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Copyright © desta edigao Boitempo Editoral, 2004 Copyright © Istvan Mészdros, 1989 Titulo original: The Power of Ideology Harvester Wheatsheaf/Londres/1989 Copyright © 1996 da 1 edicao brasileira: Editora Ensaio Traducao: + Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira Preparacao de texto: Tulio Kawata Revisiéo: Antonio Orzari e Luicy Caetano Capa: Antonio Kehl sobre foro de Walker Evans, Roadside Store between Tuscaloosa and Greensbora, Alabama, 1936, copyright Estate of Walker Evans Editoracdo eletrénica: | Nobuca Rachi Coordenacao editorial: Ivana Jinkings Editores: Ana Paula Castellani e Jodo Alexandre Peschanski Producao gréfica: Livia Campos CIP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M55p Mészaros, Istvan, 1930- O poder da ideologia / Istvan Mészatos ; traducao Magda Lopes e Paulo Cezar Casta- nheira. - I.ed., 5.teimpr. - Sao Paulo : Boitempo, 2014. (Mundo do Trabalho) Tradugao de: The power of ideology Inclui bibliografia e indice ISBN 978-85-7559-056-0 1. Sociologia. 2. Sociologia politica. 3. Ideologia. 4. Teoria critica. I. Titulo. II. Série. 12-6011. CDD: 301 CDU: 316 E vedada a reproducao de qualquer parte deste livro sem a expressa autorizacao da editora. P edigao pela Boitempo: julho de 2004; 1? reimpressao: setembro de 2004 2+ reimpressio: agosto de 2007; 3* reimpressio: marco de 2010 4 reimpressio: agosto de 2012; 5* reimpressao: setembro de 2014 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda. Rua Pereira Leite, 373 05442-000 Sao Paulo SP Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 editor@boitempoeditorial.com.br | www.boitempoeditorial.com.br www. blogdaboitempo.com.br | www.facebook.com/boitempo www.twitter.com/editoraboitempo | www.youtube.com/imprensaboitempo Capitulo 6 METODOLOGIA E IDEOLOGIA 6.1 A ideologia da neutralidade metodolégica 611 Em parte alguma o mito da neutralidade ideoldgica — a autoproclamada Wertfreiheit, ou neutralidade axiolégica, da chamada “ciéncia social rigorosa” — é mais forte do que no campo da metodologia. Na verdade, encontramos com freqiiéncia a afirmagio de que a adogao deste ou daquele quadro metodoldgico nos isentaria automatica- mente de qualquer controvérsia sobre os valores, visto que eles sao sistematicamente excluidos (ou adequadamente “postos entre parénteses”) pelo proprio método cien- tificamente adequado, poupando-nos assim de complicagées desnecessérias ¢ ga- rantindo a objetividade desejada e o resultado incontestavel. AfirmagGes e procedimentos deste tipo sao, é claro, extremamente problematicos, porque presumem, de modo circular, que seu entusiasmo pelas virtudes da “neutralidade metodolégica” produziria inevitavelmente solugdes “axiologicamente neutras” em relagdo a assuntos altamente controversos, sem inicialmente examinar a importantis- sima questao da possibilidade da neutralidade sistemdtica no plano da prépria meto- dologia. Considera-se que a validade do procedimento recomendado seja indiscutivel € evidente por si mesma, por conta de seu cardter puramente metodolégico. Na verdade, esta abordagem da metodologia tem um forte viés ideolégico con- servador. Entretanto, uma vez que se diz que o plano da metodologia (e da “metateoria”) esta em principio separado daquele das questées substanciais, 0 circulo metodoldgico pode ser convenientemente fechado. Depois disso, acredita-se que a mera insisténcia no cardter puramente metodolégico dos critérios estabelecidos legitima a afirmagao de que a abordagem em questo é neutra porque todos podem adoté-la como 0 qua- dro comum de referéncia do “discurso racional”. Mas, muito curiosamente, os princfpios metodolégicos propostos sao definidos de tal forma que reas de grande importancia social sao exclufdas a priori deste discurso racional por serem “metafisicas”, “ideoldgicas”, etc. Tal aceitagao de uma tinica abor- dagem como admissfvel tem por efeito desqualificar automaticamente, em nome da 302 Ciéncia, ideologia e metodologia propria metodologia, todas as abordagens que nao se ajustam aquela estrutura discur- siva. Como resultado, os proponentes do “método correto” evitam todas as dificuldades que acompanham o reconhecimento das divises e das incompatibilidades reais, & medida que elas necessariamente se desenvolvem a partir dos interesses sociais anta- gOnicos que esto nas raizes de abordagens alternativas e dos conjuntos de valores rivais a elas associados. E af que podemos ver mais claramente a orienta¢ao social implicita em todo 0 procedimento. Longe de oferecer um espaco adequado para a investiga¢ao critica, a adogao geral do quadro metodolégico pretensamente neutro equivale, de fato, a con- sentir em nao levantar as quest6es que realmente importam. Em vez disso, 0 procedi- mento metodoldgico “comum” estipulado consegue apenas transformar 0 “discurso racional” na prdtica diibia da produgao de uma metodologia pela metodologia: ten- déncia mais pronunciada no século XX do que em qualquer época anterior. Esta prdtica consiste em afiar a faca metodoldgica recomendada até que nada reste a nao ser 0 cabo, quando entao uma nova faca é adotada com 0 mesmo propésito, pois a faca metodoldgica ideal nao se destina a cortar, mas apenas a ser afiada, interpondo-se assim entre a intengao critica e os objetos reais da critica, que acaba por eliminar en- quanto prossegue a atividade pseudocritica de afiar por afiar a faca. E é exatamente este seu propésito ideoldgico inerente. 61.2 Naturalmente, falar de uma estrutura metodolégica “comum” na qual se possam re- solver os problemas de uma sociedade dilacerada por interesses sociais inconcilidveis eas confrontagdes antagénicas decorrentes é, na melhor das hipéteses, ilusério, apesar de todo o discurso sobre as “comunidades ideais de comunicacao”. Mas definir os principios metodolégicos de todo discurso racional pela transubstanciacao da discus- sao dos valores sociais antag6nicos em “tipos ideais” (ou colocando-a entre “parénteses” metodolégicos) revela 0 colorido ideolégico e também a extrema faldcia da pretensa racionalidade. Tal tratamento das principais dreas de conflito, sob uma grande varie- dade de formas — desde a versao vienense do “positivismo légico” até a famosa escada de Wittgenstein, que deve ser “jogada fora” no momento de confrontar a questao dos valores, e desde a defesa do princfpio popperiano do “pouco a pouco” até a teoria “emotivista” do valor —, inevitavelmente favorece a ordem estabelecida. E 0 faz de- clarando que os parametros estruturais fundamentais da sociedade em questo estao “proibidos” aos potenciais contestadores, pela autoridade da metodologia idealmente “comum”. Entretanto, mesmo em uma verificagao superficial das questdées em jogo fica bastante ébvio que consentir em ndo questionar o quadro estrutural fundamental da ordem estabelecida é radicalmente diferente conforme seja feito por algum beneficidrio dessa ordem ou do ponto de vista daqueles que sofrem suas conseqiiéncias, explorados € oprimidos pelas determinagées gerais (c nao apenas por algum detalhe limitado ¢ mais ou menos facilmente corrigivel) dessa mesma ordem. Conseqiientemente, esta- belecer a identidade “comum” dos dois lados opostos de uma ordem hierdrquica es- truturalmente salvaguardada — reduzindo-se as pessoas que pertencem as forgas sociais Metodologia e ideologia 303 em disputa a ficticios “interlocutores racionais”, extraidos de seu mundo real dividido e transplantados para o universo “compartilhado” do discurso ideal — seria, em suma, um milagre metodolégico. Ao contrdrio de uma hipostasiada comunalidade racional atemporal e socialmente inespecifica, a condic4o elementar de um discurso verdadeiramente racional estaria em reconhecer a legitimidade de contestar a propria substancia da ordem social vigente. Isto implicaria a articulagao dos problemas relevantes, nao no plano da teoria auto- referencial e da metodologia, mas como questées inerentemente prdticas cujas condigbes de solugao apontam para a necessidade de mudangas estruturais radicais. Em outras palavras, exigiria a rejei¢ao explicita de toda a ficc4o da neutralidade metodolédgica e metatedrica. Mas é claro que seria demais esperar que isso ocorresse, precisamente porque a sociedade em que vivemos € uma sociedade profundamente dividida. Portanto, por meio das dicotomias entre “fato e valor”, “teoria e pratica”, “racionalidade formal e substancial”, etc., 0 milagre metodolégico que transcende o conflito é constante- mente proposto, no interesse da ideologia dominante, como a estrutura reguladora necessdria do “discurso racional” nas humanidades e nas ciéncias sociais. O que torna essa abordagem particularmente dificil de desafiar € que seus com- promissos de valor sao a tal ponto mediados por preceitos metodolégicos que é virtual- mente imposs{vel discuti-los sem contestar abertamente a estrutura como um todo. Os conjuntos de valores conservadores que estao na raiz de tal orientagao permanecem bem distantes do assunto ostensivo em disputa, definido em termos légico-metodo- légicos, formal-estruturais e semantico-analfticos. E quem suspeitaria do viés ideolégico das credenciais impecaveis - metodologicamente sancionadas — das “regras de pro- cedimento”, dos “modelos” e dos “paradigmas”? No entanto, uma vez adotados tais paradigmas e regras como 0 quadro de refe- réncia comum do que é ou nao um legitimo objeto de debate, tudo o que entra nos parametros aceitos é necessariamente restringido, nao sé pela pequena extensao do quadro geral, mas também pelas suposig6es ideolégicas nao explicitas sobre cujas bases os préprios princfpios metodolégicos foram constitufdos. Por isso, as ideologias pretensamente “nao-ideolégicas” que, com tanto sucesso, exercem sua fungao apolo- gética sob o disfarce da metodologia neutra séo duplamente mistificadoras. As correntes de pensamento do século XX sao dominadas por abordagens que tendem a articular os interesses e os valores sociais da ordem dominante através de mediagées complicadas — as vezes completamente desnorteantes — no plano metodo- Iégico. Portanto, mais do que no passado, a tarefa da desmistificacao ideoldgica € insepardvel da investigacao do inter-relacionamento dialético complexo entre os mé- todos e os valores, do qual nenhuma teoria ou filosofia social consegue escapar. 