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo
e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado”. A intervenção por meio normativo se dá com a atuação do órgão Legislativo,
que trabalha introduzindo normas inaugurais que disciplinam as relações econômicas
garantindo o direito à livre-iniciativa e definindo direitos que valorizem o trabalho
humano; impondo deveres de preservação ambiental; equilíbrio nas relações jurídicas
de consumo com normas de ordem pública, para assegurar um mercado concorrencial
saudável, universalizando as oportunidades emancipatórias.18
Nesta perspectiva há sempre uma função social a ser cumprida, a qual ganha
especial relevo na recuperação judicial, sendo expressamente mencionada no artigo 47
da Lei nº 11.101/05, pois é preciso preservar a empresa para que ela cumpra sua função
social. Na recuperação judicial tal princípio servirá de base para a tomada de decisões
e para a interpretação da vontade dos credores e do devedor. Em outras palavras, ao
se trabalhar em uma recuperação judicial, deve-se sempre ter em mente a sua função
social. Se a empresa puder exercer muito bem sua função social, há uma justificativa
para mais esforços no sentido da sua recuperação.
A tentativa de manutenção da empresa, estampada na Lei nº 11.101/05, possibilita o
desenvolvimento econômico da sociedade assim como pode contribuir para a superação
de desigualdades regionais e sociais, gerando empregos e arrecadação de impostos. Seu
funcionamento regular, ainda, propicia circulação de riquezas, produção de mercadorias
e prestação de serviços, dentre várias outras conveniências.

2.2 Do conceito da função social da empresa


A concepção de função social nasceu da noção de que o homem, por viver em
sociedade, deve empregar esforços no sentido de dar sua contribuição ao bem-estar da
coletividade em detrimento dos interesses unicamente individuais. Assim, somente a
valorização da noção de trabalho em equipe, em prol do bem comum, respeitados os
direitos individuais, tem o condão de garantir a paz e o bem-estar social.

17
CANDIL, Sérgio Luiz, Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica e
jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Acesso em: 27 maio 2018, p. 70.
18
BASSOLI, Marlene Kempfer. Intervenção do Estado sobre o domínio econômico em prol da segurança humana.
In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO, Maria de Fátima (Org.). Empreendimentos econômicos
e desenvolvimento sustentável. São Paulo: Arte e Ciência: Unimar, 2008. p. 130.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
242 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A função social como instituto jurídico tem sido empregada em relação à


propriedade e à empresa. Vários doutrinadores19 são da opinião de que a fonte cons­
titucional da função social da empresa é a função social da propriedade (art. 170, CF),
que abrangeria qualquer tipo de propriedade, em especial a propriedade dos bens de
produção. E concluem que, se essa propriedade, no regime capitalista, é especialmente
imputada à empresa, a função social da propriedade dos bens de produção se equipara
à função social da empresa que se correlaciona assim com os demais princípios que
informam a ordem econômica também previstos no art. 170 da Constituição Federal,
como a valorização do trabalho humano, a defesa do consumidor, a defesa do meio
ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego.20
Desta forma a função social da empresa interage com o direito pessoal e
obrigacional. Está ligada à sua própria caracterização, que se constitui por meio de um
conjunto organizado de atividades particulares, públicas ou de economia mista que
produz e oferece bens e/ou serviços, com o objetivo de atender alguma necessidade
humana.21
Ocorre que a expressão função social é demasiadamente vasta para que se lhe possa
determinar o conteúdo mediante a atribuição taxativa de determinados comportamentos
ao empresário.22 Destarte, o primeiro passo na conceituação do que se compreende por
função social da empresa consiste em esclarecer o significado da palavra função, a qual
na lição de Léon Duguit23 e de outras ponderáveis opiniões, expressa um dever de agir
no interesse de outrem que não aquele a quem se incumbe a função. Portanto, qualquer
que seja a compreensão atribuída à noção de interesse social da companhia, o certo é
que existem outros interesses que transcendem este e em virtude dos quais se impõe
um dever de agir.
Segundo alguns,24 a função social da empresa restringir-se-ia a uma abstenção,
significando o dever de exercer a atividade econômica de forma não contrária ou não

19
COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Direito empresarial. Estudos e
pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 27-37. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São
Paulo: Malheiros Editores, 1998. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1985.
20
MELLO, Maria Theresa Werneck. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, p. 146-165, 2016, Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista74/revista74_146.pdf>, acesso em: 30 maio 2018,
p. 153-154.
21
CANDIL, Sérgio Luiz, Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica e
jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Acesso em: 27 maio 2018, p. 67.
22
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 131, mar. 2008.
23
DUGUIT, Léon. In: Traité de Droit Constitutionnel, Paris, 1927, p. 447.
24
Nesse sentido: CAPEL FILHO. Hélio. A função social da empresa: adequação às exigências do mercado ou
filantropia? Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 1, fev./mar. 2005.
GOMES, Orlando. Novas dimensões de propriedade privada. São Paulo: RT 411, p. 10-14. PASSARELI, Francesco
Santoro. Proprietà privata e costituzione. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno XXVI, n. 7, p. 953-991
a p. 959-960, 1972, SOUZA, Marcelo Papaléo. A recuperação judicial e os direitos fundamentais trabalhistas. São Paulo:
Atlas: 2015. CANDIL, Sérgio Luiz. Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade
econômica e jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Acesso em: 27 maio 2018.
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre
Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de direito civil-empresarial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. SZTAJN, Rachel. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio
A. de Morais (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências: Lei 11.101/2005 – artigo por artigo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
243

nociva ao interesse da coletividade, ou seja, o exercício regular da atividade já representa


o atingimento da sua função social, haja vista os interesses envolvidos e os ganhos
advindos dela (geração de riquezas, manutenção de empregos, pagamento de impostos,
desenvolvimentos tecnológicos, movimentação do mercado econômico e geração de
lucro). Viviane Perez ressalta, in verbis:

O que se busca, pois, com a aplicação do princípio da função social da empresa não é exigir
do empresário certas prestações de cunho social positivas, cuja competência, a rigor, caiba ao
Estado, mas apenas que esse mesmo empresário em sua atuação observe e dê cumprimento aos
princípios estabelecidos pelo artigo 170 da Constituição Federal, que, em última análise, traduzem
os interesses da sociedade brasileira (grifei).25

Modesto Carvalhosa,26 entre outros,27 no entanto, entende-a como compreensiva de


comportamentos positivos, ou seja, que a implementação da função social da empresa
requer o respeito não só das pessoas que contribuem diretamente para o funcionamento
da empresa, mas também os interesses da comunidade em que ela atua, cuja consecução
ora se restringe ao dever de organizar, explorar e dispor, ora abrange, além deste, aquele
de realizar interesses externos, coletivos, in verbis:

Tem a empresa uma óbvia função social, nela sendo interessados os empregados, os
fornecedores, a comunidade em que atua e o próprio Estado, os fornecedores, a comunidade
em que atua e o próprio Estado, que dela retira contribuições fiscais e parafiscais.
Considerando-se principalmente três as modernas funções da empresa. A primeira refere-
se às condições de trabalho e às relações com seus empregados (...) a segunda volta-se ao
interesse dos consumidores (...) a terceira volta-se ao interesse dos concorrentes (...). E,
ainda mais atual é a preocupação com os interesses de preservação ecológica urbano e
ambiental da comunidade em que a empresa atua.

Sob a perspectiva dos posicionamentos doutrinários do conceito de função social


da empresa já retratados é possível identificar-lhe ao menos dois distintos raios de sua
aplicação, quais seja, como: (i) incentivadora do exercício da empresa e (ii) condicionadora
de tal exercício.28
Há consenso entre todos os autores que trabalham com a função social da empresa
quanto ao primeiro raio de sua aplicação, sendo que tal conceito de função social da
empresa dá origem ao chamado princípio da preservação da empresa. Tal princípio
advoga uma primazia do interesse da empresa, como centro de interesses autônomos e
distinto de cada um dos grupos de interesses nela catalisados. A manutenção da empresa
atenderia, assim, ao interesse coletivo na medida em que essa unidade organizada de

25
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. Alexandre Ferreira de
Assumpção Alves e Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Coord.). In: Temas de direito civil-empresarial. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 212.
26
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, v. 3. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 237
27
Nesse sentido: GRAU. Eros, verbete “Função social da propriedade” (Direito Econômico). In: Enciclopédia Saraiva
de Direito, vol. 39, São Paulo: Saraiva, 1977, p. 16 e ss. VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria geral do Direito
Econômico. São Paulo 1977, p. 27.
28
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre
Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de direito civil-empresarial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 206.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
244 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

produção é fonte geradora de empregos, tributos e da produção ou mediação de bens


e serviços para o mercado, sendo, assim, propulsora de desenvolvimento.29 Segundo
Raquel Stztajn:

a visão atual referentemente à organização empresarial, cuja existência está estribada na


atuação responsável no domínio econômico, não para cumprir as obrigações típicas do
Estado nem para substituí-lo, mas sim no sentido de que, socialmente, sua existência deve
ser balizada pela criação de postos de trabalho, respeito ao meio-ambiente e à coletividade
e, nesse sentido, é que se busca preservá-la.30

Nesse sentido transcrevem-se algumas decisões:

COMERCIAL. SOCIEDADE POR QUOTA. MORTE DE UM DOS SOCIOS. HERDEIROS


PRETENDENDO A DISSOLUÇÃO PARCIAL. DISSOLUÇÃO TOTAL REQUERIDA PELA
MAIORIA SOCIAL. CONTINUIDADE DA EMPRESA. Se um dos sócios de uma sociedade
por quotas de responsabilidade limitada pretende dar-lhe continuidade, como na hipótese,
mesmo contra a vontade da maioria, que busca a sua dissolução total, deve-se prestigiar
o princípio da preservação da empresa, acolhendo-se o pedido de sua desconstituição
apenas parcial, formulado por aquele, pois a sua continuidade ajusta-se ao interesse
coletivo, por importar em geração de empregos, em promoção de impostos, em promoção
do desenvolvimento das comunidades em que se integra, e em outros benefícios gerais.
Recurso conhecido e provido.31

(...) Não é plausível a dissolução parcial de sociedade anônima de capital fechado sem antes
aferir cada uma e todas as razões que militam em prol da preservação da empresa e da
cessação de sua função social, tendo em vista que os interesses sociais hão de prevalecer
sobre os de natureza pessoal de alguns dos acionistas.32

Se esse primeiro aspecto da aplicação do princípio da função social da empresa,


como incentivadora do seu exercício, é amplamente aceito em sede doutrinária e
jurisprudencial, o mesmo não se pode dizer da aplicação do princípio como condicionador
do exercício da empresa, pois, neste caso, não basta que sejam cumpridas as obrigações
legais, é preciso que sejam desenvolvidas ações efetivas em prol da sociedade. Fábio
Konder Comparato33 entende que a efetividade da imposição de deveres sociais para as
empresas depende da formulação de um planejamento econômico pelo Estado, in verbis:

Mas a harmonização entre os interesses empresariais e o Largo interesse da coletividade


local, regional ou nacional só poderá ser alcançado quando a ordem econômica e social
estiver fundada no princípio do planejamento democrático. (...) os deveres sociais do
controlador de empresas, estabelecido em tese em algumas normas do direito positivo, somente

29
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre
Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de direito civil-empresarial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 206.
30
SZTAJN, Rachel. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Morais (Coord.).
Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências: Lei 11.101/2005 – artigo por artigo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p. 223.
31
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 61278/SP; DJ 06 abr. 1998. p. 121.
32
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 247002 / RJ; DJ 25 mar. 2002. p. 272.
33
COMPARATO, Fábio. Konder. Função social da propriedade e dos bens de produção. In: Direito Empresarial –
estudos e pareceres, 1990, p. 34.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
245

poderão ser desempenhados com clareza e cobrados com efetividade quando os objetivos
sociais a serem atingidos forem impostos no quadro de uma planificação vinculante para
o Estado e diretiva da atividade econômica privada (grifei).34

Nessa linha, Giovani Iudica35 leciona que a utilidade social é tarefa do Poder
Público, que deve ditar o comportamento das empresas na sua realização, pois os inte­
resses institucionais são variados e amplos, e muitas vezes entram em conflito – o interesse
em um meio ambiente equilibrado pode contrastar, por exemplo, com o interesse em
um mercado competitivo, uma vez que certas exigências tornam necessários maiores
investimentos, elevando os custos de entrada e afastando potenciais competidores.
Determinar o que eles exigem requer a identificação dos valores socialmente compar­
tilhados relevantes para o caso, e, principalmente, sua relação recíproca, que varia no
tempo e no espaço. Não bastasse ser contingente, a solução para essa equação é ainda
uma resposta que, por definição, se encontra sempre dispersa entre os membros da
sociedade, dificultando sua cognição.36
Nesse sentido Bassoli e Candil37 ressaltam que o Estado, por meio de seus órgãos
Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um nos limites de suas funções típicas, pode atuar
intervindo com os instrumentos que o Direito oferece e criar leis (intervenção normativa)
por meio dos (incentivos) fomentos, entre outros, que promovam o desenvolvimento
econômico, social e ambiental, dotando as empresas de responsabilidade subjetiva e
fazendo com que estas assumam sua responsabilidade social, incrementem a imagem
corporativa e deem sua parcela de contribuição para promover o desenvolvimento
sustentável.
No ordenamento jurídico brasileiro a função social da empresa encontra-se posi­
tivada no parágrafo único do artigo 116 e no artigo 154, ambos da Lei nº 6.404/76 (Lei
das Sociedades Anônimas). O artigo 154 determina que “o administrador deve exercer
as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da
companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”.
Essa lei autoriza, ainda, o conselho de administração ou a diretoria a executarem “a
prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de
que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais” (art. 154, §4º).
Estes dispositivos permitem a utilização dos recursos da empresa para fins de aplicação
em ações sociais, quando autorizado pelos acionistas. Esta postura empresarial, ditada
pela Lei em comento, fez ressurgir um novo conceito ético nas empresas, o conceito de
ética aplicada.

34
COMPARATO, Fábio. Konder. Função social da propriedade e dos bens de produção. In: Direito Empresarial –
estudos e pareceres, 1990, p. 34.
35
IUDICA, Giovani. Autonomia dell’imprenditore privado e interventi pubblici. Padova: Cedam, 1980, p. 68-75.
36
VILLAR, Bruno Haack. A função social da empresa. Revista Jurídica Empresarial: órgão nacional de doutrina,
jurisprudência, legislação e crítica jurídica, ano 2, n. 9, p. 150, jul./ago. 2009.
37
BASSOLI, Marlene Kempfer; CANDIL, Sérgio Luiz. A intervenção do estado sobre o domínio econômico por meio
de fomentos condicionados aos critérios de certificações de sistema de gestão da responsabilidade social. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/sao_paulo/2177.pdf>. Acesso em: 27 maio
2018. p. 4044.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
246 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Geraldo de Camargo Vidigal,38 ao tratar do parágrafo único, do art. 11639 da Lei


nº 6.404/76, afirma que “aceita a definição de função social como um dever de agir, a
conclusão de que encerra um comportamento positivo, dirigido a atender a fins de
interesses coletivos, é a decorrência lógica”.
De acordo com os ensinamentos de Vera de Mello Franco,40 da análise doutrinária
retratada, de que as leis são feitas para durar, da elasticidade da locução “função social”
e, principalmente, que a sua interpretação é variável no tempo e no espaço, já que
condicionada a valores considerados relevantes em determinado momento histórico,
para um certo agrupamento, entendemos ser aconselhável a adoção do conceito em
termos amplos, como padrão jurídico, deixando ao Magistrado, perante o caso concreto,
a tarefa de determinar-lhe o conteúdo. E, nesse sentido, a proposta deste artigo trabalha
o princípio da função social da empresa a partir da análise da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça.

3 Da aplicação do princípio da função social da empresa na


jurisprudência
Há vários acórdãos que citam a “função social da empresa” conforme pesquisa
realizada no site do Superior Tribunal de Justiça. Dentre os acórdãos pesquisados
praticamente todos se referem ao primeiro raio de sua aplicação, ou seja, abordam a
função social da empresa como incentivadora do seu exercício, in verbis:

(...) 1. A recuperação judicial visa a continuidade de empresa em crise econômico-financeira.


Tem por fonte a função social da empresa, desempenhada pela atividade produtiva, buscando-se
manter empregos, sem abalos à ordem econômica. (...).41
(...) função social da empresa exige sua preservação, mas não a todo custo. A sociedade empresária
deve demonstrar ter meios de cumprir eficazmente tal função, gerando empregos, honrando seus
compromissos e colaborando com o desenvolvimento da economia, tudo nos termos do art. 47 da
Lei nº 11.101/05.42
(...) 2. A Corte a quo entendeu que, no tocante aos bens ofertados à penhora, o rol
previsto nos art. 11 e 15 da Lei 6.830/1980 não é taxativo, podendo ser flexibilizado. Sendo
assim, concluiu pela substituição pleiteada pela parte, em homenagem ao princípio

38
Nesse sentido VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria geral do Direito Econômico. São Paulo, 1977, p. 27 e 40 leciona
que sendo a função social um poder-dever de “organizar, explorar e dispor”, contudo, quando reconhece no estudo
do direito de organização dos mercados “a disciplina dos agentes privados no exercício de atividades privadas,
inspiradas no interesse coletivo”, assinalando como essenciais à consecução dos objetivos do desenvolvimento
e do bem-estar a realização de objetivos meios, como “o pleno emprego, a escala de produção, as condições
para competir, a repartição de rendas sociais”, não parece afastar o empresário do dever de colaborar com esses
objetivos.
39
Art. 116 (...)  Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar
o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da
empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente
respeitar e atender.
40
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo ano XXVIII, n. 96,
p. 132, mar. 2008.
41
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1408973 / SP; Ministro SIDNEI BENETI; DJe 13 jun. 2014.
42
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no CC 110250/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA
SEÇÃO, julgado em 08.09.2010, DJe 16 set. 2010.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
247

da função social da empresa, para que fosse evitada a penhora de bens essenciais aos meios de
produção. (...).43
(...) 3. O Tribunal de origem, soberano na apreciação das circunstâncias fáticas, deferiu
a penhora limitando-a à fração de 5% dos valores depositados na conta-corrente da
empresa executada, com vistas à função social da empresa e à continuidade de suas atividades,
levando em consideração sua precária situação financeira. (...).44
(...) 2. Dessarte, a opção entre fazer a execução recair sobre o que ao sócio couber no lucro
da sociedade ou na parte em que lhe tocar em dissolução orienta-se pelos princípios da
menor onerosidade e da função social da empresa. Enunciado 387 da IV Jornada de Direito
Civil do CJF. (...).45

Ao alterar a pesquisa no site do STJ, suprimindo a “empresa” da função social,


encontramos a decisão proferida no REsp 302906/SP46 que se refere a duas ações reunidas
pelas instâncias de origem, uma Nunciação de Obra Nova e uma Ação Civil Pública e
abordam a função social como condicionadora do exercício da empresa. Segue transcrição
parcial da ementa proferida na referida decisão:

1. As restrições urbanístico-ambientais convencionais, historicamente de pouco uso


ou respeito no caos das cidades brasileiras, estão em ascensão, entre nós e no Direito
Comparado, como veículo de estímulo a um novo consensualismo solidarista, coletivo e
intergeracional, tendo por objetivo primário garantir às gerações presentes e futuras espaços
de convivência urbana marcados pela qualidade de vida, valor estético, áreas verdes e
proteção contra desastres naturais. (...) 6. Em decorrência do princípio da prevalência da
lei sobre o negócio jurídico privado, as restrições urbanístico-ambientais convencionais
devem estar em harmonia e ser compatíveis com os valores e exigências da Constituição
Federal, da Constituição Estadual e das normas infraconstitucionais que regem o uso e a
ocupação do solo urbano. (...) 16. Aberrações fáticas ou jurídicas, em qualquer campo da
vida em sociedade, de tão notórias e auto-evidentes falam por si mesmas e independem
de prova, especializada ou não (Código de Processo Civil, art. 334, I), tanto mais quando
o especialista empresário, com o apoio do Administrador desidioso e, infelizmente, por
vezes corrupto, alega ignorância daquilo que é do conhecimento de todos, mesmo dos
cidadãos comuns. (...) E, sabemos, cidades não se erguem, nem evoluem, à custa de
palavras. Mas palavras ditas por juízes podem, sim, estimular a destruição ou legitimar
a conservação, referendar a especulação ou garantir a qualidade urbanístico-ambiental,
consolidar erros do passado, repeti-los no presente, ou viabilizar um futuro sustentável.
19. Recurso Especial não provido.

No voto-mérito do Sr. Ministro Herman Benjamin,47 este ressalta, partindo do


princípio da prevalência do interesse público sobre o privado, que a demanda em análise
surge não nos primórdios da proteção jurídica do meio ambiente e da qualidade de vida urbana,
mas em momento de madurez dessa legislação, no qual se valorizam cada vez mais os predicados
da sustentabilidade urbano-ambiental da cidade.

43
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1686678 / SP; Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 19 dez. 2017.
44
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1659692/RS; Ministro HERMAN BENJAMIN; DJe 30 jun. 2017.
45
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1346712/RJ AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL;
Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; DJe 20 mar. 2017.
46
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 302906/SP. Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 01 dez. 2010.
47
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 302906/SP. Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 01 dez. 2010.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
248 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Da análise da jurisprudência e, em consonância com os ensinamentos de Vera de


Mello Franco,48 verificou-se que os Ministros do STJ, ao analisarem os casos concretos
retratados nos decisões acima transcritas, determinaram o seu o conteúdo e souberam,
nas palavras do Ministro Herman Benjamin, “resgatar a marca da cidadania que
são as obrigações assumidas por particulares em favor da coletividade” e reforçar o
entendimento de que a função social da empresa importa no reconhecimento de que
ela realiza atividades de interesses múltiplos, devendo ser observado o princípio da
sua continuidade.

4 Conclusão
A função social da empresa, como se observou no decorrer deste artigo, apresenta
status constitucional com fundamento na ordem econômica, na valorização do trabalho
humano, na livre-iniciativa. Sua finalidade é assegurar a todos existência digna nos
ditames da justiça social, em que a sociedade antecede os interesses daqueles que
desenvolvem a atividade empresarial. Sua normatividade provém do fato de que o
exercício de certos direitos tem impacto social, e não apenas privado.
Em síntese, a partir dos posicionamentos doutrinários trabalhados, a função
social da empresa pode ser enfocada como incentivadora do exercício da empresa
(primeira perspectiva) e condicionadora de tal exercício (segunda perspectiva). Na
primeira perspectiva temos várias decisões do STJ, em especial envolvendo processos
de recuperação judicial de empresas, em que a empresa, ao recolher os tributos devidos,
ao comercializar produtos e serviços que atendam ao clamor de diligência e respeito
ao meio ambiente, já está cumprindo sua função social.
No que tange ao segundo aspecto, a função social da empresa significaria corrigir
o desequilíbrio de poder no espaço da empresa e distribuir o resultado econômico
do relacionamento entre as partes para corrigir a desigualdade social, mas, diante da
ausência de normas jurídicas que fixem formas obrigatórias de cooperação, exercer ou não
uma função social acaba por ser mera opção da empresa, já que essa não prevê sanções.
Inegável que uma empresa que pratica a responsabilidade social em todos os
seus níveis de relacionamento: meio ambiente, stakeholders, investidores, clientes,
fornecedores e colaboradores, é muito valorizada, capaz de gerar um grande prestígio
e reconhecimento, com isso, aumentar seus lucros.
Assim, à guisa de conclusão, entendemos que:
a) É possível desenvolver uma atividade econômica lucrativa e possibilitar maior
desenvolvimento social sem prejudicar o ambiente, bastando que a sua atuação observe
e dê cumprimento ao que prevê o ordenamento jurídico vigente.
b) No Brasil é factível ter um desempenho empresarial que vise o bem-estar social
e ambiental, privilegiando o desenvolvimento sustentável, a diversidade da força de
trabalho, o estímulo ao desenvolvimento científico, o tratamento especial à extração de
recursos naturais e aos valores éticos da sociedade, bastando que, ao ser desenvolvida
a empresa, seus titulares cumpram com aos princípios estabelecidos no artigo 170 da
Constituição Federal.

48
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 132. mar. 2008.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
249

c) No âmbito de eventual processo de recuperação judicial o devedor, ao se


enquadrar no benefício deste instituto, não só pode como deve visar mais à coletividade
do que à singularidade de cada detentor de crédito ou, ainda, a prevalência dos seus
próprios interesses e dos seus sócios.
Por fim, entendemos que todo instituto jurídico brasileiro está impregnado pela
função social, o que impõe às empresas uma readequação do processo produtivo e das
formas de gestão, inserindo um comportamento ético e socialmente responsável, com
políticas de preservação e valorização, de forma a conquistar o reconhecimento público
quanto a sua exemplar atuação, a fim de que se alcance a edificação de uma sociedade
livre, justa e solidária, pois assim estará conquistando o mercado e realizando sua
função social sem desprezar as suas finalidades principais: a perpetuidade do negócio
e o potencial aumento dos lucros.

Referências
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Janeiro: Alta Books Editora, 2016.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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REDECKER, Ana Cláudia. Da aplicação do princípio da função social da empresa na jurisprudência do


Superior Tribunal de Justiça. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto
Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 237-250. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE
DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS

THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES

1 Introdução
A expressão não é nova, mas é inevitável repeti-la: vive-se hoje, sem sombra de
dúvidas, em uma sociedade de informação. Vê-se, nos mais diversos meios, uma ânsia
pelo direito de informar e de ser informado, sobre os mais variados aspectos, que vão
desde os fatos comuns do dia a dia até os chamados dados pessoais sensíveis.
Nesta inexorável realidade, a informação passou a ter um conteúdo econômico
expressivo, sendo comercializada por diversos agentes que se qualificam, muitas vezes
indevida e erroneamente, como “empresas de marketing e comunicação”, cujo objeto
principal de atividade é a obtenção de informações dos indivíduos para fazê-las circular
no mercado, a fim de que elas sejam utilizadas para os mais variados fins, como por
fornecedores de produtos e serviços, ou mesmo por candidatos em campanhas eleitorais,
para o atingimento, com maior precisão, de seu público-alvo, tal qual uma flecha na
mão de um hábil arqueiro.
Abrangidos por essas informações estão os dados1 pessoais de modo amplo, e
também aqueles chamados de sensíveis, que, por dizerem respeito a aspectos privados
do sujeito, como seu círculo de amizade, sua família, sua raça, suas crenças religiosas
e sua orientação sexual, são negociados como uma moeda rara, tendo, pois, um valor
ainda maior.

1
O conceito e a diferenciação entre informação e dados não são unívocos. Diversos especialistas já se debruçaram
sobre a questão e não há, verdadeiramente, um consenso. Muitos os tratam indistintamente como sinônimos,
outros veem os dados como pré-informacionais, e ainda aqueles que inserem os dados nas informações. Sobre o
tema, ver DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 151-155.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
252 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Como consequência dessa patrimonialização de informações e, particularmente,


dos dados pessoais, incontáveis profissionais e sociedades – empresárias ou não – vão
à caça desse conteúdo, o qual tem um campo fértil para a sua colheita: as redes sociais.
As redes sociais são, na quadra atual, uma das principais ferramentas de circulação
de ideias e pensamentos e, por essa razão, se tornaram um importante instrumento
para o exercício da liberdade de expressão. Nelas os indivíduos expõem e se expõem,
saciando a fome daqueles que se alimentam de fatos da vida alheia e, especialmente,
de informações privadas das pessoas.
Assim, e sem perceber, os indivíduos, no exercício da sua autonomia privada,
e acreditando estar exercendo a plenitude da garantia da liberdade de expressão sem
nenhum malefício, abrem mão de parcela da sua privacidade e permitem que estranhos
utilizem as informações ali dispostas, com caráter lucrativo ou não, tanto para o bem
quanto para o mal.
Vê-se, pois, que no exercício daquela garantia de natureza constitucional, o
indivíduo acaba por renunciar, ainda que parcialmente, a um direito fundamental
não menos importante, que é a privacidade. Ao se permitir, quase de modo irrestrito,
a circulação de informações e dados pessoais, inclusive sensíveis, ele acaba por sofrer,
em diversas situações, um vilipêndio em sua esfera privada, que fica devassada perante
um número incalculável de pessoas.
Dessa forma, é possível perceber que, assim como as faces de uma moeda, o livre
exercício de certas liberdades pode produzir, em sua fronte inversa, um resultado oposto,
inequivocamente danoso, a revelar um verdadeiro conflito entre garantias e direitos
constitucionalmente assegurados e igualmente merecedores de tutela, cuja solução
dependerá, inapelavelmente, do reconhecimento da prevalência, no caso concreto, de
um interesse sobre o outro.
Essa prevalência acarretará, como via de consequência, a necessidade de adoção
de medidas de restrição ao direito de menor peso, a fim de não apenas desestimular a
sua prática, mas de efetivamente impedi-la em prol do interesse prevalente, fato este
que revela a dramaticidade da questão, pois se está diante de direitos e garantias de
mesma hierarquia normativa e axiológica, deixando, assim, sempre uma das partes
insatisfeita e inconformada.

2 A garantia constitucional da liberdade de expressão e a possibilidade


de se limitar o seu exercício
A liberdade de expressão é uma garantia constitucional prevista, de modo
amplo, no art. 5º, IV e IX, da Lei Fundamental.2 Podendo se manifestar sob diversas
formas, e também se desdobrar em outras garantias, como a liberdade de informação,3

2
Preveem, respectivamente, os incisos IV e IX do art. 5º da Constituição Federal que “é livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato” e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença”.
3
No mesmo sentido do texto, para parcela da doutrina a liberdade de informação é espécie do gênero liberdade
de expressão. Veja-se, a propósito, KOATZ, Rafael Lorenzo-Fernandez. As liberdades de expressão e de imprensa
na jurisprudência do STF. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos fundamentais no
supremo tribunal federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 398. Entendendo de modo diverso,
sustenta Edilsom Farias que a liberdade de expressão é gênero, sendo espécie a liberdade de comunicação, a
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
253

por exemplo, a liberdade de expressão abrange a liberdade de manifestação pública e


privada de pensamentos, ideias, opiniões, juízos de valor, críticas e crenças, e assegura
aos indivíduos, fundamentalmente, um dever geral de abstenção dos particulares e,
destacadamente, do Estado, que não podem praticar condutas arbitrárias a impedir a
livre manifestação e circulação de ideias.
Por outro turno, e especialmente em relação ao Estado, a garantia da liberdade
de expressão também se converte em verdadeiro direito subjetivo constitucional do
indivíduo, que pode exigir do Poder Público prestações positivas que assegurem o pleno
exercício deste direito, viabilizando instrumentos para que os sujeitos exteriorizem suas
ideias e pensamentos.4
Este significado e conteúdo negativo e positivo da liberdade de expressão a revela
como uma importante ferramenta para a promoção da dignidade humana, na medida
em que viabiliza o desenvolvimento da personalidade da pessoa, ao lhe permitir expor
livremente as manifestações de seu espírito.5
Sob este aspecto, tem-se a dimensão substancial da liberdade de expressão, em
que o atendimento do postulado da dignidade da pessoa humana também depende
que se assegure e se viabilize ao indivíduo essa plena liberdade de exteriorização de
sua consciência, através da qual ele se verá e se compreenderá como um ser pensante
e, assim, existente no mundo, conclusão essa sintetizada na célebre expressão de René
Descartes, “penso, logo existo”.
Em contrapartida, a liberdade de expressão também possui uma dimensão
procedimental, segundo a qual ela é um instrumento para o exercício de outros direitos e
garantias fundamentais, como, por exemplo, a democracia, pois através do exercício desta
liberdade o indivíduo se habilita à participação no debate público de ideias, podendo
manifestar suas opiniões e, até mesmo, influenciar o pensamento de outros e colaborar
para o desenvolvimento do país e para a solução de problemas sociais e políticos.
Ainda sobre o conteúdo da liberdade de expressão, nela está abrangida a liberdade
de informação, a qual se desdobra em dois aspectos: (i) o ativo, que consiste na liberdade
de informar; e (ii) o passivo, o qual se consubstancia no direito de ser informado.

qual abrange a liberdade de informação e a liberdade de imprensa: “A opção pelos termos liberdade de expressão
e comunicação justifica-se, em primeiro lugar, pelo fato de o termo liberdade de expressão (gênero) substituir
os conceitos liberdade de manifestação de pensamento, liberdade de manifestação da opinião, liberdade de
manifestação da consciência (espécies), podendo-se, pois, empregar a frase liberdade de expressão para abranger
as expressões de pensamento, de opinião, de consciência, de ideia, de crença e de juízo de valor. A utilização
da forma liberdade de expressão e comunicação justifica-se, em segundo lugar, em razão de os termos liberdade de
comunicação representarem melhor do que as expressões liberdade de imprensa e liberdade de informação o atual e
complexo processo de comunicação de fatos ou notícias existentes na vida social”. FARIAS, Edilsom. Liberdade de
expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo: RT, 2004. p. 53.
4
Daniel Sarmento enfatiza o fato de que a liberdade de expressão não pode ser vista apenas sob o caráter negativo,
como uma garantia contra atos restritivos ou proibitivos do seu exercício, mas também como um direito à
obtenção de instrumentos para o seu pleno exercício, assim enriquecendo o debate público. Salienta o professor
titular de Direito Constitucional da UERJ que o Estado deve adotar uma postura mais ativista “para a efetiva
pluralização do espaço público, ou, para usar o expressivo lema do movimento nacional das rádios comunitárias,
‘para dar voz a quem não tem voz’”. SARMENTO, Daniel. Liberdade de expressão, pluralismo e o papel promocional
do Estado. In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006. p. 265.
5
Conforme Haddad Jabur, o pensamento “consiste na atividade intelectual através da qual o homem exerce uma
faculdade de espírito, que lhe permite conceber, raciocinar ou interferir com o objeto eventual, exteriorizando
suas conclusões mediante uma ação”. JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada.
São Paulo: RT, 2000. p. 148.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
254 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Quanto à liberdade de informar, esta se afigura na garantia de a pessoa poder


transmitir uma informação, fazendo-a circular no meio social em que vive. Já no tocante à
liberdade de ser informado, esta assegura ao indivíduo o direito de receber a informação,
seja através de uma postura meramente passiva, de ter acesso a uma informação veiculada
por terceiro, seja através de uma ação, por intermédio, por exemplo, de uma consulta
ou pesquisa.
Ambas, portanto, são indissociáveis, na medida em que se garante a toda e
qualquer pessoa o direito de fazer circular uma informação, bem como, no outro polo,
o direito de recebê-la ou coletá-la. Assim, como só é possível ter acesso àquilo que está
acessível, não se vislumbra a plenitude do direito à informação sem as suas duas facetas.
De tudo o que se disse parece não haver dúvidas da fundamentalidade da garantia
da liberdade de expressão, a qual se caracteriza, inequivocamente, como uma norma
formal e materialmente constitucional, pois além de estar inserida textualmente na
Constituição, tem conteúdo constitucional, dada a sua relevante função promocional
da dignidade humana.6
Por essa razão, sensível é a questão da possibilidade de se limitar o exercício
dessa liberdade, de modo a admitir medidas restritivas à liberdade de expressão para
impedir certas manifestações ou formas de manifestação. Ingressa-se, neste ponto, no
terreno pantanoso e perigoso da censura.
Há um razoável consenso na doutrina e na jurisprudência dos Tribunais de que
não existem direitos absolutos, nem mesmo aqueles tidos por fundamentais. Exemplo
emblemático a ser mencionado, e que é previsto na Constituição, é o direito à vida. Este
que, por seu próprio objeto, parece ser o mais relevante dos direitos merecedores de
tutela pode ser suprimido, por exemplo, em caso de guerra, quando se admite a aplicação
da pena capital, por expressa autorização do art. 5º, XLVII, “a”, da Lei Fundamental,
assim como nos casos de legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento
do dever legal e exercício regular do direito, que são hipóteses excludentes de tipicidade
previstas no art. 23 do Código Penal.
No entanto, quando a questão diz respeito à liberdade de expressão, o mencionado
“razoável consenso” em torno da inexistência de direitos absolutos se torna conflituoso.
E a justificativa para essa dificuldade certamente tem estreita relação com o recente
passado político brasileiro, em que durante a vigência do regime militar se viu toda
a sorte de excessos, abusos e supressões de direitos, particularmente no que toca à
liberdade de manifestação de ideias, opiniões e pensamentos, bem como o livre acesso
à informação. Durante este triste período da história brasileira, na síntese emocionada
de Luís Roberto Barroso, “as rádios não tocavam as músicas de que a gente gostava, os
jornais não davam as notícias que a gente sabia e os livros não contavam as histórias
que a gente queria ler, porque havia a censura e uma enorme repressão”.7

6
Na lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, as normas materialmente constitucionais “são
aquelas que tratam de temas considerados como de natureza essencialmente constitucional – notadamente a
organização do Estado e os direitos fundamentais –, não importa onde estejam positivadas” (SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2014. p. 54). Deste modo, é inequívoca a conclusão de que as disposições constitucionais que
asseguram a liberdade de expressão têm natureza constitucional, na medida em que dispõem sobre um direito
individual verdadeiramente fundamental.
7
BARROSO, Luís Roberto. De geração para geração. In: A vida, o direito e algumas ideias para o Brasil. Ribeirão Preto:
Migalhas, 2016. p. 24.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
255

Esta lamentável realidade trouxe diversos traumas sociais e, consequentemente,


algumas reações quanto a uma possível restrição à liberdade de expressão. Este fato
ficou evidente, por exemplo, no julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da ADPF
nº 130, que questionava a constitucionalidade da Lei de Imprensa, na qual diversos
Ministros se manifestaram pela impossibilidade de imposição de limitações à liberdade
de expressão, a qual se configuraria como um direito absoluto.8
No aludido julgamento, célebre foi a menção, pela Ministra Cármen Lúcia, de
expressão comumente utilizada em brincadeiras de crianças, em que dizem a frase “cala
a boca já morreu, quem manda em mim sou eu”, quando uma delas tenta calar a outra.
Assim, reafirmou a Ministra, em seu voto, a impossibilidade de proibição da veiculação
pública de uma informação.
Na mesma linha de pensamento, o Ministro Carlos Ayres Britto, ao proferir voto
no julgamento do Recurso Extraordinário nº 511.961-1, sobre a constitucionalidade de se
exigir diploma de jornalismo para o exercício da profissão de jornalista, e ao mencionar a
conclusão da Corte no julgamento da ADPF nº 130, afirmou que a liberdade de expressão
é um direito absoluto, ao lado de outros, como o direito de não ser torturado, o direito
ao voto direto e secreto, a proibição de imposição de penas perpétuas e o direito dos
brasileiros natos não poderem ser extraditados.9
Assim, com a conclusão do julgamento daquela ação de inconstitucionalidade,
chegou-se a um entendimento, pelo voto da maioria dos Ministros, de que não seria
admis­sível controle prévio de publicações e, consequentemente, ao conteúdo das mani­
festações decorrentes da liberdade de expressão, ainda que estas sejam lesivas a direitos
de terceiros, pelo que só seriam possíveis medidas a posteriori, como o direito de resposta,
a retratação e a indenização por danos eventualmente causados.
Em que pese a decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal, a questão acerca
da ilimitação e absolutismo da liberdade de expressão merece reflexão. E isso porque é
induvidoso que, em determinadas situações, a absoluta liberdade de se expressar pode
levar a irreversíveis danos a terceiros, como aqueles à personalidade e, consequentemente
à dignidade humana, cujas medidas posteriores de tutela não serão suficientes para
desfazer ou ressarcir a lesão. Diante dessas situações, é preciso definir se uma eventual
limitação ao exercício desta liberdade configuraria, ou não, uma censura.
A censura é, segundo os glossários, a ação de controlar qualquer tipo de informação
através da repressão a manifestações ou publicações. Com efeito, a censura consiste em

8
Sobre o julgamento da ADPF nº 130, ver a íntegra do acórdão e, consequentemente, dos votos dos Ministros em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>. Acesso em: 28 maio 2018.
9
Em seu voto, assim afirmou o Ministro Carlos Ayres Britto, ao contrapor sua opinião àquelas de outros Ministros:
“Quem relativizou a liberdade de imprensa, no que foi seguido por alguns Ministros, dizendo que na
Constituição não há direitos absolutos; quem iniciou uma relativa divergência quanto ao meu ponto de vista
foi o Ministro Menezes Direito em seu belo voto. Mas eu persisti na minha ideia central de que, naquilo
que é elementarmente de imprensa, a liberdade é absoluta. Tão absoluta quanto outros direitos de índole
igualmente constitucionais, como, por exemplo: ‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante’ – direito absoluto; ‘liberdade de consciência’ – direito absoluto; ‘ninguém poderá ser compelido a
associar-se ou a permanecer associado’ – direito absoluto; o direito de o brasileiro nato não ser extraditado –
direito absoluto; o caráter direto e secreto do voto popular em eleições gerais – direito absoluto”. RE 511.961
/ SP. Relator Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. Julgamento: 17.06.2009. DJe 213, 13.11.2009. RTJ, v. 213-01,
p. 605. Inteiro teor disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605643>.
Acesso em: 28 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
256 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

avaliar e proibir a divulgação ou opinião com base em critérios discricionários de uma


pessoa, chamada censor, que pode, ou não, ser um órgão público.
Na censura, então, e como regra, há um agir arbitrário por parte de um agente
que, por razões íntimas e pessoais, impede a circulação de uma informação, sob o falso
fundamento de uma suposta proteção da moral, dos bons costumes e da ordem pública.
Em seu sentido estrito e corriqueiro, esta censura é feita por um órgão administrativo, que,
unilateralmente, sem possibilitar qualquer forma de contestação, impede a publicação
ou divulgação de um fato ou de uma informação.10
Isso significa que a censura, ao menos em seu sentido pejorativo e como forma de
violação da liberdade de expressão, pressupõe uma arbitrariedade, o que, em princípio,
não se caracterizaria na hipótese de a proibição da circulação de uma informação decorrer
de uma decisão judicial.
Consoante o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, não se pode
excluir do Poder Judiciário o poder de apreciar lesão ou ameaça de lesão a direito. Do
comando constitucional é possível perceber que até mesmo a mera ameaça de lesão a
direito pode ser examinada pelo Judiciário e, consequentemente, afastada. Com efeito,
não há dúvidas de que, constatado o risco de dano grave e irreversível, ou de uma
violação concreta, a um direito, o Judiciário não só poderá, como deverá, intervir, sendo
pois um verdadeiro poder-dever imposto pelo Constituinte. E tal raciocínio deve ser
aplicado, induvidosamente, nos casos de exercício da liberdade de expressão, quando
esta for um instrumento para violação de outros direitos.
Portanto, ao menos em abstrato, a limitação da liberdade de expressão, em
determinadas hipóteses e como forma de evitar um dano irreparável ou de difícil
reparação, e quando imposta por decisão judicial, não caracteriza censura, sendo, pois,
válida e legítima.

3 O direito fundamental à privacidade e a autonomia privada


Assim como a liberdade de expressão, a privacidade está inserida no rol dos
direitos e garantias fundamentais do art. 5º da Constituição Federal. Prevista expres­
samente no inciso X daquele dispositivo, a privacidade se caracteriza por ser um direito
da personalidade que tutela, especialmente, a integridade psíquica do sujeito, mediante
o resguardo de aspectos íntimos e privados, como aqueles que dizem respeito às relações
e condições pessoais, como a família, as amizades, as relações amorosas e as convicções
políticas, religiosas e sexuais.

10
Sobre a censura, assim se manifesta Daniel Sarmento: “Pode-se adotar uma definição estrita de censura, ou
preferir conceitos mais amplos. Em sentido estrito, censura é a restrição prévia à liberdade de expressão realizada
por autoridades administrativas, que resulta na vedação à veiculação de um determinado conteúdo. Este é o
significado mais tradicional do termo. Neste sentido, a censura envolve um controle preventivo das mensagens
cuja comunicação se pretende realizar. [...] Em sentido um pouco mais amplo, a censura abrange também as
restrições administrativas posteriores à manifestação ou à obra, que impliquem vedação à continuidade da sua
circulação. A censura posterior pode envolver, por exemplo, a apreensão de livros após o seu lançamento, ou a
proibição de exibição de filmes ou de encenação de peças teatrais depois da sua estreia”. SARMENTO, Daniel.
Comentários ao art. 5º, IX, da Constituição Federal. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira;
SARLET, Ingo Wolfang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/
Coimbra: Almedina, 2013. p. 275.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
257

Sem prejuízo, dada a complexidade da vida de relação, a tutela da privacidade


muitas vezes se expande para além dos aspectos psíquicos do sujeito, abrangendo outros
bens jurídicos, como a preservação da imagem e da integridade física.11
Ainda assim, o alcance mais abrangente da privacidade não afasta a sua função
de tutela da vida privada e íntima do sujeito, sendo que estas é que não se limitam
apenas a aspectos psíquicos, na medida em que a integridade moral e também física se
insere na vida privada de um indivíduo. Basta pensar na já mencionada imagem, cuja
preservação revela, inequivocamente, uma faceta da privacidade.
A privacidade, então, é um direito essencial ao desenvolvimento da personalidade,
o qual depende da plena possibilidade de resguardo daquela. O indivíduo que não tem o
direito à tutela da sua privacidade por certo é um mero instrumento para a satisfação da
curiosidade e da intervenção alheia em sua vida privada, o que viola inequivocamente
o postulado da dignidade da pessoa humana, segundo o qual toda a pessoa é um fim
em si mesmo, não podendo ser um meio para o atendimento dos interesses de terceiros.
Sendo, portanto, um direito fundamental e essencial à plena realização da
dignidade humana, é preciso, ato seguinte, estabelecer o seu conteúdo, de modo a
compreender o que se tutela com a privacidade.
Por certo, e como já alertado anteriormente, o conceito de privacidade não
é unívoco. Isso porque as constantes mudanças pelas quais a sociedade passa e,
consequentemente, os valores que se entende que devem ser protegidos modificam, no
tempo e no espaço, o sentido e o conteúdo daquilo que corresponde à esfera privada e
o que deve ser resguardado.
É lugar comum, quando se fala em privacidade, citar o difundido texto The right to
privacy, de autoria dos americanos Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado em 1890
na Harvard Law Review. No citado texto, os autores estabeleceram a ideia de privacidade
como o direito de ser deixado só, em que as pessoas têm o direito de não sofrer interferência
e não ser importunadas em sua vida pessoal.
Tratava-se, pois, de uma visão estritamente negativa da privacidade, na medida
em que esta impunha apenas um dever geral de abstenção a todas as demais pessoas da
sociedade e, da mesma forma que se tutela a propriedade, também não podiam invadir
a vida privada alheia.12 Então, sob esta ótica, tinha-se uma situação subjetiva existencial
recebendo o mesmo tratamento de uma patrimonial, em razão de uma ótica limitada, pois
a única preocupação, naquele momento, era impedir uma invasão pública à privacidade.13

11
Sobre esse aspecto, observa Daniel J. Solove que a privacidade pode ter inúmeros significados a partir dos
diversos interesses difusos envolvidos, o que dificulta o seu enquadramento jurídico e, muitas vezes, sua
adequada proteção. SOLOVE, Daniel J. A taxonomy of privacy. University of Pennsylvania law review, v. 154, n. 3,
p. 477-560, jan. 2006.
12
Como observa Anderson Schreiber, numa ótica tradicional, o direito à privacidade, assim como o direito de
propriedade, caracterizava-se pela existência de um dever correspondente de abstenção, que impunha aos
demais sujeitos da sociedade o dever de não a violar ou criar óbices ao seu exercício. SCHREIBER. Direitos da
personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 137.
13
Esta visão limitada do conteúdo e do alcance da privacidade se justificava pelo contexto em que o trabalho The
right to privacy foi escrito. Samuel Warren, um advogado nova-iorquino, era casado com uma famosa atriz da
época, que sofria intensa invasão de sua vida privada pela imprensa. Assim, juntamente com Louis Brandeis, que
posteriormente tornou-se juiz da Suprema Corte americana, escreveu o texto com a ideia inicial da privacidade
como o right to be let alone, reconhecendo às pessoas o direito de não serem importunadas em sua esfera íntima e
pessoal.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
258 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Contudo, as mudanças da sociedade e o avanço dos meios de comunicação e de


circulação das informações alteraram radicalmente a forma de se enxergar a privacidade.
Nos tempos atuais, a preocupação dos indivíduos não é apenas com o risco de invasão
da sua vida íntima e pessoal, mas também com o mau uso das informações, fatos e
dados fornecidos e expostos voluntariamente para os mais variados fins. A internet e,
especialmente, as redes sociais promoveram uma revolução social, pois através delas as
pessoas não apenas ficam expostas a ataques de terceiros, mas proativamente divulgam
conteúdos de caráter privado.
Por essa razão, além daquele viés negativo da privacidade, que assegura a todos
os sujeitos o direito de preservar a sua vida privada contra ingerências alheias, tem-se,
hoje, também um viés positivo, em que há o direito de controlar o fluxo das informações
e dos dados fornecidos e expostos voluntariamente a terceiros, de modo que estes apenas
podem ser utilizados para os fins para os quais foram entregues.
Sob esta nova ótica, confere-se aos indivíduos a possibilidade de controlar as
informações e dados postos em circulação, a fim de assegurar a plena tutela de sua
personalidade. Tem-se, assim, como reconhecido nos países do sistema jurídico romano-
germânico, um direito fundamental à autodeterminação informativa, em que a pessoa
não tem apenas a possibilidade de impedir o acesso à sua vida privada, mas também
tem o poder de controlar a circulação e o uso deste conteúdo por ela voluntariamente
fornecido.14
Tem-se, portanto, uma mudança fundamental na leitura que se faz da privacidade
e da sua forma de proteção, o que também só foi possível graças a uma mudança
de paradigma de uma característica até então vista como intangível dos direitos da
personalidade: a sua irrenunciabilidade.
Os direitos da personalidade, enquanto emanações da dignidade humana, são
dotados de características peculiares e incomuns quando comparados com outros direitos
subjetivos. Uma destas características é a irrenunciabilidade, que de tão marcante foi
prevista expressamente no art. 11 do Código Civil, segundo o qual “os direitos da
personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer
limitação voluntária”.
Da dicção legal se infere que a regra no tocante aos direitos da personalidade
é a impossibilidade de sua renúncia, o que significa dizer que o seu titular não pode,
voluntariamente, deles se despir, retirando-os integralmente de sua esfera jurídica. E isso
decorre da tutela da dignidade humana, pois a renúncia a um aspecto da personalidade
pode reduzir a pessoa a uma condição de degradação, de modo que se faz necessário
tutelar a integridade física, psíquica e moral, impedindo que o indivíduo, por ato próprio,
coloque-se em uma situação de indignidade.
No entanto, também é elemento essencial à tutela da dignidade a liberdade do
indivíduo de fazer, com a sua vida, o que melhor lhe aprouver. Esta liberdade se revela
na figura da autonomia privada, segundo a qual todos têm a liberdade ou o poder de
decidir os caminhos que deseja seguir e, assim, estabelecer as próprias relações e as regras
que irão regê-las. É a autodeterminação, em que uma pessoa autônoma, no exercício

14
Cf. SCHREIBER. Op. cit. p. 137-138; DONEDA. Op. cit. p. 196-197.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
259

livre da sua vontade, define as regras que irão reger a sua vida, a partir de seus valores,
interesses e desejos.15
É neste sentido que a autonomia privada se insere no conteúdo da dignidade da
pessoa humana, pois alguém só pode ter uma vida minimamente digna se for livre para
decidir e buscar, segundo os seus anseios, o seu ideal de vida. Daí por que se diz que a
autonomia é o conteúdo ético da dignidade.16
Deste modo, vê-se que o problema da renunciabilidade dos direitos da persona­
lidade passa pela necessidade de um equilíbrio, ou ponderação, entre a tutela da
dignidade, através da fixação de limites à disposição dos direitos da personalidade, e a
promoção da dignidade pela liberdade do indivíduo de se autodeterminar, através da
possibilidade de renúncia do seu direito.
Embora polêmica e sensível, crê-se que a irrenunciabilidade, de modo absoluto,
viola este importante conteúdo da dignidade que é a autonomia privada. Nesta esteira,
pensa-se ser possível, embora também de forma relativa, a renúncia a direitos da
personalidade, por estar inequivocamente inserida, tal possibilidade, na liberdade do
indivíduo, como garantia fundamental.
A renúncia é o ato por meio do qual o titular de um direito, voluntariamente,
dele se despe, retirando-o da sua esfera jurídica ou patrimônio jurídico. Trata-se, pois,
de um ato unilateral de vontade, em que a pessoa abdica de um direito que titulariza,
não mais podendo exercê-lo.17 A renúncia, portanto, se consubstancia em uma conduta
que leva à extinção de um direito, ao menos sob a ótica do seu titular, que passa a não
mais titularizá-lo.
Por esta interpretação, a conclusão primeira é a de que a renúncia de direitos da
personalidade é inadmissível, pois acarretaria uma inequívoca violação à dignidade
humana, pois ao excluir, definitivamente, de sua esfera jurídica um direito da
personalidade, isso acarretaria, consequentemente, uma renúncia à própria dignidade.
Assim, só seriam admissíveis os chamados atos de limitação voluntária ao exercício dos
direitos da personalidade, que se diferem, propriamente, da renúncia.
Não obstante, tal conclusão não se coaduna com a correta intepretação do que
é a renúncia. Embora ela corresponda, de um modo geral, efetivamente à extinção
de um direito ou à sua exclusão da esfera jurídica do sujeito, é possível reconhecer
a possibilidade da prática de atos de renúncia que não se deem, necessariamente, de
modo geral, irrestrito e total. Isso significa que, apesar de a regra ser a de que a renúncia
importa no esvaziamento do direito em relação ao seu titular, é possível reconhecer,
excepcionalmente, o seu exercício de modo parcial, a fim de não excluir o direito do
patrimônio jurídico da pessoa.

15
BARROSO, Luís Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito contemporâneo e no
discurso transnacional. Revista dos Tribunais, v. 101, v. 919, p. 127-196, maio 2012, p. 167-168. Na síntese de
Daniel Sarmento, “A autonomia privada corresponde à faculdade do indivíduo de fazer e implementar escolhas
concernentes à sua própria vida”. SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e
metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 140.
16
CF. BARROSO. Op. cit., nota de rodapé 15. p. 167.
17
Em uma síntese, José Paulo Cavalcanti conceitua a renúncia como “o ato ou negócio jurídico dispositivo pelo
qual o titular de um direito extingue êsse direito”. CAVALCANTI, José Paulo. Da renúncia no direito civil. Rio de
Janeiro: Forense, 1958. p. 11-12.
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260 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

De antemão, para que isso ocorra, é preciso que o direito objeto da renúncia
seja juridicamente divisível ou cindível,18 e isso porque, se o conteúdo deste direito for
juridicamente indivisível – isto é, havendo a sua divisão, há a perda de sua função –, não
será admissível que aquela se dê de modo parcial. Então, o direito objeto da renúncia
deve admitir o seu fracionamento de maneira tal que o titular possa dispor de parcela
dele sem que haja o seu esvaziamento.
A questão que exsurge, então, é se os direitos da personalidade são cindíveis a
ponto de se admitir esta renúncia parcial. Examinando-se os casos dispostos na lei civil,
assim como os próprios exemplos apresentados pela doutrina, é possível perceber que é
possível essa cisão, e que muitos casos chamados de limitação voluntária ao exercício dos
direitos da personalidade correspondem, em verdade, a um ato de renúncia parcial, em
que o titular, através de sua autonomia, deixa de exercer o seu direito ou até mesmo
postular a sua tutela.19
Assim, embora a doutrina rechace a possibilidade de renúncia propriamente
dos direitos da personalidade, sob o argumento de que apenas é possível a limitação
voluntária ao seu exercício,20 em verdade, as inúmeras situações práticas demonstram
que esse ato limitativo corresponde a uma renúncia do próprio bem jurídico.
Com efeito, é plenamente possível admitir a renúncia de um direito da perso­
na­lidade, a qual, contudo, deve observar certos requisitos. Primeiro, por ser um ato
decorrente da autonomia privada, a renúncia só pode ocorrer por seu próprio titular.
Segundo, que essa manifestação do titular deve ser autônoma, isto é, deve decorrer de
um ato de vontade livre da pessoa. Terceiro, que este ato de renúncia deve se dar, regra
geral, no exclusivo interesse do titular do direito, uma vez que deve ser um instrumento
para o exercício e promoção da sua personalidade, de modo que a realização da dignidade
de um terceiro, por meio da renúncia a um direito da personalidade, só pode ocorrer
excepcionalmente – como nos casos de doações de órgãos, em vida, para salvar outra
pessoa. E quarto, a renúncia deve ser parcial e limitada, a fim de preservar a dignidade
da pessoa humana, uma vez que se a pessoa se despir, de modo definitivo e geral, de
algum dos seus atributos humanos, haverá uma inequívoca violação à dignidade.21
Conclui-se, pois, que é possível o ato de renúncia a um direito da personalidade,
fato este corriqueiro nas redes sociais, em que as pessoas inequivocamente renunciam a
parcela de seus direitos, especialmente a privacidade, ao expor-se pública e livremente
para toda e qualquer pessoa, especialmente quando o perfil publicado na rede é aberto,
isto é, de livre acesso a todos.22

18
Ibidem. p. 125.
19
Como observa Anderson Schreiber, ao tratar da limitação voluntária ao exercício dos direitos da personalidade,
“em uma série de situações não previstas em lei, mas socialmente admitidas, as pessoas desejam e aceitam
limitar, pontualmente, o exercício de algum atributo da própria personalidade. O escritor que concede uma
entrevista, revelando ao público detalhes da sua vida particular, deixa de exercer, naquela situação específica,
seu direito à privacidade. Tal limitação, derivada da vontade do titular, não deve a toda evidência ser reprimida
pela ordem jurídica, porque a vontade individual aí não se opõe, mas se dirige à realização da dignidade humana
daquele indivíduo”. SCHREIBER. Op. cit. p. 27.
20
LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 170.
21
Neste mesmo sentido, embora tratando dos atos de limitação voluntária ao exercício dos direitos da personalidade,
dispõe o Enunciado nº 4 da I Jornada de Direito Civil do CJF: “O exercício dos direitos da personalidade pode
sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”.
22
Neste particular, interessante é o julgado do Tribunal de Justiça do DF, cujo trecho da ementa é imprescindível
destacar: “4. É claro, portanto, que não pode o autor ingressar em uma rede social virtual, postar inúmeras
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
261

Nesses casos, o indivíduo acaba se sujeitando a práticas lesivas de terceiros que,


com livre acesso à informação publicada, replicam e utilizam aquele conteúdo, muitas
vezes desvirtuando o propósito original da divulgação, como ocorre, particularmente,
com muitos fornecedores de produtos e serviços que acessam as redes com o único
propósito de coletar esses dados para utilização e comercialização.23
Trata-se, portanto, de uma questão que demanda reflexão por parte dos operadores
do Direito, na medida em que se tem, nesses casos, um nítido conflito entre a liberdade
de expressão e a privacidade, sendo ainda mais sensível o tema quando a informação
coletada, e aqui a repetição do termo é inevitável, diz respeito aos dados pessoais
sensíveis da pessoa, como se demonstrará a seguir.

4 A liberdade de expressão e a privacidade dos dados pessoais nas


redes sociais: conflito e soluções possíveis
As redes sociais estão inseridas no âmbito dos provedores de conteúdo, que são
aqueles que têm como atividade precípua oferecer conteúdo das mais variadas espécies,
como notícias, imagens, vídeos, informações e, consequentemente, também dados.24 Com
o seu advento, ampliou-se exponencialmente a forma com que as pessoas passaram a se
comunicar, sendo quebradas inúmeras barreiras e limitações, pois através dessa nova
ferramenta de comunicação todo e qualquer indivíduo é um formador de opinião em
potencial.
O surgimento das redes sociais permitiu a todas as pessoas terem voz no meio
social em que vivem, podendo manifestar suas opiniões livremente e com um alcance
quase ilimitado, uma vez que esta ferramenta tecnológica admite quaisquer indivíduos
como membros. A liberdade de expressão, então, ganhou novos contornos e proporções,
passando a ser exercida como nunca antes se viu.
Por outro lado, essa ampla e quase irrestrita liberdade de se expressar, informar
e ser informado apresenta uma outra faceta, que é a da superexposição daqueles que,
através das redes sociais, divulgam informações e dados próprios e de terceiros. A gla­
mourização das redes sociais, que tornou, do dia para noite, pessoas desconhecidas
em figuras ilustres – basta observar os inúmeros bloggers, youtubers e facebookers que

informações pessoais, convidar pessoas para seu grupo de amigos virtuais e pretender ser indenizado sob
alegação de que essa mesma rede teria violado sua privacidade e imagem por exposição não autorizada.
5. A perda da privacidade, e a exposição decorrente, é característica ínsita da conta criada pelo próprio autor.
De resto, não há linha sequer na inicial sobre eventual violação a atributo de sua personalidade por específica
informação postada no aplicativo e que teria violado, v. g., sua honra ou sua dignidade”. ACJ 20130111814676 –
TJDF. Relator Des. Fábio Eduardo Marques. 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do TJDF. Julgamento:
18.08.2015. DJe 04.09.2015, p. 251.
23
A gravidade da situação se reflete na consternação manifestada por Gustavo Tepedino, que diante desses fatos
alarmantes frisou a necessidade de uma urgente regulamentação da matéria, ante a banalização da circulação dos
dados pessoais, “oferecidos escancaradamente a fornecedores de serviços e produtos interessados em conhecer
características, hábitos, faixas de renda e as preferências de consumo de quem quer que seja. Daí a urgência em se
disciplinar a utilização dos dados pessoais no Brasil, onde o eloquente silêncio normativo contribui para graves
violações da privacidade”. TEPEDINO, Gustavo. Circulação de dados pessoais: novos contornos da privacidade.
Revista trimestral de direito civil, ano 11, v. 42, editorial, abr./jun. 2011.
24
Os provedores de conteúdo são tratados pela Portaria nº 148/1995 do Ministério das Telecomunicações como
provedores de serviço de informações, que têm como atividade prestar informações de interesse.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
262 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

angariam, diariamente, milhares de seguidores –, tem o seu lado cruel, que é a devassa
da privacidade.25
Ser um anônimo, nos tempos atuais, é um privilégio para poucos, pois o que
se vive, hoje, é uma sociedade de constante vigilância, tornando realidade aquilo que
George Orwell, em sua obra 1984, publicada originalmente no já longínquo ano de 1949,
narrava apenas como ficção.
As pessoas, com o avanço em progressão geométrica dos meios de comunicação,
passaram a estar em constante exposição, e isso traz inúmeras repercussões no mercado
e no exercício da democracia, na medida em que surgem profissionais liberais e pessoas
jurídicas especializadas na coleta de dados pessoais na internet e, particularmente, nas
redes sociais, a fim de traçar perfis dos indivíduos para a sua utilização nos mais variados
fins, inclusive eleitorais.
A coleta de dados, a partir de então, não se limita mais à mera atividade de se
obter dados para fazer publicidade comercial direcionada ao perfil de cada consumidor
em potencial, mas também para situações outras, como influenciar o processo eleitoral,
pois inúmeras informações são propagadas e direcionadas às pessoas com o fim de
induzi-las a, por exemplo, votar em um determinado candidato, a partir de seus gostos
e preferências pessoais captadas na rede.
A obtenção de dados pessoais, então, passou a ser um grande negócio, em que
muitas pessoas sequer sabem que estão inseridas, e, por essa razão, de modo descui­
dado, acabam fornecendo inocentemente essas informações, apenas para não perderem
a oportunidade de acessar uma determinada rede social e interagir com o mundo. Isso
quando não utilizam as redes sociais com o único propósito de propagar, para o maior
número possível de pessoas, sua vida privada, a fim de obter mais seguidores e “amigos”,
pois a curiosidade alheia não tem limites, colaborando para o surgimento dessas novas
celebridades virtuais.
Diante dessa realidade inexorável, a dúvida que surge é a da possibilidade de se
limitar o exercício da liberdade de expressão, impedindo que terceiros, ou até mesmo
o próprio indivíduo, divulgue informações e dados pessoais, em especial aqueles tidos
por sensíveis, em prol da privacidade, sem que isso se caracterize como censura e,
portanto, como um ilícito.
No que toca, particularmente, aos dados pessoais sensíveis, estes dizem respeito,
segundo o GDPR – General Data Protection Regulation (que consiste no regulamento

25
O alerta também é feito por Anderson Schreiber, que sensivelmente captou o problema: “A internet é usualmente
vista como uma aliada da liberdade de expressão. Sua capacidade de ‘amplificar’ o alcance das manifestações
individuais é frequentemente apontada como um estímulo à livre circulação das ideias. As redes sociais, por
exemplo, estariam, no dizer de muitos teóricos da tecnologia, criando um novo espaço público, onde a livre
manifestação das opiniões tenderia a alcançar níveis quase arcadianos. A internet representaria, assim, uma
renovada esperança de realização da democracia, com a criação de um ambiente plenamente aberto às discussões
éticas, culturais, políticas e de outras tantas espécies. Uma visita rápida às redes sociais mais acessadas do mundo
(Facebook, Twitter etc.) revela uma realidade menos entusiasmante. Longe de um idílico fórum de debates, o que
se vê ali, com maior frequência, é um desfile de manifestações unilaterais que não parecem compor um efetivo
diálogo. As mensagens divulgadas em redes sociais acabam assumindo, muitas vezes, um caráter unilateral,
quase publicitário, de autoafirmação da identidade criada pelo emissor, que as fazem soar tão pouco abertas ao
debate quanto ‘as mensagens iconoclásticas coladas nos vidros dos carros’”. SCHREIBER, Anderson. Marco civil
da internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In:
DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito & internet III: marco civil
da internet (Lei n. 12.965/2014). t. II. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 278.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
263

europeu de proteção de dados), àqueles dados que revelam a origem racial ou étnica,
opiniões políticas, crenças religiosas, dados genéticos, dados biométricos de identificação
pessoal e aqueles relativos ao estado de saúde e orientação sexual de uma pessoa. São
eles, portanto, dados que se relacionam à vida íntima de um indivíduo, atingindo o
núcleo da privacidade, correspondente à intimidade.
Sobre eles, há que se ter uma maior atenção e cuidado, especialmente quando do
enfrentamento da questão da possibilidade de sua exposição, circulação e divulgação,
uma vez que, por dizerem respeito a informações íntimas da vida de uma pessoa, têm
maior repercussão sobre sua personalidade, justificando, assim, uma maior proteção.26
Disso tudo se infere que nessas situações há um verdadeiro embate entre a
liberdade de expressão e a privacidade, que acabam vivendo em constante conflito nessa
sociedade de informação, revelando-se como um verdadeiro duelo de titãs, pois ambos
ostentam a natureza de direitos individuais fundamentais expressamente consagrados
na Constituição Federal.
Em um dos lados há a garantia constitucional de manifestar opiniões, ideias
e pensamentos, bem como de informar e ser informado, especialmente quando se
tratar de um dado publicizado voluntariamente por uma pessoa. E do outro lado há
o direito fundamental de tutela da privacidade, que não se limita a impedir incursões
não autorizadas em sua vida privada, mas também confere, sob a sua ótica positiva, o
direito de controlar o fluxo das informações espontaneamente entregues ou publicadas.
Essa especial natureza, atribuída a ambos, traz um problema prático de difícil
solução quando da existência de um conflito, pois, se os dois se caracterizam como
direitos fundamentais, não há hierarquia entre eles, de modo que não é possível
solucionar este problema com a simples não incidência daquele direito de menor estatura,
quando confrontado com o de maior.27
Nesses casos ditos difíceis, a solução se dá pela já conhecida ferramenta da
ponderação, que consiste em uma técnica de decisão jurídica através da qual se faz um
balanceamento e um sopesamento entre os interesses conflitantes envolvidos, aplicando-
se com maior intensidade aquele que, no caso concreto, tiver maior peso e relevância,
sem que isso signifique uma invalidação do outro.
Na hipótese em discussão, o uso da ponderação passa necessariamente pelo
exame dos interesses em conflito para, em seguida, verificar qual deles tem, no caso
concreto, maior peso, assim prevalecendo na solução da controvérsia. Tendo em vista
que os direitos e garantias em discussão são a liberdade de expressão e a privacidade,
será necessário avaliar as informações e dados objeto da divulgação e os fins daquela
veiculação, a fim de verificar se deve prevalecer a liberdade de expressão ou a privacidade.

26
Neste sentido, afirma Anderson Schreiber, ao depositar esperança no legislador pátrio para regulamentação da
questão, que “Tais dados são tratados com maior rigor que outras informações pessoais, pelo risco mais intenso
que seu uso e divulgação oferecem à personalidade humana. A tendência vem sendo seguida em diversos países
e possivelmente acabará adotada também pela nossa legislação”. SCHREIBER. Op. cit., nota de rodapé 12. p. 161.
27
Na lição de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, nos casos de conflito entre direitos fundamentais,
“por força do princípio da unidade da Constituição (v. infra), o intérprete não pode simplesmente optar por uma
norma e desprezar outra em tese também aplicável, como se houvesse hierarquia entre elas”. BARROSO, Luís
Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos
princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 345
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
264 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Sem prejuízo, antes mesmo de se começar a análise da situação em concreto é


preciso verificar, preliminarmente, se algum desses interesses deve “largar na frente”
no processo de sopesamento, isto é, se algum deles possui uma preferência prima facie,
transferindo o ônus argumentativo para aquele que defende a prevalência do outro
interesse. A questão é extremamente polêmica e, assim, suscita inúmeras controvérsias.
Inicialmente, afirmar a existência de uma preferência prima facie, ou uma posição
preferencial, significa dizer que o ordenamento jurídico conferiu a um determinado
interesse uma predileção, dando-lhe um valor maior quando confrontado com outros
interesses. Particularmente no conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade,
os tribunais superiores têm tido posições antagônicas, a revelar a dificuldade do exame
da questão.
Para exemplificar, vale mencionar um emblemático caso decidido pelo Superior
Tribunal de Justiça, no famoso episódio da Chacina da Candelária. A situação dizia
respeito à possibilidade, ou não, de se veicular programa televisivo narrando o crime
e mencionando a identidade dos envolvidos mais de 20 anos após o encerramento do
julgamento em sede criminal. Neste julgado, entendeu o STJ que a Constituição confere
uma predileção a medidas protetivas da pessoa humana e, particularmente, à tutela da
personalidade quando confrontada com a liberdade de expressão. Como consequência,
o direito à privacidade, à honra e à imagem teria maior valor do que as liberdades
comunicativas.28
Em sentido oposto, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem-se
entendido pela posição preferencial da liberdade de expressão, assim como a doutrina
de Direito Público.29 No STF, vale relembrar os já mencionados julgamentos da ADPF
nº 130, na qual se entendeu pela inconstitucionalidade da Lei de Imprensa e pelo caráter
absoluto da garantia da liberdade de expressão, e do RE 511.961, em que se firmou o
entendimento de que é desnecessário o diploma de nível superior para o exercício
da profissão de jornalista, tendo em vista que o caráter preferencial e absoluto da
liberdade de expressão e de imprensa não autoriza a imposição de condições para o
seu exercício.

28
Ver REsp 1.334.097 / RJ. Relator Min. Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. DJe 10/09/2013. RSTJ, v. 232. p. 391.
Sobre o acórdão, vale transcrever trecho da ementa em que se ressalta a predileção pelos direitos da personalidade:
“8. Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da
vida privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220,
§ 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens
jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções
protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do
caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea com o fato de que, a despeito de a informação livre de
censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal
mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), a
dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um fundamento da República, uma lente pela qual
devem ser interpretados os demais direitos posteriormente reconhecidos. Exegese dos arts. 11, 20 e 21 do Código
Civil de 2002. Aplicação da filosofia kantiana, base da teoria da dignidade da pessoa humana, segundo a qual o
ser humano tem um valor em si que supera o das ‘coisas humanas’”.
29
Ver, exemplificativamente, SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na
ordem constitucional brasileira. In: SARMENTO, Daniel. Direitos, democracia e república: escritos de direito
constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 228-237; SCHREIBER, Simone. Liberdade de expressão:
justificativa teórica e a doutrina da posição preferencial no ordenamento jurídico. In: BARROSO, Luís Roberto
(Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 217-258; e BARROSO,
Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e
critérios de ponderação. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. t. III. Rio de Janeiro: Renovar,
2005. p. 79-129.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
265

A discussão acerca de eventual primazia entre um ou outro interesse passa,


necessariamente, por aquilo que melhor atende à tutela da dignidade da pessoa humana
e, obviamente, pela lembrança do traumático período histórico de repressão e censura
vivido no Brasil. O medo do passado ainda assusta a muitos, e o menor risco de supressão
ou restrição à absoluta liberdade de expressão causa arrepios àqueles que viveram o
tortuoso tempo da ditadura.
Por essa razão, para a solução desta questão é preciso destacar que entender
pela prevalência da privacidade não significa, necessariamente, ser favorável à censura
e, muito menos, à ditadura. Em que pese a ocorrência desse terrível fato histórico, é
preciso voltar os olhos para a tutela do indivíduo, que, por força da dignidade da pessoa
humana, não pode ser um meio para a satisfação dos interesses ou da curiosidade alheia,
a admitir que se possa permitir a veiculação de toda e qualquer informação em prejuízo
da sua privacidade, com único propósito de se dar às demais pessoas o direito de ter
conhecimento de um fato, para que elas possam formar a sua personalidade.
Por certo, e como já observado anteriormente, todo e qualquer direito ou garantia,
ainda que fundamental, deve ter limites, e um destes limites é, induvidosamente, a
dignidade da pessoa humana. Sendo a dignidade da pessoa humana um postulado
que visa assegurar a integral proteção da pessoa, o que se justifica pelo valor intrínseco
que decorre da singularidade de todo ser humano, o exercício de um direito não pode
atingir esse núcleo essencial e intangível que é o mínimo necessário para uma vida digna.
Isso significa que, mesmo uma garantia fundamental como a liberdade de
expressão, que tem importante papel no desenvolvimento da personalidade e no exercício
da própria democracia, não pode ser um instrumento para a violação da dignidade de
uma pessoa individualmente considerada.
Com efeito, embora existam inúmeros entendimentos respeitáveis em contrário,
entende-se que no confronto entre a liberdade de expressão e a privacidade, esta última
tem uma posição preferencial, o que significa dizer que se inverte o ônus argumentativo
em desfavor daquele que pretende ver, no resultado final da ponderação, a prevalência
da liberdade de expressão. Para que a liberdade de expressão venha, então, a prevalecer,
será preciso demonstrar, concretamente, que a violação à privacidade é um efeito menor
diante da supressão ou restrição daquela liberdade.
Mas, diante de uma situação envolvendo um dado pessoal nas redes sociais, ainda
que disponibilizado voluntariamente pelo titular do direito à privacidade, o direito
à divulgação ocupa uma posição inferior, especialmente quando esta circulação se
desvirtua dos fins para os quais a informação foi prestada ou divulgada pelo indivíduo.
Assim, crê-se que o direito à privacidade deve, como regra, prevalecer, de modo que a
liberdade de expressão deve ser restringida e o conteúdo, uma vez publicado, deve ser
retirado, preferencialmente por determinação judicial, a fim de evitar a caracterização
de um ato de censura.
Isso não sinaliza, todavia, que o provedor não possa, uma vez informado do
conteúdo lesivo, retirar espontaneamente a publicação após conferir àquele que fez a
publicação o direito ao contraditório e à ampla defesa. E isso porque, por se tratar de
uma plataforma privada, a qual deve obedecer às regras dispostas nos seus termos e
condições de uso, tem o provedor o direito de suprimir um conteúdo que verifique ser
ilícito, indevido ou inapropriado.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
266 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Frise-se, ainda, que a retirada do conteúdo e, assim, a limitação da liberdade de


expressão só devem ocorrer, como regra, naquelas hipóteses em que aquela divulgação
envolver uma informação e, consequentemente, um dado pessoal do indivíduo e houver
dano ou risco de dano irreparável. Nesses casos, é certo que a mera possibilidade de
adoção de medidas a posteriori, como a retratação, o direito de resposta ou eventual
indenização, não será suficiente para restabelecer a vítima ao seu estado anterior. Por
esse motivo, melhor medida não há do que a retirada do conteúdo.
Isso não quer dizer, contudo, que tais medidas alternativas também não possam
ser implementadas para a solução deste conflito. A toda evidência, modernamente
tem-se defendido, em uma crescente, a adoção de medidas alternativas à reparação de
danos causados por violação aos direitos da personalidade, em particular a honra, a
imagem e a privacidade. Para esses casos, e como dito, tem se defendido a utilização da
retratação, do direito de resposta ou mesmo um pedido de desculpas público.30 Ainda
assim, parece que estes não são suficientes quando se trata, por exemplo, da divulgação
de uma enfermidade grave que a pessoa propositadamente ocultava, ou mesmo sua
orientação sexual, por medo de discriminação ou preconceito.
Por isso, entende-se que a melhor solução é a utilização de medidas inibitórias,
preferencialmente por meios judiciais, para determinar a retirada do ar daquele conteúdo
lesivo, a fim de evitar a propagação do dano.
Última e não menos tormentosa discussão diz respeito à polêmica questão da
responsabilidade dos provedores de conteúdo por danos causados pelas publicações
de terceiros em seus portais.
Como mencionado, a indenização por danos causados por divulgação de dados
pessoais é medida a ser tomada a posteriori, mas que deve ser adotada quando o dano se
concretizar, a fim de compensar o indivíduo pela inequívoca violação aos seus direitos
da personalidade e, consequentemente, à sua dignidade.
Deste modo, se a publicação já tiver sido feita, sem prejuízo do direito à obtenção
da ordem judicial para a retirada do conteúdo, terá a vítima o direito de ser indenizada.
Por óbvio, aquele que fez a postagem é o primeiro legitimado passivo para a ação
indenizatória. Questiona-se, contudo, a responsabilidade dos provedores que acolheram
e serviram de veículo para a propagação daquele conteúdo.
Após longos debates, avanços e recuos na jurisprudência dos tribunais, especial­
mente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, com o advento da Lei do Marco Civil
da Internet, a Lei nº 12.965/2014, firmou-se o entendimento no âmbito daquela Corte
de que os provedores de conteúdo não são responsáveis, ao menos diretamente, pelo
conteúdo lesivo veiculado por terceiro. A responsabilidade dos provedores, segundo
o entendimento firmado pelo STJ, é indireta – subsidiária – e solidária com o terceiro
apenas no caso de, tendo sido notificado judicialmente para a retirada do conteúdo,
omitir-se em fazê-lo, daí se inferindo uma responsabilidade subjetiva, isto é, mediante
a aferição de culpa.31
A consolidação da jurisprudência do STJ acerca desta responsabilidade apenas
subsidiária e culposa dos provedores, no caso de omissão após notificação judicial, se

30
Sobre o tema ver SCHREIBER, Anderson. Reparação não pecuniária dos danos morais. In: MARTINS, Guilherme
Magalhães (Coord.). Temas de responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 9-16.
31
REsp 1.642.997/RJ. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. DJe 15.09.2017.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
267

deu por força da redação do art. 19 da LMCI, segundo o qual “o provedor de aplicações
de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes
de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as
providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo
assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”.
O referido dispositivo positivou o sistema do judicial notice and takedown, segundo
o qual a obrigação do provedor só nasce se, notificado judicialmente acerca do conteúdo
lesivo veiculado por terceiro, não retirar a publicação. E isso porque, segundo se
entende, a fiscalização e o controle do conteúdo das postagens feitas por terceiros não
são atividades intrínsecas à atividade dos provedores de conteúdo, pelo que não podem
ser compelidos a retirar as postagens ou mesmo ser responsabilizados pelas publicações
feitas por terceiros. Ademais, eventual controle prévio sobre o conteúdo postado por
terceiro poder-se-ia caracterizar como censura e, portanto, violador da liberdade de
expressão.
No entanto, e como visto, a depender do conteúdo veiculado, a liberdade de
expressão não pode prevalecer sobre a privacidade, daí se inferindo a necessidade de
controle do conteúdo por parte dos provedores, que embora não possam atuar como
censores, devem assegurar o respeito e proteção à dignidade humana, de modo que
eventual fiscalização não se revelará arbitrária e, portanto, não se caracterizará, em
princípio, como censura, e sim como um instrumento para a tutela da personalidade.
Além disso, as próprias limitações impostas pelo legislador são de duvidosa
constitucionalidade. E isso porque elas parecem contrariar a garantia fundamental do
pleno ressarcimento dos danos, bem como direito de resposta proporcional ao agravo,
assegurados expressamente no art. 5º, V e X, da Constituição Federal. Condicionar a
res­ponsabilização do provedor de conteúdo, cuja atividade é, exatamente, oferecer
conteúdo, à prévia notificação judicial parece exagerado e contrário aos fins visados
pela Lei Fundamental, pois impõe condições que dificultam a responsabilização dos
agentes e a plena reparação por danos causados.
Parece inequívoco que o controle e a fiscalização de conteúdos nitidamente lesivos
à dignidade humana estão inseridos no risco da atividade dos provedores de conteúdo,
pois, repise-se, sua atividade é o oferecimento e a disponibilização de conteúdo. Com
efeito, se o objeto da sua atividade é a oferta de conteúdo, seja próprio, seja de terceiro,
o gerenciamento deste está inequivocamente inserido em sua atividade.
Por essa razão, ao admitir que sejam postados conteúdos em suas plataformas,
portais e aplicativos, os provedores assumem o risco da causação de danos a terceiros,
razão pela qual a interpretação mais consentânea com o regime constitucional de
responsabilização por danos é aquela no sentido de que a responsabilidade dos
provedores de conteúdo, por publicações feitas por terceiros, é objetiva e direta.

5 Conclusão
O conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade é um dos mais sensíveis e
polêmicos nos tempos atuais. Defensores de ambos os lados batalham apaixonada­mente
por suas convicções, visando defender e fazer prevalecer seus ideais. Muitos resumem
essa controvérsia a uma luta entre liberais e conservadores, em que os primeiros se situam
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
268 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

entre aqueles que prezam pela ampla liberdade de comunicação e expressão, enquanto
os outros estão inseridos naqueles que dão mais valor à privacidade.
Parece, contudo, que a questão não deve ser julgada desta forma. E isso porque
ambos os interesses têm assento constitucional e fundamento na tutela na dignidade
da pessoa humana. A liberdade de expressão exerce tal função ao promover o
desenvolvimento do indivíduo através do livre exercício da manifestação de pensamento,
ideias e opiniões, enquanto a privacidade diz respeito à tutela da personalidade através
da preservação da vida privada e íntima da pessoa.
E neste embate, em que pese existirem posições antagônicas, o objetivo é um só: a
proteção do indivíduo e a sua plena realização. Por isso, estabelecer verdades absolutas
é sempre perigoso e não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, em que
poucas vezes há certos ou errados, mas sim opiniões, as quais só podem ser manifestadas
pela garantia da liberdade de expressão.
Por isso, entender pela prevalência de um ou de outro interesse decorre, na
verdade, das diversas formas de se ver a vida e de se interpretar o que é mais propício
à tutela da dignidade e da personalidade.
Nestas breves linhas entendeu-se pela prevalência da privacidade, especialmente
quando se tratar de dados pessoais do indivíduo, porque o perigo de lesão irreparável
ao sujeito parece maior do que o risco de se restringir a liberdade de comunicação.
A situação se agrava quando se está a falar das redes sociais, em que as informações
circulam livremente e quase sem controle, o que se deve, também, à jurisprudência
hoje firmada de uma responsabilidade apenas indireta e subjetiva dos provedores de
conteúdo.
Crê-se, pois, que se deve dar maior atenção à privacidade, pois uma vez invadida
a vida privada e íntima de uma pessoa, nada será capaz de ocultar o fato, pois os dados
correm em uma velocidade incontrolável, espalhando-se no ambiente livre e aberto da
internet.
No fim, como dito, trata-se de uma questão de escolha. E aqui se escolheu cuidar
da privacidade. Espera-se, sinceramente, que esta tenha sido a melhor decisão.

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Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 251-269. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS
FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA

ALESSANDRO HIRATA

CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA

1 Introdução
A sociedade atual é marcada intensamente pelo gerenciamento, armazena­mento
e processamento de um volume de informação que cresce dia a dia. A quantidade
de dados armazenados aumenta de maneira exponencial, quatro vezes mais do que
o crescimento da economia global, e o aumento da capacidade dos computadores
em processar estas informações é nove vezes mais rápido.1 Nesse sentido, adota-se a
expressão cunhada por Manuel Castells,2 em uma das obras de sua trilogia,3 qual seja:

1
MAYER-SCHÖNBERGER, Victor; CUKIER, Kenneth. Big Data: a revolution that will transform how we live,
work, and think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company, 2013. p. 9.
2
The information age: economy, society and culture. Vol. I: The rise of the network society. Malden (MA): Blackwell
Publishers, 2000. p. 17: “To be sure, knowledge and information are critical elements in all modes of development,
since the process of production is always based on some level of knowledge and in the processing of information.
However, what is specific to the informational mode of development is the action of knowledge upon knowledge itself
as the main source of productivity (see chapter 2). Information processing is focused on improving the technology
of information processing as a source of productivity, in a virtuous circle of interaction between the knowledge
sources of technology and the application of technology to improve knowledge generation and information
processing: this is why, rejoining popular fashion, I call this new mode of development informational, constituted by
the emergence of a new technological paradigm based on information technology (see chapter 1)” (grifo nosso).
3
A trilogia é identificada por The Information Age: economy, society and culture. Sendo que o vol. I, idem ibidem
trata da sociedade em rede; o vol. II, do poder da identidade, vide ______. The power of Identity. 2. ed. Malden
(MA): Blackwell Publishers, 2007.; e o vol. III, sobre os problemas do capitalismo informacional, cf. ______. End
of Millennium. 2. ed. Malden (MA): Blackwell Publishers, 2006.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
272 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

“Sociedade Informacional”. O autor destaca a diferença entre as expressões “sociedade


da informação” e “sociedade informacional”, na medida em que a informação sempre
esteve relacionada ao desenvolvimento social de alguma forma; no entanto, a sociedade
hodierna tem por base a geração, o processamento e a transmissão da informação como
fontes da produtividade e de poder, haja vista às novas tecnologias. Em suma, o autor4
exemplifica que não se pode ignorar a distinção entre “indústria” e “industrial”, ou
seja, uma sociedade de indústria seria aquela que tem indústrias; ao passo que uma
“sociedade industrial” é caracterizada pelo papel da indústria em todos os setores da
sociedade, isto é, a principal fonte de produtividade e de poder econômico.
Para entender o papel desempenhado pela informação, importante destacar alguns
números: existem 3.934.647.828 usuários conectados à internet no mundo, sendo que o
Brasil ocupa o 4º lugar nesse ranking referente à quantidade de pessoas conectadas na
rede mundial de computadores. Sendo que o 1º lugar é ocupado pela China, com cerca
de 721.434.547 internautas; 2º lugar, Índia com 462.124.989; 3º lugar, Estados Unidos, com
286.942.362; e 4º lugar, Brasil, com 139.111.185.5 O Brasil ocupa uma posição de destaque
em números absolutos de usuários conectados à rede, por isso, é fundamental a análise
desta nova economia, considerando os interesses econômicos do país, que pode ainda
não ter uma lei específica sobre a proteção de dados pessoais.
Uma das perguntas é como tais números influenciam a economia neste contexto?
Conforme destacado, a “sociedade informacional” é assim adjetivada, pois o papel da
informação é fundamental para a criação e circulação de riqueza, podendo-se falar
em “economia informacional”, na qual a informação é utilizada como instrumento de
poder. Segundo Manuel Castells6 a nova economia tem um espaço determinado para
seu surgimento, os Estados Unidos, mais especificamente o Estado da Califórnia (onde a
primeira transmissão wireless de pacotes de dados entre computadores foi concretizada).
Ademais, tem um marco temporal, mais especificamente a década de 90, período em que
a World Wide Web foi amplamente difundida, conectando pessoas das mais longínquas
localidades de maneira rápida e barata, haja vista o padrão da “aparente gratuidade”,
com a facilitação das interfaces entre computador e ser humano.
Observe-se que, na gênese da World Wide Web, a “gratuidade” dos softwares dispo­
nibilizados foi o que impulsionou a disseminação da rede em escala global. Assim, Tim
Berners-Lee e Cailliau,7 físicos do CERN – Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire
ou European Council for Nuclear Research, desenvolveram um modelo de padronização
da www, e, em agosto de 1991, anunciaram a declaração de que este sistema estava
no domínio público, independente de royalties. Em 1993, estimava-se8 cerca de 1,3
milhão de usuários conectados nos Estados Unidos. Em 1995, o número aumentou

4
The rise of the network..., op. cit., p. 18.
5
Fonte: Internet Live Stats (www.InternetLiveStats.com). Pesquisa feita pela International Telecommunication
Union (ITU), United Nations Population Division, Internet & Mobile Association of India (IAMAI), World Bank. Nesta
pesquisa, considerou-se como usuário conectado à internet o indivíduo de qualquer idade que acessa a rede em
casa através de qualquer dispositivo. Disponível em: <http://www.internetlivestats.com/internet-users/>, último
acesso em: 2 jun. 2018.
6
The rise of the network society…, op. cit., p. 147-148.
7
Disponível em: <https://tenyears-www.web.cern.ch/tenyears-www/>, acesso em: 2 jun. 2018.
8
Fala-se em estimação ao invés de dados estatísticos porque os números não foram coletados conforme uma
metodologia adequada em razão do uso embrionário. Cf. MURRAY, Andrew. Information Technology Law: the law
and society. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 33.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
273

exponencialmente para 16 milhões de usuários conectados no mundo.9 E estes números


não param de aumentar. Em uma década, ou seja, em 2005, os usuários conectados à
internet chegaram à casa de 1 bilhão de pessoas. E 25 anos depois da disseminação
da rede mundial de computadores, em 2018, já ultrapassam 3 bilhões de indivíduos
conectados pelo mundo.
Tal lógica perdura na atual economia informacional, pois tal “aparente gratuidade”
tinha justamente a finalidade de facilitar e incentivar a utilização destes programas, o que
de fato ocorreu. Assim, hoje, muitos aplicativos oferecem suas vantagens “gratuitamente”
com o objetivo de conquistar cada vez mais usuários. Porém, aqui se aplica o dito “there
is no free lunch”, porque a informação é um valor em si mesmo nesta nova economia
informacional, por isso quanto mais informações pessoais os grandes provedores de
aplicativos têm, mais lucro e maior poder econômico eles terão.
Após tal diagnóstico, a busca desmedida e desenfreada pela coleta, pelo armaze­
namento e pelo processamento de informações muitas vezes ameaça direitos e garantias
fundamentais. Por isso, a ideia não é inviabilizar e dificultar o avanço econômico, mas
tão somente estabelecer limites tendo como objetivo a tutela da pessoa humana.
O artigo pretende responder à polêmica em torno do conceito da expressão
Big Data, geralmente, identificada como “Data Volume, Veocity and Variety” (3Vs). Em
linhas gerais, as tecnologias relacionadas a tal expressão demonstram que o volume
(1º “v”) da coleta e do armazenamento de informações é cada vez maior, sendo que o
processamento destas é cada vez mais veloz (2º “v”), resultando em informações precisas
e verídicas (3º “v”) sobre as pessoas. Portanto, cabe destacar os riscos decorrentes do
processamento deste grande volume de dados que acaba, por vezes, interferindo na
coleta e no tratamento de dados pessoais (“datafication”).10
Muitas situações revelam possíveis usos positivos dessas tecnologias. Por exemplo,
a descoberta dos efeitos colaterais do Vioxx, que só foi possível mediante a coleta de dados
pela Kaiser Permanente,11 que é uma empresa sediada na Califórnia, que, com base na
coleta de dados e processamento desses dados entre 1999 e 2003, comprovou a ligação
de 27 mil paradas cardíacas ao uso do Vioxx, resultando na retirada do medicamento do
mercado e na preservação da vida de milhares de usuários. Além deste exemplo, entre
2003 e 2008, a Google demonstrou a previsibilidade de possíveis epidemias, coletando 50
mil termos de busca mais usados pelos norte-americanos, e comparou com a lista do CDC
– Centers for Disease Control and Prevention. A partir disso foi desenvolvida uma fórmula
matemática capaz de diagnosticar em tempo real os locais em que a epidemia podia ser
constatada, o que antes demorava semanas aplicando os métodos tradicionais do CDC.
Essa ferramenta foi de grande valia para mitigar os efeitos da grave ameaça de epidemia
da gripe H1N1 em 2009, pois as localidades com maiores números de infectados eram
identificadas em tempo real, o que auxiliou na contenção da disseminação do vírus.12
Entretanto, estas mesmas tecnologias já foram utilizadas para rastrear o com­
portamento dos indivíduos e oferecer produtos e serviços personalizados, utilizando

9
Disponível em: <https://www.gfmag.com/global-data/non-economic-data/internet-users>, acesso em: 10 maio
2018.
10
MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; CUKIER, Kenneth. Big Data..., op. cit., p. 78.
11
TENE, Omer; POLONETSKY, Jules. Privacy in the age of big data: a time for big decisions. In: Stanford Law Review
Online, vol. 64, p. 63-69, 2 fev. 2012. p. 64.
12
MAYER-SCHÖNBERGER, Victor; CUKIER, Kenneth. Big Data..., op. cit., p. 02.
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274 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

os denominados cookies,13 entendidos como o registro de acessos e rastreamentos dos


usuários realizados tanto em seu computador pessoal quanto nos sites que eles navegam.
Às vezes, tal rastreamento, quando somente utilizado para otimizar a navegação do
usuário, como assim propõem diversos sites e aplicativos, não é tão perigoso. No entanto,
muitas vezes tal conduta é utilizada para “etiquetar” o indivíduo, criando um perfil
digital (online profile)14 que coloca em xeque os direitos à intimidade e à privacidade,
como no célebre caso Target.
O caso emblemático é da rede de lojas norte-americanas Target, que, em razão do
histórico de busca e navegação na internet por uma adolescente de Minnesota, passou
a enviar para a residência da adolescente cupons promocionais de artigos para bebês e
gestantes. O pai da adolescente, desconhecendo a gravidez da filha, ficou incomodado
com tal atitude da loja e foi até uma loja Target nos arredores de Mineápolis e pediu para
falar com o gerente. O pai, inconformado, disse que a filha recebeu os cupons de artigos
de gestantes e bebês pelo correio e que era apenas uma adolescente ainda no colégio; ao
final, o pai indagou se a loja Target estava estimulando a filha dele a engravidar. Alguns
dias depois, o pai ligou para o gerente se desculpando dizendo que aconteceram coisas
na casa dele que ele desconhecia e que, realmente, a filha adolescente estava grávida.15
Na era do Big Data, têm se adotado três medidas para a proteção dos dados
pessoais, quais sejam: 1) consentimento informado do indivíduo; 2) sistema opt out, ou
seja, deve-se viabilizar a exclusão de dados pessoais quando assim optar o seu titular; e
3) a anonimização dos dados, ou seja, utilizar configurações que impossibilitem associar
os dados a uma pessoa. Ao final, o artigo demonstrará se tais medidas são ou não
suficientes para a efetiva proteção dos dados pessoais e oferecerá possíveis sugestões
para o Projeto de Lei nº 5.276-A, em tramitação na Câmara dos Deputados, traçando
alguns parâmetros para que tal ferramenta seja utilizada e desenvolvida, respeitando
a dignidade da pessoa humana e os direitos de personalidade e destacando a proteção
dos dados pessoais.
A metodologia adotada está fundada nos métodos dedutivo, indutivo e compa­
rativo: a dedução consiste na análise geral sobre o fenômeno conhecido como Big Data,
destacando seus pontos positivos e negativos; a indução será utilizada na elaboração
das conclusões deste artigo; o método comparativo auxiliará no desenvolvimento da
pesquisa na medida em que se investiga o modelo europeu sobre proteção de dados
pessoais e insuficiências do sistema brasileiro.

2 Tecnologias Big Data: conceito e utilização


O primeiro grande desafio desse tema é estabelecer um conceito para a expressão
Big Data. Não há um conceito determinado, mas a ideia surge em razão do grande volume
de informação coletado, armazenado e processado. Para auxiliar tais práticas, surgem
algumas ferramentas tecnológicas a fim de viabilizar a coleta de um grande volume de
informação, de maneira cada vez mais veloz e cujos resultados obtidos sejam verídicos.

13
LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. New York: Basic Books, 2006. p. 47-48.
14
PARISIER, Eli. The Filter Bubble. Nova Iorque: Pinguin Books, 2011. p. 61-63.
15
Disponível em: <www.forbes.com/sites/kashmirhill/2012/02/16/how-target-figured-out-a-teen-girl-was-
pregnant-before-her-father-did/>, acesso em: 20 set. 2017.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
275

Não se sabe ao certo o autor dessa expressão, contudo geralmente ela é atribuída
Doug Laney em 2001,16 porém o autor restringia a análise aos 3 Vs (“Data Volume, Veocity
and Variety”). Dessa forma, a definição de Big Data proposta por Laney é: “Big data is
high volume, high velocity, and/or high variety information assets that require new
forms of processing to enable enhanced decision making, insight discovery and process
optimization”.
No entanto, atualmente, esta definição é criticada porque é por demasiado
restritiva. Portanto, Mark van Rijmenam17 acrescenta a Veracidade, Variabilidade,
Visualização e Valor (Veracity, Variability, Visualization and Value).
Constata-se a divergência na definição dessa expressão, às vezes utilizada em um
sentido mais restrito; por outras, mais amplo. Em todo caso, pode-se verificar que algo
comum nessas definições é o fato de se coletar uma grande quantidade de dados, com
a possibilidade de realizar um tratamento ou um processamento eficaz tendo em vista
os objetivos almejados, que podem ser desde um diagnóstico em tempo real de uma
epidemia à predição de uma gestação.
Nesse sentido, Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier18 ressalvam que
não há uma definição rigorosa de Big Data, mas a ideia surge do fato de que o volume
de informação é tamanho que um computador não tem capacidade de memória para
processar todos esses dados coletados. Dessa forma, os engenheiros tiveram que
desenvolver tecnologias para que os dados coletados em escala global pudessem ser
armazenados e processados. Os autores resumem:

One way to think about the issue today – and the way we do in the book – is this: big data
refers to things one can do at a large scale that cannot be done at a smaller one, to extract
new insights or create new forms of value, in ways that change markets, organizations,
the relationship between citizens and governments, and more.

Em suma, quando se fala em Big Data, refere-se ao tratamento em larga escala de


informações coletadas, para se atingir determinados objetivos. Esta grande quantidade
e variabilidade de dados exige a utilização de métodos de mineração de dados, que
relacionem dados comerciais e governamentais. Estes relacionamentos de dados
alimentam hoje desde mecanismos de prevenção à evasão fiscal até sugestões de produtos
a preços e condições competitivas, que podem ser adquiridos pelo comércio via web.
É inegável que exemplos como estes trazem benefícios à sociedade, no entanto, se não
tiver um limite para tanto, pode representar alguns malefícios, como a divulgação pública
pelo Ministério da Saúde, por meio do DataSUS, de dados de saúde, tais como internações
hospitalares, dados de mortalidade, entre outros e, também, dados processuais
disponibilizados via web por meio dos tribunais de justiça, federais e estaduais.

16
Application Delivery Strategies. In: Meta Goup, 06 de fevereiro de 2001. Disponível em: <http://blogs.gartner.
com/doug-laney/files/2012/01/ad949-3D-Data-Management-Controlling-Data-Volume-Velocity-and-Variety.
pdf>, acesso em: 12 out. 2015.
17
Why The 3V’s Are Not Sufficient To Describe Big Data. Disponível em: <https://datafloq.com/read/3vs-sufficient-
describe-big-data/166>, acesso em: 12 out. 2015.
18
Op. cit., p. 06.
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276 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3 Os perigos da datificação


A origem etimológica de “dado” é do latim, dar ou atribuir. Atualmente, pode-
se definir “dado” como a descrição de algo que pode ser armazenado, analisado e
reorganizado. Como alertam Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier,19 o elemento fulcral
do Big Data é a continuação da antiga busca pelo ser humano de medir, armazenar e
analisar o mundo. Assim, os autores descrevem a “datificação” como colocar em um
formato quantitativo para que se possa entabular e analisar.
Aliás, cabe ressaltar que a capacidade de armazenar informação é tratada
diferentemente nas diversas civilizações da Antiguidade. Na Mesopotâmia, por exemplo,
a mais antiga civilização conhecida, uma vez que são as fontes escritas mais remotas que
chegaram até os dias de hoje (do terceiro milênio antes até o primeiro milênio antes de
Cristo), estabeleceu-se uma tendência a se registrar diversas informações, desde que,
porém, tivessem utilidade prática (e.g. contratos).20 Em contraponto, a extremamente
desenvolvida civilização romana, posterior e com grandes legados para a humanidade,
pouco registrava suas informações, preferindo uma tradição oral.21
Além disso, foi a matemática que proporcionou um sentido para as informações
coletadas e armazenadas, ou seja, os dados podem ser analisados.
Contudo, deve-se distinguir entre “digitalização” e “datificação”. O primeiro
fenômeno é descrito com maestria por Nicholas Negroponte,22 na sua obra Being
Digital, que utilizou o termo “digital” para ressaltar as diferenças entre os átomos
(“materialização”) e os bits (meio alfanumérico abstrato que depende de uma máquina
para sua compreensão).
Um bom exemplo que esclarece tal distinção é a digitalização de livros pelo
Google, cujo projeto inicial era digitalizar os livros cedidos pelas editoras, ou os que
estivessem em domínio público, criando uma vasta biblioteca digital que pudesse ser
acessada em nível global. Porém, somente seres humanos poderiam ler o conteúdo, o
que não significaria um grande valor. A empresa queria mais, partiu para um projeto
seguinte, ou seja, utilizando um software de reconhecimento ótico de caracteres, uma
imagem digitalizada poderia ter suas letras reconhecidas, até mesmo palavras, frases e
parágrafos. O resultado foi a datificação das informações anteriormente digitalizadas.
Assim, não somente seres humanos poderiam acessar tais informações, mas também os
computadores poderiam processá-las, sendo viável sua análise a partir de algoritmos.
Em síntese, a datificação transforma o texto em indexável e, portanto, passível de análise.
Um uso desse sistema, por exemplo, permite identificar plágio nos textos. Esse exemplo
revela o fenômeno de transformar palavras em dados, passíveis de várias utilizações.
Tal lógica é replicada em diversas categorias de informações, tais como: dados
geográficos e de localização, dados de interação (os relacionamentos nas redes sociais,
experiências pessoais, sentimentos dos usuários), entre outros. Assim, é importante
destacar alguns usos destas ferramentas de datificação para depois destacar os possíveis
riscos à autodeterminação informacional, à intimidade e à vida privada.

19
Op. cit., p. 78.
20
Cf. Soden, Wolfram von, Einführung in die Altorientalistik. Darmstadt: 1985, e Edzard, Dietz-Otto, Sumerische
Rechtsurkunden des III. Jahrtausends aus der Zeit der III. Dynastie von Ur. München: 1968.
21
Cf. KUNKEL, Wolfgang; SCHERMAIER, Martin, Römische Rechtsgeschichte. Köln: 2001.
22
Being digital. New York: Vintage books, 1996. p. 11.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
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3.1 Criação de perfis (“online profile”)


A partir do histórico de navegação (“online tracking”), criam-se perfis de deter­
minada pessoa. Geralmente, tais práticas são realizadas sem o consentimento do titular
dos dados; tampouco com seu conhecimento, violando um dos pilares de qualquer
modelo de proteção de dados pessoais. Nesse sentido, o próprio Marco Civil da Internet,
Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, determina como um dos direitos e garantias dos
usuários da internet o “não fornecimento a terceiros de seus dados pessoais, inclusive
registros de conexão, e de acesso a aplicações de internet, salvo mediante consentimento
livre, expresso e informado ou nas hipóteses previstas em lei”.
Na Europa, recentemente, 25 de maio de 2018, entrou em vigor o Regulamento
Geral de Proteção de Dados Pessoais (General Data Protection Regulation – GDPR 2016/679),
identificando tal prática no Considerando 70,23 que garante o direito à informação sobre a
coleta de dados pessoais sem a obtenção prévia de seu consentimento (art. 14, alínea 2,
“g”),24 estabelecendo o princípio da transparência. E, no art. 22, garante-se uma proteção
específica contra tais práticas, qual seja, o titular dos dados pessoais tem direito de não
estar sujeito às decisões resultantes de processamento automatizado, no qual se inclui
o perfil digital.
O Regulamento Geral europeu traz a definição de perfil na alínea “4” do art. 4º:

profiling’ means any form of automated processing of personal data consisting of the
use of personal data to evaluate certain personal aspects relating to a natural person, in
particular to analyse or predict aspects concerning that natural person’s performance at
work, economic situation, health, personal preferences, interests, reliability, behaviour,
location or movements;

Entende-se por online tracking a coleta e o armazenamento de informações rela­


cionadas a um indivíduo que navega na internet por meio de ferramentas aplicadas
por um período de tempo a fim de obter informações (“datificar”) desse indivíduo.25
Ademais, um aspecto importante do rastreamento on-line diz respeito aos conflitos
de jurisdição e lei aplicável, na medida em que a coleta é feita sem limites geográficos,

23
“(70) Where personal data are processed for the purposes of direct marketing, the data subject should have the
right to object to such processing, including profiling to the extent that it is related to such direct marketing,
whether with regard to initial or further processing, at any time and free of charge. That right should be explicitly
brought to the attention of the data subject and presented clearly and separately from any other information”.
Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:32016R0679&from=EN>,
último acesso em: 2 jun. 2018.
24
“Article 14 - Information to be provided where personal data have not been obtained from the data subject […]
2. In addition to the information referred to in paragraph 1, the controller shall provide the data subject with
the following information necessary to ensure fair and transparent processing in respect of the data subject: […]
the existence of automated decision-making, including profiling, referred to in Article 22(1) and (4) and, at least
in those cases, meaningful information about the logic involved, as well as the significance and the envisaged
consequences of such processing for the data subject”. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/
EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:32016R0679&from=EN>, último acesso em: 2 jun. 2018.
25
SKOUMA, Georgia; LÉONARD, Laura. Online behavioral tracking: what may change after the legal reform on
personal data protection. In: GUTWIRTH, Serge; LEENES, Ronald; DE HERT, Paul (Ed.). Reforming European data
protection law. Springer, 2015, p. 35-60.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
278 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

pois a internet é world wide, colocando em xeque inclusive sistemas de sólida tradição
em proteção de dados pessoais, como o caso europeu, buscando estabelecer regras para
garantir o enforcement da lei.26

3.2 Mitigação da autodeterminação informacional


Diante do que foi descrito, fica nítido que o recurso de tecnologias Big Data pode
representar uma mitigação da autodeterminação informacional, na medida em que o
titular dos dados nem ao menos sabe que seus dados estão sendo coletados, armazenados
e processados.
Autodeterminação informacional significa assegurar ao titular dos dados pessoais
direitos o controle efetivo da coleta, do armazenamento e do processamento de suas
informações pessoais.27
Stefano Rodotà28 destaca que a ideia de privacy é uma metamorfose, em constante
evolução: 1ª fase – do direito to be let alone ao controle das próprias informações; 2ª fase
– do diritto alla riservatezza à autodeterminação informativa; 3ª fase – da privacy à não
discriminação; e 4ª fase – do segredo ao controle.
Em síntese, a autodeterminação informacional confere ao titular dos dados
pessoais pleno controle sobre quais informações podem ser coletadas, armazenadas e
processadas, bem como para qual finalidade e por quanto tempo.
Portanto, para que essa manifestação de vontade seja livre e informada, pressupõe-
se a eficácia do direito à informação ao titular dos dados pessoais. Por isso, o Marco Civil
da Internet adjetivou o consentimento no inc. IX do art. 7º, in verbis: “consentimento
expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais, que deverá
ocorrer de forma destacada das demais cláusulas contratuais”.
O problema é que geralmente os dados coletados e analisados a partir das
tecnologias Big Data não são informados aos titulares, que, portanto, raras vezes
consentem com tais práticas. Entretanto, em atenção ao modelo de proteção de dados
pessoais, deve-se pensar em maneiras para que seja respeitada a autodeterminação
informacional.
Tome-se por base o exemplo dos cookies, a União Europeia não proíbe, mas exige
que tal procedimento seja informado ao usuário que deve ter a possibilidade de con­
sentir ou não. Então, quando se ingressa em determinado site ou aplicativo, o usuário é
informado sobre o rastreamento do histórico de navegação, apontando a finalidade de
otimizar a navegação, viabilizando o consentimento do usuário. Algo semelhante deve
ser aplicado para as tecnologias Big Data.

26
ANTONIALLI, Dennys Marcelo. Watch your virtual steps: an empirical study of the use of online tracking
technologies in different regulatory regimes. In: Stanford Journal of Civil Rights & Civil Liberties, vol. III:2, p. 323-
368. p. 355.
27
NIGER, Sergio. Le nuove dimensioni dela privacy: dal diritto ala riservatezza ala protezione dei dati personali.
Napoli: CEDAM, 2006. p. 153.
28
La costruzione della sfera privata. In: Repertorio di fine secolo. Bari: Laterza, 1999. p. 209.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
279

3.3 Violação à intimidade e à vida privada


Outra questão importante é o impacto dessas tecnologias, que, por vezes, ameaçam
direitos e garantias fundamentais de proteção à intimidade e à vida privada. A segurança
das informações e a proteção à intimidade e à privacidade tornam-se cada vez mais
difíceis, haja vista a circulação em escala global dos dados pessoais, evidenciando dados
de saúde, de localização, uso de eletricidade, interação nas redes sociais, bem como
outras atividades on-line.
Geralmente, para minimizar esses malefícios, busca-se anonimizar os dados,
impossibilitando a identificação de seu titular. Todavia, é cediço que não há anonimização
absoluta, pois os processos de reidentificação são factíveis e muito eficientes.29

4 Deficiências e insuficiências dos sistemas de proteção de dados face


às tecnologias Big Data
Os sistemas de proteção de dados pessoais, sejam os de inspiração no modelo
europeu, sejam aqueles influenciados pelo modelo norte-americano, estabelecem
como premissas básicas: 1) consentimento informado, livre e expresso do indivíduo
(autodeterminação informacional); 2) sistema opt out, ou seja, deve-se viabilizar a exclusão
dos dados pessoais quando assim optar o seu titular; e 3) a anonimização dos dados, ou
seja, utilizar configurações que impossibilitem associar os dados a uma pessoa.
Quanto à primeira premissa, o titular dos dados pessoais deve ser informado de
maneira clara e transparente sobre a coleta, o armazenamento e o processamento dos
dados pessoais, tendo o direito de se opor a essas práticas ou concordar expressamente
com elas. Assim, a Diretiva 95/46/CE consagra o princípio da transparência para que
o indivíduo possa, de fato, saber sobre o manejo de seus dados e o conteúdo destes;
o princípio do consentimento, isto é, o indivíduo tem que consentir na coleta e no
tratamento de seus dados; o princípio da finalidade, em que se deve observar estritamente
a finalidade do armazenamento e utilização destes dados, entre outros. A regra foi
mantida no atual Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais, no art. 7º, que
determina que, quando a coleta, o armazenamento e o processamento de dados pessoais
forem feitos com base no consentimento, esse deve ser obtido de maneira expressa,
esclarecida e espontânea.
O Regulamento Geral europeu vai além, pois se reconhece que alguns dados
pessoais são coletados sem que o usuário tenha fornecido as informações ou delas
tenha conhecimento. Por isso, o art. 22 trata das hipóteses em que os dados pessoais são
coletados e processados por sistemas automatizados, garantindo a autodeterminação
informacional na alínea “c”, item 2 do art. 22 do Regulamento Geral europeu:

Article 22 – Automated individual decision-making, including profiling


1. The data subject shall have the right not to be subject to a decision based solely on
automated processing, including profiling, which produces legal effects concerning him
or her or similarly significantly affects him or her.

29
OHM, Paul. Broken Promises of Privacy: Responding to the Surprising Failure of Anonymization. UCLA Law
Review, Vol. 57, p. 1701, 2010; U of Colorado Law Legal Studies Research Paper No. 9-12, 2009. Available at SSRN:
<http://ssrn.com/abstract=1450006>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
280 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

2. Paragraph 1 shall not apply if the decision:


(a) is necessary for entering into, or performance of, a contract between the data subject
and a data controller;
(b) is authorized by Union or Member State law to which the controller is subject and which
also lays down suitable measures to safeguard the data subject’s rights and freedoms and
legitimate interests; or
(c) is based on the data subject’s explicit consent. (grifo nosso)

O Projeto de Lei nº 5.276-A, em tramitação na Câmara dos Deputados, não traz


uma regra específica para a efetividade do consentimento livre, expresso e informado
nas hipóteses de uso das tecnologias Big Data. Tampouco o Marco Civil da Internet
menciona a autodeterminação informacional nas hipóteses em que exista uma relação
contratual prévia entre as partes nos termos do inc. IX do art. 7º.
Quanto à segunda premissa, o titular dos dados pessoais tem o direito de, a
qualquer tempo, não concordar mais com a coleta, o armazenamento e o processamento
de suas informações (sistema opt out). Trata-se de uma manifestação do direito à oposição
na coleta, no armazenamento e no processamento dos dados pessoais.
O direito de retificação e de oposição, por sua vez, está relacionado à qualidade
dos dados, que devem ser fiéis à realidade.30 Em outras palavras, o titular dos dados
pessoais pode corrigir as suas informações, bem como atualizá-las.31 Nesse caso, deve-se
ponderar entre o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade, intimidade
e vida privada.
O direito à oposição é garantido nos diversos sistemas de proteção de dados
pessoais, por exemplo, o art. 20 dos princípios da APEC – Asia-Pacific Economic Cooperation
e o art. 14 da Diretiva 95/46/CE. No mesmo sentido, o atual regulamento europeu
consagra na seção 4, artigo 21, o direito de se opor à coleta, ao armazenamento e ao
processamento de seus dados pessoais, inclusive às ferramentas automatizadas:

Article 21- Right to object


1. The data subject shall have the right to object, on grounds relating to his or her particular
situation, at any time to processing of personal data concerning him or her which is based on
point (e) or (f) of Article 6(1), including profiling based on those provisions. The controller
shall no longer process the personal data unless the controller demonstrates compelling
legitimate grounds for the processing which override the interests, rights and freedoms of
the data subject or for the establishment, exercise or defence of legal claims.
2. Where personal data are processed for direct marketing purposes, the data subject shall
have the right to object at any time to processing of personal data concerning him or her
for such marketing, which includes profiling to the extent that it is related to such direct
marketing.
3. Where the data subject objects to processing for direct marketing purposes, the personal
data shall no longer be processed for such purposes.

30
SALOM, Javier Aparicio. Estudio sobre la Protección de Datos. 4. ed. Cizur Menor (Navarra): Editorial Aranzadi –
Thomson Reuters, 2013. p. 299.
31
FINOCCHIARO, Giusella. Privacy e protezione dei dati personali: disciplina e strumenti operativi. Bologna:
Zanichelli, 2012. p. 239.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
281

No Brasil, o Marco Civil da Internet menciona expressamente o direito à exclusão


dos dados pessoais, no inc. X do art. 7º: “X – exclusão definitiva dos dados pessoais que
tiver fornecido a determinada aplicação de internet, a seu requerimento, ao término
da relação entre as partes, ressalvadas as hipóteses de guarda obrigatória de registros
previstas nesta Lei”. Observe-se, contudo, que tal regra pressupõe um contrato entre
as partes, o que raramente acontece no processamento em grande escala relacionado
ao Big Data.
No projeto de lei brasileiro de proteção de dados, Projeto de Lei nº 5.276-A, o
interessado tem o direito de corrigir dados incompletos, incorretos ou desatualizados
(art. 18, inc. III); pode se opor ao tratamento ilícito (§1º do art. 18); ou, ainda, pode
dissociar, bloquear ou cancelar os dados pessoais (inc. IV do art. 18).
Quanto à terceira premissa, a anonimização dos dados, inicialmente cabe destacar
que dados pessoais são aqueles que podem identificar direta ou indiretamente uma
pessoa. Nesse, sentido, o Regulamento europeu traz uma definição de dados pessoais
no art. 4º, alínea 1: “(1) ‘personal data’ means any information relating to an identified
or identifiable natural person (‘data subject’); an identifiable natural person is one who
can be identified, directly or indirectly, in particular by reference to an identifier such
as a name, an identification number, location data, an online identifier or to one or more
factors specific to the physical, physiological, genetic, mental, economic, cultural or social
identity of that natural person”.
O Projeto de Lei nº 5.276-A, em tramitação na Câmara dos Deputados, traz, no
art. 5º, inc. I, um conceito mais tímido de dados pessoais, qual seja: “dado relacionado
à pessoa natural identificada ou identificável, inclusive números identificativos, dados
locacionais ou identificadores eletrônicos quando estes estiverem relacionados a uma
pessoa”.
Assim, chegou-se a cogitar que a anonimização dos dados pessoais seria uma
maneira de proteção do titular dos dados. Entretanto, é cediço que a anonimização de
dados na economia informacional é uma falácia, já que é possível, através de associações
e tratamento de dados,32 partir de um dado anônimo e chegar a informações pessoais
que revelem opção sexual, filiação partidária, convicções religiosas e etc.
Por isso, Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier33 concluem que o fenômeno
Big Data permite mais e mais vigilância nas vidas dos cidadãos e, ao mesmo tempo,
torna obsoleta a tradicional tutela da privacidade. Além disso, pessoas são rotuladas e
penalizadas por isso, ao invés de serem ajudadas por tal ferramenta.

5 Conclusões
Traçando alguns parâmetros para que tal ferramenta seja utilizada e desenvolvida,
respeitando a dignidade da pessoa humana, os direitos de personalidade destacando a
proteção dos dados pessoais.

32
OHM, Paul. Op. cit., p. 1.723.
33
Big data..., op. cit., p. 170.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
282 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ponderaram Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier34 que esta ferramenta


deve ser utilizada com um “generoso grau de humildade e humanidade” (“It also
suggests that we must use this tool with a generous degree of humility ... and humanity”).

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34
Big data..., op. cit., p. 170; 197.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
283

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

HIRATA, Alessandro; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A efetiva proteção dos dados pessoais face às
tecnologias denominadas Big Data. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 271-283. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO
MARCIANO EM TERRAS BRASILIS

CLÁUDIA FRANCO CORRÊA

CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA

1 Introdução
A tensão entre os detentores de capital e os carentes de recursos, em outros termos,
de credores e devedores, pode ser posicionada desde, pelo menos, a revolução burguesa.
No Brasil, desde o Código Civil de 1916, de influência nitidamente burguesa e liberal, o
adimplemento das obrigações sempre foi disciplinado na legislação como fato jurídico de
interesse social. Isto porque para fins de preservação do instituto do crédito, imperioso
se apresenta o adimplemento das obrigações, elemento fundamental para que as demais
pessoas possam a ele ter acesso, inserindo-se, cada um por vez, à posição de devedor.
Com o advento do incremento tecnológico, da apropriação da noção de mercado e de
globalização, assim como com o advento da “necessidade” de consumo, o crédito se
tornou peça fundamental para o sustento deste mercado. Não obstante, fatores diversos,
cujas análises extrapolam os limites deste trabalho, acabaram por propiciar uma ruptura
nas bases aceitáveis de inadimplemento, ou seja, a quantidade de devedores que não
conseguiu adimplir os financiamentos obtidos para aquisição dos bens de consumo
aumentou significativamente, colocando em perigo a própria estabilidade do crédito.
Dentre os financiamentos mais inadimplidos se encontra o financiamento imo­
biliário, panorama notório e que se pode visualizar em países como Estados Unidos,
Portugal, Espanha, entre outros, conforme amplamente noticiado. No Brasil, o sonho da
casa própria, bem elevado pela Constituição Federal de 1988 como direito socialmente
reconhecido pelo artigo 6º (na redação dada pela Emenda Constitucional nº 90/2015),
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
286 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

somado aos incentivos governamentais para a sua concretização, fez aumentar a oferta
de imóveis e de financiamentos para a sua aquisição. Com o intuito de fomentar o
mercado imobiliário e o seu financiamento, a figura da alienação fiduciária em garantia
veio a ser introduzida em substituição ao tradicional sistema de hipotecas. No entanto,
apesar de diversas alterações legislativas para fomentar o crédito imobiliário, certo
é que a demora na recuperação dos ativos, nas hipóteses cada vez mais frequentes
de inadimplemento por parte do mutuário, se torna um empecilho para o mercado
financeiro. Com efeito, diversos fatores socioeconômicos conduziram a um volume
considerável de inadimplentes também aqui na sociedade brasileira. Como dito, não
se trata de um problema exclusivamente brasileiro, mas mundial, para o qual se busca
uma solução, principalmente se considerarmos a falta de liquidez do mercado global.
Diante do impasse, para fins de preservação do sistema financeiro, eis que diversos
países sofreram com a crise mundial, algumas modificações foram introduzidas na
legislação fiduciária para dar maior celeridade à recuperação do crédito. Este é o caso
de Portugal, que, com o intuito de permitir maior celeridade na recuperação de capital
às empresas, extraiu de seu sistema normativo e jurídico a figura do pacto marciano.
No Brasil, igualmente, inserido em crise financeira e com o intuito de maior celeridade
às soluções jurídicas, vem o instituto até então adormecido ganhando corpo no cenário
jurídico.
O enfoque metodológico principal deste trabalho traduz-se em um estudo
descritivo e exploratório, que será desenvolvido com base na pesquisa bibliográfica e
jurisprudencial e utilizará o método indutivo. Não sendo pretensão do presente trabalho
expor uma teoria conclusiva nem esgotar o assunto, mas contribuir com reflexões quanto
à efetividade do tema proposto.

2 A alienação fiduciária em garantia imobiliária: considerações iniciais


No intuito de realizar a compra de bem imóvel sem que se tenha o capital integral
para a sua aquisição, busca-se a complementação do numerário através de captação de
recursos no mercado financeiro, isto é, por meio de financiamento, geralmente, obtido
de instituições financeiras. Nesse momento, três negócios jurídicos são realizados. O pri­
meiro, o negócio de compra e venda entre comprador e vendedor do bem; o segundo, o
mútuo entre comprador e a instituição financeira; o terceiro, entre estas mesmas partes,
consiste no negócio de alienação ou cessão fiduciária. Apesar de normalmente serem
realizados simultaneamente, Melhim Namem Chalub recorda que nada impede que
sejam contratados “em momento posterior à celebração do contrato principal, que é o
negócio pelo qual terão sido constituídas as obrigações a serem garantidas pela alienação
fiduciária”.1
O artigo 22 da Lei nº 9.514/97 apresenta o conceito de alienação fiduciária em
garantia de bem imóvel como “o negócio jurídico pelo qual o devedor ou fiduciante, com
o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade
resolúvel de coisa imóvel”. A alienação ou cessão fiduciária – modalidade de negócio
fiduciário – é convenção realizada entre o devedor (fiduciante) e o credor (fiduciário).

1
CHALUB, Melhim Nanem. Alienação Fiduciária: Negócio fiduciário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 138.
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
287

Como consequência da avença, surge a propriedade fiduciária, um direito real de


garantia que produz efeitos erga omnes, apartando-se do campo meramente negocial
e inserindo-se no âmbito do direito real. Com efeito, nunca é demais recordar que a
constituição da propriedade fiduciária sobre o bem exsurge do registro no Registro de
Imóvel competente. O contrato firmado entre o fiduciante e o fiduciário será o título
que, uma vez registrado, gerará a propriedade fiduciária.
Ocorrendo o adimplemento total do mútuo pelo devedor, o fiduciante, a pro­
priedade do bem, no dizer de Flávio Tartuce, lhe “retornará de forma automática,
independentemente de qualquer interpelação”.2
No caso de inadimplemento, o que nos interessa mais diretamente, a Lei
nº 9.514/97 ofereceu ao credor fiduciário a possibilidade de notificar o devedor fiduciante
para possibilitar-lhe a purgação da mora pela via extrajudicial. Não ocorrendo esta, a
referida legislação permite que o credor “consolide a propriedade” do imóvel em seu
nome após o pagamento dos tributos inerentes à transferência da propriedade. Todavia,
impõe a Lei nº 9.514/97, no seu artigo 27, que o credor, em trinta dias contados da
averbação da consolidação da propriedade em seu nome, efetue o leilão extrajudicial
do bem. Somente após a realização do segundo leilão e, não havendo lance igual ou
su­perior ao valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais
inclusive tributos e das contribuições condominiais, o artigo 27, §5º, sugere a extinção
da dívida e a entrega ao credor de carta de quitação, silenciando-se sobre a devolução
ao devedor fiduciante de eventual diferença entre o valor do bem e o da dívida. Apesar
de ser de difícil verificação, pode o devedor ter diferença a receber principalmente caso
se considere a valorização do imóvel no mercado imobiliário.
Apesar da Lei nº 9.514/97 ter sido introduzida com o intuito de tornar mais atra­
tiva às instituições financeiras o financiamento imobiliário, certo é que o sistema ainda
enseja demora na solução da questão, seja para o credor, seja para o devedor. Ao credor
fiduciário se exige levar o imóvel para dois leilões a fim de, ao final, caso inexista lance
capaz de englobar as despesas na sua totalidade, poder solucionar a questão. O devedor
que não possua condições financeiras para a purga da mora deverá aguardar a ocorrência
dos dois leiloes para receber a quitação da dívida e, mesmo neste caso, eventualmente
poderá não receber a diferença entre o seu débito e o valor atualizado do imóvel.
Diante da necessidade de solução mais célere para ambas as partes negociais,
o direito lusitano vem, paulatinamente, (re)introduzindo no mundo jurídico o pacto
marciano, renascimento este que vem reverberando no âmbito jurídico brasileiro, tanto
em sede de doutrina como em seletos julgados pelos tribunais brasileiros.

