Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Resumo
Objetiva defender a dimensão micropolítica do falar nas pesquisas sobre currículos
praticados com os cotidianos das escolas. Argumenta, nesse sentido, que a natureza
micropolítica dos processos de interferência intensiva nas pesquisas deve ser
potencializada pelo encontro de corpos agenciados pelas conversações associadas a signos
artísticos, de modo que, evocando “tempos redescobertos” e/ou “estados complicados do
tempo”, intensifiquem a ultrapassagem dos processos individualizados para processos
inventivos e coletivos. Perspectiva que, nos processos de pesquisa, a dimensão
micropolítica da produção de currículos com os cotidianos escolares deve ser
potencializada pelo encontro dos corpos em redes de conversações e que os signos
artísticos, por fazerem irromper o estranhamento nos modelos discursivos dominantes,
auxiliam nessa composição. Isso porque, por meio dos signos artísticos, é possível criar
uma língua estrangeira em sua própria língua, falar em sua própria língua como se ela fosse
uma espécie de língua estrangeira. Parte, portanto, do pressuposto de que a constituição de
currículos compartilhados pode estar na origem de uma nova racionalidade, assim como do
desejo de que essa constituição possa avançar à medida que, pela linguagem, pelo
conhecimento, pelos afetos e afecções se introduzam experimentações e exercícios de
solidariedade cada vez mais vastos. Toma como questões que atravessam essa
problemática: como se constitui o currículo escolar fundado na dimensão da conversação
para a recriação de saberes e fazeres da escola de modo coletivo? Por onde deslizam as
forças e fluxos de afetos e afecções que, ao produzirem bons encontros, constituem
dimensão política coletiva capaz de potencializar as vozes dos professores e alunos que
realizam o currículo no cotidiano escolar? Conclui que o “dar a falar” nas pesquisas
implica: fazer a língua dominante gaguejar; interferir; problematizar; desconstruir,
negociar; acolher ao outro; produzir, enfim, alternativas sensíveis voltadas para a
reinvenção dos currículos com os cotidianos escolares.
Entendendo como currículo tudo aquilo que é vivido, sentido, praticado no âmbito
escolar, e para além dele, e que está colocado na forma de documentos escritos,
EdUECE- Livro 1
01587
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 1
01588
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 1
01589
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 1
01590
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
enquanto inserida na convivência social, visto que, o aumento da nossa potência de agir se
origina diretamente da ocorrência de um bom encontro.
Os bons encontros aumentam a nossa potência de agir. Desse ponto de vista, a
posse formal dessa potência de agir e igualmente de conhecer emerge como finalidade
principal e, então, a razão, em vez de flutuar ao acaso dos encontros, deve procurar unir as
coisas e os seres cuja relação se compõe diretamente com a nossa (ESPINOSA, 2007).
Assim sendo, é imprescindível propormos o desenvolvimento de uma rede de
interações para com os demais homens pretendendo o aproveitamento mútuo daquilo que
exista de excelente no potencial criativo de ambas as partes que interagem entre si.
Podemos considerar que, de tal circunstância, decorreria a tese espinosana da utilidade de
ocorrer um relacionamento harmônico entre os indivíduos, em prol da realização de um
objetivo comum que favoreça o aprimoramento e o benefício social da coletividade.
È pela noção do desenvolvimento das redes de interações que se estabelecem
possíveis “bons encontros”; e é por eles que, no plano da imanência de uma ontologia do
presente, buscamos, em nossas pesquisas, ultrapassar o processo exacerbado na sociedade
capitalista de individualização de referências e estabelecer o coletivo. Sendo assim, é a
partir dessa perspectiva que pontuamos a aproximação entre o cotidiano e a micropolítica,
considerando o cotidiano como o plano privilegiado da ocorrência das lutas micropolíticas
(DELEUZE; GUATTARI, 1996) e microbianas (CERTEAU, 1994) e, portanto, da
produção de subjetividades singulares.
Em suma, tudo é político, mas toda política é, ao mesmo tempo, macropolítica e
micropolítica. E, no cotidiano escolar, tais processos são enredados e concretizados, no
plano de imanência da luta micropolítica, envolvendo diferentes e variados processos de
conversações e ações, efetivando-se a dimensão político-ético-afetiva no entrecruzamento
de redes de trabalho informativas, linguísticas e afetivas que ocorrem buscando a
emergência de outra concepção de público, de coletivo e de currículo.