6.2 A reproducao dos sistemas tedricos representativos Em sua discusséo em Questdo do método, Sartre opés a filosofia 4 ideologia e declarou: Os perfodos de criagao filos6fica sao raros. Entre os séculos XVII e XX vejo trés desses perfodos, que eu designaria pelos nomes dos homens que os dominaram: ha o “mo- mento” de Descartes e Locke, o de Kant e Hegel ¢, finalmente, o de Marx. Essas trés 304 Ciéncia, ideologia e metodologia filosofias se tornaram, cada uma por sua vez, 0 hiimus de qualquer pensamento par- ticular e o horizonte de toda a cultura; nao ha como ir além delas enquanto o homem nao tenha ido além do momento histérico que essas filosofias expressam. Tenho dito freqiientemente que um argumento “antimarxista” é apenas o aparente rejuvenesci- mento de uma idéia pré-marxista. Uma pretensa “superagio” do marxismo seria, na pior das hipéteses, apenas um retorno ao pré-marxismo; na melhor, apenas a redesco- berta de um pensamento jd contido na filosofia que alguém acredita ter superado.’ Quando escreveu estas linhas, Sartre teve suas raz6es para tracar, do modo como 0 fez, as linhas de demarcagio entre filosofia e ideologia. Esse foi o perfodo em que estava tentando estabelecer uma sintese entre o existencialismo e 0 marxismo dentro do quadro deste tiltimo. Desse modo, designou os raros sistemas “totalizantes” pelo nome de filosofia e reservou o termo “ideologia” para os empreendimentos mais limi- tados que, em sua opiniao, nao podem escapar, por mais que tentem, do campo gra- vitacional do sistema historicamente dominante e todo-abrangente de sua época. Sartre, referindo-se aos criadores de tais sistemas parciais, escreveu: Vou chamar de “idedlogos” estes homens relativos. E, uma vez que devo falar de exis- tencialismo, vamos deixar claro que o considero como uma “ideologia”. E um sistema parasitdrio que vive & margem do Conhecimento, a que de inicio ele se opés, mas ao qual atualmente busca se integrar? Nao pode haver dtivida de que esta oposigao da filosofia 4 ideologia (da qual a contraposi¢ao althusseriana da “teoria” 4 “ideologia” ¢ uma variante nao reconhecida) é altamente problemdtica, pois toda filosofia é ao mesmo tempo uma ideologia. En- tretanto, nao estamos preocupados aqui com as determinag6es histéricas e ideoldgicas da posigao sartriana. O que interessa, no presente contexto, é sua proposicao funda- mentalmente valida que vincula intimamente as grandes filosofias do passado e do presente ao cendrio social particular — que abrange toda uma época histérica — que define positivamente ¢ limita negativamente seu horizonte conceitual. Situar as varias filosofias em seu cendrio histérico-temporal é essencial também para se compreender 0 significado especifico e carregado de valor de seu método apa- rentemente abstrato, freqiientemente proposto como atemporal. Pois Toda filosofia é prética, mesmo aquela que, de inicio, parece a mais contemplativa. Seu método é uma arma social e politica. O racionalismo critico e analitico dos grandes cartesianos sobreviveu a eles; nascido do conflito, olhava para trds a fim de esclarecer © conflito. Na época em que a burguesia tentava destruir as instituigdes do Antigo Regime, atacou as formulagdes desgastadas que tentavam justificé-las.> Mais tarde, 1 Sartre, The Problem of Method, Londres, Methuen, 1963, p. 7. [Ed. bras.: Questo de método, Séo Paulo, Difusdo Européia do Livro, 1966.] Ibid., p. 8. Neste ponto, Sartre acrescenta uma esclarecedora nota de rodapé: “No caso do cartesianismo, a agio da ‘filosofia’ permanece negativa; ela abre caminho, destréi ¢ permite que os homens, em meio as infinitas complexidades ¢ particularismos do sistema feudal, vislumbrem a universalidade abstrata da propriedade burguesa. Mas em teoria pode ser positiva” (ibid., p. 5). cunstancias diferentes, quando a luta social assume outras formas, a contribuigio da Metodologia e ideologia 305 ofereceu seus servicos ao liberalismo e forneceu uma doutrina para os procedimentos que tentavam realizar a “atomizaca0” do proletariado.* Portanto, os métodos — por mais abstratos e mediados que sejam — das filosofias rivais sao insepardveis das preocupagées praticas que elas defendem a sua prépria ma- neira. Originam-se de tais preocupag6es e podem acomodar em sua estrutura os inte- resses temporalmente definidos das forgas sociais com cujo ponto de vista se identifi- cam, mais ou menos conscientemente, os pensadores que conceitualmente articulam tais interesses. Quando métodos rivais se engajam em uma luta prdtica, t’m uma margem de manobra significativa precisamente porque seus principios so expressos mais em termos das linhas mais amplas e dos princfpios reguladores gerais de uma metodologia do que como proposigées altamente especfficas, enunciadas com respeito a circuns- tncias de importancia estrutural apenas parcial. As proposic6es deste tiltimo tipo, em contraste, representam a adaptagao mais ou menos “tatica” dos préprios principios gerais as circunstancias em constante mudanga, baseada em uma “retroalimentagao” cujo objetivo é circunscrito, de modo flexivel mas inevitdvel, pelo préprio método “totalizante”. Na verdade, de acordo com as determinagées historicamente mutdveis das classes sociais cujos interesses fundamentais eles articulam, tais métodos podem até ter sua fungao central alterada, de uma fun¢ao dinamicamente progressiva (como o “racionalismo critico” de varias formas de cartesianismo durante um longo periodo histérico) para uma fungao que se esgota na pratica “liberal” da manipulagao social e da racionalizacao apologética da ordem estabelecida. Entretanto, jamais conseguem se libertar das determinagGes sociais especificas e das tarefas praticas que necessaria- mente estabelecem os limites para a estrutura conceitual e circunscrevem a validade hist6rica relativa de qualquer metodologia. 6.3 Filosofias vivas e métodos concorrentes Nesse contexto, surgem duas quest6es importantes. A primeira refere-se 4s condigdes sob as quais os varios sistemas filoséficos — com suas regras metodoldgicas especificas e modelos de “procedimento correto” — se originam ¢ se afirmam como 0 quadro orien- tador abrangente do pensamento de sua época. E a segunda questio, igualmente rele- vante, esté relacionada 4 continua reprodugdo de sua importancia, de uma forma ou de outra, para sua época. Sem a reafirmacao efetiva da validade de seus principios centrais, eles nao possuiriam o significado representativo que sem diivida possuem pre- cisamente em virtude de tal reprodugdo, quer pensemos nas filosofias cartesiana e kantiana, quer na abordagem marxiana. Sem investigar essas questées, seré dificil apreender as complexas determinagGes que estao por tras da articulacdo original e das transformagées sécio-historicamente concretas dos grandes sistemas filoséficos. Espera-se entao que atribuamos seu suces- so as “descobertas” mais ou menos idealisticamente concebidas de grandes individuos, ou terminemos a investigac4o (como ocorreu com Sartre) com a afirmago genérica, 4 Ibid. 306 Ciéncia, ideologia e metodologia ainda que correta em sua generalidade, de que os sistemas em questo dao expresso ao movimento geral de sua sociedade. Além disso, espera-se também que aceitemos a opiniao muito simplificada de que “nao se pode jamais encontrar ao mesmo tempo mais de wma filosofia viva’. Entretanto, a questao de o quanto uma filosofia esta viva ou morta nao é deci- dida por intelectuais iluminados de acordo com os critérios teoricamente mais avan- cados de outra filosofia, ainda que seja a mais moderna e progressista. E determinada, de modo menos tranqiiilizador, pela capacidade de a filosofia em questao reproduzir sua propria relevancia tedrica e pratica em alguma forga social fundamental da época. Nao importa 0 quanto essa forga — e, em conseqiiéncia, a correspondente subs- tancia tedrica da filosofia analisada — possa ser problemdtica (ou mesmo reaciondria) se considerada a partir de uma perspectiva histérica mais ampla. Enquanto ela puder se reproduzir com éxito no contexto de um continuado antagonismo social, nada mais € preciso para sustentar suas reivindicacées de vitalidade do que seu poder para com- bater 0 adversdrio com eficdcia nos relevantes planos da vida social e intelectual. Contudo, se separarmos a ideologia da filosofia j4 nao hd sentido em falar das “formas ideolégicas em que os homens se tornam conscientes de seus conflitos sociais e os resol- vem pela uta”, como faz Marx, pois esta confrontago fica mais parecida com um bo- xeador lutando contra sua sombra do que com uma luta real. Nesse caso, a questo seria automaticamente decidida, por definigao, em favor da “filosofia viva”, quando 0 perfodo mais recente da “criacao filosdfica” — o “momento de Marx”, por exemplo, em oposigao ao de Kant e de Hegel, sem mencionar outros antes deles — expulsasse para 0 reino dos mortos as filosofias que antes da chegada do novo momento ainda estavam vivas. Muito curiosamente, a afirmagao sartriana de que nunca existe ao mesmo tem- po mais do que uma filosofia viva é precedida pela reformulagao de uma idéia tipica- mente kantiana, ainda que o préprio Sartre possa nao estar consciente disso. Declara ele: “Em nossa opiniao, a filosofia nao existe. Seja qual for a forma sob a qual a con- sideremos, esta sombra da ciéncia, esta Eminéncia Parda da humanidade, é apenas uma abstracao hipostasiada. Na verdade, ha filosofias”.° E eis como essencialmente a mesma proposicao aparece na Critica da razdo pura, de Kant: “A filosofia € 0 sistema de toda cognigao filoséfica [...] 