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* Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, rua Barão de Santa Tecla, 408, 96010-
160- Pelotas, RS. E-mail: leticiamazzucchi@gmail.com. Possui graduação em História pela Universidade
Federal do Rio Grande (1985), mestrado em Antropologia Social pela UFRGS (1995) e doutorado em História
pela PUCRS (2002). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Pelotas, atuando no
Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPEL. Foi Coordenadora do Curso de Bacharelado
em Museologia, entre 2006-2008. Presidente da Comissão de implantação do Curso de Bacharelado em
Conservação e Restauro de Bens Culturais Móveis.
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patrimônio como algo que não deve mudar, garantindo essa estabilidade do “passado
compartilhado”. O outro repertório retórico é o da autenticidade, o que Fabre denomina
da “verdade sem máscara do passado como passado” (2000, p.120), determinada
somente por uma espécie de decisão coletiva fundadora. Entre essas duas dimensões
há que se pensar nos outros sentidos que se vão agregando como a própria noção de
identidade, de memória compartilhada e de usos do passado, tanto pelos poderes
públicos quanto pelas comunidades.
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.Disponível em: http://www.mnactec.cat/ticcih/industrial_heritage.htm.
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Esse “vitalismo cultural” que se apresenta como futuro para os esvaziados locais
de trabalho não poderia, sob a idéia da proteção, esvaziá-los mais ainda quando essa
musealização ou outro que seja o projeto para os mesmos, ignorem o trabalho de luto, as
rupturas, as ressignificações que a memória vai fazendo para adaptar o passado ao
presente.
Para quem entra na cidade de Rio Grande, sul do Rio Grande do Sul, o complexo
fabril Rheingantz se impõe ao olhar: na altura do número 210 da Avenida de mesmo
nome está o prédio da fábrica têxtil, o Clube União Fabril, as ruínas do antigo Cassino
dos Mestres e posteriormente Sociedade de Mutualidade, a restauração inconclusa do
prédio do Grupo Escola Comendador Carlos Guilherme Rheingantz, a antiga creche, as
casas dos mestres, contramestres, o corredor de casas dos operários, a caixa d´água da
Rheingantz.
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Imagem 1 - Fachada da Fábrica Rheingantz nos anos 1950. Fonte: Acervo fotográfico do Centro
Municipal de Cultura Inah Martensen, Rio Grande.
Esse complexo composto pela fábrica e seus correlatos está num espaço da
cidade que ocupou outrora o centro da vida e atividade de cunho industrial: ao lado da
desse prédio fabril, cuja fundação remonta a 1873 quando o empresário alemão Carlos
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Imagem 2 - Vista da Fábrica Rheingantz no período de finalização do prédio que seria inaugurado
em 1873. Fonte: Arquivo fotográfico do Centro Municipal de Cultura Inah Martensen, Rio Grande.
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Imagem 3 - Avenida Rheingantz, casa dos mestres, anos 1930. Fonte:Arquivo Fotográfico do
Centro Municipal de Cultura Inah Martensen, Rio Grande.
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Mergulhada em dívidas e sentenças judiciais, a INCA têxtil, nome pelo qual foi
registrada essa empresa adquirida pelo Grupo Lorea, se manteve funcionando
parcialmente até o final da década de 1980. Dos anos 1990 em diante, face ao
agravamento das condições financeiras da fábrica e da impossibilidade de investir na
manutenção básica dos prédios que compõem o complexo fabril, a INCA foi sendo
abandonada a cada dia, o que ficava demonstrado tanto pela situação de
comprometimento estrutural do edifício, como pelo desânimo e fim das expectativas de
retorno aos velhos tempos, sentimento que, vivenciado coletivamente por aqueles que
ainda freqüentavam a Rheingantz, parecia mantê-la ainda viva.