3  Pacto marciano: do reconhecimento expresso no Direito lusitano ao


debate na doutrina e jurisprudência brasileira
3.1 Pacto marciano e pacto comissório: delineando as diferenças
Entende-se por pacto marciano o ajuste estabelecido através de cláusula contratual
permitindo que o credor adquira o bem dado em garantia impondo, no entanto, que

2
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4: Direito das coisas. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 629.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
288 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

a sua aquisição ocorra pelo valor de mercado. Exige-se, pois, que se perpetre uma
avaliação por terceira pessoa do valor de mercado do bem dado em garantia, assim como
a devolução pelo credor ao devedor de eventual diferença entre o valor da avaliação e
o crédito a ser recebido.
No dizer de Flávia Daniela Vaz Teixeira, ao dissertar sobre o penhor no sistema
português, o pacto marciano consiste na convenção através da qual “em caso de
incumprimento do devedor, a propriedade do bem empenhado se transmite para o
credor, ficando este, no entanto, obrigado a restituir ao devedor o valor correspondente
à diferença entre o valor do bem empenhado e do crédito garantido”.3
Percebe-se a presença de alguns requisitos para o seu reconhecimento: a) a
convenção entre as partes; b) avaliação do bem através de um terceiro; c) devolução pelo
credor ao devedor de eventual diferença entre o valor da alienação e o valor do crédito.
Imperioso que as partes estabeleçam, no momento da celebração do negócio
que institua a garantia, a possibilidade de aquisição do bem ofertado pelo credor.
Inadmissível seria a imposição de uma das partes a outra deste ajuste. A cláusula
deve, pois, ser originada na vontade das partes cuja autonomia deve ser respeitada.
Inadimplido o contrato, o bem ofertado em garantia deve ser avaliado por terceira pessoa
e, em seguida, efetuado o pagamento pelo credor ao devedor da eventual diferença após
o débito do quantitativo do crédito.
O pacto marciano possui certa proximidade com o pacto comissório, o que pode
trazer certa complexidade interpretativa, como se verá a seguir.
O Código Civil, Lei nº 10.406/2002, através do artigo 1.428, veda a estipulação do
instituto jurídico denominado pacto comissório4 aos contratos de penhor, hipoteca e
anticrese, ao dizer no artigo 1.428: “É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício,
anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no
vencimento”. Constitui, dessa maneira, uma nulidade textual prevista expressamente
em lei, retirando a eficácia da cláusula comissória, seja ela estabelecida no próprio
pacto ou em documento apartado, sem, contudo, eivar o contrato todo de nulidade,
preservando-o (MELO, 2015, p. 445).
Entendendo-se, desta maneira, como a vedação da realização de negócio jurídico
que autorize o credor a apropriar-se da coisa dada em garantia, em caso de inadimplência
do devedor, sem antes proceder à execução judicial do débito garantido.
As ideias que justificam a proibição da inserção da cláusula comissória são várias,
contudo, podemos afirmar que, no geral, a ideia predominante é de que a proibição se
baseia na proteção ao devedor em face de eventuais extorsões por parte do credor, o
que Orlando Gomes (2000, p. 92) considera ao dizer que:

A ideia dominante entre nós é a de que a proibição do pacto comissório é justificada


pela necessidade de proteger o devedor face a eventuais extorsões por parte do credor,
identificando-se com a ratio do art. 1146 do CC português que une a usura, bem como com
o pensamento subjacente à condenação dos negócios usuários (art. 282).

3
TEIXEIRA, Flávia Daniela Vaz. Penhor de direitos em garantia de créditos bancários. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Universidade do Minho, 2012. p. 19. Disponível em: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/
bitstream/1822/22981/1/Fl%C3%A1via%20Daniela%20Vaz%20Teixeira.pdf>. Acesso em: 30 maio 2018.
4
Flavio Tartuce prefere utilizar o termo pacto comissório real com a finalidade de diferenciação do pacto
comissório contratual, que se consolida como uma cláusula resolutiva expressa se efetivando como um pacto
adjeto (2017, p. 578).
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
289

Clóvis Beviláqua afirma que a proibição está baseada em condutos morais, uma
vez que “a proteção do fraco em face da exploração gananciosa do argentário, que usa
desse meio para extorquir do devedor por preço irrisório, o bem que este lhe dá em
garantia do pagamento” (1956, p. 36).
Para Melo (2015, p. 446), a proibição se justifica tendo em vista que, caso a cláusula
produzisse efeito, estaria o ordenamento jurídico ratificando possíveis situações concretas
de enriquecimento sem causa, colocando o devedor à mercê de exploração usuária,
como afirma Pontes de Miranda (1971, vol. 20, p. 30). Tais concepções estão associadas
à lógica do valor do bem superar o valor da dívida, assumindo, portanto, o credor, valor
muito maior do que a dívida, locupletando-se, por assim dizer, às expensas do devedor.
Por outro lado, devemos destacar que o credor também é tutelado com a proibição
do pacto comissório. Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes
afirmam que a proibição da cláusula comissória aduz, sobremaneira, a proteção dos
credores no concurso creditório:

Registrada a crítica, a vedação ao pacto comissório tem ainda outra importante função:
assegurar, como já se adiantou, a proteção da par conditio creditorum, isto é, preservar
o princípio segundo o qual, no rateio entre credores, todos eles devem ser tratados de
maneira igual, não podendo o devedor privilegiar qualquer um deles em detrimento dos
demais. A vedação ao pacto comissório tutela tal princípio porque circunscreve o montante
do patrimônio do devedor sujeito ao privilégio creditório, em razão da garantia real, ao
efetivo quantum da dívida, permitindo, pois, que qualquer excedente apurado após a
alienação em juízo (ou fora dele) retorne ao patrimônio do devedor, em benefício dos
demais credores (2016, p. 15).

Nesta ordem, admitem as autoras que a preservação da par conditio creditorum5


constitui fundamento legítimo a justificar a proibição, apesar da sua importância relativa
em face das diversas hipóteses em que, no Direito brasileiro, se admite o tratamento
desigual entre os credores (2016, p. 15); seria, por conseguinte, uma fundamentação
subsidiária àquela que se revela essencial, que é a proteção ao devedor por sua posição
na relação jurídica, na qualidade de sujeito passivo e, portanto, exposto a uma possível
coação por parte do sujeito ativo.
Percebe-se, assim, que, em todo esse contexto proibitivo, há uma razão ética que
proíbe o pacto comissório desde sua origem,6 pois, em virtude de sua posição fragilizada
na relação jurídica em detrimento do credor, aceita a inserção da cláusula em virtude da
qual se permite ao credor apropriar-se diretamente da coisa dada em garantia, perante
o descumprimento da obrigação assumida, sem qualquer processamento judicial ou
extrajudicial.
Luis Gustavo Haddad (2013) pondera, em sua tese de doutoramento, ao explicitar
em detalhes a proibição do pacto comissório no Brasil, que exploração ou opressão do

5
Significa o tratamento igualitário em relação a todos os credores de mesma categoria.
6
A lex comissoria foi proibida pelo Imperador Constantino, mediante um édito datado do ano 320 d.C. Tal édito
baseava-se, fundamentalmente, no fato de que através do pacto comissório ocultavam-se negócios usurários,
uma vez que o valor da coisa era, em regra, muito superior ao valor do crédito garantido. Na realidade, já naquele
tempo, a utilização da cláusula comissória era uma cláusula de opressão, uma vez que os credores serviam-se
do pacto comissório para se apropriarem dos bens dados em garantia a um preço bem inferior ao preço efetivo,
consolidando a figura do enriquecimento indevido, às custas da fragilidade do devedor.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
290 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

economicamente fraco (em momento propício, como o em que se acha necessitado de


contratar) proíbe a cláusula que autoriza o credor pignoratício, hipotecário ou anticrético
a ficar com o objeto da garantia se a dívida não for paga no vencimento.
Por fim, ressaltamos que o artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, ao assegurar
que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal,
embasa substancialmente a vedação de tal pacto no contexto jurídico brasileiro, uma
vez que, para que o credor tenha sua pretensão satisfeita, deverá, portanto, executar
a dívida e, após os trâmites legais adjetivos, receber o que lhe cabe em relação ao seu
crédito, devolvendo ao devedor, caso ocorra, o que sobejar.
Como se verificou, os institutos do pacto marciano e pacto comissório possuem
similitudes, contudo, divergem em pontos precisos. O pacto marciano ou cláusula
marciana permite ao credor tornar-se proprietário pleno da coisa dada em garantia em
razão do não pagamento pelo devedor, assim como o pacto comissório. Entretanto, o
credor obriga-se a entregar ao devedor a diferença entre o valor da dívida e o justo valor
da coisa, aferido por uma terceira pessoa, estranha à relação contratual. Portanto, há uma
figura impessoal, um insuspeito avaliador, de fora da relação contratual, que avaliará
o bem dado em garantia em termos mercadológicos. Precedida a aquisição por parte
do credor, obriga-se este a entregar ao devedor o que sobra do cálculo entre o valor da
dívida e o valor de mercado da coisa, buscando promover a igualdade e o equilíbrio
no contrato de mútuo com garantia real. Em síntese apertada seria uma modalidade
de excussão direta.

3.2 O pacto marciano em terras lusitanas


Diante da necessidade verificada pelo governo português para revitalizar a
economia, elaboraram-se estudos visando à concepção de medidas de apoio à recapi­
talização do mercado e consequente oferta de empregos. A partir destes estudos, foram
implementadas medidas interventivas por parte do Estado português com o escopo
de ensejar uma rápida capitalização das empresas. Como uma das medidas a permitir
mais fluidez na recuperação de capitais, foi editado o Decreto-Lei nº 75/2017, através
do qual se buscou regulamentar o instituto do pacto marciano para os contratos de
penhor mercantil em que o prestador da garantia fosse comerciante, denominando-o:
“Apropriação do bem empenhado no penhor mercantil”.
De acordo com as notas explicativas do referido Decreto, justificava-se juridi­
camente a viabilidade de regulamentação desta modalidade negocial por duas razões:
a) o Código Civil português reconhecia o direito do credor em adjudicar o bem que lhe
tivesse sido dado em garantia; b) a larga maioria da doutrina portuguesa reconhecia a
validade do chamado “pacto marciano”.
No que concerne à primeira justificativa apresentada, percebe-se que, com efeito,
o artigo 675 do Código Civil Português, com a alteração dada pelo DL nº 38/2003,
ao disciplinar acerca da “execução e penhor”, dispõe que “É lícito aos interessados
convencionar que a coisa empenhada seja adjudicada ao credor pelo valor que o Tribunal
fixar”. Estabelece ainda que “vencida a obrigação, adquire o credor o direito de se
pagar pelo produto da venda executiva da coisa empenhada, podendo a venda ser feita
extrajudicialmente se as partes assim o tiverem convencionado”.
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
291

Em dissertação sobre o penhor no Direito português, Flávia Daniela Vaz Teixeira


defende a validade do “pacto marciano” naquele ordenamento jurídico. Segundo a
autora, merece realce “a questão da admissibilidade deste pacto marciano, pois, se é
consensual a proibição legal ao pacto comissório, o mesmo não se poderá dizer quanto
ao pacto marciano”.7 Acrescenta, ainda, a autora que no Direito português tal instituto
já se encontrava estabelecido em tal ordenamento desde o advento do DL nº 105/2004,
que, em seu artigo 11, apesar de nomear o instituto de “pacto comissório”, em verdade
disciplinava o instituto do “pacto marciano”, posto que previa a obrigatoriedade de o
credor devolver ao devedor a diferença entre o valor do objeto da garantia e o montante
das obrigações financeiras garantidas.
O Decreto-Lei nº 105/2004 dispõe em seu artigo 11:

Artigo 11º
Pacto comissório
1 - No penhor financeiro, o beneficiário da garantia pode proceder à sua execução, fazendo
seus os instrumentos financeiros dados em garantia:
a) Se tal tiver sido convencionado pelas partes;
b) Se houver acordo das partes relativamente à avaliação dos instrumentos financeiros.
2 - O beneficiário da garantia fica obrigado a restituir ao prestador o montante
correspondente à diferença entre o valor do objecto da garantia e o montante das obrigações
financeiras garantidas.

Partindo destes dois fundamentos, o decreto mencionado estabeleceu um con­


junto mínimo de regramentos para concretizar “tal faculdade” no que concerne às
garantias fornecidas em contratos de penhor mercantil em que o prestador da garantia
seja comerciante.
Exigiu o decreto que a avaliação do bem dado em garantia ocorra após o ven­
cimento da obrigação respeitando a forma avaliativa descrita no contrato. Impôs, ainda,
que o contrato de penhor tenha forma escrita e, desde que sobre a coisa dada em garantia,
não incida penhor de grau superior. Impõe o decreto, por óbvio, a devolução da diferença
entre o valor da coisa ou do direito empenhado e o montante da obrigação garantida.
Em que pese ter o Estado português alardeado a aceitação da doutrina acerca da
legalidade do pacto marciano, este vinha sendo questionado, mas com a aprovação do
mencionado Decreto-Lei nº 75/20178 recepcionou textualmente o pacto marciano em
terras lusitanas.
Impõe-se ressaltar que a recepção da inclusão do pacto marciano em Portugal
não foi sem críticas. Em editorial de um importante jornal de negócios, logo após a
aprovação do decreto-lei, vinha a seguinte pergunta: “O que é o Pacto Marciano, que

7
TEIXEIRA, Flávia Daniela Vaz. Idem. p. 21.
8
Artigo 2º Apropriação do bem empenhado no penhor mercantil 1 - É lícito às partes convencionar, no contrato de
penhor para garantia de obrigação comercial em que o prestador da garantia seja comerciante, que o credor
pignoratício, em caso de incumprimento, se aproprie da coisa ou do direito empenhado, pelo valor que resulte de
avaliação realizada após o vencimento da obrigação, devendo o modo e os critérios de avaliação ser estabelecidos
no contrato.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
292 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

vai dificultar a vida aos devedores?”9 sugerindo resistência a esta nova modalidade de
extinção das obrigações.

3.3 Pacto marciano em Terra Brasilis: ecoando os ventos lusitanos


Ressoando as alterações no Direito português, a questão passou a ser debatida
no Brasil. Na VII Jornada de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal,
em setembro de 2015, foi proposta a redação de um enunciado – considerado como um
parâmetro doutrinário para a interpretação do Código Civil – dispondo que a vedação
ao pacto comissório não impediria a estipulação do pacto marciano. Tal proposição
representa simbolicamente a expressão que o assunto tem gerado em torno do referido
pacto. A despeito de sua longeva existência, mais recentemente no Brasil, sua aplicação
tem sido debatida. As discussões estão voltadas no sentido de se estabelecer até que ponto
há licitude em sua previsão, primordialmente se sua aceitação em nosso ordenamento
jurídico não seria uma forma oblíqua de aceitação do pacto comissório, este sim proibido
textualmente em lei pátria.
Neste aspecto, Flávio Tartuce expressa sua discordância quanto a uma possível
aplicação da cláusula marciana em solo brasileiro por considerar “que o pacto marciano
esbarra nas outras razões para vedação do pacto comissório real, quais sejam a parte
mais fraca da relação jurídica e a exigência do devido processo legal para execução
da garantia”.10 Contudo, a posição do referido autor não é majoritária, posto que se
posicionam favoráveis à licitude, no Direito brasileiro, José Carlos Moreira Alves, Carlos
Alberto Dabus Maluf, Marcelo Chiavassa de Mello Paula Lima, Gisela Sampaio da Cruz
Guedes e Aline de Miranda Valverde Terra.
Verifica-se uma tendência robusta de aplicabilidade do pacto marciano no
Brasil. Consideráveis opiniões favoráveis a sua validade e licitude. Resumem bem tal
entendimento os pensamentos de Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio
da Cruz Guedes, que ora se reproduzem:

No Direito das Garantias, a vedação ao pacto comissório é, com efeito, o ponto de partida
sobre o qual deve ser construída a disciplina do pacto marciano, que não só deve ser
considerado válido e eficaz, como deve mesmo ter o seu uso estimulado. Afinal, se, de
um lado, constitui instrumento eficiente e justo de resguardar os interesses do credor sem
prejudicar o devedor e os credores quirografários, do outro, facilita a obtenção do crédito,
trazendo, assim, benefícios inegáveis também para o devedor, sem colidir com a essência
da garantia, nem com a sua função. Cuida-se, em verdade, de mecanismo de inegável
utilidade social, lícito e merecedor de tutela, que se adéqua às necessidades do mercado
e, sobretudo, à realidade brasileira (2107, p. 74).

Justifica-se a sua possível aceitação na celeridade de cobrança por parte dos


credores dos seus créditos em caso de inadimplemento por parte dos devedores. Seria
através do recurso a esta figura jurídica que o credor, no momento em que celebrasse

9
Disponível em: <https://www.jornaldenegocios.pt/negocios-iniciativas/negocios-num-minuto/detalhe/o-que-e-
o-pacto-marciano-que-vai-dificultar-a-vida-aos-devedores>.
10
TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 852.
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
293

o contrato, pactuaria com o devedor que o crédito concedido seria garantido por
determinados bens, ficando ainda acordado que, em caso de descumprimento, tais bens
se transfeririam automaticamente para o patrimônio do credor, sem que este tivesse de
esperar pela sua execução e venda em hasta pública, ficando apenas obrigado a restituir,
se fosse o caso, o montante da diferença da dívida e o valor efetivo do bem dado em
garantia, como já explicado.
Com efeito o assunto não é novo, sua origem remonta ao Direito romano defendido
pelo jurisconsulto romano Marciano e confirmado em rescrito dos imperadores Severo
e Antonino; apesar de sua distante origem, sua aplicação tem suscitado consistentes
debates em terras brasileiras, de maneira especial, nos tempos atuais, quando o mercado
de sistema creditórios, implementados pela alienação fiduciária, tem atravessado forte
onda de inadimplemento.
A jurisprudência brasileira ainda não teve a oportunidade de examinar essa
questão com a devida atenção. O que se tem é um entendimento firmado no Tribunal
de Justiça de São Paulo que reconheceu a validade e licitude do pacto marciano com
fundamento na ideia de José Carlos Moreira Alves. Aliás, o eminente jurista, já na década
de 70, ao tratar da alienação fiduciária de bens móveis, sustentava a possibilidade de
figurar no contrato o pacto marciano:

Não é ilícito, porém, o denominado pacto Marciano (por ser defendido pelo jurisconsulto
romano Marciano e confirmado em rescrito pelos imperadores Severo e Antonio). Por esse
pacto, se o débito não for pago, poderá passar à propriedade plena do credor pelo seu
justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiro (MOREIRA
ALVES, 1987, p. 107).

Na realidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo por duas vezes tratou sobre o
tema, em 2008 e 2009, respectivamente. Em 2008, o Tribunal de Justiça paulista admitiu
expressamente a inserção de pacto marciano em contrato de alienação fiduciária em
garantia, como se compreende na leitura de parte da decisão:

[...] Se, porém, no contrato de alienação fiduciária em garantia, as partes tiverem estipulado
um pacto Marciano (grifo próprio) – que, como acentuado na Primeira Parte, Cap. 3, nº 1,
é lícito –, não sol vida a dívida em seu vencimento, pode o credor tornar-se proprietário
pleno dela, pagando ao alienante o seu justo valor, que, ou já foi estimado por terceiro
antes de vencido o débito, ou o será posteriormente ao não pagamento. Outorgando o
pacto Marciano ao credor uma faculdade, não está este adstrito a tornar-se proprietário
pleno da coisa pelo valor estimado. Se quiser, poderá renunciá-la, não perdendo, por isso,
a faculdade de vender a coisa, judicial ou extrajudicialmente, a terceiro, como lhe permite
a qualidade de proprietário fiduciário. Poderá ocorrer, entretanto, que o credor, no contrato de
alienação fiduciária em garantia, ao invés de se haver reservado a faculdade de se tornar proprietário
pleno da coisa pelo justo valor, a isso se tenha obrigado (estipulação que igualmente é lícita)
(grifo próprio). Nessa hipótese, se ele não cumprir a obrigação e vender a coisa a terceiro,
valendo-se da faculdade que tem como proprietário fiduciário, não poderá o alienante
impedir essa venda. Mas, se o preço nela alcançado for inferior ao estimado pelo terceiro,
responderá o credor, em face do alienante, pela diferença, a título de perdas e danos pelo
não cumprimento da obrigação decorrente do pacto estipulado entre eles.11

11
TJSP, AC com Revisão 001.12.075800-2, 36ª CDP, Rel. Des. Romeu Ricupero, j. 31.1.2008.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
294 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Em 2009, o Tribunal de São Paulo manteve o entendimento sobre a cláusula


marciana, ratificando a compreensão quanto à legalidade de sua inserção nos contratos.
Assim, veja-se:

[...] O pacto comissório vedado pela ordem jurídica incide para coibir o abuso que se comete
contra o devedor fragilizado pela dominação de seu credor e que, por essa superioridade,
se apropria dos bens oferecidos em garantia do mútuo, caracterizando uma usurpação e
que ganha status de ilegalidade pela completa ausência de correspondência entre o valor
do bem e o valor da dívida. É importante que se conste não ser ilegal o que se chama de
pacto Marciano, valendo esclarecer o seu conteúdo nas palavras do Ministro JOSÉ CARLOS
MOREIRA ALVES (Da alienação fiduciária em garantia, Saraiva, 1973, p. 127): Não é ilícito,
porém, o denominado pacto Marciano (por ser defendido pelo jurisconsulto romano
Marciano e confirmado em rescrito dos imperadores Severo e Antonino). Por esse pacto,
se o débito não for pago, a coisa poderá passar à propriedade plena do credor pelo seu
justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiros.12

O debate continua acirrado entre os intérpretes do Direito Civil brasileiro. Na


VIII Jornada de Direito Civil, temática envolvendo o Direito das Coisas, foi aprovado
o seguinte enunciado:

Não afronta o art. 1.428, do Código Civil, em relações paritárias, o pacto marciano, cláusula
contratual que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia
mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia
que excede o da dívida).

A ratio interpretativa, percebe-se, é a valorização da autonomia da vontade quando


as partes se apresentem com equilíbrio de forças, estando aptas a emitirem manifestação
de vontade estabelecendo o que melhor apresenta para seus interesses.

3.3.1 O vento lusitano em rota de colisão com a legislação consumerista


Admitindo a posição adotada na VIII Jornada de Direito Civil de validade do
pacto marciano quando presente o equilíbrio entre as partes, é importante analisar
a submissão dos contratos de compra e venda de imóveis garantidos pela alienação
fiduciária ao Código de Defesa do Consumidor. Primeiramente, não se pode negar a
aplicação dos contratos de financiamento de imóveis, na medida em que o Superior
Tribunal de Justiça, através do verbete sumular 297, já estabeleceu: “O Código de Defesa
do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. Diante desta inafastabilidade
de incidência à legislação consumerista, impõe-se verificar que no Código de Defesa
do Consumidor encontra-se a vulnerabilidade do consumidor (artigo 4º, inciso I da Lei
nº 8.078/90). No dizer de Tartuce “De acordo com a realidade da sociedade de consumo,
não há como afastar tal posição desfavorável, principalmente se forem levadas em
conta as revoluções pelas quais passaram as relações jurídicas e comerciais nas últimas

12
Apelação nº 992.06.0781229, 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator
Desembargador FRANCISCO CASCONI, j. 20.10.2009, acórdão publicado no Diário de Justiça eletrônico de
8.1.2010.
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
295

décadas” (TARTUCE, 2018, p. 35). Impossível imaginar a possibilidade de o consumidor


“barganhar” com o fornecedor do produto e do serviço que busca consumir tais bens
sobre as cláusulas contratuais desta negociação, nem muito menos de posição de
equidade entre estes elementos subjetivos da cadeia de consumo. Justamente a percepção
de que essa desigualdade não possuía resposta no âmbito do liberalismo contratual foi
o que levou à criação de leis protetivas a este vulnerável, dentre as quais se insere o
Código de Defesa do Consumidor, que fez nascer um arcabouço legislativo protetivo do
consumidor por reconhecimento desta vulnerabilidade e da necessidade de se fomentar
um mercado de consumo seguro.
A permissibilidade de se ajustar no Direito brasileiro o pacto marciano aos
contratos ora tratados seria questionável considerando a vulnerabilidade do consumidor,
permitindo uma retomada a uma estrutura legislativa que se edificaria partindo da
premissa da paridade em abstrato destes sujeitos posicionados em campos opostos da
relação. Esta modalidade pactual se daria, não se pode esquecer, através de um contrato
nitidamente de adesão, sem a possibilidade de que o consumidor pudesse se opor à
colocação do referido pacto no bojo do contrato de mútuo com alienação fiduciária em
garantia, sendo obrigado a permitir que, no futuro, caso por qualquer razão venha a
inadimplir o financiamento, seja compelido a autorizar o mutuante a adquirir o seu
imóvel através de um contrato de compra e venda. O consumidor estaria obrigado a
anuir praticamente com o contrato de compra e venda futuro, já que não poderia se opor
à inserção do pacto pelo caráter de adesão dos contratos de financiamento imobiliário
nos quais o imóvel é dado em garantia.
De igual sorte, tem-se a questão do valor. O pacto marciano prevê a possibilidade
de que o credor se aproprie do bem dado em garantia pelo “preço de mercado” cuja
avaliação não se sabe por quem se efetivará. O próprio terceiro deveria ser escolhido
através de um contrato de adesão, assim como a forma como a avaliação se daria.
No mesmo plano, o Código de Defesa do Consumidor prevê a possibilidade de
cons­tatação da hipossuficiência do consumidor, noção que, no dizer de Cláudia Lima
Marques, pode ser técnica, jurídica, fática e informacional (MARQUES, 2010, 88). Não
se apresenta crível que a grande maioria dos consumidores possa, no momento da
realização do contrato de compra e venda, encontrando-se o mutuário inadimplente e
pressionado pelo mutuante, ter condições técnicas para discutir o valor de mercado do
imóvel objeto da garantia ou de questionar sobre os critérios empregados pelo terceiro
avaliador.
Diante deste quadro, importante ressaltar a importância do enunciado aprovado
na VIII Jornada, que, a princípio, não engloba a hipótese dos contratos ora analisados.

4 Conclusão
Os contratos de alienação fiduciária em garantia foram estruturados para substituir
o modelo tradicional de hipotecas, que, pela sua estrutura, ensejava grande morosidade
na recuperação do capital em favor das instituições creditórias. Não obstante, mesmo
após algumas alterações legislativas, o modelo introduzido pela Lei nº 9.514/97 já está
sendo submetido a críticas muito por força de um mundo cada vez mais sedento por
rapidez na solução dos conflitos. A execução extrajudicial encetada pela Lei nº 9.514/97, na
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
296 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

qual o credor, após a consolidação da propriedade do imóvel em seu nome, precisa, por
imposição legal, levar o imóvel a leilão e somente após duas tentativas frustradas permite
ao devedor a obtenção da quitação, não está atendendo às necessidades do mercado.
Sob o viés do credor, em decorrência de um mercado imobiliário recessivo, com escassez
de crédito, em muitos casos não lhe é vantajoso levar o imóvel a leilão, principalmente
no prazo exíguo como o estabelecido na legislação. Sob o prisma do devedor, enquanto
não se efetua o segundo leilão, não recebe a quitação e, por consequência, se encontra
apartado do mercado de crédito.
Neste quadro, é sedutora a proposta de permitir a incidência do pacto marciano
em sede de contratos de financiamento imobiliário garantido por alienação fiduciária.
Poderiam as partes, desde logo, solucionarem a questão através de avaliação extrajudicial
do bem e o pagamento pelo credor ao devedor diretamente da diferença.
Não obstante, como concluído na VIII Jornada de Direito Civil, plenamente válida
seria a cláusula quando as partes se apresentam ostentando o mesmo poder decisório,
equilibradas em forças. O reconhecimento da cláusula marciana nada mais seria do que
a prevalência da autonomia da vontade das partes em sede negocial. Contudo, não se
pode esquecer que estas modalidades contratuais, não somente envolvem na maioria dos
casos relações de consumo, mas também decorrem de contratos de adesão. O atrativo
das soluções rápidas pode trazer em seu bojo o retorno a um modelo contratual liberal
de quase primazia do princípio pacta sunt servanda, mitigando-se princípios inerentes
às relações jurídicas consumeristas, objeto de conquista essencial para o fomento de
um mercado de consumo com a segurança que dele se espera, tendo como referencial
a dignidade da pessoa humana.
Diante deste cenário, o mundo jurídico se encontra diante de uma antinomia. De
um lado, o desejo de celeridade na solução para a retomada do crescimento e a recu­
peração do crédito. Do outro lado, se apresenta o direito da vulnerabilidade e hipos­
suficiência de quase a maioria daqueles que apresentam garantia imobiliária para a
aquisição de bens imóveis. O Direito português não trouxe solução à questão no decreto
analisado, posto que o estabeleceu para as hipóteses precisas de penhor mercantil em
que a parte que apresenta a garantia seja comerciante. Isto demonstra implicitamente o
reconhecimento da necessidade de paridade de armas entre as partes, de equilíbrio entre
ambos os contratantes. Não apresentou o Direito português tal solução como solução
para as demais situações jurídicas envolvendo pessoas comuns, não comerciantes.
A exigência de um contrato paritário para o reconhecimento do pacto marciano
vai ao encontro do que tentou esquadrinhar o Direito português.
Por fim, em sede de contratos de adesão envolvendo relações de consumo, o
reconhecimento da validade do pacto marciano é debate que está apenas se iniciando,
estando longe de se alcançar um consenso.

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CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
297

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TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2017.
TEIXEIRA, Flávia Daniela Vaz. Penhor de direitos em garantia de créditos bancários. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Universidade do Minho, 2012. p. 19. Disponível em: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/
bitstream/1822/22981/1/Fl%C3%A1via%20Daniela%20Vaz%20Teixeira.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2018.
TEPEDINO, Gustavo. Direito das coisas. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.). Comentários ao Código
Civil. V. 14. São Paulo: Saraiva, 2011.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

CORRÊA, Cláudia Franco; SETA, Cristina Gomes Campos de. Os ventos lusitanos na alienação fiduciária
imobiliária: a interpretação do pacto marciano em Terras Brasilis. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.).
Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 285-297. E-book.
ISBN 978-85-450-0591-9.
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS
DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO
A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL

“I always feel like somebody’s watching me


And I have no privacy”
Rockwell

FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO

Introdução
“I always feel like somebody’s watching me / And I have no privacy”. Não poderia
ter sido outra a canção escolhida para introduzir este artigo. Lançada ao mundo em
1984 pelo cantor Rockwell e com os vocais de Michael Jackson, o hit emplacou como um
grande sucesso, retratando o medo de estar sendo vigiado a todo o tempo. Coincidência
ou não, o ano de sua estreia mundial coincide com o título de um dos livros mais citados
quando o assunto é privacidade, a obra clássica de George Orwell, 1984, que anunciava
os riscos do Grande Irmão, que, tornando real a preocupação de Rockwell, estava sempre
vigiando a todos.
“And I don’t feel safe anymore, oh what a mess / I wonder who’s watching me
now / Who? (…) Can I have my privacy?”. A canção norte-americana traz em si mesma
diversos questionamentos atuais no campo da privacidade, como o fato de que as pessoas
não se sentem mais seguras e não sabem quem as vigia. E, tal como o eu-lírico da canção
de Rockwell, que diz ser apenas um homem comum, com uma vida comum, que quer
ser deixado em paz em sua casa comum,1 os indivíduos de hoje em dia vivenciam o
mesmo drama.

1
“I’m just an average man with an average life / I work from 9 to 5, hey hell, I pay the price / All I want is to be left
alone, in my average home / But why do I always feel /Like I’m in the Twilight Zone?”
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
300 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O próprio conceito de privacidade como o direito a ser deixado em paz (the right
to be left alone), invocado por Rockwell, já não representa mais a faceta atual deste direito,
que sofreu intensa transformação com a digitalização do mundo. A Era do WhatsApp
é também a Era da Cambridge Analytica (e do vazamento de dados de 87 milhões de
pessoas)2 e a Era das Desculpas de Zuckerberg:3 o momento em que o mundo toma
conhecimento que está sendo vigiado a todo instante e que seus dados pessoais estão
sendo objeto de mercancia.
E que vigilância é essa que alterou os contornos do direito à privacidade? Não é
mais possível se falar em vigilância, tal como no passado. O conceito hoje adquire nova
abordagem com o chamado paradigma da surveillance, que será objeto do primeiro item
deste trabalho.
E, como forma de reação a essa vigilância difusa instalada na ordem mundial,
cercada por ameaças de espionagem, o desenvolvimento tecnológico caminha para meios
mais seguros de comunicação, que têm se baseado, sobretudo, no aperfeiçoamento das
técnicas de criptografia de dados e mensagens.
É neste cenário que surge o principal questionamento que será o ponto central
desta análise: será lícita, como forma de reação a essa ameaça de vigilância, a construção
de sistemas criptográficos absolutamente inquebráveis pelas próprias detentoras da
tecnologia, mesmo quando as quebras forem solicitadas regularmente por autoridade
judiciária estatal no seio de investigações criminais?
Antes disso, contudo, necessário indagar: existiria um direito à criptografia? Em
sendo positiva a resposta, haveria algum limite? Estas parecem ser as mais desafiadoras
questões sobre o tema, que vem sendo muito debatido, inclusive no âmbito do Supremo
Tribunal Federal, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de
número 403. Questiona-se, ainda, se existiria um direito autônomo à criptografia ou
se este estaria albergado no seio de outros direitos, como aqueles constitucionalmente
tutelados que protegem a privacidade e o conteúdo das comunicações privadas.
Para a resolução destas indagações, dúvidas não há de que se deve proceder a
uma análise funcional do instituto, de forma a perquirir o seu merecimento de tutela
diante do seu cotejo com os demais direitos e valores do sistema civil-constitucional,
que possui a dignidade da pessoa humana como vértice central e eixo interpretativo.
Somente assim será possível averiguar se a tutela das comunicações privadas
protegidas pela criptografia deve ser levada às últimas consequências, a ponto de se
ter um direito fundamental humano, como se tem defendido no âmbito da UNESCO
e em relatórios internacionais, garantidor de outros valores, como a liberdade de
imprensa, pensamento e comunicação. Ademais, também é preciso investigar se seria
lícita por parte das sociedades empresárias de tecnologia a recusa ao fornecimento de
dados e conteúdos das comunicações, em contrariedade a ordens judiciais emanadas de
autoridades competentes, tendo-se em vista que elas se instalam no território nacional,
lucram com a exploração de suas atividades econômicas, mas se recusam a cumprir
as leis nacionais, sob a alegação da impossibilidade técnica de quebra da criptografia.

2
Cambridge Analytica anuncia fim de suas operações. G1, 02 maio 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/
economia/noticia/cambridge-analytica-anuncia-fim-de-suas-operacoes.ghtml>. Acesso em: 01 jun. 2018.
3
Zuckerberg pede desculpas e assume erros em depoimento ao Congresso dos EUA. UOL, 10 abr. 2018. Disponível
em: <https://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/10/mark-zuckerberg-depoimento-ao-congresso-
dos-eua.htm>. Acesso em: 01 jun. 2018.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
301

Por fim, como importante argumento no debate, deve-se analisar se o fornecimento


dos dados das comunicações, como metadados, não seria suficiente para se chegar ao
fim desejado com a quebra das criptografias, o que deve ser feito à luz do princípio
constitucional da proporcionalidade. Nada, todavia, pode ser realizado apartado das
noções fundamentais de um ordenamento sistemático, em que os institutos devem
ser sempre funcionalizados a fim de concretizar os valores fundamentais da Carta,
primados estes da metodologia civil-constitucional, que se revela imprescindível para
a abordagem do tema.

1 A releitura do Direito Civil à luz da Constituição da República


O Direito Civil patrimonialista do império da vontade e do liberalismo econômico
como razão máxima de ser não mais existe. Os direitos não são mais tidos como absolutos
nem sacrossantos como um dia fora a propriedade privada. Há limites internos e externos
a esses direitos, os quais devem ser constantemente relidos à luz da Constituição da
República e de toda a sua axiologia, fundada na valorização e promoção da dignidade
da pessoa humana.
Segundo a metodologia Civil-Constitucional, não só se deve reler o Direito Civil à
luz da Constituição, através da interpretação, como também se deve reconhecer que as
normas constitucionais devem e podem ser diretamente aplicadas nas relações privadas,
de forma a garantir a máxima realização dos valores constitucionais também nessa seara.4
A premissa fundamental é a superioridade normativa da Constituição, do que
decorre a unidade e a complexidade do ordenamento jurídico,5 cujas normas devem
ser integradas a partir de uma interpretação que tenha como norte a pessoa humana. A
partir disto, rompe-se com as divisões estanques entre os ramos e os direitos, os quais
devem ser sempre reconduzidos à matriz agregadora do ordenamento: a Carta.

1.1 Uma análise funcional dos direitos e a alteração qualitativa da


autonomia da vontade
Esta metodologia demanda que sejam abandonadas as análises meramente
estruturais dos direitos e das situações jurídicas, passando-se, assim, a privilegiar uma
abordagem que atente para o aspecto funcional do direito. Dessa maneira, o merecimento
de tutela de um direito passa a ser condicionado não mais à sua qualificação abstrata
enquanto direito, mas ao papel por ele desempenhado em concreto.
Com isso quer-se dizer que até mesmo os direitos tidos como vazios de contra­
prestação se inserem numa perspectiva relacional, numa situação subjetiva complexa,
que impõe deveres e não só prerrogativas favoráveis. Daí decorre que até mesmo a

4
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 12 apud KONDER, Carlos Nelson;
SCHREIBER, Anderson. Uma agenda para o Direito Civil-Constitucional. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 10,
out./dez. 2016.
5
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 12 apud KONDER, Carlos Nelson;
SCHREIBER, Anderson. Uma agenda para o Direito Civil-Constitucional. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 10,
out./dez. 2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
302 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

propriedade, para ser tutelada, tem que cumprir uma função constitucional, isto é, um
objetivo que atenda e privilegie valores instituídos pela axiologia da Carta.6
A pessoa deve prevalecer sobre qualquer valor patrimonial. Os institutos patri­
moniais não são imutáveis: é preciso adequá-los aos novos valores, na passagem de
uma jurisprudência civil dos interesses patrimoniais a uma mais atenta aos valores
existenciais, que não servem só de limite ou finalidade: eles incidem, pois, sobre a função
do instituto e sobre sua natureza. Assim, permite-se reconstruir o sistema (e o próprio
Direito Civil) segundo o valor da pessoa, não aumentando ou reduzindo a tutela das
situações patrimoniais, mas com uma tutela qualitativamente diversa.7
Faz-se necessário, portanto, averiguar sempre in concreto, a partir dessa tutela
qualitativamente diversa, o merecimento de tutela de cada uma das situações jurídicas
e dos direitos, uma vez que nem mesmo as situações ditas reais são merecedoras de
proteção simplesmente por atenderem aos comandos de forma e taxatividade: é preciso,
pois, qualificar cada direito “à luz de todo o ordenamento, com vistas a verificar se
merece tutela jurídica”.8
Pietro Perlingieri, neste sentido, aponta que a autonomia privada somente pode
ser determinada em concreto à luz do ordenamento em que se insere. Dessa maneira,
entende o autor italiano que a autonomia privada:

não é, portanto, um valor em si. Revela-se indispensável o reexame da noção à luz do juízo
de valor (giudizio di meritevolezza) de cada ato realizado, de modo tal que se possa deduzir
se estes, individualmente considerados, podem ser regulados, pelo menos em parte, pela
autonomia privada.

Esta noção de autonomia privada se mostra especialmente importante para


a presente análise e será essencial para desvendar o merecimento de tutela dado à
criptografia de ponta-a-ponta, de maneira a se averiguar se a sua criação se insere dentro
de um escopo válido da autonomia privada.
Gustavo Tepedino, em importante contributo para o tema,9 analisa que a auto­nomia
privada sofreu uma alteração qualitativa, nos seus três aspectos. Assim, do ponto de
vista subjetivo, deixou-se para trás a prevalência do sujeito de direito enquanto categoria
abstrata, para a análise da pessoa concretamente considerada, com suas singularidades,
que a inferiorizam e vulneram com uma igualdade não mais só formal, mas agora tam-
bém material. Do sujeito de direito passou-se à criança, ao consumidor e, por que não
dizer, ao internauta, ao cidadão conectado e integrado à rede mundial de computadores.
No aspecto formal, a forma, que antes servia para a segurança patrimonial
das transferências, passa a ter “papel delimitador da autonomia privada em favor de
interesses socialmente relevantes e de pessoas em situações de vulnerabilidade”.10

6
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: Temas de
Direito Civil, t. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 1.
7
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33-34.
8
OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Autonomia privada e direitos reais: redimensionamento dos
princípios da taxatividade e da tipicidade no direito brasileiro. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 2, p. 3-4,
2016. Disponível em: <http://civilistica.com/autonomia-privada-e-direitosreais/>.
9
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: Temas de
Direito Civil, t. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 8-11.
10
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: Temas de
Direito Civil, t. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 9.
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A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
303

Por derradeiro, a autonomia privada passou por uma transformação no seu


aspecto objetivo: novos interesses existenciais passaram a se sobrepor aos patrimoniais.
Tem-se, assim, verdadeira reconstrução das categorias do Direito Privado a partir do
surgimento de situações jurídicas completamente inéditas, vindas da tecnologia. Cabe
ao Direito tutelar a pessoa diante desses novos bens jurídicos que passam a ser objeto
de situações existenciais.

1.2 A tecnologia e o Direito Civil


O já saudoso Professor Stefano Rodotà é autor de uma frase que situa o jurista
no seu tempo: “a ética salvou a filosofia, como a tecnologia salvou o direito civil”.11
A aparente singeleza e simplicidade da frase quase não deixa perceber a mudança
ocorrida no Direito Civil a partir da Revolução Tecnológica e Científica, sobretudo com
os avanços da internet.
A tecnologia representou para o Direito Civil a possibilidade de se reconhecer que
as antigas técnicas de resolução de conflitos tendiam à inutilidade. A subsunção rígida
e formal do Positivismo Kelseniano deixou de ser uma máxima sagrada. O brocardo do
in claris non fit interpretatio deixou de ter preeminência, com a conclusão de que a clareza
de um texto não está no prius, mas no posterius,12 isto é, a compreensão de um texto só
pode ser alcançada após o seu cotejo com as demais normas do sistema.
E a tecnologia foi fundamental para essa conclusão, pois apresentou casos
im­pensados, que demandam uma resposta cada vez mais veloz da legislação e da
jurisprudência, que se encontram cronologicamente atrás dos avanços tecnológicos. Dessa
maneira, quando o Código Civil vigente foi forjado, na década de 1970, era impensado
que cada pessoa teria, como parte integrante de sua vida social, um smartphone, que a
conecta ao mundo e de onde ela pode realizar uma miríade de conexões e de operações.
Muito menos se imaginava que a comunicação se daria quase toda através de aplicativos,
como o WhatsApp.
Somente em 2015 o Brasil passou a ter um Marco Civil da Internet e, mesmo
assim, é um dos países com legislação mais avançada em tecnologia. Estas constatações
empíricas só reforçam o fato de que a tecnologia operou verdadeira transformação no
Direito e o fez despertar para o fato de que o positivismo cego é incapaz de solucionar
esses conflitos. A mera subsunção à fattispecie não dá conta de resolver inúmeros conflitos
que hoje se descortinam para o jurista conectado na rede. E para Gustavo Tepedino,
reside precisamente no “Direito Civil o domínio para solução de conflitos estranhos à
dogmática clássica”.13
A fim de não se tornar preso a uma interpretação das palavras da lei de sécu­
los passados, imperiosa se faz uma interpretação crítico-construtiva, evolutiva e

11
TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do Direito Civil entre o sujeito e a pessoa. In: TEPEDINO,
Gustavo; Teixeira, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa:
estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
12
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 71-72.
13
TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do Direito Civil entre o sujeito e a pessoa. In: TEPEDINO,
Gustavo; Teixeira, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa:
estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
304 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

modernizante, entendendo-se que “as palavras assumem no tempo significados mesmo


qualitativamente diversos, segundo a cultura e a sensibilidade do destinatário”.14 Logo,
se deve ter uma abertura para o seu tempo, sob pena de o intérprete se tornar refém das
amarras e dos grilhões dos conceitos oitocentistas e romanistas.
É assim que, fundado na premissa de um ordenamento sistemático, unitário, cujo
centro é a Constituição Federal e cujo objetivo é a tutela da pessoa humana, o presente
trabalho busca, a partir da constatação dessa transformação dos direitos operada pela
tecnologia, encontrar respostas para enfrentar o tema da criptografia.

2 Breves notas acerca dos novos contornos do direito à privacidade: a


sociedade da vigilância e o paradigma da surveillance
Em análise lúcida e consentânea com o momento atual, Stefano Rodotà chegou
a uma conclusão importante sobre a privacidade na Era Digital, sobretudo após o
fatí­dico episódio do 11 de setembro, quando se instaurou no mundo a Era do Terror:
“a privacidade, além de não ser mais vista como um direito fundamental, é, de fato,
frequentemente considerada um obstáculo à segurança, sendo superada por legislações
de emergência”.15
Dessa conclusão se pode extrair uma série de características aptas a identificar a
privacidade no mundo atual, quando parece estar tendendo a ser superada a formulação
histórica de Warren e Brandeis de privacidade como “o direito de ser deixado em paz”.16
A primeira delas é a existência de uma Sociedade da Vigilância. Por mais repetida
e gasta que seja a metáfora nas análises sobre o tema, não há como se falar em Sociedade
da Vigilância sem traçar breves linhas acerca de George Orwell e seu livro 1984.
Escrito em 1948, portanto, cronologicamente próximo dos grandes movimentos
e regimes autoritários do século XX, o livro de Orwell apresentou aos seus leitores uma
visão aterrorizante sobre o futuro, mas possível. No livro, o Grande Irmão é um ditador
onipresente, que tende a ser onisciente. Não há espaço para a privacidade, que se mostra
como uma aspiração quase impossível, até naquilo que seria reservado de mais íntimo
ao sujeito, no âmago de sua intimidade: o seu pensamento.
Nesse mundo idealizado por Orwell, “até mesmo as ideias e sonhos dos cidadãos
são vigiados por uma Polícia do Pensamento. Os críticos do regime são obrigados a
‘duplipensar’, pensar simultaneamente em ideias contraditórias, para camuflar aquilo
em que realmente acreditam”.17 E por toda parte os indivíduos são constantemente
relembrados pelo partido dominante que o “Big Brother is watching you”.
Para além da metáfora usualmente feita com o programa de televisão homô­
nimo, em que as pessoas se submetem a uma restrição quase absoluta da privacidade,
o paradigma orwelliano acaba se replicando do lado de fora da televisão: na realidade.
E, diferentemente do programa de entretenimento, na maioria dos casos a violação à
privacidade não é percebida pelos indivíduos, que cedem seus dados pessoais sem

14
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 73.
15
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 14.
16
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15.
17
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 133.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
305

se darem conta de que eles podem ser usados para a construção de perfis úteis ao
monitoramento e, por que não dizer, ao controle das pessoas e das massas. É a ideia
do big data.
E a internet hoje, sobretudo através dos smartphones, é a maior e melhor forma de
se identificar este movimento. Um exemplo colhido em recente notícia é esclarecedor:
a partir do mês de outubro de 2017 passou a ser possível que usuários do aplicativo de
mensagens WhatsApp compartilhassem a sua localização em tempo real, enviando-a para
seus contatos através de um sistema de criptografia de ponta-a-ponta.18 Isso evidencia
que cada passo de cada indivíduo está sendo constantemente monitorado por essas
sociedades empresárias de tecnologia.
Outros tantos aplicativos conseguem desempenhar a mesma função de
armazenamento da localização de seus usuários, com a diferença de que não há
compartilhamento expresso: os dados são coletados como parte necessária da adesão
aos termos do aplicativo. Assim, caso o usuário queira usá-lo, deve concordar que seus
dados de localização sejam coletados. A grande questão reside em saber o que será feito
desses dados, assim como a licitude na sua obtenção, eis que se poderia sugerir que,
nestes casos, o usuário estaria sujeito a um contrato de adesão e, portanto, incapacitado
de discutir seus termos. Por isso, ele acaba com a sua possibilidade de escolha reduzida:
ou aceita os termos e cede os dados relativos à sua localização ou fica sem utilizar o
aplicativo e deixa de se inserir no meio virtual.
Da simples análise desse problema, o que poderia ter sido feito também com
relação ao armazenamento dos dados relativos ao acesso a sítios na internet e ao padrão
de curtidas e compartilhamentos numa determinada rede social como o Facebook torna
claro que as pessoas estão sendo vigiadas, ainda que não percebam.
O objeto restrito deste trabalho não permite uma análise mais detida sobre as
implicações e as questões éticas envolvendo este fenômeno, como a sua relação com um
regime totalitário, mas dele se podem extrair conclusões pertinentes ao que se propõe
neste estudo. Dentre elas, está o fato de que é inegável o estado de vigilância em que se
vive atualmente, o que leva a uma invasão da esfera de privacidade e intimidade que
acaba não sendo percebida pelas pessoas, dada a sua sutileza. Vez ou outra, entretanto,
as pessoas percebem que estão sendo vigiadas, a exemplo da recente descoberta de que
alguns celulares da Apple conseguem identificar e categorizar se as fotos tiradas por
seus usuários foram feitas por pessoas nuas, o que gerou questionamentos: será que a
Apple armazena essas fotos?19
Tal como em 1984, em que as personagens eram observadas pelo Grande Irmão
em todos os espaços da vida, a sociedade atual passa a ter dificuldades em encontrar
espaços imunes à vigilância. Nos grandes centros urbanos, avolumam-se as câmeras de
monitoramento, que captam a movimentação das pessoas e, em muitos casos, conseguem
até fazer a identificação facial do indivíduo. E até mesmo fora das grandes cidades é
possível monitorar as pessoas através de imagens de satélites, como é exemplificado
pelo programa de computador Google Earth.

18
WhatsApp vai ganhar compartilhamento de localização em tempo real. G1, 17 out. 2017. Disponível em: <https://
g1.globo.com/tecnologia/noticia/whatsapp-vai-permitir-compartilhamento-de-localizacao-em-tempo-real.
ghtml>. Acesso em: 22 out. 2017.
19
TRACY, Phillip. People just realized this iOS 11 feature scans your iPhone for cleavage pics. The Daily Dot. 30 out.
2017. Disponível em: <https://www.dailydot.com/debug/ios-11-brasserie/>. Acesso em: 04 nov. 2017.
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306 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Fala-se hoje ainda numa vigilância dentro da própria casa do indivíduo, o que
seria uma intromissão total e uma completa devassa ao direito à privacidade, como se
alertou em recente reportagem, segundo a qual haveria uma falha de segurança nos
celulares iOS, que permitiria que as câmeras gravassem vídeos e fotografassem o usuário
sem que ele saiba.20
E não são só os passos e as casas que são vigiadas: as comunicações também
o são. E essa constatação é o foco deste trabalho, que discute a licitude dos sistemas
criptográficos.
Nessa ordem de ideias, pode-se afirmar que a própria forma de se comunicar
foi alterada. As cartas em papel hoje possuem utilização diminuta, predominando a
comunicação através de e-mails, o que é estimulado até mesmo pelo vigente Código
de Processo Civil, que permite a comunicação processual pela via eletrônica. E as
comunicações informais também mudaram seu veículo: até as ligações telefônicas
hoje diminuíram, em detrimento das comunicações escritas através de aplicativos de
mensagens como o WhatsApp, Telegram e Messenger, os quais também permitem
conversas por áudio e vídeo.
E muitas dúvidas decorrem de tudo isso: qual o nível de segurança dessas
comunicações? Será que a criptografia realmente protege o usuário e o torna imune a
invasões ao conteúdo de suas conversas? Será lícito ter imunidade total?
Fala-se hoje num homem de vidro, o que significaria que os “indivíduos são cada
vez mais transparentes e que os órgãos públicos estão mais e mais fora de qualquer
controle, político e legal. Isto implica uma nova distribuição de poderes políticos e
sociais”.21
Anderson Schreiber22 traz importante contributo à discussão a partir da separação
metodológica que faz entre as dimensões procedimental e substancial do direito à
privacidade. A dimensão procedimental diria respeito, em primeiro lugar, à coleta da
informação pessoal. Assim, a coleta clandestina ou desautorizada de informações pessoais
deve ser rechaçada. Neste caso, tal como no direito de imagem, surge a necessidade de
autorização do titular como requisito essencial para obtenção de seus dados pessoais,
sendo dispensado o seu consentimento somente nos casos em que da ponderação entre
a privacidade e outros interesses constitucionalmente tutelados se justifique a dispensa
de autorização, ressaltando-se que tal exame deverá ser sempre feito em concreto.
Todavia, a dimensão procedimental não se restringe somente ao problema da
coleta não autorizada de dados pessoais. E, com o constante fluxo de dados trazido pela
contemporaneidade, faz-se preciso construir uma tutela mais abrangente da privacidade,
que não se encerre apenas no controle da coleta de dados pessoais, mas que abranja
também todas as fases do processo informativo, de maneira a impor uma verificação
séria de autenticidade dos dados obtidos, a segurança de seu armazenamento, verificação
periódica de sua atualidade, a limitação de sua utilização à finalidade específica para a

20
Falha de segurança no iOS permite que câmeras do iPhone gravem e fotografem sem que usuário saiba. O Globo, Rio
de Janeiro: 26 out. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/falha-de-seguranca-no-ios-permite-
que-cameras-do-iphone-gravem-fotografem-sem-que-usuario-saiba-21996063?utm_source=Facebook&utm_
medium=Social&utm_campaign=O%20Globo>. Acesso em: 27 out. 2017.
21
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15.
22
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 138-140.
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307

qual os dados foram coletados, com a consequente destruição após o cumprimento da


aludida finalidade e, por fim, o permanente acesso do titular aos seus dados coletados
a fim de que possa ter conhecimento deles e corrigi-los.
Daí nasce a segunda dimensão desse direito, qual seja, a dimensão substancial,
que, para além da procedimental, baseada no tratamento do dado desde a sua coleta até
a sua eliminação, vincula-se ao próprio emprego da informação obtida.
Nas palavras de Schreiber, “toda pessoa tem direito a controlar a representação
de si mesma que é construída a partir de seus dados pessoais. É direito de toda pessoa
exigir que tal representação reflita a realidade, impedindo que seu uso assuma caráter
discriminatório”.23
Nesses casos, uma violação à privacidade pode acabar acarretando uma violação
a outros direitos e garantias fundamentais, como a liberdade de pensamento, liberdade
religiosa e liberdade sexual. Neste sentido, as palavras de Rodotà:

o enorme aumento da quantidade de informações pessoais coletadas por instituições


públicas e privadas visa sobretudo a dois objetivos: a aquisição dos elementos necessários
à preparação e gestão de programas de intervenção social, por parte dos poderes públicos,
e o desenvolvimento de estratégias empresariais privadas; e o controle da conformidade
dos cidadãos à gestão política dominante ou aos comportamentos prevalecentes. Evocar
a defesa da privacidade assume, portanto, significados diversos, dependendo de qual seja
o objetivo perseguido através da coleta das informações.24

Embora se possam apontar alguns aspectos para estabelecer a origem dessa vigi­
lância, como, por exemplo, a guerra ao terror e a necessidade de segurança, fato é que
a vigilância é uma realidade. E as pessoas, em muitos casos, acabam preferindo ceder
parte de sua privacidade em troca de segurança. Não dimensionam, contudo, o quanto
esse fornecimento voluntário de dados, a instituições públicas e privadas, associado ao
que já se capta involuntariamente, será capaz de levar a uma rede de monitoramento
e controle tão grande como a de 1984, apta a manipular as mentes e as ideologias das
massas.
E inserida na dimensão substancial do direito à privacidade, tal como formulado
por Anderson Schreiber,25 reside a possibilidade de o cidadão controlar a utilização desses
dados por pessoas e instituições que passam a ter um poder também de controle sobre
elas. Sobre este controle feito pelos indivíduos, Rodotà faz precisa indagação:

(...) qual tipo de controle? É claro que, na perspectiva indicada, a possibilidade de controlar
não serve apenas para assegurar ao cidadão a exatidão e o uso correto das informações a
ele diretamente relacionadas, mas pode se tornar um instrumento de equilíbrio na nova
distribuição de poder que vai se delineando. Este último resultado, no entanto, seria
evidentemente irrealizável se a perspectiva do controle permanecesse somente individual,
resolvendo-se completamente na atribuição, a cidadãos isolados, do direito de acesso aos
bancos de dados públicos e privados.

23
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 139 .
24
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 28.
25
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 138-140.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
308 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Raramente o cidadão é capaz de perceber o sentido que a coleta de determinadas infor­


mações pode assumir em organizações complexas e dotadas de meios sofisticados para
o tratamento de dados, podendo escapar a ele próprio o grau de periculosidade do uso
destes dados por parte de tais organizações. Além disso, é evidente a enorme defasagem
de poder existente entre o indivíduo isolado e as grandes organizações de coleta de dados:
nessas condições, é inteiramente ilusório falar em “controle”. Aliás, a insistência em meios
de controle exclusivamente individuais pode ser o álibi de um poder público desejoso
de esquivar-se de novos problemas determinados pelas grandes coletas de informações,
e que assim se refugia em uma exaltação ilusória dos poderes do indivíduo, o qual se
encontrará, desta forma, encarregado da gestão de um jogo do qual somente poderá sair
como perdedor.26

Diante da força diminuta do sujeito individual na luta contra as grandes insti­


tuições, Rodotà acaba por crer na criação, em nível coletivo, de um aparato de controle
a serviço das pessoas. O autor italiano expõe, assim, esse aspecto deletério do controle
das informações e dos dados pessoais.
E o que seria o tal paradigma da surveillance nesse contexto? Segundo Elias Jacob
de Menezes Neto e José Luis Bolzan de Morais, não é mais possível se falar apenas em
vigilância, uma vez que a mera tradução da palavra surveillance como vigilância seria
inadequada para englobar um fenômeno que se mostra tão complexo, já que “não se
está falando de um evento específico dirigido contra um sujeito determinado (como
é o caso da vigilância), mas de uma característica da vida neste mundo globalizado e
interconectado”.27
Os autores defendem a existência de um novo conceito de surveillance, cuja
determinação passa pela compreensão do atual uso de bancos de dados indexáveis no
processamento de informações para diversas finalidades. Assim, as novas tecnologias
da informação permitem o processamento em tempo real e o armazenamento ilimitado
de dados, o que opera uma alteração qualitativa no conceito da surveillance, já que agora
não é mais preciso que haja um indivíduo suspeito de uma prática ilícita para que haja
a “vigilância”: trata-se de bancos de dados difusos, com análises de padrões de dados
e uso de redes sociais, que, combinados, levam a uma classificação cruzada baseada
nessas fontes de dados diferentes.28
Uma distinção importante apontada por Menezes Neto e Morais é que essa nova
forma de vigilância, essencialmente digital, baseia-se na coleta sistemática de dados,
com armazenamento, processamento, individualização e classificações sobre as pessoas
em determinados grupos.29

26
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 37.
27
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do MARCO CIVIL da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 419.
28
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 421.
29
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 423.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
309

Surgem assim também novas formas de violação de direitos fundamentais:

(...) por um lado, através da identificação, rastreamento, monitoramento e análise de


infor­mações relativas aos detalhes da vida íntima e da identidade das pessoas; por outro,
em razão das práticas de coleta, armazenamento, processamento, individualização e
classificação das pessoas em determinados grupos.30

Esses riscos se relacionam de forma umbilical com as preocupações trazidas


por Rodotà e Schreiber quanto ao uso das informações coletadas, as quais podem ser
transformadas em instrumentos de controle e de previsibilidade do comportamento das
pessoas. São efeitos deletérios desse paradigma, que despertam a sensação de que cada
vez menos é possível se ter, por parte dos indivíduos, controle sobre as informações
armazenadas sobre si. Ilimitadas quanto ao tempo e ao espaço, a utilização delas deve
ser objeto de regulação pelo Estado e de controle pela sociedade civil como um todo,
na esteira do que defende Rodotà.
Contudo, e aqui há um ponto sensível a ser enfrentado, não há só desvantagens
nesse novo paradigma. Um dos objetivos centrais da nova surveillance é justamente a
“previsão de comportamentos futuros, seja por parte do poder público – para prever
atitudes terroristas, por exemplo –, seja pela iniciativa privada – para prever quais as
melhores formas de ganhar dinheiro com anúncios, exemplificativamente”.31
Disso decorre que, diante de uma análise de dados, órgãos e agentes estatais
passam a ter importante ferramenta na prevenção de crimes, o que acabaria por diminuir
a importância da coleta de dados mais sensíveis. Isto é, tendo acesso, por exemplo, a
metadados, seria possível monitorar um grupo terrorista, sem que fosse necessária a
quebra de eventual criptografia que proteja o sigilo das comunicações.
Neste sentido, apontam os autores que “os metadados, embora escapem do conceito
legal de ‘comunicação privada armazenada’, podem dizer muito mais sobre a vida
privada de um indivíduo do que o conteúdo de e-mails, por exemplo”.32
Esta é uma análise a ser feita mais adiante com maior detalhamento, sobretudo
a partir da experiência da realidade de uma investigação criminal, mas é importante
destacar desde logo a sua relação com o novo paradigma da surveillance.
Por conseguinte, a noção de surveillance como uma prática que permite categorizar
as pessoas em grupos diferentes com o intuito de tratá-las diferentemente permite
vislumbrar a existência de um novo aparato colocado à disposição do Estado, cabendo
a averiguação acerca da sua suficiência para os fins perseguidos por ele.
E a promiscuidade descuidada na relação entre tecnologia e Estado também é
motivo de preocupação para os professores Carlos Affonso Pereira de Souza e Ronaldo
Lemos:

30
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 424.
31
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 425.
32
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 426.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
310 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Um dos temas mais importantes do mundo contemporâneo é justamente os limites do


uso da tecnologia para fins de vigilância. Nossos celulares e computadores não são meros
produtos de consumo. São as mais poderosas ferramentas de vigilância e escuta já criadas.
Sem que a lei respeite um balanço adequado entre privacidade e investigação criminal,
estaremos sujeitos a um estado de vigilância.33

Tem-se, portanto, como conclusões parciais, até aqui, a ideia de que a privacidade
apresenta hoje um contorno diametralmente oposto àquele formulado na sua origem,
quando se baseava na proteção de uma esfera individual insuscetível de vigilância, na
matriz liberal de um direito de ser deixado em paz. Passa agora a se ver inserida num
mundo globalizado, conectado e sob constante vigilância, por fundamentos diversos,
como a necessidade de segurança por parte dos Estados, especialmente com a guerra
ao terror pós 11 de setembro, ou por fins comerciais de monitoramento de preferências
dos consumidores para ampliação do mercado.
Fato é que, inserido num contexto distinto, o direito à privacidade apresenta novos
desenhos, que trazem uma mudança de foco para aspectos como os dados pessoais: sua
obtenção, armazenamento, utilização e controle. E, nesse cenário de temor extremo em
face da vigilância, seja ela difusa ou concentrada, surgem novos mecanismos de tutela
da privacidade. Dentre eles, a criptografia.

3 A criptografia: um novo direito ou uma nova técnica?


Falar em criptografia implica quase necessariamente falar na (im)possibilidade
da sua quebra. Neste item, abordar-se-á a criptografia do seu ponto de vista estrutural,
para, em seguida, analisar sua perspectiva funcional, o que conduzirá à principal questão
deste trabalho: será possível a sua quebra?
O tema da criptografia não é objeto científico somente do Direito. Ao revés, trata-
se de um fenômeno que o Direito somente passou a se preocupar recentemente, pois
antes era objeto da análise das Engenharias e demais Ciências da Computação. Não se
pretende no breve escopo deste trabalho analisar o fenômeno da criptografia de modo
amplo. Opta-se, deste modo, por um recorte metodológico, para entender a criptografia
no sigilo das comunicações privadas, que, aos olhos do grande público não afeito ao
estudo jurídico, pode ser resumida na “criptografia de ponta-a-ponta do WhatsApp”.
Por essa razão, é preciso situar o leitor acerca da importância deste tema. Assim,
a criptografia só surge como um assunto relevante diante da recusa das sociedades
empresárias de tecnologia em quebrarem a codificação para apresentarem às autoridades
judiciárias o conteúdo das comunicações protegidas pelo sistema criptográfico. Em
reação a esta recusa, deram-se os tão falados bloqueios do aplicativo de mensagens
WhatsApp, que causaram alvoroço em todo o país, gerando questionamentos das mais
diversas ordens.34
Falar em códigos não é nenhuma novidade moderna. Já os antigos valiam-se
de códigos secretos para suas comunicações sigilosas. Mas foi somente nesse contexto

33
SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar
Editora Associada Ltda., 2016, p. 140.
34
Linha do tempo. Bloqueios.info. Disponível em: <http://bloqueios.info/pt/linha-do-tempo/>. Acesso em: 03 nov. 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
311

de bloqueios que se começou a tratar de forma mais difundida da chamada cripto­


grafia de ponta-a-ponta. Essa tecnologia permitiria a tão sonhada inviolabilidade das
comunicações, pois somente os usuários da conversa teriam uma chave capaz de descri­
ptografar a mensagem, que seria inacessível por terceiros.
A premissa de que se parte para os fins deste trabalho é a da inviolabilidade das
criptografias de ponta-a-ponta, muito embora o imaginário do senso comum indique
que hackers conseguiriam ter acesso a essas comunicações. No sentido da inviolabilidade,
o engenheiro Brian Acton, cofundador da WhatsApp Inc., trouxe ao Supremo Tribunal
Federal esclarecimentos acerca do sistema de criptografia de ponta-a-ponta em audiência
pública realizada na Corte em junho de 2017, por ocasião da discussão acerca da Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental 403.35
Segundo Acton, o sistema criado seria inviolável até mesmo por parte do próprio
WhatsApp, uma vez que as chaves que integram o sistema não podem ser interceptadas,
pois são restritas aos interlocutores, havendo a mudança das chaves a cada mensagem
enviada.
O engenheiro afirma ainda que as mensagens já transmitidas não podem ter a
criptografia retirada, uma vez que não há como interceptar conteúdo legível, já que
o aplicativo não tem acesso às chaves privadas dos usuários, pois isso só ocorre nos
aparelhos de telefone dos usuários com chaves próprias a eles. Não seria possível, então,
desativar a criptografia para um usuário específico, a menos que se desativasse para
todos os usuários, o que permitiria o acesso a bilhões de conversas.
Danilo Doneda é preciso na sua explicação, segundo a qual, com a criptografia
de ponta-a-ponta, “cria-se um canal de comunicação entre o emissor e o destinatário da
mensagem que é impenetrável por intermediários – funcionando como se a mensagem
fosse embaralhada e colocada em um envelope com chave que somente o destinatário
possui”.36
O grande questionamento que surge com relação a essas afirmativas tão incisivas
de Acton gira em torno de por que as sociedades empresárias não criam as chamadas
backdoors, que, como a própria tradução do termo faz intuir, constituiria em portas dos
fundos, que possibilitariam que as companhias conseguissem ter acesso ao conteúdo
das mensagens, sem que os usuários soubessem. Ou, ainda, por que não desenvolvem
outros meios tecnológicos capazes de atingir o mesmo resultado.
À primeira vista, o argumento em favor das companhias seria uma proteção
à privacidade dos usuários, que utilizam seu serviço diante da expectativa de sigilo
total. Ocorre que antes mesmo de se questionar as formas de quebra da criptografia,
necessário se faz formular uma indagação fundante: existirá um direito à criptografia?
Caso positivo, há algum limite?
Para se responder a esta questão, é preciso recorrer à perspectiva do Direito Civil-
Constitucional, especialmente no que tange à funcionalização dos direitos, que devem
ser exercidos e ter seu merecimento de tutela avaliado a partir do cotejo com os demais

35
Criptografia de ponta a ponta é inviolável, afirma cofundador do WhatsApp, STF, 02 jun. 2017. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=345383>. Acesso em: 31 out. 2017.
36
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
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312 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

direitos do sistema normativo-constitucional, que impulsionou um redimensionamento


da autonomia privada, para se concluir que não existem direitos absolutos.
A ideia de se criptografar as mensagens surgiu num contexto de inúmeros vaza­
mentos de dados obtidos através da internet. O objetivo, assim, era assegurar uma tutela
da privacidade dos usuários frente aos ataques de invasores que tentam devassar sua
intimidade. Essa proteção se torna ainda mais essencial quando se percebe a irrever­
sibilidade passível de ser causada por um ataque cibernético desse tipo: uma vez violada
a segurança e compartilhada a informação ou conteúdo, torna-se muito difícil, para não
se dizer impossível, a retirada da rede mundial de computadores.
Essa irreversibilidade é um dos fatores que mais contribuem para a proteção
das comunicações, que possui assento constitucional, no artigo 5º, inciso XII, da Carta.
Nessa ordem de ideias, proteger a privacidade de todas as formas possíveis é o fim
que se busca. O próprio Marco Civil da Internet nos incisos I, II e III do artigo 7º vem
corroborar essa defesa dos mecanismos que garantam o fluxo em sigilo e seguro de
dados, sobretudo por meio da internet.37 Contudo, há que se ter em mira o fato de que
não existem direitos absolutos.
Caio César Carvalho Lima apresenta as controvérsias existentes sobre o tema,
destacando que a preocupação com a existência de um direito à criptografia também é
compartilhada em lugares como França e Reino Unido, onde se discute se seria possível
criar um espaço de conversas imune a qualquer controle e interceptação, que pudesse
ser usado por criminosos envolvidos em ataques terroristas.38
Apesar do debate ainda ser incipiente no Brasil, já se fala na literatura estrangeira
sobre uma fundamentalidade do direito à criptografia, o que é ressaltado em estudo
realizado pela Anistia Internacional,39 que trata da criptografia como uma matéria de
direitos humanos. Defendem, assim, que as pessoas em todos os lugares do mundo
deveriam ser capazes de criptografar as suas comunicações e seus dados pessoais, como
uma forma de proteção de seus direitos à privacidade e à liberdade de expressão. E isto
estaria dentro do espaço criativo concedido à autonomia privada. Resta indagar se a
autonomia pode tutelar uma criptografia impossível de ser quebrada.
A discussão surgiu mais fortemente em caso nos Estados Unidos da América
envolvendo a Apple e o Federal Bureau of Investigation (FBI), que solicitou a quebra
da cripto­grafia para ter acesso a dados, o que, na visão da Anistia Internacional, seria
uma violação, pois a exigência de que as companhias criem backdoors na criptografia
afron­taria direitos humanos internacionais, pois se romperia indiscriminadamente com
a segu­rança das comunicações e dados pessoais de qualquer um que pudesse estar
usando o software.

37
LIMA, Caio César Carvalho. Criptografia e (ou?) interceptação das comunicações: considerações sobre o assunto
em discussão na ADPF 403/STF, JOTA, 31 maio 2017, Disponível em: <https://jota.info/colunas/direito-digital/
criptografia-e-ou-interceptacao-das-comunicacoes-31052017>. Acesso em: 31 out. 2017.
38
TRENHOLM, Richard. British prime minister targets encrypted messaging after Paris attacks: asking whether
terrorists should be given safe spaces to talk, David Cameron pledges to tighten laws that could challenge
WhatsApp and other messaging apps, CNET, 12 jan. 2015. Disponível em: <https://www.cnet.com/news/david-
cameron-pledges-to-target-encrypted-messaging-after-paris-attacks/>. Acesso em: 31 out. 2017.
39
Encryption: a matter of human rights. Amnesty International, 22 mar. 2016, Relatório disponível em: <https://
www.amnestyusa.org/reports/encryption-a-matter-of-human-rights/>. Acesso em: 31 out. 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
313

O relatório da Anistia Internacional aponta ainda para o risco de autoritarismos


que já vêm sendo cometidos por governos que limitam a força da criptografia permitida,
a exemplo de Cuba, Paquistão, Índia, Rússia, Marrocos, Cazaquistão, Paquistão e
Colômbia.
No mesmo sentido, o relatório produzido por Wolfgang Schulz e Joris van
Hoboken no âmbito da UNESCO, que nas suas recomendações sugerem, em tradução
livre feita, que

Deve haver o reconhecimento dos métodos de criptografia como um elemento essencial


do cenário das mídias e comunicações. O que importa, ao final, da perspectiva dos
direitos humanos, é que os métodos de criptografia empoderem indivíduos no seu
aproveitamento da privacidade e liberdade de expressão (...). Essas propriedades incluem a
confidencialidade, privacidade, autenticidade, disponibilidade, integridade e o anonimato
de informações e comunicações.
A proteção da criptografia em leis e políticas relevantes sob uma perspectiva dos direitos
humanos é particularmente importante, porque a criptografia permite que se proteja a
informação e a comunicação nessa plataforma insegura que é a Internet. Inicialmente, a
Internet, em si, não foi designada para prover segurança à informação e as comunicações
em geral. Com o passar dos anos, técnicas de criptografia se tornaram um componente
nuclear da internet, suportado por inúmeros protocolos e Standards que permitem
sua implementação na prática. A criptografia torna possível que se ajude a garantir a
confidencialidade, privacidade, autenticidade, disponibilidade, integridade e anonimato em
arranjos específicos. Isso facilita a proteção de direitos humanos dos usuários da internet,
e a liberdade de expressão e a privacidade em particular.40

Para além da proteção das comunicações, Danilo Doneda aponta que essa
tecnologia também:

favorece a criação de novas utilidades para os sistemas de trocas de mensagens: desde


a transferência de valores até a viabilização de serviços em áreas críticas como saúde,
assistentes pessoais e outras aplicações que necessitem elevado grau de segurança e que
passam a ser viáveis.41

40
SCHULZ, Wolfgang; HOBOKEN, Joris van. Human Rights and Encryption., França, 2016, p. 60. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002465/246527E.pdf>. Acesso em: 31 out. 2017. No original: “There
needs to be recognition of cryptographic methods as an essential element of the media and communications
landscape. What ultimately matters, from a human rights perspective, is that cryptographic methods empower
individuals in their enjoyment of privacy and freedom of expression, as they allow for the protection of human-
facing properties of information, communication and computing. These properties include the confidentiality,
privacy, authenticity, availability, integrity and anonymity of information and communication. The protection
of encryption in relevant law and policy instruments from a human rights perspective is particularly important
because encryption makes it possible to protect information and communication on the otherwise insecure
communications platform that is the Internet. Initially, the Internet was itself not designed to provide for
the security of information and communications generally. Over the years, cryptographic techniques have
become a core component of the Internet, supported by numerous protocols and standards that support their
implementation in practice. Encryption makes it possible to help ensure confidentiality, privacy, authenticity,
availability, integrity and anonymity in specific settings. This facilitates the protection of human rights of Internet
users, and freedom of expression and privacy in particular”.
41
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
314 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

É de se indagar, ainda, a sede da proteção desse chamado direito à criptografia


no Direito Brasileiro. Neste sentido, parece ser mais coerente se pensar que o direito à
criptografia é um desdobramento do direito à privacidade, pois seu escopo é a tutela
daquele. Trata-se de uma técnica, isto é, um instrumento a serviço da concretização do
direito à privacidade. Mas nem por isso deixa de gozar de certa autonomia metodológica,
na medida em que concretiza também outros direitos, como a liberdade de expressão e
de comunicações. Por isso, se defende que esta técnica pode ser vista como um direito.
Contudo, resta avaliar quais os limites impostos ao seu exercício.

4 A possibilidade de quebra da criptografia


A esta altura, já foram apresentados ao leitor os marcos teóricos iniciais para um
debate envolvendo o tema da criptografia, que, como se viu, pode ser entendida como
um direito que goza de relativa autonomia, embora funcionalmente se preste à garantia
da privacidade.
O surgimento das técnicas criptográficas nas comunicações privadas encontra-se
associado a uma reação da sociedade em face do medo da vigilância. Mas será que este
temor, real e razoável, justifica a tutela de um direito absoluto? Um sistema criptográfico
de ponta-a-ponta garante, como defendem os especialistas, uma inviolabilidade total
no reino das comunicações privadas. É de se de dizer: o Estado, em hipótese alguma,
conseguirá penetrar naquele meio e obter o conteúdo daquela comunicação. E é
precisamente este o ponto em que a controvérsia se coloca de forma mais intensa. Seria
esta inviolabilidade merecedora de tutela? Ou para que tal sistema fosse admitido
deveria haver uma possibilidade segura de quebra para atender à ponderação feita
pelo constituinte no artigo 5º, inciso XII, ao permitir em determinados casos a quebra?
O seu fundamento mais imediato é a garantia da privacidade e da liberdade de
expressão. E, como apontado pelos especialistas no tema referido alhures, a devassa de
uma única comunicação protegida pelo manto do sistema criptográfico de ponta-a-ponta
seria capaz de vulnerar todo o sistema, desprotegendo os demais indivíduos.
Inegável também o custo que adviria para as sociedades empresárias de tecnologia
caso a elas fosse imposto o dever de quebra das criptografias. A custosa implantação de
tal aparato, a serviço de ordens judiciais, poderia até mesmo levar a uma debandada
dessas sociedades do Brasil. Mas será o lucro dessas sociedades o principal argumento
a ser utilizado em sua defesa?
Essas sociedades vendem a imagem de que protegem integralmente a privacidade
de seus usuários. Cumpre investigar, todavia, se, na realidade, o objetivo delas não é
garantir essa tutela como afirmam, mas, simplesmente, lucrar com esse sistema inque­
brável, que atrai, a cada dia, milhares e milhares de pessoas para suas redes. Até que
ponto a garantia de uma criptografia de ponta-a-ponta não é a tutela do lucro dessas
sociedades empresárias e não a real proteção de seus usuários?
Os impactos da quebra na criptografia são sinal de preocupação ao redor do
mundo. Em recente manifestação, o Grupo de Trabalho do Article 29, no âmbito da
União Europeia, que reuniu grandes especialistas sobre o tema, afirmou que:

The data protection authorities of the European Union, represented in the Article 29
Working Party (WP29), consider that the availability of strong and efficient encryption
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
315

is a necessity in order to guarantee the protection of individuals with regard to the


confidentiality and integrity of their data which are the elementary underpinning of the
digital economy. Any obligation aiming at reducing the effectiveness of those techniques
in order to allow law enforcement access to encrypted data could seriously harm the
privacy of European citizens.
Taking into account the pressing need to balance between different public interests, like
trust in digital services on one hand, and the effective prosecution of crimes on the other,
and to safeguard the individual right to confidentiality and privacy, the Working Party
communicates the following key messages on this issue.42

Como argumentos para a defesa de sistemas fortes de criptografia, o WP29


aduziu a existência de um interesse público nas suas implementações, pois assegurar
os dados pessoais armazenados e em trânsito representa a pedra angular da confiança
necessária para os serviços digitais, de modo a permitir a inovação e o crescimento de
uma economia digital.43
Na tentativa de mostrar que os riscos de uma vulneração na criptografia não são
apenas para as sociedades empresárias do ramo de telecomunicações, o WP29 ainda
assinala para o problema dos backdoors, que, assim como as chaves-mestras, para serem
efetivos, teriam que ser trocados entre agências estatais numa escala global, o que levaria
à sua disseminação generalizada, incrementando os riscos de que tais chaves fossem
comprometidas. E, associando isto ao fato de que governos e sociedades empresárias
dependem desses serviços para a prática segura de diversos atos cotidianos, alertam os
especialistas do WP29 que os riscos de um enfraquecimento da criptografia poderiam
levar a um mal maior do que aquele que é invocado como argumento para defesa das
quebras.
Aliado a isso, afirma o grupo que a quebra desses dados só prejudicaria os usuários
comuns, porque os criminosos, que são a razão para quem defende as quebras, acabariam
investindo em mecanismos alternativos e invioláveis de sigilo, adaptando os sistemas
para impedir o controle.
Neste sentido os professores Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos:

Os criminosos que almejam praticar ilícitos todos irão recorrer a medidas técnicas de
ocultação dos seus endereços IPs na internet. Investirão recursos, software e dispositivos
técnicos para que as autoridades não os possam identificar. Já os cidadãos regulares, que
são a maioria esmagadora dos brasileiros, estarão à mercê de abusos e da vigilância por
parte de autoridades públicas, que a seu único e exclusivo critério (sem ordem judicial)
poderão revelar quem está do outro lado da rede.44

A conclusão destes especialistas é de que a facilitação da quebra dessas comuni­


cações acabaria por gerar o nefasto efeito de levar os criminosos ao submundo, onde eles

42
ARTICLE 29 Data Protection Working Party. Statement of the WP29 on encryption and their impact on the protection
of individuals with regard to the processing of their personal data in the EU, 11 abr. 2018. Disponível em: <https://
ec.europa.eu/newsroom/article29/document.cfm?action=display&doc_id=51026>. Acesso em: 01 jun. 2018.
43
ARTICLE 29 Data Protection Working Party. Statement of the WP29 on encryption and their impact on the protection
of individuals with regard to the processing of their personal data in the EU, 11 abr. 2018. Disponível em: <https://
ec.europa.eu/newsroom/article29/document.cfm?action=display&doc_id=51026>. Acesso em: 01 jun. 2018.
44
SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar
Editora Associada Ltda., 2016, p. 141.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
316 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

se valeriam de tecnologias ainda menos conhecidas, dificultando mais e mais a apuração


dos crimes, que poderia ser feita sem a quebra do sigilo, através de um aperfeiçoamento
da análise dos metadados (normalmente não sujeitos a criptografia), o que também
é corroborado por Danilo Doneda, que ainda aponta que existe a “possibilidade de
recuperar as comunicações diretamente dos dispositivos na ponta – pois sempre haverá
uma interface analógica devassável entre a mensagem criptografada e o seu emissor
ou receptor”.45
E esse efeito nefasto levaria a uma desproteção dos indivíduos comuns, uma vez
que, com a existência dos backdoors em favor das autoridades estatais, cibercriminosos
poderiam se valer dessas portas para violar as informações das pessoas.
Neste mesmo sentido, é de fundamental importância transcrever a esclarecedora
opinião de Danilo Doneda, para quem:

A solução das backdoors, que à primeira vista pode parecer razoável, infelizmente contrasta
diretamente com a experiência acumulada em segurança da informação, que indica que a
implementação de uma chave-mestra inexoravelmente diminui drasticamente a segurança
de um sistema criptográfico. Em outras palavras, simplesmente não é possível implementar
uma backdoor e manter a segurança que a criptografia tinha anteriormente, tornando-a
mais vulnerável à intromissão de terceiros no conteúdo das comunicações e fragilizando
as utilizações que necessitem de maior segurança.
(...) a mera existência da backdoor é em si um risco potencial, pois seu vazamento (que,
aliás, ocorre com frequência) ou sua má utilização podem comprometer a segurança
não somente de uma determinada comunicação privada, mas de toda a plataforma de
mensagens. Segundo, a sua existência funciona como um atrativo para que agentes mal-
intencionados, como criminosos em busca de informações financeiras, procurem explorar
as suas vulnerabilidades.
E note-se que, quanto mais valiosas as comunicações em um sistema de mensagens, maior
o incentivo para que grandes recursos computacionais sejam utilizados para estes tipos
de ataque.46

O argumento da ida dos criminosos para um submundo merece, contudo, ser visto
com ressalvas, pois se trata de suposição que não goza de muitos elementos concretos
de comprovação. Além disso, nem todos os criminosos e tipos de crime que se pretende
combater com as interceptações detêm esse nível de aparato tecnológico a seu dispor.
Será que todos os traficantes das comunidades do Rio de Janeiro deixariam de usar o
WhatsApp se a criptografia fosse quebrável e tivessem acesso a aparelhos mais potentes?
Estas questões não saem do campo das suposições.
Outro argumento trazido pelo GP29 e pelos professores referidos é o da pro­
porcionalidade. Este sim apresenta uma centralidade e um peso de elevada importância
nessa discussão. A ideia central é de que haveria outros meios de se atingir o objetivo

45
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
46
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
317

visado pela quebra da criptografia de forma menos gravosa e perigosa, o que desle­
gitimaria qualquer tipo de quebra, com base no princípio da proporcionalidade.
Dentre tais meios, o GP29 elenca os seguintes:

- Acessar metadados de comunicações e dados não criptografados mantidos pelos


controladores de dados.
- Usar engenharia social para se infiltrar em organizações criminosas.
- Exigir que supostos criminosos e / ou pessoas de interesse forneçam sua chave de
criptografia .
- Usar ferramentas de interceptação direcionadas, como os coletores IMSI (uma ferramenta
projetada para interceptor comunicações móveis em sua vizinhança), ou interceptar
comunicações eletrônicas específicas, acessando redes de provedores de comunicações
eletrônicas.
- Usar ferramentas específicas e direcionadas para adivinhar ou interceptar uma senha,
acessar documentos e / ou registrar pressionamentos de tecla antes da criptografia no
dispositivo do remetente ou após a descriptografia pelo destinatário.
- Obter chaves de criptografia individuais armazenadas por controladores de dados ou
serviços de garantia de chaves.47

Apresentados estes argumentos contrários à quebra da criptografia, pode-se


concluir que, em verdade, quem defende a sua impossibilidade, de maneira geral, não é
contrário à ideia de que o Estado obtenha acesso ao conteúdo das comunicações se estas
são criminosas e decorrentes de ilícitos. A preocupação é com os danos colaterais que
podem advir desta quebra, notadamente a vulneração de todo o sistema e a desproteção
de indivíduos comuns.
Entretanto, o dano colateral só existe porque o mecanismo apresentado é vul­
nerável em si mesmo, isto é: não permite quebra parcial. O que se critica não é a quebra,
mas a quebra que desproteja as demais pessoas. Resta saber se esses outros meios
invocados efetivamente dão conta do problema. Se a resposta for negativa, a quebra
deve acontecer. E, caso se defenda a quebra, esta deve tentar vulnerar o menos possível
os sistemas e os usuários. E esta é uma tarefa que deve ser compartilhada entre o Estado
e as sociedades empresárias de tecnologia.
Nesse contexto de busca de meios menos restritivos, o Marco Civil da Internet
trouxe uma poderosa ferramenta para o combate aos delitos virtuais, qual seja, a
obrigação da guarda de logs de conexão e logs de acesso de todos os usuários da internet
brasileiros, pelo prazo de 1 (um) ano e 6 (seis) meses respectivamente.

47
“- Access communications metadata and unencrypted data held by data controllers.
- Use social engineering to infiltrate criminal organizations.
- Require alleged criminals and/or persons of interest to provide their encryption key.
- Use targeted interception tools such as IMSI catchers (a tool designed to intercept mobile communications in
its vicinity), or intercept specific electronic communications by accessing electronic communications providers’
networks.
- Use specific and targeted tools to guess or intercept a password, access documents and/or record keystrokes
before encryption on the sender’s device, or after decryption by the recipient.
- Obtain individual’s encryption keys that are held by data controllers or key escrow services”. (ARTICLE 29
Data Protection Working Party. Statement of the WP29 on encryption and their impact on the protection of individuals
with regard to the processing of their personal data in the EU, 11 abr. 2018. Disponível em: <https://ec.europa.eu/
newsroom/article29/document.cfm?action=display&doc_id=51026>. Acesso em: 01 jun. 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
318 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A utilidade trazida por essa previsão normativa é inegável e inquestionável,


sobretudo no empoderamento que dá às autoridades de investigação civil e criminal
para a investigação e instrução processual penal. Affonso e Lemos afirmam que “esses
‘metadados’, que o Marco Civil obriga a guardar, são inegavelmente a ferramenta
de investigação mais forte (para não dizer invasiva) já criada no âmbito do direito
brasileiro”.48Não obstante, é preciso avaliar a extensão dessa utilidade, sobretudo
quando cotejada com a quebra do sigilo das comunicações, isto é, deve-se perquirir a
imprescindibilidade das interceptações de comunicações privadas. Para isso, não há
como se descolar da empiria de quem trabalha com investigações criminais.
E, neste ponto, a experiência de juízes criminais, contudo, parece ser diferente.
Em palestra proferida no I Simpósio de Linguística Forense da UERJ, realizado na
referida universidade, no dia 23.10.2017, a magistrada Renata Gil de Alcantara Videira
– titular da 40ª Vara Criminal da Capital do Rio de Janeiro, Presidente da Associação dos
Magistrados do Estado do Rio de Janeiro e Vice-Presidente Institucional da Associação
dos Magistrados Brasileiros, afirmou que no Estado do Rio de Janeiro a quase totalidade
das investigações criminais relativas ao tráfico de entorpecentes é iniciada a partir de
interceptações telefônicas.
A magistrada discorreu sobre a sua experiência prática, citando casos importantes
onde atuou, como o da Máfia dos Fiscais, esclarecendo que, só a partir da interceptação
das comunicações, foi possível delinear a autoria e a materialidade dos crimes praticados.
Em outro caso, contudo, na investigação do assassinato do ganhador da Mega-Sena
Renné Senna, os investigadores utilizaram o cruzamento de dados das estações rádio
base (ERBs) para identificar que os telefones celulares de alguns suspeitos estavam num
raio próximo ao local do crime no momento do seu cometimento.
Destarte, a importância dos metadados é inegável e parece ter sido reconhecida
pela legislação pátria, que incorporou no artigo 17 da Lei nº 12.850/13 a obrigação de as
concessionárias de telefonia manter pelo prazo de cinco anos os registros das chamadas à
disposição das autoridades. Entretanto, na visão empírica, isso não tornaria desnecessária
a quebra do sigilo das comunicações, que também depende de autorização judicial para
sua obtenção, o que, segundo afirmou a magistrada em sua conferência, é feito com muita
cautela, uma vez que o magistrado que defere a quebra do sigilo se torna criminalmente
responsável pela sua devassa indevida, eis que tão sensível à privacidade dos envolvidos.
Na visão da magistrada não haveria para os criminosos a expectativa legítima
de utilizar um espaço infenso a qualquer interferência estatal. Falar numa criptografia
impossível de ser quebrada seria falar num espaço onde o Estado não pode atuar, nem
mesmo em defesa de um bem jurídico contraposto, como a vida de uma pessoa.
Entrevistada para os fins de trabalho monográfico49 a mesma magistrada
compartilhou sua experiência de 19 anos como juíza criminal, apresentando também
uma posição institucional, tendo em vista as associações de classe das quais faz parte.
Do ponto de vista da magistrada, de quase duas décadas de judicatura criminal
e após a atuação em diversos casos envolvendo interceptações, não há como se pensar
no seu abandono. Segundo Renata, as interceptações não são só úteis, mas essenciais no

48
SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar
Editora Associada Ltda., 2016, p. 143.
49
Entrevista gravada em áudio feita na sede da AMAERJ, no Museu da Justiça, Rio de Janeiro, em 24 jul. 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
319

contexto brasileiro, sobretudo por causa da deficiência dos outros meios de prova. Na
sua experiência, pôde constatar ao longo dos anos que há grande deficiência de pessoal
e de recursos dos institutos de perícia e da Polícia na avaliação das provas coletadas. E
embora espere que outros meios venham a ser tão utilizados como as interceptações,
hoje, elas ainda são um instrumento muito importante para a apuração dos crimes.
Questionada sobre a importância prática das interceptações, a magistrada explica
que as utiliza, por exemplo, para realizar um confronto com depoimentos testemunhais,
pois, no âmbito criminal, a prova testemunhal ainda é muito importante. Logo, a
interceptação é essencial como comprovação de outros elementos de prova. Adverte,
contudo, que ela faz parte de um conjunto, não podendo ser analisada isoladamente,
sendo de grande valia na confrontação para se chegar à verdade daquele fato que está
sendo investigado ou julgado.
Para a Presidente da AMAERJ, as interceptações servem para o monitoramento,
para o flagrante de organizações criminosas, para ações imediatas de localização de
pessoas sequestradas e para um terceiro momento, que é a sua utilização como meio de
prova. Segundo ela, num primeiro momento se faz a contenção da atividade criminosa
e, se for uma atividade que tem um tempo de consumação, consegue-se impedi-la
através desse monitoramento, que será importante também para a comprovação do fato
delituoso já na fase processual.
Dentre os crimes mais comuns que necessitam da quebra de dados telemáticos,
aponta a magistrada o tráfico de entorpecentes, roubos, saidinhas de banco, asseverando
já ter apurado latrocínios sérios através da interceptação telefônica e apreensão de
celulares. Para ela, a interceptação é utilizada nos crimes que mais acontecem e atingem
a sociedade de forma mais intensa, ferindo a ordem pública e alcançando um número
maior de pessoas.
Renata afirma, ainda, que percebeu ao longo desse tempo de magistratura uma
evolução no uso da tecnologia pelos criminosos. Destaca que, no início, as comunicações
eram mais físicas, através de envio de recados, passando para os telefones celulares e
aparelhos de rádio como Nextel, através de ligações e depois de aplicativos como o
“BBM”, culminando na utilização de aplicativos como o WhatsApp e o Telegram, bem
como outros que a Justiça ainda não conseguiu detectar.
Num aprofundamento crítico da visão da realidade prática apresentada pela
magistrada, pode-se chegar a algumas conclusões parciais. A principal delas é a
imprescindibilidade hoje do uso das interceptações telefônicas e telemáticas. Apesar de a
magistrada admitir que o uso de outros meios seja possível, no presente, a essencialidade
das interceptações parece ser inquestionável.
Disso decorre que, com o aperfeiçoamento das investigações criminais e das
técnicas, paralelamente à capacitação de pessoal e ao incremento tecnológico, possa se
chegar a um cenário em que o uso das interceptações seja diminuto, embora não vedado.
E a própria lei de interceptações vem nesse sentido, quando dispõe que as quebras
devem ser a ultima ratio.
Ocorre, contudo, que a construção de perfis de monitoramento na rede a partir de
dados cadastrais de usuários criminosos não basta hoje para a apuração de crimes mais
imediatos e para a materialidade evidente a partir do registro da voz dos criminosos.
José Luis Bolzan de Morais e Elias Jacob de Menezes Neto defendem o uso dos
metadados, que poderiam dizer muito mais sobre a vida privada de um indivíduo do que
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
320 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

o conteúdo dos e-mails. Enumeram, assim, exemplos desse tipo especial de informação
que poderiam ser usados para tanto:

endereços IP (internet protocol), números MAC (media access control); ESN (electronic serial
number) EMSI (international mobile subscriber identity); cookies com dados de pesquisas
em mecanismos de busca; informações de posicionamento por satélite transmitidas para
fabricantes de smartphones ou tablets e inseridas automaticamente como metadados nas
fotografias feitas nesses dispositivos; informações de localização das torres de transmissão
próximas de terminais móveis de telefone e internet; origem, destinatário e hora de
telefonemas, envio de mensagens e e-mails etc.50

Para os autores, essas seriam algumas das informações não protegidas pelo
conceito de “comunicações pessoais armazenadas” que poderiam ser usadas para
associar qualquer indivíduo a um ponto específico no espaço e no tempo, além de
permitirem estabelecer a rede de contatos e relacionamentos do indivíduo. Assim, “se
você sabe e combina um número suficiente de informações online e offline, você talvez
tenha dados suficientes para fazer um palpite muito provável (às vezes quase perfeito)
sobre quem estava fazendo o que, quando e onde”.51
A grande questão que se coloca é saber se um palpite basta para uma condenação
criminal. Nesse sentido, a magistrada Renata Gil reitera que as comunicações são usadas
como importante meio de prova para confrontação das testemunhas, ressaltando que a
expectativa de privacidade dos interlocutores cede diante do bem jurídico contrastado,
que, na maioria dos casos, é a vida de uma pessoa que está sendo sequestrada ou a
própria segurança das pessoas de um modo geral, tendo em vista os casos relativos ao
tráfico de entorpecentes.
Inegável também seu uso para dar maior concretude às provas, uma vez que
o conteúdo das interceptações se mostra como um meio de prova muito eficiente,
conferindo robusteza ao acervo probatório colacionado aos autos para imputar a autoria
e a materialidade de um crime a um indivíduo.
Não obstante, um problema existente, é a incerteza quanto à autoria da comu­
nicação por meio dos aplicativos de mensagem à primeira vista. A menos que haja uma
análise mais detalhada, não há como se ter certeza de que quem digita uma mensagem
no WhatsApp é realmente quem diz ser, diferentemente de uma ligação telefônica,
em que o confronto da voz permite levar a uma certeza quase absoluta da identidade
dos interlocutores. Esse problema, contudo, poderia ser minorado com a análise da
inteligência policial, mas é, certamente, um ponto a ser considerado.
Importante, por fim, salientar que, conforme disposto no artigo 10 da Lei
nº 9.296/96, constitui crime realizar a interceptação de comunicações com objetivos
não autorizados em lei, bem como se exige no artigo 8º da mesma lei a necessidade de
preservação do sigilo das diligências, gravações e transcrições. Da mesma forma, exige

50
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 426-427.
51
BENNET, Colin et al. Transparent livres: surveillance in Canada. Edmonton: AU Press, 2014 apud MORAIS, José
Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na Proteção das
Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance. In: LEITE,
George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 427.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
321

o artigo 5º a devida fundamentação. Tais comandos normativos acabam por impor aos
magistrados e demais autoridades envolvidas constrições salutares, aptas a proteger a
privacidade dos indivíduos, evitando que as comunicações sejam utilizadas para outros
fins que não os da decisão que autorizou sua interceptação.
Desse cotejo da doutrina com a prática forense, pode-se concluir que, na visão
esposada por representante de grande envergadura da magistratura nacional, apesar dos
meios sugeridos pelos membros do GP29 serem menos restritivos de direitos à luz do
princípio da proporcionalidade,52 estes ainda não estão completamente aptos a atender
as demandas das investigações criminais no Brasil. Não há dúvidas, para nenhum dos
lados do debate, que não há uma expectativa legítima de privacidade para quem está
causando perigo de vida e afrontando a incolumidade da sociedade e pondo em risco
os bens jurídicos mais caros, em violação à ordem jurídica. Não quer isso dizer, todavia,
que haja um cheque em branco para os juízes determinarem as quebras sem nenhum
critério de proporcionalidade e razoabilidade.
Trata-se, portanto, de colocar na balança os dois principais bens jurídicos a serem
sopesados: os riscos da vulneração de todo o sistema e de indivíduos comuns a partir da
quebra da criptografia, com abalos à privacidade e à liberdade de expressão das pessoas
versus a integridade físico-corporal de indivíduos que possam estar sendo sequestrados,
ou até mesmo, a segurança pública.
A abordagem deve ser casuística. Pode-se construir como standard a ideia de
que, prima facie, devem ser utilizados todos os meios possíveis de obtenção de dados
necessários para fundamentar uma investigação criminal, como os metadados. Não
sendo possível, deve-se avaliar se o bem jurídico contraposto, por exemplo, a vida de
uma pessoa, justificaria uma interceptação, uma vez que esta deve ser a ultima ratio.
Não havendo outro meio apto a atingir o mesmo objetivo, aí sim deve-se autorizar a
quebra. E, em se quebrando, deve-se procurar os meios tecnológicos que comportem
menor impacto para os demais usuários e para a sociedade de um modo geral. Nesse
contexto, tal como sugerido pelo GP29, a obtenção de chaves individuais pode ser uma
alternativa viável, que acabaria não vulnerando o sistema como um todo e permitiria
alcançar o mesmo resultado: a obtenção do conteúdo da comunicação.
Contudo, essa busca pelos meios tecnológicos menos gravosos não incumbe
somente ao Judiciário, que não detém a expertise técnica para tanto, mas também às
sociedades empresárias de telecomunicação que lucram com os sistemas criptográficos
e que devem atuar em cooperação com o Estado para a melhor apuração dos ilícitos.
A mera recusa em cumprir as ordens judiciais desafia a autoridade das próprias decisões,
não podendo ser admitida a mera alegação genérica de impossibilidade técnica.
Por isso, fundamentalmente, apesar dos inegáveis benefícios trazidos pelos
sistemas criptográficos em reação à expansão dos tentáculos da Sociedade da Vigilância
no contexto do paradigma da surveillance, há casos em que a criptografia, enquanto
instrumento da privacidade e da liberdade de expressão e comunicação, deve ceder face
a outros bens jurídicos, como a vida e a integridade físico-corporal de um indivíduo.
Com isso, a existência de um mecanismo que seja completamente intransponível em

52
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de
trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 474.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
322 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

qualquer situação não deve ser merecedora de tutela, porque privilegiaria abstratamente
um direito em face de outro, o que é incompatível com o sistema vigente.
Não se pode admitir a existência de um direito absoluto em si e que não comporte
ponderação diante do caso concreto. Todos os direitos e as situações jurídicas devem
ser exercidos a partir de uma função privilegiadora de algum valor constitucional. Não
se questiona que a criptografia privilegie valores como a privacidade e as liberdades de
expressão e comunicação. Contudo, a mesma perspectiva funcional exige que, no cotejo
com outros direitos, no caso concreto, este direito possa ceder, diante da grandeza de
outros bens jurídicos, como a vida de uma pessoa.
Conclui-se, assim, que deve ser dado todo o reforço possível ao fortalecimento dos
sistemas criptográficos, mas não se pode permitir que eles se tornem, abstratamente, uma
barreira intransponível e absoluta, pois isso seria uma exorbitância do poder conferido
à autonomia privada, que deve ser entendida dentro de uma perspectiva funcional que
privilegie os demais valores contrastantes do ordenamento.

Conclusão
Rockwell e George Orwell, em contextos diferentes, já denunciavam a mesma
situação: o medo da vigilância extrema. Inicialmente concentrada, passou a se dar de
maneira difusa a partir do paradigma da surveillance, o que se torna potencialmente
perigoso, tendo em vista o armazenamento na forma de big data, que, manipulado
astuciosamente, pode levar a um controle das massas. E tudo isso através da coleta de
dados pessoais, que na maioria dos casos se dá de forma quase imperceptível para os
indivíduos.
Nesse cenário, o direito à privacidade sofreu uma alteração significativa, com
maior vulnerabilidade, diante do aumento da exposição da vida privada. Diante dessa
noção de vigilância difusa, a espionagem chega a atingir pessoas comuns. E, como forma
de reação a essa intromissão indevida na vida íntima, a sociedade passa a demandar
cada vez mais aparatos tecnológicos capazes de impedir essa vigilância.
Dentre estas formas, estão os sistemas de criptografia (entendendo-se haver
um direito à criptografia, que, embora sirva fundamentalmente à garantia do direito
à privacidade, goza de relativa autonomia, porque também protege direitos como
a liber­dade de expressão e comunicação), sobretudo aqueles de ponta-a-ponta, que
prome­tem uma indecifrabilidade tendente ao absolutismo. E isto se choca frontalmente
com a demanda, ainda existente e legítima, de que se obtenha acesso ao conteúdo de
comuni­cações privadas, desde que respeitado o comando do artigo 5º, inciso XII, da
Consti­tuição da República.
Os estudos têm caminhado no sentido de que essa forma de intromissão deve ser a
ultima ratio, dada a sua gravidade, pois, ao se levantar o sigilo de uma comunicação, pode-
se acabar vulnerando também outras personagens envolvidas na troca de mensagens,
que, em muitos casos, nada têm a ver com o ilícito que se quer coibir. Por isso, devem
ser privilegiados outros meios menos restritivos de direito para a apuração dos ilícitos,
como a análise dos metadados.
Todavia, como se demonstrou a partir da experiência da judicatura criminal, esta
ainda não é uma solução que dê conta de resolver todos os problemas experimenta­
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
323

dos pela investigação policial brasileira. A consequência é a necessidade de quebrar a


cripto­grafia. Entretanto, isto conduz a diversos empecilhos, como a impossibilidade
de interceptar uma conversa entre dois usuários sem vulnerar e comprometer todo o
sistema. Sugere-se, por essa razão, que sejam adotados outros meios de se realizar a
interceptação, sem que isso afete todo o sistema, mas apenas os usuários envolvidos.
Pelo exposto, a quebra do sistema criptográfico como um todo deve ser a
derradeira opção, mas não se pode negar a sua possibilidade. Admitir o contrário
seria tornar absoluto o direito à criptografia, o que é impensado diante de uma análise
funcional dos institutos, que devem sempre promover valores jurídicos, mas estes devem
ser passíveis de ponderação com outros valores diante do caso concreto.
O objetivo deste trabalho, portanto, é afirmar a necessidade de fortalecimento
e garantia dos sistemas criptográficos, mas impedindo que estes se tornem absolutos
a ponto de não comportarem ponderação, o que levaria a um exercício abusivo desse
direito. Assim, a sociedade como um todo deve batalhar para a conquista de mecanismos
seguros de criptografia, mas que permitam, de algum modo, a sua quebra e a consequente
interceptação quando isto se demonstrar necessário.

Referências
ARTICLE 29 Data Protection Working Party. Statement of the WP29 on encryption and their impact on
the protection of individuals with regard to the processing of their personal data in the EU, 11 abr. 2018.
Disponível em: <https://ec.europa.eu/newsroom/article29/document.cfm?action=display&doc_id=51026>.
Acesso em: 01 jun. 2018.
BENNET, Colin et al. Transparent livres: surveillance in Canada. Edmonton: AU Press, 2014 apud MORAIS,
José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na Proteção
das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance. In:
LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014.
Cambridge Analytica anuncia fim de suas operações. G1, 02 maio 2018. Disponível em: <https://g1.globo.
com/economia/noticia/cambridge-analytica-anuncia-fim-de-suas-operacoes.ghtml>. Acesso em: 01 jun. 2018.
Criptografia de ponta a ponta é inviolável, afirma cofundador do WhatsApp, STF, 02 jun. 2017. Disponível
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DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-
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www.amnestyusa.org/reports/encryption-a-matter-of-human-rights/>. Acesso em: 31 out. 2017.
Entrevista gravada em áudio feita na sede da AMAERJ, no Museu da Justiça, Rio de Janeiro, em 24 jul. 2017.
Falha de segurança no iOS permite que câmeras do iPhone gravem e fotografem sem que usuário saiba.
O Globo, Rio de Janeiro: 26 out. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/falha-de-
seguranca-no-ios-permite-que-cameras-do-iphone-gravem-fotografem-sem-que-usuario-saiba-21996063?utm_
source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=O%20Globo>. Acesso em: 27 out. 2017.
LIMA, Caio César Carvalho. Criptografia e (ou?) interceptação das comunicações: considerações sobre o assunto
em discussão na ADPF 403/STF, JOTA, 31 maio 2017, Disponível em: <https://jota.info/colunas/direito-digital/
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Linha do tempo. Bloqueios.info. Disponível em: <http://bloqueios.info/pt/linha-do-tempo/>. Acesso em: 03
nov. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
324 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

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AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR:
TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL

“Só que tem que eu tô numa tão certa que ninguém me diz,
o que eu sou, o que devo fazer e o que eu não fiz”.
(É isso aí, Dóris Monteiro)

CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN

CAIO RIBEIRO PIRES

Introdução
A perspectiva de um Direito Civil, enquanto ramo que mais diz respeito ao
cotidiano de cada pessoa humana1 e que, orientado a partir de valores constitucionais,
permite a construção de direitos que possibilite a plena proteção da pessoa humana,
considerando que ela, enquanto encarada de liberdade, potencializa sua aptidão para
desenvolver sua personalidade, de maneira a construir e reconstruir seus interesses,
imprimir direitos a partir de sua autodeterminação, de maneira a permitir uma dimensão
dinâmica da sua condição existencial.
A partir daí, é preciso reconhecer que a pessoa humana incorpora as circunstâncias
de sua vida e se destacam os mais variados desdobramentos jurídicos, os quais podem
despertar situações patrimoniais e situações existenciais2 e das quais o intérprete não

1
Conforme LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. v. 1. 6. ed. 3ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 52.
2
“Todo homem, (...) é titular de situações existenciais (...), como o direito à vida, à saúde, ao nome, à própria
manifestação do pensamento, prescindem das capacidades intelectuais. O estado pessoal patológico ainda
que permanente da pessoa, que não seja absoluto ou total, mas graduado e parcial, não se pode traduzir em
uma série estereotipada de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto, isto é, levando em conta o
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
326 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

pode desconsiderar, visando o tanto quanto possível resguardá-las. Ademais, como


bem lembra Anderson Schreiber,3 o texto constitucional incorpora situações várias, mas
ganha relevo a proteção do ser em detrimento do ter.
Nesse cenário, despontam-se os novos interesses, novos direitos, novos sujeitos.
Ou seja, a situação existencial da pessoa passa a se articular com o pluralismo jurídico,
com a dignidade humana e com a liberdade, ante o fortalecimento do Estado Democrático
e Social e os direitos humanos.
À luz dos direitos humanos e seu fortalecimento, o Congresso Nacional aprovou,
por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, conforme o procedimento
do §3º do art. 5º da Constituição, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de
2007, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009.4
Nesse contexto, ocorrem repercussões no estudo das incapacidades e, então,
no direito interno, inovou-se o ordenamento jurídico a ser editado, por meio da Lei nº
13.146/2015, que foi o Estatuto da Pessoa com Deficiência, cujo escopo é assegurar e pro­
mover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais
pela pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania (art. 1º).
Nessa rota, o presente estudo, sob uma perspectiva de compreensão unitária
do ordenamento e considerando as pessoas com deficiência, pretende contribuir para
o debate quanto à tutela das suas manifestações na esfera privada, acerca dos direitos
autorais, considerando situações existenciais e sem excluir as de natureza patrimonial;
ou seja, é promover a tutela das potencialidades criativas das pessoas com deficiência,
levando em conta alguns parâmetros pesquisados para que possam ser manejados pelo
intérprete no âmbito mais concreto.

1 Pessoa com deficiência e sua dimensão existencial sob a perspectiva


civil-constitucional
O fortalecimento do Estado Constitucional Democrático faz com que o discurso
jurídico incorpore cada vez mais os direitos humanos5 e os direitos fundamentais6 no

grau e a qualidade do déficit psíquico, não se justificam e acabam por representar camisas-de-força totalmente
desproporcionadas e, principalmente, em contraste com a realização do pleno desenvolvimento da pessoa”
(O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 781).
3
SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 18.
4
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 1.6.2018.
5
Conforme ensina Sidney Guerra, “indubitavelmente, a expressão direitos humanos chega ao século XXI como
grande força e vitalidade, sendo largamente utilizada em manifestações da sociedade civil, na política, para
pleitear direitos, enfim, nas mais distintas reivindicações” (Direitos humanos: curso elementar. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 31).
6
Pode-se afirmar sobre a eficácia de caráter vertical dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado sempre que
ocorrer a discussão a respeito da vinculação do legislador privado e dos órgãos do Poder Judiciário, conforme
explica Ingo Wolfgang Sarlet, “no exercício da atividade jurisdicional no que se refere à aplicação das normas
do direito privado e a solução dos conflitos entre particulares; no exercício da atividade jurisdicional no que
diz com aplicação” (Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação
dos particulares aos direitos fundamentais. In: Revista de direito do consumidor, n. 36, p. 54-104, out./dez. 2000).
Já, no pertinente à denominada “eficácia horizontal”, envolve a “problemática acerca da eficácia dos direitos
fundamentais no âmbito das relações entre particulares, mais propriamente, da vinculação destes (pessoas físicas
e jurídicas) aos direitos fundamentais” (idem, ibidem).
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
327

âmbito das situações privadas; além disso, promove a construção de novos direitos
e também amplia a sensibilidade do intérprete para despertar a preocupação com a
efetividade da proteção da pessoa em todas as esferas da sua dignidade, enquanto ser
humano (art. 1, III, da CF/88), considerando que, numa sociedade cada vez mais plural,7
desponta-se a necessidade de proteção de pessoas as quais sejam reconhecidas como
vulneráveis, como é o caso do consumidor, doente crônico, analfabeto, superendividado,
idoso, a pessoa com deficiência, entre outros.
Na verdade, o fortalecimento do Estado Constitucional procura, ainda que a passos
lentos, proporcionar a inclusão social e a tutela das minorias, por meio de facilitação
de acesso ao Judiciário e da criação de um arcabouço de normas que se apontam como
princípios e disciplinamento específico, fruto da incorporação crescente no discurso
jurídico dos direitos humanos e da abertura para revelação de novos direitos.
Ou seja, sob a perspectiva do despertar de uma compreensão cada vez efetiva dos
fundamentos constitucionais, legitimam-se considerações de um direito que Antonio
Carlos Wolkmer, citando Carlos Cárcovo, denomina “direito multidimensional”;8 ou
seja, um direito sob diferentes enfoques – dogmático, sociológico, epistêmico, político,
ético e antropológico –, os quais permitem uma construção mais elaborada do contexto
de dignidade humana e de solidariedade (arts. 1º, III, e 3º, I, da Constituição Federal).
Nessa rota, o fortalecimento do Estado Constitucional, conforme Wolkmer,
contribui para superar concepções baseadas na lógica da “atomização de um sujeito
histórico universal-individualista”.9
A partir daí, uma perspectiva mais expandida do reconhecimento da necessidade
de direitos permite que, aos poucos, grupos até então excluídos ou invisíveis, como
crianças, idosos e pessoas com deficiência, dentre outros, passem a ser reconhecidos
como vulneráveis e passem a demandar a construção de direitos e serem reconhecidos
como titulares de direitos especiais.
Captando os ensinamentos de Wolkmer, para o presente estudo, permite-se
reconhecer que surge um “pluralismo legal ampliado”,10 consubstanciado, conforme o
autor, na rediscussão de questões relacionadas às fontes, aos fundamentos e ao objeto
do Direito.
Ou seja, o pluralismo faz com que “como novo referencial do político e do jurí­dico
esteja necessariamente comprometido com a atuação de novos sujeitos coletivos (novos
atores), com a satisfação das necessidades humanas essenciais (fundamentos materiais)”.11

7
Antonio Carlos Wolkmer designa pluralismo jurídico como “a multiplicidade de práticas jurídicas existentes
num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo
sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais” (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo
jurídico: fundamentos para uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001, p. 219). Ademais,
o autor, ao reconhecer que os espaços de representatividade não conseguem mais dar a dimensão da cidadania
pelos canais institucionais e de representatividade; ou seja, “à medida que, gradativamente, as regras formais
clássicas de legitimidade e os arranjos institucionais liberal-português tornam-se inapropriados para canalizar
e processar uma grande diversidade de demandas inerentes às sociedades de massa, os movimentos sociais
inauguram um estilo de política pluralista assentado em práticas não-institucionais e autossustentáveis e nele
avançam, buscando afirmar identidades coletivas e promovendo um locus democrático, descentralizado e
participativo” (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, idem, p. 139).
8
Carlos Cárcovo apud WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, idem, p. 202.
9
Ibidem, p. 232.
10
Ibidem, p. 233.
11
Ibidem.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
328 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Significa afirmar que se permite, então, ao intérprete, captando os ensinamentos


de Wolkmer, reconhecer a diversidade e as diferentes formas de vidas cotidianas.12
O despertar da eficácia constitucional, então, desponta e passa a se incorporar
aos institutos de Direito Civil num discurso jurídico pautado nas várias situações da
vida as quais demandam reflexões; contribui, por conseguinte, uma interpretação que,
de uma concepção lógico-formal e codificada, assimile ao discurso jurídico situações
da vida prática das relações culturais em que o homem se projeta e se faz pessoa titular
de direitos novos.
Nesse sentido desponta o Estatuto da Pessoa com Deficiência, o qual necessita
ser lido de acordo com a tábua axiológica do ordenamento jurídico, o que perpassa sua
coerência ao todo legislativo, mas, principalmente, ao centro gravitacional daquele: a
Constituição Federal.
Para tanto, demanda-se uma interpretação sob a perspectiva do Direito Civil
Constitucional enquanto método, pois “pressupõe a existência de um ordenamento
jurídico complexo e uno, centrado nos valores constitucionais constantes de um texto de
Constituição com força normativa”.13 Nessa metodologia, significa afirmar, portanto, que
o intérprete, ao selecionar a normativa específica, “deve voltar os olhos pra os princípios
e fundamentos constitucionais”.14
Ademais, sob a perspectiva da interpretação sistemática permite “a viabilização
do equilíbrio entre formalismo e pragmatismo”15 e a busca de soluções respeitadoras
do ordenamento, em seu caráter “histórico não linear”,16 “potencialmente coerente”17 e
“permeável a evolutivas mutações”,18 de maneira a ultrapassar os contornos objetivos
descritos na norma para que ela seja aperfeiçoada.
Em suma, significa afirmar que se permite acolher uma relação de complemen­
tariedade entre as novas categorias do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em conso­
nância com o Direito Civil, com os valores constitucionais, a partir da unidade do
ordenamento, de maneira a assegurar a integralidade das regras, valores e princípios
“na condição de solidários e entrelaçados”.19
Assim, compreender a unidade do ordenamento, ao estudar os direitos da pessoa
com deficiência sob a perspectiva civil constitucional, contribui para que o intérprete
possa complementar a tarefa do legislador, estabelecendo parâmetros que melhor se
adequem às exigências que se revelam nas situações concretas da pessoa com deficiência.

12
Ressalte-se que Antonio Carlos Wolkmer estuda o pluralismo jurídico a partir da necessidade de que sejam
reconhecidas novas identidades que integram variados sujeitos, como camponeses sem-terra, trabalhadores
agrícolas, emigrantes rurais, operários mal remunerados e explorados, os subempregados, os marginalizados
dos aglomerados urbanos, subúrbios e vilas, carentes de bens materiais e de subsistência, sem luz, água, moradia
e assistência médica (Ibidem, p. 239). Não inclui as pessoas com deficiência no rol, nem a criança, mas não se pode
deixar de reconhecer que ainda há obstáculos à efetivação de seus direitos.
13
SOARES, Felipe Ramos Ribas; MATIELI, Louise Vago; DUARTE, Luciana da Mota Gomes de Souza. Unidade do
ordenamento na pluralidade de fontes: uma crítica dos microssistemas. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER,
Carlos Nelson (Coord.). Direito civil constitucional. São Paulo: Atlas, 2016, p. 71-95, em especial, p. 91.
14
SOARES, Felipe Ramos Ribas; MATIELI, Louise Vago; DUARTE, Luciana da Mota Gomes de. Idem, p. 91.
15
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 68.
16
Ibidem, p. 74.
17
Ibidem.
18
Ibidem.
19
Ibidem.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
329

Em suma novos tempos no estudo dos direitos da pessoa com deficiência, de


maneira que a interpretação busque a realização prática dos seus direitos, a partir do
princípio da autonomia privada e sob a perspectiva de “pessoa” na acepção concreta,
como reveladora de direitos que amparam seu desenvolvimento na sociedade.

1.1 De sujeito à pessoa: contribuição para o estudo da pessoa com


deficiência
Conforme ensina Stefano Rodotà,20 a partir de certo momento, os juristas se atentam
que o sujeito abstrato, dada concepção mais formal, deixa de ser um efetivo instrumento
que se permita penetrar na realidade; isto é, segundo o autor, estudar o indivíduo sob a
concepção de “sujeito” converte-se num obstáculo, pois prossegue ao considerá-lo sob
o prisma abstrato, contribui para sua desconstrução e “anulação”21 – nas palavras do
autor – isto é, deforma sua extensão.
Por isso, é preciso que “va del sujeto a la persona”.22
Ou seja, “la persona tiende a ocupar el centro de la escena casi con prepotencia,
con la fuerza, que le viene de su inmediata capacidad para expresar la materialidad de
las relaciones”.23
Adverte Rodotà que, ao defender a necessidade de que, ao invés de “sujeito”,
passe a reconhecer a “pessoa”, não se trata de um paradoxo, ao se manter a etimologia
do passado que associava pessoa como uma “máscara”;24 é que, explica o autor, era
uma compreensão da dimensão de pessoa, sob uma perspectiva muito reducionista e
vinculada a alguns atributos, típica de uma sociedade arraigada em valores liberais;
valores esses que vinculavam o sentido de pessoa ao fato de ser homem, alfabetizado,
maior proprietário;25 ademais, prossegue Rodotà, a compreensão como “sujeito” o
colocava sob uma percepção abstrata, de igualdade formal, enfim uma apresentação
insuficiente do indivíduo.26
Prossegue Rodotà então que havia a necessidade de se efetivar mais proteção ao
sujeito e, “salir de este impasse, había que reinventar la persona”.27
Entre as alterações no plano jurídico elencadas pelo autor como fatores contri­
butivos, a construção do sentido de “pessoa” a este trabalho interessa principalmente a
constatação sobre a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, que passou a
reconhecer direitos especiais para crianças, pessoas com deficiência, dentre outras; ou
seja, “alejando del proceso jurídico de construcción de la persona la indiferencia por la
realidad de las condiciones materiales”.28

20
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos [Trad. José Manuel Revuelta López]. Madrid: Editorial Trotta, 2014,
p. 135.
21
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
22
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
23
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
24
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
25
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., idem, p. 140.
26
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
27
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., idem, p. 142.
28
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ob cit. p. 146.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
330 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Nessa rota, após vários apontamentos para fortalecer o sentido de pessoa, como
titular de qualidades, de dignidade, de humanidade, Stefano Rodotà29 apresenta alguns
aspectos que justificam a movimentação da concepção de “sujeito” para “pessoa”: i.
sujeito é apenas um centro de imputação de situações jurídicas, já “pessoa” é fundamento
de todos os valores do sistema jurídico; ii. “sujeito” é considerado sob uma perspectiva
de neutralidade axiológica (indiferença, neutralidades), já “pessoa” é reconhecida a partir
de dados da realidade; e iii. “sujeito” é estudado a partir de concepções metafísicas,
enquanto “pessoa” é considerada a partir de sua concretude.
Captando esses ensinamentos, a concepção de pessoa tem profunda sintonia com
a redescoberta da humanidade e, assim, promove o direito das pessoas e seus direitos
de personalidade.
A este estudo importa contextualizar a pessoa com deficiência dentro do enunciado
movimento.
Conforme Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida, a superação do indivíduo
abstrato, “em busca pela pessoa concretamente considerada dentro do âmbito de seu
contexto social”,30 só confirma que a pessoa revela-se em situações de assimetria, de
vulnerabilidade, o que desperta a partir da ampliação de direitos humanos.31
Nessa perspectiva, é reconhecida a pessoa com deficiência como uma “questão de
direitos humanos”, ante sua situação de vulnerabilidade; tanto que ocorre a aprovação
da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD), aos 30 de maio de 2007; e mais tarde, é ratificada pelo Congresso
Nacional através do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, promulgada
pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, “com força, hierarquia e eficácia
constitucional”.32
Tal situação projetou desdobramento no âmbito da teoria das incapacidades.
Na verdade, fez com que se passasse a reconhecer mais autodeterminação às
pessoas com deficiência, o que significa sustentar que passam, ainda que minimamente,
a possi­bilidade de conduzirem seus próprios interesses, mesmo que estejam aparelhadas
de um curador. Dito de outra forma: a deficiência passa a não ser mais causa, por si,
de inclusão no rol dos incapazes (tanto absolutos como relativos, na forma do art. 104
do Estatuto da Pessoa com Deficiência e na forma já prevista no art. 12.2 da Convenção
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência).
Para tanto, em se tratando de situações envolvendo criações e a tutela dos direitos
autorais, é possível reconhecer que haverá padrões e parâmetros para o exercício dos
direitos existenciais da pessoa com deficiência (os quais são assegurados, inclusive, aos
curatelados na forma dos arts. 6º, 85 e seu §1º do Estatuto da Pessoa com Deficiência,
como melhor veremos adiante), levando em conta suas manifestações conforme a
situação existencial, o que demandará a análise de práticas, hábitos, manifestações em

29
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., idem, p. 146.
30
BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Reconhecimento, inclusão e autonomia da pessoa com deficiência:
novos rumos na proteção dos vulneráveis. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de;
ALMEIDA JR., Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro:
Processo, 2017, p. 1-30.
31
Ibidem, p. 5.
32
Ibidem, p. 6.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
331

redes sociais, enfim, é a dimensão concreta da sua existência que passa a ser a bússola
orientadora do curador.
Assim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, sob a perspectiva dos atos exis­
tenciais, diz respeito ao desenvolvimento do próprio ser humano e não se pode afastar,
no contexto contemporâneo a necessária interpretação jurídica à luz dos valores
constitucionais e da necessária assimilação do ambiente virtual no cotidiano das pessoas.
Em suma, é indispensável que no contexto atual, quando se analisa a situação
envolvendo a autonomia das pessoas, demanda portanto que a incapacidade possa ser
delimitada, reconhecida, em consonância com o caso concreto,33 como forma de promover
sim a dignidade e a autonomia da pessoa humana.
Ou seja, o que se vislumbra, portanto, é que o epicentro do debate jurídico sobre
a pessoa com deficiência consiste na preocupação com a sua autonomia privada, a
permitir uma ampliação da esfera subjetiva de sua manifestação de vontade, rompendo
com modelos objetivos lógicos, abstratos, aos quais os institutos encontravam-se acima
dos indivíduos.34

2 O contrato e a tutela mais efetiva da pessoa com deficiência


Os mais variados contextos relacionados aos interesses dignos de tutela quando
são elaborados a partir das diretrizes negociais não estão mais calcados em construções
normativas meramente objetivo-abstratas.
Ou seja, conforme ensina Rosa Nery, “não se pode deixar de considerar que o
direito, como estrutura, reconhece certos fenômenos não relacionais como jurídicos”,35
para tanto, mais do que serem estabelecidas relações jurídicas entre as partes, há também
“outros fenômenos que são jurídicos e não são relacionais, muito embora, respeitem,
evidentemente, ao sujeito”.36
A concretização do direito no âmbito das relações obrigacionais, assim, concebido
ou construído, não decorre, apenas, de esquemas lógicos.37 Ademais, as obrigações não
mais decorrem apenas da vontade, mas da construção dogmática de fatos jurídicos, os
quais se projetam dentro de uma universalidade constituída com base na confiança de
uma situação de contato especial.
Significa sustentar que há novas diretrizes que revelam a concretização da situa­
ção dos contratantes na dinâmica da relação especial decorrente do contrato, ou seja,
o contrato fixa um feixe de contornos de conduta, mas também revela uma “descon­ti­
nuidade” conforme a dinâmica dos interesses envolvidos, porque não contempla todas as
variáveis exteriorizadas e concretas das partes, os quais não se esgotam nas de natureza
econômica, mas, também, extrapatrimonial, existencial.