0 padrao pelo qual todas as filosofias subjetivas devem set julgadas. Neste sentido, a filosofia é apenas a idéia de uma ciéncia possivel, que ndo existe concretamente” ” Na verdade, Kant chega a negar até a existéncia do fildsofo, considerado “o pro- fessor ideal, que emprega [a matemitica, as ciéncias naturais e a légica] como instru- mentos para o avanco dos objetivos essenciais da razao humana. Sé a ele podemos chamar de filésofo; mas ele nao existe em nenhuma parte”.* Naturalmente, a inspiracao kantiana de grande parte da filosofia de Sartre vai muito mais longe do que a reprodugao de tais idéias. As conexdes mais importantes 5 Ibid., p. 3. * Ibid. Kant, Critique of Pure Reason, Londres, Dent & Sons, 1934, p. 474. Ibid., p. 475. Metodologia e ideologia 307 podem ser encontradas na concepgao sartriana da moral e em sua Critica da razdo dialética. Entretanto, 0 ponto que nos interessa aqui é que as filosofias cujo “momen- to” original se encontram em um passado remoto (até de varios séculos) podem readquirir a vitalidade mediante sua adequada reprodugao nas, e de acordo com, novas circunstancias sécio-histéricas. Neste sentido, a filosofia kantiana, por exemplo, nao apenas continuou a exercer, até em nossa época, uma influéncia incomparavelmente mais difundida do que a de qualquer outra filosofia, mas conseguiu influenciar tam- bém varias abordagens marxistas, desde Bernstein e Kautsky até 0 austromarxismo, sem esquecer, mais recentemente, Galvano della Volpe ¢ seus seguidores (Colletti, por exemplo). Mas, além das influéncias deste tipo, mesmo um sistema muito anterior (por exemplo, a filosofia de Descartes) péde renascer algumas vezes no século XX, exercendo grande influéncia na maneira pela qual foi revitalizado e adaptado as exigéncias das novas condigoes. As Meditagdes cartesianas de Husserl e 0 desenvolvimento da feno- menologia em geral — e, na verdade, a prépria filosofia de Sartre, em todas as suas fases de desenvolvimento — dao testemunho disso. 6.4 A necessidade da auto-renovagao metodolégica As mesmas consideragées se aplicam a avaliacao da filosofia marxiana, nao obstante sua importancia representativa quanto a incorporagao intelectual de uma fase mais avangada do desenvolvimento histérico. Sua reivindicagao de ser 0 mais abrangente sistema vivo de pensamento nao é julgada com base na novidade histérica de seus principios centrais tais como inicialmente articulados na obra de seu criador. E deci- dida sobretudo por conta de sua continua capacidade para oferecer — apesar dos nu- merosos reveses € reversdes sociais e das revises tedricas correspondentes — um quadro para a critica radical tendo em vista uma reestruturagao fundamental da sociedade em sua totalidade. O radicalismo metodoldgico da abordagem marxiana e sua importancia para a época em que se originou sao determinados pela profunda crise de uma ordem social cujos problemas sé podem ser solucionados por uma reestruturacao radical da propria ordem social, nas suas dimensdes fundamentais. Na falta de uma tal solugao, pode-se apenas manipular, “pouco a pouco”, as contradicées socioeconémicas em questi e suas manifestagGes ideoldgicas, adiando temporariamente a erupgao da crise imi- nente sem, no entanto, instituir um remédio estrutural adequado. Naturalmente, a realizacdo de uma reestruturagao radical da sociedade é incon- cebivel como um “acontecimento” repentino e irreversivel. Ela deve ser encarada, em vez disso, como um proceso auto-renovador, mantido por um periodo histérico tao longo quanto persistir sua necessidade em relacdo a determinadas tarefas e a adversdrios ideoldgicos bem identificados. Quando deixa de existir a necessidade desta reestrutu- ragao radical, “do topo a base, de toda a sociedade”, inevitavelmente a abordagem marxiana perde sua importancia e significado como uma irreprimf{vel “filosofia viva” e se transforma no monumental documento histérico de uma época passada, como ocorreu com outros grandes sistemas “totalizantes” antes dela. 308 Ciéncia, ideologia e metodologia Desse modo, paradoxalmente, a concepgao marxiana sé pode se tornar vito- riosa com a condicao de “falir” e deixar de ser a filosofia viva — isto é, o quadro orien- tador abrangente — das forgas mais progressistas da época. Isto pode soar perturbador para aqueles que estao cativados pela ideologia do cientificismo e querem transcender, de modo imagindrio, toda ideologia. Entretanto, as conseqiiéncias de se adotar 0 ponto de vista destes tiltimos so que se distorcem a origem e as caracterfsticas inerentes da abordagem marxiana, de modo a se adequar a pré-concepgao cientificista, e tornam completamente incompreensfveis os desenvol- vimentos subseqiientes da teoria original, realizados pelos seguidores de Marx. Passam a ser considerados “interpretag6es erréneas”, “desvios ideoldgicos”, “traigdes sociais” assemelhados. O problema, todavia, ¢ que caracterizacGes deste tipo, mesmo se des- critivamente corretas, limitam-se a colocar rétulos nos desenvolvimentos em questao, sem tentar compreender seus complexos determinantes e fung6es sociais no contexto vivo das novas condicoes histéricas. Na realidade, o quadro marxiano — em suas origens e transformac6es posterio- res — é ininteligfvel sem um pleno reconhecimento do papel ideoldgico vital que ele sempre teve (e tem) de desempenhar em face de outras ideologias. Por isso, nunca se deve esquecer que as “trés fontes do marxismo” ~a filosofia cléssica alema, a economia politica inglesa ¢ 0 socialismo utépico — ndo eram apenas fontes de que o marxismo tinha de se apropriar positivamente. Eram, ao mesmo tempo, os trés principais adver- sdrios ideolégicos da nova concepgao, na época de sua formulagao original por Marx. Elas foram elevadas a tal posicao-chave no novo quadro conceitual nao porque representassem — pois nao representavam — 0 outro extremo do espectro ideoldgico, e sim porque, além de seus méritos intrinsecos, exerciam uma influéncia muito deso- rientadora sobre o desenvolvimento do movimento da classe trabalhadora, influéncia da qual este tiltimo tinha de ser emancipado. Em outras palavras, eram identificadas como os interlocutores ¢ adversdrios ideolégicos mais importantes nao no plano abs- trato, enquanto potenciais opostos tedricos ao marxismo, mas precisamente enquan- to sistemas vivos de pensamento, cujo impacto tangfvel sobre o movimento socialista nao poderia deixar de ser desafiado. As mudangas subseqiientes na avaliac4o dessas “trés fontes”, ainda durante a vida de Marx, sem mencionar o desenvolvimento das abordagens marxistas no final do século XIX e no século XX, sé se tornam significa- tivas ante o pano de fundo das novas exigéncias ideolégicas do movimento interna- cional do trabalho, e nao como “descobertas teéricas” ficticias. E instrutivo recordar, quanto a este ponto, a mudanga significativa na opinido de Marx sobre Proudhon, que foi de uma empolgante simpatia 4 completa hostilidade. Do mesmo modo, a importancia de um didlogo critico com o socialismo utépico ja era muito menor no in{cio da década de 1850. Na verdade, mais tarde, em conseqiién- cia de uma confronta¢4o prdtica com os seguidores de Proudhon, que “tagarelam sobre ciéncia e nada sabem”, que “na verdade preconizam a ciéncia burguesa ordinaria, apenas proudhonisticamente idealizada”,? Marx resumiu sua posic4o em relagao as ° Marx, Carta a Kugelmann, 9 de outubro de 1866. Metodologia e ideologia 309 figuras de destaque do pensamento utépico francés e alemao — em contraste com Proudhon, a quem rejeitava neste contexto como “um filisteu utépico” — dizendo que, “nas utopias de um Fourier, um Owen, etc., hé o pressentimento e a expressao imagi- nativa de um mundo novo”."” Também em relacao a Hegel, a mudancga — em um sentido diametralmente oposto ao que ocorreu quanto a Proudhon, de uma avaliacao negativa mais sumaria nas primeiras obras até a avaliacao altamente positiva nos Grundrisse e em O capital, nao obstante algumas lendas completamente infundadas afirmando o contrdrio — é inseparavel de algumas controvérsias ideoldégicas “internas” contra Lange e outros. Lange, autor de A questdo trabalhista: seu significado para o presente e para o futuro (1865), que assumiu o papel de um “conciliador” no movimento alemao dos traba- Ihadores — e que, segundo Marx, “quer agradar a todos os lados” —,"' exerceu grande influéncia sobre o movimento da classe trabalhadora alema, defendendo uma posicao dogmaticamente anti-hegeliana e antidialética (as duas coisas estao freqiientemente juntas). Como Marx escreveu mais tard Herr Lange me elogia em voz alta, mas com o objetivo de tornar a si mesmo impor- tante. [...] O que o mesmo Lange diz a respeito do método hegeliano ¢ da aplicagio que faco dele ¢ realmente infantil. Antes de tudo, ele nao entende nada do método de Hegel, ¢ depois, em conseqiiéncia disso, muito menos ainda da aplicagao critica que faco dele. [...] Herr Lange se admira que Engels, eu, etc., levemos a sério esse cachorro morto que é Hegel, enquanto Biichner, Lange, dr. Dithring, Fechner, etc., acham que j4o enterraram — coitado — h4 muito tempo."* Exemplos deste tipo poderiam ser multiplicados, desde 0 contexto ideolégico historicamente determinado de A sagrada familia, A ideologia alema e A miséria da Filosofia até 0 Anti-Diihring de Engels. No que se refere & tiltima obra, 0 préprio Engels tornou absolutamente claro que nao foi a substancia intelectual do livro do dr. Diihring que o levou a escrever sua extensa refutagao critica a ele, mas o fato de que as pessoas estavam se “preparando para difundir esta doutrina de forma popularizada entre os trabalhadores”."* Tendo em mente desenvolvimentos teéricos e politico-intelectuais como esses, fica claro que, embora os amplos parametros metodolégicos de todos os grandes sis- temas de pensamento sejam estabelecidos para todo um periodo histérico, devem, mesmo assim, se redefinir constantemente como sistemas vivos, de acordo com as exigéncias praticas de suas fungées ideolégicas mutdveis. Devem entrar em didlogo critico uns com os outros e, assim fazendo, inevitavelmente levantam a problematica s6cio-historicamente especifica — na verdade, em princfpio “estranha” — de seus adver- sdrios ideoldgicos, ainda que apenas para “superd-los”, tanto na teoria quanto no terreno prdtico-organizacional das confrontag6es sociais reais. "Ibid = Marx, Carta a Engels, 11 de margo de 1865. 