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ANAIS DO
VI CONGRESSO DO
INSTITUTO BRASILEIRO
DE DIREITO CIVIL
ANAIS DO VI CONGRESSO DO
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
GUSTAVO TEPEDINO
JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES
VANESSA CORREIA MENDES
ANA PAOLA DE CASTRO E LINS
Coordenadores
ANAIS DO VI CONGRESSO DO
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Belo Horizonte
2019
© 2019 Editora Fórum Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico,
inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor.
Conselho Editorial
APRESENTAÇÃO
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES
VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS........................................ 17
Gustavo Tepedino
Joyceane Bezerra de Menezes
Vanessa Correia Mendes
Ana Paola de Castro e Lins
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES
E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO
NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL
E SEUS OBSTÁCULOS REGISTRAIS
1 Introdução
O Direito Real de Laje foi criado no ordenamento jurídico (Lei nº 13.465, de 12 de
julho de 2017) brasileiro como importante instrumento a ser utilizado na Regularização
Fundiária Urbana.
Por constituir uma nova modalidade de direito real sobre coisa própria, o Direito
de Laje se torna, ainda, importante mecanismo para obtenção de linhas de financiamento,
pois consiste em nova modalidade de direito real que pode ser dado em garantia. Tal fato
produz importante circulação do crédito, o que pode levar ao aquecimento de setores
da economia nacional.
Entretanto, existem questionamentos sobre os procedimentos registrais de
referido instrumento. Este modesto trabalho busca apresentar à comunidade este valioso
instrumento e contribuir para o debate sobre a construção de meios de superação de
eventuais dificuldades que o seu registro possa apresentar.
2 Do Direito Real de Laje e sua natureza jurídica: direito real sobre
coisa própria
A Lei nº 13.465, de 12 de julho de 2017, trouxe para o Brasil um novo Direito Real.
Trata-se do Direito Real de Laje.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
20 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Inicialmente, tratado por grande parte da doutrina nacional1 como sendo uma
espécie do já existente Direito Real de Superfície, tal entendimento não merece pros
perar. Trata-se, na verdade, de um novíssimo direito real; de uma nova modalidade
de Direito Real sobre Coisa Própria que veio se juntar ao até então “solitário” (nesta
categoria) Direito Real de Propriedade.
Talvez, esta errônea interpretação de parte da doutrina se justifique mesmo por
culpa da própria Lei, que, para conceituar o novo instituto, o fez da seguinte forma:
1
Alguns autores com este entendimento: Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de
Farias, Frederico Viegas de Lima. Para estes, o novo direito não passaria da chamada superfície por sobrelevação.
2
§4º A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a
participação proporcional em áreas já edificadas.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
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A questão que se coloca é: por que algum titular de Direito Real de Laje (já cons
tituído sobre uma construção) poderia proibir que um novo Direito Real de Laje seja ali
também constituído? Por que, afinal, haveria de ser obrigatória a autorização expressa
dos titulares da construção-base e das demais lajes? Ainda mais se considerando que
não recairá sobre este imóvel qualquer espécie de condomínio?
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22 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Salvo melhor juízo, entendemos que tal poder não pode ser conferido aos titulares
do imóvel por mero capricho. Tal poder seria incompatível com a liberdade que a Lei
nº 13.465 conferiu aos titulares do Direito Real de Laje.
Imagine: “A” tem um filho que está para casar-se em breve, mas não tem condições
financeiras para comprar um imóvel.
“A” é titular de um Direito Real de Laje sobre uma construção que já suporta
outros dois Direitos Reais de Laje. Como titular deste Direito Real de Laje, “A” tem o
direito de constituir sobre a sua laje um novo direito de laje para o seu filho.
Por qual razão, então, os outros titulares de outros direitos reais que recaiam
sobre aquele imóvel poderiam impedir que “A” concedesse o direito de laje ao seu filho?
Tal restrição é incompatível com a natureza deste direito real autônomo, que,
como de resto nos demais direitos reais, confere o direito de dispor da coisa e a eficácia
erga omnes.
Principalmente se lembrarmos que: a) não existe relação de condomínio entre
os vários titulares de direitos reais daquela construção; portanto, qual a razão de tal
submissão aos demais? b) O §3º do artigo 1.510-A assegura aos titulares da laje os direitos
de dela usarem, gozarem e disporem.3
Desta forma, entendemos que a anuência dos outros titulares de direitos reais
sobre a construção-base somente poderia ser exigida caso a constituição de novo Direito
Real de Laje constituísse perigo para o restante da construção. Caso contrário, ou seja,
por mero capricho dos demais titulares, esta oposição não pode ser considerada.
Art. 1.510-D. Em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, terão direito de
preferência, em igualdade de condições com terceiros, os titulares da construção-base e da
laje, nessa ordem, que serão cientificados por escrito para que se manifestem no prazo de
trinta dias, salvo se o contrato dispuser de modo diverso.
§1º O titular da construção-base ou da laje a quem não se der conhecimento da alienação
poderá, mediante depósito do respectivo preço, haver para si a parte alienada a terceiros,
se o requerer no prazo decadencial de cento e oitenta dias, contado da data de alienação.
3
Art. 1510-A (...) – §3º Os titulares da laje, unidade imobiliária autônoma constituída em matrícula própria,
poderão dela usar, gozar e dispor.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
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§2º Se houver mais de uma laje, terá preferência, sucessivamente, o titular das lajes
ascendentes e o titular das lajes descendentes, assegurada a prioridade para a laje mais
próxima à unidade sobreposta a ser alienada.
Art. 1.510-C. Sem prejuízo, no que couber, das normas aplicáveis aos condomínios
edilícios, para fins do direito real de laje, as despesas necessárias à conservação e fruição
das partes que sirvam a todo o edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum
serão partilhadas entre o proprietário da construção-base e o titular da laje, na proporção
que venha a ser estipulada em contrato.
§1º São partes que servem a todo o edifício:
I – os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituam
a estrutura do prédio;
II – o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso exclusivo do titular
da laje;
III – as instalações gerais de água, esgoto, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás,
comunicações e semelhantes que sirvam a todo o edifício; e
IV – em geral, as coisas que sejam afetadas ao uso de todo o edifício.
§2º É assegurado, em qualquer caso, o direito de qualquer interessado em promover
reparações urgentes na construção na forma do parágrafo único do art. 249 deste Código.
Por todo o exposto nos itens 3.3 e 3.4 percebe-se o quão próximo este instituto
se faz do condomínio. Mesmo que, repita-se, jamais se possa considerar a relação
entre a diversidade de titulares de direitos reais sobre a coisa como sendo uma relação
condominial.
Na verdade, o Direito Real de Laje surge exatamente para atuar no hiato que
há entre o Direito Real de Superfície e o Condomínio Edilício. Trata-se de excelente
instrumento para o mercado imobiliário na medida em que possibilita a criação de
várias unidades imobiliárias sobre um mesmo bem sobre o qual não se poderia criar
um condomínio edilício, nem se tenha o interesse em criar um Direito Real de Superfície
em razão de sua temporariedade. “Pode-se valer do direito de laje, para instituir regime
jurídico perene, análogo às unidades imobiliárias autônomas do condomínio edilício”.
(FIUZA, César Augusto de Castro; COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho.
Ensaio sobre o Direito Real de Laje como Previsto na Lei 13.465/2017. p. 6. Civilistica.
com, Rio de Janeiro, ano 6, n. 2, 2017. Disponível em: <http://civilistica.com/ensaio-sobre-
o-direito-real-de-laje/04.04.2017>).
4
§4º A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a
participação proporcional em áreas já edificadas
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24 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
4.1 Exigências urbanísticas
Com efeito, o fato de uma lei federal criar um novo direito real não significa que o
referido instituto possa ser aplicado em qualquer município. Ou ao menos sem qualquer
regulação mais específica. Isto porque o Direito Real de Laje pode ser restringido, ou até
mesmo proibido, naqueles municípios em que o ordenamento urbanístico municipal
proíba a existência de construções multifamiliares. Seja por questões arquitetônicas
(imóveis tombados, p. ex.), ambientais (áreas frágeis, susceptíveis a controle habitacional,
p. ex.), sanitárias e outras.
Em sentido contrário, o Professor Carlos Eduardo Elias de Oliveira, em artigo
escrito para o site Consultor Jurídico em 25 de setembro de 2017,5 assim entende:
A exploração do direito real de laje depende da observância das normas urbanísticas, pois
esse direito é destinado primordialmente à exploração da laje ou do subsolo com autonomia
(artigo 1.510-A, §§ 5º e 6º, do CC). Daí decorre duas indagações: os cartórios de imóveis
poderão registrar o ato de instituição do direito real de laje sem prévia autorização do
município atestando a sua compatibilidade com as normas urbanísticas?
Ao nosso sentir, não há obstáculo algum ao registro do ato constitutivo do direito real de
laje sem prévia autorização do município, pois a mera instituição de um direito real de
laje não significa que haverá a realização de construção efetiva desse direito. Assim como
o registro de um outro direito real qualquer (como o de usufruto ou de superfície) não
reclama prévia autorização municipal, não há motivos para negar o acesso de um título
constitutivo de um direito real de laje ao álbum imobiliário. Com efeito, é viável que alguém
se interesse em adquirir o direito real de laje apenas com o objetivo de especulação, para, no
futuro, quando as normas urbanísticas se tornarem favoráveis, explorar a laje ou aliená-la.
Não há motivos para impedir a constituição de um direito real.
Isso, todavia, não significa que, instituído o direito real de laje, o seu titular poderá livre
mente edificar um “andar” (aéreo ou subterrâneo), pois as regras locais de construção
exigem autorização do município. Nem significa que ele poderá ocupar a laje, se houver
vedação da legislação municipal. Isso significa que, se o titular fizer alguma construção
sobre a área de seu direito real de laje, o cartório de registro de imóveis não poderá averbar
esse fato na matrícula (ou seja, averbar a construção), salvo se for apresentado beneplácito
municipal por meio do “habite-se” ou de outro documento que ateste a compatibilidade
da obra com as regras urbanísticas.
Em resumo, as regras urbanísticas não impedem a constituição do direito real de laje, mas
apenas a averbação de futuras construções feitas pelo seu titular. O que a Municipalidade
pode restringir é o uso da laje ou a edificações sobre elas, mas não impedir a mera
constituição de um direito real de laje.
5
Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2007-set-25/direito-civil-atal-direito-real-laje-luz-lei-134652017-
parte2>.
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DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
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Data venia, não concordamos com tal posicionamento. Ora, como justificar o
registro imobiliário de um direito real sobre um imóvel se ele não pode se prestar a
qualquer alargamento de seu uso?
Como justificar que se possa registrar um Direito Real de Laje, podendo ser
proibida, no entanto, a averbação de qualquer construção fundada sobre este direito?
Então, pergunta-se: se não se pode usufruir de um direito, por qual razão haveria de
adquiri-lo?
O autor reforça a informação de que normas urbanísticas podem proibir a
averbação de novas construções sobre ou sob um edifício, assim como podem impedir
a mera ocupação de lajes. Pois bem, então não faz sentido algum que o Cartório de
Registro de Imóveis registre um Direito Real de Laje sobre imóvel que não possa receber
qualquer tipo de construção. Caso contrário haveria a aberração jurídica de se ter um
direito estéril (incapaz de produzir os frutos desejados).
Assim, parece lógico que, para se constituir direito de laje, deva-se (i) estar regularmente
averbada a construção na matrícula do imóvel e (ii) existir alvará de construção aprovado
referente à edificação a ser realizada sobre a já existente ou algum outro documento do
ente público certificando que existe potencial construtivo. Entendimento diverso implicaria
na constituição de um direito real que teria objeto ilícito (construção proibida), ferindo o
art. 104, inciso II, do Código Civil (COUTO, p. 14)
Entretanto, como a Lei nº 13.465 admite a criação de lajes subterrâneas (ou infe
riores), no caso destas últimas (destaque-se) entendemos não ser necessária a existência
de qualquer construção no imóvel. Afinal, neste caso, o subsolo do imóvel constituirá a
base sobre a qual se fundará o direito de laje.
Por outro lado, é de se perguntar sobre a situação dos imóveis que já se encon
travam nesta condição antes da entrada em vigor da Lei nº 13.465.
Entendemos que, se a prima ratio desta legislação é ser um instrumento no processo
de regularização fundiária, os imóveis que já se encontravam com este tipo de construção
antes da entrada em vigor desta lei não podem ser excluídos.
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E mais: entendemos que na busca por tal regularização dos espaços urbano
e rural, os governos federal, estaduais e municipais deveriam mesmo desenvolver
políticas públicas com ações agressivas de estímulo a estes imóveis (que já se encontram
nesta condição informal de Direito de Laje) a oficializarem suas situações jurídicas em
conformidade com a nova legislação.
(...) nada impede que seja instituído por meio de escritura de constituição de direito de
laje, na qual compareçam o proprietário registral e o titular da laje, estabelecendo-se a área
da construção sobreposta, que será objeto da laje, abrindo-se a matrícula correspondente
para o novo direito real, com o consequente registro desse direito em nome do beneficiário.
Mostra-se viável, outrossim, a instituição, por escritura pública, somente pelo titular
registral, de direitos de laje sobre construção já averbada em seu imóvel, com abertura
das respectivas matrículas, para que posteriormente possam ser alienados a terceiros estes
direitos. A realidade demonstra que, para fins de financiamento imobiliário, as instituições
financeiras exigem matrícula própria com construção averbada, para fins de concessão do
empréstimo e registro da garantia (COUTO, p. 14).
6
Note que o título do livro é “Reflexões sobre o direito à propriedade” e não reflexões sobre o direito da
propriedade. Não é questão de semântica. De fato, em sua obra, o autor destaca o impacto que o direito formal da
propriedade privada provoca na vida de cada indivíduo e, em última análise, para o progresso de um país. Mas
destaca que a propriedade é um bem escasso e que, além da impossibilidade material de se conferir propriedade
a todos os indivíduos de um país, muitos destes indivíduos não suportariam os ônus que a propriedade privada
impõe.
7
A obra do Professor Denis é de 2008. Já aqui o autor sugeria que as situações possessórias fossem elevadas
à categoria de uma propriedade formal. Tal elevação de status destas “posses precárias” implicaria enormes
ganhos sociais. Pois bem, o novíssimo Direito Real de Laje consiste, exatamente, em elevar estas posses a um
patamar de direito real sobre coisa própria sem, no entanto, conferir aos possuidores do imóvel a condição de
proprietários. Entretanto, formalmente, estão equiparados a tanto.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
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A Lei nº 13.465, ao criar o Direito Real de Laje, não limitou que o seu uso fosse
apenas para fins de moradia. Portanto, o titular de um Direito Real de Laje pode utilizar
de sua unidade imobiliária até mesmo para fins comerciais. Tal possibilidade descortina
um novo cenário que, inegavelmente, se constitui em importante instrumento de
circulação de riqueza.
Isto sem falar de outra importância econômica estimulada por este instrumento
que, aliás, foi expressamente destacada na Lei nº 13.465: a possibilidade de que este novo
direito real possa ser utilizado como garantia real na obtenção de linhas de financiamento
a fim de estimular o crédito.
b) Repercussão social: elevando os possuidores a uma condição de titulares de um
direito real, estar-se-ia possibilitando a estes as mesmas condições de acesso a vários
serviços que hoje são restritos a proprietários de imóveis. Portanto, significaria para
estes possuidores um ingresso no mercado formal como “cidadãos e não como cidadãos
de segunda categoria no mercado. (...) pois esses indivíduos, pela valorização dos seus
ativos, poderiam melhorar a vida dos seus familiares, vindo a gozar de uma melhor
condição social” (ROSENFIELD, p. 82).
c) Repercussão política: conforme Couto, “pode-se extrair da exposição de motivos
da MP 759/2016, convertida na Lei 13.465/17, que o principal motivo para a criação do
novo direito real foi a ‘regularização fundiária de favelas’”: Veja-se:
Também uma política habitacional, com juros acessíveis e prestações fixas, propiciaria a
aquisição de moradia própria para os que ainda não a possuem. Haveria tanto a satisfação
de uma necessidade básica quanto o desenvolvimento do mercado imobiliário, com mais
empregos, renda e salários. Indivíduos proprietários são menos propensos ao clientelismo
político, que termina se desenvolvendo pela ausência mesma de direitos.
As favelas constituem um terreno particularmente favorável para uma política de
regularização fundiária, que possibilitaria a substituição da precariedade da posse pela
propriedade privada.8 A outorga de um título de propriedade9 faz com que o cidadão
8
Mais uma vez destaca-se: o que o autor sugeria em sua obra de 2008, com a transformação das posses (denominadas
de posses precárias pelo autor, numa alusão ao seu caráter de fragilidade) a um status da propriedade formal, é
alcançado com primor e maestria pela transformação das situações possessórias em Direito Real de Laje.
9
Podendo ser lido agora como a outorga de um título de Direito Real de Laje.
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venha a ser senhor dos seus bens, podendo, segundo a sua livre escolha, dispor deles.
(ROSENFIELD, p. 82).
Art. 63. No caso da Reurb-S, a averbação das edificações poderá ser efetivada a partir de
mera notícia, a requerimento do interessado, da qual constem a área construída e o número
da unidade imobiliária, dispensada a apresentação de habite-se e de certidões negativas
de tributos e contribuições previdenciárias.
Em outros termos: uma das maiores razões da informalidade que campeia nas
favelas reside no fato dos altos custos que são cobrados para a averbação das construções
ali erguidas, além de um processo extremamente demorado por exigência de tantas
burocracias.
Estamos tratando de área cuja característica maior de seus habitantes é a sua baixa
renda. Portanto, um dos maiores entraves à regularização dos terrenos ali encontrados
é o valor cobrado nos Cartórios de Imóveis. Tornar-se-ia inviável ao fim que se procura
atingir (regularização fundiária de interesse social) a exigência das formalidades, tais
como: averbação de construções, recolhimentos previdenciários.
Nas palavras de Couto:
(…) fora da esfera da regularização fundiária de interesse social, os trâmites para regularizar
uma construção junto ao ente municipal, para obter a certidão de quitação previdenciária
relativa à obra realizada e para averbar essa edificação no Registro de Imóveis é bastante
complexo, demorado e custoso. O resultado disso é a ausência de averbação de construção
na grande maioria das matrículas.
Toda essa burocracia representa um entrave na concretização do que se poderia chamar
de princípio da correspondência entre a situação fática e a matricial. Se o novo direito
real visa, de fato, possibilitar a regularização da situação registral de pessoas que ocupem
essas edificações sobrepostas, deveria facilitar o ingresso das construções na matrícula.
Um primeiro passo seria permitir que o município expeça o “Habite-se”, quando a
construção realizada, mesmo que em contrariedade às normas municipais de edificação,
já esteja concluída e consolidada pelo decurso do tempo, de modo que a demolição se
demonstre inviável.
ADRIANO STANLEY ROCHA SOUZA
DIREITO REAL DE LAJE: POTENCIALIDADES E DESAFIOS PARA SUA UTILIZAÇÃO NA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E RURAL...
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Conclusão
Por todo o exposto, comemoramos a criação de um instrumento jurídico, no seio
do Livro Direito das Coisas (outrora visto como o livro mais egoístico de nosso direito
Civil), que, efetivamente, se apresenta como forte meio de regularização do espaço
urbano e rural através da possibilidade conferida ao proprietário de, sem abrir mão de
sua propriedade e mantendo-a incólume e inviolável, permitir que terceiras pessoas se
utilizem do espaço aéreo e subsolo de sua construção-base sobre/sob a qual não tem
mais interesses ou condições de continuar a construir.
Constitui-se, portanto, em instrumento interessantíssimo a permitir o desmem
bramento da propriedade privada em outros direitos autônomos, sem em nada diminuir-
lhe o valor ou sua tutela.
Como toda novidade, este instrumento precisa de maturação. A formalidade
registral, por exemplo, constituirá sério entrave ao que este instituto se propõe a fazer
(regularização fundiária em área de interesse social) se não houver a flexibilização de
alguns procedimentos registrais.
Referência
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Roberto Paulino de. O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito
de superfície. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-jan-02/direito-laje-
nao-direito-real- direitosuperficie>. Acesso em: 03 jan. 2017.
CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1997.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Salvador: Juspodivm, 2014, v. 5.
FIUZA, César Augusto de Castro; COUTO, Marcelo de Rezende Campos Marinho. Ensaio sobre o Direito
Real de Laje como Previsto na Lei 13.465/2017. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 6, n. 2, 2017. Disponível em:
<http://civilistica.com/ensaio-sobre-o-direito-real-de-laje/04.04.2017>.
MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Curso de direito civil. São Paulo: Atlas, 2015. v. 5.
ROSENFIELD, Denis Lerrer. Reflexões sobre o direito à propriedade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
ROSENVALD, Nelson. O direito real de laje como nova manifestação de propriedade. Disponível em: <https://www.
nelsonrosenvald.info/single-post/2017/09/14/O-direito-real-de-laje-como-nova-manifestação-de-propriedade>.
Acesso em: 25 nov. 2017.
SARMENTO FILHO, Eduardo Sócrates Castanheira. O direito de superfície na legislação brasileira. Boletim
do IRIB em Revista, São Paulo, ed. 325, p. 88-97, mar./abr. 2006.
STOLZE, Pablo. Direito real de laje: primeiras impressões. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/54931>.
Acesso em: 5 jan. 2017.
WEINGARTEN, Marcelo; CYMBALISTA, Renato. Direito de laje: desafios. Disponível em: <http://sites.usp.br/
outrosurbanismos/direito-de-laje-2/>. Acesso em: 3 jan. 2017.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
SOUZA, Adriano Stanley Rocha. Direito Real de Laje: potencialidades e desafios para sua utilização na
ocupação do espaço urbano e rural e seus obstáculos registrais. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.).
Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 19-29. E-book.
ISBN 978-85-450-0591-9.
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS
JURÍDICOS PROCESSUAIS
1 Introdução
O texto que aqui se inicia tem por objeto justificar e demonstrar a aplicação do
princípio da boa-fé objetiva nos negócios jurídicos processuais atípicos. Tal aplicação,
conforme será abordado, é necessária pelo fato de que estes são contratos estipulados
pelas partes, nos termos do artigo 190, do CPC, com o intuito de estipularem regras
e condições novas ao processo judicial, buscando sua maior efetividade e celeridade.
Em um primeiro momento, será abordado o conceito da boa-fé objetiva, bem
como a comparação de como esta é aplicada em nosso ordenamento jurídico, no Canadá,
Inglaterra, Grécia e como se faz presente na CISG.
Posteriormente, será demonstrado o conceito dos negócios jurídicos processuais,
com uma breve análise histórica.
Por fim, serão correlacionados os negócios jurídicos processuais com a boa-fé
objetiva, especialmente pelo fato de que o CPC, em seu artigo 5º, já prevê a sua aplicação
no Código de Processo Civil.
1
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 32.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
32 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Essa boa-fé objetiva não é no sentido apontado pelo Código Civil de 1916, chamada de boa-
fé subjetiva, pois percebe-se que, além do elemento interno do contratante de julgar estar
agindo conforme procedimentos condizentes com a boa-fé, espera-se dele um plus exterior,
baseado no compromisso de lealdade, que pode ser resumido na obrigação de informação
e de cooperação que se expressa no dever de facilitar o cumprimento obrigacional, com
base nos critérios e limites usuais ditados pelos usos, costumes e boa-fé.10
2
REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica do contrato. 1. ed. São Paulo: Almedina,
2017, p. 70/71.
3
HÖSTER, Heinrich Ewald. A parte geral do Código Civil Português – teoria geral do direito civil. 5ª reimpressão.
Coimbra: Almedina, 2009, p. 53/54. Apud REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica
do contrato. 1. ed. São Paulo: Almedina, 2017, p. 71.
4
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
5
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
6
DRUCK, Tatiana Oliveira. O Novo Direito Obrigacional e os Contratos. In: TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direito
de Empresa e Contratos. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 45.
7
Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos: “A boa fé surge aqui como portadora de critérios de actuação honeste
a honrada, como padrão ou ‘standard’ jurídico. [...] A boa fé subjectiva e objectiva não são duas realidades
distintas, mas antes e apenas duas perspectivas distintas, ou dois diferentes pontos de partida, para submeter
as condutas jurídicas a um juízo de honestidade, de honradez e de decência” (VASCONCELOS, Pedro Pais de.
Teoria geral do direito civil. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 22/24.
8
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 412.
9
SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 33.
10
GARCIA, Ricardo Lupion. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, páginas 41/42.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
33
(...) significa uma atuação refletida, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro
contratual, respeitando-o, respeitando os seus interesses legítimos, suas expectativas
razoáveis, seus direitos, agindo com realidade, sem abuso, sem obstrução, sem causar
lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o
cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.12
Ou seja, é dever de cada parte guardar fidelidade à palavra dada e não defraudar
a confiança ou abusar da confiança alheia.13
A jurisprudência também já reconhece essa conceituação da boa-fé objetiva.14
É evidente que muitos dos deveres derivados de contratos não serão exigíveis
no caso de um acordo processual, tanto pelo fato de que os deveres emanam das
necessidades dos contratos quanto por cada acordo processual ter características próprias;
contudo, deveres como o de informação e declaração fazem bastante sentido quando
se leva em conta essas convenções das partes, principalmente nos casos envolvendo
pessoas em situação de vulnerabilidade, como nos contratos de adesão, de evidente
disparidade entre as partes, dentre outros.15
A doutrina reconhece três funções desempenhadas pela boa-fé objetiva nas
relações contratuais, quais sejam: i) função interpretativa, que consiste em interpretar
o contrato à luz do próprio princípio, conforme dispõe o artigo 422, do Código Civil;
ii) função supletiva ou integrativa, que, por sua vez, visa suprimir a existência de lacunas
e impõe o surgimento de deveres anexos ou laterais16 às partes (como dever de informar,
esclarecer e manter sigilo nas negociações; iii) função corretora,17 a qual possibilita ao
11
GARCIA, Ricardo Lupion. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 50.
12
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – o novo regime das relações contratuais.
2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 107.
13
PASQUALOTO, Adalberto. A boa-fé nas obrigações civis. Revista da Faculdade de Direito da PUCRS: o ensino
jurídico no limiar do novo século. Antonio Paulo Cachapuz Medeiros (Org.). Porto Alegre: EDIPURS, 1997,
p. 111.
14
O STJ, através do Resp n° 981.750/MG, da 3ª Turma, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, dissertou o
seguinte sobre o conceito da boa-fé objetiva: “A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade,
modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria
conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal”.
15
MANTOVANI, Alexandre Casanova. O princípio da boa-fé e os negócios jurídicos processuais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 3, n. 3, p. 128/129, 2017.
16
O Enunciado nº 24 da I Jornada de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça dispõe o seguinte: “Em virtude
do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui
espécie de inadimplemento, independentemente de culpa”.
17
Neste ponto, Judith Martins-Costa dispõe o seguinte: “(...) ao princípio da boa-fé é atribuída função de
controle/correção da conduta contratual cujo espectro tem sido progressivamente fixado por obra da doutrina
e da jurisprudência, traduzindo-se em cambiantes figuras parcelares. Estas atinem, basicamente, à coibição de
comportamentos deslealmente contraditórios e à vedação ao exercício disfuncional ou ao exercício excessivo de
posição jurídica. Exemplificamente, as figuras da supressio, venire contra factum proprium, tu quoque”. (MARTINS-
COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e do direito
civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono (Org.). A
Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 128/129).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
34 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Poder Judiciário18 realizar o controle judicial dos contratos com base na boa-fé objetiva,
visando evitar cláusulas abusivas e restaurar o equilíbrio econômico-financeiro do
contrato,19 conforme dispõe o artigo 187,20 do Código Civil.21
Diferentemente da interpretação (que deve ser feita em vista do conjunto e em
vista da finalidade econômico-social do negócio que marca o elemento teleológico), que
opera mediante palavras, textos, comportamentos, a integração opera sobre um vazio,
uma lacuna, preenchendo algo que deveria estar lá, mas não está.22 A função integrativa
da boa-fé objetiva, como fonte de deveres instrumentalmente necessários à realização
18
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PACTA SUNT SERVANDA. POSSIBILIDADE
DE MITIGAÇÃO. PRECEDENTES. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. CULPA EXCLUSIVA DA CONS
TRUTORA. SÚMULAS 5 E 7/STJ. DIREITO À RESTITUIÇÃO INTEGRAL DAS PARCELAS. ENTENDIMENTO
CONSOLIDADO NO STJ. DANO MORAL. OCORRÊNCIA. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO DESPROVIDO. 1. A
jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que o princípio do pacta sunt servanda pode ser
relativizado, principalmente diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do
dirigismo contratual. 2. Tendo a Corte de origem concluído que o descumprimento contratual decorreria de
culpa exclusiva da construtora, eventual conclusão no sentido de afastar a sua responsabilidade esbarraria
no óbice dos Enunciados n. 5 e 7/STJ. 3. Formada a convicção de que a rescisão contratual decorreu de culpa
exclusiva da recorrente, a restituição das parcelas pagas pela promissária compradora deve se dar de forma
integral, conforme entendimento consolidado nesta Corte Superior. 4. A alteração das conclusões adotadas pela
Corte de origem acerca da ocorrência do dano moral demandaria, necessariamente, reexame do acervo fático-
probatório, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto no Enunciado n. 7 deste Tribunal
Superior. 5. Agravo interno desprovido (AgInt no AREsp 1214641/AM, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO
BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 13.03.2018, DJe 26.03.2018).
CIVIL E PROCESSO CIVIL. CONTRATOS. DISTRIBUIÇÃO. CELEBRAÇÃO VERBAL. POSSIBILIDADE. LIMITES.
RESCISÃO IMOTIVADA. BOA-FÉ OBJETIVA, FUNÇÃOSOCIAL DO CONTRATO E RESPONSABILIDADE
PÓS-CONTRATUAL. VIOLAÇÃO. INDENIZAÇÃO. CABIMENTO. DANOS MORAIS E HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. REVISÃO. POSSIBILIDADE, DESDE QUE FIXADOS EM VALOR IRRISÓRIO OUEXORBI
TANTE. SUCUMBÊNCIA. DISTRIBUIÇÃO. CRITÉRIOS. 1. De acordo com os arts. 124 e 129 do CC/16 (cuja
essência foi mantida pelo art. 107 do CC/02), não havendo exigência legal quanto à forma, o contrato pode ser
verbal ou escrito. 2. Até o advento do CC/02, o contrato de distribuição era atípico, ou seja, sem regulamentação
específica em lei, de sorte que sua formalização seguia a regra geral, caracterizando-se, em princípio, como um
negócio não solene, podendo a sua existência ser provada por qualquer meio previsto em lei. 3. A complexidade
da relação de distribuição torna, via de regra, impraticável a sua contratação verbal. Todavia, sendo possível,
a partir das provas carreadas aos autos, extrair todos os elementos necessários à análise da relação comercial
estabelecida entre as partes, nada impede que se reconheça a existência do contrato verbal de distribuição. 4. A
rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por meio de conduta desleal e abusiva – violadora
dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade pós-contratual – confere à
parte prejudicada o direito à indenização por danos materiais e morais. 5. Os valores fixados a título de danos
morais e de honorários advocatícios somente comportam revisão em sede de recurso especial nas hipóteses
em que se mostrarem exagerados ou irrisórios. Precedentes. 6. A distribuição dos ônus sucumbências deve
ser pautada pelo exame do número de pedidos formulados e da proporcionalidade do decaimento das partes
em relação a esses pleitos. Precedentes. 7. Recurso especial não provido (STJ - REsp: 1255315 SP 2011/0113496-
4, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 13.09.2011, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de
Publicação: DJe 27.09.2011).
19
Com relação a modificações econômicas drásticas entre as partes durante o contrato, o nosso ordenamento
jurídico prevê, nos artigos 478 e 480, ambos do Código Civil, a teoria da onerosidade excessiva do contrato. No
âmbito dos contratos internacionais, existe a cláusula hardship, que prevê a possibilidade de revisão contratual
entre as próprias partes. Ver: GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva; RODRIGUES, Gabriela Wallau. A Utilização
de Cláusula Hardship nos Contratos Nacionais à Luz dos Contratos Internacionais. In: Direito internacional em
expansão: vol. 6. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 19/32.
20
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
21
REBOUÇAS, Rodrigo Fernandes. Autonomia privada e a análise econômica do contrato. 1. ed. São Paulo: Almedina,
2017, p. 74/75
22
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 124.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
35
(...) a boa-fé objetiva atua como mandamento imposto ao juiz de não permitir que o
contrato, como regulação objetiva, dotada de um específico sentido, atinja finalidade
oposta ou contrária àquela que, razoavelmente, à vista de seu escopo econômico-social,
seria lícito esperar.25
23
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 124.
24
AGUIAR JR., Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor: resolução. Rio de Janeiro: Aide,
1991, p. 91/92.
25
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 125.
26
“The logic of Justice Cromwell’s approach to good faith in common law Canada emerges as examples are
multiplied. As Justice Cromwell observes, the general good faith principle provides the foundation for
unconscionability, for example – which, after all, is based on fairness and a refusal by the judiciary to permit
one party from taking undue advantage of the other”. As another example, contractual interpretation uses good
faith as a touchstone because “considerations of good faith” help give effect to the intention of the parties at time
of contractual formation: parties “may generally be assumed to intend certain minimum standards of conduct”.
As a third example, the law of implied terms (particularly those terms implied by operation of law) are in the
words of the Supreme Court of Canada, used to redress “power imbalances in certain classes of contracts such
as employment, landlord lessee, and insurance contracts. And good faith obligations are regularly imposed by
statute law”. (Ver: O’BYRNE, Shannon; COHEN, Ronnie. The contractual principle of good Faith and the duty of
honesty in Bhasin v. Hrynew. Alberta Law Review, 53, 1, 1-34, Oct. 2015, p. 12).
27
“In Greek civil law the provisions of good faith are firmly grounded in the Germanic tradition. The Greek Civil
Code adopted a verbatim translation of the German good faith provision which was inserted at the same place
within the structure of the code. In German law, the concept of good faith is governed by the German Civil Code
(Bürgerliches Gesetzbuch) in Article 242 which states that the debtor has to perform his obligation according
to the requirements of good faith, taking customary practice into consideration. The correspondent article in
Greek Civil Code is Article 288 which stipulates that the debtor shall be bound to fulfill the performance in
accordance with the requirements of good faith taking also into consideration business usage. Even if the source
of inspiration of Article 288 is German law, this article goes further than Article 242 of German Civil Code,
stating that the debtor shall be bound to fulfill the performance in accordance with the requirements of good
faith. In other words, this means that the contractual obligations are not to be only interpreted in good faith,
but, moreover, each contractual obligation has to be adapted according to the demands of good faith. Therefore,
the provision of Article 288 is mandatory law. Consequently, the observance of good faith in the performance of
obligations cannot be limited or excluded in advance by a waiver or an agreement. According to Article 174 of
Greek Civil Code such a waiver or an agreement is null and void” (IFTIME, Emanuela. Good Faith in Greek civil
code. Journal of Public Administration. Finance & Law, 133-141, Jan. 2, 2015, p. 134).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
36 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
28
“The first explanation is deeply rooted in English contract law and its traditional foundation in an individualistic
ethic. This tradition implies that contractors will pursue their own (one-sided) economic interests and are under
no obligation to concern themselves with other party’s interests. Parties are under no legal obligation to cooperate
within the framework of this adversarial model. On the contrary, one can assume that each party will endeavor
to pursue only their narrow interests in the contractual process”. (Ver: PIERS, Maud. Good Faith in English Law –
Could a Rule Become a Principle? Tulane European & Civil Law Forum, 26, 1, 123-169, Jan. 2011, p. 130/131).
29
Artigo 7º (1) Na interpretação desta Convenção ter-se-ão em conta seu caráter internacional e a necessidade de
promover a uniformidade de sua aplicação, bem como de assegurar o respeito à boa fé no comércio internacional.
(2) As questões referentes às matérias reguladas por esta Convenção que não forem por ela expressamente
resolvidas serão dirimidas segundo os princípios gerais que a inspiram ou, à falta destes, de acordo com a lei
aplicável segundo as regras de direito internacional privado.
30
MISTELIS, Loukas. Preenchendo as lacunas da CISG – Artigo 7º e documentos relacionados à CISG –
Sobreposição, contradições e preenchimento de lacunas. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael
Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono (Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de
mercadorias: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 105.
31
MARTINS-COSTA, Judith. O princípio da boa-fé objetiva: notas comparativas entre as perspectivas da CISG e
do direito civil brasileiro. In: VENOSA, Sílvio de Salvo; GAGLIARDI, Rafael Vilar; TERASHIMA, Eduardo Ono
(Org.). A Convenção de Viena sobre contratos de compra e venda internacional de mercadorias: desafios e perspectivas.
São Paulo: Atlas, 2015, p. 118 e seguintes.
32
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes
estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus
ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou
a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação
somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se
encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
33
Art. 191. De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando
for o caso. §1º O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados
em casos excepcionais, devidamente justificados. §2º Dispensa-se a intimação das partes para a prática de ato
processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
37
Tal inovação tem relação direta com as alterações do papel atribuído ao juiz,
passando a dar mais liberdade às partes e retirando, consequentemente, a autonomia
do magistrado. Andrea Proto Pisani, desta forma, já dissertou sobre o assunto:
O caráter privado disponível do direito objeto do processo civil, por outro lado, fundamenta
o princípio da normal correlação entre titularidade do direito material e titularidade do
direito ou poder de ação, a excepcionalidade das hipóteses de legitimação extraordinária
dos sujeitos privados não titulares do direito substancial, assim como a excepcionalidade
do poder de ação e da obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público. Ademais,
o direito privado disponível do direito objeto do processo é tido como fundamento de
institutos tais como a conciliação judicial, o deferimento e a referência ao compromisso
legal, a eficácia da prova legal da confissão, da admissibilidade do recurso ao juízo arbitral
etc., institutos estes que podem ser previstos ou não em cada ordenamento positivo.34
34
PISANI, Andrea Proto. Público e Privado no Processo Civil na Itália. Revista da EMERJ, v. 4, n. 16, p. 24, 2001.
35
PISANI, Andrea Proto. Público e Privado no Processo Civil na Itália. Revista da EMERJ, v. 4, n. 16, p. 24, 2001.
36
RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo civil: negócios jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o
direito à participação na construção do caso concreto. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 88.
37
“Destarte, a democracia participativa avulta para destacar o papel não só de maior inserção do indivíduo nas
escolhas administrativas e legislativas, mas também e principalmente a partir do âmbito judicial, pois o acesso
ao Poder Judiciário é irrestrito, bastando lesão ou simples ameaça a direito para que este abra suas portas ao
indivíduo, ao povo – assumindo este a conotação ampla anteriormente exposta. Esta abertura, por assim dizer,
cria para os indivíduos em sociedade a possibilidade de exigir do Estado a concretização das promessas ainda
não realizadas e que dificilmente o serão através do Executivo e do Legislativo. Nesta perspectiva, o processo
passa a ser um valioso instrumento público posto a serviço do povo para viabilizar a essência da democracia que
está configurada nos direitos e garantias fundamentais” (RIBEIRO, Darci Guimarães. Da Tutela Jurisdicional às
Formas de Tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 103).
38
GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – Primeiras reflexões. In: Revista Eletrônica de Direito
Processual, 1. ed., p. 7, out./dez. 2007.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
38 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
39
GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Análise Econômica dos Negócios Jurídicos Processuais. Revista de
Processo, vol. 278, p. 497-519, abr. 2018, p. 503.
40
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do
Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 29.
41
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negócios jurídicos processuais no Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do
Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 30.
42
DIDIER JR., Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no Processo Civil. In: CABRAL,
Antonio do Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 20.
43
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil – Teoria Geral. Coimbra: Coimbra, 1990, p. 78-80, v. II. Apud DIDIER
JR., Fredie. Princípio do respeito ao autorregramento da vontade no Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do Passo;
NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 20.
44
O Professor Joan Picó i Junoy, em seu livro “O Juiz e a Prova”, defende o processo com uma visão mais “publicista”,
que o concebe como instrumento necessário para o exercício da função jurisdicional do Estado. Tal entendimento
é contrário à doutrina que sustenta que o processo civil seria um negócio particular e com um fim privado: a
defesa dos interesses pessoas (PICÓ I JUNOY, Joan. O juiz e a prova: estudo da errônea recepção do brocardo iudex
iudicare debet secundum allegata et probata, non secundum conscientizam e sua repercussão atual. Tradução Darci
Guimarães Ribeiro. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 98).
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
39
45
GAJARDONI, Fernando Fonseca. Flexibilização procedimental. São Paulo: Atlas, 2008, p. 215.
46
GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Análise Econômica dos Negócios Jurídicos Processuais. Revista de
Processo, vol. 278, p. 497-519, abr. 2018, p. 504.
47
DIDIER JR., Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no Código de Processo Civil de 2015. Revista Brasileira
da Advocacia, vol. 1, p. 3, 2016.
48
“Liberdade. Ao que nos parece, esta é a palavra de ordem do novo Código de processo Civil (CPC), tendo dois
eixos principais de sustentação: celebração de negócios processuais típicos pelas partes e estímulo à utilização
dos métodos alternativos de solução de controvérsias”. LIPIANI, Júlia; SIQUEIRA, Marília. Negócios Jurídicos
processuais sobre mediação e conciliação. In: DIDIER JR., Fredie (Coord.). Justiça Multiportas: mediação,
conciliação, arbitragem e outros meios de solução adequada de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 141.
49
ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Negócios Jurídicos Materiais e Processuais – Existência, validade e
eficácia – Campo-invariável e campos-dependentes: sobre os limites dos negócios jurídicos processuais. Revista
de Processo, ano 40, vol. 244, p. 395/396, jun. 2015.
50
MÜLLER, Julio Guilherme. Negócios Processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 93.
51
Daniel Mitidiero, por sua vez, utiliza o termo “colaboração”. O autor, ao dissertar sobre este princípio, dispõe o
seguinte: “A colaboração é um modelo que visa dividir de maneira equilibrada as posições jurídicas do juiz e das
partes no processo civil, estruturando-o como uma verdadeira comunidade de trabalho, em que se privilegia o
trabalho processual em conjunto do juiz e das partes. Em outras palavras: visa a dar feição ao aspecto subjetivo
do processo, dividindo de forma equilibrada o trabalho entre todos os seus participantes – com um aumento
concorrente dos poderes do juiz e das partes no processo civil” (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil:
pressupostos sociais, lógicos e éticos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 52).
52
Art. 6º - Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão
de mérito justa e efetiva.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
40 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
são os pactos firmados entre duas ou mais pessoas, com a finalidade de fixação de regras
entre elas e que servirão para normatizar – de forma distinta daquela prevista em lei –
algum aspecto processual ou procedimental da solução de eventual litígio que venha a
surgir, podem ser chamados de acordos, contratos ou convenções processuais.59
Nas palavras de José Miguel Garcia Medina, os negócios jurídicos podem ser típicos
ou atípicos. São típicos aqueles que se encontram, além de referidos expressamente,
também disciplinados na legislação. Atípicos, por sua vez, são os negócios processuais
53
ABREU, Rafael Sirangelo de. Customização processual compartilhada o sistema de adaptabilidade do novo CPC.
Revista de Processo, vol. 257, p. 52, jul. 2016.
54
Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais
estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
55
O processo civil é estruturado a partir dos direitos fundamentais que compõem o direito fundamental ao
processo justo, o que significa dizer que o legislador infraconstitucional tem o dever de desenhá-lo a partir do
seu conteúdo. Em outras palavras, o processo civil é ordenado e disciplinado pela Constituição, sendo o Código
de Processo Civil uma tentativa do legislador infraconstitucional de adimplir com o seu dever de organizar um
processo justo. Vale dizer: o Código de Processo Civil constitui direito constitucional aplicado (MARINONI, Luiz
Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO. Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 153).
56
Para melhor compreender o processo no Estado Democrático de Direito, ver: RIBEIRO, Darci Guimarães.
Da tutela jurisdicional às formas de tutela. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
57
JOBIM, Marco Félix; MEDEIROS, Bruna Bessa de. O Impacto das Convenções Processuais sobre a Limitação de
Meios de Prova. Revista de Direito Processual – REDP, Rio de Janeiro, ano 11, vol. 18, n. 1, p. 330, jan./abr. 2017.
58
VITIRITTO, Benedito Mário. Reflexões sobre o Negócio Jurídico Processual. In: O Julgamento Antecipado da Lide e
Outros Estudos. Belo Horizonte: Lemi, p. 112.
59
ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo das convenções processuais no processo civil.
São Paulo: LT, 2015, p. 112.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
41
60
MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao
CPC/1973. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 337.
61
DIDIER JR., Fredie. Negócios jurídicos processuais atípicos no Código de Processo Civil de 2015. Revista Brasileira
da Advocacia, vol. 1, p. 4, 2016.
62
DIDIER JR., Fredie; LIPIANI, Júlio; ARAGÃO, Leandro Santos. Negócios Jurídicos Processuais em contratos
empresariais. Revista de Processo, vol. 279, p. 44, maio 2018.
63
ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. A contratualização do processo das convenções processuais no processo civil.
São Paulo: LT, 2015, p. 112.
64
Para melhor compreender a relação de confiança entre advogados e juízes, ver: CALAMANDREI, Piero. Processo
e Democracia: Conferências realizadas na Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma do México.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 83/96.
65
Gustav Radbruch, ao analisar a competência do parlamento inglês, dispôs o seguinte: “A Rule of Law (autonomia
legislativa do magistrado) se apresenta de forma concorrente à soberania do parlamento. O grande jurista Coke
esforçou-se durante um tempo para vincular o parlamento e a legislação à Common Law, para declarar como
ilegais leis que violassem o Direito e a razão, mas mais tarde ele abandonou essa ideia a favor da soberania do
parlamento. O parlamento inglês era capaz de tudo, só não de transformar uma mulher em um homem e vice-
versa. Assim, pôde o parlamento anular ou modificar princípios jurídicos que a Common Law desenvolvera
na forma de precedentes. A competência ilimitada do parlamento encontra seus limites, em parte, no poder da
opinião pública e no prestígio do tribunal, e em parte na sábia autolimitação do parlamento”. (RADBRUCH,
Gustav. O Espírito do Direito Inglês e a Jurisprudência Anglo-Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 50).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
42 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
66
CALAMANDREI, Piero. Processo e Democracia: Conferências realizadas na Faculdade de Direito da Universidade
Nacional Autônoma do México. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017, p. 92.
67
Enzo Roppo dispõe o seguinte: “O contrato é, por regra, um ato, um negócio, bilateral. Isto é, para que exista
um contrato é necessário, por regra, que existam pelo menos duas partes, e que cada uma delas exprima a
sua vontade de sujeitar-se àquele determinado regulamento das recíprocas relações patrimoniais, que resulta
do conjunto de cláusulas contratuais. É necessário, em concreto, que uma parte proponha aquele determinado
regulamento, e que a outra parte aceite. O contrato forma-se precisamente quando essa proposta e essa aceitação
se encontram, dando lugar àquilo que se chama o consenso contratual”. (ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra:
Almedina, 2009, p. 73).
Luciano Benetti Timm, ao dissertar sobre o conceito de contrato, dispõe o seguinte: “Normalmente os juristas
enquadram o estudo do contrato dentro do campo das obrigações, entendendo o contrato como espaço de
autonomia privada, isto é, das regras que indivíduos se impõem mediante livre negociação, dentro do esboço
concedido pelo ordenamento jurídico”. (TIMM, Luciano Benetti. Artigos e ensaios de direito e economia. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 31/32).
68
MANTOVANI, Alexandre Casanova. O princípio da boa-fé e os negócios jurídicos processuais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano, n. 3, p. 119, 2017.
69
YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In: CABRAL,
Antonio do Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015, p. 77.
70
YARSHELL, Flávio Luiz. Convenção das partes em matéria processual: rumo a uma nova era? In: CABRAL,
Antonio do Passo; NOGUEIRA Pedro Henrique (Coord.). Negócios processuais Salvador: Juspodivm, 2015,
p. 67/77.
71
MANTOVANI, Alexandre Casanova. O princípio da boa-fé e os negócios jurídicos processuais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano, n. 3, p. 120, 2017.
DEMÉTRIO BECK DA SILVA GIANNAKOS
BOA-FÉ OBJETIVA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS
43
O próprio Código de Processo Civil, em seu artigo 5º, prevê a necessidade das
partes comportarem-se de acordo com a boa-fé. A doutrina estabelece que a boa-fé
mencionada em tal dispositivo legal se refere à boa-fé objetiva.72
Antonio do Passo Cabral, ao dissertar sobre a boa-fé nos negócios jurídicos
processuais, afirmou o seguinte:
6 Considerações conclusivas
O ensaio aqui realizado, longe de chegar a qualquer conclusão definitiva, provocou
a leitura dos negócios jurídicos processuais, a partir da aplicação da boa-fé objetiva,
tendo em vista a presença dos conceitos de Direito Privado aplicados ao processo civil.
O Código de Processo Civil de 2015 trouxe, diferentemente do CPC/1973, maior
liberdade às partes em privilegiarem a autonomia privada, bem como a composição,
sendo os negócios jurídicos processuais um reflexo desta mudança.
No curso da pesquisa, diante das mudanças entre componentes privatistas e
publicistas, foi possível, na entrada em vigor do CPC/2015, permitir um caráter mais
privatista entre as partes, deixando de lado, em certa forma, o protagonismo do juiz.
Diante dessa mudança de paradigma publicista para o privatista, a aplicação dos
fundamentos de Direito Privado ao processo se faz necessária e importante. Assim, o
estudo dos negócios jurídicos processuais é tema atual e fundamental na prática jurídica.
72
Cássio Scarpinella Bueno, ao analisar o artigo 5º, do CPC, dispõe o seguinte: “O art. 5º impõe a todos os que
participarem do processo – todos os sujeitos processuais, portanto – o dever de comportar-se de acordo com
a boa-fé. Trata-se de boa-fé objetivamente considerada e, por isso, vai além dos deveres de probidade de que
trata o art. 77 e, de resto, não se confunde com nem restringe às diversas situações em que a ausência de boa-fé
subjetiva é reprimida pelo CPC de 2015. A doutrina ensina que a boa-fé objetiva é verdadeira cláusula geral – e é
tratada como tal pelo art. 5º –, que encerra uma séria de comportamentos desejados ou esperados dos agentes em
geral e que, no plano do processo, de todos os sujeitos processuais que, em última análise, conduzem à proteção
da confiança legítima”. (BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018, p. 105).
73
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 318.
74
CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 318.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
44 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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46 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Boa-fé objetiva nos negócios jurídicos processuais. In: TEPEDINO,
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2019. p. 31-46. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
O CONTRATO ELETRÔNICO
NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
1 Considerações iniciais
Já há algum tempo, o espaço virtual não se limita às fronteiras do computador,
já que dispositivos móveis utilizam tecnologia multimídia, trazem a nota distintiva da
portabilidade e estão onipresentes, conectando pessoas nos mais diversos pontos do
planeta. Novos aparelhos são lançados com uma periodicidade avassaladora, tornando
os modelos anteriores rapidamente defasados e gerando a ânsia, nos consumidores, de
apresentar, nos círculos sociais, o último exemplar de dispositivo móvel. É o apelo ao
consumismo descomedido, traço indelével da sociedade da informação.
A disseminação, em escala mundial, de informações e de imagens mediante a
utilização das mídias digitais e o exponencial desenvolvimento dos meios informáticos
vêm fomentando o trabalho de pesquisadores para entender o alcance do fenômeno.
O advento da internet, em especial, tem provocado mudanças no desenvolvimento das
relações humanas e o Direito, reflexo que é da sociedade, vem sofrendo o influxo dessas
transformações, o que impõe enormes desafios aos juristas, legisladores e aplicadores.
As sociedades empresárias detectaram, nesse novo ambiente de pessoas
conectadas, um novo foco de atuação e começaram a expandir a atividade comercial
para essas áreas, indo ao encontro das demandas que então já se faziam prementes. São
travadas, então, relações virtuais que importam efeitos jurídicos. Os contratos eletrônicos
utilizam um sistema informatizado que permite ao consumidor concluir o negócio com
o fornecedor do bem ou serviço. Essa relação despersonalizada difere em grande medida
da clássica relação negocial levada a efeito em lojas físicas.
É amplo o campo de ação dos contratos eletrônicos, que demandam a criação de
uma lógica jurídica que reflita a complexidade virtual em que se encontra a sociedade,
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
48 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
perfazem entre pessoas presentes. É largo o campo de ação dos contratos eletrônicos, que
demandam a criação de uma lógica jurídica que reflita a complexidade virtual em que
se encontra a sociedade, capaz de interpretar a realidade social e adequar a solução ao
caso concreto na mesma velocidade das mudanças geradas pelos avanços tecnológicos.
O comércio eletrônico desponta como uma das atividades de maior relevância
econômica com o advento da internet. Hoje, inúmeros acordos são formalizados por
meio de contratações a distância, conduzidas por meios eletrônicos e sem a presença
física simultânea dos contratantes no mesmo local. Sobre esse fenômeno:
Nos anos recentes, a penetração da Tecnologia da Informação nas aplicações da vida real
transformou a maneira pela qual os negócios são transacionados. Uma dessas aplicações são
os Contratos Eletrônicos, que tornaram os negócios simples ao modelarem e gerenciarem
eficazmente os processos e tarefas envolvidos. Um contrato eletrônico (e-contract) é um
contrato modelado, especificado, executado, controlado e monitorado por um sistema de
software. Nos contratos eletrônicos, todas as (ou certo número de) atividades são realizadas
eletronicamente, superando os atrasos no sistema manual, assim como preconceitos do
corpo de empregados.1
Especial relevo deve ser dado à questão da legislação regulamentadora dos novos
institutos jurídicos que brotam nessa área. Não se trata, aqui, de tolher os avanços
tecnológicos, mas de prover um arcabouço normativo que zele pela confiança e proteção
do consumidor que contrate utilizando-se do meio virtual. Nesse sentido, qualquer
normatização que venha a tratar do assunto deverá ter o necessário grau de generalidade
e de flexibilidade para não se quedar defasada no tempo e para atender às características
próprias dessa seara na qual as marcas são a velocidade e a dinamicidade das mudanças.
Nessa linha, foi aprovado o “Marco Civil da Internet” (Lei nº 12.965, de 23 de abril
de 2014), iniciativa legislativa que visa à regulação da internet no Brasil, estabelecendo
princípios, garantias, direitos e deveres para os usuários da rede, além de disciplinar
a atuação do poder público no estabelecimento de mecanismos de governança multi
participativa, transparente, colaborativa e democrática, com a colaboração do governo,
do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica. A propósito, o
inventor do World Wide Web, Sir Tim Berners-Lee, divulgou uma declaração de apoio
ao marco civil brasileiro.2
A disseminação, em escala mundial, de informações e de imagens mediante a
utilização das mídias digitais e o exponencial desenvolvimento dos meios informáticos
vêm fomentando o trabalho de pesquisadores para entender o alcance do fenômeno.
O advento da internet, em especial, tem provocado mudanças no desenvolvimento das
relações humanas, e o Direito, reflexo que é da sociedade, vem sofrendo o influxo dessas
transformações, o que impõe enormes desafios aos juristas, legisladores e aplicadores.
Sobre o processo de globalização e o surgimento da internet, diz Boaventura de Sousa
Santos:
1
KARLAPALEM, Kamalakar; DANI, Ajay R.; KRISHNA, P. Radha. A Frame Work for Modeling Electronic
Contracts. Lecture Notes in Computer Science, Berlim: Springer-Verlag, 2001, v. 2224, p. 193 (tradução nossa).
2
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tim-berners-lee/>. Acesso em: 12 abr. 2018.
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50 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
3
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 25.
4
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 69.
5
ZITTRAIN, Jonathan L. The Generative Internet. Harvard Law Review, v. 119, n. 7, p. 1993-1994, maio 2006.
6
RODOTÀ, Stefano. Entrevista. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, Padma, ano 3, v. 11, p. 251-252,
jul./set. 2002.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
51
Portanto, isso implica necessariamente que além da relação contratual clássica, seja também
utilizada a inovação da assinatura eletrônica e os contratos telemáticos; assim dizendo, há
um aspecto que faz referência à pessoa.
7
PECK, Patricia. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 20.
8
BEHRENS, Fabiele. Assinatura Digital & Negócios Jurídicos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 117-121.
9
SCHMITT, Cristiano Heineck. A “Hipervulnerabilidade” do Consumidor Idoso. Revista de Direito do Consumidor,
São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 18, n. 70, p. 139-171, abr./jun. 2009.
10
MORATO, Antonio Carlos. O Conceito de Hipossuficiência e a Exclusão Digital do Consumidor na Sociedade
da Informação. In: MORATO, Antonio Carlos; NERI, Paulo de Tarso (Org.). 20 Anos do Código de Defesa do
Consumidor: Estudos em Homenagem ao Professor José Geraldo Brito Filomeno. São Paulo: Atlas, 2010, p. 11-13.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
52 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Diante desse quadro, tem-se que o Direito não tem desenvolvido soluções que
abarquem todo o fenômeno, o que tem gerado insegurança jurídica aos usuários quando
da efetivação da contratação eletrônica, em especial quanto à autenticidade das mani
festações de vontade. Daí por que o Direito não pode manter-se inerte, sob pena de
não mais atender aos anseios da sociedade. Deve, por conseguinte, adequar-se à nova
realidade para proporcionar a necessária estabilidade e segurança jurídica reclamadas
pelo cidadão. O Direito é responsável pelo equilíbrio das relações sociais e este só poderá
ser alcançado com a adequada interpretação da realidade social, instituindo normas que
garantam a segurança das expectativas e que incorporem as transformações por meio
de uma estrutura flexível que possa sustentá-la no tempo.
Analisando essa multiplicidade de condutas na qual o indivíduo pode expressar-
se, comunicar-se e interagir sobre qualquer tema com uma pluralidade de sujeitos em
todo o mundo, Lorenzetti constata o surgimento de um netcitizen, um navegador feliz,
mas socialmente isolado e sem capacidade crítica:
11
GRECO, Marco Aurelio. Internet e Direito. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2000, p. 14.
12
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 89.
13
LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 45.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
53
Com a Internet chega-se a resultados espantosos. O navegante na Internet, que pensa que
realiza uma pesquisa que não deixa indícios, está afinal a deixar atrás de si algo que é como
que o seu retrato. Os seus movimentos são gravados. Com eles consegue-se, através de
programas apropriados, traçar o perfil de cada internauta. E assim, quando ele se dirige a
um site comercial, por exemplo, o “navegador” (programa de busca) elaborou já com base
nos pedidos anteriores a informação que lhe concerne. A resposta que lhe é dada não é
uma resposta objetiva e uniforme, contra o que se supõe, mas uma resposta já adequada
às preferências detectadas daquele internauta.15
14
MARQUES, Claudia Lima. Confiança no Comércio Eletrônico e a Proteção do Consumidor: (um Estudo dos Negócios
Jurídicos de Consumo no Comércio Eletrônico). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 40.
15
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 160.
16
REINALDO FILHO, Demócrito. A Privacidade na “Sociedade da Informação”. In: REINALDO FILHO,
Demócrito (Coord.). Direito da Informática: Temas Polêmicos. São Paulo: Edipro, 2002, p. 39-40.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
54 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
17
KIDD, Donnie L. Jr.; DAUGHTREY, William H. Jr. Adapting Contract Law to Accommodate Electronic Contracts:
Overview and Suggestions. HeinOnline’s Law Journal Library. Disponível em: <http://heinonline.org/HOL/Land
ingPage?collection=journals&handle=hein.journals/rutcomt26&div=12&id=&page=>. Acesso em: 12 abr. 2018
(tradução nossa).
18
LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 68-81.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
55
o fenômeno, uma vez que especificidades inerentes a determinadas situações não são
levadas em conta. A questão, ademais de ser complexa, não admite uma única solução
que reflita a multiplicidade de fatores que a vida digital engendra. Por conseguinte, cabe
ao Direito servir de ponto de referência para evitar que a internet seja uma terra livre e
sem barreiras, onde impere a desconfiança nas relações jurídicas. É necessário preservar
a fluidez das relações e a democracia interna da rede, mas sem olvidar que a preservação
dos direitos individuais é e sempre será o objetivo maior a ser colimado. Flexibiliza-se o
Direito para adaptar-se às novas situações sem criar obstáculos ao livre desenvolvimento
da rede e ao comércio eletrônico em particular, que, com as incontáveis sociedades
empresárias que criaram oportunidades em todo o mundo, se tornará uma atividade
cada vez mais lucrativa e que impactará quase todas as organizações no longo prazo.19
No contrato eletrônico, emprega-se, total ou parcialmente, o meio digital para sua
celebração, cumprimento ou execução, ou seja, a transação é levada a efeito mediante
a transmissão de dados sobre redes de comunicação, abrangendo todas as atividades
negociais juridicamente relevantes e incluindo as fases anteriores e posteriores à
contratação. Não há limite para a territorialidade, pois o ambiente virtual não considera
as fronteiras nacionais e a documentação digital daí resultante vale como manifestação
de vontade e serve de registro não só dos dados da operação em si, mas também dos
relativos ao ofertante, ao aceitante e ao interceptor (no caso dos provedores de acesso
à internet).
As regras gerais concernentes aos contratos realizados em meio não digital, em
especial quanto à capacidade, objeto e efeitos contratuais, são plenamente aplicáveis, em
princípio, às transações realizadas no ambiente virtual. O consenso das partes, veiculado
eletronicamente, as vinculará. Por seu turno, o suporte eletrônico cumpre as mesmas
funções do papel. O meio virtual tem a atribuição de registrar o acordo de vontade e seus
consequentes efeitos jurídicos, como se um substrato escrito existisse, de modo que seja
possível efetuar o controle no âmbito negocial, jurídico, econômico e fiscal. Arquivam-se
em um banco de dados virtual todos os registros pertinentes à negociação, o que provê
a necessária segurança jurídica ao viabilizar a utilização de senhas criptografadas e de
assinaturas eletrônicas. Assim, vige o princípio da equivalência funcional, de modo que
não se pode considerar inválido ou ineficaz um contrato pelo simples fato de ter sido
registrado em meio magnético ou ter sido celebrado mediante transmissão eletrônica
de dados. Não pode, pois, o contrato eletrônico sujeitar-se a exigências diversas das
requeridas para os contratos celebrados pela via tradicional em papel. O art. 104, do
Código Civil, a propósito, prescreve a necessidade de capacidade das partes, de objeto
lícito, possível, determinado ou determinável, e de forma prescrita ou não defesa em
lei. Atendidos esses pressupostos, não há razão para se negar validade aos contratos
eletrônicos.
A declaração de vontade será imputável àquele a cuja esfera de interesses per
tença o programa utilizado na manifestação declarativa, pois o meio eletrônico apenas
operacionaliza o encontro de vontades entre os contratantes. Utiliza-se, aqui, a teoria
da aparência:20 o contratante que se dispõe a utilizar-se do meio eletrônico para efetivar
19
WARKENTIN, Merrill. Business to Business Electronic Commerce – Challenges and Solutions. Hershey: Idea Group
Publishing, 2002, p. i.
20
LORENZETTI, Ricardo Luis. Comércio Eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 283.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
56 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
suas transações, criando uma aparência de que aquele meio pertence à sua esfera
de interesses, deve suportar os riscos do negócio e responsabilizar-se pelo ônus de
demonstrar o contrário. Em razão da confiança no tráfico jurídico, a aparência criada
e a atuação baseada na confiança admitem que sejam imputadas obrigações, mesmo
que não tenham sido expressamente estabelecidas. Releva ressaltar a observância dos
deveres anexos impostos às partes, como o de informar sobre o meio utilizado para a
comunicação e o de utilizar um ambiente seguro. Essa aparência de que o meio digital
pertence à esfera de interesses do contratante não é absoluta e admite prova em contrário
de que o suposto emissor da mensagem não a enviou.
Quando a declaração é feita por intermédio de meio eletrônico, a oferta deverá
estar consubstanciada numa declaração unilateral de vontade, de caráter receptício,
direcionada a uma pessoa determinada, contendo a intenção de vincular-se no âmbito
de um negócio jurídico. Por seu turno, a aceitação também é uma declaração unilateral
de vontade com características similares à oferta. Ambas são passíveis de revogação,
podendo o declarante retirar-lhe o efeito, conforme estabelece o Código Civil, no art. 427:
“a proposta de contrato obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos
dela, da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso”. Entretanto, o art. 428, IV,
estabelece que deixa de ser obrigatória a proposta “se, antes dela, ou simultaneamente,
chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente”. Os contratos eletrô
nicos tornam praticamente impossível a retratação em função da velocidade com que são
perfectibilizados. Não obstante, se a retratação chegar à esfera de controle do receptor,
será factível a retirada dos efeitos da declaração volitiva.
O anonimato na internet é uma questão problemática. São inúmeros os casos de
mensagens enviadas por hackers, spams, páginas clonadas, ações de grupos virtuais etc.
Diante dessa situação, cabe à tecnologia fornecer as soluções possíveis ao problema da
identificação da autoria das informações na rede, de modo a determinar inequivocamente
a responsabilidade pelo envio de dados indesejáveis ou nocivos. A regra de identificação
é um ônus que deve recair sobre quem estiver em condições de cumpri-la com os menores
custos. Em princípio, são os intermediários da cadeia de comunicação digital que podem
representar esse papel, uma vez que contam com a possibilidade de estabelecer meca
nismos de controle para a identificação dos usuários. A evolução tecnológica propor
cionará os meios necessários para o cumprimento desse mister, cabendo aos juízes,
auxiliados por peritos, analisar objetivamente as possibilidades concretas em cada caso.
Se não tiver sido utilizado o mecanismo de controle adequado, o intermediário poderá
ser responsabilizado, pois não se muniu dos recursos necessários, objetivamente aferíveis,
para prover a identificação dos usuários que se utilizam de seus serviços. É evidente
que, nesse processo, não devem ser feridas a privacidade ou a liberdade de expressão
dos sujeitos intervenientes.
Questão bastante discutida é a que diz respeito ao local de celebração do contrato
eletrônico, uma vez que sua determinação fixará a competência, a lei aplicável e o caráter
nacional ou internacional do contrato.21 Há que se ressaltar que os contratantes, em regra,
21
É possível que as partes estabeleçam cláusula fixando o foro e a lei aplicável. A cláusula de eleição de foro é válida
em contratos comerciais nacionais (Súmula 335, STF: é válida a cláusula de eleição de foro para os processos
oriundos do contrato) e nos contratos internacionais (veja-se ARAÚJO, Nádia de. Contratos Internacionais. 2. ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 243 e seguintes). Nos contratos de consumo, nacionais ou internacionais, não
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
57
possuem domicílio no mundo real e que, nas cláusulas contratuais, são estipulados
os locais de cumprimento e as cláusulas de eleição de foro, em virtude de tratar-se de
direito dispositivo. Assim, em princípio, os locais de celebração e de cumprimento do
contrato são determinados quando de sua celebração, mas, na ausência de estipulação
pelas partes, o estabelecimento do local de celebração será aquele ditado pela legislação
(o Código Civil, nessa linha, reputa celebrado o contrato no lugar em que foi proposto –
art. 435). Se as partes residirem em países diferentes, a Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, em seu art. 9º, §2º, estabelece que a obrigação resultante do contrato
reputa-se concluída no lugar em que residir o proponente. Não obstante, em se tratando
de relação de consumo, adota-se o domicílio do consumidor como lugar de celebração,
em razão de sua vulnerabilidade. Essa perspectiva está em consonância com o princípio
constitucional de defesa do consumidor, pois, de outro modo, agravaria seu acesso à
justiça. Deve prevalecer, por conseguinte, a regra que beneficie o consumidor, em especial
no âmbito dos contratos eletrônicos internacionais.22
Ponto importante refere-se ao fato de a contratação eletrônica ser entre presentes
ou entre ausentes, uma vez que o meio utilizado não obedece a questões geográficas.
No Direito brasileiro, estabelece o Código Civil, no art. 433, que “considera-se inexistente
a aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante”.
O art. 434 dispõe que “os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a
aceitação é expedida, exceto: I – no caso do artigo antecedente; II – se o proponente se
houver comprometido a esperar resposta; III – se ela não chegar no prazo convencionado”.
Nessa linha, se o contrato é celebrado instantaneamente, não se trata de contrato
entre ausentes, mas entre presentes, uma vez que não há transcurso de tempo entre a
oferta e a aceitação. Se não o é, há um lapso temporal entre a oferta e a aceitação, podendo
ocorrer algum evento que impeça o aperfeiçoamento do negócio. Nesse caso, o contrato
se perfectibiliza quando o aceitante exterioriza sua vontade, enviando uma mensagem
eletrônica contendo sua aceitação, que ingressa no computador do ofertante. Ao chegar à
esfera de controle do destinatário, fecha-se o ciclo, ocorrendo a confluência de vontades
que constituirá o negócio. A aceitação, então, ocorre com a entrada da informação na
esfera de controle do proponente.
De tudo aqui exposto, conclui-se que, no que tange a seus aspectos essenciais, o
contrato eletrônico distingue-se com relação aos demais contratos no tocante à forma
e ao meio eleito para a veiculação da declaração de vontade. Não é espécie que difira
é válida a cláusula de eleição de foro (veja-se GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor: Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 567 e seguintes).
Nos contratos internacionais, não é válida a cláusula de eleição da lei, mas é válida a cláusula de arbitragem
(veja-se ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 311 e seguintes e
p. 415 e seguintes). A propósito, o art. 9º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, estabelece que
“para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem”. Seu §2º dispõe que
“a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente”. No caso do
citado art. 9º, essa regra será aplicada ao contrato eletrônico, pois existe disposição expressa acerca do lugar de
cumprimento da obrigação.
22
Essa visão não é compartilhada por parte da doutrina. Fábio Ulhoa Coelho adverte que “o contrato de consumo
internacional rege-se pelas cláusulas propostas pelo fornecedor estrangeiro, e às quais adere o consumidor
brasileiro. O Código de Defesa do Consumidor não se aplica a essa relação de consumo, porque a lei de regência
das obrigações resultantes de contrato, segundo o direito positivo nacional, é a do domicílio do proponente
(LICC, art. 9º, §2º)”. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 42.
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58 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos
perante um fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas,
culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. Por esta razão, as explicações
monocausais e as interpretações monolíticas deste fenómeno parecem pouco adequadas.
Acresce que a globalização – globalização como homogeneização e uniformização – sus
tentado tanto por Leibniz, como por Marx, tanto pelas teorias da modernização, como pelas
teorias do desenvolvimento dependente, parece combinar a universalização e a eliminação
das fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a diversidade local, a identidade
étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro. Além disso, interage de modo muito
diversificado com outras transformações no sistema mundial que lhe são concomitantes,
tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e,
no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental,
os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a
falência ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente orga
nizado, a democracia formal como condição política para a assistência internacional, etc.24
23
REIS, José. A Globalização como metáfora da perplexidade? Os Processos Geoeconômicos e o “Simples”
Funcionamento dos Sistemas Complexos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A Globalização e as Ciências
Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 105.
24
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 26.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
60 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
nesse contexto, de como e por que os seres humanos agem e vivem, estão questões
relacionadas à motivação e à responsabilidade de quem o faz, que, no mais das vezes,
obstruem a realidade e confundem a comunidade.25
Para Teubner e Fischer-Lescano,26 há distintos mercados globais, cada um com
regimes regulatórios próprios e com instâncias decisórias individuais, o que constituiria
uma “globalização policêntrica”. Seu motor primário seria uma acelerada diferenciação
da sociedade em sistemas sociais autônomos, cada qual se movendo dentro de suas
fronteiras territoriais, mas não se restringindo apenas aos mercados, e sim englobando
ciência, cultura, tecnologia, saúde, transporte, turismo, assim como política e direito,
cada um formando um sistema global autônomo.
Nesse encadeamento de ideias, falar das características da globalização pode
transmitir a falsa concepção de que se trata de um processo histórico linear e consensual.
Longe disso, é um extenso campo de conflitos que envolvem interesses hegemônicos,
Estados, grandes corporações e grupos sociais os mais diversificados, dentro dos quais
proliferam correntes e divisões significativas. No entanto, pairando por sobre todos
esses conflitos, o campo hegemônico atua na base do consenso entre seus membros mais
influentes, o que confere à globalização suas características dominantes, legitimando-as
como as únicas possíveis ou adequadas.27 Esse acordo sustenta-se, em grande medida,
na área econômica, escorada pelo consenso econômico neoliberal, caracterizado pelas
restrições à regulação estatal da economia e pela subordinação dos Estados nacionais
a agências multilaterais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco
Mundial e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Esses organismos têm uma
atuação mais significativa nos chamados países periféricos, dependentes do mercado
mundial e cujo desenvolvimento é vinculado ao desempenho das economias centrais
desenvolvidas,28 haja vista a imposição de agências multilaterais como os citados FMI
e Banco Mundial no sentido de que os países periféricos promovam ajustamentos
estruturais de suas economias a fim de viabilizar o financiamento de suas dívidas. Não
obstante, tendo em conta a lógica financeira que domina a economia real, mesmo os
Estados centrais estão tendo que ajustar-se em função das recentes crises financeiras
que têm abatido países de economia até então consideradas sólidas. Quando há bolhas
de consumo, inflação de ativos e expectativas irreais, seguem-se as crises no sistema
econômico, cujos prejuízos contaminam outras economias e repercutem nos pontos
mais distantes do mundo, disseminando as perdas globalmente, mesmo que a raiz do
problema atenha-se a um único país.29
Crises financeiras que possuem impacto global decorrem muitas vezes não de
questões financeiras, mas legais, uma vez que resultam na falta de confiança das pessoas
25
BERLIN, Isaiah. Historical Inevitability. In: BERLIN, Isaiah. The Proper Study of Mankind: an Anthology of Essays.
London: Pimlico, 1998, p. 121-122 e 190.
26
TEUBNER, Gunther; FISCHER-LESCANO, Andreas. Regime-Collisions: The Vain Search for Legal Unity in the
Fragmentation of Global Law. Michigan Journal of International Law, v. 25, n. 4, p. 1005-1006, 2004.
27
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os Processos da Globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
A Globalização e as Ciências Sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 27.
28
FRANKLIN, Rodrigo Straessli Pinto. Um Ensaio sobre a Dependência a partir das Relações Econômicas do Brasil
Contemporâneo. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2012, p. 9.
29
SADDI, Jairo. Notas sobre a Crise Financeira de 2008. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 11, n. 42, p. 34, out./dez. 2008.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
61
nos papéis emitidos, quer pelas instituições financeiras, quer pelos governos, que,
hoje em dia, representam a maior parte da propriedade e do fluxo mundial de valores
consubstanciados em contratos, títulos de propriedade, imóveis, garantias, entre outros.30
Essas crises poderiam ser contornadas ou minimizadas se os governos estabelecessem
padrões de conduta nos mercados e compelissem as instituições a manter seus registros
contábeis transparentes, tudo sob o império do Estado de Direito. Isso favoreceria a
segurança nas relações jurídicas, mormente quando essa crise centra-se na percepção da
falta de capacidade estatal para lidar com os novos fenômenos contratuais. Nessa linha, o
restabelecimento da ordem e da confiança nas instituições representa um grande desafio,
uma vez que diversos fatores contribuíram para a formação de uma nova mentalidade
que deve permear o direcionamento das políticas públicas: a incerteza generalizada no
futuro, o reconhecimento de que a sociedade atual é de risco, a ruptura que ameaça o
capitalismo e as modificações do sistema mundial de forças políticas.31
Essas crises mundiais, um singelo reflexo do fenômeno da globalização, exigem
um trabalho de reconstrução do Direito no sentido de ajustar-se às evoluções econômicas,
sociais e tecnológicas que repercutem não só no mundo financeiro, como nos exemplos
apresentados, mas, sobretudo, nas instituições jurídicas básicas, como a família, o
contrato, a propriedade e a responsabilidade civil. Essa atualização do Direito faz-se
necessária em função da insuficiência ou da obsolescência das normas do Direito clássico
para acompanhar as inovações que se fazem presentes e as crises que não cessam de
abalar os alicerces da sociedade. Cabe, então, ao Direito acompanhar as novas técnicas
econômicas, financeiras e industriais com o fito de criar comandos regulatórios no seio
da ordem jurídica. Resume Arnoldo Wald:
O jurista detectou a crise quando, na comparação das curvas do movimento dos fatos e
das leis, sentiu que tinha surgido uma nova problemática referente à adequação da norma
à realidade social e econômica. Trata-se, pois, de assegurar igual velocidade à evolução
jurídica e ao progresso tecnológico, evitando-se a mora do Direito em relação aos fatos,
que pode provocar a revolta dos fatos contra os códigos.
A arritmia entre a realidade e as normas provoca um nó de estrangulamento na vida
social e econômica. A mora do Direito pode decorrer tanto da falta de velocidade e de
criatividade do legislador, ou, ainda, de falhas técnicas dos juristas, como do misoneísmo
e do conservantismo das classes dominantes. Estas, efetivamente, podem negar ao país as
estruturas jurídicas correspondentes às necessidades que decorrem do seu desenvolvimento
econômico e social, como, ao contrário, podem antecipar-se aos fatos e apresentar soluções
justas e eficientes em relação aos novos problemas que estão surgindo, ou cujo aparecimento
pode ser previsto.
Cabe ao jurista acompanhar a realidade, vivendo os problemas do seu tempo, a fim de
poder realizar integralmente a sua função e combater no front movediço em que se constrói,
diariamente, o Direito de hoje e de amanhã.32
30
SOTO, Hernando de. The Crisis: It’s about Paper and not Bubbles. Revista de Direito Bancário e do Mercado de
Capitais, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 12, n. 45, p. 183-186, jul./set. 2009.
31
WALD, Arnoldo. O Direito da Crise e a Nova Dogmática. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 12, n. 43, p. 23, jan./mar. 2009.
32
WALD, Arnoldo. O Direito da Crise e a Nova Dogmática. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 12, n. 43, jan./mar. 2009, p. 32.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
62 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
33
SCHUMPETER, Joseph. Capitalism, Socialism and Democracy. 2. ed. New York: Harper & Brothers, 1950, p. 83.
34
CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Globalização e o Conceito de Humanidade: Racionalidade e Irracionalidade
Desafiando o Tratamento Jurídico das Relações Econômicas Internacionais. In: SILVA FILHO, José Carlos Moreira
da; PEZZELLA, Maria Cristina Cereser (Coord.). Mitos e Rupturas no Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008, p. 114.
35
IUDICA, Giovanni. Law & Globalization. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista
dos Tribunais, ano 13, n. 47, jan./mar. 2010, p. 175.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
63
36
IUDICA, Giovanni. Law & Globalization. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista
dos Tribunais, ano 13, n. 47, p. 176-177, jan./mar. 2010.
37
PAILLUSSEAU, Jean. L’Influence de la Mondialisation sur le Droit des Activités Économiques. Conference 4
Février 2008 – Grand’Chambre de la Cour de Cassation. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São
Paulo, Revista dos Tribunais, ano 11, n. 41, p. 255-257, jul./set. 2008.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
64 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
ativos e do poder dos fundos de investimento, em especial dos fundos de pensão, que
passaram a deter a maior parte do capital de diversas sociedades. Seu poder sobre o
mercado é determinante. Mais tarde, passaram a ser criadas novas formas de ativos e
de instrumentos financeiros, como os hedge funds e os fundos soberanos, que dispõem
de capital considerável e de participações societárias substanciais em todos os recantos
do planeta. A proliferação de produtos financeiros cada vez mais sofisticados é a nova
face do capitalismo.
A globalização, assim, se afigura como um processo oriundo da formação da
economia de mercado, aliado ao desenvolvimento das relações internacionais e à
necessidade de os Estados participarem desse processo histórico em que a correlação de
interesses é complexa e plural. Esse fenômeno está demarcado pelas forças do Estado,
do mercado e da sociedade civil, que, em conjunto, dão feição ao fenômeno e forçam a
reconfiguração de novas formas de agir e de encarar as relações, tanto na área pública
como no setor privado, dando nova dimensão, inclusive, a institutos jurídicos como a
família, a propriedade e o contrato.
Conforme aponta Eros Grau:
38
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988: Interpretação e Crítica. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 40 (grifos no original).
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
65
internacional. São conhecidas como droit doux ou soft law, que compreendem regras
cujo valor normativo é menos constringente que o das normas jurídicas tradicionais,
elaboradas por operadores da economia global sob os auspícios das organizações jurí
dicas internacionais e intimamente relacionados ao mundo econômico-financeiro dos
negócios internacionais, sob a égide do Direito Internacional do comércio.
Nesse panorama, o Direito positivo estatal elenca um conjunto de contratos
para os quais estabelece um regramento específico, segundo um modelo fixado pelo
legislador. São os contratos típicos ou nominados. No entanto, a lei deixa certa margem
para a livre convenção das partes, desde que não contrariem as normas cogentes que não
permitem estipulação convencional de conteúdo. Por seu turno, os contratos atípicos ou
inominados são modelos negociais que não possuem previsão expressa na legislação e
são livremente elaborados pelas partes contratantes para regrar interesses particulares.
Nos novos modelos contratuais, as relações jurídicas são mais complexas, o que não
permite enquadrá-los rigidamente em uma categoria ou outra, mesmo que esparsamente
previstos em legislações específicas, como é o caso do factoring, joint-venture, leasing,
know-how e franchising.
São contratos que absorvem um número ilimitado de cláusulas cada vez mais explícitas e
completas, de modo a excluir a apreciação dos contratos pelos tribunais, ensejando sempre
uma interpretação literal. Todas as formas de interpretação pelos princípios, divulgadas
no plano dos contratos continentais, tais como boa fé, equidade, intenção das partes, usos
e costumes, doutrina, etc., são vistas como elementos que perturbam a imagem de certeza
do contrato, criando “zonas de risco” não mais toleráveis na atualidade negocial.
Todas essas hipóteses constituem momentos de intersecção entre o direito (global) dos
contratos e o direito positivo estatal. Tal convergência pode ser explicada em razão da
cultura pragmática e flexível do sistema anglo-americano, base do direito global e fundada
no empirismo inglês e no evolucionismo biológico darwiniano da segunda metade do
século XIX. (...).39
39
FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas Inconclusos: Os Contratos entre a Autonomia
Privada, a Regulação Estatal e a Globalização dos Mercados. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 270.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
66 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
40
IUDICA, Giovanni. Law & Globalization. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista
dos Tribunais, ano 13, n. 47, p. 189, jan./mar. 2010.
41
MATTOUT, Jean-Pierre. Les Crises Bancaires et Financières: une Question de Régulation? La Régulation en
Question? Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 13, n. 47,
p. 167, jan./mar. 2010.
GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
67
4 Considerações finais
O fenômeno da globalização é moldado pela ausência de limitações territoriais
ou geográficas no que tange à atuação humana, sendo caracterizado pela virtualidade
e por mecanismos tecnológicos que encurtam as distâncias e promovem a comunicação
instantânea, sobressaindo-se, nesse ambiente, as novas formas de comunicação, que
adquiriram relevo com o surgimento da internet.
Os juristas debruçam-se sobre as questões levantadas pelo mundo virtual, dire
cionando esforços não só no sentido de regular determinados aspectos do mundo virtual,
mas também de criar a confiança naquele que utiliza a rede mundial de computadores.
Essa mobilização de forças tem como sustentáculo a necessidade de construir a trans
parência no meio virtual, proporcionando segurança às relações jurídicas, que devem ser
pautadas pela boa-fé das partes no que se refere à privacidade dos dados transitados e
ao dever de criar um ambiente seguro para a contratação. Ter consciência dos desafios e
dos problemas inerentes à utilização da internet é um passo importante para desenvolver
ações que visem à restituição da confiança que deve reger todas as relações jurídicas.
Em especial no que concerne aos aspectos controversos da contratação eletrônica,
o Direito aplicável ao mundo digital também tem guarida na maioria dos princípios
do Direito aplicável ao mundo físico. O novo olhar que lhe deve ser dirigido está,
principalmente, relacionado à postura de quem o interpreta. A tecnologia não cria espaços
imunes à aplicação do Direito. Partindo do pressuposto de que a sociedade está inserida
no processo de globalização, o grande desafio do operador do Direito é ser flexível o
bastante para adaptar seu raciocínio às novas situações e não criar obstáculos ao livre
desenvolvimento da rede. Assim, permitir-se-á maior adequação à realidade social,
provendo a dinâmica necessária para acompanhar a velocidade das transformações no
mundo virtual.
Presencia-se, nesse contexto, uma alteração nos paradigmas empresariais, um
maior poder de informação para o consumidor, uma maior agilidade na consecução de
suas transações (comerciais ou de cunho pessoal), configurando uma mudança de costu
mes propiciada pela era da tecnologia, na qual se põe em evidência o conhecimento. Nesse
42
COUTO E SILVA, Clóvis do. A Obrigação como Processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 31.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
68 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Referências
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GERALDO FRAZÃO DE AQUINO JÚNIOR
O CONTRATO ELETRÔNICO NO COMÉRCIO GLOBALIZADO
69
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
70 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
AQUINO JR., Geraldo Frazão de. O contrato eletrônico no comércio globalizado. In: TEPEDINO, Gustavo
et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
p. 47-70. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO
E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS:
AS CLÁUSULAS ÉTICAS
PAULO NALIN
1 Introdução
Falar em violações aos direitos humanos nos dias de hoje é, de modo intuitivo,
ir muito além daquela visão que coloca o Estado como o único e último protetor e
violador destes direitos. Quando pensamos nas violações aos direitos humanos que
envolvem, por exemplo, a utilização de mão de obra em condições análogas à escravidão;
a discriminação sistemática de minorias no mercado de trabalho; os grandes desastres
ambientais; a desocupação forçada de comunidades de seus locais de convívio em
detrimento da implantação de fábricas ou indústrias; somos automaticamente levados
a pensar nos abusos cometidos por entes privados, principalmente pelas empresas no
desenvolvimento de suas atividades comerciais.
Este cenário de abusos cometidos pelas empresas em detrimento dos direitos
humanos, que se perpetuou principalmente com o fenômeno da globalização econômica,
não passou desapercebido pela sociedade civil e pelos organismos internacionais de
proteção e promoção dos direitos relacionados à dignidade da pessoa humana, que
passaram a reivindicar a adoção de um atuar pautado na ética pelas empresas e a buscar
medidas para evitar e punir o abuso e as violações cometidas pelas empresas.
Frente às crescentes campanhas e processos de ativistas e organismos internacio-
nais e, ainda, à publicidade negativa que a violação aos direitos humanos desencadea
va, as próprias empresas (principalmente as transnacionais) perceberam a necessidade
de assumir responsabilidades pelos direitos humanos, estabelecendo iniciativas, sob a
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
72 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1
No presente artigo as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” serão utilizadas de forma
apartada, mas terão um sentido de complementaridade, para não se perder de vista que todos estes direitos
convergem à ideia de realização da dignidade da pessoa humana, de modo que seus sentidos podem – e devem –
se somar em busca da efetiva proteção das pessoas concretas que visam proteger. A diferenciação, como bem
ressalta Melina Fachin e Marcos Gonçalves, “deve ser razão da promoção de direitos, tomados em sua relação
integral de complementariedade, e não de divisão, subjugação e hierarquização de determinadas categorias em
face de outros”. (FACHIN, Melina Girardi; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. De fora, de cima, de baixo –
todos os sentidos da dignidade no discurso dos direitos. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais,
Curitiba, v. 2, n. 2, p. 78-94, jul./dez. 2016, p. 91).
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
73
2
“A visão ética dos negócios na maior parte da história tem sido quase totalmente negativa [...]. Muito
recentemente, é que uma maneira mais moral e mais respeitável de ver os negócios começou a dominar o âmbito
comercial”. Tradução livre de: “The ethical view of business for most of history has been almost wholly negative [...]. It is
only very recently that a more moral and a more honorable way of viewing business has begun to dominate business talk”.
(FERNANDO, Emmanuel Q. Business law and ethics. Manila, Philippines: Rex Book Store, 2012, p. 361-362).
3
FRIEDMAN, Milton. The social responsibility of business to increase its profits. The New York Times Magazine,
New York, 13 set. 1970. Disponível em: <http://www.nytimes.com/1970/09/13/archives/article-15-no-title.html>.
Acesso em: 28 set. 2017.
4
“Os direitos humanos eram vistos como pertencentes às responsabilidades dos governos e não das companhias,
e as violações aos direitos humanos eram vistas como matéria de políticas internas, nas quais as companhias não
deveriam, a princípio, intervir”. Tradução livre de: “Human rights were seen as belonging to the realm of government
concerns, not of companies, and human rights violations as internal political issues, with which companies should not,
on principle, interfere” (LEISINGER, Benjamin; SCHWENZER, Ingeborg. Ethical values and international sales
contracts. In: CRANSTON, Ross; RAMBER Jan; ZIEGEL Jacob. Commercial Law Challenges in the 21º Century.
Uppsala, Sweden: Iustus Förlag, 2007, p. 250).
5
“De acordo com o direito internacional tradicional, somente os Estados soberanos podem ser responsabilizados
diretamente pelas violações dos direitos humanos. Os atores não estatais (como rebeldes, organizações de
guerrilhas, corporações transnacionais e organizações criminosas) ou indivíduos não são responsáveis por tais
violações. Sempre que os atores não estatais violam os direitos humanos, somente os estados envolvidos podem
adotar medidas legais e serem obrigados a cessar tais violações tomando medidas nacionais adequadas. [...].
Como o processo de globalização, sob as condições do neoliberalismo, tende a aumentar ainda mais o poder
dos atores não estatais à custa do poder governamental, tais limitações do direito internacional representam um
grave problema estrutural e, ao mesmo tempo, são um grande desafio para o sistema internacional de direitos
humanos do século XXI”. Tradução livre de: “According to traditional international law, only sovereign states can be
held directly responsible for human rights violations. Non-state actors (such as rebels, guerilla organizations, transnational
corporations and criminal organizations) or individuals are not answerable to such violations. Whenever non-state actors
are found to violate human rights, only the states concerned are liable to legal action and may be obliged to put an end to
such violations by taking appropriate national measures. […]. As the process of globalization under the conditions of neo-
liberalism tends to further increase the power of non-state actors at the expense of governmental power, such limitations of
international law pose a serious structural problem and at the same time are a major challenge for the international human
rights system of the 21st century” (NOWAK, Manfred. Introduction to the International Human Rights Regime. Boston:
Martinus Nijhoff Publishers, 2003, p. 54).
6
“Com efeito, com a ampliação crescente das atividades e funções estatais, somada ao incremento da participação
ativa da sociedade no exercício do poder, verificou-se que a liberdade dos particulares – assim como os demais
bens jurídicos assegurados pela ordem constitucional – não carecia apenas de proteção contra ameaças oriundas
dos poderes públicos, mas também contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, advindas da esfera
privada [...] Nesse contexto, cumpre referir que expressivo rol de doutrinadores tem reproduzido a tendência
(por sua vez, não completamente imune a críticas) de reconduzir o desenvolvimento da noção de uma vinculação
dos particulares aos direitos fundamentais ao reconhecimento de sua dimensão jurídico-objetiva, de acordo
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
74 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
com a qual os direitos fundamentais exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar,
mas também promover e proteger, valores esses que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo o
ordenamento jurídico – público e privado – razão pela qual há muito os direitos fundamentais deixaram de
poder ser conceituados como sendo direitos subjetivos públicos, isto é, direitos oponíveis pelos seus titulares
(particulares) apenas em relação ao Estado” (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Boletim Científico:
Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, ano 4, n. 16, p. 193-259, jul./set. 2005, p. 205).
7
Referência à conhecida expressão “business and human rights” adotada na literatura especializada sobre o assunto.
8
O fenômeno da globalização pode ser analisado sob diversos ângulos, especialmente nos campos: econômico,
social, político, cultural e financeiro (BENACCHIO, Marcelo; VAILATTI, Diogo Basílico. Empresas Transnacionais,
globalização e direitos humanos. In: BENACCHIO, Marcelo (Coord.); VAILATTI, Diogo Basílio; DOMINIQUINI
Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e Direitos Humanos. Curitiba: CRV,
2016, p. 15).
9
SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. Revista Crítica de
Ciências Sociais, Coimbra, n. 48, p. 13, jun. 2007.
10
Ibidem, p. 14.
11
Ibidem, loc. cit.
12
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1999, p. 67
e 68.
13
“É possível, portanto, concluir que duas tendências acompanharam o desenvolvimento da globalização
econômica, e hoje, assim como o referido fenômeno, também são consideradas irreversíveis: i) a tendência de
diminuição da capacidade de controle dos Estados soberanos, sendo possível falar em uma introversão do
pensamento nacional de soberania; e ii) a tendência de redistribuição mundial da soberania, como a consequente
expansão subjetiva do DIP, marcada pelo surgimento e incremento da capacidade dos atores não estatais”
(PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional – Um estudo comparativo dos sistemas regionais
europeu, e africano. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23.)
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
75
capital e a total liberdade de comércio”,14 espectro este acabou por desencadear inúmeros
fenômenos, como ilustra Fernanda Schaefer:
14
GRAY, John. Falso amanhecer: os equívocos do capitalismo global. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 16.
15
SCHAEFER, Fernanda. Direitos Humanos e globalização econômica: compatibilidade de princípios? Constituição,
Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Curitiba, n. 1, p. 76-96, ago./dez.
2009, p. 83.
16
“Em termos reais, as fronteiras limites tornam-se mais porosas - sabemos mais sobre o que acontece além de
nossas fronteiras, viajamos mais facilmente além de nossas fronteiras, nossas ações afetam outros além de
nossas fronteiras de maneiras mais notáveis, estamos cientes desses efeitos e temos novas e mais profundas
oportunidades para nos envolvermos no comércio além de nossas fronteiras”. Tradução livre de: “In real terms,
boundaries become more porous – we know more about what happens beyond our boundaries, we travel more easily beyond
our boundaries our actions affect others beyond our boundaries in more pronounced ways, we are aware of these effects,
and we have new and more profound opportunities to engage in commerce beyond our boundaries.” (GARCIA, Frank
J. Between Cosmopolis and Community: Globalization and the Emerging Basis for Global Justice. New York
University Journal of International Law & Politics, Forthcoming, New York, v. 46, n. 1, research paper n. 298, p. 5-6,
2013).
17
CAMPOS, Luís; CANAVEZES, Sara. Introdução à globalização. Lisboa: Instituto Bento Jesus Caraça, 2007, p. 10.
18
CARDIA, Ana Cláudia Ruy. Empresas, direitos humanos e gênero: desafios e perspectivas na proteção e na
emancipação da mulher pelas empresas transnacionais. 2014, 198 p. Dissertação (Mestrado em Direito) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2014, p. 17.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
76 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
A década de 1990 é interpretada como a “época de ouro” para a mais recente onda
de globalização corporativa. As empresas transnacionais emergiram de forma robusta,
em quantidade e escala nunca antes vistas. Tais empresas conseguiram criar núcleos
de atividade econômica transnacionais, “sujeitos a uma única visão global estratégica,
operando em tempo real, conectadas e ao mesmo tempo ultrapassando economias
meramente ‘nacionais’ e suas transações ‘internacionais’”.20
Pode-se dizer que metade do comércio mundial passou a ser composto por tran
sações “internas” dentro de redes de entidades corporativas interconectadas, deixando
para trás os tradicionais negócios “externos” e imparciais realizados entre países.21 22
O Fundo Monetário Internacional (FMI), inclusive, quando trata da globalização,
relaciona o fenômeno de modo direto à interdependência econômica crescente entre os
países do mundo, provocada pelo aumento do volume e da variedade das transações
transfronteiriças de bens e serviços, assim como dos fluxos internacionais de capital, ao
mesmo tempo em que pela difusão acelerada e generalizada da tecnologia.23
As transnacionais, nesse cenário, “saíram-se bem, assim como as pessoas e
os países que souberam tirar proveito das oportunidades criadas por esse processo
transformador”.24 25
Nesta linha, José Renato Nalini é preciso ao destacar que: “sobrevivido às
intempéries, a instituição que pode ser considerada vencedora no século XX é a empresa.
19
Tradução livre de: “Las empresas transnacionales constituyen actualmente una de las expresiones más acabadas de la
interdependencia y la globalización crecientes en la sociedad internacional, configurándose como uno de los principales
agentes económicos tanto por su volumen de actividades como por su influencia en los diferentes aspectos de la vida
económica y social. En concreto, desde hacia ya varios años se viene mostrando una cierta inquietud en torno al influjo
que estas empresas pueden tener en el disfrute de los derechos humanos por parte de las poblaciones donde se asientan”
(ISA, Felipe Gómez. Empresas transnacionales y derechos humanos: desarrollos recientes. Lan Harremanak.
Revista de Relaciones Laborales, País Vasco, ed. especial, p. 55-94, 2006, p. 57).
20
RUGGIE, John Gerard. Quando negócios não são apenas negócios: as corporações multinacionais e os direitos
humanos. Tradução: Isabel Murray. São Paulo: Editora Planeta Sustentável, 2014, p. 17.
21
Ibidem, loc. cit.
22
Já em 1997, apontava José Eduardo Faria: “Essa fragmentação geoespacial das atividades produtivas vem
tornando possível uma ampliação sem precedentes do comércio intrafirmas (PETRELLA, 1996), com importantes
consequências para as engrenagens jurídicas do Estado-nação. Hoje, pelo menos 1/3 das atividades e negócios das
37 mil empresas transnacionais que atuam na economia globalizada – por meio de 200 mil filiais e subsidiárias –
é realizado entre elas próprias” (FARIA, José Eduardo. Direitos humanos e globalização econômica: notas para
uma discussão. Estudos avançados, São Paulo, v. 11, n. 30, p. 43-52, 1997, p. 45).
23
FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. World economic outlook: a survey by the staff of the International
Monetary Fund. Washington, D.C.: The Fund, 1980, p. 3. Disponível em: <http://www.imf.org/external/pubs/
WEOMAY/chapter1.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2017.
24
RUGGIE, Op. cit., p. 17.
25
No mesmo sentido, Giovani Iudica: “Os protagonistas, os atores principais, desta moderna forma de globalização,
que tem como palco o mercado planetário, são os comerciantes [...]. Os comerciantes que atuam hoje como
protagonistas da economia globalizada são os hipercomerciantes [...].”. Tradução livre de: “I protagonisti, gli
attori principali, di questa moderna forma di globalizzazione, che há come treatro il mercato planetário, sono i mercanti [...].
I mercatores che agiscono oggi come protagonisti dela economia mondializzata sono gli ipermercatores [...].” (IUDICA,
Giovanni. Globalizzazione e diritto. In: GUIMEZANES, Nicole. Leçons du droit civil: mélanges en l’honneur de
Françis Chabas. Bruxelles: Bruylant, 2011, p. 466).
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
77
Enquanto o Estado se encontra às voltas com a perda da soberania, conceito cada vez
mais relativizado, a empresa integra um sistema competente”.26
Entretanto, muitos outros tiveram menos sorte.
Com efeito, as empresas transnacionais27 e suas subsidiárias auxiliaram sobre
maneira no desenvolvimento e na melhoria da qualidade de vida em várias localidades
do globo. Contudo, tais empresas são amplamente conhecidas “pela violação de direitos
humanos e pelo menosprezo em minimizar os riscos que suas atividades causam para
os direitos humanos”.28
Não é novidade alguma as consequências desencadeadas pelo processo de globa-
lização econômica: surgiram muitas evidências de trabalho em condições análogas às de
escravo em fábricas que prestavam serviços a famosas marcas internacionais; comunida-
des nativas locais foram desalojadas sem qualquer assistência ou posterior reparação para
darem lugar a empresas de petróleo e gás; o trabalho infantil, de crianças de pouquíssima
idade, foi desvelado, principalmente em plantações de propriedade de empresas de ali-
mentos e bebidas; provedores de serviços de internet e empresas da área de tecnologia
da informação entregaram informações de seus usuários a agentes do governo.29
Com a globalização e a propagação das empresas transnacionais, o nível de
exclusão social e de opressão por parte dos poderes sociais, “cuja influência tem crescido
vertiginosamente na mesma proporção em que o Estado se demite ou é demitido de
suas funções regulatórias e fiscalizatórias”,30 aumentou imensuravelmente. E algumas
das possíveis causas do problema são observadas por John Ruggie:
Empresas que operam globalmente não são regulamentas como tal. Em vez disso, cada
uma das entidades que as compõem individualmente está sujeita à jurisdição nas quais
ela atua. Mas, mesmo nos países em que as leis nacionais condenam a conduta abusiva, o
que não pode ser sempre subestimado, os Estados muitas vezes deixam de implementá-
las – devido à falta de capacidade, ao medo das consequências que podem ser geradas
pela concorrência ou porque seus líderes colocam ganhos particulares acima do bem-estar
público.31
26
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 297.
27
Sobre o assunto, Julia Ruth-Maria Wetzel: “A importância, a influência e o poder das corporações transnacionais
se desenvolveram com o comércio global em expansão. No entanto, com esse crescente impacto corporativo
na economia e na sociedade humana, surgiram problemas crescentes de violações aos direitos humanos: as
tribos indígenas queixaram-se de violações de direitos humanos, as quais incluíram assassinatos, destruição de
propriedade, ou expropriação cometidas por governos nacionais com o apoio de corporações transnacionais”.
Tradução livre de: “The importance, influence and power of transnational corporations developed with expanding global
trade. With this growing corporate impact on economy and human society, however, came increasing human rights problems:
native tribes complained of human rights violations including murder, property destruction, rape or expropriation committed
by national governments with the backing of transnational corporations”. (WETZEL, Julia Ruth-Maria. Human Rights
in Transnational Business: translating human rights obligations into compliance procedures. Luzern, Switzerland:
Springer, 2015, p. 1).
28
DANIELE, Anna Luisa Walter de Santana; PAMPLONA, Danielle Anne. Empresas de tecnologia e direitos
humanos: diagnósticos e avanços no setor. In: GOMES, Eduardo Biacchi; LEAL, Mônica Clarissa Henning;
PAMPLONA, Danielle Anne (Coord.); FACHIN, Melina Girardi; ROSSI, Amélia do Carmo Sampaio (Org.).
Direitos Humanos sob a perspectiva global: estudos em homenagem à Flávia Piovesan. Curitiba: Instituto Memória,
2017, p. 372.
29
RUGGIE, 2014, p. 17-18.
30
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, “mínimo existencial” e o direito privado: alguns aspectos
da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO,
Flávio. Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar,
2006, p. 578.
31
RUGGIE, Op. cit., p. 18.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
78 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
32
CARVALHO NETO, Frederico da Costa; PASSARELLI, Rosana Pereira. Empresas transnacionais, ordem
econômica e direitos humanos. In: BENACCHIO, Marcelo (Coord.); VAILATTI, Diogo Basílio; DOMINIQUINI,
Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e Direitos Humanos. Curitiba: CRV,
2016, p. 15.
33
SILVA, Ana Rachel Freitas da; PAMPLONA, Danielle Anne. Os princípios orientadores das Nações Unidas sobre
empresas e direitos humanos: houve avanços? In: BENACCHIO, Marcelo (Coord.); VAILATTI, Diogo Basílio;
DOMINIQUINI Eliete Doretto (Org.). A sustentabilidade da relação entre empresas transnacionais e Direitos Humanos.
Curitiba: CRV, 2016, p. 150.
34
“Somente em algumas circunstâncias as leis internacionais de direitos humanos chegaram diretamente às
companhias – por exemplo, se elas cometem ou são cúmplices em violações claras aos direitos, como em casos de
genocídio, crimes de guerra, tortura, execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados ou práticas análogas
à escravidão. Mas, mesmo nesses casos, a lei só pode ser aplicada em jurisdições nas quais as acusações possam
ser feitas contra as companhias” (RUGGIE, 2014, p. 35).
35
Ibidem, p. 29.
36
PIOVESAN, Flávia. Empresas e direitos humanos. O Globo, Rio de Janeiro, 2 fev. 2017. Disponível em: <https://
oglobo.globo.com/opiniao/empresas-direitos-humanos-20859445#ixzz4rXiANySw>. Acesso em: 2 set. 2017.
37
RUGGIE, Op. cit., p. 18.
38
Como apontam Doreen McBarnet e Patrick Schmitd, a tecnologia serviu, também, para expandir a comunicação
global e para tornar uma notícia instantânea no mundo todo. Desta forma, não há mais como as grandes
companhias “esconderem” suas condutas antiéticas. Nas palavras dos autores:
“Há agora, como é frequentemente dito, nenhum lugar seguro para a atividade corporativa. A internet fornece
um fórum pronto para a crítica e a publicidade, assim como no caso de Mike Kasky em sua campanha contra
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
79
Nos últimos anos, famosas empresas, especialmente as que atuam a nível global,
começaram a perceber que o comportamento ético pode, de fato, ter um impacto positivo
e, inversamente, um comportamento não ético, pode ter um impacto negativo sobre os
negócios. Um estudo recente de Claude Fussler concluiu que a performance responsável
compensa financeiramente. [...] Dados os fatores diferentes que também desempenham
um papel em tais estudos e que influenciam o resultado e o desempenho, talvez seja mais
convincente tomar a abordagem oposta e mostrar que o comportamento em desarmonia
com padrões éticos não compensa.39
a Nike”. Tradução livre de: “There is now, it is frequently said, ‘no hiding place’ for corporate activity. The internet
provides a ready forum for instant criticism and publicity, with websites on all kinds means ever one person can have
a major impact, as in the case of Mike Kasky in this campaigns against Nike.” (MCBARNET, Doreen; SCHIMITD,
Patrick. Corporate social responsibility beyond law, through law, for law: the new corporate accountability.
In: CAMPBELL, Tom; MCBARNET, Doreen; VOICULESCU, Aurora. The new corporate accountability: Corporate
Social Responsibility and the Law. New York: Cambridge Press, 2007a, p. 15).
39
Tradução livre de: “During recent years, publicy listed firms, especially those acting on a global level, have started to
realize that ethical behavior can, in fact, have a positive impact, and, conversely, unethical behaviour a negative impact on
their business. A recent study by Claude Fussler concluded that responsible excellence pays. [...] Given the different factors
that also play a role in such studies and that influence the outcome and the performance, it is perhaps more convincing to
take the opposite approach and show that unethical behavior does not pay.” (LEISINGER, Benjamin. SCHWENZER,
Ingeborg. Ethical values and international sales contracts. In CRANSTON, Ross; RAMBER Jan; ZIEGEL Jacob.
Commercial Law Challenges in the 21º Century. Uppsala, Sweden: Iustus Förlag, 2007, p. 250-251).
40
Tradução livre de: “ha establecido iniciativas voluntarias para tratar de incorporar normas y principios éticos y de derechos
humanos en sus actuaciones” (ISA, 2006, p. 59).
41
PIOVESAN, 2017.
42
PIOVESAN, 2017.
43
“O argumento para a responsabilização direta das corporações transnacionais pelos direitos humanos é inspirado
principalmente pelo papel crescente dos atores não estatais no sistema internacional em geral”. Tradução livre
de: “The case for direct human rights responsibility of transnational corporations is mainly inspired by the changing
role of non-state actors in the international system generally […]” (BRABANDERE, Eric de. Non-state actors and
human rights: corporate responsibility and the attempts to formalize the role of corporations as participants
in the international legal system. In: D’ASPREMONT Jean. Participants in the international legal system: multiple
perspectives on non-state actors in international law. Abingdon: Routledge, 2011, p. 270).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
80 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
44
A aproximação entre as empresas e os direitos humanos, muitas vezes referida
sob o enfoque da “ética” nas empresas,45 é resultado, em grande parte, do trabalho
desenvolvido pela Organização das Nações Unidas (e de outros órgãos internacionais),
que, desde a década de 1970, vem lançando inúmeras iniciativas com o propósito de
buscar alternativas para promover os direitos humanos na atividade comercial,46 o que
acabou por influenciar as empresas a adotarem, de forma voluntária, medidas voltadas
à proteção dos direitos humanos, sob o viés da Responsabilidade Social Corporativa.47
Com efeito, a responsabilidade das empresas e das grandes transnacionais abrange
as dimensões econômica, social e ética, sendo esperado que tais entes conduzam seus
negócios com boa-fé e em observância aos direitos humanos.48 Atualmente, o valor da
aderência aos “human rights standards” é substancial no mundo corporativo, eis que os
próprios padrões éticos se tornaram globalizados e altamente visíveis.