33
Nesse sentido: ABREU, Célia Barbosa. Curatela e interdição civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 42.
34
ABREU, Célia Barbosa. Curatela e interdição civil. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2014, p. 45.
35
NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008, p. 109.
36
Ibidem, p. 121.
37
REALE, Miguel. O direito como experiência. Introdução à epistemologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992,
p. 31.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
332 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O contrato se revela no Estado Social Democrático de Direito, portanto, quando ele


“considera valores de liberdade e interesses públicos, propriedade privada e igualdade
de todos, segurança social, flexibilidade, autonomia e responsabilidade”.38
Além disso, o contrato sofre transformações, sob a perspectiva da sua interpretação.
Ao discorrer sobre aquele, Lorenzetti39 afirma que não é mais apenas uma expressão da
autonomia da vontade, senão também que, quando os contratantes vão elaborar um
contrato, surge a necessidade de se recorrer à legislação cambiária, tributária, ambiental,
asseverar valores, princípios, além de ter que avaliar os efeitos socioeconômicos ao
restante da comunidade, sem desconsiderar, inclusive, aspectos existenciais, os quais
podem orbitar, conforme a qualidade das partes.
Conforme a situação existencial de cada uma das partes e as especificidades
envolvidas no contrato, caberá ao intérprete uma função mais ativa, construindo deveres,
faculdades, direitos; ou seja, é preciso avaliar, por exemplo: i. se há ou não a situação
de vulnerabilidade; ii. se incorre assimetria informacional; iii. se é possível reconhecer
a assunção de riscos ou não a serem suportados por uma ou ambas as partes de forma
equitativa; iv. se há direitos envolvidos e conexos à prestação principal do negócio; v. se
há a hipossuficiência de uma ou ambas as partes; vi. se há ou não situações envolvendo
interesses patrimoniais mínimos a serem tutelados em benefício de uma das partes, ou,
até mesmo, outros de caráter existencial.
Em suma, o contrato recebe os influxos axiológicos das pretensões e dos interesses,
os quais se destacam a partir da inclusão crescente de novos grupos sociais, que passam
a se auto-organizar e incrementam suas posições jurídicas, reconhecendo a eles um
arcabouço de direitos especiais.
A partir daí, quando as pessoas, titulares de direitos especiais, porque integrantes
desses novos grupos que se destacam com seus direitos, decidem, na esfera da sua
auto­nomia privada, contratar ou praticar o exercício de algum ato, o intérprete deve
proceder à análise não apenas à luz dos valores constitucionais; deve, também, expandir
seu ângulo de análise e avaliar além das lentes do controle imposto pelo ordenamento
jurídico, ou seja, o intérprete deve analisar as circunstâncias concretas.40
Nesse sentido, a existência da pessoa com deficiência dará o tom de como deve
ser orientada a tutela dos seus interesses pelo curador. No mesmo sentido, será preciso
considerar “soluções jurídicas materiais”41 acaso envolvam interesses contratuais que
tenham como disciplina direitos autorais envolvendo pessoas com deficiência, levando
em conta a preponderância da preservação, o tanto quanto possível, da situação
existencial do curatelado, o âmbito em que será desenvolvido este estudo.

38
MELLO, Adriana Mandin Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código Civil.
Revista dos Tribunais, 801: 11-29.
39
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 530.
40
Nesse sentido: SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire
contra factum proprium. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 64.
41
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 234.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
333

3 Os impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência no direito do


autor
3.1 Situações subjetivas existenciais e dúplices no direito do autor e sua
prospecção frente ao Estatuto da Pessoa com Deficiência
As relações privadas, as regras da capacidade civil das pessoas com deficiência
e situações envolvendo a interpretação jurídica passam por momentos de mudanças e
de reflexões.
O prognóstico da situação diz respeito ao fato de que, em verdade, o já referido
Estatuto, ao promover a plena capacidade de fato, no sentido inclusive da Convenção
de Nova York, em sua força de norma constitucional,42 dos supracitados sujeitos acaba
por irradiar efeitos sobre todo o ordenamento jurídico; inclusive nos direitos autorais.
Dito de outra forma, subsiste um verdadeiro espaço promocional da liberdade
traçado pelo conjunto de normas que hoje regulam a situação jurídica daquela pessoa
que apresente alguma deficiência, inclusive de cunho psíquico.43
O desenho legislativo cuida de assegurar tal intento nos arts. 6º e 85 da Lei
nº 13.146/2015 ao afirmar taxativamente que a pessoa com deficiência mantém plena
autonomia ao que tange aos direitos existenciais, ao excetuar a curatela para os atos de
natureza patrimonial e negocial.
O campo do direito do autor é profícuo para a aplicação de tais ditames.
Afinal, o art. 24 da Lei nº 9.610/98 enuncia expressamente os chamados “direitos
morais do autor”, o que nos leva à constatação, até no plano mais superficial, de que,
necessariamente, em caso de um autor pessoa com deficiência, a questão das liberdades
que a nova lei lhe concede há de emergir.
De fato, a faceta mais problemática da controvérsia envolve o caso em que, durante
sua vida, venha o autor a se tornar pessoa com deficiência sujeita a excepcional curatela,
na forma do art. 84, §2º e 3º, da Lei nº 13.146/16; encontrar-se-á o curador envolto por
um emaranhado de situações subjetivas patrimoniais e existenciais, as quais não raro
se confundem. Subsiste uma obra sobre a qual o criador curatelado apresenta direitos,
de indubitável caráter existencial44 advindos da sua autoria, porém também outros de

42
Sobre a interpretação de que o art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência compreende
o que no Brasil convencionou se entender por capacidade de fato e de exercício já se manifestou, inclusive,
o Comissariado para os Direitos Humanos do Conselho da Europa. Quanto a tal questão específica, também
com amplas referências à doutrina brasileira, COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Limitação da curatela aos
atos patrimoniais: reflexões sobre a pessoa com deficiência intelectual e a pessoa que não pode se exprimir. In:
BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.).
O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 243-270.
43
Quanto ao assunto, seja permitido remeter a BARBOZA, Heloísa Helena e ALMEIDA, Vitor. Reconhecimento,
inclusão e autonomia da pessoa com deficiência: novos rumos na proteção dos vulneráveis. In: BARBOZA,
Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e
o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 1-30.
44
Utiliza-se a nomenclatura concernente à posição de tais direitos frente à atual summa divisio, comum ao direito na
unidade do ordenamento jurídico, entre direitos existenciais e patrimoniais, mesmo que se saiba mais comum,
e tradicional, a referência no ramo autoral aos chamados “direitos morais”. Porém, ao passo que aqui se busca
alinhar a unidade do ordenamento jurídico como forma de resolver as questões de fundo do presente escrito,
opta-se por esta terminologia. Em sentido diverso, reconhecendo um debate sobre a expressão, mas a utilizando,
SOUZA, Allan Rocha de. Direitos morais do autor. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 1, jan./ mar. 2013.
Disponível em: <http://civilistica.com/direitos-morais-autor/>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
334 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

caráter patrimonial, dentre os quais nos interessam os efeitos advindos da disposição


de obra intelectual para fins de circulação.
O contexto traz consigo a quase inerente questão dos limites à atuação do curador
em relação aos direitos autorais do curatelado. A resposta mais simples, a entender o
rol de atos existenciais previstos no art. 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência como
meramente exemplificativo e estender a vedação de intervenção àqueles presentes no
art. 24 da Lei nº 9.610, não resolverá uma gama de situações.
Por tal hermenêutica restaria o curador, na inércia do curatelado, impedido de
publicar obra inédita em qualquer situação, para manter-se dentro do pretendido escopo
de análise na circulação de obras. Ademais, também não seria possível afirmar qual o
tratamento dispensado às obras contratualmente cedidas ou licenciadas45 pelo cura­telado
anteriormente à curatela quando do pedido pelo cessionário de renovação contratual
para lançamento de nova edição da obra.
Imprescindível a delimitação de espaços de atuação, inclusive no sentido
promocional, e não atuação, posto que a representação legal se constitui em poder
jurídico, também conhecido como direito-dever, onde “(...) como fundamento da
atribuição dos poderes existe o dever de exercê-los (...)” a configurar exercício “(...)
necessário no interesse de outrem, ou, mais especificamente, no interesse de um
terceiro”.46 Assim, dentro da enunciada “zona cinzenta” entre patrimônio e existência
presente na curatela do autor, o presente trabalho pretende traçar a referida delimitação,
especialmente ao que tange à circulação das obras.
Tais questões apresentam a dificuldade de tratar o direito do autor como área
do direito que apresenta “feixes” existenciais e “feixes” patrimoniais.47 Neste sentido a
proposta de Allan Rocha de Souza de valorização não unilateralmente do autor ou da
obra, mas sim do vínculo existente entre ambos.48
A pensar tais considerações de acordo com a metodologia civil-constitucional,
aplicável ao Direito Privado na unidade do ordenamento, a problemática se insere no
âmbito das situações jurídicas dúplices,49 confunde-se a situação subjetiva existencial e
patrimonial. Imprescindível, assim, delimitar a disciplina jurídica aplicável, respeitada
a prevalência do livre desenvolvimento da personalidade.
Passemos então a nos deter sobre as situações específicas supracitadas e seus
próprios meandros.

45
Diferentes os institutos, pois na cessão é transferida titularidade da obra intelectual, enquanto na licença é
autorizado um terceiro a se valer da obra. No primeiro caso subsiste algo semelhante a uma doação (quando
gratuita) ou compra e venda (quando onerosa) e no segundo uma locação (onerosa) ou comodato (gratuita). Para
tal diferenciação BRANCO, Sérgio; PARANGUÁ, Pedro. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009,
p. 93, disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/2756/Direitos%20Autorais.
pdf>.
46
PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil (tradução de Maria Cristina de Cicco). 3. ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002, p. 129.
47
BRANCO, Sérgio. A natureza jurídica dos direitos autorais. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 2, abr./jun.
2013, disponível em: <http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Branco-civilistica.com-a.2.n.2.2013.
pdf>.
48
Ibidem.
49
KONDER, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Situações jurídicas dúplices: Controvérsias na
nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
Edson. Diálogos sobre Direito Civil, Volume III. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 5-24.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
335

3.1.1 A problemática das situações jurídicas dúplices e a curatela do


autor pessoa com deficiência; a circulação da obra
No esteio afirmado em momento imediatamente anterior, o direito do autor
constitui-se repleto de situações subjetivas dúplices; afinal o lançamento, a divulgação
e até mesmo a nova edição de obra são instrumentalizados pela contratação envolta em
patrimonialidade, por revestir-se, muitas vezes, na forma de cessão ou licenciamento
oneroso. Assim, resta formada situação jurídica dúplice e a consequente convivência
entre direitos existenciais e patrimoniais.
Segundo a citada doutrina responsável por estudo sobre o tema diante da meto­
dologia civil-constitucional, a função de cada contrato será analisada para concluir a
que o instrumento serve: diretamente ao livre desenvolvimento da personalidade ou à
livre-iniciativa e obtenção de recursos econômicos.50
Decisão de dificuldade mais profunda é aquela que diz respeito aos mesmos
direitos, porém na subsistência de curatela de pessoa a qual é impossibilitada de
manifestar sua vontade, em decorrência de enfermidades físicas (a situação de coma)
ou grave redução do discernimento (causas de relativa incapacidade na forma do art.
4º, inciso III). Nestes casos indaga-se a possibilidade de considerar os contratos que
envolvam obra inédita de prevalência existencial a impedir atuação do curador e novas
edições de obras, inclusive aquelas periódicas, apenas questão de reajuste de valores e
condições negociais.
Ainda, os contratos de cessão ou licenciamento, onde o objeto contratado diz
respeito à obra de autor pessoa com deficiência, também não escapam à mais atual
concepção de que a obrigação é desenvolvida em iter complexo, composta de várias
fases e circunstanciada no caso concreto.
Conforme descrito no item anterior, ao ser apresentada a necessidade de que
é preciso assimilar os vários deveres decorrentes do contrato, sob a perspectiva mais
expan­dida dos interesses que decorrem dele, considerando os vários interesses que
exsurgem para promover o mais completo adimplemento, envolvem não só direitos e
deveres, mas também ônus, faculdades, situações extrapatrimoniais.
Desta forma os próprios tipos contratuais revestem-se de peculiaridades, entre as
quais o formato do corpus mechanicum, que contém o corpus misticum (a quem impende a
decisão sobre se o trabalho será de circulação apenas física ou também em plataformas
digitais) e a própria forma de acesso (onerosa, gratuita) prescindem da questão das
formas de exercício da atividade negocial e transbordam para o campo da visão que o
criador apresenta da relação entre a obra e o público.51

50
Ibidem.
51
Neste sentido, salutar a proposta de Allan Rocha Souza de considerar o direito moral do autor a partir da relação
deste com sua obra, verdadeiramente, o vínculo existente. Apenas assim é possível visualizar com clareza que a
disposição para fins de circulação e as decisões supracitadas para materializar tal fim dizem respeito à total visão
que o autor apresenta sobre sua obra e como ela relaciona-se com o público. SOUZA, Allan Rocha de. Direitos
morais do autor. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 1, jan./mar. 2013. Disponível em: <http://civilistica.com/
direitos-morais-autor>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
336 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3.2 Tutela do autor enquanto pessoa com deficiência e parâmetros


limitadores da atuação do curador
Posto que o ordenamento jurídico brasileiro apresenta o rol de direito morais do
autor, a unidade axiológica torna mandatória a extensão da proteção formada pelos arts.
6º e 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência nos casos em que aquele é enquadrado no
conceito do art. 2º do mesmo diploma. A referida constatação faz com que ao curador seja
imputada a tarefa de lidar com situações existenciais que, tanto no seu aspecto funcional
quanto em seu enlaço com a realidade social, apresentam peculiaridades.
Analisado funcionalmente o rol do art. 24, Lei nº 9.610/98, é possível perceber
que a defesa daqueles direitos exige postura ativa, no sentido de propositura de ação,
para que seu titular os exerça, de forma a não coincidir perfeitamente com o intento da
modificação na teoria das incapacidades, o qual remete, quando existente curatela, à
limitação da esfera de atuação do curador.
Uma radiografia de realidade demonstra que, quanto à instrumentalização
do lançamento de obras inéditas, edições novas daquelas já publicadas por meio de
contratações, são regulamentados interesses pecuniários (evidentemente, a cessão e
licenciamento onerosos), até existenciais (a própria decisão do autor de contratar para
expressar ao público uma obra), e outros aspectos.
Harmonizar a promoção da liberdade existencial da pessoa com deficiência em
igualdade a seus pares sociais, e para isso delimitar a atuação do curador no âmbito
do direito do autor, apresenta essas nuances; é preciso superar a subsunção; assim, a
verificação do merecimento de tutela, e contraposição dos interesses prevalentes, em
cada caso concreto é caminho necessário.52
Entretanto, de forma a colaborar no exercício da atividade interpretativa con­
cernente à resolução de possíveis conflitos advindos das situações expostas, o estudo
propõe três padrões para análise e interpretação: preferencial assistência, ampla repre­
sentação funcional e possível exceção do direito social à cultura e resguardo ao patri­
mônio mínimo.

3.2.1 Critério da preferencial assistência


Primeiramente, deve o curador optar pela atuação colaborativa do curatelado para
a gestão de sua obra, mesmo que isto signifique algo mais próximo da tradicional noção
de assistência. Incidente a noção de curatela funcionalizada, precisa esta harmonizar-
se com as disposições do Estatuto, motivadas por força constitucional; assim seu perfil
dinâmico permite desde o abrandamento até a neutralização em relação ao papel do
curatelado, na seara existencial, que apenas reforça a diretiva de promoção de seu livre
desenvolvimento.53

52
Para defesa desta metodologia, TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do direito civil entre o sujeito e
a pessoa. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil
entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
53
Para o desenvolvimento destes critérios seja permitido remeter a COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Limi­
tação da curatela aos atos patrimoniais: reflexões sobre a pessoa com deficiência intelectual e a pessoa que não
pode se exprimir. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de
Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 243-270.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
337

Quanto à cessão ou licenciamento de direitos para o lançamento de obra inédita,


por dizer respeito diretamente ao vínculo entre o autor e esta, de caráter eminentemente
existencial, a priori não poderá ser contratada pelo curador sem a autorização do
curatelado.
Desenha-se assim, campo de forte participação do autor.
Tal hermenêutica busca resguardar o seu direito inédito na forma do art. 24, inciso
III, Lei nº 9.610/98, em sua completa harmonia com a promoção da capacidade da pessoa
com deficiência no exercício de suas liberdades existenciais.
A forma contratual melhor ajustada à função de conciliar disciplinas jurídicas54
será a de assinatura conjunta curador e curatelado para concretização dos referidos
negócios jurídicos. Quanto ao primeiro, será responsável por negociar e sedimentar as
melhores condições patrimoniais de contraprestação (na forma que lhe impende o art.
85, Estatuto da Pessoa com Deficiência), enquanto o segundo autorizará a circulação
da obra e todos os seus pormenores (formatos de disponibilização, conteúdo, design
visual, distribuição onerosa ou gratuita).
Apenas assim será permitido ao autor o resguardo de seus direitos existenciais,
que a disposição de sua obra ao público reflita, precisamente, o seu vínculo com aquela e,
ao mesmo tempo, poderá o curador realizar sua tarefa de verificação negocial e proteção
do patrimônio para a qual foi constituído.
Porém, a preferencial assistência pode adentrar, inclusive, na participação do
curatelado em escolhas negociais que dizem respeito à disposição e circulação de obras.
Neste esteio, embora talvez não apresente discernimento para decidir sobre complexas
operações societárias ou contábeis,55 poderá apresentar conhecimentos e experiência
sobre práticas específicas do mercado em que atua.
O caso do direito do autor, principalmente após a revolução digital, apresenta
grandes peculiaridades e variações a depender, inclusive, do artista, seu público, meios
em que usualmente atua.
Assim, o licenciamento público, sobretudo a utilizar-se dos chamados Creative
Commons56 (onde se permite a utilização de obras para a coletividade, ao disponibilizá-
la na internet, no limite da licença), pode acarretar maior divulgação da obra e melhor
resultado econômico dela advindo.
Reside aqui apenas uma latente hipótese, disponibilidade gratuita para o fim
de divulgação e consequente maior proveito econômico, passível de comprovar que o
autor, por muitas vezes, poderá bem decidir por práticas negociais correntes a sua área
e mercado em que atua, as quais são imprescindíveis, sob pena de ruína, a partir de uma
concepção estática, ou até mesmo errônea, da atividade desenvolvida. Ao curador, aceitar
e adotar tais procedimentos, não só é permitido, mas também concretiza o interesse

54
Quanto ao entendimento de forma relacionada ao conteúdo e coerente à função concreta regulamentada pelo
contrato, PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil (tradução de Maria Cristina de Cicco). 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 295-298.
55
“Grosso modo, o discernimento que se requer para a prática dos atos civis de matiz patrimonial não é o mesmo
que se exige para a prática de atos existenciais – situam-se em domínios diferentes. Os primeiros envolvem
informações mais técnicas e jurídicas, menos subjetivas”. MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo
no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência: impactos do novo CPC e do estatuto da
pessoa com deficiência. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 4, n. 1, jan./jun. 2015.
56
BRANCO, Sérgio; PARANGUÁ, Pedro. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 109/120, disponível
em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/2756/Direitos%20Autorais.pdf>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
338 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

do curatelado a partir da concreta estratégia que proporcione o melhoramento de seu


patrimônio.57
O debate torna-se mais aproximado de questões patrimoniais, as quais justificam a
curatela na escolha pela utilização do tipo contratual. Porém, até mesmo aqui é necessária
análise da opinião do curatelado para apontar se ela diz respeito a uma experiência de
mercado ou, efetivamente, uma falta de discernimento que o impede de refletir sobre
as vantagens econômicas existentes na opção.

3.2.2 Critério da ampla representação funcional sob a perspectiva da


consideração concreta dos anseios existenciais da pessoa com
deficiência
Utilizar-se da palavra “preferencial” para designação do primeiro critério (prefe­
rencial assistência), definitivamente, não constitui escolha aleatória.
A atual curatela abarca amplo espectro que poderá atingir inclusive pessoas que
não possuam a capacidade psíquica necessária para discernir (e, consequentemente,
realizar suas escolhas, até mesmo no tocante à seara existencial), e, em alguns casos,
nem mesmo consigam expressar-se (o mais evidente é a situação de coma), a concretizar
incapacidade relativa na forma do art. 4º, inciso III, Código Civil.
Embora por muitos rechaçada, e duramente criticada, por falta de técnica, a
esco­lha legislativa de considerar relativamente incapaz aquele que nem mesmo pode
se exprimir ou não apresenta discernimento para tanto58 aqui demonstra toda sua poten­
cialidade e função.
Isto porque consiste a ampla representação funcional, precisamente, na exigência
de o curador considerar as orientações políticas, ideológicas, religiosas de seu curatelado
quando chamado a tomar decisões fundamentais sobre a pessoa deste, a constituir um
efetivo e concreto melhor interesse da pessoa com deficiência, em promoção de sua
liberdade, reflexo no meio social do desenvolvimento de sua personalidade até mesmo
no momento em que esta não pode participar da convivência social.59

57
Sobre esta necessidade de o curador conhecer o patrimônio que administra, a anterior atuação econômica do
curatelado e utilizar-se de práticas coerentes a isto, ao invés de preferir uma posição conservadora que poderá
colocar em risco a rentabilidade existente, TEPEDINO, Gustavo. Desnecessidade de prévia autorização judicial
para a assinatura de acordo de acionistas por curador. São Paulo: Revista dos Tribunais Online, nov. 2011,
originalmente presente no livro Soluções práticas, volume I, p. 465/478.
58
Registrem-se contundentes críticas da escola de direito civil-constitucional, as quais pugnam por tratamento
menos abstrato para capacidade em geral, sua modulação e preservação da liberdade da pessoa que pratica os atos
no caso concreto, a julgar seu discernimento: SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Autonomia,
discernimento e vulnerabilidade: estudo sobre as invalidades negociais à luz do novo sistema das incapacidades.
Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 1, 2016, disponível em: <http://civilistica.com/autonomiadiscernimento-
e-vulnerabilidade/>; NEVARES, Ana Luisa Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da
incapacidade civil. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.).
O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte:
Fórum, 2016, p. 39-56.
59
MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa
com deficiência: impactos do novo CPC e do estatuto da pessoa com deficiência. Civilistica.com, Rio de Janeiro,
ano 4, n. 1, jan./jun. 2015. Disponível em: <http://civilistica.com/o-direito-protetivo-no-brasil/>. COLOMBO,
Maici Barboza dos Santos, Limitação da curatela aos atos patrimoniais: reflexões sobre a pessoa com deficiência
intelectual e a pessoa que não pode se exprimir. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima
de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de
Janeiro: Processo, 2017, p. 243/270.
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AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
339

Ao que toca a circulação das obras, a preferência assistencial parecia atender à


liberdade existencial do curatelado no que diz respeito à celebração de contratos para o
fim de circulação de sua obra, inclusive em perfeita harmonia com os referidos direitos
fundamentais. No entanto, aqui maior cuidado é imprescindível ao determinar o círculo
de atuação com maior liberdade (patrimonial) e menor liberdade (existencial ou dúplice).
Neste sentido, retornar-se-á cuidadosamente ao prevalente aspecto em cada elemento
do contrato.
Primeiramente, como anteriormente afirmado, o objeto de licença ou cessão
de direitos é a obra vinculada diretamente ao autor, direito intimamente ligado à
paternidade e existência do autor, inclusive sua liberdade criativa que o permite escolha
entre mantê-lo inédito, deixar de publicá-lo novamente ou lhe dar ampla circulação.
Porém uma interpretação hermética da axiologia do art. 6º, a pensar este espaço como
de eminente impedimento da atuação do curador, acabaria, diante de sua situação de
(im)possibilidade de manifestar à vontade, interrompendo qualquer comunicação de
sua obra.
Aqui novamente o réquiem à personalidade autoral, seus pensamentos, atos
anteriores e concepção de vida informam a ampla representação funcional: ao autor
que nunca guardou suas obras, sempre buscou sua publicação, defendeu-as em todas as
circunstâncias, parece que a atuação do curador na seara existencial apenas promoverá
o livre desenvolvimento de sua personalidade.
Porém, para o autor recluso, comedido, apreensivo de críticas, conhecido por
demorar longo tempo a circular suas obras, poderá ser considerada verdadeira invasão da
liberdade, privacidade e gestão de sua obra ampla cessão ou licenciamento pelo curador.
O cerne da questão encontra-se então nos desígnios que formam a personalidade
daquele responsável pela obra, em específico, análise de seu vínculo com esta.
Não observar tais questões no caso concreto poderá colocar em dúvida o
merecimento de tutela de contratos assinados pelo curador, especialmente quando tais
comportamentos são auferíveis no mercado artístico por entrevistas, até mesmo pelo
conhecimento da obra de determinado autor (razão pela qual o outro contratante não
poderia alegar boa-fé e desconhecimento), a determinar a nulidade do negócio jurídico
por deficiência do requisito essencial de representação (em seu aspecto funcional, por
exercício do poder sem o cuidado com o dever de atender aos interesses existenciais
do curatelado).60
Todas as questões que envolvem o iter de um contrato de cessão ou licenciamento
de direitos autorais haverão de lidar com os desígnios da situação jurídica dúplice: o
corpus mecanicum onde o corpus mistichum é colocado em evidência (disponibilizar a obra
em meio digital ou material), distribuir onerosa ou gratuitamente o material, fazê-lo por

60
Melhor análise apenas poderá ser feita no caso concreto. Porém, a aparência de regularidade da curatela a
permitir assinatura do contrato necessita ser analisada dentro do já esposado novo contexto que emerge da
legislação referente à pessoa com deficiência, que afeta inclusive as situações jurídicas dúplices, a ser ponderada
com este melhor interesse do curatelado autor de sua obra refletir o livre desenvolvimento de sua personalidade;
existirá prevalência nos casos em que inexistia qualquer manifestação pública que expressasse opinião sobre
tais questões e a atividade negocial de licenciamento ou cessão apenas acresceria ao patrimônio, sem qualquer
prejuízo evidente a seus interesses existenciais (o que deverá ser analisado com mais cautela no caso de obras
inéditas); a desenvolver esta tensão entre a confiança gerada pela aparência e outros princípios do ordenamento
jurídico KONDER, Carlos Nelson. A proteção pela aparência como princípio. In: MORAES, Maria Celina Bodin
de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 111-133.
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340 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

meio de um licenciamento virtual que o disponibiliza de forma mais abrangente possível


à coletividade. Supracitadas escolhas não dizem respeito apenas à gestão de patrimônio,
mas também sobre formas de visualizar a obra, contato com o público, realidade atual.
A participação do autor permitirá que em seus atos todas as suas visões se
manifestassem: mas no caso de impossibilidade o critério supracitado e desenvolvido
apresenta como guia para o próprio curador (melhor seria a própria sentença de curatela,
mas tamanhas peculiaridades podem escapar até mesmo a ela) realizar a sua curatela
sob medida para o curatelado.
Quanto aos atos patrimoniais, persiste a recomendação esposada no tópico
anterior. Representar funcionalmente significa inclusive procurar as melhores formas
de rendimento para o patrimônio gerido, o que pressupõe agir de acordo com o tipo
de atividade que lhe é fonte geradora, mesmo que o curatelado não possa contribuir
com sua experiência para tal fito, a possibilitar até mesmo a contratação de terceiros de
forma a atingir tal objetivo, como preleciona o art. 1.743, Código Civil.

3.2.3 O critério da exceção proveniente dos direitos sociais culturais e


resguardo ao patrimônio mínimo
Porém, em um ordenamento jurídico unitário, nem sempre a axiologia das liber­
dades existenciais da pessoa com deficiência a determinar ilegítimo espaço de atuação do
curador poderá prevalecer. Mas isto não ocorrerá em razão da condição de pessoa com
deficiência em si, mas por outros critérios fundados em essenciais valores constitucionais.
O primeiro deles é aquele favorável à promoção dos direitos sociais culturais, que
propaga o desprendimento dos excessivamente restritivos limites aos direitos autorais
(arts. 48 e seguintes da Lei nº 9.610/98), a funcionalizar os direitos autorais ao interesse
público de acesso às obras conforme previsão dos arts. 215 e 216, Constituição Federal.
Assim, atos do curador que busquem a consecução de tais fins não podem ser
considerados abusivos quando contrariam fins egoísticos do autor.61
Neste sentido, não seria passível de censura o ato de disponibilizar obra a qual
encontra-se esgotada e, simplesmente, sem qualquer motivo, não foi circulada nova­
mente. Não se pode dizer que afeta qualquer direito moral do autor, posto que não
poderá exercer um comportamento potestativo após colocar a obra em circulação (a
própria Lei de Direitos Autorais excetua a retirada de circulação para casos de afronta
à reputação e imagem no art. 24, inciso IV), nem o patrimonial, quando este não foi
perseguido, enquanto o acesso à obra é benéfico à coletividade.
Mais complexa a situação quanto à obra inédita, pois o direito ao inédito também
encontra justificativa no estamento constitucional (a liberdade de expressão e criação do
art. 5º, inciso IX e X, Constituição Federal pressupõe exercício qualitativo, no momento
e forma que julgar adequado o titular do direito).
A ponderação deverá ser feita caso a pretensão seja de reputar o ato nulo, de
modo a não formular uma errônea prevalência abstrata do social ao individual, mas,

61
Amplo estudo desta posição está contido em: SOUZA, Allan Rocha de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor; SOUZA,
Wemerton Monteiro. Os direitos autorais na perspectiva civil-constitucional. Revista Brasileira de Direito Civil, Rio
de Janeiro, vol. 8, n. 2, 2016, disponível em: <https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/62>.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
341

novamente, analisar expressão existencial presente no caso concreto ou verdadeiro


interesse egoístico do curatelado na manutenção do ineditismo.
Por fim, ainda merece consignação uma última exceção: aquela relativa ao patri­
mônio mínimo; a intervenção do curador pode ser decretada, na questão patrimonial,
em momento em que a falta de discernimento para gerir o patrimônio tenha gerado
vultosos prejuízo ao curatelado.62 Tal situação de dilapidação impende àquela curatela
específica função de nítido caráter existencial, fundada na solidariedade social do art.
3º da Constituição Federal: conservação de um patrimônio mínimo, o qual permita a
subsistência e moradia do autor curatelado.
Assim, quando inexistir outra solução, recorrer a alimentos, rentabilidade do patri­
mônio adquirido, a contratação de cessões e licenciamentos onerosos a fim de garantir tal
objetivo não poderá ser considerada nula, ou passível de responsabilidade civil quando
objetiva realizar este fim precípuo e urgente e acaba por se imiscuir na esfera existencial
do autor curatelado sem maiores pesquisas ou até mesmo contra a sua vontade.
Afinal, subsiste clarividente interesse maior, de sobrevivência, a justificar tal
paternalismo.
Medida extrema, por consequência, apenas será adotada em casos concretos
extremos e urgentes. Mas, nestas hipóteses, outra não pode ser a ratio de um ordenamento
que privilegia a moradia (art. 6º, Constituição Federal e Lei nº 8.009/90) e a própria
dignidade, para a qual reconhece a necessidade da distribuição de riquezas, pois em
uma economia capitalista são imprescindíveis à vida digna (art. 1º, inciso III, e art. 3º,
Constituição Federal).
O próprio Código Civil aponta para tal axiologia ao impedir a doação que reduza
a pessoa ao estado de miserabilidade em seu art. 548; não pode ser outra a hermenêutica
para aqueles direitos passíveis de contratação que represente ganho pecuniário a pessoas
em igual situação, principalmente quando representadas por alguém que tem o dever
de satisfazer seus primordiais interesses. A própria Convenção sobre os Direitos da
Pessoa com Deficiência diz que as medidas para alcançar seus objetivos devem ser
“apropriadas” e “efetivas”.63
Não intervir em espaço de liberdade existencial, mas privar a subsistência parece
equivocado, posto que chega a frustrar qualquer possibilidade do exercício do livre
desenvolvimento personalitário. Assim, a ponderar gravidade que legitime tal atitude,
a contratação pelo autor com principal justificativa na exceção de dilapidação do
patrimônio mínimo (sem maiores investigações) será considerada merecedora de tutela.

Conclusão
Sempre a partir da premissa de que semear a dúvida é caminho mais benéfico, a
cuidar de recentes alterações no direito, do que cultivar estanques conclusões, procurou-
se demonstrar que o direito do autor, e suas situações existenciais, constitui campo

62
A dissecar a questão do patrimônio mínimo; BUCAR, Daniel. Superendividamento – reabilitação patrimonial da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Saraiva Jur, 2017, p. 48/61.
63
MULTEDO, Renata Vilela, COHEN, Fernanda. Medidas efetivas e apropriadas: uma proposta de interpretação
sistemática do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: BARBOZA, Heloisa Helena, MENDONÇA, Bruna Lima
de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de
Janeiro: Processo, 2017, p. 217-240.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
342 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

ainda não desbravado pelos que tratam das alterações na teoria das (in)capacidades pelo
Estatuto da Pessoa com Deficiência. Porém, a situação em que pessoa com deficiência
seja criadora de obra, ou que venha a adentrar esta condição quando já autora, nos
levantou o questionamento de quais seriam os limites da curatela a ela imposta de
modo a respeitar a não interferência nos direitos existenciais propagada pelos arts. 6º e
85, §1º, do referido diploma.
Especificamente, adentraram o trabalho as situações jurídicas dúplices existentes
nos casos em que o autor realiza contratações de cessões ou licenciamentos para fins de
circulação de sua obra. Diante da convivência de direitos patrimoniais e existenciais,
os quais inclusive acabam por se confundir em zonas cinzentas (aparência de situação
patrimonial, recoberta por amplas questões existenciais), sugeriu-se a utilização de três
critérios delineados para delimitação da esfera de atuação do curador, os quais foram
retirados da doutrina que têm se debruçado sobre a nova legislação e também sobre a
relação entre direito do autor e direitos culturais, além do basilar respeito ao patrimônio
mínimo.
Assim, procuraram-se balizas que possam começar, e densificar a partir de parâ­
metros, o debate sobre o tema estudado, com a expectativa de abertura de um caminho
de novos horizontes.

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ISBN 978-85-450-0591-9.
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE
SUPERENDIVIDAMENTO E
CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO

MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO

Introdução
O superendividamento dos indivíduos na contemporaneidade tem suscitado
debates jurídicos e políticos, notadamente em relação aos limites e deveres de intervenção
do Estado na proteção do sujeito contra as armadilhas do mercado, na medida em que
este tem sua atuação em certa medida infensa às necessidades de grande número de
seres humano em diferentes lugares. A atuação amoral do mercado, uma estratégia
de estímulo ao consumo por meio da concessão maciça de crédito, somada à cultura
consumista contemporânea, todos esses fatores formam o caldo de cultura em que
proliferam os casos de crise de solvência de devedores que se veem impossibilitados
de arcar com os custos das obrigações assumidas sem grave comprometimento da sua
subsistência e de sua família. Trata-se de um problema que envolve muitos fatores e
que não necessariamente são compreensíveis nos estritos limites da dogmática jurídica,
impondo um esforço de compreensão multidisciplinar, com questões que somente
podem ser enfrentadas por meio de análises, a um só tempo, jurídicas, sociológicas,
políticas e econômicas.
Acresça-se a essa realidade dois fatores de extrema significação: (1) o fato de
vivermos numa sociedade de consumo, caracterizada por um conjunto peculiar de con­
dições existenciais, que estimula seus membros a exercer a cultura consumista, baseada
no excesso e desperdício; que desloca o centro de gravidade temporal do futuro para
o presente e que nega enfaticamente a procrastinação de um desejo; que se baseia no
excesso de informação e inculca, com todas as forças, o credo de que o consumo é o
principal meio de se chegar à felicidade, entre outros fatores; e (2) no caso brasileiro, o
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
346 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

fato de ter sido o estímulo ao uso do microcrédito ao consumo utilizado como política
macroeconômica do governo, deslocando o eixo dinamizador da economia, que antes
era cumprido pelas exportações, para o mercado interno.
O superendividamento, fruto perverso da cultura do consumismo descrita,
apresenta-se como um locus privilegiado de tensão entre interesses antagônicos: de
um lado os interesses privados, regulados por relações contratuais centradas na força
jurígena da vontade, e de outro o interesse público, entendido como um critério para
balizar e legitimar as decisões governamentais.
Se é fato que níveis de consumo não podem ser mantidos sem a oferta de crédito,
tornando-se este um mecanismo de inclusão social, não é menos verdade que no Brasil a
maior parte do crédito é adiantado como crédito pessoal, sem garantias, agindo os bancos
e instituições financeiras com muita liberdade na sua oferta, o que se apresenta como
um desafio regulatório, diante da incapacidade dos atuais mecanismos legislativos de
tratamento do tema e da ausência de uma legislação expressa e específica de regulação
desse fenômeno.
O presente ensaio pretende, então, tratar das múltiplas questões atinentes sobre­
tudo à prevenção do superendividamento, envolvidas no processo de consumo cons­
ciente do crédito. Deveres como informação, aconselhamento, combate ao assédio ao
consumo, entre outros tantos, serão tratados, com vistas a fomentar um debate necessário
e premente na proteção do consumidor.

1 Sociedade de consumo e consumismo: o “caldo de cultura” do


superendividamento dos indivíduos
O superendividamento dos indivíduos na contemporaneidade não é um tema
simples de ser estudado, a começar pela dificuldade de se estabelecer o significado
do termo. O sentido inicial de superendividamento aparece atrelado a uma noção de
passividade na relação obrigacional, de modo que, em princípio, “superendividado
é aquele que possui muitas dívidas, é aquele que compõe o polo passivo de diversas
prestações, podendo ou não vir a adimpli-las”.1 Essa definição, entretanto, não revela
muito acerca da natureza jurídica e pressupostos para a caracterização do fenômeno. Isso
porque a depender da forma como se constrói a imagem do sujeito superendividado e
seu papel no mercado, vai variar também a definição, a legislação e os mecanismos de
tratamento do superendividamento.2 3

1
GIANCOLI, Brunno Pandori. Superendividamento do consumidor como hipótese de revisão dos contratos de crédito.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 120.
2
Iain Ramsay William Whitford e Johanna Niemi-Kiesilainen resumem a discussão ao apresentarem os debates
acerca da regulamentação do mercado de crédito em várias partes do mundo. Informam os autores que o
debate está emoldurado por duas estratégias de regulação, que variam entre a liberação do mercado de crédito
e o empoderamento do consumidor e uma regulação de um procedimento que promova ao mesmo tempo a
garantia de concessão de crédito ao consumidor e a justiça e segurança dos contratos de crédito ao consumidor,
sugerindo que este contraste revela de um lado o modelo americano e o modelo alemão de outro. Esclarecem
que “The neo-liberal approach favors extensive disclosure to consumers, and protection against unfair surprise in contracts.
It relies primarily on the market to Police credit provision but recognizes the need for responsible lending and borrowing:
financial literacy is intended to achieve the latter goal. Extensive consumer credit reporting is viewed as a central part of
the institutional framework of the market. Accessible bankruptcy procedures provide a “fresh start” for consumers so that
they can re-enter the credit economy. The World Bank has adopted the broad lines of this approach in its development of
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
347

3
Trata-se de um fenômeno complexo e multifacetado, que demanda uma avaliação
multidisciplinar. Além dos problemas financeiros decorrentes dos débitos pendentes,
existem questões psicológicas, emocionais, familiares e sociais que demandam tratamento
por especialistas de diversas áreas do conhecimento, pois o consumo, mais do que uma
simples operação financeira, passou a ser uma forma de “estar no mundo”.
Zygmunt Bauman, por meio do que chamou de modernidade líquida,4 desen­vol­
veu uma observação da sociedade contemporânea que denuncia o momento em que os
valores da sociedade moderna, tais como família, classe, religião, nacionalidade, entre
outros, vão sendo modificados a partir de uma forte tendência ao consumo, à trans­
formação das relações sociais em mercadoria.
O autor, utilizando-se de tipos ideais weberianos,5 descreveu a passagem do que
chamou de sociedade de produtores/soldados para a sociedade de consumidores. No
modelo de sociedade de produtores, a sociedade qualificava seus membros masculinos
basicamente como produtores e soldados e a metade feminina como fornecedoras de
serviços. Segundo esse modelo societário, cujo ideário se identifica com os contornos da
modernidade, as ações individuais eram plasmadas na obediência a ordens, na tolerância
ao trabalho árduo e na aceitação da ética do trabalho, assim como na disposição de
adiamento da satisfação pessoal em prol de outros objetivos.6 O modelo se orientava para
a promessa de segurança a longo prazo e não para a satisfação instantânea de prazeres.

‘Best practices’ in consumer financial protection. In contrast the ‘social’ model is based on the image of the ‘hasty and need
consumer, forced into contractual relations by social circumstances. He cannot control. Social consumer protection in credit
markets includes ‘usury ceilings capped default interests rates, protection against early termination and discharge, with
warnings and information on debt’. Eifner also argues that consumer credit Law provides a potential relation model of
consumer Law which reorganizes the to provide opportunities for contractual adjustment to unforeseen hanges such as loss
as employment”. RAMSAY, Iain; NIEMI, Johanna; WHITFORD, Wiliam C. Consumer credit, debt and bankruptcy.
Oxford and Portland, Oregon: Hart publishing, 2009, p. 4.
3
Cláudia Lima Marques informa que o endividamento crônico dos consumidores – primeira das expressões
que designa o fenômeno – recebe muitos nomes: em Portugal, recebe o nome de sobreendividamento, “a escla­
recer o extra (sobre) do endividamento que é possível suportar com o orçamento mensal dos consumidores,
denominação de inspiração anglo-saxã, over-indebteness (EUA, Reino Unido, Canadá) ”. No Brasil recebeu o
nome de superendividamento, “a destacar que é um endividamento superior ao normal e às possibilidades do
orçamento mensal dos consumidores, baseado na expressão francesa, surendettement (França) e na germânica
Überschuldung (Alemanha)”. MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (Coord.). Direitos
do consumidor endividado. Superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 14.
4
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
5
Tipos ideais, segundo o autor, são “abstrações que tentam apreender a singularidade de uma configuração
composta de ingredientes que não são absolutamente singulares, e que separam os padrões definidores dessa
figuração da multiplicidade de aspectos que a configuração em questão compartilha com outras. A maioria dos
conceitos usados de forma rotineira nas ciências sociais (se não todos eles) – como ‘capitalismo’, ‘feudalismo’,
‘livre mercado’ ‘democracia’, ou mesmo ‘sociedade’, ‘comunidade’, ‘localidade’, ‘organização’ e ‘família’
têm o status de tipos ideais. Como sugeriu Weber, os ‘tipos ideias’ (se construídos de maneira adequada) são
ferramentas cognitivas úteis, e também indispensáveis, ainda que (ou talvez porque) iluminem deliberadamente
certos aspectos da realidade social descrita enquanto deixam na sombra outros aspectos considerados de menor
ou escassa relevância para os traços essenciais e necessários de uma forma de vida peculiar. ‘Tipos ideais’ não são
descrições da realidade, mas ferramentas usadas para analisá-la. São bons para pensar”. BAUMAN, Zigmunt.
Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 39.
6
Para Bauman, “(...) a obediência às ordens e a conformidade à regra, a admissão da posição atribuída e sua
aceitação como indiscutível, a tolerância a trabalhos perpetuamente pesados e a submissão a uma rotina
monótona, a disposição de adiar a satisfação e a aceitação resignada da ética do trabalho (significando em resumo,
o consentimento em trabalhar por amor ao trabalho, fosse ele importante ou não) eram os principais padrões
comportamentais treinados e ensaiados com ardor por esses membros, na expectativa de que fossem aprendidos
e internalizados. O corpo do potencial trabalhador ou soldado era o que mais contava; seu espírito, por outro
lado devia ser silenciado e uma vez adormecido, logo, ‘desativado’, podia ser deixado de fora ao se estabelecer
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
348 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A sociedade de consumo, diferentemente da sociedade de produtores, representa


um conjunto peculiar de condições existenciais que estimula seus membros a exercer a
cultura consumista com a máxima dedicação possível, ou seja, a sociedade de consumo
“representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um
estilo de vida e uma estratégia existencial consumista” e na qual seguir estritamente
os preceitos da cultura do consumo é “para todos os fins e propósitos práticos, a única
escolha aprovada de maneira incondicional. Uma escolha viável e, portanto, plausível –
e uma condição de afiliação”.
O consumismo se notabiliza por dar ênfase no presente, no novo, em tudo aquilo
que proporciona prazer instantâneo, sem preocupação com o amanhã. Gilles Lipovetsky,
afirma que, com consumo na hipermodernidade,7 regido pelo que chamou de princípio-
moda, “tudo o que é novo apraz”, “nasce toda uma cultura hedonista e psicologista que
incita à satisfação imediata de necessidades, estimula a urgência dos prazeres, enaltece o
florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraíso do bem-estar, do conforto e do lazer”.8
A sociedade de consumidores se notabiliza ainda por ser uma sociedade marcada
pelo excesso de informação, sendo praticamente impossível assimilar o volume
disponível no mundo contemporâneo, pois a informação parece brotar de todos os
lados.9 Não obstante, este excesso de informação não necessariamente se transforma
em conhecimento e muito menos ainda em sabedoria.
Na cultura “agorista” da sociedade de consumidores, as informações são instan­
tâneas e não são maturadas e absorvidas com a atenção necessária para que possam
mudar a vida das pessoas. Sobretudo a internet tem sido um instrumento de difusão
de informação extremamente ágil e, para muitas pessoas a única forma de tomada de
conhecimento acerca do que acontece no mundo. Mas se de um lado propicia essa difusão
rápida de informação, de outra parte propicia a difusão de todo tipo de informação,
inclusive informação inverídica, fenômeno que foi registrado pelo dicionário Oxford
como pós-verdade, “um adjetivo que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais
fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que os apelos à
emoção e a crenças pessoais”.10

políticas e movimentos táticos. A sociedade de produtores e soldados se concentrava na administração dos


corpos a fim de tornar a maior parte de seus membros apta a morar e agir em seu pretenso habitat natural: o
chão da fábrica e o campo de batalha”. BAUMAN, Zigmunt. Vida para consumo. A transformação das pessoas em
mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 38.
7
Não cabe nos limites do presente estudo uma discussão mais aprofundada acerca dos conceitos de pós-
modernidade, modernidade tardia e hipermodernidade. Para tanto remete-se à leitura de LIPOVETSKY, Gilles.
Os tempos hipermodernos. Trad. de Mário Vilela. São Paulo: Barcarola, 2004.
8
LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. Trad. de Mário Vilela. São Paulo: Barcarola, 2004, p. 59-60.
9
Em interessante entrevista de Umberto Eco, concedida à Revista Época, o escritor assim se manifestou acerca do
excesso de informação na internet dos dias atuais: “(...) a internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo
surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior do que a falta de informação. O excesso
de informação provoca amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos
parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar”. Entrevista publicada em 30 dez. 2011. Disponível em:
<http://www.revistaepoca.globo.com.br>. Acesso em: 02 abr. 2014.
10
Segundo Gabriel Priolli, a pós-verdade “não seria então, exatamente, o culto à mentira, mas a indiferença com
a verdade dos fatos. Eles podem ou não existir, e ocorrer ou não da forma divulgada, que tanto faz para os
indivíduos. Não afetam os seus julgamentos e preferências consolidados. O termo, diz a Oxford, foi empregado
pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich, em um ensaio para a revista The
Nation. Em 2004, o escritor norte-americano Ralph Keyes colocou-o no título de seu livro The Post-Truth Era:
Dishonesty and Deception in Contemporary Life. Mas quem mais contribuiu para a sua popularização mundial foi a
revista The Economist, desde quando publicou, em setembro passado, o artigo “Arte da mentira”. Disponível em:
<www.cartacapital.com.br/revista/933/a-era-da-pos-verdade>. Acesso em: 23 jan. 2017.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
349

Uma das principais consequências dessa sociedade de consumidores descrita


por Zigmunt Bauman é uma cauterização das relações humanas baseadas na ética, e os
bons resultados de sucesso são medidos por critérios econômicos.11 Não é por acaso que
as principais pesquisas brasileiras acerca do nível de endividamento das famílias e dos
consumidores em geral são feitas em comparação com o PIB nacional.
Entretanto, mais do que indicadores econômicos, o balizamento da discussão
sobre superendividamento no Brasil deve procurar a harmonia entre, de um lado, o
princípio que garanta a ampla liberdade de cada cidadão desde que ela seja compatível
com a ampla liberdade dos demais cidadãos e, de outro, o princípio que recomenda a
redução das desigualdades econômicas gritantes, tendo em vista a consecução de um
certo equilíbrio social.12
No Brasil, a democratização do acesso ao crédito para consumo, sob o manto
retórico do “interesse coletivo”, tornou-se uma política macroeconômica do governo,
que estimulou o aumento do nível de consumo – e consequentemente do nível de
endividamento – das famílias, funcionalizando interesses individuais ao interesse
coletivo de estímulo à economia de mercado.
Tal fato encontrou terreno propício de proliferação proporcionado pelo
consumismo e gerou a moldura fática que permite identificar de um lado uma política
que predispôs os sujeitos ao consumo, equiparando aumento de consumo a aumento de
qualidade de vida e de indicadores sociais, e de outro, uma promessa não cumprida de
inclusão social, que, na prática, acaba por impelir estes mesmos “novos consumidores”
para fora da sociedade de consumo.
A crise econômica de 2014 somente agravou o quadro do superendividamento
no Brasil. Num cenário econômico recessivo, com a seguida retração do PIB por anos
consecutivos, a falta de empregos, com 14 milhões de desempregados (aproximadamente
13,7% da população economicamente ativa em 2017), as medidas adotadas pelo governo
não foram suficientes para garantir o padrão de consumo estimulado pela política de
estímulo de concessão do microcrédito para consumo.13
É necessário, entretanto, que se tenha em mente que o endividamento, por si só,
não é um problema, na medida em que representa a outra face do crédito, indispensável
ao fomento das economias modernas. Segundo Cláudia Lima Marques “consumo e
crédito são duas faces da mesma moeda”.14

11
Amartya Sen atribui essa sensação de invulnerabilidade à ética que parece permear a economia preditiva à crença
de que o comportamento humano, pelo menos em questões econômicas, pode ser satisfatoriamente previsto com
base na maximização do autointeresse, crença esta muito em voga atualmente, sobretudo, como será discutido
posteriormente, pela aplicação da Análise Econômica do Direito, principalmente pela aplicação do critério do
ótimo de Pareto. Sobre o tema, vide SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Trad. de Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
12
FARIA, José Eduardo. Direito e economia na democratização brasileira. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 68.
13
Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), apurada pela
Confederação Nacional do Comércio (CNC), no primeiro semestre de 2018, houve um aumento na proporção de
famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas ou com dívidas em atraso e que permaneceriam
inadimplentes, passando de 10,0% no mesmo período de 2017 para 10,3% em abril de 2018. Do mesmo modo
houve aumento do número de famílias que se declararam muito endividadas, passando de 14,1% em 2017 para
14,2% em 2018. Disponível em: <www.cnc.org.br>. Acesso em: 04 jun. 2018.
14
A autora esclarece que crédito e consumo são duas faces da mesma moeda, mas que se trata de “(...) uma moeda
da sorte... mas também do azar... Podemos usar a figura de linguagem da moeda para afirmar que esta moeda
de duas faces ‘consumo/crédito’ sorri somente quando está na vertical, girando e mostrando suas duas caras
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
350 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O crédito, quando contratado em situação de estabilidade financeira e laboral,


permite o acesso a bens e serviços que melhoram a qualidade de vida dos indivíduos e
das famílias, permitindo a inclusão de pessoas de baixa renda mensal na sociedade de
consumo. Para Maria Manuel Leitão, se o endividamento “ocorrer em contexto de cres­
cimento econômico, de estabilidade de emprego e, sobretudo, se não atingir as camadas
sociais com rendimentos próximos do limiar de pobreza, é apenas um processo de
antecipação de rendimentos, contribuindo para o aumento do bem-estar das famílias”.15
O problema em relação ao endividamento é que há sempre o risco de algo correr
mal, de sobrevir algo na vida do devedor que o impeça de continuar a cumprir os seus
compromissos financeiros. Nesta situação, o sobre-endividamento ou insolvência torna-
se inevitável, como se verifica na situação econômica brasileira atual.
Num contexto como o descrito, avulta a importância do debate acerca da pre­
venção e tratamento do superendividamento no Brasil. No próximo tópico serão
apresentados os aspectos mais importantes na conceituação do superendividamento
no Brasil e os avanços das discussões legislativas sobre o tema.

2 Conceito de superendividamento
Existem múltiplos modelos de avaliação da situação de superendividamento,
sendo os principais exemplos o modelo francês e o modelo norte-americano, não
surpreendendo, assim, que existam definições diferentes do fenômeno.16 No Brasil, na
esteira da legislação francesa, Cláudia Lima Marques define o superendividamento
como “a impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo, de boa-fé,
de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com
o fisco, oriundas de delitos e de alimentos)”.17
A doutrina distingue ainda o superendividamento em passivo e ativo. O primeiro
caso ocorre quando “circunstâncias não previsíveis (desemprego, precarização do
emprego, divórcio, doença ou morte de um familiar, acidente etc.) afectam gravemente
a capacidade de reembolso do devedor colocando-o em situação de impossibilidade de
cumprimento”.18 O superendividamento ativo ocorre quando o devedor toma crédito

ao mesmo tempo: é bom para todo mundo, para a sociedade em geral, pois a economia ‘sorri’. É bom para o
consumidor, que também é incluído no mundo do consumo. Mas o equilíbrio deste movimento é difícil, e na
sociedade de consumo de massas, sempre uma moeda ou outra vai desequilibrar-se e cair: o consumidor não
paga o crédito, não consome mais, cai no inadimplemento individual (ou insolvência civil), seu nome vai para
o SPC, SERASA... aqui a dívida vira um problema dele e de sua família, sua ‘culpa’ ou fracasso... mas quando
muitas moedas caem ao mesmo tempo, uma crise na sociedade é criada, as taxas de inadimplemento sobem,
sobem os juros, os preços, a insolvência, cai a confiança, o consumo, desacelera-se a economia... uma reação em
cadeia...”. MARQUES, Cláudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO Karen. Prevenção e tratamento
do superendividamento. Caderno de investigações científicas, Brasília, DPDDC/SDE, v. 3, p. 18, 2010. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/seus-direitos/direito-do-consumidor/arquivos-publicacoes/2010caderno_superendi
vidamento.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014.
15
MARQUES, Maria Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 2.
16
Sobre exemplos dos modelos estrangeiros de regulação do superendividamento ver SAMPAIO, Marília de Ávila
e Silva. Justiça e Superendividamento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
17
MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado.
Superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 14.
18
MARQUES, Maria Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000 p. 2.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
351

além de suas possibilidades de pagamento, “não planejando os compromissos assumidos


e procedendo a uma acumulação exagerada de crédito em relação aos rendimentos
efetivos e esperados”.19
Quanto ao superendividamento ativo, este pode ser ainda classificado em cons­
ciente e inconsciente, sendo que este último ocorre quando o devedor que, de boa-fé, por
acreditar que conseguiria cumprir a obrigação assumida, não soube calcular o impacto
da dívida no seu orçamento, porque não foi “previamente informado dos encargos da
contratação” ou que teve “acesso ao crédito concedido de forma irresponsável pelo
fornecedor de crédito”.20 21 Já o superendividamento ativo consciente exclui a incidência
do tratamento dispensado aos demais casos justamente porque o devedor contraiu o
débito sem a intenção de realizar o pagamento, agindo de má-fé.
Existem dois grupos de medidas que podem ajudar a situação do sujeito
superendividado. O primeiro grupo de medidas diz respeito à prevenção do fenômeno,
que inclui ações de educação financeira, aconselhamento de dívida e informação clara
sobre as consequências da tomada de crédito. O segundo grupo de medidas diz respeito
à regulação e ao tratamento do superendividamento.
Catarina Frade chama atenção para o fato de que durante muito tempo o risco
de insolvência do devedor era considerado como um tema essencialmente privado,
que deveria ser prevenido e tratado no âmbito da responsabilidade contratual. A
democratização do acesso ao crédito, possibilitando o acesso de diferentes extratos
socioeconômicos a esse serviço, agregada a outros fatores, como a necessidade de se
controlar o risco sistêmico de insolvência e de controlar as despesas públicas nas áreas
de justiça, emprego, habitação, programas sociais e saúde, levaram à publicização da
regulação desses riscos, impondo aos governos a responsabilidade de legislar sobre a
matéria.
Dessa forma, “tanto as medidas de prevenção como os sistemas de tratamento do
sobre-endividamento pretendem controlar, ex ante ou ex post, os riscos envolvidos no
endividamento e no recurso ao crédito, e minimizar seus efeitos negativos econômicos
e sociais”.22 A principal estratégia de prevenção do superendividamento é a informação
de todos os dados atinentes à contratação, para que o consumidor possa avaliar sua
escolha da maneira que mais lhe atenda aos interesses e à sua capacidade financeira.
A defesa do consumidor, como consectário da proteção integral da dignidade da
pessoa humana, deve ser prioridade do Estado seja no plano legislativo, seja em relação
às políticas públicas levadas a cabo para a proteção desse sujeito vulnerável, cujos direitos
foram erigidos à categoria de direito fundamental pelo texto constitucional.

19
MARQUES, Maria Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 2.
20
LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 34.
21
André Perin Schmidt Neto aponta como um parâmetro de aferição do superendividamento ativo inconsciente
o analfabetismo funcional, pois “(...) caso a análise da situação individual do consumidor demonstre que tal
relação social de consumo era demasiadamente complexa para o nível cultural daquele consumidor, tem-se, em
princípio, um superendividado ativo inconsciente”. SCHIMIDT NETO, André Perin. Revisão dos contratos com
base no superendividamento. Do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 256.
22
As autoras esclarecem que o que está em jogo não é eliminar o risco, pois sobre o tema não há falar-se em
risco zero, mas em riscos toleráveis. Assim, o que se busca é gerenciar o risco do superendividamento. FRADE,
Catarina (coordenadora). Desemprego e sobre-endividamento dos consumidores: contorno de uma ‘ligação perigosa’.
Projecto Desemprego e Endividamento das Famílias PIQS/ECO 50119/2013. Relatório Final. Governo da
República Portuguesa: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, p. 33.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
352 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu art. 5º, XXXII, que é dever do
Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor. Estabeleceu ainda a defesa
do consumidor como meio para o alcance de uma existência digna, conforme os ditames
da justiça social na ordem econômica, de acordo com o art. 170.
Não obstante, diferentemente da maioria dos países desenvolvidos, o Brasil não
possui uma legislação que cuide especificamente da “crise de solvência e de liquidez”23
que caracteriza o superendividamento. Os mecanismos atualmente previstos na
legislação especializada, principalmente no CDC, não são suficientes para tratar da
questão de maneira eficiente, pois não existem procedimentos específicos, como na
legislação estrangeira, para prevenir e tratar o superendividamento de maneira estrutural
e global, seja proporcionando um recomeço imediato, com o perdão das dívidas (como
no modelo norte-americano do fresh start), seja estabelecendo-se um plano de pagamento
escalonado de acordo com as possibilidades de manutenção do mínimo existencial do
devedor de boa-fé, como sugere o modelo francês.
Com tal finalidade, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei nº 3.515, que
propõe a alteração do Código de Defesa do Consumidor, “para aperfeiçoar a disciplina
do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento”, tendo
sido elaborado a partir do trabalho de uma comissão de juristas especialmente nomeada
com essa finalidade.24
Dos múltiplos aspectos pelos quais pode ser o superendividamento abordado, um
dos mais importantes na discussão sobre sua prevenção e tratamento está na concessão
responsável do crédito. A liberação de crédito a devedores sabidamente insolventes ou
com graves indícios de uma crise de solvência iminente é um dos fatores que mais enseja
o superendividamento ativo inconsciente, como vimos anteriormente.
O que significa a concessão responsável do crédito e quais as práticas abusivas que
mais contribuem para um quadro de solvência dos devedores é o que será apresentado
no próximo tópico.

23
MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO Karen. Prevenção e tratamento do
superendividamento. Caderno de investigações científicas, Brasília, v. 3, DPDC/SDE, p. 25, 2010. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/seus-direitos/direito-do-consumidor/arquivos-publcacoes/2010caderno_superendi
vidamento.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014.
24
Em dezembro de 2010, foi nomeada comissão encarregada de elaborar anteprojeto de reforma do CDC, comissão
esta presidida pelo ministro Herman Benjamim, do STJ, Ada Pelegrini Grinover, Cláudia Lima Marques,
relatora-geral do anteprojeto, Leonardo Roscoe Bessa e Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer. Em entrevista
publicada no portal do Senado Federal, em 03.12.2010, o ministro Herman Benjamim afirmou que “(...) quando
o CDC foi editado o crédito era privilégio de poucos, num contexto de altos níveis de inflação e no qual o
sistema financeiro não era moderno como é atualmente”, justificando a necessidade de tratamento legislativo
do superendividamento. A justificação do anteprojeto de lei apresentada pela comissão ressalta que o texto “(...)
incluiu normas principiológicas referentes ao importante tema da concessão de crédito ao consumidor – base
das economias de consumo nos países industrializados, agora em ascensão no Brasil – e ao consequente tema da
prevenção do superendividamento dos consumidores, problema comum em todas as sociedades de consumo
consolidadas e saudáveis. Trata-se de temas novos, oriundos do pujante e consistente crescimento econômico
brasileiro e da democratização do acesso ao crédito e aos produtos e serviços em nosso mercado, visando as
normas projetadas a preparar o mercado e a sociedade brasileira para os próximos anos. As normas propostas
reforçam os direitos de informação, de transparência, de lealdade e cooperação nas relações envolvendo crédito,
direta ou indiretamente para fornecimento de produtos e serviços a consumidores, assim, como impõem um
standard atualizado da boa-fé e de função social destes contratos, em virtude da entrada em vigor do Código
Civil de 2002”.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
353

3 Superendividamento e crédito responsável


Com afirmado no tópico precedente, o crédito é um fator indispensável na
economia capitalista e sua concessão, se feita dentro de parâmetros que levem em conta
a capacidade de solvência do devedor e as contingências existentes no momento da
contração do crédito, é um fator de circulação de riquezas e de aumento da qualidade
de vida dos indivíduos.
Contudo, a concessão indiscriminada de crédito, além de ser um dos grandes
fatores que contribui para o superendividamento dos consumidores, gera graves efeitos
sistêmicos para a economia em geral, principalmente em relação às altas taxas de
juros cobradas no Brasil. O risco de superendividamento aumenta quando o crédito é
concedido sem que sejam avaliadas corretamente as condições de reembolso do devedor,
sem exigências de garantias e sem que sejam prestadas informações importantes sobre
os riscos da operação, as taxas de juros e a soma total do valor a ser pago, entre outras.
Assim, alguns aspectos relacionados à concessão responsável de crédito no
mercado merecem destaque, tais como dever de informação, dever de aconselhamento, a
questão do assédio ao consumo e, finalmente, a lei do cadastro positivo e o credit scoring.
A principal estratégia de prevenção do superendividamento é a informação de
todos os dados atinentes à contratação, para que o consumidor possa avaliar sua escolha
da maneira que mais lhe atenda aos interesses e à sua capacidade financeira. O dever
de informação como um direito básico do consumidor é previsto no CDC de forma
expressa, sendo que o art. 6º, III, determina que a informação seja adequada e clara sobre
os diferentes serviços e produtos.25
Quando o tema é prevenção do superendividamento, o dever de informação deve
se somar ao dever de aconselhamento, de modo que sejam oferecidos os serviços mais
consentâneos e adequados às necessidades do consumidor e seja avaliada sua capacidade
de reembolso do crédito, a fim de evitar o endividamento crônico.26 Conforme pontuou
Marcio Mello Casado, “o banco é o especialista em concessão do crédito. Ele, assim, como
o médico, tem o dever de indicar o melhor tratamento (já que detém todo o conhecimento
a respeito daquela determinada atividade), tem o dever de aconselhar as melhores taxas

25
O Ministro Herman Benjamin, no REsp 586.316/MG, estabeleceu alguns parâmetros para aferição da informação
clara e adequada, a começar pelo fato de que informação adequada é “aquela que se apresenta simultaneamente
completa, gratuita e útil, vedada, neste último caso, a diluição da comunicação efetivamente relevante pelo uso de
informações soltas, redundantes ou destituídas de qualquer serventia para o consumidor”. A oferta, nas práticas
comerciais, deve “assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas
características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros
dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”. A “informação deve
ser correta (=verdadeira), clara (=de fácil entendimento), precisa (=não prolixa ou escassa), ostensiva (=de fácil
constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa”.
26
Clarissa Costa de Lima escreveu sobre o dever de aconselhamento que “(...) o mero fornecimento de informações
neutras e objetivas são insuficientes para que o profissional cumpra seu papel de ajuda na decisão de seu cliente.
A complexidade de algumas informações e a relação de confiança estabelecida entre as partes exigem que à
simples obrigação de informação se associe uma outra: aquela de conselho. A propósito, Jean François Clement
refere que o conselho complementa a obrigação de informação, dá vida à informação nem sempre aproveitável
em seu estado bruto, passivo. A informação stricto sensu é somente um aspecto da obrigação que pesa sobre o
profissional. É somente a primeira etapa, porquanto o profissional deve exercer uma tarefa mais ativa: explicar o
conteúdo da informação e aconselhar seu cliente”. LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e
o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 49.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
354 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

e a melhor maneira de contratar”.27 Para o autor, a ausência de aconselhamento leva à


quebra da boa-fé objetiva, essencial ao bom andamento de um contrato.
Não basta que o fornecedor preste a informação de maneira clara e precisa, ele
precisa garantir que a informação prestada foi levada em conta, auxiliando o consumidor
de crédito no momento da tomada de decisão. A boa-fé objetiva impõe o dever de conduta
leal e cooperativa de ambas as partes, assim, quando o credor auxilia o devedor na
tomada de decisão contratual, exerce a boa-fé, prevenindo um futuro inadimplemento
e minimizando as próprias perdas – “the duty to mitigate the own loss”.28
Sobretudo em relação aos serviços de fornecimento de crédito, que são os que
particularmente interessam neste texto, a assimetria informacional é a regra, e não a
exceção. Exemplos não faltam da carência de informação clara aos consumidores de
crédito, bem como de práticas abusivas das instituições financeiras nesse tipo de contrato.
À assimetria de informação em favor do fornecedor do serviço de crédito, que
detém, além do domínio das questões técnicas, jurídicas e econômicas atinentes à
concessão do crédito, a prerrogativa da redação do instrumento contratual, somam-se
as práticas abusivas das instituições financeiras, que estimulam o uso de modalidades
mais onerosas de crédito. Exemplos de tais práticas são a concessão e o aumento do
limite de crédito do cheque especial, envio de cartões de crédito sem a solicitação do
consumidor, ausência de entrega do instrumento contratual, falta de informação sobre
o total da dívida a ser paga com financiamento, entre outras tantas.29
A concessão do crédito deve respeitar critérios especializados que, segundo o
Banco Central, se baseiam nos princípios da seletividade, garantia, liquidez e diversificação
de riscos.30 Crédito e garantia são indissociáveis na atividade bancária e resultam na
moldura legal da circulação de bens e direitos. De acordo com Bruno Miragem, “só há
confiança nos instrumentos que promovem a circulação, quando haja segurança sobre
a existência e a eficiência do direito, assim como garantias de obter o interesse útil
pretendido, como regra, o pagamento”.31
A concessão do crédito a quem sabidamente não tem condições de saldá-lo
ou mesmo não oferece garantias suficientes de solvibilidade pode caracterizar abuso
do direito,32 ensejando inclusive a responsabilidade civil do agente financeiro em tais

27
CASADO, Marcio Mello. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 177.
28
Para André Perin Schmidt Neto, “(...) na medida em que o fornecedor auxilia o tomador de crédito, aquele
garante o reembolso, bem como exerce a boa-fé no sentido de lealdade com a outra parte, seguindo orientação na
nova concepção contratual em que as partes estão unidas para um fim comum qual seja a execução do contrato
conforme o pactuado”. SCHIMIDT NETO, André Perin. Revisão dos contratos com base no superendividamento. Do
Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 307.
29
Sobre o tema, vide MIRAGEM, Bruno. Direito bancário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. EFING, Antônio
Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves. Defesa judicial do consumidor bancário. Dissertação de
mestrado. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2014.
30
Segundo o Manual de Normas e Instruções do Banco Central – MNI, “é vedado ao banco comercial (...) b) realizar
operações que não atendam aos princípios da seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos” (MNI 16.7.2.2).
31
MIRAGEM, Bruno. Direito bancário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 70.
32
Nesse sentido, Heloisa Carpena e Rosangela Lunardelli Cavallazzi, ao afirmarem que a teoria do abuso do direito
aplica-se aos contratos de crédito ao consumo. “É evidente que o fornecedor que concede crédito aquém não tem
condições de cumprir o contrato está praticando abuso do direito. Embora aparentemente o contrato se insira
na esfera do lícito, na medida em que satisfaça requisitos formais, na verdade o fornecedor pratica ato abusivo,
desviando-se das finalidades sociais que constituem o fundamento de validade da liberdade de contratar,
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
355

circunstâncias.33 A concessão abusiva não observa os princípios recomendados pelo Banco


Central, notadamente no que tange às garantias e à avaliação do risco.
Enquanto a informação tem caráter objetivo, sem nenhuma prestação intelectual
ou avaliação por parte do fornecedor, o dever de aconselhamento tem caráter subjetivo,
pois constitui a obrigação de dar uma opinião ou parecer a alguém para orientar sua ação.
Assim, aquele que tem obrigação de aconselhamento deve conhecer a condição do
parceiro contratual, analisar sua situação e emitir um conselho de como agir melhor,
tendo o cuidado de assegurar que o conselho foi bem entendido e vai ser assimilado
pelo tomador.34
A concessão do crédito responsável passa ainda pela restrição da publicidade
que estimule a tomada irresponsável do crédito ou que se valha da vulnerabilidade do
consumidor. Especialmente no que diz respeito à oferta e publicidade de crédito, se antes
assumia caráter meramente institucional, hoje se utiliza de meios agressivos e insidiosos
para colocação de seus produtos no mercado. Não devem ser permitidas campanhas
publicitárias que utilizem expressões como “juros zero” ou qualquer outro apelo que
crie a falsa expectativa de ausência de custo na tomada do crédito.
No que diz respeito à concessão de crédito responsável, um dos temas mais
instigantes é o combate ao assédio de consumo, com vistas sobretudo à proteção de
grupos específicos de consumidores considerados mais vulneráveis que os demais em
razão de circunstâncias específicas, como no caso de idosos e analfabetos, pessoas que
a doutrina passou a nominar como “hipervulneráveis”.35

ou mais especificamente, de fornecer crédito.” CARPENA, Heloisa; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli.


Superendividamento: uma proposta para um estudo empírico e perspectiva de regulação. MARQUES, Cláudia
Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado. Superendividamento e
crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 337.
33
Clarissa Costa de Lima informa casos em que a Corte de Cassação Francesa avaliou a responsabilidade
profissional dos agentes financeiros na verificação da solvibilidade do consumidor no momento da concessão
de crédito. Em alguns deles houve a conclusão de que “(...) o banco olvidou de suas obrigações em relação aos
mutuários leigos ao deixar de verificar suas capacidades financeiras, concedendo-lhes um empréstimo excessivo
em relação a suas capacidades contributivas”, bem como “(...) que o banco que intervém como gestor de contas
tem seu dever de informação reforçado, não pode se contentar em informar seu cliente sobre as modalidades
do empréstimo e apreciar se elas estão adequadas à capacidade financeira do cliente”. LIMA, Clarissa Costa de.
Medidas preventivas ao superendividamento de devedores na União Europeia. Revista de Direito do Consumidor,
v. 76, p. 212, out. 2010.
34
LIMA, Clarissa Costa de. Medidas preventivas ao superendividamento de devedores na União Europeia. Revista
de Direito do Consumidor, v. 76, p. 214, out. 2010.
35
Cristiano Heineck Schmitt apresenta três formas pelas quais a fragilidade dos consumidores se apresenta nas
relações de consumo, todas elas ligadas à manutenção da igualdade entre as partes contratantes: a primeira
forma diz respeito à publicidade, que – por meio de modernas e agressivas técnicas de marketing e mecanismos
de manipulação psíquica – cria necessidades antes inexistentes e induzem ao consumo. “O indivíduo tem sua
manifestação de vontade fragilizada, já não mais determinando suas prioridades e necessidades, e isso ocorre
normalmente de forma despercebida”. A segunda diz respeito a uma vulnerabilidade técnico-profissional, pois
são os fornecedores que possuem o conhecimento específico de sua atividade, ao contrário do consumidor, que
usualmente se vê privado dessa informação. Quanto à terceira forma, aparece como vulnerabilidade jurídica,
pois, além das técnicas de contratação de massa, as empresas muitas vezes possuem setores jurídicos próprios,
preparados para conflitos judiciais e extrajudiciais, sendo o consumidor um litigante eventual, ao passo que o
fornecedor, sobretudo se representado por empresas maiores, é litigante habituado a disputas judiciais. E mais,
“os contratos de adesão e similares notabilizam-se por serem técnicos, complexos, às vezes pouco esclarecedores e
transparentes, elaborados com intuito de dificultar a manifestação de vontade livre e consciente do consumidor”.
SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2011, p. 194.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
356 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

No ordenamento brasileiro o art. 39, IV, do CDC qualifica como abusiva a prática
do fornecedor que “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em
vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos
ou serviços”. Assim, o dispositivo já qualifica como prática abusiva prevalecer-se da
fragilidade do consumidor para impor a contratação de produtos e serviços. Não
obstante, não faz a necessária diferenciação entre prática abusiva e assédio de consumo,
muito embora sejam conceitos muito próximos.
Prática abusiva, na definição de Herman Benjamim, é aquela praticada “em des­
conformidade com padrões mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor”,36
ferindo a ordem jurídica por afronta à boa-fé, à ordem pública e os bons costumes. As
práticas abusivas se caracterizam a partir de comportamentos, tanto na esfera contratual
quanto à margem dela, que abusam da boa-fé do consumidor ou situação de inferioridade
econômica, em que ele fique exposto, ampliando a sua vulnerabilidade, incluindo assim
o assédio ao consumo.
Segundo Claudia Lima Marques, o assédio ao consumo é um dos elementos ou
espécie da prática comercial agressiva, caracterizada pelo assédio, pela coerção e pela
influência indevida de profissional. Para a autora, “a prática agressiva é aquela que
tenta pressionar o consumidor de forma a influenciar (paralisar ou impor) sua decisão
de consumo, explorando emoções, medos, confiança em relação a terceiros, explorando
a posição de expert do fornecedor e as circunstâncias especiais do consumidor”.37 O
assédio ao consumo pode ser definido como “pressões exercidas pelos fornecedores
que acabam impedindo uma decisão racional do consumidor”.38
Mas não é somente no momento da contratação que ocorre o assédio ao consumo.
Ele pode acontecer durante a execução dos contratos, principalmente nos contratos de
crédito de cunho continuado, que assumem contornos de contratos existenciais, na
medida em que se tornam indispensáveis no cotidiano de centenas de consumidores,
contratos caracterizados como contratos cativos de longa duração, na expressão cunhada
por Claudia Lima Marques. São contratos como cheque especial, cartão de crédito e
crédito consignado, entre outros.
Na caracterização do assédio ao consumo devem ser considerados aspectos
relativos à função social do crédito, notadamente as qualidades peculiares do crédito
contratado (objetivas e subjetivas), tais como as “condições pessoais do consumidor,
a finalidade do crédito, a repercussão social e os efeitos no núcleo familiar”.39 Assim,
há que se averiguar se o crédito é destinado à satisfação de necessidades básicas como
alimentação, moradia, vestuário, ou se o crédito é destinado aos consumos de segunda
ordem, tais como férias, refeições fora de casa, viagens, entre outros, ou seja, se os gastos
se relacionam com cultura e lazer, entre outras finalidades.

36
BENJAMIN, Herman et al. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 251.
37
MARQUES, Claudia Lima. Prefácio. In: SAMPAIO, Marilia de Ávila e Silva. Justiça e superendividamento. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 12.
38
HOWELLS, Geraint. Agressive Commercial Practices. In: HOWELS, Geraint; MICKLITZ, Hans; W.
WILHELMSSON, Thomas. European fair trading law. The unfair commercial practices directive. Hampshire:
Ashgate, 2006 p. 172. Apud MARQUES, Claudia Lima. Prefácio. In: SAMPAIO, Marilia de Ávila e Silva. Justiça e
superendividamento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 13.
39
OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves. Defesa judicial do consumidor bancário. Dissertação de mestrado.
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2014, p. 197.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
357

Sob esse aspecto, a avaliação do assédio deve buscar amparo no paradigma da


essencialidade, na forma preconizada por Teresa Negreiros. Segundo a autora, “à luz
do denominado paradigma da essencialidade, propõe-se que a utilidade existencial do
bem contratado passe a ser um critério juridicamente relevante no exame das questões
contratuais”.40 41
As pesquisas sobre superendividamento demonstram que dificilmente um
devedor para de pagar todos os débitos simultaneamente e que quase sempre o
inadim­plemento começa por pequenas dívidas, tais como telefone, televisão a cabo,
condo­mínio, cartão de crédito, mantendo-se o pagamento das despesas essenciais e dos
financia­mentos maiores, como o carro ou o imóvel.42 Dessa forma, tanto na prevenção
como no tratamento da situação de superendividamento, a função social do contrato
se torna um instrumento valioso para que, a partir da importância do bem ou serviço
objeto do contrato, sejam coibidas práticas contratuais abusivas, bem como o assédio
nas relações de consumo.
Para Claudia Lima Marques, na esteira da Diretiva 2005/29 da Comunidade
Europeia, o assédio ao consumo impõe a avaliação de condições no momento da con­
tratação, entre elas: “a) o momento e o local em que a prática é aplicada, a sua natureza
e sua persistência; b) o recurso à ameaça ou a linguagem ou comportamento injuriosos;
c) o aproveitamento profissional de qualquer infortúnio ou circunstância específica de
uma gravidade tal que prejudique a capacidade de decisão do consumidor, de que o
profissional tenha conhecimento, com o objetivo de influenciar a decisão do consumidor
em relação ao produto; d) qualquer entrave extracontratual oneroso ou desproporcionado
imposto pelo profissional, quando o consumidor pretenda exercer os seus direitos
contratuais, incluindo o de resolver o contrato, ou de trocar de produto ou de profissional;
e) qualquer ameaça que intentar uma ação quando não seja legalmente possível”.43
O que não se pode olvidar, entretanto, é que mesmo os contratos de adesão
(ou qualquer outra forma de padronização dos contratos de massa) são contratos
sinalagmáticos, marcados pela reciprocidade entre vantagens e ônus das partes, de
maneira equilibrada.44 A despersonalização do contrato e a desconsideração da vulne­
rabilidade do contratante de crédito podem levar à ruptura do sinalagma genético ou
superveniente.

40
Segundo Teresa Negreiros, “(...) o paradigma da essencialidade sintetiza uma mudança do modo de se conceber
os princípios do contrato, traduzindo a superação de uma concepção predominantemente patrimonialista
essencialmente neutra do fenômeno contratual. Com tal, o paradigma da essencialidade proporciona instrumentos
e conceitos que permitem tratar os problemas sociais como problemas a serem enfrentados também pelo direito
contratual, constituindo ao mesmo tempo uma expressão e um compromisso do estudioso desta área do saber
jurídico com a tutela da dignidade essencial da pessoa humana (...)”. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato. Novos
paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 380.
41
Em sentido similar, Ruy Rosado de Aguiar, com base na doutrina do prof. Junqueira Azevedo, classifica os
contratos em contratos existenciais e contratos de lucro ou empresariais. Os contratos existenciais “(...) teriam
por objeto da prestação um bem considerado essencial para a subsistência da pessoa, com a preservação dos
valores inerentes à sua dignidade, nos termos propostos pela Constituição da República”. AGUIAR, Ruy Rosado.
Contratos relacionais, existenciais e de lucro. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 45, p. 101, jan./mar. 2011.
42
FRADE, Catarina (Coord.). Desemprego e sobre-endividamento dos consumidores: contorno de uma ‘ligação
perigosa’. Projecto Desemprego e Endividamento das Famílias PIQS/ECO 50119/2013. Relatório Final. Governo
da República Portuguesa: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, p. 34.
43
MARQUES, Claudia Lima. Prefácio. In: SAMPAIO, Marilia de Ávila e Silva. Justiça e superendividamento. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 13.
44
Aqui não se está a abordar a questão dos contratos relacionais e suas diferenças estruturais em relação aos
contratos descontínuos, mesmo que abertos, o que será objeto de análise no próximo tópico.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
358 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A concessão de crédito de maneira irresponsável deve, assim, ensejar a punição


do fornecedor que, mesmo diante de um cenário desfavorável, entrega mais crédito a
devedores com notória dificuldade de adimplemento de suas dívidas, colocando-os
diante de uma dificuldade intransponível. A responsabilização do fornecedor de crédito
deve ser tanto maior quanto são os meios de informação hoje disponíveis para aferição
da higidez financeira do tomador do crédito. Sobre estes mecanismos é o que trata o
próximo tópico.

3.1 Credit scoring e cadastro positivo


No que concerne à concessão responsável de crédito, merece, por fim, uma última
palavra sobre os mecanismos disponíveis aos fornecedores de crédito, notadamente os
instrumentos de avaliação e de mensuração da capacidade de reembolso do tomador
do crédito. No item relacionado ao dever de aconselhamento na concessão do crédito
responsável, afirmou-se que tal processo de avaliação é fundamental para equilibrar as
pressões e inseguranças advindas da concessão de crédito sem garantias suficientes, bem
como os efeitos sistêmicos dessa prática, notadamente em relação às altas taxas de juros.
Para tanto, além dos bancos de dados de proteção ao crédito, conhecidos como
“cadastros de inadimplentes”, cuja regulamentação da atividade foi contemplada no
CDC,45 foi criado pela Lei nº 12.414/2011 o cadastro positivo, bem como foi julgado o REsp
1419697/RS, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, (julgado nos moldes do
art. 543-C do CPC – Recurso Repetitivo), que validou o sistema do credit scoring no Direito
brasileiro. O sistema do credit scoring é um sistema de pontuação do risco de concessão
de crédito a um determinado consumidor, sendo a avaliação do risco realizada a partir
de modelos estatísticos, com atribuição de nota ao consumidor avaliado, de acordo com
a natureza da operação a ser realizada. Não se trata de cadastro ou banco de dados de
consumidores, mas de uma metodologia de cálculo de risco de crédito, utilizando-se
modelos estatísticos e dados existentes no mercado, acessíveis via internet.
Em relação ao cadastro positivo, o art. 1º da Lei nº 12.414/2011, estabelece que o
objetivo da lei é disciplinar a formação e consulta a bancos de dados com informações
de adimplemento, de pessoas naturais ou jurídicas, para formação de histórico de
crédito, sem prejuízo do disposto no CDC. Apesar de ter ficado conhecida como a lei
do cadastro positivo, o artigo mencionado fala em banco de dados com informação de

45
O art. 43 do CDC regulamentou a atividade dos cadastros de inadimplentes, nos seguintes termos: “Art. 43.
O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas,
registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.
§1º Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil
compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos. §2º
A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao
consumidor, quando não solicitada por ele. §3º O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados
e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a
alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas. §4º Os bancos de dados e cadastros relativos a
consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público. §5º
Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos
Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito
junto aos fornecedores. §6º Todas as informações de que trata o caput deste artigo devem ser disponibilizadas em
formatos acessíveis, inclusive para a pessoa com deficiência, mediante solicitação do consumidor”.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
359

adimplemento, marcando assim, a distinção entre os bancos de dados dos consumidores


e cadastro de consumo.
A Lei se preocupou em regular que tipo de informações podem conter os bancos de
dados, estabelecendo que os dados devem ser adstritos a informações de adimplemento
do cadastrado para formação do histórico de crédito, devendo ser armazenadas somente
informações objetivas, claras, verdadeiras e de fácil compreensão, necessárias para a
avaliação da situação econômica do cadastrado.
O §2º do art. 3º da Lei estabelece os conceitos de informação objetiva (aquela
descritiva dos fatos e que não incluam juízo de valor), informação clara (aquela que
possibilita o imediato entendimento do cadastrado, independentemente de remissão a
anexos, fórmulas, símbolos, termos técnicos ou nomenclatura específica), informação
verdadeira (aquela exata, completa e sujeita à aprovação nos termos da Lei), informação
de fácil compreensão (aquela que em sentido comum assegura ao cadastrado o pleno
conhecimento do conteúdo, do sentido e do alcance dos dados sobre ele anotados).
A Lei, de igual modo, veda expressamente a veiculação de anotações de infor­
mações excessivas e de informações sensíveis. Excessivas são as informações que não
forem indispensáveis para a avalição da situação econômica do cadastrado e sensíveis
são as informações atinentes à origem social e étnica, à saúde, à informação genética, à
orientação sexual e às convicções políticas, religiosas e filosóficas.46
Atualmente a adesão ao cadastro é facultativa, mas encontra-se em tramitação no
Congresso Nacional, tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados, projeto de lei que
torna obrigatória a participação de todos os consumidores no cadastro positivo. Segundo
a justificativa do projeto apresentado, com o novo cadastro, os gestores de bancos de
dados – os chamados birôs de crédito, como Serasa e SPC – terão acesso a todas as
informações sobre empréstimos quitados e obrigações de pagamento que estão em dia,
com vistas a beneficiar consumidores adimplentes e pontuais em seus pagamentos.47
No que concerne ao credit scoring, a matéria foi objeto de julgamento em recurso
repetitivo, o REsp 1419697/RS, de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, 2ª
seção, DJe de 17.11.2014. Foram aprovadas cinco teses acerca do sistema, sendo elas:

I - O sistema “credit scoring” é um método desenvolvido para avaliação do risco de


concessão de crédito, a partir de modelos estatísticos, considerando diversas variáveis,
com atribuição de uma pontuação ao consumidor avaliado (nota do risco de crédito).
II - Essa prática comercial é lícita, estando autorizada pelo art. 5º, IV, e pelo art. 7º, I, da
Lei n. 12.414/2011 (lei do cadastro positivo).

46
Sobre as informações excessivas, Leonardo Bessa esclarece que “se pode ser verdadeiro que, sob a ótica econômica,
quanto mais informações, melhor é a avaliação de crédito (more is better), para o direito, para a proteção jurídica
da privacidade, é fundamental restringir, tanto no tempo como na qualidade e quantidade, as informações
que circulam pelos bancos de dados. (...) os dados coletados devem ser visivelmente úteis para os objetivos
específicos do arquivo. Se não atenderem a esse pressuposto, a coleta e o tratamento das informações devem
ser considerados ilegais, ilegítimos e ofensivos à privacidade (art. 5º, X, da CF)”. Já em relação às informações
sensíveis, pontua o autor que “o regime de dados sensíveis varia de acordo com a concepção a este respeito
em cada ordenamento, mas é certo que, em todos os casos, objetiva-se atender a necessidade de se estabelecer
uma área na qual a probabilidade de utilização discriminatória de informação é potencialmente maior – sem
deixarmos de reconhecer que há situações onde tal consequência pode advir sem que sejam utilizados dados
sensíveis ou então a utilização destes dados se prestem a fins legítimos e lícitos”. BESSA, Leonardo Roscoe.
Cadastro positivo. Comentários à Lei 12.414 de 9 de junho de 2014. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011, p. 94/96.
47
Sobre maiores detalhes e informações sobre o projeto ver PLP 441/2017, inteiro teor, disponível em: <http://www.
camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao>. Acesso em: 04 jun. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
360 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

III - Na avaliação do risco de crédito, devem ser respeitados os limites estabelecidos pelo
sistema de proteção do consumidor no sentido da tutela da privacidade e da máxima
transparência nas relações negociais, conforme previsão do CDC e da Lei n. 12.414/2011.
IV - Apesar de desnecessário o consentimento do consumidor consultado, devem ser a
ele fornecidos esclarecimentos, caso solicitados, acerca das fontes dos dados considerados
(histórico de crédito), bem como as informações pessoais valoradas.
V - O desrespeito aos limites legais na utilização do sistema “credit scoring”, configurando
abuso no exercício desse direito (art. 187 do CC), pode ensejar a responsabilidade objetiva
e solidária do fornecedor do serviço, do responsável pelo banco de dados, da fonte e do
consulente (art. 16 da Lei n. 12.414/2011) pela ocorrência de danos morais nas hipóteses de
utilização de informações excessivas ou sensíveis (art. 3º, §3º, I e II, da Lei n. 12.414/2011),
bem como nos casos de comprovada recusa indevida de crédito pelo uso de dados incorretos
ou desatualizados.

De início, cumpre esclarecer que o “credit scoring” ou simplesmente “credscore”


é um sistema de pontuação do risco de concessão de crédito a um determinado
consumidor, sendo a avaliação do risco realizada a partir de modelos estatísticos, com
atribuição de nota ao consumidor avaliado, de acordo com a natureza da operação a ser
realizada. Não se trata de cadastro ou banco de dados de consumidores, mas de uma
metodologia de cálculo de risco de crédito, utilizando-se modelos estatísticos e dados
existentes no mercado, acessíveis via internet.
Segundo entendimento do STJ, a nova metodologia é lícita desde que respeitados
os princípios básicos de proteção ao consumidor, principalmente em relação à tutela de
sua privacidade e à necessidade de transparência nos arquivos das relações negociais
de consumo.
É proibida ainda a utilização de dados sensíveis, estes definidos como aqueles
atinentes à origem social e étnica, à saúde, à informação genética, à orientação sexual
e às convicções políticas, religiosas e filosóficas do consumidor. Também devem ser
respeitadas as limitações temporais para as informações a serem consideradas, quais
sejam, cinco anos para os registros negativos, nos termos do CDC, e quinze anos para o
histórico do crédito, nos termos da Lei nº 12.414/2011. No que tange ao dever de infor­
mação, devem ser prestadas informações claras, precisas e pormenorizadas acerca dos
dados considerados pelo fornecedor e as respectivas fontes de consulta para a atribuição
da nota (histórico do crédito), como previsto no CDC e na Lei nº 12.414/11.
Não se exige o prévio e expresso consentimento do consumidor avaliado, na
medida em que não se trata de um banco de dados, mas de um método estatístico. Entre­
tanto, as informações, quando solicitadas, devem ser prestadas com a indicação precisa
de quais bancos de dados foram consultados, de modo a possibilitar ao consumidor o
controle acerca das informações existentes a seu respeito, principalmente em relação
àquelas sensíveis ou excessivas. Caracterizado o abuso de direito pela utilização de
informações, a responsabilidade civil pelos danos materiais e morais causados ao
consumidor consultado será objetiva e solidária do fornecedor do serviço de credit
scoring, do responsável pelo banco de dados, da fonte e do consulente, nos termos do
art. 2º da Lei do Cadastro Positivo.
Diane da existência de tais instrumentos de avaliação na concessão do crédito por
parte dos fornecedores, não se admite que estes, diante do inadimplemento do tomador,
não sejam responsabilizados. É necessário que aumente a necessidade de proteção do
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
361

consumidor contra a concessão/tomada irresponsável do crédito, a partir de um maior


controle da informação e da transparência na concessão do crédito e, sobretudo, a partir
da noção de crédito responsável.
O objetivo do desenvolvimento da ideia de crédito responsável, tanto por parte do
tomador quanto por parte do fornecedor, é explicitar que, mesmo no caso de aquisição
de bens de consumo durável, desde o eletrodoméstico até o carro ou o imóvel, além da
operação de compra e venda, existe um contrato conexo/coligado de financiamento, que
torna a estrutura do negócio de concessão do crédito uma estrutura complexa.
A operação de crédito para consumo, sem o cumprimento dos deveres de
informação, esclarecimento e aconselhamento, “pode tanto comprometer a autonomia
racional na decisão sobre contratar ou não, assim como ensejar o fenômeno do
superendividamento do consumidor”.48
Na hipótese de manifesta negligência na cogestão equilibrada do crédito, assume
o credor o ônus de rever suas expectativas iniciais de recebimento, pois não lhe será
lícita a apropriação de parcelas alimentares do devedor, inegociáveis pela vontade
privada, quando ausente a boa-fé objetiva, caracterizada pela concessão de empréstimos
incongruentes e desproporcionais segundo a teoria do crédito responsável; as empresas,
ao concederem o crédito, devem adotar as cautelas necessárias ao efetivo recebimento
do retorno financeiro, mas também devem tomar essas medidas visando coibir a
superveniência do superendividamento dos consumidores.49

4 Considerações finais
O superendividamento, fruto perverso da cultura do consumismo, merece ser
tratado como um fenômeno que envolve a um só tempo escolhas feitas pelo devedor,
mas, ao mesmo tempo, como um fenômeno que pode advir do descumprimento dos
deveres mais elementares de informação e aconselhamento por parte dos fornecedores
de crédito.
No caso brasileiro, a concessão maciça do microcrédito destinado a fomentar o
consumo foi adotada como padrão de política macroeconômica do governo, fazendo
crer que, com o aumento do consumo de determinados bens adquiridos pela antecipação
de créditos, a população tivesse, de fato, um aumento de qualidade de vida e inclusão
social. Essa promessa não se concretizou.
É preciso que fique claro, entretanto, que a concessão maciça de crédito para
consumo em tempos de estabilidade econômica e de pleno emprego não significa por
si só um problema, na medida em que o endividamento representa a outra face do

48
MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2016, p. 438.
49
Conclusões apresentados em acórdão do TJDFT. Merece destaque a conclusão do acórdão que estabeleceu
parâmetros para a limitação dos descontos: “Para que não seja estendido o presente entendimento a toda e
qualquer espécie de mútuo bancário, urge destacar os parâmetros objetivos que amparam o provimento ora
restritivo: (a) o volume de empréstimos concedido é manifestamente superior à capacidade de solvência do
correntista; (b) o credor conhecia a noticiada insuficiência de recursos; (c) os descontos incidem sobre verba
alimentar indispensável à manutenção do devedor, fato que pode ser presumido, pois a soma das prestações
a serem debitadas consome mais da metade da renda mensal do trabalhador”. BRASIL. Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e Territórios, 6ª Turma. APC 2011091011352-DF. Relatora: Desembargadora Vera Andrighi.
DJe 06 ago. 2013. O mesmo posicionamento pode ser observado nos processos da mesma relatora de n. EIC
20110110512500; APC 20090111584026; APC 20100111314895; APC 20080111444339.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
362 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

crédito, indispensável ao fomento das economias modernas. Antes de ser um problema,


o endividamento é um fenômeno comum na sociedade de consumo, pois por intermédio
do crédito, permite-se o acesso a bens e serviços que melhoram a qualidade de vida dos
indivíduos e das famílias e a inclusão de pessoas de baixa renda mensal nessa sociedade
de consumo. Trata-se de uma troca intertemporal em que se antecipa a fruição de
determinados bens, em troca do comprometimento do rendimento futuro.
O problema do endividamento surge quando sobrevém o risco, sempre presente,
de que algum contratempo na vida do devedor o impeça de cumprir seus compromissos
financeiros, ou seja, quando seus rendimentos não comportam os compromissos
financeiros assumidos.
Ocorre que em relação às camadas da população com menor faixa de renda o
problema do endividamento crônico tende a ser mais grave, pois se lançou mão do
crédito oferecido em larga escala para consumo, com a falsa expectativa de melhoria
das condições de vida, quando o que aconteceu na realidade é que este segmento da
população teve acesso a bens de consumo antes considerados supérfluos, à custa da
antecipação de um crédito que agora está sendo cobrado.
Se é fato que níveis de consumo não podem ser mantidos sem a oferta crédito,
tornando-se este um mecanismo de inclusão social, não é menos verdade que, no Brasil,
a maior parte do crédito é adiantado como crédito pessoal, sem garantias, agindo os
bancos e instituições financeiras com muita liberdade na sua oferta. Essa realidade se
apresenta como um desafio regulatório, diante da incapacidade dos atuais mecanismos
legislativos de tratamento do superendividamento e a ausência de uma legislação
expressa e específica de regulação desse fenômeno.
Assim, o que se espera com o presente ensaio é reforçar a necessidade de
tratamento da questão de forma mais enfática, de modo a oferecer efetiva proteção dos
consumidores superendividados, tanto na seara dos direitos do consumidor como no
campo das políticas estatais de consumo. O que se espera, num futuro próximo, é a
existência de um aparato normativo que confira um mínimo de proteção às expectativas
e à confiança do consumidor nos contratos de crédito. A necessidade é de se resguardar
os consumidores contra atividades predatórias do mercado de crédito, diante do caráter
indispensável deste nas sociedades de consumo contemporâneas.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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SAMPAIO, Marília de Ávila e Silva. Considerações gerais sobre superendividamento e concessão


responsável de crédito. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro
de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 345-363. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
EM FACE DO PLS Nº 757/2015:
A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE
E DA REPRODUTIVIDADE PERSONALÍSSIMAS

LUANA ADRIANO ARAÚJO

CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO

Introdução
Tradicionalmente, o modelo de substituição da vontade na tomada de decisões
fundamentou a incapacitação total ou parcial de pessoas com deficiência – sobretudo
intelectual e mental – a partir da ideia de que os representantes destas suprem todas ou
algumas decisões de suas vidas, anulando-se ou limitando-se suas respectivas capacidades
jurídicas. No âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos (DSR), essencialmente exercidos
diretamente por seus titulares, a representação substitutiva coloca-se como entrave
particularmente complexo. Este modelo pautou a redação do Código Civil de 2002
(CC/2002), que qualificava como absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os
atos da vida civil os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência
mental, não tivessem o necessário discernimento; e os que, mesmo por causa transitória,
não pudessem exprimir sua vontade.
Contemplando uma mudança paradigmática no âmbito da capacidade jurídica
das pessoas com deficiência, o art. 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (CDPD) estabelece o igual reconhecimento perante a lei com a
garantia de apoios na expressão da capacidade legal, assegurando-se, em seu art. 23 da
CDPD, a proteção do exercício de DSR de pessoas com deficiência. Em consonância, a Lei
Brasileira de Inclusão (LBI), reconheceu, no âmbito do Direito brasileiro, o exercício dos
DSR no art. 6º, extinguindo, ainda, a qualificação jurídica da deficiência como geradora
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366 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

da incapacidade absoluta. Resguardando o exercício de tais direitos personalíssimos, a


LBI garante que a curatela afetará somente os atos de natureza patrimonial e negocial,
não alcançando o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade,
à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. No entanto, o Projeto de Lei do Senado (PLS)
nº 757/2015 propõe alterar esta redação, possibilitando a extensão dos limites da curatela
a direitos de natureza não patrimonial. A despeito de não tratar especificamente de DSR,
a proposta inclui a regulação da capacidade para o casamento como possível extensão
dos efeitos restritivos da curatela, além de possibilitar o condicionamento da prática de
atos existenciais à prévia autorização judicial.
Esta pesquisa busca, como objetivo geral, compreender os efeitos das alterações
propostas no PLS nº 757/2015 sobre os limites da curatela no tocante aos DSR de pessoas
com deficiência, atentando, ainda, aos seguintes objetivos específicos: a elucidação
da problemática do exercício dos direitos personalíssimos no âmbito do modelo de
substituição na tomada de decisão; a fixação da relação entre o reconhecimento da
capacidade plena e do exercício de DSR na CDPD; e o entendimento das modificações
propostas pela LBI em cotejo com o consagrado convencionalmente. Desenvolver-
se-á uma pesquisa qualitativa baseada na revisão bibliográfica acerca dos modelos de
expressão da capacidade e no cotejo dos instrumentos normativos pertinentes, sobretudo
da CDPD, da LBI e do CC/2002.

1 Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com


Deficiência: um novo paradigma?
Em 2007, no âmbito da Organização das Nações Unidas, foram pactuados a
Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, cuja incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro se deu com equivalência
a emenda constitucional, mediante a aprovação pelo Decreto Legislativo nº 186, de 09
de julho de 2008, com a observância do procedimento especial reservado aos tratados
internacionais de direitos humanos (art. 5º, §3º, CF). Ainda que não tenha sido o primeiro
documento internacional a se ocupar dos direitos das pessoas com deficiência, a CDPD
trouxe relevantes novidades ao tratá-los em completude. Em contraste ao recorrente
foco nos direitos sociais e econômicos, em linguagem assistencialista, foram inseridos
nas discussões os direitos civis e políticos sob a perspectiva interdependente de direitos
humanos, dando espaço e canais para reivindicações assertivas por direitos (DHANDA,
2008, p. 46).
Com efeito, a noção de deficiência passou a se centrar na dificuldade de parti­
cipação social, resultado da interação multifacetada entre as pessoas com deficiência e
os obstáculos devidos às atitudes e ao meio ambiente. Por conseguinte, não se demarca
a deficiência a partir de uma análise imediata e individualizada do indivíduo, é preciso
examiná-la dentro de um contexto social. Na proporção em que as barreiras estabelecidas
pelo meio social forem maiores, mais acentuada será a deficiência, dificultando a fruição
dos direitos humanos básicos. Em verdade, há a introdução de um novo paradigma que
conduz a uma percepção social e amplificada da deficiência.
Nesta equação, as limitações que determinam o desequilíbrio na fruição de direitos
não são as funcionais, mas aquelas definidas pela insuficiência de estrutura inclusiva e de
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
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serviços desenhados para todos. A proteção aos direitos das pessoas com deficiência à luz
dos direitos humanos implica a afirmação dos direitos civis e políticos, como também dos
direitos econômicos, sociais e culturais, em virtude da universalidade, indivisibilidade,
interdependência e interrelação de todos eles. Garanti-los satisfatoriamente propicia os
instrumentos para uma vivência com dignidade. A verdadeira adoção do modelo social
pelo Estado acarreta o afastamento de normas jurídicas e práticas sociais que carregam
em si estigmas e discriminações em razão da deficiência e que resultam em situações
desvantajosas, causando prejuízos ao gozo de direitos básicos (BARRANCO; CUENCA;
RAMIRO, 2012, p. 55-56).
Dentre as questões debatidas nas negociações prévias à CDPD, o tema da
capacidade jurídica foi o mais polêmico e controvertido. A delegação do Canadá chegou
a expor proposta de redação do artigo 12 com alusão à circunstância de carência de
capacidade legal e à possibilidade de nomeação de representante legal para atuar em
nome da pessoa com deficiência. As organizações não governamentais fizeram claras
objeções à sugestão e reforçaram que o apoio ao exercício da capacidade legal envolve
diferentes níveis de suporte, porém nenhum deles pode excluir o próprio interessado
no processo decisório (PALACIOS, 2008, p. 423-424).
Por fim, a redação aprovada do artigo 12 enaltece a importância de se promover a
autonomia e a independência individual da pessoa com deficiência, o que inegavelmente
compreende a liberdade para eleger suas próprias escolhas. Assim, dispõe que às pessoas
com deficiência será reconhecido o gozo da capacidade legal em igualdade de condições
com as demais, em todas as esferas da vida (§2º), tomadas as medidas apropriadas para
prover o apoio que necessitarem ao seu efetivo exercício (§3º), combinadas com a adoção
de salvaguardas que lhes assegure o respeito a seus direitos, vontades e preferências
(§4º). Estabelece, ainda, que tais medidas devem ser proporcionais e ajustadas às
circunstâncias pessoais analisadas caso a caso, além de aplicadas pelo período mais
breve possível e submetidas a regulares revisões (§4º). Depreende-se que a capacidade
jurídica é pressuposto para o desfrute de uma vida independente com real participação
em sociedade.
Já com a CDPD em vigor, à medida que recebia os relatórios sobre o cumprimento
das obrigações contraídas perante a Organização das Nações Unidas (art. 35), o Comitê
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência observou que havia uma confusão coletiva
na interpretação do alcance do art. 12, que trata do igual reconhecimento pela lei, e
que o mal-entendido advinha, sobretudo, da incompreensão sobre a dimensão e o
significado do modelo de deficiência baseado nos direitos humanos. A garantia de que
o gozo da capacidade legal se dará em igualdade de condições com os demais envolve
impreterivelmente a mudança de paradigma na tomada de decisões, do modelo de
substituição para o de apoio (ONU, 2014, p. 1).

1.1 Lei Brasileira de Inclusão: a internalização do modelo social de


deficiência no sistema de capacidades civis
As recentes modificações retiram o foco econômico e patrimonial para reposicioná-
lo à proteção primordial à pessoa, com a preservação do exercício dos direitos existenciais.
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368 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Como condição estática, a incapacidade precisa ser flexível para compreender a exata
medida da necessidade do caso, para não se contrapor à capacidade de discernimento,
que se manifesta de forma dinâmica frente às situações em concreto (REQUIÃO, 2017,
p. 77).
Na escrita do CC/2002, constavam como absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil (i) os menores de dezesseis anos; (ii) os que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a
prática desses atos; (iii) os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir
sua vontade (art. 3º). A este tempo, a categoria de relativamente incapazes a certos atos
ou à maneira de exercê-los cabia (i) aos maiores de dezesseis e menores de dezoito
anos; (ii) aos ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental,
tenham o discernimento reduzido; (iii) aos excepcionais, sem desenvolvimento mental
completo; (iv) aos pródigos.
Assim, a partir da leitura do CC/2002, nota-se que a incapacidade de exercício
era graduada segundo níveis de discernimento, então avaliado de modo prévio com
base em parâmetros médicos. Se a compreensão era reduzida, incidia a categoria de
relativamente incapaz. Se, porém, era insuficiente à prática de atos com repercussão
jurídica, estabelecia-se a incapacidade absoluta, que os obstava por completo e
determinava a representação. Após as mudanças, a incapacidade absoluta tornou-se
puramente objetiva pela exclusividade do critério etário. A incapacidade relativa, por
sua vez, absorveu o caráter escalonado, tendo seus efeitos definidos pelo potencial de
expressão da vontade.
No tocante à tutela dos direitos existenciais, a LBI acolheu a teoria da incindibilidade
entre a titularidade do direito e a capacidade de exercício, ao dispor que a curatela afeta
tão somente os atos relacionados aos direitos patrimoniais e negociais (art. 85, caput),
sem alcançar o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade,
à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (art. 85, §1º), em lista não exaustiva. Desfaz-
se a dualidade entre estes conceitos, o que quer dizer que, quanto a tais direitos, a
capacidade de direito ou de gozo, aquela que decorre da própria personalidade, apreende
a capacidade de fato, de maneira que não é possível as separar. Assim, as pessoas com
deficiência têm plena capacidade para exercer pessoalmente seus direitos existenciais.
Tais situações existenciais, que se evidenciam em circunstâncias de intimidade e
de construção da esfera privada (TEIXEIRA, 2010, p. 167), diferem significativamente dos
direitos patrimoniais, que têm seus institutos jurídicos “tutelados em razão e nos limites
da sua função social”. Por outro lado, os atributos existenciais da pessoa humana não
devem atrair o campo jurídico, por interessar e dizer respeito apenas a si mesma. Neste
ponto, “o ordenamento deverá tão somente garantir-lhe o espaço onde desenvolver as
suas escolhas autônomas, salientando o fato de que de toda liberdade decorre, direta
e proporcionalmente, uma responsabilidade” (BODIN DE MORAES, 2010, p. 148).
É justamente por serem componentes da personalidade individual que se faz “necessário
que sejam garantidos titularidade e o exercício de todas aquelas expressões de vida”
(PERLINGIERI, 2007, p. 165).
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
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2 A tutela da autonomia corporal: direitos sexuais e reprodutivos de


pessoas com deficiência
Como visto, a nova legislação alterou substancialmente o sistema de capacidade
civil e revogou as restrições ao matrimônio de pessoas com deficiência mental ou
inte­lectual, em um contexto de acolhimento da pluralidade humana. Impulsionou-se
a promoção dos direitos da pessoa com deficiência a partir do modelo de família e
sociedade que privilegia o poder do indivíduo sobre si mesmo e o respeito às diferenças
do outro. Nesse sentido, considerando que a família é o núcleo de proteção mais próximo
e significativo à pessoa e que a deficiência não a despoja dos predicados de pessoa
humana, não se sustenta a pretensão jurídica de salvaguardar os interesses da pessoa
com deficiência mediante seu afastamento dos processos sociais, como a constituição
de família pelo casamento ou união estável.
Em realce à determinação de que se deve afastar o tratamento discriminatório contra
as pessoas com deficiência nas questões relativas ao casamento, família, paternidade e
relacionamentos, a CDPD estabelece o direito a decidir livre e responsavelmente sobre
o número de filhos e a ter acesso à educação voltada à reprodução e ao planejamento
familiar. Para a garantia destes direitos reprodutivos, afirma-se o dever de assegurar às
pessoas com deficiência a conservação da fertilidade (art. 23.1). Ao tratar do assunto, a
LBI dispõe que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa para constituir
família; exercer direitos sexuais e reprodutivos; ou preservar a fertilidade, sendo
expressamente proibida a esterilização compulsória (art. 6º, I, II e IV).
Assim, o olhar sobre a pessoa com deficiência a toma como um todo, com o
reconhecimento de suas necessidades sociais, afetivas e também sexuais. O tema desperta
preconceitos1 porque as pessoas com deficiência são retratadas no imaginário leigo ora
como assexuadas, ora como hipersexuadas,2 sobretudo aquelas com impedimentos
mentais ou intelectuais. Em consequência, o tratamento a elas dispensado transmite
infantilização ou repressão das manifestações sexuais. Nesse processo de intervenção
de ordem social e cultural, a pessoa com deficiência acaba por perder o poder sobre o
próprio corpo. O exemplo mais grave é a prática da esterilização involuntária, até então
lícita no ordenamento jurídico, a qual responde ao objetivo de impossibilitar o exercício
do direito reprodutivo pela pessoa com deficiência e, dessa forma, evitar a reprodução
da deficiência em outra geração.
A tutela sobre o próprio corpo pressupõe não apenas a integridade psicofísica, mas
também a liberdade de decidir sobre questões que o envolvam, como as relativas à saúde
e à sexualidade. Dado se tratar de direitos personalíssimos, o exercício fica adstrito à

1
Sobre os mitos que envolvem a sexualidade e a deficiência, Maia e Ribeiro (2010, p. 159) apontam os seguintes:
(1) pessoas com deficiência são assexuadas: não têm sentimentos, pensamentos e necessidades sexuais; (2)
pessoas com deficiência são hipersexuadas: seus desejos são incontroláveis e exacerbados; (3) pessoas com
deficiência são pouco atraentes, indesejáveis e incapazes para manter um relacionamento amoroso e sexual; (4)
pessoas com deficiência não conseguem usufruir o sexo normal e têm disfunções sexuais relacionadas ao desejo, à
excitação e ao orgasmo; (5) a reprodução para pessoas com deficiência é sempre problemática porque são pessoas
estéreis, geram filhos com deficiência ou não têm condições de cuidar deles.
2
“Sus características intelectuales los han condicionado a ser tratadas como enfermos y como ‘niños eternos’,
objeto de cuidado. […] De allí la tendencia a ‘medicalizar’ su sexualidad, polarizándola entre seres ‘asexuados’
e ‘infantilizados’. En cualquiera de los casos, estas personas son valoradas socialmente con expresiones
‘patológicas’, las cuales deben ser sometidas a regulación y control externo” (HERNÁNDEZ; STERNBERG;
SÁNCHEZ, on-line, p. 3).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
370 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

pessoa do titular, sem que seja admitida a substituição de vontade, de modo que a decisão
pode ser ponderada por outros, mas cabe apenas a ele tomá-la. Por isso, a esterilização
da pessoa com deficiência não pode, em qualquer hipótese, ocorrer involuntariamente
por ingerência da família ou do Estado, porque depende imprescindivelmente de sua
anuência, como resultado de um querer determinado por suas próprias razões.
A respeito do corpo com deficiência, habitá-lo “é viver em um corpo marcado
socialmente pelo estigma, pela desvantagem social ou pela rejeição estética” (BUTLER,
2003, p. 16). De fato, uma das barreiras que mais comprometem a participação social em
igualdade de condições é o estigma em torno da deficiência, tomada como elemento que
deprecia os atributos e necessidades inerentes à pessoa. Neste ambiente, o combate não
se faz à sexualidade e à parentalidade, mas aos preconceitos, aos estereótipos persistentes
e à desinformação.3
A despeito dos impedimentos mentais ou intelectuais, as condutas qualificadas no
âmbito biomédico como distúrbios de conduta sexual têm sua gênese determinada mais
por adversidades ambientais e educativas do que por questões atinentes à deficiência
(MAIA, 2006, p. 93). Em virtude de escassas informações sobre sexualidade e menos
oportunidades de estar em espaços de socialização, são prováveis manifestações de teor
sexual em descompasso com as regras sociais. Consequentemente, o desejo exteriorizado,
comum a todo ser humano, pode aparentar imoderado e inadequado aos olhos dos
demais, a partir da imposição do “normal” como parâmetro de controle de condutas.
Para o outro, do corpo com deficiência, observado através da lente da fragilidade e
vulnerabilidade humana, não sobressai o corpo sexual,4 que é costumeiramente negado
(MAIA; RIBEIRO, 2010, p. 166-167).
O direito de se relacionar no plano afetivo e de manter relações sexuais se coloca
como parte do desenvolvimento da personalidade e como realização pessoal, razão
por que não existem distinções entre as pessoas com e sem deficiência, sendo que as
primeiras devem ter garantido o arbítrio sobre o próprio corpo, ensejando-se o desfrute
da sexualidade com a mesma liberdade que os demais. Para que as desvantagens sejam
contornadas, no entanto, fazem-se necessárias ações de educação sexual especializadas5
que lhes permitam compreender o funcionamento do corpo e conhecer os mecanismos
de reprodução e contracepção, assim como os problemas associados à saúde sexual.
Tal qual pessoas sem deficiência, o segmento de pessoas com deficiência deve ter

3
“É bastante comum nos depararmos, nos discursos de pais, educadores e profissionais, com a ideia – equivocada
– de que os comportamentos sexuais nas pessoas com deficiência mental são aberrantes e decorrem do quadro
orgânico da deficiência mental. Atualmente, é consensual na literatura a ideia de que as possíveis limitações e
comportamentos ‘inadequados’ resultam principalmente dos processos de educação e socialização diferenciados,
que não ensinam nem preparam a pessoa deficiente para adequar suas manifestações sexuais e para entender sua
própria sexualidade nas relações sociais existentes. Apesar disso ou em decorrência disso, observamos que há,
no discurso leigo, uma concepção da sexualidade do deficiente mental como um ‘problema’ a ser solucionado”
(MAIA, 2006, p. 91-92).
4
“Ou seja, ao invés de a priori serem buscadas as lacunas e impossibilidades das pessoas com deficiência na
esfera sexual, deve-se abrir para a descoberta de novos potenciais que a variação corporal e funcional enseja
para a vida afetiva, erótica e sexual. Portanto, os pressupostos do modelo social da deficiência apontam para
a valorização das experiências das pessoas com deficiência na construção de formas singulares e criativas de
vivenciar a sexualidade, que não necessariamente precisam seguir o ciclo de resposta sexual normatizado pelo
DSM-5” (GESSER; NUERNBERG, 2014, p. 860).
5
La educación para la autodeterminación es un proceso continuo, en el que la persona es el principal agente causal
de su vida y, por lo tanto, tiene el derecho a construir, aprender y descubrir su sexualidad como parte integral de
su desarrollo como ser social (HERNÁNDEZ; STERNBERG; SÁNCHEZ, on-line, p. 5).
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
371

assegurado “el derecho a llevar una vida marcada por sus decisiones personales e ideas”
(PARLAMENTO EUROPEU, 2013).

3 PLS nº 757/2015: uma proposta de correção, regulamentação ou


retrocesso?
Primeiramente, é preciso destacar que, conforme apontado por Menezes (2017,
p. 138), a “proposta de alteração ao Estatuto da Pessoa com Deficiência – EPD é reflexo
imediato da irresignação de alguns juristas, quanto às alterações havidas no regime das
incapacidades”. Originalmente, ressalte-se que mencionada proposição encetou-se por
iniciativa dos Senadores Antônio Carlos Valadares e Paulo Paim, fixando-se sua data de
tramitação legislativa em 1º de dezembro de 2015, um mês e um dia antes da entrada
em vigor da LBI, tendo por desiderato a alteração, além deste diploma legislativo, do
CC/2002 e do NCPC, almejando “dispor sobre a igualdade civil e o apoio às pessoas sem
pleno discernimento ou que não puderem exprimir sua vontade, os limites da curatela,
os efeitos e o procedimento da tomada de decisão apoiada” (SENADO FEDERAL, 2015).
Assim, veja-se que referidas modificações restaram propostas antes mesmo do início
da vigência da LBI, em 2016, de sorte que este projeto representa, desde seu início, uma
insatisfação de determinados juristas, que conjugam uma linha de pensamento destoante
da insculpida neste diploma.
Em maio de 2016, aprovou-se emenda substitutiva, lavrada pelo Relator do
pro­jeto na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), Senador
Telmário Mota, sendo então este o documento referendado e encaminhado à Comissão
de Constituição e Justiça (CCJ), qualificando-se, outrossim, com o documento analisado
neste trabalho como a redação pertinente ao PLS nº 757/2015 até a data de encerramento
desta investigação.6 Nesta, a matéria seguiu sob relatoria da Senadora Lídice da Mata,
que apresentou dois substitutivos, em 11 de dezembro de 2017 e 25 de abril de 2018.
Em 9 de maio de 2018, o PLS entrou em pauta da 15º Sessão Ordinária da CCJ, na
qual se manifestou o Senador Lindbergh Farias, pronunciando que referido projeto é
de “interesse de todo o movimento da pessoa com deficiência”, sendo que este seria
aprovado por unanimidade, por ser “ponto consensual”. Destacou, ainda, que se trata de
“um projeto que fala de autonomia das pessoas com deficiência”. Até a data de finalização
deste trabalho, o PLS nº 757/2015 constava na pauta da 18ª Reunião Ordinária da CCJ.
Neste sentido, esta seção busca abordar, inicialmente, os posicionamentos firmados
em virtude da redação do PLS nº 757/2015, averiguando-se primeiramente as correntes
erigidas a partir da análise das modificações propostas no regime de incapacidades civis,
para, em um segundo momento, decifrar o defendido por cada linha argumentativa no
âmbito dos DSR. Em um segundo momento, analisa-se a justificativa da proposta de
alteração legislativa, almejando elucidar quais as motivações que permeiam referida
proposição. Ao fim, aborda-se especificamente o projeto substitutivo apresentado pela
Senadora Lídice da Mata, Relatora da matéria na CCJ, enfocando-se na temática dos DSR.