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O prédio central é impactante pelo tamanho e pela beleza que ainda insiste em
se manter apesar do tempo, ao alto está gravado: INCA Têxtil Industrial, nome que
substituiu o da Companhia União Fabril, a fábrica Rheingantz, em 1970. Ela está ali, e
tudo o que ainda persiste são indícios de outro tempo, o tempo da fábrica. Em seqüência,
primeiro se vê o pavilhão do depósito de tecidos, em seguida a porta de entrada da
gerência, de acesso restrito e que levava diretamente, através de uma escadaria, às
dependências da administração superior da empresa. Ao lado dessa porta está o portão
central, via de acesso ao mundo da fábrica e logo se vê a grande caixa d’água, um dos
ícones da Rheingantz, defronte ao imenso pavilhão destinado a fiação e tecelagem. O
que vem a seguir formava, com a fábrica, um complexo arquitetônico de inspiração
germânica, dividido entre construções para uso coletivo e as residências de
contramestres, mestres e altos funcionários da empresa. Esse complexo edificado foi a
materialização de projetos e necessidades impostas pelo crescimento da empresa. O
princípio da harmonização entre os desiguais se encontra aplicado a esse espaço, onde
a funcionalidade se aliou a inspirações e desejos mais subjetivos, buscando reconstruir,
pelo estilo arquitetônico adotado e materiais utilizados, como coberturas em ardósia por
exemplo, um cenário que imitasse paisagens urbanas da Alemanha. Das casas para
operários, que é o primeiro contato visual descrito, dois agrupamentos podem ser
identificados, a Vila São Paulo e o Corredor. Essas habitações destinadas aos
trabalhadores da fábrica começam a ser construídas na primeira década do século XX e
até meados dos anos 1950 eram destinadas aos operários homens, chefes de família. A
Vila São Paulo é visualizada primeiramente através do correr de casas em fita, na
Avenida Getúlio Vargas, e eram destinadas aos contramestres. Essas casas de
alvenaria, com fachada austera, duas janelas e porta e um pequeno jardim, diferem
bastante daquelas que se encontram no interior da vila, que são casas originalmente
construídas em madeira, cedidas a funcionários do setor produtivo.
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Essa composição espacial, que pode ser expressa como uma metáfora da morte, é
reafirmada quando, atravessando a Rua dois de Novembro e seguindo pela Avenida
Rheingantz terá necessariamente o observador que se deter na frente do prédio de
número 194, onde funcionou originariamente o Cassino dos Mestres e posteriormente a
Biblioteca, sede da Mutualidade e a Cooperativa. Nesse prédio apresenta-se sintetizada
toda a idéia do abandono, não restando hoje um pouco mais do que algumas paredes e
parte da fachada onde aparece um dos elementos mais emblemáticos das construções
destinadas aos alemães, o enxaimel, que cumpria, conforme relato da filha de um dos
mestres, o papel de tornar mais familiar aos técnicos alemães que vinham para a fábrica,
o ambiente que, por fatores climáticos, naturais, culturais, era tão diverso do país original.
Ao lado, restando praticamente apenas as paredes esta o Grupo Escolar Comendador
Carlos Guilherme Rheingantz e que é acompanhado pelo que foi o prédio da Creche. O
que vem a seguir é um conjunto de moradias que começa por um corredor na lateral da
fábrica onde se encontra o prédio que abrigava o Ambulatório, até finais dos anos 1960.
Ao lado, outro corredor de casas construídas numa arquitetura bastante despojada, porta
e janela que se destinava ao operariado que ocupava uma escala mais inferior na
hierarquia de ofícios e cargos dentro da Rheingantz, e eram chamadas Casas do
Corredor.
Lugares de luto. Essa idéia da morte como metáfora que represente a decadência
e o fechamento das atividades da Fábrica Rheingantz está referenciada nas falas dos ex-
operários, surgindo com recorrência a categoria ruína que indica a situação de gradativa,
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constante e crescente depredação que vem sofrendo o prédio da fábrica. Mas há outro
sentido que pode ser atribuído ao termo “ruínas”, o do irrefreável declínio de uma
empresa que é na verdade representado como o malogro de um projeto, a falência no
presente de um sonho do passado.
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Imagem 5: Sr. Hilso ao lado da portaria e com a bicicleta que lhe havia sido presenteada por um
mestre alemão nos anos 1950. O “guardião da Rheingantz”, como ele próprio se apresentava, veio
a falecer em 2007 sem ver nenhuma ação patrimonial resguardando o seu lugar de memória e
vida. Fonte: Foto da autora.