O atendimento ao dever de proteção aos direitos humanos no âmbito empresarial
acontece, em grande medida, por intermédio dos contratos celebrados pelas empresas,
principalmente nos contratos internacionais firmados entre empresas de diferentes
países. A adoção das medidas de Responsabilidade Social Corporativa pelas empresas
para o atendimento a valores éticos restou reproduzida nas relações contratuais, através
da inserção de disposições contratuais que proíbem, previnem ou sancionem violações
a direitos humanos.
Assim, como será pormenorizadamente explicitado a seguir, a aproximação das
empresas e dos direitos humanos ensejou a incorporação de padrões éticos nos contratos
celebrados no “mundo dos negócios”, sendo esta uma das mais importantes ferramentas
para a problemática que circunda as graves violações aos direitos humanos provenientes
da atividade empresarial.
44
“Os Estados eram os principais alvos das regras e regulamentos de direitos humanos, porque acreditava-se que
eles eram os únicos capazes de violá-los. O papel tradicional do Estado, como principal infrator e promotor
dos direitos humanos, foi desafiado nos últimos anos, quando o aumento das grandes corporações fez com que
estas assumissem funções similares às do Estado. Com este novo equilíbrio de poder no direito internacional
surgiu uma nova compreensão de deveres e responsabilidades: os direitos dos indivíduos dão origem a uma
variedade de deveres, bem como a uma variedade atores que devem respeitá-los” Tradução livre de: “States were
the primary targets of human rights rules and regulations because it was believed that they alone were capable of violating
them. The traditional role of the state, as primary violator and promoter of human rights, has been challenged in the last few
years when the rise of big corporations saw them take on similar functions as the state. With this newfound power balance
in international law comes a new understanding of duties and responsibilities: rights of individuals give rise to a variety of
duties as well as to a variety of duty holders.” (WETZEL, 2015, p. 93).
45
“A observância de direitos fundamentais pode ser vista como o núcleo das práticas negociais éticas”. Tradução
livre de: “The observance of fundamental human rights can be said to lie at the heart of ethical business practical”.
(MUCHLINSKI, Peter. Human rights and multinational enterprises. In: CAMPBELL, Tom; MCBARNET Doreen;
VOICULESCU, Aurora. The new corporate accountability: Corporate Social Responsibility and the Law. New York:
Cambridge Press, 2007, p. 437).
46
Entre outras entidades internacionais, a Organização das Nações Unidas foi e é uma das grandes responsáveis
pelo desenvolvimento de medidas concretas que visam aproximar as empresas e os direitos humanos, para
que os entes privados se vinculem a estes direitos e respondam por eventuais violações. A ONU, inclusive,
lançou os “Princípios Orientadores da ONU para Empresas e Direitos Humanos” (“Guiding Principles on Business
and Human Rights for implementing the UN Protect, Respect and Remedy Framework”) – que ficaram conhecidos
como “Princípios Ruggie”, uma plataforma normativa e recomendações para políticas de alto nível para o
fortalecimento da proteção dos direitos humanos frente às violações causadas por empresas.
47
Historicamente, a Responsabilidade Social Corporativa, que surgiu no seio da academia de Economia, focou no
voluntarismo corporativo e na responsabilidade das empresas frente ao seu papel desempenhado na sociedade.
O debate sobre a RSC teve início na década de 1930, tomando força em 1950, e apenas décadas depois é que a RSC
se aproximou dos temas atinentes aos direitos humanos, em particular, em um primeiro momento, daqueles que
tocam às normas antidiscriminatórias e aos direitos trabalhistas.
48
MUCHLINSKI, Op. cit., p. 435.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
81
49
“Embora seja dever primordial dos Estados salvaguardar seus cidadãos e seu bem-estar, ou seja, implementar
direitos humanos universalmente aceitos, isso pode ser difícil na prática. Nesse sentido, tornou-se mais difícil
fazer isso em um mundo globalizado, eis que os abusos aos diretos humanos geralmente ocorrem muito longe
da sede da corporação, como a poluição na Nigéria ou o uso das condições de trabalho inseguras em Bangladesh.
As empresas multinacionais geralmente geram lucros maiores do que os Estados”. Tradução livre de: “While it is
primaly the duty of states to safeguard its citizens and their well-being, in other words implementing universally accepted
human rights, this can be difficult in practice. In one sense, it has become harder to do this in a globalized world and human
rights abuses often occur far away from the corporation’s headquarters, like the pollution in Nigeria or use of the unsafe
working conditions in Bangladesh. Multinational corporations often generate profits larger than states”. (BUTLER, Pietra.
The CISG – A secret weapon in the fight for a fairer world. In: SCHENZER, Ingeborg. 35 years CISG and beyond.
Haia: Eleven International Publishing. 2016, p. 296).
50
As estatísticas foram extraídas do texto: LEISINGER; SCHWENZER, 2007.
51
Tradução livre de: “if you think compliance with ethical criteria is expensive try non-compliance” (LEISINGER;
SCHWENZER, 2007, p. 251).
52
O contrato, como expõe Carlos Pianovski Ruzyk, pode ser visto como “um instrumento de livre desenvolvimento
da personalidade”, para a realização de aspirações existenciais. (RUZYK, Pianovski. Institutos fundamentais do
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
82 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Direito Civil e a liberdade: repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de
Janeiro: GZ Editora, 2011, p. 274).
53
“Um método de transformação de padrões privados em leis é usado pelos próprios atores particulares: as
obrigações contratuais que visam ao cumprimento de determinadas normas sociais podem ser criadas através
da incorporação de códigos de conduta em contratos privados”. Tradução livre de: “One method of transformation
of private standards into hard law is used by the private actors themselves: contractual obligations of compliance with
certain social standards can be created by incorporating Codes of Conduct into private contracts”. (KOCHER, Eva. Private
standards between soft law and hard law: the German case. International Journal of Comparative Labour Law and
Industrial Relations, v. 18, n. 3, p. 265-280, fall 2002, p. 266).
54
MITKIDIS, Katerina Peterkova. Sustainability Clauses in international supply chains contracts: regulations,
enforceability and effects of ethical requirements. Nordic Journal of Commercial Law, n. 1, p. 5, 2014.
55
“Quanto à consideração da relação contratual como um todo complexo, que leva em conta não apenas o período
de duração do contrato, mas, também, os momentos pré e pós contratuais, além das obrigações que não se
esgotam naquelas relacionadas à prestação principal, destacamos a conhecida concepção da ‘obrigação como
processo’, que tem como principal expoente Clóvis de Couto e Silva, para quem a obrigação é uma totalidade
orgânica donde advém o “conceito de vínculo como uma ordem de cooperação, formadora de uma unicidade
que não se esgota na soma dos elementos que a compõem” (SILVA, Clóvis Veríssimo de Couto e. A obrigação como
processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007, p. 22).
56
A adoção do termo “cláusulas éticas” encontra respaldo no vocábulo utilizado por Ingeborg Schwenzer. A jurista
alemã, que foi uma das primeiras a tratar do tema e é considerada como um dos principais marcos teóricos deste
trabalho, utiliza a expressão ethical standards em diversos textos em que cuida do assunto, como, por exemplo,
nos artigos “Ethical values and international sales contracts” e “Ethical standards in CISG contracts” e no livro “Global
sales and contract law”.
57
Quanto às previsões anticorrupção, destaca-se o avanço da legislação brasileira que, na famigerada Lei
Anticorrupção (Lei nº 12.846/ 2013), a qual entrou em vigor no ano de 2014, regulamenta a responsabilização
administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou
estrangeira.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
83
O uso de contratos para fins não relacionados à troca privada também altera a noção de
contrato como tal. Da troca de promessas exigíveis juridicamente, os contratos estão se
tornando ferramentas relacionais. Dos quadros das transações privadas, eles se movem para
a regulamentação do comportamento em geral. De contratos entre partes independentes,
eles se aproximam de um tipo de organização. Essas mudanças podem ser observadas
em vários contratos comerciais internacionais. Contudo, é nas cláusulas contratuais de
sustentabilidade que todas elas estão presentes ao mesmo tempo.58
58
Tradução livre de: “The use of contracts for other than private exchange related purposes also shifts the notion of contract
as such. From enforceable exchange of promises, contracts are becoming relational tools. From frameworks of private
transactions, they move towards regulation of behaviour in general. From contracts between independent parties, they come
closer to a type of organization. These shifts can be observed in a number of international business contracts. But it is in
sustainability requirements that all of them are present at once.” (MITKIDIS, 2014, p. 6).
59
SCHWENZER, Ingeborg; HACHEM, Pascal; KEE, Chistopher. Global Sales and Contract Law. Oxford: Oxford
University Press. 2012, p. 381.
60
SCHWENZER, Ingeborg. Ethical standards in CISG contracts. Uniform Law Review, Oxford, v. 22, p. 122-131, mar.
2017.
61
Apesar de a discussão acadêmica sobre o assunto ser recente, a utilização de cláusulas éticas pelas empresas é
de longa data. Michel P. Vandenbergh aponta que a empresa General Eletric, por exemplo, começou a incluir
cláusulas em seus contratos relacionadas ao meio ambiente, à saúde e à segurança de funcionários desde 1997,
muito embora tal medida não fosse publicamente divulgada. (VANDENBERGH, Michael P. The New Wal-Mart
Effect: the role of private contracting in global governance. UCLA Law Review, Los Angeles, v. 54, n. 4, p. 913-970,
abr. 2007, p. 924).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
84 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
62
WETZEL, 2015, p. 217.
63
Tradução livre de: “Any failures to implement or observe the company’s human rights policies must be sanctioned
immediately. The maxim ‘what gets measured get done’ finds particular application here. Only through sanctions can the
company’s dedication to human rights be underlined and exemplify that breaches of policy will not be tolerated. This will
not only send a clear message to employees and business partners, it will also positively resonate with buyers, investors
and customers. Relying solely on declaratory statements such as ‘We respect human rights’, ‘We adhere to the UN Global
Compact’ or any internal human resource policies are insufficient to ensure corporate compliance with human rights
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
85
standards and do not compensate for corporate failure abroad nor will they protect a business and its reputation in case of
human rights violations. Statements of intent are a decent starting point for businesses wishing to create a human rights
policy, but on their own remain inadequate in addressing the modern challenges of human rights in transnational business
operations”. (WETZEL, 2015, p. 220-221).
64
MCLEAY, Fiona. Corporate codes of conduct and the human rights accountability of transnational corporations:
a small piece in a larger puzzle. In: SCHUTTER, Olivier de. Transnational Corporations and Human Rights. Portland:
Hart Publishing, 2006, p. 226.
65
MCBARNET, Doreen; KURKCHIYAN, Marina. Corporate social responsibility through contractual control?
Global supply chains and ‘other-regulation’. In: CAMPBELL, Tom; MCBARNET, Doreen; VOICULESCU,
Aurora. The new corporate accountability: Corporate Social Responsibility and the Law. New York: Cambridge
Press, 2007, p. 66.
66
Ibidem, p. 67.
67
MARKS AND SPENCER PLC. Global Sourcing Principles da Marks & Spencer. Londres, nov. 2016, p. 2. Disponível
em: <https://corporate.marksandspencer.com/documents/plan-a-our-approach/global-sourcing-principles.pdf>.
Acesso em: 09 dez. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
86 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Como eles devem impor a igualdade de gênero na empresa que opera em uma sociedade
ferozmente sexista? Como serão harmonizadas as políticas de RSC sobre o trabalho
de menores de idade com um conceito local sobre infância, quando existem diferentes
conjuntos de expectativas sociais sobre quando a infância acaba e começa a vida adulta?
Como devem ser levadas em conta as questões como a autonomia familiar, o papel central
da tradição e a primazia do dever filial?
O assunto torna-se ainda mais complicado quando as questões morais são consideradas no
contexto local. [...] Como se pode justificar a proibição do trabalho infantil nas indústrias
de exportação que remuneram de forma mais adequada, se a consequência inevitável de
tal proibição seria que as crianças em questão são obrigadas a buscar emprego em piores
situações, típicas das empresas que apenas abastecem o mercado interno?69
68
KOCHER, Eva. Codes of conduct and framework agreements on social minimum standards – Private regulation?
In: DILLING, Olaf; HERBERG, Martin; WINTER, Gerd. Responsible business: Self-Governance and Law in
Transnational Economic Transactions. Portland: Oxford and Portland Oregon, 2008, p. 74.
69
Tradução livre de: “How are they to enforce gender equality in an enterprise that operates in a fiercely sexist society? How
are they to harmonize CSR policy on under-age labor with an accepted local concept of childhood when there are different sets
of social expectations on when childhood ends and adulthood starts? How are they to take account of such matters as family
autonomy, the central role of tradition and the primacy of filial duty? The matter becomes even more complicated when
moral issues are considered in local context. [...] How can a ban on child labor in the relatively better paid export industries
be justified, if the inevitable consequence of such ban would be that the children concerned are forced to seek employment in
the much worse conditions typical od enterprises that only supply the domestic market?” (MCBARNET; KURKCHIYAN,
2007b, p. 72).
70
Tradução livre de: “Enforcement of human rights without consultation and programs to compensate workers […] simply
shifted human rights abuses to another domain” (MCLEAY, 2006, p. 235).
71
Sobre a complexidade cultural dos direitos humanos: FLORES, Joaquin Herrera. A (re)invenção dos direitos
humanos. Tradução: Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e Jefferson Aparecido
Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
87
denominação, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este conceito, que surgiu
em um contexto particular (Ocidente), difundiu-se por todo o globo como se fosse o
mínimo ético necessário para se lutar pela dignidade.
Todavia, em grande quantidade de ocasiões tentam se impor direitos humanos
universais em face de concepções culturais que nem sequer têm em sua bagagem
linguística o conceito de direito. Isso gera graves conflitos de interpretação em relação
aos direitos humanos que se deve saber gerir sem imposições nem colonialismos.72
Sobre o pluralismo e os direitos humanos, aponta Chantal Mouffe a necessidade
de reconhecimento das especificidades de cada cultura e de aceitação da existência de
diversas formas de dignidade humana.73
No contexto das cláusulas éticas, portanto, o caminho não pode ser outro se
não o diálogo. A prática de tolerar o intolerável,74 por ser pautada na igual dignidade de
todos os homens e mulheres e suas respectivas identidades culturais, deve levar em
consideração distintas formas de viver e, por isso, as cláusulas éticas, que perpassam o
objeto deste artigo, devem ser devidamente acordadas e não impostas por apenas uma
parte contratante que considera universal a sua perspectiva de direitos humanos.
McBarnet e Kurkchiyan destacam, também, que os problemas culturais podem
ser contornados com cláusulas que sejam mais amplas e flexíveis, para que as partes
contratantes tenham liberdade de decidir o que é apropriado e razoável no contexto em
que estão inseridas.75
Outro problema que exsurge com relação às cláusulas éticas diz respeito às
dificuldades de implementação de standards éticos por empresas que possuem baixo
poder aquisitivo, como é o caso das fornecedoras que se encontram em países em
desenvolvimento. Assim como a observância aos direitos humanos é custosa aos
Estados,76 ela também o é no âmbito dos entes privados.
Especificamente sobre as dificuldades de implementação de standards éticos
na cadeia de fornecedores, explicitam McBarnet e Kurkchiyan que: “para alguns for
necedores as despesas com auditorias e com o cumprimento das recomendações dos
compradores são muito altas se comparadas a sua renda”.77 Para a solução deste problema,
o que os autores sugerem é que a parte contratante com maior poder aquisitivo – neste
contexto, as transnacionais – harmonize seus interesses comerciais com a capacidades
dos fornecedores, auxiliando na adoção dos standards éticos, para que, ao mesmo tempo,
os fornecedores façam todos os esforços necessários para adotar os valores éticos.78
72
Ibidem, p. 37.
73
MOUFFE, Chantal. Can human rights accommodate pluralism? In: WILLIAMS, Wes (Ed.). Religion and Rights The
Oxford Amnesty Lectures. Manchester: Manchester University Press. 2011.
74
JERÔNIMO, Patrícia. Os direitos do homem à escala das civilizações: proposta de análise a partir do confronto
dos modelos ocidental e islâmico. Coimbra: Almedina, 2001, p. 254 Apud FACHIN, Melina Girardi. Fundamentos
dos Direitos Humanos: teoria e práxis na cultura da tolerância. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 265.
75
MCBARNET; KURKCHIYAN, 2007b, p. 70.
76
Consoante estudo realizado por Cass Sunstein, em que se verificou que todos os direitos custam e demandam
uma atuação positiva do Estado (SUSTEIN, Cass. The Cost of rights: why liberty depends on taxes. New York:
W.W. Norton & Co., 1999).
77
Tradução livre de: “It is clear that for some suppliers the expenses of facing a full-scale audit and the having to act on the
recommendations are too high for their resources.” (MCBARNET; KURKCHIYAN, Op. cit., p. 87.)
78
MCBARNET; KURKCHIYAN, 2007b, p. 88.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
88 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
5 Considerações finais
Ultrapassadas as digressões propostas pelo presente estudo, faz-se importante
tentar colher os frutos que até aqui restaram maduros.
Com o advento da globalização econômica e de seus impactos negativos, a
busca de soluções para os problemas ocasionados pelo desenvolvimento de atividades
comerciais passou a ser uma preocupação do mercado, que, reagindo à pressão da
sociedade em geral e às iniciativas provenientes de organismos internacionais e
nacionais, passou a adotar medidas eticamente responsáveis, visando mitigar os prejuízos
causados à sociedade. Tais iniciativas, conhecidas principalmente sob a linguagem da
Responsabilidade Social Corporativa, proliferaram-se ao redor do globo, principalmente
entre as empresas transnacionais.
E, como não poderia deixar de ser, em um cenário marcado por intensas transações
econômicas, os standards éticos que passaram a fazer parte de toda a operação – interna
e externa – das empresas, começaram a ser inseridos nos contratos por elas celebrados,
a partir do que denominamos aqui de cláusulas éticas.
Consoante explicitado, as cláusulas éticas vinculam os contratantes a obrigações
concernentes, entre outros aspectos, à promoção e à proteção dos direitos humanos.
Através delas, as partes tornam-se jurídica e contratualmente responsáveis por respeitar
direitos humanos que, na maioria das vezes, não guardam relação direta com o objeto
contratual.
A inserção destas cláusulas nos contratos, então, é um mecanismo para que
deveres atinentes à dignidade humana possam ser juridicamente exigidos. Isto significa,
em termos práticos, que a não observância, por uma das partes, a estes standards éticos
79
MCLEAY, 2006, p. 237.
PAULO NALIN, MARIANA BARSAGLIA PIMENTEL
O CONTRATO COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: AS CLÁUSULAS ÉTICAS
89
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
92 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA
DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY)
NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
Introdução
A teoria da quebra eficiente talvez seja um dos temas mais conhecidos dentro da
Análise Econômica do Direito e, ao mesmo tempo, um dos mais criticados. Afinal, parece
trazer em sua origem uma grande contradição: enquanto o ordenamento jurídico reforça
a necessidade de que as obrigações contraídas sejam adimplidas, a teoria da quebra
eficiente incentiva o inadimplemento quando houver alternativa em que os ganhos
serão maiores do que o cumprimento. Para tanto, indeniza-se o credor para que ele não
fique em situação inferior àquela em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido e o
devedor está livre para negociar com terceiro que fez proposta mais vantajosa.
Concebida modernamente no Direito estadunidense, aos poucos a teoria da
quebra eficiente passa a ser difundida no Brasil, tendo em vista que ela invariavelmente
propicia um maior dinamismo no mercado, consequência esta adequada ao estado
atual do capitalismo globalizado e de imediatismo nas relações comerciais. No entanto,
embora pareça ser interessante economicamente, ela encontra diversas barreiras jurídicas
apontadas já pelos seus críticos no Direito estadunidense e reforçadas no Direito
brasileiro.
Este estudo se propõe a, em primeiro lugar, esclarecer o desenvolvimento nos
Estados Unidos e o conceito da teoria da quebra eficiente. Em seguida, apontar as
principais críticas feitas a ele pelos próprios norte-americanos. Depois, refletir sobre
uma possível recepção no Direito brasileiro, incorporando as críticas e avançando em
sua concepção, numa tentativa de formular uma teoria da quebra eficiente propriamente
brasileira.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
94 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1
BIRMINGHAM, Robert L. Breach of Contract, Damage Measures, and Economic Efficiency. Articles by Maurer
Faculty, p. 273-292, 1970.
2
GOETZ, Charles J.; SCOTT, Robert E. Liquidated damages, penalties and the just compensation principle: some
notes on an enforcement model and a theory of efficient breach. Columbia Law Review, v. 77, p. 554-594, 1977.
3
WILKINSON-RYAN, Tess. Do Liquidated Damages Encourage Breach? A Psychological Experiment. Michigan
Law Review, v. 108, n. 5, p. 633-671, 2010. p. 638.
4
POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9. ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2014. p. 131.
5
LINZER, Peter. On the Amorality of Contract Remedies – Efficiency, Equity and the Second Restatement.
Columbia Law Review, v. 81, n. 111, p. 111-139, 1981. p. 114.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
95
dos prejuízos ao invés da prestação específica. Seria, em regra, indiferente para a parte
vítima do inadimplemento se beneficiar da prestação principal ou receber a indenização
correspondente, já que, se este remédio foi assim negociado, significaria que a parte se
contenta tanto com um quanto com outro resultado do negócio. Por isso que alguns
autores, como MacLeod,6 Daniel Markovits e Alan Schwartz,7 veem a prestação principal
e a indenização pelos prejuízos como obrigações alternativas.
Além de ter por finalidade a otimização da alocação dos recursos, a teoria da
quebra eficiente do contrato serve também como um dos instrumentos para justificar
a existência das chamadas expectation damages (danos pela expectativa) existentes nos
países de common law, que, no Brasil, seria o equivalente aos lucros cessantes. Em 1936,
Lon Fuller e William Perdue publicaram um artigo8 em que identificam três interesses
que devem ser protegidos e compensados na relação contratual quando ocorre um
inadimplemento.
O primeiro deles é a indenização pelas despesas havidas com a confiança de que
o contrato seria cumprido. Neste sentido, se a parte inocente investiu para a consecução
do objetivo negocial, a parte inadimplente deverá compensá-la. São os chamados danos
pela confiança (reliance damages). O segundo é o interesse na restituição. Se a parte ino
cente adiantou algum benefício para a parte culpada para a realização do contrato,
ele deverá ser restituído por serem danos de restituição (restitution damages). Por fim,
a parte inadimplente deverá providenciar à parte inocente os ganhos esperados com
a transação (expectation damages), colocando esta na mesma posição que teria ocupado
caso o contrato fosse cumprido.
Assim como argumentam Lon Fuller e William Perdue, a proteção contra os danos
de confiança e de restituição são fáceis de intuir, tendo em vista que houve mudança
de situação da parte inocente em razão da avença: investiu ou transferiu recursos
para a execução do contrato e, por isso, é justo que retorne ao status quo ante mediante
indenização. Difícil, por outro lado, é identificar igual fundamentação para os danos
pela expectativa, já que haveria uma compensação à parte por algo que ela nunca teve.9
Neste momento é que a ideia da eficiência se torna um dos ingredientes que
auxiliará a solucionar o problema. Um contrato ineficiente, isto é, que resulta em um
uso ineficiente de recursos, não deverá ser cumprido, já que os remédios contra o
inadimplemento são apenas um incentivo ao cumprimento quando for benéfico à parte, e
não verdadeiramente uma punição. Servirá de alternativa em favor da parte que verificar
uma alocação Pareto superior dos recursos que estariam vinculados à relação contratual.
E dentre os três interesses, somente os danos gerados pela expectativa do cumprimento
do contrato é que providenciam este incentivo de deixar as partes na mesma situação
ou em situação melhor do que estaria com o cumprimento do contrato.
6
MACLEOD, W. Bentley. Reputations, Relationships and Contracts Enforcement. Journal of Economic Literature,
v. 45, n. 3, p. 595-628, set. 2007.
7
MARKOVITS, Daniel; SCHWARTZ, Alan. The myth of efficient breach: new defenses of the expectation interest.
Virginia Law Review, v. 97, n. 8, p. 1939-2008, dez. 2011.
8
FULLER, Lon L.; PERDUE JUNIOR, William M. The Reliance Interest in Contract Damages: 1. Yale Law Journal,
v.46, p. 52-96, 1936.
9
FULLER, Lon L.; PERDUE JUNIOR, William M. The Reliance Interest in Contract Damages: 1. Yale Law Journal,
v. 46, p. 52-96, 1936, p. 52-53.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
96 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
O foco nos aspectos pecuniários da quebra falha em levar em conta as noções de santidade
do contrato e a resultante obrigação moral de honrar com a promessa. A análise da quebra
contratual em termos puramente econômicos assume uma habilidade de medir valor
com uma certeza que não é frequentemente possível em um processo judicial. A análise
também ignora os “custos de transação” inerentes ao processo de negociação e na solução
de disputas, um defeito que é especialmente significativo quando o montante controvertido
é pequeno.11
Neste excerto estão sintetizadas três grandes críticas à quebra eficiente: o problema
da sua moralidade, a estruturação em supostas falsas premissas e a exclusão dos
custos de transação para aferir a eficiência. Não são as únicas. Também são apontadas
recorrentemente como problemáticas a dificultosa distinção do oportunismo e a exclusão,
como premissa, dos demais remédios contra a inadimplência.
10
HOLMES, Oliver Wendell. The Path of the Law. Harvard Law Review, v. 10, p. 457-462, 1897.
11
Tradução livre do original.
12
Cf. FRIED, Charles. Contract as Promise: a theory of contractual obligation. Oxford: Oxford University Press, 1981.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
97
13
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 370.
14
Dito desta forma para a utilização das mesmas nomenclaturas, haja vista que, em uma obrigação disjuntiva,
ambas as opções seriam obrigações principais.
15
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 368.
16
COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Law & Economics. 5. ed. Harlow: Pearson Addison-Wesley, 2008. p. 197-199.
17
THEL, Steve; SIEGELMAN, Peter. Willful breach: an efficient screen for efficient breach. In: BEN-SHAHAR,
Omri (Ed.). Fault in American Contract Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 161.
18
SHIFFRIN, Seana. “Could” Breach of Contract Be Immoral? Michigan Law Review, v. 107, n. 8, p. 1551-1568, jun.
2009. p. 1567-1568.
19
Ibidem.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
98 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
20
FRIEDMANN, Daniel. The efficient breach fallacy. The Journal of Legal Studies, v. 18, n. 1, p. 1-24, jan. 1989.
p. 23-24.
21
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 370-371.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
99
dos contratos, ignorando que para a relação negocial outras despesas são realizadas, como
com equipamentos de comunicação entre as partes, transporte, materiais de escritório,
profissionais especializados, etc. A teoria da quebra eficiente, portanto, só é admitida
em um mundo hipotético em que os custos de transação são iguais a zero.
Em um mundo real aqueles exemplos e tantos outros custos acabam ampliando o
gasto da parte com o contrato, sem que sejam necessariamente contabilizados no valor
do contrato, ainda que o encareçam na sua execução. Neste diapasão, a quebra pode
parecer eficiente se levados em consideração apenas o valor dos contratos e os ganhos
obtidos pelas partes, mas, se forem levados em conta os demais gastos, ela é, na verdade,
ineficiente. Consequentemente, os danos pela expectativa não mais são suficientes para
indenizar a parte.
Ian MacNeil também demonstra outra suposta falha no raciocínio feito pelos
adeptos da teoria da quebra eficiente. Em um mundo em que os custos de transação
são iguais a zero, a prestação específica ou os danos pela expectativa como remédios
são equivalentes quando mensurados pela eficiência. No caso de danos de expectativa,
a parte pagará o equivalente devido e o inadimplemento será indiferente para a vítima,
que já havia pactuado por receber a prestação ou indenização, estando contente com
um ou outro. No caso da prestação específica, o resultado seria o mesmo: a parte que
quiser quebrar o contrato comunicará à parte contrária que aceitará o valor indenizatório
equivalente ao invés da prestação. Afinal, a parte culpada não quer mais cumprir o
contrato e se a parte prejudicada criar alguma resistência, exigindo o pactuado, acabará
por criar custos de transação, destruindo a premissa do modelo.22 Portanto, não havendo
custos de transação para a parte para realizar a prestação, obrigá-la a cumprir o pactuado
ou indenizar terão os mesmos resultados.
Admitir a prestação específica ao final para demonstrar a ineficiência por gerar
custos de transação e ignorar a solução pelos danos pela expectativa é evidenciar a
incoerência do modelo econômico e, substancialmente, da teoria. Exclui completamente
os custos de transação no início e durante o raciocínio, mas os considera ao final somente
se a opção for pela prestação específica. No entanto, parece evidente que os danos
pela expectativa também podem gerar custos de transação e devem ser considerados.23
Por isso, não há como realizar uma dedução meramente por um modelo da microeco
nomia, mas determinados indutivamente em cada caso concreto.24
Ulen,25 em consonância com o posicionamento de Ian MacNeil de que não há
como criar uma regra geral definitiva em um modelo, tenta ao menos trazer algumas
pistas sobre como as partes devem escolher o remédio apropriado. Defende que,
quando os custos de transação são baixos, a prestação específica encorajaria as partes
a transacionarem o direito ao cumprimento de maneira voluntária e eficiente. Por
outro lado, se os custos de transação são altos, deve haver intervenção de uma Corte
compelindo uma indenização. Tanto que ao final conclui que na maioria das vezes os
22
MACNEIL, Ian R. Efficient Breach of Contract: Circles in the Sky. Virginia Law Review, v. 68, n. 5, p. 947-969, maio
1982. p. 951-952.
23
Ibidem.
24
Idem. p. 957.
25
ULEN, Thomas S. The Efficiency of Specific Performance: Toward a Unified Theory of Contract Remedies.
Michigan Law Review, v. 83, n. 2, p. 341-403, nov. 1984. p. 401-402.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
100 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
custos de transação de uma relação contratual são baixos, sendo a prestação específica,
contraditoriamente com a teoria da quebra eficiente, o melhor remédio.
26
DODGE, William S. The Case of Punitive Damages in Contracts. Duke Law Journal, v. 48, n. 4, p. 629-699, fev. 1999.
p. 652.
27
DODGE, William S. The Case of Punitive Damages in Contracts. Duke Law Journal, v. 48, n. 4, p. 629-699, fev. 1999.
p. 654.
28
THEL, Steve; SIEGELMAN, Peter. Willful breach: an efficient screen for efficient breach. In: BEN-SHAHAR,
Omri (Ed.). Fault in American Contract Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 161-162.
29
DODGE, William S. The Case of Punitive Damages in Contracts. Duke Law Journal, v. 48, n. 4, p. 629-699, fev. 1999.
p. 652-653.
30
POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9. ed. New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2014. p. 129.
31
THEL, Steve; SIEGELMAN, Peter. Willful breach: an efficient screen for efficient breach. In: BEN-SHAHAR,
Omri (Ed.). Fault in American Contract Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 171.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
101
32
MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons, 2015.
p. 219-228.
33
PELA, Juliana Krueger. “Inadimplemento eficiente” (efficient breach) nos contratos empresariais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 2, n. 1, p. 1091-1103, 2016. p. 1099.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
102 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
34
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações Vol. II. 21. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, p. 361.
35
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações Vol. II. 21. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006. p. 374-375.
36
POTHIER, Robert Joseph. Traité des Obligations: Tome Premier. Paris: Debure l’ainé, 1761. p. 182-184.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
103
cultivada e a perda de seus bens em favor de seus credores como consequência de não
ter conseguido pagar suas dívidas por não ter explorado o seu rebanho nem cultivado
a terra. Afinal, estas são consequências indiretas e remotas que quebram a relação de
causalidade: o comprador poderia ter evitado os danos com a compra de outros gados
ou alugando ou subarrendando as terras para que outrem a cultivasse.
A necessariedade do dano é fundamental para se compreender aqueles que devem
ser imputados ao devedor. No entanto, diferentemente do exemplo resgatado por Pothier,
nem sempre esta constatação é simples, o que resulta em conclusões divergentes sobre
a extensão da responsabilidade do devedor. Transportando esta dificuldade para o
problema da quebra eficiente, nota-se que dada a complexidade de determinada relação
contratual, já será de início muito difícil para as partes preverem qual será o montante
que comporá os danos emergentes e os lucros cessantes. Até porque a quantificação
das oportunidades perdidas – os custos de oportunidade – é de difícil avaliação. Por
conseguinte, não será possível examinar se o inadimplemento será eficiente ou não.
Pairará dúvida se a indenização foi integral ou não.37
No aspecto formal, deve-se ter cuidado no transporte da concepção de cláusula
de danos liquidados (liquidated damages clause) do Direito estadunidense para o Di
reito Pátrio, haja vista que não há coincidência entre ela e a cláusula penal brasileira.
A liquidated damages clause tem por objetivo antecipar a estipulação do valor da
indenização na hipótese de inadimplemento. Normalmente constam em contratos em
que o prejuízo é incerto diante das circunstâncias concretas e, principalmente, quando
não há mercado para o objeto do contrato que possibilite uma operação substitutiva
ou parâmetro satisfatório para medir as perdas com o inadimplemento.38 O valor nela
estipulado engloba todos os danos imputáveis ao devedor, não tendo limitação senão
a própria razoabilidade.
A cláusula penal brasileira, por sua vez, funciona por outro regime. Quando
estipulada para o caso de inadimplemento total da obrigação – uma cláusula penal
compensatória –, ela opera como uma alternativa em benefício do credor (artigo 410 do
Código Civil). Ou seja, caberá ao credor optar pela exigência da cláusula penal ou da
prestação específica, e não ao devedor, o que já violaria o preceito primordial imposto
pela teoria da quebra eficiente.
No tocante ao valor, é limitada ao valor da obrigação principal (artigo 412 do
Código Civil), salvo acordo de possibilidade de exigência de indenização suplementar
(artigo 416, parágrafo único do Código Civil). Isto é, se os prejuízos excederem o valor da
prestação principal – por exemplo, com o inadimplemento, a parte prejudicada precisou
realizar despesas para uma operação substitutiva –, eles não serão compensados. E a
solução de exigência de indenização suplementar não é suficiente, pois o credor terá que
provar o prejuízo excedente e, diante da alta litigiosidade brasileira, provavelmente em
37
AKAISHI, Juliana Tiemi Mizumoto. Quebra eficiente dos contratos bilaterais e teoria dos incentivos. Economic
Analysis of Law Review, v. 1, n. 2, p. 241-253, jul./dez. 2010, p. 245.
38
O instituto é encontrado no §356(1) do Restatement (Second) of Contracts: §356. Prejuízos Liquidados e Penalidades
(1) Prejuízos pelo inadimplemento por qualquer das partes podem ser liquidados em acordo mas somente em
um montante que é razoável à luz da antecipada ou atual perda causada pelo inadimplemento e as dificuldades
de sua prova. Um termo fixando uma não razoável alta liquidação dos prejuízos não é exigível por razões de
ordem pública como uma penalidade (Tradução livre do original).
A mesma orientação, só com redação diferente, é encontrada na Seção 2-718(1) do Uniform Commercial Code.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
104 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
juízo, o que acarreta despesas com custas processuais, honorários advocatícios, entre
outros custos de transação que subtraem a eficiência da quebra.
Ainda há outra diferença que explicita um entrave no ordenamento jurídico brasi
leiro: o valor da cláusula penal poderá ser reduzido equitativamente pelo magistrado
se o montante se mostrar manifestamente excessivo diante da finalidade ou natureza
do negócio (artigo 413 do Código Civil). Em outras palavras, a previsão das partes em
despesas além daquelas inerentes ao próprio negócio – como da operação substitutiva
referenciada – pode ser desconsiderada em juízo e a penalidade reduzida, descarac
terizando a razão eficiente do inadimplemento.
Assim, diante de tantos obstáculos, questiona-se se será efetivamente possível
incorporar a teoria da quebra eficiente no Direito Civil brasileiro.
39
A título exemplificativo: KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law.
Oxford: Oxford University Press, 2013. p. 367; MACNEIL, Ian R. Efficient Breach of Contract: Circles in the Sky.
Virginia Law Review, v. 68, n. 5, p. 947-969, mai. 1982. p. 949.
40
Cf. MARKOVITS, Daniel; SCHWARTZ, Alan. The myth of efficient breach: new defenses of the expectation
interest. Virginia Law Review, v. 97, n. 8, p. 1939-2008, dez. 2011. p. 2006.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
105
visto vantagem na indenização por perdas e danos ex post, mas, mesmo considerando
o período ex ante, sua vantagem permanece. Chegar a um acordo para o cumprimento
forçado da obrigação demanda considerar muito mais situações que ensejariam a quebra
contratual, o que acarreta uma maior complexidade na formulação dos preços.
Consequentemente, apenas indenizar é mais lucrativo do que obrigar o cumpri
mento, já que haverá uma distribuição equivalente que se iniciará ex ante ao invés de
depender de uma negociação ex post.41 Não é preciso realizar a realocação dos riscos
se estes já foram devidamente feitos ex ante. Renegociar só terá verdadeiro interesse
se houver a obrigação da prestação específica, pois há um incentivo para a parte que
quebrou o contrato compartilhar parte de seus ganhos com a vítima para que não tenha
que realizar a prestação específica ou a restituição do bem.42
A sugestão é interessante para justificar uma possível mudança de posição do
Direito brasileiro para abandonar a relação subsidiária entre os remédios e torná-la
disjuntiva. Há opção para a parte: cumprir o pactuado ou pagar a indenização. Por isso
que os autores chamam sua teoria de dual-performance hypothesis (hipótese do desem
penho dual).43
E resolveria, em sua linha de raciocínio, os argumentos de violação à moralidade,
tendo em vista que a opção pela indenização não é um inadimplemento, mas o
cumprimento de uma obrigação alternativa. Violar o contrato é, verdadeiramente, não
cumprir a prestação nem indenizar, o que deve acarretar a repreensão pelo ordenamento
jurídico, pois se trata de um comportamento oportunista.44 Portanto, a quebra eficiente
não existe de verdade, porque quebrar o contrato é agir de maneira contrária à eficiência
de Pareto.45
Entretanto, não deixa de ser apenas um argumento persuasivo, já que as normas
jurídicas vigentes não permitem tal exercício hermenêutico. Mais que isto, presume uma
sofisticação das partes – uma racionalidade – que nem sempre é verdadeira. E como
efeito disto, tem-se que a alocação de recursos e riscos ex ante pode não espelhar o ima
ginário eficiente. E este ponto a Economia comportamental já se atentou, pois as escolhas
podem ser movidas pelo sentimento e circunstâncias outras alheias à relação contratual.
Por isso que, a partir das conclusões de Daniel Markovits e Alan Schwartz, é
interessante desenvolver a ideia de Gregory Klass sobre a eficiência dos remédios à
disposição das partes. Em linhas gerais, Klass defende que todos os remédios contra
o inadimplemento são potencialmente eficientes. O que definirá isto é a alocação dos
recursos e riscos.
Nota-se que a premissa é idêntica à de Markovits e Schwartz, sendo diferente na
conclusão. Enquanto deve haver a verificação ex ante e ex post para aferição da eficiência –
em atenção aos custos de transação, portanto –, a alocação dos recursos pode tornar até
mesmo a prestação específica eficiente no caso do inadimplemento.
41
Idem. p. 1966-1969.
42
Idem. p. 1942-1943 e 2005.
43
MARKOVITS, Daniel; SCHWARTZ, Alan. The myth of efficient breach: new defenses of the expectation interest.
Virginia Law Review, v. 97, n. 8, p. 1939-2008, dez. 2011. p. 1948.
44
Idem. p. 1988-1990.
45
Idem. p. 1948-1949.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
106 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
46
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 383.
47
Ibidem.
48
FULLER, Lon L.; PERDUE JUNIOR, William M. The Reliance Interest in Contract Damages: 1. Yale Law Journal,
v.46, p. 52-96, 1936. p. 52-53.
49
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 387.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
107
50
KLASS, Gregory. Efficient Breach. In: The Philosophical Foundations of Contract Law. Oxford: Oxford University
Press, 2013. p. 388.
51
SAPPINGTON, David E. M. Incentives in Principal-Agent Relationships. Journal of Economic Perspectives, v. 5,
n. 2, p. 45-66, primavera de 1991. p. 62-63.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
108 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
expressamente pelas partes, e não uma simples presunção motivada por uma mudança
cultural. Em outras palavras, é uma solução que serve a uma circunstância específica.
Mais restrita ainda é a observância de que poderá haver mais claramente uma
quebra eficiente em obrigações infungíveis. Com efeito, havendo a negativa de o devedor
cumprir o pactuado que só a ele cabia adimplir, não há alternativa senão a conversão da
obrigação em perdas e danos, dada a sua impossibilidade, nos termos do artigo 247 do
Código Civil. Desse modo, escolhendo o devedor de obrigação infungível não cumprir
o pactuado, ele terá, forçadamente, a opção de pagar pela sua liberação do contrato,
como se quebra eficiente fosse.
No tocante ao oportunismo confundido com a quebra eficiente, parece que os
contra-argumentos já desenvolvidos no Direito estadunidense são mais do que suficientes
para distinguir as duas situações. Para o oportunismo já é admitido no Direito brasileiro
a figura dos danos emergentes no artigo 403 do Código Civil para o ressarcimento no
âmbito contratual, além de danos morais se houver nexo causal com uma lesão a direito
da personalidade, no âmbito extracontratual.52 Com isso, a intenção pretérita de prejudicar
a parte contratante contrária já possui solução adequada53 no sistema.
Por fim, interessante destacar a reflexão de Juliana Krueger Pela sobre o tema.54
Focada nos contratos empresariais, defende, acompanhando Paula Forgioni,55 que é
preciso estruturar uma teoria própria dos contratos empresariais, com especificações
diversas da teoria geral do Direito Contratual, unificado com o advento do Código Civil
em 2002. Como se trata de um contrato entre profissionais, enxerga haver neste caso
um incremento na racionalidade das partes, o que faz com que haja uma análise muito
mais sofisticada da alocação dos riscos.
Além disso, o Direito Contratual precisaria se aproveitar das lições do Direito
Concorrencial, já que o descumprimento deliberado do contrato pode ter – e muitas
vezes têm – motivação anticoncorrencial. Neste contexto haveria um ganho objetivo,
além de meros argumentos de moralidade e de aplicação do princípio da boa-fé, na
verificação se a quebra foi oportunista ou eficiente. Seria constatado se houve abuso do
poder econômico ou de posição dominante, monopólio, oligopólio, etc.56
Considerações finais
Diante de todo o exposto, nota-se que a adoção da teoria da quebra eficiente no
Brasil é bastante tormentosa. As barreiras, tanto jurídicas quanto morais, são enormes, o
que faz com que não tenha o mesmo alcance que o instituto teve no Direito estadunidense.
Há, conforme visto neste estudo, algumas alternativas, ainda que restritas, para a
sua aplicação além de uma mera alteração legislativa. Para que talvez seja incorporada
52
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. Doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007. p. 1678-1679.
53
Inclusive para os que entendem ser possível a fixação de indenização por danos extrapatrimoniais com natureza
punitiva.
54
PELA, Juliana Krueger. “Inadimplemento eficiente” (efficient breach) nos contratos empresariais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 2, n. 1, p. 1091-1103, 2016. p. 1099-1101.
55
Cf. FORGIONI, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
56
PELA, Juliana Krueger. “Inadimplemento eficiente” (efficient breach) nos contratos empresariais. Revista Jurídica
Luso Brasileira, ano 2, n. 1, p. 1091-1103, 2016. p. 1101-1102.
JOSÉ EDUARDO FIGUEIREDO DE ANDRADE MARTINS
REFLEXÕES SOBRE A INCORPORAÇÃO DA TEORIA DA QUEBRA EFICIENTE (EFFICIENT BREACH THEORY) NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
109
em toda e qualquer espécie contratual, é preciso dar um passo além e admitir que a
efficient breach theory pressupõe circunstâncias irreais e é insuficiente diante de uma
realidade plural. Deve-se avançar assumindo que recaem custos de transação sobre
toda a operação e que devem ser contabilizados pelas partes. Também a indenização por
perdas e danos não é a única solução eficiente para o inadimplemento, haja vista que as
partes podem através do preço negociado buscar uma indenização prévia, compensando
futuras e possíveis perdas.
Ainda assim, mesmo com a diferenciação entre um comportamento oportunista e
um visando a eficiência, é certo que a cultura jurídica brasileira preza pelo cumprimento
do pactuado, mesmo que signifique uma operação que acarretará prejuízo para o devedor.
É notável a influência das origens dos sistemas jurídicos brasileiro e estadunidense:
enquanto neste o período da barganha ainda não é dotado de exigibilidade (enforcement),
naquele o encontro das vontades já é suficiente para tanto.
Mesmo assim, a ideia tradicional da quebra eficiente não é descartável e pode
ser aproveitada pelo Direito brasileiro. Independentemente dos problemas apontados,
verificou-se que nas obrigações alternativas e infungíveis há, de certa maneira, um
meio de aplicá-la. Portanto, ainda que não seja nos exatos mesmos moldes do Direito
estadunidense, há sim um espaço restrito para uma teoria da quebra eficiente à brasileira.
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MARTINS, José Eduardo Figueiredo de Andrade. Reflexões sobre a incorporação da teoria da quebra
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do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 93-110. E-book.
ISBN 978-85-450-0591-9.
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA
COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
Introdução
O fenômeno da “contratualização” vem se expandindo na contemporaneidade,
permeando todas as relações entre particulares e até mesmo entre o Poder Público e
os particulares, em um contexto de consensualismo e negociação no Direito. Como
fenômeno direto da expansão da importância dos contratos, o Direito do Consumidor
é campo de amplas possibilidades para a emergência dos tratados bilaterais (ou pluri
laterais), marcado pela presença da heteronomia entre as partes, traduzida no conceito
de vulnerabilidade, essencial do direito consumerista e estampado no art. 4º, I, da Lei
nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 – o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Os contratos de consumo, enquanto marcados por uma relação de desigualdade
entre as partes, são regidos por normas protecionistas, como corolário do princípio
da isonomia material, reconhecendo, por um lado, a diferença entre consumidor e
fornecedor e, por outro lado, tratando de maneira igual todos os consumidores, como
necessidade de se conceder uma máxima eficácia ao sistema protetivo do consumidor.
Em uma sociedade plural e eminentemente desigual, pontuada pela existência
de grupos distintos, com interesses singulares e peculiaridades, a igualdade entre os
consumidores vem perdendo força, sendo reconhecida a hipervulnerabilidade de alguns
grupos de consumidores, tais quais os idosos e as crianças e adolescentes.
O reconhecimento casuístico da hipervulnerabilidade demanda alguns conceitos
fundamentais, de modo a objetivar sua aplicação ao caso concreto, fortalecendo a certeza
e a exigibilidade do Direito.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
112 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1
MACEDO JR., Ronaldo. Contratos relacionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
2
AZEVEDO, Fernando Costa. O reconhecimento jurídico da hipervulnerabilidade de certos grupos de consumidores como
expressão de um sentido material de justiça no contexto da sociedade de consumo contemporânea. Disponível em: <https://
goo.gl/Hu1GR5> . Acesso em: 28 jul. 2017.
3
AZEVEDO, Antonio Junqueira. O direito pós-moderno. In: Revista USP, São Paulo, n. 42, p. 96-101, jun. 1999.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
113
4
O art. 6º da Lei nº 8.078/90 e a cláusula de abertura do art. 7º do referido diploma legal são previsões diretas de
aplicação de direitos consagrados no rol do art. 5º da Constituição Federal às relações consumeristas.
5
GAUDENCIO, Aldo Cesar Filgueiras. Da vulnerabilidade à hipervulnerabilidade: proteção contratual dos
consumidores nos direitos da União Europeia, Portugal e Brasil. Dissertação apresentada à Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2015. p. 33.
6
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa
do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 120.
7
MELLO, Celso Antônio Bandeira. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
8
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
114 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
9
AZEVEDO, Fernando Costa. Op. cit. p. 5.
10
Nesse sentido, observa-se a crítica de Zygmunt Bauman para com a sociedade contemporânea e a globalização,
que alerta sobre as consequências desse fenômeno que acarreta mudanças na condição humana. Segundo o
autor, vive-se numa sociedade de consumo, o que significa que os indivíduos se encontram presos ao dilema:
viver para consumir, ou consumir para viver. Assim, nessa sociedade as discrepâncias entre os grupos aumentam
e, de certa forma, a proteção estatal é importante para corrigir as disparidades de tratamento que surgem com
o processo globalizante. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus
Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 8;29;87.
11
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Resp. 1.324.712, Rel. Min. Luis Felipe Salomão. Disponível em: <http://
www.stj.jus.br>. Acesso em: 28 jul. 2017.
12
É de reconhecer que os tribunais pátrios reconhecem o CDC como norma de ordem pública de caráter
constitucional, não apenas em seu sentido formal, dado o mandamento expresso do art. 48 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias, que estabelece prazo de cento e vinte dias para a promulgação de
Código de Defesa do Consumidor, como em seu sentido material, em virtude da consubstanciação da igualdade,
do reconhecimento do consumidor como elemento da ordem econômica e financeira, dentre outros. Dentre
vários arestos, cite-se o REsp 586.316. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 28 jul. 2017.
13
AZEVEDO, Fernando Costa. Op. cit. p. 6.
14
ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente:
Lei n. 8.069/90 comentado artigo por artigo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
115
15
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e
solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação”. BRASIL. Planalto. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
(grifou-se). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 13 fev. 2018.
16
TEPEDINO, Gustavo. Diálogos entre fontes normativas na complexidade do ordenamento. RBDCivil, Rio de
Janeiro, v. 5, p. 6-9, jul./set. 2015. Disponível em: <https://www.ibdcivil.org.br/rbdc.php?ip=123&titulo=%20
VOLUME%205%20|%20Jul-Set%202015&category_id=97&arquivo=data/revista/volume5/rbdcivil-volume-5.
pdf>. Acesso em: 14 fev. 2018.
17
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do código de defesa do consumidor e o necessário diálogo das fontes na perspectiva de consolidação normativa
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br/revistajuridica>. Acesso em: 13 fev. 2018.
18
MONTEIRO, Patrícia Ferreira de Almeida. A aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes às relações de consumo. Escola
de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <http://www.emerj.
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
116 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
19
AZEVEDO, Fernando Costa. Op. cit. p. 10.
20
BRASIL. STJ. REsp 132.955-6/SP. Disponível em: <http://www.stj.jus.br> . Acesso em: 28 jul. 2017.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
117
21
PINHEIRO, Rosalice Figaldo; DETROZ, Derlayne. A hipervulnerabilidade e os direitos fundamentais do
consumidor idoso no Direito brasileiro. In: Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, vol. II, 2012. Disponível
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22
Idem, ibidem. On-line.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
118 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
multiplicação de uma característica pessoal com uma barreira (entrave, obstáculo, atitude
ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa), donde, havendo
um fator 0 às barreiras, não há que se falar em deficiência.23
A principal novidade adotada pelo modelo social adotado explicitamente na
Convenção de Nova York e na Lei nº 13.146/15, a par da mudança de nomenclatura
(pessoa com deficiência substituindo pessoa portadora de deficiência ou portadora
de necessidades especiais), é a concepção da deficiência como um conceito externo ao
indivíduo, portanto a utilização da nomenclatura “social”, uma vez que a deficiência é
advinda de barreiras (sociais, arquitetônicas, urbanísticas, etc.) e não mais somente de
características individuais.
Um importante paradigma reforçado pelo modelo social é a superação do antigo
conceito de dependência da pessoa com deficiência. Ao deslocar a deficiência para a
sociedade e voltar as atenções ao indivíduo, tem-se que todos os seres humanos são
interdependentes e, por isso, não há que se tratar eventuais cuidados especiais a algumas
pessoas sob um viés preconceituoso, mas, tão somente, um aspecto de sua característica
pessoal. As diferenças entre as pessoas não são mais qualitativas – entre pessoas com ou
sem deficiência – mas tão somente quantitativas, com relação a quais e em qual medida
cada indivíduo se faz dependente de outros.
Em decorrência disso, a deficiência é conceito eminentemente dinâmico, seja pela
possibilidade da gradual superação de barreiras pela sociedade (fator externo) ou, ainda,
pela adoção ou surgimento de novas técnicas médicas, assistenciais ou tecnológicas que
sejam capazes de superar as limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais do
indivíduo. Ademais, a pessoa com deficiência é gênero por demais amplo, abrangendo
pessoas com impedimentos de longo prazo (natos ou adquiridos), de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, nos mais variados níveis. Por tal razão, o EPCD concebeu
institutos de isonomia material, permitindo uma diferenciação endógena, como a
facultatividade de a PCD gozar dos direitos previstos na Lei nº 13.146/15 (art. 4º, §1º),
em institutos de assistência social que citam a categoria da “pessoa com deficiência em
situação de dependência”, dentre outros.
A caracterização da pessoa com deficiência não é, ao contrário do que ocorre com
o idoso, adolescente a criança, critério objetivo e de caracterização automática. Não
basta um critério cronológico (sessenta anos, para o idoso, até doze anos incompletos,
para criança, ou até dezoito anos incompletos, para adolescente), sendo necessária a
inter-relação entre características pessoais (impedimentos de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial) com uma ou mais barreiras que sejam capazes
de obstruir a participação plena e efetiva do indivíduo na sociedade.
Deve-se ver ainda que há vários graus de deficiência que levarão a múltiplas
consequências no plano fático e social, desde a livre opção da pessoa com deficiência
de não fruir dos direitos previstos na legislação específica até, em casos extremos, a
possibilidade da decretação da curatela24 como ultima ratio.
23
LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA FILHO, Waldir Macieira (Coord.). Comentários
ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2017.
24
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deficiência: impactos do novo CPC e do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Civilistica, Rio de Janeiro, ano 4,
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25
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26
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27
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28
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29
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www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=283281516&tipoApp=.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2018.
30
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e relações privadas na experiência das cortes superiores brasileiras.
B. Cient. ESMPU, Brasília, ano 7, n. 28/29, jul./dez. 2008, p. 191-208. Disponível em: <http://boletimcientifico.
escola.mpu.mp.br/boletins/bc-28-e-29/normas-constitucionais-e-relacoes-privadas-na-experiencia-das-cortes-
superiores-brasileiras>. Acesso em: 14 fev. 2018. p. 207.
31
SCHMITT, Cristiano Heineck. A “hipervulnerabilidade” como desafio do consumidor idoso no mercado de
consumo. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, v. 3, n. 1, p. 94-111,
jan./jun. 2017. Disponível em: <https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/article/view/11958>.
Acesso em: 10 fev. 2018.
RAFAEL DIOGO DIÓGENES LEMOS, NARDEJANE MARTINS CARDOSO
A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
121
Considerações finais
O Código de Defesa do Consumidor, considerando a massificação da sociedade
de consumo, veio a regulamentá-la, consistindo em corpo jurídico protetivo de classe
percebida legalmente como hipossuficiente e, por isso, tendo reconhecida a vulnera
bilidade enquanto princípio norteador da Política Nacional das Relações de Consumo.
A evolução da sociedade nas décadas subsequentes mostrou que a categoria
“consumidor” é decomposta em diversas camadas, sendo necessária uma adaptação
normativa para que seja alcançada a almejada isonomia material. Com isso, reconhecendo-
se a importância do consumo de crianças, idosos, superendividados ou pessoas com
deficiência, conceitos trazidos pela Lei nº 8.078 no início da década de noventa devem
ser vistos sob outra ótica, adaptando-se à nova realidade.
Nesse viés, à vulnerabilidade, entendida como um atributo ínsito a todo consu
midor, deve ser atribuída nova leitura. Deste modo, emerge o conceito de hipervulne
rabilidade nos contratos de consumo envolvendo pessoas com características específicas.
Vê-se, assim, a evolução de um paradigma liberal do contrato para um paradigma social
a fim de alcançar os diversos matizes da sociedade.
A doutrina bem como a jurisprudência abordam a hipervulnerabilidade do idoso e
da criança, através da aplicação do diálogo das fontes de modo a permitir a aplicação de
uma rede protetiva múltipla a essas pessoas, constando não apenas no Código de Defesa
do Consumidor, bem como no Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente
e outras leis normativas.
A autonomia conferida à pessoa com deficiência, em especial após o advento
da Convenção de Nova York e, em especial, a edição da Lei nº 13.146/15, coloca-a em
igualdade com os demais, para realizar quaisquer atos da vida civil. Sendo, assim, as
pessoas com deficiência são consumidores em potencial. A despeito de sua autonomia
legal e independência jurídica, o reconhecimento da deficiência, conforme seu marco
legal, comporta diversos graus de incidência, devendo ser reconhecida, a estes, a mesma
proteção já estendida a outros segmentos sociais, como o idoso e a criança.
Com o aumento do número de pessoas com deficiência no Brasil e o reconhecimento
de sua independência jurídica, o conceito tradicional de vulnerabilidade previsto pelo
Código de Defesa do Consumidor não é mais suficiente para emprestar a proteção
adequada e necessária. Faz-se imprescindível estender-lhes uma proteção agravada,
reconhecendo o pertinente diálogo entre instrumentos protetivos através de uma
aglutinação entre Código de Defesa do Consumidor, Lei Brasileira da Inclusão e outros
diplomas normativos protetivos.
O reconhecimento jurisprudencial da hipervulnerabilidade ao idoso, à criança e
ao adolescente deve ser estendido, pois, à pessoa com deficiência, avaliando-se casuisti
camente, de modo a não excluir a autonomia e independência que a Lei nº 13.146/15
reconhece às PCD.
A avaliação da pessoa com deficiência não se faz através de critérios objetivos,
tal qual ocorre com o idoso ou a criança, sendo, por isso, mais difícil de ser realizado.
Contudo, a dificuldade em sua implementação de critérios não pode consistir em um
óbice ao necessário reconhecimento da hipervulnerabilidade às pessoas com deficiência
que necessitarem da ampliação protetiva que confiram o acesso aos bens humanos
comuns e à própria formação da personalidade.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
122 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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A HIPERVULNERABILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
123
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
1 Introdução
Pretende-se analisar, neste trabalho, a temática referente ao exercício dos direitos
da personalidade por crianças e adolescentes. Muito embora a Constituição Federal e
o Estatuto da Criança e do Adolescente expressamente garantam o direito à liberdade
aos menores, o regime das incapacidades do Código Civil, ao instituir a representação
e a assistência como regra, afasta a possibilidade de exercício autônomo de atos da vida
civil por aqueles que não atingiram a maioridade – inclusive em questões referentes à
própria existência.
Sustentado na igualação entre sujeito de direito e pessoa humana e tendo por
escopo assegurar relações patrimoniais, o Código Civil, ao dispor o regime das incapa
cidades, não se atentou às especificidades dos interesses extrapatrimoniais e se afastou
do indivíduo concreto dotado de desejos e necessidades. Moldada originalmente para
relações de cunho patrimonial, a categoria da capacidade de agir não se revela adequada
às situações jurídicas subjetivas existenciais. A afirmação é possível diante da diversidade
da lógica subjacente às situações jurídicas patrimoniais e existenciais: enquanto as
primeiras têm por fundamento a liberdade para atos proprietários, as segundas visam
ao livre desenvolvimento da personalidade humana.
A partir do fenômeno de constitucionalização do Direito Civil, o foco deixa de estar
no sujeito-proprietário abstrato e volta-se ao sujeito real, concreto e vulnerável – diante
do que são requeridas novas respostas do Direito. Assim, exige-se tutela aos interesses
das mulheres, dos idosos, das crianças e dos adolescentes, dos deficientes físicos,
dos portadores de doenças psiquiátricas, dos pacientes em estado de terminalidade.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
126 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Impõe-se a garantia de voz à totalidade das pessoas, resguardando seu direito ao livre
desenvolvimento como modo de contornar as próprias vulnerabilidades.
A infância e a adolescência são caracterizadas como processos de contínua evo
lução, nos quais novas capacidades são adquiridas e novas vivências são experimentadas.
Mencionada evolução, no entanto, não ocorre em saltos ou em blocos, nem de modo
homogêneo. O ritmo das alterações é individualizado, o que faz com que menores da
mesma idade apresentem graus de desenvolvimento diversos – diferença essa relacio
nada principalmente aos estímulos, ao ambiente, à educação e às experiências vividas.
Sendo o amadurecimento da criança e do adolescente um processo heterogêneo e
gradual, é possível que, antes mesmo de atingir a maioridade, o jovem se encontre apto
a tomar decisões autônomas referentes a questões que tocam sua própria existência.
Assim, emergem os seguintes questionamentos: devem os direitos personalíssimos dos
menores ser exercidos na totalidade dos casos por representantes/assistentes ou é possível
o exercício exclusivo pelas crianças e adolescentes? Quais condições os autorizariam
a proceder a escolhas existenciais? Qual é o procedimento necessário para verificar o
discernimento dos menores?
De modo a garantir o livre desenvolvimento da personalidade das crianças e
adolescentes, impõe-se a utilização do discernimento como critério para exercício das
situações jurídicas existenciais, afastando-se o critério etário – fictício e neutro – disposto
no Código Civil. Busca-se, assim, um resgate da pessoa concreta e vulnerável, dotada
de desejos, necessidades e especificidades.
1
CARBONERA, Silvana Maria. Guarda de filhos na família constitucionalizada. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 2000. p. 24-25. Em sentido semelhante, Ana Carla Harmatiuk Matos explica que “a mulher e os filhos, no
modelo clássico, encontram-se em posição hierarquicamente inferior. Edificada sobre os alicerces da crença em
uma ‘natural’ condição de superioridade masculina por razões de autoridade e força física, a história reservou
um espaço de inferioridade à mulher.” (MATOS, Ana Carla Harmatiuk. União entre pessoas do mesmo sexo: aspectos
jurídicos e sociais. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 09).
2
Diego Carvalho Machado, ao afirmar a ausência de autonomia na adolescência, aponta que o adolescente, neste
contexto, era “[...] o filho (legítimo, legitimado, legalmente reconhecido ou adotivo) submetido ao poderoso pai,
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
127
titular da pater potesta (pátrio poder), assumindo um status jurídico equivalente ao de coisa, ou seja, de objeto de
direito”. (MACHADO, Diego Carvalho. Capacidade de agir e pessoa humana: situações subjetivas existenciais sob a
ótica civil-constitucional. Curitiba: Juruá, 2013. p. 159). A despeito de não se concordar com a alegada coisificação
do adolescente, faz-se uso da passagem citada para demonstrar a posição secundária destinada ao jovem antes
da Constituição Federal de 1988.
3
Prevê o caput do artigo 227 da Constituição Federal que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar
à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”. (BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988).
4
BRASIL. Lei nº 8.069, de 16 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 1990.
5
A representação e a assistência são consideradas como institutos de proteção aos incapazes. A representação,
necessária em relação aos absolutamente incapazes, “consiste na substituição do incapaz por uma pessoa capaz,
na prática de um ato jurídico. O exercício dos direitos defere-se a um sujeito que possa agir por sua conta e
em nome do incapaz, o representante (...)”. A assistência, necessária, por sua vez, aos relativamente incapazes,
“consiste na intervenção conjunta do relativamente incapaz e do seu assistente na prática do ato jurídico”.
(AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 8. ed. rev., atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 287).
6
RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.).
A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 14.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
128 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
regime das incapacidades, assim, é a tutela daqueles que, por presunção, não apresentam
condição para a administração de seus interesses de cunho patrimonial.
A partir da análise do regime das incapacidades disposto no ordenamento
civil pátrio, verifica-se que a categoria da capacidade, moldada originalmente para
relações de cunho patrimonial,7 não se revela adequada às situações jurídicas subjetivas
existenciais – circunscritas especialmente nos direitos da personalidade.8 Isso porque é
diversa a lógica subjacente às situações jurídicas patrimoniais e existenciais: enquanto
as primeiras têm por fundamento a liberdade para atos proprietários – comprar, vender,
doar, testar e herdar, em especial –, as segundas buscam garantir o livre desenvolvimento
da personalidade humana.
Ao se tratar de direitos existenciais, torna-se questionável a separação entre titu
laridade e exercício, uma vez que é possível a violação à autonomia individual quando
o direito é exercido por terceiro.9 Os institutos de suprimento da capacidade no caso de
menores – representação e assistência –, a despeito do propósito protetivo, devem ser
repensados quando estão em pauta os direitos da personalidade.
Sobre esta temática, Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira ques
tionam: “a presunção de incapacidade de um indivíduo menor de 16 anos, ou menor de
18 anos, é absoluta? Não poderiam estes indivíduos decidir sobre questões existenciais
que digam respeito a sua autobiografia, ou a presunção de incapacidade impede seja
construída sua pessoalidade?”.10
7
A noção de capacidade está intimamente vinculada às noções de sujeito de direito e de personalidade jurídica
e à categoria da relação jurídica. Na perspectiva clássica, sujeito de direito é o elemento subjetivo das relações
jurídicas, o qual tem aptidão para ser titular de direitos e deveres na ordem civil. Aludida aptidão é conceituada
como personalidade jurídica. A capacidade, por sua vez, é a medida de personalidade; é a averiguação de seu
quantum. Esta configuração de relação jurídica foi originada em vistas à circulação de patrimônio na sociedade.
Nesta perspectiva tradicional, a pessoa, circunscrita à noção de sujeito de direito, perfazia-se num mero conceito
despido de valor, construído sob o rigorismo científico, com o fito de permitir sua inclusão nos polos das relações
jurídicas, estas dotadas de conteúdo patrimonial. A capacidade, a seu turno, era a medida da aptidão do sujeito
para realizar atos jurídicos de cunho negocial. (RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no novo
Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 29.)
8
Os direitos existenciais são voltados à proteção da dignidade e não coadunam com a lógica dos direitos subjetivos
– voltados à tutela de interesses patrimoniais. Pietro Perlingieri, nessa esteira, esclarece que: “À matéria dos
direitos da personalidade não é possível a aplicação do direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’.
Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser [...]. Onde
o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial
natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do
direito e o ponto de referência objetivo da relação. [...] A personalidade é, portanto, não um direito, mas um
valor (o valor fundamental do ordenamento) e está na base de uma série aberta de situações existenciais, nas
quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Tais situações subjetivas não assumem
necessariamente a forma do direito subjetivo e não devem fazer perder de vista a unitariedade do valor
envolvido” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução
Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p 155- 156). Preferível, assim, a adoção da categoria
da situação jurídica subjetiva, que abarca de modo mais amplo as formas do agir humano, compreendendo os
direitos subjetivos, os deveres jurídicos, os direitos potestativos, a sujeição, o ônus, o poder-dever, dentre outros.
(MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 19).
9
Consoante afirmam Joyceane B. de Menezes e Renata V. Multedo, “não parece razoável atribuir-se a alguém
a titularidade de uma situação existencial sem lhe conceder a capacidade de exercício”. MENEZES, Joyceane
Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela. A autonomia ético-existencial do adolescente nas decisões judiciais
sobre o próprio corpo e a heteronomia dos pais e do Estado no Brasil. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana
Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao
professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 317.
10
SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio assistido e
diretivas antecipadas de vontade. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 169-170.
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
129
11
MACHADO, Diego Carvalho. Capacidade de agir e pessoa humana: situações subjetivas existenciais sob a ótica civil-
constitucional. Curitiba: Juruá, 2013. p. 167.
12
Nas palavras de Diego Carvalho Machado, “se percebe com nitidez que a liberdade ou autodeterminação
do menor toma forma de modo gradual, à medida que é educado, sendo que o adolescente com certeza já é
sujeito portador de considerável maturidade, isto é, espaço de autogoverno (ainda em edificação), respeitadas,
evidentemente, as particularidades da concreta formação do discernimento em cada indivíduo” (Ibidem, p. 168).
13
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 132-133.
14
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005. p. 19.
15
PINTO, Carlos Alberto Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 209.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
130 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
16
PINTO, Carlos Alberto Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 209.
17
RIVERA apud MARX NETO, Edgard Audomar. Exercício dos direitos da personalidade por crianças e
adolescentes: entre o exercício exclusivo e regime de incapacidade. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 13,
n. 100, p. 363, jul./set. 2011.
18
CAPELO DE SOUSA apud MARX NETO, Edgard Audomar. Exercício dos direitos da personalidade por crianças
e adolescentes: entre o exercício exclusivo e regime de incapacidade. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 13,
n. 100, p. 363, jul./set. 2011.
19
CORRÊA, Adriana Espíndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações jurídicas. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010. p. 119.
20
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 34.
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
131
É preciso [...] privilegiar sempre que for possível as escolhas de vida que o deficiente
psíquico é capaz, concretamente, de exprimir, ou em relação às quais manifesta notável
propensão. [...] Quando concretas, possíveis, mesmo se residuais, faculdades intelectivas
e afetivas podem ser realizadas de maneira a contribuir para o desenvolvimento da
personalidade, é necessário que sejam garantidos a titularidade e o exercício de todas
aquelas expressões de vida que, encontrando fundamento no status personae e no status
civitatis, sejam compatíveis com a efetiva situação psicofísica do sujeito.22
21
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução Maria Cristina
de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 122.
22
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 164-165.
23
RODRIGUES, Rafael Garcia. A pessoa e o ser humano no novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.).
A parte geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
p. 25-26.
24
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 126.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
132 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Art. 3º: A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º, é
juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes,
desde que demonstrem discernimento bastante para tanto.26
25
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 129.
26
CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS. III Jornada de Direito Civil. Ruy Rosado (Org.). Brasília, DF: CJF, 2004.
p. 507. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/215>. Acesso em: 15 maio 2018.
27
Artigo 5º: “Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, quando for o
caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme determinem os costumes locais dos tutores
ou de outras pessoas legalmente responsáveis por proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e
acordes com a evolução de sua capacidade, no exercício dos direitos reconhecidos na presente Convenção”
(BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança.
Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 nov. 1990).
28
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 172.
29
Define o Mental Capacity Act, em sua seção 1, que: “(2) A person must be assumed to have capacity unless it
is established that he lacks capacity.” (REINO UNIDO. APA 6th: Department of Health. Mental Capacity Act.
Londres: HMSO, 2005. Disponível em: <http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2005/9/contents>. Acesso em: 13
maio 2018).
30
Na seção 2, o documento estabelece que: “(3) A lack of capacity cannot be established merely by reference to – (a)
a person’s age or appearance [...]” (Ibidem).
31
Na seção 3, define quando alguém será considerado como incapaz para a tomada de uma decisão: “(1) For the
purposes of section 2, a person is unable to make a decision for himself if he is unable – (a) to understand the
information relevant to the decision, (b) to retain that information, (c) to use or weigh that information as part of
the process of making the decision, or (d) to communicate his decision (whether by talking, using sign language
or any other means)” (Ibidem).
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
133
primeiro, por presumir que o adolescente entre treze e dezesseis anos tem aptidão
para decidir sobre tratamentos que não são invasivos nem comprometem seu estado
de saúde ou provocam risco grave à vida e à sua integridade; segundo, por definir que
a partir dos dezesseis anos o adolescente é considerado como um adulto para tomar
decisões referentes ao cuidado de seu corpo. O Código Civil Argentino, muito embora
reconheça expressamente a importância de o próprio titular exercer direitos referentes
ao próprio corpo e trabalhe com um conceito maleável (“grado de madurez suficiente”),
não apresenta parâmetros para a aferição do grau de maturidade dos menores – o que
provavelmente ficará a cargo da doutrina e dos tribunais.
No âmbito doutrinário português, merece destaque a teoria da capacidade para
consentir, que representa “terceira esfera do gênero ‘capacidade’, atuando, portanto
como um círculo distinto da capacidade jurídica, ou de gozo e da capacidade negocial,
ou de exercício”.32 Conforme explica Dias Pereira, a capacidade para consentir se trata de
um “ramo paralelo ao da capacidade negocial, que parte do mesmo tronco, que partilha
algumas preocupações, mas com finalidades distintas, com um regime que deverá ser
diverso e com sistemas de representação diferentes”.33
A utilização de aludida categoria, proposta especificamente para atos existenciais
em matéria de saúde, afasta-se da taxatividade das definições legais acerca da capacidade
e impõe avaliar no caso concreto, por meio de equipe multidisciplinar, se o paciente
conta com o discernimento necessário para aceitar ou afastar determinada terapia.
É verificado, nesse procedimento, o grau de maturidade do enfermo e a necessidade e
a seriedade da intervenção.34
Remetendo-se à construção do doutrinador germânico Amelung, Pereira Dias
expõe as exigências impostas para que se reconheça a capacidade para consentir: a
capacidade de decidir acerca de valores, a capacidade de entender os fatos, a capacidade
de compreensão acerca das alternativas e a capacidade de se autodeterminar a partir
das informações que foram apresentadas ao paciente.35 Ausente algum desses elementos,
não pode a pessoa ser considerada capaz de consentir. Embora específica para questões
de saúde, a teoria da capacidade para consentir permite, ao menos de forma introdutória,
a compreensão dos requisitos para a averiguação do discernimento.
O discernimento – critério proposto para o exercício dos direitos da personalidade
por menores – significa a viabilidade da pessoa de fazer escolhas com base na análise
dos fatos, das consequências e das circunstâncias. De acordo com Thaís Sêco, devem ser
analisados os efeitos da decisão que se pretende realizar – se reversíveis ou irreversíveis –,
32
MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres tornadas incapazes pelo uso
de drogas: notas para uma aproximação entre a técnica jurídica e a reflexão bioética In: ______; MÖLLER, Letícia
Ludwig (Org.). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 324.
33
PEREIRA, André Gonçalo Dias. A Capacidade para Consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da
Reforma de 1975: A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.
p. 203-204.
34
CORRÊA, Adriana Espíndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações jurídicas. Florianópolis:
Conceito Editorial, 2010. p. 120.
35
PEREIRA, André Gonçalo Dias. A Capacidade para Consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In:
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da
Reforma de 1975: A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do Direito Civil, v. II. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.
p. 209-213.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
134 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
36
SÊCO apud MENEZES, Joyceane Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela. A autonomia ético-existencial do
adolescente nas decisões judiciais sobre o próprio corpo e a heteronomia dos pais e do Estado no Brasil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito
e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 320.
37
MARTINS-COSTA, Judith. Capacidade para consentir e esterilização de mulheres tornadas incapazes pelo uso
de drogas: notas para uma aproximação entre a técnica jurídica e a reflexão bioética In: ______; MÖLLER, Letícia
Ludwig (Org.). Bioética e Responsabilidade. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 320.
38
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito
e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 45.
39
Nesse sentido, afirmam Joyceane B. de Menezes e Renata V. Multedo: “Nesse contexto é que se confia aos
pais a tarefa de determinar aquilo que constitui o melhor para seus filhos. Exercentes de um poder familiar
funcionalizado, pautado na responsabilidade e no cuidado, pressupõe-se que saberão identificar o que constitui
o melhor interesse, o ‘bem’ para os seus filhos”. MENEZES, Joyceane Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela.
A autonomia ético-existencial do adolescente nas decisões judiciais sobre o próprio corpo e a heteronomia
dos pais e do Estado no Brasil. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor
(Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 318.
40
Carmen Sílvia Maurício de Lacerda resume tal passagem: “A família, extrapolando os limites de um modelo
único, matrimonializado, desigual e hierarquizado, converte-se em um local de realização das pessoas que a
integram, não importando a origem ou a forma de constituição, na medida em que o objetivo final da proteção
estatal deverá incidir na pessoa humana e no desenvolvimento de sua personalidade” (LACERDA, Carmen
Sílvia Maurício de. Famílias monoparentais: conceito. composição. responsabilidade. In: ALBUQUERQUE, F. S.;
EHRHART JR., M.; OLIVEIRA, C. A. de. Família no Direito Contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz
Netto Lôbo. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 169).
41
De acordo com Pietro Perlingieri, em análise acerca do Direito de Família italiano, a entidade familiar é protegida
pela Constituição “não como portadora de um interesse superior e superindividual, mas, sim, em função da
realização das exigências humanas, como lugar onde se desenvolve a pessoa” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
135
7 Considerações finais
Foi defendido, neste estudo, que o regime das incapacidades – abstrato e patri
monialista – não se revela adequado às situações jurídicas existenciais, as quais, na
Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2007. p. 243).
42
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 75.
43
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 297.
44
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução Maria Cristina
de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 260.
45
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia Privada e Dignidade Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 178.
46
MENEZES, Joyceane Bezerra de; MULTEDO; Renata Vilela. A autonomia ético-existencial do adolescente nas
decisões judiciais sobre o próprio corpo e a heteronomia dos pais e do Estado no Brasil. In: TEPEDINO, Gustavo;
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em
homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 318.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
136 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
sistemática codificada, somente podem ser exercidas livremente por indivíduos maiores.
Isso porque, consoante sustentado, delegar a terceiros decisões referentes a aspectos
existenciais do indivíduo permite a perpetração de violações à dignidade e à autonomia.
Com isso, e tendo em vista que o amadurecimento de crianças e adolescentes
é heterogêneo e gradual, é defensável o abandono do critério etário estabelecido no
Código Civil, quando estão em causa questões que envolvem o desenvolvimento da
personalidade do sujeito, e a adoção do critério do discernimento. É apenas na análise
do caso concreto, a partir das condições funcionais e conjunturais específicas da pessoa,
que se torna possível aferir a capacidade de discernir do menor.
A adoção do discernimento como critério para o exercício dos direitos da
personalidade por crianças e adolescentes é compatível com a noção constitucionalizada
de poder familiar, segundo a qual cabe aos pais, mais que impor decisões heterônomas
aos filhos, estimulá-los à autonomia responsável de acordo com o seu grau de
amadurecimento.
Ao se questionar o regime das incapacidades e suas abstrações, questiona-se, em
verdade, o tratamento conferido pelo ordenamento jurídico à pessoa. Consoante afirma
Luiz Edson Fachin, “a incapacidade, ao contrário do que possa parecer, não é apenas
um conceito técnico, mas também ideológico, que tem um valor situado no momento
anterior à definição jurídica”.47 Simbolicamente, a capacidade de fato representa uma
chave que permite ao indivíduo o acesso à autonomia e à autorrealização. Na égide
da subordinação do Direito Civil aos valores constitucionais, o porvir requer que cada
vez mais indivíduos se tornem possuidores desta chave, de modo a efetivar um regime
verdadeiramente inclusivista.48
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47
FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 200.
48
Um importante passo em direção a um regime inclusivista foi dado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei
nº 13.146 de 2015, ao prever, em seu artigo 6º que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”.
A despeito das críticas dirigidas à novel legislação, o Estatuto revela sua importância afastar a premissa de
que o portador de deficiência necessariamente não apresenta discernimento, tornando-se necessária a análise
particular da situação para que se defina a medida da limitação da pessoa.
LYGIA MARIA COPI
ENTRE REPRESENTAÇÃO E AUTONOMIA: O EXERCÍCIO DE DIREITOS DA PERSONALIDADE POR CRIANÇAS E ADOLESCENTES
137
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
138 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
COPI, Lygia Maria. Entre representação e autonomia: o exercício de direitos da personalidade por crianças
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Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 125-138. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS
DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA
DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
1 Introdução
Vivenciamos a era da informação.1 Tempo em que as notícias são disseminadas
de forma fluida e célere, reputações são destruídas ao toque do teclado, ao passo que
personagens são alçadas à condição de estrelato instantâneo, adquirindo os conteúdos e
dados transmitidos/armazenados no mundo virtual a fugacidade típica de uma sociedade
marcadamente superficial e ávida por novidades, ainda que desprovidas de veracidade
ou sustentáculo no mundo dos fatos.
Paradoxalmente, a efemeridade das informações repassadas, consumidas de forma
descartável,2 convive, em razão das novas tecnologias empregadas, com a eternização
dos conteúdos gravados na rede, permanecendo compilados, à disposição de todos, por
lapso temporal indefinido.3
A privacidade,4 antes espaço sagrado do ser, cede espaço à divulgação da vida
íntima de modo indiscriminado, tornando tênue, quiçá inexistente, a divisão outrora
1
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque; NUNES, Danyelle Rodrigues de Melo; PORTO, Uly de
Carvalho Rocha. Direito ao esquecimento segundo o STJ e sua incompatibilidade com o sistema constitucional
brasileiro. Revista de informação legislativa: RIL, v. 54, n. 213, p. 63-80, jan./mar. 2017. Disponível em: <http://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p63>. Acesso em: 25 jul. 2017.
2
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 183.
3
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 170.
4
O tema da privacidade, enquanto direito, foi tratado originalmente no trabalho intitulado Right to Privacy,
publicado na Hard Law Review, de autoria de Samuel Warren e Louis Brandeis. Nesta obra, os autores entendem
se tratar a privacidade de uma necessidade humana: “The intensity and complexity of life, attendant upon advancing
civilization, have rendered necessary some retreat from the world, and man, under the refining influence of culture, has
become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have become more essential to the individual; but modern
enterprise and invention have, through invasions upon his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater
than could be inflicted by mere bodily injury”. (WARREN S. D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard
Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 196).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
140 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
estanque entre espaço público e esfera privada.5 Tal como no romance de George Orwell,
1984, os recintos mais recônditos da pessoa humana são auscultados, relativizando-se a
proteção da intimidade enquanto valor jurídico, admitindo-se o tráfego econômico de
informações e imagens pessoais.6
A difusão e o armazenamento ilimitados de dados, com seus gravosos corolários
no domínio particular do indivíduo, trouxeram a lume a necessidade de se repensar a
teoria e proteção de clássicos direitos da personalidade, ante a nova realidade que exsurge
do mundo virtual, dando novos contornos jurídicos ao instituto da memória, e tornando
imperioso o aprofundamento de temas como o direito ao esquecimento, figura ainda
controvertida no âmbito doutrinário e praticamente ausente dos anais jurisprudenciais.
Interessante exemplo, que bem caracteriza os novos desafios relacionados ao
tratamento conferido ao armazenamento de dados na rede social de computadores,
é veiculado por Adam Liptak, no The New York Times. Relata o escritor que Andrew
Feldmar, um psicoterapeuta de Vancouver, no verão de 2006, tentou cruzar a linha
entre Canadá e EUA, quando um guarda de fronteira, ao utilizar um sistema de busca
na internet, verificou que Feldmar havia afirmado, num jornal interdisciplinar, ter feito
uso de LSD nos anos 1960. Mesmo já tendo atravessado o território norte-americano mais
de cem vezes e não ostentando qualquer condenação criminal, o terapeuta foi proibido
de ingressar em solo americano, estando hoje impedido de entrar nos Estados Unidos,
onde atuava ativamente no campo profissional e onde os seus dois filhos residem.7
Destarte, o desenvolvimento de revolucionárias tecnologias, permitindo o acesso
instantâneo a informações e conteúdos remotos, bem como o armazenamento ilimitado,
no tempo e no espaço, de dados, aliado à constatação da quase inexistência de legislação
sobre o tema, tem fomentado o debate acerca da necessidade de proteção jurídica de um
fenômeno outrora cingido exclusivamente à seara biológica: o esquecimento.8
O direito da pessoa humana de ter o seu passado ou fatos a ela relacionados não
conhecidos tem povoado hodiernamente as discussões jurídicas travadas nos grandes
centros mundiais, tendo adquirido especial relevância no seio nacional em razão de
ter sido a matéria enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do
Resp 1.334.097/RJ e do Resp 1.335.135/RJ, ambos relatados pelo ministro Luis Felipe
Salomão. Outrossim, o tema chegou ao Supremo Tribunal Federal, por meio do Recurso
Extraordinário 1010606, com repercussão geral reconhecida, tendo sido realizada
5
COSTA JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p. 16-17.
6
DOTTI, René Ariel. A liberdade e o direito à intimidade. R. Inf. Legisl. Brasília, ano 17 n. 66, abr./jun. 1980.
Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181214/000369546.pdf?sequence=3>.
Acesso em: 7 jul. 2017.
7
LIPTAK, Adam. The nation’s borders, now guarded by the net. The New York Times [online], New York, May 2007.
Disponível em: <http://www.nytimes.com/2007/05/14/us/14bar.html>. Acesso em: 6 jul. 2017.
8
Discorrendo sobre o tema, sustenta Bernardo de Azevedo e Souza: “A memória é, em suma, um fenômeno
biológico, fundamental e extremamente complexo, que pode ser analisado sob diferentes vieses (biológico,
neurológico, social, psicológico). A despeito de todos os avanços das neurociências nos últimos anos, após o
término da Segunda Guerra Mundial, sobretudo, continua a ser um dos grandes enigmas da humanidade. Dada
a complexidade da memória, destaca-se que suas quatro etapas (aquisição, formação, conservação e evocação
das informações) jamais se sustentariam se as informações acumulassem ao longo do tempo. É necessário que
o esquecimento exista para termos uma vida útil e para que haja memória funcional. Daí por que não somos
somente aquilo que lembramos: somos também aquilo que esquecemos”. (SOUZA, Bernardo de Azevedo e.
A tutela jurídica da memória individual na sociedade da informação: compreendendo o direito ao esquecimento.
Disponível em: <https://pucrs.academia.edu/BernardodeAzevedoeSouza>. Acesso em: 06 jul. 2017).
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
141
audiência pública sobre a temática no dia 12 de junho do corrente ano, presidida pelo
ministro Dias Toffoli.
O tema tratado tem especial relevância na seara da responsabilidade civil, gerando
inúmeros questionamentos acerca da matéria. Deve-se, em primeiro lugar, enfrentar, por
meio da análise da origem do instituto no direito alienígena, o debate sobre a existência,
no âmbito do Direito Pátrio, de um direito ao esquecimento, evoluindo, posteriormente,
em caso de resposta positiva, para a fixação de seus contornos jurídicos e limites, de
acordo com as peculiaridades de nosso sistema jurídico, afigurando-se imprescindível
ainda o estudo das consequências em razão do descumprimento e as formas de tutela
da novel figura jurídica.
Diversas, portanto, são as questões que pululam da temática apresentada, de
modo que este trabalho tem o escopo de abordar as principais e recentes discussões, com
o desiderato de investigar a aplicabilidade e a abrangência do direito ao esquecimento
no campo da responsabilidade civil, tracejando os limites da incidência do dever de
indenizar, seja na forma pecuniária ou por meio de reparação específica, em caso de
agressão a este novel direito da personalidade. Com o presente estudo, busca-se muito
mais levantar os fundamentais questionamentos que se colocam em torno da matéria,
sem a pretensão de encontrar respostas definitivas ou novidadeiras, visto que as soluções
certamente advirão do desenvolvimento do tema ao perpassar do tempo.
9
DOTTI, René Ariel Dotti. É possível defender um direito ao esquecimento? Gazeta do Povo. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/justica/colunistas/rene-ariel-dotti/e-possivel-defender-um-direito-ao-
esquecimento-i-238ckdlqgpguwr2djwoy59gbm>. Acesso em: 06 jul. 2017.
10
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
142 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
para os escritos, a atriz ingressou com uma demanda judicial no Tribunal Civil do Sena,
tendo este, em 30 de junho de 1952, condenado a editora a pagar nada menos que 50 mil
francos de indenização, como forma de reparar os danos sofridos. Após a interposição
de recurso de apelação por ambas as partes, o Tribunal de Apelação de Paris elevou o
quantum arbitrado para o patamar de R$ 1,2 milhão de francos, cerca de vinte e quatro
vezes a soma anterior.11
Não há falar ainda em direito ao esquecimento sem se recordar obrigatoriamente
do badalado caso Lebach, ocorrido em território alemão, no ano de 1969. O nome do
famoso case originou-se do local onde decorreram os fatos, um pequeno vilarejo situado
na República Federativa da Alemanha. Neste, um pequeno grupo de quatro soldados, que
guardava um depósito de arma e munições, restou vítima, durante o sono, de violenta
chacina, tendo sido condenados à prisão perpétua dois dos acusados, sendo que um
terceiro, mero partícipe, recebeu a pena de seis anos de reclusão.12
Dois anos após os fatos, uma emissora de televisão alemã (Zweites Deutsches
Fernsehen) produziu documentário (Der Soldatenmord von Lebach), escrito por Jürgen
Neven-du Mont, Rainer Söhnlein e Karl Schütz, que retrataria o delito, mediante
reconstituição dramatizada por atores contratados, incluindo, entretanto, fotos reais
e nomes de todos os condenados, mencionando inclusive o suposto envolvimento
homossexual existente entre eles.13 A produção artística seria exibida numa noite de sexta-
feira, poucos dias antes do terceiro condenado deixar a prisão, o que o levou, irresignado
com o fato, a promover demanda judicial para impedir a divulgação do programa, não
tendo o pleito sido acolhido na instância ordinária, visto terem o Tribunal Distrital e
o Tribunal Regional Superior entendido que havia interesse público na informação e
que as liberdades de expressão e de comunicação deveriam ser protegidas, resultando
em interposição de reclamação constitucional ao Tribunal Constitucional Federal da
Alemanha.14
O Tribunal alemão, ao se debruçar sobre o inédito caso, entendeu que, embora
em regra deva prevalecer o interesse público da informação, a “ponderação, em função
do transcurso do tempo desde os fatos (o julgamento é de junho de 1973), deve levar
em conta que o interesse público não é mais atual e acaba cedendo em face do direi
to à ressocialização”.15 Deste modo, de acordo com o decisium lavrado pelo Tribunal
11
No histórico julgamento, assentou, com propriedade, a corte parisiense que “as recordações da vida privada
de cada indivíduo pertencem ao seu patrimônio moral e ninguém tem o direito de publicá-las mesmo sem
intenção malévola, sem a autorização expressa e inequívoca daquele de quem se narra a vida”. O direito
ao esquecimento, como uma das importantes manifestações da vida privada, estava então consagrado
definitivamente pela jurisprudência, após uma lenta evolução que teve, por marco inicial, a frase lapidar
pronunciada pelo advogado Pinard em 1858: “O homem célebre, senhores, tem o direito a morrer em paz”.
(DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 92).
12
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 7 jul. 2017.
13
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Direito ao esquecimento na perspectiva do STJ. Revista Consultor Jurídico.
<http://www.conjur.com.br/2013-dez-19/direito-comparado-direito-esquecimento-perspectiva-stj>. Acesso em:
7 jul. 2017.
14
ROCHA, Maria Vital da; LYRA, Laís Gomes Monte de. Direito ao esquecimento ou direito à privacidade? Disponível
em: <http://www.adfas.org.br/admin/upload/conteudo/27092016%20LaisLyra.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2017.
15
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 07 jul. 2017.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
143
16
O inteiro teor do acórdão pode ser conferido em: SCHWAB, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal
Constitucional Alemão. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006. p. 486-493. Disponível em: <http://www.
kas.de/wf/doc/kas_7738-544-1-30.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2017.
17
Explicitando os argumentos utilizados na decisão, discorre Alexy: “Un ejemplo lo ofrece el caso Lebach del
Tribunal Constitucional alemán, en el que se trataba de una información televisiva repetida, no amparada
ya por un interés informativo actual, sobre un delito grave, emitida poco antes de la excarcelación del autor
. La argumentación del tribunal se desarrolla en tres niveles. En el primer nivel constata una colisión entre la
protección fundamental e igual de la personalidad y la libertad de información. En el segundo nivel establece
que bajo una condición determinada y relativamente abstracta, esto es, la de una información actual sobre un
delito grave, existe una prioridad de principio o prima facie en favor de la libertad de información. En el tercer
nivel decide finalmente que bajo cuatro condiciones que se dan en el caso Lebach, a saber, una 1) información
televisiva repetida, 2) no amparada ya por un interés informativo, 3) sobre un delito grave, 4) que pone en
peligro la resocialización del autor, la protección de la personalidad prevalece sobre la libertad de información”.
(ALEXY, Robert. Sistemas jurídicos, Princípios jurídicos y Razón práctica. Doxa, v. 5, 1988, p. 139-151).
18
ROCHA, Maria Vital da; LYRA, Laís Gomes Monte de. Direito ao esquecimento ou direito à privacidade? Disponível
em: <http://www.adfas.org.br/admin/upload/conteudo/27092016%20LaisLyra.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2017.
19
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 07 jul. 2017.
20
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Não há tendências na proteção ao direito ao esquecimento. Revista Consultor
Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-dez-25/direito-comparado-nao-tendencias-protecao-
direito-esquecimento#_ftnref7>. Acesso em: 07 jul. 2017.
21
ROSENVALD, Nelson. Do direito ao esquecimento ao direito a ser esquecido. Disponível em: <https://www.
nelsonrosenvald.info/single-post/2016/11/16/Do-direito-ao-esquecimento-ao-direito-a-ser-esquecido>. Acesso
em: 07 jul. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
144 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
22
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
23
RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Direito de apagar dados e a decisão do tribunal europeu no caso Google
(parte 2). Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-mai-28/direito-comparado-
direito-apagar-dados-decisao-tribunal-europeu-google-espanha>. Acesso em: 07 jul. 2017.
24
SARLET, Ingo Wolfgang. Do caso Lebach ao caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-05/direitos-fundamentais-lebach-google-
vs-agencia-espanhola-protecao-dados-mario-gonzalez>. Acesso em: 07 jul. 2017.
25
Para melhor compreensão do tema, faz-se imprescindível a leitura do inteiro teor do acórdão, disponível em:
<http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?doclang=PT&text=&pageIndex=1&part=1&mode=req&do
cid=152065&occ=first&dir=&cid=201752>. Acesso em 07 jul. 2017.
26
No capítulo de abertura de seu trabalho mais difundido, “Delete: the virtue of forgetting in the digital age”, o autor
explicita a origem da nomenclatura: “It all began with a half page of notes titled “the right to be forgotten” in February of
2007. I quickly forgot about the notes, but remembered the idea. When journalist and friend Kenneth N. Cukier called to ask
for new perspectives on ubiquitous computing and privacy, I pitched to him the importance of forgetting, and he included it
in his report. My April 2007 working paper was quickly picked up by the media, somewhat to my surprise. My idea seemed
to have hit a nerve. In the two years since my argument evolved, my idea has spread, and to my delight many others have
advocated it or proposed something similar”. (MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor. Delete: the virtue of forgetting in the
digital age. New Jersey: Princeton University, 2009, p. 8).
27
LIMA, Erik Noleta Kirk Palma. Direito ao esquecimento: discussão europeia e sua repercussão no Brasil. Revista
de informação legislativa, v. 50, n. 199, jul./set. 2013. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br/bdsf/handle/
id/502929>. Acesso em: 07 jul. 2017.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
145
Na via legislativa, por sua vez, impulsionada pelas relevantes discussões travadas,
foi publicado, em 04.05.2016, no âmbito da União Europeia, o que se pode denominar
de “Legislação Europeia de Proteção de Dados Pessoais”, composta pelo Regulamento
2016/679, Diretiva 2016/680 e Diretiva 2016/681, que certamente terá larga utilização,
em escala global, não apenas no que tange à elaboração de legislação sobre o tema, mas
também servindo como relevante vetor hermenêutico na resolução de casos concretos
postos à apreciação do Judiciário.
A Seção 3 (arts. 16 a 18) do Regulamento 2016/79 cuida justamente da “retificação
e apagamento” de dados, de modo que o direito de retificação tem alcance alargado,
abrangendo não apenas o imediato acesso à correção de dados pessoais inexatos que
digam respeito à pessoa, como ainda o direito a que os dados pessoais incompletos
sejam completados. Por sua vez, o direito ao apagamento dos dados (right to erasure) é
denominado de “direito a ser esquecido” (right to be forgotten). Ele será exercitado, sem
demora injustificada, quando se aplique um dos seguintes motivos, dentro os quais vale
a pena se destacar: a) Os dados pessoais deixaram de ser necessários para a finalidade
que motivou o seu tratamento; b) O titular retira o consentimento em que se baseia o
tratamento dos dados satisfeitos determinados pressupostos; c) O titular opõe-se ao
tratamento e não existem interesses legítimos prevalecentes que justifiquem o tratamento;
d) Os dados pessoais foram tratados ilicitamente.28
Recentemente, duas decisões polêmicas na França, em razão de sua larga abran
gência, ocasionaram, após o julgamento em segunda instância, a determinação para
que a Google francesa e a matriz Google Inc. efetivassem a desindexação dos termos
discutidos no processo não apenas na localidade em que a disputa se dava, mas por
meio de um filtro global, englobando todos os países, inclusive aqueles que não fazem
parte da União Europeia, acarretando a exclusão mundial do referencial pesquisado.29
Após natural resistência da empresa em cumprir a decisão, fato este que inclusive
ocasionou a fixação de multa pela CNIL (Commission Nationale de l’Informatique et des
Libertés), o Google apresentou recurso, argumentando que, em que pese o direito ao
esquecimento atualmente constitua lei na Europa, não pode ser considerado norma
global, asseverando ainda que existem inúmeros exemplos ao redor do mundo, pelos
quais se apreende que, ainda que uma determinada matéria seja considerada ilegal sob
a regência das leis de certos países, podem ser taxadas de lícitas em outros, apontando
também para a desnecessidade e desproporcionalidade da medida adotada.30
Em decisão datada de 10 de março de 2016, o recurso apresentado não foi acatado,
tendo a Comissão Nacional se posicionado no sentido de não haver efetividade em se
restringir apenas localmente o alcance das buscas,31 motivo pelo qual o Google levou o
caso ao Conselho de Estado Francês, restando ainda pendente de conclusão a matéria.
28
ROSENVALD, Nelson. Do direito ao esquecimento ao direito a ser esquecido. Disponível em: <https://www.
nelsonrosenvald.info/single-post/2016/11/16/Do-direito-ao-esquecimento-ao-direito-a-ser-esquecido>. Acesso
em: 07 jul. 2017
29
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
30
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
31
Os fundamentos da decisão foram registrados nos seguintes termos: “The Google search engine service represents a
single processing operation and the different geographic extensions (“.fr”, “.es”, “.com”, etc.) cannot be considered separate
processing operations. The company originally operated its service using the “.com” extension, then created extensions as
time went by to provide a service adapted to each country’s national language. This means that, for people residing in France
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
146 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Nos EUA, por sua vez, país de cariz eminentemente liberal, não existe uma
demanda específica com o fim de desvincular uma URL dos índices de pesquisa. Em
verdade, constituem situações distintas a possibilidade de se litigar em face do provedor
originário da informação e a faculdade de ingressar no Judiciário em busca da respon
sabilização do intermediário que facilita o acesso aos dados, apresentando o buscador
imunidade de tratamento conferido por lei.32 Esta imunidade deriva da seção 230, c) 1)
do CDA (Communications Decency Act), que discorre a respeito da “Proteção ao Bom
Samaritano” (Good Samaritan), dispondo que “[...] nenhum provedor ou usuário de
um serviço de computador interativo deverá ser tratado como um editor ou orador de
qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo”.33
Destarte, a imunidade jurídica de tratamento, aliada ao fato da superlativização
da liberdade de expressão, torna peculiar o regramento do direito ao esquecimento em
terras americanas, revelando a tensão constante entre os postulados libertários, de um
lado, e a proteção à privacidade, de outro, constatando-se uma tendência nos tribunais
no sentido de se privilegiar o funcionamento dos buscadores e a liberdade empresarial.34
No embate entre o right of privacy e a liberdade assegurada pela Primeira Emenda, as
cortes têm se inclinado pela garantia desta última, de forma quase que irrestrita.35
Em que pese a preocupação extremada em se preservar a liberdade informativa,
não se pode olvidar da existência, em solo americano, de regramento sobre a temá
tica ora apresentada. De fato, mais especificamente na Califórnia, foi editada a Lei
SB-56821,36 também conhecida como eraser law, que passou a viger em 1º de janeiro de
2015, garantindo aos menores de idade o direito de apagar informações embaraçosas
constantes de sites de Internet, principalmente das redes sociais, tais como Facebook,
Twitter e Tumblr.37
to effectively exercise their right to be delisted, in accordance with the CJEU’s decision, the delisting must be applied to the
entire processing operation, i.e. to all of the search engine’s extensions. Contrary to Google’s statements, applying delisting
to all of the extensions does not curtail freedom of expression insofar as it does not entail any deletion of content from the
Internet. At a physical person’s request, it simply removes any links to website pages from the list of search results generated
by running a search on the person’s first name and surname. These pages can still be accessed when the search is performed
using other terms”. Disponível em: <https://www.cnil.fr/en/right-be-delisted-cnil-restricted-committee-imposes-
eu100000-fine-google>. Acesso em 12 jul. 2017.
32
GONÇALVES, Luciana Helena. O Direito ao esquecimento na Era Digital: Desafios da regulação da desvinculação de
URLs prejudiciais a pessoas naturais nos índices de pesquisa dos buscadores horizontais. 2016. 144 fl. Dissertação
(mestrado) – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2016. Disponível em: <http://
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16525/Dissertacao_Luciana_Goncalves_finaliSsimo.
pdf?sequence=7&isAllowed=y>. Acesso em: 12 jul. 2017.
33
Section 230 c) 1) Protection for “Good Samaritan” blocking and screening of offensive material (1) Treatment of
publisher or speaker: no provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or
speaker of any information provided by another information content provider. Disponível em: <https://www.
law.cornell.edu/uscode/text/47/230>. Acesso em: 12 jul. 2017.
34
GONÇALVES, Luciana Helena. O Direito ao esquecimento na Era Digital: Desafios da regulação da desvinculação de
URLs prejudiciais a pessoas naturais nos índices de pesquisa dos buscadores horizontais. 2016. 144 fl. Dissertação
(mestrado) – Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, São Paulo, 2016. Disponível em: <http://
bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16525/Dissertacao_Luciana_Goncalves_finaliSsimo.
pdf?sequence=7&isAllowed=y>. Acesso em: 12 jul. 2017.
35
MALDONADO, Viviane Nóbrega. Direito ao esquecimento. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2017.
36
ESTADOS UNIDOS. Califórnia. Senate Bill nº 568. Disponível em: <http://leginfo.legislature.ca.gov/ faces/
billNavClient.xhtml?bill_id=201320140SB568>. Acesso em: 06 jun. 2015.
37
Há quem defenda, também no plano doutrinário, a existência do direito ao esquecimento em solo americano.
É o caso, por exemplo, de Mark T. Andrus, em artigo publicado no sítio da American Bar Association, intitulado
The Right to be Forgotten in America. Disponível em: <https://www.americanbar.org/publications/blt/2016/05/05_
andrus.html>. Acesso em: 12 jul. 2017.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
147
38
MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema
Social, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 370 e ss.
39
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque; NUNES, Danyelle Rodrigues de Melo; PORTO, Uly de
Carvalho Rocha. Direito ao esquecimento segundo o STJ e sua incompatibilidade com o sistema constitucional
brasileiro. Revista de informação legislativa: RIL, v. 54, n. 213, p. 63-80, jan./mar. 2017. Disponível em: <http://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p63>. Acesso em: 25 jul. 2017.
40
SARLET, Ingo Wolfgang. Liberdade de expressão e biografias não autorizadas – notas sobre a ADI 4.815. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-19/direitos-fundamentais-liberdade-
expressao-biografias-nao-autorizadas#_ftn1>. Acesso em: 25 jul. 2017.
41
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos Augusto de Albuquerque; NUNES, Danyelle Rodrigues de Melo; PORTO, Uly de
Carvalho Rocha. Direito ao esquecimento segundo o STJ e sua incompatibilidade com o sistema constitucional
brasileiro. Revista de informação legislativa: RIL, v. 54, n. 213, p. 63-80, jan./mar. 2017. Disponível em: <http://
www12.senado.leg.br/ril/edicoes/54/213/ril_v54_n213_p63>. Acesso em: 25 jul.2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
148 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
42
SARLET, Ingo Wolfgang. Tema da moda, direito ao esquecimento é anterior à internet. Revista Consultor
Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mai-22/direitos-fundamentais-tema-moda-direito-
esquecimento-anterior-internet>. Acesso em: 25 jul. 2017.
43
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 170.
44
No mesmo sentido, ainda, o art. 748 do Código de Processo Penal: “A condenação ou condenações anteriores não
serão mencionadas ria folha de antecedentes do reabilitado, nem em certidão extraída dos livros do juízo, salvo
quando requisitadas por juiz criminal”.
45
Neste ponto, merece referência o voto proferido pelo ministro Dias Toffoli no recurso em HC 118.977/MS.
46
MALLET, Estevão. Igualdade e discriminação em direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2013, p. 60-61.
47
O Tribunal Superior do Trabalho já teve oportunidade de se manifestar sobre a questão no. RR n. 155700-
07.2004.5.05.0020, Rei. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, julg. em 6.5.2009 in DJU 15.5.2009.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
149
48
MALLET, Estevão. Igualdade e discriminação em direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2013, p. 60-65.
49
Colaciona-se, a propósito, a título exemplificativo, acórdão lavrado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
“Responsabilidade Civil. Dano moral. Reportagens publicadas em jornal envolvendo ex-traficante de drogas em
lavagem de dinheiro, com fotos batidas seis anos antes, após o mesmo encontrar-se completamente recuperado,
convertido à religião evangélica, da qual se tomou pastor, casado, com filhos, dando bons exemplos à sociedade.
É livre a liberdade de manifestação da expressão e de informação jornalística, direitos que devem ser exercidos
com responsabilidade, sem preocupação de fazer sensacionalismo [...]”. (TJRJ, Apelação Cível 2002.001.07149,
Rei. Des. Carlos Lavigne de Lemos, 26.11.2002).
50
Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-vi-jornada/view>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
150 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
51
SCHREIBER, Anderson. As três correntes do direito ao esquecimento. Jota. Disponível em: <https://jota.info/
artigos/as-tres-correntes-do-direito-ao-esquecimento-18062017>. Acesso em: 28 jul. 2017.
52
ALEXY, Robert. Los derechos fundamentales y el principio de proporcionalidad. Revista Española de Derecho
Constitucional, n. 91, p. 15-19, ene./abr. 2011.
53
SARLET, Ingo Wolfgang. Liberdade de expressão e biografias não autorizadas – notas sobre a ADI 4.815. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-19/direitos-fundamentais-liberdade-
expressao-biografias-nao-autorizadas#_ftn1>. Acesso em: 25 jul. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
152 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
54
Ronaldo Lemos. “Direito ao esquecimento é mais veneno que remédio”. Folha de São Paulo de 19.05.2014.
55
Esta foi a posição defendida pelo professor Anderson Schreiber, em nome do Instituto Brasileiro de Direito Civil,
na mencionada audiência pública realizada no dia 12 de junho de 2017 (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
Direito ao esquecimento não é apagar fatos ou reescrever história, afirma professor da UERJ. Disponível em: <http://www.
stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=346401>. Acesso em: 28 jul. 2017).
56
MARTINEZ, Pablo Dominguez. Direito ao Esquecimento: A proteção da memória individual na sociedade da
informação. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 174-191.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
153
57
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 40.
58
PIZARRO, Ramón Daniel. Responsabilidad civil de los medios massivos de comunicación. Buenos Aires: Hammurabi,
1999, p. 391.