2 Marx, Carta a Kugelmann, 27 de janeiro de 1870. 8 Engels, Anti-Dithring: Herr Eugen Dithrings Revolution in Science, Londres, Lawrence & Wishart, 1975, p. 9. 310. Ciéncia, ideologia e metodologia 6.5 Radicalismo metodolégico e compromisso ideolégico 65.1 Um perfodo histérico sempre apresenta varias alternativas praticas, as quais sao, em diversos graus e dentro dos limites gerais de suas determinagées objetivas, vidveis para as forcas sociais em disputa. Por isso, a realizagao de uma tendéncia historica em de- senvolvimento — e nao se pode falar de necessidades histéricas senao em relagao a tendéncias mutantes, as vezes desconcertantemente “flexiveis” e, até certo ponto, re- versiveis — é decidida com base nas alternativas particulares que sao escolhidas, dentre todas as disponiveis, pelas forcas sociais envolvidas, no curso de suas interagdes objeti- vamente condicionadas. Em conseqiiéncia, elas precisam fazer ajustes reajustes rect- procos fandamentais em suas estratégias, de modo a alinha-las com as modificacoes de suas possibilidades objetivas de aco. Certamente, as restrigdes estruturais fundamentais, correspondentes as caracteris- ticas inerentes das forgas em questo, finalmente prevalecem, e cumulativamente até estreitam a margem de a¢ao possivel das forcas sociais rivais, uma em relagao 4 outra. Nao obstante, a escolha inevitavel de uma alternativa especifica em detrimento a ou- tras carrega um compromisso ideolégico igualmente inevitavel com determinada posi- go. Além disso, tal escolha também traz a necessidade de se realinhar & perspectiva geral, em sintonia com 0 curso de ac4o objetivamente adotado e implicito na alterna- tiva escolhida, combatendo desse modo nao apenas 0 adversdrio, mas até as possibili- dades rivais que poderiam surgir no mesmo lado da confrontagao social fundamental. E por isso que todo grande sistema de pensamento, inclusive a orientagdo marxiana da critica social, é simultanea, e “incorrigivelmente”, também uma ideologia. 6.5.2 Para ilustrar, basta a referéncia ao papel que o conceito de capital — definido como u sistema global que faz valer seu poder por meio do mercado mundial — desempenha’ no quadro marxiano. Em sua origem, estd ligado 4 concepgao hegeliana de “histéria do mundo” (0 dominio da auto-atividade do Espirito do Mundo), a qual a abordagem marxiana contrapéde um conjunto de acontecimentos e desenvolvimentos tangiveis € empiricamente identificaveis. Marx formula desta maneira sua contra-imagem materialista 4 concepcao he- geliana: Quanto mais as esferas separadas, que atuam umas sobre as outras, se estendem no decorrer deste desenvolvimento, ¢ quanto mais o isolamento original das nacionali- dades separadas é destruido pelo modo de produgao avangado, pelo relacionamento e pela divisio natural do trabalho entte varias nagGes que surge como conseqiiéncia disso, mais a histéria se torna histéria-do-mundo. Assim, pot exemplo, se na Ingla- terra for inventada uma maquina que priva de pao intimeros trabalhadores na [ndia e na China, e subverte toda a forma de existéncia destes impérios, esta invencao se torna um fato histérico-mundial.{...] Disso segue-se que esta transformacio da histéria em histéria-do-mundo nao é um simples ato abstrato da “autoconsciéncia”, do espirito do mundo ou de qualquer outro espectro metafisico, mas um ato absolutamente material, empiricamente verificdvel, um ato cuja comprovacao é apresentada por todo Metodologia e ideologia 311 individuo & medida que ele vem e vai, come, bebe ¢ se veste. Na histéria até o presen- te, é certamente também um fato empirico que individuos isolados, com a ampliagio de sua atividade em atividade histérico-mundial, se tornaram cada vez mais escravos de um poder estranho a eles (pressao essa que conceberam como um truque sujo por par- te do chamado espirito do mundo, etc.), poder que se tem tornado cada vez maior e, em tiltima instancia, transforma-se no mercado mundial.“ Naturalmente, esta visio da histéria do mundo, concebida como o desdo- bramento universal do modo de producao mais avangado na estrutura de um merca- do mundial plenamente desenvolvido, trazia com ele uma visao correspondente da solugao dos antagonismos destrutivos da ordem social tratada. Por um lado, ela con- siderava, como condigGes necessérias de sua realiza¢ao, o nivel de produtividade mais alto possivel (que implicava a superagao das barreiras e contradigoes locais e nacio nais, assim como a integracao benéfica e a racionalizacao cooperativa da produga material ¢ intelectual em uma escala global). E, por outro, antecipava, como conse- qiiéncia necessdria do cardter global da tarefa identificada, a agao combinada das na- 6es industrialmente mais poderosas, de modo a realizar a nova — em seu modo de funcionamento objetivo, “universal”, e em seu espfrito conscientemente internacio- nalista — ordem social. Citando Marx outra vez: este desenvolvimento das forcas produtivas (que ao mesmo tempo implica a existéncia empirica real dos homens em seu ser histérico-mundial, em vez de local) é uma premis- sa prética absolutamente necesséria, pois de sua auséncia decorre a simples generali- zacio da escassez e da privacio; com a escassez, a luta pelas necessidades recomecaria, ¢ toda a antiga imundicie voltaria necessariamente & existéncia; além disso, porque somente com este desenvolvimento universal das forcas produtivas é estabelecido um relacionamento universal entre os homens, o que por um lado produz.em todas as nagdes simultaneamente 0 fenémeno da massa “sem propriedade” (competicio universal), fazendo cada nacio dependente das revolugées das outras, e, finalmente, coloca individuos historico-mundiais, empiricamente universais, no lugar dos individuos locais. piricamente, 0 comunismo $6 € possivel como 0 ato “conjunto” e simultdneo dos povos dominantes, o que pressupée 0 desenvolvimento universal das forcas produtivas € 0 relacionamento mundial a elas vinculado.'* E af que podemos identificar claramente nao apenas a superioridade da concep- ¢4o materialista da histéria em relacao as concepgées idealistas, inclusive a hegeliana, mas também as grandes dificuldades que acompanham a adogao da abordagem mar- xiana porque, no que se refere as filosofias idealistas, o 6nus da prova material quanto “ MECW, vol. 5, p. 50-1. } Tbid., p. 49. Pouco mais adiante, Marx acrescenta no mesmo espitito: “a verdadeira riqueza intelectual do indi 08 individuos isolados das varias barreiras nacionais ¢ locais, levando-os 3 conexio pritica com a produgio (incluindo a produgao intelectual) do mundo todo e tornando-lhes possivel adquirir a capacidade de desfru- tar desta produgdo total do mundo todo (as criagées do homem). A dependéncia geral, esta forma ‘natural’ primordial da cooperagao histérico-mundial dos individuos, sera transformada por esta revolucao comunista no controle e no dominio consciente sobre estes poderes, que, nascidos da a¢ao dos homens em relagio uns aos outros, tém até agora intimidado e dominado a estes como poderes completamente alienados deles” (ibid., p. 51-2). duo depende inteiramente da riqueza de suas verdadeiras conexdes. Somente isto conseguird libertar 312 Ciéncia, ideologia e metodologia a realizacao pratica das tendéncias histéricas — compreendidas 4 medida que se fazem valer nas circunstancias objetivas dos individuos reais que buscam seus objetivos c dentro de uma rede de determinagoes sociais complexas — nao existe e nao pode exis- tir. Isso torna compreensivel a razdo de a primeira grande concepgao da histéria do mundo — a hegeliana — ter sido articulada como um sistema idealista. Como tal, ela pode facilmente, sem incoeréncia conceitual, deixar de lado as imensas complicagdes envolvidas na demonstragao do desdobramento contraditério de uma totalidade his- torica realmente integrada (isto é, de um modo socialmente tangivel) em escala glo- bal, sob dominio do capital. Operar dentro do quadro conceitual idealista permitia aos filésofos substituir as provas materiais requeridas pelas abstrag6es conveniente-, mente maledveis ¢ essencialmente circulares do Espirito do Mundo “auto-alienante” KD e “auto-realizador”. As dificuldades de Marx, no entanto, eram insepardveis da adogio dos princi- pios orientadores materialistas e do correspondente método histérico e dialético. O aspecto problematico da visao manifestada nas duas tiltimas citag6es nfo era sua rele- vancia ao novo perfodo histérico como um todo — 0 que nao pode ser contestado, exceto a partir de um ponto de vista aprioristicamente hostil —, mas sua relagao com a situaco real na maior parte do mundo, na época de sua concep¢ao. Porque mesmo hoje, 143 anos depois, a “existéncia empirica real dos homens em seu ser histérico- mundial, em vez de local”, est4 longe de ser uma realidade plenamente concretizada, pois o “desenvolvimento universal das forcas produtivas e o relacionamento mundial alas vinculado” esta ainda em processo, um tanto contraditério, de desdobramento, com grandes controvérsias que afetam a avaliacdo tanto de sua escala de tempo fecsil quanto das modalidades de sua realizacgao pratica. Desse modo, a afirmagao de que “o comunismo sé é possfvel como 0 ato ‘con- junto’ e simultaneo” dos povos dominantes permanece plausfvel como a “premissa pratica absolutamente necesséria” e a caracterizacao das condigées de uma transi¢ao bem-sucedida do perfodo capitalista para a nova ordem social, em uma escala nao mais vulnerdvel & intervencio externa e 4 subversio. Obviamente, no entanto, esta afirma- Ao se torna muito problemdtica quando se tenta interpret4-la como uma declaragao profética sobre as formas especificas do colapso do capital ou como um guia estraté- gico que indica os passos mediadores necessariamente parciais rumo ao futuro. Compreensivelmente, Marx fez uma escolha consciente quanto a estratégia a ser defendida, ¢ se identificou com a alternativa escolhida com um compromisso ideolégico apaixonado. Estava constante e ansiosamente 4 procura dos sinais da crise iminente,'° Eis aqui uma selecéo das passagens relevantes de suas cartas sobre este ponto, limitadas aos anos 1857-58: “Na Inglaterra, as coisas afinal se precipitario” (Carta a Engels, 18 de margo de 1857). “A crise norte-americana ~ sua irrupgio em Nova York foi prevista por nés na Revue de novembro de 1850 ~€ bonita e teve repercuss6es imediatas na indhistria francesa, pois os produtos de seda esto agora muito mais baratos em Nova York do que os produzidos em Lyon.” (Carta a Engels, 20 de outubro de 1857.) “O panico monetério em Londres foi abrandado em certa medida durante os tiltimos dias, mas logo reco- megart [...]