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Neste artigo, escrutinamos primeiramente as In this article we have first scrutinized the
noções foucaultianas de acontecimento, dispositi- Foucauldian notions of event, device and system of
vo e regime de verdade procurando destacar sua truth seeking to highlight its relevance in the gean-
pertinência no instrumental genealógico. Levando ological instrumental. Considering these notions,
em consideração estas noções, buscamos explicitar we have tried to clarify the governement and gov-
as categorias de governo e governamentalidade ernamentality categories showing their relation-
mostrando sua relação com os processos moder- ship with the modern and contemporary processes
nos e contemporâneos de condução das condutas. of the conduct of conducts. For that, and having the
Para tanto, e tomando por referência o curso “Os
course “The abnormals” as a reference, we have
anormais”, discutimos a transformação da tecnolo-
discussed the transformation of pastoral technol-
gia pastoral em “metodologia científica”: processo
ogy into “scientific methodology”: an individual-
de normalização individualizante que sujeita as
izing standardization process subjected to people.
pessoas. Em seguida, com base ainda nas pesqui-
sas genealógicas da década de 1970, indicamos a After that, still based on the 1970’s genealogical
existência de práticas de poder, de resistência e de researches, we indicate the existance of practices
contracondutas distintas dos processos de sujei- of power, resistance and distinct counter-conducts
ção. Estas emergem como exercícios da liberda- of the subjection processes. These emerge as free-
de e, assim, como modo possível de condução da dom exercises and, therefore, as a possible way of
própria conduta e da conduta dos outros. Por fim, conducting the self conduct and the other’s. Lastly,
salientamos que este artigo é fruto de uma discus- we would like to stress this article is the result of
são eminentemente teórica, centrada em pesquisa an eminently theoretical discussion, centered on
bibliográfica e análise conceitual. bibliographical research and conceptual analysis.
Introdução
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1 Como sabemos, a análise arqueológica investiga as possíveis semelhanças e diferenças entre os saberes
pelo estabelecimento da episteme de uma época. Na pesquisa arqueológica, a episteme visa relacionar os diferentes
saberes procurando as vinculações possíveis, bem como suas semelhanças e transformações, para além das diferenças
detectadas num nível considerado mais superficial. Assim sendo, a episteme procuraria estabelecer a homogeneidade
(entendida como chave explicativa) que desse conta das continuidades e das descontinuidades entre os saberes. A
investigação arqueológica teria mostrado, desta forma, a existência de duas grandes descontinuidades na episteme da
cultura ocidental: a Idade Clássica e a Modernidade (FOUCAULT, 1992, p. 11-13). Contudo, a episteme, central em “As
palavras e as coisas”, não define o campo da análise arqueológica em todos os estudos foucaultianos da década de 1960.
O livro publicado em 1966 expressaria uma concepção monolítica de episteme (trata-se, sempre, de uma única episteme
que define as condições de possibilidade do saber numa determinada cultura e num momento dado). Como mostra a
“Arqueologia do saber”, a introdução do conceito de “formação discursiva” evidenciaria o abandono dessa perspectiva
monolítica. Aliás, neste livro de cunho claramente metodológico, Foucault define o saber como o “conjunto dos elemen-
tos formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência.” O saber é
aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva, que, por sua vez, deve ser definida como o domínio constituído
pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico. Um saber é, também, o espaço em que o sujeito
pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso. Além disso, é o campo de coordenação e
de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam. Um saber se
define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso. Por fim, se os saberes, em determinadas
configurações, podem apresentar independência em relação às ciências, o mesmo não acontece em relação às práticas
discursivas, pois não existe saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber
que ela forma. (FOUCAULT, 1987, p. 206-207).
2 É importante dizer, contudo, que embora a investigação arqueológica esteja circunscrita à esfera da discur-
sividade, a genealogia não deve ser tida como uma metodologia oposta, na medida em que proporcionaria, em relação à
arqueologia, uma ruptura total e intransponível. Vejamos, por exemplo, como Foucault situa a arqueologia nas pesquisas
conduzidas no Collège de France em 1976. Na primeira aula de “Em Defesa da Sociedade”, o pensador dirá: “A arqueo-
logia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas
discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem. Isso para reconstituir o projeto de
conjunto.” (FOUCAULT, 1999a, p. 16).
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4 A genealogia das tecnologias disciplinares analisa as condições pelas quais o homem moderno constitui a
sua identidade, seus valores e, assim, seus modos de ser e agir, dentro de sofisticados processos institucionais nos quais
ele é feito, por assim dizer, como objeto de saberes e práticas institucionais de poder. Trata-se, em “Vigiar e punir”, de
trazer à tona o processo de constituição da verdade destas tecnologias objetivantes que incidem sobre o homem moderno
(FOUCAULT, 1993, p. 26-27).
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não significa que não se está diante de nada e que tudo é fruto
da cabeça de alguém (FOUCAULT, 2004, p. 283).