59
Dispõe o Enunciado nº 37 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “A responsabilidade civil
decorrente do abuso do direito independe de culpa e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
154 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
proteção, não apenas sob o espectro estrutural e estático da responsabilidade civil, mas
sobretudo pela comparação entre o merecimento de tutela que o ordenamento reserva,
em concreto, aos interesses da vítima e do pretenso responsável.60
A tradicional conceituação de responsabilidade civil, fulcrada na existência
de ato ilícito, cede terreno à noção de dano injusto, apresentando-se incongruente a
tese que superpõe ambos os conceitos.61 A seleção de interesses merecedores de tutela
compensatória, tal como ocorre no Direito italiano, por força da aplicação do art. 2.043 do
Codice Civile, deixa de se fundar única e exclusivamente no elemento da culpabilidade,
encontrando porto seguro no papel desempenhado pelo dano injusto, constituindo o
elemento qualificante da responsabilidade civil.62
Assim é que o dano injusto, apto a ser indenizado, se apresenta como aquele
relevante mediante a realização de ponderação de interesses constitucionalmente
qualificados, diferenciando-se, portanto, do mero fato lesivo ou prejuízo econômico,
ainda que decorrente de ato ilícito, não encontrando este necessariamente proteção
jurídica ante a mediação dos interesses em jogo, admitindo-se, inclusive, em razão da
desvinculação dos conceitos de ilicitude e injustiça, o nascimento do dever de indenizar
em consequência da prática de atos lícitos, por não se mostrar razoável manter-se a
vítima sem ressarcimento, ao efetivar-se o sopesamento de valores no caso concreto.63
No que toca mais de perto o tema em questão, há de se considerar que a mera
existência de ilicitude, ou de prejuízo, seja material ou moral, não gerará, de forma
automática, o dever de indenizar por parte do veículo de comunicação. De fato, ainda
que a divulgação de fatos pretéritos venha a se apresentar, no mundo fático, como
lesivo aos interesses da pessoa afetada pela conduta, há de verificar, em concreto, se os
prejuízos são justificados num juízo de ponderação exercitado em cotejo com o exercício
de liberdade de comunicação.
No badalado caso Aída Curi, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que, em
que pese deva se reconhecer a violação do direito ao esquecimento, esta circunstância,
por si só, no caso concreto, não ensejaria o dever indenizatório, considerando-se que o
passar do tempo teria ocasionado a diminuição da dor suportada pela família, deixando
de gerar o abalo moral de outrora, subsistindo apenas mero desconforto.
O entendimento sufragado pela Corte Cidadã merece reparos. Com efeito, a
tendência jurisprudencial, e que conta com suporte de boa parte da doutrina nacional
e estrangeira, se apresenta no sentido da desconsideração do elemento subjetivo na
aferição do dever de indenizar, ante a absoluta impropriedade de mensuração do
sofrimento da vítima, verificando-se a lesão ao interesse extrapatrimonial no momento
em que o bem objeto de tutela é afetado. A consequência da lesão (dor, sofrimento ou
frustração) mostra-se irrelevante para a verificação do dano injusto, devendo servir
60
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 163-164.
61
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil:
responsabilidade civil. 4. ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 246.
62
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral – indenização no Código Civil. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 180.
63
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil:
responsabilidade civil. 4. ed. rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 247.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
156 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
5 Conclusão
A disseminação da informação na sociedade moderna constitui fato inegável
e tem revelado diversos desdobramentos no campo jurídico, mormente no campo da
privacidade e da intimidade do indivíduo. A memória e o esquecimento, fenômenos
outrora relegados ao campo biológico, adquirem especial relevância jurídica, merecendo
tutela e proteção, em face da nova realidade tecnológica vigente e o consequente estrei
tamento entre os espaços público e privado.
O direito ao esquecimento, ao perpassar do século passado, encontrou amparo
em diversas decisões judiciais, ganhando contornos próprios, como nova modalidade de
direito da personalidade, recebendo maior aderência nas nações da Europa continental,
64
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 133-134.
65
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 193-201.
66
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição
dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 201-202.
67
MARTINS-COSTA, Judith. Do inadimplemento das obrigações. In: Comentários ao novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. v. V, t. II.
CÍCERO DANTAS BISNETO
RESPONSABILIDADE CIVIL DOS VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO PELA INFRINGÊNCIA DO DIREITO AO ESQUECIMENTO
157
onde a regulamentação do tema alcançou a via legislativa. Nos EUA, por sua vez, a
tradição jurídica liberal impediu que o instituto tomasse a dimensão vivenciada em
terras europeias, inclinando-se as cortes locais pela preponderância das liberdades
comunicativas, ante a previsão da Primeira Emenda.
No Brasil, em face da ausência de disciplina legislativa sobre a problemática,
instauraram-se vozes dissonantes na doutrina acerca da aplicação do instituto em solo
nacional, tendo ganhado relevo a discussão a partir da divulgação do Enunciado nº 531
do Conselho Nacional de Justiça, em março de 2013, e do julgamento de dois recursos
especiais por parte do Superior Tribunal de Justiça, em 28 de maio de 2013, ambos da
relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. A temática será enfrentada ainda pelo Supremo
Tribunal Federal, por meio da análise do RE 1010606-RJ, submetido à repercussão geral,
tendo sido realizada audiência pública no último 12 de junho do corrente ano.
Concluiu-se, por meio da análise da compatibilidade da novel figura jurídica com
o ordenamento pátrio, pela sua aplicabilidade em território nacional, mediante juízo de
ponderação exercido no caso concreto, ainda que diante da posição preferencial inicial
das liberdades comunicativas, quando em cotejo com outros direitos fundamentais, bem
como superadas as críticas formuladas por parcela doutrinária no sentido da ausência
de previsão normativa e indeterminação do instituto.
Na seara da responsabilidade civil, com foco prioritário nos atos praticados por
veículos de comunicação, procedeu-se ao exame dos pressupostos da reparação do dano,
perfilhando-se a tese da aplicação da culpa presumida, bem como se sublinhou o fato
de que a autoexposição constitui causa de rompimento do nexo causal. Defendeu-se
ainda a utilização do dano como espécie de cláusula geral da responsabilidade civil,
invertendo-se o foco outrora centrado na figura da ilicitude, identificando-se os interesses
merecedores de tutela por meio da ponderação casuística.
Por fim, sustentou-se a prevalência da reparação não pecuniária dos danos
extrapatrimoniais advindos da infringência do direito ao esquecimento, e, somente
subsidiariamente, a condenação em pecúnia, em caso de não se mostrar possível o
restabelecimento da situação anterior.
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ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO:
UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE
E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
Introdução
A partir do estabelecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil as relações
privadas passaram por um redimensionamento axiológico. Houve a transcendência às
garantias de liberdade e igualdade consagradas no ideário burguês e surgiram novas
dimensões dos direitos fundamentais individuais que convergiram para a proteção da
pessoa humana.
Nesse movimento, esgaçaram-se as históricas fronteiras entre o Direito Público
e o Direito Privado, em um processo usualmente denominado de publicização, onde
se privilegia a supremacia dos valores sociais e coletivos em detrimento dos valores
individuais. Em paralelo, floresce o fenômeno da “despatrimonialização” e o delinear
de um caminho de redimensão da face pecuniária que marcou o desenvolvimento do
Direito Civil e Comercial e trouxe a mitigação da supremacia da autonomia da vontade
na constituição e efeitos dos negócios jurídicos entabulados.
Diante desse cenário, esse artigo se propõe a analisar os limites entre os supra
mencionados ramos do Direito e demonstrar que, mesmo sob a inteligência de novos
vetores hermenêuticos, a autonomia da vontade deve ser mantida como um eixo
estruturante das relações jurídicas privadas.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
162 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
neste caso não apenas as disciplinas jurídicas, mas também as sociais e em geral históricas,
servem-se para delimitar, representar, ordenar o próprio campo de investigação, como por exemplo,
para ficar no âmbito das ciências sociais, paz/guerra, democracia/autocracia, sociedade/comunidade,
estado de natureza/estado civil. Podemos falar corretamente de uma grande dicotomia quando
nos encontramos diante de uma distinção da qual se pode demonstrar a capacidade:
a) de dividir um universo em duas esferas, conjuntamente exaustivas, no sentido de
que todos os entes daquele universo nelas tenham lugar, sem nenhuma exclusão, e
reciprocamente exclusivas, no sentido de que um ente compreendido na primeira não pode
ser contemporaneamente compreendido na segunda; b) de estabelecer uma divisão que
é ao mesmo tempo total, enquanto todos os entes aos quais atualmente e potencialmente
a disciplina se refere devem nela ter lugar, e principal, enquanto tende a fazer convergir
em sua direção outras dicotomias que se tornam, em relação a ela, secundárias (BOBBIO,
2007:13).
1
“Ius publicum est quod ad statum rei romanae spectat; privatum, quod ad singulorum utilitatem”. Digesto, Livro I, Título
I, §2º, Ulpiano, que considerava o Direito Público como aquele que trata das coisas do Estado e Direito Privado o
ramo onde os interesses individuais eram tutelados. Disponível em: <https://digitalis.uc.pt/pt-pt/fundo_antigo/
corpus_iuris_civilis_O>, acesso em: 14 jan. 2014.
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
163
2
Partindo da definição kantiana de legalidade, Habermas define o direito coercivo como aquele que se estende
apenas às relações exteriores entre pessoas e está “endereçado à liberdade de arbítrio de sujeitos que precisam
orientar-se tão somente pelas respectivas concepções do que seja bom” (2002:86).
3
O conteúdo civil das normas constitucionais deve ser delimitado em função do conteúdo material, estando
constituído por aquelas regulamentações referentes à pessoa, à sua dimensão familiar e patrimonial e às relações
jurídicas privadas gerais. Acresça-se um critério de índole formal, derivado do caráter de norma destinada a fixar
as bases mais comuns e abstratas das relações civis (LORENZETTI, 1998:253).
4
Na história recente do Supremo Tribunal Federal esta interseção tem se manifestado com clareza, a exemplo
da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
nº 132/RJ, que trataram do reconhecimento das famílias igualitárias ou homossexuais, da manifestação sobre
as pesquisas científicas sobre as células-tronco e a questão dos embriões excedentários na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.510/DF, de decisões que afetam o exercício da empresa, tal como no reconhecimento
da inconstitucionalidade da cobrança de tarifas básicas de telefonia na Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 4.478/AP e do reconhecimento da isonomia sucessória entre cônjuges e companheiros a partir da declaração
de inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, conforme o acórdão de repercussão geral no Recurso
Extraordinário nº 646721/MG. Disponíveis em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia>, acesso em: 9 fev.
2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
164 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
gama de direitos sociais e coletivos dotados de grande eficácia. Também cabe ressaltar
a tendência a um reducionismo teórico em se apregoar uma total unificação, pois os
interesses tutelados pelas normas reconhecidas como de Direito Privado se mantêm em
um campo de incidência próprio e não se confundem totalmente com o Direito Público
(FACHIN, 2011:6).
A despeito de uma aproximação axiológica entre os dois ramos do Direito,
ainda persiste a classificação sobre as relações jurídicas a eles pertinentes. Diferencia-se
inicialmente a natureza jurídica do interesse em questão a partir da análise dos sujeitos
envolvidos, se particulares ou entes públicos – em regra, sempre que o Estado for parte,
a relação é regida por normas de Direito Público.5 Também se estabelece a distinção entre
o Direito Público e o Direito Privado através da avaliação do objeto do interesse da parte.
É principalmente nesse aspecto que o esmaecimento das fronteiras entre os dois ramos
se faz bastante evidente. Tradicionalmente, o objeto da proteção do Direito Público
incide sobre questões que envolvam a proteção de bem coletivo ou do interesse social.
Nesse processo, o necessário diálogo instaurado entre os dois ramos do Direito
deve-se postar ao largo da histórica polarização entre ambos e valorizar a supremacia
hierárquica da Constituição e seu papel de garantidora dos direitos assegurados aos
particulares. Citando o artigo 1º, nº 3 da Lei Fundamental Alemã,6 Canaris (2009:22)
aponta que os direitos fundamentais constituíam para o legislador de Direito Privado
simples “asserções programáticas” e hoje devem ser compreendidas como direito
“imediatamente vigente”, incidindo no plano da aplicação com eficácia imediata
(2009:24).
Destarte, sendo o Direito Constitucional um ramo do Direito Público, além da
finalidade de regular a proteção aos interesses do Estado, é dotado da função precípua de
promover a tutela aos interesses da pessoa humana para que esta possa se desenvolver
com dignidade. Assim, incidem normas de Direito Público na tutela de interesses
tradicionalmente tidos como espaços do Direito Privado, tal como a propriedade indi
vidual, o exercício da empresa e a formação da família, aplicados sobre a eficácia imediata
dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente.
Contudo, ainda segue a fundamentação da dicotomia em análise pela verificação
se uma relação jurídica7 é baseada em um estado de coordenação entre os interessados ou
pelo exercício do Estado de seu imperium, em uma subordinação do particular ao interesse
público. Como relação jurídica privada, pode ser compreendida como o conjunto de
relações cujo conteúdo, isto é, os poderes e os deveres, é definido pela autonomia dos
particulares e não subordinados à manifestação do Estado como ente soberano.
Bobbio identifica que, na transformação das relações jurídicas e negociais, a
partir da modernidade, instalaram-se simultaneamente um processo de publicização
5
Destaquem-se hipóteses em que o Estado celebra onde o poder de imperium não está presente, não havendo
supremacia jurídica. Citem-se como exemplo as situações em que o Estado adquire equipamentos de uma rede
distribuidora privada ou veículos de uma determinada concessionária. Ainda assim, Barroso ressalta que, a
despeito da inexistência do poder de império, tal negócio jurídico está submetido às normas específicas que
regulam o Direito Público, tal como a Lei de Licitações, previsão orçamentária e outras (2011:77).
6
“Os direitos fundamentais que se seguem vinculam a legislação, o poder executivo e a jurisdição como direito
imediatamente vigente”.
7
Consistem nas relações sociais de que os indivíduos participam e que, pela possiblidade potencial de gerarem
conflitos de interesses, são reguladas pelo Direito (AMARAL, 2006:160).
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
165
através da formação dos grandes grupos que se servem dos aparatos públicos para o alcance
dos próprios objetivos. O Estado pode ser corretamente representado como o lugar onde se
desenvolvem e se compõem, para novamente decompor-se e recompor-se, estes conflitos,
através do instrumento jurídico de um acordo continuamente renovado, representação
moderna da tradicional figura do contrato social (BOBBIO, 2007:27).
só sobre os homens que pensam, julgam e atuam por si mesmos descansa o potencial das
novas ideias, concepções e iniciativas indispensáveis para a comunidade, sem as quais esta
com o tempo irá empobrecer-se, se não fossilizar-se, cultural, econômica e politicamente, e
dos quais dependerá de forma crescente em um tempo de mudanças fundamentais como
o nosso (2001:70, 87).
8
Grundmann exemplifica esta tensão através da proteção ao direito de propriedade, exemplo plenamente
aplicável ao contexto do Direito Privado brasileiro. Narra o autor que no Direito Constitucional alemão a
garantia da propriedade, como direito fundamental central para a ordem jurídica privada, compreende também
os direitos obrigacionais e societários. Mas a tensão entre a autonomia privada e a proteção estatal emerge na
vinculação social da propriedade, nos termos do artigo 14, parágrafo 1º, alínea 2 da Lei Fundamental Alemã, que
é permanentemente confrontada com a liberdade de ser proprietário (2014:235).
9
Instado a se manifestar sobre a constitucionalidade da disposição das células-tronco e a utilização dos embriões
excedentários nos termos do artigo 5º da Lei nº 11.105, de 25 de março de 2005, o Supremo Tribunal Federal
entendeu pela legalidade da sua utilização e ainda que o emprego das técnicas de fertilização in vitro e
armazenamento dos embriões excedentários estão protegidos pela autonomia privada e o livre planejamento
familiar assegurados pela Constituição da República, entendendo que “a opção do casal por um processo
in vitro de fecundação artificial de óvulos é implícito direito de idêntica matriz constitucional, sem acarretar para
esse casal o dever jurídico do aproveitamento reprodutivo de todos os embriões eventualmente formados e que
se revelem geneticamente viáveis. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana opera por modo
binário, o que propicia a base constitucional para um casal de adultos recorrer a técnicas de reprodução assistida
que incluam a fertilização artificial ou ‘in vitro’. De uma parte, para aquinhoar o casal com o direito público
subjetivo à ‘liberdade’ (preâmbulo da Constituição e seu art. 5º), aqui entendida como autonomia de vontade”.
Quanto ao questionamento de que as pesquisas com as células-tronco seriam procedimentos que violariam a
dignidade humana e a proteção constitucional à vida, caracterizando uma espécie de aborto, a Suprema Corte se
manifestou no sentido que só há formação da vida se houver a fixação do embrião à parede intrauterina e ainda
que o direito à pesquisa está no plano das liberdades individuais, fortalecidas pelo direito à saúde como direito
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
167
fundamental, não havendo “ofensas ao direito à vida e da dignidade da pessoa humana, pois a pesquisa com
células-tronco embrionárias (inviáveis biologicamente ou para os fins a que se destinam) significa a celebração
solidária da vida e alento aos que se acham à margem do exercício concreto e inalienável dos direitos à felicidade
e do viver com dignidade”. Este caso demonstra claramente a tensão existente entre interesses particulares
contrapostos e os reflexos de determinadas ações em uma “moral social”, sendo imprescindível a ação do
Estado-Juiz na composição dos conflitos já deflagrados e os potencialmente existentes. STF, Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.510/DF, relator Ministro Ayres Britto, julgado em 29.05.2008, disponível em: <http://
www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia>, acesso em: 9 fev. 2014.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
168 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
é impossível pensar uma razão que com a sua própria consciência recebesse de qualquer
outra parte uma direção a respeito de seus juízos, pois que então o sujeito atribuiria não à
sua razão, mas a um impulso, a determinação da faculdade de julgar. Ela deve considerar-se
a si mesma como autora dos seus princípios, independentemente de influências estranhas;
por conseguinte, como razão prática ou como vontade de um ser racional, deve considerar-
se a si mesma como livre; isto significa que a vontade desse ser não pode ser a vontade
própria senão sob a ideia da liberdade, e, portanto, tal vontade é preciso atribuir, em sentido
prático, a todos os seres racionais. (KANT, 2004:81).
A vontade como exteriorização dos quereres deve ser informada a partir de uma
lei moral marcada por três imperativos categóricos,10 de modo que o manifestante deve
sempre se portar de modo que sua máxima, como verdade, possa se tornar lei universal.
Deve-se também agir como se a máxima da ação devesse se tornar, por ato da vontade
do próprio declarante, uma lei universal da natureza. Por fim, deve-se agir de tal modo
que a humanidade, tanto na pessoa do emitente da vontade quando qualquer outro
ser humano, possa sempre ser vista como um fim em si mesmo e não apenas como um
instrumento ou meio para se alcançar os objetivos pretendidos (KANT, 2004: 59-67).
Nas reconfigurações das relações sociais, o indivíduo inserido na sociedade
contemporânea tem uma trajetória marcada pela necessidade de uma existência indi
vidual, autônoma e livre das “amarras” impostas pelo Estado como soberano. Procura-
se através da norma e do Direito alcançar o pleno exercício da liberdade humana e de
sua autonomia, em um constante intercâmbio entre os atores envolvidos nos processos
sociais – indivíduo, sociedade e poder estatal. Tratada como soberana na constituição
dos negócios jurídicos, existe uma racionalidade própria do Direito na aceitação da
livre manifestação volitiva. No pensamento hegeliano (1997:40), cabe ao Direito e, por
conseguinte, ao Estado o papel fundamental de se orientar por uma moralidade objetiva
e universal com o fim de refrear a moral subjetiva humana, com suas manifestações que
tendem à irracionalidade e potencialmente lesivas à coletividade. Esse papel visa garantir
ao ser humano o exercício da liberdade e da subjetividade sob um balizador racional.
10
Imperativo categórico, na concepção kantiana, configura-se como um “mandamento absoluto”, insuscetível de
subordinação a nenhuma condição exterior. É tido como um valor absoluto da moralidade em Kant, fundando-se
na razão pura. Traduz-se em um mandamento que contém uma máxima universal, impondo-se por si mesmo e
por esta razão deverá ser respeitada no plano empírico e não apenas no mundo ideal (2004:51).
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
169
Assim, sendo a vontade livre um ponto de partida do Direito, sua “base própria”
e corolário da liberdade individual, constitui a sua substância e seu destino, uma vez que
o “sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido
como uma segunda natureza a partir de si mesmo”, mas sempre marcada pela ação do
estado normatizador (HEGEL, 1997:12).
Partindo-se do pressuposto de que a ação do Estado é normatizadora da vontade
no âmbito privado, é possível se dividir a concepção de liberdade no aspecto subjetivo e
objetivo. No aspecto subjetivo, a liberdade pode ser compreendida como autonomia da
vontade, sendo a faculdade do sujeito de direito criar, modificar e extinguir suas relações
jurídicas. Em seu aspecto objetivo, a liberdade pode ser compreendida como um poder
jurídico normativo, capaz de criar juridicamente essas relações, estabelecendo-lhes
o respectivo conteúdo e disciplina, denominando-se autonomia privada (AMARAL,
2006:22-23). Assim, a despeito de limitações individuais, a vontade segue sua trajetória
como um dos eixos da sociedade ocidental, manifestando-se por uma face pública e outra
privada estruturada a partir dos valores fundamentais privados expressos no Código
de Napoleão: o indivíduo como sujeito de direito, conferindo um formato jurídico novo
à tutela dos interesses humanos.
Criadora de direitos e deveres, a vontade manifestada na forma da lei se revela
como constitutiva de situações jurídicas subjetivas que dependem de sua manifestação
para que se caracterizem e produzam efeitos. É expressão da liberdade individual no
surgimento de relações obrigacionais, especialmente de natureza contratual, onde o
sujeito é dotado de uma faculdade de autorregulamentação de interesses na criação
e efeitos do negócio pretendido, a despeito da fixação de limites pelo direito objetivo.
Delineia-se desta forma a subjetividade, que, como uma construção jurídico-normativa,
faculta ao seu titular a possibilidade de manifestar o seu querer de maneira autônoma.
Como fruto das liberdades subjetivas, a manifestação de vontade se dirige ao outro
e necessita gerar um reconhecimento intersubjetivo entre o declarante e o declaratário,
pois, como elementos da ordem jurídica, pressupõe a “colaboração de sujeitos que
se reconhecem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos
uns aos outros, como membros livres e iguais do direito” (HABERMAS, 2002:126) e,
por consequência, da ordem jurídica. A construção da relação jurídica se irrompe na
força da exteriorização volitiva, no exercício do direito subjetivo como poder de agir
para realização de um interesse, apoiando-se no reconhecimento mútuo de sujeitos de
direito que cooperam entre si. Dessa maneira, os interesses manifestados se revestem
da juridicidade inerente aos direitos subjetivos em razão de sua coorigem com o direito
objetivo.
A construção da intersubjetividade é fundamental para a eficácia das manifesta
ções de vontade, uma vez que, em decorrência da vinculação dos efeitos da vontade à
previsão legal, a existência da vontade exarada de forma livre e consciente por si só não é
capaz de atrair a proteção do Direito, que confere legitimação às manifestações efetivadas
em conformidade com os princípios e regras do ordenamento vigente, analisando-a a
partir do campo do dever ser. Faz-se necessária a existência de uma vontade juridicamente
qualificada e dirigida ao alcance de determinado interesse para que se possa alcançar
a eficácia pretendida (SANTORO-PASSARELLI, 1961: 228-229). A vontade também se
manifesta como elemento estruturante nas situações jurídicas subjetivas onde o sujeito de
direito tem o condão de estabelecer seus próprios vínculos e relações, mas cujos efeitos
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
170 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
propriedade que a vontade possui de ser lei para si mesma (independentemente da natu
reza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, pois: escolher sempre de modo
tal que as máximas de nossa escolha estejam compreendidas, ao mesmo tempo, como leis
universais, no ato de querer. Que esta regra prática seja um imperativo (2003:32).
a noção de autonomia da vontade, como concebida nas codificações do Séc. XIX dá lugar
à autonomia privada, alterada substancialmente nos aspectos subjetivo, objetivo e formal.
No que se refere ao aspecto subjetivo, observa-se a passagem do sujeito abstrato à pessoa
concretamente considerada. O ordenamento jurídico, que desde a Revolução Francesa,
graças ao princípio da igualdade formal, pôde assegurar a todos tratamento indistinto,
passa a preocupar-se, no direito contemporâneo, com as diferenças que inferiorizam a
pessoa, tornando-a vulnerável (2003-2004:171).
11
Os elementos categoriais são tomados como aqueles que caracterizam a natureza jurídica dos negócios jurídicos
constituídos, decorrentes não da vontade da parte, mas da ordem jurídica. A lei e o modo de sua interpretação
pela doutrina e jurisprudência são definidores dos elementos essenciais a cada tipo de negócio, sendo tais
elementos inafastáveis pela vontade das partes celebrantes (AZEVEDO, 2000:35-36).
FERNANDA PONTES PIMENTEL
ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO SOBRE A MANIFESTAÇÃO DE VONTADE E SEUS EFEITOS NAS RELAÇÕES NEGOCIAIS
171
Conclusão
A consolidação do princípio da dignidade da pessoa humana como fundante da
nova ordem jurídica e como vetor da proteção do Estado e do respeito da comunidade
traz a necessária aplicação de um complexo de direitos e deveres que devem repelir as
práticas discriminatórias ou degradantes. Em franca superação à herança patrimonialista
do liberalismo, a autonomia da vontade passa a ser informada pela valorização existencial
em detrimento da soberania dos pactos individuais, levando a um redimensionamento
do Direito Privado. A pessoa humana é guarnecida de uma nova potencialidade de
querer e buscar seus objetivos em condições de igualdade substancial.
A tutela efetiva ao sujeito de direito traz uma necessária sinergia entre os dois
ramos do Direito e parece que, mais que pensar em publicização do Direito Privado, está
em curso uma constitucionalização da proteção aos particulares. Constitucionalização
que importa inicialmente em uma espécie de “lastro” à concepção e aplicação do Direito
Privado. Contudo, reduzir esta interação a esta finalidade é ignorar o movimento em que
as tarefas, a natureza das questões tratadas e as funções de cada um dos ramos do Direito
são submetidas a uma justaposição, em uma relação recíproca de complementaridade
e dependência.
Há o desenrolar de um possível processo de constitucionalização que consiste em
uma elevação ao plano constitucional dos princípios fundamentais de Direito Civil, com
a finalidade de submeter o direito positivo aos fundamentos de validade estabelecidos
pela Lei Maior, admitindo o “embaralhamento” de interesses públicos e privados dentro
de um só princípio fundante ou em uma determinada relação jurídica.
Nesse cenário, mais que estabelecer-se a supremacia de interesses públicos ou
privados, faz-se necessária a construção de um Direito que convirja para a tutela da
pessoa humana em suas relações civis e empresariais de maneira a assegurar-lhe uma
existência digna e capaz de trazer ganhos reais para toda a sociedade.
Referências
AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 3. ed. rev., São Paulo: Saraiva,
2000.
BARROSO, Luiz Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2007.
______. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Editora Ícone, 1995.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
172 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
PIMENTEL, Fernanda Pontes. Entre o público e o privado: um estudo sobre a manifestação de vontade
e seus efeitos nas relações negociais. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 161-172. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA
NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS
PERUANA E ARGENTINA
1 Introdução
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi assinada há mais
de uma década e, dentre os direitos contemplados nesse tratado internacional, ganham
relevo as noções de capacidade legal e medidas de apoio para o seu exercício, impressas
em seu artigo 12, relativas às pessoas com deficiência mental ou intelectual.
O desafio de compatibilizar a ideia de igual capacidade dessas pessoas é comum
a todos os países signatários da Convenção. Especialmente nos países de tradição Civil
Law, a adequação de conceitos presentes nos códigos, como é o caso do regime das
capacidades no Direito brasileiro, é uma tarefa que incumbe à legislação e também à
doutrina.
Nesse sentido, a capacidade da pessoa com deficiência mental ou intelectual é
provida por medidas de apoio que ofereçam o instrumental mais adequado possível
às necessidades de sua capacidade cognitiva. A ideia de tomada de decisão com apoio
ganha notoriedade para o atendimento dessa exigência do tratado internacional.
Partindo deste cenário, a pesquisa se divide em três seções. Na primeira, o artigo
explora a interpretação de “capacidade legal” e investiga o sentido pretendido pelos
sistemas de apoio à capacidade das pessoas com deficiência mental ou intelectual.
Em segundo tópico, o trabalho demonstra o panorama geral de internalização da
Convenção nos países da América do Sul, expondo de modo ilustrativo o movimento
de alteração do Código Civil peruano e as alterações na legislação argentina sobre a
tomada de decisão com apoios. Tal análise pretende demonstrar quais as propostas
legislativas desses dois Estados, que despontam na região com suas iniciativas no sentido
de atender à CDPD.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
174 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1
Artigo 1º. O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo
de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o
respeito pela sua dignidade inerente. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir
sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (BRASIL.
Decreto n. 6.949/2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu
Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm>. Acesso em: 25 maio 2018).
2
Débora Diniz e Marcelo Medeiros explicam que o modelo social guarda suas origens no Reino Unido, década
de 1960, e a partir de corrente político-teórica denominada “Social Disability Movement”, embasada na noção de
deficiência como “experiência resultante da interação entre características corporais do indivíduo e as condições
da sociedade em que ele vive” (Diniz, Débora; Medeiros, Marcelo. Envelhecimento e Deficiência. In: Muito
além dos 60: os novos idosos brasileiros. Rio de Janeiro: IPEA, 2004. p. 108). Ana Paula Barbosa-Fohrmann e
Sandra Kiefer complementam que esse modelo centraliza-se na busca de direitos para a fruição das condições
humanas básicas com cuidado e apoio (BARBOSA-FOHRMANN, Ana Paula; KIEFER, Sandra Filomena Wagner.
Modelo social de abordagem dos direitos humanos das pessoas com deficiência. In: MENEZES, Joyceane Bezerra
de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: convenção sobre os direitos da
pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 74).
3
ASÍS, Rafael de. “Derechos humanos y discapacidad” – Algunas reflexiones derivadas del análisis de la
discapacidad desde la teoria de los derechos. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com
deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei
Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016. p. 3-30.
4
PALACÍOS, Agustina; ROMAÑACH, Javier. El modelo de la diversidad: una nueva visión de la bioética desde
la perspectiva de las personas con diversidad funcional (discapacidad). In: Intersticios: Revista Sociológica de
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
175
Seja pelo modelo social, seja pelo modelo da diversidade, uma conclusão é
inevitável: a de que as pessoas com deficiência demandam diferenciada forma de
tratamento, na medida de suas desigualdades e potencialidades, em harmonia com o
corolário de igualdade substancial.
Colhe-se contributo de Judith Butler para compreender as noções de “precariedade”
e de “condição precária” da vida humana. Segundo a autora, toda vida é dotada de
precariedade, todavia, “a condição precária designa a condição politicamente induzida
na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e
ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte”.5
Desse modo, o sentido circunstancial da condição precária justifica a elaboração
de normas protetivas a pessoas com deficiência em direção a um cenário mais igualitário.
E quando se trata da pessoa com deficiência mental ou intelectual, as medidas de apoio
para assegurar a capacidade legal emergem como tema exigente de especial zelo.
A respeito da elaboração da Convenção, cita-se a aguçada análise de Amita Dhanda
sobre os trabalhos do Comitê Ad Hoc.6 Instaurado em 2001 pela Resolução nº 56/168 da
Assembleia Geral da ONU, esse comitê tinha o objetivo de elaborar uma convenção
internacional com redação ampla e integral visando garantir e promover os interesses,
direitos e dignidade das pessoas com deficiência.7
Destaca-se que houve consenso quanto à noção de que toda pessoa com deficiência
seria dotada da “capacidade de direito”, o que não ocorreu nas discussões sobre a
“capacidade de exercício”.8 Evidenciou-se a necessidade de estabelecer instrumentos de
apoio e salvaguardas proporcionais às exigências das pessoas com deficiência mental
ou intelectual para exercer a capacidade legal.
A redação final do artigo 12 da CDPD9 adotou a “capacidade legal” em seu sentido
conglobante, isto é, como sinônimo da conhecida “capacidade jurídica”, e imersa na
perspectiva de apoios e suportes à pessoa com deficiência de forma gradual para o
exercício de suas liberdades. De acordo com Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk e Luiz
Alberto David Araújo, esse conceito funda-se em “juízo concreto sobre as potencialidades
humanas”.10
O citado artigo 12 da CDPD determina que os Estados signatários façam as
alterações necessárias em suas legislações internas para consolidar o sentido conglobante
da “capacidade legal” e criar medidas que possibilitem o acesso de pessoas com
deficiência mental ou intelectual ao suporte e a redes de apoio para tomada de decisões.
Segundo Volker Lipp, estudioso europeu da Convenção, as medidas de apoio a
serem construídas pelas legislações devem se atrelar às potencialidades individuais das
pessoas com deficiência mental ou intelectual e seria possível manter institutos como
a guarda ou a curatela nos diplomas de Direito Civil, desde que sua função priorize
o suporte à tomada de decisão da pessoa com deficiência, sem excluir ou limitar sua
capacidade legal.11
Nessa toada, é importante observar a diferenciação entre “capacidade legal”
e “capacidade mental”. Mary Keys afirma que enquanto a capacidade legal envolve
a “habilidade de ter direitos e deveres”, a capacidade mental se refere à habilidade
de comunicação que varia de uma pessoa com deficiência a outra, que não pode ser
desconsiderada ou solapada pela imposição de decisão de terceiro sobre sua vida.12
Assim, permitir que a pessoa com deficiência tome decisões contando com
instrumentos e redes de apoio é um modo de respeitar seus direitos e desenvolver suas
potencialidades, em conformidade com as diretrizes lançadas pela Convenção.
Em conclusão a esse primeiro tópico, denota-se que a noção de “capacidade
legal” descortinada pela CDPD é sinônimo de “capacidade jurídica”, englobando
tanto a capacidade de direito quanto a capacidade de exercício. Não obstante, o tratado
internacional vai além. Ele desafia os Estados signatários a promover alterações em seus
sistemas internos para construir medidas de apoio que condigam com as potencialidades
das pessoas com deficiência mental ou intelectual, em superação ao sistema clássico de
substituição da vontade.
pessoas com deficiência o igual direito de possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual
acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas
com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens. (BRASIL. Decreto n. 6.949/2009: Promulga a
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em
Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
decreto/d6949.htm>. Acesso em: 25 maio 2018).
10
ARAUJO, Luiz Alberto David; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A perícia multidisciplinar no processo de
curatela e o aparente conflito entre o estatuto da pessoa com deficiência e o código de processo civil: reflexões
metodológicas à luz da teoria geral do direito. In: Revista de direitos e garantias fundamentais, Vitória, vol. 18, n. 1,
p. 233, jan./abr. 2017. Disponível em: <http://sisbib.fdv.br/index.php/direitosegarantias/article/viewFile/867/330>.
Acesso em: 25 maio 2018.
11
LIPP, Volker. Guardianship and Autonomy: Foes of Friends? In: ARAI, Makoto; BECKER, Ulrich; LIPP, Volker.
Adult Guardianship Law for the 21st Century: Proceedings of the First World Congress on Adult Guardianship Law
2010. Munique: Nomos Verlagsgesellschaft, 2013. p. 110.
12
“Legal capacity provides the opportunity to make key quality of life decisions that non-disabled people take for granted,
instead of decisions being made by others such that over time capability for decision-making skills not only is not developed
as is the norm but also is weakened or lost”. Em tradução livre: “Capacidade legal fornece a oportunidade de tomar
decisões-chave de qualidade de vida que pessoas sem deficiência têm como garantia, ao invés de decisões serem
feitas por outros, de modo que ao longo do tempo a capacidade de tomar decisões não apenas não se desenvolve,
como também é enfraquecida ou perdida.”. (KEYS, Mary. Article 12 [Equal recognition before the law]. In:
CERA, Rachele; DELLA FINA, Valentina; PALMISANO, Giuseppe. The United Nations Convention on the rights of
persons with disabilities: a commentary. Cham: Springer, 2017. p. 269-270).
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
177
13
Com exceção da Guiana Francesa, território ultramarino da França, todos os Estados que compõem a América do
Sul assinaram e ratificaram a CDPD (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Status of Ratification Interactive
Dashboard: Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Disponível em: <http://indicators.ohchr.org/>.
Acesso em: 25 maio 2018).
14
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Suriname ratifies CRPD on 29 March 2017 (total: 173). Disponível
em: <https://www.un.org/development/desa/disabilities/news/dspd/suriname-ratifies-crpd-on-29-march-2017-
total-173.html>. Acesso em: 25 maio 2018.
15
“Artículo 20. (DERECHO A TOMAR DECISIONES INDEPENDIENTES). Las personas con discapacidad intelectual y
mental, leve y/o moderada, tienen el derecho a ser consultadas respecto a todas las decisiones que se refieran a su vida, salud,
educación, familia, seguridad social, según sus posibilidades y medios, proyectándose a la vida independiente”. (BOLIVIA.
Ley nº 223: Ley General para Personas con Discapacidad. Disponível em: <http://www.comunicacion.gob.bo/
sites/default/files/dale_vida_a_tus_derechos/archivos/Ley%20223%20General%20para%20Personas%20con%20
Discapacidad.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018).
16
“ARTÍCULO 5. (INCAPACIDAD DE OBRAR).- I. Incapaces de obrar son: 1. Los menores de edad, salvo lo dispuesto
en los parágrafos III y IV de este artículo y las excepciones legales. 2. Los interdictos declarados. II. Los actos civiles
correspondientes a los incapaces de obrar se realizan por sus representantes, con arreglo a la ley. III. Sin embargo el menor
puede, sin autorización previa de su representante, ejercer por cuenta propia la profesión para la cual se haya habilitado
mediante un título expedido por universidades o institutos de educación superior o especial. IV. El menor puede también
administrar y disponer libremente del producto de su trabajo”. (BOLIVIA. Código Civil. Disponível em: <http://www.
oas.org/dil/esp/codigo_civil_Bolivia.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018).
17
CHILE. Decreto n. 201/2008 del Ministerio de Relaciones Exteriores. Disponível em: <https://www.senadis.gob.cl/
pag/291/1547/constitucion_politica_y_tratados_internacionales_en_materia_de_discapacidad>. Acesso em: 25
maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
178 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
18
CHILE. Ley de Inclusión Laboral para personas con discapacidad: un Chile más inclusivo lo hacemos todos. Dispo
nível em: <https://www.gob.cl/noticias/ley-de-inclusion-laboral-para-personas-con-discapacidad-un-chile-mas-
inclusivo-lo-hacemos-todos/>. Acesso em: 25 maio 2018.
19
CHILE. Leyes y decretos con fuerza de Ley en matéria de Discapacidad. Disponível em: <https://www.senadis.gob.cl/
pag/292/1548/leyes_y_decretos_con_fuerza_de_ley_en_materia_de_discapacidad>. Acesso em: 25 maio 2018.
20
Art. 497. Son incapaces de toda tutela o curaduría: 1º. Los ciegos; 2º. Los mudos; 3º. Los dementes, aunque no estén bajo
interdicción; 4º. Los fallidos mientras no hayan satisfecho a sus acreedores; 5º. Los que están privados de administrar sus
propios bienes por disipación; 6º. Los que carecen de domicilio en la república; 7º. Los que no saben leer ni escribir; 8º. Los
de mala conducta notoria; 9º Los condenados por delito que merezca pena aflictiva, aunque se les haya indultado de ella;
10. Suprimido; 11. El que ha sido privado de ejercer la patria potestad según el artículo 271; 12. Los que por torcida o
descuidada administración han sido removidos de una guarda anterior, o en el juicio subsiguiente a ésta han sido condenados
por fraude o culpa grave, a indemnizar al pupilo. (CHILE. Código Civil. Disponível em: <https://www.leychile.cl/
Navegar?idNorma=172986>. Acesso em: 25 maio 2018).
21
COLOMBIA. Normativa: leyes. Disponível em: <https://www.minsalud.gov.co/Paginas/Norm_Leyes.aspx>.
Acesso em: 25 maio 2018.
22
COLOMBIA. Ley Estatutaria 1.618. Disponível em: <http://discapacidadcolombia.com/index.php/legislacion/145-
ley-estatutaria-1618-de-2013>. Acesso em: 25 maio 2018.
23
Artículo 24. Participación de las personas con discapacidad y de sus organizaciones. Se garantizará la participación de las
personas con discapacidad y de sus organizaciones, particularmente en los siguientes ámbitos y espacios propios del sector:
[...] 6. Las personas con discapacidad tendrán derecho a actuar por sí mismas, teniendo en cuenta sus capacidades, respetando
la facultad en toma de decisiones con o sin apoyo. En caso contrario se les garantizará la asistencia jurídica necesaria para
ejercer su representación. (COLOMBIA. Ley Estatutaria 1.618. Disponível em: <http://discapacidadcolombia.com/
index.php/legislacion/145-ley-estatutaria-1618-de-2013>. Acesso em: 25 maio 2018).
24
COLOMBIA. Código Civil. Disponível em: <https://www.oas.org/dil/esp/codigo_Civil_Colombia.pdf>. Acesso
em: 25 maio 2018.
25
VENEZUELA. Ley para las personas con discapacidad. Disponível em: <http://www.sipi.siteal.iipe.unesco.org/sites/
default/files/sipi_normativa/ley_para_personas_con_discapacidad-venezuela.pdf>. Acesso em: 25 maio 2018.
26
Artículo 393. El mayor de edad y el menor emancipado que se encuentren en estado habitual de defecto intelectual que
los haga incapaces de proveer a sus propios intereses, serán sometidos a interdicción, aunque tengan intervalos lúcidos.
(VENEZUELA. Código Civil. Disponível em: <https://www.oas.org/dil/esp/Codigo_Civil_Venezuela.pdf>. Acesso
em: 25 maio 2018).
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
179
O alerta destinado ao Paraguai poderia ser estendido aos demais países que
ratificaram e ainda não alteraram suas legislações internas quanto aos sistemas de apoio
e igual capacidade legal das pessoas com deficiência mental ou intelectual.
Em meio a essa conjuntura, vislumbra-se que Peru, Argentina e Brasil parecem
ter dado passo um pouco adiante em relação aos demais Estados da região. Por isso, o
artigo dedicará análise sobre os dois primeiros a seguir e, adiante, um tópico autônomo
sobre a Tomada de Decisão Apoiada prevista no Código Civil Brasileiro.
27
EQUADOR. Normas Jurídicas en Discapacidad Ecuador. Disponível em: <https://www.consejodiscapacidades.gob.
ec/wp-content/uploads/downloads/2014/08/Libro-Normas-Jur%C3%ADdicas-en-DIscapacidad-Ecuador.pdf>.
Acesso em: 25 maio 2018.
28
URUGUAI. Código Civil. Disponível em: <http://www.oas.org/dil/esp/codigo_civil_uruguay.pdf>. Acesso em:
25 maio 2018.
29
Em tradução livre: “É preocupante que o Paraguai não tenha iniciado ainda a revisão de sua legislação para
ajustá-la à Convenção. O Estado deve reformar todas as disposições do Código Civil que permitem a declaração
de incapacidade em razão de incapacidade e que impõem medidas de substituição nas tomadas de decisões por
meio de figuras como a ‘curatela’. Essas disposições devem ser substituídas por um sistema de apoio para o
exercício da capacidade jurídica, que garante que as pessoas com deficiência possam exercer todos seus direitos,
incluídos os de acessar a justiça, votas, contrair matrimônio ou eleger um lugar de residência”. (ORGANIZAÇÃO
DAS NAÇÕES UNIDAS. Informe de la Relatora Especial sobre los derechos de las personas con discapacidad sobre su
visita al Paraguay. Disponível em: <http://www.refworld.org.es/docid/58b00acb4.html>. Acesso em: 25 maio
2018).
30
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Sistema de las Organizaciones Unidas en el Peru: Personas con
Discapacidad. Disponível em: <http://onu.org.pe/temas/personas-con-discapacidad/>. Acesso em: 25 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
180 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
31
PERU, Ley n. 29.973. Disponível em: <https://www.mimp.gob.pe/webs/mimp/herramientas-recursos-violencia/
contenedor-dgcvg-recursos/contenidos/Legislacion/Ley-general-de-la-Persona-con-Discapacidad-29973.pdf>.
Acesso em: 25 maio 2018.
32
“Artículo 9. Igual reconocimiento como persona ante la ley. 9.1 La persona con discapacidad tiene capacidad jurídica en
todos los aspectos de la vida, en igualdad de condiciones que las demás. El Código Civil regula los sistemas de apoyo y
los ajustes razonables que requieran para la toma de decisiones. Em tradução livre: “Artigo 9. Igual reconhecimento
como pessoa ante a lei. 9.1. A pessoa com deficiência tem a capacidade jurídica em todos os aspectos da vida,
em igualdade de condições às demais. O Código Civil regula os sistemas de apoio e os ajustes razoáveis que
requeiram para a tomada de decisões”.
33
PERU. Comisión Especial Revisora del Código Civil en lo referido al ejercicio de la capacidad jurídica de la persona con
discapacidad – CEDIS. Disponível em: <http://www4.congreso.gob.pe/comisiones/cedis/index.html>. Acesso em:
19 nov. 2017.
34
PERU. Anteproyecto de Ley de reforma del Código Civil peruano en lo referido a la persona con discapacidad. Disponível
em: <https://issuu.com/cedis1/docs/anteproyectocedis>. Acesso em: 25 maio 2018.
35
Em tradução livre: “Artigo 43. Incapacidade absoluta. São absolutamente incapazes: 1. Os menores de dezesseis
anos, salvo para aqueles atos determinados para a lei; 2. Os que por qualquer causa se encontrem privados
de discernimento. Artigo 44. Incapacidade relativa. São relativamente incapazes: 1- Os maiores de dezesseis e
menores de dezoito anos de idade; 2. Os retardados mentais; 3. Os que adoecem de deterioração mental que os
impede de expressar sua vontade livre; 4. Os pródigos; 5. Os que incorrem em má gestão; 6. Os ébrios habituais;
7. Os toxicômanos; 8. Os que sofrem pena que leva anexa a interdição civil. Artigo 45. Os representantes legais
dos incapazes exercem os direitos civis destes, segundo as normas referentes ao pátrio poder, tutela e curatela.”.
(PERU. Codigo Civil: decreto legislativo n. 295. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/pdfs/mesicic4_per_
cod_civil.pdf >. Acesso em: 25 maio 2018).
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
181
Artículo 45. Las personas con discapacidad pueden designar representantes o contar con
apoyos de su libre y voluntaria elección según las disposiciones de este Código y de las
leyes especiales. [...]
Artículo 564. La persona con discapacidad puede acceder de manera libre y voluntaria a
los apoyos que considere pertinentes para posibilitar su capacidad de ejercicio.36
36
Em tradução livre: “Artigo 45. As pessoas com deficiência podem designar representantes ou contar com
apoios de sua livre e voluntária eleição segundo as disposições deste Código e das leis especiais. [...] Artigo 564.
A pessoa com deficiência pode acessar de maneira livre e voluntária os apoios que considere pertinentes para
possibilitar sua capacidade de exercício.” (PERU. Anteproyecto de Ley de reforma del Código Civil peruano en
lo referido a la persona con discapacidad. Disponível em: <https://issuu.com/cedis1/docs/anteproyectocedis>.
Acesso em: 25 maio 2017).
37
Artículo 565º.- Los apoyos son formas de asistencia que se prestan a la persona con discapacidad para facilitar el ejercicio
de sus derechos, incluyendo el apoyo en la comunicación, la comprensión de los actos jurídicos y sus consecuencias, y la
manifestación de la voluntad. Em tradução livre: “Os apoios são formas de assistência que se prestam à pessoa
com deficiência para facilitar o exercício de seus direitos, incluindo o apoio na comunicação, a compreensão
dos atos jurídicos e suas consequências, e a manifestação da vontade.”. (PERU. Anteproyecto de Ley de reforma
del Código Civil peruano en lo referido a la persona con discapacidad. Disponível em: <https://issuu.com/cedis1/docs/
anteproyectocedis>. Acesso em: 25 maio 2018).
38
A possibilidade de instituir o apoio por meio de escritura pública é delineada no artigo 568-A do projeto: Toda
persona mayor de edad puede designar por escritura pública el o los apoyos que considere necesarios en previsión de requerir
en el futuro asistencia para su capacidad de ejercicio. Asimismo, la persona puede disponer en qué personas o instituciones
no debe recaer tal designación, así como la forma, alcance, duración y directrices del apoyo a recibir. En la escritura pública
debe constar el momento en que estas directivas entran en vigor. Em tradução livre: “Toda pessoa maior de idade pode
designar por escritura pública o ou os apoios que considere necessários antecipando a necessidade de assistência
futura para sua capacidade de exercício. Da mesma forma, a pessoa pode determinar em que pessoas ou
instituições não deve recair tal designação, assim como a forma, alcance, duração e diretrizes de apoio a receber.
Da escritura pública deve constar o momento em que essas diretivas entram em vigor.” (PERU. Anteproyecto de
Ley de reforma del Código Civil peruano en lo referido a la persona con discapacidad. Disponível em: <https://issuu.com/
cedis1/docs/anteproyectocedis>. Acesso em: 25 maio 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
182 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
cumprir o lema “Nada sobre nós sem nós”, ao permitir a participação das pessoas
destinatárias da norma em seu processo de redação através da “CEDIS”.
Ainda não há previsão para a conversão desse projeto em lei, o que é aguardado
para o efetivo cumprimento do igual reconhecimento da capacidade legal das pessoas
com deficiência, previsto no artigo 12 da CDPD.
39
Em tradução livre: “O Código Civil e Comercial logrou em traduzir soluções legais adequadas ao paradigma
protetor que leva em consideração a pessoa segundo sua posição vital. Abandona-se o regime oitocentista
centrado principalmente nas questões patrimoniais, e se observam os aspectos pessoais, sociais e familiares das
pessoas com deficiência mental. Parte da capacidade como regra, e permite ao juiz valorar e determinar em
cada caso o alcance das funções do curador ou apoios necessários, para não invadir a esfera de autonomia além
da necessidade de sua proteção”. (GALLI FIANT, María Magdalena. Personas con capacidad restringida y su
protección. In: Revista Jurídica argentina La Ley, Buenos Aires, 2016-B. p. 409).
40
Em tradução livre: “Artigo 43 – Conceito. Função. Designação. Entende-se por apoio qualquer medida de
natureza judicial ou extrajudicial que facilite à pessoa que dele necessite para tomar decisões com o fim de
dirigir sua pessoa, administrar seus bens e celebrar atos jurídicos em geral. As medidas de apoio têm como
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
183
44
______. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa com
deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 43, jul./set. 2016.
45
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Consideration of reports submitted by States parties under article 35 of the
Convention: Initial reports of States parties due in 2010 Brazil, p. 32. Disponível em: <http://www.un.org/french/
documents/view_doc.asp?symbol=CRPD/C/BRA/1&TYPE=&referer=http://www.ohchr.org/FR/NewsEvents/
Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=16348&Lang=E>. Acesso em: 28 out. 2017.
46
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de
condições com as demais pessoas. §1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela,
conforme a lei. §2º É facultada à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
§3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às
necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível. 4º Os curadores são obrigados a
prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
47
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade,
à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. §2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da
sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. §3º No caso de pessoa
em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de
natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
185
O artigo 84, §2º, da LBI dispôs sobre a instituição do instrumento de apoio deno
minado “Tomada de Decisão Apoiada”, doravante “TDA”, preservando-se a capacidade
legal e, logo adiante, no artigo 116, acrescentou o artigo 1.783-A48 ao Código Civil
brasileiro.
Segundo Joyceane Bezerra de Menezes, a TDA difere de outros institutos
constantes da legislação brasileira e é compatível com a ideia de “vida independente”
disposta no texto da CDPD.49 Não se trata de “institucionalização de um palpite”,50
pois repercute na assunção de deveres de informação, cooperação e proteção a serem
cumpridos pelo apoiador, do qual pode ser inclusive exigida prestação de contas ao
Poder Judiciário.
Desse modo, pode-se dizer que o objeto da TDA não é a decisão em si, numa
perspectiva de substituição da vontade da pessoa que a institui, mas, sim, consiste
na obrigação de prestação de deveres, como de diligência e de informação, a serem
exercidos pelos apoiadores eleitos, os quais devem manter vínculo de confiança com a
pessoa apoiada.
A lei brasileira garante à pessoa com deficiência a faculdade de elaborar termo
escrito com indicação de pelo menos dois apoiadores para aprimorar o exercício da
capacidade legal e alargar a compreensão a respeito das condições concretas que
envolvem uma escolha.
O Conselho Nacional do Ministério Público51 e parte da doutrina52 entendem que,
diante da inexistência de vedação legal, o conteúdo da TDA pode corresponder tanto
48
Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos
2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio
na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que
possa exercer sua capacidade. §1º Para formular pedido de tomada de decisão apoiada, a pessoa com deficiência
e os apoiadores devem apresentar termo em que constem os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos
dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses
da pessoa que devem apoiar. §2º O pedido de tomada de decisão apoiada será requerido pela pessoa a ser
apoiada, com indicação expressa das pessoas aptas a prestarem o apoio previsto no caput deste artigo. §3º Antes
de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar,
após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. §4º
A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja
inserida nos limites do apoio acordado. §5º Terceiro com quem a pessoa apoiada mantenha relação negocial
pode solicitar que os apoiadores contra-assinem o contrato ou acordo, especificando, por escrito, sua função
em relação ao apoiado. §6º Em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante, havendo
divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público,
decidir sobre a questão. §7º Se o apoiador agir com negligência, exercer pressão indevida ou não adimplir as
obrigações assumidas, poderá a pessoa apoiada ou qualquer pessoa apresentar denúncia ao Ministério Público
ou ao juiz. §8º Se procedente a denúncia, o juiz destituirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa apoiada e se for
de seu interesse, outra pessoa para prestação de apoio. §9º A pessoa apoiada pode, a qualquer tempo, solicitar o
término de acordo firmado em processo de tomada de decisão apoiada. §10. O apoiador pode solicitar ao juiz a
exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão apoiada, sendo seu desligamento condicionado à
manifestação do juiz sobre a matéria. §11. Aplicam-se à tomada de decisão apoiada, no que couber, as disposições
referentes à prestação de contas na curatela.
49
DIAS, Joelson et al. (Org.). Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência. Brasília:
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR)/Secretaria Nacional de Promoção dos
Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD), 2014.
50
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, p. 49, jul./set. 2016.
51
BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Tomada de decisão apoiada e curatela: medidas de apoio previstas
na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Brasília: CNMP, 2016. p. 8-9.
52
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (lei n. 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./ set. 2016. p. 47.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
186 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
ENUNCIADO 639 – Art. 1.783-A: A opção pela tomada de decisão apoiada é de legitimidade
exclusiva da pessoa com deficiência. A pessoa que requer o apoio pode manifestar,
antecipadamente, sua vontade de que um ou ambos os apoiadores se tornem, em caso de
curatela, seus curadores.56
53
Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. §1º
A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à
educação, à saúde, ao trabalho e ao voto. §2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da
sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. §3º No caso de pessoa
em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de
natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.
54
BERLINI, Luciana Fernandes. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com deficiência: modificações substanciais. In:
MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas:
convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016.
p. 180.
55
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciados da VIII Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.
cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/
enunciados-publicacao-site.pdf>. Acesso em: 26 maio 2018.
56
BRASIL. Conselho da Justiça Federal. Enunciados da VIII Jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://www.
cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/
enunciados-publicacao-site.pdf>. Acesso em: 26 maio 2018.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
187
quem defenda que pessoas com deficiência física ou sensorial, pessoas idosas, pessoas
com dependência química e pessoas obesas mórbidas também poderiam se valer do
instrumento por interpretação extensiva.57
Em síntese, a TDA trata-se de ato personalíssimo, de legitimidade exclusiva
daquele que dela se beneficiará e nunca deve ser requerida por terceiros. Logo, não
pode o juiz ex officio ou mediante provocação do Ministério Público designar a decisão
apoiada em favor do jurisdicionado, tampouco indicar novos apoiadores em substituição
àqueles indicados pelo apoiado.58 59
Quanto aos apoiadores, a legislação brasileira exige que a pessoa apoiada deva
escolher no mínimo duas pessoas para a tarefa,60 restrição criticada por Ana Luiza Maia
Nevares e Anderson Schreiber, por inferirem que não logra êxito em evitar abusos e
tampouco estimula a participação de apoiadores para o desempenho de uma atividade
conjunta.61
Por outro viés, Joyceane Bezerra de Menezes interpreta essa exigência como
uma possível pretensão de o legislador instituir o compartilhamento do apoio à pessoa
com deficiência.62 Ademais, a autora identifica na legislação brasileira três pressupostos
expressos para a nomeação dos apoiadores: “idoneidade”, “confiança” e “vínculo com
o pretenso apoiado”.
Ainda que se devam considerar os vínculos fáticos que componham a rede
de solidariedade e cuidado da pessoa com deficiência, a lei exige a formalização do
instrumento, no qual devem constar, além dos dados do apoiado e de seus apoiadores, os
limites deste apoio e o tempo de sua duração. Salienta-se que não se exige prazo mínimo,
máximo ou mesmo para a revisão da medida de apoio, sendo tal decisão resultado da
liberdade da pessoa instituidora.
De acordo com o parágrafo 3º do artigo 1.783-A, o termo deverá ser submetido
ao crivo do Poder Judiciário a fim de ser homologado, o que refletiria hipótese de
57
Esses e outros exemplos são encontrados em: ROSENVALD, Nelson. Curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha
(Org.). Tratado de Direito das Famílias. Belo Horizonte: IBDFAM, 2015, p. 760. E também em: MENEZES, Joyceane
Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa
com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de Direito Civil –
RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, p. 46, jul./set. 2016.
58
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./set. 2016. p. 46.
59
Em julgamento de Agravo de Instrumento originado de Ação de Tomada de Decisão Apoiada, a 1ª Câmara
de Direito Privado do TJ-SP deu provimento ao recurso para afastar curatela provisória determinada de ofício
pelo juiz de 1º grau. No caso, o autor era pessoa com deficiência visual decorrente de doença de diabetes e
analfabeto, sem ter decréscimo de sua capacidade cognitiva. O autor nomeou sua companheira e sua filha como
apoiadoras e pediu a homologação do termo, ao que o julgador decretou a sua curatela provisória e assim se
justificou a interposição do recurso. (BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 2049735-
75.2017.8.26.0000, Relator: Des. Rui Cascaldi, 1ª Câmara de Direito Privado, julgado em 18.03.2017).
60
Previsão diversa é a encontrada no sistema argentino, que, como visto, prevê no artigo 43 do Código Civil que
“El interesado puede proponer al juez la designación de una o más personas de su confianza para que le presten apoyo”. Em
tradução livre: “O interessado pode propor ao juiz a designação de uma ou mais pessoas de sua confiança para
que lhe prestem o apoio”.
61
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil.
In: ALMEIDA, Vitor; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O direito civil: entre o
sujeito e a pessoa, estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 53.
62
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./set. 2016. p. 48.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
188 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
63
MENEZES, Joyceane Bezerra de. Tomada de decisão apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pela lei brasileira de inclusão (Lei nº 13.146/2015). Revista Brasileira de
Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, vol. 9, p. 31-57, jul./set. 2016. p. 45.
64
Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem
jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: [...] II - interesse
de incapaz; [...].
65
KONDER, Cíntia Muniz de Souza. A celebração de negócios jurídicos por pessoas consideradas absolutamente
capazes pela Lei nº 13.146 de 2015, mas que não possuem o necessário discernimento para os atos civis por
doenças mentais: promoção da igualdade perante a lei ou ausência de proteção? In: BARBOZA, Heloisa Helena;
MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da
Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017. p. 176.
66
ROSENVALD, Nelson. Curatela. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Tratado de Direito das Famílias. Belo
Horizonte: IBDFAM, 2015. p. 758.
67
ARAUJO, Luiz Alberto David; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A perícia multidisciplinar no processo de
curatela e o aparente conflito entre o estatuto da pessoa com deficiência e o código de processo civil: reflexões
metodológicas à luz da teoria geral do direito. In: Revista de direitos e garantias fundamentais, Vitória, vol. 18, n. 1,
jan./abr. 2017, p. 233. Disponível em: <http://sisbib.fdv.br/index.php/direitosegarantias/article/viewFile/867/330>.
Acesso em: 25 maio 2018.
68
ROSENVALD, Nelson. Tomada de decisão apoiada: primeiras linhas sobre um novo modelo jurídico promocional
da pessoa com deficiência. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Famílias nossas de cada dia. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015. p. 512.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
189
1.783-A, §5º). Ao ver de Anderson Schreiber e Ana Luiza Maia Nevares, trata-se de uma
faculdade “inútil”.69
Indicada a referida visão crítica, afirma-se que, de acordo com a atual redação
legislativa, o terceiro contratante tem a faculdade de exigir o registro da homologação da
TDA, especialmente por temer questionamentos quanto à validade de negócio jurídico
celebrado sem a participação dos apoiadores.
Ciente dessa lacuna, causadora de tamanha insegurança, o já mencionado PLS
nº 757 (em redação substitutiva) pretende inserir dispositivo esclarecendo que: “a tomada
de decisão apoiada não será registrada nem averbada no Registro Civil de Pessoas
Naturais” (§14, artigo 1.783-A). Seria esta uma norma inclusiva que poderia dirimir o atual
receio – fundado – de terceiros firmarem negócio jurídico com pessoa com deficiência
mental ou intelectual favorecida de TDA. Caso mantida a redação atual, não há norma
específica que estipule sanção ou vício ao negócio jurídico constituído, pois, reforça-
se, trata-se de pessoa plenamente capaz. A redação do PLS nº 757/2015 não resolve a
questão, conquanto o legislador pretenda repisar a validade dos negócios praticados
pela pessoa com deficiência apoiada, mesmo que sem a participação dos apoiadores.70
O artigo 1.783-A, §6º, trata da hipótese de divergência das opiniões da pessoa
apoiada e seus apoiadores quando se tratar de “negócio jurídico que possa trazer risco ou
prejuízo relevante”. Nessa hipótese, apoiador e apoiado devem requerer a manifestação
do Poder Judiciário com a oitiva do Ministério Público para determinar qual vontade
deve prevalecer, constituindo-se uma decisão heterônoma.
Em caso de ato de negligência, pressão indevida ou inadimplemento de obrigações
por parte dos apoiadores, o art. 1.783-A, §§7º e 8º, do CC prevê que qualquer pessoa
poderá comunicar ao Ministério Público ou o juiz e, apurando-se a sua procedência,
o Poder Judiciário destituirá o apoiador denunciado e, se for de interesse da pessoa
apoiada, nomeará outra pessoa para a tarefa.
A extinção da TDA pode ocorrer a qualquer tempo mediante solicitação da
pessoa com deficiência no bojo do processo que a homologou (artigo 1.783-A, §9º, do
CC), mesmo que o prazo de vigência, por ela mesma determinado, ainda não tenha se
esgotado. Ao ver de Nelson Rosenvald, trata-se de resilição unilateral levada ao exame
do Poder Judiciário, que deve acatar o pedido, por se caracterizar direito potestativo
da pessoa apoiada.71
O §10º do artigo 1.783-A trata da hipótese de o apoiador desejar sua exclusão: nesse
caso, deverá formular o pedido em juízo e aguardar manifestação do Poder Judiciário
para confirmar a liberação da tarefa.
69
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil.
In: ALMEIDA, Vitor; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; TEPEDINO, Gustavo (Coord.). O direito civil: entre o
sujeito e a pessoa, estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 53.
70
“§12. Os negócios e os atos jurídicos praticados pela pessoa apoiada sem participação dos apoiadores são válidos,
ainda que não tenha sido adotada a providência de que trata o §5º deste artigo” (BRASIL. Senado Federal. Projeto
de lei nº 757, de 2015. Autores: Senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), Senador Paulo Paim (PT/RS). Senado
Federal, Brasília, DF. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124251>.
Acesso em: 25 maio 2018).
71
ROSENVALD, Nelson. Tomada de decisão apoiada: primeiras linhas sobre um novo modelo jurídico promocional
da pessoa com deficiência. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Famílias nossas de cada dia. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2015. p. 509.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
190 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Por fim, o §11º do artigo 1.783-A disciplina que a prestação de contas da TDA
deve seguir as mesmas normas do processo de curatela. Logo, os artigos 1.755 a 1.762 do
Código Civil (referentes à tutela) e artigo 84, §4º,72 do EPD incidirão na medida de apoio,
se houver compatibilidade. Deverão os “apoiadores” apresentar ao juízo um relatório
detalhado do balanço do exercício de sua função em benefício da pessoa apoiada no
respectivo ano, sendo que os gastos para a elaboração das contas serão arcados pelo
apoiado (artigo 1.761 do Código Civil73).
Examinados a previsão normativa e posicionamentos doutrinários quanto à TDA
como medida de apoio à pessoa com deficiência mental ou intelectual no ordenamento
jurídico brasileiro, observa-se de seus traços que há tentativa de atender aos interesses
da instituidora e de cumprir, ainda que com arestas a serem aparadas, o contido no
artigo 12 da CDPD.
Nota-se que a TDA parece criar mecanismos alicerçados na manifestação da
vontade da pessoa com deficiência como instrumento de emancipação e reconhecimento
de sua vontade na qualidade de pessoa capaz para atos da vida civil, em simetria ao
pretendido pela CDPD. Todavia, sua disciplina legal carece de reparos para não recair
em problemas similares aos anunciados pelo Informe Alternativo às reformas argentinas,
como, por exemplo, de se manter um panorama de substituição de vontade sob o título
da TDA ou, então, retirar a efetividade da medida de apoio por óbices burocráticos à
sua formalização.
5 Conclusão
A criação de medidas de apoio ao exercício da capacidade legal em igualdade de
condições por pessoas com deficiência foi determinada pela CDPD e tem como pano
de fundo a perspectiva do modelo social de deficiência, vendo-a como uma condição
precária e de vulnerabilidade que deve ser atenuada com o enfrentamento de barreiras
encontradas na sociedade. A superação das barreiras à plena capacidade legal, todavia,
carece de efetividade nos países signatários no recorte regional da América do Sul.
A ideia conglobante de capacidade legal como sinônimo da capacidade jurídica
ainda é desacompanhada de adequados instrumentos de apoio às potencialidades das
pessoas com deficiência mental ou intelectual de grande parte dos Estados signatários
da CDPD.
Mesmo no caso da Argentina e do Peru, onde, no primeiro, já houve alteração no
Código Civil e, no segundo, há projeto de lei em trâmite no Parlamento, as experiências
retratadas reportam desafios à concretude. Salienta-se que o sistema de apoios presente
no artigo 43 do diploma civil argentino não parece atender seu propósito de auxílio
à tomada de decisões e sim como mecanismo de substituição da vontade da pessoa
apoiada pela de seu apoiador.
No Brasil, a criação da TDA não destitui a capacidade legal plena da pessoa
com deficiência e constrói via alternativa à clássica curatela (mantida no sistema). Em
72
Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade
de condições com as demais pessoas. [...] §4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua
administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.
73
Art. 1.761. As despesas com a prestação das contas serão pagas pelo tutelado.
JACQUELINE LOPES PEREIRA
A TOMADA DE DECISÃO APOIADA NO DIREITO BRASILEIRO E AS EXPERIÊNCIAS PERUANA E ARGENTINA
191
análise formal, a TDA atende à exigência da CDPD e tem por objetivo não a decisão em
si, mas, sim, a efetiva possibilidade de a pessoa com deficiência apoiada fazer escolhas
que partam de um cenário nutrido por informações suficientes à sua livre manifestação.
A apreensão da TDA pela doutrina e juristas brasileiros está em processo de
intenso desenvolvimento que busca contornar suas insuficiências. A concretização dessa
medida de apoio enfrenta árduo caminho e o diálogo com os principais destinatários da
norma pode contribuir para a superação dos desafios colocados atualmente.
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
194 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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LA CONSTITUCIONALIZACIÓN
DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO
EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
1 Introducción
Uno de los ejes conceptuales de la reforma de la matriz del sistema jurídico privado
argentino ha sido la llamada constitucionalización del derecho privado que implica interpretar
los derechos subjetivos, de naturaleza privada, incluidos en los códigos decimonónicos
en clave constitucional, reconociendo en la Carta Magna su origen y contornos.
La exposición de motivos del Anteproyecto de Código Civil y Comercial de
la Nación Argentina, vigente desde el primero de agosto de 2015, consignó, en lo
que estimamos más ilustrativo, que la aludida noción “establece una comunidad de
principios entre la Constitución, el derecho público y el derecho privado” y que se
propicia una “reconstrucción de la coherencia del sistema de derechos humanos con el
derecho privado”.
Así, entendemos que el llamado “derecho de daños” constituye tierra fecunda
para el ejercicio de un análisis en clave constitucional, toda vez que estructura sus
funciones para la tutela (preventiva, resarcitoria y disuasiva) de bienes constitucionalmente
amparados e, indudablemente, de aquellos que son objeto de intensa protección por el
sistema internacional de derechos humanos. Nadie podría sostener que el basamento
constitucional del derecho de daños constituya novedad reciente en el derecho argen
tino, pues ello ya había sido así reconocido por la Corte Suprema de Justicia de la
República Argentina en el año 1986 in re “Luis Federico Santa Coloma y otros c. Empresa
Ferrocarriles Argentinos” (Fallos 308:1160) al entroncar el principio alterum non laedere
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
196 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
2.2 Bolivia
La “Constitución Política del Estado de la República de Bolivia” fue sancionada
por el Referéndum Constituyente de enero del año 2009, y de este modo fue abrogada
la Constitución Política del Estado de 1967 y sus reformas posteriores,1 constituyéndose
en un “Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario”.2
En el Título IV “Garantías jurisdiccionales y acciones de defensa”, Capítulo
primero “Garantías jurisdiccionales” (arts. 109 a 124) se incluyen diferentes normas
relativas al derecho de daños, que podemos distinguir en dos planos.
Por un lado, en dos normas (arts. 111 y 112) el constituyente boliviano reglamenta
el instituto de la prescripción extintiva o liberatoria, que admite reglas tanto en materia
de derecho civil como penal. En tal sentido, determina el carácter de imprescriptible para
aquellos “delitos de genocidio, de lesa humanidad, de traición a la patria, crímenes de
guerra” (art. 111). Luego, dispone que los delitos cometidos por servidores públicos
que atenten “contra el patrimonio del Estado y causen grave daño económico, son
imprescriptibles y no admiten régimen de inmunidad” (art. 112). Más adelante, dispone
que serán imprescriptibles las deudas por daños económicos causados al Estado (art. 324).
1
La Carta Magna abrogada carecía de normas expresas referidas al derecho de los consumidores, pero ello no
era obstáculo para que pudieran interpretarse extensivamente otras normas constitucionales favorables a sus
postulados. LÓPEZ CAMARGO, J. Derechos del consumidor: Consagración constitucional en Latinoamérica.
Revista e-mercatoria, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, vol. 2, n. 2, 11 p., 2003: “En suma, a pesar de
que en la Constitución Boliviana no existe una norma específica destinada a la protección de los consumidores, es
claro que sí existen normas de carácter general que de su interpretación y aplicación conducen a la obligatoriedad
de dicha protección. Es así como, en relación con el artículo 7 de la Constitución, debe recordarse que los derechos
de los consumidores son de carácter colectivo, los cuales no pueden perjudicarse en el ejercicio del comercio o
la industria. Además, aplicando los artículos 132 y 133 en concordancia con el artículo 141 de la Constitución, el
sistema económico está sometido a la justicia social, en el que el Estado intervendrá para conservar o restablecer el
equilibrio en el mercado asumiendo una política social más activa de protección al agente económico más débil”.
2
BAZÁN, V., Los derechos fundamentales (particularmente económicos, sociales y culturales) en el Estado
Plurinacional de Bolivia y ciertos desafíos que a su respecto afronta la justicia constitucional, Anuario Iberoamericano
de Justicia Constitucional, Madrid, N° 16, 30 p. 2012. Como sus elementos menciona: la plurinacionalidad, el
pluralismo jurídico y la interculturalidad (sin olvidar la intraculturalidad).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
198 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
2.3 Colombia
La Constitución Política de Colombia de 19913 dejó sin efecto la Constitución
Política de 1886 y de este modo modernizó su contenido y catálogo de derechos,
adaptándolo a los postulados del Estado social.4 De este modo, incorporó los derechos
de tercera generación como la protección de los derechos del consumidor y el ambiente,
poniéndose a la vanguardia del derecho latinoamericano.
En el Capítulo 3 “De los derechos colectivos y del ambiente” (arts. 78 a 82)
desarrolla ambos derechos colectivos.
Así, en materia de defensa del consumidor, establece la responsabilidad de los
proveedores de bienes y servicios cuando “atenten contra la salud, la seguridad y el
adecuado aprovisionamiento a consumidores y usuarios”5 (art. 78).
Luego de establecer el derecho a un medioambiente sano (art. 79), le impone
al Estado diversas obligaciones jurídicas y políticas como planificar “el manejo y
aprovechamiento de los recursos naturales, para garantizar su desarrollo sostenible, su
3
Constitución Política de Colombia. Actualizada con los actos legislativos a 2015, Corte Constitucional – Consejo
Superior de la Judicatura-Sala Administrativa, Bogotá. Disponible en <http: www.corteconstitucional.gov.co>.
Acceso en: 2 jun 2018
4
LÓPEZ CAMARGO, J. Derechos del consumidor: Consagración constitucional en Latinoamérica. Revista
e-mercatoria, Universidad Externado de Colombia, Bogotá, vol. 2, n. 2, 8 p., 2003: “En otras palabras, la formulación
constitucional del ideal de justicia social implica que el Estado Social coloque a las libertades económicas, propias
del mercado, en el marco principal configurado por ese Estado Social y cuyos lineamientos se encuentran
consagrados constitucionalmente, con una presencia más activa del Estado por medio de los mecanismos de
intervención que con base en dicho ideal rompa la regla del equilibrio, para sostener la necesidad de proteger
especialmente al más débil y, así, asegurar la vigencia real del Estado de Derecho”.
5
Constitución Política de Colombia, Art. 78. “La ley regulará el control de calidad de bienes y servicios ofrecidos
y prestados a la comunidad, así como la información que debe suministrarse al público en su comercialización.
Serán responsables, de acuerdo con la ley, quienes en la producción y en la comercialización de bienes y
servicios, atenten contra la salud, la seguridad y el adecuado aprovisionamiento a consumidores y usuarios.
El Estado garantizará la participación de las organizaciones de consumidores y usuarios en el estudio de las
disposiciones que les conciernen. Para gozar de este derecho las organizaciones deben ser representativas y
observar procedimientos democráticos internos”.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
199
2.4 Ecuador
La Constitución de la República del Ecuador de 20088 siguiendo los postulados
del neoconstitucionalismo latinoamericano9 incorporó – en el Título II “Derechos”,
Capítulo tercero “Derechos de las personas y grupos de atención prioritaria”, Sección
novena designada como “Personas usuarias y consumidoras” – varias normas relativas
al derecho de defensa del consumidor (arts. 52 a 55).
En particular, además de resguardar la libertad de elección y de información
de los bienes o servicios que se comercialicen, dispuso que le corresponde a la ley
establecer “los mecanismos de control de calidad y los procedimientos de defensa de
6
Constitución Política de Colombia, Art. 80.- “El Estado planificará el manejo y aprovechamiento de los recursos
naturales, para garantizar su desarrollo sostenible, su conservación, restauración o sustitución. Además, deberá
prevenir y controlar los factores de deterioro ambiental, imponer las sanciones legales y exigir la reparación de
los daños causados. Asimismo, cooperará con otras naciones en la protección de los ecosistemas situados en las
zonas fronterizas”.
7
Constitución Política de Colombia, Art. 90. “El Estado responderá patrimonialmente por los daños antijurídicos
que le sean imputables, causados por la acción o la omisión de las autoridades públicas. En el evento de ser
condenado el Estado a la reparación patrimonial de uno de tales daños, que haya sido consecuencia de la
conducta dolosa o gravemente culposa de un agente suyo, aquel deberá repetir contra este”.
8
Publicada por Registro Oficial 449 de fecha 20 de octubre de 2008. Incluye las reformas aprobadas en el
Referéndum y Consulta Popular de 7 de mayo de 2011 y las Enmiendas Constitucionales publicadas en el
Registro Oficial No. 653 del 21 de diciembre de 2015 (ww.asambleanacional.gob.ec). Hemos consultado su texto
actualizado en Lexis S.A. URL: www.lexis.com.ec. 2 jun 2018
9
MONTAÑA PINTO, J., Teoría utópica de las fuentes del derecho ecuatoriano: perspectiva comparada, 1ª edición, Corte
Constitucional para el Período de Transición, Quito, 2012, 45 p.: “a) la omnipresencia de la Constitución en todas
las esferas jurídicas y en todos los conflictos mínimamente relevantes; b) más principios que reglas; c) coexistencia
de valores tendencialmente contradictorios en lugar de homogeneidad ideológica; d) más ponderación que
subsunción”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
200 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
10
Constitución de la República de Ecuador, Art. 52.- “Las personas tienen derecho a disponer de bienes y servicios
de óptima calidad y a elegirlos con libertad, así como a una información precisa y no engañosa sobre su contenido
y características. La ley establecerá los mecanismos de control de calidad y los procedimientos de defensa de las
consumidoras y consumidores; y las sanciones por vulneración de estos derechos, la reparación e indemnización
por deficiencias, daños o mala calidad de bienes y servicios, y por la interrupción de los servicios públicos que
no fuera ocasionada por caso fortuito o fuerza mayor”.
11
Constitución de la República de Ecuador, art. 233.- “Ninguna servidora ni servidor público estará exento
de responsabilidades por los actos realizados en el ejercicio de sus funciones, o por sus omisiones, y serán
responsables administrativa, civil y penalmente por el manejo y administración de fondos, bienes o recursos
públicos. Las servidoras o servidores públicos y los delegados o representantes a los cuerpos colegiados de las
instituciones del Estado, estarán sujetos a las sanciones establecidas por delitos de peculado, cohecho, concusión
y enriquecimiento ilícito. La acción para perseguirlos y las penas correspondientes serán imprescriptibles y, en
estos casos, los juicios se iniciarán y continuarán incluso en ausencia de las personas acusadas. Estas normas
también se aplicarán a quienes participen en estos delitos, aun cuando no tengan las calidades antes señaladas”.
12
Constitución de la República de Ecuador, art. 54.- “Las personas o entidades que presten servicios públicos
o que produzcan o comercialicen bienes de consumo, serán responsables civil y penalmente por la deficiente
prestación del servicio, por la calidad defectuosa del producto, o cuando sus condiciones no estén de acuerdo con
la publicidad efectuada o con la descripción que incorpore. Las personas serán responsables por la mala práctica
en el ejercicio de su profesión, arte u oficio, en especial aquella que ponga en riesgo la integridad o la vida de las
personas”.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
201
13
Constitución de la República de Ecuador, art. 396.- “El Estado adoptará las políticas y medidas oportunas que
eviten los impactos ambientales negativos, cuando exista certidumbre de daño. En caso de duda sobre el impacto
ambiental de alguna acción u omisión, aunque no exista evidencia científica del daño, el Estado adoptará
medidas protectoras eficaces y oportunas. La responsabilidad por daños ambientales es objetiva. Todo daño al
ambiente, además de las sanciones correspondientes, implicará también la obligación de restaurar integralmente
los ecosistemas e indemnizar a las personas y comunidades afectadas”.
14
CALVO COSTA, Carlos A., Derecho de las Obligaciones, 1ra ed, Bs. AS., Hammurabi, 2017, 43 p. PIZARRO,
RAMÓN D., y VALLESPINOS CARLOS GUSTAVO, Tratado de Responsabilidad Civil, 1ra ed, Santa Fe,
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15
CSJN, 5/08/1986 “Recurso de hecho deducido por la actora en la causa Santa Coloma, Luis Federico y otros
c/ E.F.A.”, Fallos, 308:1160.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
202 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
16
CSJN, 24.02.1943 “Piazza Hnos. S.R.L. c. Provincia de Buenos Aires”, Fallos 195:66. CSJN, 16/04/1948 “Labrué
Noema Zavaleta de c. Nación Argentina y Parodi y Figini”, Fallos: 211:46.
17
CSNJ, 26.08.1975 “Noya, Alfonso y otro c. Provincia de Buenos Aires” Fallos 292:428; CSJN, 7.10.1982, “Olmos,
José A. c. Provincia de Córdoba”, Fallos 304:1436.
18
CSJN, 5.08.1986, “Gunther, Raúl F. c/ Ejército Argentino”, Fallos: 308:1118.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
203
una antena en una cantina de oficiales. En aquella ocasión cae del techo, y sufre severas
lesiones que inmovilizan la mitad de su cuerpo, padeciendo una incapacidad laboral
total. Luego de efectuar un análisis técnico para distinguir prestaciones de naturaleza
previsional, de aquellas que son de objeto resarcitorio, en el considerando 14, la sentencia
consigna: “la responsabilidad que fijan los arts. 1109 y 1113 del Código Civil sólo
consagra el principio general establecido en el art. 19 de la Constitución Nacional que
prohíbe a los “hombres” perjudicar los derechos de un tercero. El principio alterum non
leadere, entrañablemente vinculado a la idea de reparación, tiene raíz constitucional y la
reglamentación que hace el Código Civil en cuanto a las personas y las responsabilidades
consecuentes no las arraiga con carácter exclusivo y excluyente en el derecho privado,
sino que expresa un principio general que regula cualquier disciplina jurídica”.
En este último precedente comentado, observamos que la Corte entiende al Código
Civil, en cuanto contiene las disposiciones generales de la responsabilidad civil, como
una reglamentación de ese principio de no dañar a nadie, que se encuentra en el art. 19
de la Constitución Nacional. Se trata de un primer modo de entender la comunicación
propia del proceso de “constitucionalización”, ubicando al derecho positivo de menor
jerarquía, como una reglamentación de preceptos constitucionales, que debe superar un
test de razonabilidad en tanto concreción de aquellos principios que concreta.
También, el 5 de agosto de 1986, se dicta otro precedente de similar contenido,19
también vinculado con un accidente de servicio de un agente del ejército argentino, en
el cual se incorpora la idea de la integridad psicofísica como bien jurídico resarcible
más allá de las meras mermas laborativas, y del daño moral. Sin perjuicio de nuestras
reservas hacia este concepto de valor vida per se,20 encontramos un primer paso del
análisis constitucional en el problema de la cuantificación del daño.
19
CSJN, 5.08.1986 “Luján, Honorio Juan c/ Nación Argentina”, Fallos: 308:1109.
20
ARIAS CÁU, ESTEBAN J.; NIETO, MATÍAS L. Cuantificación del Daño. Región NOA, 1ra. Ed., 2017, La Ley, Bs As.,
15 p.
21
CSJN, 7.08/.1997 “Camacho Acosta, Maximiliano c/ Grafi Graf SRL y otros”, Fallos: 320:1633.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
204 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
22
CSJN, 21.07.2004 “Aquino, Isacio c/ Cargo Servicios Industriales S.A. s/ accidentes ley 9688”, Fallos: 327:3753.
23
El art. 39.1 de la ley 24.557 disponía que: “Las prestaciones de esta ley eximen a los empleadores de toda
responsabilidad civil, frente a sus trabajadores y a los derechohabientes de éstos, con la sola excepción de la
derivada del artículo 1072 del Código Civil”.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
205
no solo por violar la igualdad ante la ley, sino también por ser contraria al art. 19 de la
CN (“alterum non laedere”) como por violar principios humanísticos que son matriciales
en el texto constitucional.
En el precedente “Aróstegui”, 24 encontramos un análisis constitucional del
problema de la cuantificación del daño (cuestión esta que ya era abordada, también, en
el señero precedente “Santa Coloma”). El precedente resulta muy interesante habida
cuenta que, en esta ocasión, el análisis constitucional no se endereza solamente a la tarea
de control de constitucionalidad de normas, sino que apunta, muy especialmente, sobre
el modo de cálculo de una indemnización concreta.
En “Aróstegui” la Corte Suprema emplea el análisis constitucional para invalidar
una fórmula de renta capitalizada empleada por los tribunales del trabajo para calcular
las indemnizaciones con fundamento en el derecho civil. Toda vez que el recientemente
sancionado código civil y comercial de la nación (2014) prevé en su art. 1746, el empleo
de dichas fórmulas para cuantificar reparaciones de daños a la integridad psicofísica,
este precedente asume nuevamente trascendencia.
El pasaje relevante para nuestro estudio se encuentra en el considerando cuarto25,
que eleva la cuestión de la reparación integral a la jerarquía de “cuestión constitucional”
susceptible de ser revisada por el recurso extraordinario federal, ante la Corte Suprema
de Justicia de la Nación.26
En otro tramo, la Corte invoca la necesidad de una comprensión plena del ser
humano, que exige considerar, a los fines de la reparación dineraria, no sólo aquellos
perjuicios vinculados con la merma laborativa, sino también las actividades que despliega
en la esfera social deportiva, y otras, tal como ya lo había dejado sentado en el precedente
“Luján”, dictado el mismo día que el fallo “Santa Coloma”.
En “Aróstegui” encontramos una concreción mayor de la hermenéutica
constitucional, pues con ella, se invalidan parámetros concretos de una fórmula de renta
capitalizada empleada para la reparación de daños a la integridad psicofísica.
Unos años luego, en “Rodríguez Pereyra”,27 nuevamente tratando un reclamo
resarcitorio de un conscripto del ejército, la Corte prosigue en la construcción de esta
línea de pensamiento.
Este fallo es importante por varias razones. Primeramente, porque sostiene la
posibilidad del control constitucional y de convencionalidad, “ex officio”. En segundo
24
CSJN, 8.04.2008 “Arostegui, Pablo Martin c/ Omega Aseguradora de Riesgos del Trabajo S.A. y Pametal Peluso y
Compañía S.R.L. y otro s/inconst. art. 39 LRT”, Fallos 331:570.
25
“Que los agravios del apelante suscitan cuestión federal para su tratamiento por la vía intentada dado que, si bien
remiten a cuestiones de derecho común y procesal, ajenas como regla a la instancia del art. 14 de la ley 48, ello no
resulta óbice cuando el fallo contiene una ponderación de la realidad económica que satisface sólo en apariencia
el principio de la reparación integral, o no constituye una derivación razonada del derecho vigente con arreglo a
las constancias de la causa, u omite el examen de circunstancias relevantes del litigio (Fallos: 299:125; 300:936 y
303:2010, entre otros)”.
26
Como antecedente, debemos señalar que en Fallos 299:125 (“Humberto Francisco Scordo c/Lago Electric S.A. s/
daños y perjuicios”, 8.11.1977), la Corte había entendido que la afectación de las reparaciones, por la depreciación
monetaria, podía dar lugar al recurso extraordinario federal. Incluso mucho antes, en 1967 (Fallos, 268: 112
“Provincia de Santa Fe v. Carlos Aurelio Niccho”) la Corte sentó que la justicia de la indemnización tiene base
en el art 17 de la Constitución Nacional (es importante señalar, que se trataba de un caso de expropiación y
desvalorización monetaria de la indemnización).
27
CSJN, 27.11.2012 “Rodríguez Pereyra Jorge Luis y otra c/ Ejército Argentino s/Daños y perjuicios”, Fallos:
335:2333.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
206 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
28
TOBÍAS, J., en Código Civil y Comercial Comentado. Tratado Exegético (Alterini, Jorge –Dir-), 2da. Ed., Bs. As., La
Ley, 2016, T. I, p. 27.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
207
efectuadas en Argentina a la ley de riesgos del trabajo, han tenido por objeto conjurar
las múltiples y variadas restricciones al principio de reparación integral. Finalmente,
en cuanto a la llamada eficacia directa, advertimos que la invocación de normas
constitucionales ha sido fructífera para la construcción de una teoría de la responsabilidad
del Estado (vgr: art. 16, de igualdad de las cargas públicas, para fundar casos de
responsabilidad por actividad lícita).
El art. 51 del CCyC, ubicado en el Libro Primero, y referido a los derechos y actos
personalísimos, por su parte, consagra el principio de “inviolabilidad de la persona
humana”, el que proyecta su trascendencia tanto sobre la prevención, como en relación
a los principios de resarcimiento del daño causado.
5 Conclusiones
En la experiencia argentina, el proceso de constitucionalización del derecho de
daños parte de la interpretación de su norma constitucional de clausura. La amplitud de
dicha norma ha permitido proyectar aplicaciones hermenéuticas concretas en materia
de prevención y cuantificación de daño. Asimismo, ha informado al recientemente
sancionado Código Civil y Comercial de la Nación.
Es posible advertir otro modelo, de tipo inverso, que consiste en una mayor
recepción, en los textos constitucionales sudamericanos, de preceptos propios del derecho
de daños (Bolivia, Ecuador).
En uno u otro caso, el principio de inviolabilidad de la persona humana, hace
sinergia con el principio alterum non laedere, para reconstruir coherencia entre los
preceptos constitucionales y las funciones preventivas y resarcitorias del derecho de
daños.
29
“Indemnización por lesiones o incapacidad física o psíquica. En caso de lesiones o incapacidad permanente,
física o psíquica, total o parcial, la indemnización debe ser evaluada mediante la determinación de un capital,
de tal modo que sus rentas cubran la disminución de la aptitud del damnificado para realizar actividades
productivas o económicamente valorables, y que se agote al término del plazo en que razonablemente pudo
continuar realizando tales actividades. Se presumen los gastos médicos, farmacéuticos y por transporte que
resultan razonables en función de la índole de las lesiones o la incapacidad. En el supuesto de incapacidad
permanente se debe indemnizar el daño aunque el damnificado continúe ejerciendo una tarea remunerada. Esta
indemnización procede aun cuando otra persona deba prestar alimentos al damnificado”.
ESTEBAN JAVIER ARIAS CÁU, MATÍAS LEONARDO NIETO
LA CONSTITUCIONALIZACIÓN DEL DERECHO PRIVADO ARGENTINO EN EL MODERNO DERECHO DE DAÑOS
209
Referencias
ARIAS CÁU, Esteban J.; NIETO, MATÍAS L. Cuantificación del Daño. Región NOA. 1. ed. Buenos Aires: La
Ley, 2017.
BAZÁN, V. Los derechos fundamentales (particularmente económicos, sociales y culturales) en el Estado
Plurinacional de Bolivia y ciertos desafíos que a su respecto afronta la justicia constitucional. Anuario
Iberoamericano de Justicia Constitucional, Madrid, n. 16, p. 30, 2012.
CALVO COSTA, Carlos A. Derecho de las Obligaciones. 1. ed. Bs. As.: Hammurabi, 2017.
PIZARRO, Ramón D.; VALLESPINOS, Carlos Gustavo. Tratado de Responsabilidad Civil. 1. ed. Santa Fe,
Rubinzal-Culzoni, TI, 2017.
LÓPEZ CAMARGO, J. Derechos del consumidor: Consagración constitucional en Latinoamérica. Revista
e-mercatoria, Bogotá, Universidad Externado de Colombia, vol. 2, n. 2, p. 1-42, 2003.
MONTAÑA PINTO, J. Teoría utópica de las fuentes del derecho ecuatoriano: perspectiva comparada. 1. ed. Quito:
Corte Constitucional para el Período de Transición, 2012.
TOBÍAS, José W. Código Civil y Comercial Comentado. Tratado Exegético (Alterini Jorge –Dir-). 2. ed. Bs. As.:
La Ley, TI, 2016.
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CSJN, 7.10.1982 “Olmos, José A. c. Provincia de Córdoba”, Fallos 304:1436.
CSJN, 5.08.1986 “Recurso de hecho deducido por la actora en la causa Santa Coloma, Luis Federico y otros
c/ E.F.A.”, Fallos, 308:1160.
CSJN, 5.08.1986, “Gunther, Raúl F. c/Ejército Argentino”, Fallos: 308:1118.
CSJN, 5.08.1986 “Luján, Honorio Juan c/ Nación Argentina”, Fallos: 308:1109.
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CSJN, 21.07.2004 “Aquino, Isacio c/ Cargo Servicios Industriales S.A. s/ accidentes ley 9688”, Fallos: 327:3753.
CSJN, 8.04.2008 “Arostegui, Pablo Martin c/ Omega Aseguradora de Riesgos del Trabajo S.A. y Pametal Peluso
y Compañía S.R.L. y otro s/inconst. art. 39 LRT”, Fallos 331:570.
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335:2333.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
ARIAS CÁU, Esteban Javier; LEONARDO NIETO, Matías. La constitucionalización del Derecho Privado
argentino en el moderno derecho de daños. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 195-209. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL
PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS DE
PLANO DE SAÚDE: ENSAIO PRELIMINAR
1
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/
projecao/>. Acesso em: 2 jun. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
212 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
2
Seção II
DA SAÚDE
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da
lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de
terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem
um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
§1º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade
social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único
renumerado para §1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000).
§2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos
de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Incluído pela Emenda
Constitucional nº 29, de 2000)
I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15%
(quinze por cento); (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155
e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem
transferidas aos respectivos Municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
213
setembro de 1990, conhecida como a Lei do SUS, que “dispõe sobre as condições para
a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências”.3 Regidos pelos seguintes princípios
e diretrizes:
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o
art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e §3º. (Incluído pela Emenda Constitucional
nº 29, de 2000)
§3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:(Incluído pela Emenda
Constitucional nº 29, de 2000)
I - os percentuais de que tratam os incisos II e III do §2º; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de
2015)
II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e
aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das
disparidades regionais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital
e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
IV - (revogado). (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 86, de 2015)
§4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de
combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas
atribuições e requisitos específicos para sua atuação. .(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006)
§5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os
Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às
endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao
Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 63, de 2010) Regulamento
§6º Além das hipóteses previstas no §1º do art. 41 e no §4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que
exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá
perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício.
(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006). In: BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30
maio 2018.
3
BRASIL. Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L8080.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
214 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico;
XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da
população;
XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e
XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins
idênticos.
XIV - organização de atendimento público específico e especializado para mulheres e vítimas
de violência doméstica em geral, que garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento
psicológico e cirurgias plásticas reparadoras, em conformidade com a Lei nº 12.845, de 1º
de agosto de 2013. [Grifo nosso]
4
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
5
BRASIL. Lei Federal nº 9.656, de 03 de junho de 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L9656.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
6
A Lei Federal nº 9.656, de 03 de junho de 1998, sofreu diversas alterações, grande parte através de medidas
provisórias, um total de 45 MPs foi publicado para alterar o estatuto em comento.
7
BRASIL. Lei Federal nº 9.661, de 28 de janeiro de 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L9961.htm>. Acesso em: 30 maio 2018.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
215
objeto do trabalho, sem, contudo, deixar de considerar sua importância para a efetivação
do direito das partes.
Já no ano de 2010 o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 31,
de 30.03.2010, que “recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando a melhor
subsidiar os magistrados e demais operadores do direito, para assegurar maior eficiência
na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde”.8
8
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ, no uso de suas atribuições, e
CONSIDERANDO o grande número de demandas envolvendo a assistência à saúde em tramitação no Poder
Judiciário brasileiro e o representativo dispêndio de recursos públicos decorrente desses processos judiciais;
CONSIDERANDO a relevância dessa matéria para a garantia de uma vida digna à população brasileira;
CONSIDERANDO que ficou constatada na Audiência Pública nº 4, realizada pelo Supremo Tribunal Federal
para discutir as questões relativas às demandas judiciais que objetivam o fornecimento de prestações de saúde, a
carência de informações clínicas prestadas aos magistrados a respeito dos problemas de saúde enfrentados pelos
autores dessas demandas;
CONSIDERANDO que os medicamentos e tratamentos utilizados no Brasil dependem de prévia aprovação pela
ANVISA, na forma do art. 12 da Lei 6.360/76 c/c a Lei 9.782/99, as quais objetivam garantir a saúde dos usuários
contra práticas com resultados ainda não comprovados ou mesmo contra aquelas que possam ser prejudiciais
aos pacientes;
CONSIDERANDO as reiteradas reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da concessão de
provimentos judiciais de urgência e a necessidade de prestigiar sua capacidade gerencial, as políticas públicas
existentes e a organização do sistema público de saúde;
CONSIDERANDO a menção, realizada na audiência pública nº 04, à prática de alguns laboratórios no sentido de
não assistir os pacientes envolvidos em pesquisas experimentais, depois de finalizada a experiência, bem como a
vedação do item III.3, “p”, da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde;
CONSIDERANDO que, na mesma audiência, diversas autoridades e especialistas, tanto da área médica quanto
da jurídica, manifestaram-se acerca de decisões judiciais que versam sobre políticas públicas existentes, assim
como a necessidade de assegurar a sustentabilidade e gerenciamento do SUS;
CONSIDERANDO, finalmente, indicação formulada pelo grupo de trabalho designado, através da Portaria
nº 650, de 20 de novembro de 2009, do Ministro Presidente do Conselho Nacional de Justiça, para proceder a
estudos e propor medidas que visem a aperfeiçoar a prestação jurisdicional em matéria de assistência à saúde;
CONSIDERANDO a decisão plenária da 101ª Sessão Ordinária do dia 23 de março de 2010 deste E. Conselho
Nacional de Justiça, exarada nos autos do Ato nº 0001954-62.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que:
a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto por médicos e
farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões
clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais;
b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença,
inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos,
órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata;
b.2) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela ANVISA, ou em fase
experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
b.3) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da apreciação de medidas
de urgência;
b.4) verifiquem, junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (CONEP), se os requerentes fazem parte de
programas de pesquisa experimental dos laboratórios, caso em que estes devem assumir a continuidade do
tratamento;
b.5) determinem, no momento da concessão de medida abrangida por política pública existente, a inscrição do
beneficiário nos respectivos programas;
c) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria individualizada no programa de direito
administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, de acordo com a relação
mínima de disciplinas estabelecida pela Resolução 75/2009 do Conselho Nacional de Justiça;
d) promovam, para fins de conhecimento prático de funcionamento, visitas dos magistrados aos Conselhos
Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou conveniadas ao SUS, dispensários
de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como Unidade de Assistência de Alta Complexidade
em Oncologia – UNACON ou Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia – CACON;
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
216 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Neste mesmo ano, o CNJ editou a Resolução nº 107, de 06.04.2010,9 que “institui
o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de
assistência à saúde”.
II. Recomendar à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM, à Escola Nacional
de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho – ENAMAT e às Escolas de Magistratura Federais
e Estaduais que:
a) incorporem o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de
magistrados;
b) promovam a realização de seminários para estudo e mobilização na área da saúde, congregando magistrados,
membros do ministério público e gestores, no sentido de propiciar maior entrosamento sobre a matéria;
Publique-se e encaminhe-se cópia desta Recomendação a todos os Tribunais. In: BRASIL. Conselho Nacional de
Justiça. Recomendação nº 31 de 30.03.2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-normativos?documento=877>.
Acesso em: 30 maio 2018.
9
Resolução Nº 107 de 06.04.2010
Ementa: Institui o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência
à saúde.
Origem: Presidência
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e
regimentais, e,
CONSIDERANDO o elevado número e a ampla diversidade dos litígios referentes ao direito à saúde, bem como
o forte impacto dos dispêndios decorrentes sobre os orçamentos públicos;
CONSIDERANDO os resultados coletados na audiência pública nº 04, realizada pelo Supremo Tribunal Federal
para debater as questões relativas às demandas judiciais que objetivam prestações de saúde;
CONSIDERANDO o que dispõe a Recomendação nº 31 do Conselho Nacional de Justiça, de 30 de março de 2010;
CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça na 102ª Sessão Ordinária,
realizada em 6 de abril de 2010, nos autos do ATO 0002243-92.2010.2.00.0000;
RESOLVE:
Art. 1º Fica instituído, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, o Fórum Nacional para o monitoramento e
resolução das demandas de assistência à saúde, com a atribuição de elaborar estudos e propor medidas concretas
e normativas para o aperfeiçoamento de procedimentos, o reforço à efetividade dos processos judiciais e à
prevenção de novos conflitos.
Art. 2º Caberá ao Fórum Nacional:
I - o monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o fornecimento de
medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares;
II - o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde;
III - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas processuais, à organização
e estruturação de unidades judiciárias especializadas;
IV - a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de
estratégias nas questões de direito sanitário;
V - o estudo e a proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do objetivo do Fórum
Nacional.
Art. 3º No âmbito do Fórum Nacional serão instituídos comitês executivos, sob a coordenação de magistrados
indicados pela Presidência e/ou pela Corregedoria Nacional de Justiça, para coordenar e executar as ações de
natureza específica, que forem consideradas relevantes, a partir dos objetivos do artigo anterior.
Parágrafo único. Os relatórios de atividades do Fórum deverão ser apresentados ao Plenário do CNJ
semestralmente.
Art. 4º O Fórum Nacional será integrado por magistrados atuantes em unidades jurisdicionais, especializadas ou
não, que tratem de temas relacionados ao objeto de sua atuação, podendo contar com o auxílio de autoridades
e especialistas com atuação nas áreas correlatas, especialmente do Conselho Nacional do Ministério Público,
do Ministério Público Federal, dos Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos
Advogados do Brasil, de universidades e outras instituições de pesquisa.
Art. 5º Para dotar o Fórum Nacional dos meios necessários ao fiel desempenho de suas atribuições, o Conselho
Nacional de Justiça poderá firmar termos de acordo de cooperação técnica ou convênios com órgãos e entidades
públicas e privadas, cuja atuação institucional esteja voltada à busca de solução dos conflitos já mencionados
precedentemente.
Art. 6º O Fórum Nacional será coordenado pelos Conselheiros integrantes da Comissão de Relacionamento
Institucional e Comunicação.
Art. 7º Caberá ao Fórum Nacional, em sua primeira reunião, a elaboração de seu programa de trabalho e
cronograma de atividades.
Art. 8º As reuniões periódicas dos integrantes do Fórum Nacional poderão adotar o sistema de videoconferência,
prioritariamente.
Art. 9º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
217
10
ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO Roseni (Coord.). Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência. Brasília:
Conselho Nacional de Justiça, 2015, fls. 09.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
218 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
sugerem estratégias de como os juízes devem lidar com a judicialização da saúde pública
e suplementar na atividade judicante.
Pouca menção ao Fórum Nacional e aos Comitês estaduais: a maioria das decisões não citou
ou tomou como referência as contribuições do Fórum Nacional de Saúde e dos Comitês
estaduais na atividade judicante.
Tendência de utilização do NAT, especialmente nas capitais: a maioria das decisões não fez
menção ao NAT como uma estratégia para a atividade judicante em saúde, apesar de se
observar nos dados uma tendência a sua utilização, especialmente nas capitais.
11
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 1198799/SP, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 17.05.2018, DJe
25.05.2018.
12
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 608, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11.04.2018, DJe 17.04.2018.
13
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 609, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11.04.2018, DJe 17.04.2018.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
219
Na realidade, a regra geral tem sido excepcionada nas hipóteses em que, a partir da
própria descrição das circunstâncias que perfazem o ilícito material, seja possível
entrever consequências bastante sérias de cunho psicológico como resultado direto do
inadimplemento culposo.
Na hipótese específica destes autos, a recorrente já estava internada e prestes a ser operada –
naturalmente abalada pela notícia de que estava acometida de câncer – quando foi surpreendida
pela notícia de que a prótese a ser utilizada na cirurgia não seria custeada pelo plano de saúde no
qual depositava confiança há quase 20 anos.
Sem alternativa, foi obrigada a emitir cheque desprovido de fundos para garantir a
realização da intervenção cirúrgica. Assim, a toda a carga emocional que antecede uma
operação somou-se a angústia decorrente não apenas da incerteza quanto à própria
realização da cirurgia, mas também acerca dos seus desdobramentos, em especial a alta
hospitalar, sua recuperação e a continuidade do tratamento, tudo em virtude de uma
negativa de cobertura que, ao final, se demonstrou injustificada, ilegal e abusiva.
O diagnóstico positivo do câncer certamente trouxe forte comoção à recorrente. Porém, talvez pior
do que isso, tenha sido ser confortada pela notícia quanto à existência de um tratamento para, em
seguida, ser tomada de surpresa por uma ressalva do próprio plano de saúde – que naquele momento
deveria transmitir segurança e tranquilidade ao associado – que impedia a sua realização, gerando
uma situação de indefinição que perdurou até depois da cirurgia.
Maior tormento que a dor da doença é o martírio de ser privado da sua cura.16
14
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações. Vol. II. 6ª ed. Saraiva: São Paulo, 2018, fls. 321.
15
Sobre o tema as decisões a seguir: REsp 1.243.632/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe
17.9.2012; e AgRg no AREsp 7.386/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe 11.9.2012.
16
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1190880/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 19.05.2011, DJe 20.06.2011.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
220 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
No mesmo julgamento a Ministra Maria Isabel Gallotti proferiu voto nos seguintes
termos:
Com efeito, dos fatos apresentados decorre a situação injusta e delicada imposta à paciente,
a qual, na iminência de cirurgia imprescindível para a recuperação de doença letal, foi
forçada a emitir cheque sem provisão de fundos, fato em tese tipificado como crime, para
pagamento de despesa inesperada e abusiva.
A gravidade da doença e a urgência do procedimento médico evidenciam que a recusa
ilegal por parte da empresa privada operadora do plano causou muito mais do que um
mero dissabor, mas um agravamento do seu estado de angústia e aflição próprios de quem
se submete aos riscos de uma operação.17
17
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1190880/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA,
julgado em 19.05.2011, DJe 20.06.2011.
18
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 maio 2018.
19
O Código Civil ainda traz o emblemático caso do artigo 188, II que deve ser analisado em cumulação com o artigo
929 também do Código Civil.
“Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito
reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo
iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolu
tamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.
(...)
Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo,
assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram”.
In: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 fev. 2018.
20
Noutro exemplo o Código Civil traz a obrigação de indenizar do proprietário do imóvel que se utilizar de
servidão de passagem ao proprietário do imóvel serviente. “Código Civil, Art. 1.285. O dono do prédio que não
tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o
vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário”. In: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de
janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 de janeiro
de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406 compilada.htm#art2044>.
Acesso em: 24 fev. 2018.
21
O Código de Processo Civil em vigor traz em seu bojo que deverá haver a concessão de tutela de urgência sempre
que houver probabilidade de dano. “Art. 300. A tutela de urgência será concedida quando houver elementos
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
221
Nesta mesma esteira segue os resultados apreendidos por Elaine Buarque quando
dos estudos desenvolvidos no doutorado da Universidade Federal de Pernambuco, que
tem por objeto a autonomia do dano existencial frente ao dano moral.
que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. In:
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 17 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 fev. 2018.
22
O Código Civil trata da responsabilidade sem nexo de causalidade quando da responsabilidade do transportador
por acidente por culpa de terceiro. “Código Civil Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por
acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva”. In: BRASIL.
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2012. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 11 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406
compilada.htm#art2044>. Acesso em: 24 fev. 2018.
23
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Pressuposta Evolução de Fundamentos e de
Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 31, n. 1,
2007. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/revfd/article/view/12029/7983>. Acesso em: 24 fev. 2018.
24
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Obrigações. Vol. II. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, fls. 353.
25
Celebre é a definição da Matilde Zavala de González ao qual dano existencial “seria uma espécie de dano à vida
de relação como aquele em que há impossibilidade ou dificuldade do sujeito atingido em sua integridade de
reinserir-se nas relações sociais ou de mantê-las em um nível de normalidade. O dano ao projeto de vida atinge
legítimas expectativas que a pessoa tinha com relação a própria existência, variando de uma frustração de menor
alcance até a própria perda de sentido pela vida”. In: ZAVALA DE GONZÁLEZ, Matilde. Resarcimiento de daños.
Daños a las personas (integridad sicofísica). 2. ed. Buenos Aires: Hammurabi, 1996, p. 462.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
222 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
26
BUARQUE, Elaine Cristina de Moraes. Dano Existencial: para além do dano moral. Tese de Doutorado em Direito.
Universidade Federal de Pernambuco, 2017, fls. 69.
27
BRASIL. Lei Federal nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Que altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nºs 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de
11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm>. Acesso em: 02 jun.
2018.
28
BUARQUE, Elaine Cristina de Moraes. Dano Existencial: para além do dano moral. Tese de Doutorado em Direito.