. Quanto aos Estados Unidos, parece quase certo que, como resultado da crise, os protecionistas prevalecerio. No que se refere aos respeitaveis ingleses, isto terd repercuss6es duradouras e desagradéveis. [uu] Jones esté desempenhando um papel muito estipido. Como vocé sabe, muito antes da crise e sem Metodologia e ideologia 313 até em circunstancias de pentiria e adversidade pessoal — as vezes insuportdveis.'’ Como confessou em uma carta: nenhum objetivo particular em vista, a nao ser criar um pretexto para a agitacdo durante a calmaria, ele propés a realizacéo de uma conferéncia cartista a que seriam convidados radicais burgueses (no apenas Bright, mas até mesmo gente como Cunningham). [...] Agora, em vex de fazer uso da crise e substituir pela agitacdo genuina um pretexto mal escolhido para a agitagao, ele se apega ao seu disparate; escandaliza os trabalhadores pregando a cooperagao com os burgueses [..].” (Carta a Engels, 24 de novembro de 1857.) “As medidas politicas contra as exportagées de metais em barra, atualmente em pleno vigor na Franga, [...] adiaram por uma ou duas semanas 0 escoamento de metais em barra do Banco da Franca. Nao obstante, 0 escoamento vai comecar, e mesmo que, como em 1856 (outubro), nao dure muito, a catéstrofe ser com- pleta. Enquanto isso, os industriais franceses esto tratando seus trabalhadores de modo téo implacavel que nem parece ter havido uma revolugio. Isto serd vantajoso[...]. Estou trabalhando feito louco todas as noites reunindo meus estudos econdmicos para pelo menos conseguir realizar o plano geral [os Grundrisse] antes do diltivio. Visto que Lupus [Wilhelm Wolff, trabalhador revolucionério e seu amigo {ntimo] mantém tum registro regular das nossas previsdes de crises, diga-lhe que The Economist do iiltimo sabado afirma que, durante 0s tiltimos meses de 1853, todo o ano de 1854, 0 outono de 1855 ¢ ‘as repentinas mudangas de 1856’, a Europa nunca esteve to préxima da catéstrofe.” (Carta a Engels, 8 de dezembro de 1857. Engels respondeu a tiltima frase em uma carta a Marx, datada de 17 de dezembro de 1857: “Lupus esté se descul- pando; nés estavamos certos”.) “Estou trabalhando muito, normalmente até as quatro horas da manha. Estou realizando uma dupla tarefa: 1) Preparar um plano geral da economia politica. (...]. 2. A crise atual. Com excecdo dos artigos para 0 Tribune, tudo 0 que faco € registrar tudo o que se refere & crise, © que, no entanto, consome um tempo enorme. Penso que, talvez por volta da primavera, devemos escrever juntos um panfleto sobre a questio como um lembrete ao puiblico alemao de que ainda continuamos vivos, e sempre os mesmos. [Itdlicos de ‘Marx.] Iniciei trés grandes livros de registros ~ Inglaterra, Alemanha e Franca. Todo o material sobre a questo norte-americana esta disponivel no Tribune e pode ser reunido depois. [...] Escreva-me sempre que Liver tempo, pois mais tarde vocé certamente vai esquecer toda a ‘chronique scandaleuse’ da crise, de tanto valor para nés.” (Carta a Engels, 18 de dezembro de 1857.) “A atual crise comercial levou-me a comecar a trabalhar seriamente em meu plano geral da economia poli- tica, e também a preparar algo sobre a crise atual.” (Carta a Ferdinand Lassalle, 21 de dezembro de 1857.) “A propria crise francesa ndo vai irromper até que a crise genal tenha atingido um certo grau na Holanda, na Bélgica, no Zollverein {unio alfandegéria), na Itdlia (incluindo Trieste), na parte oriental do Mediterraneo ena Riissia [..]. Quando a crise francesa irromper, vai ser o diabo tanto para mercado de valores quanto para os valores daquele mercado, o Estado |...]. Toda a velha estrutura apodrecida esté ruindo, e a grotesca cortida ao mercado de valores na Inglaterra, etc., que tem ocorrido até agora, também vai terminar em desastre.” (Carta a Engels, 25 de dezembro de 1857.) “Agora que estou finalmente pronto para comecar a trabalhar, depois de quinze anos de estudo, sinto uma sensacao desconfortivel de que movimentos turbulentos vindos de fora provavelmente vio interferit. Nao importa. Se eu terminar muito tarde e por isso jd nao encontrar o mundo atento a tais questdes, a culpa serd claramente minha [...]. Perfodos turbulentos esto A vista. Se eu simplesmente consultasse minhas préprias inclinag6es, desejaria mais alguns anos de calma aparente. Nao haveria época melhor para empreendimen- tos intelectuais [...]. Entretanto, todas estas nao passam de ruminagées prosaicas que sero varridas pela primeira tempestade.” (Carta a Lassalle, 22 de fevereiro de 1858.) “Nao hé diivida de que haveré uma quebradeira na Franca, seguida por fatos semelhantes na Bélgica, na Holanda, na Prissia Renana, etc. Na Itdlia, a situagao € realmente ameacadora [...] No todo, a crise vai avancando lenta e silenciosamente, como uma velha toupeira.” (Carta a Engels, 22 de fevereiro de 1858.) “A historia estd prestes a comecar de novo, ¢ os sinais de dissolugZo em toda parte sao prazerosos para todo aquele que nao se curva & manutengio das coisas como elas esto.” (Carta a Lassalle, 31 de maio de 1858.) Ele escreveu a Engels em fevereiro de 1857: “Visto que, em meio A minha prépria crise, € muito edificante para mim ouvir falar em crises, mande-me algumas linhas contando como esto as coisas nos distritos indus- ttiais. Nao esto boas, segundo as reportagens dos jornais londsinos”. (Carta a Engels, 24 de fevereito de 1857.) Nove meses mais tarde retomou o tema no mesmo tom: “Embora minhas dificuldades financeiras sejam medonhas, jamais, desde 1849, eu me senti tio bem quanto durante esta insurreiga0” (Carta a Engels, 13 de novembro de 1857). E sua atitude permaneceu a mesma, até quando teve de tornar clara sua percep¢io 314 Ciéncia, ideologia e metodologia Tive de usar cada momento em que era capaz de trabalhar para terminar a tarefa & qual sacrifiquei minha satide, minha felicidade na vida e minha familia. [...] Eu rio dos chamados homens “préticos” e de sua sabedoria. Se alguém escolhesse ser um boi, poderia evidentemente voltar as costas para as agonias da humanidade e cuidar de sua prépria pele, Mas eu certamente teria me considerado inepto se tivesse morrido sem terminar completamente meu livro, pelo menos no manuscrito."* Desnecessério afirmar que a perspectiva de se tornar um “homem pritico” era rejeitada por Marx com desprezo, apesar dos pesados dilemas pessoais que sua atitude “endurecida” necessariamente acarretava. Mas, até quando a dtivida sobre as implicag6es do desenvolvimento global ainda ascendente do capital entrava em seu horizonte de considerag6es,"” se recusava a mudar sua posicao. Considerando as possiveis armadilhas estratégicas dessas implicagées para a adocao de uma perspectiva desmobilizadora pelo movimento da classe trabalhadora, recusou fazer concessdes 4 margem de manobra da ordem capitalista para deslocar, senao para superar, suas contradig6es internas. Pelo contrario, continuou a se concentrar naqueles sinais que apontavam para uma ruptura dinamica e iminente. Exemplos neste sentido variam desde 0 modo como saudou o movimento dos escravos na América e dos servos na Russia” até sua tentativa de teo- rizat, em sua correspondéncia com Vera Zassulitch, as potencialidades positivas de uma transformagao socialista que se iniciava na Russia capitalisticamente atrasada. 6.6 A unidade metodolégica da ciéncia e da ideologia 6.6.1 Inevitavelmente, entao, a “ciéncia proletdria” de Marx, conscientemente oposta a “ciéncia burguesa comum”2! de Proudhon e seus seguidores — ou, neste ponto, a qual- quer outro que imaginasse que a teoria social cientifica, como “ciéncia” pura e simples, pudesse ser separada e artificialmente contraposta 4 ideologia —, representou a unidade dialética das aquisicées tedricas ¢ das determinagoes de valor que era possivel nas condigées sécio-histéricas dadas. Marx tratava com sarcasmo a postura pseudocienti- fica dos “representantes da ‘jovem Franca’ (nao trabalhadores)” que rejeitavam suma- riamente as visGes de seus oponentes como “preconceitos antiquados”, esperando a da amarga ironia inerente & situago, em sua confissio a Engels: “Pessoalmente, posso me enterrar no tra- balho e fugit da misére, dedicando minha atencio as wniversalidades. Minha mulher, evidentemente, nao possui tal refiigio”. (Carta a Engels, 28 de janeiro de 1858.) "© Marx, Carta a S, Meyer, 30 de abril de 1867. Ver Marx, Carta a Engels datada de 8 de outubro de 1858. “Em minha opinio, as coisas mais importantes que esto acontecendo atualmente no mundo séo, por um lado, 0 movimento dos escravos na América, iniciado com a morte de John Brown, ¢, por outro, o movi- mento dos servos na Ruissia. Voce terd percebido que a aristocracia russa se langou inteiramente na agitacao por uma constituigao e que duas ou trés pessoas das principais familias jé encontraram seu caminho para a Sibétia. Ao mesmo tempo, Alexandre estragou as coisas com os camponeses através do tiltimo manifesto, que declara sem rodeios que o ‘principio comunista’ deve acabar com a emancipacao. Assim sendo, 0 mo- vimento ‘social’ comegou no Ocidente ¢ no Oriente. Isto, acrescido & esperada derrocada da Europa central, sera grandioso.” (Carta a Engels, 11 de janeiro de 1860.) *| Marx, Carta a Kugelmann, 13 de outubro de 1866. Metodologia e ideologia 315 salvag4o, com uma arrogincia intelectual caracteristica, da gradual concretizagao de uma conformidade global com seu “stirnerismo proudhonizado”.” E zombou de sua posigao dizendo que eles se comportavam como se, no meio tempo, a histéria v4 parar em todos os outros paises ¢ todo o mundo espere até que os fran- ceses estejam prontos para uma revolucao social. Eles ento realizardo a experiéncia diante de nossos olhos, ¢ 0 resto do mundo, arrastado pela forca de seu exemplo, fard o mesmo. Exatamente 0 que Fourier esperava de seu modelo de falanstério. Além disso, todo aquele que complica a questo “social” com as “superstiges” do mundo é um “reaciondrio”.”