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quando se quer opor à conjuntura. Pode-se concebê-las e sua relação recí
0 espaço e o território proca dessa forma.
Nas décadas finais do século XVIII até meados do século XX havia o
Conceitos e modos de uso* desejo de mudar o mundo. Isto requer uma compreensão prévia da estru
tura, o que só se alcança pelo olhar analítico do espaço. Mudar o mundo
implica conhecê-lo a partir de sua estrutura mais íntima, condição de se
poder confrontá-lo, por já se saber a forma e essência do seu conteúdo. Nas
décadas atuais, o projeto é alterar planos pontuais das totalidades, o que
significa situar e confrontar o ponto da mudança na conjuntura, sem que
a estrutura (a natureza e essência do conteúdo) seja mobilizada necessaria
mente. O que explica a preponderância categorial do espaço até a segunda
As décadas finais do século XX foram de domínio da categoria do es metade do século XX. E do território de lá até certo tempo.
paço, as iniciais do século XXI vêm sendo de domínio da categoria do É assim que se pode dizer que o espaço está para a estrutura assim
território. como o território para a conjuntura, e que empreender a ação territorial
É uma prática habitual da academia a cultura do momento, a cada tem significa querer intervir na conjuntura, o que implica conhecer a correla
po se apoiar numa categoria de referência abordante, logo substituída e ção de forças do momento como condição necessária e suficiente para en
abandonada por outra como um ser jurássieo. E assim vindo a alimentar cetar a mudança pontual que se quer fazer. Já empreender a ação espacial
um debate estéril de prevalência, como agora - espaço ou território? -, na significa, ao contrário, querer ir mais além, intervir no plano estrutural da
referência estrutural do olhar analítico. Seria o caso? mediatez, mas para atingir sua raiz de fundo. É assim com um movimento
Vive-se, de fato, um momento de modismo, mas entendemos que há de defesa de um ecossistema, uma ação de distribuição equânime das aces
mais que isto nessa troca, posto na origem de tal mudança de enfoque; sibilidades urbanas (o que Harvey designa justiça territorial distributiva), a
uma ênfase de se conceber espaço e território - em nosso caso propen- luta por demarcação de terras indígenas. Já não é assim com um movimen
demos a vê-las numa distinção e identidade categorial, ao mesmo tempo to de transformação de uma sociedade na perspectiva da sua superação por
- como duas categorias separadas e paralelas. Seria o certo? outra de caráter histórico-estrutural oposto.
Partimos do princípio de que usa-se a categoria do espaço quando se quer A troca da preponderância se dá com mudança nas formas das lutas so
atingir a compreensão do todo, e usa-se a categoria do território quando ciais na década de 1970. Há um antes e um depois dos anos 1970, que se
se quer apreender um ponto singular do todo. Que usa-se a categoria do ria o marco de origem da troca da categoria teórica. Desse combinado de
espaço quando se quer opor à estrutura, e usa-se a categoria do território modismo e fundo efetivo do deslocamento do centro de referência. Certo
é que até os anos 1970 prepondera a luta de classes como forma da luta
social, quando os movimentos sociais passam a ser a forma dominante.
’ Texto recuperado de intervenção em conferência de encerramento do III Seminário do
O resto é uma decorrência de uma espécie de "lei” de correspondência,
Grupo de Pesquisa em Geografia e Movimentos Sociais-GEOMOV, realizado pela Uni
versidade Estadual de Feira de Santana, em 2014. que ajusta os conceitos e as formas de luta dos momentos. Espaço é luta
de classes. Território é movimento social. Tal a “lei” de correspondência.