Universidade Federal de Pernambuco, 2017, fls. 240.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
223
Caso conhecido como das “pílulas de farinha”, sendo de se anotar que o fato de o STJ
admitir a indenização em ação civil pública promovida pelos danos decorrentes da ingestão
do anticoncepcional Microvlar, da Schering [Resp. 866.636 SP], referendando-a em ação
individual [Resp. 1.096.325 SP], constrói modalidade de sentença de efeito erga omnes
quanto ao tema jurídico, desautorizando decisões diversas quando as situações fáticas se
assemelham – Hipótese em que a autora, com a juntada de carteia e duas drágeas restantes
que não possuíam os princípios ativos a que se destinavam, prova ter engravidado pela
falha da indústria em não destruir os produtos manufaturados para testes [placebos] da
máquina empacotadora recém adquirida e pela culpa quanto à guarda desse material
que, infelizmente, foi inserido no comércio como produto regular - Dever de compensar
a mulher pela concepção indesejada ou inesperada, como espécie de dano existencial,
conforme já admitido pelo Tribunal Superior, inclusive em lide ajuizada por defeito de
outro anticoncepcional produzido pela Schering [Resp. 918.257 SP] e de pagar pensão à
filha, aceita essa fórmula de indenizar como reparação pela perda de chance de cumprir
o princípio do cuidado previsto na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do
Adolescente e na Convenção Internacional sobre os Direito da Criança. Agravo retido
não provido e provimento em parte dos recursos [apenas para consignar que a correção
monetária do dano moral tem início a partir da sentença que arbitrou o quantum e para
elevar a verba honorária para 10% do valor atualizado das condenações.29
A mulher que não deseja engravidar possui razões pessoais, familiares, econômicas e
profissionais para não ser fertilizada, e essa sua opção de vida deve ser respeitada, sob
pena de se estabelecer uma certa violência contra predicados íntimos, o que não deixa
de caracterizar ofensa a direitos da personalidade. Ademais, a gravidez não planejada
altera projetos sadios de cônjuges e companheiros, o que é causa de ansiedade e quiçá de
preocupação com os desvios das rotas traçadas, inclusive no plano financeiro. Há, sem
dúvida, frustração quanto ao desejo de uma opção de vida, o que por si só caracteriza
o dano moral indenizável [art. 5º, V e X, da CF], sendo que a doutrina classifica essa
modalidade de dano como “existencial”, com precedente do Tribunal de Monza, de 7.6.1996,
cf. nota de rodapé 72 da obra de ARMANDO BRAGA [A reparação do dano corporal na
responsabilidade civil extracontratual, Almedina, Coimbra, 2005, p, 62].30 [grifo nosso].
29
SÃO PAULO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. APL: 4820374000 SP, Relator: Enio
Zuliani, Data de Julgamento: 29.01.2009, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04.02.2009.
30
SÃO PAULO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. APL: 4820374000 SP, Relator: Enio
Zuliani, Data de Julgamento: 29.01.2009, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04.02.2009.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
224 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Considerações finais
A judicialização da saúde suplementar no Brasil ganha contornos dramáticos
na medida em que se verifica que o bem da vida que se pretende tutelar causaria dano
irreparável, caso não efetivamente tutelado, ao projeto de vida do consumidor contratante
de plano de saúde.
Ao mesmo tempo evidencia-se pelas pesquisas indicadas neste estudo que
propostas as ações, quando estas requerem medidas de urgência, tais medidas são
providas pelo Poder Judiciário e na mesma medida uma preponderância de procedência
final dos pedidos que tem por base algum tipo de defeito na prestação do serviço dos
planos de saúde, tudo isto em conformidade com o Código de Defesa do Consumidor.
Os fatos aqui elencados ponderam a atualização do sistema de responsabilização
pelos danos causados.
Nesta seara surge dano existencial como espécie autônoma de dano – um novo
paradigma capaz, pelo menos momentaneamente – de suprir os espaços não alcançados
pelo instituto do dano moral. Assim como o dano moral, é o dano existencial uma espécie
de dano imaterial.
Neste sentindo o “confisco irreversível do tempo”, pelo inadimplemento de
obrigações dos planos de saúde, que, ao incidir no patrimônio jurídico do contratante
ou de terceiros, no que diz respeito ao comprometimento permanente ou duradouro da
existência da pessoa humana, nas suas relações com as outras pessoas e no seu projeto
de vida, tem o condão de atrair a incidência desta espécie de dano.
A contribuição da doutrina e das decisões judiciais que diferencia o dano moral
stricto senso do dano existencial, permitindo, até sua cumulação, como verificamos em
situações do dano estético e dano moral,31 matéria inclusive sumulada no Superior
Tribunal de Justiça, confirma a tendência de que o dano imaterial/moral é gênero e
também espécie de dano.
Os critérios construídos até então por estudiosos do tema dão cabo de alguns
critérios capazes de atrair a incidência do dano existencial, seriam eles a prima face: a)
o dano ao projeto de vida; b) o dano à vida em relações; c) o dano estético permanente
que impeça a vítima de desenvolver suas atividades habituais; d) o dano à prática de
esportes, como lazer; e e) o dano ao prazer de viver e gozar da vida, como antes.
Tais critérios deverão ser utilizados pelo julgador em um juízo de razoabilidade
e ponderação para diferenciar o dano moral stricto sensu do dano existencial, como
também, uma vez configurada a incidência dessa espécie de dano, a busca do quantum
indenizatório capaz de reparar o bem da vida protegido.
Referências
ASENSI, Felipe Dutra; PINHEIRO Roseni (Coord.). Judicialização da saúde no Brasil: dados e experiência. Brasília:
Conselho Nacional de Justiça, 2015.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 31 de 30/03/2010. Disponível em: <http://www.cnj.jus.
br/atos-normativos?documento=877>. Acesso em: 30 maio 2018.
31
Súmula 387 - É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral. In: BRASIL. Superior Tribunal
de Justiça. Súmula 387, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26.08.2009, DJe 01.09.2009.
DANILO RAFAEL DA SILVA MERGULHÃO, PAULA FALCÃO ALBUQUERQUE
CRITÉRIOS DE INCIDÊNCIA DE UMA RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EXISTENCIAL PELO INADIMPLEMENTO DOS CONTRATOS...
225
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
MERGULHÃO, Danilo Rafael da Silva; ALBUQUERQUE, Paula Falcão. Critérios de incidência de uma
responsabilidade civil por dano existencial pelo inadimplemento dos contratos de plano de saúde: ensaio
preliminar. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito
Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 211-225. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA
DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA:
UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL
Introdução
As pessoas que possuem algum tipo de deficiência são como quaisquer outras,
com peculiaridades, contradições e singularidades. São seres humanos que lutam pelos
seus direitos, pela autonomia individual e desejam uma efetiva participação e inclusão
na sociedade, por isso existe a necessidade de políticas públicas e sociais que possam
propiciar a dignidade humana a essas pessoas. Nessa perspectiva, o Brasil dispõe de
uma legislação que avança para assegurar os direitos dessas pessoas e ratificou em 2008
a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações
Unidas.
O presente estudo tem como objetivo analisar o modelo de atenção social e a
partir dele verificar a evolução e o resguardo dos direitos das pessoas com deficiência
na legislação brasileira, de maneira específica a inclusão previdenciária dessas pessoas
e como o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que é a autarquia responsável por
pagar os benefícios previdenciários, vem atuando na concessão desses benefícios.
Não é forçoso lembrar que a deficiência faz parte do ciclo de vida do ser humano,
pois pode ser provocada por incidentes do dia a dia ou ainda ocorrer em decorrência
do envelhecimento, provocando restrições de mobilidade. Diniz (2007, p. 8) afirma que
“a concepção de deficiência como uma variação normal da espécie humana foi uma
criação discursiva do século XVIII, e desde então ser deficiente é experimentar um corpo
fora da norma”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
228 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
sociedade. A deficiência não deve ser entendida como sinônimo de doença, pois é
fenômeno social que surge com maior ou menor incidência a partir das condições de
vida de uma sociedade, de sua forma de organização, da atuação do Estado,1 do respeito
aos direitos humanos e dos bens e serviços disponíveis para a população (MAIOR, 2005,
p. 25-30).
Pode-se dizer que o Estado, ao atribuir novo paradigma ao princípio da igualdade,
é marcado pela superação da simples proibição de discriminação às minorias, na visão
de Quaresma (2010, p. 941)
1
A Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência promove ações para a garantia e
defesa de direitos de pessoas deficientes. Na esfera federal têm-se: o Programa Nacional de Direitos Humanos;
Programa de Qualificação de Trabalhadores para Pessoas Deficientes; Política Nacional de Informática na
Educação; Política Nacional de Integração da Pessoa com Deficiência.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
230 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
substancial, como sendo a possibilidade de fazer as suas próprias escolhas, mas, também,
como a possibilidade real de fazer aquilo que se valoriza, não deixa de receber proteção.
Ou seja, percebe-se um perfil dúplice: tanto de promover a liberdade quanto de proteger
a pessoa com deficiência (PEREIRA; OLIVEIRA, 2017).
É exatamente na perspectiva de proteção à pessoa com deficiência que, caso seja
decretada a incapacidade relativa, há a possibilidade de se nomear um curador em
processo de curatela, no entanto, a referida legislação deixa clara a excepcionalidade
da medida. Pode-se também identificar no caráter protetivo a inclusão previdenciária
de tais pessoas, objeto deste trabalho.
Ao se deparar com um caso concreto, o juiz deverá priorizar a manutenção da
capacidade absoluta da pessoa com deficiência. No entanto, a lei faculta a essas pessoas,
nos casos em que envolvem atos patrimoniais, indicar duas pessoas da sua confiança
para apoiarem a sua decisão, o que foi denominado de tomada de decisão apoiada, que
dependerá de decisão judicial. A imprescindibilidade de decisão judicial para se utilizar
a tomada de decisão apoiada fez com que várias críticas fossem perpetradas contra tal
instituto, levando-se em consideração, principalmente, a morosidade do Judiciário.
Vale destacar que a possibilidade de nomeação de curador para pessoa com
deficiência se restringe, tão somente, a atos de natureza patrimonial, já que os atos de
aspecto existencial pertencem somente ao seu titular.2
É inegável que a intenção do legislador foi a inclusão da pessoa com deficiência,
no entanto, a análise do caso concreto é que irá demonstrar se a pessoa, de fato, tem
condições de pessoalmente exercer todos os atos da vida civil. Tal análise dependerá,
inclusive, de laudo pericial multidisciplinar, como dispõe o art. 753, §1º, do Novo CPC,
isto porque a complexidade das questões que têm assolado o crivo jurisdicional impõe
o compartilhamento de responsabilidades com profissionais de variados campos.
2
O Estatuto da Pessoa com Deficiência deixou de mencionar expressamente o instituto da interdição. No entanto,
o Novo Código de Processo Civil dedica toda uma seção entre os procedimentos de jurisdição voluntária às
medidas necessárias à interdição, o que causou certa divergência na doutrina acerca do fim ou não do instituto
da interdição.
AURICELIA DO NASCIMENTO MELO, JOANA DE MORAES SOUZA MACHADO
A PROTEÇÃO E A INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: UMA ANÁLISE DO MODELO DE ATENÇÃO SOCIAL
231
Em relação aos direitos da pessoa com deficiência, a Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência afirma em seu art. 12 que:
Pelo que se pode verificar, a norma é bem clara ao explicitar a capacidade jurí
dica das pessoas com deficiência. Essa disposição da Convenção constata o que vem
sendo implementado pelo modelo social, segundo Diniz (2007, p. 79), para primeira
compreensão, no modelo social da deficiência, a garantia da igualdade entre pessoas
com e sem impedimentos corporais não deve se resumir à oferta de bens e serviços
biomédicos, pois a deficiência é essencialmente uma questão de direitos humanos.
A partir dessa análise, pode-se verificar que o modelo social vê a deficiência para
além do deficiente, como um resultado do modo como a sociedade está organizada.
Enfoca as barreiras sociais que precisam ser removidas para que o deficiente possa
assumir o controle de sua vida. A tese central do modelo social permitiu o deslocamento
do tema dos espaços domésticos para a vida pública. A deficiência não é matéria de vida
privada ou de cuidados familiares, mas uma questão de justiça (NUSSBAUM, 2007, p. 35).
É de fundamental importância destacar que a Convenção dos Direitos das Pessoas
com Deficiência (CDPD) assinalou a mudança da assistência para direitos, introduziu o
idioma da igualdade para conceder o mesmo e o diferente a pessoas com deficiências,
reconheceu a autonomia com apoio para pessoas com deficiência e, sobretudo, tornou
a deficiência uma parte da experiência humana. Pode-se afirmar que a Convenção
tentou remediar a profunda discriminação, reconhecendo que todos os indivíduos com
deficiências são pessoas perante a lei com poder de gerir seus próprios assuntos.
dúvidas, poderão ser realizadas visitas ao local de trabalho e/ou residência do avaliado,
bem como a solicitação de informações médicas e sociais (laudos médicos, exames,
atestados, laudos do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, entre outros).
Considerações finais
Pelo disposto ao longo desse estudo, verificou-se que a preocupação com os
deficientes físicos remonta ao pós-Segunda Guerra Mundial, momento a partir do qual
diversos países passaram a se preocupar com uma legislação que pudesse assegurar
direitos e seu exercício. No Brasil a legislação tratou de maneira assistencial os deficientes,
no entanto com o passar do tempo pôde-se constatar a evolução da legislação a partir da
adoção do modelo social da deficiência, que passou a tratar do tema como uma questão
de direitos humanos.
A pessoa que adquire ou nasce com lesão (ausência parcial ou total de um
membro ou mecanismo corporal defeituoso) tem o acesso à sociedade através de meios
dificultosos, pois ela deveria expressar sua forma corporal de estar no mundo, consi
derando que essa é uma das várias possibilidades para a existência humana O modelo
social da deficiência, ao resistir à redução da deficiência aos impedimentos, ofereceu
novos instrumentos para a transformação social e a garantia de direitos. Não era a
natureza que oprimia, mas a cultura da normalidade que descrevia alguns corpos como
indesejáveis.3
Com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Física das Nações
Unidas, ratificada no Brasil em 2008, houve um significativo avanço, pois o Estado
passou a nortear suas políticas sociais de maneira a garantir os direitos dos deficientes.
Um exemplo dessas ações foi a aprovação da Lei Complementar nº 142/13, que explica
a aposentadoria das pessoas com deficiência, norma que estava pendente de regulação
desde a Constituição de 1988, pois os deficientes que trabalham são segurados e não
podiam ter que cumprir as exigências para os demais segurados, já que a própria
Constituição lhes garantiu critérios diferenciados para a aposentadoria.
Dessa forma, reconhecendo os direitos das pessoas trabalhadoras que são defi
cientes, o Brasil assegura a plena cidadania a essas pessoas que possuem capacidade
de construir e exercer direitos, pois a maior dificuldade para elas é justamente a
conscientização da sociedade em desenvolver uma cultura inclusiva.
Referências
ARAÚJO, L. A. D. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência: algumas dificuldades para
efetivação dos direitos. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade,
Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
3
Debora Diniz (Maceió) é uma antropóloga, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de
Brasília, pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, membro da diretoria da International
Association of Bioethics, do Council on Health Research for Development e da International Women’s Health
Coallition.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
236 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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Latino-Am. Enfermagem, jul./ago. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rlae/v18n4/pt_22.pdf>.
Acesso em: 14 jul. 2014.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado, 2014.
______. Decreto nº 6.949, de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, Senado, 2014.
______. Lei Complementar nº 142, de maio de 2013. Regulamenta o §1º do art. 201 da Constituição Federal, no
tocante à aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social – RGPS. Brasília,
Senado, 2014.
______. Lei nº 8.742/93. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Brasília, Senado,
2014.
DINIZ, D. O que é deficiência. São Paulo: Braziliense, 2007.
DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. dos. Deficiência, direitos humanos e justiça. Revista Internacional
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getArtigo11.php?artigo=11,artigo_03.htm>. Acesso em: 14 jun. 2014
FERREIRA, Jacqueline Lopes; OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti. A Capacidade civil no Estatuto da Pessoa com
Deficiência: a quebra da dogmática e o desafio da efetividade. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana
Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). Da Dogmática à efetividade do Direito Civil. Anais do Congresso
Internacional de Direito Civil Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
IBRAHIM, F. Z. Curso de Direito Previdenciário. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
KERTZMAN, I. Curso Prático de Direito Previdenciário. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2011.
MAIOR, I. M. M. L. Saúde. In: Instituto Paradigma. É perguntando que se aprende: a inclusão das pessoas
com deficiência. Instituto Paradigma. São Paulo: Áurea, 2005, p. 25-30.
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QUARESMA, R. A pessoa portadora de necessidades especiais e a sua inclusão. In: SARMENTO, Daniel;
IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (Coord.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
1 Introdução
O capitalismo, sistema adotado pelo Estado Brasileiro na Constituição Federal,1
originou-se na Europa no final da Idade Média e produziu transformação em toda a
economia mundial, desencadeando uma nova fase econômica marcada pela aceleração
da capacidade produtiva e aumento do consumo, mas também problemas sociais e
ambientais que acabaram desencadeando preocupação em vários segmentos.
Essa preocupação gerou e continua gerando debates no meio governamental,
jurídico, empresarial e social na tentativa de encontrar soluções viáveis para que
o crescimento ocorra de forma mais equilibrada. Assim, chegou-se à conclusão de
que o desenvolvimento econômico deve ser realizado levando em consideração não
só os aspectos econômicos, mas também aspectos sociais e ambientais, ou seja, o
desenvolvimento econômico para ser viável precisa ser sustentável.
A preocupação com o desenvolvimento sustentável começou a ganhar notoriedade
nos anos 60 e 70. Neste momento passou-se a perceber que a atividade econômica só teria
valor se ocorresse em harmonia com o meio ambiente, com o crescimento populacional
e econômico, e com o bem-estar da atual e das futuras gerações.
John Elkington2 criou o termo triple bottom3 line, que corresponde aos pilares:
lucro, social e ambiental e formam o tripé da sustentabilidade, ou seja, o lucro é pilar
1
O legislador constituinte originário optou pela adoção do regime capitalista, o qual se funda na livre-iniciativa e
não apenas aceita mas incentiva a persecução do lucro nas atividades econômicas.
2
WIKIPEDIA. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/John_Elkington> e <https://en.wikipedia.org/wiki/
Triple_bottom_line>. Acesso em: 31 maio 2018.
3
Segundo Luis Roberto Antonik (In: Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial – uma visão prática. Rio
de Janeiro: Alta Books Editora, 2016, p. 177), a expressão “bottom line” é usada em vários contextos, mas na área
de finanças e contabilidade refere-se à Demonstração de Resultados do Exercício (DRE), ou seja, ao lucro líquido
do exercício da empresa.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
238 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
4
CANDIL, Sérgio Luiz. In: Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica
e jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Consulta em: 27 maio 2018, p. 37.
5
ANTONIK, Luis Roberto. Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial – uma visão prática. Rio de Janeiro:
Alta Books Editora, 2016, p.177.
6
Luis Roberto Antonik leciona que o tripé da sustentabilidade envolve desenvolvimento sustentável, gestão
organizacional e responsabilidade social (Compliance, ética, responsabilidade social e empresarial – uma visão prática.
Rio de Janeiro: Alta Books Editora, 2016, p. 210).
7
“A função social da empresa e responsabilidade social corporativa são expressões equivalentes possuidoras do
mesmo conteúdo axiológico. Portanto, as atividades desempenhadas pelas companhias sob o rótulo da
responsabilidade social são manifestações dos deveres sociais impostos pela ordem econômica constitucional”.
Grifei. (MELLO, Maria Theresa Werneck. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, p. 146-165, 2016, disponível
em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista74/revista74_146.pdf>, acesso em: 30 maio
2018, p. 158).
8
BRINDACO, Bruna Victório. A função social da empresa. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/
exibir/7816/A-funcao-social-da-empresa>. Acesso em: 9 maio 2018.
9
CANDIL, Sérgio Luiz. Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica e
jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>, acesso em: 27 maio 2018, p. 108.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
239
No Brasil a ideia do balanço social começou a ser discutida na década de 60, com
a Carta de Princípios do Dirigente Cristão de Empresas (ADCE), publicada em 1965. No
entanto, os primeiros balanços sociais só vieram a ser divulgados a partir dos anos 80. O
assunto ganhou a atenção da mídia graças à atuação do sociólogo Herbert de Souza, o
Betinho, que promoveu campanhas que incentivavam as empresas a produzir e publicar,
voluntariamente, o balanço social. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em uma
tentativa de incentivar a divulgação do balanço social, recomendou sua publicação nos
Pareceres de Orientação nº 15/87 e nº 24/92, que tratam do relatório da administração e
da divulgação da demonstração do valor adicionado das empresas. Em dezembro de
2004 foi publicada a ABNT NBR 16001,10 norma brasileira que contempla os requisitos
em sistema de gestão de responsabilidade social. Atualmente, com o objetivo de dar
continuidade ao desenvolvimento dos documentos complementares à ABNTNBR 16001,
está sendo desenvolvida a ISO 26000 por pessoas de diversas nacionalidades, mas com a
liderança de dois países: o Brasil (com a coordenação da Associação Brasileira de Normas
Técnicas – ABNT) e a Suécia.11 A elaboração e divulgação dos balanços passaram a ser
obrigatórias para as companhias abertas após o surgimento da Lei nº 11.638/07.
O balanço social, em síntese, se constitui como um demonstrativo formal das
informações relacionadas à atuação da empresa na esfera social, humana e ambiental,
seu comprometimento e responsabilidade social.
Nesta perspectiva, o presente trabalho destaca o princípio da função da empresa
na jurisprudência do STJ e procura responder aos seguintes questionamentos: De
que forma é possível desenvolver uma atividade econômica lucrativa e possibilitar
maior desenvolvimento social sem prejudicar o ambiente? No Brasil é factível ter
um desempenho empresarial que vise o bem-estar social e ambiental, privilegiando
o desenvolvimento sustentável, diversidade da força de trabalho, estímulo ao
desenvolvimento cientifico, o tratamento especial à extração de recursos naturais e aos
valores éticos da sociedade? No âmbito de eventual processo de recuperação judicial
como o devedor, ao se enquadrar no benefício deste instituto, poderá visar mais à
coletividade do que à singularidade de cada detentor de crédito ou, ainda, a prevalência
dos seus próprios interesses e dos seus sócios?
Ao final, à guisa de conclusão, serão elaboradas as considerações finais.
10
Esta norma estabelece os requisitos mínimos relativos a um sistema da gestão da responsabilidade social,
permitindo à organização formular e implementar uma política e objetivos que levem em conta os requisitos
legais e outros, seus compromissos éticos e sua preocupação com a: promoção da cidadania; promoção do
desenvolvimento sustentável e transparência das suas atividades. Compêndio para a Sustentabilidade. BRASIL –
ABNT NBR 16001 ABNT. Disponível em: <http://www.institutoatkwhh.org.br/compendio/?q=node/110>. Acesso
em: 31 maio 2018.
11
BRASIL – ABNT NBR 16001 ABNT. Disponível em: <http://www.institutoatkwhh.org.br/compendio/?q=node/110>.
Acesso em: 31 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
240 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
princípios pelos quais isto deve acontecer, destacando-se: a propriedade e sua função
social (incisos II e III), livre concorrência (inciso IV), defesa do consumidor (inciso V),
defesa do meio ambiente (inciso VI), redução das desigualdades (inciso VII), busca pelo
emprego (inciso VIII) e tratamento favorecido para as pequenas empresas (inciso IX)
e coloca o Estado no papel de agente regulador e normativo da atividade econômica.
Estes princípios e objetivos norteiam o conceito uno de função social da empresa, mas
não devem jamais ser analisados de forma isolada, sendo sempre necessária a ponderação na
sua incidência sobre casos concretos para que seja extraída a regra que melhor conforma
a hipótese aos ditames da função social da empresa.
Nessa ordem de ideias, a função da empresa é racionalizar a produção de forma
a proporcionar preços mais competitivos e possibilitar o atendimento das necessidades
demandadas; todavia, isto deve ser realizado com respeito aos sistemas sociais, culturais
e ambientais da sociedade humana, que pode importar da vizinhança local até a Terra
como um todo, ou seja, deve labutar no desenvolvimento com sustentabilidade ao lado
do poder estatal.
Desta forma é salutar imaginar ser tarefa do Estado exigir das empresas a busca
da sustentabilidade, que significa o uso sustentável dos recursos com a compatibilização
dos sistemas protetivos dos recursos para as gerações futuras.12
Nesse sentido, Marlon Tomazette13 leciona que a Constituição garante a todos
os particulares a propriedade dos meios de produção e consequentemente o exercício
de atividades econômicas empresariais, mas, por outro lado, a própria Constituição
Federal impõe uma limitação a esse direito, asseverando que “a propriedade atenderá
a sua função social” (CF/88 – art. 5º, XXIII).
Assim, uma vez aceita a possibilidade do controle social do Estado, aliada à impo
sição de comportamentos, mediante disposições legais, coloca-se em questão a consti
tucionalidade destas imposições legais perante o princípio da liberdade de iniciativa,
compreendida como a liberdade de escolha de, se, e quando produzir,14 pois a orientação
do texto constitucional é aberta e não fornece parâmetros seguros, a que se possa ater o
intérprete, para a compreensão de até onde a função social da propriedade e os ditames
da justiça social podem colidir com a propriedade privada 15
Nessa perspectiva, conforme ensina Vera Helena de Mello Franco,16 é fundamental
ter prudência, pois se a função social traduz-se num dever de colaboração, nada mais
razoável, portanto, que a contribuição do Estado e dos particulares para a realização
daqueles objetivos seja estimulada mediante um sistema de incentivos, subvenções e
12
Cfr. NEVES, Edson Alvisi; SILVA, Marisa Machado; NEVES, Lorrayne Fialho. Função Social da Empresa. Revista
Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 1, p. 34, fev./mar. 2005: “Uma das
formas apontadas para a consecução da tarefa tem sido a adoção do princípio do poluidor-pagador em matéria
tributária, buscando a compensação pelos danos causados. Além da fonte de receita ambiental pode ser buscada
através de outras categorias como taxas de licenciamento ou contribuição de melhorias”.
13
TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito empresarial. Volume 3: falência e recuperação de empresas. São Paulo:
Atlas, 2014, p. 52.
14
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 134, mar. 2008.
15
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 134-135, mar. 2008.
16
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 135, mar. 2008.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
241
17
CANDIL, Sérgio Luiz, Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica e
jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Acesso em: 27 maio 2018, p. 70.
18
BASSOLI, Marlene Kempfer. Intervenção do Estado sobre o domínio econômico em prol da segurança humana.
In: FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; RIBEIRO, Maria de Fátima (Org.). Empreendimentos econômicos
e desenvolvimento sustentável. São Paulo: Arte e Ciência: Unimar, 2008. p. 130.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
242 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
19
COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Direito empresarial. Estudos e
pareceres. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 27-37. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São
Paulo: Malheiros Editores, 1998. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1985.
20
MELLO, Maria Theresa Werneck. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 74, p. 146-165, 2016, Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista74/revista74_146.pdf>, acesso em: 30 maio 2018,
p. 153-154.
21
CANDIL, Sérgio Luiz, Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade econômica e
jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Acesso em: 27 maio 2018, p. 67.
22
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 131, mar. 2008.
23
DUGUIT, Léon. In: Traité de Droit Constitutionnel, Paris, 1927, p. 447.
24
Nesse sentido: CAPEL FILHO. Hélio. A função social da empresa: adequação às exigências do mercado ou
filantropia? Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor, Porto Alegre, v. 1, fev./mar. 2005.
GOMES, Orlando. Novas dimensões de propriedade privada. São Paulo: RT 411, p. 10-14. PASSARELI, Francesco
Santoro. Proprietà privata e costituzione. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, anno XXVI, n. 7, p. 953-991
a p. 959-960, 1972, SOUZA, Marcelo Papaléo. A recuperação judicial e os direitos fundamentais trabalhistas. São Paulo:
Atlas: 2015. CANDIL, Sérgio Luiz. Responsabilidade social empresarial: diretrizes e parâmetros da racionalidade
econômica e jurídica. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp150324.pdf>. Acesso em: 27 maio 2018.
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre
Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de direito civil-empresarial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. SZTAJN, Rachel. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio
A. de Morais (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências: Lei 11.101/2005 – artigo por artigo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
243
O que se busca, pois, com a aplicação do princípio da função social da empresa não é exigir
do empresário certas prestações de cunho social positivas, cuja competência, a rigor, caiba ao
Estado, mas apenas que esse mesmo empresário em sua atuação observe e dê cumprimento aos
princípios estabelecidos pelo artigo 170 da Constituição Federal, que, em última análise, traduzem
os interesses da sociedade brasileira (grifei).25
Tem a empresa uma óbvia função social, nela sendo interessados os empregados, os
fornecedores, a comunidade em que atua e o próprio Estado, os fornecedores, a comunidade
em que atua e o próprio Estado, que dela retira contribuições fiscais e parafiscais.
Considerando-se principalmente três as modernas funções da empresa. A primeira refere-
se às condições de trabalho e às relações com seus empregados (...) a segunda volta-se ao
interesse dos consumidores (...) a terceira volta-se ao interesse dos concorrentes (...). E,
ainda mais atual é a preocupação com os interesses de preservação ecológica urbano e
ambiental da comunidade em que a empresa atua.
25
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. Alexandre Ferreira de
Assumpção Alves e Guilherme Calmon Nogueira da Gama (Coord.). In: Temas de direito civil-empresarial. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. p. 212.
26
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, v. 3. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 237
27
Nesse sentido: GRAU. Eros, verbete “Função social da propriedade” (Direito Econômico). In: Enciclopédia Saraiva
de Direito, vol. 39, São Paulo: Saraiva, 1977, p. 16 e ss. VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria geral do Direito
Econômico. São Paulo 1977, p. 27.
28
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre
Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de direito civil-empresarial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 206.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
244 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
(...) Não é plausível a dissolução parcial de sociedade anônima de capital fechado sem antes
aferir cada uma e todas as razões que militam em prol da preservação da empresa e da
cessação de sua função social, tendo em vista que os interesses sociais hão de prevalecer
sobre os de natureza pessoal de alguns dos acionistas.32
29
PEREZ, Viviane. Função Social da empresa. Uma proposta de sistematização do conceito. In: ALVES, Alexandre
Ferreira de Assumpção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (Coord.). Temas de direito civil-empresarial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008. p. 206.
30
SZTAJN, Rachel. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Morais (Coord.).
Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências: Lei 11.101/2005 – artigo por artigo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p. 223.
31
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 61278/SP; DJ 06 abr. 1998. p. 121.
32
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 247002 / RJ; DJ 25 mar. 2002. p. 272.
33
COMPARATO, Fábio. Konder. Função social da propriedade e dos bens de produção. In: Direito Empresarial –
estudos e pareceres, 1990, p. 34.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
245
poderão ser desempenhados com clareza e cobrados com efetividade quando os objetivos
sociais a serem atingidos forem impostos no quadro de uma planificação vinculante para
o Estado e diretiva da atividade econômica privada (grifei).34
Nessa linha, Giovani Iudica35 leciona que a utilidade social é tarefa do Poder
Público, que deve ditar o comportamento das empresas na sua realização, pois os inte
resses institucionais são variados e amplos, e muitas vezes entram em conflito – o interesse
em um meio ambiente equilibrado pode contrastar, por exemplo, com o interesse em
um mercado competitivo, uma vez que certas exigências tornam necessários maiores
investimentos, elevando os custos de entrada e afastando potenciais competidores.
Determinar o que eles exigem requer a identificação dos valores socialmente compar
tilhados relevantes para o caso, e, principalmente, sua relação recíproca, que varia no
tempo e no espaço. Não bastasse ser contingente, a solução para essa equação é ainda
uma resposta que, por definição, se encontra sempre dispersa entre os membros da
sociedade, dificultando sua cognição.36
Nesse sentido Bassoli e Candil37 ressaltam que o Estado, por meio de seus órgãos
Legislativo, Executivo e Judiciário, cada um nos limites de suas funções típicas, pode atuar
intervindo com os instrumentos que o Direito oferece e criar leis (intervenção normativa)
por meio dos (incentivos) fomentos, entre outros, que promovam o desenvolvimento
econômico, social e ambiental, dotando as empresas de responsabilidade subjetiva e
fazendo com que estas assumam sua responsabilidade social, incrementem a imagem
corporativa e deem sua parcela de contribuição para promover o desenvolvimento
sustentável.
No ordenamento jurídico brasileiro a função social da empresa encontra-se posi
tivada no parágrafo único do artigo 116 e no artigo 154, ambos da Lei nº 6.404/76 (Lei
das Sociedades Anônimas). O artigo 154 determina que “o administrador deve exercer
as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da
companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”.
Essa lei autoriza, ainda, o conselho de administração ou a diretoria a executarem “a
prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de
que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais” (art. 154, §4º).
Estes dispositivos permitem a utilização dos recursos da empresa para fins de aplicação
em ações sociais, quando autorizado pelos acionistas. Esta postura empresarial, ditada
pela Lei em comento, fez ressurgir um novo conceito ético nas empresas, o conceito de
ética aplicada.
34
COMPARATO, Fábio. Konder. Função social da propriedade e dos bens de produção. In: Direito Empresarial –
estudos e pareceres, 1990, p. 34.
35
IUDICA, Giovani. Autonomia dell’imprenditore privado e interventi pubblici. Padova: Cedam, 1980, p. 68-75.
36
VILLAR, Bruno Haack. A função social da empresa. Revista Jurídica Empresarial: órgão nacional de doutrina,
jurisprudência, legislação e crítica jurídica, ano 2, n. 9, p. 150, jul./ago. 2009.
37
BASSOLI, Marlene Kempfer; CANDIL, Sérgio Luiz. A intervenção do estado sobre o domínio econômico por meio
de fomentos condicionados aos critérios de certificações de sistema de gestão da responsabilidade social. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/sao_paulo/2177.pdf>. Acesso em: 27 maio
2018. p. 4044.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
246 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
38
Nesse sentido VIDIGAL, Geraldo de Camargo. Teoria geral do Direito Econômico. São Paulo, 1977, p. 27 e 40 leciona
que sendo a função social um poder-dever de “organizar, explorar e dispor”, contudo, quando reconhece no estudo
do direito de organização dos mercados “a disciplina dos agentes privados no exercício de atividades privadas,
inspiradas no interesse coletivo”, assinalando como essenciais à consecução dos objetivos do desenvolvimento
e do bem-estar a realização de objetivos meios, como “o pleno emprego, a escala de produção, as condições
para competir, a repartição de rendas sociais”, não parece afastar o empresário do dever de colaborar com esses
objetivos.
39
Art. 116 (...) Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar
o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da
empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente
respeitar e atender.
40
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo ano XXVIII, n. 96,
p. 132, mar. 2008.
41
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1408973 / SP; Ministro SIDNEI BENETI; DJe 13 jun. 2014.
42
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no CC 110250/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA
SEÇÃO, julgado em 08.09.2010, DJe 16 set. 2010.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
247
da função social da empresa, para que fosse evitada a penhora de bens essenciais aos meios de
produção. (...).43
(...) 3. O Tribunal de origem, soberano na apreciação das circunstâncias fáticas, deferiu
a penhora limitando-a à fração de 5% dos valores depositados na conta-corrente da
empresa executada, com vistas à função social da empresa e à continuidade de suas atividades,
levando em consideração sua precária situação financeira. (...).44
(...) 2. Dessarte, a opção entre fazer a execução recair sobre o que ao sócio couber no lucro
da sociedade ou na parte em que lhe tocar em dissolução orienta-se pelos princípios da
menor onerosidade e da função social da empresa. Enunciado 387 da IV Jornada de Direito
Civil do CJF. (...).45
43
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1686678 / SP; Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 19 dez. 2017.
44
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1659692/RS; Ministro HERMAN BENJAMIN; DJe 30 jun. 2017.
45
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1346712/RJ AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL;
Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; DJe 20 mar. 2017.
46
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 302906/SP. Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 01 dez. 2010.
47
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 302906/SP. Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 01 dez. 2010.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
248 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
4 Conclusão
A função social da empresa, como se observou no decorrer deste artigo, apresenta
status constitucional com fundamento na ordem econômica, na valorização do trabalho
humano, na livre-iniciativa. Sua finalidade é assegurar a todos existência digna nos
ditames da justiça social, em que a sociedade antecede os interesses daqueles que
desenvolvem a atividade empresarial. Sua normatividade provém do fato de que o
exercício de certos direitos tem impacto social, e não apenas privado.
Em síntese, a partir dos posicionamentos doutrinários trabalhados, a função
social da empresa pode ser enfocada como incentivadora do exercício da empresa
(primeira perspectiva) e condicionadora de tal exercício (segunda perspectiva). Na
primeira perspectiva temos várias decisões do STJ, em especial envolvendo processos
de recuperação judicial de empresas, em que a empresa, ao recolher os tributos devidos,
ao comercializar produtos e serviços que atendam ao clamor de diligência e respeito
ao meio ambiente, já está cumprindo sua função social.
No que tange ao segundo aspecto, a função social da empresa significaria corrigir
o desequilíbrio de poder no espaço da empresa e distribuir o resultado econômico
do relacionamento entre as partes para corrigir a desigualdade social, mas, diante da
ausência de normas jurídicas que fixem formas obrigatórias de cooperação, exercer ou não
uma função social acaba por ser mera opção da empresa, já que essa não prevê sanções.
Inegável que uma empresa que pratica a responsabilidade social em todos os
seus níveis de relacionamento: meio ambiente, stakeholders, investidores, clientes,
fornecedores e colaboradores, é muito valorizada, capaz de gerar um grande prestígio
e reconhecimento, com isso, aumentar seus lucros.
Assim, à guisa de conclusão, entendemos que:
a) É possível desenvolver uma atividade econômica lucrativa e possibilitar maior
desenvolvimento social sem prejudicar o ambiente, bastando que a sua atuação observe
e dê cumprimento ao que prevê o ordenamento jurídico vigente.
b) No Brasil é factível ter um desempenho empresarial que vise o bem-estar social
e ambiental, privilegiando o desenvolvimento sustentável, a diversidade da força de
trabalho, o estímulo ao desenvolvimento científico, o tratamento especial à extração de
recursos naturais e aos valores éticos da sociedade, bastando que, ao ser desenvolvida
a empresa, seus titulares cumpram com aos princípios estabelecidos no artigo 170 da
Constituição Federal.
48
FRANCO, Vera Helena de Mello. A função social da empresa. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXVIII, n. 96,
p. 132. mar. 2008.
ANA CLÁUDIA REDECKER
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
249
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no CC 110250/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA
SEÇÃO, julgado em 08.09.2010, DJe 16 set. 2010.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1686678 / SP; Ministro HERMAN BENJAMIN, DJe 19 dez. 2017.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1659692/RS; Ministro HERMAN BENJAMIN; DJe 30 jun. 2017.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
1 Introdução
A expressão não é nova, mas é inevitável repeti-la: vive-se hoje, sem sombra de
dúvidas, em uma sociedade de informação. Vê-se, nos mais diversos meios, uma ânsia
pelo direito de informar e de ser informado, sobre os mais variados aspectos, que vão
desde os fatos comuns do dia a dia até os chamados dados pessoais sensíveis.
Nesta inexorável realidade, a informação passou a ter um conteúdo econômico
expressivo, sendo comercializada por diversos agentes que se qualificam, muitas vezes
indevida e erroneamente, como “empresas de marketing e comunicação”, cujo objeto
principal de atividade é a obtenção de informações dos indivíduos para fazê-las circular
no mercado, a fim de que elas sejam utilizadas para os mais variados fins, como por
fornecedores de produtos e serviços, ou mesmo por candidatos em campanhas eleitorais,
para o atingimento, com maior precisão, de seu público-alvo, tal qual uma flecha na
mão de um hábil arqueiro.
Abrangidos por essas informações estão os dados1 pessoais de modo amplo, e
também aqueles chamados de sensíveis, que, por dizerem respeito a aspectos privados
do sujeito, como seu círculo de amizade, sua família, sua raça, suas crenças religiosas
e sua orientação sexual, são negociados como uma moeda rara, tendo, pois, um valor
ainda maior.
1
O conceito e a diferenciação entre informação e dados não são unívocos. Diversos especialistas já se debruçaram
sobre a questão e não há, verdadeiramente, um consenso. Muitos os tratam indistintamente como sinônimos,
outros veem os dados como pré-informacionais, e ainda aqueles que inserem os dados nas informações. Sobre o
tema, ver DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 151-155.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
252 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
2
Preveem, respectivamente, os incisos IV e IX do art. 5º da Constituição Federal que “é livre a manifestação do
pensamento, sendo vedado o anonimato” e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença”.
3
No mesmo sentido do texto, para parcela da doutrina a liberdade de informação é espécie do gênero liberdade
de expressão. Veja-se, a propósito, KOATZ, Rafael Lorenzo-Fernandez. As liberdades de expressão e de imprensa
na jurisprudência do STF. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos fundamentais no
supremo tribunal federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 398. Entendendo de modo diverso,
sustenta Edilsom Farias que a liberdade de expressão é gênero, sendo espécie a liberdade de comunicação, a
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
253
qual abrange a liberdade de informação e a liberdade de imprensa: “A opção pelos termos liberdade de expressão
e comunicação justifica-se, em primeiro lugar, pelo fato de o termo liberdade de expressão (gênero) substituir
os conceitos liberdade de manifestação de pensamento, liberdade de manifestação da opinião, liberdade de
manifestação da consciência (espécies), podendo-se, pois, empregar a frase liberdade de expressão para abranger
as expressões de pensamento, de opinião, de consciência, de ideia, de crença e de juízo de valor. A utilização
da forma liberdade de expressão e comunicação justifica-se, em segundo lugar, em razão de os termos liberdade de
comunicação representarem melhor do que as expressões liberdade de imprensa e liberdade de informação o atual e
complexo processo de comunicação de fatos ou notícias existentes na vida social”. FARIAS, Edilsom. Liberdade de
expressão e comunicação: teoria e proteção constitucional. São Paulo: RT, 2004. p. 53.
4
Daniel Sarmento enfatiza o fato de que a liberdade de expressão não pode ser vista apenas sob o caráter negativo,
como uma garantia contra atos restritivos ou proibitivos do seu exercício, mas também como um direito à
obtenção de instrumentos para o seu pleno exercício, assim enriquecendo o debate público. Salienta o professor
titular de Direito Constitucional da UERJ que o Estado deve adotar uma postura mais ativista “para a efetiva
pluralização do espaço público, ou, para usar o expressivo lema do movimento nacional das rádios comunitárias,
‘para dar voz a quem não tem voz’”. SARMENTO, Daniel. Liberdade de expressão, pluralismo e o papel promocional
do Estado. In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006. p. 265.
5
Conforme Haddad Jabur, o pensamento “consiste na atividade intelectual através da qual o homem exerce uma
faculdade de espírito, que lhe permite conceber, raciocinar ou interferir com o objeto eventual, exteriorizando
suas conclusões mediante uma ação”. JABUR, Gilberto Haddad. Liberdade de pensamento e direito à vida privada.
São Paulo: RT, 2000. p. 148.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
254 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
6
Na lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, as normas materialmente constitucionais “são
aquelas que tratam de temas considerados como de natureza essencialmente constitucional – notadamente a
organização do Estado e os direitos fundamentais –, não importa onde estejam positivadas” (SOUZA NETO,
Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2014. p. 54). Deste modo, é inequívoca a conclusão de que as disposições constitucionais que
asseguram a liberdade de expressão têm natureza constitucional, na medida em que dispõem sobre um direito
individual verdadeiramente fundamental.
7
BARROSO, Luís Roberto. De geração para geração. In: A vida, o direito e algumas ideias para o Brasil. Ribeirão Preto:
Migalhas, 2016. p. 24.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
255
8
Sobre o julgamento da ADPF nº 130, ver a íntegra do acórdão e, consequentemente, dos votos dos Ministros em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>. Acesso em: 28 maio 2018.
9
Em seu voto, assim afirmou o Ministro Carlos Ayres Britto, ao contrapor sua opinião àquelas de outros Ministros:
“Quem relativizou a liberdade de imprensa, no que foi seguido por alguns Ministros, dizendo que na
Constituição não há direitos absolutos; quem iniciou uma relativa divergência quanto ao meu ponto de vista
foi o Ministro Menezes Direito em seu belo voto. Mas eu persisti na minha ideia central de que, naquilo
que é elementarmente de imprensa, a liberdade é absoluta. Tão absoluta quanto outros direitos de índole
igualmente constitucionais, como, por exemplo: ‘ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante’ – direito absoluto; ‘liberdade de consciência’ – direito absoluto; ‘ninguém poderá ser compelido a
associar-se ou a permanecer associado’ – direito absoluto; o direito de o brasileiro nato não ser extraditado –
direito absoluto; o caráter direto e secreto do voto popular em eleições gerais – direito absoluto”. RE 511.961
/ SP. Relator Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. Julgamento: 17.06.2009. DJe 213, 13.11.2009. RTJ, v. 213-01,
p. 605. Inteiro teor disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605643>.
Acesso em: 28 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
256 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
10
Sobre a censura, assim se manifesta Daniel Sarmento: “Pode-se adotar uma definição estrita de censura, ou
preferir conceitos mais amplos. Em sentido estrito, censura é a restrição prévia à liberdade de expressão realizada
por autoridades administrativas, que resulta na vedação à veiculação de um determinado conteúdo. Este é o
significado mais tradicional do termo. Neste sentido, a censura envolve um controle preventivo das mensagens
cuja comunicação se pretende realizar. [...] Em sentido um pouco mais amplo, a censura abrange também as
restrições administrativas posteriores à manifestação ou à obra, que impliquem vedação à continuidade da sua
circulação. A censura posterior pode envolver, por exemplo, a apreensão de livros após o seu lançamento, ou a
proibição de exibição de filmes ou de encenação de peças teatrais depois da sua estreia”. SARMENTO, Daniel.
Comentários ao art. 5º, IX, da Constituição Federal. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira;
SARLET, Ingo Wolfang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/
Coimbra: Almedina, 2013. p. 275.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
257
11
Sobre esse aspecto, observa Daniel J. Solove que a privacidade pode ter inúmeros significados a partir dos
diversos interesses difusos envolvidos, o que dificulta o seu enquadramento jurídico e, muitas vezes, sua
adequada proteção. SOLOVE, Daniel J. A taxonomy of privacy. University of Pennsylvania law review, v. 154, n. 3,
p. 477-560, jan. 2006.
12
Como observa Anderson Schreiber, numa ótica tradicional, o direito à privacidade, assim como o direito de
propriedade, caracterizava-se pela existência de um dever correspondente de abstenção, que impunha aos
demais sujeitos da sociedade o dever de não a violar ou criar óbices ao seu exercício. SCHREIBER. Direitos da
personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 137.
13
Esta visão limitada do conteúdo e do alcance da privacidade se justificava pelo contexto em que o trabalho The
right to privacy foi escrito. Samuel Warren, um advogado nova-iorquino, era casado com uma famosa atriz da
época, que sofria intensa invasão de sua vida privada pela imprensa. Assim, juntamente com Louis Brandeis, que
posteriormente tornou-se juiz da Suprema Corte americana, escreveu o texto com a ideia inicial da privacidade
como o right to be let alone, reconhecendo às pessoas o direito de não serem importunadas em sua esfera íntima e
pessoal.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
258 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
14
Cf. SCHREIBER. Op. cit. p. 137-138; DONEDA. Op. cit. p. 196-197.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
259
livre da sua vontade, define as regras que irão reger a sua vida, a partir de seus valores,
interesses e desejos.15
É neste sentido que a autonomia privada se insere no conteúdo da dignidade da
pessoa humana, pois alguém só pode ter uma vida minimamente digna se for livre para
decidir e buscar, segundo os seus anseios, o seu ideal de vida. Daí por que se diz que a
autonomia é o conteúdo ético da dignidade.16
Deste modo, vê-se que o problema da renunciabilidade dos direitos da persona
lidade passa pela necessidade de um equilíbrio, ou ponderação, entre a tutela da
dignidade, através da fixação de limites à disposição dos direitos da personalidade, e a
promoção da dignidade pela liberdade do indivíduo de se autodeterminar, através da
possibilidade de renúncia do seu direito.
Embora polêmica e sensível, crê-se que a irrenunciabilidade, de modo absoluto,
viola este importante conteúdo da dignidade que é a autonomia privada. Nesta esteira,
pensa-se ser possível, embora também de forma relativa, a renúncia a direitos da
personalidade, por estar inequivocamente inserida, tal possibilidade, na liberdade do
indivíduo, como garantia fundamental.
A renúncia é o ato por meio do qual o titular de um direito, voluntariamente,
dele se despe, retirando-o da sua esfera jurídica ou patrimônio jurídico. Trata-se, pois,
de um ato unilateral de vontade, em que a pessoa abdica de um direito que titulariza,
não mais podendo exercê-lo.17 A renúncia, portanto, se consubstancia em uma conduta
que leva à extinção de um direito, ao menos sob a ótica do seu titular, que passa a não
mais titularizá-lo.
Por esta interpretação, a conclusão primeira é a de que a renúncia de direitos da
personalidade é inadmissível, pois acarretaria uma inequívoca violação à dignidade
humana, pois ao excluir, definitivamente, de sua esfera jurídica um direito da
personalidade, isso acarretaria, consequentemente, uma renúncia à própria dignidade.
Assim, só seriam admissíveis os chamados atos de limitação voluntária ao exercício dos
direitos da personalidade, que se diferem, propriamente, da renúncia.
Não obstante, tal conclusão não se coaduna com a correta intepretação do que
é a renúncia. Embora ela corresponda, de um modo geral, efetivamente à extinção
de um direito ou à sua exclusão da esfera jurídica do sujeito, é possível reconhecer
a possibilidade da prática de atos de renúncia que não se deem, necessariamente, de
modo geral, irrestrito e total. Isso significa que, apesar de a regra ser a de que a renúncia
importa no esvaziamento do direito em relação ao seu titular, é possível reconhecer,
excepcionalmente, o seu exercício de modo parcial, a fim de não excluir o direito do
patrimônio jurídico da pessoa.
15
BARROSO, Luís Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito contemporâneo e no
discurso transnacional. Revista dos Tribunais, v. 101, v. 919, p. 127-196, maio 2012, p. 167-168. Na síntese de
Daniel Sarmento, “A autonomia privada corresponde à faculdade do indivíduo de fazer e implementar escolhas
concernentes à sua própria vida”. SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e
metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 140.
16
CF. BARROSO. Op. cit., nota de rodapé 15. p. 167.
17
Em uma síntese, José Paulo Cavalcanti conceitua a renúncia como “o ato ou negócio jurídico dispositivo pelo
qual o titular de um direito extingue êsse direito”. CAVALCANTI, José Paulo. Da renúncia no direito civil. Rio de
Janeiro: Forense, 1958. p. 11-12.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
260 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
De antemão, para que isso ocorra, é preciso que o direito objeto da renúncia
seja juridicamente divisível ou cindível,18 e isso porque, se o conteúdo deste direito for
juridicamente indivisível – isto é, havendo a sua divisão, há a perda de sua função –, não
será admissível que aquela se dê de modo parcial. Então, o direito objeto da renúncia
deve admitir o seu fracionamento de maneira tal que o titular possa dispor de parcela
dele sem que haja o seu esvaziamento.
A questão que exsurge, então, é se os direitos da personalidade são cindíveis a
ponto de se admitir esta renúncia parcial. Examinando-se os casos dispostos na lei civil,
assim como os próprios exemplos apresentados pela doutrina, é possível perceber que é
possível essa cisão, e que muitos casos chamados de limitação voluntária ao exercício dos
direitos da personalidade correspondem, em verdade, a um ato de renúncia parcial, em
que o titular, através de sua autonomia, deixa de exercer o seu direito ou até mesmo
postular a sua tutela.19
Assim, embora a doutrina rechace a possibilidade de renúncia propriamente
dos direitos da personalidade, sob o argumento de que apenas é possível a limitação
voluntária ao seu exercício,20 em verdade, as inúmeras situações práticas demonstram
que esse ato limitativo corresponde a uma renúncia do próprio bem jurídico.
Com efeito, é plenamente possível admitir a renúncia de um direito da perso
nalidade, a qual, contudo, deve observar certos requisitos. Primeiro, por ser um ato
decorrente da autonomia privada, a renúncia só pode ocorrer por seu próprio titular.
Segundo, que essa manifestação do titular deve ser autônoma, isto é, deve decorrer de
um ato de vontade livre da pessoa. Terceiro, que este ato de renúncia deve se dar, regra
geral, no exclusivo interesse do titular do direito, uma vez que deve ser um instrumento
para o exercício e promoção da sua personalidade, de modo que a realização da dignidade
de um terceiro, por meio da renúncia a um direito da personalidade, só pode ocorrer
excepcionalmente – como nos casos de doações de órgãos, em vida, para salvar outra
pessoa. E quarto, a renúncia deve ser parcial e limitada, a fim de preservar a dignidade
da pessoa humana, uma vez que se a pessoa se despir, de modo definitivo e geral, de
algum dos seus atributos humanos, haverá uma inequívoca violação à dignidade.21
Conclui-se, pois, que é possível o ato de renúncia a um direito da personalidade,
fato este corriqueiro nas redes sociais, em que as pessoas inequivocamente renunciam a
parcela de seus direitos, especialmente a privacidade, ao expor-se pública e livremente
para toda e qualquer pessoa, especialmente quando o perfil publicado na rede é aberto,
isto é, de livre acesso a todos.22
18
Ibidem. p. 125.
19
Como observa Anderson Schreiber, ao tratar da limitação voluntária ao exercício dos direitos da personalidade,
“em uma série de situações não previstas em lei, mas socialmente admitidas, as pessoas desejam e aceitam
limitar, pontualmente, o exercício de algum atributo da própria personalidade. O escritor que concede uma
entrevista, revelando ao público detalhes da sua vida particular, deixa de exercer, naquela situação específica,
seu direito à privacidade. Tal limitação, derivada da vontade do titular, não deve a toda evidência ser reprimida
pela ordem jurídica, porque a vontade individual aí não se opõe, mas se dirige à realização da dignidade humana
daquele indivíduo”. SCHREIBER. Op. cit. p. 27.
20
LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 170.
21
Neste mesmo sentido, embora tratando dos atos de limitação voluntária ao exercício dos direitos da personalidade,
dispõe o Enunciado nº 4 da I Jornada de Direito Civil do CJF: “O exercício dos direitos da personalidade pode
sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”.
22
Neste particular, interessante é o julgado do Tribunal de Justiça do DF, cujo trecho da ementa é imprescindível
destacar: “4. É claro, portanto, que não pode o autor ingressar em uma rede social virtual, postar inúmeras
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
261
informações pessoais, convidar pessoas para seu grupo de amigos virtuais e pretender ser indenizado sob
alegação de que essa mesma rede teria violado sua privacidade e imagem por exposição não autorizada.
5. A perda da privacidade, e a exposição decorrente, é característica ínsita da conta criada pelo próprio autor.
De resto, não há linha sequer na inicial sobre eventual violação a atributo de sua personalidade por específica
informação postada no aplicativo e que teria violado, v. g., sua honra ou sua dignidade”. ACJ 20130111814676 –
TJDF. Relator Des. Fábio Eduardo Marques. 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do TJDF. Julgamento:
18.08.2015. DJe 04.09.2015, p. 251.
23
A gravidade da situação se reflete na consternação manifestada por Gustavo Tepedino, que diante desses fatos
alarmantes frisou a necessidade de uma urgente regulamentação da matéria, ante a banalização da circulação dos
dados pessoais, “oferecidos escancaradamente a fornecedores de serviços e produtos interessados em conhecer
características, hábitos, faixas de renda e as preferências de consumo de quem quer que seja. Daí a urgência em se
disciplinar a utilização dos dados pessoais no Brasil, onde o eloquente silêncio normativo contribui para graves
violações da privacidade”. TEPEDINO, Gustavo. Circulação de dados pessoais: novos contornos da privacidade.
Revista trimestral de direito civil, ano 11, v. 42, editorial, abr./jun. 2011.
24
Os provedores de conteúdo são tratados pela Portaria nº 148/1995 do Ministério das Telecomunicações como
provedores de serviço de informações, que têm como atividade prestar informações de interesse.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
262 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
angariam, diariamente, milhares de seguidores –, tem o seu lado cruel, que é a devassa
da privacidade.25
Ser um anônimo, nos tempos atuais, é um privilégio para poucos, pois o que
se vive, hoje, é uma sociedade de constante vigilância, tornando realidade aquilo que
George Orwell, em sua obra 1984, publicada originalmente no já longínquo ano de 1949,
narrava apenas como ficção.
As pessoas, com o avanço em progressão geométrica dos meios de comunicação,
passaram a estar em constante exposição, e isso traz inúmeras repercussões no mercado
e no exercício da democracia, na medida em que surgem profissionais liberais e pessoas
jurídicas especializadas na coleta de dados pessoais na internet e, particularmente, nas
redes sociais, a fim de traçar perfis dos indivíduos para a sua utilização nos mais variados
fins, inclusive eleitorais.
A coleta de dados, a partir de então, não se limita mais à mera atividade de se
obter dados para fazer publicidade comercial direcionada ao perfil de cada consumidor
em potencial, mas também para situações outras, como influenciar o processo eleitoral,
pois inúmeras informações são propagadas e direcionadas às pessoas com o fim de
induzi-las a, por exemplo, votar em um determinado candidato, a partir de seus gostos
e preferências pessoais captadas na rede.
A obtenção de dados pessoais, então, passou a ser um grande negócio, em que
muitas pessoas sequer sabem que estão inseridas, e, por essa razão, de modo descui
dado, acabam fornecendo inocentemente essas informações, apenas para não perderem
a oportunidade de acessar uma determinada rede social e interagir com o mundo. Isso
quando não utilizam as redes sociais com o único propósito de propagar, para o maior
número possível de pessoas, sua vida privada, a fim de obter mais seguidores e “amigos”,
pois a curiosidade alheia não tem limites, colaborando para o surgimento dessas novas
celebridades virtuais.
Diante dessa realidade inexorável, a dúvida que surge é a da possibilidade de se
limitar o exercício da liberdade de expressão, impedindo que terceiros, ou até mesmo
o próprio indivíduo, divulgue informações e dados pessoais, em especial aqueles tidos
por sensíveis, em prol da privacidade, sem que isso se caracterize como censura e,
portanto, como um ilícito.
No que toca, particularmente, aos dados pessoais sensíveis, estes dizem respeito,
segundo o GDPR – General Data Protection Regulation (que consiste no regulamento
25
O alerta também é feito por Anderson Schreiber, que sensivelmente captou o problema: “A internet é usualmente
vista como uma aliada da liberdade de expressão. Sua capacidade de ‘amplificar’ o alcance das manifestações
individuais é frequentemente apontada como um estímulo à livre circulação das ideias. As redes sociais, por
exemplo, estariam, no dizer de muitos teóricos da tecnologia, criando um novo espaço público, onde a livre
manifestação das opiniões tenderia a alcançar níveis quase arcadianos. A internet representaria, assim, uma
renovada esperança de realização da democracia, com a criação de um ambiente plenamente aberto às discussões
éticas, culturais, políticas e de outras tantas espécies. Uma visita rápida às redes sociais mais acessadas do mundo
(Facebook, Twitter etc.) revela uma realidade menos entusiasmante. Longe de um idílico fórum de debates, o que
se vê ali, com maior frequência, é um desfile de manifestações unilaterais que não parecem compor um efetivo
diálogo. As mensagens divulgadas em redes sociais acabam assumindo, muitas vezes, um caráter unilateral,
quase publicitário, de autoafirmação da identidade criada pelo emissor, que as fazem soar tão pouco abertas ao
debate quanto ‘as mensagens iconoclásticas coladas nos vidros dos carros’”. SCHREIBER, Anderson. Marco civil
da internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In:
DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito & internet III: marco civil
da internet (Lei n. 12.965/2014). t. II. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 278.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
263
europeu de proteção de dados), àqueles dados que revelam a origem racial ou étnica,
opiniões políticas, crenças religiosas, dados genéticos, dados biométricos de identificação
pessoal e aqueles relativos ao estado de saúde e orientação sexual de uma pessoa. São
eles, portanto, dados que se relacionam à vida íntima de um indivíduo, atingindo o
núcleo da privacidade, correspondente à intimidade.
Sobre eles, há que se ter uma maior atenção e cuidado, especialmente quando do
enfrentamento da questão da possibilidade de sua exposição, circulação e divulgação,
uma vez que, por dizerem respeito a informações íntimas da vida de uma pessoa, têm
maior repercussão sobre sua personalidade, justificando, assim, uma maior proteção.26
Disso tudo se infere que nessas situações há um verdadeiro embate entre a
liberdade de expressão e a privacidade, que acabam vivendo em constante conflito nessa
sociedade de informação, revelando-se como um verdadeiro duelo de titãs, pois ambos
ostentam a natureza de direitos individuais fundamentais expressamente consagrados
na Constituição Federal.
Em um dos lados há a garantia constitucional de manifestar opiniões, ideias
e pensamentos, bem como de informar e ser informado, especialmente quando se
tratar de um dado publicizado voluntariamente por uma pessoa. E do outro lado há
o direito fundamental de tutela da privacidade, que não se limita a impedir incursões
não autorizadas em sua vida privada, mas também confere, sob a sua ótica positiva, o
direito de controlar o fluxo das informações espontaneamente entregues ou publicadas.
Essa especial natureza, atribuída a ambos, traz um problema prático de difícil
solução quando da existência de um conflito, pois, se os dois se caracterizam como
direitos fundamentais, não há hierarquia entre eles, de modo que não é possível
solucionar este problema com a simples não incidência daquele direito de menor estatura,
quando confrontado com o de maior.27
Nesses casos ditos difíceis, a solução se dá pela já conhecida ferramenta da
ponderação, que consiste em uma técnica de decisão jurídica através da qual se faz um
balanceamento e um sopesamento entre os interesses conflitantes envolvidos, aplicando-
se com maior intensidade aquele que, no caso concreto, tiver maior peso e relevância,
sem que isso signifique uma invalidação do outro.
Na hipótese em discussão, o uso da ponderação passa necessariamente pelo
exame dos interesses em conflito para, em seguida, verificar qual deles tem, no caso
concreto, maior peso, assim prevalecendo na solução da controvérsia. Tendo em vista
que os direitos e garantias em discussão são a liberdade de expressão e a privacidade,
será necessário avaliar as informações e dados objeto da divulgação e os fins daquela
veiculação, a fim de verificar se deve prevalecer a liberdade de expressão ou a privacidade.
26
Neste sentido, afirma Anderson Schreiber, ao depositar esperança no legislador pátrio para regulamentação da
questão, que “Tais dados são tratados com maior rigor que outras informações pessoais, pelo risco mais intenso
que seu uso e divulgação oferecem à personalidade humana. A tendência vem sendo seguida em diversos países
e possivelmente acabará adotada também pela nossa legislação”. SCHREIBER. Op. cit., nota de rodapé 12. p. 161.
27
Na lição de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, nos casos de conflito entre direitos fundamentais,
“por força do princípio da unidade da Constituição (v. infra), o intérprete não pode simplesmente optar por uma
norma e desprezar outra em tese também aplicável, como se houvesse hierarquia entre elas”. BARROSO, Luís
Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos
princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 345
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
264 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
28
Ver REsp 1.334.097 / RJ. Relator Min. Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. DJe 10/09/2013. RSTJ, v. 232. p. 391.
Sobre o acórdão, vale transcrever trecho da ementa em que se ressalta a predileção pelos direitos da personalidade:
“8. Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da
vida privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220,
§ 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens
jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção constitucional para soluções
protetivas da pessoa humana, embora o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do
caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea com o fato de que, a despeito de a informação livre de
censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal
mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), a
dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um fundamento da República, uma lente pela qual
devem ser interpretados os demais direitos posteriormente reconhecidos. Exegese dos arts. 11, 20 e 21 do Código
Civil de 2002. Aplicação da filosofia kantiana, base da teoria da dignidade da pessoa humana, segundo a qual o
ser humano tem um valor em si que supera o das ‘coisas humanas’”.
29
Ver, exemplificativamente, SARMENTO, Daniel. Liberdades comunicativas e “direito ao esquecimento” na
ordem constitucional brasileira. In: SARMENTO, Daniel. Direitos, democracia e república: escritos de direito
constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 228-237; SCHREIBER, Simone. Liberdade de expressão:
justificativa teórica e a doutrina da posição preferencial no ordenamento jurídico. In: BARROSO, Luís Roberto
(Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 217-258; e BARROSO,
Luís Roberto. Liberdade de expressão versus direitos da personalidade. Colisão de direitos fundamentais e
critérios de ponderação. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. t. III. Rio de Janeiro: Renovar,
2005. p. 79-129.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
265
30
Sobre o tema ver SCHREIBER, Anderson. Reparação não pecuniária dos danos morais. In: MARTINS, Guilherme
Magalhães (Coord.). Temas de responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 9-16.
31
REsp 1.642.997/RJ. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. DJe 15.09.2017.
THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A PRIVACIDADE DOS DADOS PESSOAIS NAS REDES SOCIAIS
267
deu por força da redação do art. 19 da LMCI, segundo o qual “o provedor de aplicações
de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes
de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as
providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo
assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”.
O referido dispositivo positivou o sistema do judicial notice and takedown, segundo
o qual a obrigação do provedor só nasce se, notificado judicialmente acerca do conteúdo
lesivo veiculado por terceiro, não retirar a publicação. E isso porque, segundo se
entende, a fiscalização e o controle do conteúdo das postagens feitas por terceiros não
são atividades intrínsecas à atividade dos provedores de conteúdo, pelo que não podem
ser compelidos a retirar as postagens ou mesmo ser responsabilizados pelas publicações
feitas por terceiros. Ademais, eventual controle prévio sobre o conteúdo postado por
terceiro poder-se-ia caracterizar como censura e, portanto, violador da liberdade de
expressão.
No entanto, e como visto, a depender do conteúdo veiculado, a liberdade de
expressão não pode prevalecer sobre a privacidade, daí se inferindo a necessidade de
controle do conteúdo por parte dos provedores, que embora não possam atuar como
censores, devem assegurar o respeito e proteção à dignidade humana, de modo que
eventual fiscalização não se revelará arbitrária e, portanto, não se caracterizará, em
princípio, como censura, e sim como um instrumento para a tutela da personalidade.
Além disso, as próprias limitações impostas pelo legislador são de duvidosa
constitucionalidade. E isso porque elas parecem contrariar a garantia fundamental do
pleno ressarcimento dos danos, bem como direito de resposta proporcional ao agravo,
assegurados expressamente no art. 5º, V e X, da Constituição Federal. Condicionar a
responsabilização do provedor de conteúdo, cuja atividade é, exatamente, oferecer
conteúdo, à prévia notificação judicial parece exagerado e contrário aos fins visados
pela Lei Fundamental, pois impõe condições que dificultam a responsabilização dos
agentes e a plena reparação por danos causados.
Parece inequívoco que o controle e a fiscalização de conteúdos nitidamente lesivos
à dignidade humana estão inseridos no risco da atividade dos provedores de conteúdo,
pois, repise-se, sua atividade é o oferecimento e a disponibilização de conteúdo. Com
efeito, se o objeto da sua atividade é a oferta de conteúdo, seja próprio, seja de terceiro,
o gerenciamento deste está inequivocamente inserido em sua atividade.
Por essa razão, ao admitir que sejam postados conteúdos em suas plataformas,
portais e aplicativos, os provedores assumem o risco da causação de danos a terceiros,
razão pela qual a interpretação mais consentânea com o regime constitucional de
responsabilização por danos é aquela no sentido de que a responsabilidade dos
provedores de conteúdo, por publicações feitas por terceiros, é objetiva e direta.
5 Conclusão
O conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade é um dos mais sensíveis e
polêmicos nos tempos atuais. Defensores de ambos os lados batalham apaixonadamente
por suas convicções, visando defender e fazer prevalecer seus ideais. Muitos resumem
essa controvérsia a uma luta entre liberais e conservadores, em que os primeiros se situam
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
268 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
entre aqueles que prezam pela ampla liberdade de comunicação e expressão, enquanto
os outros estão inseridos naqueles que dão mais valor à privacidade.
Parece, contudo, que a questão não deve ser julgada desta forma. E isso porque
ambos os interesses têm assento constitucional e fundamento na tutela na dignidade
da pessoa humana. A liberdade de expressão exerce tal função ao promover o
desenvolvimento do indivíduo através do livre exercício da manifestação de pensamento,
ideias e opiniões, enquanto a privacidade diz respeito à tutela da personalidade através
da preservação da vida privada e íntima da pessoa.
E neste embate, em que pese existirem posições antagônicas, o objetivo é um só: a
proteção do indivíduo e a sua plena realização. Por isso, estabelecer verdades absolutas
é sempre perigoso e não se coaduna com um Estado Democrático de Direito, em que
poucas vezes há certos ou errados, mas sim opiniões, as quais só podem ser manifestadas
pela garantia da liberdade de expressão.
Por isso, entender pela prevalência de um ou de outro interesse decorre, na
verdade, das diversas formas de se ver a vida e de se interpretar o que é mais propício
à tutela da dignidade e da personalidade.
Nestas breves linhas entendeu-se pela prevalência da privacidade, especialmente
quando se tratar de dados pessoais do indivíduo, porque o perigo de lesão irreparável
ao sujeito parece maior do que o risco de se restringir a liberdade de comunicação.
A situação se agrava quando se está a falar das redes sociais, em que as informações
circulam livremente e quase sem controle, o que se deve, também, à jurisprudência
hoje firmada de uma responsabilidade apenas indireta e subjetiva dos provedores de
conteúdo.
Crê-se, pois, que se deve dar maior atenção à privacidade, pois uma vez invadida
a vida privada e íntima de uma pessoa, nada será capaz de ocultar o fato, pois os dados
correm em uma velocidade incontrolável, espalhando-se no ambiente livre e aberto da
internet.
No fim, como dito, trata-se de uma questão de escolha. E aqui se escolheu cuidar
da privacidade. Espera-se, sinceramente, que esta tenha sido a melhor decisão.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. A liberdade de expressão e a privacidade dos dados pessoais nas redes
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Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 251-269. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS
FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
ALESSANDRO HIRATA
1 Introdução
A sociedade atual é marcada intensamente pelo gerenciamento, armazenamento
e processamento de um volume de informação que cresce dia a dia. A quantidade
de dados armazenados aumenta de maneira exponencial, quatro vezes mais do que
o crescimento da economia global, e o aumento da capacidade dos computadores
em processar estas informações é nove vezes mais rápido.1 Nesse sentido, adota-se a
expressão cunhada por Manuel Castells,2 em uma das obras de sua trilogia,3 qual seja:
1
MAYER-SCHÖNBERGER, Victor; CUKIER, Kenneth. Big Data: a revolution that will transform how we live,
work, and think. Boston: Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company, 2013. p. 9.
2
The information age: economy, society and culture. Vol. I: The rise of the network society. Malden (MA): Blackwell
Publishers, 2000. p. 17: “To be sure, knowledge and information are critical elements in all modes of development,
since the process of production is always based on some level of knowledge and in the processing of information.
However, what is specific to the informational mode of development is the action of knowledge upon knowledge itself
as the main source of productivity (see chapter 2). Information processing is focused on improving the technology
of information processing as a source of productivity, in a virtuous circle of interaction between the knowledge
sources of technology and the application of technology to improve knowledge generation and information
processing: this is why, rejoining popular fashion, I call this new mode of development informational, constituted by
the emergence of a new technological paradigm based on information technology (see chapter 1)” (grifo nosso).
3
A trilogia é identificada por The Information Age: economy, society and culture. Sendo que o vol. I, idem ibidem
trata da sociedade em rede; o vol. II, do poder da identidade, vide ______. The power of Identity. 2. ed. Malden
(MA): Blackwell Publishers, 2007.; e o vol. III, sobre os problemas do capitalismo informacional, cf. ______. End
of Millennium. 2. ed. Malden (MA): Blackwell Publishers, 2006.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
272 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
4
The rise of the network..., op. cit., p. 18.
5
Fonte: Internet Live Stats (www.InternetLiveStats.com). Pesquisa feita pela International Telecommunication
Union (ITU), United Nations Population Division, Internet & Mobile Association of India (IAMAI), World Bank. Nesta
pesquisa, considerou-se como usuário conectado à internet o indivíduo de qualquer idade que acessa a rede em
casa através de qualquer dispositivo. Disponível em: <http://www.internetlivestats.com/internet-users/>, último
acesso em: 2 jun. 2018.
6
The rise of the network society…, op. cit., p. 147-148.
7
Disponível em: <https://tenyears-www.web.cern.ch/tenyears-www/>, acesso em: 2 jun. 2018.
8
Fala-se em estimação ao invés de dados estatísticos porque os números não foram coletados conforme uma
metodologia adequada em razão do uso embrionário. Cf. MURRAY, Andrew. Information Technology Law: the law
and society. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 33.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
273
9
Disponível em: <https://www.gfmag.com/global-data/non-economic-data/internet-users>, acesso em: 10 maio
2018.
10
MAYER-SCHÖNBERGER, Viktor; CUKIER, Kenneth. Big Data..., op. cit., p. 78.
11
TENE, Omer; POLONETSKY, Jules. Privacy in the age of big data: a time for big decisions. In: Stanford Law Review
Online, vol. 64, p. 63-69, 2 fev. 2012. p. 64.
12
MAYER-SCHÖNBERGER, Victor; CUKIER, Kenneth. Big Data..., op. cit., p. 02.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
274 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
13
LESSIG, Lawrence. Code version 2.0. New York: Basic Books, 2006. p. 47-48.
14
PARISIER, Eli. The Filter Bubble. Nova Iorque: Pinguin Books, 2011. p. 61-63.
15
Disponível em: <www.forbes.com/sites/kashmirhill/2012/02/16/how-target-figured-out-a-teen-girl-was-
pregnant-before-her-father-did/>, acesso em: 20 set. 2017.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
275
Não se sabe ao certo o autor dessa expressão, contudo geralmente ela é atribuída
Doug Laney em 2001,16 porém o autor restringia a análise aos 3 Vs (“Data Volume, Veocity
and Variety”). Dessa forma, a definição de Big Data proposta por Laney é: “Big data is
high volume, high velocity, and/or high variety information assets that require new
forms of processing to enable enhanced decision making, insight discovery and process
optimization”.
No entanto, atualmente, esta definição é criticada porque é por demasiado
restritiva. Portanto, Mark van Rijmenam17 acrescenta a Veracidade, Variabilidade,
Visualização e Valor (Veracity, Variability, Visualization and Value).
Constata-se a divergência na definição dessa expressão, às vezes utilizada em um
sentido mais restrito; por outras, mais amplo. Em todo caso, pode-se verificar que algo
comum nessas definições é o fato de se coletar uma grande quantidade de dados, com
a possibilidade de realizar um tratamento ou um processamento eficaz tendo em vista
os objetivos almejados, que podem ser desde um diagnóstico em tempo real de uma
epidemia à predição de uma gestação.
Nesse sentido, Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier18 ressalvam que
não há uma definição rigorosa de Big Data, mas a ideia surge do fato de que o volume
de informação é tamanho que um computador não tem capacidade de memória para
processar todos esses dados coletados. Dessa forma, os engenheiros tiveram que
desenvolver tecnologias para que os dados coletados em escala global pudessem ser
armazenados e processados. Os autores resumem:
One way to think about the issue today – and the way we do in the book – is this: big data
refers to things one can do at a large scale that cannot be done at a smaller one, to extract
new insights or create new forms of value, in ways that change markets, organizations,
the relationship between citizens and governments, and more.
16
Application Delivery Strategies. In: Meta Goup, 06 de fevereiro de 2001. Disponível em: <http://blogs.gartner.
com/doug-laney/files/2012/01/ad949-3D-Data-Management-Controlling-Data-Volume-Velocity-and-Variety.
pdf>, acesso em: 12 out. 2015.
17
Why The 3V’s Are Not Sufficient To Describe Big Data. Disponível em: <https://datafloq.com/read/3vs-sufficient-
describe-big-data/166>, acesso em: 12 out. 2015.
18
Op. cit., p. 06.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
276 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
19
Op. cit., p. 78.
20
Cf. Soden, Wolfram von, Einführung in die Altorientalistik. Darmstadt: 1985, e Edzard, Dietz-Otto, Sumerische
Rechtsurkunden des III. Jahrtausends aus der Zeit der III. Dynastie von Ur. München: 1968.
21
Cf. KUNKEL, Wolfgang; SCHERMAIER, Martin, Römische Rechtsgeschichte. Köln: 2001.
22
Being digital. New York: Vintage books, 1996. p. 11.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
277
profiling’ means any form of automated processing of personal data consisting of the
use of personal data to evaluate certain personal aspects relating to a natural person, in
particular to analyse or predict aspects concerning that natural person’s performance at
work, economic situation, health, personal preferences, interests, reliability, behaviour,
location or movements;
23
“(70) Where personal data are processed for the purposes of direct marketing, the data subject should have the
right to object to such processing, including profiling to the extent that it is related to such direct marketing,
whether with regard to initial or further processing, at any time and free of charge. That right should be explicitly
brought to the attention of the data subject and presented clearly and separately from any other information”.
Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:32016R0679&from=EN>,
último acesso em: 2 jun. 2018.
24
“Article 14 - Information to be provided where personal data have not been obtained from the data subject […]
2. In addition to the information referred to in paragraph 1, the controller shall provide the data subject with
the following information necessary to ensure fair and transparent processing in respect of the data subject: […]
the existence of automated decision-making, including profiling, referred to in Article 22(1) and (4) and, at least
in those cases, meaningful information about the logic involved, as well as the significance and the envisaged
consequences of such processing for the data subject”. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/
EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:32016R0679&from=EN>, último acesso em: 2 jun. 2018.
25
SKOUMA, Georgia; LÉONARD, Laura. Online behavioral tracking: what may change after the legal reform on
personal data protection. In: GUTWIRTH, Serge; LEENES, Ronald; DE HERT, Paul (Ed.). Reforming European data
protection law. Springer, 2015, p. 35-60.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
278 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
pois a internet é world wide, colocando em xeque inclusive sistemas de sólida tradição
em proteção de dados pessoais, como o caso europeu, buscando estabelecer regras para
garantir o enforcement da lei.26
26
ANTONIALLI, Dennys Marcelo. Watch your virtual steps: an empirical study of the use of online tracking
technologies in different regulatory regimes. In: Stanford Journal of Civil Rights & Civil Liberties, vol. III:2, p. 323-
368. p. 355.
27
NIGER, Sergio. Le nuove dimensioni dela privacy: dal diritto ala riservatezza ala protezione dei dati personali.
Napoli: CEDAM, 2006. p. 153.
28
La costruzione della sfera privata. In: Repertorio di fine secolo. Bari: Laterza, 1999. p. 209.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
279
29
OHM, Paul. Broken Promises of Privacy: Responding to the Surprising Failure of Anonymization. UCLA Law
Review, Vol. 57, p. 1701, 2010; U of Colorado Law Legal Studies Research Paper No. 9-12, 2009. Available at SSRN:
<http://ssrn.com/abstract=1450006>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
280 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
30
SALOM, Javier Aparicio. Estudio sobre la Protección de Datos. 4. ed. Cizur Menor (Navarra): Editorial Aranzadi –
Thomson Reuters, 2013. p. 299.
31
FINOCCHIARO, Giusella. Privacy e protezione dei dati personali: disciplina e strumenti operativi. Bologna:
Zanichelli, 2012. p. 239.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
281
5 Conclusões
Traçando alguns parâmetros para que tal ferramenta seja utilizada e desenvolvida,
respeitando a dignidade da pessoa humana, os direitos de personalidade destacando a
proteção dos dados pessoais.
32
OHM, Paul. Op. cit., p. 1.723.
33
Big data..., op. cit., p. 170.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
282 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Referências
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34
Big data..., op. cit., p. 170; 197.
ALESSANDRO HIRATA, CÍNTIA ROSA PEREIRA DE LIMA
A EFETIVA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS FACE ÀS TECNOLOGIAS DENOMINADAS BIG DATA
283
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
HIRATA, Alessandro; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A efetiva proteção dos dados pessoais face às
tecnologias denominadas Big Data. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 271-283. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO
MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
1 Introdução
A tensão entre os detentores de capital e os carentes de recursos, em outros termos,
de credores e devedores, pode ser posicionada desde, pelo menos, a revolução burguesa.
No Brasil, desde o Código Civil de 1916, de influência nitidamente burguesa e liberal, o
adimplemento das obrigações sempre foi disciplinado na legislação como fato jurídico de
interesse social. Isto porque para fins de preservação do instituto do crédito, imperioso
se apresenta o adimplemento das obrigações, elemento fundamental para que as demais
pessoas possam a ele ter acesso, inserindo-se, cada um por vez, à posição de devedor.
Com o advento do incremento tecnológico, da apropriação da noção de mercado e de
globalização, assim como com o advento da “necessidade” de consumo, o crédito se
tornou peça fundamental para o sustento deste mercado. Não obstante, fatores diversos,
cujas análises extrapolam os limites deste trabalho, acabaram por propiciar uma ruptura
nas bases aceitáveis de inadimplemento, ou seja, a quantidade de devedores que não
conseguiu adimplir os financiamentos obtidos para aquisição dos bens de consumo
aumentou significativamente, colocando em perigo a própria estabilidade do crédito.
Dentre os financiamentos mais inadimplidos se encontra o financiamento imo
biliário, panorama notório e que se pode visualizar em países como Estados Unidos,
Portugal, Espanha, entre outros, conforme amplamente noticiado. No Brasil, o sonho da
casa própria, bem elevado pela Constituição Federal de 1988 como direito socialmente
reconhecido pelo artigo 6º (na redação dada pela Emenda Constitucional nº 90/2015),
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
286 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
somado aos incentivos governamentais para a sua concretização, fez aumentar a oferta
de imóveis e de financiamentos para a sua aquisição. Com o intuito de fomentar o
mercado imobiliário e o seu financiamento, a figura da alienação fiduciária em garantia
veio a ser introduzida em substituição ao tradicional sistema de hipotecas. No entanto,
apesar de diversas alterações legislativas para fomentar o crédito imobiliário, certo
é que a demora na recuperação dos ativos, nas hipóteses cada vez mais frequentes
de inadimplemento por parte do mutuário, se torna um empecilho para o mercado
financeiro. Com efeito, diversos fatores socioeconômicos conduziram a um volume
considerável de inadimplentes também aqui na sociedade brasileira. Como dito, não
se trata de um problema exclusivamente brasileiro, mas mundial, para o qual se busca
uma solução, principalmente se considerarmos a falta de liquidez do mercado global.
Diante do impasse, para fins de preservação do sistema financeiro, eis que diversos
países sofreram com a crise mundial, algumas modificações foram introduzidas na
legislação fiduciária para dar maior celeridade à recuperação do crédito. Este é o caso
de Portugal, que, com o intuito de permitir maior celeridade na recuperação de capital
às empresas, extraiu de seu sistema normativo e jurídico a figura do pacto marciano.
No Brasil, igualmente, inserido em crise financeira e com o intuito de maior celeridade
às soluções jurídicas, vem o instituto até então adormecido ganhando corpo no cenário
jurídico.
O enfoque metodológico principal deste trabalho traduz-se em um estudo
descritivo e exploratório, que será desenvolvido com base na pesquisa bibliográfica e
jurisprudencial e utilizará o método indutivo. Não sendo pretensão do presente trabalho
expor uma teoria conclusiva nem esgotar o assunto, mas contribuir com reflexões quanto
à efetividade do tema proposto.
1
CHALUB, Melhim Nanem. Alienação Fiduciária: Negócio fiduciário. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 138.
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
287
2
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4: Direito das coisas. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 629.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
288 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
a sua aquisição ocorra pelo valor de mercado. Exige-se, pois, que se perpetre uma
avaliação por terceira pessoa do valor de mercado do bem dado em garantia, assim como
a devolução pelo credor ao devedor de eventual diferença entre o valor da avaliação e
o crédito a ser recebido.
No dizer de Flávia Daniela Vaz Teixeira, ao dissertar sobre o penhor no sistema
português, o pacto marciano consiste na convenção através da qual “em caso de
incumprimento do devedor, a propriedade do bem empenhado se transmite para o
credor, ficando este, no entanto, obrigado a restituir ao devedor o valor correspondente
à diferença entre o valor do bem empenhado e do crédito garantido”.3
Percebe-se a presença de alguns requisitos para o seu reconhecimento: a) a
convenção entre as partes; b) avaliação do bem através de um terceiro; c) devolução pelo
credor ao devedor de eventual diferença entre o valor da alienação e o valor do crédito.
Imperioso que as partes estabeleçam, no momento da celebração do negócio
que institua a garantia, a possibilidade de aquisição do bem ofertado pelo credor.
Inadmissível seria a imposição de uma das partes a outra deste ajuste. A cláusula
deve, pois, ser originada na vontade das partes cuja autonomia deve ser respeitada.
Inadimplido o contrato, o bem ofertado em garantia deve ser avaliado por terceira pessoa
e, em seguida, efetuado o pagamento pelo credor ao devedor da eventual diferença após
o débito do quantitativo do crédito.
O pacto marciano possui certa proximidade com o pacto comissório, o que pode
trazer certa complexidade interpretativa, como se verá a seguir.
O Código Civil, Lei nº 10.406/2002, através do artigo 1.428, veda a estipulação do
instituto jurídico denominado pacto comissório4 aos contratos de penhor, hipoteca e
anticrese, ao dizer no artigo 1.428: “É nula a cláusula que autoriza o credor pignoratício,
anticrético ou hipotecário a ficar com o objeto da garantia, se a dívida não for paga no
vencimento”. Constitui, dessa maneira, uma nulidade textual prevista expressamente
em lei, retirando a eficácia da cláusula comissória, seja ela estabelecida no próprio
pacto ou em documento apartado, sem, contudo, eivar o contrato todo de nulidade,
preservando-o (MELO, 2015, p. 445).
Entendendo-se, desta maneira, como a vedação da realização de negócio jurídico
que autorize o credor a apropriar-se da coisa dada em garantia, em caso de inadimplência
do devedor, sem antes proceder à execução judicial do débito garantido.
As ideias que justificam a proibição da inserção da cláusula comissória são várias,
contudo, podemos afirmar que, no geral, a ideia predominante é de que a proibição se
baseia na proteção ao devedor em face de eventuais extorsões por parte do credor, o
que Orlando Gomes (2000, p. 92) considera ao dizer que:
3
TEIXEIRA, Flávia Daniela Vaz. Penhor de direitos em garantia de créditos bancários. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Universidade do Minho, 2012. p. 19. Disponível em: <https://repositorium.sdum.uminho.pt/
bitstream/1822/22981/1/Fl%C3%A1via%20Daniela%20Vaz%20Teixeira.pdf>. Acesso em: 30 maio 2018.
4
Flavio Tartuce prefere utilizar o termo pacto comissório real com a finalidade de diferenciação do pacto
comissório contratual, que se consolida como uma cláusula resolutiva expressa se efetivando como um pacto
adjeto (2017, p. 578).
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
289
Clóvis Beviláqua afirma que a proibição está baseada em condutos morais, uma
vez que “a proteção do fraco em face da exploração gananciosa do argentário, que usa
desse meio para extorquir do devedor por preço irrisório, o bem que este lhe dá em
garantia do pagamento” (1956, p. 36).
Para Melo (2015, p. 446), a proibição se justifica tendo em vista que, caso a cláusula
produzisse efeito, estaria o ordenamento jurídico ratificando possíveis situações concretas
de enriquecimento sem causa, colocando o devedor à mercê de exploração usuária,
como afirma Pontes de Miranda (1971, vol. 20, p. 30). Tais concepções estão associadas
à lógica do valor do bem superar o valor da dívida, assumindo, portanto, o credor, valor
muito maior do que a dívida, locupletando-se, por assim dizer, às expensas do devedor.
Por outro lado, devemos destacar que o credor também é tutelado com a proibição
do pacto comissório. Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes
afirmam que a proibição da cláusula comissória aduz, sobremaneira, a proteção dos
credores no concurso creditório:
Registrada a crítica, a vedação ao pacto comissório tem ainda outra importante função:
assegurar, como já se adiantou, a proteção da par conditio creditorum, isto é, preservar
o princípio segundo o qual, no rateio entre credores, todos eles devem ser tratados de
maneira igual, não podendo o devedor privilegiar qualquer um deles em detrimento dos
demais. A vedação ao pacto comissório tutela tal princípio porque circunscreve o montante
do patrimônio do devedor sujeito ao privilégio creditório, em razão da garantia real, ao
efetivo quantum da dívida, permitindo, pois, que qualquer excedente apurado após a
alienação em juízo (ou fora dele) retorne ao patrimônio do devedor, em benefício dos
demais credores (2016, p. 15).
5
Significa o tratamento igualitário em relação a todos os credores de mesma categoria.
6
A lex comissoria foi proibida pelo Imperador Constantino, mediante um édito datado do ano 320 d.C. Tal édito
baseava-se, fundamentalmente, no fato de que através do pacto comissório ocultavam-se negócios usurários,
uma vez que o valor da coisa era, em regra, muito superior ao valor do crédito garantido. Na realidade, já naquele
tempo, a utilização da cláusula comissória era uma cláusula de opressão, uma vez que os credores serviam-se
do pacto comissório para se apropriarem dos bens dados em garantia a um preço bem inferior ao preço efetivo,
consolidando a figura do enriquecimento indevido, às custas da fragilidade do devedor.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
290 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Artigo 11º
Pacto comissório
1 - No penhor financeiro, o beneficiário da garantia pode proceder à sua execução, fazendo
seus os instrumentos financeiros dados em garantia:
a) Se tal tiver sido convencionado pelas partes;
b) Se houver acordo das partes relativamente à avaliação dos instrumentos financeiros.
2 - O beneficiário da garantia fica obrigado a restituir ao prestador o montante
correspondente à diferença entre o valor do objecto da garantia e o montante das obrigações
financeiras garantidas.
7
TEIXEIRA, Flávia Daniela Vaz. Idem. p. 21.
8
Artigo 2º Apropriação do bem empenhado no penhor mercantil 1 - É lícito às partes convencionar, no contrato de
penhor para garantia de obrigação comercial em que o prestador da garantia seja comerciante, que o credor
pignoratício, em caso de incumprimento, se aproprie da coisa ou do direito empenhado, pelo valor que resulte de
avaliação realizada após o vencimento da obrigação, devendo o modo e os critérios de avaliação ser estabelecidos
no contrato.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
292 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
vai dificultar a vida aos devedores?”9 sugerindo resistência a esta nova modalidade de
extinção das obrigações.
No Direito das Garantias, a vedação ao pacto comissório é, com efeito, o ponto de partida
sobre o qual deve ser construída a disciplina do pacto marciano, que não só deve ser
considerado válido e eficaz, como deve mesmo ter o seu uso estimulado. Afinal, se, de
um lado, constitui instrumento eficiente e justo de resguardar os interesses do credor sem
prejudicar o devedor e os credores quirografários, do outro, facilita a obtenção do crédito,
trazendo, assim, benefícios inegáveis também para o devedor, sem colidir com a essência
da garantia, nem com a sua função. Cuida-se, em verdade, de mecanismo de inegável
utilidade social, lícito e merecedor de tutela, que se adéqua às necessidades do mercado
e, sobretudo, à realidade brasileira (2107, p. 74).
9
Disponível em: <https://www.jornaldenegocios.pt/negocios-iniciativas/negocios-num-minuto/detalhe/o-que-e-
o-pacto-marciano-que-vai-dificultar-a-vida-aos-devedores>.
10
TARTUCE, Flávio. Direito das Coisas. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 852.
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
293
o contrato, pactuaria com o devedor que o crédito concedido seria garantido por
determinados bens, ficando ainda acordado que, em caso de descumprimento, tais bens
se transfeririam automaticamente para o patrimônio do credor, sem que este tivesse de
esperar pela sua execução e venda em hasta pública, ficando apenas obrigado a restituir,
se fosse o caso, o montante da diferença da dívida e o valor efetivo do bem dado em
garantia, como já explicado.
Com efeito o assunto não é novo, sua origem remonta ao Direito romano defendido
pelo jurisconsulto romano Marciano e confirmado em rescrito dos imperadores Severo
e Antonino; apesar de sua distante origem, sua aplicação tem suscitado consistentes
debates em terras brasileiras, de maneira especial, nos tempos atuais, quando o mercado
de sistema creditórios, implementados pela alienação fiduciária, tem atravessado forte
onda de inadimplemento.
A jurisprudência brasileira ainda não teve a oportunidade de examinar essa
questão com a devida atenção. O que se tem é um entendimento firmado no Tribunal
de Justiça de São Paulo que reconheceu a validade e licitude do pacto marciano com
fundamento na ideia de José Carlos Moreira Alves. Aliás, o eminente jurista, já na década
de 70, ao tratar da alienação fiduciária de bens móveis, sustentava a possibilidade de
figurar no contrato o pacto marciano:
Não é ilícito, porém, o denominado pacto Marciano (por ser defendido pelo jurisconsulto
romano Marciano e confirmado em rescrito pelos imperadores Severo e Antonio). Por esse
pacto, se o débito não for pago, poderá passar à propriedade plena do credor pelo seu
justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiro (MOREIRA
ALVES, 1987, p. 107).
Na realidade, o Tribunal de Justiça de São Paulo por duas vezes tratou sobre o
tema, em 2008 e 2009, respectivamente. Em 2008, o Tribunal de Justiça paulista admitiu
expressamente a inserção de pacto marciano em contrato de alienação fiduciária em
garantia, como se compreende na leitura de parte da decisão:
[...] Se, porém, no contrato de alienação fiduciária em garantia, as partes tiverem estipulado
um pacto Marciano (grifo próprio) – que, como acentuado na Primeira Parte, Cap. 3, nº 1,
é lícito –, não sol vida a dívida em seu vencimento, pode o credor tornar-se proprietário
pleno dela, pagando ao alienante o seu justo valor, que, ou já foi estimado por terceiro
antes de vencido o débito, ou o será posteriormente ao não pagamento. Outorgando o
pacto Marciano ao credor uma faculdade, não está este adstrito a tornar-se proprietário
pleno da coisa pelo valor estimado. Se quiser, poderá renunciá-la, não perdendo, por isso,
a faculdade de vender a coisa, judicial ou extrajudicialmente, a terceiro, como lhe permite
a qualidade de proprietário fiduciário. Poderá ocorrer, entretanto, que o credor, no contrato de
alienação fiduciária em garantia, ao invés de se haver reservado a faculdade de se tornar proprietário
pleno da coisa pelo justo valor, a isso se tenha obrigado (estipulação que igualmente é lícita)
(grifo próprio). Nessa hipótese, se ele não cumprir a obrigação e vender a coisa a terceiro,
valendo-se da faculdade que tem como proprietário fiduciário, não poderá o alienante
impedir essa venda. Mas, se o preço nela alcançado for inferior ao estimado pelo terceiro,
responderá o credor, em face do alienante, pela diferença, a título de perdas e danos pelo
não cumprimento da obrigação decorrente do pacto estipulado entre eles.11
11
TJSP, AC com Revisão 001.12.075800-2, 36ª CDP, Rel. Des. Romeu Ricupero, j. 31.1.2008.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
294 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
[...] O pacto comissório vedado pela ordem jurídica incide para coibir o abuso que se comete
contra o devedor fragilizado pela dominação de seu credor e que, por essa superioridade,
se apropria dos bens oferecidos em garantia do mútuo, caracterizando uma usurpação e
que ganha status de ilegalidade pela completa ausência de correspondência entre o valor
do bem e o valor da dívida. É importante que se conste não ser ilegal o que se chama de
pacto Marciano, valendo esclarecer o seu conteúdo nas palavras do Ministro JOSÉ CARLOS
MOREIRA ALVES (Da alienação fiduciária em garantia, Saraiva, 1973, p. 127): Não é ilícito,
porém, o denominado pacto Marciano (por ser defendido pelo jurisconsulto romano
Marciano e confirmado em rescrito dos imperadores Severo e Antonino). Por esse pacto,
se o débito não for pago, a coisa poderá passar à propriedade plena do credor pelo seu
justo valor, a ser estimado, antes ou depois de vencida a dívida, por terceiros.12
Não afronta o art. 1.428, do Código Civil, em relações paritárias, o pacto marciano, cláusula
contratual que autoriza que o credor se torne proprietário da coisa objeto da garantia
mediante aferição de seu justo valor e restituição do supérfluo (valor do bem em garantia
que excede o da dívida).
12
Apelação nº 992.06.0781229, 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, relator
Desembargador FRANCISCO CASCONI, j. 20.10.2009, acórdão publicado no Diário de Justiça eletrônico de
8.1.2010.
CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
295
4 Conclusão
Os contratos de alienação fiduciária em garantia foram estruturados para substituir
o modelo tradicional de hipotecas, que, pela sua estrutura, ensejava grande morosidade
na recuperação do capital em favor das instituições creditórias. Não obstante, mesmo
após algumas alterações legislativas, o modelo introduzido pela Lei nº 9.514/97 já está
sendo submetido a críticas muito por força de um mundo cada vez mais sedento por
rapidez na solução dos conflitos. A execução extrajudicial encetada pela Lei nº 9.514/97, na
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
296 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
qual o credor, após a consolidação da propriedade do imóvel em seu nome, precisa, por
imposição legal, levar o imóvel a leilão e somente após duas tentativas frustradas permite
ao devedor a obtenção da quitação, não está atendendo às necessidades do mercado.
Sob o viés do credor, em decorrência de um mercado imobiliário recessivo, com escassez
de crédito, em muitos casos não lhe é vantajoso levar o imóvel a leilão, principalmente
no prazo exíguo como o estabelecido na legislação. Sob o prisma do devedor, enquanto
não se efetua o segundo leilão, não recebe a quitação e, por consequência, se encontra
apartado do mercado de crédito.
Neste quadro, é sedutora a proposta de permitir a incidência do pacto marciano
em sede de contratos de financiamento imobiliário garantido por alienação fiduciária.
Poderiam as partes, desde logo, solucionarem a questão através de avaliação extrajudicial
do bem e o pagamento pelo credor ao devedor diretamente da diferença.
Não obstante, como concluído na VIII Jornada de Direito Civil, plenamente válida
seria a cláusula quando as partes se apresentam ostentando o mesmo poder decisório,
equilibradas em forças. O reconhecimento da cláusula marciana nada mais seria do que
a prevalência da autonomia da vontade das partes em sede negocial. Contudo, não se
pode esquecer que estas modalidades contratuais, não somente envolvem na maioria dos
casos relações de consumo, mas também decorrem de contratos de adesão. O atrativo
das soluções rápidas pode trazer em seu bojo o retorno a um modelo contratual liberal
de quase primazia do princípio pacta sunt servanda, mitigando-se princípios inerentes
às relações jurídicas consumeristas, objeto de conquista essencial para o fomento de
um mercado de consumo com a segurança que dele se espera, tendo como referencial
a dignidade da pessoa humana.
Diante deste cenário, o mundo jurídico se encontra diante de uma antinomia. De
um lado, o desejo de celeridade na solução para a retomada do crescimento e a recu
peração do crédito. Do outro lado, se apresenta o direito da vulnerabilidade e hipos
suficiência de quase a maioria daqueles que apresentam garantia imobiliária para a
aquisição de bens imóveis. O Direito português não trouxe solução à questão no decreto
analisado, posto que o estabeleceu para as hipóteses precisas de penhor mercantil em
que a parte que apresenta a garantia seja comerciante. Isto demonstra implicitamente o
reconhecimento da necessidade de paridade de armas entre as partes, de equilíbrio entre
ambos os contratantes. Não apresentou o Direito português tal solução como solução
para as demais situações jurídicas envolvendo pessoas comuns, não comerciantes.
A exigência de um contrato paritário para o reconhecimento do pacto marciano
vai ao encontro do que tentou esquadrinhar o Direito português.
Por fim, em sede de contratos de adesão envolvendo relações de consumo, o
reconhecimento da validade do pacto marciano é debate que está apenas se iniciando,
estando longe de se alcançar um consenso.
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CLÁUDIA FRANCO CORRÊA, CRISTINA GOMES CAMPOS DE SETA
OS VENTOS LUSITANOS NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA IMOBILIÁRIA: A INTERPRETAÇÃO DO PACTO MARCIANO EM TERRAS BRASILIS
297
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TEPEDINO, Gustavo. Direito das coisas. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.). Comentários ao Código
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
CORRÊA, Cláudia Franco; SETA, Cristina Gomes Campos de. Os ventos lusitanos na alienação fiduciária
imobiliária: a interpretação do pacto marciano em Terras Brasilis. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.).
Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 285-297. E-book.
ISBN 978-85-450-0591-9.
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS
DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO
A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
Introdução
“I always feel like somebody’s watching me / And I have no privacy”. Não poderia
ter sido outra a canção escolhida para introduzir este artigo. Lançada ao mundo em
1984 pelo cantor Rockwell e com os vocais de Michael Jackson, o hit emplacou como um
grande sucesso, retratando o medo de estar sendo vigiado a todo o tempo. Coincidência
ou não, o ano de sua estreia mundial coincide com o título de um dos livros mais citados
quando o assunto é privacidade, a obra clássica de George Orwell, 1984, que anunciava
os riscos do Grande Irmão, que, tornando real a preocupação de Rockwell, estava sempre
vigiando a todos.
“And I don’t feel safe anymore, oh what a mess / I wonder who’s watching me
now / Who? (…) Can I have my privacy?”. A canção norte-americana traz em si mesma
diversos questionamentos atuais no campo da privacidade, como o fato de que as pessoas
não se sentem mais seguras e não sabem quem as vigia. E, tal como o eu-lírico da canção
de Rockwell, que diz ser apenas um homem comum, com uma vida comum, que quer
ser deixado em paz em sua casa comum,1 os indivíduos de hoje em dia vivenciam o
mesmo drama.
1
“I’m just an average man with an average life / I work from 9 to 5, hey hell, I pay the price / All I want is to be left
alone, in my average home / But why do I always feel /Like I’m in the Twilight Zone?”
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
300 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
O próprio conceito de privacidade como o direito a ser deixado em paz (the right
to be left alone), invocado por Rockwell, já não representa mais a faceta atual deste direito,
que sofreu intensa transformação com a digitalização do mundo. A Era do WhatsApp
é também a Era da Cambridge Analytica (e do vazamento de dados de 87 milhões de
pessoas)2 e a Era das Desculpas de Zuckerberg:3 o momento em que o mundo toma
conhecimento que está sendo vigiado a todo instante e que seus dados pessoais estão
sendo objeto de mercancia.
E que vigilância é essa que alterou os contornos do direito à privacidade? Não é
mais possível se falar em vigilância, tal como no passado. O conceito hoje adquire nova
abordagem com o chamado paradigma da surveillance, que será objeto do primeiro item
deste trabalho.
E, como forma de reação a essa vigilância difusa instalada na ordem mundial,
cercada por ameaças de espionagem, o desenvolvimento tecnológico caminha para meios
mais seguros de comunicação, que têm se baseado, sobretudo, no aperfeiçoamento das
técnicas de criptografia de dados e mensagens.
É neste cenário que surge o principal questionamento que será o ponto central
desta análise: será lícita, como forma de reação a essa ameaça de vigilância, a construção
de sistemas criptográficos absolutamente inquebráveis pelas próprias detentoras da
tecnologia, mesmo quando as quebras forem solicitadas regularmente por autoridade
judiciária estatal no seio de investigações criminais?
Antes disso, contudo, necessário indagar: existiria um direito à criptografia? Em
sendo positiva a resposta, haveria algum limite? Estas parecem ser as mais desafiadoras
questões sobre o tema, que vem sendo muito debatido, inclusive no âmbito do Supremo
Tribunal Federal, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de
número 403. Questiona-se, ainda, se existiria um direito autônomo à criptografia ou
se este estaria albergado no seio de outros direitos, como aqueles constitucionalmente
tutelados que protegem a privacidade e o conteúdo das comunicações privadas.
Para a resolução destas indagações, dúvidas não há de que se deve proceder a
uma análise funcional do instituto, de forma a perquirir o seu merecimento de tutela
diante do seu cotejo com os demais direitos e valores do sistema civil-constitucional,
que possui a dignidade da pessoa humana como vértice central e eixo interpretativo.
Somente assim será possível averiguar se a tutela das comunicações privadas
protegidas pela criptografia deve ser levada às últimas consequências, a ponto de se
ter um direito fundamental humano, como se tem defendido no âmbito da UNESCO
e em relatórios internacionais, garantidor de outros valores, como a liberdade de
imprensa, pensamento e comunicação. Ademais, também é preciso investigar se seria
lícita por parte das sociedades empresárias de tecnologia a recusa ao fornecimento de
dados e conteúdos das comunicações, em contrariedade a ordens judiciais emanadas de
autoridades competentes, tendo-se em vista que elas se instalam no território nacional,
lucram com a exploração de suas atividades econômicas, mas se recusam a cumprir
as leis nacionais, sob a alegação da impossibilidade técnica de quebra da criptografia.
2
Cambridge Analytica anuncia fim de suas operações. G1, 02 maio 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/
economia/noticia/cambridge-analytica-anuncia-fim-de-suas-operacoes.ghtml>. Acesso em: 01 jun. 2018.
3
Zuckerberg pede desculpas e assume erros em depoimento ao Congresso dos EUA. UOL, 10 abr. 2018. Disponível
em: <https://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/04/10/mark-zuckerberg-depoimento-ao-congresso-
dos-eua.htm>. Acesso em: 01 jun. 2018.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
301
4
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 12 apud KONDER, Carlos Nelson;
SCHREIBER, Anderson. Uma agenda para o Direito Civil-Constitucional. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 10,
out./dez. 2016.
5
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 12 apud KONDER, Carlos Nelson;
SCHREIBER, Anderson. Uma agenda para o Direito Civil-Constitucional. Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 10,
out./dez. 2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
302 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
propriedade, para ser tutelada, tem que cumprir uma função constitucional, isto é, um
objetivo que atenda e privilegie valores instituídos pela axiologia da Carta.6
A pessoa deve prevalecer sobre qualquer valor patrimonial. Os institutos patri
moniais não são imutáveis: é preciso adequá-los aos novos valores, na passagem de
uma jurisprudência civil dos interesses patrimoniais a uma mais atenta aos valores
existenciais, que não servem só de limite ou finalidade: eles incidem, pois, sobre a função
do instituto e sobre sua natureza. Assim, permite-se reconstruir o sistema (e o próprio
Direito Civil) segundo o valor da pessoa, não aumentando ou reduzindo a tutela das
situações patrimoniais, mas com uma tutela qualitativamente diversa.7
Faz-se necessário, portanto, averiguar sempre in concreto, a partir dessa tutela
qualitativamente diversa, o merecimento de tutela de cada uma das situações jurídicas
e dos direitos, uma vez que nem mesmo as situações ditas reais são merecedoras de
proteção simplesmente por atenderem aos comandos de forma e taxatividade: é preciso,
pois, qualificar cada direito “à luz de todo o ordenamento, com vistas a verificar se
merece tutela jurídica”.8
Pietro Perlingieri, neste sentido, aponta que a autonomia privada somente pode
ser determinada em concreto à luz do ordenamento em que se insere. Dessa maneira,
entende o autor italiano que a autonomia privada:
não é, portanto, um valor em si. Revela-se indispensável o reexame da noção à luz do juízo
de valor (giudizio di meritevolezza) de cada ato realizado, de modo tal que se possa deduzir
se estes, individualmente considerados, podem ser regulados, pelo menos em parte, pela
autonomia privada.
6
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: Temas de
Direito Civil, t. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 1.
7
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 33-34.