6
As investigações que motivaram a redação deste trabalho consideram a data de 28 de maio de 2018 como
fechamento das incursões bibliográficas e documentais.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
372 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3.1 Recepção da proposta de modificação legislativa no âmbito do


sistema de incapacidades civis e dos direitos sexuais e reprodutivos
Quanto à recepção desta proposta no âmbito acadêmico, no que concerne à
alteração do regime das capacidades civis, aponte-se a estruturação de três linhas
argumentativas discrepantes. Para a primeira, faz-se escorreita a aquiescência total
com os termos alterados referentes à capacidade civil, partindo da ideia de que a
revolução paradigmática proposta na LBI promove a desproteção de um segmento
vulnerável. Nesse sentido, ressalte-se o consignado por Flávio Tartuce, que insculpe
seu entendimento na impossibilidade de um reconhecimento absoluto da capacidade
civil a pessoas com deficiência, dada a inerência da incapacidade a determinados graus
de deficiência impeditivos integralmente da expressão da vontade, de forma que o
PLS nº 757 voltar-se-ia – segundo parecer do autor, anexado pelo Senador Antonio
Carlos Valadares à proposta de modificação em curso – para a regulação de “situações
específicas de pessoas que não têm qualquer condição de exprimir vontade, e que
devem continuar a ser tratadas como absolutamente incapazes, na opinião de muitos”
(TARTUCE, 2016, p. 9).
Impende sublinhar que, para o autor, esta proposta tem sua aprovação pautada na
correção de “problemas técnicos” da LBI (TARTUCE, 2017a), incluindo dentre referidos
problemas a solução do “atropelamento legislativo” causado pela entrada em vigor do
Código de Processo Civil (CPC), apenas três meses após o início da vigência da LBI,
provocando dubiedade quanto à aplicação das regras pertinentes à interdição do diploma
processualístico (TARTUCE, 2017b, p. 931). A partir desta intelecção, arvora-se a opinião
segundo a qual o atual regime de capacidades civis, erigido por meio das modificações
instauradas pela LBI, não protege como deveria as pessoas com deficiência, sobretudo as
que precisariam ser “totalmente protegidas pela interdição, inclusive as resguardando da
prescrição e decadência, e tornando nulo qualquer ato que seja simulado em seu nome
sem o consentimento do curador ou do juiz do feito” (COSTA FILHO, 2016, p. 258).
Há, ainda, um segundo posicionamento, advindo da concordância com a intenção
do projeto – voltada, discursivamente, para a “harmonização” ou “compatibilização”
da LBI com o CPC e com as normas protetivas dos direitos das pessoas com deficiência
–, ressalvando-se modulações quanto a seus termos. Representando esta percepção
argumentativa, Menezes aponta, a partir de uma avaliação às mudanças no regime das
capacidades, sua concordância com o projeto de modificação legislativa, ressalvando,
unicamente, os seguintes pontos: necessidade de a avaliação biopsicossocial ser realizada
por equipe multidisciplinar; esclarecimento de que a ausência de discernimento que
gera a incapacidade absoluta é aquela que é total para todos os atos da vida civil e a
que enseja a incapacidade relativa é aquela que é total para alguns e determinados atos
da vida civil; e o entendimento de que a incapacidade absoluta só se configura quando
não é possível, de qualquer maneira, exprimir a vontade (MENEZES, 2017, p. 147-148).
Por fim, há uma terceira corrente, divergente integralmente da proposta de alte­
ração legislativa, alicerçando-se, para fundamentar sua discordância, na existência de
uma patente incongruência entre referido projeto e as normas pertinentes à CDPD no
que diz respeito ao reconhecimento da capacidade civil de pessoas com deficiência.
Defende-se, neste sentido, a ideia de que a LBI representou, quanto ao reconhecimento
da capacidade civil de pessoas com deficiência, um avanço, de maneira que o conteúdo
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
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original do PLS nº 757/2015 e seu substitutivo aprovado em CDH “reinauguram


o tratamento da pessoa com deficiência como civilmente incapaz e outras práticas
incompatíveis não só com o seu direito à igualdade e à dignidade, como também com
disposições da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(CDPD)” (SENADO FEDERAL, 2018). Nesta perspectiva, mantém-se inalterado o regime
das incapacidades civis promovido a partir da LBI, resguardando-se a necessidade de
regulamentação a matérias não amplamente abordadas em citado diploma originalmente,
como o pertinente ao pedido de tomada de decisão apoiada e ao procedimento de
curatela.
Disto isto, veja-se que, no âmbito dos DSR, o documento atualmente referendado
na CDH, sob análise da CCJ, propõe alterações fundamentais no art. 85 da LBI, além
da inclusão do art. 1.768-B no CC/2002, de maneira a estender os limites do alcance da
curatela, ensejando-se a incidência desta em atos existenciais, conforme denota-se do
quadro comparativo:

Quadro 1 – Comparação entre redação atual e Proposta Legislativa nº 757

Redação da Legislação Atual Redação proposta pelo PLS nº 757

Art. 85 da LBI: A curatela afetará tão somente os Art. 85 da LBI: A curatela das pessoas com defi-
atos relacionados aos direitos de natureza patrimo- ciência será limitada aos aspectos considerados es-
nial e negocial. tritamente necessários para a defesa e a promoção
§1º A definição da curatela não alcança o direito de seus interesses, preferencialmente limitando-se
ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à aos atos e negócios jurídicos de natureza patrimo-
privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao nial, respeitada a maior esfera possível de autono-
voto. mia para os atos da vida civil. [...]
§4º As limitações previstas no §1º deste artigo não
se aplicam nas hipóteses excepcionais previstas
nos §§2º e 3º do art. 1.768-B da Lei nº 10.406, de 10
de janeiro de 2002.
Art. 1.768-B do CC/2002. O juiz determinará, se-
gundo a capacidade de fato da pessoa de com-
preender direitos e obrigações e de manifestar a
própria vontade, os limites da curatela, buscando
equilíbrio entre a maior esfera possível de autono-
mia dessa pessoa e as limitações indispensáveis à
proteção e à promoção de seus interesses. [...]
§2º Excepcionalmente, e com fundamento em ava-
liação biopsicossocial, o juiz poderá estender os
limites da curatela para atos de caráter não patri-
monial, inclusive para efeito de casamento, quan-
do constatar que a pessoa não tiver discernimento
suficiente para a prática autônoma desses atos.
§3º Na hipótese do §2º deste artigo, o juiz poderá
condicionar a prática de determinados atos não pa-
trimoniais a uma prévia autorização judicial, que
levará em conta o melhor interesse do curatelado.

FONTE: elaborada pelas autoras


GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
374 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ressalte-se que referido PLS propõe, ainda, a qualificação como nulo do


casamento contraído por “incapaz, sem o apoio ou autorização legalmente necessários,
conforme o caso, e ressalvado o disposto nos §§2º e 3º do art. 1.768-B”, hipótese análoga
à anteriormente extirpada com a revogação do art. 1.548, inc. I, pela LBI, que alija a
nulidade do casamento firmado por enfermo mental sem o necessário discernimento
para os atos da vida civil.
Nota-se, assim, em relação ao exercício de atos existenciais, de caráter pessoal,
que o PLS nº 757 sugere uma modificação relevante em quatro pontos:
i. Propõe a modulação da restrição absoluta da afetação da curatela somente
sobre os atos relacionados aos direitos patrimoniais e negociais, de maneira que referida
limitação ocorra apenas “preferencialmente”, em face da consideração de aspectos
“necessários para a defesa e a promoção” dos interesses das pessoas com deficiência;
ii. Relativiza a proscrição do alcance da curatela ao direito ao próprio corpo, à
sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto,
fixando a possibilidade de curatela em face da inexistência de discernimento em uma
medida suficiente, comprovada em avaliação biopsicossocial;
iii. Estabelece a possibilidade de condicionamento da prática de determinados
atos existenciais a uma prévia autorização judicial, cujo intuito residiria na preservação
do melhor interesse do curatelado;
iv. Inclui entre os motivos de nulidade do casamento a ausência de apoio ou
autorização legalmente necessária, considerando-se a possibilidade de extensão da
curatela a atos existenciais.
Destaque-se que, a despeito de as duas primeiras correntes postularem, total ou
parcialmente, a aprovação da proposta modificativa no âmbito do sistema de capacidades
civis, há uma concordância dos doutrinadores de ambas as posturas no que diz respeito
à impossibilidade de imiscuir-se a curatela no exercício de atos existenciais – incluindo-se
neste rol o exercício dos DSR. Nesse sentido, Flávio Tartuce aponta que a curatela está
restrita aos atos e negócios jurídicos patrimoniais, ressalvada, contudo, a necessidade
de regulamentação, a partir do CC/2002 ou do NCPC, para “resolver o problema da
pessoa com deficiência que não tenha qualquer condição de exprimir vontade para os
atos existenciais familiares, e que pode eventualmente ser considerada absolutamente
incapaz por este Projeto Legislativo” (TARTUCE, 2015, on-line). Analogamente, Menezes
(2017, p. 157) aponta:

Como se vem insistindo, a curatela não pode se estender aos aspectos existenciais, ou
seja, àqueles interesses que impactam imediatamente na esfera personalíssima do sujeito,
consubstanciando-se em direitos fundamentais de personalidade. Tratam-se de direitos cuja
titularidade se imiscui com a capacidade de exercício, a exemplo da privacidade, do direito
sobre o corpo, da intimidade, da constituição de família, etc. Assim, somente o titular do
direito de constituir família poderá decidir sobre casar-se ou não; somente a pessoa pode,
voluntariamente, reconhecer um filho, decidir sobre intervenções no seu próprio corpo,
assinar sua diretiva antecipada de vontade ou responder pela conveniência ou não de se
submeter a um tratamento médico que envolva risco de morte.

A despeito de reconhecer a impossibilidade de extensão da curatela aos atos


existenciais, persiste em ambas as correntes, por sua aquiescência – total ou parcial –
quanto às modificações propostas no sistema incapacidades civis, a nulidade do
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
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casamento contraído por absolutamente incapaz. Nesse sentido, Menezes (2017, p. 151)
posiciona-se pela invalidade do casamento “daquele que não tem qualquer discernimento
e assim foi declarado absolutamente incapaz”. Similarmente, Tartuce sugere a nulidade
nos casos em que não haja qualquer discernimento e nos casos em que o nubente não
puder exprimir a vontade (TARTUCE, 2015, p. 6).
Diferentemente, posiciona-se a linha argumentativa que se insurge contra a
alteração no regime de incapacidades civis proposto pela LBI, uma vez que “as pessoas
com ou sem deficiência não podem ser incluídas no conceito de absolutamente inca­
pazes, mesmo que não possam expressar a sua vontade, tendo em vista que o direito
à capacidade plena, ainda que moral, é um direito humano fundamental” (SENADO
FEDERAL, 2018). Para este entendimento, a alteração proposta pela LBI, no sentido de
extirpar a categoria da absoluta incapacidade para outros que não aqueles com menos de
16 anos de idade, apresenta-se escorreita, de sorte que não poderiam subsistir motivos
de nulidade de casamento contraído pautada na inexistência do discernimento. Neste
sentido, parecer da Senadora Lídice da Mata, apontando que o discernimento de certas
pessoas com deficiência pode ser “bem diferente ou até questionável diante de padrões
comuns, mas isto não significa que o discernimento não exista e que a vontade mani­
festada possa ser ignorada” (SENADO FEDERAL, 2018).

3.2 Justificativa e consequências da proposta de alteração legislativa:


entre a proteção e a invisibilização do corpo com deficiência
Alicerçado no discurso da promoção da proteção de pessoas com deficiência, os
sistemas privalísticos que reconhecem a incapacitação como um resguardo de direitos
preservam uma percepção de deficiência típica do modelo biomédico, a partir do qual
se compreende como objeto tutelado a própria condição da pessoa (BARIFFI, 2014).
Nada obstante, por meio do modelo social, o conceito de deficiência transmuta-se em
uma definição dinâmica, dado que a deficiência nascerá do encontro entre as barreiras
e a condição, resultando, desta interação, desigualdade de direitos e oportunidades em
relação aos demais.
Neste sentido, os holofotes voltam-se para a superação das barreiras que, no
caso da capacidade jurídica, conforme o comandado no art. 12 da CDPD, considerará
as medidas apropriadas para o apoio demandado. Portanto, a estruturação de um
sistema que divide entre capazes e incapazes não se sustenta mais, tanto explícita –
consi­derando a redação do parágrafo 2º do art. 12 da CDPD, que estabelece que as
pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as
demais pessoas em todos os aspectos da vida – quanto implicitamente – observando a
racio­nalidade do modelo social que embasa a CDPD, a partir do qual não vogam mais
as distinções essencialistas entre os com e sem deficiência, de sorte que a ruptura das
barreiras por meio de apoios passa a ser objeto de tutela.
Veja-se que, para Cuenca, o art. 12 da CDPD promove uma verdadeira revo­
lução no que diz respeito ao tratamento da capacidade jurídica, tradicionalmente
pautada para as pessoas na incapacitação e na substituição da tomada de decisões. Para
a autora, o preceptivo transparece uma ruptura com a própria teoria tradicional dos
direitos humanos, que historicamente desconsiderou a capacidade civil de pessoas com
deficiência, requisito primordial para o exercício de direitos fundamentais. Destarte,
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
376 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

desenvolver e reforçar este marco teórico qualifica-se como imprescindível para o êxito da
mudança revolucionária que busca operar o art. 12, traduzindo-se, nas ordens nacionais
dos Estados-partes, no reconhecimento das pessoas com deficiência como sujeitos de
direitos plenos e ativos, capazes de exercer por si mesmos todas as liberdades de que
são titulares (CUENCA, 2012, p. 133). Assim é que, a partir do marco convencional, a
proteção passa a residir no reconhecimento da capacidade, oportunizando-se o exercício
direto dos direitos fundamentais por seus titulares.
Assim, o Comitê sobre Direitos das Pessoas com Deficiência promoveu
entendimento de que a capacidade jurídica de ser titular de direitos concede à pessoa
a proteção plena de seus direitos no ordenamento jurídico. Para fixar ainda mais a
diferenciação, fixa o órgão:

A capacidade jurídica e a capacidade mental são conceitos distintos. A capacidade jurídica


é a capacidade de ser titular de direitos e obrigações (capacidade legal) e de exercer estes
direitos e obrigações (legitimação para atuar). É a chave para acessar uma participação
verdadeira em sociedade. A capacidade mental se refere à aptidão de uma pessoa adotar
decisões, que naturalmente varia de uma pessoa a outra e pode ser diferente para uma
pessoa determinada, em função de muitos fatores, entre eles fatores ambientais e sociais
(ONU, 2014).

Em virtude desta percepção, o mesmo órgão tem feito recomendações ao Brasil, a


partir de seus relatórios finais, nas quais se insta a retirada de todas as previsões legais
que perpetuam o sistema de substituição do processo de decisão. Ademais, recomenda-se
igualmente que se promovam consultas com organizações de pessoas com deficiência e
outros provedores de serviço, de maneira a tomar medidas tangíveis para a substituição
do modelo de substituição pelo de apoio, fornecendo suporte à autonomia, à vontade
e às preferências das pessoas com deficiência em conformidade com o art. 12 da CDPD
(ONU, 2015).
Nada obstante, a justificativa que pauta a proposição de alteração legislativa
estudada tem por base o argumento da proteção segundo os vieses do modelo biomédico.
É desta maneira que a reformulação do sistema de incapacidades civis proposta na LBI
merece revisão, segundo esta perspectiva protecionista, pois “o Estatuto da Pessoa com
Deficiência excluiu do rol de incapazes as pessoas que não possuem discernimento
intelectual adequado”, de maneira que “todas essas proteções jurídicas”, advindas
da incapacitação, “não estão mais disponíveis” (BRASIL, 2015). Observe-se, assim, o
exposto por Caio Mário da Silva Pereira (2002, p. 170), quanto à inspiração da redação
predecessora do sistema de incapacidades civis:

O instituto das incapacidades foi imaginado e construído sobre uma razão moralmente
elevada, que é a proteção dos que são portadores de uma deficiência juridicamente
apreciável, assinalando que o intuito da lei foi o de oferecer proteção às pessoas que
padecem de incapacidade, considerando a diversidade de condições pessoais dos incapazes
e a maior ou menor profundidade da redução no discernimento, graduando a forma de
proteção.

Portanto, a perspectiva de proteção consagrada por esta proposta fundamenta-se


em um paradigma diferente daquele no qual se assenta a CDPD, qual seja o modelo
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
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social de deficiência. Pode-se afirmar, neste sentir, que a proteção, a partir do modelo
biomédico, sobressai-se como justificativa da alteração constante em PLS nº 755/2015;
contudo, referido argumento apresenta um viés diferente quando analisado sob as lentes
do modelo social, refletindo invisibilização da vontade.
Quanto às questões afetas ao direito ao próprio corpo, ressalte-se que, apesar de
silente em sede de justificativa, o projeto propõe a possibilidade de extensão da curatela
ao âmbito dos direitos personalíssimos. Bariffi (2014, p. 396) aponta que os sistemas de
Direito Civil de origem no Direito romano, que tradicionalmente abordam o exercício
da capacidade jurídica nos códigos civis, têm se centrado historicamente na dimensão
patrimonial dos direitos (contratos, direitos reais, responsabilidade civil, sucessões,
etc.), deixando de lado ou abordando insuficientemente a dimensão pessoal dos direitos
(matrimônio, poder familiar, adoção, decisões sobre o corpo ou a saúde, etc.). Contudo, o
parágrafo 2º do art. 12 da CDPD é claro quanto à aplicação tanto aos aspectos patrimoniais
quanto pessoais das pessoas com deficiência. Nesse sentido, Araújo et al (2017, p. 8):

Ao optar pela compreensão da deficiência de acordo com o modelo social, o tratado


ultrapassou as fronteiras do modelo médico. E isso se vê nas diversas acepções dos
direitos sexuais e reprodutivos garantidos ao longo do texto normativo. Tome-se como
exemplos o direito de casar e constituir família, o acesso a informações sobre reprodução
e planejamento familiar, o acesso aos meios contraceptivos, o direito à educação sexual, a
garantia de proteção contra atos de exploração, violência e abuso, especialmente em relação
às meninas e mulheres com deficiência, vulneráveis em razão do gênero.

Na contramão desta perspectiva, o projeto propõe a extensão da curatela no


âmbito de direitos que só podem ser exercidos diretamente, persistindo para estes uma
impossibilidade de cisão entre a capacidade de exercício e de direito. Ao se possibilitar
imiscuir-se a curatela, pautada em um sistema de substituição da vontade, no âmbito
destes direitos, desfigura-se sua própria essência, porquanto seu exercício se perfectibilize
de maneira alheia, a partir da esfera de volitividade de outra pessoa.
Assim, como consequência de referida alteração legislativa, teríamos a manutenção
da possibilidade de imiscuir-se a curatela no âmbito dos atos existenciais, incluindo-se
nestes os DSR. Abre-se, por conseguinte, espaço para a manutenção de dispositivos
como o art. 10, §6º, da Lei nº 9.263/1996, que prevê como único requisito para a outorga
do procedimento de esterilização, no caso de “pessoas absolutamente incapazes”, a
autorização judicial, regulamentada na forma da lei.7

7
É preciso destacar que, em 1996, quando da promulgação da Lei de Planejamento Familiar cotejada, restou emitido
veto presidencial no tocante ao citado artigo 10. Cumpre destacar que mensagem presidencial considerava, em
seus motivos, a fragilidade na averiguação da vontade manifestada no caso de pessoas absolutamente incapazes.
Vejamos o conteúdo: “A esterilização, condicionada apenas à vontade das pessoas, não deve ser praticada, porque
se trata de clara mutilação, com perda da função, possível apenas quando haja precisa indicação médica, para
eliminar dano maior à saúde do paciente ou quando for irreversível a afecção do órgão reprodutor. (...) Nesse
quadro, avulta a esterilização de incapazes, em que se incluem os menores de idade e os privados de faculdades
para a manifestação de vontade. No último caso, é preciso ter a advertência de que a incapacidade, enquanto
não declarada judicialmente, supõe habilitação para atos da vida civil, podendo daí resultar induzimento de
pessoas em tais condições a aceitar a esterilização. A autorização judicial, de outro lado, não é garantia contra
possível violação da integridade física do incapaz, porque a iniciativa do processo supõe que o seu interesse
estaria sendo ajuizado por outra pessoa. É certo que, por não endereçar disposições reguladoras do processo
judicial, a esterilização, em tal hipótese, estará inviabilizada, razão bastante havendo, por isso mesmo, para
sequer seja prevista, como mínimo de cautela para não trair uma intenção não suficientemente clara”. Disponível
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
378 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Nesse sentido, concorda-se, nesta investigação, com Menezes (2017, p. 160), ao


entender esta que, mesmo diante da aprovação do PLS nº 757/2017, a CDPD, por sua
natureza constitucional, “continuará garantindo à pessoa com deficiência o direito de
constituir família pelo casamento ou união estável, o direito ao planejamento familiar e
o direito à conservação de sua fertilidade”, incluindo-se, ademais, o direito ao próprio
corpo, como resguardo das decisões tomadas no tocante à submissão a tratamentos.
Ressalve-se, contudo, a discordância parcial com seu posicionamento de submeter
à avaliação judicial decisões pertinentes à esfera existencial da pessoa sob curatela,
resguardada oitiva do representante do Ministério Público, levando-se em consideração
o melhor interesse do curatelado. Veja-se que o condicionamento ao aval judicial já se
configura, hodiernamente, como requisito de hipótese legal permissiva da esterilização
compulsória, o que não garante o devido resguardo dos DSR de pessoas com deficiência.8
Neste sentido, compreende-se, a priori, como insuficiente o mero condicionamento à
autorização judicial, ainda que se consigne o cumprimento do preceito abstrato de
melhor interesse do curatelado.

3.3 Substitutivo apresentado pela Senadora Lídice da Mata no tema


dos direitos sexuais e reprodutivos
Com o intuito de promover uma releitura pautada no modelo social das
motivações biomédicas consignadas no projeto – quais sejam a de proteção – projeto
substitutivo da Senadora Lídice da Mata encontra-se, atualmente, aguardando votação
na CCJ do Senado. Esclarece, em referido texto, que “o rompimento entre deficiência e
incapacidade decorre essencialmente do princípio da dignidade da pessoa humana, à
qual são inerentes a autonomia individual e a liberdade de fazer as próprias escolhas”.
Desta maneira, “uma boa legislação, respeitadora do direito à capacidade e da vontade
da pessoa com deficiência, mas que lhe ofereça apoios que não sejam absolutamente
substitutivos para o exercício dessa capacidade, é a que atenderá ao novo paradigma”
(SENADO FEDERAL, 2018), referindo-se, então, ao marco convencional.
Em virtude desta perspectiva, a autora do substitutivo mantém inalterado o sis­
tema de incapacidades civis estruturado pela LBI, visto que “as pessoas com ou sem
deficiência não podem ser incluídas no conceito de absolutamente incapazes, mesmo que
não possam expressar a sua vontade, tendo em vista que o direito à capacidade plena,
ainda que moral, é um direito humano fundamental”. Do mesmo modo, preserva-se
a retirada da categoria do discernimento, anteriormente qualificada como medida da
capacidade, sendo, então, proposta sua restauração no PLS em análise. Ao fazê-lo, rejeita
a autora o julgamento da qualidade do discernimento como baliza da capacidade civil,
em conformidade com orientação promanada do Comitê sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência, ao consignar este a dissonância entre a capacidade mental e a capacidade
jurídica.

em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1996/lei-9263-12-janeiro-1996-374936-veto-20946-pl.html>. Último


acesso: 28 maio 2018. Citado veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional. Uma das preocupações expressadas,
qual seja a inexistência de regulamentação pormenorizada do processo judicial de autorização, não foi nos mais
de 21 anos decorridos de sua promulgação.
8
Nesse sentido, conferir pesquisa de levantamento de casos de esterilização ocorridos posteriormente a 02 de
janeiro de 2016, data de vigência da LBI (ARAÚJO et al., 2017).
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
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No que diz respeito aos atos existenciais, o substitutivo, além de manter a atual
redação do art. 85 da LBI, esclarece a não afetação da curatela em relação aos direitos
personalíssimos, repetindo a redação do §1º do art. 85 da LBI na proposição de inserção
de um novo preceptivo ao CC/2002, qual seja:

Art. 1.781-A. A curatela das pessoas de que trata o art. 1.767 observará ainda o que se
segue: [...]
V - afeta tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial,
não alcançando direitos ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à
educação, à saúde, ao trabalho e ao voto;

Por fim, deixa ainda o projeto substitutivo de comandar a nulidade do casamento


contraído por incapaz, optando pela ausência de interligação entre a incapacidade e a
nulidade do matrimônio, alinhando-se à perspectiva do exercício direto e pleno dos
direitos personalíssimos – incluídos dentre eles o matrimônio –, resguardada, contudo
a demanda por apoios e as salvaguardas, em consonância com o art. 12 da CDPD.
Destarte, percebe-se, a priori, um alinhamento do constante neste novo substitutivo
com as perspectivas de proteção de direitos emanadas do modelo social de deficiência
que plasma a CDPD. Ademais, este texto regulamenta mais minuciosamente o instituto
da tomada de decisão apoiada, alterando, neste sentido, a redação dos arts. 747, 755,
757, 759 e 1.012 do NCPC, além de incluir os arts. 748-A, 749-A, 750-A, 751-A, 752-A,
756-A e 763-A. Referido enfoque sugere um reenquadramento da perspectiva do projeto,
que deixa de ser objeto de tutela a própria condição orgânica da pessoa, resguardando-
se, por outro lado, sua qualificação como sujeito de direitos. Destarte, a proteção dos
direitos das pessoas com deficiência ensejada pelo modelo social faz mudar o discurso
da incapacitação para o da capacitação, reconfigurando o modelo de substituição em
um modelo de apoio à vontade.

Conclusão
Não obstante possam existir impedimentos mentais ou intelectuais, considerando
níveis de funcionamentos cognitivos diferenciados, as pessoas com deficiência têm iguais
necessidades, inclusive quanto às vivências afetivas, sexuais e reprodutivas. Enquanto
dimensão humana, independentemente do modo como se processe, a sexualidade se
compreende como direito de personalidade. Por isso, a pessoa com deficiência, em
qualquer cenário e circunstâncias, detém a titularidade e o exercício dos direitos sexuais
e reprodutivos. Em absoluto, rechaça-se a possibilidade de ingerência do curador, da
família ou do Estado nas questões existenciais, os quais somente podem atuar como
apoios no processo decisório.
No que diz respeito à análise do PLS nº 757/2015, percebe-se que quanto aos
DSR, propõem-se alterações fundamentais no art. 85 da LBI, relativizando-se a restrição
absoluta da afetação da curatela aos atos patrimoniais e negociais, de maneira a possi­
bilitar sua incidência em direitos existenciais – tais como o direito ao próprio corpo, à
sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
380 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ademais, a partir de referida proposta, institui-se o art. 1.768-B no CC/2002, ensejando a


inserção do condicionamento da prática de determinados atos existenciais a uma prévia
autorização judicial.
Averiguando-se a essência da referida proposta, infere-se que a ideia de proteção
de direitos nesta consagrada se alicerça em um paradigma diverso daquele no qual está
assentada a CDPD, qual seja o modelo social de deficiência, na medida em que propõe
uma ligação fundamental entre capacidade mental e capacidade civil, interpretação
expressamente rechaçada pelo Comitê sobre Direitos das Pessoas com Deficiência
em análise ao art. 12. Neste sentir, conclui-se que a proposta se alinha a um modelo
médico de deficiência, de forma que o argumento consagrado nesta proposição, ao ser
submetido às lentes do modelo social, permite perceber seu desiderato de invisibilização
da vontade. Como consequências de referida alteração legislativa, haveria a manutenção
da possibilidade de imiscuir-se a curatela no âmbito dos atos existenciais, incluindo-se
nestes os direitos sexuais e reprodutivos.
Na contramão desta percepção, percebe-se que o projeto substitutivo de autoria
da Senadora Lídice da Mata se alicerça sobre perspectivas diversas, na medida em que,
além de manter a atual redação do art. 85 da LBI, esclarece a não afetação da curatela
em relação aos direitos personalíssimos, repetindo a redação do §1º do art. 85 da LBI
na proposição de inserção de um novo preceptivo ao CC/2002. Portanto, percebe-se um
alinhamento inicial do constante neste substitutivo com os desígnios de proteção de
direitos emanados do modelo social de deficiência que plasma a CDPD.

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TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. São Paulo: Renovar, 2010.

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In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo
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HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE:
UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS
ANTECIPADAS DE VONTADE

CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES

Introdução
As diretivas antecipadas de vontade permitem o prolongamento da autonomia
da pessoa para as situações em que ela esteja impossibilitada de manifestar sua vontade.
O instituto surge em um ambiente de questionamento do paternalismo e de contestação
dos paradigmas médicos dominantes gerado principalmente pelo desenvolvimento
extraordinário da ciência e pelos relatos de abusos que vêm a público a partir da Segunda
Guerra Mundial.1
Esclarecendo confusões terminológicas, entende-se que as diretivas antecipadas
de vontade são gênero de manifestação antecipada da vontade que comporta diferentes
espécies. O testamento vital é uma delas e consiste na especificação de tratamentos e
procedimentos que o outorgante deseja ou recusa em determinadas situações. A pro­
curação para cuidados de saúde – ou mandato duradouro – é outra espécie e, por sua
vez, traduz-se na nomeação de uma pessoa de confiança que decidirá pelo paciente
e garantirá o cumprimento da sua vontade quando este esteja incapaz de fazê-lo.
Já a história de valores – também conhecida como narrativa biográfica ou anamnese
de valo­res – surgiu recentemente e “[...] proporciona a informação de fundo que aclara
a intenção das vontades antecipadas e inclui detalhes morais, sociais, religiosos e
filosóficos, assim como experiências do paciente e diagnósticos médicos do mesmo”.2
O conhecimento desta nova modalidade de diretiva aqui se deu pela doutrina – onde o
tema aparece com pouca profundidade e de maneira ainda incipiente –, e a partir dela
percebeu-se a necessidade de estudar a temática a nível legislativo.

1
Para saber mais: CASCAIS, António Fernando. Genealogia, âmbito e objecto da bioética. In: SILVA, João Ribeiro;
BARBOSA, António; VALE, Fernando Martins (Coord.). Contributos para a Bioética em Portugal. Lisboa: Cosmos,
2002, p. 47-136.
2
MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema Sanitario de Navarra, Pamplona, v.
30, n. 3, p. 95, 2007, tradução livre.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
384 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O trabalho pretende, então, demonstrar que a adoção da história de valores tem o


potencial de garantir maior efetividade à vontade anteriormente manifestada e, assim,
proteger os interesses existenciais dos pacientes outorgantes. Também intenta verificar a
legitimidade da espécie no ordenamento brasileiro, analisando as normativas pertinentes.
Para tanto, parte-se de uma revisão da literatura sobre o tema, que de maneira
específica ainda é pouco abordado pela doutrina. Em seguida, com base nas indicações da
literatura especializada, procedeu-se à identificação dos diplomas normativos de outros
países que abordam as diretivas antecipadas com o objetivo de analisar o reconhecimento
legal das histórias de valores. Por fim, pretende-se realizar um breve estudo do panorama
brasileiro sobre as diretivas antecipadas a fim de investigar a legitimidade da nova
espécie, ancorando-se em uma interpretação integrativa do ordenamento jurídico que
considera a Constituição Federal e as normas infraconstitucionais.

1 Revisão de literatura
As histórias de valores são pouco abordadas pela doutrina especializada. Dificil­
mente aparecem nas bibliografias dedicadas à manifestação antecipada da vontade,
e mais raro ainda são as obras que se ocupam exclusivamente dessa espécie, também
denominada “anamnese de valores”3 ou “narrativa biográfica”.4
Não obstante a admissão da necessidade de um espaço para manifestação da
subjetividade nas diretivas antecipadas, na revisão de literatura ora realizada percebe-
se o dissenso quanto ao reconhecimento da história de valores como uma modalidade
autônoma de diretiva, que pode ser feita de maneira apartada do testamento vital e da
procuração para cuidados de saúde – tidos como modalidades tradicionais. Devido ao
seu caráter eminentemente subjetivo, diversos autores afirmam que se trata apenas de um
complemento às figuras tradicionais, e que deve constar no corpo destes documentos.5 6
7
Sob outra perspectiva, alguns argumentam sua independência8 9 10 11 no sentido de que

3
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30.
4
NUNES, Lucília; RENAUD, Michel; SILVA, Miguel; ALMEIDA, Rosalvo. Memorando sobre projetos de lei relativos
às diretivas antecipadas de saúde. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida: Lisboa, 2010. Disponível em:
<http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017, p. 2.
5
MABTUM, Matheus Massaro; MARCHETTO, Patrícia Borba. Diretivas antecipadas de vontade como dissen­
timento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e jurídico
sobre as diretivas antecipadas de vontade. São Paulo: Editora UNESP Cultura Acadêmica, 2015, p. 113.
6
DADALTO, Luciana. Testamento vital. São Paulo: Atlas, 2015, p. 114.
7
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008.
8
NUNES, Lucília; RENAUD, Michel; SILVA, Miguel; ALMEIDA, Rosalvo. Memorando sobre projetos de lei relativos
às diretivas antecipadas de saúde. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida: Lisboa, 2010. Disponível em:
<http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017, p. 2.
9
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30.
10
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, p. 86, maio 2013.
11
BARROSO, José. La voluntad anticipada en España y en México. Un análisis de derecho comparado en torno a
su concepto, definición y contenido. Boletín mexicano de derecho comparado, v. 131, p. 710, 2011.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
385

não há motivos para exigir a vinculação às outras espécies ou um conteúdo objetivo


mínimo para uma diretiva antecipada.
As tentativas de conceituação das histórias de valores variam de acordo com
a (in)dependência que lhe é atribuída e com o âmbito de aplicabilidade conferido ao
instituto. Aqueles que entendem que se trata apenas de um complemento do testamento
vital e da procuração para cuidados de saúde delineiam seu conceito tendo em conta
essa relação necessária e falam em “[um] documento que proporciona informação de
fundo que aclara a intenção das vontades antecipadas”12 ou em “[uma] expressão da
intenção do declarante quando na elaboração do documento, deixam claro quais são os
seus valores e as suas intenções”.13
Por outro lado, os que vislumbram a autonomia da espécie enfocam no seu
conteúdo, definindo-a como “[os] valores importantes para o declarante e com implicação
na tomada de decisão sobre aspectos do seu cuidar em fim de vida”,14 ou “a expressão dos
princípios vitais e as opções pessoais nos quais se estabelece uma hierarquia de valores
e, como consequência, os critérios que devem orientar qualquer decisão que se deva tomar
no âmbito da atenção médica”.15 Pelos destaques, notam-se aqui os diferentes âmbitos de
aplicação, questão que é objeto de divergências no instituto das diretivas antecipadas,
independentemente da espécie.16
No que diz respeito à forma de elaboração as bibliografias consultadas destoam
em aspectos essenciais. Enquanto alguns especialistas relacionam as histórias de
valores ao preenchimento de formulários17 ou à coleta de dados,18 outros defendem uma
estreita relação clínica19 a fim de promover um processo contínuo e pormenorizado de
construção do documento, que pode assumir diversas formas, como entrevistas, consultas
programadas ou guia de perguntas com base na experiência de terceiros próximos ao
paciente.20

12
MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema Sanitario de Navarra, Pamplona, v.
30, n. 3, p. 95, 2007, tradução livre.
13
MABTUM, Matheus Massaro; MARCHETTO, Patrícia Borba. Diretivas antecipadas de vontade como
dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e
jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade. Editora UNESP Cultura Acadêmica, São Paulo, 2015, p. 113.
14
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30, grifo nosso.
15
BARROSO, José. La voluntad anticipada en España y en México. Un análisis de derecho comparado en torno a
su concepto, definición y contenido. Boletín mexicano de derecho comparado, v. 131, p. 710, 2011, grifo nosso.
16
O âmbito de aplicação de uma manifestação antecipada de vontade é objeto de discussões. Alguns autores e
legislações limitam o instituto às decisões em fim de vida, outros abrangem qualquer situação de incapacidade,
ainda que temporária, e há quem vislumbre a possibilidade de disposições com efeitos post mortem.
17
GRACIA, Diego; RODRÍGUEZ SENDÍN, Juan José. La historia de valores. In: Planificación Anticipada de la
Asistencia Médica. Fundación de Ciencias de la Salud, Madrid, 2011, p. 33-34.
18
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30.
19
GUILLEM-TATAY, David. El documento de voluntades anticipadas: problemas de eficacia social de la norma y
propuestas de solución. Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana: jurisprudencia seleccionada de la Comunidad
Valencia, Valencia, n. 38, 2011, p. 47.
20
GIL Carlos. Panorama internacional de las voluntades anticipadas. Bioética en Atención Primaria [online],
Instituto de Bioética, Zaragoza, 2002, p. 1-22. Disponível em: <http://www.institutodebioetica.org/casosbioetic/
formacioncontinuada/testamentovital/cgil.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017, p. 11-12.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
386 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Quanto aos objetivos das histórias de valores, não são profundas as reflexões da
doutrina, que apontam: o auxílio à equipe médica e ao procurador para cuidados de
saúde,21 a correta interpretação do testamento vital22 e a resolução de conflitos.23 Ainda
para os que sustentam sua independência como modalidade, o documento pode, por si
só, governar o tratamento e as diversas decisões que se tome a respeito do outorgante.24

2 Análise das legislações 25

Com base nas indicações da doutrina sobre diretivas antecipadas de vontade


coletou-se um rol de legislações que abordam a temática, a fim de apurar o reconhecimento
das histórias de valores no Direito Comparado. Os resultados são expostos a seguir de
forma sucinta.

21
MABTUM, Matheus Massaro; MARCHETTO, Patrícia Borba. Diretivas antecipadas de vontade como
dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e
jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade. São Paulo: Editora UNESP Cultura Acadêmica, 2015, p. 113.
22
GUILLEM-TATAY, David. El documento de voluntades anticipadas: problemas de eficacia social de la norma y
propuestas de solución. Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana: jurisprudencia seleccionada de la Comunidad
Valencia, Valencia, n. 38, p. 47, 2011.
23
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 466, 2013.
24
BARROSO, José. La voluntad anticipada en España y en México. Un análisis de derecho comparado en torno a
su concepto, definición y contenido. Boletín mexicano de derecho comparado, v. 131, p. 710, 2011.
25
Nem todas as legislações analisadas apresentaram resultados conclusivos para os objetivos aqui propostos,
são elas: 1) CONSEJO DE EUROPA. Convenio sobre Derechos Humanos y Biomedicina. Disponível em: <http://
www.bioeticanet.info/documentos/Oviedo1997.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018. 2) UNITED STATES. Patient
Self Determination Act. Disponível em: <http://testamentovital.com.br/legislacao/estados-unidos/>. Acesso em:
03 jun. 2018. 3) FINLAND. Act on the status and rights of patients. Disponível em: <http://www.finlex.fi/fi/laki/
kaannokset/1992/en19920785.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018. 4) NETHERLANDS. Dutch Civil Code. Disponível
em: <http://www.dutchcivillaw.com/civilcodebook077.htm>. Acesso em: 03 jun. 2018. 5) CATALUÑA. Ley 16, de
3 de junio de 2000. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2010-10215>. Acesso em: 03
jun. 2018. 6) CATALUÑA. Decreto 175 de 25 de junio de 2002. Disponível em: <http://www.asesoriayempresas.es/
legislacion/JURIDICO/85072/decreto-175-2002-de-25-de-junio-por-el-que-se-regula-el-registro-de-voluntades-
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boe.es/buscar/pdf/2001/BOE-A-2001-12770->. Acesso em: 03 jun. 2018. 8) GALÍCIA. Ley 7, de 9 de diciembre de
2003. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2004/BOE-A-2004-742-consolidado.pdf>. Acesso em: 03
jun. 2018. 9) MADRID. Ley 3, de 23 de mayo de 2005. Disponível em: <http://www.madrid.org/wleg_pub/secure/
normativas/contenidoNormativa.jsf?cdestado=P&nmnorma=2983&opcion=VerHtml#no-back-button>. Acesso
em: 03 jun. 2018. 10) ARAGON. Ley 12, de 15 de diciembre de 2016. Disponível em: <http://www.boa.aragon.es/cgi-
bin/EBOA/BRSCGI?CMD=VEROBJ&MLKOB=939790044242>. Acesso em: 03 jun. 2018. 11) ASTURIAS. Decreto
4, de 23 de enero de 2008. Disponível em: <https://sede.asturias.es/portal/site/Asturias/menuitem.1003733838db73
42ebc4e191100000f7/?vgnextoid=d7d79d16b61ee010VgnVCM1000000100007fRCRD&fecha=7/2/2008&refArticu
lo=2008-02104>. Acesso em: 03 jun. 2018. 12) CANTABRIA. Ley 7, de 10 de diciembre de 2002. Disponível em: <https://
www.boe.es/buscar/pdf/2003/BOE-A-2003-323-consolidado.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018. 13) ANDALUZIA. Ley
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2018. 14) VALENCIA. Decreto 168, de 10 de septiembre de 2004. Disponível em: <https://www.dogv.gva.es/portal/
ficha_disposicion_pc.jsp?sig=4137/2004&L=1>. Acesso em: 03 jun. 2018. 15) CASTILLA-LA MANCHA. Ley 6, de
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Acesso em: 03 jun. 2018. 16) PAÍS VASCO. Decreto 270, de 04 de noviembre de 2003. Disponível em: <http://www.
euskadi.eus/decreto/decreto-2702003-de-4-de-noviembre-por-el-que-se-crea-y-regula-el-registro-vasco-de-
voluntades-anticipadas/web01-a2libzer/es/>. Acesso em: 03 jun. 2018. 17) PORTUGAL. Lei nº 25, de 16 de julho de
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em: 03 jun. 2018. 18) FRANCE. Loi nº 370, du 22 avril 2005. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/
affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000446240&categorieLien=id>. Acesso em: 03 jun. 2018. 19) URUGUAY.
Ley nº 18.473, de 17 de marzo de 2009. Disponível em: <https://legislativo.parlamento.gub.uy/temporales/
leytemp6884033.htm>. Acesso em: 03 jun. 2018.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
387

Se a espécie é pouco conhecida na literatura especializada, a nível legislativo o


panorama não se mostra muito diferente. O testamento vital e a procuração para cuidados
de saúde aparecem com frequência, embora sob diferentes – e, por vezes, confusas –
denominações, enquanto as histórias de valores quase não são citadas nas legislações.
Alguns diplomas não abordam especificamente as modalidades, limitando-se a
definir as diretivas como gênero que comporta diferentes formas de manifestação, de
maneira que se pode vislumbrar a possibilidade da nova espécie.26 Neste sentido é a
disposição da Lei espanhola nº 41/2002, que define as “instrucciones previas”:

Artículo 11. Instrucciones previas


1. Por el documento de instrucciones previas, una persona mayor de edad, capaz y libre,
manifiesta anticipadamente su voluntad, con objeto de que ésta se cumpla en el momento en
que llegue a situaciones en cuyas circunstancias no sea capaz de expresarlos personalmente,
sobre los cuidados y el tratamiento de su salud o, una vez llegado el fallecimiento, sobre
el destino de su cuerpo o de los órganos del mismo. El otorgante del documento puede
designar, además, un representante para que, llegado el caso, sirva como interlocutor suyo
con el médico o el equipo sanitario para procurar el cumplimiento de las instrucciones
previas.27

Embora não reconheçam explicitamente a possibilidade da inclusão de valores


pessoais em uma diretiva antecipada, algumas legislações estabelecem que a equipe
de saúde e o procurador devem respeitá-los e tê-los em conta quando na tomada de
decisão. O Health Care (consent) And Care Facility (admission) Act da província canadense
Colúmbia Britânica, por exemplo, nada menciona a respeito da constância de valores, mas
permite ao prestador de cuidados de saúde coletar as informações pessoais do paciente
necessárias para o exercício de sua função.28 Assim também dispõe a lei alemã que,
embora exija a especificação do consentimento quanto aos tratamentos de intervenções
médicas desejadas ou recusadas, reconhece que, inexistindo uma diretiva escrita, a equipe
deverá presumir qual seria a vontade do paciente com base em declarações verbais ou
escritas anteriormente, crenças éticas ou religiosas, dentre outros valores pessoais.29

26
É possível inferir o mesmo do Real Decreto espanhol nº 124/2007 (ESPANHA. Real Decreto nº 124/2007. Disponível
em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2007-3160>. Acesso em: 03 jun. 2018), das legislações das
comunidades autônomas espanholas de Cataluña (CATALUÑA. Ley 21, de 29 de diciembre de 2000. Disponível em:
<http://noticias.juridicas.com/base_datos/CCAA/ca-l21-2000.html>. Acesso em: 03 jun. 2018) e Galícia (GALÍCIA.
Decreto 259, de 14 de enero de 2008. Disponível em: <https://www.xunta.gal/dog/Publicados/2008/20080114/
Anuncio2ED6_es.html>. Acesso em: 03 jun. 2018), e da Lei nº 160/2001 de Porto Rico (PUERTO RICO. Ley nº 160,
de 2001. Disponível em: <http://www.lexjuris.com/lexlex/leyes2001/lex2001160.htm>. Acesso em: 03 jun. 2018).
27
ESPANHA. Ley 41, de 14 de noviembre de 2002. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=
BOE-A-2002-22188>. Acesso em: 03 jun. 2018.
28
Collection of personal information- 33.1. A health care provider is authorized to collect personal information about
an adult from any person if this is necessary for the purposes of exercising a power or carrying out a duty or
function under this Act (BRITISH COLUMBIA. Health Care (consent) And Care Facility (admission). Disponível em:
<http://www.bclaws.ca/Recon/document/ID/freeside/00_96181_01>. Acesso em: 03 jun. 2018).
29
(2) Liegt keine Patientenverfügung vor oder treffen die Festlegungen einer Patientenverfügung nicht auf die
aktuelle Lebens- und Behandlungssituation zu, hat der Betreuer die Behandlungswünsche oder den mutmaßlichen
Willen des Betreuten festzustellen und auf dieser Grundlage zu entscheiden, ob er in eine ärztliche Maßnahme
nach Absatz 1 einwilligt oder sie untersagt. Der mutmaßliche Wille ist aufgrund konkreter Anhaltspunkte zu
ermitteln. Zu berücksichtigen sind insbesondere frühere mündliche oder schriftliche Äußerungen, ethische
oder religiöse Überzeugungen und sonstige persönliche Wertvorstellungen des Betreuten (GERMANY. Die ge­
setz­li­chen Grund­la­gen der Pat­Verfü im Bür­ger­li­chen Ge­setz­buch (BGB). Disponível em: <https://www.patverfue.de/
handbuch/pv-gesetz>. Acesso em: 03 jun. 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
388 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Quanto ao procurador, o Power Of Attorney Act (Colúmbia Britânica/Canadá),30 o Health


Care Directives Act (Manitona/Canadá)31 e o Substitute Decisions Act (Ontário/Canadá)32
vinculam a sua atuação ao respeito dos valores pessoais e convicções do representado,
embora também não assumam expressamente a possibilidade de estes constarem do
documento.
Em geral, as legislações que permitem as histórias de valores a reconhecem como
uma parte da diretiva antecipada, cuja função se vincula e depende das especificações
do testamento vital e da indicação do procurador para cuidados de saúde. O Personal
Directives Act (Alberta/Canadá) autoriza a expressão dos valores pessoais, determinando
que o representante decida de acordo com eles.33
Ressaltam-se aqui as legislações de comunidades autônomas da Espanha, que
se destacam em matéria de histórias de valores. A Lei nº 3/2005 da Extremadura inclui
no conceito de diretivas as instruções sobre os “[...] objetivos vitais, valores pessoais e
as atuações médicas que deverão ser respeitados quando se encontre em uma situação
em que as circunstâncias não lhe permitam expressar pessoalmente sua vontade”.34
A comunidade autônoma Islas Baleares na Lei nº 1/2006 determina que a manifestação
dos objetivos vitais e valores pessoais integra o conteúdo das “voluntades anticipadas”.35
Por sua vez, a comunidade de La Rioja prevê na Lei nº 9/2005 a possibilidade da expressão
de “[...] objetivos vitais, qualidade de vida e expectativas pessoais, assim como as opções
pessoais quanto a valores éticos, morais, culturais, sociais, filosóficos ou religiosos”
no documento de “instrucciones previas”.36 Também o Decreto nº 13/2006 de Canárias

30
BRITISH COLUMBIA. Power Of Attorney Act. Disponível em: <http://www.bclaws.ca/civix/document/id/
complete/statreg/96370_01>. Acesso em: 03 jun. 2018.
31
MANITOBA. Health Care Directives Act. Disponível em: <http://web2.gov.mb.ca/laws/statutes/ccsm/h027e.php>.
Acesso em: 03 jun. 2018.
32
ONTARIO. Substitute Decisions Act. Disponível em: <https://www.ontario.ca/laws/statute/92s30>. Acesso em:
03 jun. 2018.
33
Personal directives - 3. (1) A person with capacity may make a personal directive: (a) setting out instructions or
an expression of the maker’s values, beliefs and wishes about future personal-care decisions to be made on his
or her behalf; and (b) authorizing one or more persons who, except in the case of a minor spouse, is or are of the
age of majority to act as delegate to make, on the maker’s behalf, decisions concerning the maker’s personal care
(ALBERTA. Personal Directives Act. Disponível em: <http://www.qp.alberta.ca/documents/Acts/p06.pdf>. Acesso
em: 03 jun. 2018).
34
Artículo 17. La expresión anticipada de voluntades – La expresión anticipada de voluntades es el documento emitido
por una persona mayor de edad, con capacidad legal suficiente y libremente, dirigido al médico responsable de
su asistencia, en el cual expresa las instrucciones sobre sus objetivos vitales, valores personales y las actuaciones
médicas que deberán ser respetados cuando se encuentre en una situación en que las circunstancias que concurran
no le permitan expresar personalmente su voluntad. La expresión de los objetivos vitales y valores personales
tiene como fin ayudar a interpretar las instrucciones y servir de orientación para la toma de decisiones clínicas
llegado el momento. Artículo 18. Documento de expresión anticipada de voluntades – El documento de expresión
anticipada de voluntades deberá recoger, al menos, los siguientes datos: [...] h) Otras consideraciones, como
objetivos vitales, valores personales, decisiones sobre la donación de órganos, etc. (EXTREMADURA. Ley 3,
de 8 de junio de 2005. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2005-13470>. Acesso em:
03 jun. 2018).
35
Artículo 2. Contenido - Las voluntades anticipadas podrán contener: a) La manifestación de sus objetivos vitales
y sus valores personales (ISLAS BALEARES. Ley 1, de 3 de marzo de 2006. Disponível em: <https://www.boe.es/
buscar/pdf/2006/BOE-A-2006-6090-consolidado.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018).
36
Artículo 5. Contenido y límites- 1. El documento de instrucciones previas podrá contener las siguientes previsiones:
a) La expresión de objetivos vitales, calidad de vida y expectativas personales; así como las opciones personales
en cuanto a valores éticos, morales, culturales, sociales, filosóficos o religiosos (RIOJA. Ley 9, de 30 de septiembre de
2005. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2011/BOE-A-2011-19056-consolidado.pdf>. Acesso em: 03
jun. 2018).
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
389

reconhece a história de valores como parte do conteúdo da manifestação antecipada de


vontade, cuja função é orientar os profissionais de saúde da tomada de decisão.37
Já as comunidades Castilla y León (Decreto nº 30/2007)38 e Murcia (Decreto
nº 80/2005)39 vinculam a indicação dos objetivos vitais e valores pessoais à interpretação
das “instrucciones previas” e à função de guia para a atuação do representante,
respectivamente. A Lei nº 7/2002 da comunidade autônoma do País Vasco reconhece
essas duas funções no artigo 2.2:

Artículo 2. Contenido del derecho a la expresión anticipada de voluntades en el ámbito de la sanidad


[...]
2. La expresión de los objetivos vitales y valores personales tiene como fin ayudar a
interpretar las instrucciones y servir de orientación para la toma de decisiones clínicas
llegado el momento.40

Alguns diplomas normativos parecem vedar a possibilidade de expressão da


subjetividade em uma diretiva antecipada, exigindo que suas disposições especifiquem os
tratamentos, cuidados e circunstâncias em que a vontade deve produzir efeitos.41 Assim
é a determinação do Mental Capacity Act (Inglaterra e País de Gales), que determina
que as diretivas apenas sejam vinculantes quando especificarem os tratamento e as
circunstâncias da recusa.42

37
Artículo 4. Contenido de la manifestación anticipada de voluntad - [...] 2. Además, podrá recoger las indicaciones de
naturaleza ética, moral o religiosa que expresen sus objetivos vitales y valores personales para que orienten
a los profesionales médicos en la toma de decisiones clínicas (CANARIAS. Decreto 13, de 8 de febrero de 2006.
Disponível em: <http://www.gobiernodecanarias.org/libroazul/pdf/53055.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018).
38
Artículo 3. Contenido del documento de instrucciones previas [...] 3. Asimismo, en el documento de instrucciones
previas se pueden hacer constar los objetivos vitales y valores personales que ayuden a interpretarlas y se
pueden designar uno o varios representantes para que, llegado el caso, sirvan como interlocutores con el médico
o el equipo sanitario para procurar su cumplimiento (CASTILLA Y LEÓN. Decreto 30, de 22 de marzo de 2007.
Disponível em: <https://www.saludcastillayleon.es/institucion/es/recopilacion-normativa/asistencia-sanitaria/
prestaciones-derechos/decreto-30-2007-22-marzo-regula-documento-instrucciones-pre>. Acesso em: 03 jun.
2018).
39
Artículo 3. Representante del otorgante – [...] 2. El representante interpretará los valores y directrices que consten en
el documento de instrucciones previas, de forma adecuada a las circunstancias y proporcionada a las necesidades
que haya que atender, siempre a favor del otorgante y con respeto a su dignidad como persona (MURCIA.
Decreto 80, de 8 de julio de 2005. Disponível em: <https://www.murciasalud.es/legislacion.php?id=70264>. Acesso
em: 03 jun. 2018).
40
PAÍS VASCO. Ley 7, de 12 de diciembre de 2002. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2011/BOE-A-2011-
19056-consolidado.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018.
41
Também neste sentido são as disposições da Lei nº 26.529, de 21 de octubre de 2009, art. 11 (ARGENTINA. Ley
nº 26.529, de 21 de octubre de 2009. Disponível em: <http://www.uba.ar/archivos_secyt/image/Ley%2026529.pdf>.
Acesso em: 03 jun. 2018), e Ley de Voluntad Anticipada para el Distrito Federal, art. 3º (MÉXICO. Ley de voluntad
anticipada para el Distrito Federal. Disponível em: <http://www.aldf.gob.mx/archivo-077346ece61525438e126242a3
7d313e.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018).
42
24.(1) “Advance decision” means a decision made by a person (“P”), after he has reached 18 and when he has
capacity to do so, that if (a) at a later time and in such circumstances as he may specify, a specified treatment
is proposed to be carried out or continued by a person providing health care for him, and; (b) at that time he
lacks capacity to consent to the carrying out or continuation of the treatment, the specified treatment is not
to be carried out or continued (ENGLAND AND WALES. Mental Capacity Act. Disponível em: <http://www.
mentalhealthlaw.co.uk/Mental_Capacity_Act_2005>. Acesso em: 03 jun. 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
390 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3 Principais problemas apontados pela doutrina especializada


Diferente das outras modalidades, as histórias de valores não contam com um
amplo espectro de estudos empíricos, muito devido a sua recenticidade. No entanto, pela
análise dos dados relativos ao testamento vital e à procuração para cuidados de saúde,
percebeu-se que os problemas de efetividade dessas modalidades podem ser mitigados
– ou mesmo resolvidos – pela adoção das histórias de valores, pois esta expressa mais
profundamente a subjetividade do paciente a fim de guiar as decisões concernentes à sua
saúde em situações de incapacidade. Esta seção se dedica a demonstrar tal constatação.
Não são poucas as críticas às diretivas antecipadas de vontade havendo, inclusive,
quem afirme a total falência do instituto43 por não ter logrado êxito no cumprimento
de seus objetivos. Dentre as principais deficiências apontadas nas modalidades
tradicionais, estão: a falta de interação entre o médico e o paciente, a impossibilidade
de prever situações futuras, o risco de incentivo à eutanásia e de desvalorização da
vida, a possibilidade de mudança de opinião do paciente, entre outros.44 Destacam-se
aqui alguns dos problemas de efetividade do instituto que podem ser amenizados ou
solucionados pelas histórias de valores.
O primeiro deles diz respeito aos problemas na redação no testamento vital e na
procuração para cuidados de saúde, tendo em conta a dificuldade de externalização
dos desejos pelo paciente. O outorgante pode optar por uma enumeração precisa das
situações, indicando as intervenções que deseja ou recusa e em quais situações, porém,
neste formato, eventuais esquecimentos podem se voltar contra ele mesmo.45 Por outro
lado, o uso de termos genéricos – como “meios que apenas prolonguem a vida” –
também dificulta a aplicação do documento,46 uma vez que exige um complexo trabalho
de interpretação que, em geral, não conta com parâmetros seguros para identificação
da vontade do paciente.
Neste sentido, interessante a crítica da etiquetagem do paciente como “uma
pessoa que deseja morrer” feita por Juan Carlos Siurana,47 que se expressa muito bem
no seguinte exemplo apresentado por Francisco Javier León-Correa.

Quem afirma por escrito sua negativa a que lhe ponham um respirador pode estar pensando
na possibilidade de um câncer. Mas, e se ingressa por um acidente de carro e o respirador
pode salvar sua vida usando-o por alguns dias? O que o médico deveria fazer então?48

43
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 464, 2013.
44
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, maio 2013, p. 119.
45
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, maio 2013, p. 119.
46
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 464, 2013.
47
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, maio 2013, p. 116-117.
48
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008, tradução livre.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
391

Sobre esses casos, independente da forma que o outorgante escolha, a história


de valores pode auxiliar na interpretação dos documentos tradicionais,49 ou mesmo ser
mais efetiva como guia para as decisões. Ao expressar os valores pessoais, objetivos de
vida, crenças e prioridades do paciente, o instituto jurídico oferece maior adaptabilidade
às diversas situações clínicas que podem se apresentar, além de clarear os objetivos do
subscritor quanto às disposições do testamento vital e da procuração para cuidados de
saúde.
Outro problema que decorre dessas questões apontadas pela doutrina é a
possibilidade de abandono do paciente que fez um testamento vital recusando um
tratamento médico.50 León Correa contra-argumenta destacando o dever dos profissionais
de saúde de analisar o que é mais conveniente para o interesse dos seus pacientes em cada
momento,51 obrigação essa que permanece mesmo diante da existência de uma diretiva
antecipada.52 Importante ressaltar que tal análise não deve desconsiderar a vontade
manifestada do paciente, mas adequá-la a uma situação que não fora devidamente
prevista no testamento vital, e neste processo as histórias de valores se revelam um
importante guia a fim de garantir o respeito à autonomia do paciente, aqui estendida
para a situação de incapacidade.
Outros problemas recorrentemente suscitados são a impossibilidade de previsão
das situações futuras e o risco de desatualização das prescrições com o desenvolvimento
da medicina. De fato não se podem dimensionar as inúmeras possibilidades clínicas53
e, muitas vezes, as tentativas de especificar geram mais problemas ainda, conforme já
ressaltado anteriormente. Ademais, estados que hoje são considerados irremediáveis
podem no futuro encontrar um tratamento eficaz.54 Nestes contextos uma história
de valores pode atuar com maior flexibilidade, porque as decisões não dependerão
exclusivamente da previsão numerus clausus em um testamento vital, mas contarão
com um conteúdo que pode se adequar a uma diversidade de situações, respeitando o
paciente em sua construção biográfica.
Frente à possibilidade de manifestação antecipada da vontade, pode-se questionar
se não seria melhor consultar o procurador para cuidados de saúde, algum familiar ou
um amigo próximo. Sobre a hipótese, é preciso reconhecer que o papel desempenhado
pelos entes queridos do paciente é importante, entretanto, existindo uma manifestação

49
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica”. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008.
50
MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema Sanitario de Navarra, Pamplona,
v. 30, n. 3, p. 90, 2007.
51
Martínez chega a sustentar que as diretivas antecipadas podem ser supérfluas neste sentido, porque não
descartam a necessidade de deliberação sobre os cuidados de saúde. A afirmação do autor soa um tanto quanto
extrema. Mesmo o mais pessimista precisa considerar que, estando o paciente incapaz de manifestar sua vontade,
essas espécies de documento são, no mínimo, um indicativo da sua vontade, ao menos um ponto de partida para
a tomada de decisão.
52
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008.
53
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, p. 118-119, maio 2013.
54
GUILLEM-TATAY, David. El documento de voluntades anticipadas: problemas de eficacia social de la norma y
propuestas de solución. Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana: jurisprudencia seleccionada de la Comunidad
Valencia, Valencia, n. 38, p. 52, 2011.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
392 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

que provém diretamente do outorgante, não se pode confiar-lhes totalmente o poder


de decisão.55
A literatura especializada também aponta o risco de direcionamento das decisões
quando os médicos participam da elaboração das modalidades tradicionais. Isso porque
o paciente, em geral, é leigo nas questões relativas a tratamentos e cuidados médicos,
razão pela qual depende da informação que é prestada pelo médico, e a forma como essa
informação é prestada tem consequências diretas da tomada de decisão.56 Tratando-se a
história de valores de uma manifestação de vontade prospectiva constituída de valores
pessoais, essa influência externa atenua-se, quando não deixa de existir.
Pode-se argumentar contra a adoção da nova modalidade a insegurança gerada
pela falta de objetividade. Sobre isso cabe pontuar brevemente que não se trata de uma
consequência direta, e que, não obstante o risco, é preciso reconhecer que uma história
de valores bem elaborada oferece um excelente parâmetro para a tomada de decisão,
e pode ser ainda fortalecida pela nomeação de um procurador de confiança e pela
indicação de certos procedimentos que recusa ou deseja. Nas palavras de Rafael Esteves
e Renata Vilela Multedo “[a] ‘vida segura’ não pode alienar o paciente da decisão sobre
seu próprio destino”.57

4 Análise no contexto brasileiro


Não existe legislação específica sobre as diretivas antecipadas de vontade no
Direito brasileiro, mas apenas a Resolução nº 1995/2012 do Conselho Federal de Medi­
cina (doravante CFM), que vincula somente os profissionais da saúde. Alguns autores
defendem o instituto sob o argumento da garantia de segurança jurídica aos médicos,
que poderiam atuar conforme a vontade do paciente sem o risco de serem respon­
sabilizados. Não obstante o reconhecimento deste benefício produzido pelas diretivas,
sua legitimidade não deve ser ancorada apenas nele, sob pena de incentivar o exercício
de uma medicina defensiva.
Neste sentido, nos alinhamos à proposta de Luciana Dadalto de uma interpretação
integrativa do ordenamento jurídico brasileiro, considerando o texto constitucional e as
normas infraconstitucionais.58 Uma análise neste sentido permite identificar na dignidade
humana,59 na liberdade – consubstanciada no direito à disposição do próprio corpo no

55
Sobre a questão Martínez chega a afirmar que “toda informação que não parte diretamente do próprio paciente é
essencialmente pouco confiável” (MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema
Sanitario de Navarra, Pamplona, v. 30, n. 3, p. 92, 2007).
56
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 469, 2013.
57
ESTEVES, Rafael; MULTEDO, Renata Vilela. Reflexões sobre o conteúdo não patrimonial da relação médico-
paciente. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro,
Renovar, 2012, p. 315-338.
58
DADALTO, Luciana. Testamento vital. São Paulo: Atlas, 2015, p. 178-179.
59
Definida por Sarlet: “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo
de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante
e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e corrresponsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos” (SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa
Humana: Construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
393

Código Civil –, no pluralismo ético-social60 e no direito à saúde61 um fundamento para


a validade das diretivas antecipadas de vontade no contexto nacional.
Especificamente no que diz respeito às histórias de valores, não há sequer menção
na Resolução nº 1995/2012 do CFM. O diploma define as diretivas em seu art. 1º referindo-
se apenas à expressão de desejos sobre cuidados e tratamentos que o outorgante aceita
ou recusa, e no art. 2º, §1º, permite a nomeação de um representante. É a redação:

Art. 1º. Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e
expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não,
receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente,
sua vontade.
Art. 2º [...]
§1º. Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações
serão levadas em consideração pelo médico.62

Não é possível pela leitura destes dispositivos concluir que a expressão de valores
pessoais é permitida ou vedada, porque o desejo sobre cuidados e tratamentos pode se
manifestar pela sua especificação ou pela indicação dos objetivos de vida, do conceito
de vida boa, das crenças e convicções do outorgante.
O Enunciado nº 37 da I Jornada de Direito da Saúde realizada pelo Conselho
Nacional de Justiça também se propõe a uma definição de diretivas antecipadas, e parece
excluir a possibilidade de constância de valores pessoais quando exige a especificação
dos tratamentos médicos.

Enunciado nº 37- As diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os


tratamentos médicos a que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado
de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente por escrito, por
instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas
inequívocas de manifestação admitidas em direito.63

A despeito desses conceitos é possível advogar pela legitimidade das histórias de


valores no ordenamento jurídico brasileiro. Primeiro, porque a resolução e o enunciado

Constitucional – RBDC, Brasil, n. 9, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://bit.ly/2axb85U>. Acesso em: 26 abr. 2017.
p. 383).
60
Afirmando o pluralismo ético-social como valor fundante do Estado Democrático de Direito, Diogo Luna
Moureira e Maria de Fátima Freire de Sá afirmam que é do respeito às iguais liberdades que o Direito retira a
sua legitimidade (MOUREIRA, Diogo Luna; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Autonomia para morrer: Eutanásia,
Suicídio Assistido, Diretivas Antecipadas de Vontade e Cuidados Paliativos. Belo Horizonte: Del Rey, 2015,
p. 93).
61
Ana Carolina Brochado Teixeira defende a construção dinâmica e individual do conceito de saúde, que “pode
variar de acordo com cada pessoa, suas experiências de vida, sua cultura, o local onde habita, entre outros fatores
[...]”. Segundo a autora há uma relação necessária entre saúde e autonomia – tendo em conta a dignidade humana
e o pluralismo como alicerces do Estado Democrático de Direito – visto que apenas a pessoa pode determinar o
que é bom para si (TEIXEIRA, Corpo, Liberdade e Construção da Vida Privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 510-
511).
62
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1995/2012. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.
br/resolucoes/cfm/2012/1995_2012.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018.
63
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados aprovados na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional
de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/ENUNCIADOS_APROVADOS_NA_JORNADA_DE_
DIREITO_DA_SAUDE_%20PLENRIA_15_5_14_r.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
394 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

não têm força de lei, e as redações são, ainda, passíveis de diversas críticas pela confusão
terminológica ou pela restrição indevida do conteúdo das diretivas. E segundo porque
se trata de uma modalidade de manifestação legítima da subjetividade do paciente, que
pode se revestir de força jurídica em respeito aos princípios, direitos e valores elencados,
quais sejam: a dignidade, a liberdade, o pluralismo e a saúde.
Considerando que a pessoa é livre e pode decidir os rumos da própria vida –
sendo essa uma condição inerente à dignidade humana –, e que incumbe ao Estado e
a sociedade aceitar e promover meios para o exercício dessa liberdade – respeitando o
pluralismo ético-social –, a manifestação antecipada de vontade antecipada encontra
aporte no Direito Pátrio, independente da espécie. E, conforme afirma Diego Gracia e
Juan José Rodríguez Sendín, “[s]e entende-se que os desejos de um paciente merecem
respeito, não parece adequado ignorar a sua vontade de deixar registrados os valores
que sustentam as suas decisões”.64
Concordamos com Anderson Schreiber quando afirma que a manifestação da
vontade nessa seara deve ser o mais livre possível, por se tratar de um aspecto extremo e
fluido da existência humana,65 mas ressaltamos a necessidade de um diploma normativo
específico sobre as diretivas antecipadas de vontade. Diploma este que, longe de esmiuçar
procedimentos e formalidades desmedidas, deve esclarecer essas questões tão essenciais
para a efetividade do instituto na qualidade de garantidor do respeito à subjetividade
da pessoa.

Conclusão
As diretivas antecipadas visam à proteção dos aspectos existenciais da pessoa,
possibilitando estender sua autonomia para situações em que esteja incapacitada de
manifestar sua vontade e corporifica-se em diferentes espécies. A história de valores
como modalidade que expressa os valores pessoais, crenças, objetivos e prioridades
do outorgante tem o condão de tornar mais efetivo o instituto, porque se harmoniza
às diferentes situações clínicas apresentadas, mitiga as influências indevidas dos
profissionais da saúde e auxilia tanto na atualização e interpretação do testamento
vital quanto na atuação do procurador para cuidados de saúde. Incentiva-se, inclusive,
a combinação das três espécies, constituindo-se um interessante sistema de pesos e
medidas para a tomada de decisão.
Muito embora a modalidade seja incipiente e desperte divergências doutriná­
rias e legislativas em torno da (in)dependência, da forma de elaboração e das funções,
as histórias de valores são um instrumento hábil de manifestação da subjetividade.
Mesmo no contexto pátrio, em que não há qualquer previsão legal, é possível ancorar
sua legitimidade em uma interpretação integrativa do ordenamento jurídico brasileiro
a considerar a dignidade da pessoa humana, o pluralismo-ético social, a liberdade e o
direito à saúde.

64
GRACIA, Diego; RODRÍGUEZ SENDÍN, Juan José. La historia de valores. In: Planificación Anticipada de la
Asistencia Médica. Fundación de Ciencias de la Salud, Madrid, 2011.
65
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 63.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
395

Ressalta-se a importância das histórias de valores como espaço consagrado


ao bem-estar e aos desejos do outorgante, que não está primordialmente voltado às
necessidades dos profissionais de saúde. No entanto, se faz urgente a elaboração de um
diploma normativo sobre a temática capaz de esclarecer as confusões terminológicas,
os limites do conteúdo e os âmbitos de atuação das diretivas antecipadas e suas
modalidades, contribuindo, assim, para que a vontade do paciente seja respeitada.

Referências
ALBERTA. Personal Directives Act. Disponível em: <http://www.qp.alberta.ca/documents/Acts/p06.pdf>.
Acesso em: 03 jun. 2018.
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
398 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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O BIG DATA SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E
PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS

EDUARDO MAGRANI

RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA

Introdução
A tecnologia tem avançado de forma acelerada e contribuído para melhorar a
forma como vivemos. Além de interferir na maneira como os indivíduos agem, novas
tecnologias mudam o modo pelo qual as pessoas se relacionam entre si, com as empresas
e com o governo.
É inegável que tais tecnologias trazem inúmeros benefícios. A reboque, contudo,
surgem questionamentos regulatórios e éticos ligados à sua utilização. Com cada vez
mais dispositivos conectados, relacionados ao cenário que vem sendo denominado de
Internet das Coisas (“Internet of Things” ou IoT),1 surgem diversos riscos e desafios. O
primeiro deles que gostaríamos de ressaltar se relaciona ao direito à privacidade.
Os dados gerados através do uso desses inúmeros dispositivos inteligentes são
coletados e armazenados pelas empresas, as quais nem sempre agem de forma trans­
parente. Os termos de uso e de serviço costumam ser extremamente técnicos e ininte­
ligíveis para a população em geral. Não é raro que a finalidade destinada aos dados seja
escondida dos próprios usuários, os quais não possuem controle sobre as informações
que se referem a eles próprios.

1
De maneira geral, a Internet das Coisas pode ser entendida como um ecossistema de objetos físicos interconectados
com a Internet, por meio de sensores pequenos e embutidos, criando um ecossistema de computação onipresente
(ubíqua), voltado a facilitar o cotidiano das pessoas, introduzindo soluções funcionais nos processos do dia a dia.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
400 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Diante da volumosa quantidade de dados produzida diariamente, isso se torna


ainda mais preocupante, sobretudo porque o Big Data2 vai muito além de um emaranhado
de dados. Ele é essencialmente relacional. É preciso termos em mente que o Big Data
somos nós e, portanto, devemos ter uma consciência crítica sobre isso e pensar sobre
possibilidades de retomar o controle sobre nossos dados pessoais.
Com a posse e disponibilidade sobre os nossos dados, as empresas têm se valido
de técnicas como o tracking, profiling e targeting para direcionar suas políticas de marketing
à forma como vivemos e às nossas necessidades – ou ao que elas nos fazem crer ser uma
necessidade.
Dessa forma, as discussões relativas ao direito à privacidade estão intrinsecamente
conectadas às discussões sobre o uso e gerenciamento de dados. O avanço tecnológico
requer adaptações do ordenamento jurídico aos novos cenários, o que pode se dar, por
exemplo, através da atuação legislativa ou da atividade interpretativa. Nem sempre
essas soluções são eficazes: de um lado, a conjuntura sociopolítica muda de forma muito
mais acelerada do que a legislação é capaz de acompanhar e, de outro, a interpretação
judicial e dos governantes pode adquirir caráter paternalista e corporativo se distanciada
da vontade dos indivíduos. Assim, novas formas de proteger o direito à privacidade e
de aumentar o controle que os usuários da Internet possuem sobre seus próprios dados
têm surgido como alternativa.
Neste sentido, foram criados projetos como o Digital Me, o Hub of All Things e
o MyData. Trata-se, basicamente, de sistemas cujo objetivo é colocar o indivíduo no
centro dos dados pessoais a fim de que ele próprio tenha o controle das informações
produzidas sobre si, desvencilhando-se do controle abusivo exercido atualmente pelas
empresas. Vale dizer, adota-se perspectiva centrada no ser humano, e não mais nas coisas
ou nas informações em si. No atual modelo de gerenciamento, os dados são daqueles
que os coletam. Os próprios indivíduos aos quais as informações se referem não têm
acesso a elas e sequer sabem a finalidade para a qual elas são usadas, o que cria sérios
problemas à privacidade e vai de encontro ao princípio da transparência. Os novos
sistemas elaborados buscam, assim, criar um cenário em que os usuários tenham seus
direitos humanos digitais respeitados e que possam ter controle sobre seus dados ao
mesmo tempo em que não sejam criadas barreiras à inovação das empresas, as quais
poderão desenvolver serviços inovadores com base na confiança mútua.
O presente estudo destina-se a analisar esses projetos de modo mais detido e busca
pontuar os benefícios que eles podem trazer à proteção da privacidade e à tomada de
controle sobre os dados pessoais pelos próprios indivíduos. Para isso, faremos, em um
primeiro momento, um breve panorama sobre o direito à privacidade, seus contornos
e os impactos que as novas tecnologias geram sobre ele. Em um segundo momento,
aspectos ligados ao Big Data serão objeto de análise, a fim de que uma noção mais
delineada sobre a produção e o armazenamento de dados seja feita. Em terceiro lugar,
apresentaremos de forma mais detalhada cada um dos projetos de gerenciamento
pessoal de dados mencionados. O artigo é concluído com uma análise de como esses
projetos tendem a contribuir para a proteção da privacidade na contemporaneidade
face às novas tecnologias.

2
Big data é um termo em evolução que descreve qualquer quantidade volumosa de dados estruturados,
semiestruturados ou não estruturados que têm o potencial de ser explorados para obter informações.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
401

1 O desafio da privacidade no mundo hiperconectado


A proteção da privacidade é ponto fundamental de sociedades que se pretendem
democráticas e está prevista como direito fundamental na Convenção Europeia de
Direitos Humanos3 e na Declaração Universal de Direitos Humanos.4 Os tratados
internacionais sobre o tema, em geral, tratam da privacidade sob o aspecto da não
ingerência na vida privada familiar, da correspondência e das comunicações, assim
como o faz a Constituição Federal Brasileira de 1988.5 A interpretação da privacidade,
contudo, vem mudando substancialmente nos últimos anos e esse direito ganhou novos
contornos.6
O direito à privacidade consiste em um valor complexo7 possuindo diferentes
significados e diversos aspectos que o caracterizam. Dentre tais aspectos, temos a
tradicional visão de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis do direito de ser deixado
só (right to be alone),8 que implica o controle do indivíduo sobre informações que dizem
respeito a sua vida pessoal.9 Como pontua Ingo Sarlet, com base em Vital Moreira e em
Canotilho, o direito à privacidade envolve o direito de impedir que estranhos tenham
acesso a informações sobre a vida privada e que tais informações não sejam divul­
gadas.10 Há, ainda, quem trate do direito à privacidade sob a ótica do resguardo contra
interferências alheias – o que implica o direito que o indivíduo possui de ser deixado
em paz a fim de viver sua vida com um grau mínimo de interferência –, sob a ótica do
segredo ou sigilo de determinadas informações e, por fim, sob a ótica do controle sobre
informações e dados pessoais.11

3
Artigo 8º “Direito ao respeito pela vida privada e familiar 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua
vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade
pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência
que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o
bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da
moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”.
4
Artigo 12º “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na
sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa
tem direito a protecção da lei”.
5
No Brasil, o direito à privacidade, esfera do direito à vida privada, está intimamente conectado à proteção da
dignidade e personalidade humanas e pode ser extraído do reconhecimento constitucional dado à intimidade,
à vida privada e à inviolabilidade de dados. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 390. Destacamos
os seguintes dispositivos da Constituição Federal sobre o tema: art. 5º (...) X - “são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;” e XII - “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de
dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a
lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”.
6
Como afirma Stefano Rodotà, “As novas dimensões da coleta e do tratamento de informações provocaram a
multiplicação de apelos à privacidade e, ao mesmo tempo, aumentaram a consciência da impossibilidade
de confinar as novas questões que surgem dentro do quadro institucional tradicionalmente identificado por
este conceito”. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância – a privacidade hoje. Organização, seleção
e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução: Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 23.
7
POST, Robert C. Three Concepts of Privacy. Georgetown Law Review, v. 89, p. 2087, 2001.
8
WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, 1890.
9
SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Op. cit., p. 393-394.
10
Ibid., p. 394.
11
Sobre os diferentes conceitos de privacidade, v. LEONARDI, Marcel. Tutela e Privacidade na Internet. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 52 e ss.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
402 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Com o desenvolvimento social e tecnológico, diferentes facetas da privacidade


surgiram12 e novos conflitos e problemas13 eclodiram, como o debate sobre o direito de
não tomar conhecimento sobre um dado pessoal,14 a discussão sobre biografias não
autorizadas15 e o “direito ao não rastreio” (“right to non-tracking”).16 Na sociedade da
informação, a privacidade deve ser entendida de forma funcional, de modo a assegurar
a um sujeito a possibilidade de “conhecer, controlar, endereçar, interromper o fluxo das
informações a ele relacionadas”.17 Neste sentido, Stefano Rodotà define a privacidade
“como o direito de manter o controle sobre as próprias informações”.18
No atual cenário, portanto, o direito à privacidade transforma-se em direito da
personalidade19 e não possui um conceito unívoco, mas consiste em uma ideia plural que
abarca suas inúmeras facetas. Este é o cenário exposto por Danilo Doneda, que pontua
que a privacidade está relacionada à proteção dos dados pessoais:

As demandas que moldam o perfil da privacidade hoje são de outra ordem [diferentes
da tutela da privacidade como o direito de ser deixado só], relacionadas à informação e
condicionadas pela tecnologia. Hoje, a exposição indesejada de uma pessoa aos olhos
alheios se dá com maior frequência através da divulgação de seus dados pessoais do que
pela intrusão em sua habitação, pela divulgação de notícias a seu respeito na imprensa, pela
violação de sua correspondência – enfim, por meios ‘clássicos’ de violação da privacidade.
Ao mesmo tempo, somos cada vez mais identificados a partir dos nossos dados pessoais,
fornecidos por nós mesmos aos entes, públicos e privados, com os quais mantemos relações;
ou então coletados por meios diversos. Tais dados pessoais são indicativos de aspectos de
nossa personalidade, portanto merecem proteção do direito enquanto tais.20

12
Caitlin Mulholland, por exemplo, apresenta três concepções sobre o direito à privacidade, quais sejam, “(i) o
direito de ser deixado só, (ii) o direito de ter controle sobre a circulação dos dados pessoais, e (iii) o direito
à liberdade das escolhas pessoais de caráter existencial” e acrescenta a esta lista “o direito de não tomar
conhecimento acerca de um dado pessoal”. (MULHOLLAND, Caitlin. O direito de não saber como decorrência
do direito à intimidade. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 3, 2012).
13
Confira-se, sobre o tema, SLOAN, Robert H.; WARNER, Richard. Unauthorized Access: The Crisis in Online
Privacy and Security. London/New York: CRC Press, 2014; MADDEN, Mary. Privacy management on social
media sites. A Project of the Pew Research Center. Disponível em: <http://www.isaca.org/Groups/Professional-
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Feb%202012.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2016.
14
Mulholland apresenta caso no qual um paciente fizera exame para pesquisar, dentre outros, a existência do
vírus da Hepatite C e recebeu, em virtude de o exame de sangue conduzido pelo laboratório ter sido outro que
não o solicitado, o resultado positivo do exame anti-HIV. Para Mulholland, “divulgação à pessoa de dado não
requisitado configura violação ao seu direito de não saber e gera, incontestavelmente, o direito à indenização por
danos morais”. MULHOLLAND. Op. cit., p. 11.
15
Sobre o tema, v. MORAES, Maria Celina Bodin de. Biografias não autorizadas: conflito entre a liberdade de
expressão e a privacidade das pessoas humanas? Editorial. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 1-4, 2013.
16
Eduardo Magrani defende em artigo publicado na Internet Policy Review que, no novo contexto tecnológico,
a concepção de privacidade deve mudar para a ideia de “não rastreamento”, consolidando um “direito ao não
rastreio”. [In this new technological context, the conception of privacy must shift to the idea of “non-tracking”,
consolidating a “right to non-tracking”]. Confira em: MAGRANI, Eduardo. The emergence of the Internet of
Anonymous Things (AnIoT). Internet Policy Review – Journal on Internet Regulation, jun. 2017. Disponível em:
<https://policyreview.info/articles/news/emergence-internet-anonymous-things-aniot/693>. Acesso em: 28 set.
2017.
17
RODOTÀ. Op. cit., p. 92.
18
Ibid., p. 92.
19
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 14.
20
Ibid., p. 1.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
403

Note, ainda, que a privacidade não tem apenas o caráter de liberdade negativa –
isto é, a liberdade de não ser impedido ou de não ser obrigado a fazer algo21 –, mas
também o de liberdade positiva – ou seja, liberdade como autonomia, liberdade enquanto
possibilidade de direcionar seu próprio querer sem ser determinado por outros22 23 –,
ligada ao controle dos dados, o que se deve ao contexto social advindo de evoluções
tecnológicas. Atualmente, “a informação assume papel de bem econômico e elemento
estruturante para o desenvolvimento das relações sociais, sendo, pois, o signo maior
desta anunciada e consolidada revolução socioeconômica”.24
Como pontua Stefano Rodotà, a noção de vida privada vem sendo expandida
devido, dentre outros fatores, ao desenvolvimento da tecnologia. Assim, o conceito passa
a abranger o “conjunto de ações, comportamentos, opiniões, preferências, informações
pessoais, sobre os quais o interessado pretende manter um controle exclusivo”.25 A con­
cepção do que seja privado, “tende a abranger o conjunto das atividades e situações de
uma pessoa que tem um potencial de ‘comunicação’, verbal e não verbal, e que pode,
por­tanto, se traduzir em informações”.26
O fator tecnológico possui papel de destaque, uma vez que, com a melhora
da capacidade de armazenamento e de comunicação de informações, surgem novas
maneiras de organizar, utilizar e se apropriar da informação.27 Como destaca Danilo
Doneda, “esta crescente importância traduz-se no fato de que uma considerável parcela
das liberdades individuais hoje são concretamente exercidas através de estruturas nas
quais a comunicação e a informação têm papel relevante”.28
O desenvolvimento tecnológico permite a criação de perfis de comportamento
que podem até se confundir com a própria pessoa.29 Tais perfis, aliados à manipulação
de dados colhidos, podem gerar sérios impactos na liberdade:

21
Como conceitua Norberto Bobbio, “[p]or liberdade negativa, na linguagem política, entende-se a situação na
qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado, por outros
sujeitos. (...) A liberdade negativa costuma também ser chamada de liberdade como ausência de impedimento
ou de constrangimento: se, por impedir, entende-se não permitir que outros façam algo, e se, por constranger,
entende-se que outros sejam obrigados a fazer algo, então ambas as expressões são parciais, já que a situação de
liberdade chamada de liberdade negativa compreende tanto a ausência de impedimento, ou seja, a possibilidade
de fazer, quanto a ausência de constrangimento, ou seja, a possibilidade de não fazer” (BOBBIO, Norberto.
Igualdade e liberdade. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 48-49).
22
Para Bobbio, “[p]or liberdade positiva, entende-se -na linguagem política -a situação na qual um sujeito tem
a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser
determinado pelo querer de outros. Essa forma de liberdade é também chamada de autodeterminação ou, ainda
mais propriamente, de autonomia” (Ibid., p. 51).
23
Sobre o tratamento da privacidade como liberdade negativa ou positiva, v. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto.
Privacidade, Mercado e Informação. Justitia, São Paulo, n. 61, p. 245-259, jan./dez. 1999.
24
BIONI, Bruno Ricardo. A produção normativa a respeito da privacidade na economia da informação e do livre
fluxo informacional transfronteiriço. In: ROVER, Aires José; CELLA, José Renato Gaziero; AYUDA, Fernando
Galindo. Direito e novas tecnologias. Florianópolis: CONPEDI, 2014, p. 65.
25
RODOTÀ. Op. cit., p. 92.
26
Ibid., p. 93.
27
DONEDA. Op. cit., p. 153.
28
Ibid., p. 153-154.
29
Como pontua Danilo Doneda, na técnica profiling, “os dados pessoais são tratados, com o auxílio de métodos
estatísticos, técnicas de inteligência artificial e outras mais, com o fim de obter uma ‘metainformação’, que
consistiria numa síntese dos hábitos, preferências pessoais e outros registros da vida desta pessoa. O resultado
pode ser utilizado para traçar um quadro das tendências de futuras decisões, comportamentos e destinos de uma
pessoa ou grupo”. (Ibid., p. 173).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
404 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Uma outra técnica ainda diz respeito à uma modalidade de coleta dos dados pessoais,
conhecida como data mining. Ela consiste na busca de correlações, recorrências, formas,
tendências e padrões significativos a partir de quantidades muito grandes de dados,
com o auxílio de instrumentos estatísticos e matemáticos. Assim, a partir de uma grande
quantidade de informações em estado bruto e não classificada, podem ser identificadas
informações de potencial interesse.30

Assim, se, por um lado, a tecnologia traz inegáveis benefícios à sociedade como um
todo, cria, de outro lado, problemas à proteção da privacidade. Apesar de a tecnologia
ajudar a moldar uma esfera privada mais rica, contribui para que essa esfera seja cada
vez mais frágil e exposta a ameaças, de onde deriva a necessidade do fortalecimento
contínuo de sua proteção.31
A necessidade de uma maior proteção dos dados pessoais se aprofunda no cenário
da Internet das Coisas.32 Neste contexto, a crescente conectividade com os mais diversos
dispositivos de tecnologia gera uma fonte praticamente inesgotável de informações
acerca do dia a dia dos usuários de tais dispositivos. Tendo em vista que ao se falar
em privado temos em mente informações de caráter pessoal,33 é imprescindível dedicar
especial proteção aos dados e às informações geradas através de conexões à internet e
de dispositivos ligados à IoT.34
O Brasil, diferente da maioria dos países da América Latina35 e da Europa,36 ainda
não possui arcabouço legislativo suficiente para garantir a proteção à privacidade

30
Ibid., p. 176.
31
RODOTÀ. Op. cit., p. 95.
32
“Com o advento de novas tecnologias, notadamente o desenvolvimento da biotecnologia e da Internet, o acesso
a dados sensíveis e, consequentemente, a sua divulgação, foram facilitados de forma extrema. Como resultado,
existe uma expansão das formas potenciais de violação da esfera privada, na medida em que se mostra a
facilidade por meio da qual é possível o acesso não autorizado de terceiros a esses dados. Com isso, a tutela
da privacidade passa a ser vista não só como o direito de não ser molestado, mas também como o direito de ter
controle sobre os dados pessoais e, com isso, impedir a sua circulação indesejada”. (MULHOLLAND. Op. cit.,
2012, p. 3).
33
RODOTÀ. Op. cit., p. 93.
34
Em sentido similar, Danilo Doneda afirma que os dados pessoais “merecem uma atenção particular, seja pela
dinamicidade de seu conteúdo como pelo novo cenário que procura regular, marcado pela forte presença da
tecnologia”. DONEDA. Op. cit., p. 362. Também Carlos Affonso de Souza se posiciona nesse sentido, afirmando
que “as ameaças ao direito à privacidade foram severamente incrementadas na medida em que o progresso
tecnológico permitiu maiores facilidades ao indivíduo. O tratamento da informação por computadores permite
não apenas seu célere processamento para fins idôneos, mas também para o célere cruzamento de dados
sigilosos ou a interceptação dos mesmos em uma rede, por exemplo. A Internet, expoente de tal avanço, é, por
consequência, o cenário onde atualmente se discute a nova tutela demandada pela necessidade de privacidade
pessoal”. (SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. O progresso tecnológico e a tutela jurídica da privacidade, Direito,
Estado e Sociedade, n. 16, p. 23, jan./jul. 2000).
35
Há leis promulgadas, por exemplo, na Argentina, no Chile e na Colômbia. Cf. BANISAR, David. National
Comprehensive Data Protection/Privacy Laws and Bills 2016. ARTICLE 19: Global Campaign for Free Expression,
2016. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=1951416>. Acesso em: 07 fev. 2017.
36
Na Europa, todos os países, com exceção da Bielorrússia, possuem leis de proteção de dados pessoais.
Cf. BANISAR. Op. cit. Neste continente, com os vazamentos sobre os programas de vigilância dos Estados
Unidos, os eurodeputados agiram de modo a fortalecer as regras já existentes desde 1995. Assim, votaram a
reforma das regras europeias acerca da proteção de dados pessoais, buscando assegurar aos usuários da internet
maior controle sobre seus dados e sujeitar transferências de dados pessoais processados na União Europeia para
fora desta a requisitos mais severos. Cf. REDAÇÃO. Parlamento Europeu reforça proteção dos dados pessoais
dos cidadãos. Parlamento Europeu, mar. 2014. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-
room/20140307IPR38204/parlamento-europeu-reforca-protecao-dos-dados-pessoais-dos-cidadaos>. Acesso em:
07 fev. 2017.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
405

atualmente.37 Há projetos de lei em tramitação atualmente no Congresso Nacional


buscando aprovar uma lei geral de proteção à privacidade e aos dados pessoais.38
Contudo, a proteção não deve se dar apenas pela via legislativa, uma vez que as leis são
limitadas no tempo por conta das rápidas mudanças sociais. Assim, e tendo em vista
que a privacidade também deve ser entendida como liberdade positiva, é fundamental
criar mecanismos que deem aos indivíduos o poder de controlar seus próprios dados,
os processos aos quais eles serão submetidos e as finalidades subjacentes a seu uso.
Uma das alternativas possíveis para proteger a privacidade e empoderar os indivíduos
do controle de seus dados consiste no gerenciamento pessoal de dados, o qual será
apresentado de forma detalhada mais adiante.

2 O Big Data somos nós: entre a exploração econômica e o controle


pessoal dos dados
Todos os dias, nos conectamos à internet através de dispositivos que possuem
a capa­cidade de compartilhar, processar, armazenar e analisar um volume enorme de
dados entre si. Esta prática gera o que conhecemos como Big Data, que é um termo
em evo­lução que descreve qualquer quantidade volumosa de dados estruturados,
semies­truturados ou não estruturados que têm o potencial de ser explorados para obter
informações.39
A primeira propriedade envolvendo Big Data consiste no volume crescente de
dados.40 Pesquisa recente da Cisco41 estima que, nos próximos anos, a medida em gigabytes42
será superada e o cálculo da quantidade de dados será feito na ordem zettabyte43 e até
em yottabyte.44

37
A Constituição brasileira prevê reconhecimento ao direito à intimidade, à vida privada (art. 5º, inciso X) e à
inviolabilidade de dados (art. 5º, inciso XII) e aponta o habeas data como instrumento apto a assegurar a proteção de
informações e dados pessoais (art. 5º, inciso LXXII). Também há proteção legislativa no nível infraconstitucional.
O Código Civil de 2002 protege a vida privada (art. 21) e o Código de Defesa do Consumidor dedica a Seção
VI à proteção de bancos de dados e de cadastros dos consumidores. Por fim, o Marco Civil da Internet, vigente
desde 2014, elenca a proteção da privacidade e dos dados como princípios a serem observados na disciplina da
internet como pilar da Lei (art. 3º, incisos II e III). Os artigos 7º e 10 do Marco Civil também abordam o tema. Essa
regulação, contudo, é insuficiente para proteger os dados pessoais e a privacidade em suas mais diversas facetas.
38
Entre os anos 2013 e 2014, foram propostos os PLs nº 330/2013, nº 181/2014 e nº 131/2014, que dispunham sobre
a proteção de dados pessoais em geral e o fornecimento de dados de cidadãos e/ou empresas brasileiras a
organismos estrangeiros, frutos da CPI da Espionagem levada a cabo pelo Senado Federal. Em 2015, estes três
projetos foram apensados e tramitam em conjunto até hoje.
Também tramitam em conjunto o PL nº 4.060/2012 e o Anteprojeto nº 5.276/2016. O Projeto nº 5.276/2016 traz
importantes princípios para que a proteção à privacidade e aos dados pessoais seja efetiva, como o princípio
da finalidade, o princípio da adequação e o princípio da necessidade. O PL sofreu forte influência da regulação
europeia, guardando inúmeras semelhanças com a General Data Protection Regulation, de 2016.
39
LANE, Julia et al. (Ed.). Privacy, big data and the public good: frameworks for engagement. New York: Cambridge
University Press, 2014.
40
Cf. RIJMENAM, Mark van. Why the 3 V’s are not sufficient to describe big data. DATAFLOQ, ago. 2015.
Disponível em: <https://datafloq.com/read/3vs-sufficient-describe-big-data/166>. Acesso em: 27 mar. 2017.
41
CISCO. The zettabyte era: trends and analysis. Cisco, jun. 2016. Disponível em: <www.cisco.com/c/en/us/
solutions/collateral/service-provider/visual-networking-index-vni/vni-hyperconnectivity-wp.html>. Acesso em:
27 mar. 2017.
42
Gigabyte é uma unidade de medida de informação que equivale a 1 trilhão de bytes.
43
Zettabyte é uma unidade de informação que corresponde a 1 sextilhão de bytes (1021).
44
Yottabyte é uma unidade de medida de informação que equivale a 1024 bytes.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
406 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Outra propriedade envolve a alta velocidade45 com que os dados são produzidos,
analisados e visualizados. Além disso, a variedade de formatos de dados representa
um desafio adicional. Essa característica é potencializada pelos diferentes dispositivos
responsáveis por coletar e produzir dados em diversos âmbitos. As informações
produzidas por um mecanismo que monitora a temperatura são bem diferentes das
obtidas em redes sociais, por exemplo. Ademais, a maioria dos dados encontrados não
é estruturada.46
O conceito de Big Data47 pode implicar, ainda, a capacidade de transformar dados
brutos em gráficos e tabelas que permitam a compreensão do fenômeno a ser demons­
trado. É importante mencionar que, em um contexto em que decisões são tomadas cada
vez mais com base em dados, é de extrema importância garantir a veracidade destas
informações.48
Nas palavras de Maike Wile dos Santos, “Big Data é mais que um emaranhado de
dados, pois é essencialmente relacional”. Apesar de isso não ser um fenômeno novo, “o
que a internet fez foi dar uma nova dimensão, transformando-o. Para bem entender essas
transformações”, segundo Wile, “precisamos compreender que o Big Data somos nós”.49
De acordo com Hannes Grassegger e Mikael Krogerus:50

Qualquer pessoa que não tenha passado os últimos cinco anos vivendo em outro planeta
estará familiarizada com o termo Big Data. Big Data significa, em essência, que tudo o que
fazemos, tanto online como offline, deixa vestígios digitais. Cada compra que fazemos com
nossos cartões, cada busca que digitamos no Google, cada movimento que fazemos quando
nosso telefone celular está em nosso bolso, cada “like” é armazenado. Especialmente cada
“like”. Durante muito tempo, não era inteiramente claro o uso que esses dados poderiam
ter – exceto, talvez, que poderíamos encontrar anúncios de remédios para hipertensão logo
após termos pesquisado no Google “reduzir a pressão arterial”.51

45
Cf. RIJMENAM. Op. cit.
46
Ibid. Ver, também, MOLARO, Cristian. Do not ignore structured data in big data analytics: the important role of
structured data when gleaning information from big data. IBM Big Data & Analytics Hub, 19 jul. 2013. Disponível
em: <www.ibmbigdatahub.com/blog/do-not-ignore-structured-data-big-data-analytics>. Acesso em: 27 mar.
2017.
47
Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco, José Carlos Cavalcanti, o conceito de big data se aplica
a informações que não podem ser processadas ou analisadas usando processos ou ferramentas tradicionais.
Cavalcanti menciona como características básicas do conceito de big data: volume, variedade e velocidade (os
chamados 3 Vs), reconhecendo também a “veracidade” como outra possível característica defendida por outros
autores (CAVALCANTI, Jose Carlos. The new ABC of ICTs (analytics + big data + cloud computing): a complex
trade off between IT and CT costs. In: MARTINS, Jorge Tiago; MOLNAR, Andreea (Org.). Handbook of research on
innovation in information retrieval, analysis and management. Hershey: IGI Global, 2016).
48
Cf. MCNULTY, Eileen. Understanding big data: the seven V’s. Dataconomy, 22 maio 2014. Disponível em: <http://
dataconomy.com/2014/05/seven-vs-big-data/>. Acesso em: 27 mar. 2017.
49
Ver: SANTOS, Maike Wile dos. O big data somos nós: a humanidade de nossos dados. Jota, 16 mar. 2017.
Disponível em: <https://jota.info/colunas/agenda-da-privacidade-e-da-protecao-de-dados/o-big-data-somos-
nos-a-humanidade-de-nossos-dados-16032017>. Acesso em: 27 mar. 2017.
50
GRASSEGGER, Hannes; KROGERUS, Mikael. The data that turned the world upside down. Motherboard, 28 jan.
2017. Disponível em: <https://motherboard.vice.com/en_us/article/how-our-likes-helped-trump-win>. Acesso
em: 27 mar. 2017.
51
Tradução livre dos autores. Lê-se no original: “Anyone who has not spent the last five years living on another planet
will be familiar with the term Big Data. Big Data means, in essence, that everything we do, both on and offline, leaves digital
traces. Every purchase we make with our cards, every search we type into Google, every movement we make when our mobile
phone is in our pocket, every ‘like’ is stored. Especially every ‘like’. For a long time, it was not tirely clear what use this data
could have – except, perhaps, that we might find ads for high blood pressure remedies just after we’ve Googled ‘reduce blood
pressure’.”
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
407

A combinação entre objetos inteligentes e Big Data poderá alterar significativamente


a maneira como vivemos.52 Algumas pesquisas53 estimam que, em 2020, a quantidade
de objetos interconectados passará dos 25 bilhões, podendo chegar a 50 bilhões de
dispositivos inteligentes. As projeções para o impacto desse cenário de hiperconexão na
economia são impressionantes. A estimativa de impacto econômico global corresponde
a mais de US$ 11 trilhões em 2025.54
De fato, os objetos inteligentes e interconectados podem efetivamente nos ajudar
na resolução de problemas reais. Do ponto de vista dos consumidores, os produtos que
hoje estão integrados com a tecnologia da internet das coisas são das mais variadas áreas
e possuem funções diversas, desde eletrodomésticos,55 remédios, meios de transporte
até brinquedos.
Existem também, hoje, as peças de vestuário que possuem conectividade de IoT,
fazendo parte de uma categoria denominada wearables. Essas tecnologias vestíveis consis­
tem em dispositivos que estão conectados uns aos outros produzindo informações sobre
os usuários. Entre os principais produtos se destacam as pulseiras e tênis que monitoram
a atividade física do usuário, além de relógios e óculos inteligentes que pretendem prover
ao usuário uma experiência de imersão na própria realidade.56
Contudo, transformar um objeto analógico em inteligente, além de encarecer o
produto e deixá-lo sujeito a falhas que não teria a priori, pode gerar riscos também em
relação à segurança e à privacidade.57 Estamos falando de um contexto que envolve um
volume massivo de dados sendo processado, na escala de bilhões de dados diariamente,
permitindo que seja possível conhecer cada vez mais os indivíduos em seus hábitos,
preferências, desejos, tentando, assim, adivinhar suas escolhas.

52
FTC STAFF REPORT. Internet of things: privacy & security in a connected world. [S.l.]: [s.n.], 2015. Disponível em: <www.
ftc.gov/system/files/documents/reports/federal-trade-commission-staff-report-november-2013-workshop-
entitled-internet-things-privacy/150127iotrpt.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2017.
53
Vide BARKER, Colin. 25 billion connected devices by 2020 to build the Internet of Things. ZDNet, 11 nov. 2014.
Disponível em: <www.zdnet.com/article/25-billion-connected-devices-by-2020-to-build-the-internet-of-things/>.
Acesso em: 27 mar. 2017.
54
Cf. ROSE, Karen; ELDRIDGE, Scott; CHAPIN, Lyman. The internet of things: an overview. Understanding the
issues and challenges of a more connected world. The Internet Society, out. 2015, p. 1; 4. Disponível em: <www.
internetsociety.org/sites/default/files/ISOC-IoT-Overview-20151022.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2017.
55
“Geladeiras inteligentes são talvez o mais comum dos exemplos quando falamos sobre Internet das Coisas.
O refrigerador Samsung RF28HMELBSR/AA, por exemplo, é equipado com uma tela LCD capaz de reproduzir
a tela de seu smartphone no refrigerador. É possível reproduzir vídeos e músicas, consultar a previsão do
tempo e até mesmo fazer compras online enquanto verifica na geladeira os itens que precisam ser comprados.
O refrigerador traz ainda um app chamado Epicurious, que permite a consulta de receitas online” (NASCIMENTO
Rodrigo, O que, de fato, é internet das coisas e que revolução ela pode trazer? Computerworld, 12 mar. 2015.
Disponível em: <http://computerworld.com.br/negocios/2015/03/12/o-que-de-fato-e-internet-das-coisas-e-que-
revolucao-ela-pode-trazer/>. Acesso em: 29 mar. 2017).
56
Confira-se LANDIM, Wikerson. Wearables: será que esta moda pega? Tec Mundo, jan. 2014. Disponível em:
<www.tecmundo.com.br/tecnologia/49699-wearables-sera-que-esta-moda-pega-.htm>. Acesso em: 31 jan. 2017;
DARMOUR, Jennifer. The internet of you: when wearable tech and the internet of things collide. Artefact Group,
[s.d.]. Disponível em: <www.artefactgroup.com/articles/the-internet-of-you-when-wearable-tech-and-the-
internet-of-things-collide/>. Acesso em: 29 mar. 2017; O’BRIEN, Ciara. Wearables: Samsung chases fitness fans
with gear fit 2. The Irish Times, ago. 2016. Disponível em: <www.irishtimes.com/business/technology/wearables-
samsung-chases-fitness-fans-with-gear-fit-2-1.2763512>. Acesso em: 29 mar. 2017.
57
Sobre o tema, vide ROMAN, Rodrigo; ZHOU, Jianying; LOPEZ, Javier. On the features and challenges of
security and privacy in distributed internet of things. Computer Networks, n. 57. p. 2266-2279, 2013; WEBER, Rolf
H. Internet of things: new security and privacy challenges. Computer Law & Security Review, n. 26. p. 23-30, 2010.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
408 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Tal necessidade foi bem enxergada pelo mercado, que tem explorado a possibi­
lidade de personalização e customização automática de conteúdo nas plataformas
digitais, inclusive capitalizando essa filtragem com publicidade direcionada por meio
de rastreamento de cookies e processos de retargeting ou mídia programática (behavioral
retargeting).58
A Federal Trade Commission (FTC) dos Estados Unidos demonstrou preocupações
com a segurança do ecossistema de IoT.59 Por conta disso, questionou o Department of
Commerce recentemente sobre o assunto.60 A FTC estima que cerca de 10.000 habitantes
podem gerar 150 milhões de data points diariamente.61 Os dispositivos captam as
informações, enviam para a central e depois compilam os dados de acordo com as
preferências do usuário.62
Não se tem, hoje, clareza do tratamento despendido aos dados.63 Aspectos sobre a
coleta, o compartilhamento e o potencial uso deles por terceiros ainda são desconhecidos
pelos consumidores. Isso tem competência para abalar – e, em certo sentido, já abala64 – a
confiança dos usuários nos produtos conectados.65
Salienta-se, ainda, o fato de que as falhas de segurança abrem espaço para ataques
visando o acesso às informações geradas pelos próprios dispositivos. Além disso, os
aparelhos inteligentes, quando invadidos, podem gerar problemas não só para o aparelho
em si, interferindo também na própria infraestrutura da rede. Foi o que aconteceu no
final de 2016 com o ataque DDoS,66 ocasião na qual hackers conseguiram suspender
diversos sites invadindo os servidores por meio de câmeras de segurança, revelando
a vulnerabilidade desses dispositivos. Portanto, questões relacionadas à segurança e
proteção de dados pessoais são igualmente importantes para que a IoT se consolide
como o próximo passo da internet.

58
OLIVEIRA, Márcio. Em marketing, big data não é sobre dados, é sobre pessoas! Exame, out. 2016. Disponível em:
<http://exame.abril.com.br/blog/relacionamento-antes-do-marketing/em-marketing-bigdata-nao-e-sobre-dados-
e-sobre-pessoas/>. Acesso em: 31 jan. 2017.
59
FTC STAFF REPORT. Internet of things: privacy & security in a connected world. [S.l.]: [s.n.], 2015. Disponível
em: <www.ftc.gov/system/files/documents/reports/federal-trade-commission-staff-report-november-2013-
workshop-entitled-internet-things-privacy/150127iotrpt.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2017.
60
FISHER, Dennis. The internet of dumb things. Digital Guardian, 13 out. 2016b. Disponível em: <https://
digitalguardian.com/blog/internet-dumb-things>. Acesso em: 1 fev. 2017; FISHER, Dennis. FTC warns of security
and privacy risks in IoT devices. On The Wire, 3 jun. 2016a. Disponível em: <www.onthewire.io/ftc-warns-of-
security-and-privacy-risks-in-iot-devices/>. Acesso em: 31 jan. 2017.
61
FTC STAFF REPORT. Op. cit.
62
FISHER. Op. cit.
63
ACCENTURE. Digital trust in the IoT era, [s.d.]. Disponível em: <www.accenture.com/t20160318T035041__w__/
us-en/_acnmedia/Accenture/Conversion-Assets/LandingPage/Documents/3/Accenture-3-LT-3-Digital-Trust-
IoT-Era.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2017.
64
BOLTON, David. 100% of reported vulnerabilities in the Internet of Things are Avoidable. Applause, set. 2016.
Disponível em: <https://arc.applause.com/2016/09/12/internet-of-things-security-privacy/>. Acesso em: 31 jan.
2017; CONSUMER TECHNOLOGY ASSOCIATION. Internet of things: a framework for the next administration
(white paper), 2016. Disponível em: <www.cta.tech/cta/media/policyImages/policyPDFs/CTA-Internet-of-
Things-A-Framework-for-the-Next-Administration.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2017; ACCENTURE. “Digital trust
in the IoT era”, [s.d.], op.cit.; PLOUFFE, James. The ghost of IoT yet to come: the internet of (insecure) things in
2017. Mobile Iron, 23 dez. 2016. Disponível em: <www.mobileiron.com/en/smartwork-blog/ghost-iot-yet-come-
internet-insecure-things-2017>. Acesso em: 31 jan. 2017.
65
MEOLA, Andrew. How the internet of things will affect security & privacy. Business Insider, 19 dez. 2016.
Disponível em: <www.businessinsider.com/internet-of-things-security-privacy-2016-8>. Acesso em: 31 jan. 2017.
66
COBB, Stephen. 10 things to know about the october 21 DDoS attacks. We Live Security, 24 out. 2016. Disponível
em: <www.welivesecurity.com/2016/10/24/10-things-know-october-21-iot-ddos-attacks/>. Acesso em: 31 jan.
2017.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
409

Diante desse cenário, uma das questões de suma importância ligadas à proteção
dos dados pessoais diz respeito a quem os controla e quem tem acesso a eles. No modelo
atual, as empresas de tecnologias são dotadas desse controle e possuem tal acesso.
O próprio indivíduo em relação ao qual as informações são coletadas, muitas vezes,
sequer tem conhecimento de que seus dados estão sendo armazenados e, quando sabe,
não é raro que desconheça a finalidade de tal coleta e armazenamento. Uma sociedade
que se pretenda transparente e democrática não pode prescindir de formas claras e justas
de gerenciamento de dados. É preciso dotar os indivíduos do controle de seus próprios
dados e dar-lhes poder para decidir o que, com quem, quando e para que compartilhar.

3 Projetos de gerenciamento pessoal de dados


A interação on-line é constante e está presente na vida de quase todos os indi­
víduos. No mundo contemporâneo hiperconectado, a obtenção de informações e
notícias se dá cada vez mais através da internet, a contratação de produtos e serviços
se dá crescentemente por meio digital, bem como o estabelecimento de contato social
e profissional se dá cada vez mais através das redes sociais. Isso, porém, muitas vezes,
passa despercebido pelos usuários, que não se dão conta do rastro digital que produzem
sobre si próprios. Os dados produzidos, não raro, são armazenados por um longo
período de tempo. O controle deste rastro tem se tornado um problema tecnológico e
social, já que de sua análise é possível obter informações sobre o comportamento, as
preferências e necessidades pessoais de uma determinada pessoa e até mesmo prever
suas ações futuras.67
Um exemplo ligado à previsão de ações futuras das pessoas com base em seus
hábitos de compra que demonstra o perigo do uso livre das informações pessoais é o
cruzamento de dados feitos por empresas de venda. A Target cria uma identidade de
cada consumidor por meio de informações obtidas quando o cliente usa o cartão de
crédito, um cupom promocional, entra em contato com o SAC ou visita a loja on-line.
A empresa percebeu que se uma mulher compra alguns itens em conjunto ou em maior
quantidade, como loções sem cheiro, loções de manteiga de coco, suplementos com
zinco e magnésio e uma bolsa grande, há 87% de chance de ela estar grávida há três
meses.68 Um caso interessante ocorreu em 2012, quando a empresa entregou cupons de
desconto por Correio a uma mulher, mas seu pai os recebeu, o que acabou adiantando
o recebimento da notícia pelo pai.69
Não bastasse essa coleta de dados acerca dos indivíduos e a formação de perfis
individuais, os indivíduos não costumam ter acesso aos dados pessoais sobre eles

67
SJÖBERG, Mats et al. Digital Me: Controlling and Making Sense of My Digital Footprint. In: GAMBERINI, L. et
al. (Ed.). Symbiotic Interaction: Lecture notes in computer science. Padua: Springer, 2016, p. 155-156.
68
RODRIGUES, Alexandre; SANTOS, Priscilla. A ciência que faz você comprar mais. Galileu, [s.d.]. Disponível
em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI317687-17579,00-A+CIENCIA+QUE+FAZ+VOCE+
COMPRAR+MAIS.html>. Acesso em: 25 set. 2017; REDAÇÃO. Varejista norte-americana descobre até gravidez
de clientes com a ajuda de software. Olhar Digital, fev. 2012. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/
varejista-norte-americana-descobre-gravidez-de-clientes-com-a-ajuda-de-software/24231>. Acesso em: 25 set.
2017.
69
DUHIGG, Charles. How companies know your secrets. The New York Times, fev. 2012. Disponível em: <http://
www.nytimes.com/2012/02/19/magazine/shopping-habits.html?pagewanted=1&_r=1&hp>. Acesso em: 25 set.
2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
410 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

gerados. As grandes empresas da internet, como Google e Facebook, centralizam as


informações coletadas e incentivam as pessoas a utilizarem apenas suas ferramentas,
já que não há compartilhamento de informações entre elas, o que vai de encontro à
concorrência no mercado e à inovação. O usuário não controla seus dados pessoais.70 Uma
das soluções recentemente propostas para este problema, conforme demonstraremos
a partir de agora, aponta para dados pessoais centrados no ser humano, ou seja, os
próprios indivíduos deveriam controlar seus dados.

3.1 Digital me
Trata-se de um “sistema de armazenamento que coleta o rastro digital do indivíduo
a partir de dispositivos informáticos pessoais e cujo design está focado em permitir
diferentes tipos de machine learning e aplicativos de processamento de informações para
operar no repositório privado de dados controlado pelo usuário”.71 O sistema mistura
a manipulação interativa com a análise automatizada, o que é de capital importância
para que grandes quantidades de dados pessoais sejam eficientemente gerenciadas.72
Ele pode ser aplicado em diversos cenários de gerenciamento de dados pessoais e está
disponível on-line como software livre e de código aberto.73
Os pesquisadores que desenvolveram o DiMe pontuam que duas abordagens
principais foram propostas para permitir o controle de dados pessoais centrado no ser
humano: 1) o primeiro consiste em centralizar o armazenamento dos dados em si; 2) o
segundo, em concentrar-se no gerenciamento dos fluxos de dados entre fontes e usuários
de dados74 – o indivíduo controla o uso de dados pessoais, que é a lógica do modelo
MyData, o qual será explorado mais à frente.
Apesar de o Digital Me centralizar o armazenamento de dados, há diferenças em
relação a outros personal data storage (PDS), pois: 1) o desenvolvimento do DiMe está
focado na integração com um amplo conjunto de loggers que acompanham o rastro
digital; e 2) o DiMe fornece uma camada de representação para eventos de dados focada
em fornecer soluções de machine learning, estruturar e conectar diferentes dados.75
O DiMe fornece uma interface programática (API) para dois tipos de clientes:
loggers (componentes de software (ou hardware + software) que gravam eventos relacionados
às ações ou ambiente de uma pessoa e enviam-nas para serem armazenadas no próprio
servidor DiMe da pessoa) e aplicações (utilizam os eventos armazenados no DiMe pelos
registradores. Normalmente, apresentam ao usuário uma interface de uso gráfica,
onde uma parte dos dados é visualizada e pode ser manipulada, ou a visão dos dados
pode ser modificada).76 Através do painel de ferramentas, o usuário sempre pode se
deslogar do DiMe, excluir os eventos já gravados e escolher quais dados compartilhar.

70
SJÖBERG. Op. cit., p. 155-167.
71
Lê-se no original: “DiMe is a personal data storage system, which collects the individual’s digital footprint from personal
computing devices, and whose design is focused on enabling different kinds of machine learning and information processing
applications to operate in the user-controlled private data repository”. Ibid., p. 2.
72
Ibid., p. 155-167.
73
Cf. <http://reknow.fi/dime>.
74
SJÖBERG. Op. cit., p. 158-159.
75
Ibid., p. 159.
76
Ibid., p. 159-160.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
411

Os componentes essenciais do núcleo do software DiMe são a interface API, o banco de


dados, o mecanismo de pesquisa e a estrutura de extração de recursos.77
Um dos principais diferenciais no design do Digital Me é o fato de incluir
capacidades de modelagem baseadas em machine learning de ponta desde o início, cujos
algoritmos devem ser executados no próprio servidor central do DiMe ou externamente,
através da API.78
O DiMe oferece uma memória digital que pode fornecer informações sobre o
próprio comportamento da pessoa e pode ser usada em diferentes aplicativos. Observe
que representações e tags de vetores são recursos para aplicativos. Há, também, exemplos
de aplicações, como pesquisa em linha do tempo, recall associativo, busca proativa, sala
de reuniões inteligente, pesquisa de perfil e competência.79
A memória digital criada através do DiMe fica contida nessa plataforma, que,
por sua vez, é controlada pelo indivíduo a quem a memória se refere. Isso contribui
para combater os perigos associados às já mencionadas técnicas de tracking, profiling e
targeting, uma vez que caberá ao próprio usuário decidir a destinação conferida a esta
memória, evitando o uso indevido e desprovido de consentimento consciente por parte
das empresas.
A ideia do modelo não é simplesmente reunir os dados, porque os indivíduos
devem poder compreender seus próprios dados com sistemas que são capazes de
organizá-los e visualizá-los. Portanto, entre as várias maneiras de gerenciar dados pes­
soais, alguns pesquisadores se focam em duas abordagens complementares:80 1) repre­
sentações vetoriais geradas automaticamente: “utilizam técnicas de machine learning
de última geração para criar representações vetoriais altamente expressivas de forma
automatizada sem supervisão”.81 Além disso, elas podem ser usadas para aprender
relacionamentos semânticos e visualizar a estrutura das informações coletadas ou
ajudar a encontrar eventos ou documentos relacionados; e 2) modelagem interativa de
etiquetas (tags): busca incluir o indivíduo no ciclo de organização de dados através da
utilização de tags, que consistem em palavras ou frases-chave para classificar os eventos
ou documentos coletados. O sistema é capaz de aprender as categorizações utilizadas
pelo indivíduo e classificar os novos eventos sozinho, organizando todo o rastro
digital. Interessante notar que, “com o padrão de design de marcação convencional, as
etiquetas rotulam os eventos como sendo mapeados em várias categorias potencialmente
sobrepostas em vez do sistema de categoria hierárquica tradicional comumente usado,
por exemplo, em sistemas de arquivos”.82
Todas essas formas de lidar com os dados pessoais permitem que o indivíduo
retome o controle de seus dados e os organize de modo mais proveitoso e significativo
para si mesmo.

77
Ibid., p. 160-161.
78
Ibid., p. 162.
79
Ibid., p. 165-166.
80
Ibid., p. 165-166.
81
Ibid., p. 162.
82
Ibid., passim.
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412 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3.2 Hub of all things (hatdex)


Com o desenvolvimento da Internet das Coisas, a quantidade de dados coletada
pelas instituições tem aumentado drasticamente e nos deixa mais preocupados com
privacidade, confidencialidade, segurança e confiança. Todos os dados que produzimos
sobre nós na internet são coletados por alguém. Os dados pessoais, como o que lemos,
o que compramos e as músicas que ouvimos, serão usados por empresas para orientar
sua política de mercado para nossos desejos e hábitos e de acordo com a maneira como
nos comportamos. Os indivíduos não possuem controle de seus próprios dados pessoais,
que pertencem àqueles que os coletam, criando uma relação vertical. No entanto, esse
cenário pode mudar e é possível horizontalizar essa relação.
A regulamentação estatal excessiva visando a proteção da privacidade poderia
criar fortes barreiras à inovação pelas empresas, impedindo o desenvolvimento de
novas tecnologias. Procurando por uma solução para a economia digital, um grupo
formado por pesquisadores de seis universidades83 desenvolveu o projeto Hub of All
Things (HAT), fundado pelo Programa de Economia Digital do Conselho de Pesquisa
do Reino Unido. O HAT trata-se de uma plataforma de dados pessoais que vai além de
um local seguro para armazenar dados: ele é o próprio assistente de dados pessoais.
Através dele, as pessoas podem reivindicar seus dados, combiná-los e organizá-los de
forma criativa e da maneira que considerem mais pertinente. Além disso, os indivíduos
têm o poder de controlar com quem irão compartilhar seus dados e podem analisar
suas próprias informações, o que lhes permite atuar de modo mais inteligente. A
combinação dos dados e o recebimento de informações sobre cada um dos indivíduos
e serviços permite que sejam criados aplicativos e dispositivos conectados específicos,
que ajudarão as pessoas a coletar e analisar seus próprios dados. Através do HAT, será
fornecido o substrato necessário para criar uma loja de aplicativos ou algum tipo de
mercado para seus dados pessoais, isso por conta das seguintes vantagens atreladas aos
dados presentes no aplicativo:
(i) eles são armazenados em um único lugar;
(ii) são de propriedade do indivíduo; e
(iii) fornecem uma imagem detalhada de como usamos, experimentamos e
consumimos produtos e serviços.
O HAT cria um tipo de banco de dados horizontal, afastando o problema da
ver­ticalidade da relação. Ou seja, os dados não estão mais numa relação hierárquica
em que os usuários deixam de ser donos dos seus próprios dados e passam a ser
meras fontes de informações e objeto do direcionamento de marketing, mas passam a
ter controle dos dados que produzem sobre si mesmos e a definir quem terá acesso a
eles e as finalidades que lhes serão conferidas. A compreensão sobre o significado dos
dados requer contextualização, e, com isso, eles começam a se tornar valiosos para os
indivíduos. Os dados são organizados de forma que ajudam a maneira como vivemos
nossas vidas. As empresas poderão desenvolver produtos que sejam mais úteis e oferecer
melhores serviços de acordo com o que os indivíduos desejam compartilhar com elas.

83
Os pesquisadores são de Universidades do Reino Unido: de Cambridge, Edimburgo, Nottingham, Surrey,
Warmick e Oeste da Inglaterra.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
413

Aplicativos analisarão e ajudarão as pessoas a organizar e visualizar seus dados. Os


consumidores se tornarão mais inteligentes e mais capacitados e, ao mesmo tempo, as
empresas poderão produzir melhores serviços e melhores produtos.
Ao criar uma plataforma horizontal que se adapta às vidas humanas, a próxima
etapa da Internet também é criada: a das pessoas e das coisas. Além disso, surgirão novos
modelos comerciais e econômicos de tipo horizontal centrados no ser humano. A ideia
é que o repositório de dados horizontais e significativos deixa os indivíduos decidirem
se querem negociar ou trocá-los com as empresas por produtos e serviços e também os
ajuda a tomar decisões através da integração e contextualização das ferramentas. Para
isso, o HAT é uma plataforma de código aberto.
Uma vez que todos os dados sobre um indivíduo estão localizados em um
único lugar, é importante ter atenção à segurança. Existe um projeto adjacente que está
desenvolvendo um sistema de segurança distribuído que permite que os dados que o
indivíduo possui permaneçam onde estão (por exemplo, dados da universidade) e todos
os dados estão integrados em um local onde é possível visualizá-los.84
A tecnologia da plataforma HAT pode ser explicada em seis partes. Primeiro,
o HAT é uma plataforma aberta.85 É facilmente adaptável para qualquer aplicação
personalizada, está evoluindo continuamente para maior controle e funcionabilidade,
entre outras coisas.
Em segundo lugar, há um painel de controle para visualizar todas as informações
no HAT: o RUMPEL.86 Entre suas funcionalidades, os usuários podem gerenciar a
conexão de dados (data plug) e rastrear dados recebidos de vários serviços e aplicativos
da internet. Além disso, podem procurar suas localizações a partir do ponto em que
conectaram os dados locais.
Em terceiro lugar, o DEX (data exchange)87 é um serviço que consiste em: i) pro­
cessos de troca de dados; ii) registro de transações de dados e estatísticas em todo
o ecossistema; iii) HAT Access, mediação para aplicativos e desenvolvedores. “Esses
processos registram todas as atividades no ecossistema HAT, respondem aos pedidos
para criar Data Debits, instalam os Data Plugs, mantêm transações de dados, verificam
trocas e enviam e recebem dados entre as partes de forma rápida, precisa e segura”.88
Também relata as estatísticas do ecossistema, bem como a integração de conjuntos e
serviços de dados para terceiros no sistema.
O outro aspecto é o mercado (marketsquare).89 É permitido que os indivíduos
comprem e vendam aplicativos HAT, ofereçam dados (pode-se comprar e vender dados
autorizados) e outros bens e serviços no mercado habilitado para o HAT. Os desen­
volvedores e os empresários podem aprender a hospedar novas aplicações HAT, as
empresas podem colocar suas ofertas de dados para o público e os indivíduos podem
acessar aplicativos e ofertas personalizadas. Além disso, há envolvimento e apoio da
comunidade.

84
Uma análise aprofundada sobre o projeto de segurança fugiria do escopo deste artigo. Mais informações podem
ser conferidas em <http://nymote.org/>.
85
Cf. <https://hubofallthings.com>.
86
Cf. <https://marketsquare.hubofallthings.com/c/apps/rumpel>.
87
Cf. <http://developers.hubofallthings.com/guides/dex>.
88
Idem.
89
Cf. <https://marketsquare.hubofallthings.com>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
414 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O DataBuyer é o “próprio centro de dados da MarketSquare, baseado na confiança,


na transparência e na privacidade do usuário. Marcas, departamentos governamentais,
organizações e universidades podem usar o DataBuyer para configurar ofertas de dados,
solicitando dados específicos dos usuários em troca de serviços, recompensas, descontos
ou mesmo dinheiro. A estrutura de troca de dados em que o DataBuyer é construído
significa que apenas os dados solicitados são recebidos, permitindo que os usuários
se mantenham completamente anônimos e sua privacidade seja garantida em todos
os momentos. O DataBuyer é um mercado aberto, onde usuários com HATs podem
descobrir ofertas criadas por várias organizações, reivindicar os benefícios que oferecem
ao compartilhar seus dados e contribuir ativamente para a economia de troca de dados”.90
Por último, mas não menos importante, o Milliner Service91 é o software de
implantação HAT usado no HATs-on-Demand e HATs-as-a-Service. Seu objetivo é conferir
dinamicidade na implantação do HAT. Assim, oferece armazenamento padrão para cada
HAT, mecanismo para iniciá-lo e gerenciá-lo e regras para backup e recuperação do HAT.