* Marx, portanto, nao vé qualquer utilidade para uma idéia de ciéncia que pudesse ser separada, ainda que por um momento, de um compromisso social praticamente vidvel. Neste sentido, a inextricavel unidade da ciéncia e da ideologia na obra de Marx, longe de ser um obstdculo ao aprofundamento teérico, constituiu sua motivagao pessoal, sua justificagao e sua importncia prdtica. Além disso, quanto 4 metodologia, o reconhecimento explicito (e aceitacao consciente) das inevitéveis determinagdes ideolégicas atuantes na constituicao de qualquer sintese tedrica representativa permi- tia a Marx, por um lado, apreender criticamente 0 verdadeiro cardter e a estrutura interna das concep¢6es do passado; e, por outro, lhe possibilitava assumir uma posigao incomparavelmente mais autocritica em relagao a seu préprio trabalho — explicado dentro e em relagao a seu ambiente social especifico — do que qualquer outro antes dele. Na verdade, elevou a autocritica ao status de principio metodoldégico fundamental precisamente em virtude de seu papel-chave, tanto para o aprofundamento teédrico quanto para possibilitar ao movimento social do proletariado superar as inevitaveis contradigées e as falhas de sua realizacao pratica. Visto que a op¢ao de Marx por uma alternativa especifica — 0 princfpio orienta- dor da viséo de mundo e da estratégia por ele defendida — rejeitava, em razio de suas implicag6es potencialmente desmobilizadoras, a ascendéncia global do capital, bus- cando aberturas radicais em uma direcao decididamente oposta a tais perspectivas, sua teoria representava, é claro, um “atalho” em direcgdo a um estado da sociedade que ainda hoje esté longe de se realizar. Entretanto, reconhecer isso nao implica questionar a validade de sua visio para esta época historica. E, caracteristica metodolégica importante das sinteses tedricas re- presentativas de toda uma época que elas tendem a concentrar seus esforgos em tragar as linhas fundamentais de demarcagao, e por essa causa nao podem articular sua pré- pria abordagem sem previsdes e atalhos. Em contraste com isso, as tendéncias histéricas concretas nao podem seguir obedientemente nenhum modelo, seja ele “classico” ou 2 Marx, Carta a Engels, 20 de junho de 1866. Ibid. Com referéncia 20 “socialismo proudhonista agora em moda na Franca’, Marx insiste: “o comunismo deve acima de tudo se libertar deste falso irmao” (Carta a Weydemeyer, 1° de fevereiro de 1859). Acompanha 0s destinos de Proudhon e seus seguidores com profundo interesse, relatando a Engels em 1856 que “Prou- dhon se tornou diretor das ferrovias imperiais reais” (Carta a Engels, 29 de fevereiro de 1856), ea Lassalle em 1859 que “diz-se que Proudhon ficou louco e foi internado em um asilo em Bruxelas” (Carta a Lassalle, 10 de junho de 1859). 316 Ciéncia, ideologia e metodologia nao, por mais cuidadosamente que seja formulado, e mesmo que seja a partir do ponto de vista historicamente mais avancado. Nunca ser4 demasiado insistir que em nenhum momento € possivel prever em detalhes, quanto ao futuro distante ainda a ser construfdo, o inevitdvel impacto reciproco das varias forgas interagindo, bem como os “desvios” em relagdo a um curso de agao anteriormente concebido e implementado. Disso tudo segue-se que as complicagées teéricas (e praticas) — manifestas tam- bém no plano metodoldgico — nao sé podem, como devem surgir de acordo com circunstincias, limitagdes e contradigdes especificas dos movimentos associados perspectiva marxiana, mesmo antes da conquista do poder. Naturalmente, tal propo- sicdo é ainda mais verdadeira depois desse avanco, quando um determinado “caminho para o socialismo” é adotado, com sua prépria estratégia de desenvolvimento que eleva ao status de modelo geral a “forga das circunstancias” e a margem de a¢ao dispo- nivel e historicamente limitada e limitadora. Por isso — em lugar da tranqiiila conti- nuidade de desenvolvimento de um marxismo ideal abstrato -, a histéria, de fato, produz uma multiplicidade de marxismos competindo uns com os outros e as vezes até se enfrentando hostilmente. 6.6.2 Todavia, por maiores que sejam os desvios tedricos e praticos em relagdo ao curso de desenvolvimento originalmente previsto, duas condig6es vitais permanecem operantes em meio as mais diversas determinagdes ideolégicas. (Sem elas, um relativismo ex- tremo dominaria ~ e paralisaria — os movimentos cujas estratégias as tendéncias rivais do marxismo tentam articular.) Em primeiro lugar, as varias abordagens marxistas (na medida em que estejam realmente comprometidas com a perspectiva marxiana, indo além dos meros compro- metimentos “da boca para fora”, qualquer que seja a raz4o histérica ou tatica destes c uiltimos) devem conservar tanto as idéias centrais como os correspondentes principios metodolégicos da concepsio original. Quanto a isto, nao é acidental que a socialdemocratizagéo oportunista do mo- vimento da classe trabalhadora estivesse associada, no plano da metodologia, a um “evolucionismo” e a um “cientificismo” mecanicamente orientados para a quantidade, ao corolério natural dos mesmos: a rejeigao da dialética das contradigées objetivas das mudangas qualitativas (revoluciondrias). Como disse Engels, com razao: “Marx e e fomos os tinicos a resgatar a dialética consciente da filosofia idealista alema e a aplica- la a concepgao materialista da natureza e da histéria”.** Assim, tomando-se apenas um exemplo, descrever o principio dialético da “negacao da negagao” — que aparece nos escritos de Marx em varios contextos — como “truques verbais”, como o fez 0 dr. Dithring, ou como uma “intrusao inadmissfvel do hegelianismo no materialismo cientffico”, em uma fraseologia mais recentemente em moda, sao manifestagdes da mesma “podridao positivista” de que Marx ja se queixava.”* ™ Engels, Anti-Dithring, Lawrence & Wishart, Londres, 1975, p. 15. Ver a Carta a Engels, de Marx, em que ele falava sobre esta “podridio positivista” e descrevia os escritos de Comte como “paupérrimos em comparacéo com Hegel”, 7 de julho de 1866. Metodologia e ideologia 317 Caracteristicamente, um dos modos pelos quais se procurou tirar do marxismo a objetividade das determinagées dialéticas consistia em afirmar que eram uma inven¢io de Engels, que falava sobre a dialética nao apenas na histéria, mas, horribile dictu, tam- bém na natureza. Isto, insistiam, devia ser rejeitado como incompativel com os pré- prios escritos de Marx. No entanto, os préprios fatos, mais uma vez, dizem outra coisa. Se alguém é “culpado” nesse ponto, certamente é 0 préprio Marx, que escreveu a Engels, quase dez anos antes de este ultimo comegar a escrever sua Dialética da natureza: Vocé também verd, pela conclusio do meu capftulo III [de O capital], no qual se menciona a transformacdo do mestre-artesio em um capitalista — como resultado “E mudancas puramente quantitativas —, que no texto afirmo que a lei descoberta por Hegel, de mudangas puramente quantitativas acabam se transformando em mudangas qualitativas, vale tanto na histéria quanto nas ciéncias naturais.6 A segunda condigo vital que, apesar de tudo, permanece operativa, sustentand ¢ justificando também a primeira condicio, diz respeito ao ponto final histérico real da ascendéncia global do capital. E esta que, em tiltima andlise, decide a questao, ativando as contradigées estruturais do sistema produtivo injusto e destrutivo do ca- pital e de seu modo de controle social universalmente desumanizador. Com relagao & teoria, tal determinagao geral tem incidéncia pratica importante. Sem dtivida, as variedades particulares do marxismo esto intimamente ligadas, em suas fungdes mediadoras, a seu ambiente sécio-histérico espectfico, nao apenas re- fletindo necessariamente as limitagGes praticas de sua situacgao, mas também, ipso facto, assumindo a problemdtica ideolégica de seu adversdrio, sob a forma de conces- sdes importantes. Nao obstante, por mais que sejam compreensiveis as determinagées particulares e as exigéncias mediadoras que se originam da contingéncia hist6rica dada, a concep¢io original da “nova forma histérica” — que, como tal, nao admite em sua estrutura conciliagdes com a velha ordem social — deve, por fim, prevalecer. Quanto as “concessdes histéricas” realmente inevitdveis, n4o estamos nos refe- rindo a estratégia mal concebida e malograda do “eurocomunismo”, que consciente- mente pretendia estabelecer 0 que chamava de “grande concessao histérica”, mas & necessidade de ajustes rec{procos nas a¢ées das principais forgas em oposi¢ao, em seus confrontos reais. Quaisquer que sejam os objetivos imediatos das partes envolvidas, seus ajustes reciprocos nao podem deixar de ser concessdes histéricas, se vistos a partir da perspectiva marxiana que aponta para uma transformagao socialista radical e total da ordem social dominante. ‘As inevitaveis restrigdes de tais ajustes e concessées so determinadas, evidente- mente, pelas circunstancias histéricas prevalecentes e pela relagao de forgas em mu- danga. Dadas certas presses muito grandes, como o perigoso estégio da corrida 2% Marx, Carta a Engels, 22 de junho de 1867. ‘A mesma carta, escrita por ocasiao da primeira publicagéo de O capital, contém também a frase em que Marx diz: “Espero que a burguesia se recorde de meus carbtinculos pelo resto de sua vida”. Mostrando a profunda paixao ideolégica