8
OLIVA, Milena Donato; RENTERIA, Pablo. Autonomia privada e direitos reais: redimensionamento dos
princípios da taxatividade e da tipicidade no direito brasileiro. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 2, p. 3-4,
2016. Disponível em: <http://civilistica.com/autonomia-privada-e-direitosreais/>.
9
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: Temas de
Direito Civil, t. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 8-11.
10
TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: Temas de
Direito Civil, t. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 9.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
303
11
TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do Direito Civil entre o sujeito e a pessoa. In: TEPEDINO,
Gustavo; Teixeira, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa:
estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
12
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 71-72.
13
TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do Direito Civil entre o sujeito e a pessoa. In: TEPEDINO,
Gustavo; Teixeira, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa:
estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
304 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
14
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 73.
15
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 14.
16
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15.
17
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 133.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
305
se darem conta de que eles podem ser usados para a construção de perfis úteis ao
monitoramento e, por que não dizer, ao controle das pessoas e das massas. É a ideia
do big data.
E a internet hoje, sobretudo através dos smartphones, é a maior e melhor forma de
se identificar este movimento. Um exemplo colhido em recente notícia é esclarecedor:
a partir do mês de outubro de 2017 passou a ser possível que usuários do aplicativo de
mensagens WhatsApp compartilhassem a sua localização em tempo real, enviando-a para
seus contatos através de um sistema de criptografia de ponta-a-ponta.18 Isso evidencia
que cada passo de cada indivíduo está sendo constantemente monitorado por essas
sociedades empresárias de tecnologia.
Outros tantos aplicativos conseguem desempenhar a mesma função de
armazenamento da localização de seus usuários, com a diferença de que não há
compartilhamento expresso: os dados são coletados como parte necessária da adesão
aos termos do aplicativo. Assim, caso o usuário queira usá-lo, deve concordar que seus
dados de localização sejam coletados. A grande questão reside em saber o que será feito
desses dados, assim como a licitude na sua obtenção, eis que se poderia sugerir que,
nestes casos, o usuário estaria sujeito a um contrato de adesão e, portanto, incapacitado
de discutir seus termos. Por isso, ele acaba com a sua possibilidade de escolha reduzida:
ou aceita os termos e cede os dados relativos à sua localização ou fica sem utilizar o
aplicativo e deixa de se inserir no meio virtual.
Da simples análise desse problema, o que poderia ter sido feito também com
relação ao armazenamento dos dados relativos ao acesso a sítios na internet e ao padrão
de curtidas e compartilhamentos numa determinada rede social como o Facebook torna
claro que as pessoas estão sendo vigiadas, ainda que não percebam.
O objeto restrito deste trabalho não permite uma análise mais detida sobre as
implicações e as questões éticas envolvendo este fenômeno, como a sua relação com um
regime totalitário, mas dele se podem extrair conclusões pertinentes ao que se propõe
neste estudo. Dentre elas, está o fato de que é inegável o estado de vigilância em que se
vive atualmente, o que leva a uma invasão da esfera de privacidade e intimidade que
acaba não sendo percebida pelas pessoas, dada a sua sutileza. Vez ou outra, entretanto,
as pessoas percebem que estão sendo vigiadas, a exemplo da recente descoberta de que
alguns celulares da Apple conseguem identificar e categorizar se as fotos tiradas por
seus usuários foram feitas por pessoas nuas, o que gerou questionamentos: será que a
Apple armazena essas fotos?19
Tal como em 1984, em que as personagens eram observadas pelo Grande Irmão
em todos os espaços da vida, a sociedade atual passa a ter dificuldades em encontrar
espaços imunes à vigilância. Nos grandes centros urbanos, avolumam-se as câmeras de
monitoramento, que captam a movimentação das pessoas e, em muitos casos, conseguem
até fazer a identificação facial do indivíduo. E até mesmo fora das grandes cidades é
possível monitorar as pessoas através de imagens de satélites, como é exemplificado
pelo programa de computador Google Earth.
18
WhatsApp vai ganhar compartilhamento de localização em tempo real. G1, 17 out. 2017. Disponível em: <https://
g1.globo.com/tecnologia/noticia/whatsapp-vai-permitir-compartilhamento-de-localizacao-em-tempo-real.
ghtml>. Acesso em: 22 out. 2017.
19
TRACY, Phillip. People just realized this iOS 11 feature scans your iPhone for cleavage pics. The Daily Dot. 30 out.
2017. Disponível em: <https://www.dailydot.com/debug/ios-11-brasserie/>. Acesso em: 04 nov. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
306 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Fala-se hoje ainda numa vigilância dentro da própria casa do indivíduo, o que
seria uma intromissão total e uma completa devassa ao direito à privacidade, como se
alertou em recente reportagem, segundo a qual haveria uma falha de segurança nos
celulares iOS, que permitiria que as câmeras gravassem vídeos e fotografassem o usuário
sem que ele saiba.20
E não são só os passos e as casas que são vigiadas: as comunicações também
o são. E essa constatação é o foco deste trabalho, que discute a licitude dos sistemas
criptográficos.
Nessa ordem de ideias, pode-se afirmar que a própria forma de se comunicar
foi alterada. As cartas em papel hoje possuem utilização diminuta, predominando a
comunicação através de e-mails, o que é estimulado até mesmo pelo vigente Código
de Processo Civil, que permite a comunicação processual pela via eletrônica. E as
comunicações informais também mudaram seu veículo: até as ligações telefônicas
hoje diminuíram, em detrimento das comunicações escritas através de aplicativos de
mensagens como o WhatsApp, Telegram e Messenger, os quais também permitem
conversas por áudio e vídeo.
E muitas dúvidas decorrem de tudo isso: qual o nível de segurança dessas
comunicações? Será que a criptografia realmente protege o usuário e o torna imune a
invasões ao conteúdo de suas conversas? Será lícito ter imunidade total?
Fala-se hoje num homem de vidro, o que significaria que os “indivíduos são cada
vez mais transparentes e que os órgãos públicos estão mais e mais fora de qualquer
controle, político e legal. Isto implica uma nova distribuição de poderes políticos e
sociais”.21
Anderson Schreiber22 traz importante contributo à discussão a partir da separação
metodológica que faz entre as dimensões procedimental e substancial do direito à
privacidade. A dimensão procedimental diria respeito, em primeiro lugar, à coleta da
informação pessoal. Assim, a coleta clandestina ou desautorizada de informações pessoais
deve ser rechaçada. Neste caso, tal como no direito de imagem, surge a necessidade de
autorização do titular como requisito essencial para obtenção de seus dados pessoais,
sendo dispensado o seu consentimento somente nos casos em que da ponderação entre
a privacidade e outros interesses constitucionalmente tutelados se justifique a dispensa
de autorização, ressaltando-se que tal exame deverá ser sempre feito em concreto.
Todavia, a dimensão procedimental não se restringe somente ao problema da
coleta não autorizada de dados pessoais. E, com o constante fluxo de dados trazido pela
contemporaneidade, faz-se preciso construir uma tutela mais abrangente da privacidade,
que não se encerre apenas no controle da coleta de dados pessoais, mas que abranja
também todas as fases do processo informativo, de maneira a impor uma verificação
séria de autenticidade dos dados obtidos, a segurança de seu armazenamento, verificação
periódica de sua atualidade, a limitação de sua utilização à finalidade específica para a
20
Falha de segurança no iOS permite que câmeras do iPhone gravem e fotografem sem que usuário saiba. O Globo, Rio
de Janeiro: 26 out. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/falha-de-seguranca-no-ios-permite-
que-cameras-do-iphone-gravem-fotografem-sem-que-usuario-saiba-21996063?utm_source=Facebook&utm_
medium=Social&utm_campaign=O%20Globo>. Acesso em: 27 out. 2017.
21
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15.
22
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 138-140.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
307
Embora se possam apontar alguns aspectos para estabelecer a origem dessa vigi
lância, como, por exemplo, a guerra ao terror e a necessidade de segurança, fato é que
a vigilância é uma realidade. E as pessoas, em muitos casos, acabam preferindo ceder
parte de sua privacidade em troca de segurança. Não dimensionam, contudo, o quanto
esse fornecimento voluntário de dados, a instituições públicas e privadas, associado ao
que já se capta involuntariamente, será capaz de levar a uma rede de monitoramento
e controle tão grande como a de 1984, apta a manipular as mentes e as ideologias das
massas.
E inserida na dimensão substancial do direito à privacidade, tal como formulado
por Anderson Schreiber,25 reside a possibilidade de o cidadão controlar a utilização desses
dados por pessoas e instituições que passam a ter um poder também de controle sobre
elas. Sobre este controle feito pelos indivíduos, Rodotà faz precisa indagação:
(...) qual tipo de controle? É claro que, na perspectiva indicada, a possibilidade de controlar
não serve apenas para assegurar ao cidadão a exatidão e o uso correto das informações a
ele diretamente relacionadas, mas pode se tornar um instrumento de equilíbrio na nova
distribuição de poder que vai se delineando. Este último resultado, no entanto, seria
evidentemente irrealizável se a perspectiva do controle permanecesse somente individual,
resolvendo-se completamente na atribuição, a cidadãos isolados, do direito de acesso aos
bancos de dados públicos e privados.
23
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 139 .
24
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 28.
25
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 138-140.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
308 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
26
RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância – A Privacidade Hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 37.
27
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do MARCO CIVIL da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 419.
28
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 421.
29
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 423.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
309
30
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 424.
31
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 425.
32
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 426.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
310 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Tem-se, portanto, como conclusões parciais, até aqui, a ideia de que a privacidade
apresenta hoje um contorno diametralmente oposto àquele formulado na sua origem,
quando se baseava na proteção de uma esfera individual insuscetível de vigilância, na
matriz liberal de um direito de ser deixado em paz. Passa agora a se ver inserida num
mundo globalizado, conectado e sob constante vigilância, por fundamentos diversos,
como a necessidade de segurança por parte dos Estados, especialmente com a guerra
ao terror pós 11 de setembro, ou por fins comerciais de monitoramento de preferências
dos consumidores para ampliação do mercado.
Fato é que, inserido num contexto distinto, o direito à privacidade apresenta novos
desenhos, que trazem uma mudança de foco para aspectos como os dados pessoais: sua
obtenção, armazenamento, utilização e controle. E, nesse cenário de temor extremo em
face da vigilância, seja ela difusa ou concentrada, surgem novos mecanismos de tutela
da privacidade. Dentre eles, a criptografia.
33
SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar
Editora Associada Ltda., 2016, p. 140.
34
Linha do tempo. Bloqueios.info. Disponível em: <http://bloqueios.info/pt/linha-do-tempo/>. Acesso em: 03 nov. 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
311
35
Criptografia de ponta a ponta é inviolável, afirma cofundador do WhatsApp, STF, 02 jun. 2017. Disponível em
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=345383>. Acesso em: 31 out. 2017.
36
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
312 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
37
LIMA, Caio César Carvalho. Criptografia e (ou?) interceptação das comunicações: considerações sobre o assunto
em discussão na ADPF 403/STF, JOTA, 31 maio 2017, Disponível em: <https://jota.info/colunas/direito-digital/
criptografia-e-ou-interceptacao-das-comunicacoes-31052017>. Acesso em: 31 out. 2017.
38
TRENHOLM, Richard. British prime minister targets encrypted messaging after Paris attacks: asking whether
terrorists should be given safe spaces to talk, David Cameron pledges to tighten laws that could challenge
WhatsApp and other messaging apps, CNET, 12 jan. 2015. Disponível em: <https://www.cnet.com/news/david-
cameron-pledges-to-target-encrypted-messaging-after-paris-attacks/>. Acesso em: 31 out. 2017.
39
Encryption: a matter of human rights. Amnesty International, 22 mar. 2016, Relatório disponível em: <https://
www.amnestyusa.org/reports/encryption-a-matter-of-human-rights/>. Acesso em: 31 out. 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
313
Para além da proteção das comunicações, Danilo Doneda aponta que essa
tecnologia também:
40
SCHULZ, Wolfgang; HOBOKEN, Joris van. Human Rights and Encryption., França, 2016, p. 60. Disponível em:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0024/002465/246527E.pdf>. Acesso em: 31 out. 2017. No original: “There
needs to be recognition of cryptographic methods as an essential element of the media and communications
landscape. What ultimately matters, from a human rights perspective, is that cryptographic methods empower
individuals in their enjoyment of privacy and freedom of expression, as they allow for the protection of human-
facing properties of information, communication and computing. These properties include the confidentiality,
privacy, authenticity, availability, integrity and anonymity of information and communication. The protection
of encryption in relevant law and policy instruments from a human rights perspective is particularly important
because encryption makes it possible to protect information and communication on the otherwise insecure
communications platform that is the Internet. Initially, the Internet was itself not designed to provide for
the security of information and communications generally. Over the years, cryptographic techniques have
become a core component of the Internet, supported by numerous protocols and standards that support their
implementation in practice. Encryption makes it possible to help ensure confidentiality, privacy, authenticity,
availability, integrity and anonymity in specific settings. This facilitates the protection of human rights of Internet
users, and freedom of expression and privacy in particular”.
41
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
314 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
The data protection authorities of the European Union, represented in the Article 29
Working Party (WP29), consider that the availability of strong and efficient encryption
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
315
Os criminosos que almejam praticar ilícitos todos irão recorrer a medidas técnicas de
ocultação dos seus endereços IPs na internet. Investirão recursos, software e dispositivos
técnicos para que as autoridades não os possam identificar. Já os cidadãos regulares, que
são a maioria esmagadora dos brasileiros, estarão à mercê de abusos e da vigilância por
parte de autoridades públicas, que a seu único e exclusivo critério (sem ordem judicial)
poderão revelar quem está do outro lado da rede.44
42
ARTICLE 29 Data Protection Working Party. Statement of the WP29 on encryption and their impact on the protection
of individuals with regard to the processing of their personal data in the EU, 11 abr. 2018. Disponível em: <https://
ec.europa.eu/newsroom/article29/document.cfm?action=display&doc_id=51026>. Acesso em: 01 jun. 2018.
43
ARTICLE 29 Data Protection Working Party. Statement of the WP29 on encryption and their impact on the protection
of individuals with regard to the processing of their personal data in the EU, 11 abr. 2018. Disponível em: <https://
ec.europa.eu/newsroom/article29/document.cfm?action=display&doc_id=51026>. Acesso em: 01 jun. 2018.
44
SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar
Editora Associada Ltda., 2016, p. 141.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
316 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
A solução das backdoors, que à primeira vista pode parecer razoável, infelizmente contrasta
diretamente com a experiência acumulada em segurança da informação, que indica que a
implementação de uma chave-mestra inexoravelmente diminui drasticamente a segurança
de um sistema criptográfico. Em outras palavras, simplesmente não é possível implementar
uma backdoor e manter a segurança que a criptografia tinha anteriormente, tornando-a
mais vulnerável à intromissão de terceiros no conteúdo das comunicações e fragilizando
as utilizações que necessitem de maior segurança.
(...) a mera existência da backdoor é em si um risco potencial, pois seu vazamento (que,
aliás, ocorre com frequência) ou sua má utilização podem comprometer a segurança
não somente de uma determinada comunicação privada, mas de toda a plataforma de
mensagens. Segundo, a sua existência funciona como um atrativo para que agentes mal-
intencionados, como criminosos em busca de informações financeiras, procurem explorar
as suas vulnerabilidades.
E note-se que, quanto mais valiosas as comunicações em um sistema de mensagens, maior
o incentivo para que grandes recursos computacionais sejam utilizados para estes tipos
de ataque.46
O argumento da ida dos criminosos para um submundo merece, contudo, ser visto
com ressalvas, pois se trata de suposição que não goza de muitos elementos concretos
de comprovação. Além disso, nem todos os criminosos e tipos de crime que se pretende
combater com as interceptações detêm esse nível de aparato tecnológico a seu dispor.
Será que todos os traficantes das comunidades do Rio de Janeiro deixariam de usar o
WhatsApp se a criptografia fosse quebrável e tivessem acesso a aparelhos mais potentes?
Estas questões não saem do campo das suposições.
Outro argumento trazido pelo GP29 e pelos professores referidos é o da pro
porcionalidade. Este sim apresenta uma centralidade e um peso de elevada importância
nessa discussão. A ideia central é de que haveria outros meios de se atingir o objetivo
45
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
46
DONEDA, Danilo. A regulação da criptografia e o bloqueio do WhatsApp, Consultor Jurídico, 30 maio 2017.
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-mai-30/danilo-doneda-regulacao-criptografia-bloqueio-whats
app?imprimir=1>. Acesso em: 31 maio 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
317
visado pela quebra da criptografia de forma menos gravosa e perigosa, o que desle
gitimaria qualquer tipo de quebra, com base no princípio da proporcionalidade.
Dentre tais meios, o GP29 elenca os seguintes:
47
“- Access communications metadata and unencrypted data held by data controllers.
- Use social engineering to infiltrate criminal organizations.
- Require alleged criminals and/or persons of interest to provide their encryption key.
- Use targeted interception tools such as IMSI catchers (a tool designed to intercept mobile communications in
its vicinity), or intercept specific electronic communications by accessing electronic communications providers’
networks.
- Use specific and targeted tools to guess or intercept a password, access documents and/or record keystrokes
before encryption on the sender’s device, or after decryption by the recipient.
- Obtain individual’s encryption keys that are held by data controllers or key escrow services”. (ARTICLE 29
Data Protection Working Party. Statement of the WP29 on encryption and their impact on the protection of individuals
with regard to the processing of their personal data in the EU, 11 abr. 2018. Disponível em: <https://ec.europa.eu/
newsroom/article29/document.cfm?action=display&doc_id=51026>. Acesso em: 01 jun. 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
318 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
48
SOUZA, Carlos Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar
Editora Associada Ltda., 2016, p. 143.
49
Entrevista gravada em áudio feita na sede da AMAERJ, no Museu da Justiça, Rio de Janeiro, em 24 jul. 2017.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
319
contexto brasileiro, sobretudo por causa da deficiência dos outros meios de prova. Na
sua experiência, pôde constatar ao longo dos anos que há grande deficiência de pessoal
e de recursos dos institutos de perícia e da Polícia na avaliação das provas coletadas. E
embora espere que outros meios venham a ser tão utilizados como as interceptações,
hoje, elas ainda são um instrumento muito importante para a apuração dos crimes.
Questionada sobre a importância prática das interceptações, a magistrada explica
que as utiliza, por exemplo, para realizar um confronto com depoimentos testemunhais,
pois, no âmbito criminal, a prova testemunhal ainda é muito importante. Logo, a
interceptação é essencial como comprovação de outros elementos de prova. Adverte,
contudo, que ela faz parte de um conjunto, não podendo ser analisada isoladamente,
sendo de grande valia na confrontação para se chegar à verdade daquele fato que está
sendo investigado ou julgado.
Para a Presidente da AMAERJ, as interceptações servem para o monitoramento,
para o flagrante de organizações criminosas, para ações imediatas de localização de
pessoas sequestradas e para um terceiro momento, que é a sua utilização como meio de
prova. Segundo ela, num primeiro momento se faz a contenção da atividade criminosa
e, se for uma atividade que tem um tempo de consumação, consegue-se impedi-la
através desse monitoramento, que será importante também para a comprovação do fato
delituoso já na fase processual.
Dentre os crimes mais comuns que necessitam da quebra de dados telemáticos,
aponta a magistrada o tráfico de entorpecentes, roubos, saidinhas de banco, asseverando
já ter apurado latrocínios sérios através da interceptação telefônica e apreensão de
celulares. Para ela, a interceptação é utilizada nos crimes que mais acontecem e atingem
a sociedade de forma mais intensa, ferindo a ordem pública e alcançando um número
maior de pessoas.
Renata afirma, ainda, que percebeu ao longo desse tempo de magistratura uma
evolução no uso da tecnologia pelos criminosos. Destaca que, no início, as comunicações
eram mais físicas, através de envio de recados, passando para os telefones celulares e
aparelhos de rádio como Nextel, através de ligações e depois de aplicativos como o
“BBM”, culminando na utilização de aplicativos como o WhatsApp e o Telegram, bem
como outros que a Justiça ainda não conseguiu detectar.
Num aprofundamento crítico da visão da realidade prática apresentada pela
magistrada, pode-se chegar a algumas conclusões parciais. A principal delas é a
imprescindibilidade hoje do uso das interceptações telefônicas e telemáticas. Apesar de a
magistrada admitir que o uso de outros meios seja possível, no presente, a essencialidade
das interceptações parece ser inquestionável.
Disso decorre que, com o aperfeiçoamento das investigações criminais e das
técnicas, paralelamente à capacitação de pessoal e ao incremento tecnológico, possa se
chegar a um cenário em que o uso das interceptações seja diminuto, embora não vedado.
E a própria lei de interceptações vem nesse sentido, quando dispõe que as quebras
devem ser a ultima ratio.
Ocorre, contudo, que a construção de perfis de monitoramento na rede a partir de
dados cadastrais de usuários criminosos não basta hoje para a apuração de crimes mais
imediatos e para a materialidade evidente a partir do registro da voz dos criminosos.
José Luis Bolzan de Morais e Elias Jacob de Menezes Neto defendem o uso dos
metadados, que poderiam dizer muito mais sobre a vida privada de um indivíduo do que
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
320 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
o conteúdo dos e-mails. Enumeram, assim, exemplos desse tipo especial de informação
que poderiam ser usados para tanto:
endereços IP (internet protocol), números MAC (media access control); ESN (electronic serial
number) EMSI (international mobile subscriber identity); cookies com dados de pesquisas
em mecanismos de busca; informações de posicionamento por satélite transmitidas para
fabricantes de smartphones ou tablets e inseridas automaticamente como metadados nas
fotografias feitas nesses dispositivos; informações de localização das torres de transmissão
próximas de terminais móveis de telefone e internet; origem, destinatário e hora de
telefonemas, envio de mensagens e e-mails etc.50
Para os autores, essas seriam algumas das informações não protegidas pelo
conceito de “comunicações pessoais armazenadas” que poderiam ser usadas para
associar qualquer indivíduo a um ponto específico no espaço e no tempo, além de
permitirem estabelecer a rede de contatos e relacionamentos do indivíduo. Assim, “se
você sabe e combina um número suficiente de informações online e offline, você talvez
tenha dados suficientes para fazer um palpite muito provável (às vezes quase perfeito)
sobre quem estava fazendo o que, quando e onde”.51
A grande questão que se coloca é saber se um palpite basta para uma condenação
criminal. Nesse sentido, a magistrada Renata Gil reitera que as comunicações são usadas
como importante meio de prova para confrontação das testemunhas, ressaltando que a
expectativa de privacidade dos interlocutores cede diante do bem jurídico contrastado,
que, na maioria dos casos, é a vida de uma pessoa que está sendo sequestrada ou a
própria segurança das pessoas de um modo geral, tendo em vista os casos relativos ao
tráfico de entorpecentes.
Inegável também seu uso para dar maior concretude às provas, uma vez que
o conteúdo das interceptações se mostra como um meio de prova muito eficiente,
conferindo robusteza ao acervo probatório colacionado aos autos para imputar a autoria
e a materialidade de um crime a um indivíduo.
Não obstante, um problema existente, é a incerteza quanto à autoria da comu
nicação por meio dos aplicativos de mensagem à primeira vista. A menos que haja uma
análise mais detalhada, não há como se ter certeza de que quem digita uma mensagem
no WhatsApp é realmente quem diz ser, diferentemente de uma ligação telefônica,
em que o confronto da voz permite levar a uma certeza quase absoluta da identidade
dos interlocutores. Esse problema, contudo, poderia ser minorado com a análise da
inteligência policial, mas é, certamente, um ponto a ser considerado.
Importante, por fim, salientar que, conforme disposto no artigo 10 da Lei
nº 9.296/96, constitui crime realizar a interceptação de comunicações com objetivos
não autorizados em lei, bem como se exige no artigo 8º da mesma lei a necessidade de
preservação do sigilo das diligências, gravações e transcrições. Da mesma forma, exige
50
MORAIS, José Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na
Proteção das Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance.
In: LEITE, George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 426-427.
51
BENNET, Colin et al. Transparent livres: surveillance in Canada. Edmonton: AU Press, 2014 apud MORAIS, José
Luis Bolzan de; MENEZES NETO, Elias Jacob de. A insuficiência do Marco Civil da Internet na Proteção das
Comunicações Privadas Armazenadas e do Fluxo de Dados a partir do Paradigma da Surveillance. In: LEITE,
George Salomão; LEMOS, Ronaldo (Coord.). Marco Civil da Internet. São Paulo: Atlas, 2014, p. 427.
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
321
o artigo 5º a devida fundamentação. Tais comandos normativos acabam por impor aos
magistrados e demais autoridades envolvidas constrições salutares, aptas a proteger a
privacidade dos indivíduos, evitando que as comunicações sejam utilizadas para outros
fins que não os da decisão que autorizou sua interceptação.
Desse cotejo da doutrina com a prática forense, pode-se concluir que, na visão
esposada por representante de grande envergadura da magistratura nacional, apesar dos
meios sugeridos pelos membros do GP29 serem menos restritivos de direitos à luz do
princípio da proporcionalidade,52 estes ainda não estão completamente aptos a atender
as demandas das investigações criminais no Brasil. Não há dúvidas, para nenhum dos
lados do debate, que não há uma expectativa legítima de privacidade para quem está
causando perigo de vida e afrontando a incolumidade da sociedade e pondo em risco
os bens jurídicos mais caros, em violação à ordem jurídica. Não quer isso dizer, todavia,
que haja um cheque em branco para os juízes determinarem as quebras sem nenhum
critério de proporcionalidade e razoabilidade.
Trata-se, portanto, de colocar na balança os dois principais bens jurídicos a serem
sopesados: os riscos da vulneração de todo o sistema e de indivíduos comuns a partir da
quebra da criptografia, com abalos à privacidade e à liberdade de expressão das pessoas
versus a integridade físico-corporal de indivíduos que possam estar sendo sequestrados,
ou até mesmo, a segurança pública.
A abordagem deve ser casuística. Pode-se construir como standard a ideia de
que, prima facie, devem ser utilizados todos os meios possíveis de obtenção de dados
necessários para fundamentar uma investigação criminal, como os metadados. Não
sendo possível, deve-se avaliar se o bem jurídico contraposto, por exemplo, a vida de
uma pessoa, justificaria uma interceptação, uma vez que esta deve ser a ultima ratio.
Não havendo outro meio apto a atingir o mesmo objetivo, aí sim deve-se autorizar a
quebra. E, em se quebrando, deve-se procurar os meios tecnológicos que comportem
menor impacto para os demais usuários e para a sociedade de um modo geral. Nesse
contexto, tal como sugerido pelo GP29, a obtenção de chaves individuais pode ser uma
alternativa viável, que acabaria não vulnerando o sistema como um todo e permitiria
alcançar o mesmo resultado: a obtenção do conteúdo da comunicação.
Contudo, essa busca pelos meios tecnológicos menos gravosos não incumbe
somente ao Judiciário, que não detém a expertise técnica para tanto, mas também às
sociedades empresárias de telecomunicação que lucram com os sistemas criptográficos
e que devem atuar em cooperação com o Estado para a melhor apuração dos ilícitos.
A mera recusa em cumprir as ordens judiciais desafia a autoridade das próprias decisões,
não podendo ser admitida a mera alegação genérica de impossibilidade técnica.
Por isso, fundamentalmente, apesar dos inegáveis benefícios trazidos pelos
sistemas criptográficos em reação à expansão dos tentáculos da Sociedade da Vigilância
no contexto do paradigma da surveillance, há casos em que a criptografia, enquanto
instrumento da privacidade e da liberdade de expressão e comunicação, deve ceder face
a outros bens jurídicos, como a vida e a integridade físico-corporal de um indivíduo.
Com isso, a existência de um mecanismo que seja completamente intransponível em
52
SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito constitucional: teoria, história e métodos de
trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 474.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
322 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
qualquer situação não deve ser merecedora de tutela, porque privilegiaria abstratamente
um direito em face de outro, o que é incompatível com o sistema vigente.
Não se pode admitir a existência de um direito absoluto em si e que não comporte
ponderação diante do caso concreto. Todos os direitos e as situações jurídicas devem
ser exercidos a partir de uma função privilegiadora de algum valor constitucional. Não
se questiona que a criptografia privilegie valores como a privacidade e as liberdades de
expressão e comunicação. Contudo, a mesma perspectiva funcional exige que, no cotejo
com outros direitos, no caso concreto, este direito possa ceder, diante da grandeza de
outros bens jurídicos, como a vida de uma pessoa.
Conclui-se, assim, que deve ser dado todo o reforço possível ao fortalecimento dos
sistemas criptográficos, mas não se pode permitir que eles se tornem, abstratamente, uma
barreira intransponível e absoluta, pois isso seria uma exorbitância do poder conferido
à autonomia privada, que deve ser entendida dentro de uma perspectiva funcional que
privilegie os demais valores contrastantes do ordenamento.
Conclusão
Rockwell e George Orwell, em contextos diferentes, já denunciavam a mesma
situação: o medo da vigilância extrema. Inicialmente concentrada, passou a se dar de
maneira difusa a partir do paradigma da surveillance, o que se torna potencialmente
perigoso, tendo em vista o armazenamento na forma de big data, que, manipulado
astuciosamente, pode levar a um controle das massas. E tudo isso através da coleta de
dados pessoais, que na maioria dos casos se dá de forma quase imperceptível para os
indivíduos.
Nesse cenário, o direito à privacidade sofreu uma alteração significativa, com
maior vulnerabilidade, diante do aumento da exposição da vida privada. Diante dessa
noção de vigilância difusa, a espionagem chega a atingir pessoas comuns. E, como forma
de reação a essa intromissão indevida na vida íntima, a sociedade passa a demandar
cada vez mais aparatos tecnológicos capazes de impedir essa vigilância.
Dentre estas formas, estão os sistemas de criptografia (entendendo-se haver
um direito à criptografia, que, embora sirva fundamentalmente à garantia do direito
à privacidade, goza de relativa autonomia, porque também protege direitos como
a liberdade de expressão e comunicação), sobretudo aqueles de ponta-a-ponta, que
prometem uma indecifrabilidade tendente ao absolutismo. E isto se choca frontalmente
com a demanda, ainda existente e legítima, de que se obtenha acesso ao conteúdo de
comunicações privadas, desde que respeitado o comando do artigo 5º, inciso XII, da
Constituição da República.
Os estudos têm caminhado no sentido de que essa forma de intromissão deve ser a
ultima ratio, dada a sua gravidade, pois, ao se levantar o sigilo de uma comunicação, pode-
se acabar vulnerando também outras personagens envolvidas na troca de mensagens,
que, em muitos casos, nada têm a ver com o ilícito que se quer coibir. Por isso, devem
ser privilegiados outros meios menos restritivos de direito para a apuração dos ilícitos,
como a análise dos metadados.
Todavia, como se demonstrou a partir da experiência da judicatura criminal, esta
ainda não é uma solução que dê conta de resolver todos os problemas experimenta
FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
A CRIPTOGRAFIA NA ERA DOS BLOQUEIOS DO WHATSAPP: UMA ANÁLISE SEGUNDO A METODOLOGIA CIVIL-CONSTITUCIONAL
323
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
324 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
AFFONSO, Filipe José Medon. A criptografia na era dos bloqueios do WhatsApp: uma análise segundo
a metodologia civil-constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do
Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 299-324. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR:
TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
“Só que tem que eu tô numa tão certa que ninguém me diz,
o que eu sou, o que devo fazer e o que eu não fiz”.
(É isso aí, Dóris Monteiro)
Introdução
A perspectiva de um Direito Civil, enquanto ramo que mais diz respeito ao
cotidiano de cada pessoa humana1 e que, orientado a partir de valores constitucionais,
permite a construção de direitos que possibilite a plena proteção da pessoa humana,
considerando que ela, enquanto encarada de liberdade, potencializa sua aptidão para
desenvolver sua personalidade, de maneira a construir e reconstruir seus interesses,
imprimir direitos a partir de sua autodeterminação, de maneira a permitir uma dimensão
dinâmica da sua condição existencial.
A partir daí, é preciso reconhecer que a pessoa humana incorpora as circunstâncias
de sua vida e se destacam os mais variados desdobramentos jurídicos, os quais podem
despertar situações patrimoniais e situações existenciais2 e das quais o intérprete não
1
Conforme LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. v. 1. 6. ed. 3ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 52.
2
“Todo homem, (...) é titular de situações existenciais (...), como o direito à vida, à saúde, ao nome, à própria
manifestação do pensamento, prescindem das capacidades intelectuais. O estado pessoal patológico ainda
que permanente da pessoa, que não seja absoluto ou total, mas graduado e parcial, não se pode traduzir em
uma série estereotipada de limitações, proibições e exclusões que, no caso concreto, isto é, levando em conta o
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
326 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
grau e a qualidade do déficit psíquico, não se justificam e acabam por representar camisas-de-força totalmente
desproporcionadas e, principalmente, em contraste com a realização do pleno desenvolvimento da pessoa”
(O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 781).
3
SCHREIBER, Anderson. Direito civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2014, p. 18.
4
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 1.6.2018.
5
Conforme ensina Sidney Guerra, “indubitavelmente, a expressão direitos humanos chega ao século XXI como
grande força e vitalidade, sendo largamente utilizada em manifestações da sociedade civil, na política, para
pleitear direitos, enfim, nas mais distintas reivindicações” (Direitos humanos: curso elementar. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 31).
6
Pode-se afirmar sobre a eficácia de caráter vertical dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado sempre que
ocorrer a discussão a respeito da vinculação do legislador privado e dos órgãos do Poder Judiciário, conforme
explica Ingo Wolfgang Sarlet, “no exercício da atividade jurisdicional no que se refere à aplicação das normas
do direito privado e a solução dos conflitos entre particulares; no exercício da atividade jurisdicional no que
diz com aplicação” (Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação
dos particulares aos direitos fundamentais. In: Revista de direito do consumidor, n. 36, p. 54-104, out./dez. 2000).
Já, no pertinente à denominada “eficácia horizontal”, envolve a “problemática acerca da eficácia dos direitos
fundamentais no âmbito das relações entre particulares, mais propriamente, da vinculação destes (pessoas físicas
e jurídicas) aos direitos fundamentais” (idem, ibidem).
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
327
âmbito das situações privadas; além disso, promove a construção de novos direitos
e também amplia a sensibilidade do intérprete para despertar a preocupação com a
efetividade da proteção da pessoa em todas as esferas da sua dignidade, enquanto ser
humano (art. 1, III, da CF/88), considerando que, numa sociedade cada vez mais plural,7
desponta-se a necessidade de proteção de pessoas as quais sejam reconhecidas como
vulneráveis, como é o caso do consumidor, doente crônico, analfabeto, superendividado,
idoso, a pessoa com deficiência, entre outros.
Na verdade, o fortalecimento do Estado Constitucional procura, ainda que a passos
lentos, proporcionar a inclusão social e a tutela das minorias, por meio de facilitação
de acesso ao Judiciário e da criação de um arcabouço de normas que se apontam como
princípios e disciplinamento específico, fruto da incorporação crescente no discurso
jurídico dos direitos humanos e da abertura para revelação de novos direitos.
Ou seja, sob a perspectiva do despertar de uma compreensão cada vez efetiva dos
fundamentos constitucionais, legitimam-se considerações de um direito que Antonio
Carlos Wolkmer, citando Carlos Cárcovo, denomina “direito multidimensional”;8 ou
seja, um direito sob diferentes enfoques – dogmático, sociológico, epistêmico, político,
ético e antropológico –, os quais permitem uma construção mais elaborada do contexto
de dignidade humana e de solidariedade (arts. 1º, III, e 3º, I, da Constituição Federal).
Nessa rota, o fortalecimento do Estado Constitucional, conforme Wolkmer,
contribui para superar concepções baseadas na lógica da “atomização de um sujeito
histórico universal-individualista”.9
A partir daí, uma perspectiva mais expandida do reconhecimento da necessidade
de direitos permite que, aos poucos, grupos até então excluídos ou invisíveis, como
crianças, idosos e pessoas com deficiência, dentre outros, passem a ser reconhecidos
como vulneráveis e passem a demandar a construção de direitos e serem reconhecidos
como titulares de direitos especiais.
Captando os ensinamentos de Wolkmer, para o presente estudo, permite-se
reconhecer que surge um “pluralismo legal ampliado”,10 consubstanciado, conforme o
autor, na rediscussão de questões relacionadas às fontes, aos fundamentos e ao objeto
do Direito.
Ou seja, o pluralismo faz com que “como novo referencial do político e do jurídico
esteja necessariamente comprometido com a atuação de novos sujeitos coletivos (novos
atores), com a satisfação das necessidades humanas essenciais (fundamentos materiais)”.11
7
Antonio Carlos Wolkmer designa pluralismo jurídico como “a multiplicidade de práticas jurídicas existentes
num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo
sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais” (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo
jurídico: fundamentos para uma nova cultura no direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001, p. 219). Ademais,
o autor, ao reconhecer que os espaços de representatividade não conseguem mais dar a dimensão da cidadania
pelos canais institucionais e de representatividade; ou seja, “à medida que, gradativamente, as regras formais
clássicas de legitimidade e os arranjos institucionais liberal-português tornam-se inapropriados para canalizar
e processar uma grande diversidade de demandas inerentes às sociedades de massa, os movimentos sociais
inauguram um estilo de política pluralista assentado em práticas não-institucionais e autossustentáveis e nele
avançam, buscando afirmar identidades coletivas e promovendo um locus democrático, descentralizado e
participativo” (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, idem, p. 139).
8
Carlos Cárcovo apud WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico, idem, p. 202.
9
Ibidem, p. 232.
10
Ibidem, p. 233.
11
Ibidem.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
328 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
12
Ressalte-se que Antonio Carlos Wolkmer estuda o pluralismo jurídico a partir da necessidade de que sejam
reconhecidas novas identidades que integram variados sujeitos, como camponeses sem-terra, trabalhadores
agrícolas, emigrantes rurais, operários mal remunerados e explorados, os subempregados, os marginalizados
dos aglomerados urbanos, subúrbios e vilas, carentes de bens materiais e de subsistência, sem luz, água, moradia
e assistência médica (Ibidem, p. 239). Não inclui as pessoas com deficiência no rol, nem a criança, mas não se pode
deixar de reconhecer que ainda há obstáculos à efetivação de seus direitos.
13
SOARES, Felipe Ramos Ribas; MATIELI, Louise Vago; DUARTE, Luciana da Mota Gomes de Souza. Unidade do
ordenamento na pluralidade de fontes: uma crítica dos microssistemas. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER,
Carlos Nelson (Coord.). Direito civil constitucional. São Paulo: Atlas, 2016, p. 71-95, em especial, p. 91.
14
SOARES, Felipe Ramos Ribas; MATIELI, Louise Vago; DUARTE, Luciana da Mota Gomes de. Idem, p. 91.
15
FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 68.
16
Ibidem, p. 74.
17
Ibidem.
18
Ibidem.
19
Ibidem.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
329
20
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos [Trad. José Manuel Revuelta López]. Madrid: Editorial Trotta, 2014,
p. 135.
21
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
22
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
23
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
24
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
25
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., idem, p. 140.
26
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ibidem.
27
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., idem, p. 142.
28
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., ob cit. p. 146.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
330 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Nessa rota, após vários apontamentos para fortalecer o sentido de pessoa, como
titular de qualidades, de dignidade, de humanidade, Stefano Rodotà29 apresenta alguns
aspectos que justificam a movimentação da concepção de “sujeito” para “pessoa”: i.
sujeito é apenas um centro de imputação de situações jurídicas, já “pessoa” é fundamento
de todos os valores do sistema jurídico; ii. “sujeito” é considerado sob uma perspectiva
de neutralidade axiológica (indiferença, neutralidades), já “pessoa” é reconhecida a partir
de dados da realidade; e iii. “sujeito” é estudado a partir de concepções metafísicas,
enquanto “pessoa” é considerada a partir de sua concretude.
Captando esses ensinamentos, a concepção de pessoa tem profunda sintonia com
a redescoberta da humanidade e, assim, promove o direito das pessoas e seus direitos
de personalidade.
A este estudo importa contextualizar a pessoa com deficiência dentro do enunciado
movimento.
Conforme Heloisa Helena Barboza e Vitor Almeida, a superação do indivíduo
abstrato, “em busca pela pessoa concretamente considerada dentro do âmbito de seu
contexto social”,30 só confirma que a pessoa revela-se em situações de assimetria, de
vulnerabilidade, o que desperta a partir da ampliação de direitos humanos.31
Nessa perspectiva, é reconhecida a pessoa com deficiência como uma “questão de
direitos humanos”, ante sua situação de vulnerabilidade; tanto que ocorre a aprovação
da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (CDPD), aos 30 de maio de 2007; e mais tarde, é ratificada pelo Congresso
Nacional através do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, promulgada
pelo Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, “com força, hierarquia e eficácia
constitucional”.32
Tal situação projetou desdobramento no âmbito da teoria das incapacidades.
Na verdade, fez com que se passasse a reconhecer mais autodeterminação às
pessoas com deficiência, o que significa sustentar que passam, ainda que minimamente,
a possibilidade de conduzirem seus próprios interesses, mesmo que estejam aparelhadas
de um curador. Dito de outra forma: a deficiência passa a não ser mais causa, por si,
de inclusão no rol dos incapazes (tanto absolutos como relativos, na forma do art. 104
do Estatuto da Pessoa com Deficiência e na forma já prevista no art. 12.2 da Convenção
sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência).
Para tanto, em se tratando de situações envolvendo criações e a tutela dos direitos
autorais, é possível reconhecer que haverá padrões e parâmetros para o exercício dos
direitos existenciais da pessoa com deficiência (os quais são assegurados, inclusive, aos
curatelados na forma dos arts. 6º, 85 e seu §1º do Estatuto da Pessoa com Deficiência,
como melhor veremos adiante), levando em conta suas manifestações conforme a
situação existencial, o que demandará a análise de práticas, hábitos, manifestações em
29
RODOTÀ, Stefano. El derecho a tener derechos..., idem, p. 146.
30
BARBOZA, Heloisa Helena; ALMEIDA, Vitor. Reconhecimento, inclusão e autonomia da pessoa com deficiência:
novos rumos na proteção dos vulneráveis. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de;
ALMEIDA JR., Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro:
Processo, 2017, p. 1-30.
31
Ibidem, p. 5.
32
Ibidem, p. 6.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
331
redes sociais, enfim, é a dimensão concreta da sua existência que passa a ser a bússola
orientadora do curador.
Assim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, sob a perspectiva dos atos exis
tenciais, diz respeito ao desenvolvimento do próprio ser humano e não se pode afastar,
no contexto contemporâneo a necessária interpretação jurídica à luz dos valores
constitucionais e da necessária assimilação do ambiente virtual no cotidiano das pessoas.
Em suma, é indispensável que no contexto atual, quando se analisa a situação
envolvendo a autonomia das pessoas, demanda portanto que a incapacidade possa ser
delimitada, reconhecida, em consonância com o caso concreto,33 como forma de promover
sim a dignidade e a autonomia da pessoa humana.
Ou seja, o que se vislumbra, portanto, é que o epicentro do debate jurídico sobre
a pessoa com deficiência consiste na preocupação com a sua autonomia privada, a
permitir uma ampliação da esfera subjetiva de sua manifestação de vontade, rompendo
com modelos objetivos lógicos, abstratos, aos quais os institutos encontravam-se acima
dos indivíduos.34
33
Nesse sentido: ABREU, Célia Barbosa. Curatela e interdição civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 42.
34
ABREU, Célia Barbosa. Curatela e interdição civil. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2014, p. 45.
35
NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008, p. 109.
36
Ibidem, p. 121.
37
REALE, Miguel. O direito como experiência. Introdução à epistemologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992,
p. 31.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
332 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
38
MELLO, Adriana Mandin Theodoro de. A função social do contrato e o princípio da boa-fé no novo Código Civil.
Revista dos Tribunais, 801: 11-29.
39
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos de direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 530.
40
Nesse sentido: SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire
contra factum proprium. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 64.
41
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 234.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
333
42
Sobre a interpretação de que o art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência compreende
o que no Brasil convencionou se entender por capacidade de fato e de exercício já se manifestou, inclusive,
o Comissariado para os Direitos Humanos do Conselho da Europa. Quanto a tal questão específica, também
com amplas referências à doutrina brasileira, COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Limitação da curatela aos
atos patrimoniais: reflexões sobre a pessoa com deficiência intelectual e a pessoa que não pode se exprimir. In:
BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.).
O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 243-270.
43
Quanto ao assunto, seja permitido remeter a BARBOZA, Heloísa Helena e ALMEIDA, Vitor. Reconhecimento,
inclusão e autonomia da pessoa com deficiência: novos rumos na proteção dos vulneráveis. In: BARBOZA,
Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e
o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 1-30.
44
Utiliza-se a nomenclatura concernente à posição de tais direitos frente à atual summa divisio, comum ao direito na
unidade do ordenamento jurídico, entre direitos existenciais e patrimoniais, mesmo que se saiba mais comum,
e tradicional, a referência no ramo autoral aos chamados “direitos morais”. Porém, ao passo que aqui se busca
alinhar a unidade do ordenamento jurídico como forma de resolver as questões de fundo do presente escrito,
opta-se por esta terminologia. Em sentido diverso, reconhecendo um debate sobre a expressão, mas a utilizando,
SOUZA, Allan Rocha de. Direitos morais do autor. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 1, jan./ mar. 2013.
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
334 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
45
Diferentes os institutos, pois na cessão é transferida titularidade da obra intelectual, enquanto na licença é
autorizado um terceiro a se valer da obra. No primeiro caso subsiste algo semelhante a uma doação (quando
gratuita) ou compra e venda (quando onerosa) e no segundo uma locação (onerosa) ou comodato (gratuita). Para
tal diferenciação BRANCO, Sérgio; PARANGUÁ, Pedro. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009,
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46
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47
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48
Ibidem.
49
KONDER, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Situações jurídicas dúplices: Controvérsias na
nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
Edson. Diálogos sobre Direito Civil, Volume III. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 5-24.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
335
50
Ibidem.
51
Neste sentido, salutar a proposta de Allan Rocha Souza de considerar o direito moral do autor a partir da relação
deste com sua obra, verdadeiramente, o vínculo existente. Apenas assim é possível visualizar com clareza que a
disposição para fins de circulação e as decisões supracitadas para materializar tal fim dizem respeito à total visão
que o autor apresenta sobre sua obra e como ela relaciona-se com o público. SOUZA, Allan Rocha de. Direitos
morais do autor. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 1, jan./mar. 2013. Disponível em: <http://civilistica.com/
direitos-morais-autor>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
336 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
52
Para defesa desta metodologia, TEPEDINO, Gustavo. O papel atual da doutrina do direito civil entre o sujeito e
a pessoa. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O Direito Civil
entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
53
Para o desenvolvimento destes critérios seja permitido remeter a COLOMBO, Maici Barboza dos Santos. Limi
tação da curatela aos atos patrimoniais: reflexões sobre a pessoa com deficiência intelectual e a pessoa que não
pode se exprimir. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de
Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 243-270.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
337
54
Quanto ao entendimento de forma relacionada ao conteúdo e coerente à função concreta regulamentada pelo
contrato, PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil (tradução de Maria Cristina de Cicco). 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 2002, p. 295-298.
55
“Grosso modo, o discernimento que se requer para a prática dos atos civis de matiz patrimonial não é o mesmo
que se exige para a prática de atos existenciais – situam-se em domínios diferentes. Os primeiros envolvem
informações mais técnicas e jurídicas, menos subjetivas”. MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo
no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa com deficiência: impactos do novo CPC e do estatuto da
pessoa com deficiência. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 4, n. 1, jan./jun. 2015.
56
BRANCO, Sérgio; PARANGUÁ, Pedro. Direitos Autorais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 109/120, disponível
em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/2756/Direitos%20Autorais.pdf>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
338 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
57
Sobre esta necessidade de o curador conhecer o patrimônio que administra, a anterior atuação econômica do
curatelado e utilizar-se de práticas coerentes a isto, ao invés de preferir uma posição conservadora que poderá
colocar em risco a rentabilidade existente, TEPEDINO, Gustavo. Desnecessidade de prévia autorização judicial
para a assinatura de acordo de acionistas por curador. São Paulo: Revista dos Tribunais Online, nov. 2011,
originalmente presente no livro Soluções práticas, volume I, p. 465/478.
58
Registrem-se contundentes críticas da escola de direito civil-constitucional, as quais pugnam por tratamento
menos abstrato para capacidade em geral, sua modulação e preservação da liberdade da pessoa que pratica os atos
no caso concreto, a julgar seu discernimento: SOUZA, Eduardo Nunes de; SILVA, Rodrigo da Guia. Autonomia,
discernimento e vulnerabilidade: estudo sobre as invalidades negociais à luz do novo sistema das incapacidades.
Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 5, n. 1, 2016, disponível em: <http://civilistica.com/autonomiadiscernimento-
e-vulnerabilidade/>; NEVARES, Ana Luisa Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da
incapacidade civil. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.).
O Direito Civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem ao professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte:
Fórum, 2016, p. 39-56.
59
MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito protetivo no Brasil após a convenção sobre a proteção da pessoa
com deficiência: impactos do novo CPC e do estatuto da pessoa com deficiência. Civilistica.com, Rio de Janeiro,
ano 4, n. 1, jan./jun. 2015. Disponível em: <http://civilistica.com/o-direito-protetivo-no-brasil/>. COLOMBO,
Maici Barboza dos Santos, Limitação da curatela aos atos patrimoniais: reflexões sobre a pessoa com deficiência
intelectual e a pessoa que não pode se exprimir. In: BARBOZA, Heloisa Helena; MENDONÇA, Bruna Lima
de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de
Janeiro: Processo, 2017, p. 243/270.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
339
60
Melhor análise apenas poderá ser feita no caso concreto. Porém, a aparência de regularidade da curatela a
permitir assinatura do contrato necessita ser analisada dentro do já esposado novo contexto que emerge da
legislação referente à pessoa com deficiência, que afeta inclusive as situações jurídicas dúplices, a ser ponderada
com este melhor interesse do curatelado autor de sua obra refletir o livre desenvolvimento de sua personalidade;
existirá prevalência nos casos em que inexistia qualquer manifestação pública que expressasse opinião sobre
tais questões e a atividade negocial de licenciamento ou cessão apenas acresceria ao patrimônio, sem qualquer
prejuízo evidente a seus interesses existenciais (o que deverá ser analisado com mais cautela no caso de obras
inéditas); a desenvolver esta tensão entre a confiança gerada pela aparência e outros princípios do ordenamento
jurídico KONDER, Carlos Nelson. A proteção pela aparência como princípio. In: MORAES, Maria Celina Bodin
de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 111-133.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
340 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
61
Amplo estudo desta posição está contido em: SOUZA, Allan Rocha de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor; SOUZA,
Wemerton Monteiro. Os direitos autorais na perspectiva civil-constitucional. Revista Brasileira de Direito Civil, Rio
de Janeiro, vol. 8, n. 2, 2016, disponível em: <https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/62>.
CLÁUDIO JOSÉ FRANZOLIN, CAIO RIBEIRO PIRES
AUTONOMIA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E SUA PROJEÇÃO NO DIREITO DO AUTOR: TUTELA NA LEGALIDADE CONSTITUCIONAL
341
Conclusão
Sempre a partir da premissa de que semear a dúvida é caminho mais benéfico, a
cuidar de recentes alterações no direito, do que cultivar estanques conclusões, procurou-
se demonstrar que o direito do autor, e suas situações existenciais, constitui campo
62
A dissecar a questão do patrimônio mínimo; BUCAR, Daniel. Superendividamento – reabilitação patrimonial da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Saraiva Jur, 2017, p. 48/61.
63
MULTEDO, Renata Vilela, COHEN, Fernanda. Medidas efetivas e apropriadas: uma proposta de interpretação
sistemática do Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: BARBOZA, Heloisa Helena, MENDONÇA, Bruna Lima
de; ALMEIDA JUNIOR, Vitor de Azevedo (Coord.). O Código Civil e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Rio de
Janeiro: Processo, 2017, p. 217-240.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
342 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
ainda não desbravado pelos que tratam das alterações na teoria das (in)capacidades pelo
Estatuto da Pessoa com Deficiência. Porém, a situação em que pessoa com deficiência
seja criadora de obra, ou que venha a adentrar esta condição quando já autora, nos
levantou o questionamento de quais seriam os limites da curatela a ela imposta de
modo a respeitar a não interferência nos direitos existenciais propagada pelos arts. 6º e
85, §1º, do referido diploma.
Especificamente, adentraram o trabalho as situações jurídicas dúplices existentes
nos casos em que o autor realiza contratações de cessões ou licenciamentos para fins de
circulação de sua obra. Diante da convivência de direitos patrimoniais e existenciais,
os quais inclusive acabam por se confundir em zonas cinzentas (aparência de situação
patrimonial, recoberta por amplas questões existenciais), sugeriu-se a utilização de três
critérios delineados para delimitação da esfera de atuação do curador, os quais foram
retirados da doutrina que têm se debruçado sobre a nova legislação e também sobre a
relação entre direito do autor e direitos culturais, além do basilar respeito ao patrimônio
mínimo.
Assim, procuraram-se balizas que possam começar, e densificar a partir de parâ
metros, o debate sobre o tema estudado, com a expectativa de abertura de um caminho
de novos horizontes.
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
FRANZOLIN, Cláudio José; PIRES, Caio Ribeiro. Autonomia da pessoa com deficiência e sua projeção
no direito do autor: tutela na legalidade constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais
do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 325-343. E-book.
ISBN 978-85-450-0591-9.
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE
SUPERENDIVIDAMENTO E
CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
Introdução
O superendividamento dos indivíduos na contemporaneidade tem suscitado
debates jurídicos e políticos, notadamente em relação aos limites e deveres de intervenção
do Estado na proteção do sujeito contra as armadilhas do mercado, na medida em que
este tem sua atuação em certa medida infensa às necessidades de grande número de
seres humano em diferentes lugares. A atuação amoral do mercado, uma estratégia
de estímulo ao consumo por meio da concessão maciça de crédito, somada à cultura
consumista contemporânea, todos esses fatores formam o caldo de cultura em que
proliferam os casos de crise de solvência de devedores que se veem impossibilitados
de arcar com os custos das obrigações assumidas sem grave comprometimento da sua
subsistência e de sua família. Trata-se de um problema que envolve muitos fatores e
que não necessariamente são compreensíveis nos estritos limites da dogmática jurídica,
impondo um esforço de compreensão multidisciplinar, com questões que somente
podem ser enfrentadas por meio de análises, a um só tempo, jurídicas, sociológicas,
políticas e econômicas.
Acresça-se a essa realidade dois fatores de extrema significação: (1) o fato de
vivermos numa sociedade de consumo, caracterizada por um conjunto peculiar de con
dições existenciais, que estimula seus membros a exercer a cultura consumista, baseada
no excesso e desperdício; que desloca o centro de gravidade temporal do futuro para
o presente e que nega enfaticamente a procrastinação de um desejo; que se baseia no
excesso de informação e inculca, com todas as forças, o credo de que o consumo é o
principal meio de se chegar à felicidade, entre outros fatores; e (2) no caso brasileiro, o
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
346 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
fato de ter sido o estímulo ao uso do microcrédito ao consumo utilizado como política
macroeconômica do governo, deslocando o eixo dinamizador da economia, que antes
era cumprido pelas exportações, para o mercado interno.
O superendividamento, fruto perverso da cultura do consumismo descrita,
apresenta-se como um locus privilegiado de tensão entre interesses antagônicos: de
um lado os interesses privados, regulados por relações contratuais centradas na força
jurígena da vontade, e de outro o interesse público, entendido como um critério para
balizar e legitimar as decisões governamentais.
Se é fato que níveis de consumo não podem ser mantidos sem a oferta de crédito,
tornando-se este um mecanismo de inclusão social, não é menos verdade que no Brasil a
maior parte do crédito é adiantado como crédito pessoal, sem garantias, agindo os bancos
e instituições financeiras com muita liberdade na sua oferta, o que se apresenta como
um desafio regulatório, diante da incapacidade dos atuais mecanismos legislativos de
tratamento do tema e da ausência de uma legislação expressa e específica de regulação
desse fenômeno.
O presente ensaio pretende, então, tratar das múltiplas questões atinentes sobre
tudo à prevenção do superendividamento, envolvidas no processo de consumo cons
ciente do crédito. Deveres como informação, aconselhamento, combate ao assédio ao
consumo, entre outros tantos, serão tratados, com vistas a fomentar um debate necessário
e premente na proteção do consumidor.
1
GIANCOLI, Brunno Pandori. Superendividamento do consumidor como hipótese de revisão dos contratos de crédito.
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2008, p. 120.
2
Iain Ramsay William Whitford e Johanna Niemi-Kiesilainen resumem a discussão ao apresentarem os debates
acerca da regulamentação do mercado de crédito em várias partes do mundo. Informam os autores que o
debate está emoldurado por duas estratégias de regulação, que variam entre a liberação do mercado de crédito
e o empoderamento do consumidor e uma regulação de um procedimento que promova ao mesmo tempo a
garantia de concessão de crédito ao consumidor e a justiça e segurança dos contratos de crédito ao consumidor,
sugerindo que este contraste revela de um lado o modelo americano e o modelo alemão de outro. Esclarecem
que “The neo-liberal approach favors extensive disclosure to consumers, and protection against unfair surprise in contracts.
It relies primarily on the market to Police credit provision but recognizes the need for responsible lending and borrowing:
financial literacy is intended to achieve the latter goal. Extensive consumer credit reporting is viewed as a central part of
the institutional framework of the market. Accessible bankruptcy procedures provide a “fresh start” for consumers so that
they can re-enter the credit economy. The World Bank has adopted the broad lines of this approach in its development of
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
347
3
Trata-se de um fenômeno complexo e multifacetado, que demanda uma avaliação
multidisciplinar. Além dos problemas financeiros decorrentes dos débitos pendentes,
existem questões psicológicas, emocionais, familiares e sociais que demandam tratamento
por especialistas de diversas áreas do conhecimento, pois o consumo, mais do que uma
simples operação financeira, passou a ser uma forma de “estar no mundo”.
Zygmunt Bauman, por meio do que chamou de modernidade líquida,4 desenvol
veu uma observação da sociedade contemporânea que denuncia o momento em que os
valores da sociedade moderna, tais como família, classe, religião, nacionalidade, entre
outros, vão sendo modificados a partir de uma forte tendência ao consumo, à trans
formação das relações sociais em mercadoria.
O autor, utilizando-se de tipos ideais weberianos,5 descreveu a passagem do que
chamou de sociedade de produtores/soldados para a sociedade de consumidores. No
modelo de sociedade de produtores, a sociedade qualificava seus membros masculinos
basicamente como produtores e soldados e a metade feminina como fornecedoras de
serviços. Segundo esse modelo societário, cujo ideário se identifica com os contornos da
modernidade, as ações individuais eram plasmadas na obediência a ordens, na tolerância
ao trabalho árduo e na aceitação da ética do trabalho, assim como na disposição de
adiamento da satisfação pessoal em prol de outros objetivos.6 O modelo se orientava para
a promessa de segurança a longo prazo e não para a satisfação instantânea de prazeres.
‘Best practices’ in consumer financial protection. In contrast the ‘social’ model is based on the image of the ‘hasty and need
consumer, forced into contractual relations by social circumstances. He cannot control. Social consumer protection in credit
markets includes ‘usury ceilings capped default interests rates, protection against early termination and discharge, with
warnings and information on debt’. Eifner also argues that consumer credit Law provides a potential relation model of
consumer Law which reorganizes the to provide opportunities for contractual adjustment to unforeseen hanges such as loss
as employment”. RAMSAY, Iain; NIEMI, Johanna; WHITFORD, Wiliam C. Consumer credit, debt and bankruptcy.
Oxford and Portland, Oregon: Hart publishing, 2009, p. 4.
3
Cláudia Lima Marques informa que o endividamento crônico dos consumidores – primeira das expressões
que designa o fenômeno – recebe muitos nomes: em Portugal, recebe o nome de sobreendividamento, “a escla
recer o extra (sobre) do endividamento que é possível suportar com o orçamento mensal dos consumidores,
denominação de inspiração anglo-saxã, over-indebteness (EUA, Reino Unido, Canadá) ”. No Brasil recebeu o
nome de superendividamento, “a destacar que é um endividamento superior ao normal e às possibilidades do
orçamento mensal dos consumidores, baseado na expressão francesa, surendettement (França) e na germânica
Überschuldung (Alemanha)”. MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (Coord.). Direitos
do consumidor endividado. Superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 14.
4
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
5
Tipos ideais, segundo o autor, são “abstrações que tentam apreender a singularidade de uma configuração
composta de ingredientes que não são absolutamente singulares, e que separam os padrões definidores dessa
figuração da multiplicidade de aspectos que a configuração em questão compartilha com outras. A maioria dos
conceitos usados de forma rotineira nas ciências sociais (se não todos eles) – como ‘capitalismo’, ‘feudalismo’,
‘livre mercado’ ‘democracia’, ou mesmo ‘sociedade’, ‘comunidade’, ‘localidade’, ‘organização’ e ‘família’
têm o status de tipos ideais. Como sugeriu Weber, os ‘tipos ideias’ (se construídos de maneira adequada) são
ferramentas cognitivas úteis, e também indispensáveis, ainda que (ou talvez porque) iluminem deliberadamente
certos aspectos da realidade social descrita enquanto deixam na sombra outros aspectos considerados de menor
ou escassa relevância para os traços essenciais e necessários de uma forma de vida peculiar. ‘Tipos ideais’ não são
descrições da realidade, mas ferramentas usadas para analisá-la. São bons para pensar”. BAUMAN, Zigmunt.
Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 39.
6
Para Bauman, “(...) a obediência às ordens e a conformidade à regra, a admissão da posição atribuída e sua
aceitação como indiscutível, a tolerância a trabalhos perpetuamente pesados e a submissão a uma rotina
monótona, a disposição de adiar a satisfação e a aceitação resignada da ética do trabalho (significando em resumo,
o consentimento em trabalhar por amor ao trabalho, fosse ele importante ou não) eram os principais padrões
comportamentais treinados e ensaiados com ardor por esses membros, na expectativa de que fossem aprendidos
e internalizados. O corpo do potencial trabalhador ou soldado era o que mais contava; seu espírito, por outro
lado devia ser silenciado e uma vez adormecido, logo, ‘desativado’, podia ser deixado de fora ao se estabelecer
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
348 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
11
Amartya Sen atribui essa sensação de invulnerabilidade à ética que parece permear a economia preditiva à crença
de que o comportamento humano, pelo menos em questões econômicas, pode ser satisfatoriamente previsto com
base na maximização do autointeresse, crença esta muito em voga atualmente, sobretudo, como será discutido
posteriormente, pela aplicação da Análise Econômica do Direito, principalmente pela aplicação do critério do
ótimo de Pareto. Sobre o tema, vide SEN, Amartya. Sobre ética e economia. Trad. de Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
12
FARIA, José Eduardo. Direito e economia na democratização brasileira. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 68.
13
Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), apurada pela
Confederação Nacional do Comércio (CNC), no primeiro semestre de 2018, houve um aumento na proporção de
famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas ou com dívidas em atraso e que permaneceriam
inadimplentes, passando de 10,0% no mesmo período de 2017 para 10,3% em abril de 2018. Do mesmo modo
houve aumento do número de famílias que se declararam muito endividadas, passando de 14,1% em 2017 para
14,2% em 2018. Disponível em: <www.cnc.org.br>. Acesso em: 04 jun. 2018.
14
A autora esclarece que crédito e consumo são duas faces da mesma moeda, mas que se trata de “(...) uma moeda
da sorte... mas também do azar... Podemos usar a figura de linguagem da moeda para afirmar que esta moeda
de duas faces ‘consumo/crédito’ sorri somente quando está na vertical, girando e mostrando suas duas caras
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
350 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
2 Conceito de superendividamento
Existem múltiplos modelos de avaliação da situação de superendividamento,
sendo os principais exemplos o modelo francês e o modelo norte-americano, não
surpreendendo, assim, que existam definições diferentes do fenômeno.16 No Brasil, na
esteira da legislação francesa, Cláudia Lima Marques define o superendividamento
como “a impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo, de boa-fé,
de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com
o fisco, oriundas de delitos e de alimentos)”.17
A doutrina distingue ainda o superendividamento em passivo e ativo. O primeiro
caso ocorre quando “circunstâncias não previsíveis (desemprego, precarização do
emprego, divórcio, doença ou morte de um familiar, acidente etc.) afectam gravemente
a capacidade de reembolso do devedor colocando-o em situação de impossibilidade de
cumprimento”.18 O superendividamento ativo ocorre quando o devedor toma crédito
ao mesmo tempo: é bom para todo mundo, para a sociedade em geral, pois a economia ‘sorri’. É bom para o
consumidor, que também é incluído no mundo do consumo. Mas o equilíbrio deste movimento é difícil, e na
sociedade de consumo de massas, sempre uma moeda ou outra vai desequilibrar-se e cair: o consumidor não
paga o crédito, não consome mais, cai no inadimplemento individual (ou insolvência civil), seu nome vai para
o SPC, SERASA... aqui a dívida vira um problema dele e de sua família, sua ‘culpa’ ou fracasso... mas quando
muitas moedas caem ao mesmo tempo, uma crise na sociedade é criada, as taxas de inadimplemento sobem,
sobem os juros, os preços, a insolvência, cai a confiança, o consumo, desacelera-se a economia... uma reação em
cadeia...”. MARQUES, Cláudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO Karen. Prevenção e tratamento
do superendividamento. Caderno de investigações científicas, Brasília, DPDDC/SDE, v. 3, p. 18, 2010. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/seus-direitos/direito-do-consumidor/arquivos-publicacoes/2010caderno_superendi
vidamento.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014.
15
MARQUES, Maria Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 2.
16
Sobre exemplos dos modelos estrangeiros de regulação do superendividamento ver SAMPAIO, Marília de Ávila
e Silva. Justiça e Superendividamento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
17
MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli (Coord.). Direitos do consumidor endividado.
Superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 14.
18
MARQUES, Maria Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000 p. 2.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
351
19
MARQUES, Maria Manuel Leitão et al. O endividamento dos consumidores. Coimbra: Almedina, 2000, p. 2.
20
LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2014, p. 34.
21
André Perin Schmidt Neto aponta como um parâmetro de aferição do superendividamento ativo inconsciente
o analfabetismo funcional, pois “(...) caso a análise da situação individual do consumidor demonstre que tal
relação social de consumo era demasiadamente complexa para o nível cultural daquele consumidor, tem-se, em
princípio, um superendividado ativo inconsciente”. SCHIMIDT NETO, André Perin. Revisão dos contratos com
base no superendividamento. Do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 256.
22
As autoras esclarecem que o que está em jogo não é eliminar o risco, pois sobre o tema não há falar-se em
risco zero, mas em riscos toleráveis. Assim, o que se busca é gerenciar o risco do superendividamento. FRADE,
Catarina (coordenadora). Desemprego e sobre-endividamento dos consumidores: contorno de uma ‘ligação perigosa’.
Projecto Desemprego e Endividamento das Famílias PIQS/ECO 50119/2013. Relatório Final. Governo da
República Portuguesa: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, p. 33.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
352 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu, em seu art. 5º, XXXII, que é dever do
Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor. Estabeleceu ainda a defesa
do consumidor como meio para o alcance de uma existência digna, conforme os ditames
da justiça social na ordem econômica, de acordo com o art. 170.
Não obstante, diferentemente da maioria dos países desenvolvidos, o Brasil não
possui uma legislação que cuide especificamente da “crise de solvência e de liquidez”23
que caracteriza o superendividamento. Os mecanismos atualmente previstos na
legislação especializada, principalmente no CDC, não são suficientes para tratar da
questão de maneira eficiente, pois não existem procedimentos específicos, como na
legislação estrangeira, para prevenir e tratar o superendividamento de maneira estrutural
e global, seja proporcionando um recomeço imediato, com o perdão das dívidas (como
no modelo norte-americano do fresh start), seja estabelecendo-se um plano de pagamento
escalonado de acordo com as possibilidades de manutenção do mínimo existencial do
devedor de boa-fé, como sugere o modelo francês.
Com tal finalidade, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei nº 3.515, que
propõe a alteração do Código de Defesa do Consumidor, “para aperfeiçoar a disciplina
do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção do superendividamento”, tendo
sido elaborado a partir do trabalho de uma comissão de juristas especialmente nomeada
com essa finalidade.24
Dos múltiplos aspectos pelos quais pode ser o superendividamento abordado, um
dos mais importantes na discussão sobre sua prevenção e tratamento está na concessão
responsável do crédito. A liberação de crédito a devedores sabidamente insolventes ou
com graves indícios de uma crise de solvência iminente é um dos fatores que mais enseja
o superendividamento ativo inconsciente, como vimos anteriormente.
O que significa a concessão responsável do crédito e quais as práticas abusivas que
mais contribuem para um quadro de solvência dos devedores é o que será apresentado
no próximo tópico.
23
MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO Karen. Prevenção e tratamento do
superendividamento. Caderno de investigações científicas, Brasília, v. 3, DPDC/SDE, p. 25, 2010. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/seus-direitos/direito-do-consumidor/arquivos-publcacoes/2010caderno_superendi
vidamento.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2014.
24
Em dezembro de 2010, foi nomeada comissão encarregada de elaborar anteprojeto de reforma do CDC, comissão
esta presidida pelo ministro Herman Benjamim, do STJ, Ada Pelegrini Grinover, Cláudia Lima Marques,
relatora-geral do anteprojeto, Leonardo Roscoe Bessa e Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer. Em entrevista
publicada no portal do Senado Federal, em 03.12.2010, o ministro Herman Benjamim afirmou que “(...) quando
o CDC foi editado o crédito era privilégio de poucos, num contexto de altos níveis de inflação e no qual o
sistema financeiro não era moderno como é atualmente”, justificando a necessidade de tratamento legislativo
do superendividamento. A justificação do anteprojeto de lei apresentada pela comissão ressalta que o texto “(...)
incluiu normas principiológicas referentes ao importante tema da concessão de crédito ao consumidor – base
das economias de consumo nos países industrializados, agora em ascensão no Brasil – e ao consequente tema da
prevenção do superendividamento dos consumidores, problema comum em todas as sociedades de consumo
consolidadas e saudáveis. Trata-se de temas novos, oriundos do pujante e consistente crescimento econômico
brasileiro e da democratização do acesso ao crédito e aos produtos e serviços em nosso mercado, visando as
normas projetadas a preparar o mercado e a sociedade brasileira para os próximos anos. As normas propostas
reforçam os direitos de informação, de transparência, de lealdade e cooperação nas relações envolvendo crédito,
direta ou indiretamente para fornecimento de produtos e serviços a consumidores, assim, como impõem um
standard atualizado da boa-fé e de função social destes contratos, em virtude da entrada em vigor do Código
Civil de 2002”.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
353
25
O Ministro Herman Benjamin, no REsp 586.316/MG, estabeleceu alguns parâmetros para aferição da informação
clara e adequada, a começar pelo fato de que informação adequada é “aquela que se apresenta simultaneamente
completa, gratuita e útil, vedada, neste último caso, a diluição da comunicação efetivamente relevante pelo uso de
informações soltas, redundantes ou destituídas de qualquer serventia para o consumidor”. A oferta, nas práticas
comerciais, deve “assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas
características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros
dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores”. A “informação deve
ser correta (=verdadeira), clara (=de fácil entendimento), precisa (=não prolixa ou escassa), ostensiva (=de fácil
constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa”.
26
Clarissa Costa de Lima escreveu sobre o dever de aconselhamento que “(...) o mero fornecimento de informações
neutras e objetivas são insuficientes para que o profissional cumpra seu papel de ajuda na decisão de seu cliente.
A complexidade de algumas informações e a relação de confiança estabelecida entre as partes exigem que à
simples obrigação de informação se associe uma outra: aquela de conselho. A propósito, Jean François Clement
refere que o conselho complementa a obrigação de informação, dá vida à informação nem sempre aproveitável
em seu estado bruto, passivo. A informação stricto sensu é somente um aspecto da obrigação que pesa sobre o
profissional. É somente a primeira etapa, porquanto o profissional deve exercer uma tarefa mais ativa: explicar o
conteúdo da informação e aconselhar seu cliente”. LIMA, Clarissa Costa de. O tratamento do superendividamento e
o direito de recomeçar dos consumidores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 49.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
354 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
27
CASADO, Marcio Mello. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 177.
28
Para André Perin Schmidt Neto, “(...) na medida em que o fornecedor auxilia o tomador de crédito, aquele
garante o reembolso, bem como exerce a boa-fé no sentido de lealdade com a outra parte, seguindo orientação na
nova concepção contratual em que as partes estão unidas para um fim comum qual seja a execução do contrato
conforme o pactuado”. SCHIMIDT NETO, André Perin. Revisão dos contratos com base no superendividamento. Do
Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil. Curitiba: Juruá, 2012, p. 307.
29
Sobre o tema, vide MIRAGEM, Bruno. Direito bancário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. EFING, Antônio
Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves. Defesa judicial do consumidor bancário. Dissertação de
mestrado. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2014.
30
Segundo o Manual de Normas e Instruções do Banco Central – MNI, “é vedado ao banco comercial (...) b) realizar
operações que não atendam aos princípios da seletividade, garantia, liquidez e diversificação de riscos” (MNI 16.7.2.2).
31
MIRAGEM, Bruno. Direito bancário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 70.
32
Nesse sentido, Heloisa Carpena e Rosangela Lunardelli Cavallazzi, ao afirmarem que a teoria do abuso do direito
aplica-se aos contratos de crédito ao consumo. “É evidente que o fornecedor que concede crédito aquém não tem
condições de cumprir o contrato está praticando abuso do direito. Embora aparentemente o contrato se insira
na esfera do lícito, na medida em que satisfaça requisitos formais, na verdade o fornecedor pratica ato abusivo,
desviando-se das finalidades sociais que constituem o fundamento de validade da liberdade de contratar,
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
355
No ordenamento brasileiro o art. 39, IV, do CDC qualifica como abusiva a prática
do fornecedor que “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em
vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos
ou serviços”. Assim, o dispositivo já qualifica como prática abusiva prevalecer-se da
fragilidade do consumidor para impor a contratação de produtos e serviços. Não
obstante, não faz a necessária diferenciação entre prática abusiva e assédio de consumo,
muito embora sejam conceitos muito próximos.
Prática abusiva, na definição de Herman Benjamim, é aquela praticada “em des
conformidade com padrões mercadológicos de boa conduta em relação ao consumidor”,36
ferindo a ordem jurídica por afronta à boa-fé, à ordem pública e os bons costumes. As
práticas abusivas se caracterizam a partir de comportamentos, tanto na esfera contratual
quanto à margem dela, que abusam da boa-fé do consumidor ou situação de inferioridade
econômica, em que ele fique exposto, ampliando a sua vulnerabilidade, incluindo assim
o assédio ao consumo.
Segundo Claudia Lima Marques, o assédio ao consumo é um dos elementos ou
espécie da prática comercial agressiva, caracterizada pelo assédio, pela coerção e pela
influência indevida de profissional. Para a autora, “a prática agressiva é aquela que
tenta pressionar o consumidor de forma a influenciar (paralisar ou impor) sua decisão
de consumo, explorando emoções, medos, confiança em relação a terceiros, explorando
a posição de expert do fornecedor e as circunstâncias especiais do consumidor”.37 O
assédio ao consumo pode ser definido como “pressões exercidas pelos fornecedores
que acabam impedindo uma decisão racional do consumidor”.38
Mas não é somente no momento da contratação que ocorre o assédio ao consumo.
Ele pode acontecer durante a execução dos contratos, principalmente nos contratos de
crédito de cunho continuado, que assumem contornos de contratos existenciais, na
medida em que se tornam indispensáveis no cotidiano de centenas de consumidores,
contratos caracterizados como contratos cativos de longa duração, na expressão cunhada
por Claudia Lima Marques. São contratos como cheque especial, cartão de crédito e
crédito consignado, entre outros.
Na caracterização do assédio ao consumo devem ser considerados aspectos
relativos à função social do crédito, notadamente as qualidades peculiares do crédito
contratado (objetivas e subjetivas), tais como as “condições pessoais do consumidor,
a finalidade do crédito, a repercussão social e os efeitos no núcleo familiar”.39 Assim,
há que se averiguar se o crédito é destinado à satisfação de necessidades básicas como
alimentação, moradia, vestuário, ou se o crédito é destinado aos consumos de segunda
ordem, tais como férias, refeições fora de casa, viagens, entre outros, ou seja, se os gastos
se relacionam com cultura e lazer, entre outras finalidades.
36
BENJAMIN, Herman et al. Manual de Direito do Consumidor. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 251.
37
MARQUES, Claudia Lima. Prefácio. In: SAMPAIO, Marilia de Ávila e Silva. Justiça e superendividamento. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 12.
38
HOWELLS, Geraint. Agressive Commercial Practices. In: HOWELS, Geraint; MICKLITZ, Hans; W.
WILHELMSSON, Thomas. European fair trading law. The unfair commercial practices directive. Hampshire:
Ashgate, 2006 p. 172. Apud MARQUES, Claudia Lima. Prefácio. In: SAMPAIO, Marilia de Ávila e Silva. Justiça e
superendividamento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 13.
39
OLIVEIRA, Andressa Jarletti Gonçalves. Defesa judicial do consumidor bancário. Dissertação de mestrado.
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2014, p. 197.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
357
40
Segundo Teresa Negreiros, “(...) o paradigma da essencialidade sintetiza uma mudança do modo de se conceber
os princípios do contrato, traduzindo a superação de uma concepção predominantemente patrimonialista
essencialmente neutra do fenômeno contratual. Com tal, o paradigma da essencialidade proporciona instrumentos
e conceitos que permitem tratar os problemas sociais como problemas a serem enfrentados também pelo direito
contratual, constituindo ao mesmo tempo uma expressão e um compromisso do estudioso desta área do saber
jurídico com a tutela da dignidade essencial da pessoa humana (...)”. NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato. Novos
paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 380.
41
Em sentido similar, Ruy Rosado de Aguiar, com base na doutrina do prof. Junqueira Azevedo, classifica os
contratos em contratos existenciais e contratos de lucro ou empresariais. Os contratos existenciais “(...) teriam
por objeto da prestação um bem considerado essencial para a subsistência da pessoa, com a preservação dos
valores inerentes à sua dignidade, nos termos propostos pela Constituição da República”. AGUIAR, Ruy Rosado.
Contratos relacionais, existenciais e de lucro. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 45, p. 101, jan./mar. 2011.
42
FRADE, Catarina (Coord.). Desemprego e sobre-endividamento dos consumidores: contorno de uma ‘ligação
perigosa’. Projecto Desemprego e Endividamento das Famílias PIQS/ECO 50119/2013. Relatório Final. Governo
da República Portuguesa: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, p. 34.
43
MARQUES, Claudia Lima. Prefácio. In: SAMPAIO, Marilia de Ávila e Silva. Justiça e superendividamento. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 13.
44
Aqui não se está a abordar a questão dos contratos relacionais e suas diferenças estruturais em relação aos
contratos descontínuos, mesmo que abertos, o que será objeto de análise no próximo tópico.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
358 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
45
O art. 43 do CDC regulamentou a atividade dos cadastros de inadimplentes, nos seguintes termos: “Art. 43.
O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas,
registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.
§1º Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil
compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos. §2º
A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao
consumidor, quando não solicitada por ele. §3º O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados
e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a
alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas. §4º Os bancos de dados e cadastros relativos a
consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público. §5º
Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos
Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito
junto aos fornecedores. §6º Todas as informações de que trata o caput deste artigo devem ser disponibilizadas em
formatos acessíveis, inclusive para a pessoa com deficiência, mediante solicitação do consumidor”.
MARÍLIA DE ÁVILA E SILVA SAMPAIO
CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE SUPERENDIVIDAMENTO E CONCESSÃO RESPONSÁVEL DE CRÉDITO
359
46
Sobre as informações excessivas, Leonardo Bessa esclarece que “se pode ser verdadeiro que, sob a ótica econômica,
quanto mais informações, melhor é a avaliação de crédito (more is better), para o direito, para a proteção jurídica
da privacidade, é fundamental restringir, tanto no tempo como na qualidade e quantidade, as informações
que circulam pelos bancos de dados. (...) os dados coletados devem ser visivelmente úteis para os objetivos
específicos do arquivo. Se não atenderem a esse pressuposto, a coleta e o tratamento das informações devem
ser considerados ilegais, ilegítimos e ofensivos à privacidade (art. 5º, X, da CF)”. Já em relação às informações
sensíveis, pontua o autor que “o regime de dados sensíveis varia de acordo com a concepção a este respeito
em cada ordenamento, mas é certo que, em todos os casos, objetiva-se atender a necessidade de se estabelecer
uma área na qual a probabilidade de utilização discriminatória de informação é potencialmente maior – sem
deixarmos de reconhecer que há situações onde tal consequência pode advir sem que sejam utilizados dados
sensíveis ou então a utilização destes dados se prestem a fins legítimos e lícitos”. BESSA, Leonardo Roscoe.
Cadastro positivo. Comentários à Lei 12.414 de 9 de junho de 2014. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011, p. 94/96.
47
Sobre maiores detalhes e informações sobre o projeto ver PLP 441/2017, inteiro teor, disponível em: <http://www.
camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao>. Acesso em: 04 jun. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
360 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
III - Na avaliação do risco de crédito, devem ser respeitados os limites estabelecidos pelo
sistema de proteção do consumidor no sentido da tutela da privacidade e da máxima
transparência nas relações negociais, conforme previsão do CDC e da Lei n. 12.414/2011.
IV - Apesar de desnecessário o consentimento do consumidor consultado, devem ser a
ele fornecidos esclarecimentos, caso solicitados, acerca das fontes dos dados considerados
(histórico de crédito), bem como as informações pessoais valoradas.
V - O desrespeito aos limites legais na utilização do sistema “credit scoring”, configurando
abuso no exercício desse direito (art. 187 do CC), pode ensejar a responsabilidade objetiva
e solidária do fornecedor do serviço, do responsável pelo banco de dados, da fonte e do
consulente (art. 16 da Lei n. 12.414/2011) pela ocorrência de danos morais nas hipóteses de
utilização de informações excessivas ou sensíveis (art. 3º, §3º, I e II, da Lei n. 12.414/2011),
bem como nos casos de comprovada recusa indevida de crédito pelo uso de dados incorretos
ou desatualizados.
4 Considerações finais
O superendividamento, fruto perverso da cultura do consumismo, merece ser
tratado como um fenômeno que envolve a um só tempo escolhas feitas pelo devedor,
mas, ao mesmo tempo, como um fenômeno que pode advir do descumprimento dos
deveres mais elementares de informação e aconselhamento por parte dos fornecedores
de crédito.
No caso brasileiro, a concessão maciça do microcrédito destinado a fomentar o
consumo foi adotada como padrão de política macroeconômica do governo, fazendo
crer que, com o aumento do consumo de determinados bens adquiridos pela antecipação
de créditos, a população tivesse, de fato, um aumento de qualidade de vida e inclusão
social. Essa promessa não se concretizou.
É preciso que fique claro, entretanto, que a concessão maciça de crédito para
consumo em tempos de estabilidade econômica e de pleno emprego não significa por
si só um problema, na medida em que o endividamento representa a outra face do
48
MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2016, p. 438.
49
Conclusões apresentados em acórdão do TJDFT. Merece destaque a conclusão do acórdão que estabeleceu
parâmetros para a limitação dos descontos: “Para que não seja estendido o presente entendimento a toda e
qualquer espécie de mútuo bancário, urge destacar os parâmetros objetivos que amparam o provimento ora
restritivo: (a) o volume de empréstimos concedido é manifestamente superior à capacidade de solvência do
correntista; (b) o credor conhecia a noticiada insuficiência de recursos; (c) os descontos incidem sobre verba
alimentar indispensável à manutenção do devedor, fato que pode ser presumido, pois a soma das prestações
a serem debitadas consome mais da metade da renda mensal do trabalhador”. BRASIL. Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e Territórios, 6ª Turma. APC 2011091011352-DF. Relatora: Desembargadora Vera Andrighi.
DJe 06 ago. 2013. O mesmo posicionamento pode ser observado nos processos da mesma relatora de n. EIC
20110110512500; APC 20090111584026; APC 20100111314895; APC 20080111444339.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
362 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
Introdução
Tradicionalmente, o modelo de substituição da vontade na tomada de decisões
fundamentou a incapacitação total ou parcial de pessoas com deficiência – sobretudo
intelectual e mental – a partir da ideia de que os representantes destas suprem todas ou
algumas decisões de suas vidas, anulando-se ou limitando-se suas respectivas capacidades
jurídicas. No âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos (DSR), essencialmente exercidos
diretamente por seus titulares, a representação substitutiva coloca-se como entrave
particularmente complexo. Este modelo pautou a redação do Código Civil de 2002
(CC/2002), que qualificava como absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os
atos da vida civil os menores de dezesseis anos; os que, por enfermidade ou deficiência
mental, não tivessem o necessário discernimento; e os que, mesmo por causa transitória,
não pudessem exprimir sua vontade.
Contemplando uma mudança paradigmática no âmbito da capacidade jurídica
das pessoas com deficiência, o art. 12 da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência (CDPD) estabelece o igual reconhecimento perante a lei com a
garantia de apoios na expressão da capacidade legal, assegurando-se, em seu art. 23 da
CDPD, a proteção do exercício de DSR de pessoas com deficiência. Em consonância, a Lei
Brasileira de Inclusão (LBI), reconheceu, no âmbito do Direito brasileiro, o exercício dos
DSR no art. 6º, extinguindo, ainda, a qualificação jurídica da deficiência como geradora
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
366 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
serviços desenhados para todos. A proteção aos direitos das pessoas com deficiência à luz
dos direitos humanos implica a afirmação dos direitos civis e políticos, como também dos
direitos econômicos, sociais e culturais, em virtude da universalidade, indivisibilidade,
interdependência e interrelação de todos eles. Garanti-los satisfatoriamente propicia os
instrumentos para uma vivência com dignidade. A verdadeira adoção do modelo social
pelo Estado acarreta o afastamento de normas jurídicas e práticas sociais que carregam
em si estigmas e discriminações em razão da deficiência e que resultam em situações
desvantajosas, causando prejuízos ao gozo de direitos básicos (BARRANCO; CUENCA;
RAMIRO, 2012, p. 55-56).
Dentre as questões debatidas nas negociações prévias à CDPD, o tema da
capacidade jurídica foi o mais polêmico e controvertido. A delegação do Canadá chegou
a expor proposta de redação do artigo 12 com alusão à circunstância de carência de
capacidade legal e à possibilidade de nomeação de representante legal para atuar em
nome da pessoa com deficiência. As organizações não governamentais fizeram claras
objeções à sugestão e reforçaram que o apoio ao exercício da capacidade legal envolve
diferentes níveis de suporte, porém nenhum deles pode excluir o próprio interessado
no processo decisório (PALACIOS, 2008, p. 423-424).
Por fim, a redação aprovada do artigo 12 enaltece a importância de se promover a
autonomia e a independência individual da pessoa com deficiência, o que inegavelmente
compreende a liberdade para eleger suas próprias escolhas. Assim, dispõe que às pessoas
com deficiência será reconhecido o gozo da capacidade legal em igualdade de condições
com as demais, em todas as esferas da vida (§2º), tomadas as medidas apropriadas para
prover o apoio que necessitarem ao seu efetivo exercício (§3º), combinadas com a adoção
de salvaguardas que lhes assegure o respeito a seus direitos, vontades e preferências
(§4º). Estabelece, ainda, que tais medidas devem ser proporcionais e ajustadas às
circunstâncias pessoais analisadas caso a caso, além de aplicadas pelo período mais
breve possível e submetidas a regulares revisões (§4º). Depreende-se que a capacidade
jurídica é pressuposto para o desfrute de uma vida independente com real participação
em sociedade.
Já com a CDPD em vigor, à medida que recebia os relatórios sobre o cumprimento
das obrigações contraídas perante a Organização das Nações Unidas (art. 35), o Comitê
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência observou que havia uma confusão coletiva
na interpretação do alcance do art. 12, que trata do igual reconhecimento pela lei, e
que o mal-entendido advinha, sobretudo, da incompreensão sobre a dimensão e o
significado do modelo de deficiência baseado nos direitos humanos. A garantia de que
o gozo da capacidade legal se dará em igualdade de condições com os demais envolve
impreterivelmente a mudança de paradigma na tomada de decisões, do modelo de
substituição para o de apoio (ONU, 2014, p. 1).
Como condição estática, a incapacidade precisa ser flexível para compreender a exata
medida da necessidade do caso, para não se contrapor à capacidade de discernimento,
que se manifesta de forma dinâmica frente às situações em concreto (REQUIÃO, 2017,
p. 77).
Na escrita do CC/2002, constavam como absolutamente incapazes de exercer
pessoalmente os atos da vida civil (i) os menores de dezesseis anos; (ii) os que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tivessem o necessário discernimento para a
prática desses atos; (iii) os que, mesmo por causa transitória, não pudessem exprimir
sua vontade (art. 3º). A este tempo, a categoria de relativamente incapazes a certos atos
ou à maneira de exercê-los cabia (i) aos maiores de dezesseis e menores de dezoito
anos; (ii) aos ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental,
tenham o discernimento reduzido; (iii) aos excepcionais, sem desenvolvimento mental
completo; (iv) aos pródigos.
Assim, a partir da leitura do CC/2002, nota-se que a incapacidade de exercício
era graduada segundo níveis de discernimento, então avaliado de modo prévio com
base em parâmetros médicos. Se a compreensão era reduzida, incidia a categoria de
relativamente incapaz. Se, porém, era insuficiente à prática de atos com repercussão
jurídica, estabelecia-se a incapacidade absoluta, que os obstava por completo e
determinava a representação. Após as mudanças, a incapacidade absoluta tornou-se
puramente objetiva pela exclusividade do critério etário. A incapacidade relativa, por
sua vez, absorveu o caráter escalonado, tendo seus efeitos definidos pelo potencial de
expressão da vontade.
No tocante à tutela dos direitos existenciais, a LBI acolheu a teoria da incindibilidade
entre a titularidade do direito e a capacidade de exercício, ao dispor que a curatela afeta
tão somente os atos relacionados aos direitos patrimoniais e negociais (art. 85, caput),
sem alcançar o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade,
à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (art. 85, §1º), em lista não exaustiva. Desfaz-
se a dualidade entre estes conceitos, o que quer dizer que, quanto a tais direitos, a
capacidade de direito ou de gozo, aquela que decorre da própria personalidade, apreende
a capacidade de fato, de maneira que não é possível as separar. Assim, as pessoas com
deficiência têm plena capacidade para exercer pessoalmente seus direitos existenciais.
Tais situações existenciais, que se evidenciam em circunstâncias de intimidade e
de construção da esfera privada (TEIXEIRA, 2010, p. 167), diferem significativamente dos
direitos patrimoniais, que têm seus institutos jurídicos “tutelados em razão e nos limites
da sua função social”. Por outro lado, os atributos existenciais da pessoa humana não
devem atrair o campo jurídico, por interessar e dizer respeito apenas a si mesma. Neste
ponto, “o ordenamento deverá tão somente garantir-lhe o espaço onde desenvolver as
suas escolhas autônomas, salientando o fato de que de toda liberdade decorre, direta
e proporcionalmente, uma responsabilidade” (BODIN DE MORAES, 2010, p. 148).
É justamente por serem componentes da personalidade individual que se faz “necessário
que sejam garantidos titularidade e o exercício de todas aquelas expressões de vida”
(PERLINGIERI, 2007, p. 165).
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
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1
Sobre os mitos que envolvem a sexualidade e a deficiência, Maia e Ribeiro (2010, p. 159) apontam os seguintes:
(1) pessoas com deficiência são assexuadas: não têm sentimentos, pensamentos e necessidades sexuais; (2)
pessoas com deficiência são hipersexuadas: seus desejos são incontroláveis e exacerbados; (3) pessoas com
deficiência são pouco atraentes, indesejáveis e incapazes para manter um relacionamento amoroso e sexual; (4)
pessoas com deficiência não conseguem usufruir o sexo normal e têm disfunções sexuais relacionadas ao desejo, à
excitação e ao orgasmo; (5) a reprodução para pessoas com deficiência é sempre problemática porque são pessoas
estéreis, geram filhos com deficiência ou não têm condições de cuidar deles.
2
“Sus características intelectuales los han condicionado a ser tratadas como enfermos y como ‘niños eternos’,
objeto de cuidado. […] De allí la tendencia a ‘medicalizar’ su sexualidad, polarizándola entre seres ‘asexuados’
e ‘infantilizados’. En cualquiera de los casos, estas personas son valoradas socialmente con expresiones
‘patológicas’, las cuales deben ser sometidas a regulación y control externo” (HERNÁNDEZ; STERNBERG;
SÁNCHEZ, on-line, p. 3).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
370 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
pessoa do titular, sem que seja admitida a substituição de vontade, de modo que a decisão
pode ser ponderada por outros, mas cabe apenas a ele tomá-la. Por isso, a esterilização
da pessoa com deficiência não pode, em qualquer hipótese, ocorrer involuntariamente
por ingerência da família ou do Estado, porque depende imprescindivelmente de sua
anuência, como resultado de um querer determinado por suas próprias razões.
A respeito do corpo com deficiência, habitá-lo “é viver em um corpo marcado
socialmente pelo estigma, pela desvantagem social ou pela rejeição estética” (BUTLER,
2003, p. 16). De fato, uma das barreiras que mais comprometem a participação social em
igualdade de condições é o estigma em torno da deficiência, tomada como elemento que
deprecia os atributos e necessidades inerentes à pessoa. Neste ambiente, o combate não
se faz à sexualidade e à parentalidade, mas aos preconceitos, aos estereótipos persistentes
e à desinformação.3
A despeito dos impedimentos mentais ou intelectuais, as condutas qualificadas no
âmbito biomédico como distúrbios de conduta sexual têm sua gênese determinada mais
por adversidades ambientais e educativas do que por questões atinentes à deficiência
(MAIA, 2006, p. 93). Em virtude de escassas informações sobre sexualidade e menos
oportunidades de estar em espaços de socialização, são prováveis manifestações de teor
sexual em descompasso com as regras sociais. Consequentemente, o desejo exteriorizado,
comum a todo ser humano, pode aparentar imoderado e inadequado aos olhos dos
demais, a partir da imposição do “normal” como parâmetro de controle de condutas.
Para o outro, do corpo com deficiência, observado através da lente da fragilidade e
vulnerabilidade humana, não sobressai o corpo sexual,4 que é costumeiramente negado
(MAIA; RIBEIRO, 2010, p. 166-167).
O direito de se relacionar no plano afetivo e de manter relações sexuais se coloca
como parte do desenvolvimento da personalidade e como realização pessoal, razão
por que não existem distinções entre as pessoas com e sem deficiência, sendo que as
primeiras devem ter garantido o arbítrio sobre o próprio corpo, ensejando-se o desfrute
da sexualidade com a mesma liberdade que os demais. Para que as desvantagens sejam
contornadas, no entanto, fazem-se necessárias ações de educação sexual especializadas5
que lhes permitam compreender o funcionamento do corpo e conhecer os mecanismos
de reprodução e contracepção, assim como os problemas associados à saúde sexual.
Tal qual pessoas sem deficiência, o segmento de pessoas com deficiência deve ter
3
“É bastante comum nos depararmos, nos discursos de pais, educadores e profissionais, com a ideia – equivocada
– de que os comportamentos sexuais nas pessoas com deficiência mental são aberrantes e decorrem do quadro
orgânico da deficiência mental. Atualmente, é consensual na literatura a ideia de que as possíveis limitações e
comportamentos ‘inadequados’ resultam principalmente dos processos de educação e socialização diferenciados,
que não ensinam nem preparam a pessoa deficiente para adequar suas manifestações sexuais e para entender sua
própria sexualidade nas relações sociais existentes. Apesar disso ou em decorrência disso, observamos que há,
no discurso leigo, uma concepção da sexualidade do deficiente mental como um ‘problema’ a ser solucionado”
(MAIA, 2006, p. 91-92).
4
“Ou seja, ao invés de a priori serem buscadas as lacunas e impossibilidades das pessoas com deficiência na
esfera sexual, deve-se abrir para a descoberta de novos potenciais que a variação corporal e funcional enseja
para a vida afetiva, erótica e sexual. Portanto, os pressupostos do modelo social da deficiência apontam para
a valorização das experiências das pessoas com deficiência na construção de formas singulares e criativas de
vivenciar a sexualidade, que não necessariamente precisam seguir o ciclo de resposta sexual normatizado pelo
DSM-5” (GESSER; NUERNBERG, 2014, p. 860).
5
La educación para la autodeterminación es un proceso continuo, en el que la persona es el principal agente causal
de su vida y, por lo tanto, tiene el derecho a construir, aprender y descubrir su sexualidad como parte integral de
su desarrollo como ser social (HERNÁNDEZ; STERNBERG; SÁNCHEZ, on-line, p. 5).
LUANA ADRIANO ARAÚJO, CAROLINA ROCHA CIPRIANO CASTELO
O CORPO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA EM FACE DO PLS Nº 757/2015: A (IN)SUBSTITUIÇÃO DA SEXUALIDADE E DA REPRODUTIVIDADE...
371
assegurado “el derecho a llevar una vida marcada por sus decisiones personales e ideas”
(PARLAMENTO EUROPEU, 2013).
6
As investigações que motivaram a redação deste trabalho consideram a data de 28 de maio de 2018 como
fechamento das incursões bibliográficas e documentais.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
372 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Art. 85 da LBI: A curatela afetará tão somente os Art. 85 da LBI: A curatela das pessoas com defi-
atos relacionados aos direitos de natureza patrimo- ciência será limitada aos aspectos considerados es-
nial e negocial. tritamente necessários para a defesa e a promoção
§1º A definição da curatela não alcança o direito de seus interesses, preferencialmente limitando-se
ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à aos atos e negócios jurídicos de natureza patrimo-
privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao nial, respeitada a maior esfera possível de autono-
voto. mia para os atos da vida civil. [...]
§4º As limitações previstas no §1º deste artigo não
se aplicam nas hipóteses excepcionais previstas
nos §§2º e 3º do art. 1.768-B da Lei nº 10.406, de 10
de janeiro de 2002.
Art. 1.768-B do CC/2002. O juiz determinará, se-
gundo a capacidade de fato da pessoa de com-
preender direitos e obrigações e de manifestar a
própria vontade, os limites da curatela, buscando
equilíbrio entre a maior esfera possível de autono-
mia dessa pessoa e as limitações indispensáveis à
proteção e à promoção de seus interesses. [...]
§2º Excepcionalmente, e com fundamento em ava-
liação biopsicossocial, o juiz poderá estender os
limites da curatela para atos de caráter não patri-
monial, inclusive para efeito de casamento, quan-
do constatar que a pessoa não tiver discernimento
suficiente para a prática autônoma desses atos.
§3º Na hipótese do §2º deste artigo, o juiz poderá
condicionar a prática de determinados atos não pa-
trimoniais a uma prévia autorização judicial, que
levará em conta o melhor interesse do curatelado.
Como se vem insistindo, a curatela não pode se estender aos aspectos existenciais, ou
seja, àqueles interesses que impactam imediatamente na esfera personalíssima do sujeito,
consubstanciando-se em direitos fundamentais de personalidade. Tratam-se de direitos cuja
titularidade se imiscui com a capacidade de exercício, a exemplo da privacidade, do direito
sobre o corpo, da intimidade, da constituição de família, etc. Assim, somente o titular do
direito de constituir família poderá decidir sobre casar-se ou não; somente a pessoa pode,
voluntariamente, reconhecer um filho, decidir sobre intervenções no seu próprio corpo,
assinar sua diretiva antecipada de vontade ou responder pela conveniência ou não de se
submeter a um tratamento médico que envolva risco de morte.
casamento contraído por absolutamente incapaz. Nesse sentido, Menezes (2017, p. 151)
posiciona-se pela invalidade do casamento “daquele que não tem qualquer discernimento
e assim foi declarado absolutamente incapaz”. Similarmente, Tartuce sugere a nulidade
nos casos em que não haja qualquer discernimento e nos casos em que o nubente não
puder exprimir a vontade (TARTUCE, 2015, p. 6).
Diferentemente, posiciona-se a linha argumentativa que se insurge contra a
alteração no regime de incapacidades civis proposto pela LBI, uma vez que “as pessoas
com ou sem deficiência não podem ser incluídas no conceito de absolutamente inca
pazes, mesmo que não possam expressar a sua vontade, tendo em vista que o direito
à capacidade plena, ainda que moral, é um direito humano fundamental” (SENADO
FEDERAL, 2018). Para este entendimento, a alteração proposta pela LBI, no sentido de
extirpar a categoria da absoluta incapacidade para outros que não aqueles com menos de
16 anos de idade, apresenta-se escorreita, de sorte que não poderiam subsistir motivos
de nulidade de casamento contraído pautada na inexistência do discernimento. Neste
sentido, parecer da Senadora Lídice da Mata, apontando que o discernimento de certas
pessoas com deficiência pode ser “bem diferente ou até questionável diante de padrões
comuns, mas isto não significa que o discernimento não exista e que a vontade mani
festada possa ser ignorada” (SENADO FEDERAL, 2018).
desenvolver e reforçar este marco teórico qualifica-se como imprescindível para o êxito da
mudança revolucionária que busca operar o art. 12, traduzindo-se, nas ordens nacionais
dos Estados-partes, no reconhecimento das pessoas com deficiência como sujeitos de
direitos plenos e ativos, capazes de exercer por si mesmos todas as liberdades de que
são titulares (CUENCA, 2012, p. 133). Assim é que, a partir do marco convencional, a
proteção passa a residir no reconhecimento da capacidade, oportunizando-se o exercício
direto dos direitos fundamentais por seus titulares.
Assim, o Comitê sobre Direitos das Pessoas com Deficiência promoveu
entendimento de que a capacidade jurídica de ser titular de direitos concede à pessoa
a proteção plena de seus direitos no ordenamento jurídico. Para fixar ainda mais a
diferenciação, fixa o órgão:
O instituto das incapacidades foi imaginado e construído sobre uma razão moralmente
elevada, que é a proteção dos que são portadores de uma deficiência juridicamente
apreciável, assinalando que o intuito da lei foi o de oferecer proteção às pessoas que
padecem de incapacidade, considerando a diversidade de condições pessoais dos incapazes
e a maior ou menor profundidade da redução no discernimento, graduando a forma de
proteção.
social de deficiência. Pode-se afirmar, neste sentir, que a proteção, a partir do modelo
biomédico, sobressai-se como justificativa da alteração constante em PLS nº 755/2015;
contudo, referido argumento apresenta um viés diferente quando analisado sob as lentes
do modelo social, refletindo invisibilização da vontade.
Quanto às questões afetas ao direito ao próprio corpo, ressalte-se que, apesar de
silente em sede de justificativa, o projeto propõe a possibilidade de extensão da curatela
ao âmbito dos direitos personalíssimos. Bariffi (2014, p. 396) aponta que os sistemas de
Direito Civil de origem no Direito romano, que tradicionalmente abordam o exercício
da capacidade jurídica nos códigos civis, têm se centrado historicamente na dimensão
patrimonial dos direitos (contratos, direitos reais, responsabilidade civil, sucessões,
etc.), deixando de lado ou abordando insuficientemente a dimensão pessoal dos direitos
(matrimônio, poder familiar, adoção, decisões sobre o corpo ou a saúde, etc.). Contudo, o
parágrafo 2º do art. 12 da CDPD é claro quanto à aplicação tanto aos aspectos patrimoniais
quanto pessoais das pessoas com deficiência. Nesse sentido, Araújo et al (2017, p. 8):
7
É preciso destacar que, em 1996, quando da promulgação da Lei de Planejamento Familiar cotejada, restou emitido
veto presidencial no tocante ao citado artigo 10. Cumpre destacar que mensagem presidencial considerava, em
seus motivos, a fragilidade na averiguação da vontade manifestada no caso de pessoas absolutamente incapazes.
Vejamos o conteúdo: “A esterilização, condicionada apenas à vontade das pessoas, não deve ser praticada, porque
se trata de clara mutilação, com perda da função, possível apenas quando haja precisa indicação médica, para
eliminar dano maior à saúde do paciente ou quando for irreversível a afecção do órgão reprodutor. (...) Nesse
quadro, avulta a esterilização de incapazes, em que se incluem os menores de idade e os privados de faculdades
para a manifestação de vontade. No último caso, é preciso ter a advertência de que a incapacidade, enquanto
não declarada judicialmente, supõe habilitação para atos da vida civil, podendo daí resultar induzimento de
pessoas em tais condições a aceitar a esterilização. A autorização judicial, de outro lado, não é garantia contra
possível violação da integridade física do incapaz, porque a iniciativa do processo supõe que o seu interesse
estaria sendo ajuizado por outra pessoa. É certo que, por não endereçar disposições reguladoras do processo
judicial, a esterilização, em tal hipótese, estará inviabilizada, razão bastante havendo, por isso mesmo, para
sequer seja prevista, como mínimo de cautela para não trair uma intenção não suficientemente clara”. Disponível
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
378 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
No que diz respeito aos atos existenciais, o substitutivo, além de manter a atual
redação do art. 85 da LBI, esclarece a não afetação da curatela em relação aos direitos
personalíssimos, repetindo a redação do §1º do art. 85 da LBI na proposição de inserção
de um novo preceptivo ao CC/2002, qual seja:
Art. 1.781-A. A curatela das pessoas de que trata o art. 1.767 observará ainda o que se
segue: [...]
V - afeta tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial,
não alcançando direitos ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à
educação, à saúde, ao trabalho e ao voto;
Conclusão
Não obstante possam existir impedimentos mentais ou intelectuais, considerando
níveis de funcionamentos cognitivos diferenciados, as pessoas com deficiência têm iguais
necessidades, inclusive quanto às vivências afetivas, sexuais e reprodutivas. Enquanto
dimensão humana, independentemente do modo como se processe, a sexualidade se
compreende como direito de personalidade. Por isso, a pessoa com deficiência, em
qualquer cenário e circunstâncias, detém a titularidade e o exercício dos direitos sexuais
e reprodutivos. Em absoluto, rechaça-se a possibilidade de ingerência do curador, da
família ou do Estado nas questões existenciais, os quais somente podem atuar como
apoios no processo decisório.
No que diz respeito à análise do PLS nº 757/2015, percebe-se que quanto aos
DSR, propõem-se alterações fundamentais no art. 85 da LBI, relativizando-se a restrição
absoluta da afetação da curatela aos atos patrimoniais e negociais, de maneira a possi
bilitar sua incidência em direitos existenciais – tais como o direito ao próprio corpo, à
sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
380 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo
Horizonte: Fórum, 2019. p. 365-381. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE:
UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS
ANTECIPADAS DE VONTADE
Introdução
As diretivas antecipadas de vontade permitem o prolongamento da autonomia
da pessoa para as situações em que ela esteja impossibilitada de manifestar sua vontade.
O instituto surge em um ambiente de questionamento do paternalismo e de contestação
dos paradigmas médicos dominantes gerado principalmente pelo desenvolvimento
extraordinário da ciência e pelos relatos de abusos que vêm a público a partir da Segunda
Guerra Mundial.1
Esclarecendo confusões terminológicas, entende-se que as diretivas antecipadas
de vontade são gênero de manifestação antecipada da vontade que comporta diferentes
espécies. O testamento vital é uma delas e consiste na especificação de tratamentos e
procedimentos que o outorgante deseja ou recusa em determinadas situações. A pro
curação para cuidados de saúde – ou mandato duradouro – é outra espécie e, por sua
vez, traduz-se na nomeação de uma pessoa de confiança que decidirá pelo paciente
e garantirá o cumprimento da sua vontade quando este esteja incapaz de fazê-lo.