3.3 MyData
Os dados pessoais têm um valor social, econômico e prático cada vez mais
signi­ficativo, mas sua aplicação e uso mais amplo são muitas vezes confundidos com
previsões negativas de um futuro desprovido de privacidade individual.92 O MyData
consiste em uma estrutura com um sistema centrado no ser humano (diferente do
sistema de organização atual) e baseada em direitos para o gerenciamento de dados.
Os indivíduos devem estar no centro do controle de seus próprios dados e seus direitos
humanos digitais devem ser fortalecidos ao mesmo tempo em que as empresas têm
a possibilidade de desenvolver serviços inovadores baseadas na confiança mútua.93
O MyData permite a coleta e o uso de dados pessoais de forma a maximizar os benefícios
obtidos, minimizando a privacidade perdida. Assim, esses valiosos dados permitirão
que os indivíduos interajam com fornecedores, que podem oferecer serviços de dados
e consumo melhores.94
Essa infraestrutura fornece aos indivíduos melhores serviços baseados em dados e
maior privacidade e transparência, aumenta a liberdade de escolha, empodera-os, entre
outros benefícios. A gestão de consentimento é o principal mecanismo para permitir e
aplicar o uso legal de dados. Nesse modelo, os consentimentos são dinâmicos, fáceis de
compreender, legíveis por máquina, padronizados e gerenciados de forma coordenada.
Um formato comum permitirá que cada indivíduo delegue o processamento de dados
a terceiros ou reutilize o uso de dados de novas maneiras.95

90
Cf. <https://marketsquare.hubofallthings.com/c/apps/data-buyer>.
91
Cf. <http://www.hatdex.org/hat-milliner-service>.
92
POIKOLA, Antti; KUIKKANIEMI, Kai; HONKO, Harri. MyData – A Nordic Model for human-centered personal
data management and processing. Ministry of Transport and Communications, [s.d.], p. 3. Disponível em: <https://
www.lvm.fi/documents/20181/859937/MyData-nordic-model/>. Acesso em: 28 set. 2017.
93
Ibid., p. 1.
94
Ibid., pp. 3 e 4.
95
Ibid., p. 7.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
415

O MyData equipa os indivíduos para controlar quem usa seus dados pessoais,
estipular para quais fins podem ser usados e dar consentimento informado de acordo
com os regulamentos de proteção de dados pessoais. Os fluxos de dados tornam-se
mais transparentes, abrangentes e gerenciáveis. Os usuários também podem desativar
fluxos de informações e retirar o consentimento. Por fim, os consentimentos legíveis
por máquina podem ser visualizados, comparados e processados automaticamente.96
Além disso, o MyData é muito útil para as empresas, porque ajudará a integrar
serviços complementares de terceiros em seus serviços principais; simplificará as
operações dentro dos marcos regulatórios atuais e futuros e permitirá o uso de dados para
fins exploratórios; e possibilitará a criação de novos negócios com base no processamento
e gerenciamento de dados.97
É interessante notar que o MyData é complementar ao Big Data, e vice-versa,
porque, sem abordar a perspectiva humana, muitos dos potenciais usos inovadores do
Big Data podem se tornar impossíveis se os indivíduos os percebem como invasivos,
obscuros e inaceitáveis.
Essa abordagem tem três princípios que requerem maturação:
(i) controle sobre os dados centrado no ser humano: o ser humano é um ator ativo na
gestão de sua vida on-line e off-line e “tem o direito de acessar seus dados pessoais
e controlar suas configurações de privacidade”,98 tanto quanto seja necessário para
efetivá-los;
(ii) dados utilizáveis: é necessário que os dados pessoais sejam tecnicamente fáceis
de acessar e legíveis pelas APIs (Application Programming Interfaces). O MyData converte
dados em um recurso reutilizável para criar serviços que ajudam os indivíduos a
gerenciar suas vidas;
(iii) ambiente de negócios aberto: a infraestrutura permite o gerenciamento descen­
tralizado de dados pessoais, melhora a interoperabilidade, facilita a conformidade
das empresas com os regulamentos de proteção de dados e permite que os indivíduos
troquem os provedores de serviços sem bloqueio de dados. Assim, “ao cumprir um con­
junto comum de padrões de dados pessoais, as empresas e os serviços permitem que
as pessoas exerçam a liberdade de escolha entre serviços interoperáveis”, evitando
que as pessoas tenham seus dados bloqueados em “serviços pertencentes a uma única
em­presa porque não podem exportá-los” e levá-los para outro provedor.99
As vantagens e possibilidades que se abrem para os indivíduos foram destacadas
por Doc Sealrs:

96
Ibid., p. 8.
97
Ibid., p. 8.
98
Tradução livre. Lê-se no original: “people have a right to access their personal data and control their privacy settings, as
well as the means necessary to enact these rights”. BELLI, Luca; SCHWARTZ, Molly; LOUZADA, Luiza. Selling your
soul while negotiating the conditions: from notice and consent to data control by design. Health Technology, 2017,
p. 8. Disponível em: <https://link.springer.com/article/10.1007/s12553-017-0185-3>. Acesso em: 28 set. 2017.
99
Tradução livre. Lê-se no original: “by complying to a common set of personal data standards, business and services
make it possible for people to exercise freedom of choice between interoperable services, preventing the current scenario
where people get ‘locked’ into silos of services owned by a single company because they cannot export their data and take it
elsewhere”. BELLI; SCHWARTZ; LOUZADA. Op. cit., p. 8.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
416 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

a) Gerenciar relacionamentos com organizações;


b) Fazer com que os indivíduos sejam os centros de coleta de seus próprios dados, de
modo que históricos de transações, registros de saúde, detalhes de associação, contratos de
serviços e outras formas de dados pessoais não sejam espalhados por uma floresta de silos;
c) Confere aos indivíduos a capacidade de compartilhar dados seletivamente, sem divulgar
mais informações pessoais do que o indivíduo permite;
d) Confere aos indivíduos a capacidade de controlar como seus dados são usados ​​por
outros e por quanto tempo. A critério do usuário, isso pode incluir acordos que exigem
que outros excluam os seus dados quando o relacionamento termina;
e) Confere aos indivíduos a capacidade de fazer valer seus próprios termos de serviço,
reduzindo ou eliminando a necessidade de termos de serviço por escrito organizados que
ninguém lê e todos devem “aceitar” de qualquer maneira;
f) Confere aos indivíduos meios para expressar suas demandas no mercado aberto, fora
de qualquer silo organizacional, sem divulgar informações pessoais desnecessárias;
g) Possui ferramentas básicas de gerenciamento de relacionamento em padrões abertos,
APIs abertas (interfaces de programas de aplicativos) e código aberto;
h) Faz com que os relacionamentos sejam trabalhados em ambos os sentidos.100

O MyData é uma infraestrutura mais robusta diante das simples APIs. O agregador
de dados que está sendo usado hoje em dia está evoluindo naturalmente para fora da
economia da API, mas apresenta desvantagens importantes: a falta de interoperabilidade
entre os agregadores de dados e o fato de que a atual fonte dos agregadores não reconhece
necessariamente a privacidade ou se envolve em uma relação transparente com os
indivíduos. A adoção da abordagem do MyData pode levar a uma simplificação sistêmica
do ecossistema de dados pessoais e essa simplificação pode ser feita gradualmente, pois
a plataforma pode ser desenvolvida e implantada em estágios, ao lado da evolução da
economia da API e do modelo de agregador de dados existente.101
Finalmente, é interessante observar como funciona a arquitetura do MyData,
baseia-se em contas interoperáveis e padronizadas:

O modelo fornece aos indivíduos uma maneira fácil de controlar seus dados pessoais
de um único lugar, mesmo que os dados sejam criados, armazenados e processados por
centenas de serviços diferentes. Para desenvolvedores, o modelo facilita o acesso a dados
e remove a dependência de agregadores de dados específicos. As contas geralmente serão
fornecidas por organizações que atuam como operadores MyData. Para organizações ou

100
Tradução livre. Lê-se no original: “a) Manage relationships with organizations; b) Make individuals the collection centers
for their own data, so that transaction histories, health records, membership details, service contracts, and other forms of
personal data are no longer scattered throughout a forest of silos; c) Give individuals the ability to share data selectively,
without disclosing more personal information than the individual allows; d) Give individuals the ability to control how their
data is used by others and for how long. At the individual’s discretion, this may include agreements requiring others to delete
the individual’s data when the relationship ends; e) Give individuals the ability to assert their own terms of service, reducing
or eliminating the need for organization-written terms of service that nobody reads and everybody has to ‘accept’ anyway; f)
Give individuals means for expressing demand in the open market, outside any organizational silo, without disclosing any
unnecessary personal information; g) Base relationship-managing tools on open standards, open APIs (application program
interfaces), and open code; h) Make relationships work both ways”. SEALRS, D. The intention economy: when customers
take charge. Cambridge: Harvard Business Review Press, 2012 apud BELLI; SCHWARTZ; LOUZADA. Op. cit., p.
8-9.
101
POIKOLA, Antti; KUIKKANIEMI, Kai; HONKO, Harri. MyData – A Nordic Model for human-centered personal
data management and processing. Ministry of Transport and Communications, [s.d.], p. 6. Disponível em: <https://
www.lvm.fi/documents/20181/859937/MyData-nordic-model/>. Acesso em: 28 set. 2017.
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417

indivíduos dispostos a ser independentes do operador, também será tecnicamente possível


hospedar contas individuais, assim como algumas pessoas atualmente optam por hospedar
seus próprios servidores de e-mail.102

A interoperabilidade é a principal vantagem proporcionada pelo MyData, mas


também é o principal desafio, porque requer maior padronização, mais redes de confiança
e formatos de dados. Na arquitetura MyData, os dados fluem de uma fonte de dados para
um serviço ou aplicativo. A função principal de uma conta MyData é habilitar a gestão
do consentimento. APIs permitem a interação entre fontes e usuários de dados.103 Como
já mencionado, a arquitetura padronizada torna as contas interoperáveis e permite que
os indivíduos troquem facilmente de operadores.

4 O gerenciamento pessoal de dados como alternativa para proteger a


privacidade
O atual modelo pelo qual os dados pessoais são geridos vai de encontro ao direito
à privacidade e à transparência, além de reduzir o poder de escolha dos indivíduos.
Os termos de uso dos serviços on-line oferecidos pelas empresas são longos a ponto de
desincentivar a leitura por parte do usuário e possuem termos técnicos não inteligíveis
pela população sem conhecimentos tecnológicos específicos. O mesmo ocorre com as
políticas de privacidade.
Pesquisa feita em 2017 por professores das Universidades de Michigan e de
Connecticut104 envolveu 543 participantes e mostrou que 74% dos usuários não leem as
políticas de privacidade e os que o fazem gastam, em média, apenas 74 segundos nessa
tarefa. O tempo médio gasto para a leitura dos termos de serviço é de 51 segundos. Para
Aleecia McDonald e Lorrier Cranor,105 o tempo de leitura das políticas de privacidade é
uma forma de pagamento. A leitura de todas as políticas levaria, anualmente, 201 horas
e equivaleria a $3.534 por ano e por cada usuário americano. Sob a perspectiva nacional,
a leitura detida dessas políticas faria com que o tempo gasto equivalesse a cerca de $781
bilhões por ano.
As pessoas não sabem o valor que seus dados possuem e, na maioria das vezes,
não querem lidar com a complicação de gerenciá-los.106 Com isso, as empresas utilizam
os dados da forma que lhes parece mais interessante, o que pode envolver a venda e
a transferência das informações para terceiros, aumentando os riscos de vazamento e,
portanto, de violação da privacidade. O fato de os dados serem não rivais, isto é, poderem
ser usados ao mesmo tempo por mais de uma pessoa ou algoritmo, cria complicações,

102
Ibid., p. 6.
103
Ibid., p. 8.
104
OBAR, J. A.; OELDORF-HIRSCH, A. The biggest lie on the internet: ignoring the privacy policies and terms of
service policies of social networking services. In: The 44th Research Conference on Communication, Information and
Internet Policy, 2016, p. 10-22. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757465>.
Acesso em: 28 set 2017.
105
MCDONALD, A. M.; CRANOR, L. F. The cost of reading privacy policies. I/S: A Journal of Law and Policy for the
Information Society, v. 4, n. 3, p. 543-568, 2008.
106
DATA IS GIVING rise to a new economy. Economist, 6 may 2017. Disponível em: <https://www.economist.com/
news/briefing/21721634-how-it-shaping-up-data-giving-rise-new-economy>. Acesso em: 3 jul. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
418 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

como dar-lhes destinação distinta daquela à qual o usuário manifestou consentimento.


Neste cenário, os dados pertencem àqueles que os coletam, e não à pessoa a quem eles
se referem.
Pesquisadores do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas
fizeram um estudo comparando 50 termos de uso e serviço de plataformas on-line
analisando como eles lidam com os direitos à liberdade de expressão, à privacidade
e ao devido processo legal. Os autores concluíram que, sob essa ótica, os termos são
deficientes. O maior objetivo das empresas ao os adotarem é “minimizar a exposição
à responsabilidade, mais do que detalhar sua obrigação de garantir respeito a certos
direitos”,107 o que explica tanto a terminologia vaga e ambígua adotada quanto “a ten­
dência de fornecer aos usuários o mínimo de informação possível, particularmente
nos aspectos cruciais para a proteção dos direitos humanos”.108 Neste sentido, o
estudo mostrou que apenas 12% das plataformas preveem em seus termos de uso
a possibilidade de, após o cancelamento da conta, os dados pessoais gerados pelos
usuários ou coletados de outra forma serem excluídos. 60% das plataformas sequer
fornecem informações sobre o assunto, ao passo que 10% afirmam expressamente que
não permitem a exclusão total dos dados. 18% fornecem informações contraditórias
nesse aspecto.109 Outro exemplo interessante consiste no fato de que 62% das empresas
possuem cláusulas exigindo consentimento dos usuários para o compartilhamento dos
dados com fins comerciais,110 o que nos leva a questionar se o consentimento dado pelo
usuário é efetivamente informado.
Os problemas ligados à privacidade e ao gerenciamento de dados por parte das
empresas nos levam a entender que o modelo de consentimento atualmente existente
falhou.111 Por esse modelo, os dados pessoais tornaram-se uma moeda que pode ser
utilizada pelos indivíduos para acessar conteúdo on-line. Em outras palavras, para
desfrutar de um serviço e não ser excluído de seu uso, o indivíduo consente que seus
dados pessoais sejam acessados, processados e divulgados.112 Observe o que lecionam
Luca Belli, Molly Schwartz e Luiza Louzada:

[P]ode-se argumentar que o esquema N&C [notice and consent] baseia-se em uma série de
reivindicações duvidosas. Em primeiro lugar, assume que os indivíduos que expressam
o seu consentimento para PP [Políticas de Privacidade] e ToS [Termos de Serviço] se
comportam como sujeitos econômicos racionais, com tempo e conhecimento para analisar
cuidadosamente o conteúdo de cada contrato. Em segundo lugar, ele postula que os
indivíduos possuem o poder de barganha necessário para aceitar livremente as disposições
incluídas em acordos contratuais definidos unilateralmente pelos prestadores. Tais

107
MAGRANI, Eduardo et al. Terms of Service and Human Rights: an analysis of online platform contracts. Rio de
Janeiro: Revan, 2016, p. 74.
108
Ibid., p. 74.
109
Ibid., p. 47.
110
Ibid., p. 53.
111
É o que afirmou Eduardo Magrani em entrevista à Mobile Time: “O modelo de consentimento falhou. O fato de
existir o termo de consentimento não interessa porque ninguém lê. A maioria das plataformas coleta mais dados
do que o necessário para o serviço que presta, o que não faz o menor sentido”. PAIVA, Fernando. ‘O modelo de
consentimento falhou’, diz o professor da FGV. Mobile Time, set. 2017. Disponível em: <http://www.mobiletime.
com.br/26/09/2017/-o-modelo-de-consentimento-falhou--diz-professor-da-fgv/477582/news.aspx>. Acesso em:
29 set. 2017.
112
BELLI; SCHWARTZ; LOUZADA. Op. cit., p. 4.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
419

suposições superestimam claramente tanto o poder de barganha quanto o grau, qualidade


e inteligibilidade da informação à disposição das pessoas que estão pesando os custos e
os benefícios de fornecer o seu consentimento.113

A ineficácia dos termos de serviço e a ausência de consentimento informado


ficam ainda mais claras no cenário da Internet das Coisas. Pesquisa de 2017 da Unisys
Security114 envolveu cidadãos de 13 países e mostrou que o brasileiro é o mais disposto
a fornecer seus dados pessoais em troca do conforto da conectividade entre seus dispo­
sitivos.115 A título de exemplo, 88% dos brasileiros são favoráveis à colocação de sensores
nas bagagens para haver comunicação com o sistema do aeroporto e seus itens sejam
localizados com mais facilidade; 83% aceitam que informações de saúde obtidas por
meio de marca-passos, dentre outros dispositivos, sejam compartilhadas com médicos;
e 50% concordam com o fornecimento a empresas de seguro-saúde de informações
ligadas a atividades físicas obtidas de relógios.
O grande interesse das empresas pelos dados pessoais deve-se, sobretudo, à sua
utilidade econômica, de modo que, no presente século, eles equivalem ao que o petróleo
significou no século passado.116 Além disso, os dados são transportados para milhares
de computadores que extraem determinados valores, como padrões, predições e outros
insights sobre as informações digitais dos indivíduos117 – o que pode ser empregado
nas políticas de marketing, em mecanismos de inteligência artificial e em serviços
“cognitivos”.118
Este quadro deve ser alterado. Como afirmou Elizabeth Denham, o ponto fulcral no
debate sobre proteção de dados reside, sempre, na necessidade de aumentar a confiança
que o público possui em relação à forma como seus dados pessoais são utilizados.119 No
atual cenário, para que o indivíduo tenha acesso a diversos produtos e serviços – por
mais simples que eles sejam, como a leitura de um jornal on-line –, ele se vê diante da
necessidade de conceder suas informações ao vendedor. Por isso, apenas se o consumidor
confiar no fornecedor do produto ou do serviço é que este será capaz de implementar
inovações em seu processo produtivo e nos artigos ofertados.

113
Tradução livre. Lê-se no original: “Therefore, it may be argued that the N&C scheme is grounded on a series of dubious
claims. Firstly, it assumes that individuals expressing their consent to PP and ToS behave as rational economic subjects,
having the time and knowledge to analyze carefully the content of every contractual agreement. Secondly, it postulates
that individuals hold the bargaining power necessary to freely accept the provisions included in contractual agreements
unilaterally defined by the providers. Such assumptions clearly overestimate both the bargaining power and the degree,
quality and intelligibility of the information at the disposal of individuals who are weighing the costs and benefits of
providing their consent”. Ibid., p. 4.
114
Cf. <http://www.unisys.com/unisys-security-index/>. Acesso em: 27 set. 2017.
115
SOPRANA, Paula. Internet das Coisas: Brasil lidera em disposição para fornecer dados pessoais. Época, set. 2017.
Disponível em: <http://epoca.globo.com/tecnologia/experiencias-digitais/noticia/2017/09/internet-das-coisas-
brasil-lidera-em-disposicao-para-fornecer-dados-pessoais.html>. Acesso em: 28 set. 2017.
116
DATA IS GIVING rise to a new economy. Economist, 6 may 2017. Disponível em: <https://www.economist.com/
news/briefing/21721634-how-it-shaping-up-data-giving-rise-new-economy>. Acesso em: 3 jul. 2017.
117
Ibid.
118
Ibid.
119
DENHAM, Elizabeth. Promoting privacy with innovation within the law (Speech). In: 30TH ANNUAL
CONFERENCE OF PRIVACY LAWS AND BUSINESS, Cambridge, 4 jul. 2017. Disponível em: <https://ico.org.
uk/about-the-ico/news-and-events/news-and-blogs/2017/07/promoting-privacy-with-innovation-within-the-
law/>. Acesso em: 05 jul. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
420 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

As informações digitais provêm de diferentes fontes e são extraídas, refinadas,


valoradas, compradas e vendidas de diferentes formas. Isso muda as regras do mercado
e demanda um novo approach regulatório.120 É preciso que os indivíduos possuam
controle sobre seus dados e tenham consciência do destino que lhes será conferido
após a autorização de uso, o que, dentre outros benefícios, irá aumentar a liberdade de
escolha dos usuários e os empoderará. Ademais, é preciso enfrentar o desafio de fazer
com que as pessoas entendam o valor que seus dados possuem e que a elas é devida
uma compensação pela concessão das informações.121
A confiança dos usuários na regulação da privacidade e da liberdade de informação
está intimamente conectada à democracia, como pontua Denham, e a economia digital é
dependente daquela confiança.122 Privacidade e inovação não precisam ser divergentes.
A tarefa de desenvolver uma infraestrutura na qual estes dois elementos sejam
convergentes é difícil e requer elevados níveis de dedicação. Contudo, a tarefa, que não é
impossível, é essencial: a privacidade demanda o mais alto nível de inovação.123 É preciso
que a privacidade e a inovação andem em conjunto, de forma que não se choquem e que
uma não atrapalhe a evolução da outra. Elas podem e devem caminhar paralelamente,
e é isto que o público espera e que o Direito exige.124
Tendo em vista estas necessidades de mudança, os projetos apresentados foram
desenvolvidos para conferir ao indivíduo o poder sobre suas informações e fazer com
que eles sejam os proprietários de seus dados – e não mais as empresas que os coletam.
Projetos desse viés podem ser a solução para superar uma internet dominada por
oligopólios, técnicas de profiling e vigilância generalizada.125
Todos os três partem do contexto atual de gerenciamento de dados, que é danoso
à privacidade e à transparência, e buscam empoderar os indivíduos, devolvendo-lhes
o controle sobre seus próprios dados. Estamos em constante interação digital e dei­
xamos rastros a cada clique que fazemos. A maioria dessas interações é armazenada
por um longo tempo, o que cria um histórico digital das pessoas e permite analisar
seus comportamentos, preferências, necessidades e até prever ações futuras. Em geral,
esses dados não estão disponíveis para os próprios usuários e eles sequer sabem quais
informações estão sendo coletadas e armazenadas. Os indivíduos não controlam seus
próprios dados – as empresas o fazem. Diante disso, os projetos têm um claro objetivo
em comum: fazer com que as pessoas controlem seus dados e decidam, com base em
informações claras e na organização útil de seus dados, se querem contratar determinado
produto ou serviço.
Os sistemas que estão sendo desenvolvidos têm sua visão central focada no ser
humano, mas também são úteis às empresas, que poderão criar produtos e serviços mais

120
DATA IS GIVING rise to a new economy. Economist, 6 may 2017. Disponível em: <https://www.economist.com/
news/briefing/21721634-how-it-shaping-up-data-giving-rise-new-economy>. Acesso em: 3 jul. 2017.
121
Ibid.
122
DENHAM. Op. cit.
123
É o que afirma CAVOUKIAN, Ann. Privacy by Design. IEEE Technology and Society Magazine, winter 2012, p. 19.
Confira-se: “I’d also like to clear up a common misconception that privacy somehow stifles innovation. Not true!
In fact, protecting privacy demands the highest level of innovation”.
124
DENHAM. Op. cit.
125
ABITEBOUL, Serge; ANDRÉ, Benjamin; KAPLAN, Daniel. Managing your digital life. Communications of the
ACM, v. 58, n. 5, p. 35, may 2015.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
421

proveitosos aos indivíduos. Um dos pontos em comum que também merece destaque
é o fato de que os projetos não se limitam a propor uma reunião de dados em um
único local, mas apresentam modelos pelos quais os indivíduos podem compreender
e organizar seus dados, de forma a obter uma visualização mais clara e compreensível
das informações constantes dos sistemas.
Nada obstante, a adesão a essas plataformas ainda é embrionária. As grandes
empresas ligadas à tecnologia e ao gerenciamento de dados, como Facebook e Google,
não têm interesse no avanço de projetos como esses, já que se trata de algo extremamente
disruptivo para seus modelos de negócios. Diante disso, ao lado da maior divulgação
desses projetos, é preciso pensar em formas de fazer com que os usuários se conscientizem
do valor e da importância de seus dados e saibam que podem ter o controle sobre eles,
definindo quem irá utilizá-los, quando e para quê.

Considerações finais
O mundo hiperconectado já é uma realidade. Vivemos constantemente ligados a
plataformas digitais e fazemos uso de serviços on-line, como jornais eletrônicos, redes
sociais e aplicativos de saúde. Esse cenário tem contribuído para a reinterpretação do
direito à privacidade e para seu tratamento diferenciado. O seminal entendimento
que via a privacidade como o direito de ser deixado só é insuficiente para lidar com as
demandas da sociedade da informação. Atualmente, a privacidade deve ser entendida
de forma funcional, assegurando ao sujeito a possibilidade de controlar as informações
sobre ele relacionadas.
Contudo, a forma como o mundo on-line lida com as informações pessoais tem
se distanciado do tratamento ideal da privacidade. Neste sentido, inúmeros serviços
na internet só podem ser acessados com a concessão de acesso a dados pessoais. Para
ler uma matéria de um jornal eletrônico, por exemplo, informações básicas devem ser
fornecidas. Para fazer uma compra em loja virtual, informações mais sensíveis como
endereço e dados de cartões de crédito são colhidas. Tendo em vista que muitos desses
serviços são essenciais à vida no século XXI, muitas pessoas não se importam em
concedê-los ou consideram que se trata de uma troca justa. Porém, isso é prejudicial
para os usuários, que perdem o controle sobre seus dados. Após coletar os dados, as
empresas lhes conferem fins distintos para os quais eles foram colhidos, fazendo, até
mesmo, o compartilhamento com terceiros.
Os dados possuem elevado valor econômico, o que muitos indivíduos desco­
nhecem. Para superar o desafio da privacidade e empoderar os indivíduos do controle
de seus próprios dados, projetos de gerenciamento pessoal de dados foram criados. Tais
projetos são benéficos para usuários, que retomam o controle sobre suas informações;
para a indústria, que pode elaborar serviços direcionados às demandas manifestadas
pelos indivíduos; e para a sociedade como um todo, uma vez que o direito fundamental
à privacidade resta protegido. Três iniciativas foram analisadas no presente estudo e
um breve resumo de seus aspectos principais é apresentado a seguir.
O Digital Me (DiMe) tem por base dados pessoais centrados no ser humano.
O sis­tema suporta a interação manipulativa e a análise automatizada – e a interação entre
ambos é fundamental para gerenciar de forma eficiente grandes quantidades de dados
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
422 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

pessoais. O desenvolvimento do DiMe foca-se na integração com um amplo número


de registradores que rastreiam informações digitais dos indivíduos e fornecem uma
representação em camadas de dados voltada para oferecer soluções de aprendizagem
de máquina para anotar, estruturar e conectar os dados. O sistema é dotado de uma
interface programática e através de seu painel presente no computador do usuário, este
será capaz de deslogar-se, deletar dados gravados e escolher as informações que deseja
compartilhar. Além disso, o sistema trabalha com tags, e com elas os indivíduos podem
categorizar amostras de dados e organizar seus rastros digitais. Dessa forma, os dados
são estruturados de uma forma que faz mais sentido no contexto pessoal.
O projeto Hub of All Things (HATDeX) busca criar uma relação horizontal no
gerenciamento de dados e se afastar da relação vertical, na qual o indivíduo tem seus
dados coletados e perde o controle sobre eles. O HATDeX consiste, para além de um
mecanismo de armazenamento, num assistente pessoal de dados. É possível que as
pessoas reclamem seus dados, os combinem e os organizem da forma como desejarem.
Os usuários têm, ainda, o controle de decidir com quem eles querem compartilhar seus
dados e quem pode analisar suas informações. A combinação de dados no sistema gera
dicas de produtos e serviços customizados para cada indivíduo. Através deste sistema,
os dados passam a ter um novo valor e um novo significado para os usuários. Eles
podem visualizar e contextualizar suas informações de uma melhor maneira, possuem
controle sobre seus dados e, portanto, empoderam-se. O projeto também é útil para as
empresas, que passam a produzir melhores serviços e produtos.
Por fim, o MyData consiste em uma estrutura com visão centrada no ser humano –
e não mais a atual visão centrada nos sistemas – e com um approach que tem os direitos
como base do gerenciamento de dados. Assim como no DiMe, através do MyData o
controle dos dados pessoais deve caber aos próprios indivíduos. Os direitos humanos
digitais devem ser fortalecidos ao mesmo tempo em que o mercado é incentivado a criar
novos serviços de dados pessoais baseados na confiança mútua. O sistema fornece aos
indivíduos melhores serviços de dados, mais proteção à privacidade e à transparência,
aumenta a liberdade de escolha e os empodera. O consentimento é mecanismo primário
para permitir o uso dos dados e trata-se de um consentimento dinâmico e de fácil
compreensão pelo usuário. Através do MyData, os indivíduos são capazes de controlar
quem usa seus dados pessoais, de estipular para qual propósito eles podem ser usados e
de dar um consentimento informado. O sistema também é útil para as empresas, pois irá
ajudá-las a integrar serviços complementares de terceiros, simplificar operações dentro
dos limites legais e criar novos negócios baseados no processamento e gerenciamento
de dados.
A internet deu uma nova dimensão às informações pessoais e à privacidade e
gerou o que conhecemos como Big Data, o qual vai muito além de um emaranhado de
dados: o Big Data somos nós. É a partir do reconhecimento da importância de nossos
dados e do desenvolvimento de projetos seguros que deem ao indivíduo controle sobre
suas informações que poderemos assegurar uma proteção efetiva da privacidade diante
das novas tecnologias.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
423

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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
426 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS
DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA
E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES

ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO

1 Introdução
Com vistas a garantir sua eficiência e sobrevivência perante as oscilações do meio
social, a atividade econômica se estrutura de maneira flexível e sensível às alterações do
ambiente. Elementos como assimetrias de informação, custos de produção, alterações
nos mercados consumidores, dentre outros, fazem com que os agentes econômicos
constantemente procurem alternativas de organização de suas atividades por meio das
quais sejam capazes de reduzir os custos de operação do mercado ou, na expressão
consagrada pela Nova Economia Institucional, os “custos de transação”. Ocorre que,
apesar de agentes econômicos responderem a incentivos econômicos, suas atividades
são estruturadas por intermédio de formas jurídicas, sejam essas formas contratuais
ou societárias, traduzindo em termos legais as suas demandas por graus maiores ou
menores de coordenação.
A distinção entre operações realizadas em mercados – traduzidas para o mundo
jurídico pelas normas de Direito dos Contratos – e estruturas hierárquicas de organização
da atividade econômica – representadas pelas formas jurídicas do Direito Societário
–, contudo, passa a apresentar problemas na medida em que os agentes econômicos
se organizam de forma cooperativa – como ocorre nas sociedades –, porém mediante
estruturas contratuais que não tenham o condão associativo, mantendo-se preservadas
as autonomias das partes. Trata-se das formas híbridas de organização da atividade
econômica, cujos contornos não se acomodam satisfatoriamente no Direito dos Contratos
e tampouco no Direito Societário, constituindo novas categorias jurídicas que requerem
a elaboração de um novo instrumental teórico-dogmático.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
428 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

As formas híbridas de organização da atividade econômica podem se apresentar


de forma singular por meio dos chamados contratos híbridos, relações contratuais de
longo prazo que exigem reflexões peculiares sobre sua governança. No entanto, tal debate
adquire contornos ainda mais complexos – e dificuldades ainda maiores de explicação
segundo as categorias dogmáticas disponíveis – quando a conjunção de diversas
relações contratuais adquire complexidade tal que passa a produzir efeitos similares
aos da integração vertical, porém sob forma que em nada se assemelha às hierarquias
tradicionais. Com vistas a endereçar adequadamente essas questões, de modo a, a um
só tempo, possibilitar o desenvolvimento econômico e garantir o atendimento dos
diversos interesses jurídicos relevantes envolvidos, é necessário repensar as bases do
Direito Comercial para a construção de uma dogmática que dê conta desses fenômenos
sem tolher suas potencialidades.
Neste trabalho, será apresentado um esboço de teorização dogmática do fenômeno
das networks ou redes contratuais, de maneira a inseri-las no campo do Direito Comercial,
enquanto ramo jurídico encarregado de garantir o desenvolvimento da atividade
econômica. Com isso, pretende-se antes de tudo posicionar tais formas jurídicas no
debate que constitui o cerne do Direito Societário: a adequada correlação entre poder
e responsabilidade, que adquire contornos peculiares quando deparada com os
mecanismos de responsabilização oriundos de áreas de regulação cogente, especialmente
aquelas preocupadas com interesses de vulneráveis. Com essas preocupações no
horizonte, o presente trabalho procurará apontar os principais motivos pelos quais é
necessário teorizar nova categoria jurídica para o endereçamento desses particulares
problemas econômicos e, ainda, fornecer subsídios para a construção teórica da categoria
jurídica sui generis das networks ou redes contratuais.

2 As transformações do Direito Contratual frente ao dinamismo das


relações econômicas
Ainda que não seja traço essencial do capitalismo,1 verifica-se forte tendência de
organização da atividade econômica por intermédio de empresas, unidades de decisão
e de ação por meio das quais agentes individuais se organizam hierarquicamente para
a exploração despersonalizada de suas atividades.2 No entanto, mesmo as corporações
foram, ao longo do tempo, ressignificadas para que deixassem de ser apenas instrumentos
legais de organização das transações dos indivíduos para constituírem instituições
sociais de organização da vida econômica, agregando à propriedade dos meios de
produção uma série de deveres e responsabilidades que, a partir de certo momento,
levará à segregação entre propriedade e controle.3 Cabe lembrar que, como intuiu Ronald
Coase, os agentes econômicos tenderão a buscar a estrutura organizacional que mais
eficientemente reduza custos de transação, seja ela mais aproximada do mercado e da

1
KOCKA, Jürgen. Capitalism: a short history. Princeton: Princeton University Press, 2014. p. 21.
2
KOCKA, Op. cit., p. 21-22.
3
BERLE, Adolf; MEANS, Gardiner. The modern corporation and private property. New York: The Macmillan
Company, 1933. p. 1.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
429

coordenação, da subordinação hierárquica ou, como se verá a seguir, de formas que se


localizam entre esses dois polos.4
Nesse sentido, a estrutura hierárquica e as decorrentes relações de subordinação
dela oriundas fazem do Direito Societário, conforme assinalou Wiedemann,5 um
“pequeno estado de direito” cuja formação da vontade deve ser organizada mediante
a implementação de procedimentos que assegurem a supremacia da maioria acionária
e, de outro lado, a proteção das minorias. O Direito Comercial, assim, “longe está de
ser apenas servo do mercado ou da racionalidade econômica”.6 Na verdade, a função
primordial do Direito nas relações societárias é a de assegurar a correspondência entre
poder e responsabilidade,7 motivo pelo qual o ordenamento impõe uma série de deveres
aos gestores de sociedades para garantir não apenas a proteção dos interesses dos sócios,
mas também dos diversos sujeitos afetados pela atividade empresarial, a exemplo dos
trabalhadores, consumidores, concorrentes e poder público.8
Portanto, é essencial perceber que a atividade econômica exige segurança e
estabilidade das relações jurídicas, de maneira a atender satisfatoriamente as necessidades
sociais e a criar riquezas.9 Por essa razão, segundo Rachel Sztajn,10 o papel do jurista é o de
delinear e esclarecer o âmbito de aplicação das normas destinadas a regular as relações
entre agentes econômicos para que, “no exercício de atividades econômicas, atendam às
especificidades e, sobretudo, às necessidades do tráfico negocial, das operações repetidas
e igualmente estruturadas realizadas em mercados”. Em sentido semelhante, assevera
Fligstein11 que o dinamismo dos mercados somente se operacionaliza em razão de

4
A grande questão enfrentada por Coase em seu artigo clássico The nature of the firm é, portanto, a de compreender
a razão pela qual as “firmas”, isto é, as organizações, surgem em economias com alto grau de especiali­za­
ção (COASE, Ronald. The nature of the firm. Economica: New Series. v. 4, n. 16, p. 386-405, nov. 1937. p. 390).
A percepção do movimento dos agentes econômicos da contratação direta em mercados para a formação de
estruturas cooperativas em torno de firmas aponta, assim, para a conclusão fundamental de Coase: a de que,
tendo em vista que existem custos de utilização do mecanismo de preços – especialmente na negociação e na
conclusão de contratos para cada operação de troca, o que requer a agregação de informações suficientes para a
percepção das condições do mercado –, a formação de uma organização que conte com autoridade para alocar
recursos reduz tais custos (COASE, Op. cit., 1937, p. 390-392). Os chamados custos de transação, dessa maneira,
consistem em explicação do problema da organização da atividade econômica como um problema de contratação
(WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York:
The Free Press, 1985. p. 20). A noção segundo a qual a empresa se constitui como mecanismo de redução de
custos de transação envolve, portanto, a maior facilidade de que dispõem tais entidades para elaborar, negociar
e executar negócios, com maiores condições para administrar contingências e agir de maneira informada na
interação com os demais agentes de mercado, de sorte a transformar eficientemente incertezas em riscos e, assim,
perceber lucros mais significativos (EASTERBROOK, Frank; FISCHEL, Daniel. The economic structure of corporate
law. Cambridge: Harvard University Press, 1991. p. 8-9).
5
WIEDEMANN, Herbert. Excerto do “Direito Societário I – Fundamentos”. In: FRANÇA, Erasmo Valladão
Azevedo e Novaes. Direito societário contemporâneo I. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 15.
6
FORGIONI, Paula. A evolução do Direito Comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 22.
7
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005. p. 433.
8
Ver, por todos: FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: Repercussões sobre a responsabilidade civil de
controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
9
SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa. São Paulo: Atlas, 2004. p. 10.
10
SZTAJN, Op. cit., 2004, p. 10-11.
11
FLIGSTEIN, Neil. The architecture of markets: An economic sociology of twenty-first-century capitalist societies.
Princeton: Princeton University Press, 2001. p. 8-10. No mesmo sentido, vale mencionar a opinião de Natalino Irti
(A ordem jurídica do mercado. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, v. 46, n. 145, p. 44-49,
jan./mar. 2007. p. 46-47): “Atrás da antítese entre lei natural da economia – neutras, absolutas e objetivas – e leis
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
430 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

extenso esforço de organização social, verificado especialmente na existência de regras


que garantam seu funcionamento e estabilidade.12
O reconhecimento de novas categorias de Direito Contratual decorre da neces­si­
dade de modernização das teorias clássicas com vistas não a inserir mecanismos inova­
dores descolados da prática, mas a garantir o fluxo normal da circulação de riquezas.13
Tal atualização é necessária em virtude de a concepção segundo a qual contratos servem
tão somente à transmissão da propriedade e à gestão de direitos de crédito não mais
corresponder aos objetivos das relações celebradas no mercado. Nesse sentido, pontua
Enzo Roppo14 que o contrato não esgota sua função na constituição e regulação de relações
jurídicas patrimoniais, mas a partir da evolução da vida social e das trocas econômicas
passa a “dar vida directamente a uma complexa organização de homens e meios, que
adquire objectividade autónoma em relação ao contrato e às relações contratuais de que
emerge, e que, por assim dizer, transcende”.15
Na mesma linha, conforme aduz Hugh Collins,16 o Direito Contratual deve ser
constantemente reconstruído com vistas a acompanhar as mudanças sociais, sobretudo
no que diz respeito à mitigação jurídica de falhas de mercado. A transformação esperada
do Direito, assim, corresponde à reformulação dos princípios aplicados aos contratos
na medida em que emergem questões atinentes a seu escopo, à cooperação entre as
partes, ao seu dever de cuidado e responsabilidade, entre outros fatores.17 Daí defender
Teresa Negreiros18 que o contrato não pode estar submetido a uma teoria geral que
o considere fenômeno monolítico. De acordo com a autora, o Direito não pode ser
subsumido a encadeamentos conceituais abstratos, sendo necessário que esteja aberto
ao aperfeiçoamento de seu saber teórico, de modo que as classificações que adota
para suas categorias – por mais que lhe sejam necessários os atributos de segurança
e previsibilidade – sejam apenas aparentemente estáticas.19 É claro que, em Direito,

históricas – dependentes do querer humano – sempre se agita a luta política, sempre se confrontam ideologias
ou visões da sociedade. Conflito entre uma e outra política, e não entre política e a-política neutralidade. Quando
se afirma que o direito determina a economia, e o mercado se resolve no estatuto de normas, não se propõe
um ou outro regime de trocas, uma ou outra disciplina da propriedade, mas somente se recorda o elementar
pressuposto de todas as estruturas: a vontade política, traduzida em instituições jurídicas”.
12
Ainda mais recentemente, o contexto econômico passou por importante transformação com a intensificação
do comércio eletrônico, possibilitado pelo advento das tecnologias da informação e da expansão da sociedade
de rede. Nesse contexto, ganham relevância empresas eletrônicas que revolucionam modelos de negócios e
criam novos mercados por intermédio de maneiras inovadores de efetuar “operações-chave de administração,
financiamento, inovação, produção, distribuição, vendas, relações com empregados e relações com clientes [...]
seja qual for o tipo de conexão entre as dimensões virtuais e físicas da firma” (CASTELLS, Manuel. A galáxia da
internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 57).
13
GRAU, Eros Roberto. Um novo paradigma dos contratos? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, v. 96, p. 423-433, 2001. p. 230.
14
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009. p. 305.
15
Tal processo é o que Enzo Roppo (Op. cit., p. 305) denomina por “objetivação” do direito contratual. Trata-se
de movimento de sensibilização do direito contratual para as necessidades concretas com as quais o sistema
jurídico se depara, de modo a mitigar o alto grau de abstração das noções de direito privado. Segundo Thomas
Wilhelmsson (Critical studies in private law: a treatise on need-rational principles in modern law. Dordrecht:
Springer, 1992. p. 12-13), os conceitos abstratos utilizados no Direito Privado afastam a discussão sobre as
verdadeiras necessidades econômicas e sociais das partes, razão pela qual a dogmática jurídica merece ser
reformada.
16
COLLINS, Hugh. The law of contract. 4. ed. Londres: LexisNexis, 2003. p. 30-35.
17
COLLINS, Op. cit., 2003, p. 30-35.
18
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 300.
19
NEGREIROS, Op. cit., p. 348.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
431

“é próprio das classificações que a sua validade seja aferida em função de sua relevância
prática”.20 Significa que as classificações propostas pelo Direito e para o Direito são
constantemente modificadas em razão de alterações no mundo dos fatos, agregando
valores e necessidades com vistas a produzir novo modelo interpretativo e operativo
das relações firmadas entre agentes econômicos.
Se, por um lado, é necessário formular critérios de diferenciação dos contratos
com vistas a dar conta da complexidade das sociedades contemporâneas,21 por outro é
preciso recordar que a escolha por uma forma organizacional ou outra será determinada
pela aptidão dessa estrutura para reduzir os custos de transação da atividade econômica.
Nesse sentido, tem-se que o Direito Privado reduz custos de transação ao oferecer figuras
jurídicas a serem adotadas pelas organizações, tanto no âmbito interno – ao fornecer
mecanismos de equilíbrio do poder dos integrantes de uma organização – quanto
no âmbito externo – ao delinear as estruturas de ação econômica autônoma a serem
encontradas no mercado.22
Entretanto, ainda que se esperem do Direito respostas ágeis a problemas emergentes
da prática econômica, não se pode atribuir às regras jurídicas toda a responsabilidade pela
tradução de fatos em normas.23 Na verdade, o tratamento jurídico de determinada questão
fática depende de conceituação teórica prévia, tendo em vista que, conforme pontuou
Druey, o Direito se posiciona entre a vontade das partes envolvidas e a vontade política
de regular tal relação.24 Assim, não se pode querer atribuir ao Direito uma elasticidade
que seus conceitos jamais terão:25 pode haver casos nos quais contratos de intercâmbio
e contratos de sociedade, por mais ampla que seja a lente pela qual se lhes analisa, não
correspondam aos reais desejos e necessidades da vida econômica.
Não por outro motivo, Teubner não hesita em dizer que fenômenos híbridos não
são conceitos jurídicos, mas sim sociológicos.26 Os híbridos, de acordo com Teubner,
se apresentam em formas contratuais de maneira a desafiar o amplo leque de normas
regulatórias desenvolvidas pelo Estado Social para dominar monstros corporativos.27
Por esse motivo, o autor pontua que os híbridos tendem a naturalmente movimentar-se
entre inovação e evasão à ordem jurídica vigente.28 A grande dificuldade apresentada
por tais formas organizacionais, assim, é a de que muitas vezes transitam por zonas de
penumbra do ordenamento, sendo essencial indagar se por detrás de formas contratuais
não se ocultam organizações hierárquicas complexas nas quais os contornos das fontes

20
NEGREIROS, Op. cit., p. 350.
21
NEGREIROS, Op. cit., p. 305.
22
Ver: DRUEY, Jean Nicolas. The path to the law: the difficult legal access of networks. In: AMSTUTZ, Marc;
TEUBNER, Gunther. Networks: Legal issues of multilateral cooperation. Oxford: Hart Publishing, 2009. p. 98.
23
DRUEY, Op. cit., p. 94.
24
DRUEY, Op. cit., p. 94.
25
DRUEY, Op. cit., p. 94.
26
TEUBNER, Gunther. Coincidentia Oppositorum: hybrid networks beyond contract and organization. In:
AMSTUTZ, Marc; TEUBNER, Gunther. Networks: Legal issues of multilateral cooperation. Oxford: Hart
Publishing, 2009. p. 3.
27
TEUBNER, Gunther. Piercing the contractual veil? The social responsibility of contractual networks. In:
WILHELMSSON, Thomas. Perspectives of critical contract law. Londres: Dartmouth, 1992. p. 211-212.
28
TEUBNER, Op. cit., 1992, p. 212.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
432 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

do poder empresarial são esmaecidos.29 Dessa forma, é fundamental que as bases do


Direito Contratual sejam repensadas com vistas a sustentar adequadamente as pretensões
das partes que travam negócios como os contratos híbridos e, como se demonstrará
no capítulo seguinte, a fornecer bases suficientes para a governança de agrupamentos
complexos como as networks.

3 O paradigma dos contratos relacionais e seu papel para a


compreensão dos híbridos
O contrato, conforme concebido pela teoria neoclássica, é um mero sistema de
distribuição de risco em situações discretas, traduzindo-se em trocas pontuais travadas
com baixo grau de compartilhamento de informações.30 Dessa forma, o comportamento
das partes se prevê tão somente a partir da racionalidade econômica, por intermédio do
critério da eficiência alocativa. É o que esclarece Ruy Rosado de Aguiar Jr.31 Ao afirmar
que “o direito obrigacional foi construído a partir da ideia do contrato instantâneo, como
se a manifestação da vontade e a sua execução se dessem de uma só vez, tudo explicado
pelas circunstâncias presentes no momento da celebração”.
Tendo isso em vista, a teoria contratual deixa de cuidar tão somente de trocas
pontuais ocorridas no mercado para compreender também contratos que servem como
instrumentos de planejamento de relações de longo prazo.32 Nesse sentido, considerando
a impossibilidade prática de tomar o contrato como acontecimento isolado e descontínuo,
requer-se a produção de um paradigma jurídico apto a abarcar negócios que, por
seu próprio objeto, devem deixar indeterminadas várias de suas cláusulas, a serem
colmatadas ou renegociadas ao longo de espaço do tempo no qual agem em grande
medida a boa-fé objetiva, a equidade e o fim social do contrato.33
Segundo Ricardo Lorenzetti,34 o contrato relacional apresenta objeto vazio, pois
trata de procedimentos de atuação das partes e de regras que servirão para coordenar
o comportamento desses sujeitos de maneira a especificar as prestações do negócio
ao longo de sua execução. Assim, as prestações contratuais têm caráter processual,
de sorte que não se perfarão em um dar ou fazer determinado, mas determinável ao
longo do tempo.35 Com isso, a relação obrigacional estabelecida entre as partes adquire
dinamismo, sendo dotada de diversas fases interdependentes que concorrem para o

29
TEUBNER, Op. cit., 1992, p. 212.
30
MACNEIL, Ian. Economic analysis of contractual relations: its shortfalls and the need for a “rich classificatory
apparatus”. Northwestern University Law Review. v. 75, n. 6, p. 1018-1063, 1981. p. 1019-1020.
31
AGUIAR JR., Ruy Rosado. Contratos relacionais, existenciais e de lucro. Revista trimestral de direito civil, v. 12,
n. 45, p. 91-110, jan./mar. 2011. p. 97.
32
É o que observa Stewart Macaulay (Relational contracts floating on a sea of custom? Thoughts about the ideas
of Ian Macneil and Lisa Bernstein. Northwestern University Law Review, v. 94, n. 3, p. 775-804, 2000. p. 778), para
quem as partes, nos contratos relacionais, procuram “trazer o futuro ao presente”.
33
AGUIAR JR., Op. cit., p. 98. Vale, nesse sentido, transcrever a lição de Ricardo Lorenzetti (Tratado de los contratos.
Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1999. v. 1, p. 50): “La teoría contractual debe modificarse para captar las
relaciones flexibles que unen a las empresas en la economía actual y tener en cuenta que estos vínculos se hacen
con perspectiva de futuro”.
34
LORENZETTI, Op. cit., v. 1, p. 51.
35
LORENZETTI, Op. cit., v. 1, p. 51.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
433

sucesso da operação econômica subjacente.36 Em síntese, no dizer de Fernando Araújo,37


o contrato relacional é aquele que se distingue do contrato discreto ou pontual, isto é,
“do contrato suficientemente coeso e breve para não suscitar importantes problemas
de <<governo>> ex post”.
A teoria dos contratos relacionais desenvolvida pelo direito anglo-saxão38 procura
compreender a natureza do comportamento das partes submetidas a vínculos jurídicos
de longo prazo, caracterizados pela enfática incidência de solidariedade, cooperação
e confiança.39 A abordagem relacional provém da observação empírica do fenômeno
contratual, que evidencia o papel desempenhado pelas normas sociais – a exemplo da
cooperação – na definição do comportamento das partes. Tanto é assim que há quem
defenda que todo contrato é relacional, uma vez em que toda relação jurídica contratual
contará com uma dimensão de entendimentos implícitos que motivará a tomada de
decisão das partes antes mesmo de terem seus comportamentos constrangidos por
normas jurídicas.40
Nesse contexto, os contratos relacionais se caracterizam sobretudo por exigirem
das partes “comportamento adequado a cada nova situação”41 surgida ao longo de
seu vínculo de longo prazo, o que necessariamente requer o redimensionamento do
formalismo interpretativo que caracteriza a teoria contratual clássica.42 A incompletude,
que é natural nesses tais negócios, assim, levará à solução de controvérsias não
necessariamente pela invalidação ou resolução, mas pela renegociação a partir de
mecanismos de governança contidos em suas cláusulas.43
Portanto, no contrato relacional as partes não estipulam as obrigações de maneira
precisa, “por que não podem ou porque não querem, e se remetem a modos informais
e evolutivos de resolução da infinidade de contingências que podem vir a interferir na
interdependência os seus interesses e no desenvolvimento das suas condutas”.44 Destaca-
se, assim, a dimensão da relação contratual que mais tem a ver com o relacionamento
fático travado pelas partes do que com os termos contratuais, isto é, o conjunto difuso

36
COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 20. A ideia de obrigação
como processo é longamente tratada por Clóvis do Couto e Silva em sua obra clássica, segundo a qual: “Sob o
ângulo da totalidade, o vínculo passa a ter sentido próprio, diverso do que assumiria se se tratasse de pura soma
de suas partes, de um compósito de direitos, deveres e pretensões, obrigações, ações e exceções. Se o conjunto
não fosse algo de ‘orgânico’, diverso dos elementos ou das partes que o formam, o desaparecimento de um
desses direitos ou deveres, embora pudesse não modificar o sentido do vínculo, de algum modo alteraria a sua
estrutura. Importa, no entanto, contrastar que, mesmo adimplido o dever principal, ainda assim pode a relação
jurídica perdurar como fundamento da aquisição (dever de garantia), ou em razão de outro dever secundário
independente” (COUTO E SILVA, Op. cit., p. 20).
37
ARAÚJO, Fernando. Teoria económica do contrato. Coimbra: Almedina, 2007. p. 395.
38
Note-se que, embora se possa falar em uma “teoria” dos contratos relacionais, não há que se falar em concepção
unitária dessa abordagem, mas de uma multiplicidade de teorias que procuram explicar o fenômeno contratual
sob essa perspectiva. Ver, nesse sentido: LEIB, Ethan J. Contracts and friendships. Emory law journal, v. 59, p. 649-
726, 2009. p. 653.
39
Ver: GRAMSTRUP, Erik Frederico. Contratos relacionais. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore. Teoria
geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011. p. 321-322.
40
LEIB, Op. cit., p. 655.
41
AGUIAR JR., Op. cit., p. 99.
42
AGUIAR JR., Op. cit., p. 99.
43
AGUIAR JR., Op. cit., p. 99.
44
ARAÚJO, Op. cit., p. 395.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
434 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

de obrigações que se impõem na relação contratual de maneira informal e que, pela


própria natureza cooperativa do negócio, se impõem coercitivamente.45
Desse modo, os contratos relacionais pretendem equilibrar a exigência de uma
“base suficientemente estável para alicerçar compromissos sérios”46 e “a preservação da
flexibilidade suficiente para que esses compromissos resistam aos embates das futuras
contingências”.47 Com isso, não havendo identidade entre tais arranjos e as trocas pontuais
em mercado – em razão da longa duração – e tampouco com a organização societária –
na qual, muito embora exista relação de longo prazo, as controvérsias se resolverão pela
hierarquia –, o que se objetiva é, através da consolidação da confiança, criar estruturas
capazes de reduzir custos de transação mediante a prevenção ao oportunismo e à
redução das assimetrias informacionais.48 Daí o motivo pelo qual os pressupostos da
abordagem relacional representam base teórica tão poderosa para a compreensão das
formas híbridas de contratação, especialmente a partir do momento em que se passa à
análise do fenômeno das redes contratuais, caracterizado pela interação entre diversos
contratuais híbridos que, unidos, adquirem efeitos similares à hierarquia.

4 As redes contratuais como nova forma de organização da atividade


econômica
Contratos empresariais de longo prazo – comumente denominados contratos
híbridos49 –, por si sós, já são capazes de levantar preocupações da regulação jurídica,
uma vez que fatalmente apresentarão características que transcenderão os tipos legais,
porém não se pode negar que, nesses casos mais corriqueiros, o ordenamento fornece
base jurídica mínima em contratos como a franquia ou a integração vertical. No entanto,
relações comerciais dificilmente se realizarão de maneira isolada, uma vez que, ao

45
CAMPBELL, David; COLLINS, Hugh. Discovering the implicit dimensions of contracts, In: CAMPBELL, David;
COLLINS, Hugh; WIGHTMAN, John. Implicit dimensions of contract: discrete, relational and network contracts.
Oxford: Hart Publishing, 2003. p. 26. As referidas amarras comportamentais se estabelecem com o objetivo de
reduzir as incertezas decorrentes da incompletude das cláusulas reitoras das relações de longo prazo em questão,
criando relação de interdependências entre as partes que se agrava cada vez mais com o progresso tecnológico.
É essa a opinião de Ana Frazão (Op. cit., 2017, p. 208-209): “Essas funções, que são normalmente atribuídas aos
contratos relacionais, são ainda mais relevantes diante da internet e da crescente importância da tecnologia na
atividade empresarial, fenômenos que aumentam a necessidade de cooperação entre agentes empresariais por
diferentes modos. Aliás, o mero fornecimento de tecnologia, pela via dos contratos usuais de licença, pode ser
visto como uma forma de cooperação diferenciada entre os contratantes”.
46
ARAÚJO, Op. cit., p. 398.
47
ARAÚJO, Op. cit., p. 398.
48
ARAÚJO, Op. cit., p. 399. Vale notar que as assimetrias informacionais se farão presentes com maior ênfase nos
contratos formalmente assimétricos, como é o caso das relações de consumo que, em diversos casos, também
poderão decorrer de contratos relacionais que, em regra, constituirão relação de dependência econômica, como
sói ocorrer em contratos de plano de saúde (STJ, 3ª Turma, REsp 1.613.644/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, Data de Julgamento: 20.09.2016, Data de Publicação: DJe 30.09.2016), de previdência privada (STJ, 2ª
Seção, REsp 1.201.529/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, Rel. p/ acórdão Min. Isabel Gallotti, Data de Julgamento:
11.03.2015, Data de Publicação: DJe 01.06.2015), de seguro de vida (STJ, 3ª Turma, REsp 1.356.725/RS, Rel. Min.
Nancy Andrighi, Rel. p/ acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 24.04.2014, Data de
Publicação: DJe 12.06.2014), dentre outros. Nesse sentido, ver: MACEDO JR., Ronaldo Porto. Contratos relacionais
e defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
49
PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Os contratos híbridos como formas de organização jurídica do poder econômico:
aspectos dogmáticos e a postura do CADE no caso Monsanto (Monografia). Brasília: Universidade de Brasília,
2017.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
435

menos em regra, se dão em ambiente de livre concorrência no qual diversos agentes em


busca de lucro procurarão maximizar seus ganhos e, à luz do que já foi exposto, reduzir
custos de transação. Por esse motivo, a inserção do fenômeno dos contratos híbridos
no contexto da economia de mercado dá origem a estruturas ainda mais complexas: as
redes contratuais ou networks.
De acordo com Hugh Collins,50 as networks são conjuntos de empresas independentes
que celebram contratos inter-relacionados estruturados de maneira a conferir às partes
vários dos benefícios próprios da coordenação oriunda da integração vertical, ainda
que jamais se tenha criado negócio integrado único como uma empresa ou parceria.
Na verdade, como se verá no decorrer deste capítulo, as networks se caracterizam não
por vínculos formais, mas por liames funcionais entre relações contratuais autônomas.
As networks, da mesma forma que os contratos híbridos, não se amoldam perfeitamente
a quaisquer categorias do Direito Contratual ou do Direito Societário.51 Porém, no caso
das networks, isso ocorre pelo fato de essas estruturas gerarem expectativas e incentivos
invisíveis ao Direito Contratual52 ao buscarem extrair dos contratos bilaterais o seu
potencial de correção e interação entre suas partes componentes, de maneira a criar
verdadeira estrutura multilateral composta de vínculos bilaterais.
Não há, nas networks, qualquer instrumento jurídico por meio do qual seja possível
consolidar o risco e alocar a responsabilidade.53 Todavia, as redes contratuais igualmente
não se resumem a um emaranhado de relações contratuais – ou meros contratos conexos,
como se verá a seguir –, mas constituem atores empresariais sui generis ou, em outras
palavras, “coletivos policorporativos” com especial capacidade de ação conjunta a partir
dos diversos núcleos desse cipoal de contratos.54
É essa complexidade que leva autores como Gunther Teubner a sustentar que
as networks são fundadas em paradoxos. Os dois paradoxos essenciais às networks
são designados pelo autor por duas expressões latinas: unitas multiplex e coincidentia
oppositorum. A noção de unitas multiplex se refere à característica das networks de se
constituir como ente unitário advindo da coordenação de centros de ação autônomos, de
maneira a originar não um ente análogo à pessoa jurídica, mas um agregado de sujeitos
estruturado de maneira policêntrica.55 O segundo paradoxo fundamental das networks
– coincidentia oppositorum – diz respeito ao fato de que os integrantes da coletividade
apresentam interesses contrapostos e contraditórios – podendo até ser concorrentes
em um dado mercado –, porém a necessidade de responder às demandas do ambiente
negocial produz incentivos para a cooperação, de sorte a fomentar a coordenação entre
esses atores.56

50
COLLINS, Op. cit., 2011, p. 1.
51
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 15.
52
AMSTUTZ, Marc. The constitution of contractual networks. In: AMSTUTZ, Marc; TEUBNER, Gunther. Networks:
Legal issues of multilateral cooperation. Oxford: Hart Publishing, 2009. p. 309.
53
COLLINS, Op. cit., 2011, p. 10.
54
TEUBNER, Gunther. The many-headed Hydra: networks as higher order collective actors. In: MCCAHERY,
Joseph; PICCIOTTO, Sol; SCOTT, Colin. Corporate control and accountability: changing structures and the dynamics
of regulation. Oxford: Clarendon Press, 1993. p. 43.
55
TEUBNER, Gunther “Unitas multiplex”: a organização do grupo de empresas como exemplo. Revista DireitoGV,
v. 1, n. 2, p. 77-110, jun./dez. 2005. p. 97.
56
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 18.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
436 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O fenômeno das networks tem se tornado cada vez mais comum na medida em que
a globalização da economia e a massificação das tecnologias da informação tornaram
possível uma maior e mais facilitada interação entre agentes empresariais. É o que
se verifica nas empresas virtuais, no âmbito das quais são estabelecidas relações de
coordenação heterárquica potencializadas pela velocidade da comunicação da internet
e pelas redes sociais, atribuindo novos contornos à cooperação empresarial.57 Certo é
que as redes contratuais, como se verá a seguir, no mais das vezes se estabelecem em
virtude de contratos travados entre sociedades, porém estruturas como a internet e
laços reputacionais entre integrantes de um determinado mercado são capazes de criar
sinergias próprias das networks mesmo sem vínculos obrigacionais formais, conforme
indica Rodrigo Octávio Broglia Mendes.58
É nesse sentido que autores como Andreas Borchardt diferenciam “redes la­
tentes” de “redes estratégicas”, sendo as primeiras caracterizadas pela existência de
di­versos parceiros de negócio em potencial, que, embora não interajam entre si a todo
momento, apresentam número indefinido e inúmeras competências postas à dispo­
sição dos agentes econômicos, de maneira a compor verdadeira “matéria bruta para
novas relações cooperativas” (Brutsätte für neue Kooperationen).59 As chamadas redes
estratégicas, por sua vez, consistem de verdadeiras estruturas de incentivos criadas a
partir da possibilidade de obtenção de eficiências oriundas da correlação entre relações
contratuais autônomas. É o que ocorre, por exemplo, nas redes de franquias, nas quais
os franqueados, independentes e muitas vezes concorrentes, obtêm insumos de maneira
uniforme de um mesmo franqueador, porém o compartilhamento de atributos, como
marca, nome e reputação, faz com que os franqueados sintam os efeitos dos sucessos
e fracassos dos diversos membros da rede, de modo que será de rigor a orientação de
todos não ao sucesso individual, mas ao sucesso da rede como um todo.60
Importa adiantar que o objetivo do presente trabalho não é traçar tipologia
detalhada das redes contratuais, mas delinear o arcabouço teórico-dogmático mínimo
para a melhor compreensão e operacionalização jurídica dessas estruturas. Porém, é
interessante trazer à discussão a classificação traçada por Teubner61 ao afirmar que as
networks se diferenciam de acordo com sua posição na cadeia de produção de riquezas,
sendo possível relacionar determinados tipos de redes a certos problemas econômicos e
jurídicos particulares, a saber: (i) redes de inovação destinadas a facilitar a pesquisa e o
desenvolvimento comum de novas tecnologias, caracterizadas por não se resumirem a
funções econômicas, mas sobretudo por se referirem a finalidades científicas; (ii) redes

57
MENDES, Rodrigo Octávio Broglia. A empresa em rede: a empresa virtual como mote para reflexão no Direito
Comercial. Revista do advogado, v. 32, n. 115, p. 125-135, abr. 2017, p. 134.
58
“A empresa virtual, nessa perspectiva, passa a criar condições para ser trabalhada juridicamente. É possível
compreender uma rede de diversas empresas societárias que celebram contratos entre si para, da conexão desses
contratos, permitir o desenvolvimento de uma determinada atividade empresarial. Contudo, é bem possível – e
a internet torna isso efetivamente possível – que essa atividade seja desenvolvida sem que todas as empresas
societárias participantes da rede possuam, entre si, contratos celebrados – como acontece, por exemplo, entre os
franqueados” (MENDES, Op. cit., p. 134).
59
BORCHARDT, Andreas. Koordinationsinstrumente in virtuellen Unternehmen: Eine empirische Untersuchung
anhand lose gekoppelter Systeme. Wiesbaden: Deutscher Universitäts-Verlag, 2006. p. 20-21.
60
Ver: BÖHNER, Reinhard. Asset-sharing in Franchisenetzwerken: Pflicht zur Weitergabe von Einkaufsvorteilen.
Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft. v. 89, n. 2-3, p. 227-252, 2006.
61
TEUBNER, Gunther. Networks as connected contracts. Oxford: Hart Publishing, 2011. p. 98-100.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
437

de fornecimento, referentes às relações verticais entre empresas focais (centros das


redes) e fornecedores de componentes para a fabricação de bens; (iii) redes de produção
que abarcam processos de coprodução horizontal no âmbito das quais concorrentes
combinam sua capacidade produtiva com vistas a maximizar seu alcance geográfico,
destacando-se as empresas virtuais; (iv) redes de distribuição, compostas por relações
verticais entre fabricantes, distribuidores, canais de venda e usuários finais, destacando-
se as redes de franquias; (v) redes de clientes, que incorporam clientes no processo
produtivo; e (vi) redes de criação de riqueza caracterizadas por amalgamar diversas
etapas produtivas em uma espécie de quase-integração contratual, o que ocorre, por
exemplo, na formação de padrões setoriais.
Por mais completa que possa parecer a tipologia de Teubner, não se pode
desconsiderar que a criatividade negocial pode repentinamente superar qualquer
esforço de sistematização, razão pela qual não haveria que se falar na exaustão
casuística do tema. Certo é que cada uma dessas modalidades de redes contratuais
necessitará de uma estrutura de governança específica, arquitetada de acordo com
as demandas da operação econômica subjacente aos negócios jurídicos celebrados.
Contudo, considerando a dificuldade de inserção das networks nas categorias jurídicas
conhecidas e estabilizadas pela prática, faz-se necessário o desenvolvimento de bases
dogmáticas capazes de sustentar tal fenômeno econômico. Antes de se ressaltarem as
transformações operadas pelas networks sobre a dogmática de Direito Comercial, no
entanto, é necessário compreender a real natureza desse fenômeno, de modo a produzir
explicação minimamente satisfatória quanto a sua autonomia teórica.

5 Natureza jurídica das redes contratuais


No estudo já clássico de Buxbaum62 sobre as redes contratuais, chegou-se à con­
clusão de que as networks não são conceitos jurídicos. De acordo com o autor, as redes
contratuais se realizam quando um dado setor requer estruturas que nem mercados nem
empresas podem proporcionar a partir de seus mecanismos tradicionais. É esse também o
ponto de partida de Teubner63 ao propor que o estudo desse fenômeno dificilmente poderá
ser apreendido exclusivamente pelo Direito, sendo necessário o recurso a economistas,
sociólogos, entre outros cientistas sociais.
Por esse motivo, ensina Teubner64 que o Direito deve adquirir atributos inter­
disciplinares capazes de transformá-lo em “jurisprudência sociológica”. Somente assim
o Direito assumirá seu papel central no processo de “desparadoxização” social das
networks, decodificando os arranjos institucionais produzidos por agentes econômicos
com vistas a produzir estruturas procedimentais capazes de canalizar internamente a
natureza híbrida dessas redes.65 No entanto, não se pode esquecer que qualquer fato
social “é percebido de acordo com a compreensão cultural da sociedade em determinado

62
BUXBAUM, Richard. Is “network” a legal concept? Journal of institutional and theoretical economics, v. 149, n. 4,
p. 698-705, dez. 1993.
63
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 13-18.
64
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 13-18.
65
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 13-18.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
438 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

momento histórico, e assim também é valorado pelo direito”,66 de sorte que “todo fato
social – porque potencialmente relevante para o direito, e porque moldado pela valoração
(social decorrente) do elemento normativo (o qual, ao mesmo tempo, é construído na
historicidade evolutiva da sociedade), é fato jurídico”.67
Partindo do pressuposto de que o método jurídico-dogmático traz importantes
contribuições para a compreensão de fenômenos econômicos, Stefan Grundmann 68
procura delinear os primeiros traços de uma dogmática das redes contratuais (Dogmatik
der Vertragsnetze). Segundo Grundmann, o desafio inicial para a compreensão teórica das
operações econômicas que resultam nas redes contratuais é a análise das reivindicações
diretas dos diversos contratos individuais encontrados ao longo da cadeia que resulta na
rede, com vistas a potencializar a eficiência da rede sobre essas relações singulares. Além
disso, Grundmann destaca a relevância da compreensão da influência de um contrato
sobre o outro, concentrando a análise nas cláusulas gerais que os conectam e, assim,
servem como “portais” (Einfallstore) para efeitos em cadeia que influirão de maneira
holística sobre a rede. Por fim, o autor ressalta o papel central dos meios de acesso à
rede, através dos quais as partes de contratos individuais poderão obter informações
sobre os demais agentes envolvidos e, assim, conhecer o interesse em direção ao qual
tenderão as atividades da rede naquelas circunstâncias.
O desenvolvimento conceitual das networks enquanto nova categoria dogmática
requer, portanto, que sejam destacadas as suas peculiaridades diante de figuras jurídicas
já conhecidas e cujas características não se amoldam aos pressupostos fáticos das redes
contratuais. Daí por que muito se discute sobre a natureza jurídica de tais fenômenos – e,
consequentemente, o regime legal aplicável –, sendo importante explorar os atributos
das networks diante dos contratos híbridos, dos contratos associativos, dos grupos
societários e dos contratos coligados, para que então se forneça um conceito próprio
a essa figura jurídica, a partir e para além da teorização já fornecida por autores como
Gunther Teubner.69

5.1 Redes contratuais como contratos


Cabe apontar, inicialmente, que as redes contratuais muitas vezes são designa­
das como figuras regidas pelas normas de Direito Contratual, tendo em vista que são
formadas, naturalmente, por contratos, ainda que no mais das vezes sejam contratos
híbridos que exigem regência específica.70 A intuitiva conclusão de que networks seriam
redes de contratos híbridos, assim, cai por terra, uma vez que as redes contratuais podem
envolver qualquer tipo de contrato. A semelhança das networks com relação aos contratos
híbridos é, na verdade, que ambos os fenômenos são formas híbridas de organização da
atividade econômica, sendo que o último diz respeito a uma relação singular que não

66
TEPEDINO, Gustavo. Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos. Revista brasileira de direito civil.
v. 1, p. 8-37, jul./set. 2014. p. 14.
67
TEPEDINO, Op. cit., p. 14.
68
GRUNDMANN, Stefan. Die Dogmatik der Vertragsnetze. Archiv für die civilistische Praxis. v. 207, p. 718-767, dez.
2007. p. 766-767.
69
TEUBNER, Op. cit., 2011.
70
Ver: PRATA DE CARVALHO, Op. cit.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
439

se coaduna com os ditames do intercâmbio ou da sociedade, ao passo que os primeiros


consistem em um conjunto de relações jurídicas que apresentam comportamento
harmônico, o que igualmente não se amolda às categorias dogmáticas clássicas.
No entanto, não finda nessa distinção a discussão sobre o caráter contratual das
networks. Basta lembrar que, na doutrina clássica de Ascarelli,71 o contrato de sociedade é
de natureza plurilateral, na medida em que dele podem participar mais de duas partes,
todas as quais titulares de direitos e obrigações com relação a todas as outras em virtude
da finalidade comum que unifica seus interesses. Nesse sentido, a categoria dos contratos
plurilaterais não se reduz ao contrato de sociedade, o que se pode verificar em outros
exemplos retirados do próprio ordenamento, como é o caso dos acordos parassociais,
que não têm o condão de criar empresa comum, mas de conformar interesses e objetivos
dos integrantes de determinada sociedade.72 Assim, pode-se indagar se seria possível
cogitar de uma espécie de contrato plurilateral que tivesse por objeto a colaboração entre
empresas, caracterizando-se por maior flexibilidade e menor conteúdo organizativo do
que a sociedade e, ainda, por conjugar – e não contrapor – intercâmbio a comunhão de
escopo.73 Dessa maneira, as networks poderiam encontrar suporte doutrinário na teoria
do contrato relacional que, por mais que ainda não fornecesse disciplina específica,
concederia amparo teórico a instituto que se encontra em zona de penumbra.
Vale notar que tal possibilidade não é meramente hipotética, uma vez que se
pode encontrar no Direito Comparado iniciativas legislativas que regularam as redes
contratuais por meio da noção de contrato plurilateral. É o que se verifica na Lei italiana nº
33/2009, que criou a figura do contratto di rete, pacto por meio do qual diversas sociedades
autônomas se comprometem a cumprir uma série de deveres destinados a incrementar o
bem-estar e a competitividade da coletividade em questão. Basta observar o item 4-bis do
artigo 3º do referido diploma, segundo o qual “com o contrato de rede mais empresários
perseguem o objetivo de aprimorar, individual e coletivamente, a própria capacidade
inovativa e a própria competitividade em mercado” (tradução livre), obrigando-se a
colaborar de maneiras predeterminadas no que tange ao exercício da própria empresa.
Tais formas predeterminadas de colaboração envolverão, por exemplo, as informações
a serem compartilhadas entre as sociedades.
No entanto, para além das dificuldades práticas, o exemplo italiano é útil como
materialização do que antes somente se poderia cogitar na teoria: a regulamentação de
um contrato de natureza “transtípica”, inovando na ordem jurídica com negócio que
tangencia o plano da organização e também o do intercâmbio, instituindo elementos
de governança comum necessários à coordenação da relação de rede e, assim, criando
verdadeiro mecanismo de gestão da colaboração interempresarial.74
O contrato de rede, contudo, não diz respeito propriamente à união, mas ao vínculo
funcional e econômico que ensejou a união fática dos contratos integrantes da rede.
Trata-se, na verdade, de mecanismo de gestão formalizada da relação ali instaurada,

71
ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945. p. 255-312.
72
Ver: OPPO, Giorgio. Contratti parasociali. Milão: F. Vallardi, 1942.
73
CAFAGGI, Fabrizio; IAMICELI, Paola. Contratto di rete. Inizia uma nuova stagione di riforme? Il commento. v. 7,
p. 595-602, jul. 2009. p. 597.
74
CAFAGGI; IAMICELI, Op. cit., p. 598.
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440 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

constituindo as bases normativas do “ordenamento privado”.75 Tal figura se assemelha,


portanto, à noção de contrato-quadro, no âmbito do qual se estabelece uma “moldura”
em que se desenrolarão as relações futuras entre as partes, possibilitando a salvaguarda
da estabilidade da relação e a gestão do risco representado pela ausência de vínculo
contratual.76 Nesse sentido, os contratos-quadro terão a aptidão de gerir relações ainda
cuja execução se estenderá por tempo e forma indeterminados.77
No entanto, tendo em vista as já expostas considerações segundo as quais as redes
contratuais sequer seriam conceitos jurídicos,78 dada sua profunda raiz sociológica, não
se pode reduzir tal conceito a instrumento formal. Vale lembrar, nesse sentido, que a
criação de uma network prescinde inclusive da existência de relações contratuais entre
seus integrantes, podendo se formar pela facilidade de comunicação e mesmo por
estruturas sociais reputacionais.79 Desse modo, verifica-se que a forma contratual – com
todos os temperamentos aqui apresentados – é ferramenta analítica poderosa, porém
insuficiente para encapsular o fenômeno das networks.
A forma contratual clássica é aqui afastada em razão da insuficiência da dogmá­
tica a ela subjacente. No entanto, antes de se discorrer sobre os contratos associativos,
é importante mencionar alteração significativa operada pelas networks na noção de
sinalagma contratual. O sinalagma, consubstanciado na reciprocidade das obrigações
dos direitos e obrigações mantidos pelas partes de uma relação contratual,80 desconsidera
o interesse comum que coexiste com esses interesses contrapostos no âmbito das
networks. Daí a razão pela qual autores como Heerman81 sustentam que o sinalagma,
nas networks – e especialmente nas redes de operadoras de cartões de crédito, seu
objeto de estudo –, se opera de maneira triangular, constituindo um “trialagma sinalag­
mático” (synallagmatisches Triallagma) no qual as relações das partes conservarão sua
independência, porém compõem um sistema fundado na coordenação entre essas
relações. Considerando o interesse comum que se sobrepõe aos interesses individuais
dos membros da rede, poder-se-ia cogitar de tratamento societário ou associativo deste
fenômeno, como se verá a seguir.

5.2 A rede contratual como empresa comum


Muito já se afirmou que as redes contratuais são formas híbridas e que, portanto,
não encontram quadro regulatório satisfatório seja no Direito Contratual, seja no Direito

75
WILLIAMSON, Op. cit., 2002, p. 438.
76
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 78.
77
Contratos-quadro, de acordo com Jacques Ghestin (La notion de contrat-cadre et les enjeux théoriques et pratiques
qui s’y attachment. In: CREDA – Centre de recherché sur le droit des affaires. Le contrat-cadre de distribution:
enjeux et perspectives. Paris: CREDA, 1996), são contratos nos quais os objetivos são definidos de maneira geral,
sem que os termos essenciais da operação sejam determinados ou mesmo determináveis por simples referência
a suas estipulações. Segundo o autor, a função econômica do contrato-quadro é estabelecer as bases para o início
de uma relação que poderá envolver outros negócios – denominados “contratos de aplicação” das disposições
gerais firmadas inicialmente – aos quais se agregarão as obrigações estabelecidas pelo contrato-quadro.
78
BUXBAUM, Op. cit.
79
O trabalho de Lisa Bernstein (Op. cit.) é exemplo interessante para a compreensão desse fenômeno.
80
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novais. O sinalagma contratual. Revista de direito do consumidor, v. 93,
p. 209-228, maio/jul. 2014.
81
HEERMAN, Peter W. Drittfinanzierte Erwerbsgeschäfte: Entwicklung der Rechtsfigur des trilateralen Synallagmas
auf der Grundlage deutscher und U.S.-amerikanischer Rechtsentwicklungen. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
441

Societário. No entanto, também já se colocou que as formas híbridas podem estar mais
ou menos próximas de um desses polos. Tendo isso em vista e levando-se também
em consideração o item anterior sobre a possibilidade de solução do problema das
networks por um instrumento “quase-societário”, pode-se cogitar também de as redes
contratuais serem consideradas verdadeiras empresas em comum. Embora essa posição
possa parecer paradoxal, ela advém da própria noção de network segundo a qual as
redes contratuais híbridas se caracterizam por produzir, a partir da união de vínculos
contratuais autônomos, efeitos análogos à integração vertical.
A cooperação, portanto, não é critério suficiente para distinguir contratos híbridos
– em que a cooperação é intensa, mas não se traduz em empresa comum com identidade
de propósitos – do intercâmbio, da sociedade ou dos contratos associativos, nos quais a
cooperação corresponde à prestação principal da avença.82 Na verdade, conforme aduz
Ana Frazão,83 “o que distingue os contratos associativos dos demais contratos híbridos
e mesmo dos contratos de troca não é propriamente a existência de cooperação, mas
sim o grau e o tipo desta”.
Certo é que, conforme comentou José Engrácia Antunes,84 nessas circunstâncias,
o intérprete se depara com “uma multiplicidade insistematizável de figuras contratuais
que podem servir a cooperação entre empresas”. Por esse motivo, é imprescindível que
se aparem quaisquer arestas que possam obscurecer a compreensão dos institutos em
comento. Contratos associativos, segundo Ana Frazão,85 nada mais são do que contratos
de fim comum. Desse modo, a sociedade poderia ser considerada o contrato associativo
por excelência, já que se destina justamente a gerar ente autônomo a partir da comunhão
de escopo entre diversas partes. Todavia, os contratos associativos não se reduzem à
sociedade, já que estes, apesar de apresentarem nível organizativo superior ao que se
verifica nos híbridos, também congregam elementos de coordenação de mercado à
hierarquia.
Em síntese, pode-se afirmar que, “nos contratos associativos destinados ao exer­
cício de empresa comum, as partes, embora mantenham a autonomia jurídica e patri­
monial, passam a exercer a atividade empresarial de forma compartilhada, assumindo
conjuntamente a respectiva álea do negócio”.86 Por esse motivo, como já se colocou, a
cooperação em si não é o item que distingue os contratos associativos das demais formas
de organização da atividade econômica, mas sim seu grau. Nesta espécie contratual
específica, a cooperação se apresenta como o próprio objeto do negócio.87
A distinção entre os contratos associativos e o fenômeno das networks fica mais
clara a partir das categorias traçadas por Engrácia Antunes,88 que diferencia cooperação
associativa, característica de vínculos aptos a criar empresa comum, como é o caso da
sociedade; da cooperação auxiliar, que se verifica em contratos como o de agência, no
qual a colaboração entre as partes se dá de maneira intensa, porém não traduz empresa

82
FRAZÃO, Ana. Joint ventures contratuais. Revista de Informação Legislativa, v. 52, n. 207, p. 187-211, 2015b, p. 195.
83
FRAZÃO, Op. cit., 2015b, p. 195.
84
ANTUNES, José Engrácia. Direito dos contratos comerciais. Coimbra: Almedina, 2011. p. 390.
85
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 210-211.
86
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 211.
87
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 210-211.
88
ANTUNES, Op. cit., 2011, p. 389-391.
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442 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

comum.89 Por esse motivo, tem-se que o que caracteriza o contrato associativo não
é a mera existência de cooperação, mas a verificação de uma espécie qualificada de
cooperação que seja apta a conduzir à “execução de um fim comum a partir de uma
estrutura organizacional para tal”.90
Nesse ponto, cabe indagar em que medida as networks não deveriam ser, de
fato, consideradas negócios associativos, na medida em que têm como premissa o
fato de que seus integrantes trabalham para finalidade comum em benefício de todos.
Aqui, é interessante o ponto de vista de Wiedemann e Schultz,91 para quem finalidades
individuais e coletivas sempre estarão sobrepostas nas networks, sendo possível identificar
qual interesse será priorizado no caso concreto para, assim, melhor compreender a
dinâmica da rede.92 Em síntese, tanto os contratos associativos quanto as redes exigem
relevante dimensão organizacional e procedimentalização, questões relacionadas a um
dos paradoxos centrais das redes contratuais: a busca simultânea do interesse coletivo
e do interesse individual, lembrando que os integrantes da rede poderão conservar
interesses contrapostos.93
Apesar da centralidade da noção de fim comum às networks, é necessário distinguir,
de acordo com a lição de Teubner,94 “fim comum” de “fim unitário”, uma vez que
interesses individuais e coletivos se fazem presentes a um só tempo. É justamente a
presença simultânea de interesses individuais e interesse comum que dificulta a aplicação
direta dos preceitos de Direito Societário à espécie, ressaltando característica essencial das
networks. Nesse sentido, a adoção de modelo “quase-societário” igualmente não parece
adequada, na medida em que, em primeiro lugar, não há compartilhamento de áleas e
tampouco distribuição de lucros. Para mais além, considerando que contratos associativos
não necessariamente conterão as cláusulas essenciais do contrato de sociedade,95 tem-se
que, nas networks, não há qualquer membro que possa tomar decisões pelos outros.96 Desse
modo, por mais que exista fim comum, não há empresa comum – elemento definidor
dos contratos associativos – e tampouco direção unitária – elemento que, como se verá
a seguir, é determinante para a configuração de grupo societário.

5.3 A rede contratual como grupo econômico


A união de entes empresariais autônomos para um fim comum, elemento defini­
dor das networks, não é exclusividade deste conceito pouco explorado pelos ordena­men­
tos jurídicos ao redor do mundo. Pelo contrário, trata-se de definição que se aproxima

89
Essa distinção pode ser encontrada em Ricardo Lorenzetti (Op. cit., v. 3, p. 242-244), para quem a colaboración
gestoria se diferencia da colaboración asociativa pelo fato de, na primeira, determinado agente delegar a outro a
realização de ato jurídico, ao passo que na segunda não há delegação, mas interesse ou finalidade comuns.
90
FRAZÃO, Op. cit., 2015b, p. 197.
91
WIEDEMANN, Herbert; SCHULTZ, Oliver. Grenzen der Bindung bei langfristigen Kooperationen. Zeitschrift für
Wirtschaftrecht. p. 1-12, 1999.
92
WELLENHOFER, Marina. Drittwirkung von Schutzpflichten im Netz. In: SCHLIESKY, Utz et al. Schutzpflichten
und Drittwirkung im Internet: Das Grundgesetz im digitalen Zeitalter. Baden: Nomos, 2014.
93
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 118.
94
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 122.
95
Ver: FRAZÃO, Op. cit., 2015b.
96
GRUNDMANN, Op. cit., p. 727-729.
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AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
443

em grande medida da ideia de grupo econômico, que se verifica em diversas searas


do Direito. Esclarece Teubner97 que, da mesma forma que ocorre com as networks, as
normas disciplinadoras dos grupos econômicos são marcadas pela tensão entre relações
individuais compostas por empresas independentes e organizações unitárias complexas.
Tal contradição, aponta o autor, se verifica principalmente na compreensão segundo a
qual grupos econômicos são “empresas policorporativas”.98
Conforme ensina Engrácia Antunes,99 a “empresa plurissocietária ou de grupo”
– observável no Direito Comparado sob as denominações “corporate group”, “Konzern”,
“groupe de sociétés”, “grupo di società”, dentre outras – “é convencionalmente definida
como uma nova forma de organização empresarial na qual uma pluralidade de entes
societários juridicamente independentes [...] se encontram subordinadas a uma direcção
económica unitária e comum exercida por um desses entes sobre os demais”. Com isso, os
grupos societários se caracterizam justamente pela independência jurídica das sociedades
agrupadas e pela unidade econômica do conjunto (“que se comporta efetivamente no
mercado como de uma única empresa se tratasse”100), como sói ocorrer com as networks.
Os grupos societários são disciplinados pela Lei das S.A., que distingue grupos
de direito de grupos de fato. Grupos de direito, extremamente incomuns na realidade
brasileira, são criados mediante convenção por meio da qual as sociedades integrantes
se obrigam a combinar recursos ou esforços para atingir finalidade comum (art. 265).
De outro lado, grupos societários de fato decorrem não de convenção, mas da existência
de direção unitária sobre as sociedades integrantes do agrupamento.101
Importa notar, aqui, que a importância da disciplina dos grupos econômicos para
as networks não se refere diretamente à possibilidade teórica de equiparar um fenô­meno
ao outro, mas sim de as networks, pelo fato de não disporem de disciplina especí­fica e
também por suas características, serem consideradas grupos de fato. Verdade seja dita
que, ainda que se pretenda traçar distinções teóricas entre as duas figuras, a linha que
as separa é tênue, razão pela qual as networks deverão contar com estrutura obriga­cional
transparente e que afaste a possibilidade de se cogitar em direção unitária.
Segundo Ana Frazão,102 o critério da direção econômica unitária, visto a partir
de um conjunto de estratégias baseadas na existência de uma política geral do grupo,
diz respeito a poder de fato que se projeta sobre as mais diversas áreas estratégicas de
atuação das sociedades agrupadas, dentre as quais a comercial, a laboral, a produtiva,
a de controle, dentre outras. Nesse sentido, Engrácia Antunes103 procura apresentar
elementos por meio dos quais é possível compreender a direção unitária, a saber: (i) a
existência de filosofia geral comum ao grupo; (ii) estrutura geral comum; (iii) objetivos
e estratégias comuns; (iv) política geral de funcionamento do grupo em áreas como
marketing, produtos, finanças e pessoal; e (v) supervisão sobre essas operações.

97
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 133.
98
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 133.
99
ANTUNES, José Engrácia. Estrutura e responsabilidade da empresa: o moderno paradoxo regulatório. Revista
DireitoGV, v. 1, n. 2, p. 29-68, jun./dez. 2005. p. 47.
100
ANTUNES, Op. cit., 2005, p. 47.
101
ANTUNES, Op. cit., 2005, p. 45-46.
102
FRAZÃO, Ana. Grupos societários no direito do trabalho: critérios de configuração e consequências. Revista
Semestral de Direito Empresarial, n. 16, p. 113-151, jan./jun. 2015a, p. 118-119.
103
ANTUNES, José Engrácia. The governance of corporate groups. In: ARAUJO, Danilo; WARDE JR., Walfrido
(Org.). Os grupos de sociedades: organização e exercício da empresa. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 55.
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444 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Embora todos esses elementos – em grande medida presentes nas networks –


sejam úteis na identificação de grupos econômicos, podendo implicar distintos graus
de integração entre as sociedades participantes, o elemento mais característico da
direção unitária de qualquer grupo é a unidade da política financeira, o que permite
“centralizar as decisões relacionadas à afetação de lucros distribuíveis, à constituição
de reservas, às prioridades de investimento, à concessão de créditos e, sobretudo, às
fontes de financiamento”.104
Vale, portanto, repisar que as empresas integrantes das networks mantêm sua
autonomia financeira, suas áleas, seus riscos. O que se cria nas networks é, na verdade,
uma estrutura de incentivos que oriente os integrantes a um fim comum, o que se dá não
pela direção econômica unitária, mas pelo reconhecimento de cada uma das sociedades
integrantes de que a busca pelo fim comum contribui para o sucesso individual dos
entes societários. No entanto, os grupos econômicos são institutos não apenas de Direito
Societário, mas também figuram nos regramentos de outras searas, especialmente nas
áreas de regulação cogente que objetivem proteger interesses extraindividuais ou de
vulneráveis, como é o caso do Direito da Concorrência, do Direito do Trabalho, do
Direito Tributário, dentre outras.
Tanto na configuração de grupos societários de fato como – com critérios mais
amplos – nas áreas de regulação cogente, a verificação da ocorrência de grupo estará
pautada pela ideia de prevalência de realidade sobre a forma, motivo pelo qual é
essencial que se esclareça que o elemento definidor de grupo em qualquer dessas searas
é a direção econômica unitária. Note-se, aqui, que direção econômica unitária não se
reduz à noção de controle, que nada mais é do que um meio de implementação de
direção unitária, o que pode ocorrer por diversas outras formas, a exemplo dos grupos
pessoais – “instituídos pela coincidência das administrações de diversas sociedades”,105
agindo de forma coordenada – e da influência significativa.106 Daí o motivo pelo qual é
necessário refletir sobre a responsabilidade interna e externa dos membros das networks,
como se verá mais adiante.

5.4 A rede contratual como contratos coligados


Antes de refletir sobre a possível concepção das networks como instituições jurídicas
sui generis, há, ainda, outra figura jurídica que pode ser aproximada das redes contratuais
para esclarecer algumas de suas peculiaridades: os contratos coligados ou conexos.
Contratos conexos são negócios interligados, de um lado, por um nexo econômico ou
funcional e, de outro, pela intenção de coordenação dos negócios em direção a um
escopo comum.107 A premissa fundamental da coligação contratual – bastante cara às
networks – é a de que não há contratos isolados do restante do mundo jurídico, sendo
necessário buscar o vínculo “capaz de impor algum tipo de efeito jurídico peculiar aos

104
FRAZÃO, Op. cit., 2015a, p. 119.
105
FRAZÃO, Op. cit., 2015a, p. 123.
106
FRAZÃO, Op. cit., 2015a, p. 121-134.
107
MARINO, Francisco de Paulo Crescenzo. Contratos coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 107.
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AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
445

contratos por ele interligados, um vínculo que possua relevância não apenas econômica,
mas especificamente jurídica”.108
A conexão contratual pode ser identificada nos mais diversos âmbitos, podendo
ser considerados contratos coligados inclusive aqueles contratos cujas partes coincidam.109
No entanto, o que interesse para o presente estudo são os contratos conexos celebrados
por partes diversas ou, mais especificamente, por mais do que dois entes empresariais
distintos e autônomos que, porém, ingressam em cadeia cooperativa em razão da
afinidade entre as relações contratuais das quais são partes. Nesse caso, não basta
considerar os interesses dos integrantes da relação contratual, mas também os interesses
do terceiro contratante, que, porém, não é sujeito completamente alheio ao contrato, na
medida em que integra um dos contratos interligados.110
Desse modo, se está aqui falando na união de contratos de forma e função distintos
em um agregado com função unitária e fim ulterior único, conforme se verifica na figura
italiana do collegamento negoziale. Em complementação, o ordenamento francês conta com
a figura dos groupes de contrats ou ensembles contractuels, apresentando fundamentais
preocupações com os efeitos da coligação contratual sobre o princípio da relatividade,
que necessariamente deve ser mitigado para a garantia da adequada responsabilização
por danos a “terceiros” externos à relação contratual, mas integrantes da coligação.111
Nesse sentido, a teoria das redes de contratos, conforme compreendida pela
doutrina112 e pela jurisprudência113 brasileiras no âmbito da noção geral de contratos
coligados, guarda relação próxima com o princípio da função social dos contratos,
consagrado pelo artigo 421 do Código Civil de 2002. Basta notar que, tendo em vista
a realidade do fenômeno socioeconômico das redes contratuais, a compreensão ex­
clusivamente unitária do negócio jurídico, além de desconsiderar referências às concretas
relações econômicas, desconsidera a dinâmica cooperativa valorizada pela concepção
funcional, que leva em conta todos os interesses atingidos e influenciados pelas relações
contratuais.114 Observe-se, portanto, que a compreensão das redes contratuais por
intermédio da ideia de contratos coligados já é, em certa medida, acolhida pelo Direito

108
KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006. p. 96.
109
KONDER, Op. cit., p. 99-100.
110
KONDER, Op. cit., p. 99-100. Importa perceber que os contratos conexos – muitas vezes referidos como redes
contratuais (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados. In: BRANDELLI, Leonardo. Estudos em
homenagem à Professora Véra Maria Jacob de Fradera. Porto Alegre: Lejus, 2013) – constituem fenômeno já reconhecido
pela jurisprudência brasileira. Nesse sentido, pode-se mencionar caso interessante julgado pelo Tribunal de
Justiça do Ceará no qual se reconheceu a responsabilidade solidária de cooperativas de saúde da “rede Unimed”
pelo fato de os planos de saúde oferecidos no âmbito do sistema Unimed tornarem mais competitivos os
produtos fornecidos pelas cooperativas de saúde (TJCE, 6ª Câmara Cível, Apelação cível 00336818020128060071,
Rel. Des. Maria Vilauba Fausto Lopes, Data de Publicação: 15.07.2015). O fenômeno também já foi reconhecido
pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que identificou: “Empresas que atuam como titulares da mesma cadeia
produtiva, lídimas parceiras de negócios coligados por certo vínculo de reciprocidade econômica, numa autêntica
rede contratual unitária e monolítica – Hipótese em que elas agem como se fossem uma só, por isso respondem
solidariamente” (TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação cível 00257930520128260071, Rel. Des. Ferreira da
Cruz, Data de Publicação: 27.08.2015).
111
KONDER, Op. cit., p. 114-115.
112
KONDER, Op. cit.; MARINO, Op. cit.; LEONARDO, Op. cit.
113
Ver, ainda, nesse sentido: STJ, 4ª Turma, REsp 187940/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Date de Publicação:
18.02.1999; STJ, 3ª Turma, REsp 316640/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Data de Publicação: DJ 07.06.2004.
114
Ver: LEONARDO, Rodrigo Xavier. A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexões a
partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. Revista dos Tribunais, v. 832, p. 100-111, fev. 2005.
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446 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

brasileiro, encontrando fundamento inclusive na tábua principiológica que orienta as


relações privadas.
É justamente a partir do instituto dos contratos conexos, segundo sua compreensão
pelo Direito alemão, que Gunther Teubner pretende desenvolver a ideia de networks co­
nforme compreendida neste trabalho. Partindo das premissas básicas de que o Direito
Societário não apresenta instrumental adequado ao tratamento das networks e que o
Direito Contratual, embora igualmente não seja capaz de regular diretamente tal fenô­
meno, fornece categorias mais aptas a sistematizar tal fenômeno, pelo fato de aco­mo­
darem de maneira mais satisfatória os interesses individuais a serem protegidos, o autor
sustenta a necessidade de criação de um “direito da organização contratual” que incor­
pore elementos organizacionais – isto é, relacionais e multilaterais – à teoria contratual.115
Teubner116 não deixa de admitir, contudo, as dificuldades aqui já expostas no que
se refere aos contratos conexos, instituto abrangente que agrega vínculos funcionais
bastante distintos do fenômeno das networks. Segundo o autor, endereçar a ideia de uni­
dade econômica simultânea a interesses contrapostos requer a generalização da noção
de reciprocidade contida no conceito de contratos conexos por meio de sua definição
como “relação jurídica entre o contrato individual e uma ordem privada extracontratual
espontânea”. Extrapola-se, pois, a noção de sinalagma, porém não se lhe descarta.
Certo é que os contratos conexos oferecem subsídios importantes para a com­
preensão das networks, uma vez que chegam a alterar a própria concepção tradicional
de Direito Contratual fundada na ideia de sinalagma. No entanto, mesmo autores que
defendem a aplicação da teoria dos contratos conexos às networks entendem que ela
necessita ser alterada para abarcar o caráter fundamentalmente institucional das redes
contratuais, agregando os diversos elementos daí decorrentes, a exemplo da conciliação
entre interesses individuais e interesses da rede, da responsabilização interna dos
membros da rede, da responsabilização externa da própria rede, dos deveres atribuídos
a cada um dos integrantes, dentre outras preocupações que não são próprias das redes
contratuais. Tendo em vista esses problemas, não parece suficiente argumentar que as
redes contratuais consistiriam em generalização de uma categoria já existente no âmbito
da teoria dos contratos conexos, ao passo que elas consistem, na verdade, em conceito
que congrega e extrapola elementos de diversos outros institutos relevantes e que, ainda
assim, não encontra em quaisquer deles disciplina jurídica adequada. Por esse motivo, a
título de síntese do exposto nessa seção, o item a seguir tratará da construção da noção
de network como nova categoria dogmática.

6 Consequências do acolhimento da noção de rede contratual sobre a


dogmática clássica
A estabilização de institutos jurídicos em conceitos, como já disse Clóvis
Beviláqua,117 não somente é imposta pela necessidade de ordem que experimenta o
espírito humano, mas também contribui poderosamente para a clareza das ideias. Como

115
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 145.
116
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 145-175.
117
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Red Livros, 1999. p. 49.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
447

já se sinalizou, a posição aqui sustentada – de que networks são conceitos jurídicos sui
generis – consiste em apontar traços teóricos gerais de uma categoria eminentemente
prática e, portanto, dinâmica, com vistas a estabelecer critérios jurídicos mínimos para
compreender o fenômeno em análise e, desse modo, interpretá-lo de modo a conferir
maior segurança às relações econômicas. O intuito da categorização dogmática das
networks é, assim, o de ressaltar as qualidades e vantagens econômicas desse fenômeno,
com vistas a conhecer e regular adequadamente suas peculiaridades e seus efeitos.118
Ao mesmo tempo em que se diferenciam e não encontram regulação adequada
em quaisquer das categorias previamente expostas neste trabalho, as redes contratuais
retiram de cada uma delas noções que compõem sua estruturação. Dessa maneira, a
unidade institucional formada pelas networks é constantemente confrontada com a
autonomia de seus integrantes, paradoxo já comentado por meio da expressão unitas
multiplex. Tendo em vista essas considerações, diversos autores, especialmente no Direito
alemão, têm se dedicado ao esforço do desenvolvimento de uma dogmática jurídica capaz
de dar vazão às demandas oriundas da prática negocial no que tange às redes contratuais.
É o caso de Mattias Rohe,119 que procura traçar uma tipologia das networks a partir de
suas diversas formas de estruturação, distinguindo redes contratuais hierárquicas das
redes de coordenação. Pode-se, também, retirar de trabalhos mais específicos, como o de
Wernhard Möschel,120 voltado às redes de operadoras de cartões de crédito, características
que podem ser generalizadas para o fenômeno das networks como um todo, de modo
a conferir maior segurança especialmente às formas de responsabilização de seus
membros. Por fim, há autores, como os já mencionados Stefan Grundmann121 e Gunther
Teubner,122 que empreendem admirável esforço de sistematização e de estruturação do
quadro dogmático aplicável às redes contratuais.
Expostos os argumentos que fundamentam a necessidade de se criar uma nova
dogmática que dê conta do fenômeno das networks, os tópicos a serem esboçados a seguir
cuidarão de alguns dos principais aspectos teóricos-jurídicos concernentes às networks no
Direito brasileiro, considerando as peculiaridades do Direito Privado pátrio juntamente
do contributo teórico oriundo das pesquisas dos autores supramencionados.

6.1 A causa como critério de identificação do vínculo funcional entre as


relações da rede
Antes de fornecer o merecido tratamento específico aos efeitos das networks, é
importante contar com ferramentas para identificar uma rede contratual, sob pena de os
parâmetros teóricos serem equivocadamente aplicáveis a outros institutos que, embora
similares, já possuem disciplina própria. Já se comentou que as networks não seriam um
fenômeno jurídico, mas fenômeno social e, portanto, de difícil apreensão pela lente do
Direito. Aceita a necessidade de produção de uma dogmática capaz de interpretar tais

118
MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 76.
119
ROHE, Mattias. Netzverträge: Rechtsprobleme komplexer Vertragsverbindungen. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998.
120
MÖSCHEL, Wernhard. Dogmatische Strukturen des bargeldlosen Zahlungsverkehrs. Archiv für die civilistische
praxis. v. 186, n. 1/2, p. 187-236, 1986.
121
GRUNDMANN, Op. cit.
122
TEUBNER, Op. cit., 2011.
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448 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

fenômenos, qualquer análise jurídica sobre as networks deve se dedicar não à estrutura,
mas à função dos instrumentos e relações apresentados ao intérprete.123
A formação das redes contratuais depende de um nexo funcional entre relações
contratuais que dê origem a uma relação cooperativa entre os integrantes dos diversos
negócios pelo fato de uns tirarem proveito do sucesso de outros e, por conseguinte,
serem afetados pelo fracasso dos demais. Nesse sentido, é possível que surjam networks
ainda que esta não seja a origem de seus integrantes, como ocorre nas redes de locação
e sublocação de imóveis. Assim, os motivos determinantes para a estruturação das
networks, como também ocorre com os contratos, são irrelevantes para sua disciplina,124
mesmo porque os motivos que levaram à conclusão de cada um dos contratos individuais
serão, em regra, desconhecidos pelas partes integradas e, para além disso, o motivo
levado em consideração por eventual articulador da network seria, ao menos a priori,
igualmente irrelevante.
A leitura funcional das networks deverá necessariamente estar orientada pela
busca de sua função econômica, que poderá ser verificada a partir da relação da
rede com o mundo exterior, independentemente das relações contratuais unitárias
ali compreendidas. Tal função econômica diz respeito à noção de causa, longamente
trabalhada pela civilística moderna no âmbito dos contratos com vistas a distinguir os
desejos íntimos das partes (motivos) e o elemento objetivo que permite identificar a
função econômica125 do negócio (causa).126 Aqui, vale antecipar, transportam-se as bases
da teoria causalista do contrato para a rede de contratos, sendo relevante não a causa
do contrato, mas a causa da rede.
É por esse motivo que a definição abstrata de causa não tem grande utilidade,
porém sua aplicação concreta serve para a obtenção dos efeitos e regras pertinentes à
espécie.127 Assim, a causa se encontrará consubstanciada na “efetiva producibilidade”
(effettiva producibilità)128 dos efeitos que são próprios da network. Com isso, é a causa que

123
A análise aqui empreendida busca em Norberto Bobbio (Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito.
Barueri: Manole, 2007. p. 57) o pano de fundo teórico para a interpretação das networks: “O que distingue essa
teoria funcional do direito de outras é que ela expressa uma concepção meramente instrumental do direito.
A função do direito na sociedade não é mais servir a um determinado fim (aonde a abordagem funcionalista do
direito resume-se, em geral, a individualizar qual é o fim específico do direito), mas a de ser um instrumento
útil para atingir os mais variados fins. Kelsen não se cansa de repetir que o direto não é um fim, mas um meio.
Precisamente como meio ele tem a sua função: permitir a consecução daqueles fins que não podem ser alcançados
por meio de outras formas de controle social. Quais são, afinal, esses fins, é algo que varia de uma sociedade para
outra: trata-se de um problema histórico que, como tal, não interessa à teoria do direito. Uma vez estabelecido
o objetivo ou os objetivos últimos que um grupo social propõe para si, o direito exerce e exaure a sua função na
organização de um meio específico (a coação) para obter a sua realização”.
124
SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. v. 1, p. 484.
125
De acordo com Orlando Gomes (Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 22), a causa nada mais é do que
a função econômica do contrato, noção que se faz necessária tendo em vista a importância dos contratos como
fato econômico, o que requer disciplina jurídica que promova a estereotipação do regime a que se subordina
determinada operação com vistas a garantir-lhes segurança. Trata-se, portanto, de elemento indispensável
também à análise das networks e, antes de tudo, à “incorporação” desse conceito social ou econômico pelo mundo
jurídico. Se a causa do contrato responde ao imperativo funcional de vinculação da forma simbólica do consenso
ao paradigma utilitário das trocas econômicas (BARCELLONA, Mario. Della causa: il contrato e la circolazione
della ricchezza. Milano: CEDAM, 2015. p. 186), a causa das networks diz respeito à vinculação do liame formado
entre as relações contratuais e os efeitos econômicos daí advindos.
126
CAPITANT, Henri. De la cause des obligations (contrats, engagement unilatéraux, legs). Paris: Librairie Dalloz,
1923. p. 14-16.
127
BARCELLONA, Op. cit., p. 242-243.
128
BARCELLONA, Op. cit., p. 242-243.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
449

permitirá diferenciar objetivamente as redes contratuais de outros fenômenos correlatos,


embora tal esforço de identificação nem sempre seja fácil.
A causa, dessa maneira, como sistematizou Paula Forgioni,129 assumiria diversos
papéis na atualidade: (i) o de atribuir fundamento e relevância jurídica ao contrato;
(ii) o de critério de interpretação do contrato; (iii) o de elemento de qualificação; e (iv)
o de critério de adaptação, “para os casos de necessidade de adequação da avença em
virtude de um novo contexto que abale o programa econômico das partes”. Na acertada
síntese da autora, “a causa coliga o negócio ao mercado, à praça onde nasce, desenvolve-
se e se exaure, permitindo o cálculo do comportamento da outra parte”.130
A causa, desse modo, é importante instrumento para a identificação e interpretação
das networks, porém sua “importação” do Direito Contratual deve receber os necessários
temperamentos. É necessário, nesse sentido, que se reformulem os referenciais adotados
para a definição de causa, que deixa de se referir à conclusão de um negócio específico
para identificar a função econômica do nexo de união entre diversos contratos, cada
qual com sua causa específica. Dessa forma, a causa poderá se traduzir em elemento
analítico poderoso também para a identificação das networks.

6.2 A boa-fé objetiva como critério definidor dos padrões


comportamentais a serem observados pelos membros da rede
A noção de boa-fé objetiva, longe de ser mera orientação programática do
ordenamento, se traduz em norma jurídica cogente que serve tanto de cânone inter­
pretativo dos contratos quanto de standard comportamental geral.131 De acordo com
Judith Martins-Costa,132 o conteúdo da boa-fé objetiva sempre será especificado de
maneira relacional, de modo a reforçar e proteger os valores aplicáveis às circunstâncias.
Segundo a autora, a boa-fé serve como “pauta de interpretação, fonte de integração e
critério para a correção de condutas contratuais”.133
No Direito Comercial, contrariamente ao que sói ocorrer no Direito Civil,134 a boa-
fé objetiva não desempenha função moral ligada a valores descolados da realidade do
negócio, mas se orienta sobretudo pela busca do “melhor funcionamento do mercado”.135
Na síntese de Paula Forgioni,136 a boa-fé reforça não somente a confiança entre os agentes
econômicos, mas a confiança no sistema como um todo: “A boa-fé, no sistema de direito
comercial, é um catalisador da fluência das relações no mercado”. Portanto, a boa-fé não

129
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 529.
130
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 529.
131
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons,
2015. p. 40. Segundo a autora (MARTINS-COSTA, Op. cit., 2015, p. 42), pode-se conceber a boa-fé objetiva como
“(i) fonte geradora de deveres jurídicos de cooperação, informação, proteção e consideração às legítimas
expectativas do alter, copartícipe da relação obrigacional; (ii) baliza do modo de exercício de posições jurídicas,
servindo como via de correção do conteúdo contratual, em certos casos, e como correção ao próprio exercício
contratual; e (iii) como cânone hermenêutico dos negócios jurídicos obrigacionais”.
132
MARTINS-COSTA, Op. cit., 2015, p. 41-42.
133
MARTINS-COSTA, Op. cit., 2015, p. 42. No mesmo sentido: AZEVEDO, Antônio Junqueira. O princípio da boa-fé
nos contratos. Revista CEJ, v. 3, n. 9, set./dez. 1999.
134
AMARAL, Francisco. Código Civil e interpretação jurídica. Revista Fórum de Direito Civil, v. 3, n. 5, jan./abr. 2014.
135
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 552.
136
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 552.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
450 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

é meramente regra de conduta abstrata a ser observada pelos agentes econômicos em


todas as suas relações, mas desempenha também a essencial função de otimização do
comportamento contratual. O exercício desse papel se dá, de um lado, pela imposição
de deveres de cooperação e de proteção dos interesses recíprocos das partes e, de outro,
pelo emprego de tal princípio como cânone de intepretação e integração do contrato de
acordo com a função econômica que se lhe atribui.137
Interpretar relações contratuais ou, no que interessa ao presente trabalho, redes
contratuais segundo a boa-fé significa “considerar o modelo de comportamento social
esperado das pessoas que estivessem no contexto da parte contratante”, o que implica
avaliar e considerar diversos níveis de diligência.138 Aqui, portanto, a boa-fé objetiva
tem por objetivo estabelecer o padrão comportamental a ser observado pelos agentes
econômicos que pretendam manter relações seguras e minimamente previsíveis. A boa-
fé objetiva no Direito Comercial, portanto, está relacionada antes de tudo ao respeito e
à confiança nas “regras de jogo” do mercado juridicamente organizado. Desse modo,
“o comportamento honesto não implica gasto, mas sim economia, tanto para o agente
[...] quanto para o mercado como um todo, que tenderá a diminuir a incidência de custos
de transação pelo aumento do grau de certeza e de previsibilidade”.139
No âmbito das networks, a boa-fé objetiva se projeta em três dimensões distintas:
(i) nas relações entre os contratantes, orientando a forma e a intensidade do dever de
cooperação ali vigente; (ii) nas relações dos contratantes com a network, manifestando-se
como dever de lealdade; (iii) nas relações da network com terceiros, quando se lhe deve
considerar agente econômico único que deve observar as “regras do jogo” aplicáveis a
todos os comerciantes. Todas essas considerações estão fortemente interligadas com a
noção de “finalidade” ou, como se demonstrará a seguir, interesse da rede.
As networks são fundamentalmente caracterizadas pela existência de demandas
contraditórias, uma vez que seus integrantes sempre terão interesses autônomos que
muitas vezes estarão contrapostos entre si e, possivelmente, com relação à network.
No entanto, é a cooperação entre entes autônomos com interesses contrapostos que
permite a própria formação das networks, produzindo uma unidade econômica
independente de suas partes integrantes. Assim, a cooperação pode ser sustentada a longo
prazo através do arranjo efetivo dos interesses dos agentes econômicos componentes da
rede, mediante a criação de uma estrutura de incentivos de disseminação da informação
e de potencialização de ativos intangíveis compartilhados por todos.140 O ponto aqui
sustentado é que, nas networks, para além dos necessários cuidados oriundos da função
social dos contratos no que diz respeito à proteção de terceiros,141 a boa-fé objetiva cria
verdadeiro dever de cooperação, que nas redes contratuais adquirirá características
idiossincráticas.

137
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale).
Cadernos do programa de pós-graduação direito UFRGS, v. 2, n. 4, p. 347-379, 2004. p. 357.
138
GOMES, Op. cit., 2007, p. 46.
139
FORGIONI, Op. cit., 2011, p. 102.
140
POWELL, Walter W. Neither market nor hierarchy: network forms of organization. Research in organizational
behavior. v. 12, p. 295-336, 1990. p. 322.
141
Ver: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. A doutrina do terceiro cúmplice: autonomia da vontade, o princípio res
inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. Revista dos
Tribunais, v. 821, p. 80-100, mar. 2004.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
451

Segundo Ruy Rosado de Aguiar Jr.,142 da boa-fé objetiva decorre o dever de


mútua cooperação, por meio do qual se pode exigir das partes os meios necessários
ao adim­plemento pela parte contrária. Em outras palavras, “o dever de cooperação
se torna essencial para que as partes possam realizar suas prestações da forma mais
eficiente possível, visando a que o credor da prestação possa recebê-la de forma a lhe
dar maior e melhor utilização”.143 Dessa maneira, o dever de cooperação é “o dever de
fazer tudo aquilo que for necessário para auxiliar a outra parte a cumprir sua prestação
sob o contrato”.144 No caso das networks, o dever de cooperação se dará não no âmbito
das relações individuais dos agentes econômicos componentes, mas servirá como viga
mestra da unidade econômica da rede contratual, sem a qual ruiria todo o edifício de
incentivos econômicos consubstanciado na ideia de network.
No que tange às relações dos integrantes com a rede, não se fala exclusivamente
em cooperação, mas também em dever de lealdade que se assemelha àquele verificado no
âmbito das sociedades. Tal aproximação é útil pelo fato de as networks igualmente estarem
constantemente ameaçadas por “problemas de agência”, isto é, conflitos de interesse
(em sentido amplo) no âmago da rede.145 Adaptando-se a sistemática traçada por Ana
Frazão146 para as sociedades por ações, o dever de lealdade se traduz especialmente nas
redes contratuais: (i) no dever de agir em prol da network; (ii) na vedação ao conflito de
interesses individuais dos integrantes com o interesse coletivo da network; (iii) no dever
de sigilo, por meio do qual as informações compartilhadas no âmbito da network em seu
interior se mantêm; e (iv) no dever de diligência, de modo a assegurar o atendimento
às expectativas de eficiência e de ganhos conjuntos da network.
O dever de lealdade à network como um todo, conforme aponta Teubner,147 é
necessário para a obtenção dos efeitos de rede, porém a intensificação desses deveres –
especialmente nas redes que têm um agente econômico central – pode levar à formação
de relações de subordinação, o que pode suscitar preocupações relativas à formação de
direção unitária ou de dependência econômica.148 De outro lado, contudo, o ocupante
da posição central da rede terá os correspondentes deveres de transparência e de
compartilhamento das informações necessárias à coordenação interna, bem como a
obrigação de não discriminação dos membros da rede.149
Por fim, no que tange às relações com terceiros, é importante perceber que as
networks não são entes jurídicos autônomos capazes de titularizar direitos e obrigações
em nome próprio. Pelo contrário, direitos e obrigações são titularizados tão somente
pelos membros da network que, estes sim, celebrarão relações contratuais com terceiros

142
AGUIAR JR., Ruy Rosado. O código civil de 2002 e a jurisprudência do STJ em matéria obrigacional. In: LOTUFO,
Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues. Temas relevantes do direito civil contemporâneo:
reflexões sobre os dez anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012. p. 193.
143
SCHUNCK, Giuliana Bonanno. Contratos de longo prazo e dever de cooperação. São Paulo: Almedina, 2006. p. 130.
144
SCHUNK, Op. cit., p. 144.
145
FRAZÃO, Op. cit., 2011, p. 332-343.
146
FRAZÃO, Op. cit., 2011, p. 332-343.
147
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 189.
148
Em contratos como o de franquia, é a lealdade à rede que dá fundamento à padronização dos procedimentos
dos agentes integrantes da rede, porém especial cuidado deve ser direcionado a essas situações para que não se
esvazie o espaço de autonomia desses agentes conectados (TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 189).
149
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 188.
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452 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

usufruindo das vantagens da integração à rede. Por esse motivo, não há propriamente
deveres atribuídos à network para interagir com terceiros, mas há, sim, um acirramento
dos deveres de cooperação e lealdade de seus integrantes em suas relações com o mundo
externo, exigindo-se padrão geral de diligência que permita manter as expectativas de
eficiência projetadas sobre a rede contratual.

6.3 A necessária reflexão sobre o interesse social para a conciliação de


interesses contrapostos: a noção de “interesse da rede”
As networks são caracterizadas pela convivência entre diversos entes autônomos
que, unidos por um fim comum – seja a maximização geral de lucros, seja o desenvol­
vimento de nova tecnologia ou qualquer outro objetivo –, modificam seu comportamento
de maneira a gerar eficiências para todos os membros da rede. Ocorre que, diferentemen­
te de estruturas societárias, nas quais os integrantes de uma mesma sociedade coope­
ram mutuamente para alcançar as finalidades almejadas por sua empresa comum, as
networks são fundamentalmente formadas por agentes autônomos com interesses muitas
vezes contrapostos. Assim, faz-se necessário que as redes contratuais disponham de
mecanismos de governança capazes de dar conta de eventuais conflitos de interesse.
Relembre-se, aqui, que potenciais conflitos de interesse representam um dos
paradoxos constitutivos das networks: coincidentia oppositorum, ou seja, coincidência entre
opostos. Significa dizer que, sendo os interesses contrapostos elementos essenciais das
networks, sempre haverá contradições entre os anseios individuais de cada um de seus
componentes. Conforme aduz Teubner,150 o processo decisório interno das networks está
simultaneamente sujeito às demandas contraditórias do intercâmbio bilateral – isto é,
das relações de cada um dos membros da rede com o mercado – e da conectividade
multilateral –, isto é, o todo funcional que permite identificar a composição da network.
A composição desses interesses contrapostos com o interesse geral da rede é, sem dúvida,
um dos maiores desafios na reflexão sobre o conceito jurídico de network, inclusive para
que tal noção não seja indevidamente confundida com o conceito de empresa ou com
grupos econômicos de fato.
Cabe notar que a estabilização de expectativas oriundas dessas demandas
contraditórias se dará contextualmente, havendo situações nas quais poderá predominar
o interesse individual ou o coletivo. É necessário identificar contextos nos quais os
deveres tradicionalmente oriundos da boa-fé objetiva serão interpolados por deveres
intensificados de lealdade com relação à network.151 Assim, por exemplo, em redes de
franquias é comum que um membro central imponha padrões de comportamento
que devem necessariamente ser respeitados pelos membros da rede para que a união
faça sentido economicamente, ainda que o comportamento destoante do grupo possa
parecer vantajoso para algum dos membros individuais. Tais deveres de lealdade
inten­sificados não são meramente abstratos, mas se traduzem em deveres concretos de

150
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 182.
151
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 184-194.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
453

compartilhamento de informação entre os membros (e de confidencialidade com relação


a terceiros), de não discriminação, dentre outros.152
Urge, portanto, que se formulem ferramentas teóricas capazes de, à semelhança
do instituto do conflito de interesses nas sociedades anônimas, estabelecer deveres por
meio dos quais tais contradições entre interesses individuais dos agentes autônomos
e interesses da network sejam solucionadas. O modelo aqui proposto consistirá na
conjunção de elementos contratuais e societários – ou mercado e hierarquia – para a
consecução dessa finalidade, considerando a moderna tendência do Direito Privado de
valorização da autonomia privada e de otimização da liberdade contratual por meio de
padrões protetivos baseados não necessariamente na regulação estrita, mas em cláusulas
gerais153 e, principalmente, na valorização dos deveres internos – muito mais morais154 ou
reputacionais do que jurídicos – que ganham força vinculante em virtude da incidência
da boa-fé objetiva.155
Para que se possa cogitar de uma regra de resolução de conflitos de interesse
para as networks, porém, é necessário refletir sobre a possibilidade de se transportar a
noção de interesse social a esse novo campo. Contudo, vale lembrar que a questão do
interesse social constitui o que se considera o “‘problema fundamental’ das sociedades
por ações”,156 especialmente em razão do embate entre contratualistas e institucionalistas.
Por esse motivo, é necessário que se tomem as devidas cautelas ao cogitar de um
“interesse da rede”.
De acordo com as teorias contratualistas, o interesse social se resume ao interesse
comum dos sócios,157 o que não significa dizer que o interesse social se resume ao
somatório dos interesses individuais dos sócios, mas diz respeito a “um interesse ex causa
societatis, decorrente do seu status socii”.158 Conforme ensina Ana Frazão,159 distingue-se o
interesse social do interesse dos sócios, ainda que se admita a convergência entre ambos,
de sorte que a causa mediata dos acionistas (o lucro) não pode comprometer a causa
imediata da empresa (a consecução do objeto social).
Contrapõem-se ao contratualismo as teorias institucionalistas,160 introduzidas pelo
empresário Walther Rathenau no início do séc. XX. Rathenau notou que a sociedade
anônima não mais se prestava aos interesses privatistas que motivaram a sua criação
no início da revolução industrial, mas deveria ser modificada para compreender o
fenômeno da macroempresa. Trata-se da teoria da “empresa em si” (Unternehmen an sich),

152
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 184-194.
153
Ver: GRUNDMANN, Stefan. The future of contract law. European review of contract law, v. 7, n. 4, p. 490-527, 2011.
154
Nesse sentido, ver: RIPERT, Georges. La regle morale dans les obligations civiles. Paris: Librairie Générale de Droit
et Jurisprudence, 1925.
155
BERNSTEIN, Op. cit.
156
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. (e outros escritos sobre
conflito de interesses). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 27.
157
Ensina Calixto Salomão Filho (O novo direito societário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 27-30) que é importante
a distinção entre o contratualismo clássico, em que se definia o interesse social sempre como o interesse dos
sócios atuais, definindo-se de forma concreta; e o contratualismo moderno, em que o interesse social é conceito
predefinido, não tendo os órgãos sociais qualquer poder de ingerência sobre ele.
158
FRANÇA, Op. cit. p. 43.
159
FRAZÃO, Op. cit. p. 65.
160
Importa delinear os principais aspectos de algumas das principais teorias institucionalistas, à medida que
apresentam diferenças decisivas, ao passo que as teorias contratualistas, conforme a síntese de Valladão (Op. cit.
2014. p. 41-42), caracterizam-se por constituírem “unidade na diversidade” das teorias desenvolvidas.
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454 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

criticada por reduzir os direitos dos acionistas em favor do superior interesse da empresa,
promovendo-a a um ente “místico” com suposto interesse autônomo.161 Apesar das
objeções à noção de Unternehmen an sich, nota Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França
que tal concepção foi acolhida pela legislação alemã e influenciou diversas legislações.162
A breve exposição das teorias sobre o interesse social nas companhias é útil para a
reflexão sobre a possível existência de um “interesse da rede”. Haveria um interesse da
rede como ente autônomo ou se trataria tão somente do interesse de um agente econômico
focal capaz de organizar uma rede de contratos em torno de si? Não seria o interesse
da network tão somente a soma dos interesses individuais de seus componentes, que se
aproveitam mutuamente da estrutura de incentivos ali instaurada? As respostas para
tais perguntas podem ser encontradas justamente nos momentos de conflito entre os
interesses individuais e o interesse coletivo da network, uma vez que, ainda que existam
interesses contrapostos, é perfeitamente razoável pensar na existência de deveres de
manutenção da rede contratual.
Dessa maneira, impor-se-ia aos integrantes da rede um dever não de agir no inte­
resse dos outros integrantes – já que todos eles podem ser concorrentes –, mas de agir
no sentido e em defesa do sistema em que se encontram inseridos. Observe-se que tais
obrigações, como já se referiu, podem ser extraídas da própria função social do contrato,
por meio da qual se alarga o princípio da relatividade para que terceiros também sejam
responsáveis pela manutenção de determinada relação. Porém, aqui se pretende ir mais
além, localizando tal obrigação na sistemática das networks de modo a criar verdadeira
regra de vedação ao conflito de interesses. Assim, por exemplo, pode-se cogitar de
mecanismos procedimentais – possivelmente firmados nos já mencionados “contratos-
quadros” – para que um dado franqueado possa se voltar contra outro franqueado que
esteja agindo de maneira a prejudicar a marca do franqueador e, portanto, o sucesso
dos demais integrantes da rede.163
Na verdade, o conflito de interesses a ser tutelado no âmbito das networks não se
resumirá ao preterimento direto de um membro da network por outro, mas o compor­
tamento oportunista apto a desestruturar as sinergias proporcionadas pela estrutura
de rede.164 Não se trata, portanto, do estabelecimento de mecanismos de comando e
controle similares àqueles impostos por cartelistas, mas de estrutura de monitoramento
do cumprimento dos termos contratuais – e das legítimas expectativas – que deram
origem à relação entre as diversas partes envolvidas. Resta, portanto, saber de que
maneira se poderá estruturar a responsabilidade dos membros da network entre si e
perante terceiros, seja para garantir o seu funcionamento interno, seja para responder
ade­quadamente às instâncias de controle.

161
FRANÇA, Op. cit. p. 31.
162
FRANÇA, Op. cit. p. 32. Note-se, contudo, que esta não se trata da única teoria institucionalista, sendo importante
destacar a teoria da instituição de Hauriou, para quem instituição é obra ou empresa que se realiza e dura
juridicamente em determinado meio social, articulando-se através de um poder regulado por procedimentos
e distribuído pelos órgãos necessários para tanto. Assim, a sociedade anônima seria um corpo que transcende
o contrato que lhe deu origem. Tratar-se-ia, todavia, de teoria dotada de conceitos demasiadamente vagos e
nebulosos, não sendo capaz de desvendar a estrutura das sociedades (FRANÇA, Op. cit. p. 36-37).
163
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 299.
164
POWELL, Op. cit., p. 325-328.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
455

7 A governança das redes contratuais e a gestão de seus paradoxos


essenciais
Os paradoxos que fundamentalmente estruturam as redes contratuais desafiam
o instrumental analítico disponível justamente pelo fato de a dogmática contratual ou
societária existentes não serem capazes de endereçar adequadamente as demandas dessas
formas organizativas sui generis. A compreensão teórica da existência desses fenômenos
para o mundo jurídico, contudo, não é suficiente para operacionalizar seu funcionamento.
Para a afirmação de sua autonomia, é necessário que se construam os mecanismos
pelos quais será assegurada a adequada correlação entre poder e responsabilidade,
uma vez que já se afastou a aplicação dos regimes dos contratos, das sociedades e dos
grupos econômicos. No que diz respeito a tal correlação, inclusive no que tange às áreas
de regulação cogente – que tendem a aplicar o regime de responsabilidade do grupo
econômico –, resta ainda perguntar: quid juris? Nesta última seção, portanto, serão
expostas algumas das preocupações relativas à gestão dos riscos empresariais – e, por
conseguinte, da responsabilidade – nas networks, elementos de importância central para
o desenvolvimento da atividade econômica.