EdUECE- Livro 1
01591
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
experiência. Depreende-se daí que têm potência para organizar em torno de si uma
pluralidade de pensamentos concorrendo para a constituição do projeto coletivo da escola.
Contrariando o veto e a censura que a ciência dirige aos saberes narrativos,
conforme fala Guimarães (2006), iremos buscar escutar o comum, tentar trabalhar de modo
suficientemente aberto e flexível para descrever como as interações comunicativas
cotidianas, as conversas situam os sujeitos no mundo, oferecendo-lhes laços de
pertencimento e domínios de sociabilidade.
O trabalho com conversações e narrativas tem se mostrado extremamente potente
como possibilidade menos estruturada e formal de entendimento dos processos curriculares
que acontecem nas escolas. Assim, mesmo considerando a força dos determinismos
curriculares prescritivos que nos dias de hoje buscam conformar a vida das escolas, faz-se
necessário investigar a multiplicidade de mundos que nelas coexistem, exigindo-se, para
isso, a atitude de mergulhar nesses universos de pequenas falas, imagens e ruídos que nos
dizem do movimento de uma sociedade que, ao falar, se constitui e se reinventa
cotidianamente (FERRAÇO; CARVALHO, 2012).
Mas por onde pretendemos que deslizem as redes de conversações na pesquisa?
Pretende-se a constituição de encontros produtivos que fomentem a emergência do
público e do coletivo. Tais encontros produtivos potencializados pelas redes de
conversações estabelecidas, entretanto, se fundamentam em processos nos quais os fluxos
intensivos de composições signos-sentidos são fundamentais.
Para Deleuze (2006), tudo é signo, mas os signos são plurais e heterogêneos. Desse
modo, os signos não são do mesmo tipo, do mesmo gênero: não têm a mesma relação com
a matéria em que estão inscritos, não são emitidos do mesmo modo e não têm o mesmo
efeito sobre o intérprete.
Deleuze (2010) ao interpretar a obra de Proust, dispõe os signos em quatro grupos:
signos mundanos, signos amorosos, signos sensíveis e signos artísticos.
Os signos mundanos apareceriam nas relações sociais dos personagens em
contextos sociais diferentes. Nos signos amorosos, o amado aparece ao amante como um
signo, ou como uma pluralidade de signos, implicando uma multiplicidade de mundos
inacessíveis e misteriosos. “Os signos amorosos exprimem um mundo secreto que exclui o
amante e ao qual ele quer ter acesso. Daí o ciúme, daí o sofrimento dos que amam”
(MACHADO, 2009, p. 196). Os signos sensíveis são formados pelas impressões ou
qualidades sensíveis. O mais famoso se encontra na memória involuntária. O quarto tipo
EdUECE- Livro 1
01592
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
são os signos artísticos, dentre os quais Deleuze (2006) destaca três artes: a música, a
pintura e a literatura.
Para Deleuze na gênese do ato de pensar está a violência dos signos sobre o
pensamento, pois a intensidade do signo é o que força o pensamento em seu exercício
involuntário e inconsciente, isto é, transcendental. “Só se pensa sob pressão”
(MACHADO, 2009, p. 197).
O signo mundano surge como substituto de uma ação ou de um pensamento
ocupando o seu lugar. São signos vazios. Já os signos amorosos são enganadores ou
mentirosos, “[...] são signos mentirosos que só podem dirigir-se a nós escondendo o que
exprimem, isto é, a origem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos
desconhecidos que lhes dão sentido” (DELEUZE, 2006 apud MACHADO, 2009, p. 200-
201). Já os signos sensíveis são superiores aos mundanos e aos amorosos, entretanto, os
signos mundanos, amorosos e sensíveis são incapazes de nos revelar a essência, pois eles
apenas nos aproximam do objeto, já que nos envolvem nas malhas da subjetividade. Para
Deleuze, é apenas no nível da arte que as essências são reveladas. Isso porque, no caso da
arte, a essência é revelada de modo singular, libertando de toda a contingência,
constituindo a verdadeira adequação entre signo e sentido.