Já a história de valores – também conhecida como narrativa biográfica ou anamnese
de valores – surgiu recentemente e “[...] proporciona a informação de fundo que aclara
a intenção das vontades antecipadas e inclui detalhes morais, sociais, religiosos e
filosóficos, assim como experiências do paciente e diagnósticos médicos do mesmo”.2
O conhecimento desta nova modalidade de diretiva aqui se deu pela doutrina – onde o
tema aparece com pouca profundidade e de maneira ainda incipiente –, e a partir dela
percebeu-se a necessidade de estudar a temática a nível legislativo.
1
Para saber mais: CASCAIS, António Fernando. Genealogia, âmbito e objecto da bioética. In: SILVA, João Ribeiro;
BARBOSA, António; VALE, Fernando Martins (Coord.). Contributos para a Bioética em Portugal. Lisboa: Cosmos,
2002, p. 47-136.
2
MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema Sanitario de Navarra, Pamplona, v.
30, n. 3, p. 95, 2007, tradução livre.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
384 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1 Revisão de literatura
As histórias de valores são pouco abordadas pela doutrina especializada. Dificil
mente aparecem nas bibliografias dedicadas à manifestação antecipada da vontade,
e mais raro ainda são as obras que se ocupam exclusivamente dessa espécie, também
denominada “anamnese de valores”3 ou “narrativa biográfica”.4
Não obstante a admissão da necessidade de um espaço para manifestação da
subjetividade nas diretivas antecipadas, na revisão de literatura ora realizada percebe-
se o dissenso quanto ao reconhecimento da história de valores como uma modalidade
autônoma de diretiva, que pode ser feita de maneira apartada do testamento vital e da
procuração para cuidados de saúde – tidos como modalidades tradicionais. Devido ao
seu caráter eminentemente subjetivo, diversos autores afirmam que se trata apenas de um
complemento às figuras tradicionais, e que deve constar no corpo destes documentos.5 6
7
Sob outra perspectiva, alguns argumentam sua independência8 9 10 11 no sentido de que
3
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30.
4
NUNES, Lucília; RENAUD, Michel; SILVA, Miguel; ALMEIDA, Rosalvo. Memorando sobre projetos de lei relativos
às diretivas antecipadas de saúde. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida: Lisboa, 2010. Disponível em:
<http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017, p. 2.
5
MABTUM, Matheus Massaro; MARCHETTO, Patrícia Borba. Diretivas antecipadas de vontade como dissen
timento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e jurídico
sobre as diretivas antecipadas de vontade. São Paulo: Editora UNESP Cultura Acadêmica, 2015, p. 113.
6
DADALTO, Luciana. Testamento vital. São Paulo: Atlas, 2015, p. 114.
7
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008.
8
NUNES, Lucília; RENAUD, Michel; SILVA, Miguel; ALMEIDA, Rosalvo. Memorando sobre projetos de lei relativos
às diretivas antecipadas de saúde. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida: Lisboa, 2010. Disponível em:
<http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017, p. 2.
9
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30.
10
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, p. 86, maio 2013.
11
BARROSO, José. La voluntad anticipada en España y en México. Un análisis de derecho comparado en torno a
su concepto, definición y contenido. Boletín mexicano de derecho comparado, v. 131, p. 710, 2011.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
385
12
MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema Sanitario de Navarra, Pamplona, v.
30, n. 3, p. 95, 2007, tradução livre.
13
MABTUM, Matheus Massaro; MARCHETTO, Patrícia Borba. Diretivas antecipadas de vontade como
dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e
jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade. Editora UNESP Cultura Acadêmica, São Paulo, 2015, p. 113.
14
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30, grifo nosso.
15
BARROSO, José. La voluntad anticipada en España y en México. Un análisis de derecho comparado en torno a
su concepto, definición y contenido. Boletín mexicano de derecho comparado, v. 131, p. 710, 2011, grifo nosso.
16
O âmbito de aplicação de uma manifestação antecipada de vontade é objeto de discussões. Alguns autores e
legislações limitam o instituto às decisões em fim de vida, outros abrangem qualquer situação de incapacidade,
ainda que temporária, e há quem vislumbre a possibilidade de disposições com efeitos post mortem.
17
GRACIA, Diego; RODRÍGUEZ SENDÍN, Juan José. La historia de valores. In: Planificación Anticipada de la
Asistencia Médica. Fundación de Ciencias de la Salud, Madrid, 2011, p. 33-34.
18
TEIXEIRA, Luís Felipe Augusto. Valoração da vontade anteriormente manifestada: da perspectiva dos enfermeiros na
tomada de decisão sobre o cuidar em fim de vida. Dissertação em Bioética. Universidade de Lisboa (Faculdade
de Medicina). 130 fls. 2012. Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/7851/1/666249_tese.pdf>.
Acesso em: 24 maio 2017, p. 29-30.
19
GUILLEM-TATAY, David. El documento de voluntades anticipadas: problemas de eficacia social de la norma y
propuestas de solución. Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana: jurisprudencia seleccionada de la Comunidad
Valencia, Valencia, n. 38, 2011, p. 47.
20
GIL Carlos. Panorama internacional de las voluntades anticipadas. Bioética en Atención Primaria [online],
Instituto de Bioética, Zaragoza, 2002, p. 1-22. Disponível em: <http://www.institutodebioetica.org/casosbioetic/
formacioncontinuada/testamentovital/cgil.pdf>. Acesso em: 24 maio 2017, p. 11-12.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
386 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Quanto aos objetivos das histórias de valores, não são profundas as reflexões da
doutrina, que apontam: o auxílio à equipe médica e ao procurador para cuidados de
saúde,21 a correta interpretação do testamento vital22 e a resolução de conflitos.23 Ainda
para os que sustentam sua independência como modalidade, o documento pode, por si
só, governar o tratamento e as diversas decisões que se tome a respeito do outorgante.24
21
MABTUM, Matheus Massaro; MARCHETTO, Patrícia Borba. Diretivas antecipadas de vontade como
dissentimento livre e esclarecido e a necessidade de aconselhamento médico e jurídico. In: O debate bioético e
jurídico sobre as diretivas antecipadas de vontade. São Paulo: Editora UNESP Cultura Acadêmica, 2015, p. 113.
22
GUILLEM-TATAY, David. El documento de voluntades anticipadas: problemas de eficacia social de la norma y
propuestas de solución. Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana: jurisprudencia seleccionada de la Comunidad
Valencia, Valencia, n. 38, p. 47, 2011.
23
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 466, 2013.
24
BARROSO, José. La voluntad anticipada en España y en México. Un análisis de derecho comparado en torno a
su concepto, definición y contenido. Boletín mexicano de derecho comparado, v. 131, p. 710, 2011.
25
Nem todas as legislações analisadas apresentaram resultados conclusivos para os objetivos aqui propostos,
são elas: 1) CONSEJO DE EUROPA. Convenio sobre Derechos Humanos y Biomedicina. Disponível em: <http://
www.bioeticanet.info/documentos/Oviedo1997.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018. 2) UNITED STATES. Patient
Self Determination Act. Disponível em: <http://testamentovital.com.br/legislacao/estados-unidos/>. Acesso em:
03 jun. 2018. 3) FINLAND. Act on the status and rights of patients. Disponível em: <http://www.finlex.fi/fi/laki/
kaannokset/1992/en19920785.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018. 4) NETHERLANDS. Dutch Civil Code. Disponível
em: <http://www.dutchcivillaw.com/civilcodebook077.htm>. Acesso em: 03 jun. 2018. 5) CATALUÑA. Ley 16, de
3 de junio de 2000. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2010-10215>. Acesso em: 03
jun. 2018. 6) CATALUÑA. Decreto 175 de 25 de junio de 2002. Disponível em: <http://www.asesoriayempresas.es/
legislacion/JURIDICO/85072/decreto-175-2002-de-25-de-junio-por-el-que-se-regula-el-registro-de-voluntades-
anticipadas >. Acesso em: 03 jun. 2018. 7) GALÍCIA. Ley 3, de 28 de mayo de 2001. Disponível em: <https://www.
boe.es/buscar/pdf/2001/BOE-A-2001-12770->. Acesso em: 03 jun. 2018. 8) GALÍCIA. Ley 7, de 9 de diciembre de
2003. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2004/BOE-A-2004-742-consolidado.pdf>. Acesso em: 03
jun. 2018. 9) MADRID. Ley 3, de 23 de mayo de 2005. Disponível em: <http://www.madrid.org/wleg_pub/secure/
normativas/contenidoNormativa.jsf?cdestado=P&nmnorma=2983&opcion=VerHtml#no-back-button>. Acesso
em: 03 jun. 2018. 10) ARAGON. Ley 12, de 15 de diciembre de 2016. Disponível em: <http://www.boa.aragon.es/cgi-
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4, de 23 de enero de 2008. Disponível em: <https://sede.asturias.es/portal/site/Asturias/menuitem.1003733838db73
42ebc4e191100000f7/?vgnextoid=d7d79d16b61ee010VgnVCM1000000100007fRCRD&fecha=7/2/2008&refArticu
lo=2008-02104>. Acesso em: 03 jun. 2018. 12) CANTABRIA. Ley 7, de 10 de diciembre de 2002. Disponível em: <https://
www.boe.es/buscar/pdf/2003/BOE-A-2003-323-consolidado.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018. 13) ANDALUZIA. Ley
5, de 9 de outubro de 2003. Disponível em: <http://www.juntadeandalucia.es/boja/2003/210/1>. Acesso em: 03 jun.
2018. 14) VALENCIA. Decreto 168, de 10 de septiembre de 2004. Disponível em: <https://www.dogv.gva.es/portal/
ficha_disposicion_pc.jsp?sig=4137/2004&L=1>. Acesso em: 03 jun. 2018. 15) CASTILLA-LA MANCHA. Ley 6, de
7 de julio de 2005. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2005/BOE-A-2005-14495-consolidado.pdf>.
Acesso em: 03 jun. 2018. 16) PAÍS VASCO. Decreto 270, de 04 de noviembre de 2003. Disponível em: <http://www.
euskadi.eus/decreto/decreto-2702003-de-4-de-noviembre-por-el-que-se-crea-y-regula-el-registro-vasco-de-
voluntades-anticipadas/web01-a2libzer/es/>. Acesso em: 03 jun. 2018. 17) PORTUGAL. Lei nº 25, de 16 de julho de
2012. Disponível em: <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1765&tabela=leis>. Acesso
em: 03 jun. 2018. 18) FRANCE. Loi nº 370, du 22 avril 2005. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/
affichTexte.do?cidTexte=JORFTEXT000000446240&categorieLien=id>. Acesso em: 03 jun. 2018. 19) URUGUAY.
Ley nº 18.473, de 17 de marzo de 2009. Disponível em: <https://legislativo.parlamento.gub.uy/temporales/
leytemp6884033.htm>. Acesso em: 03 jun. 2018.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
387
26
É possível inferir o mesmo do Real Decreto espanhol nº 124/2007 (ESPANHA. Real Decreto nº 124/2007. Disponível
em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2007-3160>. Acesso em: 03 jun. 2018), das legislações das
comunidades autônomas espanholas de Cataluña (CATALUÑA. Ley 21, de 29 de diciembre de 2000. Disponível em:
<http://noticias.juridicas.com/base_datos/CCAA/ca-l21-2000.html>. Acesso em: 03 jun. 2018) e Galícia (GALÍCIA.
Decreto 259, de 14 de enero de 2008. Disponível em: <https://www.xunta.gal/dog/Publicados/2008/20080114/
Anuncio2ED6_es.html>. Acesso em: 03 jun. 2018), e da Lei nº 160/2001 de Porto Rico (PUERTO RICO. Ley nº 160,
de 2001. Disponível em: <http://www.lexjuris.com/lexlex/leyes2001/lex2001160.htm>. Acesso em: 03 jun. 2018).
27
ESPANHA. Ley 41, de 14 de noviembre de 2002. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=
BOE-A-2002-22188>. Acesso em: 03 jun. 2018.
28
Collection of personal information- 33.1. A health care provider is authorized to collect personal information about
an adult from any person if this is necessary for the purposes of exercising a power or carrying out a duty or
function under this Act (BRITISH COLUMBIA. Health Care (consent) And Care Facility (admission). Disponível em:
<http://www.bclaws.ca/Recon/document/ID/freeside/00_96181_01>. Acesso em: 03 jun. 2018).
29
(2) Liegt keine Patientenverfügung vor oder treffen die Festlegungen einer Patientenverfügung nicht auf die
aktuelle Lebens- und Behandlungssituation zu, hat der Betreuer die Behandlungswünsche oder den mutmaßlichen
Willen des Betreuten festzustellen und auf dieser Grundlage zu entscheiden, ob er in eine ärztliche Maßnahme
nach Absatz 1 einwilligt oder sie untersagt. Der mutmaßliche Wille ist aufgrund konkreter Anhaltspunkte zu
ermitteln. Zu berücksichtigen sind insbesondere frühere mündliche oder schriftliche Äußerungen, ethische
oder religiöse Überzeugungen und sonstige persönliche Wertvorstellungen des Betreuten (GERMANY. Die ge
setzlichen Grundlagen der PatVerfü im Bürgerlichen Gesetzbuch (BGB). Disponível em: <https://www.patverfue.de/
handbuch/pv-gesetz>. Acesso em: 03 jun. 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
388 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
30
BRITISH COLUMBIA. Power Of Attorney Act. Disponível em: <http://www.bclaws.ca/civix/document/id/
complete/statreg/96370_01>. Acesso em: 03 jun. 2018.
31
MANITOBA. Health Care Directives Act. Disponível em: <http://web2.gov.mb.ca/laws/statutes/ccsm/h027e.php>.
Acesso em: 03 jun. 2018.
32
ONTARIO. Substitute Decisions Act. Disponível em: <https://www.ontario.ca/laws/statute/92s30>. Acesso em:
03 jun. 2018.
33
Personal directives - 3. (1) A person with capacity may make a personal directive: (a) setting out instructions or
an expression of the maker’s values, beliefs and wishes about future personal-care decisions to be made on his
or her behalf; and (b) authorizing one or more persons who, except in the case of a minor spouse, is or are of the
age of majority to act as delegate to make, on the maker’s behalf, decisions concerning the maker’s personal care
(ALBERTA. Personal Directives Act. Disponível em: <http://www.qp.alberta.ca/documents/Acts/p06.pdf>. Acesso
em: 03 jun. 2018).
34
Artículo 17. La expresión anticipada de voluntades – La expresión anticipada de voluntades es el documento emitido
por una persona mayor de edad, con capacidad legal suficiente y libremente, dirigido al médico responsable de
su asistencia, en el cual expresa las instrucciones sobre sus objetivos vitales, valores personales y las actuaciones
médicas que deberán ser respetados cuando se encuentre en una situación en que las circunstancias que concurran
no le permitan expresar personalmente su voluntad. La expresión de los objetivos vitales y valores personales
tiene como fin ayudar a interpretar las instrucciones y servir de orientación para la toma de decisiones clínicas
llegado el momento. Artículo 18. Documento de expresión anticipada de voluntades – El documento de expresión
anticipada de voluntades deberá recoger, al menos, los siguientes datos: [...] h) Otras consideraciones, como
objetivos vitales, valores personales, decisiones sobre la donación de órganos, etc. (EXTREMADURA. Ley 3,
de 8 de junio de 2005. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2005-13470>. Acesso em:
03 jun. 2018).
35
Artículo 2. Contenido - Las voluntades anticipadas podrán contener: a) La manifestación de sus objetivos vitales
y sus valores personales (ISLAS BALEARES. Ley 1, de 3 de marzo de 2006. Disponível em: <https://www.boe.es/
buscar/pdf/2006/BOE-A-2006-6090-consolidado.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018).
36
Artículo 5. Contenido y límites- 1. El documento de instrucciones previas podrá contener las siguientes previsiones:
a) La expresión de objetivos vitales, calidad de vida y expectativas personales; así como las opciones personales
en cuanto a valores éticos, morales, culturales, sociales, filosóficos o religiosos (RIOJA. Ley 9, de 30 de septiembre de
2005. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2011/BOE-A-2011-19056-consolidado.pdf>. Acesso em: 03
jun. 2018).
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
389
37
Artículo 4. Contenido de la manifestación anticipada de voluntad - [...] 2. Además, podrá recoger las indicaciones de
naturaleza ética, moral o religiosa que expresen sus objetivos vitales y valores personales para que orienten
a los profesionales médicos en la toma de decisiones clínicas (CANARIAS. Decreto 13, de 8 de febrero de 2006.
Disponível em: <http://www.gobiernodecanarias.org/libroazul/pdf/53055.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018).
38
Artículo 3. Contenido del documento de instrucciones previas [...] 3. Asimismo, en el documento de instrucciones
previas se pueden hacer constar los objetivos vitales y valores personales que ayuden a interpretarlas y se
pueden designar uno o varios representantes para que, llegado el caso, sirvan como interlocutores con el médico
o el equipo sanitario para procurar su cumplimiento (CASTILLA Y LEÓN. Decreto 30, de 22 de marzo de 2007.
Disponível em: <https://www.saludcastillayleon.es/institucion/es/recopilacion-normativa/asistencia-sanitaria/
prestaciones-derechos/decreto-30-2007-22-marzo-regula-documento-instrucciones-pre>. Acesso em: 03 jun.
2018).
39
Artículo 3. Representante del otorgante – [...] 2. El representante interpretará los valores y directrices que consten en
el documento de instrucciones previas, de forma adecuada a las circunstancias y proporcionada a las necesidades
que haya que atender, siempre a favor del otorgante y con respeto a su dignidad como persona (MURCIA.
Decreto 80, de 8 de julio de 2005. Disponível em: <https://www.murciasalud.es/legislacion.php?id=70264>. Acesso
em: 03 jun. 2018).
40
PAÍS VASCO. Ley 7, de 12 de diciembre de 2002. Disponível em: <https://www.boe.es/buscar/pdf/2011/BOE-A-2011-
19056-consolidado.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018.
41
Também neste sentido são as disposições da Lei nº 26.529, de 21 de octubre de 2009, art. 11 (ARGENTINA. Ley
nº 26.529, de 21 de octubre de 2009. Disponível em: <http://www.uba.ar/archivos_secyt/image/Ley%2026529.pdf>.
Acesso em: 03 jun. 2018), e Ley de Voluntad Anticipada para el Distrito Federal, art. 3º (MÉXICO. Ley de voluntad
anticipada para el Distrito Federal. Disponível em: <http://www.aldf.gob.mx/archivo-077346ece61525438e126242a3
7d313e.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018).
42
24.(1) “Advance decision” means a decision made by a person (“P”), after he has reached 18 and when he has
capacity to do so, that if (a) at a later time and in such circumstances as he may specify, a specified treatment
is proposed to be carried out or continued by a person providing health care for him, and; (b) at that time he
lacks capacity to consent to the carrying out or continuation of the treatment, the specified treatment is not
to be carried out or continued (ENGLAND AND WALES. Mental Capacity Act. Disponível em: <http://www.
mentalhealthlaw.co.uk/Mental_Capacity_Act_2005>. Acesso em: 03 jun. 2018).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
390 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Quem afirma por escrito sua negativa a que lhe ponham um respirador pode estar pensando
na possibilidade de um câncer. Mas, e se ingressa por um acidente de carro e o respirador
pode salvar sua vida usando-o por alguns dias? O que o médico deveria fazer então?48
43
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 464, 2013.
44
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, maio 2013, p. 119.
45
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, maio 2013, p. 119.
46
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 464, 2013.
47
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, maio 2013, p. 116-117.
48
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008, tradução livre.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
391
49
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica”. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008.
50
MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema Sanitario de Navarra, Pamplona,
v. 30, n. 3, p. 90, 2007.
51
Martínez chega a sustentar que as diretivas antecipadas podem ser supérfluas neste sentido, porque não
descartam a necessidade de deliberação sobre os cuidados de saúde. A afirmação do autor soa um tanto quanto
extrema. Mesmo o mais pessimista precisa considerar que, estando o paciente incapaz de manifestar sua vontade,
essas espécies de documento são, no mínimo, um indicativo da sua vontade, ao menos um ponto de partida para
a tomada de decisão.
52
LEÓN-CORREA, Francisco Javier. Las voluntades anticipadas: cómo conjugar autonomía y beneficencia. Análisis
desde la bioética clínica. Revista CONAMED, Cidade do México, v. 13, n. 3, p. 30, 2008.
53
SIURANA, Juan Carlos. Una revisión de los argumentos a favor y en contra de las voluntades anticipadas. Actio
– Revista del Departamento de Filosofía de la Práctica, Montevideo, n. 15, p. 118-119, maio 2013.
54
GUILLEM-TATAY, David. El documento de voluntades anticipadas: problemas de eficacia social de la norma y
propuestas de solución. Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana: jurisprudencia seleccionada de la Comunidad
Valencia, Valencia, n. 38, p. 52, 2011.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
392 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
55
Sobre a questão Martínez chega a afirmar que “toda informação que não parte diretamente do próprio paciente é
essencialmente pouco confiável” (MARTÍNEZ, K. Los documentos de voluntades anticipadas. Anales del Sistema
Sanitario de Navarra, Pamplona, v. 30, n. 3, p. 92, 2007).
56
DADALTO, Luciana; TUPINAMBÁS, Unai; GRECO, Dirceu Bartolomeu. Diretivas antecipadas de vontade: um
modelo brasileiro. Revista Bioética, Brasília, v. 21, n. 3, p. 469, 2013.
57
ESTEVES, Rafael; MULTEDO, Renata Vilela. Reflexões sobre o conteúdo não patrimonial da relação médico-
paciente. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro,
Renovar, 2012, p. 315-338.
58
DADALTO, Luciana. Testamento vital. São Paulo: Atlas, 2015, p. 178-179.
59
Definida por Sarlet: “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo
de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante
e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e corrresponsável nos destinos da própria existência e da vida em
comunhão com os demais seres humanos” (SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa
Humana: Construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
393
Art. 1º. Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e
expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não,
receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente,
sua vontade.
Art. 2º [...]
§1º. Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações
serão levadas em consideração pelo médico.62
Não é possível pela leitura destes dispositivos concluir que a expressão de valores
pessoais é permitida ou vedada, porque o desejo sobre cuidados e tratamentos pode se
manifestar pela sua especificação ou pela indicação dos objetivos de vida, do conceito
de vida boa, das crenças e convicções do outorgante.
O Enunciado nº 37 da I Jornada de Direito da Saúde realizada pelo Conselho
Nacional de Justiça também se propõe a uma definição de diretivas antecipadas, e parece
excluir a possibilidade de constância de valores pessoais quando exige a especificação
dos tratamentos médicos.
Constitucional – RBDC, Brasil, n. 9, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://bit.ly/2axb85U>. Acesso em: 26 abr. 2017.
p. 383).
60
Afirmando o pluralismo ético-social como valor fundante do Estado Democrático de Direito, Diogo Luna
Moureira e Maria de Fátima Freire de Sá afirmam que é do respeito às iguais liberdades que o Direito retira a
sua legitimidade (MOUREIRA, Diogo Luna; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Autonomia para morrer: Eutanásia,
Suicídio Assistido, Diretivas Antecipadas de Vontade e Cuidados Paliativos. Belo Horizonte: Del Rey, 2015,
p. 93).
61
Ana Carolina Brochado Teixeira defende a construção dinâmica e individual do conceito de saúde, que “pode
variar de acordo com cada pessoa, suas experiências de vida, sua cultura, o local onde habita, entre outros fatores
[...]”. Segundo a autora há uma relação necessária entre saúde e autonomia – tendo em conta a dignidade humana
e o pluralismo como alicerces do Estado Democrático de Direito – visto que apenas a pessoa pode determinar o
que é bom para si (TEIXEIRA, Corpo, Liberdade e Construção da Vida Privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 510-
511).
62
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1995/2012. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.
br/resolucoes/cfm/2012/1995_2012.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018.
63
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados aprovados na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional
de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/ENUNCIADOS_APROVADOS_NA_JORNADA_DE_
DIREITO_DA_SAUDE_%20PLENRIA_15_5_14_r.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
394 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
não têm força de lei, e as redações são, ainda, passíveis de diversas críticas pela confusão
terminológica ou pela restrição indevida do conteúdo das diretivas. E segundo porque
se trata de uma modalidade de manifestação legítima da subjetividade do paciente, que
pode se revestir de força jurídica em respeito aos princípios, direitos e valores elencados,
quais sejam: a dignidade, a liberdade, o pluralismo e a saúde.
Considerando que a pessoa é livre e pode decidir os rumos da própria vida –
sendo essa uma condição inerente à dignidade humana –, e que incumbe ao Estado e
a sociedade aceitar e promover meios para o exercício dessa liberdade – respeitando o
pluralismo ético-social –, a manifestação antecipada de vontade antecipada encontra
aporte no Direito Pátrio, independente da espécie. E, conforme afirma Diego Gracia e
Juan José Rodríguez Sendín, “[s]e entende-se que os desejos de um paciente merecem
respeito, não parece adequado ignorar a sua vontade de deixar registrados os valores
que sustentam as suas decisões”.64
Concordamos com Anderson Schreiber quando afirma que a manifestação da
vontade nessa seara deve ser o mais livre possível, por se tratar de um aspecto extremo e
fluido da existência humana,65 mas ressaltamos a necessidade de um diploma normativo
específico sobre as diretivas antecipadas de vontade. Diploma este que, longe de esmiuçar
procedimentos e formalidades desmedidas, deve esclarecer essas questões tão essenciais
para a efetividade do instituto na qualidade de garantidor do respeito à subjetividade
da pessoa.
Conclusão
As diretivas antecipadas visam à proteção dos aspectos existenciais da pessoa,
possibilitando estender sua autonomia para situações em que esteja incapacitada de
manifestar sua vontade e corporifica-se em diferentes espécies. A história de valores
como modalidade que expressa os valores pessoais, crenças, objetivos e prioridades
do outorgante tem o condão de tornar mais efetivo o instituto, porque se harmoniza
às diferentes situações clínicas apresentadas, mitiga as influências indevidas dos
profissionais da saúde e auxilia tanto na atualização e interpretação do testamento
vital quanto na atuação do procurador para cuidados de saúde. Incentiva-se, inclusive,
a combinação das três espécies, constituindo-se um interessante sistema de pesos e
medidas para a tomada de decisão.
Muito embora a modalidade seja incipiente e desperte divergências doutriná
rias e legislativas em torno da (in)dependência, da forma de elaboração e das funções,
as histórias de valores são um instrumento hábil de manifestação da subjetividade.
Mesmo no contexto pátrio, em que não há qualquer previsão legal, é possível ancorar
sua legitimidade em uma interpretação integrativa do ordenamento jurídico brasileiro
a considerar a dignidade da pessoa humana, o pluralismo-ético social, a liberdade e o
direito à saúde.
64
GRACIA, Diego; RODRÍGUEZ SENDÍN, Juan José. La historia de valores. In: Planificación Anticipada de la
Asistencia Médica. Fundación de Ciencias de la Salud, Madrid, 2011.
65
SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 63.
CHRISTIANE SOUZA LIMA ALVES
HISTÓRIA DE VALORES DO PACIENTE: UMA NOVA MODALIDADE DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
395
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
398 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
ALVES, Christiane Souza Lima. História de valores do paciente: uma nova modalidade de diretivas
antecipadas de vontade. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro
de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 383-398. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
O BIG DATA SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E
PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
EDUARDO MAGRANI
Introdução
A tecnologia tem avançado de forma acelerada e contribuído para melhorar a
forma como vivemos. Além de interferir na maneira como os indivíduos agem, novas
tecnologias mudam o modo pelo qual as pessoas se relacionam entre si, com as empresas
e com o governo.
É inegável que tais tecnologias trazem inúmeros benefícios. A reboque, contudo,
surgem questionamentos regulatórios e éticos ligados à sua utilização. Com cada vez
mais dispositivos conectados, relacionados ao cenário que vem sendo denominado de
Internet das Coisas (“Internet of Things” ou IoT),1 surgem diversos riscos e desafios. O
primeiro deles que gostaríamos de ressaltar se relaciona ao direito à privacidade.
Os dados gerados através do uso desses inúmeros dispositivos inteligentes são
coletados e armazenados pelas empresas, as quais nem sempre agem de forma trans
parente. Os termos de uso e de serviço costumam ser extremamente técnicos e ininte
ligíveis para a população em geral. Não é raro que a finalidade destinada aos dados seja
escondida dos próprios usuários, os quais não possuem controle sobre as informações
que se referem a eles próprios.
1
De maneira geral, a Internet das Coisas pode ser entendida como um ecossistema de objetos físicos interconectados
com a Internet, por meio de sensores pequenos e embutidos, criando um ecossistema de computação onipresente
(ubíqua), voltado a facilitar o cotidiano das pessoas, introduzindo soluções funcionais nos processos do dia a dia.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
400 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
2
Big data é um termo em evolução que descreve qualquer quantidade volumosa de dados estruturados,
semiestruturados ou não estruturados que têm o potencial de ser explorados para obter informações.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
401
3
Artigo 8º “Direito ao respeito pela vida privada e familiar 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua
vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade
pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência
que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o
bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da
moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”.
4
Artigo 12º “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na
sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa
tem direito a protecção da lei”.
5
No Brasil, o direito à privacidade, esfera do direito à vida privada, está intimamente conectado à proteção da
dignidade e personalidade humanas e pode ser extraído do reconhecimento constitucional dado à intimidade,
à vida privada e à inviolabilidade de dados. Cf. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme;
MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 390. Destacamos
os seguintes dispositivos da Constituição Federal sobre o tema: art. 5º (...) X - “são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;” e XII - “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de
dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a
lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;”.
6
Como afirma Stefano Rodotà, “As novas dimensões da coleta e do tratamento de informações provocaram a
multiplicação de apelos à privacidade e, ao mesmo tempo, aumentaram a consciência da impossibilidade
de confinar as novas questões que surgem dentro do quadro institucional tradicionalmente identificado por
este conceito”. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância – a privacidade hoje. Organização, seleção
e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Tradução: Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 23.
7
POST, Robert C. Three Concepts of Privacy. Georgetown Law Review, v. 89, p. 2087, 2001.
8
WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, 1890.
9
SARLET; MARINONI; MITIDIERO. Op. cit., p. 393-394.
10
Ibid., p. 394.
11
Sobre os diferentes conceitos de privacidade, v. LEONARDI, Marcel. Tutela e Privacidade na Internet. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 52 e ss.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
402 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
As demandas que moldam o perfil da privacidade hoje são de outra ordem [diferentes
da tutela da privacidade como o direito de ser deixado só], relacionadas à informação e
condicionadas pela tecnologia. Hoje, a exposição indesejada de uma pessoa aos olhos
alheios se dá com maior frequência através da divulgação de seus dados pessoais do que
pela intrusão em sua habitação, pela divulgação de notícias a seu respeito na imprensa, pela
violação de sua correspondência – enfim, por meios ‘clássicos’ de violação da privacidade.
Ao mesmo tempo, somos cada vez mais identificados a partir dos nossos dados pessoais,
fornecidos por nós mesmos aos entes, públicos e privados, com os quais mantemos relações;
ou então coletados por meios diversos. Tais dados pessoais são indicativos de aspectos de
nossa personalidade, portanto merecem proteção do direito enquanto tais.20
12
Caitlin Mulholland, por exemplo, apresenta três concepções sobre o direito à privacidade, quais sejam, “(i) o
direito de ser deixado só, (ii) o direito de ter controle sobre a circulação dos dados pessoais, e (iii) o direito
à liberdade das escolhas pessoais de caráter existencial” e acrescenta a esta lista “o direito de não tomar
conhecimento acerca de um dado pessoal”. (MULHOLLAND, Caitlin. O direito de não saber como decorrência
do direito à intimidade. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 3, 2012).
13
Confira-se, sobre o tema, SLOAN, Robert H.; WARNER, Richard. Unauthorized Access: The Crisis in Online
Privacy and Security. London/New York: CRC Press, 2014; MADDEN, Mary. Privacy management on social
media sites. A Project of the Pew Research Center. Disponível em: <http://www.isaca.org/Groups/Professional-
English/privacy-data-protection/GroupDocuments/PIP_Privacy%20mgt%20on%20social%20media%20sites%20
Feb%202012.pdf>. Acesso em: 07 fev. 2016.
14
Mulholland apresenta caso no qual um paciente fizera exame para pesquisar, dentre outros, a existência do
vírus da Hepatite C e recebeu, em virtude de o exame de sangue conduzido pelo laboratório ter sido outro que
não o solicitado, o resultado positivo do exame anti-HIV. Para Mulholland, “divulgação à pessoa de dado não
requisitado configura violação ao seu direito de não saber e gera, incontestavelmente, o direito à indenização por
danos morais”. MULHOLLAND. Op. cit., p. 11.
15
Sobre o tema, v. MORAES, Maria Celina Bodin de. Biografias não autorizadas: conflito entre a liberdade de
expressão e a privacidade das pessoas humanas? Editorial. Civilistica.com, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 1-4, 2013.
16
Eduardo Magrani defende em artigo publicado na Internet Policy Review que, no novo contexto tecnológico,
a concepção de privacidade deve mudar para a ideia de “não rastreamento”, consolidando um “direito ao não
rastreio”. [In this new technological context, the conception of privacy must shift to the idea of “non-tracking”,
consolidating a “right to non-tracking”]. Confira em: MAGRANI, Eduardo. The emergence of the Internet of
Anonymous Things (AnIoT). Internet Policy Review – Journal on Internet Regulation, jun. 2017. Disponível em:
<https://policyreview.info/articles/news/emergence-internet-anonymous-things-aniot/693>. Acesso em: 28 set.
2017.
17
RODOTÀ. Op. cit., p. 92.
18
Ibid., p. 92.
19
DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 14.
20
Ibid., p. 1.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
403
Note, ainda, que a privacidade não tem apenas o caráter de liberdade negativa –
isto é, a liberdade de não ser impedido ou de não ser obrigado a fazer algo21 –, mas
também o de liberdade positiva – ou seja, liberdade como autonomia, liberdade enquanto
possibilidade de direcionar seu próprio querer sem ser determinado por outros22 23 –,
ligada ao controle dos dados, o que se deve ao contexto social advindo de evoluções
tecnológicas. Atualmente, “a informação assume papel de bem econômico e elemento
estruturante para o desenvolvimento das relações sociais, sendo, pois, o signo maior
desta anunciada e consolidada revolução socioeconômica”.24
Como pontua Stefano Rodotà, a noção de vida privada vem sendo expandida
devido, dentre outros fatores, ao desenvolvimento da tecnologia. Assim, o conceito passa
a abranger o “conjunto de ações, comportamentos, opiniões, preferências, informações
pessoais, sobre os quais o interessado pretende manter um controle exclusivo”.25 A con
cepção do que seja privado, “tende a abranger o conjunto das atividades e situações de
uma pessoa que tem um potencial de ‘comunicação’, verbal e não verbal, e que pode,
portanto, se traduzir em informações”.26
O fator tecnológico possui papel de destaque, uma vez que, com a melhora
da capacidade de armazenamento e de comunicação de informações, surgem novas
maneiras de organizar, utilizar e se apropriar da informação.27 Como destaca Danilo
Doneda, “esta crescente importância traduz-se no fato de que uma considerável parcela
das liberdades individuais hoje são concretamente exercidas através de estruturas nas
quais a comunicação e a informação têm papel relevante”.28
O desenvolvimento tecnológico permite a criação de perfis de comportamento
que podem até se confundir com a própria pessoa.29 Tais perfis, aliados à manipulação
de dados colhidos, podem gerar sérios impactos na liberdade:
21
Como conceitua Norberto Bobbio, “[p]or liberdade negativa, na linguagem política, entende-se a situação na
qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado, por outros
sujeitos. (...) A liberdade negativa costuma também ser chamada de liberdade como ausência de impedimento
ou de constrangimento: se, por impedir, entende-se não permitir que outros façam algo, e se, por constranger,
entende-se que outros sejam obrigados a fazer algo, então ambas as expressões são parciais, já que a situação de
liberdade chamada de liberdade negativa compreende tanto a ausência de impedimento, ou seja, a possibilidade
de fazer, quanto a ausência de constrangimento, ou seja, a possibilidade de não fazer” (BOBBIO, Norberto.
Igualdade e liberdade. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 48-49).
22
Para Bobbio, “[p]or liberdade positiva, entende-se -na linguagem política -a situação na qual um sujeito tem
a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser
determinado pelo querer de outros. Essa forma de liberdade é também chamada de autodeterminação ou, ainda
mais propriamente, de autonomia” (Ibid., p. 51).
23
Sobre o tratamento da privacidade como liberdade negativa ou positiva, v. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto.
Privacidade, Mercado e Informação. Justitia, São Paulo, n. 61, p. 245-259, jan./dez. 1999.
24
BIONI, Bruno Ricardo. A produção normativa a respeito da privacidade na economia da informação e do livre
fluxo informacional transfronteiriço. In: ROVER, Aires José; CELLA, José Renato Gaziero; AYUDA, Fernando
Galindo. Direito e novas tecnologias. Florianópolis: CONPEDI, 2014, p. 65.
25
RODOTÀ. Op. cit., p. 92.
26
Ibid., p. 93.
27
DONEDA. Op. cit., p. 153.
28
Ibid., p. 153-154.
29
Como pontua Danilo Doneda, na técnica profiling, “os dados pessoais são tratados, com o auxílio de métodos
estatísticos, técnicas de inteligência artificial e outras mais, com o fim de obter uma ‘metainformação’, que
consistiria numa síntese dos hábitos, preferências pessoais e outros registros da vida desta pessoa. O resultado
pode ser utilizado para traçar um quadro das tendências de futuras decisões, comportamentos e destinos de uma
pessoa ou grupo”. (Ibid., p. 173).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
404 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Uma outra técnica ainda diz respeito à uma modalidade de coleta dos dados pessoais,
conhecida como data mining. Ela consiste na busca de correlações, recorrências, formas,
tendências e padrões significativos a partir de quantidades muito grandes de dados,
com o auxílio de instrumentos estatísticos e matemáticos. Assim, a partir de uma grande
quantidade de informações em estado bruto e não classificada, podem ser identificadas
informações de potencial interesse.30
Assim, se, por um lado, a tecnologia traz inegáveis benefícios à sociedade como um
todo, cria, de outro lado, problemas à proteção da privacidade. Apesar de a tecnologia
ajudar a moldar uma esfera privada mais rica, contribui para que essa esfera seja cada
vez mais frágil e exposta a ameaças, de onde deriva a necessidade do fortalecimento
contínuo de sua proteção.31
A necessidade de uma maior proteção dos dados pessoais se aprofunda no cenário
da Internet das Coisas.32 Neste contexto, a crescente conectividade com os mais diversos
dispositivos de tecnologia gera uma fonte praticamente inesgotável de informações
acerca do dia a dia dos usuários de tais dispositivos. Tendo em vista que ao se falar
em privado temos em mente informações de caráter pessoal,33 é imprescindível dedicar
especial proteção aos dados e às informações geradas através de conexões à internet e
de dispositivos ligados à IoT.34
O Brasil, diferente da maioria dos países da América Latina35 e da Europa,36 ainda
não possui arcabouço legislativo suficiente para garantir a proteção à privacidade
30
Ibid., p. 176.
31
RODOTÀ. Op. cit., p. 95.
32
“Com o advento de novas tecnologias, notadamente o desenvolvimento da biotecnologia e da Internet, o acesso
a dados sensíveis e, consequentemente, a sua divulgação, foram facilitados de forma extrema. Como resultado,
existe uma expansão das formas potenciais de violação da esfera privada, na medida em que se mostra a
facilidade por meio da qual é possível o acesso não autorizado de terceiros a esses dados. Com isso, a tutela
da privacidade passa a ser vista não só como o direito de não ser molestado, mas também como o direito de ter
controle sobre os dados pessoais e, com isso, impedir a sua circulação indesejada”. (MULHOLLAND. Op. cit.,
2012, p. 3).
33
RODOTÀ. Op. cit., p. 93.
34
Em sentido similar, Danilo Doneda afirma que os dados pessoais “merecem uma atenção particular, seja pela
dinamicidade de seu conteúdo como pelo novo cenário que procura regular, marcado pela forte presença da
tecnologia”. DONEDA. Op. cit., p. 362. Também Carlos Affonso de Souza se posiciona nesse sentido, afirmando
que “as ameaças ao direito à privacidade foram severamente incrementadas na medida em que o progresso
tecnológico permitiu maiores facilidades ao indivíduo. O tratamento da informação por computadores permite
não apenas seu célere processamento para fins idôneos, mas também para o célere cruzamento de dados
sigilosos ou a interceptação dos mesmos em uma rede, por exemplo. A Internet, expoente de tal avanço, é, por
consequência, o cenário onde atualmente se discute a nova tutela demandada pela necessidade de privacidade
pessoal”. (SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. O progresso tecnológico e a tutela jurídica da privacidade, Direito,
Estado e Sociedade, n. 16, p. 23, jan./jul. 2000).
35
Há leis promulgadas, por exemplo, na Argentina, no Chile e na Colômbia. Cf. BANISAR, David. National
Comprehensive Data Protection/Privacy Laws and Bills 2016. ARTICLE 19: Global Campaign for Free Expression,
2016. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=1951416>. Acesso em: 07 fev. 2017.
36
Na Europa, todos os países, com exceção da Bielorrússia, possuem leis de proteção de dados pessoais.
Cf. BANISAR. Op. cit. Neste continente, com os vazamentos sobre os programas de vigilância dos Estados
Unidos, os eurodeputados agiram de modo a fortalecer as regras já existentes desde 1995. Assim, votaram a
reforma das regras europeias acerca da proteção de dados pessoais, buscando assegurar aos usuários da internet
maior controle sobre seus dados e sujeitar transferências de dados pessoais processados na União Europeia para
fora desta a requisitos mais severos. Cf. REDAÇÃO. Parlamento Europeu reforça proteção dos dados pessoais
dos cidadãos. Parlamento Europeu, mar. 2014. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-
room/20140307IPR38204/parlamento-europeu-reforca-protecao-dos-dados-pessoais-dos-cidadaos>. Acesso em:
07 fev. 2017.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
405
37
A Constituição brasileira prevê reconhecimento ao direito à intimidade, à vida privada (art. 5º, inciso X) e à
inviolabilidade de dados (art. 5º, inciso XII) e aponta o habeas data como instrumento apto a assegurar a proteção de
informações e dados pessoais (art. 5º, inciso LXXII). Também há proteção legislativa no nível infraconstitucional.
O Código Civil de 2002 protege a vida privada (art. 21) e o Código de Defesa do Consumidor dedica a Seção
VI à proteção de bancos de dados e de cadastros dos consumidores. Por fim, o Marco Civil da Internet, vigente
desde 2014, elenca a proteção da privacidade e dos dados como princípios a serem observados na disciplina da
internet como pilar da Lei (art. 3º, incisos II e III). Os artigos 7º e 10 do Marco Civil também abordam o tema. Essa
regulação, contudo, é insuficiente para proteger os dados pessoais e a privacidade em suas mais diversas facetas.
38
Entre os anos 2013 e 2014, foram propostos os PLs nº 330/2013, nº 181/2014 e nº 131/2014, que dispunham sobre
a proteção de dados pessoais em geral e o fornecimento de dados de cidadãos e/ou empresas brasileiras a
organismos estrangeiros, frutos da CPI da Espionagem levada a cabo pelo Senado Federal. Em 2015, estes três
projetos foram apensados e tramitam em conjunto até hoje.
Também tramitam em conjunto o PL nº 4.060/2012 e o Anteprojeto nº 5.276/2016. O Projeto nº 5.276/2016 traz
importantes princípios para que a proteção à privacidade e aos dados pessoais seja efetiva, como o princípio
da finalidade, o princípio da adequação e o princípio da necessidade. O PL sofreu forte influência da regulação
europeia, guardando inúmeras semelhanças com a General Data Protection Regulation, de 2016.
39
LANE, Julia et al. (Ed.). Privacy, big data and the public good: frameworks for engagement. New York: Cambridge
University Press, 2014.
40
Cf. RIJMENAM, Mark van. Why the 3 V’s are not sufficient to describe big data. DATAFLOQ, ago. 2015.
Disponível em: <https://datafloq.com/read/3vs-sufficient-describe-big-data/166>. Acesso em: 27 mar. 2017.
41
CISCO. The zettabyte era: trends and analysis. Cisco, jun. 2016. Disponível em: <www.cisco.com/c/en/us/
solutions/collateral/service-provider/visual-networking-index-vni/vni-hyperconnectivity-wp.html>. Acesso em:
27 mar. 2017.
42
Gigabyte é uma unidade de medida de informação que equivale a 1 trilhão de bytes.
43
Zettabyte é uma unidade de informação que corresponde a 1 sextilhão de bytes (1021).
44
Yottabyte é uma unidade de medida de informação que equivale a 1024 bytes.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
406 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Outra propriedade envolve a alta velocidade45 com que os dados são produzidos,
analisados e visualizados. Além disso, a variedade de formatos de dados representa
um desafio adicional. Essa característica é potencializada pelos diferentes dispositivos
responsáveis por coletar e produzir dados em diversos âmbitos. As informações
produzidas por um mecanismo que monitora a temperatura são bem diferentes das
obtidas em redes sociais, por exemplo. Ademais, a maioria dos dados encontrados não
é estruturada.46
O conceito de Big Data47 pode implicar, ainda, a capacidade de transformar dados
brutos em gráficos e tabelas que permitam a compreensão do fenômeno a ser demons
trado. É importante mencionar que, em um contexto em que decisões são tomadas cada
vez mais com base em dados, é de extrema importância garantir a veracidade destas
informações.48
Nas palavras de Maike Wile dos Santos, “Big Data é mais que um emaranhado de
dados, pois é essencialmente relacional”. Apesar de isso não ser um fenômeno novo, “o
que a internet fez foi dar uma nova dimensão, transformando-o. Para bem entender essas
transformações”, segundo Wile, “precisamos compreender que o Big Data somos nós”.49
De acordo com Hannes Grassegger e Mikael Krogerus:50
Qualquer pessoa que não tenha passado os últimos cinco anos vivendo em outro planeta
estará familiarizada com o termo Big Data. Big Data significa, em essência, que tudo o que
fazemos, tanto online como offline, deixa vestígios digitais. Cada compra que fazemos com
nossos cartões, cada busca que digitamos no Google, cada movimento que fazemos quando
nosso telefone celular está em nosso bolso, cada “like” é armazenado. Especialmente cada
“like”. Durante muito tempo, não era inteiramente claro o uso que esses dados poderiam
ter – exceto, talvez, que poderíamos encontrar anúncios de remédios para hipertensão logo
após termos pesquisado no Google “reduzir a pressão arterial”.51
45
Cf. RIJMENAM. Op. cit.
46
Ibid. Ver, também, MOLARO, Cristian. Do not ignore structured data in big data analytics: the important role of
structured data when gleaning information from big data. IBM Big Data & Analytics Hub, 19 jul. 2013. Disponível
em: <www.ibmbigdatahub.com/blog/do-not-ignore-structured-data-big-data-analytics>. Acesso em: 27 mar.
2017.
47
Para o professor da Universidade Federal de Pernambuco, José Carlos Cavalcanti, o conceito de big data se aplica
a informações que não podem ser processadas ou analisadas usando processos ou ferramentas tradicionais.
Cavalcanti menciona como características básicas do conceito de big data: volume, variedade e velocidade (os
chamados 3 Vs), reconhecendo também a “veracidade” como outra possível característica defendida por outros
autores (CAVALCANTI, Jose Carlos. The new ABC of ICTs (analytics + big data + cloud computing): a complex
trade off between IT and CT costs. In: MARTINS, Jorge Tiago; MOLNAR, Andreea (Org.). Handbook of research on
innovation in information retrieval, analysis and management. Hershey: IGI Global, 2016).
48
Cf. MCNULTY, Eileen. Understanding big data: the seven V’s. Dataconomy, 22 maio 2014. Disponível em: <http://
dataconomy.com/2014/05/seven-vs-big-data/>. Acesso em: 27 mar. 2017.
49
Ver: SANTOS, Maike Wile dos. O big data somos nós: a humanidade de nossos dados. Jota, 16 mar. 2017.
Disponível em: <https://jota.info/colunas/agenda-da-privacidade-e-da-protecao-de-dados/o-big-data-somos-
nos-a-humanidade-de-nossos-dados-16032017>. Acesso em: 27 mar. 2017.
50
GRASSEGGER, Hannes; KROGERUS, Mikael. The data that turned the world upside down. Motherboard, 28 jan.
2017. Disponível em: <https://motherboard.vice.com/en_us/article/how-our-likes-helped-trump-win>. Acesso
em: 27 mar. 2017.
51
Tradução livre dos autores. Lê-se no original: “Anyone who has not spent the last five years living on another planet
will be familiar with the term Big Data. Big Data means, in essence, that everything we do, both on and offline, leaves digital
traces. Every purchase we make with our cards, every search we type into Google, every movement we make when our mobile
phone is in our pocket, every ‘like’ is stored. Especially every ‘like’. For a long time, it was not tirely clear what use this data
could have – except, perhaps, that we might find ads for high blood pressure remedies just after we’ve Googled ‘reduce blood
pressure’.”
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
407
52
FTC STAFF REPORT. Internet of things: privacy & security in a connected world. [S.l.]: [s.n.], 2015. Disponível em: <www.
ftc.gov/system/files/documents/reports/federal-trade-commission-staff-report-november-2013-workshop-
entitled-internet-things-privacy/150127iotrpt.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2017.
53
Vide BARKER, Colin. 25 billion connected devices by 2020 to build the Internet of Things. ZDNet, 11 nov. 2014.
Disponível em: <www.zdnet.com/article/25-billion-connected-devices-by-2020-to-build-the-internet-of-things/>.
Acesso em: 27 mar. 2017.
54
Cf. ROSE, Karen; ELDRIDGE, Scott; CHAPIN, Lyman. The internet of things: an overview. Understanding the
issues and challenges of a more connected world. The Internet Society, out. 2015, p. 1; 4. Disponível em: <www.
internetsociety.org/sites/default/files/ISOC-IoT-Overview-20151022.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2017.
55
“Geladeiras inteligentes são talvez o mais comum dos exemplos quando falamos sobre Internet das Coisas.
O refrigerador Samsung RF28HMELBSR/AA, por exemplo, é equipado com uma tela LCD capaz de reproduzir
a tela de seu smartphone no refrigerador. É possível reproduzir vídeos e músicas, consultar a previsão do
tempo e até mesmo fazer compras online enquanto verifica na geladeira os itens que precisam ser comprados.
O refrigerador traz ainda um app chamado Epicurious, que permite a consulta de receitas online” (NASCIMENTO
Rodrigo, O que, de fato, é internet das coisas e que revolução ela pode trazer? Computerworld, 12 mar. 2015.
Disponível em: <http://computerworld.com.br/negocios/2015/03/12/o-que-de-fato-e-internet-das-coisas-e-que-
revolucao-ela-pode-trazer/>. Acesso em: 29 mar. 2017).
56
Confira-se LANDIM, Wikerson. Wearables: será que esta moda pega? Tec Mundo, jan. 2014. Disponível em:
<www.tecmundo.com.br/tecnologia/49699-wearables-sera-que-esta-moda-pega-.htm>. Acesso em: 31 jan. 2017;
DARMOUR, Jennifer. The internet of you: when wearable tech and the internet of things collide. Artefact Group,
[s.d.]. Disponível em: <www.artefactgroup.com/articles/the-internet-of-you-when-wearable-tech-and-the-
internet-of-things-collide/>. Acesso em: 29 mar. 2017; O’BRIEN, Ciara. Wearables: Samsung chases fitness fans
with gear fit 2. The Irish Times, ago. 2016. Disponível em: <www.irishtimes.com/business/technology/wearables-
samsung-chases-fitness-fans-with-gear-fit-2-1.2763512>. Acesso em: 29 mar. 2017.
57
Sobre o tema, vide ROMAN, Rodrigo; ZHOU, Jianying; LOPEZ, Javier. On the features and challenges of
security and privacy in distributed internet of things. Computer Networks, n. 57. p. 2266-2279, 2013; WEBER, Rolf
H. Internet of things: new security and privacy challenges. Computer Law & Security Review, n. 26. p. 23-30, 2010.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
408 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Tal necessidade foi bem enxergada pelo mercado, que tem explorado a possibi
lidade de personalização e customização automática de conteúdo nas plataformas
digitais, inclusive capitalizando essa filtragem com publicidade direcionada por meio
de rastreamento de cookies e processos de retargeting ou mídia programática (behavioral
retargeting).58
A Federal Trade Commission (FTC) dos Estados Unidos demonstrou preocupações
com a segurança do ecossistema de IoT.59 Por conta disso, questionou o Department of
Commerce recentemente sobre o assunto.60 A FTC estima que cerca de 10.000 habitantes
podem gerar 150 milhões de data points diariamente.61 Os dispositivos captam as
informações, enviam para a central e depois compilam os dados de acordo com as
preferências do usuário.62
Não se tem, hoje, clareza do tratamento despendido aos dados.63 Aspectos sobre a
coleta, o compartilhamento e o potencial uso deles por terceiros ainda são desconhecidos
pelos consumidores. Isso tem competência para abalar – e, em certo sentido, já abala64 – a
confiança dos usuários nos produtos conectados.65
Salienta-se, ainda, o fato de que as falhas de segurança abrem espaço para ataques
visando o acesso às informações geradas pelos próprios dispositivos. Além disso, os
aparelhos inteligentes, quando invadidos, podem gerar problemas não só para o aparelho
em si, interferindo também na própria infraestrutura da rede. Foi o que aconteceu no
final de 2016 com o ataque DDoS,66 ocasião na qual hackers conseguiram suspender
diversos sites invadindo os servidores por meio de câmeras de segurança, revelando
a vulnerabilidade desses dispositivos. Portanto, questões relacionadas à segurança e
proteção de dados pessoais são igualmente importantes para que a IoT se consolide
como o próximo passo da internet.
58
OLIVEIRA, Márcio. Em marketing, big data não é sobre dados, é sobre pessoas! Exame, out. 2016. Disponível em:
<http://exame.abril.com.br/blog/relacionamento-antes-do-marketing/em-marketing-bigdata-nao-e-sobre-dados-
e-sobre-pessoas/>. Acesso em: 31 jan. 2017.
59
FTC STAFF REPORT. Internet of things: privacy & security in a connected world. [S.l.]: [s.n.], 2015. Disponível
em: <www.ftc.gov/system/files/documents/reports/federal-trade-commission-staff-report-november-2013-
workshop-entitled-internet-things-privacy/150127iotrpt.pdf>. Acesso em: 28 mar. 2017.
60
FISHER, Dennis. The internet of dumb things. Digital Guardian, 13 out. 2016b. Disponível em: <https://
digitalguardian.com/blog/internet-dumb-things>. Acesso em: 1 fev. 2017; FISHER, Dennis. FTC warns of security
and privacy risks in IoT devices. On The Wire, 3 jun. 2016a. Disponível em: <www.onthewire.io/ftc-warns-of-
security-and-privacy-risks-in-iot-devices/>. Acesso em: 31 jan. 2017.
61
FTC STAFF REPORT. Op. cit.
62
FISHER. Op. cit.
63
ACCENTURE. Digital trust in the IoT era, [s.d.]. Disponível em: <www.accenture.com/t20160318T035041__w__/
us-en/_acnmedia/Accenture/Conversion-Assets/LandingPage/Documents/3/Accenture-3-LT-3-Digital-Trust-
IoT-Era.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2017.
64
BOLTON, David. 100% of reported vulnerabilities in the Internet of Things are Avoidable. Applause, set. 2016.
Disponível em: <https://arc.applause.com/2016/09/12/internet-of-things-security-privacy/>. Acesso em: 31 jan.
2017; CONSUMER TECHNOLOGY ASSOCIATION. Internet of things: a framework for the next administration
(white paper), 2016. Disponível em: <www.cta.tech/cta/media/policyImages/policyPDFs/CTA-Internet-of-
Things-A-Framework-for-the-Next-Administration.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2017; ACCENTURE. “Digital trust
in the IoT era”, [s.d.], op.cit.; PLOUFFE, James. The ghost of IoT yet to come: the internet of (insecure) things in
2017. Mobile Iron, 23 dez. 2016. Disponível em: <www.mobileiron.com/en/smartwork-blog/ghost-iot-yet-come-
internet-insecure-things-2017>. Acesso em: 31 jan. 2017.
65
MEOLA, Andrew. How the internet of things will affect security & privacy. Business Insider, 19 dez. 2016.
Disponível em: <www.businessinsider.com/internet-of-things-security-privacy-2016-8>. Acesso em: 31 jan. 2017.
66
COBB, Stephen. 10 things to know about the october 21 DDoS attacks. We Live Security, 24 out. 2016. Disponível
em: <www.welivesecurity.com/2016/10/24/10-things-know-october-21-iot-ddos-attacks/>. Acesso em: 31 jan.
2017.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
409
Diante desse cenário, uma das questões de suma importância ligadas à proteção
dos dados pessoais diz respeito a quem os controla e quem tem acesso a eles. No modelo
atual, as empresas de tecnologias são dotadas desse controle e possuem tal acesso.
O próprio indivíduo em relação ao qual as informações são coletadas, muitas vezes,
sequer tem conhecimento de que seus dados estão sendo armazenados e, quando sabe,
não é raro que desconheça a finalidade de tal coleta e armazenamento. Uma sociedade
que se pretenda transparente e democrática não pode prescindir de formas claras e justas
de gerenciamento de dados. É preciso dotar os indivíduos do controle de seus próprios
dados e dar-lhes poder para decidir o que, com quem, quando e para que compartilhar.
67
SJÖBERG, Mats et al. Digital Me: Controlling and Making Sense of My Digital Footprint. In: GAMBERINI, L. et
al. (Ed.). Symbiotic Interaction: Lecture notes in computer science. Padua: Springer, 2016, p. 155-156.
68
RODRIGUES, Alexandre; SANTOS, Priscilla. A ciência que faz você comprar mais. Galileu, [s.d.]. Disponível
em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI317687-17579,00-A+CIENCIA+QUE+FAZ+VOCE+
COMPRAR+MAIS.html>. Acesso em: 25 set. 2017; REDAÇÃO. Varejista norte-americana descobre até gravidez
de clientes com a ajuda de software. Olhar Digital, fev. 2012. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/noticia/
varejista-norte-americana-descobre-gravidez-de-clientes-com-a-ajuda-de-software/24231>. Acesso em: 25 set.
2017.
69
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www.nytimes.com/2012/02/19/magazine/shopping-habits.html?pagewanted=1&_r=1&hp>. Acesso em: 25 set.
2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
410 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
3.1 Digital me
Trata-se de um “sistema de armazenamento que coleta o rastro digital do indivíduo
a partir de dispositivos informáticos pessoais e cujo design está focado em permitir
diferentes tipos de machine learning e aplicativos de processamento de informações para
operar no repositório privado de dados controlado pelo usuário”.71 O sistema mistura
a manipulação interativa com a análise automatizada, o que é de capital importância
para que grandes quantidades de dados pessoais sejam eficientemente gerenciadas.72
Ele pode ser aplicado em diversos cenários de gerenciamento de dados pessoais e está
disponível on-line como software livre e de código aberto.73
Os pesquisadores que desenvolveram o DiMe pontuam que duas abordagens
principais foram propostas para permitir o controle de dados pessoais centrado no ser
humano: 1) o primeiro consiste em centralizar o armazenamento dos dados em si; 2) o
segundo, em concentrar-se no gerenciamento dos fluxos de dados entre fontes e usuários
de dados74 – o indivíduo controla o uso de dados pessoais, que é a lógica do modelo
MyData, o qual será explorado mais à frente.
Apesar de o Digital Me centralizar o armazenamento de dados, há diferenças em
relação a outros personal data storage (PDS), pois: 1) o desenvolvimento do DiMe está
focado na integração com um amplo conjunto de loggers que acompanham o rastro
digital; e 2) o DiMe fornece uma camada de representação para eventos de dados focada
em fornecer soluções de machine learning, estruturar e conectar diferentes dados.75
O DiMe fornece uma interface programática (API) para dois tipos de clientes:
loggers (componentes de software (ou hardware + software) que gravam eventos relacionados
às ações ou ambiente de uma pessoa e enviam-nas para serem armazenadas no próprio
servidor DiMe da pessoa) e aplicações (utilizam os eventos armazenados no DiMe pelos
registradores. Normalmente, apresentam ao usuário uma interface de uso gráfica,
onde uma parte dos dados é visualizada e pode ser manipulada, ou a visão dos dados
pode ser modificada).76 Através do painel de ferramentas, o usuário sempre pode se
deslogar do DiMe, excluir os eventos já gravados e escolher quais dados compartilhar.
70
SJÖBERG. Op. cit., p. 155-167.
71
Lê-se no original: “DiMe is a personal data storage system, which collects the individual’s digital footprint from personal
computing devices, and whose design is focused on enabling different kinds of machine learning and information processing
applications to operate in the user-controlled private data repository”. Ibid., p. 2.
72
Ibid., p. 155-167.
73
Cf. <http://reknow.fi/dime>.
74
SJÖBERG. Op. cit., p. 158-159.
75
Ibid., p. 159.
76
Ibid., p. 159-160.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
411
77
Ibid., p. 160-161.
78
Ibid., p. 162.
79
Ibid., p. 165-166.
80
Ibid., p. 165-166.
81
Ibid., p. 162.
82
Ibid., passim.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
412 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
83
Os pesquisadores são de Universidades do Reino Unido: de Cambridge, Edimburgo, Nottingham, Surrey,
Warmick e Oeste da Inglaterra.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
413
84
Uma análise aprofundada sobre o projeto de segurança fugiria do escopo deste artigo. Mais informações podem
ser conferidas em <http://nymote.org/>.
85
Cf. <https://hubofallthings.com>.
86
Cf. <https://marketsquare.hubofallthings.com/c/apps/rumpel>.
87
Cf. <http://developers.hubofallthings.com/guides/dex>.
88
Idem.
89
Cf. <https://marketsquare.hubofallthings.com>.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
414 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
3.3 MyData
Os dados pessoais têm um valor social, econômico e prático cada vez mais
significativo, mas sua aplicação e uso mais amplo são muitas vezes confundidos com
previsões negativas de um futuro desprovido de privacidade individual.92 O MyData
consiste em uma estrutura com um sistema centrado no ser humano (diferente do
sistema de organização atual) e baseada em direitos para o gerenciamento de dados.
Os indivíduos devem estar no centro do controle de seus próprios dados e seus direitos
humanos digitais devem ser fortalecidos ao mesmo tempo em que as empresas têm
a possibilidade de desenvolver serviços inovadores baseadas na confiança mútua.93
O MyData permite a coleta e o uso de dados pessoais de forma a maximizar os benefícios
obtidos, minimizando a privacidade perdida. Assim, esses valiosos dados permitirão
que os indivíduos interajam com fornecedores, que podem oferecer serviços de dados
e consumo melhores.94
Essa infraestrutura fornece aos indivíduos melhores serviços baseados em dados e
maior privacidade e transparência, aumenta a liberdade de escolha, empodera-os, entre
outros benefícios. A gestão de consentimento é o principal mecanismo para permitir e
aplicar o uso legal de dados. Nesse modelo, os consentimentos são dinâmicos, fáceis de
compreender, legíveis por máquina, padronizados e gerenciados de forma coordenada.
Um formato comum permitirá que cada indivíduo delegue o processamento de dados
a terceiros ou reutilize o uso de dados de novas maneiras.95
90
Cf. <https://marketsquare.hubofallthings.com/c/apps/data-buyer>.
91
Cf. <http://www.hatdex.org/hat-milliner-service>.
92
POIKOLA, Antti; KUIKKANIEMI, Kai; HONKO, Harri. MyData – A Nordic Model for human-centered personal
data management and processing. Ministry of Transport and Communications, [s.d.], p. 3. Disponível em: <https://
www.lvm.fi/documents/20181/859937/MyData-nordic-model/>. Acesso em: 28 set. 2017.
93
Ibid., p. 1.
94
Ibid., pp. 3 e 4.
95
Ibid., p. 7.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
415
O MyData equipa os indivíduos para controlar quem usa seus dados pessoais,
estipular para quais fins podem ser usados e dar consentimento informado de acordo
com os regulamentos de proteção de dados pessoais. Os fluxos de dados tornam-se
mais transparentes, abrangentes e gerenciáveis. Os usuários também podem desativar
fluxos de informações e retirar o consentimento. Por fim, os consentimentos legíveis
por máquina podem ser visualizados, comparados e processados automaticamente.96
Além disso, o MyData é muito útil para as empresas, porque ajudará a integrar
serviços complementares de terceiros em seus serviços principais; simplificará as
operações dentro dos marcos regulatórios atuais e futuros e permitirá o uso de dados para
fins exploratórios; e possibilitará a criação de novos negócios com base no processamento
e gerenciamento de dados.97
É interessante notar que o MyData é complementar ao Big Data, e vice-versa,
porque, sem abordar a perspectiva humana, muitos dos potenciais usos inovadores do
Big Data podem se tornar impossíveis se os indivíduos os percebem como invasivos,
obscuros e inaceitáveis.
Essa abordagem tem três princípios que requerem maturação:
(i) controle sobre os dados centrado no ser humano: o ser humano é um ator ativo na
gestão de sua vida on-line e off-line e “tem o direito de acessar seus dados pessoais
e controlar suas configurações de privacidade”,98 tanto quanto seja necessário para
efetivá-los;
(ii) dados utilizáveis: é necessário que os dados pessoais sejam tecnicamente fáceis
de acessar e legíveis pelas APIs (Application Programming Interfaces). O MyData converte
dados em um recurso reutilizável para criar serviços que ajudam os indivíduos a
gerenciar suas vidas;
(iii) ambiente de negócios aberto: a infraestrutura permite o gerenciamento descen
tralizado de dados pessoais, melhora a interoperabilidade, facilita a conformidade
das empresas com os regulamentos de proteção de dados e permite que os indivíduos
troquem os provedores de serviços sem bloqueio de dados. Assim, “ao cumprir um con
junto comum de padrões de dados pessoais, as empresas e os serviços permitem que
as pessoas exerçam a liberdade de escolha entre serviços interoperáveis”, evitando
que as pessoas tenham seus dados bloqueados em “serviços pertencentes a uma única
empresa porque não podem exportá-los” e levá-los para outro provedor.99
As vantagens e possibilidades que se abrem para os indivíduos foram destacadas
por Doc Sealrs:
96
Ibid., p. 8.
97
Ibid., p. 8.
98
Tradução livre. Lê-se no original: “people have a right to access their personal data and control their privacy settings, as
well as the means necessary to enact these rights”. BELLI, Luca; SCHWARTZ, Molly; LOUZADA, Luiza. Selling your
soul while negotiating the conditions: from notice and consent to data control by design. Health Technology, 2017,
p. 8. Disponível em: <https://link.springer.com/article/10.1007/s12553-017-0185-3>. Acesso em: 28 set. 2017.
99
Tradução livre. Lê-se no original: “by complying to a common set of personal data standards, business and services
make it possible for people to exercise freedom of choice between interoperable services, preventing the current scenario
where people get ‘locked’ into silos of services owned by a single company because they cannot export their data and take it
elsewhere”. BELLI; SCHWARTZ; LOUZADA. Op. cit., p. 8.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
416 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
O MyData é uma infraestrutura mais robusta diante das simples APIs. O agregador
de dados que está sendo usado hoje em dia está evoluindo naturalmente para fora da
economia da API, mas apresenta desvantagens importantes: a falta de interoperabilidade
entre os agregadores de dados e o fato de que a atual fonte dos agregadores não reconhece
necessariamente a privacidade ou se envolve em uma relação transparente com os
indivíduos. A adoção da abordagem do MyData pode levar a uma simplificação sistêmica
do ecossistema de dados pessoais e essa simplificação pode ser feita gradualmente, pois
a plataforma pode ser desenvolvida e implantada em estágios, ao lado da evolução da
economia da API e do modelo de agregador de dados existente.101
Finalmente, é interessante observar como funciona a arquitetura do MyData,
baseia-se em contas interoperáveis e padronizadas:
O modelo fornece aos indivíduos uma maneira fácil de controlar seus dados pessoais
de um único lugar, mesmo que os dados sejam criados, armazenados e processados por
centenas de serviços diferentes. Para desenvolvedores, o modelo facilita o acesso a dados
e remove a dependência de agregadores de dados específicos. As contas geralmente serão
fornecidas por organizações que atuam como operadores MyData. Para organizações ou
100
Tradução livre. Lê-se no original: “a) Manage relationships with organizations; b) Make individuals the collection centers
for their own data, so that transaction histories, health records, membership details, service contracts, and other forms of
personal data are no longer scattered throughout a forest of silos; c) Give individuals the ability to share data selectively,
without disclosing more personal information than the individual allows; d) Give individuals the ability to control how their
data is used by others and for how long. At the individual’s discretion, this may include agreements requiring others to delete
the individual’s data when the relationship ends; e) Give individuals the ability to assert their own terms of service, reducing
or eliminating the need for organization-written terms of service that nobody reads and everybody has to ‘accept’ anyway; f)
Give individuals means for expressing demand in the open market, outside any organizational silo, without disclosing any
unnecessary personal information; g) Base relationship-managing tools on open standards, open APIs (application program
interfaces), and open code; h) Make relationships work both ways”. SEALRS, D. The intention economy: when customers
take charge. Cambridge: Harvard Business Review Press, 2012 apud BELLI; SCHWARTZ; LOUZADA. Op. cit., p.
8-9.
101
POIKOLA, Antti; KUIKKANIEMI, Kai; HONKO, Harri. MyData – A Nordic Model for human-centered personal
data management and processing. Ministry of Transport and Communications, [s.d.], p. 6. Disponível em: <https://
www.lvm.fi/documents/20181/859937/MyData-nordic-model/>. Acesso em: 28 set. 2017.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
417
102
Ibid., p. 6.
103
Ibid., p. 8.
104
OBAR, J. A.; OELDORF-HIRSCH, A. The biggest lie on the internet: ignoring the privacy policies and terms of
service policies of social networking services. In: The 44th Research Conference on Communication, Information and
Internet Policy, 2016, p. 10-22. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2757465>.
Acesso em: 28 set 2017.
105
MCDONALD, A. M.; CRANOR, L. F. The cost of reading privacy policies. I/S: A Journal of Law and Policy for the
Information Society, v. 4, n. 3, p. 543-568, 2008.
106
DATA IS GIVING rise to a new economy. Economist, 6 may 2017. Disponível em: <https://www.economist.com/
news/briefing/21721634-how-it-shaping-up-data-giving-rise-new-economy>. Acesso em: 3 jul. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
418 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
[P]ode-se argumentar que o esquema N&C [notice and consent] baseia-se em uma série de
reivindicações duvidosas. Em primeiro lugar, assume que os indivíduos que expressam
o seu consentimento para PP [Políticas de Privacidade] e ToS [Termos de Serviço] se
comportam como sujeitos econômicos racionais, com tempo e conhecimento para analisar
cuidadosamente o conteúdo de cada contrato. Em segundo lugar, ele postula que os
indivíduos possuem o poder de barganha necessário para aceitar livremente as disposições
incluídas em acordos contratuais definidos unilateralmente pelos prestadores. Tais
107
MAGRANI, Eduardo et al. Terms of Service and Human Rights: an analysis of online platform contracts. Rio de
Janeiro: Revan, 2016, p. 74.
108
Ibid., p. 74.
109
Ibid., p. 47.
110
Ibid., p. 53.
111
É o que afirmou Eduardo Magrani em entrevista à Mobile Time: “O modelo de consentimento falhou. O fato de
existir o termo de consentimento não interessa porque ninguém lê. A maioria das plataformas coleta mais dados
do que o necessário para o serviço que presta, o que não faz o menor sentido”. PAIVA, Fernando. ‘O modelo de
consentimento falhou’, diz o professor da FGV. Mobile Time, set. 2017. Disponível em: <http://www.mobiletime.
com.br/26/09/2017/-o-modelo-de-consentimento-falhou--diz-professor-da-fgv/477582/news.aspx>. Acesso em:
29 set. 2017.
112
BELLI; SCHWARTZ; LOUZADA. Op. cit., p. 4.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
419
113
Tradução livre. Lê-se no original: “Therefore, it may be argued that the N&C scheme is grounded on a series of dubious
claims. Firstly, it assumes that individuals expressing their consent to PP and ToS behave as rational economic subjects,
having the time and knowledge to analyze carefully the content of every contractual agreement. Secondly, it postulates
that individuals hold the bargaining power necessary to freely accept the provisions included in contractual agreements
unilaterally defined by the providers. Such assumptions clearly overestimate both the bargaining power and the degree,
quality and intelligibility of the information at the disposal of individuals who are weighing the costs and benefits of
providing their consent”. Ibid., p. 4.
114
Cf. <http://www.unisys.com/unisys-security-index/>. Acesso em: 27 set. 2017.
115
SOPRANA, Paula. Internet das Coisas: Brasil lidera em disposição para fornecer dados pessoais. Época, set. 2017.
Disponível em: <http://epoca.globo.com/tecnologia/experiencias-digitais/noticia/2017/09/internet-das-coisas-
brasil-lidera-em-disposicao-para-fornecer-dados-pessoais.html>. Acesso em: 28 set. 2017.
116
DATA IS GIVING rise to a new economy. Economist, 6 may 2017. Disponível em: <https://www.economist.com/
news/briefing/21721634-how-it-shaping-up-data-giving-rise-new-economy>. Acesso em: 3 jul. 2017.
117
Ibid.
118
Ibid.
119
DENHAM, Elizabeth. Promoting privacy with innovation within the law (Speech). In: 30TH ANNUAL
CONFERENCE OF PRIVACY LAWS AND BUSINESS, Cambridge, 4 jul. 2017. Disponível em: <https://ico.org.
uk/about-the-ico/news-and-events/news-and-blogs/2017/07/promoting-privacy-with-innovation-within-the-
law/>. Acesso em: 05 jul. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
420 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
120
DATA IS GIVING rise to a new economy. Economist, 6 may 2017. Disponível em: <https://www.economist.com/
news/briefing/21721634-how-it-shaping-up-data-giving-rise-new-economy>. Acesso em: 3 jul. 2017.
121
Ibid.
122
DENHAM. Op. cit.
123
É o que afirma CAVOUKIAN, Ann. Privacy by Design. IEEE Technology and Society Magazine, winter 2012, p. 19.
Confira-se: “I’d also like to clear up a common misconception that privacy somehow stifles innovation. Not true!
In fact, protecting privacy demands the highest level of innovation”.
124
DENHAM. Op. cit.
125
ABITEBOUL, Serge; ANDRÉ, Benjamin; KAPLAN, Daniel. Managing your digital life. Communications of the
ACM, v. 58, n. 5, p. 35, may 2015.
EDUARDO MAGRANI, RENAN MEDEIROS DE OLIVEIRA
SOMOS NÓS: NOVAS TECNOLOGIAS E PROJETOS DE GERENCIAMENTO PESSOAL DE DADOS
421
proveitosos aos indivíduos. Um dos pontos em comum que também merece destaque
é o fato de que os projetos não se limitam a propor uma reunião de dados em um
único local, mas apresentam modelos pelos quais os indivíduos podem compreender
e organizar seus dados, de forma a obter uma visualização mais clara e compreensível
das informações constantes dos sistemas.
Nada obstante, a adesão a essas plataformas ainda é embrionária. As grandes
empresas ligadas à tecnologia e ao gerenciamento de dados, como Facebook e Google,
não têm interesse no avanço de projetos como esses, já que se trata de algo extremamente
disruptivo para seus modelos de negócios. Diante disso, ao lado da maior divulgação
desses projetos, é preciso pensar em formas de fazer com que os usuários se conscientizem
do valor e da importância de seus dados e saibam que podem ter o controle sobre eles,
definindo quem irá utilizá-los, quando e para quê.
Considerações finais
O mundo hiperconectado já é uma realidade. Vivemos constantemente ligados a
plataformas digitais e fazemos uso de serviços on-line, como jornais eletrônicos, redes
sociais e aplicativos de saúde. Esse cenário tem contribuído para a reinterpretação do
direito à privacidade e para seu tratamento diferenciado. O seminal entendimento
que via a privacidade como o direito de ser deixado só é insuficiente para lidar com as
demandas da sociedade da informação. Atualmente, a privacidade deve ser entendida
de forma funcional, assegurando ao sujeito a possibilidade de controlar as informações
sobre ele relacionadas.
Contudo, a forma como o mundo on-line lida com as informações pessoais tem
se distanciado do tratamento ideal da privacidade. Neste sentido, inúmeros serviços
na internet só podem ser acessados com a concessão de acesso a dados pessoais. Para
ler uma matéria de um jornal eletrônico, por exemplo, informações básicas devem ser
fornecidas. Para fazer uma compra em loja virtual, informações mais sensíveis como
endereço e dados de cartões de crédito são colhidas. Tendo em vista que muitos desses
serviços são essenciais à vida no século XXI, muitas pessoas não se importam em
concedê-los ou consideram que se trata de uma troca justa. Porém, isso é prejudicial
para os usuários, que perdem o controle sobre seus dados. Após coletar os dados, as
empresas lhes conferem fins distintos para os quais eles foram colhidos, fazendo, até
mesmo, o compartilhamento com terceiros.
Os dados possuem elevado valor econômico, o que muitos indivíduos desco
nhecem. Para superar o desafio da privacidade e empoderar os indivíduos do controle
de seus próprios dados, projetos de gerenciamento pessoal de dados foram criados. Tais
projetos são benéficos para usuários, que retomam o controle sobre suas informações;
para a indústria, que pode elaborar serviços direcionados às demandas manifestadas
pelos indivíduos; e para a sociedade como um todo, uma vez que o direito fundamental
à privacidade resta protegido. Três iniciativas foram analisadas no presente estudo e
um breve resumo de seus aspectos principais é apresentado a seguir.
O Digital Me (DiMe) tem por base dados pessoais centrados no ser humano.
O sistema suporta a interação manipulativa e a análise automatizada – e a interação entre
ambos é fundamental para gerenciar de forma eficiente grandes quantidades de dados
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
422 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS
DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA
E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
1 Introdução
Com vistas a garantir sua eficiência e sobrevivência perante as oscilações do meio
social, a atividade econômica se estrutura de maneira flexível e sensível às alterações do
ambiente. Elementos como assimetrias de informação, custos de produção, alterações
nos mercados consumidores, dentre outros, fazem com que os agentes econômicos
constantemente procurem alternativas de organização de suas atividades por meio das
quais sejam capazes de reduzir os custos de operação do mercado ou, na expressão
consagrada pela Nova Economia Institucional, os “custos de transação”. Ocorre que,
apesar de agentes econômicos responderem a incentivos econômicos, suas atividades
são estruturadas por intermédio de formas jurídicas, sejam essas formas contratuais
ou societárias, traduzindo em termos legais as suas demandas por graus maiores ou
menores de coordenação.
A distinção entre operações realizadas em mercados – traduzidas para o mundo
jurídico pelas normas de Direito dos Contratos – e estruturas hierárquicas de organização
da atividade econômica – representadas pelas formas jurídicas do Direito Societário
–, contudo, passa a apresentar problemas na medida em que os agentes econômicos
se organizam de forma cooperativa – como ocorre nas sociedades –, porém mediante
estruturas contratuais que não tenham o condão associativo, mantendo-se preservadas
as autonomias das partes. Trata-se das formas híbridas de organização da atividade
econômica, cujos contornos não se acomodam satisfatoriamente no Direito dos Contratos
e tampouco no Direito Societário, constituindo novas categorias jurídicas que requerem
a elaboração de um novo instrumental teórico-dogmático.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
428 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1
KOCKA, Jürgen. Capitalism: a short history. Princeton: Princeton University Press, 2014. p. 21.
2
KOCKA, Op. cit., p. 21-22.
3
BERLE, Adolf; MEANS, Gardiner. The modern corporation and private property. New York: The Macmillan
Company, 1933. p. 1.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
429
4
A grande questão enfrentada por Coase em seu artigo clássico The nature of the firm é, portanto, a de compreender
a razão pela qual as “firmas”, isto é, as organizações, surgem em economias com alto grau de especializa
ção (COASE, Ronald. The nature of the firm. Economica: New Series. v. 4, n. 16, p. 386-405, nov. 1937. p. 390).
A percepção do movimento dos agentes econômicos da contratação direta em mercados para a formação de
estruturas cooperativas em torno de firmas aponta, assim, para a conclusão fundamental de Coase: a de que,
tendo em vista que existem custos de utilização do mecanismo de preços – especialmente na negociação e na
conclusão de contratos para cada operação de troca, o que requer a agregação de informações suficientes para a
percepção das condições do mercado –, a formação de uma organização que conte com autoridade para alocar
recursos reduz tais custos (COASE, Op. cit., 1937, p. 390-392). Os chamados custos de transação, dessa maneira,
consistem em explicação do problema da organização da atividade econômica como um problema de contratação
(WILLIAMSON, Oliver. The economic institutions of capitalism: firms, markets, relational contracting. New York:
The Free Press, 1985. p. 20). A noção segundo a qual a empresa se constitui como mecanismo de redução de
custos de transação envolve, portanto, a maior facilidade de que dispõem tais entidades para elaborar, negociar
e executar negócios, com maiores condições para administrar contingências e agir de maneira informada na
interação com os demais agentes de mercado, de sorte a transformar eficientemente incertezas em riscos e, assim,
perceber lucros mais significativos (EASTERBROOK, Frank; FISCHEL, Daniel. The economic structure of corporate
law. Cambridge: Harvard University Press, 1991. p. 8-9).
5
WIEDEMANN, Herbert. Excerto do “Direito Societário I – Fundamentos”. In: FRANÇA, Erasmo Valladão
Azevedo e Novaes. Direito societário contemporâneo I. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 15.
6
FORGIONI, Paula. A evolução do Direito Comercial brasileiro: da mercancia ao mercado. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. p. 22.
7
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005. p. 433.
8
Ver, por todos: FRAZÃO, Ana. Função social da empresa: Repercussões sobre a responsabilidade civil de
controladores e administradores de S/As. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
9
SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa. São Paulo: Atlas, 2004. p. 10.
10
SZTAJN, Op. cit., 2004, p. 10-11.
11
FLIGSTEIN, Neil. The architecture of markets: An economic sociology of twenty-first-century capitalist societies.
Princeton: Princeton University Press, 2001. p. 8-10. No mesmo sentido, vale mencionar a opinião de Natalino Irti
(A ordem jurídica do mercado. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro, v. 46, n. 145, p. 44-49,
jan./mar. 2007. p. 46-47): “Atrás da antítese entre lei natural da economia – neutras, absolutas e objetivas – e leis
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
430 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
históricas – dependentes do querer humano – sempre se agita a luta política, sempre se confrontam ideologias
ou visões da sociedade. Conflito entre uma e outra política, e não entre política e a-política neutralidade. Quando
se afirma que o direito determina a economia, e o mercado se resolve no estatuto de normas, não se propõe
um ou outro regime de trocas, uma ou outra disciplina da propriedade, mas somente se recorda o elementar
pressuposto de todas as estruturas: a vontade política, traduzida em instituições jurídicas”.
12
Ainda mais recentemente, o contexto econômico passou por importante transformação com a intensificação
do comércio eletrônico, possibilitado pelo advento das tecnologias da informação e da expansão da sociedade
de rede. Nesse contexto, ganham relevância empresas eletrônicas que revolucionam modelos de negócios e
criam novos mercados por intermédio de maneiras inovadores de efetuar “operações-chave de administração,
financiamento, inovação, produção, distribuição, vendas, relações com empregados e relações com clientes [...]
seja qual for o tipo de conexão entre as dimensões virtuais e físicas da firma” (CASTELLS, Manuel. A galáxia da
internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 57).
13
GRAU, Eros Roberto. Um novo paradigma dos contratos? Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, v. 96, p. 423-433, 2001. p. 230.
14
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009. p. 305.
15
Tal processo é o que Enzo Roppo (Op. cit., p. 305) denomina por “objetivação” do direito contratual. Trata-se
de movimento de sensibilização do direito contratual para as necessidades concretas com as quais o sistema
jurídico se depara, de modo a mitigar o alto grau de abstração das noções de direito privado. Segundo Thomas
Wilhelmsson (Critical studies in private law: a treatise on need-rational principles in modern law. Dordrecht:
Springer, 1992. p. 12-13), os conceitos abstratos utilizados no Direito Privado afastam a discussão sobre as
verdadeiras necessidades econômicas e sociais das partes, razão pela qual a dogmática jurídica merece ser
reformada.
16
COLLINS, Hugh. The law of contract. 4. ed. Londres: LexisNexis, 2003. p. 30-35.
17
COLLINS, Op. cit., 2003, p. 30-35.
18
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 300.
19
NEGREIROS, Op. cit., p. 348.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
431
“é próprio das classificações que a sua validade seja aferida em função de sua relevância
prática”.20 Significa que as classificações propostas pelo Direito e para o Direito são
constantemente modificadas em razão de alterações no mundo dos fatos, agregando
valores e necessidades com vistas a produzir novo modelo interpretativo e operativo
das relações firmadas entre agentes econômicos.
Se, por um lado, é necessário formular critérios de diferenciação dos contratos
com vistas a dar conta da complexidade das sociedades contemporâneas,21 por outro é
preciso recordar que a escolha por uma forma organizacional ou outra será determinada
pela aptidão dessa estrutura para reduzir os custos de transação da atividade econômica.
Nesse sentido, tem-se que o Direito Privado reduz custos de transação ao oferecer figuras
jurídicas a serem adotadas pelas organizações, tanto no âmbito interno – ao fornecer
mecanismos de equilíbrio do poder dos integrantes de uma organização – quanto
no âmbito externo – ao delinear as estruturas de ação econômica autônoma a serem
encontradas no mercado.22
Entretanto, ainda que se esperem do Direito respostas ágeis a problemas emergentes
da prática econômica, não se pode atribuir às regras jurídicas toda a responsabilidade pela
tradução de fatos em normas.23 Na verdade, o tratamento jurídico de determinada questão
fática depende de conceituação teórica prévia, tendo em vista que, conforme pontuou
Druey, o Direito se posiciona entre a vontade das partes envolvidas e a vontade política
de regular tal relação.24 Assim, não se pode querer atribuir ao Direito uma elasticidade
que seus conceitos jamais terão:25 pode haver casos nos quais contratos de intercâmbio
e contratos de sociedade, por mais ampla que seja a lente pela qual se lhes analisa, não
correspondam aos reais desejos e necessidades da vida econômica.
Não por outro motivo, Teubner não hesita em dizer que fenômenos híbridos não
são conceitos jurídicos, mas sim sociológicos.26 Os híbridos, de acordo com Teubner,
se apresentam em formas contratuais de maneira a desafiar o amplo leque de normas
regulatórias desenvolvidas pelo Estado Social para dominar monstros corporativos.27
Por esse motivo, o autor pontua que os híbridos tendem a naturalmente movimentar-se
entre inovação e evasão à ordem jurídica vigente.28 A grande dificuldade apresentada
por tais formas organizacionais, assim, é a de que muitas vezes transitam por zonas de
penumbra do ordenamento, sendo essencial indagar se por detrás de formas contratuais
não se ocultam organizações hierárquicas complexas nas quais os contornos das fontes
20
NEGREIROS, Op. cit., p. 350.
21
NEGREIROS, Op. cit., p. 305.
22
Ver: DRUEY, Jean Nicolas. The path to the law: the difficult legal access of networks. In: AMSTUTZ, Marc;
TEUBNER, Gunther. Networks: Legal issues of multilateral cooperation. Oxford: Hart Publishing, 2009. p. 98.
23
DRUEY, Op. cit., p. 94.
24
DRUEY, Op. cit., p. 94.
25
DRUEY, Op. cit., p. 94.
26
TEUBNER, Gunther. Coincidentia Oppositorum: hybrid networks beyond contract and organization. In:
AMSTUTZ, Marc; TEUBNER, Gunther. Networks: Legal issues of multilateral cooperation. Oxford: Hart
Publishing, 2009. p. 3.
27
TEUBNER, Gunther. Piercing the contractual veil? The social responsibility of contractual networks. In:
WILHELMSSON, Thomas. Perspectives of critical contract law. Londres: Dartmouth, 1992. p. 211-212.
28
TEUBNER, Op. cit., 1992, p. 212.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
432 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
29
TEUBNER, Op. cit., 1992, p. 212.
30
MACNEIL, Ian. Economic analysis of contractual relations: its shortfalls and the need for a “rich classificatory
apparatus”. Northwestern University Law Review. v. 75, n. 6, p. 1018-1063, 1981. p. 1019-1020.
31
AGUIAR JR., Ruy Rosado. Contratos relacionais, existenciais e de lucro. Revista trimestral de direito civil, v. 12,
n. 45, p. 91-110, jan./mar. 2011. p. 97.
32
É o que observa Stewart Macaulay (Relational contracts floating on a sea of custom? Thoughts about the ideas
of Ian Macneil and Lisa Bernstein. Northwestern University Law Review, v. 94, n. 3, p. 775-804, 2000. p. 778), para
quem as partes, nos contratos relacionais, procuram “trazer o futuro ao presente”.
33
AGUIAR JR., Op. cit., p. 98. Vale, nesse sentido, transcrever a lição de Ricardo Lorenzetti (Tratado de los contratos.
Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1999. v. 1, p. 50): “La teoría contractual debe modificarse para captar las
relaciones flexibles que unen a las empresas en la economía actual y tener en cuenta que estos vínculos se hacen
con perspectiva de futuro”.
34
LORENZETTI, Op. cit., v. 1, p. 51.
35
LORENZETTI, Op. cit., v. 1, p. 51.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
433
36
COUTO E SILVA, Clóvis V. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 20. A ideia de obrigação
como processo é longamente tratada por Clóvis do Couto e Silva em sua obra clássica, segundo a qual: “Sob o
ângulo da totalidade, o vínculo passa a ter sentido próprio, diverso do que assumiria se se tratasse de pura soma
de suas partes, de um compósito de direitos, deveres e pretensões, obrigações, ações e exceções. Se o conjunto
não fosse algo de ‘orgânico’, diverso dos elementos ou das partes que o formam, o desaparecimento de um
desses direitos ou deveres, embora pudesse não modificar o sentido do vínculo, de algum modo alteraria a sua
estrutura. Importa, no entanto, contrastar que, mesmo adimplido o dever principal, ainda assim pode a relação
jurídica perdurar como fundamento da aquisição (dever de garantia), ou em razão de outro dever secundário
independente” (COUTO E SILVA, Op. cit., p. 20).
37
ARAÚJO, Fernando. Teoria económica do contrato. Coimbra: Almedina, 2007. p. 395.
38
Note-se que, embora se possa falar em uma “teoria” dos contratos relacionais, não há que se falar em concepção
unitária dessa abordagem, mas de uma multiplicidade de teorias que procuram explicar o fenômeno contratual
sob essa perspectiva. Ver, nesse sentido: LEIB, Ethan J. Contracts and friendships. Emory law journal, v. 59, p. 649-
726, 2009. p. 653.
39
Ver: GRAMSTRUP, Erik Frederico. Contratos relacionais. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore. Teoria
geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011. p. 321-322.
40
LEIB, Op. cit., p. 655.
41
AGUIAR JR., Op. cit., p. 99.
42
AGUIAR JR., Op. cit., p. 99.
43
AGUIAR JR., Op. cit., p. 99.
44
ARAÚJO, Op. cit., p. 395.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
434 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
45
CAMPBELL, David; COLLINS, Hugh. Discovering the implicit dimensions of contracts, In: CAMPBELL, David;
COLLINS, Hugh; WIGHTMAN, John. Implicit dimensions of contract: discrete, relational and network contracts.
Oxford: Hart Publishing, 2003. p. 26. As referidas amarras comportamentais se estabelecem com o objetivo de
reduzir as incertezas decorrentes da incompletude das cláusulas reitoras das relações de longo prazo em questão,
criando relação de interdependências entre as partes que se agrava cada vez mais com o progresso tecnológico.
É essa a opinião de Ana Frazão (Op. cit., 2017, p. 208-209): “Essas funções, que são normalmente atribuídas aos
contratos relacionais, são ainda mais relevantes diante da internet e da crescente importância da tecnologia na
atividade empresarial, fenômenos que aumentam a necessidade de cooperação entre agentes empresariais por
diferentes modos. Aliás, o mero fornecimento de tecnologia, pela via dos contratos usuais de licença, pode ser
visto como uma forma de cooperação diferenciada entre os contratantes”.
46
ARAÚJO, Op. cit., p. 398.
47
ARAÚJO, Op. cit., p. 398.
48
ARAÚJO, Op. cit., p. 399. Vale notar que as assimetrias informacionais se farão presentes com maior ênfase nos
contratos formalmente assimétricos, como é o caso das relações de consumo que, em diversos casos, também
poderão decorrer de contratos relacionais que, em regra, constituirão relação de dependência econômica, como
sói ocorrer em contratos de plano de saúde (STJ, 3ª Turma, REsp 1.613.644/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas
Cueva, Data de Julgamento: 20.09.2016, Data de Publicação: DJe 30.09.2016), de previdência privada (STJ, 2ª
Seção, REsp 1.201.529/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, Rel. p/ acórdão Min. Isabel Gallotti, Data de Julgamento:
11.03.2015, Data de Publicação: DJe 01.06.2015), de seguro de vida (STJ, 3ª Turma, REsp 1.356.725/RS, Rel. Min.
Nancy Andrighi, Rel. p/ acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Data de Julgamento: 24.04.2014, Data de
Publicação: DJe 12.06.2014), dentre outros. Nesse sentido, ver: MACEDO JR., Ronaldo Porto. Contratos relacionais
e defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
49
PRATA DE CARVALHO, Angelo Gamba. Os contratos híbridos como formas de organização jurídica do poder econômico:
aspectos dogmáticos e a postura do CADE no caso Monsanto (Monografia). Brasília: Universidade de Brasília,
2017.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
435
50
COLLINS, Op. cit., 2011, p. 1.
51
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 15.
52
AMSTUTZ, Marc. The constitution of contractual networks. In: AMSTUTZ, Marc; TEUBNER, Gunther. Networks:
Legal issues of multilateral cooperation. Oxford: Hart Publishing, 2009. p. 309.
53
COLLINS, Op. cit., 2011, p. 10.
54
TEUBNER, Gunther. The many-headed Hydra: networks as higher order collective actors. In: MCCAHERY,
Joseph; PICCIOTTO, Sol; SCOTT, Colin. Corporate control and accountability: changing structures and the dynamics
of regulation. Oxford: Clarendon Press, 1993. p. 43.
55
TEUBNER, Gunther “Unitas multiplex”: a organização do grupo de empresas como exemplo. Revista DireitoGV,
v. 1, n. 2, p. 77-110, jun./dez. 2005. p. 97.
56
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 18.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
436 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
O fenômeno das networks tem se tornado cada vez mais comum na medida em que
a globalização da economia e a massificação das tecnologias da informação tornaram
possível uma maior e mais facilitada interação entre agentes empresariais. É o que
se verifica nas empresas virtuais, no âmbito das quais são estabelecidas relações de
coordenação heterárquica potencializadas pela velocidade da comunicação da internet
e pelas redes sociais, atribuindo novos contornos à cooperação empresarial.57 Certo é
que as redes contratuais, como se verá a seguir, no mais das vezes se estabelecem em
virtude de contratos travados entre sociedades, porém estruturas como a internet e
laços reputacionais entre integrantes de um determinado mercado são capazes de criar
sinergias próprias das networks mesmo sem vínculos obrigacionais formais, conforme
indica Rodrigo Octávio Broglia Mendes.58
É nesse sentido que autores como Andreas Borchardt diferenciam “redes la
tentes” de “redes estratégicas”, sendo as primeiras caracterizadas pela existência de
diversos parceiros de negócio em potencial, que, embora não interajam entre si a todo
momento, apresentam número indefinido e inúmeras competências postas à dispo
sição dos agentes econômicos, de maneira a compor verdadeira “matéria bruta para
novas relações cooperativas” (Brutsätte für neue Kooperationen).59 As chamadas redes
estratégicas, por sua vez, consistem de verdadeiras estruturas de incentivos criadas a
partir da possibilidade de obtenção de eficiências oriundas da correlação entre relações
contratuais autônomas. É o que ocorre, por exemplo, nas redes de franquias, nas quais
os franqueados, independentes e muitas vezes concorrentes, obtêm insumos de maneira
uniforme de um mesmo franqueador, porém o compartilhamento de atributos, como
marca, nome e reputação, faz com que os franqueados sintam os efeitos dos sucessos
e fracassos dos diversos membros da rede, de modo que será de rigor a orientação de
todos não ao sucesso individual, mas ao sucesso da rede como um todo.60
Importa adiantar que o objetivo do presente trabalho não é traçar tipologia
detalhada das redes contratuais, mas delinear o arcabouço teórico-dogmático mínimo
para a melhor compreensão e operacionalização jurídica dessas estruturas. Porém, é
interessante trazer à discussão a classificação traçada por Teubner61 ao afirmar que as
networks se diferenciam de acordo com sua posição na cadeia de produção de riquezas,
sendo possível relacionar determinados tipos de redes a certos problemas econômicos e
jurídicos particulares, a saber: (i) redes de inovação destinadas a facilitar a pesquisa e o
desenvolvimento comum de novas tecnologias, caracterizadas por não se resumirem a
funções econômicas, mas sobretudo por se referirem a finalidades científicas; (ii) redes
57
MENDES, Rodrigo Octávio Broglia. A empresa em rede: a empresa virtual como mote para reflexão no Direito
Comercial. Revista do advogado, v. 32, n. 115, p. 125-135, abr. 2017, p. 134.
58
“A empresa virtual, nessa perspectiva, passa a criar condições para ser trabalhada juridicamente. É possível
compreender uma rede de diversas empresas societárias que celebram contratos entre si para, da conexão desses
contratos, permitir o desenvolvimento de uma determinada atividade empresarial. Contudo, é bem possível – e
a internet torna isso efetivamente possível – que essa atividade seja desenvolvida sem que todas as empresas
societárias participantes da rede possuam, entre si, contratos celebrados – como acontece, por exemplo, entre os
franqueados” (MENDES, Op. cit., p. 134).
59
BORCHARDT, Andreas. Koordinationsinstrumente in virtuellen Unternehmen: Eine empirische Untersuchung
anhand lose gekoppelter Systeme. Wiesbaden: Deutscher Universitäts-Verlag, 2006. p. 20-21.
60
Ver: BÖHNER, Reinhard. Asset-sharing in Franchisenetzwerken: Pflicht zur Weitergabe von Einkaufsvorteilen.
Kritische Vierteljahresschrift für Gesetzgebung und Rechtswissenschaft. v. 89, n. 2-3, p. 227-252, 2006.
61
TEUBNER, Gunther. Networks as connected contracts. Oxford: Hart Publishing, 2011. p. 98-100.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
437
62
BUXBAUM, Richard. Is “network” a legal concept? Journal of institutional and theoretical economics, v. 149, n. 4,
p. 698-705, dez. 1993.
63
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 13-18.
64
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 13-18.
65
TEUBNER, Op. cit., 2009, p. 13-18.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
438 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
momento histórico, e assim também é valorado pelo direito”,66 de sorte que “todo fato
social – porque potencialmente relevante para o direito, e porque moldado pela valoração
(social decorrente) do elemento normativo (o qual, ao mesmo tempo, é construído na
historicidade evolutiva da sociedade), é fato jurídico”.67
Partindo do pressuposto de que o método jurídico-dogmático traz importantes
contribuições para a compreensão de fenômenos econômicos, Stefan Grundmann 68
procura delinear os primeiros traços de uma dogmática das redes contratuais (Dogmatik
der Vertragsnetze). Segundo Grundmann, o desafio inicial para a compreensão teórica das
operações econômicas que resultam nas redes contratuais é a análise das reivindicações
diretas dos diversos contratos individuais encontrados ao longo da cadeia que resulta na
rede, com vistas a potencializar a eficiência da rede sobre essas relações singulares. Além
disso, Grundmann destaca a relevância da compreensão da influência de um contrato
sobre o outro, concentrando a análise nas cláusulas gerais que os conectam e, assim,
servem como “portais” (Einfallstore) para efeitos em cadeia que influirão de maneira
holística sobre a rede. Por fim, o autor ressalta o papel central dos meios de acesso à
rede, através dos quais as partes de contratos individuais poderão obter informações
sobre os demais agentes envolvidos e, assim, conhecer o interesse em direção ao qual
tenderão as atividades da rede naquelas circunstâncias.
O desenvolvimento conceitual das networks enquanto nova categoria dogmática
requer, portanto, que sejam destacadas as suas peculiaridades diante de figuras jurídicas
já conhecidas e cujas características não se amoldam aos pressupostos fáticos das redes
contratuais. Daí por que muito se discute sobre a natureza jurídica de tais fenômenos – e,
consequentemente, o regime legal aplicável –, sendo importante explorar os atributos
das networks diante dos contratos híbridos, dos contratos associativos, dos grupos
societários e dos contratos coligados, para que então se forneça um conceito próprio
a essa figura jurídica, a partir e para além da teorização já fornecida por autores como
Gunther Teubner.69
66
TEPEDINO, Gustavo. Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos. Revista brasileira de direito civil.
v. 1, p. 8-37, jul./set. 2014. p. 14.
67
TEPEDINO, Op. cit., p. 14.
68
GRUNDMANN, Stefan. Die Dogmatik der Vertragsnetze. Archiv für die civilistische Praxis. v. 207, p. 718-767, dez.
2007. p. 766-767.
69
TEUBNER, Op. cit., 2011.
70
Ver: PRATA DE CARVALHO, Op. cit.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
439
71
ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. São Paulo: Saraiva, 1945. p. 255-312.
72
Ver: OPPO, Giorgio. Contratti parasociali. Milão: F. Vallardi, 1942.
73
CAFAGGI, Fabrizio; IAMICELI, Paola. Contratto di rete. Inizia uma nuova stagione di riforme? Il commento. v. 7,
p. 595-602, jul. 2009. p. 597.
74
CAFAGGI; IAMICELI, Op. cit., p. 598.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
440 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
75
WILLIAMSON, Op. cit., 2002, p. 438.
76
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 78.
77
Contratos-quadro, de acordo com Jacques Ghestin (La notion de contrat-cadre et les enjeux théoriques et pratiques
qui s’y attachment. In: CREDA – Centre de recherché sur le droit des affaires. Le contrat-cadre de distribution:
enjeux et perspectives. Paris: CREDA, 1996), são contratos nos quais os objetivos são definidos de maneira geral,
sem que os termos essenciais da operação sejam determinados ou mesmo determináveis por simples referência
a suas estipulações. Segundo o autor, a função econômica do contrato-quadro é estabelecer as bases para o início
de uma relação que poderá envolver outros negócios – denominados “contratos de aplicação” das disposições
gerais firmadas inicialmente – aos quais se agregarão as obrigações estabelecidas pelo contrato-quadro.
78
BUXBAUM, Op. cit.
79
O trabalho de Lisa Bernstein (Op. cit.) é exemplo interessante para a compreensão desse fenômeno.
80
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novais. O sinalagma contratual. Revista de direito do consumidor, v. 93,
p. 209-228, maio/jul. 2014.
81
HEERMAN, Peter W. Drittfinanzierte Erwerbsgeschäfte: Entwicklung der Rechtsfigur des trilateralen Synallagmas
auf der Grundlage deutscher und U.S.-amerikanischer Rechtsentwicklungen. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
441
Societário. No entanto, também já se colocou que as formas híbridas podem estar mais
ou menos próximas de um desses polos. Tendo isso em vista e levando-se também
em consideração o item anterior sobre a possibilidade de solução do problema das
networks por um instrumento “quase-societário”, pode-se cogitar também de as redes
contratuais serem consideradas verdadeiras empresas em comum. Embora essa posição
possa parecer paradoxal, ela advém da própria noção de network segundo a qual as
redes contratuais híbridas se caracterizam por produzir, a partir da união de vínculos
contratuais autônomos, efeitos análogos à integração vertical.
A cooperação, portanto, não é critério suficiente para distinguir contratos híbridos
– em que a cooperação é intensa, mas não se traduz em empresa comum com identidade
de propósitos – do intercâmbio, da sociedade ou dos contratos associativos, nos quais a
cooperação corresponde à prestação principal da avença.82 Na verdade, conforme aduz
Ana Frazão,83 “o que distingue os contratos associativos dos demais contratos híbridos
e mesmo dos contratos de troca não é propriamente a existência de cooperação, mas
sim o grau e o tipo desta”.
Certo é que, conforme comentou José Engrácia Antunes,84 nessas circunstâncias,
o intérprete se depara com “uma multiplicidade insistematizável de figuras contratuais
que podem servir a cooperação entre empresas”. Por esse motivo, é imprescindível que
se aparem quaisquer arestas que possam obscurecer a compreensão dos institutos em
comento. Contratos associativos, segundo Ana Frazão,85 nada mais são do que contratos
de fim comum. Desse modo, a sociedade poderia ser considerada o contrato associativo
por excelência, já que se destina justamente a gerar ente autônomo a partir da comunhão
de escopo entre diversas partes. Todavia, os contratos associativos não se reduzem à
sociedade, já que estes, apesar de apresentarem nível organizativo superior ao que se
verifica nos híbridos, também congregam elementos de coordenação de mercado à
hierarquia.
Em síntese, pode-se afirmar que, “nos contratos associativos destinados ao exer
cício de empresa comum, as partes, embora mantenham a autonomia jurídica e patri
monial, passam a exercer a atividade empresarial de forma compartilhada, assumindo
conjuntamente a respectiva álea do negócio”.86 Por esse motivo, como já se colocou, a
cooperação em si não é o item que distingue os contratos associativos das demais formas
de organização da atividade econômica, mas sim seu grau. Nesta espécie contratual
específica, a cooperação se apresenta como o próprio objeto do negócio.87
A distinção entre os contratos associativos e o fenômeno das networks fica mais
clara a partir das categorias traçadas por Engrácia Antunes,88 que diferencia cooperação
associativa, característica de vínculos aptos a criar empresa comum, como é o caso da
sociedade; da cooperação auxiliar, que se verifica em contratos como o de agência, no
qual a colaboração entre as partes se dá de maneira intensa, porém não traduz empresa
82
FRAZÃO, Ana. Joint ventures contratuais. Revista de Informação Legislativa, v. 52, n. 207, p. 187-211, 2015b, p. 195.
83
FRAZÃO, Op. cit., 2015b, p. 195.
84
ANTUNES, José Engrácia. Direito dos contratos comerciais. Coimbra: Almedina, 2011. p. 390.
85
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 210-211.
86
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 211.
87
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 210-211.
88
ANTUNES, Op. cit., 2011, p. 389-391.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
442 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
comum.89 Por esse motivo, tem-se que o que caracteriza o contrato associativo não
é a mera existência de cooperação, mas a verificação de uma espécie qualificada de
cooperação que seja apta a conduzir à “execução de um fim comum a partir de uma
estrutura organizacional para tal”.90
Nesse ponto, cabe indagar em que medida as networks não deveriam ser, de
fato, consideradas negócios associativos, na medida em que têm como premissa o
fato de que seus integrantes trabalham para finalidade comum em benefício de todos.