7.1 O papel da autoridade nas networks: dependência econômica e o


risco do controle externo
Por mais que redes contratuais sejam “entes multicorporativos” por excelência,
contando com diversos centros de tomada de decisão, é fundamental que contem com
estruturas de governança aptas a ordenar a produção dos efeitos desejados. A au­
toridade, importa notar, é mecanismo de governança distinto da hierarquia, que quali­
fica os contratos de sociedade. Segundo Ménard,165 a relação hierárquica é fundada em
assimetrias não negociáveis e na capacidade de comandar sujeitos subordinados. A au­
toridade, por outro lado, consiste na delegação, por entidades juridicamente distintas,
do poder de decisão sobre uma classe de ações que lhes caberiam. Dessa maneira, a
autoridade representa instrumento de governança por meio do qual se poderá influenciar
o comportamento dos integrantes da network. É a autoridade que, congregando lealdade
e liderança, será capaz de instaurar e manter a ordem privada que regulará a relação
entre as entidades autônomas.
A existência de autoridade, por conseguinte, importará na verificação de algum
grau de subordinação. Por mais preservada que permaneça a autonomia das partes,
o desenrolar da relação poderá firmar as bases de verdadeira relação de dependência
econômica que poderá justificar adaptações e a solução de eventuais conflitos.166
Não há, porém, nenhum pecado nisso: nem sempre redes de franquia, redes de
distribuição ou outros tipos de redes contratuais serão estabelecidos por partes
materialmen­te equiparadas. Na verdade, é usual que relações como essas tenham suas

165
MÉNARD, Claude. Le pilotage des formes organisationelles hybrides. Révue economique, v. 48, n. 3, p. 741-750,
maio 1997, p. 743-748.
166
MÉNARD, Op. cit., 2004, p. 353.
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456 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

condições estabelecidas por uma empresa central com a qual os outros integrantes da
rede manterão relação de dependência em maior ou menor grau.167
A dependência econômica, portanto, não constitui, por si só, disfunção das redes
contratuais. Nesse ponto, existe forte tendência de criação do que Schanze168 denominou
por “dupla estrutura de agência”, isto é, uma relação de interdependência que garantiria
a cada uma das partes a apropriação das rendas oriundas de seus próprios interesses
que, embora convergentes, são autônomos. Tal situação de fato somente passa a ser
preocupante, porém, na medida em que se aproxima da situação de controle externo. A
hipótese de controle externo, ensina Ana Frazão,169 pode ocorrer em qualquer contrato,
porém encontra nas relações de longo prazo campo mais fértil para seu desenvolvimento.
No controle externo, o poder de dominação será exercido ab extra, ou seja, por controlador
que não será sequer integrante de órgão social da empresa controlada.170 Ocorre que,
existindo controle externo, fica caracterizado grupo contratual que, por conseguinte,
consistirá em ato de concentração a ser submetido ao controle prévio do CADE, nos
termos do artigo 90 da Lei nº 12.529/2011.171 Assim, descaracteriza-se a forma da network
e perdem-se os efeitos por meio dela almejados.
Segundo Ana Frazão, “há de se ter cautela para não fazer generalizações excessivas
que possam comprometer as diferentes formas pelas quais os agentes empresariais
alocam e gerenciam os riscos do negócio”.172 Ainda que aqui se pretenda defender a
autonomia das networks como forma jurídica peculiar, não se pode deixar de considerar
a possibilidade de controle externo e concentração econômica – especialmente pelo
exercício de direção unitária – no tratamento de tal conceito, devendo as relações de
autoridade estar pautadas pela transparência e pela não interferência nas esferas de
autonomia das partes integrantes da rede.
A governança das relações de autoridade no âmbito das redes contratuais,
portanto, deve constituir preocupação central dos agentes econômicos integrantes de
tais vínculos, implementando-se mediante cláusulas capazes tanto de endereçar os
interesses dos membros da rede – mantendo, pois, sua autonomia – quanto de preservar
a existência de um interesse coletivo da rede, evitando sua substituição pelo interesse
individual de um membro central.

7.2 Responsabilidade interna dos membros da rede


Já se adiantou que a estruturação de redes contratuais projeta importantes efeitos
sobre a interpretação e integração das relações jurídicas, de modo a acentuar e expandir
deveres de lealdade que, antes adstritos aos limites da relatividade contratual, passam a
alcançar todos os integrantes do sistema instaurado. Igualmente já se sinalizou que, nas

167
COLLINS, Hugh. Legal regulation of dependent entrepreneurs: comment. Journal of institutional and theoretical
economics, v. 152, n. 1, p. 263-270, mar. 1996, p. 266.
168
SCHANZE, Erich. Symbiotic arrangements. Journal of institutional and theoretical economics, v. 149, n. 4, p. 691-697,
dez. 1993.
169
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 233.
170
COMPARATO; SALOMÃO FILHO, Op. cit., p. 87.
171
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 233.
172
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 235.
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AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
457

networks, por mais que se preserve a autonomia das partes, produz-se algum grau de
interdependência na medida em que os êxitos, os fracassos e mesmo a inércia de cada
uma das partes projetam efeitos sobre toda a rede. Exemplos notáveis são os problemas
do free riding – quando determinados sujeitos se aproveitam das eficiências decorrentes
dos esforços de outros sem contribuir eles próprios para o sucesso dos elementos
compartilhados da rede – e da agência173 – verificável quando ocorrem conflitos entre
os interesses do membro central da rede e dos demais integrantes.
Se no caso da agência o risco a ser prevenido é da desnaturação da network, na
medida em que o membro principal acaba por solapar a autonomia das partes em virtude
de assimetrias de informação e, assim, muitas vezes produzir situações de controle
externo, o free riding constitui problema de consistência da própria rede. Novamente,
é útil o exemplo das redes de franquia, que se apresentam ao seu público consumidor
como um todo homogêneo, produzindo expectativas de que todos os sujeitos operando
sob aquela marca fornecerão um mesmo padrão de qualidade ao longo de toda a rede.
No entanto, caso algum dos integrantes da rede resolva reduzir custos e entregar pro­
dutos de menor qualidade, a avaliação negativa do consumidor prejudicará não somente
o franqueado, mas todos os franqueados e especialmente o franqueador.174 É por essa
razão que as cláusulas de governança – sobretudo as que permitem a fiscalização dos
franqueados e a eventual imposição de sanções internas – se fazem tão importantes nesses
arranjos. Em cláusulas como essas, é possível estabelecer obrigações de promoção de
determinados valores, de proteção aos membros da rede e mesmo de performance, todas
elas no intuito de proteger os integrantes da rede do free riding e mesmo de salvaguardá-
los contra eventual ação oportunista do membro central.175
Importa notar que a responsabilidade interna dos membros da rede não se resume
à reparação por quebra de deveres contratuais, questão facilmente – ao menos em tese
– resolvida em eventual ação do franqueador contra o franqueado, o que se verifica
na jurisprudência.176 No entanto, conforme aduz Teubner,177 a fraqueza da fiscalização
centralizada é bastante óbvia, na medida em que nem sempre o franqueador pode
estar interessado na manutenção dos padrões de qualidade, seja em razão de lógica
econômica, seja em virtude de relações espúrias que guarde com o free rider. No entanto,
o que se pretende sustentar é que os prejuízos sofridos pelos demais membros da rede
– e, portanto, alheios à relação entre free rider e membro central – também constituem
base razoável para eventual ação de responsabilização.178 A intensificação dos deveres
de lealdade nas networks e a incisiva participação da função social dos contratos produz,
nesses sistemas, especiais deveres para com os demais membros da rede, de sorte que

173
JENSEN; MECKLING, Op. cit.
174
KLEIN, Benjamin; SAFT, Lester E. The law and economics of franchise tying contracts. The journal of law &
economics, v. 28, n. 2, p. 345-361, maio 1985.
175
TEUBNER, Op. cit., p. 227.
176
Nesse sentido: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, A. I. 2098005-33.2017.8.26.0000, Rel. Des. Cesar
Ciampolini, Data de Julgamento: 19.07.2017, Data de Publicação: 25.07.2017.
177
TEUBNER, Op. cit., p. 208.
178
Sobre o paralelo entre responsabilidade contratual e responsabilidade delitual – e eventuais aproximações
necessárias à efetividade dessas noções –, ver: PICKER, Eduard. Vertragliche und deliktische Schadenshaftung –
Überlegungen zu einer Neustrukturierung der Haftungssysteme. JuristenZeitung. v. 42, n. 22, p. 1041-1058, nov.
1987.
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458 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

diversos comportamentos perfeitamente legítimos para agentes econômicos isolados se


tornam ilícitos no âmbito das networks.179
Nesse sentido, tem-se que a legitimidade dos membros das networks para
fiscalizar e proceder à responsabilização uns dos outros decorre não somente de deveres
contratuais expressos, mas dos deveres de conduta oriundos da boa-fé objetiva que são
maximizados por esses sistemas. Assim, na insuficiência de mecanismos contratuais de
fiscalização e controle, é perfeitamente possível que se cogite de ação de responsabilidade
contra os integrantes da rede, que têm a obrigação de manter hígida sua estrutura, bem
como contra o membro central, que jamais poderá abusar de seu poder ao discriminar
alguns membros em detrimento de outros.180

7.3 Responsabilidade externa dos membros da rede


Não se discute que cada membro singular da rede terá de arcar com suas res­
ponsabilidades para com terceiros que com ele se relacionarem. Porém, seria possível
cogitar de uma responsabilidade coletiva dos integrantes da rede? Será que as diversas
“colisões contratuais” que se dão no âmbito das redes, isto é, contradições entre
obrigações internas e externas, serão adequadamente endereçadas pela compreensão da
rede tão somente como uma cadeia de contratos bilaterais inter-relacionados?181 Certo é
que a jurisprudência brasileira já tem dado conta de diversas demandas de terceiros –
especialmente vulneráveis – mediante instrumentos como a responsabilidade solidária
dos integrantes das cadeias de consumo182 – assim alcançando o franqueador por
obrigações do franqueado – e a figura do grupo econômico, já comentada neste estudo.
Porém, tais soluções não são as mais adequadas se o que se pretende é estabelecer um
modelo teórico-dogmático que conceba as redes contratuais como figuras jurídicas
autônomas.
Por conseguinte, é imprescindível que sejam construídos mecanismos de respon­
sabilização das networks, sob pena de tais estruturas servirem tão somente ao propó­
sito de manutenção de arranjos de “irresponsabilidade organizada” (“Organisierte
Unverantwortlichkeit”), com seus integrantes constantemente procurando escapar da
responsabilização sob a alegação ao mesmo tempo em que declaradamente se inserem
em uma complexa estrutura de incentivos econômicos e eficiências.183 É por essa razão
que, à luz do que foi exposto até aqui, fazem-se necessários esforços legislativos de
reconhecimento e regulação das networks, de sorte a preservar a autonomia privada,
porém garantindo a segurança jurídica e a adequada correlação entre poder e respon­
sabilidade.

179
MÖSCHEL, Op. cit., p. 224-225. Conforme já intuiu Ripert (Op. cit., p. 198-224), determinados deveres morais
penetram no mundo jurídico e adquirem força normativa, sendo a responsabilidade civil nada mais do que a
determinação e a sanção legal da responsabilidade moral.
180
A respeito da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas networks, ver: WELLENHOFER, Op. cit.
181
TEUBNER, Op. cit., p. 258. Sobre as “colisões contratuais”, ver: AMSTUTZ, Op. cit.
182
TJPR, 8ª Câmara Cível, Ap. cív. 8487447, Rel. Des. José Laurindo de Souza Netto, Data de Julgamento: 20.09.2012,
Data de Publicação: 29.09.2012; TJSP, 32ª Câmara de Direito Privado, Ap. cív. 10037629720058260562, Rel. Des.
Luis Fernando Nishi, Data de Julgamento: 13.08.2015, Data de Publicação: 13.08.2015.
183
TEUBNER, Gunther. Netzwerk als Vertragsverbund: Virtuelle Unternehmen, Franchising, just-in-time in
sozialwissenschaftlicher und juristicher Sicht. Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2004. p. 204.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
459

Ao menos a priori, não parece razoável considerar a network como um todo unitário
capaz de responder às investidas de terceiros, colocando-se como espécie de holding. Pelo
contrário, a solução para a responsabilização dos membros da network perante terceiros
deve ser encontrada na preservação da autonomia das partes. Não se pode ignorar, nesse
intuito, que redes contratuais serão mais ou menos descentralizadas, de sorte que, nas
formas centralizadas, parece razoável buscar a responsabilização solidária do membro
central, como sói ocorrer em redes de franquias.184
Contudo, como regra geral, propõe-se que a “irresponsabilidade organizada”
seja substituída por mecanismos internos às networks que permitam socializar os
danos eventualmente suportados por algum de seus integrantes em virtude de ação de
responsabilidade. Assim, da mesma maneira que os integrantes das redes compartilham
sinergias em virtude de sua relação cooperativa, nada mais justo do que a repartição
equânime dos encargos atribuídos a algum dos membros, o que igualmente evitará que
as dificuldades operacionais decorrentes do pagamento de eventual reparação gerem
reflexos sobre a reputação da rede como um todo.185 Assim, obtém-se maior transparência
nas relações com terceiros – que estarão lidando com um agente autônomo, e não com
uma coletividade indefinida – e os integrantes da network encontram guarida em seus
parceiros de negócios, mitigando-se os riscos das atividades. O que deve ficar claro,
nesse ponto, é que, independentemente da complexidade dos arranjos contratuais a
serem adotados, as redes contratuais perderão todo seu propósito jurídico-econômico a
partir do momento que servirem tão somente como mecanismos de evasão à regulação
cogente, que desconstituirá o mais complexo dos arranjos para garantir a primazia da
realidade sobre a forma.

8 Conclusão
A reflexão sobre novas categorias jurídicas deve estar sempre atenta a problemas
práticos, sob pena de tornar-se inútil em virtude de sua excessiva abstração. O esforço
teórico aqui empreendido de modo algum pode ser lido de maneira totalizante,
mesmo porque parte de exemplos concretos e frequentes – redes de franquias, redes
de distribuição, empresas virtuais, dentre outros – para elaborar modelo teórico que
abarque as características comuns desses fenômenos e que seja capaz de explicar sua
origem e seus efeitos. As redes contratuais constituem realidade inafastável não apenas
no exterior, mas também na jurisprudência pátria, em que se podem encontrar tentativas
de tratamento que nem sempre se revelaram as mais adequadas.
O limbo jurídico em que têm se posicionado as networks – ora classificadas como
contratos, ora como sociedades, ora como grupos, ora como contratos conexos – não é de
modo algum saudável para o exercício da atividade econômica, situação que não pode
ser tolerada pelos operadores do Direito, que devem se apresentar como verdadeiros
“engenheiros de custos de transação”186 para elaborar soluções jurídicas eficientes.

184
TEUBNER, Op. cit., 2004, p. 211.
185
Nesse sentido: GRUNDMANN, Op. cit., p. 752-755.
186
GILSON, Ronald. Value creation by business lawyers: legal skills and asset pricing. The Yale law journal, v. 94, n.
2, p. 239-313, dez. 1984.
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460 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O Direito é, antes de tudo, instrumento de desenvolvimento social e econômico, objetivos


que não somente podem, como devem, ser perseguidos no âmbito do Direito Comercial,
cujos pressupostos teóricos de reflexão dos contratos mercantis e das sociedades merecem
ser repensados para dar conta das novas formas de organização jurídica da atividade
econômica, característica que acompanha tal ramo do Direito desde a sua gênese.
O esforço aqui empreendido, portanto, pretendeu estabelecer algumas premissas
teóricas necessárias ao desenvolvimento dogmático da noção de network, cuja estabilização
como categoria teórica ainda requer não apenas o congraçamento da comunidade jurídica
em torno do conceito, mas também do reconhecimento legislativo e jurisprudencial
desse fenômeno, de maneira a conferir estabilidade e segurança às relações econômicas
assim estruturadas. A elaboração da dogmática das redes contratuais constitui passo
importante para que, doravante, as cortes e os agentes econômicos compreendam as
redes de contratos empresariais de maneira holística, garantindo o cumprimento das
funções econômicas almejadas com tais arranjos e, ao mesmo tempo, promovendo a
adoção de critérios racionais de aferição da correlação entre poder e responsabilidade.

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL
À IDENTIDADE GENÉTICA

CAROLINE JANAINA MENDES

JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES

1 Introdução
As diversas evoluções nas pesquisas científicas acerca de novas biotecnologias
trazem cada vez mais à tona discussões antes inimagináveis no campo da saúde humana,
apresentando ao Direito um grande desafio frente a estas novas evoluções. Pois, se por
um lado estas novas biotecnologias trazem consigo possibilidades antes impensáveis
para a vida humana, por outro trazem consigo uma possiblidade de modificação da
essência humana, que ainda hoje não pode ser mensurada.
Como exemplo destas novas técnicas é possível citar a terapia gênica, qual seja,
uma técnica de manipulação genética que possui como objetivo primordial o tratamento
de doenças genéticas hereditárias por meio da manipulação genética de células humanas.
O desenvolvimento desta técnica possibilita, ainda, não somente a cura de
doenças genéticas hereditárias e/ou adquiridas,1 mas também a manipulação genética
para o melhoramento de outras características, como a capacidade física ou cognitiva
de um embrião, e é diante desta possibilidade que se faz importante a análise do
direito fundamental à identidade genética, bem como a análise da constitucionalidade
de apli­cação das técnicas de terapia gênica, visto que o aperfeiçoamento da técnica de
terapia gênica em células da linha germinativa2 poderá viabilizar o desenvolvimento
das chamadas “crianças projetadas”.3

1
PAULA, Felipe de. Terapia gênica humana: o desafio do direito frente a parâmetros de tempo e risco. Revista
Jurídica da Presidência, Brasília, v. 8, n. 83, p. 124, 2007. Disponível em: <https://revistajuridica.presidencia.gov.br/
index.php/saj/issue/view/39/showToc>. Acesso em: 21 maio 2018.
2
NUNES, Rui. GeneÉtica. Coimbra: Edições Almedina, S.A., jun. 2013, p. 155-156.
3
SANDEL, Michael J.; MESQUITA, Ana Carolina de Carvalho. Contra a perfeição: ética na era da engenharia
genética. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 19-21.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
466 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Trata-se, portanto, o presente trabalho, da análise do direito fundamental à iden­


tidade genética, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, bem como no
artigo 5º da Constituição Federal de 1988, no sentido de verificar a constitucionalidade
da aplicação das técnicas de terapia gênica em células humanas.
Para tanto, o trabalho foi organizado em dois itens, tendo início com a análise das
possibilidades de utilização da técnica de terapia gênica e, na sequência, é abordada
uma análise acerca do direito fundamental à identidade genética, bem como da
constitucionalidade de aplicação das técnicas de terapia gênica.
Para isso, foi utilizado o método de abordagem científica dedutivo, o método
procedimental histórico e as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, com a
análise de livros, artigos científicos, teses e dissertações sobre o assunto.
Feitas tais considerações, passa-se a discorrer sobre o tema proposto.

2 Terapia gênica
Os primeiro estudos acerca da possibilidade de transferência de informações
genéticas de um organismo ocorreram em 1944 e as primeiras especulações acerca da
possibilidade de transferência de genes para cura de doenças em humanos ocorreram
a partir das décadas de sessenta e setenta.4
A técnica de terapia gênica possui como objetivo primordial o tratamento de
doenças por meio da manipulação genética de células humanas e consiste no processo
pelo qual se retira o gene responsável por alguma doença e se transferem genes
saudáveis às células que possuem o gene com “defeito”,5 sendo tal possibilidade
viável, visto que os genes se constituem como um segmento de uma molécula de DNA
(ácido desoxirribonucleico), responsáveis pelas características herdadas geneticamente,
possuindo códigos e instruções para produção de proteínas, com funções específicas
no corpo.6
Esta terapia genética apresenta-se em duas principais modalidades, quais sejam, a
terapia gênica em células somáticas e a terapia gênica em células da linha germinativa.7
A primeira técnica trata da manipulação genética em células somáticas do corpo humano,
ou seja, em qualquer célula do organismo, com exceção das células que originam os
gametas masculinos e femininos,8 e tem por objetivo a cura ou a prevenção de alguma
doença genética hereditária ou adquirida.9

4
AZEVÊDO, Eliane S. Terapia gênica. Revista Bioética, v. 5, n. 2, 1997. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.
org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/379>. Acesso em: 21 maio 2018.
5
AZEVÊDO, Eliane S. Terapia gênica. Revista Bioética, v. 5, n. 2, 1997. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.
org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/379>. Acesso em: 21 maio 2018.
6
INSTITUTO ONCOGUIA. O que são genes? Disponível em: <http://www.oncoguia.org.br/conteudo/o-que-sao-
genes/8159/73/>. Acesso em: 21 maio 2018.
7
NUNES, Rui. GeneÉtica. Coimbra: Edições Almedina, S.A., jun. 2013, p.155-156.
8
PAULA, Felipe de. Terapia gênica humana: o desafio do direito frente a parâmetros de tempo e risco. Revista
Jurídica da Presidência, Brasília, v. 8, n. 83, p. 124, 2007. Disponível em: <https://revistajuridica.presidencia.gov.br/
index.php/saj/issue/view/39/showToc>. Acesso em: 21 maio 2018.
9
PAULA, Felipe de. Terapia gênica humana: o desafio do direito frente a parâmetros de tempo e risco. Revista
Jurídica da Presidência, Brasília, v. 8, n. 83, p. 124, 2007. Disponível em: <https://revistajuridica.presidencia.gov.br/
index.php/saj/issue/view/39/showToc>. Acesso em: 21 maio 2018.
CAROLINE JANAINA MENDES, JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES
A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
467

A segunda modalidade de terapia gênica diz respeito à terapia gênica em células


da linha germinativa, uma técnica ainda em fase de experimentação, que possui como
objetivo principal a manipulação de células germinais, aquelas que originam os gametas
femininos e masculinos, espermatozoides e óvulos,10 bem como a manipulação genética
de algumas células das primeiras fases do desenvolvimento embrionário, antes de
qualquer diferenciação.11
Explicam Elias Figueroa Berneira e Guilherme Soares Schulz de Carvalho que, no
que concerne à terapia gênica em células da linha germinativa nas primeiras fases de
desenvolvimento do embrião, esta se baseia na alteração genética do embrião humano
na fase pré-implantacional, quando este apresenta quantidade reduzida de células, ou
antes da fertilização por meio de manipulação genética direta nos gametas masculinos
ou femininos. Ressaltam os autores que a técnica muda em definitivo o genoma do
indivíduo e dos seus descendentes, antes mesmo do seu nascimento.12
Neste sentido, diferentemente do que ocorre na terapia gênica em células
somáticas, onde os seus efeitos se detêm apenas na pessoa que se submeteu ao trata­
mento, não sendo transmitidos a sua descendência, na terapia gênica em células da
linha germinativa os efeitos possuem um grande grau de transmissibilidade para as
futuras gerações e é nesta seara que ocorrem as grandes discussões éticas, bioéticas e
jurídicas acerca deste tratamento, pois, conforme expõe Eliane S. Azevêdo, a mudança
do genoma humano não é apenas um ato de experimentação científica, mas um ato de
manipulação da constituição biológica da própria humanidade.13
Pietro de Jesús Lora Alarcon expõe ainda que o maior problema constitucional
que ocorre com as experimentações científicas é quando estas se encontram disfarçadas
de benefício para a humanidade, pois, conforme explica o autor, o genoma humano não
se constitui como propriedade de cada pessoa, dos doadores de gametas ou do embrião,
se constitui como patrimônio de toda a humanidade, pois é ela que estará em risco
quando da possibilidade de alteração do genoma humano, ainda que sob o argumento
de fins terapêuticos.14
O aprimoramento e o alcance da aplicação com exatidão da técnica de terapia
gênica em células da linha germinativa, nas primeiras fases de desenvolvimento do
embrião, são tidos como a grande tendência e revolução na área da engenharia genética
humana e da reprodução assistida, visto que o seu desenvolvimento permitirá não
somente a cura de doenças genéticas hereditárias, mas também a manipulação genética

10
PAULA, Felipe de. Terapia gênica humana: o desafio do direito frente a parâmetros de tempo e risco. Revista
Jurídica da Presidência, Brasília, v. 8, n. 83, p. 125, 2007. Disponível em: <https://revistajuridica.presidencia.gov.br/
index.php/saj/issue/view/39/showToc>. Acesso em: 21 maio 2018.
11
KIMURA, Mara Regina. As técnicas biomédicas – a vida embrionária e o patrimônio genético humano – à luz da
regra da proporcionalidade penal. São Paulo, 2016. p. 61. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/
cp011586.pdf>. Acesso em: 21 maio 2018.
12
BERNEIRA, Elias Figueroa Rodrigues; CARVALHO, Guilherme Soares Schulz. A terapia gênica de células
germinativas (TGCG) frente ao princípio da dignidade humana e os preceitos da Bioética. Anais do Salão
Internacional de Ensino, Pesquisa e Extensão, 2009, v. 1, n. 1. Disponível em: <http://seer.unipampa.edu.br/index.
php/siepe/article/view/5432>. Acesso em: 21 maio 2018.
13
AZEVÊDO, Eliane S. Terapia gênica. Revista Bioética, v. 5, n. 2, 1997. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.
org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/379>. Acesso em: 21 maio 2018.
14
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Método, 2004. p. 296.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
468 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

para o melhoramento de outras características físicas ou cognitivas da espécie humana,


podendo haver assim o desenvolvimento das chamadas “crianças projetadas”.15
E é neste sentido que se torna imprescindível o estudo da constitucionalidade
da aplicação destas técnicas a partir da análise do direito fundamental à identidade
genética, pois, conforme expõe Michael J. Sandel, ao escolher as características de uma
criança, seus pais estariam predeterminando o futuro de seus filhos, não sendo estes
inteiramente livres para a escolha de seus projetos de vida. Explica Sandel ainda que,
mesmo que os melhoramentos genéticos à primeira vista sejam tidos como desejáveis,
ainda assim esses pais estariam ferindo a autonomia de seus filhos. 16

3 Direito fundamental à identidade genética frente à técnica de terapia


gênica em células da linha germinativa
A terapia gênica em células da linha germinativa se consagra como a grande
tendência das novas biotecnologias, estudos e pesquisas se desenvolvem pelo mundo
inteiro em uma verdadeira corrida contra o tempo, pois a possibilidade de curar doenças
antes mesmo do nascimento de um embrião abre um novo horizonte à vida da espécie
humana sobre a terra, e a possibilidade de gerar filhos “perfeitos” já é vislumbrada por
alguns médicos geneticistas como a grande revolução da ciência.
Diante deste cenário, necessário se faz a análise dos direitos do sujeito exposto
a essa técnica, uma vez que conforme expõe a Teoria Concepcionista a personalidade
jurídica do embrião começa desde a sua concepção, independentemente do nascimento
com vida.17 Neste sentido, expõe Jussara Meirelles:

[...] o que a teoria assegura é que, desde o momento da concepção, encontram-se no


genoma do ser que se forma as condições necessárias para o seu completo desenvolvimento
biológico. Ainda que insuficientes tais condições são necessárias, o que vem a significar
que desde a concepção existe a potencialidade e a virtualidade de uma pessoa.18

Deste modo, conforme o entendimento da Teoria Concepcionista, não poderia


haver a submissão de embriões a pesquisa ou a técnicas de manipulação genética, pois
ali já se encontra uma vida, uma pessoa em potencial, visto que já ocorreu a concepção.19
Ingo Wolfgang Sarlet, ao debater acerca do início da proteção da vida humana,
explica que “resulta evidente que não se pode reconhecer, simultaneamente, o direito
à vida como algo intrínseco ao ser humano e não dispensar a todos os seres humanos
igual proteção, numa nítida menção à humanidade do embrião (...)”.20

15
SANDEL, Michael J.; MESQUITA, Ana Carolina de Carvalho. Contra a perfeição: ética na era da engenharia
genética. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 19-21.
16
SANDEL, Michael J.; MESQUITA, Ana Carolina de Carvalho. Contra a perfeição: ética na era da engenharia
genética. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 20
17
CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. A pessoa natural na quarta era dos direitos: o nascituro e o embrião pré-
implantatório. Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 32, p. 79-129, jan. 2007.
18
MEIRELLES, Jussara Leal de. A vida humana embrionária e sua proteção jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 138.
19
SILVA, Danúbia Cantier. A tutela jurídica do embrião implantado à luz da dignidade da pessoa humana. Âmbito
Jurídico, Rio Grande, v. XVI, n. 111, abr. 2013. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_
link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13108>. Acesso em: 19 maio 2018.
20
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na
perspectiva constitucional. 11. ed., rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 221.
CAROLINE JANAINA MENDES, JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES
A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
469

E neste mesmo sentido, expõe Pietro Alarcón que o direito à vida consagrado
no artigo 5º da Constituição Federal do Brasil deve sempre ser interpretado em toda
sua plenitude e magnitude, não podendo as descobertas biomédicas e as manipulações
genéticas degradarem o sistema imposto pela Constituição.21
Assim, não há como negar a natureza humana do embrião; conforme ressalta
Jussara Meirelles, esta constatação já é por si só suficiente, vista a grande semelhança
existente entre o embrião, o nascituro e a pessoa humana,22 expõe ainda:

o juízo de existência e de valor do ser humano e de sua necessária proteção não se limita ao
estatuto jurídico da pessoa. E sob o enfoque da valoração do ser humano em qualquer fase
de seu ciclo vital, o que informa a semelhança entre os seres nascidos e aqueles concebidos
e mantidos em laboratório é a sua natureza comum e o que representam axiologicamente, e
não a maior ou menor possibilidade de se adequarem à categoria abstrata da personalidade
jurídica.23

E é diante destas análises que importante se faz o estudo acerca da constitucio­


nalidade da terapia gênica em células da linha germinativa, uma vez que esta técnica
viabiliza possibilidades para além da cura de doenças genéticas hereditárias, com a
possibilidade de manipulações genéticas com o cunho de alteração do genoma humano
de modo definitivo, que não se deterá apenas ao sujeito exposto à técnica, mas a todos
os seus descendentes.
E é neste ponto que se faz tão importante a discussão acerca do direito fundamental
à identidade genética, uma vez que este se consagra como base da identidade de cada
ser humano, como manifestação essencial da sua personalidade.

3.1 Direito fundamental à identidade genética


A possibilidade da compreensão do direito à identidade genética como um direito
fundamental parte da premissa, conforme explica Selma Rodrigues Petterle, de que os
direitos fundamentais possuem abertura material com base na ordem constitucional
consagrada a partir do artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal de 1988,24 o
qual expõe que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte.25
Neste sentido, os direitos fundamentais consagrados expressamente na Cons­
tituição Federal não se constituem como um catálogo exaustivo de direitos, havendo

21
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São
Paulo: Método, 2004. p. 181.
22
MEIRELLES, Jussara Maria Leal. Os embriões humanos mantidos em laboratório e a proteção da pessoa: o novo
código civil brasileiro e o texto constitucional. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MEIRELLES, Jussara Maria Leal;
BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 83-95.
23
MEIRELLES, Jussara Maria Leal. Os embriões humanos mantidos em laboratório e a proteção da pessoa: o novo
código civil brasileiro e o texto constitucional. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MEIRELLES, Jussara Maria Leal;
BARRETTO, Vicente de Paulo (Org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 92.
24
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 89.
25
BRASIL, Constituição Federal (1988). In: VADE Mecum Saraiva. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
470 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

a possibilidade de construção de outras posições jurídicas fundamentais, com base na


denominada cláusula aberta prevista no artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal.26
Expõe Selma R. Petterle ainda que tal afirmação se torna possível com base na
doutrina, pois, para além dos direitos fundamentais já positivos, há outros que em virtude
da sua relevância e conteúdo são também merecedores de proteção constitucional,27 pois
ressalta a autora que seria ilusório imaginar que o rol elencado na Constituição pudesse
prever todos os direitos que merecem proteção.28
E é nesse contexto que o direito à identidade genética identifica-se como um
direito fundamental implícito à ordem jurídico-constitucional brasileira,29 uma vez que
tal direito encontra-se estritamente vinculado à dignidade da pessoa humana prevista
no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal e ao direito à vida previsto no artigo 5º,
caput, da Constituição Federal.
Ressalta Petterle que não há como negar que as possibilidades disponíveis de
manipulações genéticas configuram violação aos direitos fundamentais de primeira
geração e que é necessário viabilizar a sua proteção como bem jurídico fundamental,30
pois “a identidade genética da pessoa humana, base biológica da identidade pessoal, é
uma dessas manifestações essenciais da complexa personalidade humana”.31
O direito à identidade genética se consubstancia, assim, como um direito de
personalidade, que busca preservar o bem jurídico-fundamental “identidade genética”,
que se configura como uma manifestação essencial da personalidade humana,32 em
outras palavras, o direito à identidade genética busca a proteção do direito à identidade
pessoal em sua dimensão individual, buscando a preservação do direito de cada pessoa
humana ser única, original e irrepetível.33
Petterle explica então que, quando a doutrina faz referência ao direito fundamental
à identidade genética, o que se está buscando é a preservação da constituição genética
de cada ser humano, do modo como ele é concebido, como uma manifestação essencial
da sua personalidade, base da sua identidade pessoal.34
Deste modo, o direito à identidade genética engloba o dever de respeito e de
pro­teção da constituição genética do ser humano, direito este que, a partir da aplicação
da técnica de terapia gênica em células da linha germinativa, poderá ser violado, visto

26
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 89.
27
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 89.
28
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 90-91.
29
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 92.
30
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 92.
31
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 92-93.
32
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 111.
33
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 111.
34
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 111-112.
CAROLINE JANAINA MENDES, JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES
A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
471

que tal terapia, quando utilizada para além da cura de doenças genéticas hereditárias,
atinge a esfera de autonomia da pessoa humana que está para nascer.
Importante ressaltar que independentemente dos debates acerca do início da vida
e de o embrião ser considerado ou não pessoa, a vida humana encontra-se protegida
desde a sua concepção, pois este, conforme explica Selma Rodrigues Petterle, é um bem
jurídico que goza de proteção jurídico-constitucional autônoma.35
Neste sentido, a liberação da aplicação da técnica de terapia gênica em Células da
linha Germinativa, nas primeiras fases de desenvolvimento do embrião, no intuito de
manipulação genética para o melhoramento de características físicas ou cognitivas da
espécie humana, se consubstancia como uma afronta ao direito fundamental à identidade
genética, vez que restará violado o direito de autodeterminação desta pessoa, direito este
que se conceitua como o direito que cada pessoa tem de reger a sua vida, de buscar da
sua maneira o melhor modo de viver, de acordo com o seu livre exercício de vontade,
segundo seus próprios valores, interesses e desejos.36
Conforme, preceitua Luís Roberto Barroso, a autonomia se consubstancia como
elemento ético da dignidade humana, estando subjacente a um conjunto de direitos
fundamentais,37 deste modo, promover a terapia gênica em células da linha germinativa,
nas primeiras fases de desenvolvimento do embrião, para além da cura de doenças
genéticas hereditárias, com a intenção da escolha de qualidades físicas, psicológicas e/
ou emocionais do embrião pelos seus genitores, promoveria um afronto ao princípio da
dignidade da pessoa humana, vez que, conforme explica Agnor Sganzerla, Fernanda
Schaefer Rivabem e Jussara Maria Leal de Meirelles, mesmo que muitos afirmem que
projetar filhos para o sucesso por meio da bioengenharia corresponda a um exercício
de liberdade, pois se pretende modificar a natureza humana para melhor adaptação
ao mundo, ainda assim essa justificativa se consubstancia como uma forma de
enfraquecimento da autonomia. 38
Portanto, o direito à identidade genética corresponde ao direito fundamental que
toda ser humano possui de preservar a sua constituição genética originária, ao direito
de cada ser humano viver do modo como ele foi concebido, pois este se consubstancia
em um direito que protege a manifestação essencial da personalidade humana, base da
identidade pessoal de cada pessoa, um direito que protege a autonomia de uma pessoa
em fazer escolhas pessoais ao longo da vida baseadas na sua própria concepção,39 sem a
influência e predeterminação de um projeto de vida pessoal e/ou profissional limitado
a preferências subjetivas de seus pais no momento da sua concepção.
Ao se tratar, portanto, da constitucionalidade da aplicação das técnicas de terapia
gênica à luz da Constituição Federal de 1988 e do direito fundamental à identidade

35
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 103.
36
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional brasileiro: a construção de um
conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 81.
37
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional brasileiro: a construção de um
conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 81.
38
SGANZERLA, Anor; RIVABEM, Fernanda Schaefer; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Direito à liberdade, à
finitude e avanços biotecnológicos: vida humana autêntica ameaçada? Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 9,
n. 18, p. 123, set./dez. 2017.
39
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional brasileiro: a construção de um
conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 82.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
472 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

genética, o que se deve sempre tomar cuidado é com a tênue linha entre a consagração
ao direito à saúde e o afronto ao direito de personalidade da pessoa que se submete a
este tratamento.

4 Considerações finais
Nota-se que o desenvolvimento e o aprimoramento das técnicas de terapia
gênica se constituirão como uma revolução no modo como o ser humano se comporta
e vive dentro da sociedade, e se por um lado estas novas biotecnologias trazem consigo
possibilidades antes impensáveis para a vida humana, por outro trazem uma possiblidade
de modificação da essência humana, que ainda hoje não pode ser mensurada, visto que
o desenvolvimento desta técnica possibilita não somente a cura de doenças genéticas
hereditárias, mas também a manipulação genética para o melhoramento de outras
características, como a capacidade física ou cognitiva de um embrião.
E é diante desta possibilidade que se faz importante a análise do direito funda­
mental à identidade genética, bem como a análise da constitucionalidade da aplicação das
técnicas de terapia gênica, tendo em vista que o direito fundamental à identidade genética
se consubstancia como um direito de personalidade e que possui como funcionalidade
o dever de respeito ao direito de cada pessoa humana ser única, original e irrepetível.40
Neste sentido, é possível analisar que a aplicação das técnicas de terapia gênica se
constitui inconstitucional quando violam o direito fundamental à identidade genética,
desrespeitando os direitos de personalidade da pessoa submetida ao tratamento, devendo
a colisão entre o direito à saúde e o direito à identidade genética, nesse contexto, ser
solucionada a partir dos princípios da interpretação constitucional.

Referências
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40
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A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
473

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

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E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES
DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO
DAS VULNERABILIDADES

LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA

1 Considerações iniciais
Aos quatro meses de gestação, Cláudia, mulher, negra e pobre, solicitou ali­
mentos ao pai de uma criança em comum de quatro anos. Espancada, a vítima buscou
atendimento em delegacias especializadas em violência doméstica. A despeito da
medida de afastamento que resultou da circunstância, a questão alimentar não se viu
contem­plada no encaminhamento. Assim, a aproximação física permanecia necessária
quando buscava a genitora o adimplemento alimentar mensal, diante da solução estatal
insuficiente quanto à necessidade da filha de Cláudia e do agressor, cuja existência não
se viabilizava de modo minimamente digno.1
O exemplo revela que os movimentos jurídicos de proteção à mulher vítima de
violência doméstica podem produzir efeitos colaterais em relação a grupos especialmente
precarizados. Apesar de destacada a sua vulnerabilidade através de microssistema
próprio, correspondente à Lei Maria da Penha (Lei nº 11.304 de 2006), há relevantes
pontos de invisibilidade na narrativa.
Com efeito, os movimentos de representação do sujeito de direito – que não
encontra figura equivalente no contexto jurídico pré-estatal,2 e, portanto, pré-moderno –
têm demonstrado oscilações diversas. De modo sumário, podem-se estabelecer dois
modos de articulação prevalentes na contemporaneidade.

1
Caso extraído do artigo: BERNARDES, Márcia Nina; ALBUQUERQUE, Mariana Imbelloni Braga. Violências
interseccionais silenciadas em Medidas Protetivas de Urgência. In: Revista Direito & Práxis, vol. 7, n. 3, 2016.
2
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Estado, democracia e sujeito de direito: para uma crítica da política contemporânea.
In: Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 2, n. 2, p. 52, 2014.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
476 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O primeiro deles diz respeito à operacionalização do sujeito de direito metafísico.


O segundo, ao sujeito de direito compartimentado e, assim, pretensamente mais próximo
a experiências concretas que escapam ao padrão hegemônico com o qual se formatou
o sujeito de direito metafísico.
A teoria crítica reconhece este segundo movimento, compreendido como
decodificação do Direito Civil, como um progresso em relação ao modelo anterior.
Todavia, não há razoabilidade em se depositar, na esfera legislativa, a expectativa de
proliferação infinita de microssistemas para a proteção das variadas vulnerabilidades.
Combinada a constitucionalização do Direito Civil à análise da pulverização
de fontes normativas, atinge-se uma metodologia que oferece linha de coerência aos
diversos mecanismos protetivos aplicáveis. Através da repersonalização, a dignidade
da pessoa humana se apresenta como sobreposta à patrimonialidade, que anteriormente
centralizava os interesses em torno das relações contratuais; proprietárias e familiares
no âmbito civilista.
Reconhecidas as diversas vantagens para a proteção de grupos e de indivíduos
vulnerados a partir desta versão pulverizada do sujeito de direito, aporta-se a um
panorama de possíveis desafios também em relação a este modelo constitucionalizado.
Dentre eles, identifica-se o paradoxo relativo à complexidade das vulnerabilidades
concretas, cujas vivências devem pressionar o potencial da crítica doutrinária.

2 A trajetória do sujeito de direito metafísico


Em 2008, a Constituição Equatoriana elevou a natureza como sujeito de
direito.3 A previsão pode ser entendida como uma sintomática ruptura com a tradição
antropocêntrica que acompanha um relevante capítulo – marcado temporal e espacial­
mente – da experiência jurídica. Isso porque, em conformidade com as principais for­
mulações teóricas ainda correntes, a insígnia do sujeito de direito tem sido útil “para
referenciar todo e qualquer ser humano (verificando-se, nisso, uma das marcas mais
expressivas da modernidade)”.4
Este conceito metafísico não deve ser, portanto, naturalizado. Nem a centralização
humana como principal eixo informador do ordenamento jurídico como tampouco a sua
versão codificada abstratamente apreendida encontram sentidos se não a partir de um
aporte histórico. De Thomas Kuhn extrai-se que um paradigma determina “até onde se
pode pensar”.5 Trata-se, portanto, de um padrão hegemônico de produção de práticas
e de saberes em um determinado contexto.

3
Conforme exemplifica o seguinte dispositivo desta Carta Constitucional: “Art. 71.  La naturaleza o Pacha
Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el
mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos”. Como
se observa, a titularidade de direitos se constitui em torno da natureza. Percebe-se o giro paradigmático em
relação à Constituição Brasileira, por exemplo, a qual prevê, no art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Neste
último caso, ainda é incipiente a centralidade humana na titularidade de direitos relacionados à natureza.
4
LEONARDO, Rodrigo Xavier. Sujeito de direito e capacidade: contribuição para uma revisão da teoria geral
do Direito Civil à luz do pensamento de Marcos Bernardes de Mello. In: EHRHARDT JR., Marcos; DIDIER JR.,
Fredie (Org.). Revisitando a teoria do fato jurídico: homenagem a Marcos Bernardes de Mello. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 553.
5
BARTELMEBS, Roberta Chiesa. Resenhando as estruturas das revoluções científicas de Thomas Kuhn. In: Ensaio,
v. 14, n. 3, p. 353, 2012.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
477

Localizado o paradigma moderno como relevante a uma compreensão ainda


contemporânea do fenômeno jurídico, observa-se nele uma tendência “que repugna qual­
quer articulação complexa e em que a sociedade (...) é feita de indivíduos todos iguais”.6
A conclusão se reflete em uma dada composição do sujeito de direito – uma
categoria inédita no arsenal teórico dos juristas, se considerado o contexto pré-moderno.7
Em diálogo com a raiz antropocêntrica subjacente ao período, circunscreve-se um
“mecanismo de atribuição que sempre identifica um direito ligado a um sujeito”,8 e este
se configurou de modo abstrato, pretensamente universal e formal. A premissa da igual­
dade, a qual se consagrou, ilustrativamente, como corolário da Revolução Francesa, que
é representativa do contexto moderno, autorizou tal equação – apesar das constantes
discriminações abonadas pelo plano normativo mesmo sob esta égide.
Não é coincidência que o Código Civil Francês (1804) tenha sido um dos principais
produtos deste movimento e que a racionalidade subjacente a ele se apresente tão
compatível com o paradigma em que se inseriu. Portanto, também é coerente inserir a
atmosfera da primeira experiência codificada, no Brasil de 1916, como receptiva a este
modelo clássico de apreensão subjetiva de titularidade de direitos.
Identificam-se, neste primeiro eixo de análise, dedicado à versão mais metafísica
do sujeito de direito, dois desdobramentos possíveis. Em um deles, a exclusão deliberada
de determinados sujeitos contradizia, de modo insistente, as promessas discursivas de
simetria formal entre os indivíduos.
No contexto nacional, é possível exemplificar esta problemática pela hipótese de
redução de capacidade de participação de atos da vida civil às mulheres que contraís­
sem casamento. A delimitação da incapacidade relativa da mulher casada, fixada no art.
6º, II, do Código Civil Brasileiro de 1916, e revogada apenas através da Lei nº 4.121 de
1962, representa uma técnica legislativa discriminatória que beira a extinção em nosso
ordenamento jurídico. A histórica privação deliberada de determinados sujeitos a certa
titularidade de direitos dialoga, contudo, com as impossibilidades ainda presentes de
se considerar a extensão das variadas vulnerabilidades sociais.
Assim, em outro desdobramento mais tênue da concepção metafísica de sujeito
de direito, aporta-se ao enfrentamento das discriminações específicas, sem, contudo,
promover recortes protetivos em torno das vulnerabilidades. Como resultado, prevale­
cem contornos anunciados como gerais e pretensamente universais. De acordo com
Stefano Rodotà, o movimento assume o fim deliberado de homenagear a neutralidade.9 A
inten­ção, contudo, merece ressalvas. O que anuncia assumir a composição de um sujeito
neutro, em verdade, costuma se inclinar em favor de feições dominantes.
Consequentemente, formam-se, sob esta dinâmica, massivas ausências no registro
jurídico de quem não se reconhece como parte destes centros de irradiações de efeitos.10

6
GROSSI, Paolo. O direito entre poder e ordenamento. Trad. Arno Dal Ri Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 22.
7
FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo:
LTr, 2002, p. 72.
8
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do Novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2012, p. 114.
9
RODOTÀ, Stefano. Dal soggetto alla persona. In: Il diritto di avere diritti. Roma: Laterza, 2012, p. 145.
10
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do Novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2012, p. 202.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
478 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Por tal motivo, é conhecida a constatação de que o homem branco, adulto, eficiente,
proprietário e contratante inspirou os parâmetros predominantes de nossos tempo e
espaço, em especial, se destacada a experiência codificada, a qual se indica, não raras
vezes, como verdadeiro marco de monumento jurídico da Modernidade.
A pretensa neutralização que predomina na acepção ainda contemporânea do
sujeito de direito não significa a confrontação do modelo hegemônico de operacio­
nalização normativa. Para se manter o marcador de gênero, é certo afirmar que a revo­
gação de previsões sexistas expressamente constantes no ordenamento jurídico brasileiro
significou um relevante avanço, mas não a superação das assimetrias concretas.
Apenas a título ilustrativo, a questão mostra-se através da manutenção, no Código
Civil Brasileiro, do instituto da culpa quando da dissolução do vínculo conjugal,11
condicionando, por exemplo, a possibilidade de o cônjuge culpado requerer pensão
alimentícia daquele com quem rompeu o vínculo afetivo, bem como limitando a possi­
bilidade de seguir utilizando o sobrenome do cônjuge considerado inocente.12 Por certo,
embora soe como neutra, a consequência prevista em letra legal impacta quase que
exclusivamente as mulheres, que são, via de regra, as que contraem sobrenome alheio
à ocasião do casamento e as que majoritariamente necessitam e demandam alimentos
em juízo.13
A propósito, a situação de alimentos para a ex-cônjuge é bastante sintomática do
fenômeno de privilégio do padrão hegemônico a despeito da denominada universali­
dade do sujeito de direito. Consultando a temática no Superior Tribunal de Justiça, que
tem por função pacificar a jurisprudência pátria em determinado sentido, colheram-se,
de 1988 a 2014, as seguintes tendências:

Os acórdãos trazidos à análise demonstram uma série de tendências, que se fundamentam


a partir de elementos comuns. Assim, essas decisões, que em sua esmagadora maioria
deferem pedidos de exoneração de alimentos, os quais haviam sido deferidos a ex-cônjuges
mulheres, baseia-se nestes argumentos mais frequentes: a) a excepcionalidade do caráter
dos alimentos a ex-cônjuge; b) a necessidade de se estabelecer um lapso temporal quando
esses alimentos são arbitrados, com raras exceções apenas discursivamente consideradas;
c) o desestímulo ao ócio ou ao enriquecimento ilícito dessas mulheres; d) a plena capacidade
de reinserção no mercado de trabalho das mulheres envolvidas nos processos; e) a igualdade
entre homens e mulheres em relação ao mercado de trabalho, e às suas possibilidades de
inserção neste.14

11
Tal inferência, contudo, é confrontada por força da Emenda Constitucional nº 66, de 2010. Rodrigo da Cunha
Pereira, Gustavo Tepedino e Paulo Luiz Netto Lôbo partem deste marco para advogarem pela irrelevância
da investigação da culpa pelo fim da dissolução conjugal. Em posicionamento intermediário, José Fernando
Simão considera que é possível aventá-la em ações de alimentos ou indenizatórias, sem, contudo, condicionar o
divórcio. Já Regina Beatriz Tavares da Silva sustenta a possibilidade plena de discussão da temática em sede de
ruptura conjugal, embora minoritariamente.
12
Neste sentido, os arts. 1.578 e 1.704 do Código Civil Brasileiro em vigor.
13
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de. Responsabilidade civil e relacionamento
extraconjugal. In: MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo (Org.). Responsabilidade civil no direito das famílias. São
Paulo: Atlas, 2015, p. 06.
14
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; MENDES, Anderson Pressendo; DOS SANTOS, Andressa Regina Bissolotti;
OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de; IWASAKI, Micheli Mayumi. Alimentos em favor de ex-cônjuge ou companheira:
reflexões sobre a (des)igualdade de gênero a partir da jurisprudência do STJ. In: Revista Quaestio Juris, vol. 8, n. 4,
p. 2480-2481, 2015.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
479

Constata-se que as previsões vigentes quanto aos alimentos para a ex-cônjuge ou


companheiro não preveem distinção explícita entre homens e mulheres. Mesmo assim, a
sua aplicação segue potencialmente nociva ao segundo grupo. Elas foram identificadas,
inclusive, em todo o período analisado nesta Corte, como as únicas requerentes de pensão
alimentícia em face de ex-cônjuge ou companheiro.15 O cenário dialoga, portanto, com
um background de discrepâncias nas esferas patrimonial e afetiva que é sumariamente
ignorado, pelos aplicadores do Direito, como formador de vulnerabilidades sociais.16
De fato, as experiências concretas se marcam por contextos de vulnerabilidade
que requerem níveis diversos de potencial protetivo. Assim é que a regulação através
dos microssistemas, coesos a partir da dignidade da pessoa humana, representa
uma descontinuidade quanto à concepção prevalente sobre o sujeito de direito, cuja
univocidade passa a sofrer consideráveis fraturas.

3 Os paradoxos em torno dos sujeitos de direito compartimentados


Como se argumentou, as técnicas de apreensão do todo pelo modelo estatal
moderno revelou movimentos de visibilização e de invisibilização de determinados
indiví­duos e coletividades. Fluxos de simplificação podem se apresentar como ligados
ao para­digma da Modernidade, que se propõe a observar o mundo em perspectiva
macro, plana, sem considerar as peculiaridades individuais.17 Trata-se de um olhar que
reproduz o de um Estado sobre os indivíduos que o compõem: impossibilita-se gerir
cada especi­ficidade, e, portanto, todos são tidos como iguais. Com isso, aporta-se ao
modelo jurídico universalizante e geral.
A pluralidade das vivências, neste contexto, revela atritos à abstração pela qual
o Estado formata o sujeito de direito. A exclusão de determinadas coletividades do
atributo da razão, da autonomia e do potencial econômico retrata os paradoxos do projeto
moderno e escancara os efeitos nefastos de um discurso que se anuncia como neutro.
A apreensão desta exclusão produziu ruídos em um movimento de fragmentação
do sujeito de direito unitário majoritariamente anunciado. Nesta cadência, é possível
localizar no ordenamento jurídico – destacado, para a análise, o Direito Civil – a proteção
“do idoso, da criança e do adolescente, do consumidor e assim por diante, revelando
crescente atenção aos diferentes personagens em que se fragmenta, na realidade con­creta,
o outrora monolítico sujeito de direito”.18 Estes, dedicados ao grupo de idosos, crianças
e adolescentes, consumidores, entre outros vislumbrados por múltiplos microssis­
temas, encontram contexto a partir da década de 90 no país e seguem em proliferação
no século XXI.

15
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; MENDES, Anderson Pressendo; DOS SANTOS, Andressa Regina Bissolotti;
OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de; IWASAKI, Micheli Mayumi. Alimentos em favor de ex-cônjuge ou companheira:
reflexões sobre a (des)igualdade de gênero a partir da jurisprudência do STJ. In: Revista Quaestio Juris, vol. 8, n. 4,
p. 2478, 2015.
16
OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de. Olhares feministas sobre o Direito das Famílias contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2016.
17
HESPANHA, António Manuel. Os juristas como couteiros: a ordem na Europa Ocidental no início da idade
moderna. In: Análise Social, v. 37, n. 161, 2001.
18
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Org.). O direito civil entre o sujeito e
a pessoa: estudos em homenagem ao Professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 39.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
480 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

De acordo com Ricardo Luis Lorenzetti, “a explosão do Código produziu um


fracionamento da ordem jurídica semelhante ao sistema planetário”.19 Para se manter
a representação do sistema planetário, porém, pode-se questionar a possibilidade de
organizá-lo a partir de um novo centro.
Parte da doutrina, invariavelmente, preserva a irradiação nuclear do Código
Civil nesta constelação, considerando orbitarem as demais fontes em torno dele.20 Por se
adequar à experiência jurídica nacional da maior parte do século XX, referida inclinação
teórica pode ser considerada clássica. Por tal ordem de pensamento, o Código Civil se
equipara a uma espécie de Constituição do Direito Privado, ao passo que a Constituição
segue em diálogo primordial com o Direito Público, de modo a se dirigir à condução
dos Poderes, incluído o Legislativo, que se responsabiliza por conceber o Código Civil.
De outra banda, representado por autores como Maria Celina Bodin de Moraes,
Gustavo Tepedino, Luiz Edson Fachin e Paulo Lôbo, o pensamento civil-constitucional
propõe maior superação da dicotomia entre o público e o privado, assumindo-se a eficácia
horizontal das normas constitucionais, incidentes diretamente sobre os indivíduos.
A técnica legislativa constitucional – menos conectada à subsunção, e com maior
flexibilidade para o caso concreto através da principiologia – oxigena a reorganização
do sistema planetário proposto ao deslocar o Código Civil para a periferia e privilegiar
a Constituição.
Referida movimentação permite a melhor observância, portanto, de variados
sujeitos de direito extraídos do Código Civil e dos microssistemas que ao seu lado
orbitam. A versão codificada ainda sugere o tom metafísico desta representação,
ao passo que os microssistemas, confrontando a premissa de igualdade formal,
inauguram estatutos diversificados a partir do reconhecimento de vulnerabilidades
que, materialmente, desigualam.
Um questionamento plausível consistiria, contudo, em investigar como se podem
observar as múltiplas camadas de vulnerabilidade que circunscrevem os sujeitos de
direito compartimentados. Não resta dúvida de que um movimento de inclusão para
contemplar um grupo vulnerado pode produzir, paradoxalmente, outras rotas de
exclusão.
Apenas para se ter claro este argumento, seleciona-se a questão da violência de
gênero com a qual se introduziu o ensaio. Percebe-se uma falência dos operadores jurí­
dicos ao tentarem realizar, no caso concreto, a pretensão protetiva. De fato, “a univer­
salização de um conceito de violência leva, justamente, à invisibilidade da sobre­posição
de violências enfrentadas pela mulher negra, de forma que as respostas estatais, treinadas
para um tipo de violência ‘padrão’, não alcançarão estas mulheres”.21
Um outro enquadramento capaz de fortalecer esta constatação, também na temá­
tica de gênero, corresponde à Lei do Feminicídio (nº 13.104 de 2015), responsável por
reformar recentemente o art. 121, parágrafo 2º, inciso VI, do Código Penal, o qual passou

19
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998, p. 45.
20
José Carlos Moreira Alves ilustra esta percepção, como se depreende do seguinte texto: ALVES, José Carlos
Moreira. Aspectos gerais do novo Código Civil brasileiro. In: III Jornada de Direito Civil. Org.: Ruy Rosado Aguiar.
Brasília: CJF, 2005.
21
BERNARDES, Márcia Nina; ALBUQUERQUE, Mariana Imbelloni Braga. Violências interseccionais silenciadas
em Medidas Protetivas de Urgência. In: Revista Direito & Práxis, vol. 07, n. 3, p. 727, 2016.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
481

a considerar homicídio qualificado o crime cometido “contra a mulher por razões da


condição do sexo feminino”.
Como se observa, a resistência do Congresso Nacional Brasileiro a determinados
sentidos hermenêuticos se apresenta. Considerada a análise dos modelos jurídicos prote­
tivos dedicados a grupos vulnerados, importa expor a fissura em relação às mulheres
trans que esta redação ocasiona ao se substituir o termo “gênero feminino”, que constava
no Projeto de Lei original, por “sexo feminino”. O que significou a inclusão de um grupo
vulnerado – mulheres cis – parece ter produzido a exclusão de outro – mulheres trans.
A partir do complexo panorama, cumpre questionar:

Como assegurar o justo equilíbrio entre a proteção das vulnerabilidades concretas e o grau
de abstração que se faz necessário a garantir a realização efetiva da isonomia? Como não
deixar, em uma ordem jurídica cada vez mais pulverizada em suas fontes, que a proteção
da pessoa, em seus múltiplos aspectos, converta-se em uma aplicação absolutamente
casuística, capaz de criar uma espécie de “estatuto pessoal” para cada indivíduo?22

A solução legislada não parece uma aposta razoável, pois tende ao infinito e se
sujeita ao processo majoritário, frequentemente apontado como meio temerário para a
tratativa das vulnerabilidades. Assim é que se apresenta, com frequência, na metodologia
civil-constitucional, a magistratura como “crucial para a democracia, seja em favor
da segurança jurídica representada pelo respeito às leis legitimamente promulgadas,
seja para tutelar direitos fundamentais de minorias, mesmo quando a intervenção do
Judiciário assuma feição contramajoritária”.23
De qualquer modo, este caminho hermenêutico, mais poroso e aberto, e, portanto,
menos tributário dos antes inflexíveis parâmetros de segurança jurídica, não pode se
anunciar como caótico, e à mercê do gosto decisório. Assim é que a medida da digni­
dade humana, conforme o pensamento civil-constitucional, capacita-se a matizar a
pulverização dos sujeitos de direito.
Contra a tradição metafísica circunscrita, emerge a fundamentação de que o indi­
víduo atomizado, contextualizado no individualismo jurídico, cede espaço à reperso­
nalização do Direito Civil, através do comprometimento com a proteção de necessi­dades
concretas que se atendem de modo relacional.24
Extraem-se, daí, duas respostas hermenêuticas provisórias. Em primeiro lugar, a
concretude das necessidades humanas só nos parece significar o acesso a bens materiais
e imateriais estruturantes de realidades condignas por grupos deles privados.25 Em
segundo lugar, a premissa da intersubjetividade deve acompanhar a apreciação dos
casos concretos, ao nosso ver, com o objetivo de se depreenderem as assimetrias de

22
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Org.). O direito civil entre o sujeito e
a pessoa: estudos em homenagem ao Professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
23
TEPEDINO, Gustavo. O papel atual do Direito Civil entre o sujeito e a pessoa. In: TEPEDINO, Gustavo;
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Org.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em
homenagem ao Professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 34.
24
FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A dignidade da pessoa humana no Direito contemporâneo:
uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista. Disponível em: <http://www.
anima-opet.com.br/pdf/anima5-Conselheiros/Luiz-Edson-Fachin.pdf>. Acesso em: 13 maio 2018.
25
FLORES, Joaquin Herrera. La reinvención de los derechos humanos. Sevilha: Atrapasueños, 2008, p. 22-24.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
482 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

poderes e a acentuação das vulnerabilidades, reequilibrando-as pelos instrumentos


jurídicos disponíveis.
Logo, a potência da crítica deve acompanhar a (des)confiança depositada nos
discursos que elegem a dignidade humana como chave para a superação da metafísica
do sujeito de direito celebrado na Modernidade. Assim, manter acesas as inquietações
que circundam as conclusões possíveis a partir de tal marcador parece uma medida
essencial para a produção doutrinária crítica.

4 A título conclusivo: as inquietações quanto à unificação a partir da


dignidade humana
Ítalo Calvino considera que “o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é
aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando
juntos”.26 Para não sofrer, o autor oferece duas saídas. A primeira consiste em tornar-se
parte dele a ponto de não mais percebê-lo. A segunda “é arriscada e exige atenção e
aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno,
não é inferno, e preservá-lo, abrir espaço”.27
A preservação de um imaginário humanista em torno da compreensão do orde­
namento jurídico representa ainda uma forte vinculação a um dado contexto paradig­
mático. Para se retornar a Thomas Kuhn, as respostas vinculadas a este modelo de
atribuição de direitos a um determinado titular são sintomáticas de “até onde se pode
pensar”, conforme didática expressão de Roberta Chiesa Bartelmebs.
Rejeitar os mecanismos protetivos contemporâneos, à radicalidade, pode signi­ficar,
por isso, um grau de ininteligibilidade insuperável para a articulação efetiva de direitos.
Ignorar, contudo, os riscos metafísicos em torno da dignidade humana pode signi­ficar
a impotência da repersonalização do Direito Civil frente a necessidades concretas.
As provisórias soluções de amplo comprometimento com a concretização da
dignidade humana através da promoção do efetivo acesso a bens materiais e imateriais
a grupos e indivíduos que deles são privados em suas relações assimétricas de poder
parecem oferecer relevantes ferramentas de operacionalização.
Paralelamente, o desvelamento das condições efetivas de concretização do acesso
a referidos bens materiais e imateriais deve significar um indispensável ponto de apoio
para as nossas conclusões, em especial se considerado o indispensável papel das políticas
públicas em tal equação.
Neste sentido, a crescente vinculação que atestamos do Estado a um modelo
neoliberal é preocupação que deve se fazer presente e sonora, em especial quando se
tem em conta a vinculação do Direito ao Estado, neste mesmo registro moderno, de
que ainda nos encontramos tributários. O investimento no potencial dos instrumentos
jurídicos deve, portanto, persistir, mas, indubitavelmente, não deve resumir os processos
de luta contemporâneos pela dignidade.

26
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150.
27
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
483

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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
484 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

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RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL:
A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO
E A PERSECUÇÃO PÚBLICA

CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO

Introdução
A política de defesa da concorrência no Brasil já perpassou alguns ciclos. Antes
de começar a descrevê-los, é importante chamar a atenção para o fato de que esses ciclos
não possuem particularmente um fim, mas são o início da consolidação de um processo
que certamente é forte e vigente hoje em dia. Feito esse esclarecimento preliminar, não
há muitas dúvidas de que o primeiro período do CADE foi o dos atos de concentração,
operações societárias que precisam ser apresentadas para análise. Alguns julgamentos
importantes no final dos anos 1990 e outros do início dos anos 2000 consolidaram não
só a necessidade de notificar operações ao CADE, como também os métodos de análise,
sobretudo a partir do Guia de Análise de Atos de Concentração.
A partir de 2003 teve início um processo, relativamente paralelo, em que o CADE
ganhou relevância no cenário internacional, introduzindo o instrumento da leniência
no rol de opções de técnicas de investigação, que aprimorou as operações estruturadas
de busca e apreensão para coleta de provas. Na sequência, grupos de trabalho foram
montados para melhorar a política de concorrência, o que teve como efeito a construção
de uma cultura colaborativa voltada para a produtividade, que se tornou a marca do
CADE e fez com que alguns rankings internacionais enxergassem a continuidade da
evolução da política antitruste no país.
Essas mudanças deram início a um novo ciclo de desenvolvimento, que consoli­
dou os procedimentos e regras para os acordos que, em certa medida, já existiam para
os atos de concentração, mas eram restritos nos casos de condutas anticompetitivas.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
486 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Como efeito paralelo do crescimento de operações de busca e apreensão, as empresas


procuravam possibilidades de acordos além da própria leniência, o que deu origem
ao grupo de negociações e aos procedimentos de negociação. O efeito prático desse
movimento foi o crescimento bastante significativo no número de acordos, tendência
que persistiu no decorrer dos anos.
Atualmente, tendo em vista o cenário internacional e os avanços já obtidos no
país em matéria concorrencial, tudo indica que o próximo ciclo de desenvolvimento irá
envolver as ações de indenização cível. O novo ciclo ocorreria em movimento análogo
à dinâmica da Comissão Europeia, que desenvolveu estudos, consultas e mudanças
legislativas para endereçar esse instrumento de desestímulo às condutas anticompetitivas.
O objeto deste artigo, portanto, é identificar as mudanças que a Comissão Europeia
fez para viabilizar um crescimento de demandas de responsabilidade civil de ilícitos
concorrenciais para, em momento posterior, identificar se o Brasil sinaliza estar em um
momento da sua política adequado para fomentar essas demandas, terminando com
um road map das medidas que precisam ser tomadas nessa direção.

1 A experiência europeia no desenvolvimento de uma política


indenizatória cível
A União Europeia (UE) avançou significativamente na persecução aos cartéis
na esfera pública, impondo multas elevadas e aumentando recorrentemente o número
de condenações. O movimento, no entanto, não obteve o mesmo êxito no enforcement
privado.1 A União Europeia registrava baixo número de pedidos de indenização por
infração ao direito da concorrência: para se ter uma dimensão, entre 2006 e 2012, apenas
22% das decisões da Comissão Europeia foram seguidas de ajuizamento de ações de
reparação por danos concorrenciais (ARDC) pelas partes potencialmente lesadas (OCDE,
2015). Por outro lado, nos EUA, o modelo de fiscalização antitruste é marcado pela
coexistência da execução pública e privada de crimes de cartel (GERADIN; GRELIER,
2013). No país, as demandas privadas de responsabilidade civil constituem cerca de
90% do enforcement antitruste (JONES, 2016).
A busca pela intensificação e aprimoramento da política indenizatória na esfera
civil se intensificou em 2004, quando a UE começou a investir no desenvolvimento de
estímulos para a aplicação privada da lei de concorrência, buscando facilitar litígios
antitruste em todos os Estados-membros e assegurar um equilíbrio ideal entre a aplicação
pública e privada a partir de discussões de mudança legislativa. A proposta, no entanto,
como será debatido, fomentou uma série de debates, sobretudo pelas incertezas que trazia
aos programas de leniência e pela possibilidade de danos econômicos ou solvência de
empresas em função do acúmulo de passivos públicos e privados.

1
Durante o período de 2006 a 2012, menos de 25% das decisões de infração da Comissão da UE foram seguidas
por ações de indenização. Os processos são geralmente agrupados em muito poucos Estados-Membros,
principalmente no Reino Unido, na Alemanha e nos Países Baixos, não tendo sido comunicadas ações posteriores
às decisões da Comissão da UE em 20 dos 28 Estados-membros (OECD, 2015).
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
487

a. Processo de discussão da diretiva europeia


i. Livro Verde : identificação dos problemas
2

O Tratado de Funcionamento da União Europeia contém, dentre diversos outros


temas, a principal fonte do Direito Concorrencial europeu, agrupando normas a serem
adotadas por todos os Estados-membros. O capítulo 1 do título VII reúne as regras
de concorrência no âmbito da EU, sobretudo nos artigos 101º3 e 102º4 (anteriormente
enumeradas como artigos 81º e 82º). As regras sobre cartel e outras práticas conclusivas
estão especialmente previstas no art. 101º: “(a) fixar direta ou indiretamente preços de
compra ou venda ou qualquer outra condição mercadológica; (b) limitar ou controlar
a produção, mercados, desenvolvimento tecnológico ou investimentos; (c) dividir
mercados ou fornecedores”.
Não há determinações expressas referentes à questão da indenização por danos
decorrentes de práticas de cartel. Os referidos artigos são aplicados tanto pelo poder
público quanto por particulares, significando, neste segundo caso, a aplicação da
legislação antitruste em ações civis instauradas perante os tribunais nacionais. No
entanto, conforme apontado, o enforcement privado com a adoção de medidas injuntivas
ou concessão de indenização às vítimas não vinha alcançando grau significativo.
Para suprir a referida lacuna, fomentar a uniformização das legislações dos
Estados-membros e viabilizar a responsabilidade civil em matéria concorrencial, a

2
“Os Livros Verdes são documentos publicados pela Comissão Europeia destinados a promover uma reflexão a
nível europeu sobre um assunto específico. Convidam, assim, as partes interessadas (organismos e particulares)
a participar num processo de consulta e debate, com base nas propostas que apresentam. Os Livros Verdes
podem, por vezes, constituir o ponto de partida para desenvolvimentos legislativos que são, então, expostos nos
Livros Brancos”. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/green_paper.html?locale=pt>.
Acesso em: 03 jun. 2018.
3
Artigo 101º (ex-artigo 81º TCE) 1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre
empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam suscetíveis
de afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou
falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em: a) Fixar, de forma direta ou
indireta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transação; b) Limitar ou controlar
a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes
de abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações
equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; e) Subordinar a celebração de
contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou
de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos. 2. São nulos os acordos ou
decisões proibidos pelo presente artigo. 3. As disposições no nº 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis: –
a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas, – a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de
associações de empresas, e – a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam
para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico,
contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que: a) Não imponham
às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objetivos; b) Nem
deem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos
produtos em causa.
4
Artigo 102.º (ex-artigo 82º TCE) É incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja
suscetível de afetar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma
abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. Estas práticas abusivas
podem, nomeadamente, consistir em: a) Impor, de forma direta ou indireta, preços de compra ou de venda
ou outras condições de transação não equitativas; b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento
técnico em prejuízo dos consumidores; c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no
caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; d) Subordinar a
celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua
natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
488 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Comissão Europeia editou uma série de documentos sobre o tema. O Green Paper on
Damages Actions for Breach of the EC Antitrust Rules (Ações de indenização devido à
violação das regras comunitárias no domínio antitruste), de dezembro de 2005, por
exemplo, bem como o Documento de Trabalho que o acompanha, abordou as condições
existentes à época para a proposição de um pedido de indenização por infração da
legislação comunitária no domínio antitruste e identificou os obstáculos à criação de
um sistema mais eficiente.
O Livro Verde tratou da identificação dos principais obstáculos para a respon­
sabilidade civil e trouxe elementos que precisavam ser aperfeiçoados. Isso porque
a Comissão identificou que “[e]mbora o direito comunitário exija um sistema eficaz
para os pedidos de indenização na sequência de infrações às regras antitruste esta
área do direito caracteriza-se, nos 25 Estados-Membros, por um ‘subdesenvolvimento
total’” (Comissão Europeia, Livro Verde, SEC (2005) 1732, p. 4). A afirmação se baseou
em estudos que mostram a quantidade ainda irrisória de pedidos de indenização na
sequência de infrações e na ausência de regras comunitárias na matéria, o que leva a uma
situação de insegurança, cabendo aos sistemas jurídicos dos Estados-Membros definir
regras pormenorizadas para a introdução de pedidos de indenização. A uniformização
não estava presente.
Dentre os obstáculos para a proposição de ações privadas, sinalizados no Livro
Verde e no Documento de Trabalho da Comissão, estão: (i) pouca participação dos grupos
de defesa do consumidor na busca pela reparação dos danos; (ii) falta de capacidade
de o particular provar a conduta ilegal; (iii) o ônus da prova, que recai sobre o “autor”
da ação privada; (iv) a divulgação das provas em juízo, bem como a pouca eficiência
dos juízes no interrogatório das testemunhas; (v) a não vinculação da decisão da autori­
dade que combate os crimes de condutas anticoncorrenciais, com as decisões judiciais;
(vi) a quantificação dos danos; (vii) a alegação de que os intermediários repassaram aos
consumidores finais os prejuízos advindos da conduta; (viii) o tempo de tramitação do
processo; (ix) os custos processuais; (x) a pouca coordenação da aplicação da legislação
pelos poderes públicos e pelos particulares; (xi) a questão da nomeação de peritos; entre
outras (Comissão Europeia, Livro Verde, SEC (2005) 1732).
Apresentadas as questões, a Comissão convidou os interessados a enviar
apreciações para avançar na definição de diretrizes sobre a adoção de medidas a nível
comunitário para melhorar as condições para a ampliação de ações privadas.

ii. Livro Branco: propositura de soluções


Em abril de 2008 a Comissão publicou o Livro Branco, que tratou de ações de
indenização por incumprimento das regras comunitárias no domínio antitruste. O Livro
se baseia no princípio de que qualquer cidadão ou empresa que sofra danos no domínio
antitruste deve dispor de condições para exigir indenização e se propõe a apresentar
soluções para melhorar as condições para que as vítimas obtenham reparação de danos.
As medidas e opções de políticas públicas propostas dizem respeito a:
1) Legitimidade para agir: abordando adquirentes indiretos e mecanismos coletivos
de reparação, conclui-se que “qualquer pessoa” tem o direito de pedir a reparação do
dano sofrido pelo incumprimento das regras antitruste perante os tribunais nacionais,
o que inclui adquirentes diretos e indiretos que tenham sofrido danos consideráveis no
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
489

decorrer da repercussão ao longo da cadeia de distribuição com a elevação excessiva


dos preços. O Livro trata, ainda, de medidas para reforçar os mecanismos de tutela
coletiva, favorecendo ações movidas por associações de consumidores, órgãos estatais,
dentre outros; bem como demandas segundo o sistema “opt-in”, em que os prejudicados
podem agregar seus pleitos;
2) Acesso aos elementos de prova: divulgação interpartes, onde sugeriu-se que
“os tribunais nacionais devem, em determinadas condições, ter o poder de ordenar às
partes no processo ou a terceiros que divulguem certas categorias precisas de elementos
de prova relevantes” (p. 5). No caso de empresas que apresentaram um pedido de
acordo de leniência, os inquéritos devem resguardar proteção adequada. Deve-se,
ainda, proporcionar que os tribunais imponham sanções suficientemente dissuasivas
para evitar a destruição de provas relevantes;
3) Efeito vinculativo das decisões das autoridades nacionais de concorrência,
esclarecendo que as decisões proferidas pela Comissão sejam vinculantes perante os
tribunais dos Estados-membros;
4) Requisito de culpa: na Europa, uma vez provada a infração, os Estados-membros
adotam abordagens divergentes sobre a necessidade de existência de culpa para ser
possível obter reparação. Para os Estados que exigem prova de culpa, a Comissão
sugere que: “quando a vítima tiver demonstrado uma infracção ao artigo 81º ou 82º
[atual 101º e 102º], o autor desta infração deve ser considerado responsável pelos danos
causados, exceto se puder demonstrar que a infração resulta de um erro verdadeiramente
desculpável” (COMISSÃO EUROPEIA, 2008);
5) Indenizações: o Livro Branco reafirma o princípio da full compensation. Sobre o
cálculo do montante, a Comissão reconhece a complexidade do exercício de comparar a
situação econômica da vítima com um mercado concorrencial sem o conluio. Portanto,
defende o desenvolvimento de métodos de cálculo baseados em estimativas e que sejam
elaboradas diretrizes sobre critérios para quantificação dos danos;
6) Defende-se ainda a chamada “pass-on-defense”, alegação de que não há direito
de indenização quando o suposto prejudicado repassou o sobrepreço ao elo seguinte
da cadeia produtiva, evitando, desta forma, o enriquecimento ilícito e a sobreposição
de indenizações;
7) Quanto ao prazo de prescrição, devido ao caráter eminentemente sigiloso dos
cartéis, recomenda que permaneçam suspensos até a cessação da infração, bem como
durante o momento em que a vítima não possuía meios para tomar conhecimento do ato;
8) Sobre os custos das ações de indenização, propõe: a) elaboração de regras
processuais que favoreçam os acordos de transação; b) fixação de despesas judiciais;
c) possibilidade de os tribunais nacionais deliberarem sobre as despesas, principalmente
na fase inicial do processo;
9) Para evitar que constituam um fator de desestímulo aos acordos de leniência,
propõe a proteção aos documentos sigilosos e abre o debate sobre a possibilidade de
ser editada norma para limitar a responsabilidade civil de empresas beneficiárias de
acordo de leniência (COMISSÃO EUROPEIA, 2008).
Após a publicação do Livro Branco, a Comissão Europeia encomendou um estudo
sobre critérios de quantificação de dados em matéria antitruste (OXERA CONSULTING,
2009) e estabeleceu como meta para o Programa de Trabalho da Comissão Europeia
de 2012 aperfeiçoar a interação das esferas públicas e privadas na aplicação do Direito
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
490 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Concorrencial, assegurar a reparação de danos e incentivar os mecanismos de tutela


coletiva (COMISSÃO EUROPEIA, 2011).

b. Momento da decisão política europeia


Conforme exposto anteriormente, o debate sobre a aplicação privada do Direito
Concorrencial buscou superar inúmeros obstáculos legais e processuais existentes nas
regras dos Estados-membros. Dentre as dificuldades mais notáveis estão a necessidade
de uma análise factual e econômica mais complexa do que uma ação de reparação civil
habitual, a falta de acesso a elementos de prova e o cálculo ainda desfavorável, na visão
dos possíveis requerentes, sobre os riscos do processo e uma eventual indenização.
As iniciativas descritas nos itens anteriores levaram a adoção, em 11 de junho de
2013, de uma Proposta de Diretiva voltada para a remoção de obstáculos à reparação
de danos (COMISSÃO EUROPEIA, 2013), aprovada pelo Parlamento Europeu em 2014
(EUROPEAN PARLIAMENT, 2014).
A Diretiva nº 2014/104/EU (Directive on Antitrust Damages Actions) foi o ápice do
debate sobre a indenização dos danos que possuem nexo de causalidade com ilícitos
antitruste nos Estados-membros. Além de garantir o direito à compensação integral
dos danos sofridos por qualquer vítima (danos emergentes, lucros cessantes e juros,
excluindo-se os danos punitivos) (artigo 3º), a Diretiva permitiu que os tribunais nacionais
determinem que réus ou terceiros entreguem provas relevantes para os autores das
ações mediante pedido fundamentado (artigo 13). Com essa medida, buscou-se facilitar
a comprovação da prática de cartel, dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre
eles, sendo estes os elementos essenciais da responsabilidade civil concorrencial.
A Diretiva confirmou princípios que já haviam sido debatidos no Livro Branco
e criou possibilidades para que a parte lesada retorne à posição em que estaria caso
a infração não tivesse ocorrido, evitando a “overcompensation”, embora reconheça
a dificuldade em precisar com exatidão o montante dos danos sofridos (artigo 17).
Determina, ainda, que as decisões condenatórias proferidas pela Comissão Europeia
sejam vinculantes perante os tribunais dos Estados-membros (artigo 9º) e estabelece
prazo de prescrição de, no mínimo, cinco anos, a contar a partir do momento em que o
prejudicado possa razoavelmente ter ciência da infração concorrencial, sendo suspenso
ou interrompido na pendência de investigação da prática por autoridade de defesa da
concorrência (artigo 10).
Quanto aos acordos de leniência, prevê que as confissões emitidas pelos réus não
deverão ser disponibilizadas como prova em ações indenizatórias (artigo 6º, item 6); e
estabelece a “joint and several liability”, ou seja, os membros do cartel são considerados
solidariamente responsáveis, razão pela qual as vítimas podem cobrar a totalidade dos
prejuízos a qualquer um dos infratores (artigo 11), exceto quando estão envolvidos
beneficiários de acordos de leniência, que serão responsáveis unicamente pelos danos
causados aos adquirentes diretos e indiretos de seus próprios produtos e serviços.
Após a publicação da Diretiva, os Estados-membros dispuseram de dois anos
para adaptarem suas legislações, razão pela qual os impactos ainda não podem ser
mensurados de modo substantivo.
A Diretiva vem sendo alvo de críticas como, por exemplo, a possibilidade de
alocação do “sobrepreço” e a aceitação de argumentos de defesa baseados no repasse dos
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
491

custos ao longo da cadeia produtiva (passing-on defense) com o propósito de evitar uma
“sobrecompensação” dos danos sofridos pela vítima. Além das dificuldades de calcular
a alocação devida em cada nível, a aceitação desse argumento exige a coordenação
entre as várias ações que podem ser ajuizadas, e a sua facilitação para o réu (inclusive
com a inversão do ônus da prova) pode prejudicar a demonstração dos elementos da
responsabilidade pelo autor. Outra crítica recorrente é a possibilidade da ampliação do
enforcement privado prejudicar a persecução pública, comprometendo a efetividade de
suas ferramentas, especialmente no que se refere aos acordos de leniência.
No entanto, embora ainda seja passível de críticas e aprimoramentos, a base da
decisão política da União Europeia foi a identificação de um momento propício para
aprimorar, de modo geral, o enforcement contra os crimes de cartel, permitindo que as
vítimas sejam integralmente reparadas e, ao mesmo tempo, diminuindo, ainda mais,
os incentivos para que condutas anticompetitivas sejam exercidas.

2 O Brasil está pronto para fomentar a responsabilidade civil


concorrencial?
O movimento legislativo europeu teve início a partir da compreensão de que os
instrumentos de persecução de cartel, em especial a leniência, já estavam consolidados, o
que permitia um avanço na direção de demandas cíveis. Existe um potencial conflito entre
o aumento de demandas privadas e a celebração de acordos de leniência, já que o risco
cível pode servir como desestímulo para políticas calçadas em colaboração e confissão
de culpa, como é o caso da leniência e também de outros perfis de acordos. Dessa forma,
uma boa proxy para verificar se o Brasil está ou não pronto para começar uma política
nessa direção pode ser vista a partir de números que identifiquem a consolidação da
política de leniência e de acordos, ou seja, a quantidade (i) de acordos de leniência e (ii)
de termos de compromisso de cessação (TCCs) firmados com o CADE. No caso do acordo
de leniência, o infrator que faz jus a ele recebe o benefício da imunidade administrativa
e penal total, enquanto que, no caso do TCC, o infrator que faz jus ao requerimento
confessa e se compromete a recolher uma contribuição pecuniária ao Fundo de Defesa
de Direitos Difusos, mas não recebe benefícios penais.
Em relação especificamente à evolução da quantidade de acordos de leniência
firmados entre particulares e o CADE, o gráfico 1 capta bem em que medida a política
vem se consolidando ao longo do tempo:
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
492 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Gráfico 1: Evolução do número de acordos de leniência

Fonte: SUPERINTENDÊNCIA – GERAL (CADE). Balanço Anual 2017, 2018

No caso, os acordos de leniência são um forte indicador da atividade de um órgão


antitruste, pois reduzem os custos de enforcement da agência concorrencial e aumentam
a probabilidade de uma atividade de investigação resultar em condenação, já que um
envolvido na suposta conduta anticompetitiva confessa a infração e apresenta provas em
relação a terceiros que também participaram da colusão. Embora o aumento do número
de leniências esteja associado à operação Lava Jato e desdobramentos, a popularização
do instrumento parece ser medida sem volta, já que, inicialmente, as leniências estavam
majoritariamente focadas em investigações internacionais, não sendo mais esse o caso
a partir dos últimos anos.5
A mesma tendência pode ser identificada no que diz respeito aos termos de
compromisso de cessação, que também vêm apresentando movimento de crescimento
ao longo dos últimos cinco anos, conforme o gráfico 2. No entanto, é importante chamar
a atenção para o fato de que esse processo não está limitado aos casos oriundos da
operação Lava Jato.6 Na verdade, o processo de negociação de acordos foi incentivado pela
Resolução nº 5/2013, que gerava incentivo para uma resolução mais célere de processos
em caso de colaboração e confissão, transformando o acordo em um instrumento de
investigação mais a molde de uma leniência, dando em contrapartida descontos que
podem variar de percentuais baixos até 50% da multa.

5
Conforme dados oficiais do CADE, durante a Lei nº 8.884/94 (período entre 2000 a maio de 2012), mais de 60%
dos Acordos de Leniência dizia respeito a cartéis internacionais (todo ou em parte). Já na vigência da Lei nº
12.529/11 (período entre junho de 2012 a maio de 2017), mais de 80% dos acordos diz respeito a cartéis nacionais
(todo ou em parte).
6
Somente 14 de todos os acordos firmados entre 2016 e 2017 dizem respeito à Operação Lava Jato. Disponível
em: <http://www.cade.gov.br/noticias/cade-investiga-carteis-em-licitacoes-de-infraestrutura-e-transporte-rodo
viario-em-sp>. Acesso em: 17 fev. 2018.
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
493

Gráfico 2: Evolução do número de TCCs homologados

Fonte: SUPERINTENDÊNCIA – GERAL (CADE). Balanço Anual 2017, 2018

Esse instrumento tem se mostrado bastante efetivo. Muito embora a quantidade


de IAs e PAs julgados tenha decrescido entre 2016 e 2017, a quantidade de requerimentos
de TCC julgados, em 2017, aumentou cerca de 23% em relação a 2016, resultado esse
que permite supor um aumento da disposição do particular em firmar acordos com
o CADE, justamente, em função do crescimento de um receio quanto à imposição de
severas multas administrativas. Assim, o gráfico seguinte parece exprimir que a política
de sanções administrativas para cartéis está consolidada no Brasil:

Gráfico 3: Quantidade de IAs, PAs e TCCs em 2016 e 2017

Fonte: SUPERINTENDÊNCIA – GERAL (CADE). Balanço Anual 2017, 2018


GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
494 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

O desenvolvimento do enforcement privado não é tarefa simples, sobretudo devido


aos possíveis impactos que pode gerar ao enforcement público. Embora as informações
possam ser cruciais para provar e garantir o ressarcimento dos dados, demonstrando
o nexo de causalidade, uma mudança na regulamentação poderia ter impacto no custo
da delação e poderia prejudicar a celebração de novos acordos.
No entanto, embora essa não seja uma preocupação que se possa descartar, os
dados demonstram, com razoável precisão, que as políticas de combate a cartéis no
Brasil, especialmente no que se refere aos instrumentos colaborativos de investigação
(nomeadamente as leniências e os TCCs), já se encontram desenvolvidos o suficiente
para dar início a uma discussão mais sofisticada a respeito de um incentivo legislativo
para reduzir os custos de propositura para uma demanda de reparação cível. Dessa
forma, o tópico seguinte irá tratar das barreiras existentes no Brasil.

3 Barreiras à indenização cível no Brasil


A Lei nº 12.529/2011 trouxe melhorias expressivas à defesa da concorrência
no Brasil. Dentre as principais estão a configuração do Sistema Brasileiro de Defesa
da Concorrência – SBDC, a submissão prévia de atos de concentração ao Conselho
Administrativo de Defesa da Concorrência – CADE, a melhoria da estrutura de pessoal
da autarquia e a redução da esfera penal dos ilícitos anticoncorrenciais, atualmente
limitadas à conduta de cartel (GOUVÊA, 2017, p. 206). No entanto, quanto à aplicação
privada do direito antitruste poucos avanços podem ser identificados, permanecendo
extremamente subutilizados no país.
Uma pesquisa realizada pelo IBRAC (2016),7 com período amostral de 1994-2016,
apurou apenas 33 ações de reparação de danos nos tribunais analisados, sendo 88%
relacionadas a cartel, 9% à exclusividade e 3% a preços predatórios. Dentre os casos
levantados, o CADE atuou como assistente em apenas um processo. Vinte e seis ações
reparatórias estão relacionadas a processos administrativos (como cartel dos vergalhões
de aço, cartel dos gases, cartel dos compressores, cartel dos tubos CRTs e cartel no
mercado de fertilizantes). Quanto à tramitação, 16 transitaram em julgado, 14 estão
pendentes de julgamento, dois estão em segredo de justiça e um foi suspenso.
O número reduzido de ações não decorre propriamente de um impedimento
legal, visto que o art. 47 da Lei nº 12.529/20118 permite a aplicação da lei, individual ou
coletivamente, por concorrentes, distribuidores, varejistas e consumidores, que poderão
ingressar em juízo para obter a cessação de práticas e recebimento de indenização,
independentemente do inquérito ou processo administrativo. No entanto, a sua forma
de exercício está sujeita ao Código Civil e ao Código de Processo Civil, regras gerais do

7
A pesquisa analisou a jurisprudência nos Tribunais e coletou amostras do TJSP, TJMG, TJRS, TJSC, TJPR, TJDF,
TJRJ, TJES, TRF 1ª Região, TRF 2ª Região, TRF 3ª Região, TRF 4ª Região, STF e STJ. A pesquisa não inclui processos
em segredo de justiça e processos envolvendo multa por intempestividade; embargos de declaração rejeitados e
litígios envolvendo matéria não concorrencial (ex. propriedade intelectual).
8
“Art. 47. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990,
poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a
cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por
perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em
virtude do ajuizamento de ação”.
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
495

Direito brasileiro que, por sua vez, não possuem tratamento específico para o exercício
desse direito.
Diversos autores se debruçaram sobre as barreiras ao enforcement privado do
Direito Concorrencial. Em um estudo comparativo sobre a União Europeia, África
do Sul e Suíça, Moodaliyar, Reardon e Theuerkauf (2010) apontaram como principais
barreiras o tempo necessário para julgamento, o custo do processo, sobretudo porque, ao
perder a ação, o autor pode ser responsável pelos custos legais, e a incerteza da decisão.
Outro empecilho é a dificuldade de reunir consumidores e ou concorrentes lesados para
mover uma ação. Em geral, a pesquisa denota que essa tarefa recai sobre organizações
de consumidores que, em muitos casos, não possuem recursos para prosseguir na ação.
A OECD (2015b), o CADE (2016) e diversos autores identificaram uma série
de barreiras à ampliação do enforcement privado no Brasil. Dentre elas estão: (i) a não
existência de cultura de reivindicação de danos por parte de consumidores lesados por
delitos anticoncorrenciais, o que demanda investimentos em divulgação; (ii) elevados
custos processuais, inerentes à justiça brasileira; (iii) excessivo tempo de tramitação
dessas demandas no Judiciário, que gera desincentivo para iniciar a ação; (iv) e o curto
prazo prescricional para a propositura de ações; e (v) existem, ainda, incertezas acerca
dos legitimados para a propositura de ARDCs, sobretudo em relação aos compradores
indiretos.
Alguns pontos que dificultam as investigações são: 1) a não vinculação das
autoridades judiciais às decisões tomadas pelo CADE; 2) o caráter sigiloso de documentos
relevantes à instrução probatória, como Acordos de Leniência e Termos de Compromisso
de Cessação, celebrados junto ao CADE. Embora, no Brasil, a regra geral prevista no
art. 5º, LX, da Constituição Federal de 1988, seja a da publicidade dos atos administrativos,
existem algumas exceções, a exemplo da Lei nº 9.784, de 1999 (Lei Geral de Processo
Administrativo), que estabelece sigilo à intimidade e ao interesse público, a Lei nº 12.527,
de 2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI), que concede exceção para informações
que podem trazer vantagem competitiva, além da Lei de Defesa da Concorrência (Lei
nº 12.529, de 2011), que contém exceções quanto à publicidade dos atos administrativos.
O art. 49, por exemplo, garante tratamento sigiloso de documentos, informações e atos
processuais necessários à elucidação dos fatos e, além disso, as partes podem requerer
tratamento sigiloso de informações submetidas ao CADE nos termos do Regimento
Interno da autarquia (art. 50 a 56). O sigilo dos Acordos de Leniência e TCC está previsto
na Lei nº 12.529, de 2011 (art. 86, §9º) – Leniência e (art. 85, §5º) – TCC, nos artigos 179,
§3º, e 200, §§ 1º e 2º, do Ricade e nas cláusulas do acordo celebrado entre os signatários e o
CADE. Essa é uma questão sensível não apenas no Brasil, mas em todos os ordenamentos
jurídicos. A confidencialidade é, não apenas um direito, mas, também, uma obrigação
do proponente, já que o acesso aos documentos pode atrapalhar as investigações; 3) um
outro ponto diz respeito à distribuição do ônus da prova e dificuldade de os particulares
provarem a conduta ilegal.
Uma outra barreira à persecução privada amplamente debatida na literatura
e pelos órgãos de defesa da concorrência é a dificuldade na quantificação dos danos.
Na jurisprudência internacional, em geral, a matéria da efetivação de pretensões privadas
ao ressarcimento de danos causados por exercício de cartel é regida pelo princípio da
reparação integral. No Brasil, a norma está prevista no art. 944 do Código Civil de 2002
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
496 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

(a indenização mede-se pela extensão do dano). A dificuldade consiste, no entanto,


na demonstração da relação de dependência em face do fornecedor cartelizado e da
quantificação das aquisições e perdas do período (FERRAZ JÚNIOR, 2013).
Quando ao julgamento, conforme apurado pela OECD (2015b), falta familiaridade
com o tema por magistrados brasileiros. Existem, ainda, dúvidas sobre a possibilidade
de atuação do CADE em processos judiciais,9 bem como questionamentos sobre o valor
jurídico das decisões em sede administrativa (CADE). Por fim, cabe ressaltar a reduzida
carga de iniciativas por parte dos legitimados extraordinários – Ministério Público,
Defensoria Pública e, sobretudo, associações de defesa aos direitos dos consumidores.

Conclusão: Road map para desenvolver a responsabilidade civil no Brasil


Os EUA, país que mais avançou na persecução privada, onde toda a condenação
de cartel é seguida por uma ARDC, adotou três principais caminhos em seu Federal
Rules of Civil Procedure:

Imagem 1 – Road Map da persecução privada nos EUA

As partes prejudicadas nos Estados Unidos possuem quatro anos para ajuizamento
de ações, sendo o termo inicial contado a partir da cessação da conduta anticompetitiva
(ALISON, 2016). O acesso aos documentos obedece às regras de amplo discovery,
invertendo-se o ônus da prova nas ARDCs. Até mesmo os beneficiários de leniência ou
qualquer coautor da conduta anticompetitiva tem por obrigação fornecer documentos
e informações para embasar os pedidos de indenização, se solicitado pelo tribunal

9
10. As an expert in competition, as well as the sole entity responsible for enforcing the Brazilian competition law,
CADE can be a valuable resource for courts when hearing private enforcement cases. It is important that courts,
when hearing private actions, allow and encourage the involvement of competition authorities by, for example,
requesting the authority to provide estimates of the losses suffered by victims of the anti-competitive conduct.
11. Also, under Article 118 of the Brazilian Competition Law, CADE should be called before the judiciary to give
an opinion as a legal assistant, when matters of application of the Brazilian Competition Law are being discussed.
CADE can intervene, for instance, when it has already finalized a competition decision, or as an amicus curiae,
when there is not yet a final decision. 12. Furthermore, in accordance with Article 93 of the Brazilian Competition
Law, condemnations handed down by CADE are considered extrajudicial enforcement orders, allowing victims
of antitrust infringements to use the authority’s decision as evidence of harm in court proceedings (OECD,
2015b).
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
497

(SCHWARTZ, 2014). Para manter o programa de leniência atrativo, tomou-se como


medida limitar a responsabilidade dos beneficiários dos acordos que cooperam em sede
das ARDCs. Desde 2014, a Antitrust Criminal Penalty Enhancement and Reform Act foi
reformada para que os beneficiários de acordo de leniência não arquem com os danos
triplicados (“de-trebling”) e não respondam solidariamente pelos danos causados pelo
cartel, desde que cooperem satisfatoriamente.
A comparação com os Estados Unidos não é necessariamente apropriada,
porque a política concorrencial sempre se deu com influência bastante incisiva do setor
privado, o que torna o modelo europeu um exemplo de paradigma mais interessante.
De qualquer forma, independentemente do país fixado como benchmark, para chegar
ao mesmo resultado, um possível desenvolvimento de etapas para a formulação da
política se faz necessário.
As soluções envolvem o investimento e desenvolvimento de estudos técnicos
e acadêmicos, que utilizem métodos quantitativos e qualitativos para destrinchar
os principais obstáculos mapeados, propor metodologias para o cálculo de danos e
identificar soluções, inclusive envolvendo a busca pelas melhores práticas estrangeiras
e recomendações de organizações internacionais. Mudanças legislativas precisam ser
estudadas, apontadas (buscando-se proposições já em tramitação no Congresso Nacional)
e implementadas, a exemplo de alterações da Lei nº 12.529, de 2011, verificando os
prazos de prescrição atuais, além de políticas de acesso a documentos e a proteção de
colaboradores, de forma a não prejudicar a adoção dos instrumentos da leniência e dos
termos de cessão de conduta.
É necessária, ainda, a promoção da atuação dos legitimados extraordinários
(Ministério Público, Defensoria Pública e, sobretudo, associações de defesa aos direitos
dos consumidores), desenvolvendo ações e divulgações para que ampliem a atuação na
matéria; e, por fim, é necessária a divulgação e conscientização acerca da possibilidade
de reparação oferecida pelas ARDCs. Desse modo, inseguranças e desconhecimentos
serão sanados e o mecanismo ganhará potencial para inibir práticas anticoncorrenciais,
se tornará mais acessível aos consumidores lesados e mais conhecido pelos responsáveis
pelo julgamento das demandas.

Imagem 2 – Road map para desenvolver o enforcement privado no Brasil


GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
498 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Com ações semelhantes às mencionadas, assim como na União Europeia, o Brasil


começará a traçar seu caminho para ampliar o combate aos crimes de concorrência, por
meio do incentivo à persecução privada e, ao mesmo tempo, buscará soluções para
garantir a manutenção do equilíbrio entre as persecuções pública e privada.

Referências
CADE. Articulação entre as persecuções pública e privada a condutas anticompetitivas: Estudo da experiência
internacional e brasileira e propostas regulamentares, legislativas e de advocacy a respeito das ações de
reparação por danos concorrenciais (ARDC) e do acesso a documentos de acordos de leniência e de termos
de compromisso de cessação (TCC) no Brasil. NOTA TÉCNICA Nº 24/2016/CHEFIA GAB-SG/SG/CADE.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Responsabilidade civil concorrencial: a articulação entre o


enforcement privado e a persecução pública. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 485-499. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
RESPONSABILIDADE CIVIL
POR INADIMPLEMENTO ÉTICO

INALDO SIQUEIRA BRINGEL

ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA

1 Introdução
O instituto do contrato visto sob a perspectiva civil-constitucional brasileira
contemporânea ganha uma nova feição, caracterizada pela manifestação de vontade e
prática comportamental probas e transparentes nas relações negocias.
A óptica estrutural do contrato compreende não apenas os elementos formais da
obrigação principal, mas insere no contexto contratual novos deveres éticos decorrentes
da boa-fé objetiva, princípio concretizador do solidarismo social (art. 3º da Constituição
Federal de 1988) no plano do Direito Privado.
Reconhecer o paradigma boa-fé objetiva nos contratos importa na observância de
comportamentos leais, de cunho ético dos contratantes em todas as fases do processo
contratual. O dinamismo negocial e a complexidade das relações mercadológicas exigem
o traço pronunciado da confiabilidade das partes.
Nessa compreensão, a ideia clássica de adimplemento obrigacional é reexaminada,
porquanto os deveres gerais de conduta são imiscuídos no bojo do cumprimento negocial.
O dever de informar, o dever de mitigar os danos, o dever de cooperar, o dever de
colaborar e ser leal às expectativas legitimidades geradas são tão imprescindíveis quanto
o implemento do objeto pactuado pelas partes.
Trata-se de reflexo marcante do primado da função social do contrato, adotado
expressamente pelo Código Civil Brasileiro, na prática reverberado pelas locuções
parcelares da boa-fé objetiva.
Assim, a formação do contrato (manifestação de vontade) e a obrigatoriedade do
que fora acordado, pilares da responsabilidade civil contratual, devem ser conjugados
substancialmente à observância ética de comportamento da boa-fé objetiva, sob pena de
inadimplemento contratual e consequente sujeição ao sistema preventivo e reparatório
do ordenamento pátrio.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
502 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Para tanto, analisam-se os deveres gerais de conduta derivados do princípio da


boa-fé à luz do conceito de adimplemento contratual, com ênfase na teoria da respon­
sabilidade civil constitucional no que tange ao instituto do contrato.

2 A boa-fé objetiva e o panorama civil-constitucional


É fato que o princípio da boa-fé objetiva revolucionou a teoria geral dos contratos.
A análise da relação jurídico-contratual não é mais vista como um dogma normativa, pura
e simplesmente aferida pelo cumprimento da obrigação principal. O comportamento
humano passa a integrar o núcleo obrigacional, movimento centrípeto abalizador da
ética e da lealdade nos contratos.
A força normativa da boa-fé no arcabouço jurídico contratual brasileiro ganha
força e é impulsionada a partir da Constituição Federal de 1988, tendo sua ratificação
infraconstitucional com a promulgação do Código Civil de 2002.
A Constituição de 1988 é caracterizada pela forte carga principiológica que
privilegia a socialização dos institutos privados, uma vez que autonomia privada e
liberdade contratual não mais são vistas como absolutas. O sistema impõe, por meio de
cláusulas abertas, condicionantes éticos de conduta que humanizam relações até então
patrimoniais. Ao fazer uma leitura civil-constitucional, Anderson Schreiber preleciona:

O direito civil-constitucional pode ser definido como a corrente metodológica que defende
a necessidade de permanente leitura do direito civil à luz da Constituição. O termo
“releitura” não deve, contudo, ser entendido de como restritivo. Não se trata de recorrer
à Constituição para interpretar as normas ordinárias de direito civil (aplicação indireta
da Constituição), mas também de se reconhecer que as normas constitucionais podem e
devem ser diretamente aplicadas às relações jurídicas estabelecidas entre particulares.1

Nessa perspectiva, a Carta Magna Brasileira, em seu art. 3º, elenca como um
dos objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária.2 No mesmo passo, prega no art. 1º do referido diploma constitucional ser a
dignidade da pessoa humana fundamento da República Federativa do Brasil.
De sorte que a autonomia da vontade e a liberdade de contratar ainda permane­
cem como pilares da teoria geral dos contratos. O que ocorre é a integração do conceito
metajurídico de solidariedade social na seara privada, materializada pela aplicação da
boa-fé objetiva e seus deveres gerais de conduta. Trata-se da ética3 incidindo no campo
da ciência do Direito.

1
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da repartição à diluição
dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 06.
2
“Da afirmação dos objetivos sociais de liberdade, justiça e solidariedade é possível concluir a necessidade de
serem as relações privadas – especificamente as relações obrigacionais – pautadas pela eticidade entre as partes
e dirigidas a um fim concorde aos comportamentos socialmente esperados”. MAGALHÃES, Ana Alvarenga
Moreira. O Erro no Negócio Jurídico: autonomia da vontade, boa-fé objetiva e teoria da confiança. São Paulo: Atlas,
2011. p. 86.
3
“Donde pode dizer-se que a Ética é a realização da liberdade, e que o Direito, momento essencial do processo
ético, representa a sua garantia especifica, tal como vem sendo modelado através das idades, em seu destino
próprio de compor em harmonia, liberdade, normatividade e poder”. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed.
São Paulo: Saraiva, 2012. p. 215.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
503

A boa-fé objetiva assenta regras comportamentais fundamentadas na lealdade e


na confiança, de observância essencial a todos, para que haja respeito (ético e jurídico) às
expectativas geradas por terceiros. O jurista português Menezes Cordeiro4 compreende a
confiança como uma manifestação entres os aderentes negociais, no que tange à atividade
e à crença, a determinadas representações ao longo tempo, que tenham por efetivas. Tal
entendimento seria o núcleo do princípio da confiança.
Na verdade, o que pretende o referido princípio é mostrar que as partes, antes
de serem contratantes, são seres inseridos no contexto social apriorístico, caracterizado
pela legítima espera de condutas honrosas.
Da atuação prática das partes na relação contratual é que emerge o conceito da
boa-fé no aspecto objetivo, que, nas lições de Cláudia Lima Marques, Herman Benjamim
e Bruno Miragem, reverbera uma regra de conduta.5
Corroborando com o exposto, temos o Enunciado nº 26 do Conselho de Justiça
Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que discerne a boa-fé objetiva pela sua
imposição de condutas leais nas relações contratuais. Ipsis litteris:

Enunciado 26: A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz
interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva,
entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.

Em consonância com o espirito constitucional, seguem o Código de Defesa do


Consumidor6 (Lei nº 8.078/90) e o Código Civil7 (Lei nº 10.406/02). Apesar de tais diplomas
normativos regularem relações jurídicas distintas, contratos de consumo e contratos de
direito privado, respectivamente, possuindo, portanto, alguns traços distintos, ambos
convergem no sentido de elencar a boa-fé objetiva como princípio norteador das relações
contratuais, impondo ética e respeito, sob pena de retaliação pelo ordenamento jurídico.
Os valores éticos tão caros ao bom convívio social, antes estranhos ao Direito
Privado no que tange às relações contratuais, hoje, definitivamente integram o processo
de relacionamento entre os envolvidos. É justamente essa a manifestação da boa-fé
objetiva.
Um contrato desembaraçado, fruto da livre manifestação dos contratantes com
o escopo de circular bens ou serviços e sobretudo realizar os anseios das partes, deve
manter correspondência com a ética, a probidade e lealdade. O instrumento contratual
assume um viés civil-constitucional, a fim de fomentar uma sociedade livre, justa e
solidária, objetivo da República Federativa do Brasil.

4
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da Boa-fé Objetiva no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1997.
p. 1234.
5
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman de V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 124.
6
Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria
da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes
princípios: III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da
proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar
os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-
fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
7
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
504 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

2.1 Os deveres gerais de conduta derivados da boa-fé objetiva


A boa-fé objetiva admitida como princípio jurídico, espécie do gênero norma
jurídica, apresenta maiores implicações no campo prático do que no teórico. As impli­
cações, aqui chamadas de funções, sistematizam e dão suporte à incidência da boa-fé
nos diferentes ramos do Direito Privado.
A doutrina é uníssona em conceber a boa-fé objetiva como norteadora das
seguintes funções: função interpretativa, função restritiva de direitos subjetivos8 e função
criadora de deveres gerais ou anexos de conduta. Esta última função tem fundamental
importância no processo de “eticização” das relações contratuais.
Ao lado da obrigação principal, atuam os deveres gerais de conduta entendidos
como novas obrigações autônomas, tendo em vista que o simples cumprimento das
obrigações meramente materiais (dar, entregar, fazer ou não fazer) não perfaz o perfil
contratualista contemporâneo. De maneira que a conduta humana,9 de maior abrangência,
figura como protagonista na análise obrigacional, não se limitando o contrato apenas ao
mero instrumento jurídico de registro de intenções.
Os deveres gerais de conduta decorrentes da boa-fé objetiva estão presentes
em todos os contratos e direcionados para os envolvidos no negócio jurídico, atuando
independentemente de previsão contratual. Nesse sentido, Schreiber e Tepedino:

Por fim, a boa-fé exerce o papel de fonte criadora de deveres anexos à prestação principal.
Assim, impõe-se às partes os deveres outros que não previsto no contrato: deveres de
lealdade, deveres proteção e de esclarecimento ou informação. (...) tecnicamente, são estes
os deveres anexos da boa-fé, que formando o núcleo da cláusula da boa-fé, se impõe ora
de forma positiva, exigindo dos contratantes determinado comportamento, ora de forma
negativa, restringindo ou condicionado o exercício de um direito previsto em lei ou no
próprio contrato.10

Na perspectiva funcional da boa-fé, percebe-se que valores como a lealdade,


confiança e respeito perpassam o campo da ontologia e adentram no mundo do dever-ser
jurídico, integrando, a partir de então, o complexo de normas cogentes do ordenamento
jurídico civil-constitucional.

8
“Ao lado da criação de deveres anexos (dever de correção, de cuidado e segurança, de informação, de cooperação,
de sigilo, de prestar contas), a boa-fé objetiva ostenta função interpretativa dos negócios jurídicos, e função
limitadora do exercício de direitos (proibição do venire contra factum proprium, que veda que a conduta da
parte entre em contradição com conduta anterior, do inciviliter agere, que proíbe comportamentos que violem o
princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a invocação de uma cláusula ou regra que a própria parte
já tenha violado)”. PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil . Vol. III – Contratos. 21. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017.
9
“Como é notório, a boa-fé objetiva representa uma evolução do conceito de boa-fé, que saiu do plano psicológico
ou intencional (boa-fé subjetiva), para o plano concreto da atuação humana (boa-fé objetiva)”. TARTUCE, Flávio;
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 7. ed. rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. p. 39.
10
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Os efeitos da Constituição em relação à cláusula da boa-fé no
Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 23, p. 145, 2003.
Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista23/revista23_139.pdf>. Acesso
em: 20 maio 2018.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
505

2.2 Deveres gerais de conduta: cooperação, confiança e ética nas


relações contratuais
Determinados deveres gerais ou reflexos afloram do princípio da boa-fé objetiva.
Entre eles, temos o dever de cooperar (lealdade), o dever de mitigar os danos (duty to
mitigate the loss), o dever de informar e o dever de confidencialidade ou sigilo.11
O dever geral de cooperação propõe às partes contratantes uma atuação de
maneira colaborativa, com o fim precípuo de atendimento ao pactuado. Indo além, o
comportamento durante todo o processo contratual deve corresponder às expectativas
geradas. Não basta rubricar uma mera folha de papel e juridicamente assumir uma
obrigação. O contratante deve agir de maneira proba, tomando ciência de que suas
atitudes precisam incorporar o espírito ético-social.
Observando a cooperação12 como um dever geral de conduta, Judith Martins-
Costa aduz que os contratantes de uma determinada relação contratual não podem ser
enca­rados como elementos isolados e estranhos,13 porém como partes de um processo
contratual dotado de intersubjetividade.
Exemplificando o dever de cooperação e, ao mesmo tempo, adentrando em um
novo dever de geral de conduta, a doutrina aponta o dever de mitigar os danos (duty
to mitigate the loss).
Trata-se da incumbência do credor mitigar suas perdas, quer dizer, os seus
pró­prios prejuízos. Nesse sentido, é o teor do Enunciado nº 169 14 do Conselho de
Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil. Para ilustrar, pensemos num
deter­minado credor que, ciente do descumprimento do devedor, nada faz. A inércia
proposital do credor visa tão somente o aumento da dívida, tendo em vista a vultosa
taxa de juros estabelecida no contrato e a dificuldade do cumprimento da obrigação,
tornada excessivamente onerosa.
A jurisprudência do Tribunal da Cidadania em consonância com a doutrina
repudia e afasta do mundo jurídico tal conduta afrontosa à boa-fé. Foi o recurso especial
nº 758.518-PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, assentado no dever do credor
de mitigar seus próprios danos:

DIREITO CIVIL. CONTRATOS. BOA-FÉ OBJETIVA. STANDARD ÉTICO-JURÍDICO.


OBSERVÂNCIA PELAS PARTES CONTRATANTES. DEVERES ANEXOS. DUTY TO
MITIGATE THE LOSS. DEVER DE MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO. INÉRCIA DO
CREDOR. AGRAVAMENTO DO DANO. INADIMPLEMENTO CONTRATUAL. RECURSO
IMPROVIDO. 1. Boa-fé objetiva. Standard ético-jurídico. Observância pelos contratantes
em todas as fases. Condutas pautadas pela probidade, cooperação e lealdade. 2. Relações
obrigacionais. Atuação das partes. Preservação dos direitos dos contratantes na consecução
dos fins. Impossibilidade de violação aos preceitos éticos insertos no ordenamento jurídico.

11
Vale salientar que a enumeração de tais deveres é meramente exemplificativa. Outros valores são transmutados
em deveres jurídicos gerais, a depender do caso concreto e da relação contratual estabelecida.
12
“O antagonismo foi substituído pela cooperação, tido como dever de ambos os participantes e que se impõe
aos terceiros. Revela-se a importância não apenas da abstenção de condutas impeditivas ou inibitórias, mas das
condutas positivas que facilitem a prestação do devedor”. LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2017. p. 104.
13
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 393-396.
14
Enunciado nº 169 do CJF/STJ: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do
próprio prejuízo”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
506 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o
próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para
que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer
deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do
credor. Infringência aos deveres de cooperação e lealdade. 4. Lição da doutrinadora Véra
Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato de ter
deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse
com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra
e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente
agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de
defesa possessória diminuiria a extensão do dano. 5. Violação ao princípio da boa-fé
objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta
pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento). 6. Recurso improvido.15

A cooperação, portanto, sinônimo de colaboração no âmbito contratual, cria um


ambiente propício para uma relação intersubjetiva ética entre os contratantes. Apesar de
possuírem interesses distintos, as partes devem zelar pela ética negocial, caracterizada
pelo respeito à boa-fé objetiva.
No que concerne ao dever de informar, este pressupõe a transparência na relação
entre os contratantes. Na verdade, o comportamento transparente deve ser perquirido
desde a celebração do contrato até a fase pós-contratual,16 uma vez que o conhecimento
é fundamental para a manifestação de vontade das partes e regular processo contratual.
O dever de informar, como decorrência da boa-fé, é cláusula implícita em qualquer
contrato. É múnus do contratante informar à outra parte os atributos e peculiaridades do
negócio jurídico celebrado, sem omissões e obscuridade. A informação deve contemplar
não apenas a coisa objeto do pacto, mas também tudo aquilo que o compõe enquanto
bem, dotado de valor econômico.
É certo que o dever de informação aparece de maneira mais enfática no Código
de Defesa do Consumidor, haja vista que o diploma consumerista regula vínculos
contratuais marcados pela vulnerabilidade do consumidor e desequilíbrio entre as
partes.17
Nesse sentido, estabelece o art. 6º, III, do referido código que é direito básico do
consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços,
com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos
incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.

15
STJ – Resp: 758518 PR 2005/0096775-4, Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/RS), Data de julgamento: 17.06.2010, T3 – terceira turma, Data de Publicação: DJe
28.06.2010 REPDJe 01.07.2010.
16
Sobre a responsabilidade culpa post pactum finitum, assevera Donnini: “Se essa pós-eficácia da obrigação (legal ou
contratual) representa um dever genérico de comportamento como por exemplo, na exigência da boa-fé (dever
de informar), sua violação representa a ruptura dos deveres acessórios, o que faz retratar a responsabilidade pós-
contratual ou a pós-eficácia em sentido estrito”. DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade Civil Pós Contratual
no direito civil, no direito do consumidor, no direito do trabalho, no direito ambiental e no direito administrativo. 3. ed. rev.,
ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 148.
17
Segundo Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, no microssistema jurídico proposto do Código de Defesa
do Consumidor a função da boa-fé objetiva era dar equilíbrio material às relações não paritárias, a fim de
proteger o hipossuficiente ou vulnerável, técnico ou econômico, da sujeição ao fornecedor. TEPEDINO, Gustavo;
SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In:
Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: Renovar, 2005. p. 29-43.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
507

Entretanto, o dever geral de informar também tem aplicação no âmbito dos


contratos civis. Embora os contratos civis não estejam encampados na óptica protecionista
do Código de Defesa do Consumidor, a observância do dever de informar decorre da
obrigação ética de se comportar de maneira transparente e proba, a fim de evitar danos
ao outro contratante em virtude de omissão, inverdades e farsas sobre o conteúdo do
contratado.
De fato, não é necessário dispositivo legal ou previsão contratual para que uma
parte compreenda o seu dever de informação frente ao negócio jurídico. Trata-se da
relação de confiança entre as partes contratantes, posto que a confiança ainda é entendida
como elemento ético do Direito, merecendo tutela jurídica do ordenamento.
Ressaltando a importância e o dever de informar nos contratos civis em
consonância com os princípios constitucionais da solidariedade e dignidade humana,
afirma Cláudio José Franzolin:

O dever de informar entre os contratantes é mais acentuado e decorre desses princípios


que penetram nas relações privadas, iluminando e contribuindo na interpretação dos
dispositivos do Código Civil, em especial, os artigos 111, 113, 138, 421 e 422, que tratam,
respectivamente, do silêncio, da interpretação dos negócios jurídicos, do conteúdo da
declaração e da confiança gerada ao destinatário do conteúdo negocial, da função social
e da boa-fé.18

Ademais, observa-se a quebra do dever ético de informar quando nos referimos


à disciplina dos vícios redibitórios (arts. 441 a 446 do Código Civil), na ocasião de um
contratante ter conhecimento de vício que inquilina a coisa, objeto do contrato, porém
não comunica à outra parte do negócio jurídico.
Apesar de a jurisprudência ainda ser tímida quanto ao dever de informar nos
contratos civis, é de se reconhecer sua evolução, porquanto incidente a chamada teoria
do diálogo das fontes19 nos tribunais brasileiros, o que implica a interligação de preceitos
consumeristas e civilistas, privilegiando uma interpretação sistemática dos institutos
jurídicos negociais.
Ainda em decorrência do princípio da boa-fé objetiva elenca-se o dever de con­
fidencialidade. O dever de confidência atinge todos os tipos contratuais. Em menor ou
maior grau, as partes devem guardar do sigilo no que se refere às informações restritas
aos contratantes. Em muitos casos o sigilo é da essência do negócio jurídico celebrado.
Desde a fase pré-contratual, anterior à celebração do contrato, muitas informações
são transmitidas entre os envolvidos da relação. São informações de cunho pessoal,
empresarial e ético. O dever de sigilo deve perdurar até mesmo após a extinção da
obrigação pactuada,20 tendo em vista que o compromisso ético permanece vigente.

18
FRANZOLIN, Claudio José. Inadimplemento do dever de informação no contrato e os poderes do juiz no código civil: para
uma efetiva tutela jurisdicional dos contratantes. In: XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2009, Anais. São
Paulo. p. 10128.
19
A chamada teoria do diálogo das fontes parte da premissa de que as normas jurídicas não se excluem, antes
se complementam. Ramos jurídicos distintos passam a “dialogar” através de suas normas jurídicas. A referida
teoria foi elaborada pelo professor alemão Erik Jayme, e importada para o Brasil pela jurista sul-rio-grandense
Cláudia Lima Marques.
20
“Quando o contrato for concluído, a fonte da obrigação de sigilo será, as mais das vezes, recondutível à boa-
fé contratual, isto é, à boa-fé no cumprimento das obrigações emergente do contrato, e não já à boa-fé pré-
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
508 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3 O adimplemento sob a perspectiva da boa-fé objetiva


Ao celebrar um dado contrato, o contratante espera que a obrigação decorrente
da relação contratual seja cumprida naturalmente.21 É dizer, através dos meios esperados
extintivos da obrigação, ocorra o adimplemento do negócio jurídico celebrado.
Para Rodrigues,22 “o adimplemento é o ato jurídico que extingue a obrigação,
realizando-lhe o conteúdo”. Nesse sentido, o adimplemento tem uma conotação de
desempenho ou atitude voluntária de prestação, por parte daquele que se obrigou por
lei ou contrato. De fato, é uma expectativa subjetiva gerada de que todo aquele obrigado
juridicamente pelo negócio manifeste comportamento condizente com ética e probidade,
de maneira a cumprir a avença espontaneamente acordada.
Para além do conceito jurídico, no mundo negocial, o adimplemento da obrigação
tem uma dimensão muito maior do que o simples cumprimento. A adimplência resulta
em satisfação e respeito do parceiro-contratante e uma legítima expectativa do mercado
de que aquele que cumpre suas obrigações na forma e modo contratado é digno de
confiança. O adimplemento assume um papel de adjetivo qualificador do sujeito
contratante.
Nessa lógica, o adimplemento decorre da observância da obrigação propriamente
dita (jurídica) e da obrigação moral conscientemente contraída. Ao tratar do assunto, o
professor Elcias Ferreira da Costa alude:

A obrigação e o dever jurídico surgem com a causalidade jurídica, dada a ocorrência


do fato gerador, previsto em norma, sendo que o nascimento da obrigação pressupõe
o conhecimento da norma. Analogamente, a obrigação moral surge com a consciência
moral, entendendo-se por ela não apenas o conhecimento psicológico da lei moral, mas o
próprio julgamento axiológico feito pela consciência a respeito do que está sendo proposto
à decisão da vontade (ação ou omissão) e sobre a consequência da decisão que a vontade
houver tomado.23

O Código Civil de 2002, atento às nuances do mundo negocial, norteou-se pela


eticidade, sociabilidade, operabilidade e sistematicidade.24 O direcionamento que assume um
código pautado na ética é incomensurável, tendo em vista que as relações e os sujeitos
por ele regulados necessariamente devem primar não apenas pelas normas jurídicas
postas, como também por outros valores inerentes ao bom convívio em sociedade,
primado da boa-fé objetiva.

contratual”. GUARESCHI, Carla Varea. Os deveres de confidencialidade relativamente a informações obtidas na fase
pré-contratual. In: XXIV Encontro Nacional do CONPEDI-UFS, 2015, Anais. Aracaju, SE. p. 650.
21
Venosa, ao fazer referência à extinção da obrigação de maneira natural, utilizando o termo pagamento como
equivalente de adimplemento, aduz que “o pagamento deve ser visto nas obrigações de dar, fazer e não fazer.
Paga-se, na compra e venda, quando se entrega a coisa vendida. Paga-se, na obrigação de fazer, quando se
termina a obra ou atividade encomendada. Paga-se, na obrigação de não fazer, quando o devedor se abstém de
praticar o fato ou ato a que se comprometeu negativamente, por um tempo mais ou menos longo. O credor pode
ou não concorrer para o pagamento. Nos contratos bilaterais, há obrigações recíprocas. Portanto, há ‘pagamento’,
no sentido ora tratado, para ambas as partes: na compra e venda, o comprador deve pagar ‘dinheiro’, o vendedor
deve pagar a ‘coisa’, entregando-a ou colocando-a à disposição do comprador”. VENOSA, Sílvio Salvo. Direito
Civil: obrigações e responsabilidade civil. vol. 2. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 219.
22
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: Responsabilidade civil. vol. 4. 20. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código
Civil (Lei n. 10.406, de 10.1.2002). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 124.
23
COSTA, Elcias Ferreira da. Deontologia Jurídica: ética das profissões jurídicas. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
24
Expressões da lavra do jusfilósofo pátrio Miguel Reale.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
509

A ideia de adimplemento, portanto, perpassa pela valorização e respeito às


expectativas engendradas desde o nascedouro do acordo jurídico, visando a exatidão
do objeto pactuado na relação constituída. Indubitavelmente, a ética e o comportamento
solidário integram a concepção de adimplemento obrigacional, fulcro do Direito Civil
Constitucional.25

3.1 Obrigação jurídica complexa e os deveres gerais de conduta


Tradicionalmente, tínhamos que preenchidos os requisitos formais do contrato
(partes, forma e objeto) estabelecidos em lei e “paga” a obrigação principal, estava
con­cretizado o cumprimento obrigacional. Apenas eram denominadas obrigações
complexas objetivas aquelas que possuíam mais de uma obrigação principal em que
todas elas deveriam ser cumpridas, descartando qualquer outro dever obrigacional que
não estivesse presente no documento negocial.
Considerando a repaginação do entendimento de adimplemento é que surge uma
nova concepção da chamada obrigação jurídica complexa,26 marcada pela presença dos
deveres gerais de conduta.
A complexidade da obrigação é fruto da pluralidade de deveres na relação obri­
gacional que não se resumem apenas à obrigação tradicionalmente chamada de principal.
O contratante espera do outro muito mais do que um simples dar, fazer e não fazer. E
assim, o direito resguarda e tutela os deveres gerais de conduta, estes autônomos27 à
obrigação principal e tão fundamental para o adimplemento do pactuado.
Os deveres gerais de conduta assumem status de objeto e fim que devem ser
buscados por todos os envolvidos na relação obrigacional. Pode-se afirmar ainda que
os deveres gerais têm uma dimensão muito maior do que uma simples obrigação.
Integram o novo Direito Civil Constitucional referente à teoria das obrigações, sendo
decorrente dos valores éticos, constitucionais e metajurídicos que são concretizados pela
observância da boa-fé objetiva.