5 Em termos esquemáticos, podemos dizer que a “subjetivação” designa, para Foucault, um processo pelo
qual se obtém a constituição de um sujeito, ou, mais exatamente, de uma subjetividade. Os “modos de subjetivação” ou
“processos de subjetivação” do ser humano correspondem, na realidade, a dois tipos de análise: de um lado, os modos de
objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos – o que significa que há somente sujeitos objetivados e que os
modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação; de outro lado, a maneira pela qual a relação consigo, por
meio de um certo número de técnicas, permite constituir-se como sujeito de sua própria existência.” (REVEL, 2005, p. 82).
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dos são sempre pessoas: coletividades, homens, indivíduos. Dirá Foucault que
esta ideia de que os homens é que são governados, não é grega nem romana,
pois se inscreve num outro momento e modelo de relação de poder, caracterís-
tico das governamentalidades inauguradas na tradição judaico-cristã (FOU-
CAULT, 2008, p. 143-145; 164-166).
Já a segunda acepção do termo diz respeito à confluência entre as técnicas
de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si. Com isto, fica claro
que o estudo da governamentalidade deve abranger não só o campo da políti-
ca, mas também o tema ético da relação que o sujeito estabelece consigo mes-
mo. Assim sendo, localizamos, no cruzamento entre as formas históricas de
governo dos outros e de si mesmo, a problematização da ação humana como
um ethos ético-político, a ser vivenciado, por exemplo, como “cuidado de si”.
Vejamos, agora, com base nas considerações sobre os efeitos individuali-
zantes da tecnologia pastoral cristã na modernidade e na contemporaneidade -
apresentados em “Os anormais” - a emergência histórica de uma “tecnologia
científica” de condução das condutas do “outro”, isto é, de governo dos “outros”.
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dita assumir uma única e exclusiva identidade sexual, podendo este ter “dois
sexos”, ou seja, não houve necessariamente a obrigação de que este assumisse
um gênero (uma única identificação). Todavia, com o surgimento das teorias
biológicas e médicas sobre a sexualidade, que contaram com amparo do apa-
rato jurídico que se instalou na forma de controle administrativo nos Estados
modernos, houve uma recusa radical desse dualismo do sexo hermafrodita. O
que fez com que o hermafrodita fosse “induzido” a assumir uma única iden-
tidade sexual, isto é, o seu “verdadeiro sexo”. Vale ressaltar ainda, no caso
de Herculine Barbin, a exposição pública e a humilhação por ela sofrida com
os minuciosos exames e com dossiê completo sobre seu corpo, descrevendo
detalhadamente sua anatomia, inclusive os seus órgãos genitais (FOUCAULT,
1982). Como vemos, quando levadas ao paroxismo, essas tecnologias de go-
verno desqualificam a autonomia e a liberdade e podem, em muitas situações,
causar danos irreversíveis às vidas humanas.
Em face do exposto até aqui, podemos questionar: será que toda forma
de condução das condutas do “outro” culmina na injunção de identidades que
não passam, no final das contas, de sofisticados processos de sujeição humana
(indivíduo-crente, sujeito anormal)? Há outros modos de conduzir a si mesmo
e aos outros que não resultem em práticas que anulam a liberdade (individual
e coletiva)?
Bem sabemos que as pesquisas genealógicas desenvolvidas nos anos de
1980 indicam que a governamentalidade também apresenta uma perspectiva
ética (terceiro domínio da ontologia histórica de nós mesmos). O ethos pro-
posto nessas pesquisas implica numa prática refletida da liberdade por parte
do sujeito. Assim, por meio de uma “ética da estética da existência” e do “cui-
dado de si”, ele deve procurar governar a si mesmo e aos outros nos diferentes
campos de ação. No entanto, interessa-nos investigar, neste artigo, se os textos
genealógicos aqui estudados - que remetem à produção foucaultiana dos anos
de 1970 - indicam possibilidades de condução das condutas diversas dos pro-
cessos de sujeição revelados no curso “Os anormais”.
8 Mesmo não discutindo as noções de biopoder e biopolítica neste artigo, reconhecemos sua importância
como tecnologia de gestão das condutas individuais e coletivas. De passagem, indicamos que os processos de sujeição
desencadeados pelo biopoder articulam uma anátono-política dos corpos individuais com os modos de controle coletivo.
A biopolítica, por sua vez, prioriza a regulação no âmbito da população.
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Referências bibliográficas
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1998.
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Um percurso pelos seus temas, conceitos e au-
tores. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
9 Gadelha dá um exemplo interessante de como é possível exercer a crítica intelectual em relação aos consen-
sos de nossa época. Tomando como referência a área da gestão administrativa, sugere que é salutar inquirir os processos
de objetivação-subjetivação presentes “nas novas tecnologias gerenciais no campo da administração (management), [nas]
práticas e saberes psicológicos voltados à dinâmica e à gestão de grupos e das organizações, propaganda, publicidade,
markting, branding, “literatura” de autoajuda, etc. (GADELHA, 2009, p. 151).
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Martins Fontes, 1992.
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______.O sujeito e o poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Uma trajetória filosó-
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______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins
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______. Michel Foucault – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.
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FOUCAULT, Michel. Os anormais. Curso no Collège de France (1974–1975). São Paulo: Mar-
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HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
MARTON, Scarlett. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. 2. ed. São Paulo:
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