Aqui, é interessante o ponto de vista de Wiedemann e Schultz,91 para quem finalidades
individuais e coletivas sempre estarão sobrepostas nas networks, sendo possível identificar
qual interesse será priorizado no caso concreto para, assim, melhor compreender a
dinâmica da rede.92 Em síntese, tanto os contratos associativos quanto as redes exigem
relevante dimensão organizacional e procedimentalização, questões relacionadas a um
dos paradoxos centrais das redes contratuais: a busca simultânea do interesse coletivo
e do interesse individual, lembrando que os integrantes da rede poderão conservar
interesses contrapostos.93
Apesar da centralidade da noção de fim comum às networks, é necessário distinguir,
de acordo com a lição de Teubner,94 “fim comum” de “fim unitário”, uma vez que
interesses individuais e coletivos se fazem presentes a um só tempo. É justamente a
presença simultânea de interesses individuais e interesse comum que dificulta a aplicação
direta dos preceitos de Direito Societário à espécie, ressaltando característica essencial das
networks. Nesse sentido, a adoção de modelo “quase-societário” igualmente não parece
adequada, na medida em que, em primeiro lugar, não há compartilhamento de áleas e
tampouco distribuição de lucros. Para mais além, considerando que contratos associativos
não necessariamente conterão as cláusulas essenciais do contrato de sociedade,95 tem-se
que, nas networks, não há qualquer membro que possa tomar decisões pelos outros.96 Desse
modo, por mais que exista fim comum, não há empresa comum – elemento definidor
dos contratos associativos – e tampouco direção unitária – elemento que, como se verá
a seguir, é determinante para a configuração de grupo societário.
89
Essa distinção pode ser encontrada em Ricardo Lorenzetti (Op. cit., v. 3, p. 242-244), para quem a colaboración
gestoria se diferencia da colaboración asociativa pelo fato de, na primeira, determinado agente delegar a outro a
realização de ato jurídico, ao passo que na segunda não há delegação, mas interesse ou finalidade comuns.
90
FRAZÃO, Op. cit., 2015b, p. 197.
91
WIEDEMANN, Herbert; SCHULTZ, Oliver. Grenzen der Bindung bei langfristigen Kooperationen. Zeitschrift für
Wirtschaftrecht. p. 1-12, 1999.
92
WELLENHOFER, Marina. Drittwirkung von Schutzpflichten im Netz. In: SCHLIESKY, Utz et al. Schutzpflichten
und Drittwirkung im Internet: Das Grundgesetz im digitalen Zeitalter. Baden: Nomos, 2014.
93
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 118.
94
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 122.
95
Ver: FRAZÃO, Op. cit., 2015b.
96
GRUNDMANN, Op. cit., p. 727-729.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
443
97
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 133.
98
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 133.
99
ANTUNES, José Engrácia. Estrutura e responsabilidade da empresa: o moderno paradoxo regulatório. Revista
DireitoGV, v. 1, n. 2, p. 29-68, jun./dez. 2005. p. 47.
100
ANTUNES, Op. cit., 2005, p. 47.
101
ANTUNES, Op. cit., 2005, p. 45-46.
102
FRAZÃO, Ana. Grupos societários no direito do trabalho: critérios de configuração e consequências. Revista
Semestral de Direito Empresarial, n. 16, p. 113-151, jan./jun. 2015a, p. 118-119.
103
ANTUNES, José Engrácia. The governance of corporate groups. In: ARAUJO, Danilo; WARDE JR., Walfrido
(Org.). Os grupos de sociedades: organização e exercício da empresa. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 55.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
444 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
104
FRAZÃO, Op. cit., 2015a, p. 119.
105
FRAZÃO, Op. cit., 2015a, p. 123.
106
FRAZÃO, Op. cit., 2015a, p. 121-134.
107
MARINO, Francisco de Paulo Crescenzo. Contratos coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 107.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
445
contratos por ele interligados, um vínculo que possua relevância não apenas econômica,
mas especificamente jurídica”.108
A conexão contratual pode ser identificada nos mais diversos âmbitos, podendo
ser considerados contratos coligados inclusive aqueles contratos cujas partes coincidam.109
No entanto, o que interesse para o presente estudo são os contratos conexos celebrados
por partes diversas ou, mais especificamente, por mais do que dois entes empresariais
distintos e autônomos que, porém, ingressam em cadeia cooperativa em razão da
afinidade entre as relações contratuais das quais são partes. Nesse caso, não basta
considerar os interesses dos integrantes da relação contratual, mas também os interesses
do terceiro contratante, que, porém, não é sujeito completamente alheio ao contrato, na
medida em que integra um dos contratos interligados.110
Desse modo, se está aqui falando na união de contratos de forma e função distintos
em um agregado com função unitária e fim ulterior único, conforme se verifica na figura
italiana do collegamento negoziale. Em complementação, o ordenamento francês conta com
a figura dos groupes de contrats ou ensembles contractuels, apresentando fundamentais
preocupações com os efeitos da coligação contratual sobre o princípio da relatividade,
que necessariamente deve ser mitigado para a garantia da adequada responsabilização
por danos a “terceiros” externos à relação contratual, mas integrantes da coligação.111
Nesse sentido, a teoria das redes de contratos, conforme compreendida pela
doutrina112 e pela jurisprudência113 brasileiras no âmbito da noção geral de contratos
coligados, guarda relação próxima com o princípio da função social dos contratos,
consagrado pelo artigo 421 do Código Civil de 2002. Basta notar que, tendo em vista
a realidade do fenômeno socioeconômico das redes contratuais, a compreensão ex
clusivamente unitária do negócio jurídico, além de desconsiderar referências às concretas
relações econômicas, desconsidera a dinâmica cooperativa valorizada pela concepção
funcional, que leva em conta todos os interesses atingidos e influenciados pelas relações
contratuais.114 Observe-se, portanto, que a compreensão das redes contratuais por
intermédio da ideia de contratos coligados já é, em certa medida, acolhida pelo Direito
108
KONDER, Carlos Nelson. Contratos conexos: grupos de contratos, redes contratuais e contratos coligados. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006. p. 96.
109
KONDER, Op. cit., p. 99-100.
110
KONDER, Op. cit., p. 99-100. Importa perceber que os contratos conexos – muitas vezes referidos como redes
contratuais (LEONARDO, Rodrigo Xavier. Os contratos coligados. In: BRANDELLI, Leonardo. Estudos em
homenagem à Professora Véra Maria Jacob de Fradera. Porto Alegre: Lejus, 2013) – constituem fenômeno já reconhecido
pela jurisprudência brasileira. Nesse sentido, pode-se mencionar caso interessante julgado pelo Tribunal de
Justiça do Ceará no qual se reconheceu a responsabilidade solidária de cooperativas de saúde da “rede Unimed”
pelo fato de os planos de saúde oferecidos no âmbito do sistema Unimed tornarem mais competitivos os
produtos fornecidos pelas cooperativas de saúde (TJCE, 6ª Câmara Cível, Apelação cível 00336818020128060071,
Rel. Des. Maria Vilauba Fausto Lopes, Data de Publicação: 15.07.2015). O fenômeno também já foi reconhecido
pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que identificou: “Empresas que atuam como titulares da mesma cadeia
produtiva, lídimas parceiras de negócios coligados por certo vínculo de reciprocidade econômica, numa autêntica
rede contratual unitária e monolítica – Hipótese em que elas agem como se fossem uma só, por isso respondem
solidariamente” (TJSP, 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação cível 00257930520128260071, Rel. Des. Ferreira da
Cruz, Data de Publicação: 27.08.2015).
111
KONDER, Op. cit., p. 114-115.
112
KONDER, Op. cit.; MARINO, Op. cit.; LEONARDO, Op. cit.
113
Ver, ainda, nesse sentido: STJ, 4ª Turma, REsp 187940/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Date de Publicação:
18.02.1999; STJ, 3ª Turma, REsp 316640/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Data de Publicação: DJ 07.06.2004.
114
Ver: LEONARDO, Rodrigo Xavier. A teoria das redes contratuais e a função social dos contratos: reflexões a
partir de uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça. Revista dos Tribunais, v. 832, p. 100-111, fev. 2005.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
446 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
115
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 145.
116
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 145-175.
117
BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Red Livros, 1999. p. 49.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
447
já se sinalizou, a posição aqui sustentada – de que networks são conceitos jurídicos sui
generis – consiste em apontar traços teóricos gerais de uma categoria eminentemente
prática e, portanto, dinâmica, com vistas a estabelecer critérios jurídicos mínimos para
compreender o fenômeno em análise e, desse modo, interpretá-lo de modo a conferir
maior segurança às relações econômicas. O intuito da categorização dogmática das
networks é, assim, o de ressaltar as qualidades e vantagens econômicas desse fenômeno,
com vistas a conhecer e regular adequadamente suas peculiaridades e seus efeitos.118
Ao mesmo tempo em que se diferenciam e não encontram regulação adequada
em quaisquer das categorias previamente expostas neste trabalho, as redes contratuais
retiram de cada uma delas noções que compõem sua estruturação. Dessa maneira, a
unidade institucional formada pelas networks é constantemente confrontada com a
autonomia de seus integrantes, paradoxo já comentado por meio da expressão unitas
multiplex. Tendo em vista essas considerações, diversos autores, especialmente no Direito
alemão, têm se dedicado ao esforço do desenvolvimento de uma dogmática jurídica capaz
de dar vazão às demandas oriundas da prática negocial no que tange às redes contratuais.
É o caso de Mattias Rohe,119 que procura traçar uma tipologia das networks a partir de
suas diversas formas de estruturação, distinguindo redes contratuais hierárquicas das
redes de coordenação. Pode-se, também, retirar de trabalhos mais específicos, como o de
Wernhard Möschel,120 voltado às redes de operadoras de cartões de crédito, características
que podem ser generalizadas para o fenômeno das networks como um todo, de modo
a conferir maior segurança especialmente às formas de responsabilização de seus
membros. Por fim, há autores, como os já mencionados Stefan Grundmann121 e Gunther
Teubner,122 que empreendem admirável esforço de sistematização e de estruturação do
quadro dogmático aplicável às redes contratuais.
Expostos os argumentos que fundamentam a necessidade de se criar uma nova
dogmática que dê conta do fenômeno das networks, os tópicos a serem esboçados a seguir
cuidarão de alguns dos principais aspectos teóricos-jurídicos concernentes às networks no
Direito brasileiro, considerando as peculiaridades do Direito Privado pátrio juntamente
do contributo teórico oriundo das pesquisas dos autores supramencionados.
118
MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 76.
119
ROHE, Mattias. Netzverträge: Rechtsprobleme komplexer Vertragsverbindungen. Tübingen: Mohr Siebeck, 1998.
120
MÖSCHEL, Wernhard. Dogmatische Strukturen des bargeldlosen Zahlungsverkehrs. Archiv für die civilistische
praxis. v. 186, n. 1/2, p. 187-236, 1986.
121
GRUNDMANN, Op. cit.
122
TEUBNER, Op. cit., 2011.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
448 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
fenômenos, qualquer análise jurídica sobre as networks deve se dedicar não à estrutura,
mas à função dos instrumentos e relações apresentados ao intérprete.123
A formação das redes contratuais depende de um nexo funcional entre relações
contratuais que dê origem a uma relação cooperativa entre os integrantes dos diversos
negócios pelo fato de uns tirarem proveito do sucesso de outros e, por conseguinte,
serem afetados pelo fracasso dos demais. Nesse sentido, é possível que surjam networks
ainda que esta não seja a origem de seus integrantes, como ocorre nas redes de locação
e sublocação de imóveis. Assim, os motivos determinantes para a estruturação das
networks, como também ocorre com os contratos, são irrelevantes para sua disciplina,124
mesmo porque os motivos que levaram à conclusão de cada um dos contratos individuais
serão, em regra, desconhecidos pelas partes integradas e, para além disso, o motivo
levado em consideração por eventual articulador da network seria, ao menos a priori,
igualmente irrelevante.
A leitura funcional das networks deverá necessariamente estar orientada pela
busca de sua função econômica, que poderá ser verificada a partir da relação da
rede com o mundo exterior, independentemente das relações contratuais unitárias
ali compreendidas. Tal função econômica diz respeito à noção de causa, longamente
trabalhada pela civilística moderna no âmbito dos contratos com vistas a distinguir os
desejos íntimos das partes (motivos) e o elemento objetivo que permite identificar a
função econômica125 do negócio (causa).126 Aqui, vale antecipar, transportam-se as bases
da teoria causalista do contrato para a rede de contratos, sendo relevante não a causa
do contrato, mas a causa da rede.
É por esse motivo que a definição abstrata de causa não tem grande utilidade,
porém sua aplicação concreta serve para a obtenção dos efeitos e regras pertinentes à
espécie.127 Assim, a causa se encontrará consubstanciada na “efetiva producibilidade”
(effettiva producibilità)128 dos efeitos que são próprios da network. Com isso, é a causa que
123
A análise aqui empreendida busca em Norberto Bobbio (Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito.
Barueri: Manole, 2007. p. 57) o pano de fundo teórico para a interpretação das networks: “O que distingue essa
teoria funcional do direito de outras é que ela expressa uma concepção meramente instrumental do direito.
A função do direito na sociedade não é mais servir a um determinado fim (aonde a abordagem funcionalista do
direito resume-se, em geral, a individualizar qual é o fim específico do direito), mas a de ser um instrumento
útil para atingir os mais variados fins. Kelsen não se cansa de repetir que o direto não é um fim, mas um meio.
Precisamente como meio ele tem a sua função: permitir a consecução daqueles fins que não podem ser alcançados
por meio de outras formas de controle social. Quais são, afinal, esses fins, é algo que varia de uma sociedade para
outra: trata-se de um problema histórico que, como tal, não interessa à teoria do direito. Uma vez estabelecido
o objetivo ou os objetivos últimos que um grupo social propõe para si, o direito exerce e exaure a sua função na
organização de um meio específico (a coação) para obter a sua realização”.
124
SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. v. 1, p. 484.
125
De acordo com Orlando Gomes (Contratos. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 22), a causa nada mais é do que
a função econômica do contrato, noção que se faz necessária tendo em vista a importância dos contratos como
fato econômico, o que requer disciplina jurídica que promova a estereotipação do regime a que se subordina
determinada operação com vistas a garantir-lhes segurança. Trata-se, portanto, de elemento indispensável
também à análise das networks e, antes de tudo, à “incorporação” desse conceito social ou econômico pelo mundo
jurídico. Se a causa do contrato responde ao imperativo funcional de vinculação da forma simbólica do consenso
ao paradigma utilitário das trocas econômicas (BARCELLONA, Mario. Della causa: il contrato e la circolazione
della ricchezza. Milano: CEDAM, 2015. p. 186), a causa das networks diz respeito à vinculação do liame formado
entre as relações contratuais e os efeitos econômicos daí advindos.
126
CAPITANT, Henri. De la cause des obligations (contrats, engagement unilatéraux, legs). Paris: Librairie Dalloz,
1923. p. 14-16.
127
BARCELLONA, Op. cit., p. 242-243.
128
BARCELLONA, Op. cit., p. 242-243.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
449
129
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 529.
130
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 529.
131
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Marcial Pons,
2015. p. 40. Segundo a autora (MARTINS-COSTA, Op. cit., 2015, p. 42), pode-se conceber a boa-fé objetiva como
“(i) fonte geradora de deveres jurídicos de cooperação, informação, proteção e consideração às legítimas
expectativas do alter, copartícipe da relação obrigacional; (ii) baliza do modo de exercício de posições jurídicas,
servindo como via de correção do conteúdo contratual, em certos casos, e como correção ao próprio exercício
contratual; e (iii) como cânone hermenêutico dos negócios jurídicos obrigacionais”.
132
MARTINS-COSTA, Op. cit., 2015, p. 41-42.
133
MARTINS-COSTA, Op. cit., 2015, p. 42. No mesmo sentido: AZEVEDO, Antônio Junqueira. O princípio da boa-fé
nos contratos. Revista CEJ, v. 3, n. 9, set./dez. 1999.
134
AMARAL, Francisco. Código Civil e interpretação jurídica. Revista Fórum de Direito Civil, v. 3, n. 5, jan./abr. 2014.
135
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 552.
136
FORGIONI, Op. cit., 2008, p. 552.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
450 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
137
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé como modelo (uma aplicação da teoria dos modelos, de Miguel Reale).
Cadernos do programa de pós-graduação direito UFRGS, v. 2, n. 4, p. 347-379, 2004. p. 357.
138
GOMES, Op. cit., 2007, p. 46.
139
FORGIONI, Op. cit., 2011, p. 102.
140
POWELL, Walter W. Neither market nor hierarchy: network forms of organization. Research in organizational
behavior. v. 12, p. 295-336, 1990. p. 322.
141
Ver: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. A doutrina do terceiro cúmplice: autonomia da vontade, o princípio res
inter alios acta, função social do contrato e a interferência alheia na execução dos negócios jurídicos. Revista dos
Tribunais, v. 821, p. 80-100, mar. 2004.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
451
142
AGUIAR JR., Ruy Rosado. O código civil de 2002 e a jurisprudência do STJ em matéria obrigacional. In: LOTUFO,
Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues. Temas relevantes do direito civil contemporâneo:
reflexões sobre os dez anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012. p. 193.
143
SCHUNCK, Giuliana Bonanno. Contratos de longo prazo e dever de cooperação. São Paulo: Almedina, 2006. p. 130.
144
SCHUNK, Op. cit., p. 144.
145
FRAZÃO, Op. cit., 2011, p. 332-343.
146
FRAZÃO, Op. cit., 2011, p. 332-343.
147
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 189.
148
Em contratos como o de franquia, é a lealdade à rede que dá fundamento à padronização dos procedimentos
dos agentes integrantes da rede, porém especial cuidado deve ser direcionado a essas situações para que não se
esvazie o espaço de autonomia desses agentes conectados (TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 189).
149
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 188.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
452 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
usufruindo das vantagens da integração à rede. Por esse motivo, não há propriamente
deveres atribuídos à network para interagir com terceiros, mas há, sim, um acirramento
dos deveres de cooperação e lealdade de seus integrantes em suas relações com o mundo
externo, exigindo-se padrão geral de diligência que permita manter as expectativas de
eficiência projetadas sobre a rede contratual.
150
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 182.
151
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 184-194.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
453
152
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 184-194.
153
Ver: GRUNDMANN, Stefan. The future of contract law. European review of contract law, v. 7, n. 4, p. 490-527, 2011.
154
Nesse sentido, ver: RIPERT, Georges. La regle morale dans les obligations civiles. Paris: Librairie Générale de Droit
et Jurisprudence, 1925.
155
BERNSTEIN, Op. cit.
156
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo Novaes. Conflito de interesses nas assembleias de S.A. (e outros escritos sobre
conflito de interesses). 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 27.
157
Ensina Calixto Salomão Filho (O novo direito societário. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 27-30) que é importante
a distinção entre o contratualismo clássico, em que se definia o interesse social sempre como o interesse dos
sócios atuais, definindo-se de forma concreta; e o contratualismo moderno, em que o interesse social é conceito
predefinido, não tendo os órgãos sociais qualquer poder de ingerência sobre ele.
158
FRANÇA, Op. cit. p. 43.
159
FRAZÃO, Op. cit. p. 65.
160
Importa delinear os principais aspectos de algumas das principais teorias institucionalistas, à medida que
apresentam diferenças decisivas, ao passo que as teorias contratualistas, conforme a síntese de Valladão (Op. cit.
2014. p. 41-42), caracterizam-se por constituírem “unidade na diversidade” das teorias desenvolvidas.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
454 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
criticada por reduzir os direitos dos acionistas em favor do superior interesse da empresa,
promovendo-a a um ente “místico” com suposto interesse autônomo.161 Apesar das
objeções à noção de Unternehmen an sich, nota Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França
que tal concepção foi acolhida pela legislação alemã e influenciou diversas legislações.162
A breve exposição das teorias sobre o interesse social nas companhias é útil para a
reflexão sobre a possível existência de um “interesse da rede”. Haveria um interesse da
rede como ente autônomo ou se trataria tão somente do interesse de um agente econômico
focal capaz de organizar uma rede de contratos em torno de si? Não seria o interesse
da network tão somente a soma dos interesses individuais de seus componentes, que se
aproveitam mutuamente da estrutura de incentivos ali instaurada? As respostas para
tais perguntas podem ser encontradas justamente nos momentos de conflito entre os
interesses individuais e o interesse coletivo da network, uma vez que, ainda que existam
interesses contrapostos, é perfeitamente razoável pensar na existência de deveres de
manutenção da rede contratual.
Dessa maneira, impor-se-ia aos integrantes da rede um dever não de agir no inte
resse dos outros integrantes – já que todos eles podem ser concorrentes –, mas de agir
no sentido e em defesa do sistema em que se encontram inseridos. Observe-se que tais
obrigações, como já se referiu, podem ser extraídas da própria função social do contrato,
por meio da qual se alarga o princípio da relatividade para que terceiros também sejam
responsáveis pela manutenção de determinada relação. Porém, aqui se pretende ir mais
além, localizando tal obrigação na sistemática das networks de modo a criar verdadeira
regra de vedação ao conflito de interesses. Assim, por exemplo, pode-se cogitar de
mecanismos procedimentais – possivelmente firmados nos já mencionados “contratos-
quadros” – para que um dado franqueado possa se voltar contra outro franqueado que
esteja agindo de maneira a prejudicar a marca do franqueador e, portanto, o sucesso
dos demais integrantes da rede.163
Na verdade, o conflito de interesses a ser tutelado no âmbito das networks não se
resumirá ao preterimento direto de um membro da network por outro, mas o compor
tamento oportunista apto a desestruturar as sinergias proporcionadas pela estrutura
de rede.164 Não se trata, portanto, do estabelecimento de mecanismos de comando e
controle similares àqueles impostos por cartelistas, mas de estrutura de monitoramento
do cumprimento dos termos contratuais – e das legítimas expectativas – que deram
origem à relação entre as diversas partes envolvidas. Resta, portanto, saber de que
maneira se poderá estruturar a responsabilidade dos membros da network entre si e
perante terceiros, seja para garantir o seu funcionamento interno, seja para responder
adequadamente às instâncias de controle.
161
FRANÇA, Op. cit. p. 31.
162
FRANÇA, Op. cit. p. 32. Note-se, contudo, que esta não se trata da única teoria institucionalista, sendo importante
destacar a teoria da instituição de Hauriou, para quem instituição é obra ou empresa que se realiza e dura
juridicamente em determinado meio social, articulando-se através de um poder regulado por procedimentos
e distribuído pelos órgãos necessários para tanto. Assim, a sociedade anônima seria um corpo que transcende
o contrato que lhe deu origem. Tratar-se-ia, todavia, de teoria dotada de conceitos demasiadamente vagos e
nebulosos, não sendo capaz de desvendar a estrutura das sociedades (FRANÇA, Op. cit. p. 36-37).
163
TEUBNER, Op. cit., 2011, p. 299.
164
POWELL, Op. cit., p. 325-328.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
455
165
MÉNARD, Claude. Le pilotage des formes organisationelles hybrides. Révue economique, v. 48, n. 3, p. 741-750,
maio 1997, p. 743-748.
166
MÉNARD, Op. cit., 2004, p. 353.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
456 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
condições estabelecidas por uma empresa central com a qual os outros integrantes da
rede manterão relação de dependência em maior ou menor grau.167
A dependência econômica, portanto, não constitui, por si só, disfunção das redes
contratuais. Nesse ponto, existe forte tendência de criação do que Schanze168 denominou
por “dupla estrutura de agência”, isto é, uma relação de interdependência que garantiria
a cada uma das partes a apropriação das rendas oriundas de seus próprios interesses
que, embora convergentes, são autônomos. Tal situação de fato somente passa a ser
preocupante, porém, na medida em que se aproxima da situação de controle externo. A
hipótese de controle externo, ensina Ana Frazão,169 pode ocorrer em qualquer contrato,
porém encontra nas relações de longo prazo campo mais fértil para seu desenvolvimento.
No controle externo, o poder de dominação será exercido ab extra, ou seja, por controlador
que não será sequer integrante de órgão social da empresa controlada.170 Ocorre que,
existindo controle externo, fica caracterizado grupo contratual que, por conseguinte,
consistirá em ato de concentração a ser submetido ao controle prévio do CADE, nos
termos do artigo 90 da Lei nº 12.529/2011.171 Assim, descaracteriza-se a forma da network
e perdem-se os efeitos por meio dela almejados.
Segundo Ana Frazão, “há de se ter cautela para não fazer generalizações excessivas
que possam comprometer as diferentes formas pelas quais os agentes empresariais
alocam e gerenciam os riscos do negócio”.172 Ainda que aqui se pretenda defender a
autonomia das networks como forma jurídica peculiar, não se pode deixar de considerar
a possibilidade de controle externo e concentração econômica – especialmente pelo
exercício de direção unitária – no tratamento de tal conceito, devendo as relações de
autoridade estar pautadas pela transparência e pela não interferência nas esferas de
autonomia das partes integrantes da rede.
A governança das relações de autoridade no âmbito das redes contratuais,
portanto, deve constituir preocupação central dos agentes econômicos integrantes de
tais vínculos, implementando-se mediante cláusulas capazes tanto de endereçar os
interesses dos membros da rede – mantendo, pois, sua autonomia – quanto de preservar
a existência de um interesse coletivo da rede, evitando sua substituição pelo interesse
individual de um membro central.
167
COLLINS, Hugh. Legal regulation of dependent entrepreneurs: comment. Journal of institutional and theoretical
economics, v. 152, n. 1, p. 263-270, mar. 1996, p. 266.
168
SCHANZE, Erich. Symbiotic arrangements. Journal of institutional and theoretical economics, v. 149, n. 4, p. 691-697,
dez. 1993.
169
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 233.
170
COMPARATO; SALOMÃO FILHO, Op. cit., p. 87.
171
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 233.
172
FRAZÃO, Op. cit., 2017, p. 235.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
457
networks, por mais que se preserve a autonomia das partes, produz-se algum grau de
interdependência na medida em que os êxitos, os fracassos e mesmo a inércia de cada
uma das partes projetam efeitos sobre toda a rede. Exemplos notáveis são os problemas
do free riding – quando determinados sujeitos se aproveitam das eficiências decorrentes
dos esforços de outros sem contribuir eles próprios para o sucesso dos elementos
compartilhados da rede – e da agência173 – verificável quando ocorrem conflitos entre
os interesses do membro central da rede e dos demais integrantes.
Se no caso da agência o risco a ser prevenido é da desnaturação da network, na
medida em que o membro principal acaba por solapar a autonomia das partes em virtude
de assimetrias de informação e, assim, muitas vezes produzir situações de controle
externo, o free riding constitui problema de consistência da própria rede. Novamente,
é útil o exemplo das redes de franquia, que se apresentam ao seu público consumidor
como um todo homogêneo, produzindo expectativas de que todos os sujeitos operando
sob aquela marca fornecerão um mesmo padrão de qualidade ao longo de toda a rede.
No entanto, caso algum dos integrantes da rede resolva reduzir custos e entregar pro
dutos de menor qualidade, a avaliação negativa do consumidor prejudicará não somente
o franqueado, mas todos os franqueados e especialmente o franqueador.174 É por essa
razão que as cláusulas de governança – sobretudo as que permitem a fiscalização dos
franqueados e a eventual imposição de sanções internas – se fazem tão importantes nesses
arranjos. Em cláusulas como essas, é possível estabelecer obrigações de promoção de
determinados valores, de proteção aos membros da rede e mesmo de performance, todas
elas no intuito de proteger os integrantes da rede do free riding e mesmo de salvaguardá-
los contra eventual ação oportunista do membro central.175
Importa notar que a responsabilidade interna dos membros da rede não se resume
à reparação por quebra de deveres contratuais, questão facilmente – ao menos em tese
– resolvida em eventual ação do franqueador contra o franqueado, o que se verifica
na jurisprudência.176 No entanto, conforme aduz Teubner,177 a fraqueza da fiscalização
centralizada é bastante óbvia, na medida em que nem sempre o franqueador pode
estar interessado na manutenção dos padrões de qualidade, seja em razão de lógica
econômica, seja em virtude de relações espúrias que guarde com o free rider. No entanto,
o que se pretende sustentar é que os prejuízos sofridos pelos demais membros da rede
– e, portanto, alheios à relação entre free rider e membro central – também constituem
base razoável para eventual ação de responsabilização.178 A intensificação dos deveres
de lealdade nas networks e a incisiva participação da função social dos contratos produz,
nesses sistemas, especiais deveres para com os demais membros da rede, de sorte que
173
JENSEN; MECKLING, Op. cit.
174
KLEIN, Benjamin; SAFT, Lester E. The law and economics of franchise tying contracts. The journal of law &
economics, v. 28, n. 2, p. 345-361, maio 1985.
175
TEUBNER, Op. cit., p. 227.
176
Nesse sentido: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, A. I. 2098005-33.2017.8.26.0000, Rel. Des. Cesar
Ciampolini, Data de Julgamento: 19.07.2017, Data de Publicação: 25.07.2017.
177
TEUBNER, Op. cit., p. 208.
178
Sobre o paralelo entre responsabilidade contratual e responsabilidade delitual – e eventuais aproximações
necessárias à efetividade dessas noções –, ver: PICKER, Eduard. Vertragliche und deliktische Schadenshaftung –
Überlegungen zu einer Neustrukturierung der Haftungssysteme. JuristenZeitung. v. 42, n. 22, p. 1041-1058, nov.
1987.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
458 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
179
MÖSCHEL, Op. cit., p. 224-225. Conforme já intuiu Ripert (Op. cit., p. 198-224), determinados deveres morais
penetram no mundo jurídico e adquirem força normativa, sendo a responsabilidade civil nada mais do que a
determinação e a sanção legal da responsabilidade moral.
180
A respeito da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas networks, ver: WELLENHOFER, Op. cit.
181
TEUBNER, Op. cit., p. 258. Sobre as “colisões contratuais”, ver: AMSTUTZ, Op. cit.
182
TJPR, 8ª Câmara Cível, Ap. cív. 8487447, Rel. Des. José Laurindo de Souza Netto, Data de Julgamento: 20.09.2012,
Data de Publicação: 29.09.2012; TJSP, 32ª Câmara de Direito Privado, Ap. cív. 10037629720058260562, Rel. Des.
Luis Fernando Nishi, Data de Julgamento: 13.08.2015, Data de Publicação: 13.08.2015.
183
TEUBNER, Gunther. Netzwerk als Vertragsverbund: Virtuelle Unternehmen, Franchising, just-in-time in
sozialwissenschaftlicher und juristicher Sicht. Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2004. p. 204.
ANGELO GAMBA PRATA DE CARVALHO
AS REDES CONTRATUAIS COMO FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA E A RESPONSABILIZAÇÃO DE SEUS AGENTES
459
Ao menos a priori, não parece razoável considerar a network como um todo unitário
capaz de responder às investidas de terceiros, colocando-se como espécie de holding. Pelo
contrário, a solução para a responsabilização dos membros da network perante terceiros
deve ser encontrada na preservação da autonomia das partes. Não se pode ignorar, nesse
intuito, que redes contratuais serão mais ou menos descentralizadas, de sorte que, nas
formas centralizadas, parece razoável buscar a responsabilização solidária do membro
central, como sói ocorrer em redes de franquias.184
Contudo, como regra geral, propõe-se que a “irresponsabilidade organizada”
seja substituída por mecanismos internos às networks que permitam socializar os
danos eventualmente suportados por algum de seus integrantes em virtude de ação de
responsabilidade. Assim, da mesma maneira que os integrantes das redes compartilham
sinergias em virtude de sua relação cooperativa, nada mais justo do que a repartição
equânime dos encargos atribuídos a algum dos membros, o que igualmente evitará que
as dificuldades operacionais decorrentes do pagamento de eventual reparação gerem
reflexos sobre a reputação da rede como um todo.185 Assim, obtém-se maior transparência
nas relações com terceiros – que estarão lidando com um agente autônomo, e não com
uma coletividade indefinida – e os integrantes da network encontram guarida em seus
parceiros de negócios, mitigando-se os riscos das atividades. O que deve ficar claro,
nesse ponto, é que, independentemente da complexidade dos arranjos contratuais a
serem adotados, as redes contratuais perderão todo seu propósito jurídico-econômico a
partir do momento que servirem tão somente como mecanismos de evasão à regulação
cogente, que desconstituirá o mais complexo dos arranjos para garantir a primazia da
realidade sobre a forma.
8 Conclusão
A reflexão sobre novas categorias jurídicas deve estar sempre atenta a problemas
práticos, sob pena de tornar-se inútil em virtude de sua excessiva abstração. O esforço
teórico aqui empreendido de modo algum pode ser lido de maneira totalizante,
mesmo porque parte de exemplos concretos e frequentes – redes de franquias, redes
de distribuição, empresas virtuais, dentre outros – para elaborar modelo teórico que
abarque as características comuns desses fenômenos e que seja capaz de explicar sua
origem e seus efeitos. As redes contratuais constituem realidade inafastável não apenas
no exterior, mas também na jurisprudência pátria, em que se podem encontrar tentativas
de tratamento que nem sempre se revelaram as mais adequadas.
O limbo jurídico em que têm se posicionado as networks – ora classificadas como
contratos, ora como sociedades, ora como grupos, ora como contratos conexos – não é de
modo algum saudável para o exercício da atividade econômica, situação que não pode
ser tolerada pelos operadores do Direito, que devem se apresentar como verdadeiros
“engenheiros de custos de transação”186 para elaborar soluções jurídicas eficientes.
184
TEUBNER, Op. cit., 2004, p. 211.
185
Nesse sentido: GRUNDMANN, Op. cit., p. 752-755.
186
GILSON, Ronald. Value creation by business lawyers: legal skills and asset pricing. The Yale law journal, v. 94, n.
2, p. 239-313, dez. 1984.
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A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL
À IDENTIDADE GENÉTICA
1 Introdução
As diversas evoluções nas pesquisas científicas acerca de novas biotecnologias
trazem cada vez mais à tona discussões antes inimagináveis no campo da saúde humana,
apresentando ao Direito um grande desafio frente a estas novas evoluções. Pois, se por
um lado estas novas biotecnologias trazem consigo possibilidades antes impensáveis
para a vida humana, por outro trazem consigo uma possiblidade de modificação da
essência humana, que ainda hoje não pode ser mensurada.
Como exemplo destas novas técnicas é possível citar a terapia gênica, qual seja,
uma técnica de manipulação genética que possui como objetivo primordial o tratamento
de doenças genéticas hereditárias por meio da manipulação genética de células humanas.
O desenvolvimento desta técnica possibilita, ainda, não somente a cura de
doenças genéticas hereditárias e/ou adquiridas,1 mas também a manipulação genética
para o melhoramento de outras características, como a capacidade física ou cognitiva
de um embrião, e é diante desta possibilidade que se faz importante a análise do
direito fundamental à identidade genética, bem como a análise da constitucionalidade
de aplicação das técnicas de terapia gênica, visto que o aperfeiçoamento da técnica de
terapia gênica em células da linha germinativa2 poderá viabilizar o desenvolvimento
das chamadas “crianças projetadas”.3
1
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2
NUNES, Rui. GeneÉtica. Coimbra: Edições Almedina, S.A., jun. 2013, p. 155-156.
3
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genética. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 19-21.
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466 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
2 Terapia gênica
Os primeiro estudos acerca da possibilidade de transferência de informações
genéticas de um organismo ocorreram em 1944 e as primeiras especulações acerca da
possibilidade de transferência de genes para cura de doenças em humanos ocorreram
a partir das décadas de sessenta e setenta.4
A técnica de terapia gênica possui como objetivo primordial o tratamento de
doenças por meio da manipulação genética de células humanas e consiste no processo
pelo qual se retira o gene responsável por alguma doença e se transferem genes
saudáveis às células que possuem o gene com “defeito”,5 sendo tal possibilidade
viável, visto que os genes se constituem como um segmento de uma molécula de DNA
(ácido desoxirribonucleico), responsáveis pelas características herdadas geneticamente,
possuindo códigos e instruções para produção de proteínas, com funções específicas
no corpo.6
Esta terapia genética apresenta-se em duas principais modalidades, quais sejam, a
terapia gênica em células somáticas e a terapia gênica em células da linha germinativa.7
A primeira técnica trata da manipulação genética em células somáticas do corpo humano,
ou seja, em qualquer célula do organismo, com exceção das células que originam os
gametas masculinos e femininos,8 e tem por objetivo a cura ou a prevenção de alguma
doença genética hereditária ou adquirida.9
4
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5
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6
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7
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8
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15
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16
SANDEL, Michael J.; MESQUITA, Ana Carolina de Carvalho. Contra a perfeição: ética na era da engenharia
genética. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013, p. 20
17
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18
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19
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20
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CAROLINE JANAINA MENDES, JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES
A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
469
E neste mesmo sentido, expõe Pietro Alarcón que o direito à vida consagrado
no artigo 5º da Constituição Federal do Brasil deve sempre ser interpretado em toda
sua plenitude e magnitude, não podendo as descobertas biomédicas e as manipulações
genéticas degradarem o sistema imposto pela Constituição.21
Assim, não há como negar a natureza humana do embrião; conforme ressalta
Jussara Meirelles, esta constatação já é por si só suficiente, vista a grande semelhança
existente entre o embrião, o nascituro e a pessoa humana,22 expõe ainda:
o juízo de existência e de valor do ser humano e de sua necessária proteção não se limita ao
estatuto jurídico da pessoa. E sob o enfoque da valoração do ser humano em qualquer fase
de seu ciclo vital, o que informa a semelhança entre os seres nascidos e aqueles concebidos
e mantidos em laboratório é a sua natureza comum e o que representam axiologicamente, e
não a maior ou menor possibilidade de se adequarem à categoria abstrata da personalidade
jurídica.23
21
LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Patrimônio genético humano e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São
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22
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24
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25
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
470 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
26
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 89.
27
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 89.
28
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 90-91.
29
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 92.
30
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 92.
31
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 92-93.
32
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 111.
33
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 111.
34
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 111-112.
CAROLINE JANAINA MENDES, JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES
A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
471
que tal terapia, quando utilizada para além da cura de doenças genéticas hereditárias,
atinge a esfera de autonomia da pessoa humana que está para nascer.
Importante ressaltar que independentemente dos debates acerca do início da vida
e de o embrião ser considerado ou não pessoa, a vida humana encontra-se protegida
desde a sua concepção, pois este, conforme explica Selma Rodrigues Petterle, é um bem
jurídico que goza de proteção jurídico-constitucional autônoma.35
Neste sentido, a liberação da aplicação da técnica de terapia gênica em Células da
linha Germinativa, nas primeiras fases de desenvolvimento do embrião, no intuito de
manipulação genética para o melhoramento de características físicas ou cognitivas da
espécie humana, se consubstancia como uma afronta ao direito fundamental à identidade
genética, vez que restará violado o direito de autodeterminação desta pessoa, direito este
que se conceitua como o direito que cada pessoa tem de reger a sua vida, de buscar da
sua maneira o melhor modo de viver, de acordo com o seu livre exercício de vontade,
segundo seus próprios valores, interesses e desejos.36
Conforme, preceitua Luís Roberto Barroso, a autonomia se consubstancia como
elemento ético da dignidade humana, estando subjacente a um conjunto de direitos
fundamentais,37 deste modo, promover a terapia gênica em células da linha germinativa,
nas primeiras fases de desenvolvimento do embrião, para além da cura de doenças
genéticas hereditárias, com a intenção da escolha de qualidades físicas, psicológicas e/
ou emocionais do embrião pelos seus genitores, promoveria um afronto ao princípio da
dignidade da pessoa humana, vez que, conforme explica Agnor Sganzerla, Fernanda
Schaefer Rivabem e Jussara Maria Leal de Meirelles, mesmo que muitos afirmem que
projetar filhos para o sucesso por meio da bioengenharia corresponda a um exercício
de liberdade, pois se pretende modificar a natureza humana para melhor adaptação
ao mundo, ainda assim essa justificativa se consubstancia como uma forma de
enfraquecimento da autonomia. 38
Portanto, o direito à identidade genética corresponde ao direito fundamental que
toda ser humano possui de preservar a sua constituição genética originária, ao direito
de cada ser humano viver do modo como ele foi concebido, pois este se consubstancia
em um direito que protege a manifestação essencial da personalidade humana, base da
identidade pessoal de cada pessoa, um direito que protege a autonomia de uma pessoa
em fazer escolhas pessoais ao longo da vida baseadas na sua própria concepção,39 sem a
influência e predeterminação de um projeto de vida pessoal e/ou profissional limitado
a preferências subjetivas de seus pais no momento da sua concepção.
Ao se tratar, portanto, da constitucionalidade da aplicação das técnicas de terapia
gênica à luz da Constituição Federal de 1988 e do direito fundamental à identidade
35
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 103.
36
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional brasileiro: a construção de um
conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 81.
37
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional brasileiro: a construção de um
conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 81.
38
SGANZERLA, Anor; RIVABEM, Fernanda Schaefer; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Direito à liberdade, à
finitude e avanços biotecnológicos: vida humana autêntica ameaçada? Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 9,
n. 18, p. 123, set./dez. 2017.
39
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional brasileiro: a construção de um
conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 82.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
472 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
genética, o que se deve sempre tomar cuidado é com a tênue linha entre a consagração
ao direito à saúde e o afronto ao direito de personalidade da pessoa que se submete a
este tratamento.
4 Considerações finais
Nota-se que o desenvolvimento e o aprimoramento das técnicas de terapia
gênica se constituirão como uma revolução no modo como o ser humano se comporta
e vive dentro da sociedade, e se por um lado estas novas biotecnologias trazem consigo
possibilidades antes impensáveis para a vida humana, por outro trazem uma possiblidade
de modificação da essência humana, que ainda hoje não pode ser mensurada, visto que
o desenvolvimento desta técnica possibilita não somente a cura de doenças genéticas
hereditárias, mas também a manipulação genética para o melhoramento de outras
características, como a capacidade física ou cognitiva de um embrião.
E é diante desta possibilidade que se faz importante a análise do direito funda
mental à identidade genética, bem como a análise da constitucionalidade da aplicação das
técnicas de terapia gênica, tendo em vista que o direito fundamental à identidade genética
se consubstancia como um direito de personalidade e que possui como funcionalidade
o dever de respeito ao direito de cada pessoa humana ser única, original e irrepetível.40
Neste sentido, é possível analisar que a aplicação das técnicas de terapia gênica se
constitui inconstitucional quando violam o direito fundamental à identidade genética,
desrespeitando os direitos de personalidade da pessoa submetida ao tratamento, devendo
a colisão entre o direito à saúde e o direito à identidade genética, nesse contexto, ser
solucionada a partir dos princípios da interpretação constitucional.
Referências
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conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
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sao-genes/8159/73/>. Acesso em: 05 dez. 2017.
40
PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2007. p. 111.
CAROLINE JANAINA MENDES, JUSSARA MARIA LEAL DE MEIRELLES
A TERAPIA GÊNICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO FUNDAMENTAL À IDENTIDADE GENÉTICA
473
KIMURA, Mara Regina. As técnicas biomédicas – a vida embrionária e o patrimônio genético humano – à luz
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Âmbito Jurídico, Rio Grande, v. XVI, n. 111, abr. 2013. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/
site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13108>. Acesso em; 19 maio 2018.
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à finitude e avanços biotecnológicos: vida humana autêntica ameaçada? Revista NUPEM, Campo Mourão, v.
9, n. 18, p. 123, set./dez. 2017.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
MENDES, Caroline Janaina; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. A terapia gênica à luz da Constituição
Federal de 1988 e o direito fundamental à identidade genética. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.).
Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 465-473.
E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES
DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO
DAS VULNERABILIDADES
1 Considerações iniciais
Aos quatro meses de gestação, Cláudia, mulher, negra e pobre, solicitou ali
mentos ao pai de uma criança em comum de quatro anos. Espancada, a vítima buscou
atendimento em delegacias especializadas em violência doméstica. A despeito da
medida de afastamento que resultou da circunstância, a questão alimentar não se viu
contemplada no encaminhamento. Assim, a aproximação física permanecia necessária
quando buscava a genitora o adimplemento alimentar mensal, diante da solução estatal
insuficiente quanto à necessidade da filha de Cláudia e do agressor, cuja existência não
se viabilizava de modo minimamente digno.1
O exemplo revela que os movimentos jurídicos de proteção à mulher vítima de
violência doméstica podem produzir efeitos colaterais em relação a grupos especialmente
precarizados. Apesar de destacada a sua vulnerabilidade através de microssistema
próprio, correspondente à Lei Maria da Penha (Lei nº 11.304 de 2006), há relevantes
pontos de invisibilidade na narrativa.
Com efeito, os movimentos de representação do sujeito de direito – que não
encontra figura equivalente no contexto jurídico pré-estatal,2 e, portanto, pré-moderno –
têm demonstrado oscilações diversas. De modo sumário, podem-se estabelecer dois
modos de articulação prevalentes na contemporaneidade.
1
Caso extraído do artigo: BERNARDES, Márcia Nina; ALBUQUERQUE, Mariana Imbelloni Braga. Violências
interseccionais silenciadas em Medidas Protetivas de Urgência. In: Revista Direito & Práxis, vol. 7, n. 3, 2016.
2
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Estado, democracia e sujeito de direito: para uma crítica da política contemporânea.
In: Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 2, n. 2, p. 52, 2014.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
476 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
3
Conforme exemplifica o seguinte dispositivo desta Carta Constitucional: “Art. 71. La naturaleza o Pacha
Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el
mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos”. Como
se observa, a titularidade de direitos se constitui em torno da natureza. Percebe-se o giro paradigmático em
relação à Constituição Brasileira, por exemplo, a qual prevê, no art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Neste
último caso, ainda é incipiente a centralidade humana na titularidade de direitos relacionados à natureza.
4
LEONARDO, Rodrigo Xavier. Sujeito de direito e capacidade: contribuição para uma revisão da teoria geral
do Direito Civil à luz do pensamento de Marcos Bernardes de Mello. In: EHRHARDT JR., Marcos; DIDIER JR.,
Fredie (Org.). Revisitando a teoria do fato jurídico: homenagem a Marcos Bernardes de Mello. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 553.
5
BARTELMEBS, Roberta Chiesa. Resenhando as estruturas das revoluções científicas de Thomas Kuhn. In: Ensaio,
v. 14, n. 3, p. 353, 2012.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
477
6
GROSSI, Paolo. O direito entre poder e ordenamento. Trad. Arno Dal Ri Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 22.
7
FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de direito à sujeição jurídica. São Paulo:
LTr, 2002, p. 72.
8
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do Novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2012, p. 114.
9
RODOTÀ, Stefano. Dal soggetto alla persona. In: Il diritto di avere diritti. Roma: Laterza, 2012, p. 145.
10
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do Novo Código Civil Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2012, p. 202.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
478 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Por tal motivo, é conhecida a constatação de que o homem branco, adulto, eficiente,
proprietário e contratante inspirou os parâmetros predominantes de nossos tempo e
espaço, em especial, se destacada a experiência codificada, a qual se indica, não raras
vezes, como verdadeiro marco de monumento jurídico da Modernidade.
A pretensa neutralização que predomina na acepção ainda contemporânea do
sujeito de direito não significa a confrontação do modelo hegemônico de operacio
nalização normativa. Para se manter o marcador de gênero, é certo afirmar que a revo
gação de previsões sexistas expressamente constantes no ordenamento jurídico brasileiro
significou um relevante avanço, mas não a superação das assimetrias concretas.
Apenas a título ilustrativo, a questão mostra-se através da manutenção, no Código
Civil Brasileiro, do instituto da culpa quando da dissolução do vínculo conjugal,11
condicionando, por exemplo, a possibilidade de o cônjuge culpado requerer pensão
alimentícia daquele com quem rompeu o vínculo afetivo, bem como limitando a possi
bilidade de seguir utilizando o sobrenome do cônjuge considerado inocente.12 Por certo,
embora soe como neutra, a consequência prevista em letra legal impacta quase que
exclusivamente as mulheres, que são, via de regra, as que contraem sobrenome alheio
à ocasião do casamento e as que majoritariamente necessitam e demandam alimentos
em juízo.13
A propósito, a situação de alimentos para a ex-cônjuge é bastante sintomática do
fenômeno de privilégio do padrão hegemônico a despeito da denominada universali
dade do sujeito de direito. Consultando a temática no Superior Tribunal de Justiça, que
tem por função pacificar a jurisprudência pátria em determinado sentido, colheram-se,
de 1988 a 2014, as seguintes tendências:
11
Tal inferência, contudo, é confrontada por força da Emenda Constitucional nº 66, de 2010. Rodrigo da Cunha
Pereira, Gustavo Tepedino e Paulo Luiz Netto Lôbo partem deste marco para advogarem pela irrelevância
da investigação da culpa pelo fim da dissolução conjugal. Em posicionamento intermediário, José Fernando
Simão considera que é possível aventá-la em ações de alimentos ou indenizatórias, sem, contudo, condicionar o
divórcio. Já Regina Beatriz Tavares da Silva sustenta a possibilidade plena de discussão da temática em sede de
ruptura conjugal, embora minoritariamente.
12
Neste sentido, os arts. 1.578 e 1.704 do Código Civil Brasileiro em vigor.
13
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de. Responsabilidade civil e relacionamento
extraconjugal. In: MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo (Org.). Responsabilidade civil no direito das famílias. São
Paulo: Atlas, 2015, p. 06.
14
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; MENDES, Anderson Pressendo; DOS SANTOS, Andressa Regina Bissolotti;
OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de; IWASAKI, Micheli Mayumi. Alimentos em favor de ex-cônjuge ou companheira:
reflexões sobre a (des)igualdade de gênero a partir da jurisprudência do STJ. In: Revista Quaestio Juris, vol. 8, n. 4,
p. 2480-2481, 2015.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
479
15
MATOS, Ana Carla Harmatiuk; MENDES, Anderson Pressendo; DOS SANTOS, Andressa Regina Bissolotti;
OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de; IWASAKI, Micheli Mayumi. Alimentos em favor de ex-cônjuge ou companheira:
reflexões sobre a (des)igualdade de gênero a partir da jurisprudência do STJ. In: Revista Quaestio Juris, vol. 8, n. 4,
p. 2478, 2015.
16
OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de. Olhares feministas sobre o Direito das Famílias contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2016.
17
HESPANHA, António Manuel. Os juristas como couteiros: a ordem na Europa Ocidental no início da idade
moderna. In: Análise Social, v. 37, n. 161, 2001.
18
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Org.). O direito civil entre o sujeito e
a pessoa: estudos em homenagem ao Professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 39.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
480 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
19
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998, p. 45.
20
José Carlos Moreira Alves ilustra esta percepção, como se depreende do seguinte texto: ALVES, José Carlos
Moreira. Aspectos gerais do novo Código Civil brasileiro. In: III Jornada de Direito Civil. Org.: Ruy Rosado Aguiar.
Brasília: CJF, 2005.
21
BERNARDES, Márcia Nina; ALBUQUERQUE, Mariana Imbelloni Braga. Violências interseccionais silenciadas
em Medidas Protetivas de Urgência. In: Revista Direito & Práxis, vol. 07, n. 3, p. 727, 2016.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
481
Como assegurar o justo equilíbrio entre a proteção das vulnerabilidades concretas e o grau
de abstração que se faz necessário a garantir a realização efetiva da isonomia? Como não
deixar, em uma ordem jurídica cada vez mais pulverizada em suas fontes, que a proteção
da pessoa, em seus múltiplos aspectos, converta-se em uma aplicação absolutamente
casuística, capaz de criar uma espécie de “estatuto pessoal” para cada indivíduo?22
A solução legislada não parece uma aposta razoável, pois tende ao infinito e se
sujeita ao processo majoritário, frequentemente apontado como meio temerário para a
tratativa das vulnerabilidades. Assim é que se apresenta, com frequência, na metodologia
civil-constitucional, a magistratura como “crucial para a democracia, seja em favor
da segurança jurídica representada pelo respeito às leis legitimamente promulgadas,
seja para tutelar direitos fundamentais de minorias, mesmo quando a intervenção do
Judiciário assuma feição contramajoritária”.23
De qualquer modo, este caminho hermenêutico, mais poroso e aberto, e, portanto,
menos tributário dos antes inflexíveis parâmetros de segurança jurídica, não pode se
anunciar como caótico, e à mercê do gosto decisório. Assim é que a medida da digni
dade humana, conforme o pensamento civil-constitucional, capacita-se a matizar a
pulverização dos sujeitos de direito.
Contra a tradição metafísica circunscrita, emerge a fundamentação de que o indi
víduo atomizado, contextualizado no individualismo jurídico, cede espaço à reperso
nalização do Direito Civil, através do comprometimento com a proteção de necessidades
concretas que se atendem de modo relacional.24
Extraem-se, daí, duas respostas hermenêuticas provisórias. Em primeiro lugar, a
concretude das necessidades humanas só nos parece significar o acesso a bens materiais
e imateriais estruturantes de realidades condignas por grupos deles privados.25 Em
segundo lugar, a premissa da intersubjetividade deve acompanhar a apreciação dos
casos concretos, ao nosso ver, com o objetivo de se depreenderem as assimetrias de
22
NEVARES, Ana Luiza Maia; SCHREIBER, Anderson. Do sujeito à pessoa: uma análise da incapacidade civil. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Org.). O direito civil entre o sujeito e
a pessoa: estudos em homenagem ao Professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
23
TEPEDINO, Gustavo. O papel atual do Direito Civil entre o sujeito e a pessoa. In: TEPEDINO, Gustavo;
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Org.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em
homenagem ao Professor Stefano Rodotà. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 34.
24
FACHIN, Luiz Edson; PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. A dignidade da pessoa humana no Direito contemporâneo:
uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista. Disponível em: <http://www.
anima-opet.com.br/pdf/anima5-Conselheiros/Luiz-Edson-Fachin.pdf>. Acesso em: 13 maio 2018.
25
FLORES, Joaquin Herrera. La reinvención de los derechos humanos. Sevilha: Atrapasueños, 2008, p. 22-24.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
482 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
26
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150.
27
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150.
LIGIA ZIGGIOTTI DE OLIVEIRA
LIMITES E POSSIBILIDADES DAS NOVAS CONCEPÇÕES DO SUJEITO DE DIREITO PARA A PROTEÇÃO DAS VULNERABILIDADES
483
Referências
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CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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contemporâneo: uma contribuição à crítica da raiz dogmática do neopositivismo constitucionalista. Disponível
em: <http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima5-Conselheiros/Luiz-Edson-Fachin.pdf>. Acesso em: 13 maio
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FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do Novo Código Civil Brasileiro. 3 ed. Rio de Janeiro:
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FLORES, Joaquin Herrera. La reinvención de los derechos humanos. Sevilha: Atrapasueños, 2008.
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GROSSI, Paolo. O direito entre poder e ordenamento. Trad. Arno Dal Ri Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
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do Direito Civil à luz do pensamento de Marcos Bernardes de Mello. In: EHRHARDT JR., Marcos; DIDIER
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
484 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL:
A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO
E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
Introdução
A política de defesa da concorrência no Brasil já perpassou alguns ciclos. Antes
de começar a descrevê-los, é importante chamar a atenção para o fato de que esses ciclos
não possuem particularmente um fim, mas são o início da consolidação de um processo
que certamente é forte e vigente hoje em dia. Feito esse esclarecimento preliminar, não
há muitas dúvidas de que o primeiro período do CADE foi o dos atos de concentração,
operações societárias que precisam ser apresentadas para análise. Alguns julgamentos
importantes no final dos anos 1990 e outros do início dos anos 2000 consolidaram não
só a necessidade de notificar operações ao CADE, como também os métodos de análise,
sobretudo a partir do Guia de Análise de Atos de Concentração.
A partir de 2003 teve início um processo, relativamente paralelo, em que o CADE
ganhou relevância no cenário internacional, introduzindo o instrumento da leniência
no rol de opções de técnicas de investigação, que aprimorou as operações estruturadas
de busca e apreensão para coleta de provas. Na sequência, grupos de trabalho foram
montados para melhorar a política de concorrência, o que teve como efeito a construção
de uma cultura colaborativa voltada para a produtividade, que se tornou a marca do
CADE e fez com que alguns rankings internacionais enxergassem a continuidade da
evolução da política antitruste no país.
Essas mudanças deram início a um novo ciclo de desenvolvimento, que consoli
dou os procedimentos e regras para os acordos que, em certa medida, já existiam para
os atos de concentração, mas eram restritos nos casos de condutas anticompetitivas.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
486 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1
Durante o período de 2006 a 2012, menos de 25% das decisões de infração da Comissão da UE foram seguidas
por ações de indenização. Os processos são geralmente agrupados em muito poucos Estados-Membros,
principalmente no Reino Unido, na Alemanha e nos Países Baixos, não tendo sido comunicadas ações posteriores
às decisões da Comissão da UE em 20 dos 28 Estados-membros (OECD, 2015).
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
487
2
“Os Livros Verdes são documentos publicados pela Comissão Europeia destinados a promover uma reflexão a
nível europeu sobre um assunto específico. Convidam, assim, as partes interessadas (organismos e particulares)
a participar num processo de consulta e debate, com base nas propostas que apresentam. Os Livros Verdes
podem, por vezes, constituir o ponto de partida para desenvolvimentos legislativos que são, então, expostos nos
Livros Brancos”. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/green_paper.html?locale=pt>.
Acesso em: 03 jun. 2018.
3
Artigo 101º (ex-artigo 81º TCE) 1. São incompatíveis com o mercado interno e proibidos todos os acordos entre
empresas, todas as decisões de associações de empresas e todas as práticas concertadas que sejam suscetíveis
de afetar o comércio entre os Estados-Membros e que tenham por objetivo ou efeito impedir, restringir ou
falsear a concorrência no mercado interno, designadamente as que consistam em: a) Fixar, de forma direta ou
indireta, os preços de compra ou de venda, ou quaisquer outras condições de transação; b) Limitar ou controlar
a produção, a distribuição, o desenvolvimento técnico ou os investimentos; c) Repartir os mercados ou as fontes
de abastecimento; d) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no caso de prestações
equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; e) Subordinar a celebração de
contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua natureza ou
de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos. 2. São nulos os acordos ou
decisões proibidos pelo presente artigo. 3. As disposições no nº 1 podem, todavia, ser declaradas inaplicáveis: –
a qualquer acordo, ou categoria de acordos, entre empresas, – a qualquer decisão, ou categoria de decisões, de
associações de empresas, e – a qualquer prática concertada, ou categoria de práticas concertadas, que contribuam
para melhorar a produção ou a distribuição dos produtos ou para promover o progresso técnico ou económico,
contanto que aos utilizadores se reserve uma parte equitativa do lucro daí resultante, e que: a) Não imponham
às empresas em causa quaisquer restrições que não sejam indispensáveis à consecução desses objetivos; b) Nem
deem a essas empresas a possibilidade de eliminar a concorrência relativamente a uma parte substancial dos
produtos em causa.
4
Artigo 102.º (ex-artigo 82º TCE) É incompatível com o mercado interno e proibido, na medida em que tal seja
suscetível de afetar o comércio entre os Estados-Membros, o facto de uma ou mais empresas explorarem de forma
abusiva uma posição dominante no mercado interno ou numa parte substancial deste. Estas práticas abusivas
podem, nomeadamente, consistir em: a) Impor, de forma direta ou indireta, preços de compra ou de venda
ou outras condições de transação não equitativas; b) Limitar a produção, a distribuição ou o desenvolvimento
técnico em prejuízo dos consumidores; c) Aplicar, relativamente a parceiros comerciais, condições desiguais no
caso de prestações equivalentes colocando-os, por esse facto, em desvantagem na concorrência; d) Subordinar a
celebração de contratos à aceitação, por parte dos outros contraentes, de prestações suplementares que, pela sua
natureza ou de acordo com os usos comerciais, não têm ligação com o objeto desses contratos.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
488 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Comissão Europeia editou uma série de documentos sobre o tema. O Green Paper on
Damages Actions for Breach of the EC Antitrust Rules (Ações de indenização devido à
violação das regras comunitárias no domínio antitruste), de dezembro de 2005, por
exemplo, bem como o Documento de Trabalho que o acompanha, abordou as condições
existentes à época para a proposição de um pedido de indenização por infração da
legislação comunitária no domínio antitruste e identificou os obstáculos à criação de
um sistema mais eficiente.
O Livro Verde tratou da identificação dos principais obstáculos para a respon
sabilidade civil e trouxe elementos que precisavam ser aperfeiçoados. Isso porque
a Comissão identificou que “[e]mbora o direito comunitário exija um sistema eficaz
para os pedidos de indenização na sequência de infrações às regras antitruste esta
área do direito caracteriza-se, nos 25 Estados-Membros, por um ‘subdesenvolvimento
total’” (Comissão Europeia, Livro Verde, SEC (2005) 1732, p. 4). A afirmação se baseou
em estudos que mostram a quantidade ainda irrisória de pedidos de indenização na
sequência de infrações e na ausência de regras comunitárias na matéria, o que leva a uma
situação de insegurança, cabendo aos sistemas jurídicos dos Estados-Membros definir
regras pormenorizadas para a introdução de pedidos de indenização. A uniformização
não estava presente.
Dentre os obstáculos para a proposição de ações privadas, sinalizados no Livro
Verde e no Documento de Trabalho da Comissão, estão: (i) pouca participação dos grupos
de defesa do consumidor na busca pela reparação dos danos; (ii) falta de capacidade
de o particular provar a conduta ilegal; (iii) o ônus da prova, que recai sobre o “autor”
da ação privada; (iv) a divulgação das provas em juízo, bem como a pouca eficiência
dos juízes no interrogatório das testemunhas; (v) a não vinculação da decisão da autori
dade que combate os crimes de condutas anticoncorrenciais, com as decisões judiciais;
(vi) a quantificação dos danos; (vii) a alegação de que os intermediários repassaram aos
consumidores finais os prejuízos advindos da conduta; (viii) o tempo de tramitação do
processo; (ix) os custos processuais; (x) a pouca coordenação da aplicação da legislação
pelos poderes públicos e pelos particulares; (xi) a questão da nomeação de peritos; entre
outras (Comissão Europeia, Livro Verde, SEC (2005) 1732).
Apresentadas as questões, a Comissão convidou os interessados a enviar
apreciações para avançar na definição de diretrizes sobre a adoção de medidas a nível
comunitário para melhorar as condições para a ampliação de ações privadas.
custos ao longo da cadeia produtiva (passing-on defense) com o propósito de evitar uma
“sobrecompensação” dos danos sofridos pela vítima. Além das dificuldades de calcular
a alocação devida em cada nível, a aceitação desse argumento exige a coordenação
entre as várias ações que podem ser ajuizadas, e a sua facilitação para o réu (inclusive
com a inversão do ônus da prova) pode prejudicar a demonstração dos elementos da
responsabilidade pelo autor. Outra crítica recorrente é a possibilidade da ampliação do
enforcement privado prejudicar a persecução pública, comprometendo a efetividade de
suas ferramentas, especialmente no que se refere aos acordos de leniência.
No entanto, embora ainda seja passível de críticas e aprimoramentos, a base da
decisão política da União Europeia foi a identificação de um momento propício para
aprimorar, de modo geral, o enforcement contra os crimes de cartel, permitindo que as
vítimas sejam integralmente reparadas e, ao mesmo tempo, diminuindo, ainda mais,
os incentivos para que condutas anticompetitivas sejam exercidas.
5
Conforme dados oficiais do CADE, durante a Lei nº 8.884/94 (período entre 2000 a maio de 2012), mais de 60%
dos Acordos de Leniência dizia respeito a cartéis internacionais (todo ou em parte). Já na vigência da Lei nº
12.529/11 (período entre junho de 2012 a maio de 2017), mais de 80% dos acordos diz respeito a cartéis nacionais
(todo ou em parte).
6
Somente 14 de todos os acordos firmados entre 2016 e 2017 dizem respeito à Operação Lava Jato. Disponível
em: <http://www.cade.gov.br/noticias/cade-investiga-carteis-em-licitacoes-de-infraestrutura-e-transporte-rodo
viario-em-sp>. Acesso em: 17 fev. 2018.
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
493
7
A pesquisa analisou a jurisprudência nos Tribunais e coletou amostras do TJSP, TJMG, TJRS, TJSC, TJPR, TJDF,
TJRJ, TJES, TRF 1ª Região, TRF 2ª Região, TRF 3ª Região, TRF 4ª Região, STF e STJ. A pesquisa não inclui processos
em segredo de justiça e processos envolvendo multa por intempestividade; embargos de declaração rejeitados e
litígios envolvendo matéria não concorrencial (ex. propriedade intelectual).
8
“Art. 47. Os prejudicados, por si ou pelos legitimados referidos no art. 82 da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990,
poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a
cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por
perdas e danos sofridos, independentemente do inquérito ou processo administrativo, que não será suspenso em
virtude do ajuizamento de ação”.
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
495
Direito brasileiro que, por sua vez, não possuem tratamento específico para o exercício
desse direito.
Diversos autores se debruçaram sobre as barreiras ao enforcement privado do
Direito Concorrencial. Em um estudo comparativo sobre a União Europeia, África
do Sul e Suíça, Moodaliyar, Reardon e Theuerkauf (2010) apontaram como principais
barreiras o tempo necessário para julgamento, o custo do processo, sobretudo porque, ao
perder a ação, o autor pode ser responsável pelos custos legais, e a incerteza da decisão.
Outro empecilho é a dificuldade de reunir consumidores e ou concorrentes lesados para
mover uma ação. Em geral, a pesquisa denota que essa tarefa recai sobre organizações
de consumidores que, em muitos casos, não possuem recursos para prosseguir na ação.
A OECD (2015b), o CADE (2016) e diversos autores identificaram uma série
de barreiras à ampliação do enforcement privado no Brasil. Dentre elas estão: (i) a não
existência de cultura de reivindicação de danos por parte de consumidores lesados por
delitos anticoncorrenciais, o que demanda investimentos em divulgação; (ii) elevados
custos processuais, inerentes à justiça brasileira; (iii) excessivo tempo de tramitação
dessas demandas no Judiciário, que gera desincentivo para iniciar a ação; (iv) e o curto
prazo prescricional para a propositura de ações; e (v) existem, ainda, incertezas acerca
dos legitimados para a propositura de ARDCs, sobretudo em relação aos compradores
indiretos.
Alguns pontos que dificultam as investigações são: 1) a não vinculação das
autoridades judiciais às decisões tomadas pelo CADE; 2) o caráter sigiloso de documentos
relevantes à instrução probatória, como Acordos de Leniência e Termos de Compromisso
de Cessação, celebrados junto ao CADE. Embora, no Brasil, a regra geral prevista no
art. 5º, LX, da Constituição Federal de 1988, seja a da publicidade dos atos administrativos,
existem algumas exceções, a exemplo da Lei nº 9.784, de 1999 (Lei Geral de Processo
Administrativo), que estabelece sigilo à intimidade e ao interesse público, a Lei nº 12.527,
de 2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI), que concede exceção para informações
que podem trazer vantagem competitiva, além da Lei de Defesa da Concorrência (Lei
nº 12.529, de 2011), que contém exceções quanto à publicidade dos atos administrativos.
O art. 49, por exemplo, garante tratamento sigiloso de documentos, informações e atos
processuais necessários à elucidação dos fatos e, além disso, as partes podem requerer
tratamento sigiloso de informações submetidas ao CADE nos termos do Regimento
Interno da autarquia (art. 50 a 56). O sigilo dos Acordos de Leniência e TCC está previsto
na Lei nº 12.529, de 2011 (art. 86, §9º) – Leniência e (art. 85, §5º) – TCC, nos artigos 179,
§3º, e 200, §§ 1º e 2º, do Ricade e nas cláusulas do acordo celebrado entre os signatários e o
CADE. Essa é uma questão sensível não apenas no Brasil, mas em todos os ordenamentos
jurídicos. A confidencialidade é, não apenas um direito, mas, também, uma obrigação
do proponente, já que o acesso aos documentos pode atrapalhar as investigações; 3) um
outro ponto diz respeito à distribuição do ônus da prova e dificuldade de os particulares
provarem a conduta ilegal.
Uma outra barreira à persecução privada amplamente debatida na literatura
e pelos órgãos de defesa da concorrência é a dificuldade na quantificação dos danos.
Na jurisprudência internacional, em geral, a matéria da efetivação de pretensões privadas
ao ressarcimento de danos causados por exercício de cartel é regida pelo princípio da
reparação integral. No Brasil, a norma está prevista no art. 944 do Código Civil de 2002
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
496 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
As partes prejudicadas nos Estados Unidos possuem quatro anos para ajuizamento
de ações, sendo o termo inicial contado a partir da cessação da conduta anticompetitiva
(ALISON, 2016). O acesso aos documentos obedece às regras de amplo discovery,
invertendo-se o ônus da prova nas ARDCs. Até mesmo os beneficiários de leniência ou
qualquer coautor da conduta anticompetitiva tem por obrigação fornecer documentos
e informações para embasar os pedidos de indenização, se solicitado pelo tribunal
9
10. As an expert in competition, as well as the sole entity responsible for enforcing the Brazilian competition law,
CADE can be a valuable resource for courts when hearing private enforcement cases. It is important that courts,
when hearing private actions, allow and encourage the involvement of competition authorities by, for example,
requesting the authority to provide estimates of the losses suffered by victims of the anti-competitive conduct.
11. Also, under Article 118 of the Brazilian Competition Law, CADE should be called before the judiciary to give
an opinion as a legal assistant, when matters of application of the Brazilian Competition Law are being discussed.
CADE can intervene, for instance, when it has already finalized a competition decision, or as an amicus curiae,
when there is not yet a final decision. 12. Furthermore, in accordance with Article 93 of the Brazilian Competition
Law, condemnations handed down by CADE are considered extrajudicial enforcement orders, allowing victims
of antitrust infringements to use the authority’s decision as evidence of harm in court proceedings (OECD,
2015b).
CARLOS EMMANUEL JOPPERT RAGAZZO
RESPONSABILIDADE CIVIL CONCORRENCIAL: A ARTICULAÇÃO ENTRE O ENFORCEMENT PRIVADO E A PERSECUÇÃO PÚBLICA
497
Referências
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internacional e brasileira e propostas regulamentares, legislativas e de advocacy a respeito das ações de
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
1 Introdução
O instituto do contrato visto sob a perspectiva civil-constitucional brasileira
contemporânea ganha uma nova feição, caracterizada pela manifestação de vontade e
prática comportamental probas e transparentes nas relações negocias.
A óptica estrutural do contrato compreende não apenas os elementos formais da
obrigação principal, mas insere no contexto contratual novos deveres éticos decorrentes
da boa-fé objetiva, princípio concretizador do solidarismo social (art. 3º da Constituição
Federal de 1988) no plano do Direito Privado.
Reconhecer o paradigma boa-fé objetiva nos contratos importa na observância de
comportamentos leais, de cunho ético dos contratantes em todas as fases do processo
contratual. O dinamismo negocial e a complexidade das relações mercadológicas exigem
o traço pronunciado da confiabilidade das partes.
Nessa compreensão, a ideia clássica de adimplemento obrigacional é reexaminada,
porquanto os deveres gerais de conduta são imiscuídos no bojo do cumprimento negocial.
O dever de informar, o dever de mitigar os danos, o dever de cooperar, o dever de
colaborar e ser leal às expectativas legitimidades geradas são tão imprescindíveis quanto
o implemento do objeto pactuado pelas partes.
Trata-se de reflexo marcante do primado da função social do contrato, adotado
expressamente pelo Código Civil Brasileiro, na prática reverberado pelas locuções
parcelares da boa-fé objetiva.
Assim, a formação do contrato (manifestação de vontade) e a obrigatoriedade do
que fora acordado, pilares da responsabilidade civil contratual, devem ser conjugados
substancialmente à observância ética de comportamento da boa-fé objetiva, sob pena de
inadimplemento contratual e consequente sujeição ao sistema preventivo e reparatório
do ordenamento pátrio.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
502 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
O direito civil-constitucional pode ser definido como a corrente metodológica que defende
a necessidade de permanente leitura do direito civil à luz da Constituição. O termo
“releitura” não deve, contudo, ser entendido de como restritivo. Não se trata de recorrer
à Constituição para interpretar as normas ordinárias de direito civil (aplicação indireta
da Constituição), mas também de se reconhecer que as normas constitucionais podem e
devem ser diretamente aplicadas às relações jurídicas estabelecidas entre particulares.1
Nessa perspectiva, a Carta Magna Brasileira, em seu art. 3º, elenca como um
dos objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária.2 No mesmo passo, prega no art. 1º do referido diploma constitucional ser a
dignidade da pessoa humana fundamento da República Federativa do Brasil.
De sorte que a autonomia da vontade e a liberdade de contratar ainda permane
cem como pilares da teoria geral dos contratos. O que ocorre é a integração do conceito
metajurídico de solidariedade social na seara privada, materializada pela aplicação da
boa-fé objetiva e seus deveres gerais de conduta. Trata-se da ética3 incidindo no campo
da ciência do Direito.
1
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da repartição à diluição
dos danos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 06.
2
“Da afirmação dos objetivos sociais de liberdade, justiça e solidariedade é possível concluir a necessidade de
serem as relações privadas – especificamente as relações obrigacionais – pautadas pela eticidade entre as partes
e dirigidas a um fim concorde aos comportamentos socialmente esperados”. MAGALHÃES, Ana Alvarenga
Moreira. O Erro no Negócio Jurídico: autonomia da vontade, boa-fé objetiva e teoria da confiança. São Paulo: Atlas,
2011. p. 86.
3
“Donde pode dizer-se que a Ética é a realização da liberdade, e que o Direito, momento essencial do processo
ético, representa a sua garantia especifica, tal como vem sendo modelado através das idades, em seu destino
próprio de compor em harmonia, liberdade, normatividade e poder”. REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed.
São Paulo: Saraiva, 2012. p. 215.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
503
Enunciado 26: A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz
interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva,
entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.
4
CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da Boa-fé Objetiva no Direito Civil. Coimbra: Almedina, 1997.
p. 1234.
5
MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman de V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 124.
6
Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria
da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes
princípios: III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da
proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar
os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-
fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
7
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
504 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Por fim, a boa-fé exerce o papel de fonte criadora de deveres anexos à prestação principal.
Assim, impõe-se às partes os deveres outros que não previsto no contrato: deveres de
lealdade, deveres proteção e de esclarecimento ou informação. (...) tecnicamente, são estes
os deveres anexos da boa-fé, que formando o núcleo da cláusula da boa-fé, se impõe ora
de forma positiva, exigindo dos contratantes determinado comportamento, ora de forma
negativa, restringindo ou condicionado o exercício de um direito previsto em lei ou no
próprio contrato.10
8
“Ao lado da criação de deveres anexos (dever de correção, de cuidado e segurança, de informação, de cooperação,
de sigilo, de prestar contas), a boa-fé objetiva ostenta função interpretativa dos negócios jurídicos, e função
limitadora do exercício de direitos (proibição do venire contra factum proprium, que veda que a conduta da
parte entre em contradição com conduta anterior, do inciviliter agere, que proíbe comportamentos que violem o
princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a invocação de uma cláusula ou regra que a própria parte
já tenha violado)”. PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil . Vol. III – Contratos. 21. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017.
9
“Como é notório, a boa-fé objetiva representa uma evolução do conceito de boa-fé, que saiu do plano psicológico
ou intencional (boa-fé subjetiva), para o plano concreto da atuação humana (boa-fé objetiva)”. TARTUCE, Flávio;
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 7. ed. rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2018. p. 39.
10
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Os efeitos da Constituição em relação à cláusula da boa-fé no
Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 23, p. 145, 2003.
Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista23/revista23_139.pdf>. Acesso
em: 20 maio 2018.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
505
11
Vale salientar que a enumeração de tais deveres é meramente exemplificativa. Outros valores são transmutados
em deveres jurídicos gerais, a depender do caso concreto e da relação contratual estabelecida.
12
“O antagonismo foi substituído pela cooperação, tido como dever de ambos os participantes e que se impõe
aos terceiros. Revela-se a importância não apenas da abstenção de condutas impeditivas ou inibitórias, mas das
condutas positivas que facilitem a prestação do devedor”. LÔBO, Paulo. Direito civil: obrigações. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2017. p. 104.
13
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 393-396.
14
Enunciado nº 169 do CJF/STJ: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do
próprio prejuízo”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
506 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
3. Preceito decorrente da boa-fé objetiva. Duty to mitigate the loss: o dever de mitigar o
próprio prejuízo. Os contratantes devem tomar as medidas necessárias e possíveis para
que o dano não seja agravado. A parte a que a perda aproveita não pode permanecer
deliberadamente inerte diante do dano. Agravamento do prejuízo, em razão da inércia do
credor. Infringência aos deveres de cooperação e lealdade. 4. Lição da doutrinadora Véra
Maria Jacob de Fradera. Descuido com o dever de mitigar o prejuízo sofrido. O fato de ter
deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse
com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra
e venda), evidencia a ausência de zelo com o patrimônio do credor, com o consequente
agravamento significativo das perdas, uma vez que a realização mais célere dos atos de
defesa possessória diminuiria a extensão do dano. 5. Violação ao princípio da boa-fé
objetiva. Caracterização de inadimplemento contratual a justificar a penalidade imposta
pela Corte originária, (exclusão de um ano de ressarcimento). 6. Recurso improvido.15
15
STJ – Resp: 758518 PR 2005/0096775-4, Relator: Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR
CONVOCADO DO TJ/RS), Data de julgamento: 17.06.2010, T3 – terceira turma, Data de Publicação: DJe
28.06.2010 REPDJe 01.07.2010.
16
Sobre a responsabilidade culpa post pactum finitum, assevera Donnini: “Se essa pós-eficácia da obrigação (legal ou
contratual) representa um dever genérico de comportamento como por exemplo, na exigência da boa-fé (dever
de informar), sua violação representa a ruptura dos deveres acessórios, o que faz retratar a responsabilidade pós-
contratual ou a pós-eficácia em sentido estrito”. DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade Civil Pós Contratual
no direito civil, no direito do consumidor, no direito do trabalho, no direito ambiental e no direito administrativo. 3. ed. rev.,
ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 148.
17
Segundo Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, no microssistema jurídico proposto do Código de Defesa
do Consumidor a função da boa-fé objetiva era dar equilíbrio material às relações não paritárias, a fim de
proteger o hipossuficiente ou vulnerável, técnico ou econômico, da sujeição ao fornecedor. TEPEDINO, Gustavo;
SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In:
Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: Renovar, 2005. p. 29-43.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
507
18
FRANZOLIN, Claudio José. Inadimplemento do dever de informação no contrato e os poderes do juiz no código civil: para
uma efetiva tutela jurisdicional dos contratantes. In: XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, 2009, Anais. São
Paulo. p. 10128.
19
A chamada teoria do diálogo das fontes parte da premissa de que as normas jurídicas não se excluem, antes
se complementam. Ramos jurídicos distintos passam a “dialogar” através de suas normas jurídicas. A referida
teoria foi elaborada pelo professor alemão Erik Jayme, e importada para o Brasil pela jurista sul-rio-grandense
Cláudia Lima Marques.
20
“Quando o contrato for concluído, a fonte da obrigação de sigilo será, as mais das vezes, recondutível à boa-
fé contratual, isto é, à boa-fé no cumprimento das obrigações emergente do contrato, e não já à boa-fé pré-
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
508 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
contratual”. GUARESCHI, Carla Varea. Os deveres de confidencialidade relativamente a informações obtidas na fase
pré-contratual. In: XXIV Encontro Nacional do CONPEDI-UFS, 2015, Anais. Aracaju, SE. p. 650.
21
Venosa, ao fazer referência à extinção da obrigação de maneira natural, utilizando o termo pagamento como
equivalente de adimplemento, aduz que “o pagamento deve ser visto nas obrigações de dar, fazer e não fazer.
Paga-se, na compra e venda, quando se entrega a coisa vendida. Paga-se, na obrigação de fazer, quando se
termina a obra ou atividade encomendada. Paga-se, na obrigação de não fazer, quando o devedor se abstém de
praticar o fato ou ato a que se comprometeu negativamente, por um tempo mais ou menos longo. O credor pode
ou não concorrer para o pagamento. Nos contratos bilaterais, há obrigações recíprocas. Portanto, há ‘pagamento’,
no sentido ora tratado, para ambas as partes: na compra e venda, o comprador deve pagar ‘dinheiro’, o vendedor
deve pagar a ‘coisa’, entregando-a ou colocando-a à disposição do comprador”. VENOSA, Sílvio Salvo. Direito
Civil: obrigações e responsabilidade civil. vol. 2. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 219.
22
RODRIGUES, Silvio. Direito civil: Responsabilidade civil. vol. 4. 20. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código
Civil (Lei n. 10.406, de 10.1.2002). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 124.
23
COSTA, Elcias Ferreira da. Deontologia Jurídica: ética das profissões jurídicas. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
24
Expressões da lavra do jusfilósofo pátrio Miguel Reale.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
509
25
Sobre a miscelânea do Direito Civil e do Direito Constitucional, Anderson Schreiber afirma que “o direito civil
constitucional não é o ‘conjunto de normas constitucionais que cuida de direito civil’, nem se trata tampouco
de uma tentativa de esvaziar o direito civil, transferindo alguns de seus temas (família, propriedade etc.) para
o campo do direito constitucional. Trata-se, muito ao contrário, de superar a segregação entre a Constituição
e o direito civil, remodelando os seus institutos a partir das diretrizes constitucionais, em especial dos valores
fundamentais do ordenamento jurídico”. SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos (Coord.). Direito Civil-
Constitucional. São Paulo: Atlas, 2016.
26
Ao mencionar as palavras do jurista português Mário Júlio de Almeida Costa, escreve Bruno Miragem que
“da mesma forma, a incidência da boa-fé́ resulta na multiplicação de deveres das partes. Assim, são observados
não apenas os deveres principais de prestação (o dever de pagar o preço ou entregar a coisa, por exemplo), senão,
igualmente, deveres anexos ou laterais, que não dizem respeito diretamente à prestação principal, mas com a
satisfação de interesses globais das partes, como os deveres de cuidado, previdência, segurança, cooperação,
informação, ou mesmo os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao patrimônio da outra parte”.
MIRAGEM, Bruno. Direito civil: direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 133.
27
Paulo Lôbo, corroborando com o entendimento de que os deveres gerais de conduta são autônomos à obrigação
principal, afirma que os “deveres não derivam da relação jurídica obrigacional, e muito menos do dever de
adimplemento; estão acima de ambos, tanto como limites externos ou negativos, quanto como limites internos
ou positivos. Derivam diretamente dos princípios normativos e irradiam-se sobre a relação jurídica obrigacional
e seus efeitos, conformando e determinando, de modo cogente, assim o débito como o crédito”. LÔBO, Paulo.
Direito civil – Obrigações. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 81.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
510 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Ainda que expressamente não estejam nas linhas contratuais, os deveres gerais de
conduta integram as entrelinhas jurídicas e ontológicas do negócio jurídico. O dever de
informar, de cooperar, de mitigar os danos, o dever de confidencialidade e outros deveres
decorrentes da boa-fé objetiva são matrizes ético-institucionais da obrigação assumida.
Na perspectiva do contrato, fonte da obrigação, a inserção de tais deveres éticos de
conduta reconhece que a mesma manifestação de vontade ora presente no momento de
celebrar o acordo necessita prosseguir ao longo do processo contratual, principalmente
nas relações contratuais de trato prolongado.
Contudo, requer uma vontade qualificada pela probidade, moralidade, alteridade
e respeito às expectativas legitimamente geradas, tendo em vista que, antes de
contratantes, as partes estão inseridas num contexto social, que se esperam condutas
decentes dos participantes negociais.
No condão civil-constitucional, já observado neste trabalho, extraímos que os
deveres gerais de conduta nas relações obrigacionais e em especial nos contratos,
funcionam como um mediador entre as liberdades individuais e os direitos fundamentais
decorrentes do solidarismo pugnado pela sistemática do nosso ordenamento jurídico.
O indivíduo, antes de manifestar sua vontade num determinado contrato para
satisfazer seus interesses existências, tem o dever de respeitar à ordem econômica28 e os
direitos inerentes à pessoa humana, na medida da função social da propriedade e por
consequência da função social do contrato.
Os deveres gerais de conduta são obrigações intrínsecas de convívio harmônico
em sociedade, hoje, autênticos vetores das relações jurídico-obrigacionais.
28
Ao tratar da ordem econômica no âmbito da Constituição Federal de 1988, o constitucionalista Bernardo Gonçalves
Fernandes explica que, “mesmo que a Ordem Econômica brasileira seja fundada na liberdade de iniciativa
econômica, garantindo o direito de propriedade privada dos meios de produção – típico dos modelos capitalistas –,
a Constituição de 1988 institui diversos princípios sob os quais se subordinam e limitam o processo econômico,
a fim de que com isso, se possa direcioná-lo para a persecução do bem-estar de toda sociedade notadamente na
melhoria da qualidade de vida”. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. rev.,
ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1619.
29
LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones, t. 1, trad. Jaime Santos Briz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado,
1958, p. 37.
30
Dicotomia obrigação principal e obrigação acessória/secundária é bastante enfraquecida como a nova teoria do
direito das obrigações, mormente pela incorporação dos deveres gerais de conduta na essência do adimplemento
obrigacional.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
511
31
Art. 389: “Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária
segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.
32
TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Adimplemento substancial e tutela do
interesse do credor: análise da decisão proferida no REsp 1.581.505. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil,
vol. 11, p. 95-113, jan./mar. 2017, p. 100. Disponível em: <https://www.ibdcivil.org.br/image/data/revista/
volume11/rbdcivil11_11-art-05_aline-valverde-terra-et-al.pdf>. Acesso em: 20 maio 2018.
33
FACHIN, Luiz Edson. Contratos e responsabilidade civil: duas funcionalizações e seus traços. Revista dos
Tribunais, v. 903, p. 33, 2011.
34
“Quando há contrato, existe um dever positivo do contratante, dever específico relativamente à prestação, o que
só por si lhe impõe a responsabilidade. Basta ao demandante trazer a prova da infração, para que se estabeleça
o efeito, que é a responsabilidade do faltoso, uma vez que os demais extremos derivam do inadimplemento
mesmo, pressupondo-se o dano e nexo causal, a não ser que o acusado prove a razão jurídica do seu fato, ou a
escusativa da responsabilidade”. PEREIRA, Caio Mário Silva; TEPEDINO, Gustavo. Responsabilidade Civil. 11. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 316.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
512 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
vez que a vinculação entre as partes exige comportamentos éticos e leais ao bom direito
e às legítimas expectativas geradas, fulcro da convivência social.
O espírito constitucional irradia solidarismo para o ordenamento jurídico civil,
o que na esfera contratual reverbera o respeito aos contratantes e principalmente a
materialização da boa-fé objetiva, exigindo, portanto, abrangência e tutela aos deveres
gerais de conduta.
5 Conclusão
Não obstante a sua concepção tenha ocorrido ainda na década de 1970, o Código
Civil veio ao mundo sob os influxos da Constituição Federal de 1988. O que implica
reconhecer que o referido diploma não é apenas um corpo normativo de cunho
meramente dogmático juspositivista. A lei norteia as relações privadas carregando
consigo valores decorrentes dos princípios sociais que limitam a vontade dos indivíduos,
a fim de harmonizar os mais variados interesses, todos em sintonia com a função social
da propriedade.
Com a relação contratual não é diferente. Apesar das partes exteriorizarem
vontades diversas, certos deveres éticos são esperados pelos contratantes. Nesse ponto,
os envolvidos necessitam convergir, na medida em que os deveres gerais de conduta
oriundos da boa-fé exigem comportamentos socialmente recomendáveis.
A transparência, a cooperação e a lealdade são corolários de um contrato pautado
na ética e no respeito às expectativas legitimamente geradas. Os deveres de conduta são
partes da obrigação tida como principal no contrato celebrado.
Evidente que, se o ordenamento jurídico privilegia a conduta honesta nas relações
contratuais, ele também tutela os chamados deveres gerais de conduta exigidos dos
contratantes. É função elementar do Direito não só repelir atos propriamente ilícitos
ensejadores de efeitos danosos aos contratantes reciprocamente considerados, mas
também à sociedade, assim como lhe cabe igualmente criar um ambiente fecundo ao
respeito, à confiança e à previsibilidade, condições inerentes às atividades negociais.
O contratante violador de qualquer dos deveres gerais de conduta estará sujeito
ao sistema repressivo da legislação civilista. Os deveres de informar, de cooperar,
de reduzir os danos, de garantir sigilo e confidencialidade, entre outros deveres de
comportamento, são todos eles integrantes do cumprimento geral das obrigações,
submetendo o inadimplente à responsabilização civil dos danos eventualmente causados
a outrem, seja contratante ou terceiros.
Tem-se, portanto, a figura da responsabilidade civil por inadimplemento ético.
São, em verdade, consequências jurídicas decorrentes da inobservância a preceitos
éticos, corolários do princípio da boa-fé objetiva e pilar de sustentação do Direito Civil-
Constitucional.
Referências
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Publicado no DOU de
12.9.1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8078.htm>. Acesso em: 21 maio 2018.
INALDO SIQUEIRA BRINGEL, ANDERSSON BELÉM ALEXANDRE FERREIRA
RESPONSABILIDADE CIVIL POR INADIMPLEMENTO ÉTICO
513
______. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Publicado no DOU de 11.1.2002. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 21 maio 2018.
______. Superior Tribunal de Justiça. Resp: 758518 PR 2005/0096775-4, Relator: Ministro VASCO DELLA
GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS), Brasília. Data de julgamento: 17.06.2010, T3 –
terceira turma, Data de Publicação: DJe 28.06.2010 REPDJe 01.07.2010.
BENJAMIN, Antonio Herman de V.; MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor. 3. ed. São Paulo: RT, 2010.
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GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
514 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
______. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no novo Código Civil. In: Obrigações: estudos
na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: Renovar, 2005. p. 29-43.
VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil: obrigações e responsabilidade civil. vol. 2. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
BRINGEL, Inaldo Siqueira; FERREIRA, Andersson Belém Alexandre. Responsabilidade civil por
inadimplemento ético. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro
de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 501-514. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO
E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES
CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO
DO REGISTRO CIVIL DE TRANSGÊNEROS
1 Introdução
O presente texto tem por objetivo evidenciar os novos contornos do direito ao
reconhecimento da identidade pessoal dos transgêneros a partir do julgamento da Ação
Direita de Inconstitucionalidade nº 4.275 pelo Supremo Tribunal Federal e da Opinião
Consultiva nº 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre identidade
de gênero, igualdade e não discriminação, cotejando-os com o Provimento nº 73/2018
do Conselho Nacional de Justiça.
Metodologicamente, assume o desafio de confrontar a crítica de que no Brasil
não existe uma cultura de análise séria das decisões judiciais, usualmente utilizadas
tão somente a partir do enxuto conteúdo de suas ementas e como argumento de
autoridade que corrobore a tese defendida, corroborada pela constatação de José Rodrigo
Rodriguez de que o Direito brasileiro não “produziu um pensamento jurídico conceitual
e sistemático, tampouco uma formalização a partir da argumentação que justifica a
decisão de casos exemplares”.1
Assim, busca-se não apenas traçar o “novo” perfil do direito à identidade pessoal
dos transgêneros, mas sim buscar a ratio decidendi que justifica este novo perfil e a partir
dela extrair os vetores hermenêuticos que servirão, prospectivamente, como parâmetro
1
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2013, p. 23.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
516 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha
em geral de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação por referência a seu próprio
sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento
hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.6
2
MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Ed. Coimbra, 1993, p. 23.
3
Há muito Luiz Edson Fachin descortina a necessidade do Direito incorporar também o gênero como expressão
da identidade da pessoa humana: “o sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde
logo, com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente imutável e una. Essa rigidez não leva em conta
dimensões outras, também relevantes, no plano das questões sociais e psicológicas. Desse modo, o papel de
gênero se apresenta como uma expressão pública dessa identidade” (FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família:
elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 122).
4
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidade. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.). Diversidade Sexual e Direito
Homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 412.
5
CHAVES, Marianna. Homoafetividade e direito: proteção constitucional, uniões, casamento e parentalidade – um
panorama luso-brasileiro. Curitiba: Juruá, 2011, p. 40-42.
6
DIAS, Rodrigo Bernardes. Estado, sexo e direito: reflexões acerca do processo histórico de reconhecimento dos
direitos sexuais como direitos humanos fundamentais. São Paulo: SRS Editora, 2015, p. 331.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
517
Em que pese seja esta a classificação atual, a própria OMS já assinalou mudança
de posição. Em 18.06.2018, a organização divulgou a nova Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11), na qual a
transexualidade já não é classificada como transtorno de sexualidade, mas apenas como
condição relativa à saúde sexual. Deixa portanto a categoria de patologia para ingressar
na categoria de condição sexual, tal como a disfunção erétil. A nova classificação, porém,
ainda será submetida à aprovação pelos países membros (o que ocorrerá em maio de
2019) e, em sendo aprovada, entrará em vigor apenas em 1º de janeiro de 2022.
Em solo pátrio, o Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução nº 1.955/
2010, estabelece que para a definição de transexualismo a pessoa deverá apresentar, no
mínimo:
Em que pese tais definições a tomarem como patologia, não se pode ignorar a
tendência estrangeira de não mais reconhecer o transexualismo como uma doença, na
linha do que fora proposto no CID-11, e da posição já assumida pela Associação Ameri
cana de Psiquiatria.7 Seja ou não uma patologia, a transexualidade é um fenômeno social
amplamente reconhecido e que trará importante repercussão no conjunto de elementos
que compõem a identidade pessoal.
A relação de não pertencimento ao sexo morfológico decorrente da transexuali
dade naturalmente reflete também na não conformação da identidade autopercebida
ao nome, a imagem e ao próprio projeto de vida da pessoa. Naturalmente, uma mulher
transgênera não se sentirá adequadamente representada por um prenome masculino,
tampouco pelo estereótipo da imagem masculina ou mesmo pelos comportamentos
culturais tipicamente designados para o sexo masculino, tornando imprescindível a
retificação de alguns dos atributos da sua personalidade civil para que se adéquem a
sua identidade pessoal e projeto de vida.
Nessa medida, adaptar a tutela da personalidade do transgênero não se limita à
retificação isolada do nome ou do sexo da pessoa em seu registro civil, mas vai além,
“alcançando sua relação com os diferentes traços pelos quais a pessoa humana vem
representada no meio social” e promovendo “a garantia da fidedigna apresentação da
pessoa humana, em sua inimitável singularidade”.8
Foi pensando nesta proteção mais ampla, relacionada ao complexo de dados
pessoais do indivíduo, que a doutrina italiana desenvolveu na década de 1970 o chamado
direito à identidade pessoal, definido por Maria Celina Bodin de Moraes como “uma
fórmula sintética para destacar a pessoa globalmente considerada de seus elementos,
características e manifestações, isto é, para expressar a concreta personalidade individual
que se veio consolidando na vida social”.9
7
Ibidem.
8
SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 214 e 220.
9
A definição de direito à identidade pessoal como conglobante de diversos aspectos da personalidade é
elucidativamente traçada por Maria Celina Bodin de Moraes: “Enquanto o nome identifica o sujeito físico no
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
518 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
plano da existência material e a imagem evoca os traços fisionômicos da pessoa, a identidade pessoal representa
uma fórmula sintética para destacar a pessoa globalmente considerada de seus elementos, características e
manifestações, isto é, para expressar a concreta personalidade individual que se veio consolidando na vida social.
Este novo direito da personalidade consubstanciou-se num ‘direito de ser si mesmo’ (diritto ad essere se stesso),
entendido como o respeito à imagem global da pessoa participante da vida em sociedade, com a sua aquisição de
ideias e experiências pessoais, com as suas convicções ideológicas, religiosas, morais e sociais, que a distinguem
e ao mesmo tempo a qualificam. (...) Há ainda um aspecto fundamental do direito à identidade pessoal: a sua
intrínseca modificabilidade, isto é, sua capacidade ou potencialidade de mudança. De fato, a identidade pessoal
pode mudar e frequentemente muda com a evolução da pessoa” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da
pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2016, p. 138-139).
10
O exemplo é apresentado e debatido em: SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas,
2014, p. 214-215.
11
SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 98.
12
SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 217.
13
Ibidem, p. 220.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
519
14
DUQUE, Marcelo Schenk. Direito privado e constituição: drittvirkung dos direitos fundamentais, construção de um
modelo de convergência à luz dos contratos de consumo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 316.
15
“A ausência de apreensão jurídica e de proteção dessa autodeterminação restringe arbitrariamente a liberdade,
impondo em atípica intervenção por meio de uma determinada forma de ‘silêncio legal’. A relação intersubjetiva
que tinha uma face definida pela vivência das liberdades das partes deixa de ser reconhecida como tal. Aquilo que
deflui da autodeterminação deixa de reger os rumos da vida desses indivíduos, pois esse Direito, ao silenciar –
ou ao não limitar-se a afirmação pura e simples de licitude (em termos de liberdade negativa), sem dali extrair
normatividade decorrente da liberdade – acaba por direcionar comportamentos para os rumos atinentes aos
modelos expressamente chancelados pela norma, aqui apreendida em seu sentido estrito” (PIANOVSKI RUZYK,
Carlos Eduardo. Institutos fundamentais de direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato,
da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2011, p. 135).
16
É a perspectiva de liberdade adotada por Amartya Sen na obra Desenvolvimento enquanto liberdade. Segundo o
autor, “a análise do desenvolvimento apresentada neste livro considera as liberdades dos indivíduos os elementos
constitutivos básicos. Assim, atenta-se particularmente para a expansão das ‘capacidades’ das pessoas de levar
o tipo de vida que elas valorizam – e com razão. Essas capacidades podem ser aumentadas pela política pública,
mas também, por outro lado, a direção da política pública pode ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades
participativas do povo” (SEN, Amartya. Desenvolvimento enquanto liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 33).
17
Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html>, acesso em: 28
maio 2018.
18
Em 2016 o SUS atendeu mais de quarto mil pessoas interessadas no procedimento para adequação de seu
corpo ao gênero com o qual se identificam, conforme notícia veiculada em: <https://epoca.globo.com/saude/
noticia/2017/06/o-papel-do-sus-em-ajudar-cidadaos-transexuais-renascer.html>, acesso em: 26 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
520 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
19
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4.275/VotoMMA.pdf>, acesso
em: 26 maio 2018.
20
Idem.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
521
21
É o que se extrai do artigo 5º, I, da Constituição Federal, do artigo 2º, 1 e 26 do Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos (internalizado pelo Decreto nº 592/92) e do artigo 1º da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, internalizado pelo Decreto nº 678/92).
22
Voto proferido pelo eminente Ministro Luiz Edson Fachin, disponível em: <http://www.stf.jus.br/ arquivo/cms/
noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4.275VotoEF.pdf>, acesso em: 26 maio 2018.
23
Idem.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
522 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
24
Idem.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
523
25
“Necessário desfazer o equívoco de que as diferenças significam necessariamente a hegemonia ou superioridade
de um sobre o outro. A construção da verdadeira cidadania só é possível na diversidade. Em outras palavras,
a formação e construção da identidade se fazem a partir da existência de um outro, de um diferente. Se fôssemos
todos iguais, não seria necessário falar e reivindicar a igualdade. Portanto, é a partir da diferença, da alteridade,
que se torna possível existir um sujeito. Enfim, é a alteridade que prescreve e inscreve o direito a ser humano”
(PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 163-164).
26
São os citados dispositivos: Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade. (...) 2. Ninguém pode ser objeto
de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua
correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação; art. 18. Direito ao nome. Toda pessoa tem
direito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a
todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário; art. Igualdade perante a lei. Todas as pessoas são
iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.
27
“1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e
a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma
por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional
ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. Disponível em: <https://www.
cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana. htm, acesso em: 26/05/2018.
28
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf>, acesso em: 26 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
524 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
29
REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE PRENOME E DE SEXO. ALTERAÇÃO
DO NOME. POSSIBILIDADE. AVERBAÇÃO À MARGEM. A ALTERAÇÃO DO SEXO SOMENTE SERÁ
POSSÍVEL APÓS A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. 1. O fato da pessoa ser transexual e exteriorizar
tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mulher, sendo conhecido por apelido, que constitui
prenome feminino, justifica a mudança do nome, já que o nome registral é compatível com o sexo masculino.
2. Diante das condições peculiares da pessoa, o seu nome de registro está em descompasso com a identidade
social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo, o que justifica plenamente a
alteração. 3. Deve ser averbado que houve determinação judicial modificando o registro, sem menção à razão ou
ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se, assim, a publicidade dos registros e a intimidade do
requerente. 4. No entanto, é descabida a alteração do registro civil para fazer constar dado não verdadeiro, isto é,
que o autor seja do sexo feminino, quando inequivocamente ele é do sexo masculino, pois ostenta órgãos genitais
tipicamente masculinos. 5. A definição do sexo é ato médico e o registro civil de nascimento deve espelhar
a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro. Recurso provido, por maioria”
(Apelação Cível Nº 70067749291, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall’Agnol,
Redator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 18.05.2016 – grifamos).
30
CAPELO DE SOUZA, Rabindranath V. A. O direito geral da personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 223.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
525
31
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 73/2018. Art. 4º, §1º. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
busca-atos-adm?documento=3503>. Acesso em: 02 ago. 2018.
32
ROSENVALD, Nelson. O STF e a identidade de gênero. In: ______. O direito civil em movimento: desafios
contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 32-33.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
526 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
33
Maria Celina Bodin de Moraes, em texto originalmente publicado em 2008, narra que a jurisprudência então
consolidada era no sentido de não autorizar a retificação do registro, mas tão somente averbar a nova situação
sobre o registro anterior: “sob o argumento da proteção à veracidade do registro e da proteção à segurança
jurídica, nossa jurisprudência superior firmou-se no sentido de não autorizar a retificação do registro, mas tão-
somente admitir a averbação, com a necessária referência à situação anterior e à causa da alteração” (MORAES,
Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro:
Processo, 2016, p. 130). No Superior Tribunal de Justiça, a decisão proferida no Resp. nº 678.933, julgado em
22.03.2007, é representativa desta questionável corrente jurisprudencial.
34
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução: Danilo Doneda e Luciana
Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, passim.
35
Ibidem, p. 24.
36
Ibidem, p. 75.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
527
titular, sobretudo por sua “potencial inclinação para serem utilizadas com finalidades
discriminatórias”.37 De outro lado, dados e informações de conteúdo econômico tendem
a uma maior transparência, admitindo-se em diversas hipóteses sua revelação em favor
de outros interesses, como os interesses fiscais, trabalhistas ou familiares.
Essa ressignificação do direito à privacidade implica reconhecer que os dados
sobre sexo e gênero devem estar compreendidos dentre os dados tidos por sensíveis, e de
consequência adstritos ao poder de controle de seu titular. Trata-se, afinal, dos dados mais
íntimos de uma pessoa e com a maior capacidade de deflagrar ações discriminatórias,
cotidianamente disparadas contra a população transexual. Não é à toa que o Brasil lidera
o ranking mundial de assassinatos contra transexuais.38
Existem vozes contrárias que defendem a necessidade de manutenção dos dados
anteriores à retificação no registro civil, como pretendia o voto proferido pelo Ministro
Marco Aurélio, sob a premissa de prevalência de um interesse público a ser resguardado.
O argumento não se sustenta. Afinal, a quem interessa a informação quanto à identidade
de gênero anteriormente vivida por alguma pessoa? Quem seria o terceiro titular de um
direito a essa informação? A ausência de resposta desnuda a absoluta desnecessidade
de manutenção de qualquer informação sobre o nome ou sexo anteriormente ostentado
pelo transexual em seu registro civil, publicamente acessível.
Outros aspectos existenciais passam ao largo do registro civil e nunca causaram
qualquer entrave a esta eminência parda denominada interesse público. “A qualificação
sexual que etiquete a pessoa a uma constatação morfológica de origem não necessária
sob o ângulo da segurança jurídica (tal como a inserção da religião e raça do recém-
nascido), pois só interessa a intimidade do indivíduo”.39
Há também vozes que sustentam que eventual credor poderia ser prejudicado
pela não identificação do devedor após a alteração do registro, porém, basta lembrar que
os dados pessoais, como número do Registro Geral (RG) ou do Cadastro das Pessoas
Físicas (CPF) permanecem inalterados, sendo portanto mantida a identificação para
fins patrimoniais.
Neste ponto a regulamentação instituída pelo Conselho Nacional de Justiça
talvez não tenha dado a devida atenção à privacidade. Mesmo que os dados registrais
(Registro Geral e Cadastro de Pessoa Física) permaneçam imutados, o que viabilizaria a
identificação da pessoa e localização de seu patrimônio (ativos em instituições bancárias,
por exemplo), o Provimento nº 73/2018 determina que, acaso sejam apresentadas
certidões positivas, mesmo de ações cíveis ou protestos, “deverá ser comunicada aos
juízes e órgãos competentes pelo ofício do RCPN onde o requerimento foi formulado”.
Ou seja, havendo credores ou mesmo devedores, estes serão cientificados pelo próprio
registrador civil da alteração do nome e gênero.
Prima facie, tal determinação parece desatender ao princípio da proporcionalidade,
especificamente quando sopesada segundo os atributos da (i) adequação, (ii) necessidade
e (iii) proporcionalidade stricto sensu. Ainda que a medida possa ser adequada a atingir
37
Ibidem, p. 78, 79 e 96.
38
Conforme publicado no sítio eletrônico do Jornal Correio Brasiliense: <http://especiais. correiobraziliense.com.
br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-assassinatos-de-transexuais>, acesso em: 01 jun. 2018.
39
ROSENVALD, Nelson. O STF e a identidade de gênero. In: ______. O direito civil em movimento: desafios
contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 35.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
528 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
40
SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 162.
41
RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Direito ao esquecimento na perspectiva do STJ. Consultor Jurídico – Conjur.
Publicado em 19.12.2013. Coluna de Direito Comparado. Disponível em: <https:// www.conjur.com.br/2013-
dez-19/direito-comparado-direito-esquecimento-perspectiva-stj>. Acesso em: 28 maio 2018.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
529
do condenado não podem ser invocados para impedir a divulgação de um evento tido
como histórico. Entendendo de modo diverso, o Tribunal Constitucional Alemão admitiu
o pleito a partir da ponderação dos interesses em conflito, pontuando principalmente
que o fato carecia de atualidade, o que fez prevalecer os direitos de personalidade do
envolvido,42 “especialmente por colocar em risco a reinserção do preso na sociedade”.43
Estas decisões versam sobre o conflito entre, de um lado, a liberdade de imprensa
e direito de informação e, de outro lado, o direito à privacidade das pessoas envolvidas
no fato noticiado.
Ordinariamente, os critérios utilizados para aferir a licitude da notícia divulgada
pela imprensa são: a) a veracidade do fato; b) a atualidade da notícia; e c) o animus
narrandi, ou seja, a intenção de informar, e não de causar dano à pessoa noticiada.44 Nos
casos em que se discute o direito ao esquecimento, prevalece a veracidade da notícia
e o animus narrandi, mas nem sempre está presente a atualidade do fato a justificar a
sobreposição ao direito à privacidade.
No Brasil o direito ao esquecimento vem sendo admitido sobretudo como eficácia
dos princípios da dignidade humana e da liberdade, notadamente por instrumentalizar
a efetivação do projeto de vida escolhido por cada pessoa. Nelson Rosenvald bem
elucida o tema:
42
Ibidem.
43
STAINER, Renata C. Breves notas sobre o direito ao esquecimento. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
Edson; LÔBO, Paulo (Coord.). Direito Civil Constitucional: a ressignificação da função dos institutos fundamentais
de direito civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014, p. 94.
44
Ibidem, p. 90.
45
ROSENVALD, Nelson. Do direito ao esquecimento ao direito de ser esquecido. In: ______. O direito civil em
movimento: desafios contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 21.
46
Foi a justificativa apresentada ao enunciado: “Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-
se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações
criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o
direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso
que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
530 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
47
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de
Janeiro: Editora Processo, 2016, p. 139.
48
CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de; ALMEIDA, Vitor. O direito ao esquecimento da pessoa transexual. In:
TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). Da dogmática à efetividade do
Direito Civil: Anais do Congresso Internacional de Direito Civil Constitucional – IV Congresso do IBDCivil. Belo
Horizonte: Fórum, 2017, p. 66-67.
49
Ibidem, p. 95.
50
Ibidem, p. 65.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
531
51
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 73/2018. Art. 5º. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/
busca-atos-adm?documento=3503>. Acesso em: 02 ago. 2018.