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aberturas, todas localizadas na parte superior, assim essa enorme peça parece imersa
na escuridão e com uma atmosfera pesada.O cenário que a lembrança constrói
virtualmente é de um lugar onde o trabalho era pautado pela força física, contaminado
com cheiros e viscosidades, mergulhado em sombras, um ambiente cuja descrição pode
ser a de locais fabris nos primórdios da industrialização. Essa atmosfera prossegue na
seção contígua ao galpão,o setor de lavagem da lã com máquinas de grandes
dimensões, a maior delas denominada Leviatã. Ainda no setor de produção, à esquerda
ficava a Fiação, a Tecelagem, o Fio Penteado, sendo a última seção em direção ao sul, a
dos Tapetes e no lado oposto ficavam a Oficina Mecânica e Elétrica, a Carpintaria, a
Usina ou casa das máquinas, o laboratório de química, os escritórios de engenharia e
planejamento, o setor de mostras, o Setor de Urdição. No torreão de entrada se encontra
do lado esquerdo de quem entra o Setor de Pessoal, e no lado oposto o que foi, até
1968, a Expedição. No andar superior estavam concentrados todo o setor financeiro e
administrativo da fábrica, e a gerência, um lugar inacessível para a grande maior parte
dos funcionários e que parecia ser, no conjunto desses lugares esvaziados, mantido
razoavelmente conservado e limpo, dando a impressão de ter sido protegido contra o
acelerado processo de desgaste e destruição do restante da empresa.
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A incursão nos pavilhões que ainda mantêm algum maquinário como a fiação, a
tecelagem e as urdições, propõe o contato com uma estética própria gerada por objetos
que, ao contrário daqueles reconhecidamente de valor museológico, adquirem sentido se
entendidos como um texto onde, pelo trabalho de recuperação feito pela memória, são
então investidos de valor afetivo, pois representam um pouco da trajetória social do lugar
e dos sujeitos. No entanto, se a construção industrial é investida de outro tipo de valor
estético, requer para seu reconhecimento outra percepção que associe espaço, trabalho
e trajetórias. A constatação do risco de perda definitiva desse local de memórias
colocaria em questão o desaparecimento dos traços mnemônicos em si. Exemplar disso
são os relatos de algumas ex-operárias que diziam virar a cabeça ao passar pela frente
do prédio, para não ver a degradação.
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a multidão de funcionários ao fim de cada turno, fazia parte dessa sociabilidade gerada
nesse ambiente (o barulho dos tamancos, as cenas urbanas).
Um dado bastante recorrente nas entrevistas feitas é o que se refere aos horários
de entrada e saída quando então a imagem utilizada para representar o grande número
de pessoas é a do formigueiro. Principalmente no horário de final do turno da manhã era
um movimento intenso, tal como narravam os entrevistados, dado que no contingente de
operários que saíam predominavam mulheres ansiosas por chegar à casa a tempo de
providenciar o almoço. Nos horários de saída deveriam passar pela revista e isso,
retardando a saída, diminuía o tempo que permaneciam fora. Ao lado da portaria ainda
se encontrava o instrumento utilizado para a revista, uma corda que ao ser puxada
poderia acender uma pequena lâmpada vermelha. Quem procedia à revista da ala
feminina eram duas funcionárias e esse era ao mesmo tempo um momento de
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ansiedade, dado que muitas tentativas de pequenos furtos, como lãs, foram flagradas ali
e, por outro lado, fator de irritação para aquelas que necessitavam chegar cedo a casa.
Porém o meio de transporte mais utilizado era a bicicleta, para aqueles que
moravam longe. Comprar uma bicicleta era parte da autonomia adquirida com o salário
percebido na fábrica e seu uso foi bastante popularizado nos anos 1950, sendo, no
entanto, mais evocado nas recordações o deslocamento de grupos de operários
caminhando juntos em direção ao trabalho. Nos horários de começo do turno matutino,
principalmente, a imagem recuperada nos depoimentos é a formação das redes de
conhecidos que se juntavam para cumprir o trajeto em direção à Rheingantz. O grupo de
moças, funcionárias da fábrica, adquire movimento na narrativa, percorre as ruas da
Cidade Nova, vai-se avolumando cada vez mais pela adesão de mais gente pelo
caminho, e o ruído dos tamancos vai preenchendo a rua. As ruas, o bairro, a
sociabilidade que no espaço é engendrada, vai sendo trilhada nos trajetos da memória.