e o comprometimento de sua “ciéncia proletéria’, ele fala nesta carta, no mesmo falego, sobre provas cientificas ¢ leis dialéticas como os “vampiros da lico de casa”, da luta em que ele estd pessoalmente envolvido (através de sua posicao na Internacional) pela “aboligio da tortura de um milhao e meio de seres humanos”, de “outra prova do que s4o os suinos [a burguesia]”, etc. 318 Ciéncia, ideologia e metodologia armamentista, ou a extrema dificuldade de garantir as condices materiais da “acumu- lag4o origindria” (seja ela chamada “acumulagao do capital” ou “acumulagao socialista”) na escala necessdria, € em princfpio concebivel que a abordagem marxiana, com sua atitude radicalmente inflexivel em afirmar a tinica so/ugdo factivel — genuinamente socialista — para os antagonismos estruturais da sociedade, tenha de ser posta de lado por um periodo significativo, até mesmo em pafses que declaram estar envolvidos na construcio do socialismo. Entretanto, ver solugGes permanentes nos ajustes e concessdes tempordrios, por mais que sejam necessdrios nas circunstancias prevalecentes, seria tao ingénuo quanto imaginar que a intengao modernizadora da atual lideranga chinesa possa transformar toda a China em uma grande Hong Kong. Nao se deve confundir a escala de tempo e as modalidades de transformagio socialista em determinadas regides com o terminus ad quem — 0 resultado geral — do processo social que se desenvolve em nivel global. As “concessdes histéricas” nao eliminam as contradigées subjacentes; apenas modificam suas condig6es de irrupgao e eventual resolucao. 2 No fim, nao pode haver “meio-termo” entre Xdminacio do capital e a trans- formagao socialista da sociedade em escala global. E isso por sua vez implica necessa- riamente que os antagonismos inerentes ao capital devem ser “resolvidos pela luta” até uma conclusao irrevers{vel e estruturalmente garantida. Isto é inevitavel, mesmo que o modo pelo qual o processo de “combate” se desenrola, por um perfodo histérico longo e continuo, sé possa ser considerado uma genuina superagao (Aufhebung) produzida pelas complexas interdeterminacoes da “continuidade na descontinuidade e da descontinuidade na continuidade”, no sentido indicado pela dialética das “mu- dangas quantitativas se transformando em mudangas qualitativas”. Ou seja, um: dialética objetiva de reciprocidades que a “filosofia viva” socialista da época deve re- fletir tanto em sua complexidade metodolégica como em sua orientacio tedrica ideologica- mente sustentada (e constantemente reforgada) rumo ao terminus ad quem da viagem. E neste sentido que a concepgio marxiana, apesar das flutuag6es causadas pelas varias “concessées histéricas”, permanece metodoldgica e teoricamente valida para toda a época histérica de transigao do dom{nio do capital para a nova ordem social, gracas a vitalidade ideoldgica e ao discernimento cientifico nela manifestados em unidade dialética, 6.7 Antagonismos sociais e disputas metodolégicas 6.7.1 A preocupagao intensa com problemas de método é particularmente pronunciada em periodos histéricos de crise e transicao. Em tais perfodos, quando a ideologia anterior- mente preponderante das classes dominantes nao pode mais ignorar ou simplesmen- te p6r de lado seu adversério, as reivindicagdes hegeménicas de ambos os lados devem ser formuladas de maneira que os mais abrangentes principios metatedricos e meto- dolégicos dos sistemas rivais se tornem explicitos. Isto acontece precisamente para reforgar as aspiragdes mutuamente exclusivas das partes opostas a ocupar a posi¢ao dominante, tanto tedrica quanto pratica, na sociedade. Metodologia e ideologia 319 No caso da velha ideologia, geralmente isso significa a adogao de alguma forma de academicismo (ou metodologia pela metodologia), com a ajuda do qual —em nome das regras, modelos e paradigmas formais estabelecidos — as abordagens alternativas podem ser a priori desacreditadas e banidas do quadro legitimo do discurso. Na rea- lidade, sao rejeitadas em virtude da desafiadora novidade de seus conteridos e dos métodos correspondentes. Entretanto, por razées ideoldgicas, as motivag6es reais nao podem ser abertamente admitidas. Conseqiientemente, a acusagao deve ser formulada de modo que parega referir-se apenas 4 suposta violagao de alguma regra de ldgica universalmente valida. Como 0 sistema antigo precisa incorporar e defender os interesses fundamen- tais da ordem estabelecida, nao pode se renovar sob as condigées de retrocesso social — por mais bem-sucedido que seja em reproduzir-se como a “filosofia viva” das forcas dominantes — quanto a contetidos significativos e abrangentemente validos, nao obstante suas reivindicag6es universalistas. Daf a tendéncia geral para 0 formalismo metodolégico (utilizado para dar substancia para as vazias aspiragGes 4 “universali dade”) e para a metodologia pela metodologia: aspectos particularmente proemi- nentes no século XX, mas de modo algum a ele limitados. Visto que os argumentos do adversdrio nao podem ser enfrentados no plano de proposigées substantivas, 0 método da “refutacao” toma uma forma inerentemente, falaciosa, pois alguns critérios formais arbitrariamente assumidos sao utilizados para rejeitar categoricamente os conteidos essenciais do sistema rival — declarando-os me- todologicamente ilegitimos. A abordagem do “fim da ideologia” — assim como outras teorias do mesmo tipo, tanto antes como depois do surgimento desta forma particular de ideologia — exibe em seu modo de raciocinio este formalismo e apriorismo metodo- légicos falaciosos, pois deduzem do suposto desvio do adversdrio em relagao a uma regra geral (de “objetividade cientifica’, “neutralidade axioldgica”, “isengao ideoldgica”, etc.), estipulada mas jamais provada, a radical insustentabilidade de suas proposigées substan- tivas especificas. Assim, desqualificam formalmente, com a ajuda de critérios de defi- nico circularmente auto-isentadores, as idéias e estratégias praticas do outro lado, que deveriam ter seu contetido concretamente analisado e avaliado a luz da evidéncia disponfvel. Paradoxalmente, portanto, a excessiva orientacéo metodoldgica de tais abordagens, embora ostensivamente “antiideolégicas”, manifesta, de fato, uma adesao ideolégica muito mais intensa — caracterfstica de épocas de forte conflito social — aos imperativos e aos valores estruturais da ordem estabelecida. Ou seja, uma adesao mais intensa e de maior consciéncia de classe do que aquilo que se pode ver, geralmente, em circunstancias histéricas de menor polarizacao. 6.7.2 Ao mesmostempo, as ideologias das forgas sociais em ascensao também devem expor a importancia de sua posi¢ao, tracando claramente as linhas metodoldgicas de demar- cag&o por meio das quais as diferencas em relacao aos adversdrios possam ser apresen- tadas de modo mais marcante. De fato, as afirmagoes de sua novidade radical e vali- dade geral simplesmente nao podem ser articuladas sem a rigorosa formulagao da nova abordagem em termos metodolégicos explicitos. A prépria natureza do empreen- 320. Ciéncia, ideologia e metodologia dimento e as condigées inevitavelmente “prematuras”, sob as quais sua implementagao deve se dar, levam a que tal formulagao necessariamente contenha, entre outras coisas, previsdes do futuro. Conseqiientemente, na auséncia de outras provas da viabilidade da estructura defendida, as forgas em ascensao devem afirmar e sustentar suas reivindi- cagdes demonstrando a coeréncia teérica e o potencial libertador da nova abordagem em virtude de seu radicalismo metodoldgico e de sua universalidade abrangente. Isso nao é menos verdade em relacao a Bacon e a Descartes (que continuam a partilhar, em aspectos importantes, os pressupostos de seus adversdrios escoldsticos) do que em relagdo 4 “revolugao copernicana” de Kant; e nao menos em relagao a dialética hege- liana do que a reorientacao radical da filosofia por Marx.” 6.8 O significado da “garantia metodoldgica” de Lukécs 6.8.1 HA perfodos em que, devido a um retrocesso histérico, um apelo direto ao significado orientador da nova metodologia parece ser o sinico modo de reafirmar a validade continua das perspectivas gerais da teoria em questao diante de circunstancias histé- ricas altamente desfavordveis. Exemplo frisante deste fato é Histéria e consciéncia de classe, de Lukacs, escrita apés a derrota militar da Republica Htingara dos Conselhos e a restauragao da domi- nagio e estabilidade internacionais do capital, apés 0 curto interltidio revoluciondrio iniciado pela Revolugao Russa. Quando Lukdcs afirmou, nessa obra, que “ao partido é designado o papel subli- me de portador da consciéncia de classe do proletariado e da consciéncia de sua voca- 40 histérica”, ele o fez em aberta contestacao 4 “visdo superficialmente mais ativa e ‘realista’ [que] atribui ao partido tarefas referentes predominante ou exclusivamente 4 organizacao”.