52
SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
53
“A precária condição financeira impele muitos transexuais a não se submeter à cirurgia, bem como o receio de
sofrer discriminação nos pouquíssimos hospitais preparados para enfrentar a complexidade do procedimento
no Sistema Único de Saúde” (ROSENVALD, Nelson. O STF e a identidade de gênero. In: ______. O direito civil em
movimento: desafios contemporâneos. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 33).
54
Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/diversidade/Fila-para-cirurgia-de-redesignacao-sexual-pode-
passar-de-dez-anos>, acesso em: 29 maio 2018.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
532 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
55
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. 4. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 249.
56
Nomeadamente: Provimento nº 07/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Sergipe; Provimento
nº 17/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás; Provimento nº 21/2018 da Corregedoria-Geral
da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul; Provimento nº 07/2018 da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado
de Pernambuco; e a Portaria nº 01/2018 da Corregedoria Permanente dos Cartórios de Registro Civil das Pessoas
Naturais da Comarca de Santos/SP.
57
Art. 9º, parágrafo único.
MARCELO L. F. DE MACEDO BÜRGER
IDENTIDADE PESSOAL, AUTODECLARAÇÃO E DIREITO AO ESQUECIMENTO: DIRETRIZES CIVIL-CONSTITUCIONAIS PARA A RETIFICAÇÃO...
533
5 Conclusão
Não há como se conceber uma sociedade que declare o primado da dignidade
humana e os princípios da igualdade e da liberdade sem se permitir que as pessoas cujo
gênero não corresponda ao sexo de nascimento possam, fática e juridicamente, adequar
seu registro civil de acordo com a identidade de gênero autodeclarada. Trata-se, ao
fim, da concretização da liberdade substancial da pessoa de viver de acordo com o seu
projeto de vida e em conformidade com sua identidade pessoal.
A vida em sociedade porém torna a só liberdade individual insuficiente para a
concretização desta projeção, impondo que o Estado reconheça (e faça reconhecer) essa
identidade autopercebida. Foi essa a decisão exarada pelo Supremo Tribunal Federal
na ADI nº 4.275, ulteriormente regulamentada pelas Corregedorias-Gerais da Justiça e
em 28.06.2018 pelo Conselho Nacional de Justiça por meio do Provimento nº 73/2018,
cujo objetivo é uniformizar o procedimento administrativo a ser aplicado pelos cartórios
de registro civil de todo o país para dar efetividade à decisão da Corte Constitucional.
Para não se desviar da ratio decidendi da decisão proferida pelo Supremo Tribunal
Federal, a interpretação da regulamentação administrativa deve ser guiada ao menos
por três vetores hermenêuticos, notadamente o reconhecimento da identidade de
gênero enquanto direito de personalidade; o imprescindível sigilo dos dados relativos à
identidade anterior à retificação e o oferecimento de meios que efetivamente viabilizem o
acesso à readequação médica e civil, sobretudo pela gratuidade dos procedimentos, sem
impor obstáculos que acabem por negar vigência ao decidido pela Corte Constitucional.
Tais vetores também devem servir para suprir eventuais lacunas constantes do Provi
mento nº 73/2018.
“Já é tempo de decidirmos se queremos uma integração do transexual à sociedade,
submetendo-o a nossos padrões majoritários” ou, então, se queremos efetivamente
construir uma sociedade livre, justa e solidária, na qual sejamos “capazes de promover
58
Inobstante o art. 5º, XXXIV, “b”, da Constituição Federal garanta a todos, independentemente do pagamento de
taxas, “a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações
de interesse pessoal”, a prática mostra quão difícil é a realização deste direito por aqueles que não possuem
condições econômicas ou mesmo conhecimento jurídico para exigir a efetivação da gratuidade enunciada.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
534 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
1 Introdução
O artigo tem como objetivo analisar se os danos extrapatrimoniais são suficientes
ou não para englobar todas as lesões aos interesses juridicamente tutelados. Com a
mudança de paradigma da Constituição Federal de 1988, colocando a pessoa no centro
de todo o ordenamento jurídico, modificou-se o eixo central da responsabilidade civil.
Assim, o foco da responsabilização migrou da pessoa do ofensor para a reparação da
vítima.
A inadmissibilidade, na legalidade constitucional, de que a vítima fique desampa
rada faz emergir “novas categorias” de danos. Leva-se a crer que o tradicional binômio
dano moral/material seria insuficiente para atender à função que a responsabilidade
civil se destina. Assim, questiona-se se os danos postos como estão são suficientes à
reparação das lesões aos interesses juridicamente tutelados ou se a criação destas novas
categorias é medida que se exige.
Na busca de responder ao questionamento, divide-se o artigo em três seções.
Primeiramente, trabalham-se as características do dano na responsabilidade civil,
apontando seus requisitos, visto que, por ele ser considerado o centro desse instituto,
é necessária a sua compreensão. No segundo tópico, ocupa-se de distinguir os danos
patrimoniais e extrapatrimoniais, dedicando-se, de forma mais detalhada, aos danos
morais. Por fim, estudam-se as “novas espécies de danos” e quais as consequências
delas no ordenamento jurídico brasileiro.
Para tanto, realizou-se uma pesquisa analítico-qualitativa para averiguar as cate
gorias do dano e a necessidade de sua reformulação para proteger a vítima em todos
os aspectos de sua subjetividade; e documental, pois se utilizou de leis, doutrinas e
jurisprudência como ponto de partida para investigar os novos danos.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
538 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
1
Ver, por todos, SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da
reparação à diluição dos danos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
2
Expressão utilizada por SCHREIBER, Anderson, 2015, p. 11.
3
Há autores que defendem a responsabilidade civil sem danos. Defende-se que a função da responsabilidade civil
não é apenas indenizatória, mas caberia a ela também buscar uma prevenção dos danos. Assim, ela poderia/
deveria agir antes da ocorrência do fato danoso, existindo, portanto, duas espécies de responsabilidade: com e
sem dano. Para um maior aprofundamento do assunto, ver: CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Responsabilidade
Civil sem dano: uma análise crítica. São Paulo: Atlas, 2015.
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
539
4
Tradução livre do trecho de Jorge Bustamante: “Bien jurídico es todo objeto material o inmaterial, sea de valor
económico o no, que sirve al hombre para satisfacer sus necesidades. Interés legítimo es aquel que impulsa
al hombre para realizarse mediante la satisfacción de las exigencias físicas y espirituales consustanciales con
la naturaleza humana. Todo interés legítimo goza de protección legal mediante los poderes de actuación que
constituyen los derechos subjetivos”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
540 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
forma mais abrangente o perfil funcional do dano. É por meio dessa teoria, portanto,
que se protegem os danos decorrentes de insultos a direitos de personalidade, mesmo
que eles não ocasionem nenhum prejuízo econômico, o que não ocorreria caso a noção
naturalista ainda fosse a única válida.
Ademais, é mister analisar os elementos necessários para o reconhecimento de
um dano indenizável, tais quais: certeza, imediatidade e injustiça do dano.5 O primeiro
requisito não traz muitas discussões doutrinárias sobre ele. Significa dizer que o dano
deve ser certo, não se admite a reparação de um prejuízo que não se provou a sua exis
tência, ou seja, o direito não protege as lesões hipotéticas.6
O segundo requisito, para Sanseverino (2010, p. 174), “tem íntima conexão com
o nexo causal, pois os prejuízos indenizáveis ou ressarcíveis são aqueles que decorrem
direta e imediatamente do seu fato gerador”. Ainda conforme o autor, esse elemento serve
como parâmetro para calcular o valor da indenização, pois apenas deve ser ressarcida
a perda que decorrer imediatamente do seu fato gerador. Ou seja, a imediatidade fixa
limites no valor da reparação (SANSEVERIANO, 2010, p. 175).
Por fim, o terceiro elemento é a mudança mais significativa na teoria da responsa
bilidade civil, “houve um giro conceitual do ato ilícito para o dano injusto” (GOMES,
1989, p. 293), visto que “não obstante a liceidade da ação ou da atividade, a vítima
não deve ficar irressarcida. Aqui, também, à primeira vista, os danos seriam ‘lícitos’;
geram, no entanto, por determinação legal, a obrigação de indenizar” (MORAES, 2003,
p. 176). O que se observa, nesse requisito, é que não mais se concentra a preocupação
na conduta do agente causador da lesão. Todo o dano, desde que seja injusto, poderá
gerar o direito à reparação.
A melhor doutrina conceitua que “o dano será injusto quando, ainda que decor
rente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for
razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima dele permaneça irressar
cida” (MORAES, 2003, p. 176). Nessa definição, visualiza-se uma compatibilidade com
a legalidade constitucional. Ora, se o ser humano é colocado no centro do ordenamento
jurídico, como poderia existir no sistema legal a permissão que alguém ficasse sem a
devida reparação de um prejuízo que sofreu? Deve-se buscar indenizar a pessoa que
sofreu um dano injustamente e não beneficiar o causador deste. Diante disso, passa-
se a discutir, com maior profundidade, as espécies de dano previsto no ordenamento
jurídico brasileiro.
5
Utiliza-se, nesse trabalho, a classificação proposta por Sanseverino (2010, p. 164).
6
Quando se fala de dano hipotético, logo se lembra do dano pela perda de uma chance, todavia, esse caso não
deve ser visto como uma exceção à certeza do dano. “O ponto nevrálgico para a diferenciação da perda de uma
chance da simples criação de um risco é a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima, ou seja, a existência
do dano final. De fato, em todos os casos de perda de uma chance, a vítima encontra-se em um processo aleatório
que, ao final, pode gerar uma vantagem. Entretanto, no momento em que as demandas envolvendo a perda de
uma chance são apreciadas, o processo chegou ao seu final, reservando um resultado negativo para a vítima. [...]
A teoria da perda de uma chance encontra o seu limite no caráter de certeza que deve apresentar o dano reparável.
Assim, para que a demanda do réu seja digna de procedência, a chance por este perdida deve representar muito
mais do que uma simples esperança subjetiva”. (SILVA, Rafael Peteffi da. A responsabilidade civil pela perda de uma
chance: uma análise do direito brasileiro e comparado. São Paulo: Atlas, 2013, p. 138).
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
541
7
Nesse sentido, ver, por todos, MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código Civil. volume V, tomo II: do
inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
8
Nesse sentido, ver: Agostinho Alvim (1972, p. 219).
9
Em consonância, vê-se pelo Recurso Especial nº 1616079 / RO que o não cumprimento do serviço de transporte
convencionado ocasionou um dano moral. Transcreve-se parcialmente a ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL.
MÁ PRESTAÇÃO DE SERVIÇO. ALTERAÇÃO E ATRASO DE VOO. DANOS MORAIS. VALOR. REVISÃO.
REVALORAÇÃO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA
07/STJ. NÃO OCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC/2015. 1. Inexiste violação do art. 1.022
do CPC/2015, porquanto o acórdão recorrido fundamentou, claramente, o posicionamento por ele assumido, de
modo a prestar a jurisdição que lhe foi postulada. 2. In casu, o Tribunal de origem manifestou-se expressamente
sobre a ocorrência e o valor dos danos morais: “No caso dos autos, havia previsão de data e horário de embarque
e desembarque, com expectativa de chegada ao destino em uma determinada data. Logo, a alteração do voo e
o consequente atraso da viagem são suficientes para configurar o descumprimento do contrato de transporte e o
dano moral sofrido pelos apelados. (...) A importância fixada pelo juízo a quo mostra-se condizente com o dano
sofrido pelos apelados (R$ 6.000,00) para cada um, sendo o referido valor suficiente para reparar às vítimas sem
configurar seu enriquecimento ilícito e punir o ofensor a fim de que não cometa tal ilícito novamente” (fls. 103-
104, e-STJ). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1616079 / RO. 2ª Turma. Relator: Herman
Benjamin. Recorrente: Vrg. Linhas Aéreas S.A.; Recorrido: Marilia Ferreira de Oliveira Correa E Marcelo Victor
Duarte Correa. Julgamento: 21.09.2017. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livr
e=contrato+transporte+dano+moral&b=ACOR&p=true&l=10&i=2>. Acesso em: 5 dez. 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
542 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Ora, é notório, portanto, que a classificação dessas espécies não perpassa pela
natureza jurídica do bem lesado, visto que é possível tanto se ter dano moral quando
houver o prejuízo no patrimônio, quanto o oposto, isto é uma ofensa a um bem
extrapatrimonial gerar uma reparação estritamente econômica. Ademais, é plenamente
cabível que um único evento danoso acarrete reparações em ambas as categorias.
O dano moral e o patrimonial se diferenciam, principalmente, quando se observam
alguns aspectos, tais quais: identificação, requisitos para a reparação e a maneira de
liquidação (MORAES, 2003, p. 158). Quanto ao primeiro elemento, faz-se necessário
provar, no dano patrimonial, o efetivo prejuízo suportado pela vítima. O STF entende
que a lesão material apenas é configurada quando se faça prova do prejuízo sofrido,10
por outro lado, isso não é necessário no dano moral, a violação da personalidade já é
motivo suficiente para se fazer incidir danos morais (MORAES, 2003, p. 158).11 Nesse
sentido, percebe-se que o dano moral existe in re ipsa, ou seja, “decorre inexoravelmente
da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que, provado o fato, provado está o dano
moral” (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 80).
Quanto ao segundo requisito, nas lesões materiais, a reparação está ligada à
extensão do dano, conforme dispõe o artigo 944 do Código Civil. Aqui, pouco importa
o grau de culpabilidade do ofensor, todavia, o parágrafo único do mencionado artigo
excepciona a regra geral e abre a possibilidade da reparação ser reduzida, pelo juiz, de
acordo com o grau de culpa do agente quando houver uma desproporcionalidade entre
o dano e a culpa.
O dano moral, por sua vez, analisa de forma mais profunda os critérios de
reparação, deve observar o grau de culpabilidade do transgressor, bem como qual a
situação econômica dele e do ofendido e como o evento danoso é visto socialmente,
além de não poder gerar um enriquecimento ilícito da vítima.
Por fim, no que tange à liquidação, para o dano patrimonial deve ser feita nos
moldes do artigo 402 do Código Civil, que dispõe que “salvo as exceções expressamente
previstas em lei, as perdas e danos devidos ao credor abrangem, além do que ele
10
Nesse sentido: PROCESSUAL CIVIL. ACÓRDÃO PROFERIDO EM APELAÇÃO. REFORMA DA SENTENÇA
QUE DECRETOU A EXTINÇÃO DA AÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 515, §3º, DO CPC/1973 PARA
JULGAMENTO DO MÉRITO. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE POR AUSÊNCIA DE PROVAS. OPOSIÇÃO
DE EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PARA DISCUTIR CONTRADIÇÃO E OMISSÃO RELACIONADAS AO
PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL. [...] 2. A sentença do juízo de primeiro grau foi de extinção
do feito sem resolução de mérito, decretando-se a carência da ação por ausência de interesse processual. 3.
No julgamento da Apelação interposta, a Corte local proveu o recurso para reconhecer o preenchimento das
condições da ação e, com base no art. 515, §3º, do CPC/1973, considerou presentes os requisitos para julgar de
imediato o mérito, concluindo pela improcedência do pedido porque a pretensão indenizatória estaria calcada em pedido
genérico, destituído de comprovação específica e concreta dos danos ou prejuízos materiais supostamente verificados (grifo
próprio). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1661879 / SP. 2ª Turma. Relator: Herman
Benjamin. Recorrente: Fulvio Remo Giglio e Roberto de Meo; Recorrido: Estado de São Paulo. Julgamento:
27.04.2017. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=dano+material+ausencia+
prova+preju%EDzo&b=ACOR&p=true&l=10&i=26>. Acesso em: 5 dez. 2017.
11
Nesta toada, ver o AgRg no Ag 763403 / RJ CIVIL. DANO MORAL. O dano moral independe de prova, porque
a respectiva percepção decorre do senso comum. O acidente de trabalho que resulta na amputação de parte do
dedo da mão gera sofrimento indenizável a título de dano moral. Agravo regimental não provido. BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1661879 / SP. 3ª Turma. Relator: Ari Pargendler. Agravante:
Companhia Municipal de Limpeza Urbana – Comlurb; Agravado: Anselmo Luiz Carvalho da Silva. Julgamento:
7.05.2007. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?livre=AgRg+no+Ag+965508+RJ+2
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LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
543
3.1 Dano moral
O dano moral nem sempre foi aceito para doutrina e jurisprudência. Entendia-
se não ser possível quantificar o sofrimento de alguém. Ademais, por ser visto como
algo transitório, apenas o tempo seria capaz de acabar com a dor. Também se elencava
como empecilho o fato de não ser possível delimitar a vítima, pois todas as pessoas que
sofreram poderiam ser sujeitos legitimados para propor uma ação de indenização por
danos morais (MORAES, 2003, p. 146).
O STF (Recurso Extraordinário, nº 102.971-4, fls. 728) costumava se manifestar
alegando que o “dano moral, consistente no pretium doloris, insuscetível de indenização
na espécie”. Em comparação com o dano patrimonial, realmente, era praticamente
impossível mensurar a ofensa a um bem não suscetível de avaliação econômica. Veja, os
prejuízos materiais são de fáceis constatações, o mesmo não acontece com os morais. Em
decorrência disso, esta lesão demorou para ser reconhecida no sistema legal brasileiro.
Ora, dano moral continua sendo de difícil mensuração na prática, ainda é difícil
se quantificar o dano que alguém sofreu na sua personalidade. O que ocasionou essa
modificação? Houve uma mudança de paradigma com a Constituição Federal de 1988,
esta colocou a pessoa humana no centro de todo o ordenamento jurídico, dessa forma,
por ser a constituição a norma fundante do sistema legal, a responsabilidade civil teve
que seguir essa tendência de personalização das relações.
Assim, exigia-se “uma responsabilidade menos patrimonialista, mais ocupada
com a segurança, em seus múltiplos aspectos, do valor básico da dignidade, de que
são exemplo as medidas de tutela da higidez física e psíquica do ser humano, bastando
pensar nos danos corporais e no dano moral, que se prefere dizer extrapatrimonial”
(GODOY, 2010, p. 31).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
544 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
4 Novos danos
De acordo com o exposto no primeiro tópico, com a perda da importância da
culpa e do nexo de causalidade, diminuíram-se os obstáculos à reparação. Houve uma
maior aceitabilidade dos tribunais pátrios nas ações de reparações civis. Ademais, o rol
de danos morais está sendo ampliado de forma considerável pelo Poder Judiciário, seja
pelo aumento expressivo dos direitos de personalidade, “seja pelas vicissitudes inerentes
a um instituto que só recentemente tem recebido aplicação mais intensa” (MORAES,
2003, p. 165).12
Como forma de delimitar os danos indenizáveis, os ordenamentos jurídicos
atuais costumam se dividir de duas formas: adotando um sistema de responsabilidade
civil típico ou fechado, indicando taxativamente os danos que podem ser ressarcidos
e, aberto ou típico, onde não existe esse rol previsto. Cada um deles tem uma maneira
12
A título de informação, de acordo com a Justiça em números, as ações de responsabilidade civil/indenizações
por dano moral ocupam o 5º lugar nos assuntos mais demandados do Superior Tribunal de Justiça. (BRASIL.
Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2016 – ano-base: 2015. Brasília: CNJ, 2016. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/3999e367fff7bf4974dd6e25dfc4f510.pdf>. Acesso em: 10
dez. 2017.
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
545
de indenização por danos materiais e compensação por danos morais por abandono
material e afetivo durante sua infância e juventude. A filha, autora da ação, teve o seu
pedido julgado procedente, importante se transcrever uma parte do voto da Ministra
Relatora (BRASIL, Recurso Especial nº 1.159.242-SP, fls. 12), in verbis:
[...] Aqui, não obstante o desmazelo do pai em relação a sua filha, constado desde o forçado
reconhecimento da paternidade – apesar da evidente presunção de sua paternidade –,
passando pela ausência quase que completa de contato com a filha e coroado com o
evidente descompasso de tratamento outorgado aos filhos posteriores, a recorrida logrou
superar essas vicissitudes e crescer com razoável aprumo, a ponto de conseguir inserção
profissional, constituir família, ter filhos, enfim, conduzir sua vida apesar da negligência
paterna. Entretanto, mesmo assim, não se pode negar que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza,
e que esses sentimentos ainda persistam, por ser considerada filha de segunda classe. Esse sentimento
íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente,
das omissões do recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também
de suas ações, que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o
dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação [...]. (grifo próprio)
Para além, várias espécies novas de dano estão sendo arroladas, como, por
exemplo, o dano existencial, à vida, à privacidade, etc. Seriam essas um tertium genus
distinto do dano patrimonial e extrapatrimonial?
Tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina, usualmente são catalogadas novas
espécies de danos não patrimoniais, qualificando-os como uma categoria autônoma, ou
seja, diferenciada do sistema bipartido patrimonial/moral. Assim, para esses defensores, o
dano extrapatrimonial seria um gênero no qual cada dano individualmente seria espécie.13
Nem sempre, todavia, esses “novos” danos estão sendo alocados na sua devida
categoria. Muitas situações lesivas não chegam a caracterizar uma espécie nova, são
apenas prejuízos distintos do mesmo dano. Assim, nem sempre o efeito causado por um
ato, antes desconhecido, é distinto ao dano patrimonial/moral. Em outros países, como
Portugal, “a tradicional dicotomia ‘dano patrimonial/dano moral’ (em sentido estrito)
revelou-se incapaz de abarcar a complexa realidade do homem como pessoa humana,
carecido de adequada e satisfatória tutela jurídica” (GUEDES, 2001, p. 46).
Diante disso, se questiona se realmente os atuais modelos de danos não são
suficientes para reparar a vítima do prejuízo sofrido. Ora, sabe-se que limitar a inde
nização apenas aos danos subjetivos que estiverem expressamente previstos em lei é
incompatível com a metodologia civil-constitucional. O legislador, por mais que tente
13
Nesse sentido, transcreve-se uma ementa do TST em que se coloca o dano moral e o dano existencial em cate
gorias distintas: AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA REGIDO PELA LEI 13.015/2014.
TRABALHO DEGRADANTE. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO (SÚMULA 126 DO TST). TRABALHO
DEGRADANTE. DANO MORAL. QUANTUM INDENIZATÓRIO. R$ 10.000,00 (NÃO CONFIGURADA
VIOLAÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL). INDENIZAÇÃO POR DANO EXISTENCIAL (SÚMULA 126
DO TST). VALOR ARBITRADO (NÃO CONFIGURADA VIOLAÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL).
INTERVALO INTRAJORNADA. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO TRECHO ESPECÍFICO DO ACÓRDÃO
DO TRIBUNAL REGIONAL QUE CONSUBSTANCIA O PREQUESTIONAMENTO DAS MATÉRIAS OBJETO
DE RECURSO DE REVISTA (ART. 896, §1º-A, I, DA CLT). (BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. TST-
AIRR nº 492-42.2015.5.09.0017. 2ª Turma. Relatora: Min. Delaíde Miranda Arantes; Agravante: Francisco Carlos
Falavigna; Agrado: Sérgio Junqueira. Julgamento: 10.04.2017. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/
diarios/164123119/tst-judiciario-11-10-2017-pg-561?ref=next_button>. Acesso em: 11 out. 2017.
LÍVIA XIMENES DAMASCENO, LILIANE GONÇALVES MATOS
DANOS EXTRAPATRIMONIAIS NO BRASIL: DANO MORAL OU “NOVAS ESPÉCIES”?
547
se antever a todas as possíveis lesões, não conseguirá fazê-lo na mesma velocidade que
as mudanças na sociedade. Nesse sentido, manifesta-se Gustavo Tepedino (2004, p. 37),
Ademais, mesmo que fosse possível uma categorização ampla pelo legislador, não
estaria resolvendo o núcleo do problema, pois ainda se questionaria quais os interesses
merecem essa tutela normativa. O ideal seria se estabelecer critérios mais seguros ao
magistrado no momento de identificar quais são os danos passíveis de indenização
(SCHREIBER, 2015, p. 140).
Para Schreiber (2105, p. 164), esses critérios podem ser divididos da seguinte
forma: i) Exame abstrato de merecimento de tutela do interesse lesado. Aqui, analisa-
se abstratamente se existe uma norma que diretamente ou por meio de cláusula geral
preveja esse dano. “Na inexistência de qualquer norma, [...] da qual se possa extrair o
merecimento de tutela em abstrato do interesse dito lesado, inexiste dano em sentido
jurídico, embora possa, sim, existir prejuízo em sentido vulgar”; ii) Exame abstrato de
merecimento de tutela do interesse lesivo: depois de saber qual norma foi descumprida,
resta saber “se o interesse representado pela conduta lesiva é igualmente merecedor de
tutela”; iii) Existência de regra legal de prevalência entre os interesses conflitantes: ou
seja, deve-se verificar se o legislador determinou uma regra para saber qual interesse
deverá prevalecer entre os conflitante; iv) Inexistência de regra legal de prevalência
entre os interesses conflitantes: no caso de não existir uma regra legal para interesses
conflitantes, caberá ao Judiciário, no caso concreto, a ponderação destes.
Assim, utilizando-se desses critérios, equaciona-se a não catalogação dos danos,
visto os danos extrapatrimoniais serem muito amplos com a redução de julgamentos
irrestritos e arbitrários do Poder Judiciário. Nesse ínterim, fornece-se “ao magistrado,
em cada caso particular, um juízo de ressarcibilidade do dano que, para além do exame
da norma, abarque o controle do merecimento de tutela, em concreto, dos interesses
colidentes. Eis o que há de urgente e imprescindível” (SCHREIBER, 2015, p. 170).
Por fim, diante da dificuldade de previsão legal de todas as formas de lesão à
dignidade da pessoa jurídica e frente ao conceito de dano moral explanado como toda
ofensa a um interesse juridicamente tutelado, não se entende ser prudente categorizar
como espécies autônomas esses aspectos da personalidade ofendidos individualmente.
Por outro lado, pensa-se que, a partir do momento em que se consegue indivi
dualizar o dano sofrido, mais fácil de comprovação judicial será a existência do prejuízo.
Ora, sabe-se que o dano moral, perante os tribunais pátrios, está sendo rechaçado
devido a sua banalização. Ademais, no momento de julgar, o magistrado, muitas vezes,
fica inseguro ao determinar o quantum indenizatório, por ser, como visto, o dano extra
patrimonial de difícil apuração. Então, se for possível delimitar, naquele caso em concreto,
qual direito de personalidade foi diretamente lesado, melhor restará comprovado o
direito à compensação.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
548 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Conclusão
As mudanças de paradigmas pelas quais o instituto da responsabilidade civil
passou modificaram o cerne do conflito. Viu-se que a culpa não conseguia mais atender
às finalidades para as quais o instituto foi criado. Nesta perspectiva, no século XXI viu-
se eclodir os filtros tradicionais da reparação, fundados na culpa, no nexo e no dano.
Impossível seria manter a estrutura tradicional diante das fluidas relações às quais o
indivíduo foi introduzido.
A erupção dos pressupostos da reparação trouxe para o centro do conflito o
dano. Ora, não havia que se falar em quem cometeu o injusto, mas sim em reparação
àquele que foi vítima de tal circunstância. Foi assim que o dano deslocou a atenção para
a compensação.
Neste intuito, emergiram-se “novas categorias” de danos tidas como ressarcíeis,
em atenção aos interesses jurídicos tutelados. Ocorre que esta nova categorização dos
danos acaba por trazer um sistema fechado de responsabilidade civil, onde todos os
aspectos da personalidade estariam quantificados à disposição do legislador. Assim, se
não estivesse legalmente previsto, não haveria um dano a ser reparado.
Diante do novo paradigma da responsabilidade civil não seria possível admitir
uma hipótese em que ocorresse uma lesão à dignidade da pessoa humana, porém, por
não estar previamente prevista, a vítima ficasse sem a devida compensação.
Desta forma, não seria viável considerar estas novas categorias como uma espécie
autônoma, mas como parte dos danos extrapatrimoniais. O mais adequado seria manter
o sistema aberto com base na cláusula geral da reparação para prever a reparação integral
da vítima. A categorização, assim, seria suficiente apenas diante da individualização do
direito de personalidade do lesado a fim de tornar clara a agressão para o juiz e servir
de fundamentação para justificar o valor indenizatório.
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ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS
CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
Introdução
“Para mim, chega”. Com essas palavras, Nancy B., uma jovem de 25 (vinte e
cinco) anos que sofria de uma rara condição neurológica – denominada de síndrome
de Guillain-Barre – manifestou sua vontade de não permanecer viva. Em razão da
doença, o corpo de Nancy se encontrava paralisado do pescoço para baixo, reduzindo
seu âmbito de atividades a assistir à televisão e encarar as paredes do hospital em que
estava internada. Transcorridos dois anos e meio de uma existência artificial, Nancy havia
tomado a decisão de requerer autorização judicial para desligar o aparelho respiratório
que a mantinha viva.1
A história de Nancy B. suscita relevante debate em torno do papel conferido aos
indivíduos na definição dos rumos de sua própria existência. De um lado, aqueles que
defendem a prevalência absoluta da inviolabilidade do direito à vida – amparados no
artigo 5º, caput, da Constituição Federal2 – rechaçam que se possa atribuir ao sujeito o
1
Nancy B. obteve a autorização judicial pleiteada, vindo a falecer em fevereiro de 1992. Confira-se a história
completa em “Paralyzed Canadian Woman Wins Court Ruling on Right to Die”. William Claiborne, Washington
Post, 7 de janeiro de 1992, A9.
2
Art. 5º, caput, Constituição Federal: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
552 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
poder de decidir sobre o seu fim, ainda que em circunstâncias terminais. De outra parte,
advoga-se a autonomia existencial dos sujeitos capazes para escolher se, em situações
extremas, preferem ser submetidos a tratamentos intensivos ou deixados à mercê da
própria sorte.
Como se denota, as questões atinentes à terminalidade da vida contrapõem a
inviolabilidade da vida à autonomia existencial, na qualidade de exercício das liberdades
individuais. A ponderação entre ambas deverá ser feita, necessariamente, à luz do
princípio da dignidade da pessoa humana, vértice do ordenamento constitucional
brasileiro estipulado no artigo 1º, III, da Constituição Federal.3
A partir da incidência do princípio da dignidade da pessoa humana à disciplina
das situações subjetivas existenciais, a doutrina especializada tem sustentado a existência
do direito à morte digna. O respeito à vontade individual nas decisões relativas à morte
representaria nada mais do que uma extensão do direito à vida digna, impedindo que
o sujeito seja submetido a tratamento médico degradante e/ou invasivo unicamente em
razão da abstrata inviolabilidade da vida.
Dito diversamente, o princípio da dignidade da pessoa humana acabaria por
flexibilizar a inviolabilidade do direito à vida, autorizando que, em certas hipóteses,
a autonomia existencial do sujeito prevaleça. Tal conclusão, no entanto, não prescinde
da avaliação do próprio conteúdo do direito à vida. Com efeito, convém investigar se a
tutela jurídica recai sobre os interesses existenciais do indivíduo – hipótese em que será
possível entender, em certos casos, que a morte atende mais aos interesses do sujeito do
que a manutenção artificial da vida – ou se é objeto de tutela a sacralidade da vida em
si mesma considerada, independentemente do sujeito analisado.4
O tema em análise exige, ainda, sejam bem delimitadas as hipóteses de intervenção
médica (diferenciando-se as modalidades de eutanásia, ortotanásia, distanásia, etc.),
pois poderão conduzir a resultados diametralmente distintos, no que toca à licitude ou
não da atuação médica. Nesse âmbito, o presente trabalho se detém nos consideráveis
progressos legislativos na matéria, abordando também os avanços levados a cabo pelo
Conselho Federal de Medicina, no que se refere aos limites e critérios para avaliação da
conduta do profissional da saúde em face de pacientes terminais.
Por fim, examina-se o conteúdo e o papel da autonomia existencial dos pacientes
em estado de terminalidade, apurando-se a validade de diretivas antecipadas em vida.
Nesse contexto, analisa-se a relevância atribuída à vontade declarada ou presumida do
paciente quanto aos tratamentos médicos aos quais deseja se submeter. Ao final, são
oferecidos balizamentos para verificação da validade e eficácia das manifestações do
paciente terminal quanto à sua morte.
3
Art. 1º, III, Constituição Federal: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados
e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
III - a dignidade da pessoa humana”.
4
Sobre o tema, afirma Heloisa Helena Barboza: “A ponderação entre o direito à vida e o direito à liberdade, ambos
constitucionalmente assegurados, há de ser feita, portanto, de modo a não violar o princípio da dignidade da
pessoa humana, ‘valor fundamental do Direito’. Sob o aspecto jurídico, que deve ser laico por força da orientação
constitucional, a dignidade da vida deve prevalecer sobre a sacralidade da vida, princípio de origem religiosa”
(BARBOZA, Heloisa Helena. Autonomia em face da morte: alternativa para a eutanásia? In: BARBOZA, Heloisa
Helena et al. (Coord.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ Ed, 2010, p. 32-49).
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
553
i. Eutanásia
Segundo a melhor doutrina, a eutanásia compreende situações distintas, podendo
ser verificada em modalidades ativa e passiva.8 O conceito de “eutanásia ativa”
5
Sobre a medicalização da vida, confiram-se: FOUCAULT, Michel. La crisis de la medicina o la crisis de la
antimedicina. Educación Médica y Salud (OPS); 10 (2): 152-70, 1976. Disponível em: <http://hist.library.paho.org/
Spanish/EMS/4451.pdf>, data de acesso: 4 jun. 2018; e CONRAD, Peter. The medicalization of society – on the
transformation of human conditions into Treatable Disorders. The John Hopkins University Press, 2007.
6
Como se lê: “É inegável que o avanço tecnológico ademais de aumentar a expectativa média de vida das
populações por todo o planeta, prolonga o processo de morrer, pois a sobrevida física torna-se a cada dia mais
alargada por melhores condições que advêm dos constantes adiantamentos científicos. Contudo, o alongamento
do morrer pode ser causado por tratamento fútil ou extraordinário cuja única justificativa é a ‘medicalização’
da morte, ou seja, ‘o prolongamento da vida do doente por meios artificiais, a despeito da irreversibilidade do
quadro clínico e da iminência da morte.” (BERGSTEIN, Gilberto. Declaração Antecipada de Vontade: Exercício
de Autonomia. In: CALDAS, Adriana Caldas et al. (Coord.). Novos desafios do Biodireito. São Paulo: LTr, 2012,
p. 121-132).
7
Na definição de Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral: “O suporte vital se refere à série de aparelhos que visam
manter artificialmente a vida do paciente, em substituição ao funcionamento natural dos órgãos do corpo. (...)
A aparição do suporte vital na Medicina assistencial transformou seu eixo de debate e inicia a primeira experiência
de campo na qual se deve aceitar a vinculação entre uma ação médica e a chegada da morte. Sua existência, há
mais de quarenta anos, gera a possibilidade de aplica-los, não aplica-los ou suspendê-los” (Eutanásia: Dignidade
da Pessoa Humana como Fundamento Ético e Jurídico do Direito à Morte Digna. In: Revista Magister de Direito
Penal e Processual Penal, Porto Alegre, n. 43, p. 56-83, ago./set. 2011).
8
Há quem defenda, no entanto, que a eutanásia só compreenderia a conduta comissiva. Nesse sentido, Luis
Roberto Barroso e Letícia Martel: “O termo eutanásia foi utilizado, por longo tempo, de forma genérica e
ampla, abrangendo condutas comissivas e omissivas em pacientes que se encontravam em situações muito
dessemelhantes. Atualmente, o conceito é confinado a uma acepção bastante estreita, que compreende apenas a
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
554 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
forma ativa aplicada por médicos a doentes terminais cuja morte é inevitável em um curto lapso. Compreende-
se que a eutanásia é a ação médica intencional de pessoa que se encontre em situação considerada irreversível
e incurável, consoante os padrões médicos vigentes, e que padeça de intensos sofrimentos físicos e psíquicos.”
(BARROSO, Luis Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia
individual no final da vida. In: Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 179).
9
BARBOZA, Heloisa Helena, Ibidem, p. 41.
10
O caso é relatado por DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Tradução
Jefferson Luiz Camargo; Silvana Vieira. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 262.
11
BARBOZA, Heloisa Helena, Ibidem, p. 41.
12
Em sentido oposto, afirma Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral, que a ortotanásia se identificaria com a
eutanásia passiva: “Eutanásia passiva ou por omissão é aquela modalidade mais frequente de eutanásia, podendo-
se conceitua-la como a omissão de tratamento ou de qualquer meio que contribua para o prolongamento da vida
da pessoa que sofre de enfermidade incurável, o que se concretiza pela decisão de não se iniciar determinado
tratamento ou suspender procedimento já iniciado. Caracteriza-se pela voluntariedade, não cabendo conduta
omissiva em relação ao tratamento médico” (Ibidem, p. 56-83).
13
Sobre o tema, lecionam Luis Roberto Barroso e Letícia Martel: “Por fim, suicídio assistido designa a retirada
da própria vida com auxílio ou assistência de terceiro. O ato causador da morte é de autoria daquele que põe
termo à própria vida. O terceiro colabora com o ato, quer prestando informações, quer colocando à disposição
do paciente os meios e condições necessárias à prática. O auxílio e a assistência diferem do induzimento ao
suicídio. No primeiro, a vontade advém do paciente, ao passo que no outro o terceiro age sobre a vontade do
sujeito passivo, de modo a interferir com sua liberdade de ação. As duas formas admitem combinação, isto é, há
possibilidade de uma pessoa ser simultaneamente instigada e assistida em seu suicídio. O suicídio assistido por
médico é espécie do gênero suicídio assistido” (Ibidem, p. 181).
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
555
ii. Distanásia
A distanásia, modalidade de intervenção médica diametralmente oposta à euta
násia, consiste no prolongamento artificial da vida de pacientes terminais a qualquer
custo, mediante o uso de aparatos médicos ordinários e extraordinários.17 Nesses casos,
a morte do paciente é inevitável, razão pela qual se afirma que “não se prolonga a vida
propriamente dita, mas o processo de morrer”.18
Como espécie da distanásia, tem-se a obstinação terapêutica, em que os médicos
se insurgem ao máximo contra a iminente morte do paciente, valendo-se de todas as
formas de tratamento a seu alcance, ainda que impliquem graves desgastes e considerável
sofrimento ao indivíduo.19 Espécie similar de distanásia consubstancia-se no tratamento
fútil, no âmbito do qual são adotadas medidas absolutamente desproporcionais aos fins
pretendidos, as quais se revelam incapazes de promover a efetiva melhora do paciente;
ao contrário, o resultado do tratamento fútil se limita ao prolongamento artificial da
vida, à custa do bem-estar do paciente.20
14
Sobre o tema, veja-se Schramm e Batista, Ibidem, p. 114.
15
Conforme pondera Heloisa Helena Barboza: “Sob essa ótica deve ser analisada a eutanásia passiva voluntária,
ou seja, omissão proposital de uma ação médica, em decorrência da recusa expressa do paciente ao tratamento
possível, exercendo desse modo sua autonomia. A rejeição do tratamento pode dar-se para evitar a distanásia ou,
simplesmente, porque o paciente não aceita tratar um mal irreversível e incurável” (Ibidem, p. 43).
16
Em sentido contrário, confira-se a manifestação da Procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira nos
autos da ação civil pública nº 2007.34.00.014809-3: “A ortotanásia não se confunde com a chamada eutanásia
passiva. É que, nesta, é a conduta omissiva do médico que determina o processo de morte, uma vez que a sua
inevitabilidade ainda não está estabelecida. Assim, os recursos médicos disponíveis ainda são úteis e passíveis
de manter a vida, sendo a omissão do profissional, neste caso, realmente criminosa. A eutanásia, assim, na forma
ativa ou passiva, é prática que provoca a morte do paciente, pois ainda não há processo de morte instalado,
apesar do sofrimento físico e/ou psicológico que possa atingir o paciente. No entanto, a omissão em adotar
procedimentos terapêuticos extraordinários quando a morte já é certa (ortotanásia), não produz a morte do
paciente, uma vez que nenhum ato do médico sobre ele poderá evitar o evento do desenlace”.
17
Na definição de Luis Roberto Barroso e Letícia Martel: “Por distanásia compreende-se a tentativa de retardar
a morte o máximo possível, empregando, para isso, todos os meios médicos disponíveis, ordinários e
extraordinários ao alcance, proporcionais ou não, mesmo que isso signifique causar dores e padecimentos a uma
pessoa cuja morte é iminente e inevitável”. Ibidem, p. 179.
18
Confira-se PESSINI, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário São
Camilo, 2001, p. 30.
19
BATISTA, Rodrigo Siqueira; SCHRAMM, Fermin Roland. Conversações sobre a “Boa Morte”: o debate bioético.
In: Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(1): 111-119, jan./fev. 2005, p. 114.
20
Veja-se Luis Roberto Barroso e Letícia Martel, Ibidem, p. 179.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
556 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
iii. Ortotanásia
Por sua vez, a ortotanásia se identifica em permitir o decurso ordinário dos eventos
naturais que culminam na morte, sem interferências médicas extraordinárias visando
ao prolongamento da vida. Entendida como a “morte em seu tempo adequado”,21 a
ortotanásia pode ser associada a cuidados paliativos, os quais, muito embora não sejam
aptos a promover a cura ou melhora do paciente, buscam reduzir o sofrimento psíquico
e físico do sujeito.22
Acerca do suposto “tempo certo” da morte, expõe Heloisa Helena Barboza que
corresponde “[à]quele que é determinado pelo enfermo, no exercício de sua autonomia,
ou por terceiro (médico ou familiar) para evitar ou pôr fim à distanásia”.23 Sobre o tema,
Schramm e Batista problematizam que a definição do chamado “tempo adequado” da
morte por vezes se mostra impossível, diante da infinidade de recursos médicos aptos
a prolongar a vida, dificultando que se extreme a deliberada omissão médica – a qual
constitui crime, nos termos do artigo 135 do Código Penal24 – da chamada ortotanásia.25
Sublinhe-se que, na ortotanásia, a redução no tempo de vida do paciente se revela
uma consequência previsível, mas não desejada, tendo a equipe médica por objetivo
central oferecer o máximo de conforto e apoio ao sujeito em estado terminal.26
Com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana27 – vértice do
ordenamento constitucional –, defende-se ser lícita a prática da ortotanásia, 28 enquanto
expressão do livre desenvolvimento da personalidade do paciente. 29
Em reconhecimento da autodeterminação do paciente em relação a decisões vitais,
a Resolução nº 1.931/2010 do Conselho Federal de Medicina (CFM) (“Código de Ética
Médica”) assegurou o direito do paciente de decidir sobre os tratamentos aos quais
deseja se sujeitar, proibindo que o profissional da saúde afaste a opção manifestada pelo
indivíduo.30 E mais: o Código de Ética Médica também permitiu expressamente que não
21
Sobre o tema, afirmam Luís Roberto Barroso e Letícia Martel: “Em sentido oposto da distanásia e distinto da
eutanásia, tem-se a ortotanásia. Trata-se da morte em seu tempo adequado, não combatida com os métodos
extraordinários e desproporcionais utilizados na distanásia, nem apressada por ação intencional externa, como
na eutanásia. É uma aceitação da morte, pois permite que ela siga seu curso”. Ibidem, p. 179.
22
PESSANO, Leo. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo,
2001, p. 203.
23
Heloisa Helena Barboza. Ibidem, p. 40.
24
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou
extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses
casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – A pena
é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
25
Rodrigo Siqueira Batista; Fermin Roland Schramm. Ibidem, p. 114.
26
Luis Roberto Barroso e Letícia Martel, Ibidem, p. 180.
27
Por todos, veja-se MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.
28
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, implicações médico-legais. São
Paulo: Ícone, 1998.
29
MARTIN, Leonard. Eutanásia e distanásia: iniciação à bioética. Revista do Conselho Federal de Medicina, 1998, p.
1-6, Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/iniciao%20%20biotica.pdf>. Acesso em:
3 jun. 2018.
30
Confira-se o artigo 24 do Código de Ética Médica: “É vedado ao médico: (...) Deixar de garantir ao paciente o
exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade
para limitá-lo”.
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
557
31
Veja-se o Capítulo I – Princípios Fundamentais –, XXII, do Código de Ética Médica: “Nas situações clínicas
irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos
desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”.
32
Artigo 8º, Código de Ética dos Hospitais Brasileiros: “O direito do paciente à esperança pela sua própria vida
torna ilícita – independente de eventuais sanções legais aplicáveis – a interrupção de terapias que a sustentem.
Executam-se, apenas, os casos suportados por parecer médico, subscrito por comissão especialmente designada
para determinar a irreversibilidade do caso, em doenças terminais, com a aprovação, igualmente por escrito, do
diretor clínico do hospital ou instituição”.
33
Decisão proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 2007.34.00.014809-3, em trâmite perante o Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, julgada em 23 de outubro de 2007.
34
Confira-se sentença proferida em 1º de dezembro de 2010 pela 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito
Federal.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
558 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
35
Sobre o tema, veja-se a notícia “Comissão aprova proposta que regulamenta a ortotanásia”, divulgada na página
virtual da Câmara dos Deputados em 08 de dezembro de 2010: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/
noticias/SAUDE/151903-COMISSAO-APROVA-PROPOSTA-QUE-REGULAMENTA-A-ORTOTANASIA.html>.
Acesso em: 3 jun. 2018.
36
Sobre o tema, leciona Gustavo Tepedino: “As liberdades fundamentais, asseguradas pela ordem constitucional,
permitem a livre atuação das pessoas na sociedade. Expressão de tais liberdades no âmbito das relações privadas
é a autonomia privada, como poder de auto-regulamentação e de auto-gestão conferido aos particulares em suas
atividades. Tal poder constitui-se em princípio fundamental do direito civil, com particular inserção tanto no
plano das relações patrimoniais, na teoria contratual, por legitimar a regulamentação da iniciativa econômica
pelos próprios interessados, quanto no campo das relações existenciais, por coroar a livre afirmação dos valores
da personalidade inerentes à pessoa humana. O principio da autonomia privada, entretanto, não é absoluto,
inserindo-se no tecido axiológico do ordenamento, no âmbito do qual se pode extrair seu verdadeiro significado.
Encontra-se informado pelo valor social da livre iniciativa, que se constitui em fundamento da República (art.
1º, IV, CR), corroborado por numerosas garantias fundamentais às liberdades, que têm sede constitucional em
diversos preceitos, com conteúdo negativo e positivo. Assume conteúdo negativo no princípio da legalidade, que
reserva ao legislador o poder de restrição a liberdades, tornando lícito tudo o que não for legalmente proibido.
Assim o art. 5º, II, da Constituição da República, em cuja linguagem se lê: “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Na mesma direção, dotado de conteúdo meramente
negativo, situa-se o art. 170, parágrafo único, do Texto Maior, o qual, ao fixar os princípios gerais da atividade
econômica, dispõe: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente
de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Tal conteúdo não esgota o sentido
constitucional do princípio da autonomia privada, que corporifica as liberdades nas relações jurídicas de direito
privado. Segundo o Texto Constitucional, a liberdade de agir, objeto das garantias fundamentais insculpidas
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
559
no art. 5º, associa-se intimamente aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1, III), fundamento da
República, da solidariedade social (art. 3º, I) e da igualdade substancial (art. 3º, III), objetivos fundamentais da
República. Significa dizer que a livre iniciativa, além dos limites fixados por lei, para reprimir atuação ilícita, deve
perseguir a justiça social, com a diminuição das desigualdades sociais e regionais e com a promoção da dignidade
humana. A autonomia privada adquire assim conteúdo positivo, impondo deveres à autorregulamentação dos
interesses individuais, de tal modo a vincular, já em sua definição conceitual, liberdade à responsabilidade.
A ordem pública constitucional valoriza a liberdade na solidariedade, impondo que a autonomia privada seja
vista como poder de regulamentação não necessariamente vinculada à vontade subjetiva, já que o interesse
público sobrepõe ao poder de agir dos particulares a tutela de valores socialmente relevantes. Alude-se, nesta
direção, à autonomia negocial, como noção substitutiva do conceito de autonomia privada, por melhor traduzir
o poder conferido aos particulares para deflagrarem negócios, não necessariamente definindo os próprios
regulamentos de interesse, dependendo dos interesses em jogo” (Esboço de uma classificação funcional dos atos
jurídicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 1, p. 8-37, jul./set. 2014).
37
Sobre o tema, aduz Heloisa Helena Barboza: “Ainda de acordo com Perlingieri, cada interesse é correlato a
um valor e a análise dos interesses autoriza individuar quais expressam valores reconhecidos e tutelados pela
Constituição. Assim, o fundamento constitucional da autonomia negocial se identifica à luz dos múltiplos
suportes normativos, em razão da natureza dos interesses garantidos e dos valores constitucionais aos quais
esses se reconduzem. Melhor do que individuar ‘o’ fundamento constitucional da autonomia contratual é
pesquisar ‘os’ fundamentos constitucionais da autonomia negocial, que oferecem ao intérprete as coordenadas
indispensáveis para emissão dos juízos de valor que o ordenamento assegura aos atos de autonomia simples e
concretos. Trata-se de controle de ‘merecimento de tutela dos interesses’ e da ‘liceidade’” (Ibidem, p. 38).
38
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 461.
39
Na clássica definição de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, indivíduo autônomo seria aquele que “age
livremente de acordo com um plano escolhido por ele mesmo, da mesma forma que um governo independente
administra seu território e define suas políticas” (Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Loyola, 2002, p. 138).
40
Na lição de Pietro Perlingieri: “A ‘pessoa’ – entendida como conexão existencial em cada indivíduo da estima de
si, do cuidado com o outro e da aspiração de viver em instituições justas – é hoje o ponto de confluência de uma
pluralidade de culturas, que nela reconhecem a sua própria referência de valores. (...) O.” (Ibidem, p. 460-461).
41
Nas palavras de Stefano Rodotà: “Quando si giunge al nucleo duro dell’esistenza, alla necessità di rispettare
la persona umana in quanto tale, siamo di fronte all’indecidibile. Nessuna volontà esterna, fosse pure
quella coralmente espressa da tutti i cittadini o da un Parlamento unanime, può prendere il posto di quella
dell’interessato” (Dal soggetto ala persona. Napoli: Editoriale Scientifica, 2007, p. 33).
42
Conforme lecionam Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber: “As razões que conduzem a tais decisões não
precisam ser debatidas, pertencem à esfera própria do paciente, em sua livre autodeterminação. Seja de ordem
moral, científica, prática ou religiosa, a motivação do paciente não se sujeita à chancela do médico ou do Estado,
competindo apenas a ele a decisão sobre seu destino” (Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, Ibidem, p. 10).
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
560 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
[a]lguns pacientes pedem – quer assinando testamentos de vida, quer por uma simples
solicitação aos médicos e à equipe hospitalar – para não ser ressuscitados se entrarem
nesse estado. Outros, ao contrário, insistem em que esses profissionais se empenhem
ao máximo em mantê-los vivos pelo máximo de tempo possível, e os parentes em geral
adotam o mesmo ponto de vista.45
43
Ronald Dworkin, Ibidem, p. 263.
44
O caso é relatado por TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Ibidem, p. 15. Confira-se, ainda, a narrativa
feita por DWORKIN, Ronald. Ibidem, p. 264.
45
Ibidem, p. 263.
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ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
561
Nas palavras de Heloisa Helena Barboza: “Para ser digna, a vida há de ter qualidade.
A avaliação da qualidade deve ser feita, preferencialmente, por aquele que está sob
intenso sofrimento”.46
A consagração do direito à vida digna culmina no reconhecimento do direito à
morte digna, evitando-se que qualquer pessoa seja submetida a degradante e invasivo
tratamento médico – incapaz de reverter o estado de terminalidade – ao final de sua
existência. Nas palavras de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber:
Cumpre, assim, reconhecer que toda pessoa humana tem não apenas um direito à vida, mas
um direito à vida digna, o que abrange também, e sem qualquer contradição, um direito
à morte digna, entendida como o respeito às suas convicções pessoais mesmo durante o
processo de extinção de sua personalidade. Com efeito, os princípios jurídicos que norteiam
o viver não poderiam ser afastados nos momentos finais daquela que é, ainda e talvez até
mais intensamente, a existência da pessoa.47
46
Ibidem, p. 47.
47
Ibidem, p. 9.
48
Na definição de Maria Elisa Villas-Bôas: “Diz-se terminal o paciente que se encontra em fase tal de sua patologia,
que evoluirá inexoravelmente para o óbito, em espaço de tempo relativamente curto e previsível, sem que haja
nenhum recurso médico capaz de evitar esse desfecho e ‘independentemente dos esforços empregados’” (Um
direito fundamental à ortotanásia. In: Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p. 246).
49
“No momento em que continuar vivendo é um martírio que a nenhum resultado conduzirá senão à morte,
ninguém é mais legitimado do que o sujeito que sofre para decidir sobre o seu destino. O respeito à autonomia
pode constituir, nestes termos, uma alternativa para a eutanásia” (BARBOZA, Heloisa Helena. Ibidem, p. 47).
50
NUNES, Lydia Neves Bastos Telles. O consentimento informado na relação médico-paciente respeitando a
dignidade da pessoa humana. In: Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 28, jan./mar. 2007.
51
Carlos Nelson Konder. O consentimento no biodireito: os casos dos transexuais e dos wannabes. Revista Trimestral
de Direito Civil, Rio de Janeiro, vol. 15, p. 61, 2003.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
562 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
52
Na definição de Gabriel Furtado: “Pode-se definir testamento vital como um documento elaborado por certa
pessoa enquanto capaz, determinando quais tratamentos deseja receber, ou deixar de receber, acaso/quando vier
a se tornar incapaz de declarar a sua vontade” (FURTADO, Gabriel Rocha. Considerações sobre o testamento
vital. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 2, n. 2, p. 2, abr./jun. 2013. Disponível em: <http://civilistica.com/wp-
content/uploads/2015/02/Furtado-civilistica.com-a.2.n.2.2013.pdf>. Data de acesso: 04 jun. 2018).
53
Confira-se: “Situação que também não deveria ensejar controvérsia é a da recusa prévia a certos tratamentos
voltados ao prolongamento temporário da existência biológica. Toda pessoa possui, como legítimo exercício do
seu direito a autodeterminação, a possibilidade de manifestar sua vontade recusando-se, antecipadamente, a se
submeter a terapias voltadas à conservação artificial de suas funções vitais, especialmente quando as chances de
cura são nulas ou altamente remotas – hipótese à qual os italianos reservam a emblemática expressão accanimento
terapeutico, em alusão ao esforço canino, obstinado, sacrificante pelo prolongamento da vida” (TEPEDINO,
Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Ibidem, p. 11).
54
Nesse sentido, afirma Bergstein: “Mesmo não sendo obrigatória, recomenda-se seja adotada a escritura pública
como instrumento da declaração antecipada de vontade, justamente em função da fé pública de que goza o
Notário. (...) Essa circunstância confere uma segurança maior aos que vão fazer cumprir os desejos contidos
na declaração, já que a possibilidade de o documento ser uma falsificação, com objetivos quiçá escusos, fica
reduzida a praticamente zero. (...) Também pela mesma razão indica-se seguir a regra pertinente ao testamento
público inscrita no art. 1.864, inciso II, ou seja, realizar o ato, lavrando a escritura, com a presença de duas
testemunhas” (Ibidem, p. 125).
55
Prossegue Bergstein: “Entende-se também importante para o quesito da força probante da escritura anexar
declaração de lavra de médico, de que o declarante encontra-se em perfeito juízo, em posse de todas as faculdades
mentais, podendo, portanto, do ponto de vista da Medicina, praticar livremente aquele ato, em especial para
aqueles indivíduos com idade mais avançada e que podem ter suas capacidades mentais questionadas seja pela
equipe médica, seja por familiares ou eventuais herdeiros” (Ibidem, p. 125).
RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
ENTRE A VIDA E A LIBERDADE: DILEMAS CONTEMPORÂNEOS DO DIREITO À MORTE DIGNA
563
à sua intenção de permanecer vivo com o uso de suportes vitais ou não. À semelhança
do procedimento adotado quanto à Nancy Cruzan, investiga-se a vontade presumida
do paciente, mediante análise das manifestações pretéritas e comportamento adotado
pelo indivíduo ao longo de sua vida. Nessa esteira, afirma-se que a vontade presumida
do paciente em estado terminal poderá ser extraída de sua personalidade e trajetória
pessoal.56 Em consequência, parte da doutrina especializada defende seja adotado
critério afetivo na definição do sujeito capaz de apurar a vontade presumida do paciente.
Afirma-se que aqueles que tenham vivenciado a realidade do enfermo e que com este
possuam fortes laços afetivos se encontram mais aptos a avaliar qual seria sua decisão,
se estivesse em condições de opinar.57
Nos termos do artigo 2º, §5º, do Código de Ética Médica, na ausência de diretiva
antecipada firmada pelo paciente e ausentes seus representantes legais, seria exigida a
participação dos Comitês Hospitalares de Bioética, órgão consultivo criado para intervir
nas hipóteses de conflitos éticos no exercício da medicina.58
Conclui-se, portanto, que poderá ser atribuída eficácia às manifestações de von-
tade – prévia ou atual – do paciente terminal, no que se refere à manutenção ou não de
sua vida mediante técnicas e aparelhos artificiais. Para tanto, a declaração deverá ter
sido exarada por paciente plenamente capaz, de forma livre, esclarecida e informada.
Admite-se, ainda, que a vontade presumida do paciente seja extraída do conjunto de
atos e manifestações que constituem sua trajetória pessoal, sempre que tal conjunto
de atos e fatos conduza, de forma inequívoca, à conclusão de que o paciente se com
portaria de determinada maneira em face de um estado de terminalidade. Por fim,
exige-se, em qualquer das hipóteses, que o exercício do direito à morte digna se limite
aos casos de morte inevitável, em que a adoção de tratamentos médicos somente per-
mitiria o prolongamento artificial da vida, não provocando efetiva cura ou melhora
integral do sujeito.
56
Remeta-se, mais uma vez, à lição de Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber: “Mesmo sem um ato formal, é
possível reconstruir a intenção presumida do indivíduo, à luz da sua personalidade, de modo a autorizar a
interrupção de tratamentos artificiais que ele não teria desejado.” (Ibidem, p. 14).
57
É ver-se: “mais do que as pessoas que sejam vinculadas pelo sangue ou pelo matrimônio ao doente, aqueles
que tenham vivenciado de fato a realidade do enfermo, conheçam-no em profundidade, e ainda, mantenham
com ele laços afetivos verdadeiros, estarão mais habilitadas a vislumbrar a integridade do seu perfil, de modo a
melhor interpretar os seus desígnios mais verazes” (SERTÃ, Renato Lima Charnaux. A Distanásia e a Dignidade do
Paciente. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 128).
58
“Surgidos em meados da década de 1960, os Comitês Hospitalares de Bioética (ou Comitês de Bioética Clínica –
CBs) são colegiados multidisciplinares instituídos com o objetivo de discutir dilemas e conflitos morais ocorridos
na prática clínica. Os CBs buscam uma solução prudencial, debatendo de forma plural os pontos relevantes de um
caso concreto, visando sempre a respeitar os direitos fundamentais dos enfermos, seus familiares e dos membros
da equipe de saúde. Suas orientações não são compulsórias, trata-se de um órgão consultivo, que exerce o papel
pedagógico da linguagem no processo de tomada de decisões morais complexas. Sua composição assegura a
diversidade, admitindo membros das mais diversas áreas da saúde e também juristas, teólogos, representantes
dos usuários dos sistemas de saúde e da comunidade, entre outros” (MARTEL, Letícia de Campos Velho.
A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista da EMERJ, 2010, Disponível em:
<http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista50/Revista50_19.pdf>. p. 411).
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564 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
3 Conclusão
“Nascida em 20 de julho de 1957. Partiu em 11 de janeiro de 1983. Em paz em 26
de setembro de 1990”. A sensível inscrição na lápide de Nancy Cruzan traz à tona os
complexos dilemas jurídicos e morais que envolvem o direito à morte digna. De um lado,
mostra-se unânime a consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como
vértice do ordenamento constitucional, e, conseguintemente, o amplo reconhecimento do
direito a uma existência digna, por meio da qual o sujeito possa desenvolver livremente
sua personalidade. A despeito disso, no extremo da vida, muito se debate em relação
ao papel atribuído à autonomia existencial na determinação do tempo adequado da
morte, especialmente quando o prolongamento artificial da vida implica apenas maiores
sofrimentos e turbações ao enfermo. Suscita-se a inviolabilidade do direito à vida em
caráter supostamente absoluto, a afastar qualquer manifestação de vontade do sujeito
no sentido de serem interrompidos os suportes vitais.
Deve-se ter em conta, no entanto, que a dignidade da pessoa humana – princípio
fundante da ordem constitucional brasileira – impõe a releitura de todos os institutos
jurídicos, de modo que sejam atendidos os valores personalista e solidarista que
informam o ordenamento jurídico. Nessa esteira, mesmo a inviolabilidade do direito
à vida deve ser lida e qualificada à luz do princípio fundante, de modo que passe a
corresponder ao conceito de vida digna.
Ao que se conclui que, na medida em que a manutenção da existência do paciente
implique insuperável afastamento de sua qualidade de vida, impõe-se seja assegurada
ao sujeito autonomia para a tomada de decisões existenciais, respeitando-se, ainda,
diretivas antecipadas que disponham acerca dos tratamentos aos quais o sujeito deseja
ser submetido ou não. Somente desta forma se dará plena concretização ao princípio da
dignidade da pessoa humana, reconhecendo-se a existência de um direito à morte digna.
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RACHEL MAÇALAM SAAB LIMA
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Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 551-567. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO
COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
1
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)
III - a dignidade da pessoa humana;”.
2
GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: FRANCESCO, José Roberto
Pacheco Di (Org.). Estudos em homenagem ao professor Sílvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 296.
3
“(...) da responsabilidade civil resulta a obrigação de indemnizar ‘os danos’ sofridos pelo lesado. O dano apresenta-
se por isso como condição essencial da responsabilidade. Por muito censurável que seja o comportamento do
agente, se as coisas correrem bem e ninguém sair lesado, não poderá ele ser sujeito à responsabilidade civil”
(LEITÃO, Luís Manuel de Menezes. Direito das Obrigações: vol. I. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 313).
4
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro.
Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 7, n. 1, 2018. Disponível em: <http://civilistica.com/limites-ao-principio-da-
reparacao-integral/>. Data de acesso: 13 maio 2018.
5
MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Artigo 944 do Código Civil: o problema da mitigação do princípio
da reparação integral. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 63, p. 758,
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
570 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Civil6 e possui status constitucional,7 de modo que apenas poderá sofrer mitigação quando
se fizerem presentes outros princípios e valores igualmente relevantes.
O dano causado pelo ato ilícito rompe o equilíbrio jurídico-econômico anterior
mente existente entre o agente e a vítima. Surge então uma necessidade fundamental de
se restabelecer esse equilíbrio, o que se procura fazer recolocando-a no status quo ante.
A indenização é proporcional ao dano sofrido, já que o objetivo da indenização – tornar
indene – é reparar o dano o mais completamente possível.8 Indenizar pela metade é
responsabilizar a vítima pelo resto. Limitar a reparação é impor à vítima que suporte o
resto dos prejuízos não indenizados.9 10
Nessa perspectiva, em que todo o dano deve ser reparado, verificou-se um
expressivo aumento das hipóteses de dano ressarcível, que passaram a englobar todo
prejuízo, ainda que decorrente de conduta lícita,11 que não fosse razoável, ponderados
os interesses em jogo à luz da tábua axiológica constitucional.12
Se, por um lado, a expansão quantitativa dos danos ressarcíveis representou
importante conquista, “traz, como consequência, o risco de a responsabilidade civil se
transformar em uma falaciosa panaceia, mediadora dos problemas sociais, ou, pior do
que isso, em um instrumento eficaz de distribuição de riquezas – em ambas as hipóteses
restaria desnaturada a sua função reparatória”.13
O presente artigo destina-se, assim, a demonstrar que o direito de uso é interesse
jurídico merecedor de tutela, de modo que sua ilegítima privação gera dano emergente
14
Como destaca Eduardo Nunes Barbosa, o conceito de merecimento de tutela enuncia que os atos dos particulares
não devem ser valorados segundo se apresentem conforme ao Direito. As situações jurídicas subjetivas devem
ser valoradas positivamente pelos princípios do ordenamento, em uma perspectiva promocional e a partir dos
valores que promovem. (SOUZA, Eduardo Nunes. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no
Direito Civil. Revista de Direito Privado, São Paulo, v. 15, n. 58, p. 75-107, abr./jun. 2014).
15
É o que sustenta Luís Manuel Teles de Menezes Leitão: “(...) entende-se por dano a supressão de uma vantagem
de que o sujeito beneficiava. Essa noção não será, porém, suficiente para definir o dano em termos jurídicos, já que
as vantagens que não sejam juridicamente tuteladas não são susceptíveis de indemnização. O conceito de dano
terá por isso que ser definido num sentido simultaneamente fáctico e normativo, ou seja, como a frustração de
uma utilidade que era objecto de tutela jurídica” (LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações:
vol. I. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 313).
16
SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da Reparação à Diluição
dos Danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 160-161.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
572 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
17
TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de
Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 269.
18
VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil Comentado, vol. XII. São Paulo: Atlas, 2003. p. 186.
19
Além das três hipóteses de que se tratará a seguir, Rodrigo da Guia Silva destaca ainda que, na seara possessória,
a tutela do uso estaria também consagrada no art. 555, I, do CPC, que faculta ao possuidor turbado ou esbulhado
cumular o pedido possessório com a condenação em perdas e danos decorrentes do evento. (SILVA, Rodrigo da
Guia. Danos por privação do uso: estudo de responsabilidade civil à luz do paradigma do dano injusto. Revista
de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 107, p. 94, set./out. 2016).
20
Art. 582. O comodatário é obrigado a conservar, como se sua própria fora, a coisa emprestada, não podendo usá-
la senão de acordo com o contrato ou a natureza dela, sob pena de responder por perdas e danos. O comodatário
constituído em mora, além de por ela responder, pagará, até restituí-la, o aluguel da coisa que for arbitrado pelo
comodante.
21
Como adverte Caio Mário da Silva Pereira, “se for perpétuo, deixa de ser empréstimo, e passa a doação”
(PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. III. 21. ed. atual. por Caitlin Mulholland. Rio de
Janeiro: Gen/Forense, 2017. p. 238).
22
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; BODIN DE MORAES, Maria Celina. Código Civil Interpretado
conforme a Constituição da República: v. 2. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 302-303.
23
Art. 37-A. O devedor fiduciante pagará ao credor fiduciário, ou a quem vier a sucedê-lo, a título de taxa de
ocupação do imóvel, por mês ou fração, valor correspondente a 1% (um por cento) do valor a que se refere
o inciso VI ou o parágrafo único do art. 24 desta Lei, computado e exigível desde a data da consolidação da
propriedade fiduciária no patrimônio do credor fiduciante até a data em que este, ou seus sucessores, vier a ser
imitido na posse do imóvel.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
573
(...) a jurisprudência desta Corte (...) com base, sem dúvida, na necessidade de observância
desse princípio constitucional [princípio da prévia e justa indenização], se fixou no sentido
de que cabem os juros compensatórios independente de o imóvel desapropriado estar, ou
não, produzindo renda (e o Ministro Rodrigues Alckmin, no RE 85.704 (RTJ 83/266 e segs.),
bem acentuou que isso decorria da consideração ‘de que, já paga a indenização – como o
devera ser – ao tempo da ocupação do imóvel, o capital que deveria, desde essa ocasião,
substituir o bem no patrimônio dos expropriados, produziria rendas – exatamente as
rendas que os juros compensatórios representarão’).27
24
Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1.328.656/GO, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, j.: 16.08.2012,
DJe: 18.09.2012. No mesmo sentido: Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1.622.102/SP, Rel. Min. Luis
Felipe Salomão, 4ª Turma, j.: 15.09.2016, DJe: 11.10.2016.
25
Art. 15-A No caso de imissão prévia na posse, na desapropriação por necessidade ou utilidade pública e interesse
social, inclusive para fins de reforma agrária, havendo divergência entre o preço ofertado em juízo e o valor do
bem, fixado na sentença, expressos em termos reais, incidirão juros compensatórios de até seis por cento ao
ano sobre o valor da diferença eventualmente apurada, a contar da imissão na posse, vedado o cálculo de juros
compostos.
26
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
p. 762.
27
Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar na Ação Direta de Constitucionalidade nº 2.332-2/DF, Rel. Min.
Moreira Alves, Tribunal Pleno, j.: 05.09.2001, Pub.: 02.04.2004.
28
Muito embora a responsabilidade civil seja um importante instrumento para assegurar o ressarcimento cabível
à vítima do dano por privação de uso, esta não esgota as fontes geradoras de tal obrigação de indenizar, sendo
oportuno recorrer-se ainda ao enriquecimento sem causa ou mesmo à compensação pelo lucro da intervenção
aferido por terceiro. Para demonstrar a aplicabilidade de tais institutos para a solução de tais danos, Aline Terra
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
574 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Importante destacar, contudo, que, em atenção ao §1º do art. 1.228 do Código Civil,
o direito de uso apenas será objeto de tutela pela responsabilidade civil se a propriedade
for exercida por seu titular de acordo com suas finalidades econômicas e sociais.29
Como destacam Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, a proteção assegurada
pelo ordenamento jurídico ao direito de propriedade não tem incidência nos casos em
que a propriedade não atenda a sua função social. Ou seja, quando não se conforme aos
interesses sociais relevantes cujo atendimento representa o próprio título de atribuição
de poderes ao titular do domínio.30
Ademais, importante seja a referida privação ilegítima. Ou seja, apenas nos casos
em que esta não estiver amparada em interesse juridicamente relevante do causador do
dano é que ensejará reparação.
Sobre a injustiça da privação, Aline Terra de Miranda Valverde observa que quando
a conduta do agente é legítima e merecedora de tutela, eventuais danos sofridos não
serão injustos, como seria o caso da apreensão de veículo por autoridade policial em
razão do descumprimento de normas de trânsito ou do fechamento de estacionamento
particular após o horário de funcionamento.31 32
alude a exemplo em que “o dono de casa de veraneio entrega as chaves do imóvel a amigo para que faça a
manutenção durante o mês em que viajará de férias com a família para o exterior. Imagine-se, ainda, que este
amigo aproveite-se da ausência do proprietário, ocupe a casa com sua própria família, e passe a usá-la e desfrutar
de todos os seus benefícios.” (TERRA, Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento
por intervenção? Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da
UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3, 3º quadrimestre de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>).
29
“Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de
quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e
de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das
águas”.
30
TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da
Faculdade de Direito de Campos, ano VI, n. 6, p. 107, jun. 2005. Sobre a função social da propriedade, veja-se ainda:
TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de
Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 314-320.
31
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica
Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3,
3º quadrimestre de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>.
32
Conforme ressalta Anderson Schreiber, a noção de dano injusto transcende “a mera tutela em abstrato do
interesse alegadamente lesado, depende da ocorrência de violação à área concreta de atuação legítima deste
mesmo interesse, área que somente pode ser definida frente ao interesse lesivo. Isto implica em se analisar,
diante de qualquer pedido de reparação, o ordenamento jurídico como um todo, no intuito de determinar (i) se o
interesse alegadamente lesado é merecedor de tutela em abstrato; e (ii) se o interesse é concretamente merecedor
de tutela diante da interferência representada pelo interesse lesivo. Nesta segunda etapa, é dado naturalmente
relevante o fato de ser o interesse lesivo tutelado ou não pelo ordenamento jurídico, porque, enquanto no
primeiro caso, exigir-se-á uma efetiva ponderação judicial, no segundo, parte-se da ponderação previamente
realizada pelo próprio legislador, ainda que sobre tal ponderação possa o juiz exercer certo controle de validade
e adequação.” (SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da Erosão dos Filtros da
Reparação à Diluição dos Danos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 158).
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
575
A concepção por trás dessa ideia é a de que o indivíduo que adquire o domínio
sobre determinada coisa (ou outro direito real ou obrigacional a ele correlato) passa a
titularizar a prerrogativa de usar (ou não) o bem sem interferências alheias, o que, por si
só, corresponderia a uma vantagem patrimonial, que deve ser ressarcida quando afetada.
É o que sugere Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ao aduzir que “entre os danos
patrimoniais, inclui-se naturalmente a privação do uso das coisas ou prestações, como
sucede no caso de alguém ser privado da utilização de um veículo seu (...). Efectivamente,
o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que sua
privação constitui naturalmente um dano”.33
No mesmo sentido, propõe Jaime Santos Briz que, ao adquirir um veículo, o
proprietário pretende tê-lo sempre à sua disposição para lhe proporcionar não apenas
comodidade, como também economia de tempo e agilidade no desempenho de suas
obrigações profissionais ou no desfrute de atividades de lazer. Desse modo, não se pode
negar que a privação desse uso tem valor econômico.34
Para António Santos Abrantes Geraldes, entre a total destruição de uma coisa e
a privação temporária do seu uso, a diferença é meramente quantitativa, impondo-se a
reparação ao lesado também nessa hipótese.35 Segundo sustenta:
Complementa ainda Paulo Mota Pinto que “o ‘dano da privação do uso’ de que se
trata aqui é, enquanto prejuízo resultante da falta de utilização de um bem que integra
o patrimônio, e avaliável em dinheiro, naturalmente um dano patrimonial”.38
Para ilustrar o dano material advindo da ilegítima privação da faculdade de
usar, António Geraldes destaca que, no caso de um automóvel, quer seja este utilizado
como instrumento de trabalho, quer como simples bem de consumo, o veículo tem um
determinado período de vida útil cujo decurso reflete na redução de seu valor comercial
ou corrente, sem qualquer vinculação à utilização que lhe é empregada, sendo possível
33
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das obrigações: vol. I. 2. ed. Coimbra, Almedina, 2002. p. 316.
34
BRIZ, Jaime Santos. La responsabilidad civil: derecho sustantivo y derecho procesal. 3. ed. Madrid: Editorial
Montecorvo, 1981. p. 326.
35
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 31.
36
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 16.
37
Além dos autores aqui mencionados, também sustentam que a privação ilegítima do direito de uso gera dano
emergente autônomo: Mario Júlio de Almeida Costa (COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações.
7. ed. Coimbra: Almedina, 1998. p. 515), Américo Marcelino (MARCELINO, Américo. Acidentes de viação e
responsabilidade civil. 6. ed. Lisboa: Petrony, 2003. p. 237) e Júlio Manuel Vieira Gomes (GOMES, Júlio Manuel
Vieira. O dano da privação do uso. Revista de Direito e Economia, Coimbra: Universidade de Coimbra, ano XII,
p. 169-239, 1986).
38
PINTO, Paulo Mota. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo: v. 1. Coimbra: Coimbra
Editora, 2008. p. 578. Apesar de reconhecer que esta seria uma espécie de dano material, o autor questiona seu
enquadramento como dano autônomo, como se destacará adiante.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
576 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
39
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 71.
40
Note-se que a jurisprudência nacional invoca frequentemente a privação de uso como substrato fático para
a concessão de indenização por lucros cessantes e danos morais, sem examinar, contudo, a possibilidade de
existência de danos emergentes autônomos em decorrência da indisponibilidade de bem. Dentre tais casos,
destacam-se aqueles que envolvem (i) o consumidor que adquire produto durável e é impossibilitado de utilizá-
lo em razão de vícios que comprometem sua qualidade e segurança (Veja-se, dentre muitos outros: Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, Recurso Cível nº 71006663017, 2ª Turma Recursal Cível, Rel. Juíza Vivian Cristina
Angonese Spengler, j.: 12.07.2017, Pub.: 14.07.2017; Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Apelação
nº 0058885-48.2013.8.19.0001, 25ª Câmara Cível, Rel. Des. Andrea Fortuna Teixeira, j.: 11.12.2014, Pub.: 16.12.2014);
(ii) o adquirente de automóvel zero quilômetro que se vê privado de usá-lo em razão de seguidos vícios (Veja-se,
dentre muitos outros: Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Apelação nº 0016120-14.2003.8.19.0001,
9ª Câmara Cível, Rel. Des. Paulo Mauricio Pereira, j.: 13.02.2007, Pub.: 02.03.2007; Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais, Apelação nº 1.0145.12.033619-6/001, 16ª Câmara Cível, Rel. Des. Otávio de Abreu Portes,
j.: 18.09.2014, Pub.: 29.09.2014) e (iii) adquirente de imóvel novo que se depara com a indisponibilidade de
tal bem em razão do atraso da entrega pelo alienante (Veja-se, dentre muitos outros: Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios, Apelação nº 0033830-76.2014.8.07.0007, 2ª Turma Cível, Rel. Des. Gislene Pinheiro,
j.: 06.07.2016, Pub.: 20.07.2016; Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação nº 1007820-57.2015.8.26.0348,
2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Joaquim dos Santos, j.: 21.03.2017, Pub.: 27.03.2017).
41
“Apenas a análise do caso concreto permitirá identificar a natureza do dano causado ao titular do bem, de acordo
com a vantagem que lhe foi suprimida. Na privação do uso de um veículo, por exemplo, poderá haver dano
emergente caso seu titular, em razão de ter ficado impedido de sua utilização para seus deslocamentos rotineiros,
tenha tido que se valer de meio de transporte mais oneroso, como táxi ou veículo alugado; configurar-se-á o lucro
cessante, se o dono do veículo não puder usá-lo para fins profissionais, como no caso de um táxi ou outro veículo
empregado em transporte de carga; por fim, restará configurado o dano moral, caso o titular do veículo não o
tenha podido usar para levar sua filha à igreja no dia do seu casamento, conforme já havia programado” (TERRA,
Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica Direito
e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3, 3º quadrimestre
de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>).
42
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica
Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3,
3º quadrimestre de 2014. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
577
Pensamos, pois, que a privação dessas concretas vantagens, e não logo a perturbação da
faculdade de utilização que integra o direito de propriedade, é que importará já um dano,
autonomizável da ilicitude por afectação das abstratas possibilidade de uso – um dano,
portanto, bem mais próximo da ideia de vantagens que teriam podido ser fruídas depois
do evento lesivo, e, assim, de vantagens ou de um “lucro” (em sentido amplo) cessante,
do que de uma perda ou dano emergente em posições actualizadas do lesado.43
Embora, como se verá mais adiante, não se negue que na hipótese concreta da qual
se extraia a privação ilegítima do direito de uso possam ser configurados prejuízos de
natureza extrapatrimonial ou lucros cessantes, em paralelo aos danos emergentes dela
decorrentes, esta corrente não parece considerar que o ordenamento jurídico brasileiro
prevê diversos mecanismos de tutela do direito de uso sem que seja exigida, para tanto,
a prova de prejuízos individualizados.
Some-se a isso que a prova da ocorrência de danos efetivos, para além dos que
emergem da simples privação do uso, se mostra frequentemente inviável. Desse modo,
a adoção de tal entendimento, que condiciona o reconhecimento do dano à concreta
demonstração de despesas ou à perda de receitas diretamente derivadas da restrição
da faculdade de usar, leva, na maior parte das vezes, à sucumbência da pretensão.44
Outra parte da doutrina, contudo, admite que a ilegítima privação do uso em si
já seria suficiente a ensejar dano emergente ressarcível.
Com efeito, conforme destaca Rodrigo da Guia Silva, se o ordenamento confere
tutela autônoma à faculdade de usar, seria contraditório supor que a sua supressão
temporária somente traduziria dano ressarcível se provados outros prejuízos.45 Segundo
propõe:
43
PINTO, Paulo Mota. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo: v. 1. Coimbra: Coimbra Editora,
2008. p. 594-596.
44
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 65.
45
Embora sem manifestar expressamente sua posição, Gisela Sampaio da Cruz Guedes parece filiar-se a essa
orientação ao discorrer sobre o tema (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom-senso ao
postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 149-160). Apesar de não
desenvolver o conceito, Caio Mário da Silva Pereira também parece reconhecer a autonomia do dano por
privação de uso, ao afirmar: “O problema da responsabilidade civil, no campo automobilístico, atrai a atenção
para um outro aspecto, que foi considerado por Santos Briz: danos nos veículos por acidentes de circulação.
(...) A reparação mediante a entrega de novo carro ou conserto integral, que Santos Briz ‘repetidamente’ alude
como ‘restituição in natura’, não representa o ressarcimento integral. Há que levar em consideração os gastos
que o prejudicado suportou, ficando privado dele: perda das vantagens de seu uso, necessidade de alugar outro,
privação dos rendimentos se se trata de profissional (taxista, por exemplo).” (PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Responsabilidade Civil. 10. ed. atual. por Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: GZ, 2012. p. 300).
46
SILVA, Rodrigo da Guia. Danos por privação do uso: estudo de responsabilidade civil à luz do paradigma do
dano injusto. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 107, p. 99, set./out. 2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
578 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Essa orientação é amparada nas lições de António Santos Abrantes Geraldes, que,
em obra dedicada ao estudo do tema, assevera que a formulação de juízos assentes em
padrões de normalidade permite considerar que a privação de uso comporta um prejuízo
efetivo na esfera jurídica do lesado. Sendo a disponibilidade material dos bens um dos
principais reflexos do direito de propriedade, apenas em hipóteses excepcionais será
possível afirmar que a perda temporária dos poderes de fruição por parte do titular da
coisa não causou danos significativos aptos a gerar a obrigação de indenizar.47
E, nestes casos, caberá ao agente causador da privação de uso o ônus de comprovar
que desta não advieram prejuízos para seu titular.48
Com vistas a reforçar a ideia, o autor remete ainda a hipóteses em que a vítima
de um dano em seu automóvel, por força da indisponibilidade do bem, recorre ao
aluguel de veículo. Em tais hipóteses, as despesas oriundas do aluguel são enquadradas,
sem qualquer reticência, como danos emergentes, sendo reconhecida a sua plena
compensação pela jurisprudência nacional.49 Desse modo, não haveria motivo plausível
para que não se reconhecesse a possibilidade de concessão de reparação semelhante nas
hipóteses em que o lesado por opção, por incapacidade ou por simples ignorância de
seus direitos não recorreu à locação de automóvel semelhante.50
Esta última orientação parece mais consentânea com o atual estágio da responsa
bilidade civil, melhor atendendo à concretização do princípio da reparação integral da
vítima, que se orienta ao ressarcimento de todo o dano injusto.51
Não obstante, é importante destacar que, apesar de se admitir que a simples
privação ilegítima do direito de uso gera dano emergente autônomo, não se nega que
há hipóteses em que o titular do bem efetivamente não fazia uso dele ou não pretendia
fazê-lo. Nesse caso, não há que se falar em dano por privação ilegítima do uso.
Alude-se, a título ilustrativo, à hipótese em que o proprietário de um veículo
deixa seu carro estacionado na garagem durante viagem para o exterior com a família,
vindo o automóvel a sofrer abalroamento que lhe causa relevantes estragos. Considere-
se que o veículo vem a ser deslocado para a oficina para reparos (com autorização do
proprietário lesado), sendo o conserto concluído no curso da viagem do proprietário,
com o retorno do veículo à garagem. Haveria dano por privação de uso a ser ressarcido
pelo agente lesante?
47
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 16.
48
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 83.
49
Nesse sentido, por exemplo: Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Apelação Cível nº 3039767, 8ª Câmara
Cível, Rel. Des. J.J. Guimarães da Costa, j.: 24.11.2005, Pub.: 30.11.2005; Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
Apelação Cível nº 15231100, 11ª Câmara Cível, Rel. Des. Luciane R. C. Ludovico, j.: 18.11.2016, Pub.: 31.01.2017.
50
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 82-83.
51
Oportuno destacar que, a despeito de se considerar que a privação de uso gera dano emergente autônomo,
concorda-se com a afirmação feita por Aline Terra no sentido de que a substituição do bem de cujo uso é privado
por outro de igual natureza e função afasta o direito do lesado à obtenção de reparação (TERRA, Aline de
Miranda Valverde. Privação do uso: dano ou enriquecimento por intervenção? Revista Eletrônica Direito e Política,
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 90, n. 3, 3º quadrimestre de 2014.
Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica>). Não porque o dano não se teria configurado, como propõe a
autora, mas porque a substituição do bem representou uma forma de reparação.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
579
É certo que “a opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes
do proprietário, também afetada pela privação do bem”.52 53 No entanto, no exemplo em
referência, o titular parece ter optado previamente por não exercer a prerrogativa de usar,
de maneira que a indisponibilidade do bem se deu por causa anterior ao abalroamento.
Desse modo, o abalroamento do veículo funcionou, nessa hipótese, como causa
virtual do dano,54 55 inexistindo nexo de causalidade entre o abalroamento e a privação
de uso.
Como já mencionado, o dano é elemento indispensável da responsabilidade civil.
E a causa virtual não causa dano algum, pois este é produzido pela causa real. Não há
nexo causal a ligar o dano à conduta do agente da causa virtual, inexistindo, portanto,
obrigação de indenizar.56
52
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 73.
53
Como pondera, porém, Gustavo Tepedino o desatendimento da função social no caso concreto poderá implicar
que o não uso da propriedade justifique a perda da proteção possessória por parte do seu titular ou torne a
propriedade suscetível à desapropriação para fins de reforma agrária. (TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao
Código Civil: v. 14, Direito das Coisas. Coord. Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 246).
Rodrigo da Guia Silva destaca, contudo, que não obstante os impactos decorrentes da função social, quando
desejou sancionar negativamente o não uso, o legislador o fez expressamente (arts. 1.389, III e 1.410, VIII do
Código Civil), de maneira que a regra geral no Direito brasileiro parece ser a que reconhece a legitimidade do
não uso (SILVA, Rodrigo da Guia. Aspectos Controvertidos dos Danos por Privação do Uso. Revista de Direito do
Consumidor, São Paulo, v. 115, p. 282, jan./fev. 2018).
54
A aplicação da causa virtual à hipótese aqui referida foi suscitada originalmente por Rodrigo da Guia Silva, ideia
à qual nos filiamos (SILVA, Rodrigo da Guia. Aspectos Controvertidos dos Danos por Privação do Uso. Revista de
Direito do Consumidor, São Paulo v. 115, p. 279, jan./fev. 2018).
55
Conforme esclarece Gisela Sampaio da Cruz Guedes, “quando um fato provoca um determinado dano, o qual
teria sido causado por outro fato se o primeiro não tivesse ocorrido, diz-se que o 1º fato é a causa operante ou
real do dano, ao passo que o 2º, apenas a causa hipotética ou virtual. Nesse sentido, causa hipotética ou virtual é,
portanto, aquela causa que não chegou a provocar o dano, porque este foi, em outras circunstâncias, produzido
pela causa real ou operante” (GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. O Problema do Nexo Causal na Responsabilidade
Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 208).
56
“Se a causa virtual poderia ter ocasionado o dano, o certo é que não foi ela que o causou efetivamente. Isto basta
para logo se poder concluir que não é possível estabelecer um nexo entre ela e o dano: este, afinal, foi produzido
pela causa real, não pela causa virtual” (NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, v. I. São Paulo: Saraiva,
2003. p. 659).
57
GERALDES, António Santos Abrantes. Temas da Responsabilidade Civil: I vol. – Indemnização do Dano da Privação
do Uso. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007. p. 90.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
580 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Rodrigo da Guia Silva, com efeito, defende que em casos como esse, em que o
bem é utilizado para auferir receita, não seria devida indenização por danos emergentes.
Segundo sustenta, a presunção relativa de dano emergente oriundo da indisponibilidade
temporária do bem pressuporia que o titular faria uso normal da coisa durante a sua vida
útil, caso a tivesse à disposição. Desse modo, caso seja possível à vítima comprovar a
existência de lucros cessantes, não haveria razão para presumir que empregaria também
a coisa em atividades diversas daquela em que auferiria lucro.60
Importante salientar, contudo, que, como destaca Gisela Sampaio da Cruz Guedes,
apesar de serem duas facetas do dano material, os danos emergentes e os lucros cessantes
cumprem funções diversas no ordenamento jurídico, complementando-se, de maneira a
abranger a indenização do prejuízo sofrido pela vítima em toda a sua extensão. Enquanto
o dano emergente compreende a diminuição no patrimônio da vítima, o lucro cessante
atua para que se considere também o seu não aumento, porque, para efeitos de reparação
do dano, o aumento do passivo (dano emergente) é tão prejudicial para a vítima quanto
a sua não diminuição (lucro cessante).61
Desse modo, em atenção ao princípio da reparação integral, faz-se mister seja
assegurada indenização por danos emergentes advindos da privação de uso também
58
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº 1.0024.09.516367-1/001, 12ª Câmara Cível, Rel. Des.
Domingos Coelho, j.: 13.03.2013, Pub.: 22.03.2013.
59
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível nº 1.701.09.286904-2/002, 10ª Câmara Cível, Rel. Des. Pereira
da Silva, j.: 16.07.2013, Pub.: 26.07.2013.
60
SILVA, Rodrigo da Guia. Danos por privação do uso: estudo de responsabilidade civil à luz do paradigma do
dano injusto. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 107, p. 101, set./out. 2016.
61
GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros Cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 68.
CAMILA AGUILEIRA COELHO
O DANO DA PRIVAÇÃO DE USO COMO DANO EMERGENTE AUTÔNOMO
581
em todos os casos em que, com base no critério da probabilidade objetiva, seja possível
inferir a ocorrência de lucros cessantes.62 Seria a hipótese, por exemplo, de investidor
que se vê privado do uso do imóvel habitualmente utilizado para locação, em razão
de turbação ou esbulho. Muito embora seja possível demonstrar a existência de lucros
cessantes representados pelos valores que deixou de lucrar pelo tempo em que se viu
impedido de oferecê-lo a locação, necessário ainda indenizá-lo pelo tempo em que se
viu privado de exercer quaisquer dos poderes inerentes à posse.
Não se deve perder de vista, contudo, que, enquanto o dano emergente estará
sempre associado à privação de uso, o lucro cessante pode originar-se desta ou não.
62
Para que o lucro cessante oriundo da privação de uso possa gerar a obrigação de indenizar, faz-se mister seja
demonstrada pelo lesado a existência de uma probabilidade objetiva de que ele viesse a aferir tal receita como
resultado do desenvolvimento normal dos acontecimentos, associados às circunstâncias peculiares do caso
concreto. Para, autorizadamente, se computar o lucro cessante, a mera possibilidade não basta, mas também não
se exige a certeza absoluta. Nesse sentido: DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. XI ed. atual. por Rui
Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 978. Esse é também o entendimento manifestado pelo Superior
Tribunal de Justiça. Veja-se, entre muitos outros: Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 1.655.090/
MA, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j.: 04.04.2017, DJe: 10.04.2017; Superior Tribunal de Justiça,
Recurso Especial nº 1.553.790/PE, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, j.: 25/10/2016, DJe: 09.11.2016;
Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 846.455/MS, Rel. Min. Sidnei Benetti, 3ª Turma, j.: 10.03.2009,
DJe: 22.04.2009.
63
O dano moral é a lesão à dignidade da pessoa humana, de modo que “toda e qualquer circunstância que atinja
o ser humano em sua condição humana, que (mesmo longinquamente) pretenda tê-lo como objeto, que negue
sua qualidade de pessoa, será automaticamente considerada violadora de sua personalidade e, se concretizada,
causadora de dano moral” (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-
constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 188). A dignidade da pessoa humana se
especifica através de seus corolários representados pelos princípios da igualdade, da liberdade, da solidariedade
social ou familiar e da integridade psicofísica, previstos na Constituição Federal. Assim, haverá dano moral
sempre que houver lesão a algum desses aspectos que compõem ou formam a dignidade, isto é, quando houver
violação à liberdade, à igualdade, à solidariedade ou à integridade psicofísica (BODIN DE MORAES, Maria
Celina. Danos morais em família? Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade civil. Revista Forense, ano 102,
vol. 386, p. 189, jul./ago. 2006).
64
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Apelação nº 0233975-97.2015.8.21.7000, 9ª Câmara Cível, Rel.
Des. Miguel Ângelo da Silva, j.: 10.08.2016, DJ: 15.08.2016.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
582 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
5 Conclusão
Apesar de as hipóteses que ensejam a configuração do dano por privação de uso
decorrerem de situações corriqueiras, é ainda controversa a sua admissão como dano
autônomo no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, como se demonstrou, a reparação dos danos por privação de uso se
insere perfeitamente dentro do atual regramento da responsabilidade civil, sendo certo
que se trata de um dano ressarcível, de ordem material.
Constatando-se que a faculdade de usar é objeto de tutela autônoma pelo
ordenamento jurídico brasileiro, impede seja reconhecido que sua ilegítima privação gera
o dever de indenizar, especialmente se a propriedade é exercida em atenção à função
social que lhe é conferida pelo ordenamento.
O dano não restará configurado, contudo, nas hipóteses em que o titular do bem
haja optado antecipadamente pela não utilização, em face da relevância negativa da
causa virtual.
Na medida em que tal prejuízo resulta da indisponibilidade de um bem que
integra o patrimônio do lesado e possui expressão econômica, trata-se de um dano
material emergente. Não obstante, as peculiaridades da situação concreta podem indicar
a existência concomitante de lucros cessantes e danos extrapatrimoniais.
As dificuldades em torno do dano da privação de uso não se limitam, contudo,
ao seu enquadramento como dano emergente autônomo, havendo muitas dúvidas e
questionamentos quanto a sua correta quantificação, que merece ser objeto do devido
aprofundamento.
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CAMILA AGUILEIRA COELHO
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Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
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COELHO, Camila Aguileira. O dano da privação de uso como dano emergente autônomo. In: TEPEDINO,
Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum,
2019. p. 569-583. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR
COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA
AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
Introdução
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a solidariedade passou a ser
considerada um dos fundamentos da República brasileira (arts. 1º, III, e 3º, I), na medida
em que se propõe à construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”, contexto
no qual também deve ser inserida a família, local de promoção e valorização de seus
membros, com vistas ao pleno desenvolvimento de suas personalidades.
Neste contexto, a solidariedade familiar se apresenta como a justificativa da
atribuição de direitos e deveres recíprocos, principalmente quanto à assistência moral
e material entre as pessoas que possuem vínculos de parentesco ou conjugalidade entre
si. Esta solidariedade encontra nos alimentos a sua maior expressão dentro do núcleo
familiar, fazendo com que sejam interligados aqueles que não possuem condições de
prover, por si mesmos, o seu sustento, com outros capacitados na satisfação de exigências
mínimas da subsistência digna daqueles.
Tomando por pressuposto o fato de que não é tão somente a mera relação familiar
que impõe o dever de sustento, na medida em que o reconhecimento do direito a
alimentos deve estar alicerçado na presença concreta da necessidade de quem os postula e
na possibilidade da pessoa a quem se pede, em uma relação de estrita proporcionalidade,
passamos a questionar a adequação da utilização da mesma fundamentação no Direito
das Sucessões, quando da atribuição da legítima aos herdeiros necessários. Dito de outra
forma, é preciso investigar se a reserva obrigatória de bens a determinados sucessores
atende aos preceitos contidos na Constituição Federal de 1988, já que ambos os institutos
jurídicos foram criados com a mesma finalidade de promover a solidariedade familiar.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
586 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Família é a organização social menos extensa e mais espontânea, que a vida humana nos
apresenta. Justamente por ser uma associação é que a família é um elemento semelhante
á sociedade, e como só com elementos semelhantes se constrúe um systema, o elemento
básico da sociedade é a família e não o indivíduo.1
1
PEREIRA, Virgílio de Sá. Lições de direito de família, 1923, p. 30.
2
BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito civil constitucional, 2003, p. 62
3
QUEIROGA, Antônio Elias de. Curso de direito civil: direito de família, 2011, p. 01.
4
VIANA, Marco Aurélio da Silva. Alguns aspectos da obrigação alimentar. In: CAHALI, Yussef Said; CAHALI,
Francisco José (Coord.). Doutrinas Essenciais: Família e sucessões, vol. V, 2011, p. 781.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
587
de construir “uma sociedade livre, justa e solidária”,5 o que, inclui, por evidência, a base
da sociedade, que é a família.
A solidariedade do núcleo familiar deve ser entendida como a atribuição de
direitos e deveres recíprocos, principalmente quanto à assistência moral e material
entre seus membros. Nas palavras de Rolf Madaleno, “a solidariedade é princípio e
oxigênio de todas as relações familiares e afetivas, porque esses vínculos só podem
se sustentar e se desenvolver em ambiente recíproco de compreensão e cooperação,
ajudando-se mutuamente sempre que se fizer necessário”.6 Assim é que cada um de seus
componentes é reconhecido como um colaborador na defesa de interesses individuais
e sociais decorrentes das relações familiares, na medida em que os laços afetivos geram
responsabilidades e direitos decorrentes do dever de cuidado recíproco. Nesse mesmo
sentido, aduz Itabaina de Oliveira:
Ainda sobre o assunto, preciosa a lição de Carlos Alberto Bittar, para quem
Quem não pode prover a sua subsistência, nem por isto é deixado à própria sorte. A
sociedade há de propiciar-lhe sobrevivência, através de meios e órgãos estatais ou entidades
5
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicaocompilado.htm>.
6
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 2013, p. 89.
7
OLIVEIRA, Arthur Vasco Itabaiana de. Tratado de direito das sucessões, vol. 1, 1952, p. 46.
8
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família, 2006, p. 47.
9
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família, 2006, p. 47.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
588 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
particulares. (...) Mas o direito não descura o fato da vinculação da pessoa ao seu próprio
organismo familiar. E impõe, então, aos parentes do necessitado, ou pessoa a ele ligada
por um elo civil, o dever de proporcionar-lhe as condições mínimas de sobrevivência, não
como favor ou generosidade, mas como obrigação judicialmente exigível.10
10
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – vol. V, 2016, p. 629.
11
MIRANDA. Pontes de. Tratado de direito privado, Tomo IX, 1958, p. 209.
12
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 2013, p. 881.
13
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, vol. 2, p. 74.
14
Código Civil Brasileiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
589
Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar
totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as
pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos
recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar
a lide.
15
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – vol. V, 2016, p. 638.
16
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – vol. V, 2016, p. 632.
17
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, vol. 2, 2005, p. 76.
18
SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo, 2018. p. 917.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
590 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
quando uma pessoa fica investida num direito ou numa obrigação ou num conjunto de
direitos e obrigações que antes pertenciam a outra pessoa, sendo os direitos e obrigações
do novo sujeito considerados os mesmos do sujeito anterior e tratados como tais.
19
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, vol. 2, 2005, p. 76.
20
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família, 2006, p. 230.
21
TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das sucessões. Noções fundamentais, 1971, p. 90.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
591
22
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, volume III, 1958, p. 02.
23
ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão
legítima: arts. 1.784 a 1.856, volume XVIII. AZEVEDO, Álvaro Vilaça (Coord.), 2003, p. 252.
24
LÔBO, Paulo. Direito Civil: sucessões, 2016, p. 80.
25
BOECKEL, Fabricio Dani. Herdeiros necessários. In: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, n. 26, p. 137, 2006.
26
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, volume I, 1958, p. 343.
27
TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das sucessões. Noções fundamentais, 1971, p. 91-96.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
592 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Carlos Maximiliano traz, em sua obra, alguns argumentos levantados por legis
ladores da Inglaterra e dos Estados Unidos na defesa da ampla liberdade de testar, dos
quais destacamos um com fundamento no exercício da autonomia privada no Direito
Sucessório. Nesse sentido, seria
direito de cada um dar a quem lhe aprouver, aquilo que é seu; da outra parte existe a
faculdade de receber o que espontaneamente lhe dão. Logo há o direito de testar, não o
de herdar. A sucessão legítima apenas supre o testamento: executa a vontade presumida,
na falta de vontade declarada.31
Destacam Daniel Bucar e Daniele Chaves Teixeira que a autonomia deve ser
“valorizada e, portanto, justificada não mais como simples expressão da vontade por si só,
mas como o pleno desenvolvimento e aplicabilidade do princípio da dignidade humana,
tendo como base a liberdade”.32 A liberdade, contudo, não pode ser compreendida como
um fator isolado, sendo necessário o seu diálogo com a solidariedade, o que legitimará
a autonomia.
Na esteira desse entendimento, é certo que a autonomia, desde o advento do Estado
Social, passou a ser condicionada para além dos interesses particulares, passando a en
globar também a proteção de interesses coletivos,33 convertendo-se também em deveres
28
LÔBO, Paulo. Direito civil: sucessões, 2014, p. 41.
29
MORAES, Bruno Terra de; MAGALHÃES, Fabiano Pinto de. Historicidade e relatividade dos institutos e a
função promocional do direito civil. In: SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (Coord.). Direito civil
constitucional, 2016.
30
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, 2002, p. 17.
31
MAXIMILIANO, Carlos. Direito das sucessões, volume I, 1958, p. 340.
32
BUCAR, Daniel; TEIXEIRA, Daniele Chaves. Autonomia e solidariedade. In: TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA,
Ana Carolina Brochado; ALMEIDA, Vitor (Coord.). O direito civil entre o sujeito e a pessoa: estudos em homenagem
ao professor Stefano Rodotà, 2016, p. 98.
33
RUGER, André; RODRIGUES, Renata de Lima. Autonomia como princípio jurídico estrutural. In: FIUZA, César;
SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira (Coord.). Direito civil: Atualidades II. 2008,
p. 18.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
593
A solidariedade, como categoria ética e moral que se projetou para o mundo jurídico,
significa um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que
compele à oferta de ajuda, apoiando-se em uma similitude de certos interesses e objetivos,
de forma a manter a diferença entre os parceiros na solidariedade.35
34
SANTOS, Deborah Pereira Pinto dos; MENDES, Eduardo Heitor. Função, funcionalização e função social. In:
SCHREIBER, Anderson; KONDER, Carlos Nelson (Coord.). Direito civil constitucional, 2016, p. 08.
35
LÔBO, Paulo. Princípio da solidariedade familiar. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/
anais/78.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
36
LÔBO, Paulo. Princípio da solidariedade familiar. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/
anais/78.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2018.
37
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. 7, 1998, p. 19.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
594 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
38
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; DANTAS, Renata Marques Lima. Direito das sucessões e a proteção dos
vulneráveis econômicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I, p. 90, 2017.
39
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo, 2001. p. 303-311.
40
CATALAN, Marcos. Direito das sucessões: por que e para quem? Reflexões a partir da realidade brasileira.
Disponível em: <http://www.academia.edu/4712195/Direito_das_sucess%C3%B5es_por_que_e_para_quem>.
Acesso em: 10 abr. 2018. p. 8.
41
KONDER, Carlos Nelson. Vulnerabilidade patrimonial e vulnerabilidade existencial: por um sistema dife
renciador. In: Revista de Direito do Consumidor, vol. 99, p. 103, 2015.
PATRICIA FERREIRA ROCHA
A SOLIDARIEDADE FAMILIAR ALIMENTAR COMO PARÂMETRO À ATRIBUIÇÃO DA LEGÍTIMA AOS HERDEIROS NECESSÁRIOS
595
a legislação sucessória deveria prever uma especial atenção aos herdeiros incapazes e idosos
e, ainda, aos cônjuges e companheiros quanto a aspectos nos quais realmente dependiam
do autor da herança, buscando concretizar na transmissão da herança um espaço de
promoção da pessoa, atendendo às singularidades dos herdeiros, em especial diante de sua
capacidade e de seus vínculos com os bens que compõem a herança, e, ainda, atendendo
à liberdade do testador quando não se vislumbra na família aqueles que necessitam de
uma proteção patrimonial diante da morte de um familiar.42
Conclusão
Vimos que a solidariedade foi erigida a um dos fundamentos da República brasi
leira, como objetivo a ser perseguido na construção de uma sociedade livre e justa, contexto
no qual também deve ser inserida a família, núcleo social por excelência e primário do
indivíduo. A solidariedade passa a ser compreendida como o reconhecimento de um
dever de assistência e colaboração mútuas, que é especialmente destacado entre pessoas
que possuem vínculos familiares estreitos de parentesco ou conjugalidade.
Corolário desta solidariedade familiar, a obrigação alimentar consiste no dever
de amparo daquele que não possui condições de prover, com os rendimentos de seu
trabalho, o seu sustento, para com outro, que com ele possua vínculo conjugal ou de
parentesco, e que possua recursos suficientes à satisfação da subsistência digna daquele,
sem prejuízo do seu próprio. Dessa forma, a mera relação familiar não é causa suficiente
para a imposição do dever de sustento, sendo imprescindível a averiguação da situação
42
NEVARES, Ana Luiza Maia. A proteção da família no Direito Sucessório: necessidade de revisão? In: Carta
Forense, São Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/>. Acesso: 10 abr.
2018.
a-protecao-da-familia-no-direito-sucessorio-necessidade-de-revisao/14753>. Acesso em: 12 dez. 2014.
43
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; DANTAS, Renata Marques Lima. Direito das sucessões e a proteção dos
vulneráveis econômicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I, p. 91, 2017.
44
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; DANTAS, Renata Marques Lima. Direito das sucessões e a proteção dos
vulneráveis econômicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I, p. 87, 2017.
GUSTAVO TEPEDINO, JOYCEANE BEZERRA DE MENEZES, VANESSA CORREIA MENDES, ANA PAOLA DE CASTRO E LINS (COORD.)
596 ANAIS DO VI CONGRESSO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO CIVIL
Referências
ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado: direito das sucessões, sucessão em geral, sucessão
legítima: arts. 1.784 a 1.856, volume XVIII. AZEVEDO, Álvaro Vilaça (Coord.). São Paulo: Atlas, 2003, p. 252.
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de família. 2. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
BITTAR, Carlos Alberto; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Direito civil constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2003.
BOECKEL, Fabricio Dani. Herdeiros necessários. In: Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, n. 26, 2006.
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro; DANTAS, Renata Marques Lima. Direito das sucessões e a proteção dos
vulneráveis econômicos. In: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil I, Belo Horizonte, vol. 11, p. 73-79, 2017.
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597
Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT):
ROCHA, Patricia Ferreira. A solidariedade familiar alimentar como parâmetro à atribuição da legítima aos
herdeiros necessários. In: TEPEDINO, Gustavo et al. (Coord.). Anais do VI Congresso do Instituto Brasileiro
de Direito Civil. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 585-598. E-book. ISBN 978-85-450-0591-9.
SOBRE OS AUTORES
Alessandro Hirata
Professor da graduação da FDRP-USP. Foi professor assistente junto ao Leopold-Wenger-Institut
da Ludwig-Maximilians-Universität München. Bacharel em Direito pela Universidade de São
Paulo. Doutor em Direito pela Ludwig-Maximilians-Universität München. Livre-docente em
Direito Romano pela Universidade de São Paulo.
Eduardo Magrani
Doutor e mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenador da área de Direito e Tecnologia do Instituto
de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio).
Paulo Nalin
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, mestre em Direito Privado pela
Universidade Federal do Paraná e doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal
do Paraná. Pós-doutor em Contratos Internacionais pela Juristische Fakultät – Universität Basel
(Faculdade de Direito da Universidade da Basiléia – Suíça), sob orientação da Prof. Dra. Ingeborg
Schwenzer. Atualmente é professor Associado de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná
(graduação e pós-graduação). Professor Titular de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica
do Paraná. Professor do L.L.M. da Swiss International Law School (SILS). Advogado e Árbitro.
Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil, atuando principalmente nos
seguintes temas: Obrigações, Contratos Nacionais e Internacionais, Responsabilidade Civil, Direito
Civil-Constitucional, Direitos Fundamentais e Arbitragem.
Gustavo Tepedino
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil). Professor Titular de Direito Civil
e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Doutor em Direito Civil pela Universidade de Camerino (Itália) e livre-docente pela Faculdade
de Direito da UERJ.
Joyceane Bezerra de Menezes
Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-doutorado em Direito Civil
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerce o magistério superior como professora
titular da Universidade de Fortaleza, integrando o programa de pós-graduação stricto sensu em
Direito. É professora adjunta da Universidade Federal do Ceará.
CÓDIGO: 10001530