LUGARES: OS FERROVIÁRIOS
O conjunto formado pela Fábrica Rheingantz, Viação Férrea do Rio Grande do Sul
e Companhia de Fiação e Tecelagem Ítalo-Brasileira (ou Fábrica Nova) configurava-se
como um pólo centralizador de manifestações políticas e sociais, pela proximidade
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geográfica entre os três estabelecimentos. Referências a isso eram feitas por alguns
entrevistados para reafirmar a importância que assumia a região no contexto político da
cidade e a repercussão de movimentos que iniciavam através dos ferroviários. Ao mesmo
tempo, essa proximidade com a Viação Férrea e o Quartel do Exército era disposta numa
rede de relações sociais que se estabelecia principalmente entre os rapazes e as
operárias da Rheingantz configurando-se o espaço como denso de sociabilidade, que se
revelava através de algumas narrativas onde a ênfase nessa disposição geográfica é
posta justamente pelas mulheres que viam essa proximidade com a Viação Férrea como
um aspecto altamente positivo pois proporcionava conhecimentos e encontros com os
rapazes que, à época, eram tidos como “bons partidos” em razão da estabilidade e dos
salários relativamente altos que possuíam os ferroviários.
O espaço ocupado remete a uma relação com a fábrica onde, pela narrativa, se
podia observar as estratégias de controle que incidiam sobre os funcionários,
principalmente aqueles que moravam nas casas pertencentes à Companhia. Ao
funcionário para quem fosse cedida uma casa, além do compromisso em pagar um
aluguel simbólico, era cobrada a manutenção do imóvel, e principalmente uma conduta
moral correta na condução de sua vida privada e na relação com os vizinhos. Os casos
de embriaguez publicamente assistida, violência contra familiares e descuido com a
manutenção da casa tornavam o sujeito passível de multa, num primeiro registro, seguido
de suspensão e posterior despejo de domicílio em caso de reincidência.
fábrica, através dos parentes, ou não possuíam nenhuma vinculação com a mesma,
sendo apenas inquilinos e não se reconheciam, portanto, como membros daquela
comunidade, que se torna cada vez mais dispersa. Essa desagregação e o clima de
discórdia que caracterizava a vida nas “casas da Rheingantz” era ressaltado por ex-
funcionário que não reconheciam mais na vizinhança aqueles antigos companheiros de
trabalho com os quais compartilhavam confiança e solidariedade. A memória e
identidade social dessa “comunidade de destino” formada pelos ex-trabalhadores da
Rheingantz, se apresentavam vinculadas às vivências no mesmo espaço, daí porque a
degradação constante que vinha sofrendo todo o conjunto construído era abordada com
tristeza e revolta, agravada ainda mais pela sensação de impotência diante dos fatos e
descrédito nas atuais condutas levadas a termo pelos representantes do grupo
administrador da Inca Têxtil.
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Na complexidade que encerra essa relação dos sujeitos com a fábrica, a memória
é ao mesmo tempo reinvenção constante das identidades, das vivências e um elemento
que aprisiona, que insiste em preencher com passado essa ausência de projetos para o
futuro. A região que antes era povoada por levas de homens e mulheres cruzando ruas
para ir ou voltar de seus locais de trabalho, é hoje um espaço desvitalizado, restando
apenas os vestígios materiais do que foi nesse tempo anterior. O bairro em si demonstra
esse empobrecimento industrial da cidade pois, em nenhum outro lugar a memória está
tão fortemente ancorada em lugares do trabalho, símbolos do desenvolvimento de Rio
Grande em outros tempos.
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REFERÊNCIAS
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situations françaises de la relation au passé. Conferência apresentada no II Seminário
Internacional em Memória e Patrimônio, UFPEL, Pelotas, 2008.
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