® Nesta avaliagao desafiadora das condigées histéricas prevalecentes, atribuiu-se 4 classe trabalhadora — nao obstante sua estratificagao internamente divi- siva e de sua submissao acomodaticia ao poder do capital — sua consciéncia de classe totalizadora e se consignou ao partido o papel de real portador daquela consciéncia, apesar das tendéncias claramente identificdveis e altamente perturbadoras do “realismo” estreito e da burocratizagao no movimento comunista internacional. Assim, na auséncia das condigoes objetivas requeridas, a idéia de uma totalizagao consciente dos multiplos processos sociais conflitantes rumo a uma transformagao so- cialista radical se tornou extremamente problematica. Ela teve de ser transformada em um postulado metodolégico para ser mantida viva para o futuro, e foi preciso criar uma teoria capaz de afirmar e reafirmar sua prépria validade diante de quaisquer der- rotas e decepgdes que o futuro concreto pudesse ainda reservar para 0 movimento socialista acuado. Discuti alguns problemas correlatos em um ensaio intitulado “II rinnovamento del marxismo ¢ lattualita storica dell offensiva socialista”, Problemi del Socialismo, n. 23, janeiro-abril de 1982, p. 5-141. Ver em particular as segdes I/1 (“Liincompiuto progetto di Marx: scopo, metodo ¢ risultati”, p. 7-13) ¢ 11/6 (“Am- biguita temporali e mediazioni mancanti”, p. 92-9). * Lukécs, History and Class Consciousness, Londres, Merlin Press, 1971, p. 41. Metodologia e ideologia 321 Contra as circunstancias esmagadoramente negativas que prevaleciam na época, Lukacs nao podia simplesmente apresentar melhoras provdveis e parciais. Tinha de proclamar a certeza de uma ruptura revoluciondria todo-abrangente e irreversivel, para contrabalangar todas as evidéncias que apontavam para a direc4o oposta. Nao se podia permitir que algo langasse duividas sobre “a certeza de que o capitalismo estd condenado e que, por fim, o proletariado serd vitorioso”.”” Entretanto, como a classe trabalhadora internacional nao dava sinais de querer “superar 0 hiato existente entre sua conscién- cia de classe atribuida e a psicolégica”,*® e uma vez que o proprio Lukdcs tinha de condenar as tendéncias burocrdticas do partido que ocupava a posicao central em seu proprio esquema estratégico, seu discurso teve de ser transferido para o plano meto- dolégico. Naquelas circunstancias, a validade das distantes perspectivas positivas que ele desafiadoramente reafirmava s6 poderia ser provada — contra todas as evidéncias visfveis e, como ele disse, concebiveis — dentro de um discurso primordialmente me- todoldgico. Lukdcs declarou, na continuagao da passagem citada sobre a certeza da derrota capitalista e da vitéria do proletariado: “Nao pode haver garantia ‘material’ para esta certeza. Ela pode ser garantida metodologicamente— pelo método dialético” 2! Nesse mesmo espirito, um importante ponto levantado por Franz Mehring foi igno- rado por Lukdcs em nome do método, transformando em virtude uma lacuna séria na teoria de Marx. Nas palavras de Lukécs: ‘A questo de Mehring sobre 0 quanto Marx superestimou a consciéncia da Revolta dos Tecel6es nao nos interessa aqui. Metodologicamente [0 grifo é de Lukacs], ele deu uma descricéo perféita do desenvolvimento da consciéncia de classe revoluciondria no proletariado.” Tal oposigao entre método e contetido se destinava, é claro, a eliminar os fatores contingentes da teoria, estabelecendo assim suas perspectivas sobre fundamentos isentos de flutuagdes empiricas e temporais. Entretanto, em sua tentativa de promo- ver uma defesa segura — em termos da temporalidade a longo prazo de uma metodo- logia dialética — contra a auséncia de mediagao das confrontagées politicas e econd- micas didrias, freqiientemente exploradas de forma ideoldgica, Lukdcs conclufa com um paradoxo extremo: Suponhamos, a guisa de argumento, que as pesquisas recentes tenham desmentido de uma vez por todas cada uma das teses de Marx. Mesmo que isso fosse comprovado, todo marxista “ortodoxo” sério ainda seria capaz de aceitar todos esses achados mo- dernos sem reservas, e daf rejeitar in totum todas as teses de Marx, sem ter de renunciar por um momento sequer a sua ortodoxia. Portanto, o marxismo ortodoxo nao impli- ca a aceitagio acritica dos resultados das investigagées de Marx. Nao é a “crenga” nesta ou naquela tese, nem a exegese de um livro “sagrado”. Ao contrario, a ortodoxia se refere exclusivamente ao método.** » Ibid. p. 43. »” Ibid, p. 74. bid., p. 43. 2 Ibid. p. 219. ® Tid. p. 1. Os grifos sio de Lukes. 322 Ciéncia, ideologia e metodologia 6.8.2 A necessidade de providenciar garantias sdlidas em relagao a “certeza da vitéria final”, juntamente com as dificuldades de encontrar, a partir de sua perspectiva € nas cit- cunstancias histéricas prevalecentes, outras garantias que nao as puramente “metodold- gicas” para desenvolvimentos positivos, produziram uma abordagem teérica que permaneceu com Lukacs pelo resto de sua vida. Em seu ensaio “Estrutura de classe e consciéncia social”, Tom Bottomore expres- sou sua surpresa “de que Lukdcs repetisse, com grande aprovac4o, em seu novo prefa- cio da edigao de 1967”, a passagem que opunha o método ao contetido no ensaio de abertura de Histéria e consciéncia de classe, originalmente publicado em 1923. A preocupagao de Bottomore era, & primeira vista, amplamente justificada. Se, entretanto, relacionarmos o fato 4 fungao que a idéia de uma “garantia metodolégica” desempenhava no pensamento de Lukacs, como vimos, a reafirmagio positiva da va- lidade de seu conceito de método em 1967 dificilmente poderia ser considerada surpreendente. De fato, a constante polémica de Lukécs em defesa do método dia- lético contra o “marxismo vulgar” e o “fatalismo mecanicista [...] a concomitancia normal da teoria da reflexdo no materialismo mecanicista”, a seus olhos desempe- nhava, simultaneamente, uma importante fungao polftico-ideoldégica na luta contra © “sectarismo” e seu culto nao-dialético da auséncia de mediagao. A longa relacao de obras que tratam disso parte da critica de Lukacs ao Mate- rialismo histérico de Bukharin, passa por seu ensaio sobre “Moses Hess e os problemas da dialética idealista” e chega até O jovem Hegel, A destruigdo da razéo e, finalmente, A ontologia do ser social. Na verdade, 4 medida que as condigées de abertura do deba- te ideoldgico e politico desapareciam com a consolidagao do stalinismo, o discurso sobre como superar a “crise ideolégica do proletariado” tornou-se cada vez mais limi- tado a defesa do método dialético como tal, expressando, assim, na “linguagem esépica” da metodologia filoséfica, as aspiragées politicas muito mediadas de Lukacs. O jovem Hegel talvez tenha sido 0 documento mais importante desta “fase esdpica” do desenvolvimento de Lukécs. Outro aspecto importante deste problema foi a insisténcia de Lukacs, durante toda sua vida, em que sé pode haver um “marxismo verdadeiro” (isto é, 0 que ele chamava de “ortodoxia” marxista, colocando o termo entre aspas para diferencid-lo da ortodoxia institucionalmente imposta). Ao mesmo tempo, e em conformidade com o cardter mais {ntimo de seu discurso — centrado nas idéias da “crise ideoldgica” e da “responsabilidade dos intelectuais” para abrir caminho para o fim da referida crise -, estava profundamente preocupado em ampliar a influéncia intelectual do marxismo. Estas determinagées politico-ideoldgicas estao juntas na definigao metodoldgica de Lukédcs do “verdadeiro marxismo”. Por um lado, tal definigao tinha de exercer uma fungao critico-excludente contra 0 “dogmatismo stalinista”, o “materialismo meca- nico”, o “marxismo vulgar”, etc., sem atacar frontalmente os poderosos objetos insti- Em Aspects of History and Class Consciousness, org. por 1. Mészaros, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1971, p.55. Metodologia e ideologia 323 tucionais desta critica. E, por outro lado, a definicdo lukacsiana do marxismo tinha de ser flexivel o suficiente para abranger, de modo “ndo-sectario” e a partir de um espectro politico bastante amplo, todos os estudiosos e intelectuais sérios dispostos a dar um passo positivo em diregdo ao marxismo. (Esta tiltima preocupacio foi, eviden- temente, uma das principais razes da considerdvel influéncia de Lukacs entre os intelectuais.) Ambos 0s aspectos foram claramente expostos em uma conferéncia proferida por Lukdcs na Itdlia, em junho de 1956 — A /uta cultural entre o progresso e a reagao hoje —*° na qual, pela primeira vez apés trés longas décadas, em seguida ao XX Con- gresso do Partido Comunista da Uniao Soviética, ele pode desafiar abertamente seus adversdrios ideoldgicos. Insistiu que, para uma “propaganda esclarecedora do verdadeiro marxismo”,** com 0 objetivo de exercer uma “influéncia ideolégica [...] para conduzir em uma nova diregao os intelectuais nao marxistas”” e assim “influenciar o fermento ideolégico e o desenvolvimento do mundo”,* era necessdrio “romper definitivamente com 0 sectarismo e o dogmatismo”.” O “dogmatismo stalinista” rejeitado“ foi definido, mais uma vez, inicialmente em termos metodoldgicos: como a “auséncia de mediagéo”,"' a reificadora “confusao da tendéncia com o fato realizado”, a “subordinagao mecdnica da parte ao todo”,** a afirmagao de um “relacionamento imediato entre os princ{pios fundamentais da teoria ¢ os problemas da época’, a “restricZo dogmatica do materialismo dialético”® e, mais importante, como a crenga errénea de que “o marxismo era uma reunido de dogmas’ “© Lukacs também declarou categoricamente que 0 tinico modo de exercer influéncia ideolégica era a “critica imanente”” que coloca as questdes metodoldgicas em primeiro plano. Foi dentro do mesmo espirito que elogiou — no Prefacio de 1967 a Histéria e consciéncia de classe — sua velha definicao metodoldgica de “ortodoxia no marxismo, que agora considero nao apenas objetivamente correta, mas também capaz de exercer ainda hoje uma considerdvel influéncia, quando estamos as vésperas de um renasci- mento marxista”.* > La lotta fra progresso e reazione nella cultura d oggi, Milio, Feltrinelli, 1957. % Ibid, p. 18. % Tbid., p. 34 % Tbid., p. 46 » Ibid, p. 44 “© Ibid., p. 34. “ dbid., p. 5. ® Ibid. p. 7. “Ibid, p.9. “~ Tbid., p. 10. © Tbid., p. 36. “© Tbid., p. 45. © Iid., p. 25. “ Lukécs, History and Class Consciousness, p. XXV. 324 Ciéncia, ideologia e metodologia 6.9 Conclusao Como pudemos ver, perfodos histéricos de crise e transi¢ao, quando os antagonismos sociais latentes vém 4 tona com grande intensidade, sao, em geral, acompanhados por agudas “disputas metodoldgicas”. Estas tiltimas nao sao inteligfveis em termos estrita- mente metodolégicos, devendo ser analisadas a luz das reivindicagées hegeménicas das partes envolvidas. Assim, nao obstante muitas opinides contrarias, o aumento da preocupacio das principais forcas antag6nicas com questdes metodoldgicas aparente- mente abstratas € prova da intensificagao das determinagGes ideolégicas que influen- ciam — intelectual e politicamente — a orientacao estratégica dessas forgas, quer elas estejam, quer nao, conscientes de ser movidas por tais fatores.

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