Para Deleuze, signo e sentido estão sempre em relação com o tempo. A cada
espécie de signo, Deleuze faz corresponder uma estrutura e/ou uma linha do tempo. Trata-
se, portanto, de quatro estruturas temporais subordinadas a duas categorias mais gerais: o
tempo perdido e o tempo redescoberto. Ao tempo perdido correspondem os signos
mundanos, pois é o tempo perdido no sentido do tempo que passa; é o tempo que o
narrador perde no vazio da vida social. Do mesmo modo também o amor faz perder tempo,
mas a experiência do tempo perdido que ele possibilita é mais radical do que a que se tem
na vida social. A terceira estrutura corresponde aos signos sensíveis, mas envolve tempo
redescoberto no sentido de um tempo redescoberto no âmago do tempo perdido. São signos
ambivalentes, pois, apesar de sua plenitude ou da alegria que podem proporcionar como
antecipação de um “tempo redescoberto”, podem transformar-se em sensação de perda. Já
os signos artísticos, pela reunião perfeita de signo e sentido, nos fazem descobrir o “tempo
puro” ou o “estado complicado do tempo”. São os signos que fazem os corpos vibrarem
em abertura para a inventividade, a criação.
Nos encontros com professores e alunos praticantes do currículo no cotidiano
escolar, diríamos que, como entre todos nós viventes e moventes, ora predomina a
EdUECE- Livro 1
01593
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 1
01594
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
Outro modo de criar uma língua estrangeira na linguagem poética e imagética diz
respeito a uma “gagueira” da linguagem: não uma gagueira da fala, que atinge palavras
preexistentes, mas uma gagueira da própria língua, que cria e relaciona novas palavras e
novas imagens. O importante é que se estabeleça uma conversação instigada por signos
artísticos que criem uma linguagem intensiva, vibrátil, característica de um sistema
linguístico em contínuo desequilíbrio, em bifurcação, com seus termos em variação
contínua, produzindo “coleções de sensações intensivas”, “blocos de sensações variáveis”.
Todo um modo de individuação impessoal, de individuação sem sujeito, de singularidade
definida por afetos, potências, intensidades.
Deleuze (1997) pensa a arte em sua relação com o devir e, para ele, devir não é
atingir uma forma: é escapar de uma forma dominante.
Para o autor, os signos artísticos permitem redescobrir novos mundos, tornar-se
outra coisa, tornar-se estrangeiro em relação a si mesmo e à sua própria língua. Assim,
pensar o processo de minoração do currículo significa pensar a relação entre a arte
“menor” e o “povo menor” ou o “povo que falta”, pois o minoritário é um devir potencial
que se desvia do modelo. Línguas menores, existindo em função de línguas maiores, são
agentes potenciais para fazer a língua maior entrar num devir minoritário, num devir
revolucionário.
Esse “povo que falta” é um povo que resista ao modelo imposto produzindo vida
como reinvenção. E é esse “povo que falta” que interessa, em nossas pesquisas sobre
currículo com os cotidianos escolares.
Dar a falar nas pesquisas para reinventar os currículos nos cotidianos escolares
Bastante úteis nas pesquisas sobre currículos com os cotidianos escolares são os
conceitos de atualização (DELEUZE, 2006) e de desconstrução (DERRIDA, 2003).
O conceito de atualização remete ao conceito de criação, visto que, ao atualizar um
acontecimento, a diferença é produzida, e isso envolve um ato de criação. Já o conceito de
desconstrução, em Derrida, não tem nada de negativo ou de destrutivo; assinala, antes, um
pensamento afirmativo e, mais radicalmente, um processo de reinvenção, tomado em
nossas pesquisas como necessidade de reinvenção dos modos de composição dos corpos
em suas relações com os signos-sentidos nas redes de conversações estabelecidas nos
cotidianos escolares.
EdUECE- Livro 1
01595
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 1
01596
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
Referências
BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.
BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2001a.
BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2001b.
EdUECE- Livro 1
01597
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p.
193-205.
PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides de. Por uma política da narratividade. In:
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Liliana da. (Org.). Pistas do
método da cartografia. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 150-171.
SOARES, Victor Dias Maia. Hospitalidade e democracia por vir a partir de Jacques
Derrida. Ensaios Filosóficos, v. 2, p. 162-179, out. 2010.
EdUECE- Livro 1
01598