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0 espaço e o território 213 214 A GEOGRAFIA DO ESPAÇO-MUNDO
O deslocamento do olhar espacial para o territorial é a decorrência da Aberta à uma pauta plural de sujeitos e polaridades, os movimentos
mudança do foco e do modo de ação que então ocorre. O que significa di sociais pedem uma categoria de leitura conjuntural, e essa categoria é o
zer, da natureza dos sujeitos. Ao espaço correspondem sujeitos das lutas território. Seus temas são o combinado de lutas conjunturais e lutas es
de classes, ao território, sujeitos dos movimentos sociais - se podemos truturais, com predomínio das lutas conjunturais, que espelha o múltiplo
assim dizer. A questão é, então, a causa da mudança das formas de luta. de mudanças de singularidades que se almeja. São, por isso, lutas que se
E então dos sujeitos. pautam por mudanças localizadas, mesmo se pensadas como acúmulos
Até os anos 1970, as lutas sociais são movimentos centrados nas ações mudancistas ou progressivas a caminho de mudanças de estrutura. Daí a
e organismos do operariado em contraponto às ações e organismos da teoria social - muitas delas ditas pós-moderna, pós-industrial e pós-libe-
burguesia, enquanto sujeitos de uma sociedade de raiz fabril. A partir dos ral - referenciar-se na categoria da singularidade e centrar-se na categoria
anos 1970, com a urbanização os serviços, tomam o lugar de base das re do território, por definição a categoria teórico-metodológica da angulação
lações de indústria, criam-se novas relações sociais, dando origem a novos focal e do conhecimento pontual dos sistemas. E daí transportar-se para a
sujeitos e novas formas de tensão e conflito, as lutas sociais se dilatando teoria geográfica como teoria dos movimentos sociais, das manifestações
para abrigar a dilatação de sujeitos e agendas, abarcando o mundo e con culturais, dos conflitos de territorialidades.
flitos fabris, mas ganhando o cunho mais genérico dos movimentos sociais.
As lutas de classes são lutas sociais de uma dualidade básica de sujeitos,
enquanto os movimentos sociais o são de uma pluralidade global e mais Estrutura e conjuntura
ampla, as armas categoriais exprimindo o sentido de mundo de sujeitos
que acompanha o novo abarcamento. Em princípio. Categorias historicamente presentes-ausentes na teoria geográfica, estru
tura e conjuntura ganham, nos últimos tempos, uma importância crescen
O fato é que, centrada no confronto de oposição entre uma sociedade
te. Habitualmente, entende-se por estrutura o conjunto dos fundamentos
assentada na hegemonia do capital - a sociedade capitalista - e o dese
centrais de um ente total, como uma sociedade, uma formação espacial ou
jo de uma sociedade assentada na hegemonia do trabalho - a sociedade
uma temporalidade da história; por conjuntura, entende-se a manifesta
socialista -, a luta de classes pede uma categoria de leitura estrutural, e a
ção momento a momento do modo existencial da estrutura. Por isso, todo
categoria própria é o espaço. O modelo de análise é a revolução francesa de
conhecimento de conjuntura pode não depender em princípio do conheci
1789 e seu desdobramento na revolução russa de 1917, tomadas pela teoria
mento de estrutura. Mas, contrariamente, todo conhecimento de estrutura
social como exemplos de lutas de mudança estrutural e portadoras de pro
depende necessariamente do conhecimento da conjuntura.
jetos distintos - revolução burguesa e revolução proletária - e antitéticos
Isto significa que toda análise de conjuntura implica ir aos fundamen
de construção societária. Daí a teoria social referenciar-se na totalidade, a
tos seminais de estrutura que reflete, já que toda conjuntura é conjuntu
categoria teórico-metodológica por excelência do conhecimento e contes
ra de uma estrutura, mas podendo desnecessitar da análise profunda e
tação socioestrutural, e centrar-se no domínio categorial do conceito do
detalhada dos fundamentos, a peculiaridade que identifica a análise de
espaço até os anos 1980-1990. E que sob essa forma transporta-se para a
estrutura. A ida da conjuntura à estrutura vale, antes de tudo, como uma
teoria geográfica, por isso vista como uma teoria social do espaço, na pele
ida heurística a um plano geral dos fundamentos, ao passo que a ida da es
do conceito estrutural da formação espacial, de Milton Santos, da justiça
trutura à conjuntura é a condição do mergulho profundo que toda análise
distributiva territorial, de David Harvey, da espacialidade diferencial, de
estrutural implica.
Lacoste, tomando exemplos que aprofundam e amplificam o debate ca
O que acontece com a estrutura e a conjuntura acontece em termos
pitalismo versus socialismo já antes introduzido no olhar geográfico pela
práticos também com o espaço e o território. Toda análise territorial é por
Geografia Ativa, de Pierre George, e pela Geografia Aplicada, de Jean Tri-
princípio uma análise espacial, desnecessitando, porém, a ida profunda
cart, intelectuais então filiados ao PCF (MOREIRA, 2009).
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