25
Sobre a miscelânea do Direito Civil e do Direito Constitucional, Anderson Schreiber afirma que “o direito civil
constitucional não é o ‘conjunto de normas constitucionais que cuida de direito civil’, nem se trata tampouco
de uma tentativa de esvaziar o direito civil, transferindo alguns de seus temas (família, propriedade etc.) para
o campo do direito constitucional. Trata-se, muito ao contrário, de superar a segregação entre a Constituição
e o direito civil, remodelando os seus institutos a partir das diretrizes constitucionais, em especial dos valores
fundamentais do ordenamento jurídico”. SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos (Coord.). Direito Civil-
Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016.
26
Ao mencionar as palavras do jurista português Mário Júlio de Almeida Costa, escreve Bruno Miragem que
“da mesma forma, a incidência da boa-fé́ resulta na multiplicação de deveres das partes. Assim, são observados
não apenas os deveres principais de prestação (o dever de pagar o preço ou entregar a coisa, por exemplo), senão,
igualmente, deveres anexos ou laterais, que não dizem respeito diretamente à prestação principal, mas com a
satisfação de interesses globais das partes, como os deveres de cuidado, previdência, segurança, cooperação,
informação, ou mesmo os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao patrimônio da outra parte”.
MIRAGEM, Bruno. Direito civil: direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 133.
27
Paulo Lôbo, corroborando com o entendimento de que os deveres gerais de conduta são autônomos à obrigação
principal, afirma que os “deveres não derivam da relação jurídica obrigacional, e muito menos do dever de
adimplemento; estão acima de ambos, tanto como limites externos ou negativos, quanto como limites internos
ou positivos. Derivam diretamente dos princípios normativos e irradiam-se sobre a relação jurídica obrigacional
e seus efeitos, conformando e determinando, de modo cogente, assim o débito como o crédito”. LÔBO, Paulo.
Direito civil – Obrigações. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 81.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
510 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ainda que expressamente não estejam nas linhas contratuais, os deveres gerais de
conduta integram as entrelinhas jurídicas e ontológicas do negócio jurídico. O dever de
informar, de cooperar, de mitigar os danos, o dever de confidencialidade e outros deveres
decorrentes da boa-fé objetiva são matrizes ético-institucionais da obrigação assumida.
Na perspectiva do contrato, fonte da obrigação, a inserção de tais deveres éticos de
conduta reconhece que a mesma manifestação de vontade ora presente no momento de
celebrar o acordo necessita prosseguir ao longo do processo contratual, principalmente
nas relações contratuais de trato prolongado.
Contudo, requer uma vontade qualificada pela probidade, moralidade, alteridade
e respeito às expectativas legitimamente geradas, tendo em vista que, antes de
contratantes, as partes estão inseridas num contexto social, que se esperam condutas
decentes dos participantes negociais.
No condão civil-constitucional, já observado neste trabalho, extraímos que os
deveres gerais de conduta nas relações obrigacionais e em especial nos contratos,
funcionam como um mediador entre as liberdades individuais e os direitos fundamentais
decorrentes do solidarismo pugnado pela sistemática do nosso ordenamento jurídico.
O indivíduo, antes de manifestar sua vontade num determinado contrato para
satisfazer seus interesses existências, tem o dever de respeitar à ordem econômica28 e os
direitos inerentes à pessoa humana, na medida da função social da propriedade e por
consequência da função social do contrato.
Os deveres gerais de conduta são obrigações intrínsecas de convívio harmônico
em sociedade, hoje, autênticos vetores das relações jurídico-obrigacionais.

4 Inadimplemento ético e responsabilidade civil por inobservância a


deveres gerais de conduta
Celebrado o contrato, as partes vinculam-se subjetiva e objetivamente. O liame
formado não se resume apenas à manifestação de vontade instantânea. Tampouco o
cumprimento do avençado é puramente jurídico.
O contrato, desde sua gênese ao chamado período pós-contratual, cria outras
tantas situações jurídicas29 que maximizam as situações subjetivas (deveres gerais de
conduta) frente à pura e simples obrigação principal.
Nesse sentindo, a inobservância dos deveres gerais de conduta é tão gravosa
quanto o não cumprimento da obrigação tida como principal.30 Em certas circunstâncias,
adim­plir a obrigação principal pode ser irrelevante quando o descumprimento de um

28
Ao tratar da ordem econômica no âmbito da Constituição Federal de 1988, o constitucionalista Bernardo Gonçalves
Fernandes explica que, “mesmo que a Ordem Econômica brasileira seja fundada na liberdade de iniciativa
econômica, garantindo o direito de propriedade privada dos meios de produção – típico dos modelos capitalistas –,
a Constituição de 1988 institui diversos princípios sob os quais se subordinam e limitam o processo econômico,
a fim de que com isso, se possa direcioná-lo para a persecução do bem-estar de toda sociedade notadamente na
melhoria da qualidade de vida”. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev.,
ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1619.
29
LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones, t. 1, trad. Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado,
1958, p. 37.
30
Dicotomia obrigação principal e obrigação acessória/secundária é bastante enfraquecida como a nova teoria do
direito das obrigações, mormente pela incorporação dos deveres gerais de conduta na essência do adimplemento
obrigacional.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
511

ou mais dos deveres gerais integrarem a substância ou essência do próprio negócio. O


sentido do art. 38931 do Código Civil passa a conter uma dimensão muito maior, tendo em
vista que o desrespeito aos deveres gerais de conduta pode acarretar responsabilidade
civil àquele causador do dano.
Para Aline Miranda e Gisela Sampaio, “reputar-se-á inadimplente o devedor
que não cumpra o dever principal da obrigação ou quaisquer dos deveres de conduta
impostos pela sistemática obrigacional”.32 No âmbito contratual, a quebra da boa-fé
objetiva, fonte dos deveres gerais de conduta, dá lugar à responsabilidade civil contratual
em ocorrendo dano a um dos contratantes. De sorte que a responsabilidade nos contratos
resta configurada quando constatada a inexecução obrigacional oriunda do contrato, o
que insere os deveres decorrentes da boa-fé objetiva.
A responsabilidade civil contratual surge, portanto, quando configurado prejuízo
para um dos contraentes em virtude de violação de deveres jurídicos. Surge como
medida consequente outro dever, o dever de indenizar, que na seara contratual ocorre
pelo inadimplemento do que fora pactuado e ou pelo desprezo dos deveres gerais de
conduta. Sobrevindo o dano, o contratante causador tem a obrigação ético-jurídica de
repará-lo e mesmo sendo o dano de natureza moral tem o dever de compensá-lo.
Ademais, soma-se ainda ao paradigma da boa-fé a imprescindibilidade de se
respeitar os princípios da função social do contrato e da equivalência material da rela­
ção, princípios abalizadores da relação contratual nos moldes constitucionais. O com­
portamento contrário ao conjunto harmônico de tais princípios agride não apenas as
partes envolvidas, incluindo os terceiros, como também afronta o traço da sociabilidade
do contrato, caractere independente da realização da prestação.33
As condutas contratuais comissivas ou omissas que violem o dever de informar,
o dever de cooperar ou ser leal, o dever de minimizar os danos, o dever de sigilo
ou confidencialidade, dentre outros deveres consecutivos, têm de ser combatidas
veementemente pelo ordenamento jurídico e seus intérpretes. As espertezas e agilidades
negociais não podem extrapolar as expectativas geradas no âmago contratual.
Logicamente que para a constatação da violação dos deveres gerais de conduta
faz-se necessária uma análise ético-jurídica, tomando por base os aspectos econômicos,
sociais e principalmente outros elementos que interferem na formação, desenvolvimento
e prestação do negócio jurídico celebrado.
A culpa contratual34 de que se protrai a responsabilidade civil é pelo dever positivo
de adimplir o objeto da avença. Tal objeto é apenas um dos deveres do contrato, uma

31
Art. 389: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária
segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.
32
TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Adimplemento substancial e tutela do
interesse do credor: análise da decisão proferida no REsp 1.581.505. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil,
vol. 11, p. 95-113, jan./mar. 2017, p. 100. Disponível em: <https://www.ibdcivil.org.br/image/data/revista/
volume11/rbdcivil11_11-art-05_aline-valverde-terra-et-al.pdf>. Acesso em: 20 maio 2018.
33
FACHIN, Luiz Edson. Contratos e responsabilidade civil: duas funcionalizações e seus traços. Revista dos
Tribunais, v. 903, p. 33, 2011.
34
“Quando há contrato, existe um dever positivo do contratante, dever específico relativamente à prestação, o que
só por si lhe impõe a responsabilidade. Basta ao demandante trazer a prova da infração, para que se estabeleça
o efeito, que é a responsabilidade do faltoso, uma vez que os demais extremos derivam do inadimplemento
mesmo, pressupondo-se o dano e nexo causal, a não ser que o acusado prove a razão jurídica do seu fato, ou a
escusativa da responsabilidade”. PEREIRA, Caio Mário Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 11. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 316.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
512 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

vez que a vinculação entre as partes exige comportamentos éticos e leais ao bom direito
e às legítimas expectativas geradas, fulcro da convivência social.
O espírito constitucional irradia solidarismo para o ordenamento jurídico civil,
o que na esfera contratual reverbera o respeito aos contratantes e principalmente a
materialização da boa-fé objetiva, exigindo, portanto, abrangência e tutela aos deveres
gerais de conduta.

5 Conclusão
Não obstante a sua concepção tenha ocorrido ainda na década de 1970, o Código
Civil veio ao mundo sob os influxos da Constituição Federal de 1988. O que implica
reconhecer que o referido diploma não é apenas um corpo normativo de cunho
meramente dogmático juspositivista. A lei norteia as relações privadas carregando
consigo valores decorrentes dos princípios sociais que limitam a vontade dos indivíduos,
a fim de harmonizar os mais variados interesses, todos em sintonia com a função social
da propriedade.
Com a relação contratual não é diferente. Apesar das partes exteriorizarem
vontades diversas, certos deveres éticos são esperados pelos contratantes. Nesse ponto,
os envolvidos necessitam convergir, na medida em que os deveres gerais de conduta
oriundos da boa-fé exigem comportamentos socialmente recomendáveis.
A transparência, a cooperação e a lealdade são corolários de um contrato pautado
na ética e no respeito às expectativas legitimamente geradas. Os deveres de conduta são
partes da obrigação tida como principal no contrato celebrado.
Evidente que, se o ordenamento jurídico privilegia a conduta honesta nas relações
contratuais, ele também tutela os chamados deveres gerais de conduta exigidos dos
contratantes. É função elementar do Direito não só repelir atos propriamente ilícitos
ensejadores de efeitos danosos aos contratantes reciprocamente considerados, mas
também à sociedade, assim como lhe cabe igualmente criar um ambiente fecundo ao
respeito, à confiança e à previsibilidade, condições inerentes às atividades negociais.
O contratante violador de qualquer dos deveres gerais de conduta estará sujeito
ao sistema repressivo da legislação civilista. Os deveres de informar, de cooperar,
de reduzir os danos, de garantir sigilo e confidencialidade, entre outros deveres de
comportamento, são todos eles integrantes do cumprimento geral das obrigações,
submetendo o inadimplente à responsabilização civil dos danos eventualmente causados
a outrem, seja contratante ou terceiros.
Tem-se, portanto, a figura da responsabilidade civil por inadimplemento ético.
São, em verdade, consequências jurídicas decorrentes da inobservância a preceitos
éticos, corolários do princípio da boa-fé objetiva e pilar de sustentação do Direito Civil-
Constitucional.

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INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
513

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inadimplemento ético. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro
de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 501-514. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO
E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES
CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO
DO REGISTRO CIVIL DE TRANSGÊNEROS

MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER

1 Introdução
O presente texto tem por objetivo evidenciar os novos contornos do direito ao
reconhecimento da identidade pessoal dos transgêneros a partir do julgamento da Ação
Direita de Inconstitucionalidade nº 4.275 pelo Supremo Tribunal Federal e da Opinião
Consultiva nº 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre identidade
de gênero, igualdade e não discriminação, cotejando-os com o Provimento nº 73/2018
do Conselho Nacional de Justiça.
Metodologicamente, assume o desafio de confrontar a crítica de que no Brasil
não existe uma cultura de análise séria das decisões judiciais, usualmente utilizadas
tão somente a partir do enxuto conteúdo de suas ementas e como argumento de
autoridade que corrobore a tese defendida, corroborada pela constatação de José Rodrigo
Rodriguez de que o Direito brasileiro não “produziu um pensamento jurídico conceitual
e sistemático, tampouco uma formalização a partir da argumentação que justifica a
decisão de casos exemplares”.1
Assim, busca-se não apenas traçar o “novo” perfil do direito à identidade pessoal
dos transgêneros, mas sim buscar a ratio decidendi que justifica este novo perfil e a partir
dela extrair os vetores hermenêuticos que servirão, prospectivamente, como parâmetro

1
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2013, p. 23.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
516 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

para a interpretação do procedimento de retificação do registro civil instituído pelo


Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça.

2 Sexo, gênero e o direito à identidade pessoal


Nunca é demais lembrar que o Direito existe para pessoas, especialmente para
regulamentar relações intersubjetivas. Não por outra razão, afirma Carlos Alberto
da Mota Pinto que “não há Direito na ilha onde apenas habita Robinson. O direito
pressupõe a vida dos homens uns com os outros”.2 É nesta senda que o jurista não pode
se concentrar na análise do procedimento jurídico para retificação de nome e sexo sem
antes compreender que por trás das regras e princípios há sujeitos concretos, pessoas
que buscam sua realização por meio de tal procedimento. Aí a necessidade de antes
compreender sexo e gênero para então conhecer quem é o transexual.3
Sexo é uma característica biológica e fisiológica, anatomicamente determinada
mesmo antes do nascimento da pessoa e objetivamente aferível a partir de seus órgãos
genitais, internos e externos. De outro lado, gênero é elemento subjetivo constituído por
aspectos psicológicos, sociais e culturais relativos aos “padrões de comportamentos
definidos pela prática cultural na qual as pessoas vivem papéis estereotipadamente
masculinos e femininos”.4
Quando estes dois elementos são coincidentes em uma mesma pessoa, ou seja, seu
sexo e gênero são masculinos, ou seu sexo e gênero são femininos, este será um sujeito
cisgênero. Em oposição, a identidade transgênera reflete o desalinhamento destes dois
elementos, notadamente pelo sexo designado ao nascer não coincidir com o padrão de
comportamento em que a pessoa subjetivamente se enquadra.5
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a transexualidade como
trans­torno de sexualidade, e assim a define no item F64.0 da Classificação Estatística
Interna­cional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde:

Um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha
em geral de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação por referência a seu próprio
sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento
hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.6

2
MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1993, p. 23.
3
Há muito Luiz Edson Fachin descortina a necessidade do Direito incorporar também o gênero como expressão
da identidade da pessoa humana: “o sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde
logo, com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e una. Essa rigidez não leva em conta
dimensões outras, também relevantes, no plano das questões sociais e psicológicas. Desse modo, o papel de
gênero se apresenta como uma expressão pública dessa identidade” (FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família:
elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 122).
4
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidade. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade Sexual e Direito
Homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 412.
5
CHAVES, Marianna. Homoafetividade e direito: proteção constitucional, uniões, casamento e parentalidade – um
panorama luso-brasileiro. Curitiba: Juruá, 2011, p. 40-42.
6
DIAS, Rodrigo Bernardes. Estado, sexo e direito: reflexões acerca do processo histórico de reconhecimento dos
direitos sexuais como direitos humanos fundamentais. São Paulo: SRS Editora, 2015, p. 331.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
517

Em que pese seja esta a classificação atual, a própria OMS já assinalou mudança
de posição. Em 18.06.2018, a organização divulgou a nova Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11), na qual a
transexualidade já não é classificada como transtorno de sexualidade, mas apenas como
condição relativa à saúde sexual. Deixa portanto a categoria de patologia para ingressar
na categoria de condição sexual, tal como a disfunção erétil. A nova classificação, porém,
ainda será submetida à aprovação pelos países membros (o que ocorrerá em maio de
2019) e, em sendo aprovada, entrará em vigor apenas em 1º de janeiro de 2022.
Em solo pátrio, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.955/
2010, estabelece que para a definição de transexualismo a pessoa deverá apresentar, no
mínimo:

a) desconforto com o sexo anatômico natural; b) desejo expresso de eliminar os genitais,


perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo
oposto; c) permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo,
dois anos; d) ausência de outros transtornos mentais.

Em que pese tais definições a tomarem como patologia, não se pode ignorar a
tendência estrangeira de não mais reconhecer o transexualismo como uma doença, na
linha do que fora proposto no CID-11, e da posição já assumida pela Associação Ameri­
cana de Psiquiatria.7 Seja ou não uma patologia, a transexualidade é um fenômeno social
amplamente reconhecido e que trará importante repercussão no conjunto de elementos
que compõem a identidade pessoal.
A relação de não pertencimento ao sexo morfológico decorrente da transexuali­
dade naturalmente reflete também na não conformação da identidade autopercebida
ao nome, a imagem e ao próprio projeto de vida da pessoa. Naturalmente, uma mulher
transgênera não se sentirá adequadamente representada por um prenome masculino,
tampouco pelo estereótipo da imagem masculina ou mesmo pelos comportamentos
culturais tipicamente designados para o sexo masculino, tornando imprescindível a
retificação de alguns dos atributos da sua personalidade civil para que se adéquem a
sua identidade pessoal e projeto de vida.
Nessa medida, adaptar a tutela da personalidade do transgênero não se limita à
retificação isolada do nome ou do sexo da pessoa em seu registro civil, mas vai além,
“alcançando sua relação com os diferentes traços pelos quais a pessoa humana vem
representada no meio social” e promovendo “a garantia da fidedigna apresentação da
pessoa humana, em sua inimitável singularidade”.8
Foi pensando nesta proteção mais ampla, relacionada ao complexo de dados
pessoais do indivíduo, que a doutrina italiana desenvolveu na década de 1970 o chamado
direito à identidade pessoal, definido por Maria Celina Bodin de Moraes como “uma
fórmula sintética para destacar a pessoa globalmente considerada de seus elementos,
características e manifestações, isto é, para expressar a concreta personalidade individual
que se veio consolidando na vida social”.9

7
Ibidem.
8
SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 214 e 220.
9
A definição de direito à identidade pessoal como conglobante de diversos aspectos da personalidade é
elucidativamente traçada por Maria Celina Bodin de Moraes: “Enquanto o nome identifica o sujeito físico no
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
518 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A proteção da identidade pessoal atua em dupla dimensão: negativa e positiva.


Na primeira, como instrumento de proteção contra violações à personalidade daqueles
que são socialmente apresentados a partir de um dado falso, ou seja, apresentado como
uma pessoa diferente daquela que realmente é.
Anderson Schreiber apresenta interessantes exemplos de violação à identidade
pessoal, como o caso em que o jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria intitulada
“bairro de São Paulo atrai vizinhança homossexual”, na qual descrevia que aquele bairro
atraía o público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) e que determinado café era o local
favorito deste público para blind dates, encontros às escuras com pessoas que ainda
não conheciam pessoalmente. Para ilustrar a matéria, veiculou foto de um advogado
abraçando um outro homem, em frente ao referido café. Tal veiculação levava o leitor a
crer que aqueles dois homens tinham orientação homossexual e ali estavam em razão
de um blind date, quando na verdade o advogado era heterossexual, abraçava um amigo,
e as duas mulheres que os acompanhavam haviam sido apagadas da foto pelo jornal.10
Por certo que tal publicação não violou a honra do advogado, já que a orientação
sexual de uma pessoa não pode ser juridicamente admitida como fato que desabone
sua reputação ou implique desprezo público, sob pena de admitir o ingresso, no plano
do Direito, do preconceito que ainda resiste em alguns setores da sociedade. Também
seria discutível a violação ao seu direito de imagem, já que a fotografia retratava
uma via pública, em que o advogado era apenas parte do cenário retratado. Porém, é
incontroverso que a publicação apresenta aquele advogado como uma pessoa que não é,
diversa da sua verdadeira identidade pessoal, in casu, de homem heterossexual, casado
e que não frequenta blind dates com outras pessoas.
O autor ainda cita outros exemplos, como o do professor de Direito Eclesiástico que
teve associada a si, em uma série de artigos científicos, uma tese que jamais defendeu: a
das propriedades afrodisíacas da raiz de ginseng,11 e o da pessoa que teve criado um perfil
falso de si no (já “falecido”) Orkut, no qual, além de diversas informações verdadeiras
sobre a pessoa, atribuía-lhe falsamente comportamentos de cunho pornográfico, algo
que não representava sua verdadeira identidade.12
Na segunda dimensão, positiva, o direito à identidade pessoal atua como instru­
mento promocional da pessoa, “estimulando o encontro do ser humano com sua autêntica
identidade”.13 Trata-se, a rigor, de um dever de proteção da pessoa (e de consequência,
de seu direito à identidade pessoal) que se realiza sobretudo por condutas positivas do

plano da existência material e a imagem evoca os traços fisionômicos da pessoa, a identidade pessoal representa
uma fórmula sintética para destacar a pessoa globalmente considerada de seus elementos, características e
manifestações, isto é, para expressar a concreta personalidade individual que se veio consolidando na vida social.
Este novo direito da personalidade consubstanciou-se num ‘direito de ser si mesmo’ (diritto ad essere se stesso),
entendido como o respeito à imagem global da pessoa participante da vida em sociedade, com a sua aquisição de
ideias e experiências pessoais, com as suas convicções ideológicas, religiosas, morais e sociais, que a distinguem
e ao mesmo tempo a qualificam. (...) Há ainda um aspecto fundamental do direito à identidade pessoal: a sua
intrínseca modificabilidade, isto é, sua capacidade ou potencialidade de mudança. De fato, a identidade pessoal
pode mudar e frequentemente muda com a evolução da pessoa” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da
pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2016, p. 138-139).
10
O exemplo é apresentado e debatido em: SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2014, p. 214-215.
11
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 98.
12
SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 217.
13
Ibidem, p. 220.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
519

Estado voltadas ao acesso e ao estímulo à efetiva realização do projeto pessoal de cada


um. Essa “recente” atribuição de um dever positivo ao Estado se deu sobretudo a partir
da figura da proibição da insuficiência desenvolvida na Alemanha por Claus-Wilhelm
Canaris, pela qual a proteção dos direitos fundamentais não se limita à ausência de
violação estatal, mas também pela proteção dos direitos fundamentais dos particulares
contra agressões horizontais, de outros particulares, seja por meio de atuação legislativa,
seja por meio de atuação jurisprudencial.14
No Brasil, o tema é tratado de forma similar na consagrada tese de Carlos Eduardo
Pianovski Ruzyk, que descortina a forma como a ausência de apreensão jurídica e de
proteção da autodeterminação do indivíduo, no exercício de sua liberdade substancial,
acaba por direcionar as escolhas pessoais aos modelos expressamente chancelados pelo
Direito,15 afastando assim a efetiva proteção do projeto existencial livremente concebido
por cada pessoa.
Nesta perspectiva, não basta ao Estado abster-se de violar o projeto de construção
da identidade de cada um ou manter-se indiferente quanto a essa autodeterminação.
Consagrar apenas o modelo que reconhece o sexo enquanto elemento biológico,
evidenciado no nascimento pelos órgãos genitais da pessoa, implica por via transversa
negar efetividade ao direito de construir sua personalidade de acordo com o gênero
com o qual se identifica. Não basta a liberdade negativa, no sentido de não ser impedida
de levar tal projeto de vida a cabo, mas da necessidade de ter assegurada a liberdade
positiva, consistente na plena capacidade de realização daquilo que valoriza,16 de dar
efetividade ao projeto existencial que reflita sua identidade pessoal, nela considerada
sua identidade de gênero.
Exemplo desta atuação proativa do Estado voltada a assegurar a liberdade positiva
de constituição da identidade pessoal, sobretudo em relação à questão de gênero,
encontra-se na Portaria nº 2.803/2013 do Ministério da Saúde,17 a partir da qual o processo
transexualizador passou a ser realizado pelo Sistema Único de Saúde, de forma gratuita,
e incluindo não só a cirurgia de transgenitalização mas também o acompanhamento
pré e pós-operatório.18

14
DUQUE, Marcelo Schenk. Direito privado e constituição: drittvirkung dos direitos fundamentais, construção de um
modelo de convergência à luz dos contratos de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 316.
15
“A ausência de apreensão jurídica e de proteção dessa autodeterminação restringe arbitrariamente a liberdade,
impondo em atípica intervenção por meio de uma determinada forma de ‘silêncio legal’. A relação intersubjetiva
que tinha uma face definida pela vivência das liberdades das partes deixa de ser reconhecida como tal. Aquilo que
deflui da autodeterminação deixa de reger os rumos da vida desses indivíduos, pois esse Direito, ao silenciar –
ou ao não limitar-se a afirmação pura e simples de licitude (em termos de liberdade negativa), sem dali extrair
normatividade decorrente da liberdade – acaba por direcionar comportamentos para os rumos atinentes aos
modelos expressamente chancelados pela norma, aqui apreendida em seu sentido estrito” (PIANOVSKI RUZYK,
Carlos Eduardo. Institutos fundamentais de direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato,
da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2011, p. 135).
16
É a perspectiva de liberdade adotada por Amartya Sen na obra Desenvolvimento enquanto liberdade. Segundo o
autor, “a análise do desenvolvimento apresentada neste livro considera as liberdades dos indivíduos os elementos
constitutivos básicos. Assim, atenta-se particularmente para a expansão das ‘capacidades’ das pessoas de levar
o tipo de vida que elas valorizam – e com razão. Essas capacidades podem ser aumentadas pela política pública,
mas também, por outro lado, a direção da política pública pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades
participativas do povo” (SEN, Amartya. Desenvolvimento enquanto liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 33).
17
Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html>, acesso em: 28
maio 2018.
18
Em 2016 o SUS atendeu mais de quarto mil pessoas interessadas no procedimento para adequação de seu
corpo ao gênero com o qual se identificam, conforme notícia veiculada em: <https://epoca.globo.com/saude/
noticia/2017/06/o-papel-do-sus-em-ajudar-cidadaos-transexuais-renascer.html>, acesso em: 26 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
520 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Também reflete a dimensão positiva do direito à identidade pessoal a decisão


proferida pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direita de Inconstitucionalidade
nº 4.275, pela qual deu interpretação conforme à Constituição ao artigo 58 da Lei de
Registros Públicos para autorizar a retificação do nome e do sexo da pessoa transexual
em seu registro civil, independentemente de cirurgia ou de autorização judicial. Cumpre,
então, delimitar o alcance desta decisão e os parâmetros por ela delineados para que
a normatividade construída a partir dela esteja de acordo com a racionalidade e os
fundamentos que a guiaram.

3 A ratio decidendi da ADI nº 4.275


No dia 1º de março de 2018 o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou
procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275, ajuizada pela Procuradoria-
Geral da República com o objetivo de fixar-se a interpretação conforme à Constituição
do artigo 58 da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos), segundo o qual “o prenome
será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”.
Sustentava a autora que a interpretação do citado dispositivo somente estaria em
harmonia com os artigos 1º, inciso III, 3º, inciso IV, e 5º, caput e inciso X, da Constituição
Federal se permitir aos transexuais a retificação de sexo e prenome no registro civil,
independentemente de procedimento cirúrgico.19
O Ministro Marco Aurélio Mello, relator da ADI, apresentou voto reconhecendo
que “é tempo de a coletividade atentar para a insuficiência de critérios morfológicos para
a afirmação da identidade de gênero”. Porém, embora não tenha submetido a retificação
do registro civil à prévia cirurgia de transgenitalização, submeteu-a à “verificação de
critérios técnicos aptos a comprovar a transexualidade” fixando-os em analogia aos
estabelecidos pela Resolução nº 1.955/10 do Conselho Federal de Medicina. Nessa
linha, a retificação do registro civil de pessoa não submetida a cirurgia exigiria: a) idade
mínima de 21 anos; e b) diagnóstico médico de transexualismo, a serem aferidos em
procedimento de jurisdição voluntária.
Para além, sob a premissa de resguardo do interesse público, ressalvou o voto
que “a adequação do nome à identidade psicossocial de gênero não elimina o caminho
trilhado até aquele momento pelo transexual”, e, de consequência, o registro civil da
pessoa transexual deveria manter as informações anteriores à retificação.20
A maioria do Plenário porém acompanhou o voto do Ministro Luiz Edson Fachin,
que acolhia o pedido da Procuradoria-Geral da República em maior extensão, admitindo
a retificação do prenome e do sexo de transexuais apenas e tão somente a partir da
mani­festação de vontade do interessado, ou seja, independentemente de qualquer
proce­dimento médico ou laudo psicológico sobre a afirmada condição de transexual.
Inobstante a substancial diferença entre as conclusões apresentadas pelos votos,
reconhecendo-se a crítica lançada por José Rodrigo Rodriguez sobre a ausência de uma
análise verticalizada das decisões judiciais brasileiras, impende aqui buscar a ratio
decidendi que estribou a decisão e, a partir dela, traçar os vetores hermenêuticos que

19
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4.275/VotoMMA.pdf>, acesso
em: 26 maio 2018.
20
Idem.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
521

permitirão a interpretação do procedimento administrativo para a retificação do registro


civil implementado pelo Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça e,
eventualmente, suprir lacunas ou mesmo confrontar tal regulamentação.
O primeiro argumento trazido pelo voto vencedor proferido pelo Ministro Luiz
Edson Fachin é que a solução da ação perpassa, necessariamente, pelo filtro da dignidade
humana, que guiará a interpretação dos direitos de personalidade a partir não dos dados
abstratos próprios do Direito, mas do sujeito concreto, in casu, o transgênero.
Fixada essa premissa, o segundo argumento é de que tanto as fontes normativas
nacionais quanto internacionais incorporadas pelo ordenamento brasileiro garantem
a proibição de qualquer discriminação. 21 Reconhecendo que o primado da não
discriminação abarca também os transgêneros, apresenta de forma insofismável a
conclusão de que o reconhecimento estatal da identidade de gênero é imprescindível à
concretização da dignidade humana daqueles que assim se apresentem, sendo mister
assegurar-lhes que vivam com a mesma dignidade e os mesmos direitos que qualquer
outra pessoa, o que se dá, dentre outras formas, pela garantia ao nome, à liberdade e à
vida privada.
Quanto à liberdade e à vida privada, o voto realiza uma leitura sistemática com
o primado da não discriminação ao assentar que cabe ao Estado “abster-se de interferir
em condutas que não prejudiquem a terceiros e, ao mesmo tempo, buscar viabilizar as
concepções e planos de vida dos indivíduos, preservando a liberdade estatal”.22 Noutras
palavras, a cada um é dado construir o próprio projeto de vida, cabendo ao Estado tornar
possível sua implementação.
É esse o plano de fundo que sustenta a divergência do voto do Ministro Edson
Fachin em relação ao voto lançado pelo Ministro Marco Aurélio, especificamente no que
entende inviável “condicionar o exercício do legítimo direito à identidade à realização
de um procedimento cirúrgico ou de qualquer outro meio de se atestar a identidade da
pessoa”.23 Exigir diagnóstico médico para a retificação, como pretendia o voto do Ministro
Marco Aurélio, consistira justamente em um meio de atestar, ou não, a identidade da
pessoa transexual.
A posição que acabou prevalecendo encontra arrimo na opinião consultiva
nº 24/2017 sobre identidade de gênero e igualdade e não discriminação proferida pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, que traçou exatamente as diretrizes para
que os Estados estabeleçam as diretrizes e procedimentos para a retificação de nome e
sexo da população transexual. Foram os precisos termos do voto:

Conforme consta de sua opinião consultiva, já referida nesta manifestação, os Estados


têm a possibilidade de estabelecer e decidir sobre o procedimento mais adequado de
conformidade com as características próprias de cada contexto e de seu direito interno, os
trâmites e procedimentos para a mudança de nome, adequação de imagem e retificação
da referência ao sexo ou ao gênero, em todos os registros e em todos os documento
de identidade para que estejam conformes à identidade de gênero autopercebidas,

21
É o que se extrai do artigo 5º, I, da Constituição Federal, do artigo 2º, 1 e 26 do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos (internalizado pelo Decreto nº 592/92) e do artigo 1º da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, internalizado pelo Decreto nº 678/92).
22
Voto proferido pelo eminente Ministro Luiz Edson Fachin, disponível em: <http://www.stf.jus.br/ arquivo/cms/
noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4.275VotoEF.pdf>, acesso em: 26 maio 2018.
23
Idem.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
522 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

independentemente de sua natureza jurisdicional ou materialmente administrativa, desde


que cumpram com os seguintes requisitos:
a) devem estar dirigidos à adequação integral da identidade de gênero autopercebida;
b) devem estar baseados unicamente no consentimento livre e informado do solicitante
sem que se exijam requisitos como certificações médicas ou psicológicas ou outros que
possam resultar irrazoáveis ou patologizantes;
c) devem ser confidenciais e os documentos não podem fazer remissão às eventuais
alterações;
d) devem ser expeditos, e na medida do possível, devem tender à gratuidade; e
e) não devem exigir a realização de operações cirúrgicas ou hormonais.24

É esta a racionalidade que guiou o voto vencedor da Ação Direta de Inconstitucio­


nalidade nº 4.275, que ao final deu interpretação conforme à constituição ao artigo 58
da Lei de Registros Públicos para “reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem,
independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos
hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente
no registro civil”.
De consequência, é esta mesma ratio decidendi que necessariamente deve ser
observada quando da interpretação e aplicação do procedimento de retificação de
registro civil por transexuais.

4 Vetores hermenêuticos para a retificação de registro civil de


transexuais e a normativização da decisão pelo Provimento nº
73/2018 do Conselho Nacional de Justiça
Dissecada a ratio decidendi que guiou o julgamento da ADI nº 4.275, culminando
com a procedência do pedido de interpretação conforme à constituição do art. 58 da Lei
nº 6.015/73, dedica-se o presente capítulo, para além das diretrizes centrais, a propor
três vetores hermenêuticos para balizar a interpretação e aplicação da atuação cartorial
quando demandada a realizar a retificação do registro civil de transgêneros.
Se está claro que a decisão do Supremo Tribunal Federal admitiu a possibilidade de
retificação civil do nome e sexo por transexuais, é de se delimitar com a mesma clareza
os limites procedimentais que podem ser traçados para a efetivação de tal direito sem
que se afaste da racionalidade da decisão. Tal mister pode ser realizado a partir da
elucidação e sistematização de três vetores hermenêuticos harmônicos à ratio decidendi
construída pelo Ministro Edson Fachin.

4.1 Dignidade, igualdade e liberdade: reconhecimento da identidade


de gênero enquanto manifestação de personalidade
O primeiro dos vetores hermenêuticos que deve nortear as questões que emergirem
nesta temática é o reconhecimento de que os princípios da dignidade da pessoa humana

24
Idem.
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IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
523

e da igualdade se apresentam como via de acesso à ressignificação e efetivação do


direito à identidade pessoal de transgêneros, apreendendo a identidade de gênero como
manifestação da própria personalidade, estribada no legítimo exercício da liberdade de
autoconstrução do projeto de vida. Tal vetor implica reconhecer a identidade de gênero
como autopercebida, ou seja, realizada pela autodeclaração da pessoa, o que torna incabível
qualquer exigência ou vinculação a um perfil médico ou intervenção indesejada no
próprio corpo.
Tomando como ponto de partida os princípios da dignidade da pessoa humana
e da igualdade,25 enquanto não discriminação, ambos insculpidos na Constituição
Federal, esse primeiro vetor hermenêutico encontra respaldo na resposta dada pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos à consulta realizada pela República da Costa Rica
sobre a interpretação e alcance dos artigos 11.2, 18 e 24 da Convenção Americana de
direitos Humanos26 e em especial a relação destes dispositivos com o direito à identidade
de gênero.27
A resposta da Corte, veiculada por meio da Opinião Consultiva nº 24/2017,28
assenta já de início a proibição aos Estados de conferir tratamento discriminatório a
qualquer pessoa (eficácia negativa da igualdade) e também o dever de tomar medidas
positivas para reverter ou evitar situações discriminatórias existentes na sociedade
(eficácia positiva da igualdade). Especificamente quanto ao tema objeto da consulta,
afirma que a orientação sexual e a identidade de gênero são categorias protegidas pela
Convenção Americana de Direitos Humanos, deixando expresso que a discriminação
em relação à identidade de gênero toma por parâmetro a identidade autopercebida da
pessoa, ou seja, o gênero com o qual se identifica, ainda que este não corresponda ao
gênero socialmente percebido ou ao seu sexo.
Relacionando tal proteção com o princípio da dignidade humana, a Corte afirmou
que um aspecto central deste princípio consiste na possibilidade de todo ser humano
se autodeterminar e escolher livremente as opções que dão sentido a sua existência,
conforme suas próprias convicções, sendo cada pessoa livre para seguir o modelo
de vida mais adequado aos seus valores, crenças, convicções e interesses, bem assim
para expressar de forma livre sua identidade, seu modo de ser. Trata-se, em rigor, do

25
“Necessário desfazer o equívoco de que as diferenças significam necessariamente a hegemonia ou superioridade
de um sobre o outro. A construção da verdadeira cidadania só é possível na diversidade. Em outras palavras,
a formação e construção da identidade se fazem a partir da existência de um outro, de um diferente. Se fôssemos
todos iguais, não seria necessário falar e reivindicar a igualdade. Portanto, é a partir da diferença, da alteridade,
que se torna possível existir um sujeito. Enfim, é a alteridade que prescreve e inscreve o direito a ser humano”
(PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 163-164).
26
São os citados dispositivos: Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade. (...) 2. Ninguém pode ser objeto
de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação; art. 18. Direito ao nome. Toda pessoa tem
direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a
todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário; art. Igualdade perante a lei. Todas as pessoas são
iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.
27
“1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e
a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma
por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional
ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. Disponível em: <https://www.
cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana. htm, acesso em: 26/05/2018.
28
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf>, acesso em: 26 maio 2018.
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524 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

exercício de liberdade substancial voltada à construção e realização da esfera existencial


de cada um.
Em decorrência, reconhece que o sexo e a identidade de gênero são partes da
construção da identidade de cada pessoa, por ela arquitetada de forma livre e autônoma,
independentemente dos aspectos biológicos/cromossômicos de seu corpo, e somente
são efetivamente garantidos quando são refletidos pelos documentos e registros civis
da pessoa, ainda que para tanto seja necessária a modificação destes.
Eis, aí, o direito de toda pessoa transgênera alterar seu registro civil para adequá-
lo ao gênero com o qual se identifica, independentemente de qualquer laudo médico ou
psicológico e ainda que o gênero declarado não corresponda ao seu sexo morfológico.
Concretizando a já citada proibição da insuficiência, a Corte consignou que a falta de
acesso a instrumentos de adequação dos registros civis à identidade de gênero constitui
fator determinante para reforçar e perpetuar os atos de discriminação contra aquela
pessoa, além de constituir inegável obstáculo ao exercício de uma vida digna, o que não
se justifica à luz do sistema americano de proteção dos direitos humanos.
Tal conclusão, além de evidenciar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos
se afasta da concepção patológica da transexualidade, demonstra o acerto do acórdão
proferido pelo Supremo Tribunal Federal e a impossibilidade de se adotar a posição
originária do Ministro Marco Aurélio, que atrelado a uma concepção patológica,
subordinava a retificação do registro civil a “diagnóstico médico do transexualismo”.
Da mesma sorte, afasta qualquer concepção que subordine o pleno reconhecimento
da identidade de gênero à prévia intervenção cirúrgica ou tratamento hormonal de
readequação, como já exigido por tribunais de justiça.29 A primeira razão para afastar
tais requisitos é o direito à inviolabilidade do corpo. Apenas e tão somente o titular pode
admitir modificações corporais (art. 15, Código Civil) e, ainda assim, de forma limitada
(art. 13, Código Civil). Nas palavras de Capelo de Souza:

A natureza deste (corpo humano), enquanto bem juscivilisticamente tutelado, impõe


ainda o relevo jurídico do poder natural de autodeterminação de cada homem sobre o
seu próprio corpo. Pelo que, o titular do corpo tem poderes juridicamente reconhecidos
em exclusividade, v. g., para dirigir e conformar o seu próprio corpo, para se sujeitar ou
não a tratamentos e operações.30

29
REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE PRENOME E DE SEXO. ALTERAÇÃO
DO NOME. POSSIBILIDADE. AVERBAÇÃO À MARGEM. A ALTERAÇÃO DO SEXO SOMENTE SERÁ
POSSÍVEL APÓS A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. 1. O fato da pessoa ser transexual e exteriorizar
tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui
prenome feminino, justifica a mudança do nome, já que o nome registral é compatível com o sexo masculino.
2. Diante das condições peculiares da pessoa, o seu nome de registro está em descompasso com a identidade
social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo, o que justifica plenamente a
alteração. 3. Deve ser averbado que houve determinação judicial modificando o registro, sem menção à razão ou
ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se, assim, a publicidade dos registros e a intimidade do
requerente. 4. No entanto, é descabida a alteração do registro civil para fazer constar dado não verdadeiro, isto é,
que o autor seja do sexo feminino, quando inequivocamente ele é do sexo masculino, pois ostenta órgãos genitais
tipicamente masculinos. 5. A definição do sexo é ato médico e o registro civil de nascimento deve espelhar
a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro. Recurso provido, por maioria”
(Apelação Cível Nº 70067749291, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall’Agnol,
Redator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 18.05.2016 – grifamos).
30
CAPELO DE SOUZA, Rabindranath V. A. O direito geral da personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 223.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
525

Atendo a essa racionalidade, o Provimento nº 73/2018 foi expresso ao afastar


a necessidade de qualquer requisito médico para alteração registral, notadamente
ao determinar que o requerimento de retificação “independe de prévia autorização
judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de
tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou
psicológico”.31 Ainda assim, há no provimento inegável resquício da concepção contrária
ao facultar, no art. 4º, §7º, a juntada de documentos médicos que atestem a condição de
transgênero, o que sobeja o conteúdo necessário à regulamentação.
A segunda razão que afasta tal requisito é de que a exigência de prévia alteração
do sexo é absolutamente falaciosa, seja pela impossibilidade científica de se alterar o
sexo de uma pessoa (pela perspectiva da carga cromossômica, XX ou XY), seja pela
impossibilidade médica de alteração/construção de todos os órgãos sexuais, sobretudo
aqueles internos,32 ainda que as alterações corporais medicamente possíveis muitas vezes
sejam muitíssimo relevantes para a efetivação do projeto pessoal da pessoa transgênera.
Não bastasse, tratando-se de direito de personalidade, o reconhecimento
da identidade de gênero não pode ser condicionado senão em razão de outro bem
juridicamente tutelado e de mesmo status, o que não ocorre na espécie. A falaciosa
justificativa pela proteção da denominada verdade registral não encontra amparo em
uma suposta “verdade biológica”, justamente pela distinção entre sexo e gênero. Para
além, como já demonstrado, o critério determinante para designação da identidade de
gênero é o autorreconhecimento, restando descabidas quaisquer interferências externas
que pretendam condicionar o exercício do direito à identidade de gênero na forma como
concebida por seu titular.
Nesta linha também andou bem o Provimento nº 73/2018 ao estabelecer que a
retificação do nome e gênero, enquanto forma de concreção de direito de personalidade,
não pode ser condicionada à apresentação de certidões negativas, sejam elas de âmbito
civil, criminal, trabalhista, eleitoral ou militar. Em que pese a obrigatoriedade da
apresentação de tais certidões (art. 4º, §8º), acaso estas certidões apontem a existência de
ações ou débitos pendentes, tais apontamentos “não impedem a averbação da alteração
pretendida” (art. 4º, §9º).

4.2 Sigilo dos dados registrais e o direito ao esquecimento


O segundo dos vetores hermenêuticos ora propostos aponta para a necessidade
de sigilo dos dados registrais dos transgêneros, seja como garantia de seu direito à
privacidade, seja como materialização de seu direito ao esquecimento.
Tal construção se justifica pela resistência de certas concepções que insistem em
sobrepor um abstrato e injustificado interesse público face aos direitos de personalidade
da pessoa transgênera. À guisa de exemplo, o voto apresentado pelo Ministro Marco
Aurélio na ADI nº 4.275 consignou que “a adequação do nome à identidade psicossocial
de gênero não elimina o caminho trilhado até aquele momento pelo transexual”,

31
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 73/2018. Art. 4º, §1º. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
busca-atos-adm?documento=3503>. Acesso em: 02 ago. 2018.
32
ROSENVALD, Nelson. O STF e a identidade de gênero. In: ______. O direito civil em movimento: desafios
contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 32-33.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
526 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

entendendo assim que o registro civil da pessoa transgênera deveria manter as


informações anteriores à retificação. Na mesma linha, Maria Celina Bodin de Moraes,
em texto originalmente publicado em 2008, narra que a jurisprudência então consolidada
nos tribunais superiores era no sentido de não autorizar a retificação do registro, mas
tão somente averbar a nova situação sobre o registro anterior.33
Esse segundo vetor estriba-se em duas premissas: a primeira, de que o direito à
privacidade já não representa um direito de estar só, mas sim um direito ao controle das
informações e dados pessoais por seu titular; a segunda, que o direito à identidade pessoal
tem caráter dinâmico, de modo que em determinadas situações seu pleno exercício
dependerá também do direito ao esquecimento da identidade anteriormente vivida.
Deve-se ao professor Stefano Rodotà, titular de Direito Civil da Universidade
de Roma “La Sapienza”, o desenvolvimento do conceito de privacidade na sociedade
contem­porânea. O autor demonstra como a manutenção do significante privacidade não
implica também a manutenção de seu significado. Enquanto direito de personalidade, a
privacidade foi inicialmente definida nos Estados Unidos por Warren e Brandeis como
“o direito de ser deixado em paz” ou “o direito de estar só”, como remédio ao insistente
assédio da imprensa contra particulares que não queriam suas vidas expostas.34
Ainda que permaneça relevante, tal definição se mostra cada vez mais insuficiente
quando inserida na sociedade contemporânea, em que os dados pessoais são capturados
e transmitidos a todo o tempo e de forma instantânea. Nesta nova realidade, o conceito
de privacidade “é representado pela possibilidade de cada um controlar o uso das
informações que lhe dizem respeito”,35 ou ainda, em outra formulação não excludente,
a privacidade corresponderia ao “direito do indivíduo de escolher aquilo que está
disposto a revelar aos outros”.36
Nesta perspectiva, não só o significado mas também a forma de tutela da priva­
cidade deve ser repensada. Se já não é possível exigir estar só em um mundo constan­
temente conectado, é preciso repensar as ferramentas de tutela da privacidade enquanto
controle sobre os dados pessoais, definindo inclusive sobre quais dados o sujeito tem o
pleno controle, podendo optar por não revelá-los, e em quais casos deve-se privilegiar
a circulação de dados, excluindo-os do controle absoluto do sujeito.
A proposta apresentada pelo Stefano Rodotà parte da segmentação de dados ou
informações pessoais de acordo com sua natureza e finalidade. De um lado, estariam
compreendidas no núcleo rígido da privacidade as informações sensíveis sobre a pessoa,
compreendidas como aquelas relativas a opiniões políticas, de fé religiosa, de raça,
saúde, hábitos sexuais. Estas informações, em regra, estariam restritas ao controle de seu

33
Maria Celina Bodin de Moraes, em texto originalmente publicado em 2008, narra que a jurisprudência então
consolidada era no sentido de não autorizar a retificação do registro, mas tão somente averbar a nova situação
sobre o registro anterior: “sob o argumento da proteção à veracidade do registro e da proteção à segurança
jurídica, nossa jurisprudência superior firmou-se no sentido de não autorizar a retificação do registro, mas tão-
somente admitir a averbação, com a necessária referência à situação anterior e à causa da alteração” (MORAES,
Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro:
Processo, 2016, p. 130). No Superior Tribunal de Justiça, a decisão proferida no Resp. nº 678.933, julgado em
22.03.2007, é representativa desta questionável corrente jurisprudencial.
34
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução: Danilo Doneda e Luciana
Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, passim.
35
Ibidem, p. 24.
36
Ibidem, p. 75.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
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titular, sobretudo por sua “potencial inclinação para serem utilizadas com finalidades
discriminatórias”.37 De outro lado, dados e informações de conteúdo econômico tendem
a uma maior transparência, admitindo-se em diversas hipóteses sua revelação em favor
de outros interesses, como os interesses fiscais, trabalhistas ou familiares.
Essa ressignificação do direito à privacidade implica reconhecer que os dados
sobre sexo e gênero devem estar compreendidos dentre os dados tidos por sensíveis, e de
consequência adstritos ao poder de controle de seu titular. Trata-se, afinal, dos dados mais
íntimos de uma pessoa e com a maior capacidade de deflagrar ações discriminatórias,
cotidianamente disparadas contra a população transexual. Não é à toa que o Brasil lidera
o ranking mundial de assassinatos contra transexuais.38
Existem vozes contrárias que defendem a necessidade de manutenção dos dados
anteriores à retificação no registro civil, como pretendia o voto proferido pelo Ministro
Marco Aurélio, sob a premissa de prevalência de um interesse público a ser resguardado.
O argumento não se sustenta. Afinal, a quem interessa a informação quanto à identidade
de gênero anteriormente vivida por alguma pessoa? Quem seria o terceiro titular de um
direito a essa informação? A ausência de resposta desnuda a absoluta desnecessidade
de manutenção de qualquer informação sobre o nome ou sexo anteriormente ostentado
pelo transexual em seu registro civil, publicamente acessível.
Outros aspectos existenciais passam ao largo do registro civil e nunca causaram
qualquer entrave a esta eminência parda denominada interesse público. “A qualificação
sexual que etiquete a pessoa a uma constatação morfológica de origem não necessária
sob o ângulo da segurança jurídica (tal como a inserção da religião e raça do recém-
nascido), pois só interessa a intimidade do indivíduo”.39
Há também vozes que sustentam que eventual credor poderia ser prejudicado
pela não identificação do devedor após a alteração do registro, porém, basta lembrar que
os dados pessoais, como número do Registro Geral (RG) ou do Cadastro das Pessoas
Físicas (CPF) permanecem inalterados, sendo portanto mantida a identificação para
fins patrimoniais.
Neste ponto a regulamentação instituída pelo Conselho Nacional de Justiça
talvez não tenha dado a devida atenção à privacidade. Mesmo que os dados registrais
(Registro Geral e Cadastro de Pessoa Física) permaneçam imutados, o que viabilizaria a
identificação da pessoa e localização de seu patrimônio (ativos em instituições bancárias,
por exemplo), o Provimento nº 73/2018 determina que, acaso sejam apresentadas
certidões positivas, mesmo de ações cíveis ou protestos, “deverá ser comunicada aos
juízes e órgãos competentes pelo ofício do RCPN onde o requerimento foi formulado”.
Ou seja, havendo credores ou mesmo devedores, estes serão cientificados pelo próprio
registrador civil da alteração do nome e gênero.
Prima facie, tal determinação parece desatender ao princípio da proporcionali­dade,
especificamente quando sopesada segundo os atributos da (i) adequação, (ii) necessidade
e (iii) proporcionalidade stricto sensu. Ainda que a medida possa ser adequada a atingir

37
Ibidem, p. 78, 79 e 96.
38
Conforme publicado no sítio eletrônico do Jornal Correio Brasiliense: <http://especiais. correiobraziliense.com.
br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais>, acesso em: 01 jun. 2018.
39
ROSENVALD, Nelson. O STF e a identidade de gênero. In: ______. O direito civil em movimento: desafios
contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 35.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
528 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

o fim colimado, notadamente a segurança jurídica de terceiros, não se mostra necessária,


tampouco proporcional. Não há necessidade de comunicação da alteração de nome e
sexo para proteção, por exemplo, de credores. Para tanto basta a imutabilidade do RG
e do CPF. A comunicação é ainda menos necessária quando se cogita de certidões que
indiquem a existência de ações em que o transexual é credor, e bem evidencia a ausência
de proporcionalidade stricto sensu, já que sacrificará a privacidade da pessoa, expondo
sua condição de transexual independente de sua anuência, sem que tal comunicação
promova qualquer incremento à segurança jurídica, e.g., de algum devedor.
Outras vozes justificam a manutenção dos dados em proteção a terceiros que
venham a constituir vínculos familiares com a pessoa transgênera. Porém, como bem
aponta Anderson Schreiber, sob a justificativa de dar ciência ao terceiro que venha a
estabelecer vínculo familiar com a pessoa transgênera, a manutenção das informações
anteriores “acaba dando publicidade ampla e irrestrita à alteração de sexo”. Ainda, não
caberia ao legislador “presumir que a prévia alteração do sexo biológico é circunstância
que traz ao projeto familiar comum risco maior que outras tantas circunstâncias cuja
publicidade não é exigida”,40 como por exemplo a infecção por doenças sexualmente
transmissíveis, como o HIV, ou mesmo a esterilidade.
Assentada a primeira premissa, de que o direito de privacidade deflagra o poder
de controle da pessoa transexual sobre o sigilo e divulgação dos dados sensíveis que
digam respeito a sua anterior identidade pessoal, a segunda premissa que estriba o vetor
hermenêutico ora proposto é de que a adequação registral ao gênero autodeclarado
deve ser revestida de sigilo dos dados anteriores, o que implica reconhecer a retificação
do registro civil (e não mera averbação) como meio de concretização do direito ao
esquecimento da pessoa transgênera.
Atribui-se como marco paradigmático da admissão do direito ao esquecimento as
decisões alemãs no caso Irniger e no caso Lebach. Em brevíssima síntese, Paul Irninger
foi um criminoso de nacionalidade suíça que ficou conhecido por ter sido o penúltimo
condenado à pena de morte pela Confederação Helvética, pena que foi cumprida com
uso de guilhotina em 25 de agosto de 1939. Passadas quase cinco décadas, em 1983 a
Corte Constitucional alemã julgou procedente a ação movida por seu filho para proibir
a veiculação de um documentário sobre Paul Irninger, sob o argumento de que tal
conteúdo violaria a privacidade dos parentes do criminoso.41
O mais famoso dos casos, porém, é o caso Lebach, de 1973. Lebach é um pequeno
distrito alemão onde houve o assassinato de quatro militares que guardavam um
arsenal do exército. Os assassinos foram condenados e presos, mas às vésperas do final
do cumprimento da pena por um dos condenados, oportunidade em que regressaria
à sociedade, um famoso canal de televisão alemão produziu um documentário sobre
o crime, rememorando as mortes e os envolvidos. Foi então que o condenado prestes
a ser libertado ingressou em juízo pleiteando a proibição de exibição do programa,
mormente ante a proximidade de sua libertação. Em primeira e segunda instância, a
ação foi julgada improcedente sob o argumento de que os direitos de personalidade

40
SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 162.
41
RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Direito ao esquecimento na perspectiva do STJ. Consultor Jurídico – Conjur.
Publicado em 19.12.2013. Coluna de Direito Comparado. Disponível em: <https:// www.conjur.com.br/2013-
dez-19/direito-comparado-direito-esquecimento-perspectiva-stj>. Acesso em: 28 maio 2018.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
529

do condenado não podem ser invocados para impedir a divulgação de um evento tido
como histórico. Entendendo de modo diverso, o Tribunal Constitucional Alemão admitiu
o pleito a partir da ponderação dos interesses em conflito, pontuando principalmente
que o fato carecia de atualidade, o que fez prevalecer os direitos de personalidade do
envolvido,42 “especialmente por colocar em risco a reinserção do preso na sociedade”.43
Estas decisões versam sobre o conflito entre, de um lado, a liberdade de imprensa
e direito de informação e, de outro lado, o direito à privacidade das pessoas envolvidas
no fato noticiado.
Ordinariamente, os critérios utilizados para aferir a licitude da notícia divulgada
pela imprensa são: a) a veracidade do fato; b) a atualidade da notícia; e c) o animus
narrandi, ou seja, a intenção de informar, e não de causar dano à pessoa noticiada.44 Nos
casos em que se discute o direito ao esquecimento, prevalece a veracidade da notícia
e o animus narrandi, mas nem sempre está presente a atualidade do fato a justificar a
sobreposição ao direito à privacidade.
No Brasil o direito ao esquecimento vem sendo admitido sobretudo como eficácia
dos princípios da dignidade humana e da liberdade, notadamente por instrumentalizar
a efetivação do projeto de vida escolhido por cada pessoa. Nelson Rosenvald bem
elucida o tema:

A eficácia positiva da dignidade é vivificada no direito à promoção da autonomia existencial


da pessoa, no sentido de que ela possa realizar o seu pleno desenvolvimento sem os
entraves de dados que estejam descontextualizados ou representem situações que não
mais correspondem à realidade.45

É neste sentido o Enunciado nº 531 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da


Justiça Federal, segundo o qual “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade
da informação inclui o direito ao esquecimento”.46
Em que pese o direito ao esquecimento tenha surgido na espacialidade do Direito
Penal, no qual há nítido interesse daquele que cometeu um ato delituoso prosseguir com
sua vida sem a mácula do crime cometido e assim conseguir se reinserir na sociedade, há
outros espaços em que aflora o interesse da pessoa em manter o controle, e até mesmo
o sigilo, quanto a informações relativas a seu passado. Um deles, e talvez o mais atual,
é o caso dos transgêneros que, após a alteração civil de seu nome e sexo, naturalmente
preferem não ter exposta ao público sua condição de transgêneros ou seus dados relativos
à anterior identidade de gênero. Afinal, como já pontua Maria Celina Bodin de Moraes,

42
Ibidem.
43
STAINER, Renata C. Breves notas sobre o direito ao esquecimento. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
Edson; LÔBO, Paulo (Coord.). Direito Civil Constitucional: a ressignificação da função dos institutos fundamentais
de direito civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014, p. 94.
44
Ibidem, p. 90.
45
ROSENVALD, Nelson. Do direito ao esquecimento ao direito de ser esquecido. In: ______. O direito civil em
movimento: desafios contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 21.
46
Foi a justificativa apresentada ao enunciado: “Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-
se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações
criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o
direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso
que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
530 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

a identidade de gênero tem como característica “sua intrínseca modificabilidade, isto


é, sua capacidade ou potencialidade de mudança. De fato, a identidade pessoal pode
mudar e frequentemente muda com a evolução da pessoa”.47
Não se trata portanto de ignorar o passado ou a identidade pessoal anteriormente
vivida, mas sim de poder controlar o acesso a esses dados sensíveis, ou ao menos
condicionar o acesso a dados sensíveis a quem efetivamente demonstre interesse jurídico
e não mera curiosidade, ainda mais considerando o ainda generalizado preconceito
social que impera contra as pessoas transexuais. Os professores Thamis Dalsenter e
Vitor Almeida bem ilustram a questão:

As dificuldades de afirmação da identidade de gênero após o processo transexualizador ou


a cirurgia de transexualização são evidentes. Um caso revelado pela mídia exemplifica bem
a questão. A jovem era usuária de uma rede social de fotografias – denominada Fotolog –
na qual publicou diversas imagens, em 2006, com a aparência que tinha antes de iniciar o
processo de transição para o gênero masculino. Anos mais tarde, o agora homem se viu na
delicada situação de ter essas imagens distribuídas, inclusive para parentes de sua atual
namorada, que desconheciam seu passado. O problema é que a mencionada rede social
impede que seus antigos usuários apaguem suas fotos, causando-lhes constrangimento,
mesmo àqueles que já tentaram remover, mas sem sucesso. Esse é somente um exemplo
de como o passado pode atuar de forma discriminatória e impedir a livre construção das
individualidades.48

Admitir apenas a averbação do novo nome e outro sexo no registro civil do


transexual é dar uma solução paliativa, que embora resolva a adequação do registro à
identidade de gênero, mantém a pessoa acorrentada ao cotidiano receio de que qualquer
um pode ter acesso às informações de seu passado estigmatizante. Muito mais adequada
ao reconhecimento e proteção da identidade pessoal é a retificação do registro, tal como
ocorre nos casos de adoção, em que qualquer interessado que busque uma certidão do
registro civil daquela pessoa apenas terá acesso aos novos dados, sem a desnecessária
e injustificável exposição da anterior condição vivida por aquela pessoa. Como bem
concluem os citados autores, “na tormentosa travessia por liberdade e igualdade das
pessoas transexuais, seu passado não pode servir como âncora a impedir seu pleno
desenvolvimento a partir do processo de transição de gênero, maculando seu processo
existencial”,49 afinal, “uma vida de reinícios pressupõe o controle temporal dos dados
pretéritos, de forma a permitir que a pessoa não seja perseguida eternamente pelas
pegadas do passado”.50
Seguindo tal vetor, evidencia-se inadmissível que a adequação do registro civil
do transexual se dê por mera averbação, e não pela efetiva retificação do registro civil,
permitindo assim o direito de controle sobre os dados sensíveis anteriores à identidade

47
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Editora Processo, 2016, p. 139.
48
CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de; ALMEIDA, Vitor. O direito ao esquecimento da pessoa transexual. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). Da dogmática à efetividade do
Direito Civil: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil Constitucional – IV Congresso do IBDCivil. Belo
Horizonte: Fórum, 2017, p. 66-67.
49
Ibidem, p. 95.
50
Ibidem, p. 65.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
531

de gênero atualmente vivida. O Provimento nº 73/2018 incorpora esta racionalidade e,


embora por vezes utilize o vocábulo averbação, estabelece que alteração registral “tem
natureza sigilosa, razão pela qual a informação a seu respeito não pode constar das
certidões dos assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação
judicial”.51

4.3 A via de acesso à adequação registral: a gratuidade do


procedimento médico e da retificação do registro
O terceiro vetor hermenêutico ora proposto vai além do reconhecimento do direito
à retificação do registro civil para adequá-lo à identidade de gênero, mas reconhece que
não basta apenas formalmente garantir este direito sem que as pessoas tenham a efetiva
possibilidade de exercê-lo. Tratando-se de uma parcela reconhecidamente marginalizada
da população, o acesso pela via da gratuidade procedimental é essencial à efetivação do
projeto existencial da pessoa transexual.
Trata-se, a rigor, da conclusão a que chegou o vencedor do prêmio Nobel em
Ciências Econômicas (1998) Amartya Sen. Ao se propor a responder a questão como
a justiça pode ser promovida?, o autor defende que a resposta passará inexoravelmente
pela garantia ao exercício de liberdade efetiva, notadamente o conjunto de capacidades
que oferece a possibilidade real de fazer aquilo que se valoriza.52 Ou seja, não basta ter
a liberdade formal, a possibilidade abstrata de adequação de gênero: é preciso possuir
um conjunto de capacidades que torne tal possibilidade real, concreta.
No que concerne ao procedimento médico de readequação, nele inclusa a
possibilidade de cirurgia de transgenitalização, já existe regulamentação do procedimento
por meio da Portaria nº 2.803/2013 do Ministério da Saúde, que garante que todo o
procedimento pode ser feito pelo Sistema Único de Saúde, de forma gratuita. Porém,
não se pode ignorar que a população transexual, já socialmente marginalizada, muitas
vezes encontra também dificuldade financeira para encontrar um hospital que realize
tal procedimento,53 e, quando encontra, submete-se ainda a enorme fila de espera para
a realização da cirurgia. Segundo reportagem da revista Carta Capital, atualmente a fila
de espera pode chegar até a uma década.54
Essa mesma gratuidade deve também ser observada para os procedimentos
registrais. Permitida a liberdade poética, sendo a retificação do registro verdadeiramente
um novo nascimento para a pessoa transexual, é perfeitamente possível observar a
gratuidade estatuída no art. 5º, LXXVI, da Constituição Federal, sobretudo como modo
de inclusão de uma população social e economicamente vulnerável.

51
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 73/2018. Art. 5º. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
busca-atos-adm?documento=3503>. Acesso em: 02 ago. 2018.
52
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
53
“A precária condição financeira impele muitos transexuais a não se submeter à cirurgia, bem como o receio de
sofrer discriminação nos pouquíssimos hospitais preparados para enfrentar a complexidade do procedimento
no Sistema Único de Saúde” (ROSENVALD, Nelson. O STF e a identidade de gênero. In: ______. O direito civil em
movimento: desafios contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 33).
54
Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/diversidade/Fila-para-cirurgia-de-redesignacao-sexual-pode-
passar-de-dez-anos>, acesso em: 29 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
532 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Como lembra Jorge Miranda, é impositivo para a promoção da igualdade social


“não poder a justiça ser denegada em razão da insuficiência de meios econômicos”.55
Ainda que o acesso seja imprescindível à concreção do direito à retificação, das cinco
normas administrativas expedidas por tribunais estaduais para a regulamentação
da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4.275 e analisadas
pelo presente texto,56 apenas três contêm previsão expressa quanto à gratuidade do
procedimento: o Provimento nº 17/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado
de Goiás, o Provimento nº 21/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul e o Provimento nº 07/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado
de Pernambuco.
É de se apontar que o Provimento nº 17/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do
Estado de Goiás, embora tenha previsão de gratuidade, impõe óbice muito superior à
efetivação da retificação do registro civil. O citado provimento exige a apresentação de
certidão negativa cível, criminal, de protestos, eleitoral e da Justiça do Trabalho, prevendo
expressamente que a ausência de qualquer destas certidões ou a existência de ações em
andamento ou débitos pendentes impedem a realização do procedimento, exigência
que marginaliza ainda mais a população cuja inclusão se pretendia.
Naquele Estado, bastaria a existência de um protesto contra a pessoa para ela não
poder adequar seu registro a sua verdadeira identidade pessoal. É, na contramão do
Direito Civil Constitucional, a prevalência das questões patrimoniais sobre as existenciais.
Inobstante a regulamentação expedida pelo TJGO, com a superveniência do provimento
elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça, que visa justamente a uniformização dos
procedimentos em todo o país, tal exigência restou revogada pela disposição em sentido
contrário constante do Provimento nº 73/2018, que exige a apresentação das certidões,
mas não submete a efetivação da retificação do registro ao conteúdo negativo daquelas.
Nesta linha de solução intermediária, a Portaria nº 01/2018 da Corregedoria Per­
manente dos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais da Comarca de Santos/SP,
embora exija as certidões, acaso qualquer delas apresente resposta positiva, não impede
a retificação do registro, implicando apenas a notificação do órgão competente, tal qual
restou ulteriormente determinado pelo CNJ.
As demais normas administrativas, reconhecendo que o direito à identidade
pessoal não pode ser submetido à inexistência de ações em trâmite ou quitação de
deveres de outra natureza, dispensam a apresentação destas certidões, o que talvez
tenha sido uma via mais atenta à realidade social brasileira, mormente considerando o
custo financeiro destas certidões.
Isso porque, mesmo determinando o Provimento nº 71/2018, que, para fins da
retificação do registro civil de transexuais, deverá o registrador civil “observar as nor­
mas legais referentes à gratuidade de atos”,57 acaba por dificultar o acesso do cidadão

55
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 249.
56
Nomeadamente: Provimento nº 07/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Sergipe; Provimento
nº 17/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás; Provimento nº 21/2018 da Corregedoria-Geral
da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Provimento nº 07/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado
de Pernambuco; e a Portaria nº 01/2018 da Corregedoria Permanente dos Cartórios de Registro Civil das Pessoas
Naturais da Comarca de Santos/SP.
57
Art. 9º, parágrafo único.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
533

de baixa renda ao procedimento ao exigir, para a realização do ato, a apresentação de


certidão cível, criminal, de execução penal, do tabelionato de protestos, além de certidões
expedidas pela justiça eleitoral, trabalhista e militar (art. 4, §6º).58 A falta de qualquer
das referidas certidões “impede a alteração indicada no requerimento apresentado ao
ofício do RCPN” (art. 4º, §8º).
Da leitura do provimento, percebe-se que, ao ponderar entre a facilitação do acesso
ao procedimento e os interesses cartorários, o provimento claramente preocupou-se
mais com estes. Se de um lado limitou-se a determinar que serão observadas as normas
legais referentes à gratuidade de atos (o que foi de todo desnecessário, justamente por
tratar-se de norma legal, de observância obrigatória), de outro repete, em duas normas,
que os atos determinados serão praticados pelos registrados “às expensas da pessoa
requerente” (art. 3º, parágrafo único, e art. 8º, caput).

5 Conclusão
Não há como se conceber uma sociedade que declare o primado da dignidade
humana e os princípios da igualdade e da liberdade sem se permitir que as pessoas cujo
gênero não corresponda ao sexo de nascimento possam, fática e juridicamente, adequar
seu registro civil de acordo com a identidade de gênero autodeclarada. Trata-se, ao
fim, da concretização da liberdade substancial da pessoa de viver de acordo com o seu
projeto de vida e em conformidade com sua identidade pessoal.
A vida em sociedade porém torna a só liberdade individual insuficiente para a
concretização desta projeção, impondo que o Estado reconheça (e faça reconhecer) essa
identidade autopercebida. Foi essa a decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal
na ADI nº 4.275, ulteriormente regulamentada pelas Corregedorias-Gerais da Justiça e
em 28.06.2018 pelo Conselho Nacional de Justiça por meio do Provimento nº 73/2018,
cujo objetivo é uniformizar o procedimento administrativo a ser aplicado pelos cartórios
de registro civil de todo o país para dar efetividade à decisão da Corte Constitucional.
Para não se desviar da ratio decidendi da decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal, a interpretação da regulamentação administrativa deve ser guiada ao menos
por três vetores hermenêuticos, notadamente o reconhecimento da identidade de
gênero enquanto direito de personalidade; o imprescindível sigilo dos dados relativos à
identidade anterior à retificação e o oferecimento de meios que efetivamente viabilizem o
acesso à readequação médica e civil, sobretudo pela gratuidade dos procedimentos, sem
impor obstáculos que acabem por negar vigência ao decidido pela Corte Constitucional.
Tais vetores também devem servir para suprir eventuais lacunas constantes do Provi­
mento nº 73/2018.
“Já é tempo de decidirmos se queremos uma integração do transexual à socie­dade,
submetendo-o a nossos padrões majoritários” ou, então, se queremos efetivamente
construir uma sociedade livre, justa e solidária, na qual sejamos “capazes de promover

58
Inobstante o art. 5º, XXXIV, “b”, da Constituição Federal garanta a todos, independentemente do pagamento de
taxas, “a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações
de interesse pessoal”, a prática mostra quão difícil é a realização deste direito por aqueles que não possuem
condições econômicas ou mesmo conhecimento jurídico para exigir a efetivação da gratuidade enunciada.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
534 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

uma inserção da pessoa transexual na vida comunitária, simplesmente respeitando o


seu direito à identidade de gênero”.59

Referências
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DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO
MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?

LÍVIA XIMENES DAMASCENO

LILIANE GONÇALVES MATOS

1 Introdução
O artigo tem como objetivo analisar se os danos extrapatrimoniais são suficientes
ou não para englobar todas as lesões aos interesses juridicamente tutelados. Com a
mudança de paradigma da Constituição Federal de 1988, colocando a pessoa no centro
de todo o ordenamento jurídico, modificou-se o eixo central da responsabilidade civil.
Assim, o foco da responsabilização migrou da pessoa do ofensor para a reparação da
vítima.
A inadmissibilidade, na legalidade constitucional, de que a vítima fique desampa­
rada faz emergir “novas categorias” de danos. Leva-se a crer que o tradicional binômio
dano moral/material seria insuficiente para atender à função que a responsabilidade
civil se destina. Assim, questiona-se se os danos postos como estão são suficientes à
reparação das lesões aos interesses juridicamente tutelados ou se a criação destas novas
categorias é medida que se exige.
Na busca de responder ao questionamento, divide-se o artigo em três seções.
Primeiramente, trabalham-se as características do dano na responsabilidade civil,
apontando seus requisitos, visto que, por ele ser considerado o centro desse instituto,
é neces­sária a sua compreensão. No segundo tópico, ocupa-se de distinguir os danos
patri­moniais e extrapatrimoniais, dedicando-se, de forma mais detalhada, aos danos
morais. Por fim, estudam-se as “novas espécies de danos” e quais as consequências
delas no ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, realizou-se uma pesquisa analítico-qualitativa para averiguar as cate­
gorias do dano e a necessidade de sua reformulação para proteger a vítima em todos
os aspectos de sua subjetividade; e documental, pois se utilizou de leis, doutrinas e
jurisprudência como ponto de partida para investigar os novos danos.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
538 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

2 O dano na responsabilidade civil


A responsabilidade civil, no modelo oitocentista, foi projetada sob três pilares,
quais sejam: culpa, dano e nexo causal. Isso significava, nos tribunais, que o ofendido
deveria, além de comprovar seu prejuízo, demonstrar a culpa do ofensor, bem como o
nexo causal entre o ato cometido por ele e o dano. Era preciso que todos esses requisitos
estivessem presentes para existir a obrigação de indenizar.1
Dessa maneira, costumeiramente, a reparação ficava prejudicada por não haver
a comprovação da culpa e do nexo de causalidade. E, por consequência, o causador do
dano permanecia impune e a vítima restava sem a devida compensação pelo prejuízo
sofrido. Essas barreiras “chegaram a ser chamadas filtros da responsabilidade civil ou
filtros da reparação, por funcionarem exatamente como óbices capazes de promover a
seleção das demandas de ressarcimento que deveriam merecer acolhida jurisdicional”
(SCHREIBER, 2015, p. 11).
Nessa época, era inaceitável o rompimento desses filtros, pois se acreditava que
o número de pedidos de indenização cresceria de forma exponencial. Aos poucos, essas
barreiras foram se diluindo e a responsabilidade civil ganhou uma nova finalidade.
O eixo do instituto deixou de ser a “obrigação do ofensor de responder por suas culpas
para o direito da vítima de ter reparadas as suas perdas. Assim, o foco, antes posto na
figura do ofensor, em especial na comprovação de sua falta, direcionou-se à pessoa da
vítima, seus sentimentos, suas dores e seus percalços” (MORAES, 2003, p. 12).
Nesse contexto, ocorreu uma diluição dos pilares da responsabilidade civil, melhor
dizendo, houve uma “erosão dos filtros”2 desse instituto. Ou seja, a culpa e o nexo de
causalidade foram, gradativamente, perdendo a importância. Visualizou-se que o ilícito
não deveria ser o eixo central da reparação.
Atualmente, o dano usualmente é colocado no cerne da responsabilidade civil,
aproximando-se da importância que é dada à pessoa e às relações destas com os
bens (MARTINS-COSTA, 2001, p. 181). Realmente, diante desse instituto, costuma se
pontuar que, se não existe dano, não tem o que ser indenizado (MORAES, 2003, p. 144).3
A inexistência de prejuízo torna a pretensão à responsabilidade sem objeto. Pode até
ter outros elementos presentes, inclusive pode haver a violação de um dever legal com
culpa (lato sensu) por parte do ofensor, mas nenhum direito terá de ser ressarcido se não
houver a lesão (ALVIM, 1972, p. 142).
Dessa forma, percebe-se que o dano é essencial para que haja o direito de reparação.
O artigo 186 do Código Civil é expresso em exigir esse requisito na responsabilidade
civil, quando dispõe que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
comete ato ilícito” (grifo próprio). Assim, é em decorrência da sua configuração que uma
pretensão indenizatória poderá ser acolhida ou não nos tribunais brasileiros.

1
Ver, por todos, SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da
reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
2
Expressão utilizada por SCHREIBER, Anderson, 2015, p. 11.
3
Há autores que defendem a responsabilidade civil sem danos. Defende-se que a função da responsabilidade civil
não é apenas indenizatória, mas caberia a ela também buscar uma prevenção dos danos. Assim, ela poderia/
deveria agir antes da ocorrência do fato danoso, existindo, portanto, duas espécies de responsabilidade: com e
sem dano. Para um maior aprofundamento do assunto, ver: CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Responsabilidade
Civil sem dano: uma análise crítica. São Paulo: Atlas, 2015.
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
539

Apesar de ter mencionado a necessidade de haver um dano, o Código Civil


não o definiu. Melhor dizendo, ele optou por um sistema aberto, onde apenas previu
uma cláusula geral de reparação. Esse conceito, por outro lado, não tem uma essência
determinada, por não ter caráter objetivo, todavia, deve ser construído, em decorrência
do local e do tempo, não é algo pronto e finalizado (MARTINS-COSTA, 2001, p. 182).
Existem duas noções principais de dano: a física e a jurídica. A primeira, também
chamada de naturalista, o vê como uma lesão a um bem. Assim, a extensão da reparação
da vítima iria ser medida pelas leis da física, quanto se tinha e quanto se perdeu. Ou seja,
seria calculado pela diferença patrimonial antes e depois do fato ocorrido. Essa teoria,
todavia, apenas serviria para os danos patrimoniais. Como quantificar, por meio dela,
um dano não econômico?
Ora, não se está mais na era das certezas, vive-se a modificação de uma sociedade
industrial clássica, que era marcada pela produção e distribuição de bens, para uma
sociedade de risco, onde “los peligros se convierten en polizones del consumo normal”
(BECK, 1998, p. 13).
Diante desse contexto, surgiu a noção jurídica, em decorrência de a física não
ser mais suficiente para englobar todas as reparações às lesões existentes. Nesse
compêndio, para que o dano se faça presente no ordenamento jurídico, é necessário
que exista acontecimento lesivo e ofensa a uma norma jurídica. A vítima, portanto, deve
demonstrar que o prejuízo que sofreu decorreu da violação ao interesse juridicamente
tutelado (SILVA, 2015, p. 334).
Nesse seguimento, o dano existe quando houver ofensa ao bem legalmente
protegido. Nessa noção, faz-se referência a toda lesão, seja ela física ou moral. Concentra-
se a reparação no interesse atingido e não nas consequências advindas do prejuízo
(CAVALIERI FILHO, 2015, p. 103). Dessa forma, busca-se saber se o prejuízo sofrido
encontra respaldo jurídico, visto que não é possível se ressarcir um dano apenas por
ele ter ocorrido, mas é preciso que a ofensa a um determinado bem esteja legitimada
legalmente para que o ofendido tenha direito a uma compensação.
Não são todos os bens, todavia, que são tutelados juridicamente. Nessa toada,
percebem-se dois elementos centrais do dano: o bem e o interesse jurídico. Todavia, o
que significam? Para o doutrinador argentino, Jorge Bustamante (1993, p. 238), aquele
é todo objeto material ou imaterial, com ou sem valor econômico, que sirva ao homem
para satisfazer suas necessidades. Já este é tudo o que impulsiona o homem a se realizar,
por meio da satisfação das exigências físicas ou espirituais inerentes da natureza
humana. E todo interesse legítimo goza da proteção legal através dos poderes de ação
que constituem os direitos subjetivos.4
Ademais, na visão de Orlando Gomes (1989, p. 296), entende-se como bem jurídico
“não só os direitos subjetivos, mas também: a) os direitos de personalidade; b) certos
direitos de família; c) direitos de crédito; e d) interesses legítimos”.
Sendo assim, a noção jurídica está estritamente ligada ao bem e ao interesse legal
e, apesar de ser mais complexa do que a teoria da diferença, consegue englobar de

4
Tradução livre do trecho de Jorge Bustamante: “Bien jurídico es todo objeto material o inmaterial, sea de valor
económico o no, que sirve al hombre para satisfacer sus necesidades. Interés legítimo es aquel que impulsa
al hombre para realizarse mediante la satisfacción de las exigencias físicas y espirituales consustanciales con
la naturaleza humana. Todo interés legítimo goza de protección legal mediante los poderes de actuación que
constituyen los derechos subjetivos”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
540 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

forma mais abrangente o perfil funcional do dano. É por meio dessa teoria, portanto,
que se protegem os danos decorrentes de insultos a direitos de personalidade, mesmo
que eles não ocasionem nenhum prejuízo econômico, o que não ocorreria caso a noção
naturalista ainda fosse a única válida.
Ademais, é mister analisar os elementos necessários para o reconhecimento de
um dano indenizável, tais quais: certeza, imediatidade e injustiça do dano.5 O primeiro
requisito não traz muitas discussões doutrinárias sobre ele. Significa dizer que o dano
deve ser certo, não se admite a reparação de um prejuízo que não se provou a sua exis­
tência, ou seja, o direito não protege as lesões hipotéticas.6
O segundo requisito, para Sanseverino (2010, p. 174), “tem íntima conexão com
o nexo causal, pois os prejuízos indenizáveis ou ressarcíveis são aqueles que decorrem
direta e imediatamente do seu fato gerador”. Ainda conforme o autor, esse elemento serve
como parâmetro para calcular o valor da indenização, pois apenas deve ser ressarcida
a perda que decorrer imediatamente do seu fato gerador. Ou seja, a imediatidade fixa
limites no valor da reparação (SANSEVERIANO, 2010, p. 175).
Por fim, o terceiro elemento é a mudança mais significativa na teoria da responsa­
bilidade civil, “houve um giro conceitual do ato ilícito para o dano injusto” (GOMES,
1989, p. 293), visto que “não obstante a liceidade da ação ou da atividade, a vítima
não deve ficar irressarcida. Aqui, também, à primeira vista, os danos seriam ‘lícitos’;
geram, no entanto, por determinação legal, a obrigação de indenizar” (MORAES, 2003,
p. 176). O que se observa, nesse requisito, é que não mais se concentra a preocupação
na conduta do agente causador da lesão. Todo o dano, desde que seja injusto, poderá
gerar o direito à reparação.
A melhor doutrina conceitua que “o dano será injusto quando, ainda que decor­
rente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for
razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima dele permaneça irressar­
cida” (MORAES, 2003, p. 176). Nessa definição, visualiza-se uma compatibilidade com
a legalidade constitucional. Ora, se o ser humano é colocado no centro do ordenamento
jurídico, como poderia existir no sistema legal a permissão que alguém ficasse sem a
devida reparação de um prejuízo que sofreu? Deve-se buscar indenizar a pessoa que
sofreu um dano injustamente e não beneficiar o causador deste. Diante disso, passa-
se a discutir, com maior profundidade, as espécies de dano previsto no ordenamento
jurídico brasileiro.

5
Utiliza-se, nesse trabalho, a classificação proposta por Sanseverino (2010, p. 164).
6
Quando se fala de dano hipotético, logo se lembra do dano pela perda de uma chance, todavia, esse caso não
deve ser visto como uma exceção à certeza do dano. “O ponto nevrálgico para a diferenciação da perda de uma
chance da simples criação de um risco é a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima, ou seja, a existência
do dano final. De fato, em todos os casos de perda de uma chance, a vítima encontra-se em um processo aleatório
que, ao final, pode gerar uma vantagem. Entretanto, no momento em que as demandas envolvendo a perda de
uma chance são apreciadas, o processo chegou ao seu final, reservando um resultado negativo para a vítima. [...]
A teoria da perda de uma chance encontra o seu limite no caráter de certeza que deve apresentar o dano reparável.
Assim, para que a demanda do réu seja digna de procedência, a chance por este perdida deve representar muito
mais do que uma simples esperança subjetiva”. (SILVA, Rafael Peteffi da. A responsabilidade civil pela perda de uma
chance: uma análise do direito brasileiro e comparado. São Paulo: Atlas, 2013, p. 138).
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
541

3 Danos patrimoniais e danos extrapatrimoniais


No capítulo anterior, foi abordado o conceito de dano indenizável, notadamente
o seu lugar dentro do instituto da responsabilidade civil. Posteriormente, traçaram-se as
principais noções sobre a lesão, bem como quais os elementos caracterizados do prejuízo
ressarcível. Nesse momento, analisar-se-á a classificação dos danos como patrimoniais
e morais, perpassando nas questões da sua nomenclatura e suas quantificações.
A Constituição Federal, no art. 5º, inciso X, assegurou que “são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Dessa forma,
percebe-se que ela nomeou os danos de material ou moral, apesar disso não se entende
que para este último a nomenclatura seria a mais adequada.
É mais correto denominar danos extrapatrimoniais, pois nesta expressão estaria
incluída toda ofensa ao que não for suscetível de avaliação econômica.7 Ou seja, o dano
moral não deve se restringir apenas a uma violação à moral, mas sim a toda ofensa a
um direito não patrimonial.
Por outro lado, alguns doutrinadores não veem na denominação “dano moral”
uma inferioridade em relação à de dano extrapatrimonial. Entendem que é uma expressão
consagrada pela doutrina e pelos tribunais pátrios, além de também ser adotada em
diversos países, como na França, Espanha, etc.8 De todo modo, isso não significaria
dizer que apenas os prejuízos relacionados às ofensas, literalmente, morais deverão ser
protegidos.
Nas duas formas se denominar os danos que não patrimoniais, busca-se proteger
toda lesão a um bem que não for possível de avaliação pecuniária, mas o que diferencia
realmente uma espécie da outra?
Na visão de Bustamante (1993, p. 238), o critério diferenciador das categorias de
dano não é determinado pela natureza dos bens atacados. Ou seja, uma lesão a um bem
patrimonial não gerará, obrigatoriamente, um dano dessa natureza. É possível haver
uma lesão ao patrimônio que a consequência direta desse dano seja em aspectos não
pecuniários.9

7
Nesse sentido, ver, por todos, MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. volume V, tomo II: do
inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
8
Nesse sentido, ver: Agostinho Alvim (1972, p. 219).
9
Em consonância, vê-se pelo Recurso Especial nº 1616079 / RO que o não cumprimento do serviço de transporte
convencionado ocasionou um dano moral. Transcreve-se parcialmente a ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL.
MÁ PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. ALTERAÇÃO E ATRASO DE VOO. DANOS MORAIS. VALOR. REVISÃO.
REVALORAÇÃO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA
07/STJ. NÃO OCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC/2015. 1. Inexiste violação do art. 1.022
do CPC/2015, porquanto o acórdão recorrido fundamentou, claramente, o posicionamento por ele assumido, de
modo a prestar a jurisdição que lhe foi postulada. 2. In casu, o Tribunal de origem manifestou-se expressamente
sobre a ocorrência e o valor dos danos morais: “No caso dos autos, havia previsão de data e horário de embarque
e desembarque, com expectativa de chegada ao destino em uma determinada data. Logo, a alteração do voo e
o consequente atraso da viagem são suficientes para configurar o descumprimento do contrato de transporte e o
dano moral sofrido pelos apelados. (...) A importância fixada pelo juízo a quo mostra-se condizente com o dano
sofrido pelos apelados (R$ 6.000,00) para cada um, sendo o referido valor suficiente para reparar às vítimas sem
configurar seu enriquecimento ilícito e punir o ofensor a fim de que não cometa tal ilícito novamente” (fls. 103-
104, e-STJ). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1616079 / RO. 2ª Turma. Relator: Herman
Benjamin. Recorrente: Vrg. Linhas Aéreas S.A.; Recorrido: Marilia Ferreira de Oliveira Correa E Marcelo Victor
Duarte Correa. Julgamento: 21.09.2017. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livr
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
542 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ora, é notório, portanto, que a classificação dessas espécies não perpassa pela
natureza jurídica do bem lesado, visto que é possível tanto se ter dano moral quando
houver o prejuízo no patrimônio, quanto o oposto, isto é uma ofensa a um bem
extrapatrimonial gerar uma reparação estritamente econômica. Ademais, é plenamente
cabível que um único evento danoso acarrete reparações em ambas as categorias.
O dano moral e o patrimonial se diferenciam, principalmente, quando se observam
alguns aspectos, tais quais: identificação, requisitos para a reparação e a maneira de
liquidação (MORAES, 2003, p. 158). Quanto ao primeiro elemento, faz-se necessário
provar, no dano patrimonial, o efetivo prejuízo suportado pela vítima. O STF entende
que a lesão material apenas é configurada quando se faça prova do prejuízo sofrido,10
por outro lado, isso não é necessário no dano moral, a violação da personalidade já é
motivo suficiente para se fazer incidir danos morais (MORAES, 2003, p. 158).11 Nesse
sentido, percebe-se que o dano moral existe in re ipsa, ou seja, “decorre inexoravelmente
da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que, provado o fato, provado está o dano
moral” (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 80).
Quanto ao segundo requisito, nas lesões materiais, a reparação está ligada à
extensão do dano, conforme dispõe o artigo 944 do Código Civil. Aqui, pouco importa
o grau de culpabilidade do ofensor, todavia, o parágrafo único do mencionado artigo
excepciona a regra geral e abre a possibilidade da reparação ser reduzida, pelo juiz, de
acordo com o grau de culpa do agente quando houver uma desproporcionalidade entre
o dano e a culpa.
O dano moral, por sua vez, analisa de forma mais profunda os critérios de
reparação, deve observar o grau de culpabilidade do transgressor, bem como qual a
situação econômica dele e do ofendido e como o evento danoso é visto socialmente,
além de não poder gerar um enriquecimento ilícito da vítima.
Por fim, no que tange à liquidação, para o dano patrimonial deve ser feita nos
moldes do artigo 402 do Código Civil, que dispõe que “salvo as exceções expressamente
previstas em lei, as perdas e danos devidos ao credor abrangem, além do que ele

10
Nesse sentido: PROCESSUAL CIVIL. ACÓRDÃO PROFERIDO EM APELAÇÃO. REFORMA DA SENTENÇA
QUE DECRETOU A EXTINÇÃO DA AÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 515, §3º, DO CPC/1973 PARA
JULGAMENTO DO MÉRITO. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR AUSÊNCIA DE PROVAS. OPOSIÇÃO
DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARA DISCUTIR CONTRADIÇÃO E OMISSÃO RELACIONADAS AO
PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL. [...] 2. A sentença do juízo de primeiro grau foi de extinção
do feito sem resolução de mérito, decretando-se a carência da ação por ausência de interesse processual. 3.
No julgamento da Apelação interposta, a Corte local proveu o recurso para reconhecer o preenchimento das
condições da ação e, com base no art. 515, §3º, do CPC/1973, considerou presentes os requisitos para julgar de
imediato o mérito, concluindo pela improcedência do pedido porque a pretensão indenizatória estaria calcada em pedido
genérico, destituído de comprovação específica e concreta dos danos ou prejuízos materiais supostamente verificados (grifo
próprio). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1661879 / SP. 2ª Turma. Relator: Herman
Benjamin. Recorrente: Fulvio Remo Giglio e Roberto de Meo; Recorrido: Estado de São Paulo. Julgamento:
27.04.2017. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=dano+material+ausencia+
prova+preju%EDzo&b=ACOR&p=true&l=10&i=26>. Acesso em: 5 dez. 2017.
11
Nesta toada, ver o AgRg no Ag 763403 / RJ CIVIL. DANO MORAL. O dano moral independe de prova, porque
a respectiva percepção decorre do senso comum. O acidente de trabalho que resulta na amputação de parte do
dedo da mão gera sofrimento indenizável a título de dano moral. Agravo regimental não provido. BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1661879 / SP. 3ª Turma. Relator: Ari Pargendler. Agravante:
Companhia Municipal de Limpeza Urbana – Comlurb; Agravado: Anselmo Luiz Carvalho da Silva. Julgamento:
7.05.2007. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=AgRg+no+Ag+965508+RJ+2
007%2F0239400-6&&tipo_visualizacao=RESUMO&b=ACOR&p=true>. Acesso em: 5 dez. 2017.
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
543

efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”. Assim, o dano material


engloba tanto o prejuízo emergente quanto o lucro cessante.
Já no moral, o quanto indenizatório deverá ser arbitrado pela vítima, de acordo
com o artigo 292, V do CPC/15, e caso assim não faça deverá o julgador solicitar uma
emenda à inicial, sob pena de julgamento sem resolução do mérito. A Ministra Nancy
Andrighi (STJ, Recurso Especial nº 1.534.559 - SP, fls. 6), todavia, entende que “o
arbitramento do valor da compensação por dano moral caberá exclusivamente ao juiz,
mediante seu prudente arbitrário, de modo que não se mostra legítimo exigir-se do autor,
no momento da propositura da demanda, a indicação precisa de um valor”.
Nesse sentido, Cavalieri Filho (2015, p. 177) defende que o critério de arbitramento
de um dano não patrimonial deve ser efetuado pelo juiz, por meio de fundamentação
jurídica adequada aos motivos que a determinaram, que observe os fins visados pela
parte e seja quantificado de forma proporcional ao dano sofrido pela vítima. Assim,
a quantia arbitrada deve ser “compatível com a reprovabilidade da conduta ilícita, a
intensidade e duração do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica
do causador do dano, as condições sociais do ofendido e outras circunstâncias mais que
se fizerem presentes”.
Após mencionar as diferenças entre o dano patrimonial e extrapatrimonial, torna-
se importante analisar o dano moral em si, qual seu conceito, seus critérios delimitadores
para uma melhor compreensão do tema em estudo.

3.1 Dano moral
O dano moral nem sempre foi aceito para doutrina e jurisprudência. Entendia-
se não ser possível quantificar o sofrimento de alguém. Ademais, por ser visto como
algo transitório, apenas o tempo seria capaz de acabar com a dor. Também se elencava
como empecilho o fato de não ser possível delimitar a vítima, pois todas as pessoas que
sofreram poderiam ser sujeitos legitimados para propor uma ação de indenização por
danos morais (MORAES, 2003, p. 146).
O STF (Recurso Extraordinário, nº 102.971-4, fls. 728) costumava se manifestar
alegando que o “dano moral, consistente no pretium doloris, insuscetível de indenização
na espécie”. Em comparação com o dano patrimonial, realmente, era praticamente
impossível mensurar a ofensa a um bem não suscetível de avaliação econômica. Veja, os
prejuízos materiais são de fáceis constatações, o mesmo não acontece com os morais. Em
decorrência disso, esta lesão demorou para ser reconhecida no sistema legal brasileiro.
Ora, dano moral continua sendo de difícil mensuração na prática, ainda é difícil
se quantificar o dano que alguém sofreu na sua personalidade. O que ocasionou essa
modificação? Houve uma mudança de paradigma com a Constituição Federal de 1988,
esta colocou a pessoa humana no centro de todo o ordenamento jurídico, dessa forma,
por ser a constituição a norma fundante do sistema legal, a responsabilidade civil teve
que seguir essa tendência de personalização das relações.
Assim, exigia-se “uma responsabilidade menos patrimonialista, mais ocupada
com a segurança, em seus múltiplos aspectos, do valor básico da dignidade, de que
são exemplo as medidas de tutela da higidez física e psíquica do ser humano, bastando
pensar nos danos corporais e no dano moral, que se prefere dizer extrapatrimonial”
(GODOY, 2010, p. 31).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
544 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Sob essa necessidade, coube, portanto, à responsabilidade civil buscar a justiça


e colocar a vítima em primeiro lugar, afinal como deixar que aquela pessoa, ferida em
individualidade, ficasse sem algum tipo de compensação? Dessa forma, “o fundamento
da reparabilidade pelo dano moral está em que, a par do patrimônio em sentido técnico, o
indivíduo é titular de direitos integrantes de sua personalidade, não podendo conformar-
se a ordem jurídica em que sejam impunemente atingidos” (PEREIRA, 2016, p. 71).
Na busca de uma resposta mais justa ao ofendido, a Constituição Federal, como
exposto, trouxe expressamente, no art. 5º, inciso X, a indenização por danos morais.
O que vem a ser, porém, esse dano? O ordenamento jurídico não trouxe o seu conceito,
dessa forma, é, costumeiramente, construído pela jurisprudência e doutrina especializada
no assunto.
Atualmente, costuma-se dividir o dano moral em objetivo e subjetivo. Para
Moraes (2003, p. 157), este estará configurado quando “os efeitos da ação, embora não
repercutam na órbita de seu patrimônio material, originam angústia, dor, sofrimento,
tristeza ou humilhação à vítima, trazendo-lhe sensações e emoções negativas”. Esse
fato, nesta toada, deverá ser distinto de um mero aborrecimento do dia a dia, ou seja,
deve ser intenso para que haja uma diferenciação concreta do sofrimento das situações
desagradáveis da rotina a que todos estão sujeitos.
Aquele, por sua vez, resta caracterizado quando “independentemente de prejuízo
material, fere direitos de personalidade, isto é, todo e qualquer atributo que individualiza
cada pessoa, tal como a liberdade, a honra, a atividade profissional, a reputação, as
manifestações culturais e intelectuais, entre outros”.
Dessa forma, essa divisão do dano moral abrange toda ofensa à pessoa, seja de
forma subjetiva ou no meio em que está inserida. Nesse contexto, serão estudadas, no
próximo tópico, as possíveis “novas espécies de danos”.

4 Novos danos
De acordo com o exposto no primeiro tópico, com a perda da importância da
culpa e do nexo de causalidade, diminuíram-se os obstáculos à reparação. Houve uma
maior aceitabilidade dos tribunais pátrios nas ações de reparações civis. Ademais, o rol
de danos morais está sendo ampliado de forma considerável pelo Poder Judiciário, seja
pelo aumento expressivo dos direitos de personalidade, “seja pelas vicissitudes inerentes
a um instituto que só recentemente tem recebido aplicação mais intensa” (MORAES,
2003, p. 165).12
Como forma de delimitar os danos indenizáveis, os ordenamentos jurídicos
atuais costumam se dividir de duas formas: adotando um sistema de responsabilidade
civil típico ou fechado, indicando taxativamente os danos que podem ser ressarcidos
e, aberto ou típico, onde não existe esse rol previsto. Cada um deles tem uma maneira

12
A título de informação, de acordo com a Justiça em números, as ações de responsabilidade civil/indenizações
por dano moral ocupam o 5º lugar nos assuntos mais demandados do Superior Tribunal de Justiça. (BRASIL.
Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2016 – ano-base: 2015. Brasília: CNJ, 2016. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/3999e367fff7bf4974dd6e25dfc4f510.pdf>. Acesso em: 10
dez. 2017.
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
545

diferente de visualizar o instituto de compensação de danos, todavia, possuem muitos


aspectos em comum, visto que o objetivo deles é o mesmo: qualificar o dano reparável.
Tem-se como exemplo do sistema fechado o Direito alemão. Ele não dispôs sobre
um princípio geral da responsabilidade civil, optou por delimitar as hipóteses em que
haverá um dano, como um meio de evitar um livre arbítrio do julgador e uma extensão
exagerada da responsabilidade civil (LEITÃO, 2009, p. 85). O modelo francês, por oposto,
é um ordenamento aberto e serviu de inspiração para o legislador brasileiro. Esse sistema
tem por característica uma ampla flexibilidade, cabendo aos julgadores a função de
delimitar o perfil da responsabilidade civil, identificando os elementos necessários na
obrigação de reparação (FRAZÃO, 2011, p. 750).
O sistema aberto, como o utilizado no Brasil, possibilita um acompanhamento
mais rápido e eficaz da responsabilidade civil frente às modificações da sociedade e, por
via de consequência, cria uma proliferação da reparação de novas lesões. Esse fato traz
consigo um aspecto positivo, visto que demonstra uma preocupação das cortes com os
direitos intrínsecos da personalidade, porém, como lado negativo “faz nascer em toda
parte, um temor – antevisto por Stefano Rodotà – de que a multiplicidade de novas
figuras de dano venha a ter como únicos limites a fantasia do intérprete e a flexibilidade
da jurisprudência” (SCHREIBER, 2015 p. 92-93).
Assim, percebe-se, além do aumento quantitativo, uma ampliação qualitativa,
visto que novos interesses, principalmente os de caráter existencial e social, passaram a
ser aceitos pelos tribunais como dignos de proteção. Esse fato, porém, pode ocasionar
problemas, visto que se os interesses tutelados encontram respaldo na dignidade da
pessoa humana, e esta, por óbvio, não se pode limitar, “abre-se, deste modo, diante dos
tribunais de toda parte o que já se denominou de ‘o grande mar’ da existencialidade,
em uma expansão gigantesca, e, para alguns, tendencialmente infinita das fronteiras do
dano ressarcível” (SCHREIBER, 2015, p. 85).
É nesse contexto que surgem os “novos danos”. Dentre uma tendência cada vez
maior da adoção de um sistema aberto na responsabilidade civil, torna-se praticamente
impossível especificar os interesses juridicamente tutelados, principalmente pelo fato de
a vítima ter sido colocada em primeiro lugar dentro desse instituto. Como prever todas
as lesões a um interesse juridicamente tutelado? Seria possível, no modelo atual, deixar
o ofendido sem a devida compensação no caso de omissão legislativa?
A resposta é negativa. Ora, como se justificaria, dentro da ótica solidarista, negar a
pretensão de alguém lesado em seus direitos de personalidade pelo fato de o legislador
não ter conseguido se antever desse possível prejuízo?
Nem sempre, porém, a falta de delimitação gerará fatores positivos, pois pode
ocasionar uma quantidade ilimitada de atos lesivos sujeitos a reparação. Alguns casos
ganharam repercussão com a extensão dos danos passíveis de compensação, como, por
exemplo, o affaire Perrouche, na França. Esse acontecimento foi um dos mais polêmicos
da sua época, pois uma mulher, ao ter sido diagnosticada com rubéola durante o estado
gravídico, pediu insistentemente para ter sua gravidez interrompida. Todavia, não foi
atendida e a criança nasceu com debilidades físicas. O filho, posteriormente, entrou na
justiça pedindo danos pelo nascimento “com graves deficiências físicas” e assim foi
concedido (SCHREIBER, 2015, p. 97).
Ademais, no Brasil, os danos em relações familiares estão, costumeiramente, sendo
requeridos. Exemplo disso é o Recurso Especial nº 1.159.242 – SP que tratou de ação
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
546 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

de indenização por danos materiais e compensação por danos morais por abandono
material e afetivo durante sua infância e juventude. A filha, autora da ação, teve o seu
pedido julgado procedente, importante se transcrever uma parte do voto da Ministra
Relatora (BRASIL, Recurso Especial nº 1.159.242-SP, fls. 12), in verbis:

[...] Aqui, não obstante o desmazelo do pai em relação a sua filha, constado desde o forçado
reconhecimento da paternidade – apesar da evidente presunção de sua paternidade –,
passando pela ausência quase que completa de contato com a filha e coroado com o
evidente descompasso de tratamento outorgado aos filhos posteriores, a recorrida logrou
superar essas vicissitudes e crescer com razoável aprumo, a ponto de conseguir inserção
profissional, constituir família, ter filhos, enfim, conduzir sua vida apesar da negligência
paterna. Entretanto, mesmo assim, não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza,
e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe. Esse sentimento
íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente,
das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também
de suas ações, que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o
dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação [...]. (grifo próprio)

Para além, várias espécies novas de dano estão sendo arroladas, como, por
exemplo, o dano existencial, à vida, à privacidade, etc. Seriam essas um tertium genus
distinto do dano patrimonial e extrapatrimonial?
Tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina, usualmente são catalogadas novas
espécies de danos não patrimoniais, qualificando-os como uma categoria autônoma, ou
seja, diferenciada do sistema bipartido patrimonial/moral. Assim, para esses defensores, o
dano extrapatrimonial seria um gênero no qual cada dano individualmente seria espécie.13
Nem sempre, todavia, esses “novos” danos estão sendo alocados na sua devida
categoria. Muitas situações lesivas não chegam a caracterizar uma espécie nova, são
apenas prejuízos distintos do mesmo dano. Assim, nem sempre o efeito causado por um
ato, antes desconhecido, é distinto ao dano patrimonial/moral. Em outros países, como
Portugal, “a tradicional dicotomia ‘dano patrimonial/dano moral’ (em sentido estrito)
revelou-se incapaz de abarcar a complexa realidade do homem como pessoa humana,
carecido de adequada e satisfatória tutela jurídica” (GUEDES, 2001, p. 46).
Diante disso, se questiona se realmente os atuais modelos de danos não são
suficientes para reparar a vítima do prejuízo sofrido. Ora, sabe-se que limitar a inde­
nização apenas aos danos subjetivos que estiverem expressamente previstos em lei é
incompatível com a metodologia civil-constitucional. O legislador, por mais que tente

13
Nesse sentido, transcreve-se uma ementa do TST em que se coloca o dano moral e o dano existencial em cate­
gorias distintas: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA REGIDO PELA LEI 13.015/2014.
TRABALHO DEGRADANTE. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO (SÚMULA 126 DO TST). TRABALHO
DEGRADANTE. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. R$ 10.000,00 (NÃO CONFIGURADA
VIOLAÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL). INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL (SÚMULA 126
DO TST). VALOR ARBITRADO (NÃO CONFIGURADA VIOLAÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL).
INTERVALO INTRAJORNADA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO TRECHO ESPECÍFICO DO ACÓRDÃO
DO TRIBUNAL REGIONAL QUE CONSUBSTANCIA O PREQUESTIONAMENTO DAS MATÉRIAS OBJETO
DE RECURSO DE REVISTA (ART. 896, §1º-A, I, DA CLT). (BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. TST-
AIRR nº 492-42.2015.5.09.0017. 2ª Turma. Relatora: Min. Delaíde Miranda Arantes; Agravante: Francisco Carlos
Falavigna; Agrado: Sérgio Junqueira. Julgamento: 10.04.2017. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/
diarios/164123119/tst-judiciario-11-10-2017-pg-561?ref=next_button>. Acesso em: 11 out. 2017.
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
547

se antever a todas as possíveis lesões, não conseguirá fazê-lo na mesma velocidade que
as mudanças na sociedade. Nesse sentido, manifesta-se Gustavo Tepedino (2004, p. 37),

As previsões constitucionais e legislativas, dispersas e casuísticas, não logram assegurar


à pessoa proteção exaustiva, capaz de tutelar as irradiações da personalidade em todas as
suas possíveis manifestações. Com a evolução cada vez mais dinâmica dos fatos sociais,
torna-se assaz difícil estabelecer disciplina legislativa para todas as possíveis situações
jurídicas de que seja a pessoa humana titular.

Ademais, mesmo que fosse possível uma categorização ampla pelo legislador, não
estaria resolvendo o núcleo do problema, pois ainda se questionaria quais os interesses
merecem essa tutela normativa. O ideal seria se estabelecer critérios mais seguros ao
magistrado no momento de identificar quais são os danos passíveis de indenização
(SCHREIBER, 2015, p. 140).
Para Schreiber (2105, p. 164), esses critérios podem ser divididos da seguinte
forma: i) Exame abstrato de merecimento de tutela do interesse lesado. Aqui, analisa-
se abstratamente se existe uma norma que diretamente ou por meio de cláusula geral
preveja esse dano. “Na inexistência de qualquer norma, [...] da qual se possa extrair o
merecimento de tutela em abstrato do interesse dito lesado, inexiste dano em sentido
jurídico, embora possa, sim, existir prejuízo em sentido vulgar”; ii) Exame abstrato de
merecimento de tutela do interesse lesivo: depois de saber qual norma foi descumprida,
resta saber “se o interesse representado pela conduta lesiva é igualmente merecedor de
tutela”; iii) Existência de regra legal de prevalência entre os interesses conflitantes: ou
seja, deve-se verificar se o legislador determinou uma regra para saber qual interesse
deverá prevalecer entre os conflitante; iv) Inexistência de regra legal de prevalência
entre os interesses conflitantes: no caso de não existir uma regra legal para interesses
conflitantes, caberá ao Judiciário, no caso concreto, a ponderação destes.
Assim, utilizando-se desses critérios, equaciona-se a não catalogação dos danos,
visto os danos extrapatrimoniais serem muito amplos com a redução de julgamentos
irrestritos e arbitrários do Poder Judiciário. Nesse ínterim, fornece-se “ao magistrado,
em cada caso particular, um juízo de ressarcibilidade do dano que, para além do exame
da norma, abarque o controle do merecimento de tutela, em concreto, dos interesses
colidentes. Eis o que há de urgente e imprescindível” (SCHREIBER, 2015, p. 170).
Por fim, diante da dificuldade de previsão legal de todas as formas de lesão à
dignidade da pessoa jurídica e frente ao conceito de dano moral explanado como toda
ofensa a um interesse juridicamente tutelado, não se entende ser prudente categorizar
como espécies autônomas esses aspectos da personalidade ofendidos individualmente.
Por outro lado, pensa-se que, a partir do momento em que se consegue indivi­
dualizar o dano sofrido, mais fácil de comprovação judicial será a existência do prejuízo.
Ora, sabe-se que o dano moral, perante os tribunais pátrios, está sendo recha­çado
devido a sua banalização. Ademais, no momento de julgar, o magistrado, muitas vezes,
fica inseguro ao determinar o quantum indenizatório, por ser, como visto, o dano extra­
patrimonial de difícil apuração. Então, se for possível delimitar, naquele caso em concreto,
qual direito de personalidade foi diretamente lesado, melhor restará comprovado o
direito à compensação.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
548 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Conclusão
As mudanças de paradigmas pelas quais o instituto da responsabilidade civil
passou modificaram o cerne do conflito. Viu-se que a culpa não conseguia mais atender
às finalidades para as quais o instituto foi criado. Nesta perspectiva, no século XXI viu-
se eclodir os filtros tradicionais da reparação, fundados na culpa, no nexo e no dano.
Impossível seria manter a estrutura tradicional diante das fluidas relações às quais o
indivíduo foi introduzido.
A erupção dos pressupostos da reparação trouxe para o centro do conflito o
dano. Ora, não havia que se falar em quem cometeu o injusto, mas sim em reparação
àquele que foi vítima de tal circunstância. Foi assim que o dano deslocou a atenção para
a compensação.
Neste intuito, emergiram-se “novas categorias” de danos tidas como ressarcíeis,
em atenção aos interesses jurídicos tutelados. Ocorre que esta nova categorização dos
danos acaba por trazer um sistema fechado de responsabilidade civil, onde todos os
aspectos da personalidade estariam quantificados à disposição do legislador. Assim, se
não estivesse legalmente previsto, não haveria um dano a ser reparado.
Diante do novo paradigma da responsabilidade civil não seria possível admitir
uma hipótese em que ocorresse uma lesão à dignidade da pessoa humana, porém, por
não estar previamente prevista, a vítima ficasse sem a devida compensação.
Desta forma, não seria viável considerar estas novas categorias como uma espécie
autônoma, mas como parte dos danos extrapatrimoniais. O mais adequado seria manter
o sistema aberto com base na cláusula geral da reparação para prever a reparação integral
da vítima. A categorização, assim, seria suficiente apenas diante da individualização do
direito de personalidade do lesado a fim de tornar clara a agressão para o juiz e servir
de fundamentação para justificar o valor indenizatório.

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DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
549

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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

DAMASCENO, Lívia Ximenes; MATOS, Liliane Gonçalves. Danos extrapatrimoniais no Brasil: dano moral
ou “novas espécies”? In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro
de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 537-549. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS
CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA

RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA

“Quero morrer completamente. Quero morrer com este


companheiro, meu corpo.”
Jorge Luis Borges

Introdução
“Para mim, chega”. Com essas palavras, Nancy B., uma jovem de 25 (vinte e
cinco) anos que sofria de uma rara condição neurológica – denominada de síndrome
de Guillain-Barre – manifestou sua vontade de não permanecer viva. Em razão da
doença, o corpo de Nancy se encontrava paralisado do pescoço para baixo, reduzindo
seu âmbito de atividades a assistir à televisão e encarar as paredes do hospital em que
estava internada. Transcorridos dois anos e meio de uma existência artificial, Nancy havia
tomado a decisão de requerer autorização judicial para desligar o aparelho respiratório
que a mantinha viva.1
A história de Nancy B. suscita relevante debate em torno do papel conferido aos
indivíduos na definição dos rumos de sua própria existência. De um lado, aqueles que
defendem a prevalência absoluta da inviolabilidade do direito à vida – amparados no
artigo 5º, caput, da Constituição Federal2 – rechaçam que se possa atribuir ao sujeito o

1
Nancy B. obteve a autorização judicial pleiteada, vindo a falecer em fevereiro de 1992. Confira-se a história
completa em “Paralyzed Canadian Woman Wins Court Ruling on Right to Die”. William Claiborne, Washington
Post, 7 de janeiro de 1992, A9.
2
Art. 5º, caput, Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
552 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

poder de decidir sobre o seu fim, ainda que em circunstâncias terminais. De outra parte,
advoga-se a autonomia existencial dos sujeitos capazes para escolher se, em situações
extremas, preferem ser submetidos a tratamentos intensivos ou deixados à mercê da
própria sorte.
Como se denota, as questões atinentes à terminalidade da vida contrapõem a
inviolabilidade da vida à autonomia existencial, na qualidade de exercício das liberdades
individuais. A ponderação entre ambas deverá ser feita, necessariamente, à luz do
princípio da dignidade da pessoa humana, vértice do ordenamento constitucional
brasileiro estipulado no artigo 1º, III, da Constituição Federal.3
A partir da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana à disciplina
das situações subjetivas existenciais, a doutrina especializada tem sustentado a existência
do direito à morte digna. O respeito à vontade individual nas decisões relativas à morte
representaria nada mais do que uma extensão do direito à vida digna, impedindo que
o sujeito seja submetido a tratamento médico degradante e/ou invasivo unicamente em
razão da abstrata inviolabilidade da vida.
Dito diversamente, o princípio da dignidade da pessoa humana acabaria por
flexibilizar a inviolabilidade do direito à vida, autorizando que, em certas hipóteses,
a autonomia existencial do sujeito prevaleça. Tal conclusão, no entanto, não prescinde
da avaliação do próprio conteúdo do direito à vida. Com efeito, convém investigar se a
tutela jurídica recai sobre os interesses existenciais do indivíduo – hipótese em que será
possível entender, em certos casos, que a morte atende mais aos interesses do sujeito do
que a manutenção artificial da vida – ou se é objeto de tutela a sacralidade da vida em
si mesma considerada, independentemente do sujeito analisado.4
O tema em análise exige, ainda, sejam bem delimitadas as hipóteses de intervenção
médica (diferenciando-se as modalidades de eutanásia, ortotanásia, distanásia, etc.),
pois poderão conduzir a resultados diametralmente distintos, no que toca à licitude ou
não da atuação médica. Nesse âmbito, o presente trabalho se detém nos consideráveis
progressos legislativos na matéria, abordando também os avanços levados a cabo pelo
Conselho Federal de Medicina, no que se refere aos limites e critérios para avaliação da
conduta do profissional da saúde em face de pacientes terminais.
Por fim, examina-se o conteúdo e o papel da autonomia existencial dos pacientes
em estado de terminalidade, apurando-se a validade de diretivas antecipadas em vida.
Nesse contexto, analisa-se a relevância atribuída à vontade declarada ou presumida do
paciente quanto aos tratamentos médicos aos quais deseja se submeter. Ao final, são
oferecidos balizamentos para verificação da validade e eficácia das manifestações do
paciente terminal quanto à sua morte.

3
Art. 1º, III, Constituição Federal: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
III - a dignidade da pessoa humana”.
4
Sobre o tema, afirma Heloisa Helena Barboza: “A ponderação entre o direito à vida e o direito à liberdade, ambos
constitucionalmente assegurados, há de ser feita, portanto, de modo a não violar o princípio da dignidade da
pessoa humana, ‘valor fundamental do Direito’. Sob o aspecto jurídico, que deve ser laico por força da orientação
constitucional, a dignidade da vida deve prevalecer sobre a sacralidade da vida, princípio de origem religiosa”
(BARBOZA, Heloisa Helena. Autonomia em face da morte: alternativa para a eutanásia? In: BARBOZA, Heloisa
Helena et al. (Coord.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ Ed, 2010, p. 32-49).
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
553

1 Medicalização da vida e modalidades de intervenção médica


Os consideráveis avanços no conhecimento médico experimentados durante a
modernidade resultaram na chamada medicalização da vida, por meio da qual tanto o
poder de dar início a uma existência quanto o poder de interrompê-la são apropriados
pela medicina.5
De modo inevitável, a medicalização da vida impacta a forma pela qual os
indivíduos constroem suas trajetórias pessoais e atribuem sentido à própria existência.
Em um extremo, surgem discussões relativas aos métodos contraceptivos, ao aborto, aos
métodos de concepção artificial e à eugenia. Torna-se possível evitar o surgimento de
uma nova vida, interromper ou promover (unilateralmente) uma gestação e até mesmo
selecionar os traços genéticos e o biótipo de um futuro descendente. Nesse contexto, a
bioética e o biodireito tentam estabelecer diretrizes e parâmetros para o exercício das
inúmeras possibilidades trazidas pelos avanços médicos.
No extremo oposto da existência humana, a medicina moderna permite sejam
artificialmente prolongadas, por tempo indeterminado, as vidas de pacientes que
estariam fadados à morte iminente.6 A terminalidade se torna uma condição superável
com o uso de suportes vitais,7 aparelhos de respiração artificial e medicamentos
especializados. A medicina se apropria do término da vida.
Antes de se debruçar sobre as questões específicas atinentes às decisões dos
pacientes sobre a própria morte, é preciso diferenciar as modalidades de intervenção –
ou omissão – médica capazes de pôr término ou prolongar a vida.

i. Eutanásia
Segundo a melhor doutrina, a eutanásia compreende situações distintas, podendo
ser verificada em modalidades ativa e passiva.8 O conceito de “eutanásia ativa”

5
Sobre a medicalização da vida, confiram-se: FOUCAULT, Michel. La crisis de la medicina o la crisis de la
antimedicina. Educación Médica y Salud (OPS); 10 (2): 152-70, 1976. Disponível em: <http://hist.library.paho.org/
Spanish/EMS/4451.pdf>, data de acesso: 4 jun. 2018; e CONRAD, Peter. The medicalization of society – on the
transformation of human conditions into Treatable Disorders. The John Hopkins University Press, 2007.
6
Como se lê: “É inegável que o avanço tecnológico ademais de aumentar a expectativa média de vida das
populações por todo o planeta, prolonga o processo de morrer, pois a sobrevida física torna-se a cada dia mais
alargada por melhores condições que advêm dos constantes adiantamentos científicos. Contudo, o alongamento
do morrer pode ser causado por tratamento fútil ou extraordinário cuja única justificativa é a ‘medicalização’
da morte, ou seja, ‘o prolongamento da vida do doente por meios artificiais, a despeito da irreversibilidade do
quadro clínico e da iminência da morte.” (BERGSTEIN, Gilberto. Declaração Antecipada de Vontade: Exercício
de Autonomia. In: CALDAS, Adriana Caldas et al. (Coord.). Novos desafios do Biodireito. São Paulo: LTr, 2012,
p. 121-132).
7
Na definição de Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral: “O suporte vital se refere à série de aparelhos que visam
manter artificialmente a vida do paciente, em substituição ao funcionamento natural dos órgãos do corpo. (...)
A aparição do suporte vital na Medicina assistencial transformou seu eixo de debate e inicia a primeira experiência
de campo na qual se deve aceitar a vinculação entre uma ação médica e a chegada da morte. Sua existência, há
mais de quarenta anos, gera a possibilidade de aplica-los, não aplica-los ou suspendê-los” (Eutanásia: Dignidade
da Pessoa Humana como Fundamento Ético e Jurídico do Direito à Morte Digna. In: Revista Magister de Direito
Penal e Processual Penal, Porto Alegre, n. 43, p. 56-83, ago./set. 2011).
8
Há quem defenda, no entanto, que a eutanásia só compreenderia a conduta comissiva. Nesse sentido, Luis
Roberto Barroso e Letícia Martel: “O termo eutanásia foi utilizado, por longo tempo, de forma genérica e
ampla, abrangendo condutas comissivas e omissivas em pacientes que se encontravam em situações muito
dessemelhantes. Atualmente, o conceito é confinado a uma acepção bastante estreita, que compreende apenas a
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
554 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

corresponderia ao “ato deliberado de provocar a morte sem sofrimento do paciente,


por fins humanitários”.9
Ilustrativamente, a eutanásia ativa pode ser verificada no famoso caso do
“Dr. Morte”. Atuando em Michigan, nos Estados Unidos, Jack Kevorkian construiu
máquinas que possibilitavam o suicídio medicamente assistido. Uma das máquinas foi
inclusive instalada em seu próprio carro, permitindo que, com o apertar de um botão,
pacientes que desejassem morrer injetassem veneno letal em suas veias.10
Por sua vez, a “eutanásia passiva” equivaleria à “morte por omissão proposital
de uma ação médica que garantiria a sobrevida (por exemplo, deixar de administrar
um medicamento ou de adotar um procedimento indispensável para manter a vida do
doente)”.11 Nessa direção, é importante diferenciar a eutanásia passiva da ortotanásia:
na eutanásia passiva, a omissão do profissional da saúde é determinante ao resultado
morte – a qual não se mostrava inevitável, havendo recursos médicos aptos a assegurar
a manutenção da vida.12
Cogita-se, ainda, da chamada “eutanásia pelo duplo efeito”, hipótese em que
a morte é antecipada pelas intervenções médicas que, a despeito de terem por objeto
aliviar o sofrimento do paciente, mostram-se letais.
A eutanásia também pode ser qualificada a partir do consentimento do paciente.
Nessa esteira, há de se distinguir (i) a eutanásia voluntária, que se verifica no atendimento
à vontade de morrer manifestada pelo paciente (espécie de suicídio assistido13); (ii) a
eutanásia não voluntária, na qual a vida do paciente é encurtada sem que se tenha
ciência de sua vontade; e (iii) a eutanásia involuntária, que é praticada contra a vontade
do sujeito.
Em tese, todas as hipóteses de eutanásia são aptas a configurar os tipos penais
previstos nos artigos 121 – homicídio simples –, 122 – induzimento, instigação ou auxílio a
suicídio – e 135 – omissão de socorro – do Código Penal, não sendo previamente afastada
a ilicitude do ato em razão dos fins humanitários pretendidos pelo médico. Em particular,

forma ativa aplicada por médicos a doentes terminais cuja morte é inevitável em um curto lapso. Compreende-
se que a eutanásia é a ação médica intencional de pessoa que se encontre em situação considerada irreversível
e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos.”
(BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia
individual no final da vida. In: Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 179).
9
BARBOZA, Heloisa Helena, Ibidem, p. 41.
10
O caso é relatado por DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução
Jefferson Luiz Camargo; Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 262.
11
BARBOZA, Heloisa Helena, Ibidem, p. 41.
12
Em sentido oposto, afirma Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral, que a ortotanásia se identificaria com a
eutanásia passiva: “Eutanásia passiva ou por omissão é aquela modalidade mais frequente de eutanásia, podendo-
se conceitua-la como a omissão de tratamento ou de qualquer meio que contribua para o prolongamento da vida
da pessoa que sofre de enfermidade incurável, o que se concretiza pela decisão de não se iniciar determinado
tratamento ou suspender procedimento já iniciado. Caracteriza-se pela voluntariedade, não cabendo conduta
omissiva em relação ao tratamento médico” (Ibidem, p. 56-83).
13
Sobre o tema, lecionam Luis Roberto Barroso e Letícia Martel: “Por fim, suicídio assistido designa a retirada
da própria vida com auxílio ou assistência de terceiro. O ato causador da morte é de autoria daquele que põe
termo à própria vida. O terceiro colabora com o ato, quer prestando informações, quer colocando à disposição
do paciente os meios e condições necessárias à prática. O auxílio e a assistência diferem do induzimento ao
suicídio. No primeiro, a vontade advém do paciente, ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do
sujeito passivo, de modo a interferir com sua liberdade de ação. As duas formas admitem combinação, isto é, há
possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu suicídio. O suicídio assistido por
médico é espécie do gênero suicídio assistido” (Ibidem, p. 181).
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
555

todavia, a eutanásia não voluntária caracteriza homicídio (desde que verificados os


demais requisitos legais), vez que a atuação do profissional da saúde se encontra em
frontal descompasso com a vontade do paciente.14 Por outro lado, poder-se-ia cogitar da
ausência de ilicitude na eutanásia passiva voluntária, levando-se em consideração que
a omissão proposital da intervenção médica encontra amparo na autonomia existencial
do paciente, o qual não deseja se submeter a determinado procedimento médico.15 16

ii. Distanásia
A distanásia, modalidade de intervenção médica diametralmente oposta à euta­
násia, consiste no prolongamento artificial da vida de pacientes terminais a qualquer
custo, mediante o uso de aparatos médicos ordinários e extraordinários.17 Nesses casos,
a morte do paciente é inevitável, razão pela qual se afirma que “não se prolonga a vida
propriamente dita, mas o processo de morrer”.18
Como espécie da distanásia, tem-se a obstinação terapêutica, em que os médicos
se insurgem ao máximo contra a iminente morte do paciente, valendo-se de todas as
formas de tratamento a seu alcance, ainda que impliquem graves desgastes e considerável
sofrimento ao indivíduo.19 Espécie similar de distanásia consubstancia-se no tratamento
fútil, no âmbito do qual são adotadas medidas absolutamente desproporcionais aos fins
pretendidos, as quais se revelam incapazes de promover a efetiva melhora do paciente;
ao contrário, o resultado do tratamento fútil se limita ao prolongamento artificial da
vida, à custa do bem-estar do paciente.20

14
Sobre o tema, veja-se Schramm e Batista, Ibidem, p. 114.
15
Conforme pondera Heloisa Helena Barboza: “Sob essa ótica deve ser analisada a eutanásia passiva voluntária,
ou seja, omissão proposital de uma ação médica, em decorrência da recusa expressa do paciente ao tratamento
possível, exercendo desse modo sua autonomia. A rejeição do tratamento pode dar-se para evitar a distanásia ou,
simplesmente, porque o paciente não aceita tratar um mal irreversível e incurável” (Ibidem, p. 43).
16
Em sentido contrário, confira-se a manifestação da Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira nos
autos da ação civil pública nº 2007.34.00.014809-3: “A ortotanásia não se confunde com a chamada eutanásia
passiva. É que, nesta, é a conduta omissiva do médico que determina o processo de morte, uma vez que a sua
inevitabilidade ainda não está estabelecida. Assim, os recursos médicos disponíveis ainda são úteis e passíveis
de manter a vida, sendo a omissão do profissional, neste caso, realmente criminosa. A eutanásia, assim, na forma
ativa ou passiva, é prática que provoca a morte do paciente, pois ainda não há processo de morte instalado,
apesar do sofrimento físico e/ou psicológico que possa atingir o paciente. No entanto, a omissão em adotar
procedimentos terapêuticos extraordinários quando a morte já é certa (ortotanásia), não produz a morte do
paciente, uma vez que nenhum ato do médico sobre ele poderá evitar o evento do desenlace”.
17
Na definição de Luis Roberto Barroso e Letícia Martel: “Por distanásia compreende-se a tentativa de retardar
a morte o máximo possível, empregando, para isso, todos os meios médicos disponíveis, ordinários e
extraordinários ao alcance, proporcionais ou não, mesmo que isso signifique causar dores e padecimentos a uma
pessoa cuja morte é iminente e inevitável”. Ibidem, p. 179.
18
Confira-se PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário São
Camilo, 2001, p. 30.
19
BATISTA, Rodrigo Siqueira; SCHRAMM, Fermin Roland. Conversações sobre a “Boa Morte”: o debate bioético.
In: Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(1): 111-119, jan./fev. 2005, p. 114.
20
Veja-se Luis Roberto Barroso e Letícia Martel, Ibidem, p. 179.
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556 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

iii. Ortotanásia
Por sua vez, a ortotanásia se identifica em permitir o decurso ordinário dos eventos
naturais que culminam na morte, sem interferências médicas extraordinárias visando
ao prolongamento da vida. Entendida como a “morte em seu tempo adequado”,21 a
ortotanásia pode ser associada a cuidados paliativos, os quais, muito embora não sejam
aptos a promover a cura ou melhora do paciente, buscam reduzir o sofrimento psíquico
e físico do sujeito.22
Acerca do suposto “tempo certo” da morte, expõe Heloisa Helena Barboza que
corresponde “[à]quele que é determinado pelo enfermo, no exercício de sua autonomia,
ou por terceiro (médico ou familiar) para evitar ou pôr fim à distanásia”.23 Sobre o tema,
Schramm e Batista problematizam que a definição do chamado “tempo adequado” da
morte por vezes se mostra impossível, diante da infinidade de recursos médicos aptos
a prolongar a vida, dificultando que se extreme a deliberada omissão médica – a qual
constitui crime, nos termos do artigo 135 do Código Penal24 – da chamada ortotanásia.25
Sublinhe-se que, na ortotanásia, a redução no tempo de vida do paciente se revela
uma consequência previsível, mas não desejada, tendo a equipe médica por objetivo
central oferecer o máximo de conforto e apoio ao sujeito em estado terminal.26
Com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana27 – vértice do
ordenamento constitucional –, defende-se ser lícita a prática da ortotanásia, 28 enquanto
expressão do livre desenvolvimento da personalidade do paciente. 29
Em reconhecimento da autodeterminação do paciente em relação a decisões vitais,
a Resolução nº 1.931/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM) (“Código de Ética
Médica”) assegurou o direito do paciente de decidir sobre os tratamentos aos quais
deseja se sujeitar, proibindo que o profissional da saúde afaste a opção manifestada pelo
indivíduo.30 E mais: o Código de Ética Médica também permitiu expressamente que não

21
Sobre o tema, afirmam Luís Roberto Barroso e Letícia Martel: “Em sentido oposto da distanásia e distinto da
eutanásia, tem-se a ortotanásia. Trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos
extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como
na eutanásia. É uma aceitação da morte, pois permite que ela siga seu curso”. Ibidem, p. 179.
22
PESSANO, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo,
2001, p. 203.
23
Heloisa Helena Barboza. Ibidem, p. 40.
24
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou
extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses
casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – A pena
é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
25
Rodrigo Siqueira Batista; Fermin Roland Schramm. Ibidem, p. 114.
26
Luis Roberto Barroso e Letícia Martel, Ibidem, p. 180.
27
Por todos, veja-se MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
28
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, implicações médico-legais. São
Paulo: Ícone, 1998.
29
MARTIN, Leonard. Eutanásia e distanásia: iniciação à bioética. Revista do Conselho Federal de Medicina, 1998, p.
1-6, Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/iniciao%20%20biotica.pdf>. Acesso em:
3 jun. 2018.
30
Confira-se o artigo 24 do Código de Ética Médica: “É vedado ao médico: (...) Deixar de garantir ao paciente o
exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade
para limitá-lo”.
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ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
557

sejam realizados tratamentos desnecessários, ressalvados os cuidados paliativos aptos


a reduzir o sofrimento do sujeito.31
Em 9 de novembro de 2006, já havia sido editada a Resolução CFM nº 1.805/2006,
cujo artigo 1º havia previsto expressamente que “na fase terminal de enfermidades graves
e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos
que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os
sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada
a vontade do paciente ou de seu representante legal”.
O dispositivo, em consonância com o artigo 8º do Código de Ética dos Hospitais
Brasileiros,32 foi alvo de grandes controvérsias, tendo sido objeto de ação civil pública
proposta pelo Ministério Público Federal (“Ação Civil Pública”). Em decisão liminar, foi
concedida a antecipação de tutela, com a consequente suspensão dos efeitos do aludido
dispositivo, sob o fundamento de que haveria violação ao princípio da legalidade.33
A Ação Civil Pública, no entanto, veio a ser julgada improcedente, tendo sido
adotados os argumentos deduzidos pelo Conselho Federal de Medicina e corroborados
pelo Ministério Público Federal em suas alegações finais, no sentido de que “(i) a resolução
questionada não trata de eutanásia, tampouco de distanásia, mas sim de ortotanásia;
(ii) a ortotanásia, situação em que a morte é evento certo, iminente e inevitável, está
ligada a um movimento corrente na comunidade médica mundial denominado Medicina
Paliativa, que representa uma possibilidade de dar conforto ao paciente terminal que,
diante do inevitável, terá uma morte menos dolorosa e mais digna; (iii) a ortotanásia não
é considerada crime; e (iv) o direito à boa morte é decorrência do princípio da dignidade
humana, consubstanciando um direito fundamental de aplicação imediata”.34
Muito embora a edição do atual Código de Ética Médica represente considerá­
vel progresso, é imprescindível seja dado tratamento à matéria pelo Poder Legislativo,
de modo a pacificar as pulsantes controvérsias quanto à licitude do instituto. Nessa
direção, os Projetos de Lei nºs 3.002/2008, 5.008/2009, 6.544/2009 e 6.715/2009 constituem
importantes iniciativas visando a expressamente excluir da ilicitude penal a ortotanásia.
No âmbito do Projeto de Lei nº 6.715/2009, a Comissão de Seguridade Social e
Família aprovou, em fevereiro de 2010, a redação substitutiva do projeto de regula­
mentação da ortotanásia, segundo a qual será exigida a autorização expressa do paciente,
de sua família ou de seu representante legal para a prática da ortotanásia. Será requerida,
ainda, a apresentação da aludida autorização a uma junta médica especializada,
encarregada de analisar o pedido. O projeto de lei considera, ainda, como pacientes em
fase terminal as pessoas portadoras de enfermidade avançada, progressiva e incurável,

31
Veja-se o Capítulo I – Princípios Fundamentais –, XXII, do Código de Ética Médica: “Nas situações clínicas
irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos
desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.
32
Artigo 8º, Código de Ética dos Hospitais Brasileiros: “O direito do paciente à esperança pela sua própria vida
torna ilícita – independente de eventuais sanções legais aplicáveis – a interrupção de terapias que a sustentem.
Executam-se, apenas, os casos suportados por parecer médico, subscrito por comissão especialmente designada
para determinar a irreversibilidade do caso, em doenças terminais, com a aprovação, igualmente por escrito, do
diretor clínico do hospital ou instituição”.
33
Decisão proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3, em trâmite perante o Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, julgada em 23 de outubro de 2007.
34
Confira-se sentença proferida em 1º de dezembro de 2010 pela 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito
Federal.
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558 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

com diagnóstico de morte iminente e inevitável, que não apresentem perspectiva de


melhora. As propostas, que tramitam em regime de prioridade, pendem da análise da
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, antes de serem submetidas à votação
pelo Plenário.35

2 O papel da autonomia existencial e as diretivas antecipadas em vida


Uma vez delineadas as modalidades de intervenção médica referentes às situações
de terminalidade, convém analisar o espaço conferido à autonomia privada nas situações
subjetivas existenciais dos pacientes terminais.
Para tanto, deve-se principiar pela delimitação do conceito de autonomia a
ser adotado. Historicamente, a autonomia privada era compreendida como o poder
reconhecido ao sujeito – ou a uma comunidade de pessoas – de estipular as vicissitudes
jurídicas decorrentes de um ato de vontade livremente praticado. Dito diversamente,
aos sujeitos era atribuído espaço de autorregulamentação, no qual poderiam exercer a
liberdade de determinar as regras do jogo. Tal espaço seria limitado apenas externamente
pelas leis, as quais estipulariam os comportamentos considerados ilícitos.
Com a ascensão da dignidade da pessoa humana ao vértice do ordenamento
constitucional, o conteúdo da autonomia privada é remodelado à luz dos valores sociais
que informam o ordenamento. Com efeito, à autonomia privada passa a ser atribuído
não só conteúdo negativo – no sentido de ser autorizado tudo o que não é proibido –,
mas também conteúdo positivo, sendo imperativo que as partes persigam, além de seus
próprios interesses, outros valores socialmente relevantes.
Nessa esteira, o exercício das liberdades fundamentais atribuídas aos sujeitos passa
a ser internamente limitado pelo necessário atendimento – ao lado de seus interesses
individuais – dos valores sociais que informam ordenamento constitucional. Passa-se
da autonomia privada à autonomia negocial.36 Por essa razão, qualquer exercício da

35
Sobre o tema, veja-se a notícia “Comissão aprova proposta que regulamenta a ortotanásia”, divulgada na página
virtual da Câmara dos Deputados em 08 de dezembro de 2010: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/
noticias/SAUDE/151903-COMISSAO-APROVA-PROPOSTA-QUE-REGULAMENTA-A-ORTOTANASIA.html>.
Acesso em: 3 jun. 2018.
36
Sobre o tema, leciona Gustavo Tepedino: “As liberdades fundamentais, asseguradas pela ordem constitucional,
permitem a livre atuação das pessoas na sociedade. Expressão de tais liberdades no âmbito das relações privadas
é a autonomia privada, como poder de auto-regulamentação e de auto-gestão conferido aos particulares em suas
atividades. Tal poder constitui-se em princípio fundamental do direito civil, com particular inserção tanto no
plano das relações patrimoniais, na teoria contratual, por legitimar a regulamentação da iniciativa econômica
pelos próprios interessados, quanto no campo das relações existenciais, por coroar a livre afirmação dos valores
da personalidade inerentes à pessoa humana. O principio da autonomia privada, entretanto, não é absoluto,
inserindo-se no tecido axiológico do ordenamento, no âmbito do qual se pode extrair seu verdadeiro significado.
Encontra-se informado pelo valor social da livre iniciativa, que se constitui em fundamento da República (art.
1º, IV, CR), corroborado por numerosas garantias fundamentais às liberdades, que têm sede constitucional em
diversos preceitos, com conteúdo negativo e positivo. Assume conteúdo negativo no princípio da legalidade, que
reserva ao legislador o poder de restrição a liberdades, tornando lícito tudo o que não for legalmente proibido.
Assim o art. 5º, II, da Constituição da República, em cuja linguagem se lê: “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Na mesma direção, dotado de conteúdo meramente
negativo, situa-se o art. 170, parágrafo único, do Texto Maior, o qual, ao fixar os princípios gerais da atividade
econômica, dispõe: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente
de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Tal conteúdo não esgota o sentido
constitucional do princípio da autonomia privada, que corporifica as liberdades nas relações jurídicas de direito
privado. Segundo o Texto Constitucional, a liberdade de agir, objeto das garantias fundamentais insculpidas
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
559

autonomia negocial será submetido a um juízo de merecimento de tutela, sendo tutelado


apenas se – e na medida em que – outros valores socialmente relevantes forem atendidos.37
A se considerar que “[o] princípio da tutela da pessoa, como supremo princípio
constitucional, funda a legitimidade do ordenamento e a soberania do Estado”,38 as
situações subjetivas existenciais assumem centralidade no ordenamento jurídico,
subordinando o atendimento dos interesses patrimoniais à sua tutela prioritária.
Nesse contexto, a autonomia existencial dos indivíduos para definir os rumos da
sua trajetória pessoal assume relevo.39 Em atenção aos princípios da igualdade e alteri­
dade, o personalismo confere aos sujeitos igual liberdade na definição de seus projetos
existenciais, não se investigando os motivos subjetivos que justificam suas escolhas
pessoais.40
É dizer-se: existe um espaço indecifrável de autodeterminação do sujeito, um
“núcleo duro de sua existência” – no termo cunhado por Rodotà – que deve ser respeitado
pela coletividade, em observância aos valores personalista e solidarista que informam
o ordenamento constitucional brasileiro.41 Em consequência, não se deve perquirir as
motivações subjetivas pelas quais um indivíduo decide se submeter ou não a determinado
tratamento médico.42 Pela mesma razão, é vedada a intervenção heterogênea nas escolhas
pessoais de sujeitos capazes e informados.

no art. 5º, associa-se intimamente aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1, III), fundamento da
República, da solidariedade social (art. 3º, I) e da igualdade substancial (art. 3º, III), objetivos fundamentais da
República. Significa dizer que a livre iniciativa, além dos limites fixados por lei, para reprimir atuação ilícita, deve
perseguir a justiça social, com a diminuição das desigualdades sociais e regionais e com a promoção da dignidade
humana. A autonomia privada adquire assim conteúdo positivo, impondo deveres à autorregulamentação dos
interesses individuais, de tal modo a vincular, já em sua definição conceitual, liberdade à responsabilidade.
A ordem pública constitucional valoriza a liberdade na solidariedade, impondo que a autonomia privada seja
vista como poder de regulamentação não necessariamente vinculada à vontade subjetiva, já que o interesse
público sobrepõe ao poder de agir dos particulares a tutela de valores socialmente relevantes. Alude-se, nesta
direção, à autonomia negocial, como noção substitutiva do conceito de autonomia privada, por melhor traduzir
o poder conferido aos particulares para deflagrarem negócios, não necessariamente definindo os próprios
regulamentos de interesse, dependendo dos interesses em jogo” (Esboço de uma classificação funcional dos atos
jurídicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, p. 8-37, jul./set. 2014).
37
Sobre o tema, aduz Heloisa Helena Barboza: “Ainda de acordo com Perlingieri, cada interesse é correlato a
um valor e a análise dos interesses autoriza individuar quais expressam valores reconhecidos e tutelados pela
Constituição. Assim, o fundamento constitucional da autonomia negocial se identifica à luz dos múltiplos
suportes normativos, em razão da natureza dos interesses garantidos e dos valores constitucionais aos quais
esses se reconduzem. Melhor do que individuar ‘o’ fundamento constitucional da autonomia contratual é
pesquisar ‘os’ fundamentos constitucionais da autonomia negocial, que oferecem ao intérprete as coordenadas
indispensáveis para emissão dos juízos de valor que o ordenamento assegura aos atos de autonomia simples e
concretos. Trata-se de controle de ‘merecimento de tutela dos interesses’ e da ‘liceidade’” (Ibidem, p. 38).
38
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 461.
39
Na clássica definição de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, indivíduo autônomo seria aquele que “age
livremente de acordo com um plano escolhido por ele mesmo, da mesma forma que um governo independente
administra seu território e define suas políticas” (Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Loyola, 2002, p. 138).
40
Na lição de Pietro Perlingieri: “A ‘pessoa’ – entendida como conexão existencial em cada indivíduo da estima de
si, do cuidado com o outro e da aspiração de viver em instituições justas – é hoje o ponto de confluência de uma
pluralidade de culturas, que nela reconhecem a sua própria referência de valores. (...) O.” (Ibidem, p. 460-461).
41
Nas palavras de Stefano Rodotà: “Quando si giunge al nucleo duro dell’esistenza, alla necessità di rispettare
la persona umana in quanto tale, siamo di fronte all’indecidibile. Nessuna volontà esterna, fosse pure
quella coralmente espressa da tutti i cittadini o da un Parlamento unanime, può prendere il posto di quella
dell’interessato” (Dal soggetto ala persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007, p. 33).
42
Conforme lecionam Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber: “As razões que conduzem a tais decisões não
precisam ser debatidas, pertencem à esfera própria do paciente, em sua livre autodeterminação. Seja de ordem
moral, científica, prática ou religiosa, a motivação do paciente não se sujeita à chancela do médico ou do Estado,
competindo apenas a ele a decisão sobre seu destino” (Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, Ibidem, p. 10).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
560 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

De forma ilustrativa, veja-se o caso apresentado por Dworkin: uma viúva de 76


anos de idade, que se viu reiteradamente em face da morte após sucessivas cirurgias
cardíacas, não admitia que os médicos não a ressuscitassem em caso de parada cardíaca.
Uma vez mantida viva com a utilização de suporte vital, teve uma parada cardíaca. Sua
filha não hesitou em requerer a adoção dos aparelhos de ressuscitação, informando que
sua família seria adepta da filosofia de “lutar até o fim” e que, por isso, essa teria sido
a vontade da paciente.43
Em sentido diametralmente oposto, tem-se o caso de Nancy Cruzan. Aos 25
anos, Nancy foi vítima de um acidente automobilístico. Ressuscitada por paramédicos,
recuperou suas funções vitais à custa de um estado vegetativo permanente. Convencidos
de que a recuperação de sua filha se mostrava impossível, os pais de Nancy Cruzan
ingressaram em verdadeira cruzada judicial para autorizar o desligamento do suporte
vital, sustentando que Nancy não teria desejado se manter viva nesses moldes. A Suprema
Corte dos Estados Unidos indeferiu o pedido, sob o argumento de que não havia provas
suficientes acerca da vontade da paciente, uma vez que não deixara testamento vital.
O caso foi reapresentado à Corte de Missouri em 1990, que acabou por acolher o pedido
dos pais de Nancy, interpretando diversas manifestações de Nancy ao longo de sua
vida como uma expressão da vontade de não ser mantida viva em estado vegetativo.44
Diante das mesmas escolhas vitais, os indivíduos comportam-se de maneira
distinta, impulsionados por suas convicções, valores, cosmovisões e crenças pessoais.
Como conclui Dworkin:

[a]lguns pacientes pedem – quer assinando testamentos de vida, quer por uma simples
solicitação aos médicos e à equipe hospitalar – para não ser ressuscitados se entrarem
nesse estado. Outros, ao contrário, insistem em que esses profissionais se empenhem
ao máximo em mantê-los vivos pelo máximo de tempo possível, e os parentes em geral
adotam o mesmo ponto de vista.45

Se a vida for considerada abstratamente como um bem superior e inviolável – ainda


que sua manutenção se dê em detrimento dos interesses existenciais de seus titulares
–, não se atribuirá exequibilidade a qualquer manifestação do indivíduo no sentido de
não ser mantido vivo artificialmente. Se, por outro lado, for admitida a tutela da vida
digna – a qual perpassa pelo atendimento dos interesses existenciais do sujeito, em
efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana e das liberdades existenciais
–, poderá se atribuir eficácia à vontade manifestada pelo indivíduo em relação às
suas situações subjetivas existenciais. Nesse cenário, admitir-se-ia que, em exercício
da autonomia existencial, o sujeito opte por uma morte digna, sendo reconhecida sua
capacidade de se autorregulamentar no que tange ao uso de suportes vitais quando em
estado de terminalidade.
Nesse sentido, a doutrina aponta que a avaliação quanto à existência considerada
digna cabe, preferencialmente, ao próprio paciente em estado de intenso sofrimento.

43
Ronald Dworkin, Ibidem, p. 263.
44
O caso é relatado por TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Ibidem, p. 15. Confira-se, ainda, a narrativa
feita por DWORKIN, Ronald. Ibidem, p. 264.
45
Ibidem, p. 263.
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
561

Nas palavras de Heloisa Helena Barboza: “Para ser digna, a vida há de ter qualidade.
A avaliação da qualidade deve ser feita, preferencialmente, por aquele que está sob
intenso sofrimento”.46
A consagração do direito à vida digna culmina no reconhecimento do direito à
morte digna, evitando-se que qualquer pessoa seja submetida a degradante e invasivo
tratamento médico – incapaz de reverter o estado de terminalidade – ao final de sua
existência. Nas palavras de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber:

Cumpre, assim, reconhecer que toda pessoa humana tem não apenas um direito à vida, mas
um direito à vida digna, o que abrange também, e sem qualquer contradição, um direito
à morte digna, entendida como o respeito às suas convicções pessoais mesmo durante o
processo de extinção de sua personalidade. Com efeito, os princípios jurídicos que norteiam
o viver não poderiam ser afastados nos momentos finais daquela que é, ainda e talvez até
mais intensamente, a existência da pessoa.47

O reconhecimento do direito à morte digna, no entanto, não implica a absoluta


e indiscriminada admissão das intervenções médicas voltadas a pôr término à vida do
paciente em estado terminal. Com efeito, mesmo afirmando a existência de um direito
à morte digna, a doutrina oferece parâmetros e balizamentos à sua aplicação. Em
primeiro lugar, exige-se a inevitabilidade do resultado morte. Ou seja, só se poderia
exercer o direito à morte digna nas hipóteses em que o paciente se encontra em estado
de terminalidade,48 inexistindo tratamento hábil a restaurar integralmente suas funções
vitais.49
Em segundo lugar, a não adoção de tratamentos médicos invasivos ou fúteis deve
corresponder à vontade declarada ou presumida do paciente. Caso haja ciência de que
o paciente deseja subordinar-se a tais tratamentos – ainda que à custa de seu bem-estar
e qualidade de vida –, a intervenção médica voltada a pôr fim à existência do sujeito
representa violação à autonomia existencial do paciente, além de eventuais implicações
em outras esferas.
Com relação à manifestação de vontade do paciente, exige-se o consentimento
informado, livre, esclarecido e específico na decisão de não se submeter a determinado
tratamento médico, o qual pode inclusive constar em Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (TCLE).50 Considerando a assimetria informacional entre o enfermo e a
equipe de profissionais da saúde, requer-se sejam apresentadas, de forma detalhada e
acessível ao paciente, todas as informações relativas ao procedimento médico, as quais
incluem suas vantagens, malefícios, riscos, consequências e alternativas.51

46
Ibidem, p. 47.
47
Ibidem, p. 9.
48
Na definição de Maria Elisa Villas-Bôas: “Diz-se terminal o paciente que se encontra em fase tal de sua patologia,
que evoluirá inexoravelmente para o óbito, em espaço de tempo relativamente curto e previsível, sem que haja
nenhum recurso médico capaz de evitar esse desfecho e ‘independentemente dos esforços empregados’” (Um
direito fundamental à ortotanásia. In: Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 246).
49
“No momento em que continuar vivendo é um martírio que a nenhum resultado conduzirá senão à morte,
ninguém é mais legitimado do que o sujeito que sofre para decidir sobre o seu destino. O respeito à autonomia
pode constituir, nestes termos, uma alternativa para a eutanásia” (BARBOZA, Heloisa Helena. Ibidem, p. 47).
50
NUNES, Lydia Neves Bastos Telles. O consentimento informado na relação médico-paciente respeitando a
dignidade da pessoa humana. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 28, jan./mar. 2007.
51
Carlos Nelson Konder. O consentimento no biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes. Revista Trimestral
de Direito Civil, Rio de Janeiro, vol. 15, p. 61, 2003.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
562 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Admite-se que a vontade do paciente seja previamente manifestada, por meio de


diretivas antecipadas em vida, em particular, testamento vital52 e mandato duradouro.53
Instrumento amplamente difundido na experiência estrangeira, o testamento vital
debuta na realidade brasileira sob o atento olhar da doutrina. Na ausência de qualquer
requisito legal, muito se discute acerca da sua forma e teor, havendo quem defenda
ser aplicável a mesma formalidade exigida para os testamentos, a saber, ser firmado
por meio de escritura pública e na presença de duas testemunhas.54 Sugere-se, ainda,
como forma de corroborar a capacidade do sujeito declarante, seja juntado à escritura
pública parecer de lavra de médico, atestando que o signatário se encontra em perfeito
juízo.55 Sublinhe-se que o testamento vital pode incluir disposições relativas a mandato
duradouro, designando quem será responsável por tomar as decisões existenciais em caso
de futura incapacidade. Por outro lado, são formuladas críticas ao instrumento, tais como
(i) a sua relativa irrevocabilidade, considerando que, caso o declarante se torne relativa
ou absolutamente incapaz, será observada a vontade manifestada em circunstâncias
pretéritas, ainda que já não corresponda à sua real intenção; (ii) a possibilidade de os
avanços tecnológicos alterarem de tal forma as circunstâncias fáticas que, se pudesse
decidir quando da execução da diretiva antecipada, o declarante decidiria de forma
diversa; nesse ponto, Rodotà ressalva a possibilidade de serem afastados os efeitos
da prévia declaração de vontade quando se verificar considerável progresso médico
na matéria; e (iii) caso se trate de enfermidade progressiva, a despeito de sua plena
capacidade quando da celebração da diretiva antecipada, o declarante já não se encontre
isento da influência de tais circunstâncias ao optar pelo não prolongamento artificial
de sua vida.
A despeito da grande controvérsia envolvendo as diretivas antecipadas em vida,
tem-se que as situações mais delicadas se consubstanciam nas hipóteses em que o paciente
se encontra inconsciente, não tendo feito qualquer declaração prévia de vontade quanto

52
Na definição de Gabriel Furtado: “Pode-se definir testamento vital como um documento elaborado por certa
pessoa enquanto capaz, determinando quais tratamentos deseja receber, ou deixar de receber, acaso/quando vier
a se tornar incapaz de declarar a sua vontade” (FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento
vital. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 2, p. 2, abr./jun. 2013. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-
content/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf>. Data de acesso: 04 jun. 2018).
53
Confira-se: “Situação que também não deveria ensejar controvérsia é a da recusa prévia a certos tratamentos
voltados ao prolongamento temporário da existência biológica. Toda pessoa possui, como legítimo exercício do
seu direito a autodeterminação, a possibilidade de manifestar sua vontade recusando-se, antecipadamente, a se
submeter a terapias voltadas à conservação artificial de suas funções vitais, especialmente quando as chances de
cura são nulas ou altamente remotas – hipótese à qual os italianos reservam a emblemática expressão accanimento
terapeutico, em alusão ao esforço canino, obstinado, sacrificante pelo prolongamento da vida” (TEPEDINO,
Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Ibidem, p. 11).
54
Nesse sentido, afirma Bergstein: “Mesmo não sendo obrigatória, recomenda-se seja adotada a escritura pública
como instrumento da declaração antecipada de vontade, justamente em função da fé pública de que goza o
Notário. (...) Essa circunstância confere uma segurança maior aos que vão fazer cumprir os desejos contidos
na declaração, já que a possibilidade de o documento ser uma falsificação, com objetivos quiçá escusos, fica
reduzida a praticamente zero. (...) Também pela mesma razão indica-se seguir a regra pertinente ao testamento
público inscrita no art. 1.864, inciso II, ou seja, realizar o ato, lavrando a escritura, com a presença de duas
testemunhas” (Ibidem, p. 125).
55
Prossegue Bergstein: “Entende-se também importante para o quesito da força probante da escritura anexar
declaração de lavra de médico, de que o declarante encontra-se em perfeito juízo, em posse de todas as faculdades
mentais, podendo, portanto, do ponto de vista da Medicina, praticar livremente aquele ato, em especial para
aqueles indivíduos com idade mais avançada e que podem ter suas capacidades mentais questionadas seja pela
equipe médica, seja por familiares ou eventuais herdeiros” (Ibidem, p. 125).
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
563

à sua intenção de permanecer vivo com o uso de suportes vitais ou não. À semelhança
do procedimento adotado quanto à Nancy Cruzan, investiga-se a vontade presumida
do paciente, mediante análise das manifestações pretéritas e comportamento adotado
pelo indivíduo ao longo de sua vida. Nessa esteira, afirma-se que a vontade presumida
do paciente em estado terminal poderá ser extraída de sua personalidade e trajetória
pessoal.56 Em consequência, parte da doutrina especializada defende seja adotado
critério afetivo na definição do sujeito capaz de apurar a vontade presumida do paciente.
Afirma-se que aqueles que tenham vivenciado a realidade do enfermo e que com este
possuam fortes laços afetivos se encontram mais aptos a avaliar qual seria sua decisão,
se estivesse em condições de opinar.57
Nos termos do artigo 2º, §5º, do Código de Ética Médica, na ausência de diretiva
antecipada firmada pelo paciente e ausentes seus representantes legais, seria exigida a
participação dos Comitês Hospitalares de Bioética, órgão consultivo criado para intervir
nas hipóteses de conflitos éticos no exercício da medicina.58
Conclui-se, portanto, que poderá ser atribuída eficácia às manifestações de von-
tade – prévia ou atual – do paciente terminal, no que se refere à manutenção ou não de
sua vida mediante técnicas e aparelhos artificiais. Para tanto, a declaração deverá ter
sido exarada por paciente plenamente capaz, de forma livre, esclarecida e infor­­mada.
Admite-se, ainda, que a vontade presumida do paciente seja extraída do con­junto de
atos e manifestações que constituem sua trajetória pessoal, sempre que tal con­jun­to
de atos e fatos conduza, de forma inequívoca, à conclusão de que o paciente se com­
portaria de determinada maneira em face de um estado de terminalidade. Por fim,
exige-se, em qualquer das hipóteses, que o exercício do direito à morte digna se limite
aos casos de morte inevitável, em que a adoção de tratamentos médicos somente per-
mitiria o prolongamento artificial da vida, não provocando efetiva cura ou melhora
integral do sujeito.

56
Remeta-se, mais uma vez, à lição de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber: “Mesmo sem um ato formal, é
possível reconstruir a intenção presumida do indivíduo, à luz da sua personalidade, de modo a autorizar a
interrupção de tratamentos artificiais que ele não teria desejado.” (Ibidem, p. 14).
57
É ver-se: “mais do que as pessoas que sejam vinculadas pelo sangue ou pelo matrimônio ao doente, aqueles
que tenham vivenciado de fato a realidade do enfermo, conheçam-no em profundidade, e ainda, mantenham
com ele laços afetivos verdadeiros, estarão mais habilitadas a vislumbrar a integridade do seu perfil, de modo a
melhor interpretar os seus desígnios mais verazes” (SERTÃ, Renato Lima Charnaux. A Distanásia e a Dignidade do
Paciente. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 128).
58
“Surgidos em meados da década de 1960, os Comitês Hospitalares de Bioética (ou Comitês de Bioética Clínica –
CBs) são colegiados multidisciplinares instituídos com o objetivo de discutir dilemas e conflitos morais ocorridos
na prática clínica. Os CBs buscam uma solução prudencial, debatendo de forma plural os pontos relevantes de um
caso concreto, visando sempre a respeitar os direitos fundamentais dos enfermos, seus familiares e dos membros
da equipe de saúde. Suas orientações não são compulsórias, trata-se de um órgão consultivo, que exerce o papel
pedagógico da linguagem no processo de tomada de decisões morais complexas. Sua composição assegura a
diversidade, admitindo membros das mais diversas áreas da saúde e também juristas, teólogos, representantes
dos usuários dos sistemas de saúde e da comunidade, entre outros” (MARTEL, Letícia de Campos Velho.
A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista da EMERJ, 2010, Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista50/Revista50_19.pdf>. p. 411).
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564 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

3 Conclusão
“Nascida em 20 de julho de 1957. Partiu em 11 de janeiro de 1983. Em paz em 26
de setembro de 1990”. A sensível inscrição na lápide de Nancy Cruzan traz à tona os
complexos dilemas jurídicos e morais que envolvem o direito à morte digna. De um lado,
mostra-se unânime a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como
vértice do ordenamento constitucional, e, conseguintemente, o amplo reconhecimento do
direito a uma existência digna, por meio da qual o sujeito possa desenvolver livremente
sua personalidade. A despeito disso, no extremo da vida, muito se debate em relação
ao papel atribuído à autonomia existencial na determinação do tempo adequado da
morte, especialmente quando o prolongamento artificial da vida implica apenas maiores
sofrimentos e turbações ao enfermo. Suscita-se a inviolabilidade do direito à vida em
caráter supostamente absoluto, a afastar qualquer manifestação de vontade do sujeito
no sentido de serem interrompidos os suportes vitais.
Deve-se ter em conta, no entanto, que a dignidade da pessoa humana – princípio
fundante da ordem constitucional brasileira – impõe a releitura de todos os institutos
jurídicos, de modo que sejam atendidos os valores personalista e solidarista que
informam o ordenamento jurídico. Nessa esteira, mesmo a inviolabilidade do direito
à vida deve ser lida e qualificada à luz do princípio fundante, de modo que passe a
corres­ponder ao conceito de vida digna.
Ao que se conclui que, na medida em que a manutenção da existência do paciente
implique insuperável afastamento de sua qualidade de vida, impõe-se seja assegurada
ao sujeito autonomia para a tomada de decisões existenciais, respeitando-se, ainda,
diretivas antecipadas que disponham acerca dos tratamentos aos quais o sujeito deseja
ser submetido ou não. Somente desta forma se dará plena concretização ao princípio da
dignidade da pessoa humana, reconhecendo-se a existência de um direito à morte digna.

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O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO
COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO

CAMILA AGUILEIRA COELHO

Introdução: a expansão dos danos ressarcíveis, o princípio da reparação


integral e o dano da privação de uso
Com o advento da Constituição Federal de 1988, fixou-se a prioridade à proteção
da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF1), o que, em matéria de responsabilidade
civil, ocasionou um giro conceitual, deslocando seu foco da repressão à conduta do
agente para a proteção da vítima do dano injusto.2 O dano tornou-se o elemento central
da responsabilidade civil3 e a reparação integral o seu objetivo primordial.4
A responsabilidade civil passou a se orientar pela preocupação essencial de
garantir à vítima do dano injusto o correspondente ressarcimento, capaz de abranger
toda a extensão dos efeitos danosos. É o que se extrai do princípio da reparação integral,
pedra angular do direito dos danos,5 que se encontra positivado no art. 944 do Código

1
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
III - a dignidade da pessoa humana;”.
2
GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: FRANCESCO, José Roberto
Pacheco Di (Org.). Estudos em homenagem ao professor Sílvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 296.
3
“(...) da responsabilidade civil resulta a obrigação de indemnizar ‘os danos’ sofridos pelo lesado. O dano apresenta-
se por isso como condição essencial da responsabilidade. Por muito censurável que seja o comportamento do
agente, se as coisas correrem bem e ninguém sair lesado, não poderá ele ser sujeito à responsabilidade civil”
(LEITÃO, Luís Manuel de Menezes. Direito das Obrigações: vol. I. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 313).
4
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro.
Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 7, n. 1, 2018. Disponível em: <http://civilistica.com/limites-ao-principio-da-
reparacao-integral/>. Data de acesso: 13 maio 2018.
5
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Artigo 944 do Código Civil: o problema da mitigação do princípio
da reparação integral. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 63, p. 758,
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
570 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Civil6 e possui status constitucional,7 de modo que apenas poderá sofrer mitigação quando
se fizerem presentes outros princípios e valores igualmente relevantes.
O dano causado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídico-econômico anterior­
mente existente entre o agente e a vítima. Surge então uma necessidade fundamental de
se restabelecer esse equilíbrio, o que se procura fazer recolocando-a no status quo ante.
A indenização é proporcional ao dano sofrido, já que o objetivo da indenização – tornar
indene – é reparar o dano o mais completamente possível.8 Indenizar pela metade é
responsabilizar a vítima pelo resto. Limitar a reparação é impor à vítima que suporte o
resto dos prejuízos não indenizados.9 10
Nessa perspectiva, em que todo o dano deve ser reparado, verificou-se um
expressivo aumento das hipóteses de dano ressarcível, que passaram a englobar todo
prejuízo, ainda que decorrente de conduta lícita,11 que não fosse razoável, ponderados
os interesses em jogo à luz da tábua axiológica constitucional.12
Se, por um lado, a expansão quantitativa dos danos ressarcíveis representou
importante conquista, “traz, como consequência, o risco de a responsabilidade civil se
transformar em uma falaciosa panaceia, mediadora dos problemas sociais, ou, pior do
que isso, em um instrumento eficaz de distribuição de riquezas – em ambas as hipóteses
restaria desnaturada a sua função reparatória”.13
O presente artigo destina-se, assim, a demonstrar que o direito de uso é interesse
jurídico merecedor de tutela, de modo que sua ilegítima privação gera dano emergente

2008. Disponível em: <https://www.pge.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=MTI0OQ%>.


2C%2C>. Data de acesso: 13 maio 2018.
6
“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano”.
7
O princípio da reparação integral fundamenta-se, de um lado, no art. 5º, V e X, da Constituição Federal no que
tange à compensação de danos extrapatrimoniais, e, de outro lado, no art. 5º, XXII, da Constituição Federal no
que diz respeito à reparação dos danos patrimoniais. (MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao
princípio da reparação integral no direito brasileiro. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 7, n. 1, 2018. Disponível
em: <http://civilistica.com/limites-ao-principio-da-reparacao-integral/>. Data de acesso: 13 maio 2018).
8
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 120.
9
DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sergio. Comentários ao Novo Código Civil, vol. XIII: da
responsabilidade civil, das preferências e privilégios creditórios. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 332.
10
Como bem destaca Maria Celina Bodin de Moraes, “(...) o problema da responsabilidade civil não traduz outra
exigência senão aquela de determinar – segundo critérios temporais de conveniência – as condições em relação
às quais um dano deve ser suportado por um sujeito ou por outro, isto é, pelo agente causador ou pela própria
vítima” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos
morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 20).
11
Sobre a ressarcibilidade dos danos oriundos de condutas lícitas, esclarece Anderson Schreiber: “Quando a
conduta lesiva não é, a princípio, antijurídica, mas autorizada pelo ordenamento em questão, cumpre ao
magistrado estabelecer a relação de prevalência entre os dois interesses em conflito, definindo, à luz do dado
normativo, as fronteiras entre a atuação legítima de cada qual nas circunstâncias do caso concreto. Violada esta
relação de prevalência, há dano ressarcível.” (SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil:
Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição dos Danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 185).
12
“Modernamente, pois, desvincula-se o conceito de dano da noção de antijuridicidade, adotando-se critérios
mais amplos, que englobam não apenas direitos (absolutos ou relativos), mas também interesses que, porque
considerados dignos de tutela jurídica, quando lesionados, obrigam à sua reparação. Eis aí a tutela ressarcitória
com base na cláusula geral de responsabilidade. (...) indenizável será o evento danoso relevante segundo uma
ponderação dos interesses em jogo à luz dos princípios constitucionais” (BODIN DE MORAES, Maria Celina.
A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In: BODIN DE MORAES,
Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
p. 326).
13
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 43.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
571

autônomo, sem prejuízo do reconhecimento de outras espécies de danos ressarcíveis


decorrentes do mesmo evento lesivo (ex. lucros cessantes e dano moral).
O dano por privação de uso remete a hipóteses em que o titular do bem é
ilegitimamente impedido de auferir os benefícios que sua utilização lhe proporciona.
Admite-se a sua ressarcibilidade sob o fundamento de que a faculdade de usar integra
o aspecto econômico do direito de propriedade. Assim, entende-se que, exercida a
propriedade em atenção à função que lhe é atribuída pelo ordenamento, deve ser
assegurada ao titular a faculdade de usufruir das potencialidades de aproveitamento
do bem.
Para melhor visualização do tema, alude-se ao exemplo em que um casal estaciona
seu automóvel em vaga em frente ao restaurante em que estão jantando, vindo o veículo
a ser atingido por outro que trafegava em alta velocidade na via, causando notáveis
estragos. Nesse caso, além das despesas atinentes ao conserto do automóvel, seria
facultado ao casal pleitear indenização pelos dias em que se viu privado de utilizá-lo?
Semelhante indagação se coloca também nas hipóteses envolvendo a aquisição
de imóvel na planta, em que a construtora atrasa consideravelmente a entrega do bem,
privando seus titulares de utilizá-lo.
Nesses casos, apesar de a jurisprudência nacional reconhecer que a privação de
uso é hipótese fática originadora de danos, sejam materiais ou mesmo morais, sequer
considerar, como se demonstrará a seguir, no regime atual da responsabilidade civil, a
privação de uso configura fonte de danos emergentes autônomos.

1 O direito de uso como interesse jurídico merecedor de tutela


O dano apenas será objeto de tutela pela responsabilidade civil (dano ressarcível)
quando o interesse por ele lesado for merecedor de tutela em abstrato pelo ordenamento
jurídico.14 Ainda que existente um prejuízo, nas hipóteses em que não seja possível extrair
de uma norma jurídica o merecimento de tutela do interesse lesado, inexiste dano em
sentido jurídico.15
Se, por exemplo, durante a fuga, um ladrão tem sua parte no fruto de um roubo
subtraída pelo comparsa, não há que se cogitar da existência de dano ressarcível.
Apesar de ter havido um prejuízo, este não merece tutela, e, portanto, juridicamente
não configura dano.16

14
Como destaca Eduardo Nunes Barbosa, o conceito de merecimento de tutela enuncia que os atos dos particulares
não devem ser valorados segundo se apresentem conforme ao Direito. As situações jurídicas subjetivas devem
ser valoradas positivamente pelos princípios do ordenamento, em uma perspectiva promocional e a partir dos
valores que promovem. (SOUZA, Eduardo Nunes. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no
Direito Civil. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 15, n. 58, p. 75-107, abr./jun. 2014).
15
É o que sustenta Luís Manuel Teles de Menezes Leitão: “(...) entende-se por dano a supressão de uma vantagem
de que o sujeito beneficiava. Essa noção não será, porém, suficiente para definir o dano em termos jurídicos, já que
as vantagens que não sejam juridicamente tuteladas não são susceptíveis de indemnização. O conceito de dano
terá por isso que ser definido num sentido simultaneamente fáctico e normativo, ou seja, como a frustração de
uma utilidade que era objecto de tutela jurídica” (LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações:
vol. I. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 313).
16
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição
dos Danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 160-161.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
572 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A investigação quanto ao enquadramento do dano por privação de uso como dano


emergente autônomo pressupõe, portanto, seja avaliado se o direito de uso é interesse
merecedor de tutela pelo ordenamento jurídico brasileiro.
O art. 1.228 do Código Civil enuncia que “o proprietário tem a faculdade de
usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injusta­
mente a possua ou detenha”. Tais poderes compõem o aspecto estrutural do direito de
propriedade, que se divide entre o núcleo interno ou econômico do domínio (faculdades
de usar, gozar e dispor) e o núcleo externo ou jurídico (que corresponde às ações de
tutela da propriedade).17
A faculdade de usar permite ao titular dar à coisa a destinação econômica que
lhe é própria, isto é, utilizar-se dela sem alteração de sua substância, o que ocorre, por
exemplo, quando o dono habita seu imóvel ou permite que terceiro o faça.18
O direito de uso é objeto de tutela autônoma pelo ordenamento jurídico, ao menos
em três hipóteses.19
A primeira delas refere-se à obrigação do comodatário em mora de pagar aluguel
até efetiva restituição da coisa (art. 582, CC20). Um dos elementos essenciais do contrato
de comodato é a temporariedade,21 de tal modo que a mora do comodatário na devolução
do bem impõe o pagamento de aluguel-pena até a sua restituição, em razão do uso
desautorizado do bem. A obrigação de pagar o referido aluguel tem a natureza jurídica
de cláusula penal e destina-se a compelir o comodatário em mora a restituir o bem o
mais rapidamente possível.22 Ao que se extrai do dispositivo, a intenção é evitar o uso
desautorizado do bem ou, ao menos, coibir o seu prolongamento.
Outra norma que parece se orientar também para impedir o uso desautorizado do
bem é a prevista no art. 37-A da Lei nº 9.514/1997,23 que impõe ao devedor-fiduciante o
pagamento de taxa de ocupação ao proprietário que adquire imóvel objeto da garantia em
hasta pública. À semelhança do que ocorre com a norma prevista para o comodatário em
mora, o dispositivo parece se orientar a compensar o adquirente pelo tempo em que foi
impedido de utilizar o bem, do momento da aquisição até sua efetiva imissão na posse.

17
TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de
Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 269.
18
VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil Comentado, vol. XII. São Paulo: Atlas, 2003. p. 186.
19
Além das três hipóteses de que se tratará a seguir, Rodrigo da Guia Silva destaca ainda que, na seara possessória,
a tutela do uso estaria também consagrada no art. 555, I, do CPC, que faculta ao possuidor turbado ou esbulhado
cumular o pedido possessório com a condenação em perdas e danos decorrentes do evento. (SILVA, Rodrigo da
Guia. Danos por privação do uso: estudo de responsabilidade civil à luz do paradigma do dano injusto. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 107, p. 94, set./out. 2016).
20
Art. 582. O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-
la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário
constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo
comodante.
21
Como adverte Caio Mário da Silva Pereira, “se for perpétuo, deixa de ser empréstimo, e passa a doação”
(PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. III. 21. ed. atual. por Caitlin Mulholland. Rio de
Janeiro: Gen/Forense, 2017. p. 238).
22
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado
conforme a Constituição da República: v. 2. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 302-303.
23
Art. 37-A. O devedor fiduciante pagará ao credor fiduciário, ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de
ocupação do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a 1% (um por cento) do valor a que se refere
o inciso VI ou o parágrafo único do art. 24 desta Lei, computado e exigível desde a data da consolidação da
propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores, vier a ser
imitido na posse do imóvel.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
573

É esse o entendimento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça ao consignar


que “a mens legis, ao determinar e disciplinar a fixação da taxa de ocupação, tem por
objetivo compensar o novo proprietário em razão do tempo em que se vê privado da
posse do bem adquirido, cabendo ao antigo devedor fiduciante, sob pena de evidente
enriquecimento sem causa, desembolsar o valor correspondente ao período no qual,
mesmo sem título legítimo, ainda usufrui do imóvel”.24
Outra hipótese em que o direito de uso é objeto de tutela autônoma no ordenamento
jurídico brasileiro é a prevista no art. 15-A do Decreto-Lei nº 3.365/1941,25 que prevê o
pagamento de juros compensatórios ao proprietário desde a imissão na posse do Poder
Público em sede de desapropriação.
Os juros compensatórios são aqueles devidos pelo expropriante a título de
compensação pela ocorrência da imissão provisória e antecipada na posse do bem.26
Ou seja, sua incidência justifica-se pelo fato de que o expropriado não pode mais usar
o bem desde o deferimento da imissão na posse da entidade expropriante, sem que
receba a contraprestação correspondente. Nesse sentido é a orientação adotada pelo
Supremo Tribunal Federal, como se extrai do voto proferido pelo Min. Moreira Alves no
julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Constitucionalidade nº 2.332-2/DF:

(...) a jurisprudência desta Corte (...) com base, sem dúvida, na necessidade de observância
desse princípio constitucional [princípio da prévia e justa indenização], se fixou no sentido
de que cabem os juros compensatórios independente de o imóvel desapropriado estar, ou
não, produzindo renda (e o Ministro Rodrigues Alckmin, no RE 85.704 (RTJ 83/266 e segs.),
bem acentuou que isso decorria da consideração ‘de que, já paga a indenização – como o
devera ser – ao tempo da ocupação do imóvel, o capital que deveria, desde essa ocasião,
substituir o bem no patrimônio dos expropriados, produziria rendas – exatamente as
rendas que os juros compensatórios representarão’).27

Todas essas hipóteses não deixam dúvidas de que o ordenamento jurídico


comporta a proteção do titular pela privação do uso, independentemente da comprovação
da existência de prejuízos em concreto.
Não obstante, os mecanismos protetivos existentes não comportam todas as
hipóteses em que há a ilegítima privação do uso, fazendo-se necessário o recurso à
responsabilidade civil.28

24
Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1.328.656/GO, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, j.: 16.08.2012,
DJe: 18.09.2012. No mesmo sentido: Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1.622.102/SP, Rel. Min. Luis
Felipe Salomão, 4ª Turma, j.: 15.09.2016, DJe: 11.10.2016.
25
Art. 15-A No caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse
social, inclusive para fins de reforma agrária, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do
bem, fixado na sentença, expressos em termos reais, incidirão juros compensatórios de até seis por cento ao
ano sobre o valor da diferença eventualmente apurada, a contar da imissão na posse, vedado o cálculo de juros
compostos.
26
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
p. 762.
27
Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar na Ação Direta de Constitucionalidade nº 2.332-2/DF, Rel. Min.
Moreira Alves, Tribunal Pleno, j.: 05.09.2001, Pub.: 02.04.2004.
28
Muito embora a responsabilidade civil seja um importante instrumento para assegurar o ressarcimento cabível
à vítima do dano por privação de uso, esta não esgota as fontes geradoras de tal obrigação de indenizar, sendo
oportuno recorrer-se ainda ao enriquecimento sem causa ou mesmo à compensação pelo lucro da intervenção
aferido por terceiro. Para demonstrar a aplicabilidade de tais institutos para a solução de tais danos, Aline Terra
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
574 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Importante destacar, contudo, que, em atenção ao §1º do art. 1.228 do Código Civil,
o direito de uso apenas será objeto de tutela pela responsabilidade civil se a propriedade
for exercida por seu titular de acordo com suas finalidades econômicas e sociais.29
Como destacam Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, a proteção assegurada
pelo ordenamento jurídico ao direito de propriedade não tem incidência nos casos em
que a propriedade não atenda a sua função social. Ou seja, quando não se conforme aos
interesses sociais relevantes cujo atendimento representa o próprio título de atribuição
de poderes ao titular do domínio.30
Ademais, importante seja a referida privação ilegítima. Ou seja, apenas nos casos
em que esta não estiver amparada em interesse juridicamente relevante do causador do
dano é que ensejará reparação.
Sobre a injustiça da privação, Aline Terra de Miranda Valverde observa que quando
a conduta do agente é legítima e merecedora de tutela, eventuais danos sofridos não
serão injustos, como seria o caso da apreensão de veículo por autoridade policial em
razão do descumprimento de normas de trânsito ou do fechamento de estacionamento
particular após o horário de funcionamento.31 32

2 O dano emergente autônomo oriundo da privação de uso


Como o direito de uso integra o núcleo econômico do direito de propriedade,
possuindo expressão pecuniária, defende-se que a ilegítima privação do uso de um bem
por seu titular seria fonte de dano emergente autônomo.

alude a exemplo em que “o dono de casa de veraneio entrega as chaves do imóvel a amigo para que faça a
manutenção durante o mês em que viajará de férias com a família para o exterior. Imagine-se, ainda, que este
amigo aproveite-se da ausência do proprietário, ocupe a casa com sua própria família, e passe a usá-la e desfrutar
de todos os seus benefícios.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento
por intervenção? Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da
UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3, 3º quadrimestre de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>).
29
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de
quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e
de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das
águas”.
30
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da
Faculdade de Direito de Campos, ano VI, n. 6, p. 107, jun. 2005. Sobre a função social da propriedade, veja-se ainda:
TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de
Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 314-320.
31
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica
Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3,
3º quadrimestre de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>.
32
Conforme ressalta Anderson Schreiber, a noção de dano injusto transcende “a mera tutela em abstrato do
interesse alegadamente lesado, depende da ocorrência de violação à área concreta de atuação legítima deste
mesmo interesse, área que somente pode ser definida frente ao interesse lesivo. Isto implica em se analisar,
diante de qualquer pedido de reparação, o ordenamento jurídico como um todo, no intuito de determinar (i) se o
interesse alegadamente lesado é merecedor de tutela em abstrato; e (ii) se o interesse é concretamente merecedor
de tutela diante da interferência representada pelo interesse lesivo. Nesta segunda etapa, é dado naturalmente
relevante o fato de ser o interesse lesivo tutelado ou não pelo ordenamento jurídico, porque, enquanto no
primeiro caso, exigir-se-á uma efetiva ponderação judicial, no segundo, parte-se da ponderação previamente
realizada pelo próprio legislador, ainda que sobre tal ponderação possa o juiz exercer certo controle de validade
e adequação.” (SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 158).
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
575

A concepção por trás dessa ideia é a de que o indivíduo que adquire o domínio
sobre determinada coisa (ou outro direito real ou obrigacional a ele correlato) passa a
titularizar a prerrogativa de usar (ou não) o bem sem interferências alheias, o que, por si
só, corresponderia a uma vantagem patrimonial, que deve ser ressarcida quando afetada.
É o que sugere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ao aduzir que “entre os danos
patrimoniais, inclui-se naturalmente a privação do uso das coisas ou prestações, como
sucede no caso de alguém ser privado da utilização de um veículo seu (...). Efectivamente,
o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que sua
privação constitui naturalmente um dano”.33
No mesmo sentido, propõe Jaime Santos Briz que, ao adquirir um veículo, o
proprietário pretende tê-lo sempre à sua disposição para lhe proporcionar não apenas
comodidade, como também economia de tempo e agilidade no desempenho de suas
obrigações profissionais ou no desfrute de atividades de lazer. Desse modo, não se pode
negar que a privação desse uso tem valor econômico.34
Para António Santos Abrantes Geraldes, entre a total destruição de uma coisa e
a privação temporária do seu uso, a diferença é meramente quantitativa, impondo-se a
reparação ao lesado também nessa hipótese.35 Segundo sustenta:

raramente será indiferente para o lesado a manutenção integral intangível do uso do


bem ou a sua privação durante um determinado período de tempo. (...) a privação do
uso de um bem que não tenha sido prontamente substituído por outro com semelhantes
características ou utilidades (ou colmatada com a atribuição imediata de um quantitativo
destinado a suprir a sua falta) determina na esfera dos poderes materiais do lesado uma
lacuna insusceptível de ser “naturalmente” reconstituída.36 37

Complementa ainda Paulo Mota Pinto que “o ‘dano da privação do uso’ de que se
trata aqui é, enquanto prejuízo resultante da falta de utilização de um bem que integra
o patrimônio, e avaliável em dinheiro, naturalmente um dano patrimonial”.38
Para ilustrar o dano material advindo da ilegítima privação da faculdade de
usar, António Geraldes destaca que, no caso de um automóvel, quer seja este utilizado
como instrumento de trabalho, quer como simples bem de consumo, o veículo tem um
determinado período de vida útil cujo decurso reflete na redução de seu valor comercial
ou corrente, sem qualquer vinculação à utilização que lhe é empregada, sendo possível

33
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das obrigações: vol. I. 2. ed. Coimbra, Almedina, 2002. p. 316.
34
BRIZ, Jaime Santos. La responsabilidad civil: derecho sustantivo y derecho procesal. 3. ed. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1981. p. 326.
35
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 31.
36
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 16.
37
Além dos autores aqui mencionados, também sustentam que a privação ilegítima do direito de uso gera dano
emergente autônomo: Mario Júlio de Almeida Costa (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações.
7. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 515), Américo Marcelino (MARCELINO, Américo. Acidentes de viação e
responsabilidade civil. 6. ed. Lisboa: Petrony, 2003. p. 237) e Júlio Manuel Vieira Gomes (GOMES, Júlio Manuel
Vieira. O dano da privação do uso. Revista de Direito e Economia, Coimbra: Universidade de Coimbra, ano XII,
p. 169-239, 1986).
38
PINTO, Paulo Mota. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo: v. 1. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008. p. 578. Apesar de reconhecer que esta seria uma espécie de dano material, o autor questiona seu
enquadramento como dano autônomo, como se destacará adiante.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
576 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

encontrar para um determinado período de tempo a quota-parte da sua desvalorização.


Assim, segundo propõe, a privação do uso de um automóvel, desacompanhada de
sua substituição por outro ou do pagamento de uma quantia suficiente para alcançar
o mesmo efeito, refletiria um corte definitivo e irrecuperável de uma fatia dos poderes
inerentes ao proprietário.39
Apesar de a produção doutrinária nacional ainda ser muito incipiente sobre o
tema,40 pode-se distinguir duas principais linhas de entendimento sobre a viabilidade
de um dano emergente autônomo pela privação de uso.
A primeira corrente doutrinária, capitaneada por Aline de Miranda Valverde
Terra, amparada nas lições de Paulo Mota Pinto, defende que a privação da possibilidade
de uso não encerra, em si mesma, um dano autônomo, representando apenas uma
fonte possível de dano, que poderá ser de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, a
depender do tipo de vantagem da qual o titular do bem foi privado.41
Isso porque, em sua concepção, “a relevância não reside, pois, na capacidade de
decisão exclusiva quanto à utilização do bem, mas na concreta privação do uso”. Desse
modo, sustenta que seria necessária “para a configuração do dano, a prova da lesão a
interesse merecedor de tutela causada pela supressão de uma efetiva vantagem que o
titular auferiria com o uso do bem”.42
O posicionamento adotado pela autora é fundamentado por Paulo Mota Pinto
com base no seguinte raciocínio:

39
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 71.
40
Note-se que a jurisprudência nacional invoca frequentemente a privação de uso como substrato fático para
a concessão de indenização por lucros cessantes e danos morais, sem examinar, contudo, a possibilidade de
existência de danos emergentes autônomos em decorrência da indisponibilidade de bem. Dentre tais casos,
destacam-se aqueles que envolvem (i) o consumidor que adquire produto durável e é impossibilitado de utilizá-
lo em razão de vícios que comprometem sua qualidade e segurança (Veja-se, dentre muitos outros: Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, Recurso Cível nº 71006663017, 2ª Turma Recursal Cível, Rel. Juíza Vivian Cristina
Angonese Spengler, j.: 12.07.2017, Pub.: 14.07.2017; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Apelação
nº 0058885-48.2013.8.19.0001, 25ª Câmara Cível, Rel. Des. Andrea Fortuna Teixeira, j.: 11.12.2014, Pub.: 16.12.2014);
(ii) o adquirente de automóvel zero quilômetro que se vê privado de usá-lo em razão de seguidos vícios (Veja-se,
dentre muitos outros: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Apelação nº 0016120-14.2003.8.19.0001,
9ª Câmara Cível, Rel. Des. Paulo Mauricio Pereira, j.: 13.02.2007, Pub.: 02.03.2007; Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais, Apelação nº 1.0145.12.033619-6/001, 16ª Câmara Cível, Rel. Des. Otávio de Abreu Portes,
j.: 18.09.2014, Pub.: 29.09.2014) e (iii) adquirente de imóvel novo que se depara com a indisponibilidade de
tal bem em razão do atraso da entrega pelo alienante (Veja-se, dentre muitos outros: Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios, Apelação nº 0033830-76.2014.8.07.0007, 2ª Turma Cível, Rel. Des. Gislene Pinheiro,
j.: 06.07.2016, Pub.: 20.07.2016; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação nº 1007820-57.2015.8.26.0348,
2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Joaquim dos Santos, j.: 21.03.2017, Pub.: 27.03.2017).
41
“Apenas a análise do caso concreto permitirá identificar a natureza do dano causado ao titular do bem, de acordo
com a vantagem que lhe foi suprimida. Na privação do uso de um veículo, por exemplo, poderá haver dano
emergente caso seu titular, em razão de ter ficado impedido de sua utilização para seus deslocamentos rotineiros,
tenha tido que se valer de meio de transporte mais oneroso, como táxi ou veículo alugado; configurar-se-á o lucro
cessante, se o dono do veículo não puder usá-lo para fins profissionais, como no caso de um táxi ou outro veículo
empregado em transporte de carga; por fim, restará configurado o dano moral, caso o titular do veículo não o
tenha podido usar para levar sua filha à igreja no dia do seu casamento, conforme já havia programado” (TERRA,
Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica Direito
e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3, 3º quadrimestre
de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>).
42
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica
Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3,
3º quadrimestre de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
577

Pensamos, pois, que a privação dessas concretas vantagens, e não logo a perturbação da
faculdade de utilização que integra o direito de propriedade, é que importará já um dano,
autonomizável da ilicitude por afectação das abstratas possibilidade de uso – um dano,
portanto, bem mais próximo da ideia de vantagens que teriam podido ser fruídas depois
do evento lesivo, e, assim, de vantagens ou de um “lucro” (em sentido amplo) cessante,
do que de uma perda ou dano emergente em posições actualizadas do lesado.43

Embora, como se verá mais adiante, não se negue que na hipótese concreta da qual
se extraia a privação ilegítima do direito de uso possam ser configurados prejuízos de
natureza extrapatrimonial ou lucros cessantes, em paralelo aos danos emergentes dela
decorrentes, esta corrente não parece considerar que o ordenamento jurídico brasileiro
prevê diversos mecanismos de tutela do direito de uso sem que seja exigida, para tanto,
a prova de prejuízos individualizados.
Some-se a isso que a prova da ocorrência de danos efetivos, para além dos que
emergem da simples privação do uso, se mostra frequentemente inviável. Desse modo,
a adoção de tal entendimento, que condiciona o reconhecimento do dano à concreta
demonstração de despesas ou à perda de receitas diretamente derivadas da restrição
da faculdade de usar, leva, na maior parte das vezes, à sucumbência da pretensão.44
Outra parte da doutrina, contudo, admite que a ilegítima privação do uso em si
já seria suficiente a ensejar dano emergente ressarcível.
Com efeito, conforme destaca Rodrigo da Guia Silva, se o ordenamento confere
tutela autônoma à faculdade de usar, seria contraditório supor que a sua supressão
temporária somente traduziria dano ressarcível se provados outros prejuízos.45 Segundo
propõe:

Condicionar a reparação do dano emergente autônomo pela privação do uso à prova


de outros prejuízos equivaleria, em última instância, a instituir uma malfada tarifação
dos danos ressarcíveis, como se ao intérprete-aplicador do direito se conferisse uma
discricionária possibilidade de gradação da importância dos danos em razão do seu vulto
ou da sua importância.46

43
PINTO, Paulo Mota. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo: v. 1. Coimbra: Coimbra Editora,
2008. p. 594-596.
44
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 65.
45
Embora sem manifestar expressamente sua posição, Gisela Sampaio da Cruz Guedes parece filiar-se a essa
orientação ao discorrer sobre o tema (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom-senso ao
postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 149-160). Apesar de não
desenvolver o conceito, Caio Mário da Silva Pereira também parece reconhecer a autonomia do dano por
privação de uso, ao afirmar: “O problema da responsabilidade civil, no campo automobilístico, atrai a atenção
para um outro aspecto, que foi considerado por Santos Briz: danos nos veículos por acidentes de circulação.
(...) A reparação mediante a entrega de novo carro ou conserto integral, que Santos Briz ‘repetidamente’ alude
como ‘restituição in natura’, não representa o ressarcimento integral. Há que levar em consideração os gastos
que o prejudicado suportou, ficando privado dele: perda das vantagens de seu uso, necessidade de alugar outro,
privação dos rendimentos se se trata de profissional (taxista, por exemplo).” (PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Responsabilidade Civil. 10. ed. atual. por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: GZ, 2012. p. 300).
46
SILVA, Rodrigo da Guia. Danos por privação do uso: estudo de responsabilidade civil à luz do paradigma do
dano injusto. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 107, p. 99, set./out. 2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
578 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Essa orientação é amparada nas lições de António Santos Abrantes Geraldes, que,
em obra dedicada ao estudo do tema, assevera que a formulação de juízos assentes em
padrões de normalidade permite considerar que a privação de uso comporta um prejuízo
efetivo na esfera jurídica do lesado. Sendo a disponibilidade material dos bens um dos
principais reflexos do direito de propriedade, apenas em hipóteses excepcionais será
possível afirmar que a perda temporária dos poderes de fruição por parte do titular da
coisa não causou danos significativos aptos a gerar a obrigação de indenizar.47
E, nestes casos, caberá ao agente causador da privação de uso o ônus de comprovar
que desta não advieram prejuízos para seu titular.48
Com vistas a reforçar a ideia, o autor remete ainda a hipóteses em que a vítima
de um dano em seu automóvel, por força da indisponibilidade do bem, recorre ao
aluguel de veículo. Em tais hipóteses, as despesas oriundas do aluguel são enquadradas,
sem qualquer reticência, como danos emergentes, sendo reconhecida a sua plena
compensação pela jurisprudência nacional.49 Desse modo, não haveria motivo plausível
para que não se reconhecesse a possibilidade de concessão de reparação semelhante nas
hipóteses em que o lesado por opção, por incapacidade ou por simples ignorância de
seus direitos não recorreu à locação de automóvel semelhante.50
Esta última orientação parece mais consentânea com o atual estágio da responsa­
bilidade civil, melhor atendendo à concretização do princípio da reparação integral da
vítima, que se orienta ao ressarcimento de todo o dano injusto.51
Não obstante, é importante destacar que, apesar de se admitir que a simples
privação ilegítima do direito de uso gera dano emergente autônomo, não se nega que
há hipóteses em que o titular do bem efetivamente não fazia uso dele ou não pretendia
fazê-lo. Nesse caso, não há que se falar em dano por privação ilegítima do uso.
Alude-se, a título ilustrativo, à hipótese em que o proprietário de um veículo
deixa seu carro estacionado na garagem durante viagem para o exterior com a família,
vindo o automóvel a sofrer abalroamento que lhe causa relevantes estragos. Considere-
se que o veículo vem a ser deslocado para a oficina para reparos (com autorização do
proprietário lesado), sendo o conserto concluído no curso da viagem do proprietário,
com o retorno do veículo à garagem. Haveria dano por privação de uso a ser ressarcido
pelo agente lesante?

47
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 16.
48
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 83.
49
Nesse sentido, por exemplo: Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Apelação Cível nº 3039767, 8ª Câmara
Cível, Rel. Des. J.J. Guimarães da Costa, j.: 24.11.2005, Pub.: 30.11.2005; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
Apelação Cível nº 15231100, 11ª Câmara Cível, Rel. Des. Luciane R. C. Ludovico, j.: 18.11.2016, Pub.: 31.01.2017.
50
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 82-83.
51
Oportuno destacar que, a despeito de se considerar que a privação de uso gera dano emergente autônomo,
concorda-se com a afirmação feita por Aline Terra no sentido de que a substituição do bem de cujo uso é privado
por outro de igual natureza e função afasta o direito do lesado à obtenção de reparação (TERRA, Aline de
Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica Direito e Política,
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3, 3º quadrimestre de 2014.
Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>). Não porque o dano não se teria configurado, como propõe a
autora, mas porque a substituição do bem representou uma forma de reparação.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
579

É certo que “a opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes
do proprietário, também afetada pela privação do bem”.52 53 No entanto, no exemplo em
referência, o titular parece ter optado previamente por não exercer a prerrogativa de usar,
de maneira que a indisponibilidade do bem se deu por causa anterior ao abalroamento.
Desse modo, o abalroamento do veículo funcionou, nessa hipótese, como causa
virtual do dano,54 55 inexistindo nexo de causalidade entre o abalroamento e a privação
de uso.
Como já mencionado, o dano é elemento indispensável da responsabilidade civil.
E a causa virtual não causa dano algum, pois este é produzido pela causa real. Não há
nexo causal a ligar o dano à conduta do agente da causa virtual, inexistindo, portanto,
obrigação de indenizar.56

3 Privação de uso e lucros cessantes


A configuração de dano emergente autônomo não obsta que o mesmo evento
possa dar ensejo ao ressarcimento de lucros cessantes incorridos pelo lesado. É o que
sustenta, com efeito, António Santos Abrantes Geraldes:

Provando-se a existência de prejuízos efectivos decorrentes da imobilização de um veículo,


designadamente por causa de atividades que deixaram de ser exercidas, de receitas que
deixaram de ser auferidas ou despesas acrescidas, terá o lesado o direito de indemnização
de acordo com a aplicação directa da teoria da diferença, considerando não apenas os
danos emergentes como ainda os lucros cessantes.57

52
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 73.
53
Como pondera, porém, Gustavo Tepedino o desatendimento da função social no caso concreto poderá implicar
que o não uso da propriedade justifique a perda da proteção possessória por parte do seu titular ou torne a
propriedade suscetível à desapropriação para fins de reforma agrária. (TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao
Código Civil: v. 14, Direito das Coisas. Coord. Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 246).
Rodrigo da Guia Silva destaca, contudo, que não obstante os impactos decorrentes da função social, quando
desejou sancionar negativamente o não uso, o legislador o fez expressamente (arts. 1.389, III e 1.410, VIII do
Código Civil), de maneira que a regra geral no Direito brasileiro parece ser a que reconhece a legitimidade do
não uso (SILVA, Rodrigo da Guia. Aspectos Controvertidos dos Danos por Privação do Uso. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, v. 115, p. 282, jan./fev. 2018).
54
A aplicação da causa virtual à hipótese aqui referida foi suscitada originalmente por Rodrigo da Guia Silva, ideia
à qual nos filiamos (SILVA, Rodrigo da Guia. Aspectos Controvertidos dos Danos por Privação do Uso. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo v. 115, p. 279, jan./fev. 2018).
55
Conforme esclarece Gisela Sampaio da Cruz Guedes, “quando um fato provoca um determinado dano, o qual
teria sido causado por outro fato se o primeiro não tivesse ocorrido, diz-se que o 1º fato é a causa operante ou
real do dano, ao passo que o 2º, apenas a causa hipotética ou virtual. Nesse sentido, causa hipotética ou virtual é,
portanto, aquela causa que não chegou a provocar o dano, porque este foi, em outras circunstâncias, produzido
pela causa real ou operante” (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O Problema do Nexo Causal na Responsabilidade
Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 208).
56
“Se a causa virtual poderia ter ocasionado o dano, o certo é que não foi ela que o causou efetivamente. Isto basta
para logo se poder concluir que não é possível estabelecer um nexo entre ela e o dano: este, afinal, foi produzido
pela causa real, não pela causa virtual” (NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, v. I. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 659).
57
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 90.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
580 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

A necessidade de cumular as duas espécies de dano material parece clara em casos


como aqueles que envolvem motorista do aplicativo “Uber” que vem a ser privado de
seu automóvel por força de colisão culposa de terceiro. Tratando-se de um veículo de
passeio normal, em regra, são utilizados por seu titular como instrumento de trabalho
e de lazer.
Em hipóteses similares, envolvendo, porém, taxistas, a jurisprudência nacional,
via de regra, restringe a indenização pelos danos materiais incorridos pela vítima aos
lucros cessantes. Nesse sentido:

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – LUCROS CESSANTES – SINISTRO AUTOMOBILÍSTICO –


TÁXI – PROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS INDENIZATÓRIOS. Lucros cessantes constitui a
expressão usada para distinguir os lucros de que fomos privados, e que deveriam vir ao
nosso patrimônio, em virtude de impedimento decorrente de fato ou ato não acontecido
ou praticado por nossa vontade. São, assim, os ganhos que eram certos ou próprios de
nosso direito, que foram frustrados por ato alheio ou fato de outrem; Hipótese na qual o
veículo dos autores, táxi, ficou por tempo considerável em reparos, impedindo o exercício
do seu labor regular; Sentença parcialmente reformada.58
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. VEÍCULO UTILIZADO COMO TÁXI. DIAS PARALISADOS.
LUCROS CESSANTES. RENDA MÉDIA. VALOR DEVIDO. A imobilização do veículo de
um taxista acarreta prejuízos ao motorista. E, nesta esteira, nada mais justo do que o pedido
de reposição de quantia que deixou de auferir no período em que deixou de trabalhar.59

Rodrigo da Guia Silva, com efeito, defende que em casos como esse, em que o
bem é utilizado para auferir receita, não seria devida indenização por danos emergentes.
Segundo sustenta, a presunção relativa de dano emergente oriundo da indisponibilidade
temporária do bem pressuporia que o titular faria uso normal da coisa durante a sua vida
útil, caso a tivesse à disposição. Desse modo, caso seja possível à vítima comprovar a
existência de lucros cessantes, não haveria razão para presumir que empregaria também
a coisa em atividades diversas daquela em que auferiria lucro.60
Importante salientar, contudo, que, como destaca Gisela Sampaio da Cruz Guedes,
apesar de serem duas facetas do dano material, os danos emergentes e os lucros cessantes
cumprem funções diversas no ordenamento jurídico, complementando-se, de maneira a
abranger a indenização do prejuízo sofrido pela vítima em toda a sua extensão. Enquanto
o dano emergente compreende a diminuição no patrimônio da vítima, o lucro cessante
atua para que se considere também o seu não aumento, porque, para efeitos de reparação
do dano, o aumento do passivo (dano emergente) é tão prejudicial para a vítima quanto
a sua não diminuição (lucro cessante).61
Desse modo, em atenção ao princípio da reparação integral, faz-se mister seja
assegurada indenização por danos emergentes advindos da privação de uso também

58
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº 1.0024.09.516367-1/001, 12ª Câmara Cível, Rel. Des.
Domingos Coelho, j.: 13.03.2013, Pub.: 22.03.2013.
59
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº 1.701.09.286904-2/002, 10ª Câmara Cível, Rel. Des. Pereira
da Silva, j.: 16.07.2013, Pub.: 26.07.2013.
60
SILVA, Rodrigo da Guia. Danos por privação do uso: estudo de responsabilidade civil à luz do paradigma do
dano injusto. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 107, p. 101, set./out. 2016.
61
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 68.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
581

em todos os casos em que, com base no critério da probabilidade objetiva, seja possível
inferir a ocorrência de lucros cessantes.62 Seria a hipótese, por exemplo, de investidor
que se vê privado do uso do imóvel habitualmente utilizado para locação, em razão
de turbação ou esbulho. Muito embora seja possível demonstrar a existência de lucros
cessantes representados pelos valores que deixou de lucrar pelo tempo em que se viu
impedido de oferecê-lo a locação, necessário ainda indenizá-lo pelo tempo em que se
viu privado de exercer quaisquer dos poderes inerentes à posse.
Não se deve perder de vista, contudo, que, enquanto o dano emergente estará
sempre associado à privação de uso, o lucro cessante pode originar-se desta ou não.

4 Privação de uso e danos extrapatrimoniais


Assim como ocorre com relação aos lucros cessantes, é possível que, paralelamente
ao dano emergente, as circunstâncias envolvidas no caso concreto ensejem a configuração
de danos morais por força da privação de uso.
Não se pode, porém, extrair qualquer vinculação direta entre a privação de uso
e danos morais, de tal modo que os requisitos para sua configuração em hipóteses
envolvendo tal restrição são os mesmos exigidos para qualquer outro caso em que se
requeira sua compensação.63
A título exemplificativo, cite-se caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul que envolvia empresa depositária de veículos, credenciada ao Detran, que
condicionou a devolução de veículo resgatado após furto ao pagamento de despesas de
guincho, apesar de lhe ter sido apresentado auto de restituição expedido pela autoridade
policial, e ser inaplicável a cobrança de tais valores na espécie. O bem somente foi
devolvido ao autor cinco meses após a expedição da ordem de restituição.64

62
Para que o lucro cessante oriundo da privação de uso possa gerar a obrigação de indenizar, faz-se mister seja
demonstrada pelo lesado a existência de uma probabilidade objetiva de que ele viesse a aferir tal receita como
resultado do desenvolvimento normal dos acontecimentos, associados às circunstâncias peculiares do caso
concreto. Para, autorizadamente, se computar o lucro cessante, a mera possibilidade não basta, mas também não
se exige a certeza absoluta. Nesse sentido: DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. XI ed. atual. por Rui
Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 978. Esse é também o entendimento manifestado pelo Superior
Tribunal de Justiça. Veja-se, entre muitos outros: Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1.655.090/
MA, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j.: 04.04.2017, DJe: 10.04.2017; Superior Tribunal de Justiça,
Recurso Especial nº 1.553.790/PE, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j.: 25/10/2016, DJe: 09.11.2016;
Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 846.455/MS, Rel. Min. Sidnei Benetti, 3ª Turma, j.: 10.03.2009,
DJe: 22.04.2009.
63
O dano moral é a lesão à dignidade da pessoa humana, de modo que “toda e qualquer circunstância que atinja
o ser humano em sua condição humana, que (mesmo longinquamente) pretenda tê-lo como objeto, que negue
sua qualidade de pessoa, será automaticamente considerada violadora de sua personalidade e, se concretizada,
causadora de dano moral” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 188). A dignidade da pessoa humana se
especifica através de seus corolários representados pelos princípios da igualdade, da liberdade, da solidariedade
social ou familiar e da integridade psicofísica, previstos na Constituição Federal. Assim, haverá dano moral
sempre que houver lesão a algum desses aspectos que compõem ou formam a dignidade, isto é, quando houver
violação à liberdade, à igualdade, à solidariedade ou à integridade psicofísica (BODIN DE MORAES, Maria
Celina. Danos morais em família? Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade civil. Revista Forense, ano 102,
vol. 386, p. 189, jul./ago. 2006).
64
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Apelação nº 0233975-97.2015.8.21.7000, 9ª Câmara Cível, Rel.
Des. Miguel Ângelo da Silva, j.: 10.08.2016, DJ: 15.08.2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
582 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

5 Conclusão
Apesar de as hipóteses que ensejam a configuração do dano por privação de uso
decorrerem de situações corriqueiras, é ainda controversa a sua admissão como dano
autônomo no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, como se demonstrou, a reparação dos danos por privação de uso se
insere perfeitamente dentro do atual regramento da responsabilidade civil, sendo certo
que se trata de um dano ressarcível, de ordem material.
Constatando-se que a faculdade de usar é objeto de tutela autônoma pelo
ordenamento jurídico brasileiro, impede seja reconhecido que sua ilegítima privação gera
o dever de indenizar, especialmente se a propriedade é exercida em atenção à função
social que lhe é conferida pelo ordenamento.
O dano não restará configurado, contudo, nas hipóteses em que o titular do bem
haja optado antecipadamente pela não utilização, em face da relevância negativa da
causa virtual.
Na medida em que tal prejuízo resulta da indisponibilidade de um bem que
integra o patrimônio do lesado e possui expressão econômica, trata-se de um dano
material emergente. Não obstante, as peculiaridades da situação concreta podem indicar
a existência concomitante de lucros cessantes e danos extrapatrimoniais.
As dificuldades em torno do dano da privação de uso não se limitam, contudo,
ao seu enquadramento como dano emergente autônomo, havendo muitas dúvidas e
questionamentos quanto a sua correta quantificação, que merece ser objeto do devido
aprofundamento.

Referências
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responsabilidade civil. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana: Estudos de direito
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

COELHO, Camila Aguileira. O dano da privação de uso como dano emergente autônomo. In: TEPEDINO,
Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum,
2019. p. 569-583. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR
COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA
AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS

PATRICIA FERREIRA ROCHA

Introdução
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a solidariedade passou a ser
considerada um dos fundamentos da República brasileira (arts. 1º, III, e 3º, I), na medida
em que se propõe à construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, contexto
no qual também deve ser inserida a família, local de promoção e valorização de seus
membros, com vistas ao pleno desenvolvimento de suas personalidades.
Neste contexto, a solidariedade familiar se apresenta como a justificativa da
atribuição de direitos e deveres recíprocos, principalmente quanto à assistência moral
e material entre as pessoas que possuem vínculos de parentesco ou conjugalidade entre
si. Esta solidariedade encontra nos alimentos a sua maior expressão dentro do núcleo
familiar, fazendo com que sejam interligados aqueles que não possuem condições de
prover, por si mesmos, o seu sustento, com outros capacitados na satisfação de exigências
mínimas da subsistência digna daqueles.
Tomando por pressuposto o fato de que não é tão somente a mera relação familiar
que impõe o dever de sustento, na medida em que o reconhecimento do direito a
alimentos deve estar alicerçado na presença concreta da necessidade de quem os postula e
na possibilidade da pessoa a quem se pede, em uma relação de estrita proporcionalidade,
passamos a questionar a adequação da utilização da mesma fundamentação no Direito
das Sucessões, quando da atribuição da legítima aos herdeiros necessários. Dito de outra
forma, é preciso investigar se a reserva obrigatória de bens a determinados sucessores
atende aos preceitos contidos na Constituição Federal de 1988, já que ambos os institutos
jurídicos foram criados com a mesma finalidade de promover a solidariedade familiar.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
586 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Com o escopo de se chegar ao resultado esperado, que reflita a temática abordada,


a metodologia adotada será, quanto à natureza, básica, pois objetiva gerar conhecimentos
novos e úteis para o avanço da ciência jurídica. Quanto à abordagem do problema,
será qualitativa, já que preocupada com aspectos da realidade que não podem ser
quantificados. Com relação ao procedimento técnico, a pesquisa será bibliográfica,
utilizando livros e artigos jurídicos publicados em meios convencionais e eletrônicos,
além dos dispositivos legais em vigor sobre a matéria.

1 Breves apontamentos sobre a solidariedade e sua incidência no


âmbito familiar
A família é o primeiro grupamento social em que o homem aparece integrado,
sendo considerado como a base da sociedade e merecedor de proteção especial do Estado.
Nesse sentido, segundo Sá Pereira

Família é a organização social menos extensa e mais espontânea, que a vida humana nos
apresenta. Justamente por ser uma associação é que a família é um elemento semelhante
á sociedade, e como só com elementos semelhantes se constrúe um systema, o elemento
básico da sociedade é a família e não o indivíduo.1

A família, então, é considerada como a célula maior da sociedade, motivo pelo


qual deve o Estado protegê-la como elemento anterior e essencial à sua subsistência,
cabendo, de outro norte, a esse grupamento social fundamental o cumprimento de
deveres próprios para com seus componentes.2 Dessa forma, estando o indivíduo inserido
em uma sociedade, isso implica reconhecer a necessidade de respeito e consideração
mútuos, especialmente em seu núcleo familiar. Nesse sentido, ensina Queiroga que “a
sociabilidade é imprescindível para a perpetuação da espécie humana. Daí o homem
ser considerado um animal gregário, e a família uma criação natural que a sociedade
amolda e aperfeiçoa”.3
Por esta razão, afirma Marco Aurélio da Silva Viana que

Deveria existir entre os homens um profundo sentimento de solidariedade, como


consequência de sua própria natureza. É ele, em si mesmo, incompleto, e só pela união
poderá alcançar o progresso e o bem-estar, o que explica a necessidade de vida em comum,
em regime de dependência com seus pares, caminho para atingir a realização de todo
o seu potencial. Não apenas o instinto, ou a própria fragilidade humana, faz com que
ele busque o convívio social, mas a própria razão, uma vez que só assim, pela soma de
esforços, será completo.4

Essa solidariedade social é reconhecida como um objetivo fundamental da


República Federativa do Brasil pelo art. 3º, I, da Constituição Federal de 1988, no sentido

1
PEREIRA, Virgílio de Sá. Lições de direito de família, 1923, p. 30.
2
BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito civil constitucional, 2003, p. 62
3
QUEIROGA, Antônio Elias de. Curso de direito civil: direito de família, 2011, p. 01.
4
VIANA, Marco Aurélio da Silva. Alguns aspectos da obrigação alimentar. In: CAHALI, Yussef Said; CAHALI,
Francisco José (Coord.). Doutrinas Essenciais: Família e sucessões, vol. V, 2011, p. 781.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
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de construir “uma sociedade livre, justa e solidária”,5 o que, inclui, por evidência, a base
da sociedade, que é a família.
A solidariedade do núcleo familiar deve ser entendida como a atribuição de
direitos e deveres recíprocos, principalmente quanto à assistência moral e material
entre seus membros. Nas palavras de Rolf Madaleno, “a solidariedade é princípio e
oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem
se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação,
ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”.6 Assim é que cada um de seus
compo­nentes é reconhecido como um colaborador na defesa de interesses individuais
e sociais decorrentes das relações familiares, na medida em que os laços afetivos geram
respon­sabilidades e direitos decorrentes do dever de cuidado recíproco. Nesse mesmo
sentido, aduz Itabaina de Oliveira:

A natureza dotou os homens de sentimentos de respeito, de gratidão, de amor para


com aquêles que lhes estão ligados por laços de sangue e estabeleceu entre êles deveres
recíprocos. Essas relações afetivas e morais, fundadas na natureza humana, devem, por
isso mesmo, ser reconhecidas e protegidas pelo direito7.

Ainda sobre o assunto, preciosa a lição de Carlos Alberto Bittar, para quem

É no seio da família que se amolda a personalidade da pessoa, em ambiente de moralidade,


de respeitabilidade recíproca, de afeição e de segurança, permitindo a seus integrantes
o desenvolvimento normal de suas potencialidades. (...) A reunião das pessoas em um
lar é, efetivamente, o centro mais perfeito de aprendizado, de formação espiritual e de
preservação básica, que prepara os seres para a integração social e o exercício natural e
normal de suas potencialidades.8

Uma das maiores expressões da solidariedade familiar se encontra no reconhe­


cimento da obrigação alimentar entre pessoas ligadas por vínculos de parentesco ou
conjugalidade, entendido como o dever que “interliga parentes necessitados e capa­
citados na satisfação de exigências mínimas de subsistência digna”.9
Em que pese caber a cada indivíduo a responsabilidade por sua própria mantença,
com o fruto do seu trabalho, cujo exercício livre é assegurado pela ordem constitucio­nal
e valorizado como um direito social (arts. 5º, inciso XIII, 6º e 9º), não pode se olvidar
que qualquer pessoa, sujeita às vicissitudes da vida, pode se encontrar privada de
recursos ou de meios necessários ao seu sustento, sem que haja relevância a causa dessa
incapacidade, situação em que necessitará da colaboração de outrem para suprir essas
eventualidades. Por esta razão, explica Caio Mário da Silva Pereira que

Quem não pode prover a sua subsistência, nem por isto é deixado à própria sorte. A
sociedade há de propiciar-lhe sobrevivência, através de meios e órgãos estatais ou entidades

5
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm>.
6
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 2013, p. 89.
7
OLIVEIRA, Arthur Vasco Itabaiana de. Tratado de direito das sucessões, vol. 1, 1952, p. 46.
8
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família, 2006, p. 47.
9
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família, 2006, p. 47.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
588 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

particulares. (...) Mas o direito não descura o fato da vinculação da pessoa ao seu próprio
organismo familiar. E impõe, então, aos parentes do necessitado, ou pessoa a ele ligada
por um elo civil, o dever de proporcionar-lhe as condições mínimas de sobrevivência, não
como favor ou generosidade, mas como obrigação judicialmente exigível.10

No próximo tópico aprofundaremos a abordagem sobre a obrigação alimentar e


sua relação com a solidariedade familiar, a partir da análise dos pressupostos para sua
configuração.

2 A solidariedade familiar na obrigação alimentar: uma análise dos


seus pressupostos
Nas palavras de Pontes de Miranda, “a regra é cada qual viver à sua custa”,11 mas
quando uma pessoa não tiver bens e nem puder satisfazer, por seu trabalho, as suas
neces­sidades, em razão de deficiência etária, incapacidade laborativa, enfermidade grave
ou quaisquer outras adversidades da vida, pode lhe ser reconhecido o direito de pedir
àqueles que fazem parte de seu núcleo familiar mais próximo o adimplemento de uma
obrigação visando a sua manutenção e sustento, na graduação e condições estabelecidas
pela lei, o que se denomina obrigação alimentar ou, simplesmente, alimentos.
A expressão alimento tem, juridicamente, uma acepção de mais ampla extensão do
que a da linguagem usual, pois que compreende tudo o que é necessário à manutenção
de uma vida digna, e não somente o imprescindível à nutrição. Nesse sentido, explana
Rolf Madaleno que

Os alimentos são destinados a satisfazer as indigências materiais de sustento, vestuário,


habitação e assistência na enfermidade, e também para responder às requisições de índole
moral e cultural, devendo as prestações atender à condição social e ao estilo de vida do
alimentando, assim como a capacidade econômica do alimentante, e, portanto, amparar
uma ajuda familiar integral.12

O primeiro pressuposto para a existência e aquisição de tal direito é um estado


familiar, advindo de uma relação de parentesco ou conjugalidade, donde emerge a ideia
de cuidado, no sentido mais amplo de assistência e auxílio.13 Quanto ao parentesco,
estabelece o art. 1.696 do Código Civil que o direito à prestação de alimentos é “recíproco
entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais
próximos em grau, uns em falta de outros”, obrigação esta que se transmite, na falta de
ascendentes, “aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos
irmãos, assim germanos como unilaterais”, nos termos do art. 1.697 daquele mesmo
diploma legal.14

10
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – vol. V, 2016, p. 629.
11
MIRANDA. Pontes de. Tratado de direito privado, Tomo IX, 1958, p. 209.
12
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 2013, p. 881.
13
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, vol. 2, p. 74.
14
Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
589

O segundo pressuposto é a necessidade de uma pessoa em relação aos meios de


sua subsistência, na medida em que não dispõe de bens ou se encontra na impossibilidade
de os produzir por seu próprio trabalho, em função de deficiência etária, incapacidade
laborativa, enfermidade grave e outras incapacidades.
E, por fim, é de se destacar o terceiro pressuposto consubstanciado na capacidade
contributiva do parente, cônjuge ou companheiro a quem se pede os alimentos, pois, para
que exista obrigação alimentar, é também necessário que a pessoa a quem se reclamam os
alimentos os possa fornecer sem privação do necessário ao seu sustento. Nesse sentido,
justifica Caio Mário da Silva Pereira que “não seria racional que o alimentário fosse
obtê-lo de parente que não tem recursos, ou que este se reduza a condições precárias
pelo fato de os suprir”.15 Sendo assim, o art. 1.698 do Código Civil estabelece que

Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar
totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as
pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos
recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar
a lide.

Poderão ser, portanto, os parentes mais afastados chamados a concorrer conjun­


tamente na satisfação do crédito alimentar quando os primeiros obrigados não puderem
adimpli-lo de forma integral, razão pela qual Caio Mário da Silva Pereira ensina que
“se o alimentante não os puder fornecer na razão de seu próprio sustento, prestá-
los-á dentro daqueles limites, cumprindo ao alimentando reclamar de outro parente a
complementação”.16
Os alimentos são baseados, por conseguinte, numa relação de mutualidade em que
devem atender, ao mesmo tempo, às necessidades do alimentando e às possibilidades
do alimentante, fato que levou Ruggiero a afirmar que “a obrigação apenas subsiste
enquanto subsista a necessidade de um e, no outro, a possibilidade econômica de a
satisfazer”.17 Em razão dessa reciprocidade entre necessidade e possibilidade, alguns
doutrinadores chegam a falar de um quarto pressuposto, traduzido na proporcionalidade
da prestação, com o qual não concordamos, na esteira do entendimento de Anderson
Schreiber:

A proporcionalidade não configura, a rigor, um terceiro requisito, mas sim um parâmetro


para a avaliação dos dois anteriores. A possibilidade do alimentante e a necessidade do
alimentando devem manter entre si uma relação de proporcionalidade, de tal modo que
o padrão de vida de ambos, na medida do possível, assegurado, evitando-se a ruína de
qualquer deles.18

Ademais, como explica Ruggiero, “a obrigação é, por sua natureza, condicional


e variável: cessa quando se extingue a necessidade ou falta a capacidade patrimonial, e

15
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – vol. V, 2016, p. 638.
16
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – vol. V, 2016, p. 632.
17
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, vol. 2, 2005, p. 76.
18
SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo, 2018. p. 917.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
590 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

a prestação muda de medida conforme varia a necessidade ou a fortuna das partes”.19


As condições daqueles que recebem os alimentos e/ou daqueles que os prestam podem
sofrer variações de diversas ordens, o que poderá implicar a redução ou majoração
proporcional da prestação, diante da diminuição ou aumento das necessidades do
alimentando e/ou da capacidade patrimonial do alimentante. A possibilidade de inter­
ferência da situação fática dos envolvidos em um direito já consagrado nada mais é
do que o reconhecimento de que a determinação do quantum da prestação sofre os
efeitos das posições econômico-sociais dos envolvidos,20 fazendo com que eles possam
ser aumentados, diminuídos ou até dispensados, na razão da necessidade do credor e
rendimentos do devedor.
Mostra-se inquestionável que a obrigação alimentar se encontra fundamentada na
solidariedade familiar, tendo em vista que é o vínculo que une os componentes de uma
família que os impele a assegurar a subsistência de quem carece dos meios suficientes
para tal fim, protegendo o direito a uma vida digna da pessoa alimentada. Não é menos
certo, contudo, que a mera relação familiar não é causa suficiente para imposição do
dever de sustento, que carece de ser alicerçado na presença concreta da necessidade
de quem postula os alimentos e na possibilidade da pessoa a quem se pede, em uma
relação de estrita proporcionalidade. Diante dessa perspectiva alimentar, passamos a
questionar a adequação da utilização da mesma fundamentação no que tange à atribuição
da legítima aos herdeiros necessários.

3 Uma releitura do instituto da legítima sucessória em face da


solidariedade alimentar
Quando uma pessoa falece, uma ou mais pessoas são chamadas a lhe suceder.
Esclarece Inocêncio Galvão Telles que a sucessão se dá

quando uma pessoa fica investida num direito ou numa obrigação ou num conjunto de
direitos e obrigações que antes pertenciam a outra pessoa, sendo os direitos e obrigações
do novo sujeito considerados os mesmos do sujeito anterior e tratados como tais.

A ideia de sucessão, portanto, está alicerçada na permanência das relações de


direito que persistem e continuam a existir a despeito da alteração dos seus titulares,
cujo chamamento para substituição do titular de um acervo patrimonial se dará após
a sua morte, podendo ter origem na lei ou na vontade do falecido. Quanto à primeira,
a chamada sucessão legítima, a designação das pessoas sucessíveis se dá em função de
determinada relação com o de cujus: de parentesco, conjugalidade ou soberania,21 sendo
os sucessores distribuídos em classes, das quais umas preferem às outras. Já na sucessão
testamentária, há liberdade de nomeação dos sucessores, fundada no querer individual e
no poder de livre disposição integrante do direito de propriedade, mas que fica submetida
a certos limites estabelecidos na própria lei, sendo um deles a presença de pessoas

19
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, vol. 2, 2005, p. 76.
20
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família, 2006, p. 230.
21
TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das sucessões. Noções fundamentais, 1971, p. 90.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
591

que possuem relações estreitas de família com o titular do patrimônio, denominados


herdeiros necessários, composto pela classe dos descendentes, dos ascendentes e do
cônjuge sobrevivente (art. 1.845, CCB/2002).
Nesta situação, a lei institui, de pleno direito e obrigatoriamente, uma porção
dos bens do falecido a esses sucessores, que, somente “mediante renúncia espontânea,
ou por motivos especiais determinados em lei alegados e provados, ficam despojados
da sua cota primacial”.22 Advirta-se, porém, que nem todos os herdeiros considerados
necessários receberão a legítima, pois na sua atribuição deve ser observada a ordem
de vocação hereditária, ou seja, o chamamento sequencial em que alguns sucessores
excluem outros ou recebem a herança de forma concorrente.23
O direito à legítima há muito tem previsão em nosso ordenamento jurídico.
Segundo Paulo Lôbo, a sucessão necessária tem origem, no Direito luso-brasileiro, na
Reforma Josefina, de 1769, que veio a substituir a preferência legislativa pela sucessão
testamentária, impondo que se preservasse “um mínimo equivalente a um quarto dos
bens do falecido a seus familiares próximos a fim de evitar abusos dos testadores que os
afastavam arbitrariamente de sua herança”.24 Durante o século XIX, a regra a respeito da
quota dos herdeiros necessários determinava a reserva de dois terços da herança a esses
sucessores, sofrendo redução em 1907, através da Lei Feliciano Pena (Lei nº 1.839), para
o montante de metade do patrimônio hereditário, limite este mantido pelos Códigos
Civis de 1916 e de 2002.25 Destaque-se, contudo, que já existiu proposta legislativa no
sentido de abolir a legítima e estabelecer a liberdade ampla de testar, na ocasião em
que foi apresentada emenda ao Projeto Beviláqua por Adolfo Gordo e Fausto Cardoso.26
Consiste a legítima, então, na metade dos bens do testador, ao tempo de sua
morte, depois de abatidas as suas dívidas e as despesas relativas ao enterro e funeral,
monte ao qual são acrescidas as doações por ele efetuadas a título de adiantamento
de direitos hereditários e que se encontram sujeitas à colação (art. 1.847, CCB/2002),
compreendendo a outra metade a quota disponível do patrimônio, que pode ser objeto
de disposição testamentária. Acrescente-se que, mesmo antes da morte do de cujus,
ainda que o direito à sucessão seja algo futuro e eventual, a lei já tutela o interesse do
herdeiro necessário vir a ser chamado à herança, na medida em que a sua existência
limita a liberdade de disposição gratuita por meio de doação. Diz-se, portanto, que a
quota dos herdeiros necessários é imperativa e forçada, pois se verifica mesmo contra
a vontade do de cujus, tolhendo a sua liberdade de dispor gratuitamente de seus bens,
por ato de última vontade ou inter vivos. Em outras palavras, o herdeiro necessário não
se encontra sujeito à discricionariedade do titular do patrimônio.27
Em razão de ter sido o direito à herança alçado à qualidade de direito fundamental
na Constituição Federal de 1988, previsto expressamente no art. 5º, inciso XXX, defende
Paulo Lôbo que o citado dispositivo implicaria reconhecer uma garantia patrimonial

22
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, volume III, 1958, p. 02.
23
ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão
legítima: arts. 1.784 a 1.856, volume XVIII. AZEVEDO, Álvaro Vilaça (Coord.), 2003, p. 252.
24
LÔBO, Paulo. Direito Civil: sucessões, 2016, p. 80.
25
BOECKEL, Fabricio Dani. Herdeiros necessários. In: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, n. 26, p. 137, 2006.
26
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, volume I, 1958, p. 343.
27
TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das sucessões. Noções fundamentais, 1971, p. 91-96.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
592 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

às pessoas que tenham com o autor da herança relações próximas de família ou de


parentesco.28 Não obstante, ousamos dele discordar, na medida em que compartilhamos
do entendimento que esta previsão legal tem por finalidade apenas assegurar o direito
das pessoas em face da intervenção do Poder Público quanto a uma possível supressão
da sucessão causa mortis do ordenamento jurídico brasileiro.29 Em outras palavras, a
qualificação da herança como um direito fundamental não implica a indispensabilidade
da reserva patrimonial aos herdeiros necessários, afirmação que passamos a fundamentar.
Primeiramente, não podemos deixar de destacar que a disposição testamentária é
fruto do exercício da autonomia privada e do direito de propriedade, no sentido de ter
o titular do acervo de bens o direito de tomar decisões, com liberdade e independência,
acerca do destino de seu patrimônio, inclusive post mortem. Sobre essa autonomia, leciona
Pietro Perlingiere que

Pode-se entender por “autonomia privada”, em geral, o poder, reconhecido ou concedido


pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes
jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente
assumidos.30

Carlos Maximiliano traz, em sua obra, alguns argumentos levantados por legis­
ladores da Inglaterra e dos Estados Unidos na defesa da ampla liberdade de testar, dos
quais destacamos um com fundamento no exercício da autonomia privada no Direito
Sucessório. Nesse sentido, seria

direito de cada um dar a quem lhe aprouver, aquilo que é seu; da outra parte existe a
faculdade de receber o que espontaneamente lhe dão. Logo há o direito de testar, não o
de herdar. A sucessão legítima apenas supre o testamento: executa a vontade presumida,
na falta de vontade declarada.31

Destacam Daniel Bucar e Daniele Chaves Teixeira que a autonomia deve ser
“valorizada e, portanto, justificada não mais como simples expressão da vontade por si só,
mas como o pleno desenvolvimento e aplicabilidade do princípio da dignidade humana,
tendo como base a liberdade”.32 A liberdade, contudo, não pode ser compreendida como
um fator isolado, sendo necessário o seu diálogo com a solidariedade, o que legitimará
a autonomia.
Na esteira desse entendimento, é certo que a autonomia, desde o advento do Estado
Social, passou a ser condicionada para além dos interesses particulares, passando a en­
globar também a proteção de interesses coletivos,33 convertendo-se também em deveres

28
LÔBO, Paulo. Direito civil: sucessões, 2014, p. 41.
29
MORAES, Bruno Terra de; MAGALHÃES, Fabiano Pinto de. Historicidade e relatividade dos institutos e a
função promocional do direito civil. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (Coord.). Direito civil
constitucional, 2016.
30
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, 2002, p. 17.
31
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, volume I, 1958, p. 340.
32
BUCAR, Daniel; TEIXEIRA, Daniele Chaves. Autonomia e solidariedade. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA,
Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem
ao professor Stefano Rodotà, 2016, p. 98.
33
RUGER, André; RODRIGUES, Renata de Lima. Autonomia como princípio jurídico estrutural. In: FIUZA, César;
SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: Atualidades II. 2008,
p. 18.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
593

de solidariedade econômica, social e familiar. Dessa forma, o exercício da autonomia


privada em determinada relação jurídica deve ser funcionalizada a uma finalidade maior,
o que não deve ser entendido como o desprezo aos interesses individuais envolvidos,
mas tão somente a potencialização da realização dos valores superiores positivados na
Constituição Federal de 1988. Alertam, contudo, Deborah Santos e Eduardo Mendes que
“a verificação da função de uma dada situação jurídica, entendida como a síntese de
seus efeitos essenciais, deverá ser feita em concreto, uma vez que não há essencialidade
previamente determinada pelo legislador”.34
Em função disso, compartilhamos a compreensão de que não se deve permitir a
utilização vazia e abstrata do elemento funcional da sucessão, evitando-se, assim, uma
solidariedade travestida de mero assistencialismo. A herança deve ser compreendida em
um contexto social, considerando-se sua repercussão para além da vontade do de cujus,
o que não importa em reconhecer, indistintamente, o direito a uma reserva patrimonial
a determinados sucessores tão somente porque se encontram ligados ao falecido por
vínculos familiares próximos.
Se é certo que há, entre pessoas integrantes de um mesmo núcleo familiar,
um dever de assistência e colaboração mútuas em vida, traduzido nos alimentos, as
necessidades destes familiares também deveriam ser atendidas quando da morte daquele
que provia os meios necessários à vida digna, mas somente quando comprovada a
necessidade dos sucessores, por incidência da solidariedade familiar em uma perspectiva
alimentar. Ensina Paulo Lôbo que

A solidariedade, como categoria ética e moral que se projetou para o mundo jurídico,
significa um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que
compele à oferta de ajuda, apoiando-se em uma similitude de certos interesses e objetivos,
de forma a manter a diferença entre os parceiros na solidariedade.35

Destaca o mesmo autor que “o lar é por excelência um lugar de colaboração, de


cooperação, de assistência, de cuidado”, motivo pelo qual “o princípio da solidariedade
incide permanentemente sobre a família, impondo deveres a ela enquanto ente coletivo e a
cada um de seus membros, individualmente”.36 Não obstante, em que pese concordarmos
que exista esse dever de assistência recíproca entre os membros da família, isso não é
causa, por si só, para fazer emergir uma obrigação legal de constituir qualquer deles
como herdeiros obrigatórios, pois a solidariedade familiar somente deveria justificar a
garantia de uma base econômica, representada na legítima, para aqueles que dela não
necessitam. Nesse sentido, Silvio Rodrigues, ao conceituar a legítima, ensina que essa
reserva patrimônio deve ser entregue aos membros da família como “forma de provê-los
com o necessário para sua mantença”.37

34
SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos; MENDES, Eduardo Heitor. Função, funcionalização e função social. In:
SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (Coord.). Direito civil constitucional, 2016, p. 08.
35
LÔBO, Paulo. Princípio da solidariedade familiar. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/
anais/78.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
36
LÔBO, Paulo. Princípio da solidariedade familiar. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/
anais/78.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
37
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. 7, 1998, p. 19.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
594 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Se a obrigação alimentar não advém do simples estabelecimento dos vínculos de


parentesco ou conjugalidade, mas também de uma necessária relação entre necessidade
e possibilidade, então, para o reconhecimento da reserva patrimonial aos herdeiros
legítimos, seria imprescindível a verificação de que estes sucessores não dispõem de
meios para a própria subsistência e um patrimônio consolidado, ficando dependentes da
herança para a manutenção de uma vida digna. Assim, a ausência de herança imposta
por lei não significaria, necessariamente, a ruína ou miséria da comunidade familiar,
na medida em que a previsão abstrata da legítima desconsidera a situação patrimonial
concreta dos sucessores.
A legítima, portanto, deveria ser tomada como instrumento apto a possibilitar
uma existência digna e justa, pela garantia da oferta de um patrimônio mínimo aos
sucessores, e não fonte de seu enriquecimento injustificado. Neste aspecto, interessante
trazer à colação o pensamento de Roxana Borges e Renata Dantas, para quem

A família, sob uma ótima despatrimonializada, não constitui núcleo de produção e


acumulação de riqueza, mas, sim, espaço de construção do eu, fundado em relações de
afeto e solidariedade. Pensar o Direito Sucessório constitucionalizado, de fato, é reconhecer
que a herança pode sofrer limitações quanto à liberdade de testar, com o fim de proteção
familiar. Mas a proteção à família não se realiza na transmissão compulsória de bens àqueles
que podem prover seu próprio sustento. Diferentemente, quando se trata dos vulneráveis
econômicos, a limitação é coerente.38

A respeito dessa garantia de subsistência, destaca Marcos Catalan ser

ululante que a manutenção de patrimônio material mínimo é essencial à concretização de


inúmeros direitos de cunho extrapatrimonial,39 pois permite que o sujeito tenha acesso à
saúde, à alimentação, vestuário, moradia, etc., valores que no Brasil de hoje somente podem
ser alcançados quando se tem uma moeda de troca.40

O Direito Sucessório não deveria, assim, promover a transmissão da herança,


indiferentemente, a pessoas aptas a garantirem, economicamente, a satisfação das
suas necessidade com vistas à concretização de uma vida digna, devendo a reserva da
legítima ser assegurada somente àqueles sucessores que se encontrassem em situação de
vulnerabilidade ou de dependência econômica para com o de cujus. A vulnerabilidade
aqui tratada deve ser entendida como a suscetibilidade do indivíduo sofrer lesões em
sua esfera íntima e pessoal,41 podendo ser configurada através da menoridade, de uma
deficiência física ou intelectual, idade avançada, enfermidade grave, incapacidade
laborativa ou outras tantas adversidades que impossibilitem que o sucessor, por seus
próprios meios, venha a prover a sua subsistência com dignidade.

38
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; DANTAS, Renata Marques Lima. Direito das sucessões e a proteção dos
vulneráveis econômicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I, p. 90, 2017.
39
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, 2001. p. 303-311.
40
CATALAN, Marcos. Direito das sucessões: por que e para quem? Reflexões a partir da realidade brasileira.
Disponível em: <http://www.academia.edu/4712195/Direito_das_sucess%C3%B5es_por_que_e_para_quem>.
Acesso em: 10 abr. 2018. p. 8.
41
KONDER, Carlos Nelson. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema dife­
renciador. In: Revista de Direito do Consumidor, vol. 99, p. 103, 2015.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
595

Em outras palavras, a legítima somente deveria ser atribuída àqueles que,


figurando no rol dos herdeiros legítimos, deveriam ser alimentados, ou seja, quando
evidenciada a necessidade de auxílio em sua subsistência. Esta perspectiva está muito
mais atrelada à ideia de efetiva proteção à família do que uma previsão em abstrato de
proteção a determinadas pessoas que, em muitas das vezes, não necessitam de nenhum
amparo especial. Na mesma direção, defende Ana Luiza Maia Nevares que

a legislação sucessória deveria prever uma especial atenção aos herdeiros incapazes e idosos
e, ainda, aos cônjuges e companheiros quanto a aspectos nos quais realmente dependiam
do autor da herança, buscando concretizar na transmissão da herança um espaço de
promoção da pessoa, atendendo às singularidades dos herdeiros, em especial diante de sua
capacidade e de seus vínculos com os bens que compõem a herança, e, ainda, atendendo
à liberdade do testador quando não se vislumbra na família aqueles que necessitam de
uma proteção patrimonial diante da morte de um familiar.42

A atribuição de reserva legitimária a um estado de vulnerabilidade do sucessor


concretamente considerado estaria em consonância com os princípios constitucionais da
solidariedade, igualdade e dignidade da pessoa humana, ao mesmo tempo em que se
preservaria a autonomia privada funcionalizada à proteção da pessoa.43 Limitar o direito
de testar pela imposição do obrigatório repasse de metade da herança aos herdeiros
necessários não revela nenhuma função social ou solidariedade, pelo contrário, irrompe,
em demasia, o núcleo do direito de propriedade,44 que, a despeito de não ser absoluto,
também não pode ser injustificadamente violado ou restringido.

Conclusão
Vimos que a solidariedade foi erigida a um dos fundamentos da República brasi­
leira, como objetivo a ser perseguido na construção de uma sociedade livre e justa, contexto
no qual também deve ser inserida a família, núcleo social por excelência e primário do
indivíduo. A solidariedade passa a ser compreendida como o reconhecimento de um
dever de assistência e colaboração mútuas, que é especialmente destacado entre pessoas
que possuem vínculos familiares estreitos de parentesco ou conjugalidade.
Corolário desta solidariedade familiar, a obrigação alimentar consiste no dever
de amparo daquele que não possui condições de prover, com os rendimentos de seu
trabalho, o seu sustento, para com outro, que com ele possua vínculo conjugal ou de
parentesco, e que possua recursos suficientes à satisfação da subsistência digna daquele,
sem prejuízo do seu próprio. Dessa forma, a mera relação familiar não é causa suficiente
para a imposição do dever de sustento, sendo imprescindível a averiguação da situação

42
NEVARES, Ana Luiza Maia. A proteção da família no Direito Sucessório: necessidade de revisão? In: Carta
Forense, São Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/>. Acesso: 10 abr.
2018.
a-protecao-da-familia-no-direito-sucessorio-necessidade-de-revisao/14753>. Acesso em: 12 dez. 2014.
43
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; DANTAS, Renata Marques Lima. Direito das sucessões e a proteção dos
vulneráveis econômicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I, p. 91, 2017.
44
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; DANTAS, Renata Marques Lima. Direito das sucessões e a proteção dos
vulneráveis econômicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I, p. 87, 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
596 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

de necessidade daquele que postula os alimentos e da capacidade econômica da pessoa


a quem se pede, sujeitando seus limites à proporcionalidade desses pressupostos e sua
manutenção, haja vista que qualquer alteração na situação fática do alimentante ou do
alimentado pode provocar redução, majoração ou encerramento da obrigação alimentar.
A solidariedade ainda estende seus efeitos nas relações familiares mesmo após
o óbito de seus membros, justificando tal posicionamento na consagração do direito
à herança como direito fundamental pelo texto constitucional. A transmissão patri­
monial decorrente da morte de uma pessoa encontra fundamento na letra da lei ou na
manifestação de vontade do titular do patrimônio, sendo possível e, por vezes, obrigatória
a convivência das duas modalidades sucessórias.
Neste sentido, a legislação pátria estabelece a fixação de uma quota indisponível do
patrimônio do de cujus a determinados sucessores, denominados herdeiros necessários,
simplesmente pela existência de uma relação familiar que os une ao titular do patrimônio
falecido, razão pela qual questionamos neste artigo a adequação da fundamentação na
atribuição da reserva patrimonial representada pela legítima a tais sucessores.
Ainda que concordemos com a necessidade de relativização do direito de proprie­
dade, de funcionalização da autonomia privada e da concretização da solidariedade
familiar, defendemos que tal limitação não serve ao objetivo a que se propõe, pois não
é cerceando, indistintamente, a ampla liberdade de testar que estará sendo assegurada a
finalidade da proteção de um patrimônio mínimo assecuratório da dignidade da pessoa
dos sucessores. Por esta razão, a reserva legitimária somente deveria ser garantida ao
sucessor em situação de vulnerabilidade ou de dependência econômica para com o
de cujus, ou seja, quando este apresentasse algum impedimento ou incapacidade para
manter a sua própria mantença e, por consequência, a concretização de uma vida digna,
o que deveria sempre ser avaliado à luz do caso concreto.
O Direito das Sucessões não deve mais ser instrumento para promover a
transmissão da herança, indiferentemente, a pessoas aptas a garantirem, economicamente,
sua mantença, não sendo justificadas as restrições atuais à liberdade de testar. Assim,
é necessária a releitura do instituto da legítima, modulando os efeitos da sucessão
de acordo com a idade, estado físico, mental ou de saúde, incapacidade laboral ou
outra circunstância que impeça a concretização da garantia de um patrimônio mínimo
aos sucessores, apresentando-se, dessa forma, como uma representação concreta da
solidariedade familiar.

Referências
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
598 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):

ROCHA, Patricia Ferreira. A solidariedade familiar alimentar como parâmetro à atribuição da legítima aos
herdeiros necessários. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro
de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 585-598. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
SOBRE OS AUTORES

Adriano Stanley Rocha Souza


Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito
pela PUC Minas com doutorado em Direito pela PUC Minas e pós-doutorado pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná.

Alessandro Hirata
Professor da graduação da FDRP-USP. Foi professor assistente junto ao Leopold-Wenger-Institut
da Ludwig-Maximilians-Universität München. Bacharel em Direito pela Universidade de São
Paulo. Doutor em Direito pela Ludwig-Maximilians-Universität München. Livre-docente em
Direito Romano pela Universidade de São Paulo.

Ana Cláudia Redecker


Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS) com mestrado em Direito pela PUCRS. Doutoranda em Ciências Jurídico-Econômicas
pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (PT).

Andersson Belém Alexandre Ferreira


Graduado em Direito pela Universidade Regional do Cariri. Pós-graduando em Direito Processual
Civil pela URCA/CE.

Angelo Gamba Prata de Carvalho


Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Possui curso técnico profissionalizante em
Informática pelo Instituto Federal Catarinense – Camboriú, mesma instituição na qual cursou o
ensino médio.

Auricelia do Nascimento Melo


Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Doutora em Direito
Constitucional (UNIFOR), mestre em Direito Constitucional (UNIFOR), especialista em Direito
Previdenciário e Docência do Ensino Superior.

Caio Ribeiro Pires


Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Mestre em Direito pela
Pontifícia Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Camila Aguileira Coelho


Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito
Civil Constitucional pela UERJ. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.

Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo


Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Mestre em Direito da Concorrência e Regulação de Mercados (LL.M) pela New York University
School of Law (NYU). Mestre em Direito Civil e doutor em Direito da Cidade pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado em Direito da Concorrência e Política
Regulatória na University of California at Berkeley (UCB).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
600 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Carolina Rocha Cipriano Castelo


Mestre em Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza. Professora
do curso de Direito da Faculdade Integrada da Grande Fortaleza. Pesquisa sobre os direitos das
pessoas com deficiência.

Caroline Janaina Mendes


Mestranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUCPR).

Christiane Souza Lima Alves


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.

Cícero Dantas Bisneto


Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia com pós-graduação em Direito Civil
pela Universidade Federal da Bahia. Ex-Procurador do Estado de São Paulo.

Cíntia Rosa Pereira de Lima


Professora da graduação da FDRP-USP. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da
USP com estágio na Universidade de Ottawa (Canadá) com bolsa CAPES – PDEE – doutorado
sanduíche. Graduada pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (UNESP). Professora na pós-graduação da Faculdade de Direito da USP – Largo
São Francisco.

Cláudia Franco Corrêa


Doutora e mestre em Direito pela UGF/RJ (Conceito CAPES 5). Pós-doutora em Antropologia
Urbana pela UERJ. Pós-doutoranda em Serviço Social pela PUC-Rio. Professora adjunta de Direito
Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do programa de pós-graduação stricto
sensu em Direito da Universidade Veiga de Almeida (PPGD/UVA).

Cláudio José Franzolin


Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Mestre e doutor em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cursou especialização lato sensu em
Direito Empresarial na Universidade Mackenzie (São Paulo) e Direito dos Contratos com ênfase
em relações de consumo perante o CEU- IICS (Centro de Extensão Universitária).

Cristina Gomes Campos de Seta


Doutora em Direito pela Universidade Veiga de Almeida/UGF. Mestre em Direito pela Universidade
Gama Filho, especialista em Direito pela Universidade Gama Filho, pesquisadora do Instituto
de Estudos Comparativos em Administração de Conflitos (INCT-InEAC). Graduada em Direito
pela Universidade Gama Filho. Bacharel em Letras (português e inglês), com licenciatura plena
(português e inglês) pela Universidade Gama Filho.

Danilo Rafael da Silva Mergulhão


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) na linha de Direito Civil/
Empresarial. Especialista em Direito Processual Constitucional, Civil, Trabalhista e Penal.
Graduado em bacharelado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

Demétrio Beck da Silva Giannakos


Aluno do curso de especialização em Direito Internacional pela Universidade Federal do Estado
do Rio Grande do Sul. Bacharel pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul.
SOBRE OS AUTORES 601

Eduardo Magrani
Doutor e mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenador da área de Direito e Tecnologia do Instituto
de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).

Esteban Javier Arias Cáu


Graduado em Direito pela Universidad Nacional de Tucumán. Mestre em Direito pela Universidad
Austral.

Fernanda Pontes Pimentel


Doutora em Sociologia e Direito pelo programa de pós-graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense, mestre em Direito das Relações Econômicas e Contratuais pela
Universidade Gama Filho e bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

Filipe José Medon Affonso


Graduando em Direito na Faculdade de Direito da UERJ.

Geraldo Frazão de Aquino Júnior


Graduado e mestre em Engenharia Elétrica e em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Doutor em Direito pela UFPE.

Inaldo Siqueira Bringel


Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em Direito pela
Universidade Federal do Ceará.

Jacqueline Lopes Pereira


Mestre em Relações Sociais junto ao programa de pós-graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná (PPGD/UFPR), pesquisadora do Eixo de Relações Familiares do Núcleo
de Estudos em Direito Civil – Virada de Copérnico e do Núcleo de Direitos Humanos e
Vulnerabilidades. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões pela Academia Brasileira de
Direito Constitucional (ABDConst). Graduada em Direito, com habilitação em Teoria do Direito
e Direitos Humanos, pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora
da Faculdade de Pinhais (FAPI).

Joana de Moraes Souza Machado


Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará e graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí.

José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins


Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Doutorando e mestre
em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Constitucional pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do curso de Direito e da especialização
em Direito Tributário da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Jussara Maria Leal de Meirelles


Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná, com mestrado e doutorado em
Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná e pós-doutorado no Centro de
Direito Biomédico da Universidade de Coimbra. Professora titular de Direito Civil da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR), professora do programa de pós-graduação em Direito
Econômico e Socioambiental (mestrado e doutorado) e do programa de pós-graduação em Bioética
(mestrado) da PUCPR.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
602 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL

Ligia Ziggiotti de Oliveira


Doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pelo programa de pós-graduação em Direito
da Universidade Federal do Paraná. Mestra em Direito das Relações Sociais pelo programa de
pós-graduação da Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Civil da graduação em
Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil.

Liliane Gonçalves Matos


Doutoranda em Direito Constitucional com ênfase nas Relações Privadas pela Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Direito Constitucional pela UNIFOR. Especialista em Direito e
Processo Empresarial pela UNIFOR. Especialista em Direito e Processo Tributário pela UNIFOR.
Professora da Faculdade Paraíso do Ceará – FA.

Lívia Ximenes Damasceno


Doutoranda em Direito Constitucional nas relações privadas na Universidade de Fortaleza.
Professora das disciplinas de Direito Empresarial I e Direito Civil – Obrigações no Centro
Universitário Christus. Mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Coimbra (diploma
revalidado pela Universidade Federal do Ceará). Especialista em Direito Civil e Direito Empresarial
pela Faculdade Damásio de Jesus.

Luana Adriano Araújo


Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Graduada em Direito pela
Universidade Federal do Ceará. Coordenadora discente do Árvore-ser/UFC (Grupo de Estudos
Aplicados em Direito das Pessoas com Deficiência).

Lygia Maria Copi


Doutora em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em
Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação em Direito da UFPR. Graduada
em Direito pela UFPR, com habilitação em Direito das Relações Sociais.

Marcelo L. F. de Macedo Bürger


Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Civil no Centro
Universitário Curitiba (UniCuritiba). Presidente da Comissão de Relações Acadêmicas do Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Mariana Barsaglia Pimentel


Mestre em Direito das Relações Sociais pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal
do Paraná. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá com obtenção de láurea
acadêmica. Pesquisadora do Eixo de Obrigações e Contratos do Núcleo de Estudos em Direito
Civil – Virada de Copérnico. Visitou, como pesquisadora, o Instituto Max Planck de Direito
Comparado e Direito Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha. Advogada do escritório
de advocacia Medina & Guimarães Advogados Associados em Curitiba.

Marília de Ávila e Silva Sampaio


Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília, graduada em Letras pela Universidade
de Brasília. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília e doutora em Direito pelo Centro
Universitário de Brasília. Pós-doutoranda em Direito do Consumidor na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

Matías Leonardo Nieto


Graduado pela Universidad del Norte Santo Tomás de Aquino. Professor de Direito das Obrigações
pela Universidad Católica de Santiago del Estero.
SOBRE OS AUTORES 603

Nardejane Martins Cardoso


Mestre em Direito Constitucional pelo programa de pós-graduação em Direito stricto sensu
da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Especialista em Direito e Processo Constitucionais
pelo programa de pós-graduação em Direito lato sensu da UNIFOR. Graduada em Direito pela
UNIFOR, com pesquisas realizadas, precipuamente, no âmbito do Direito Constitucional; Direito
de Família; Direito da Criança e do Adolescente e Direitos Humanos. Pesquisadora-bolsista da
Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Membro
do Grupo Direito Privado na Constituição (coordenado pelo Prof. Dr. Antonio Jorge Pereira Jr.).
Docente dos cursos de Direito do Centro Universitário Fanor/Wyden. Pesquisadora no projeto
“A efetividade da política judiciária em matéria de oitiva de crianças na Justiça Estadual com foco
na Recomendação nº 33/2010 do CNJ e na implementação da Lei nº 13.431/2017”, classificado nos
termos do Edital de Convocação Pública e Seleção nº 02/2017 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) e coordenado pelo Prof. Dr. Antonio Jorge Pereira Jr junto à UNIFOR. Advogada.

Patricia Ferreira Rocha


Graduada em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC), especialista lato
sensu em Direito Ambiental pelo Centro Universitário de Volta Redonda (UNIFOA). Mestre em
Direito Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Paula Falcão Albuquerque


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Graduada em Direito com especialização
em Direito Constitucional pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC).

Paulo Nalin
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Direito Privado pela
Universidade Federal do Paraná e doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal
do Paraná. Pós-doutor em Contratos Internacionais pela Juristische Fakultät – Universität Basel
(Faculdade de Direito da Universidade da Basiléia – Suíça), sob orientação da Prof. Dra. Ingeborg
Schwenzer. Atualmente é professor Associado de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná
(graduação e pós-graduação). Professor Titular de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná. Professor do L.L.M. da Swiss International Law School (SILS). Advogado e Árbitro.
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil, atuando principalmente nos
seguintes temas: Obrigações, Contratos Nacionais e Internacionais, Responsabilidade Civil, Direito
Civil-Constitucional, Direitos Fundamentais e Arbitragem.

Rachel Maçalam Saab Lima


Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogada associada do
Gustavo Tepedino Advogados com experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Privado.

Rafael Diogo Diógenes Lemos


Graduado em Direito pela UNIFOR. Pós-graduado lato sensu em Direito Processual Civil e mestre
em Direito Constitucional pela UFRN.

Renan Medeiros de Oliveira


Mestrando em Direito Público e bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ). Pós-graduando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC Minas).

Thiago Ferreira Cardoso Neves


Mestrando em Direito pela UERJ. Pós-graduado em Direito Público e Direito Privado pela Escola
da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professor da Escola da Magistratura do Estado do
Rio de Janeiro, onde leciona Direito Empresarial, Direito Civil e Direito do Consumidor.
SOBRE OS COORDENADORES

Gustavo Tepedino
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Professor Titular de Direito Civil
e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Doutor em Direito Civil pela Universidade de Camerino (Itália) e livre-docente pela Faculdade
de Direito da UERJ.

Joyceane Bezerra de Menezes
Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-doutorado em Direito Civil
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerce o magistério superior como professora
titular da Universidade de Fortaleza, integrando o programa de pós-graduação stricto sensu em
Direito. É professora adjunta da Universidade Federal do Ceará.

Vanessa Correia Mendes


Mestra em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Professora do curso de
graduação do Centro Universitário Farias Brito (FBUni), da Faculdade de Fortaleza (FAFOR)
e da Faculdade de Ensino Superior do Ceará (FAECE). Membro do Grupo de Pesquisa Direito
Constitucional nas Relações Privadas – Direito dos danos e proteção à pessoa.

Ana Paola de Castro e Lins


Mestra em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Membro do Grupo de Pesquisa
CNPQ: Direito Constitucional nas Relações Privadas. Coordenadora da linha de pesquisa
“Autonomia, Identidade e Gênero” do Laboratório de Estudos sobre Violências contra Mulheres,
Meninas e Minorias (LEVIM) da Universidade de Fortaleza.
ISBN: 978-85-450-0591-9

CÓDIGO: 10001530

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