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SEXUALIDADE E INFÂNCIA

Cadernos CECEMCA, n.1


Bauru - Faculdade de Ciências
2005
MEC - MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Educação Fernando Haddad

Secretário Executivo Jairo Jorge

Secretaria de Educação Básica Francisco das Chagas Fernandes

Diretora do Departamento de Políticas


de Educação Infantil e
Ensino Fundamental Jeanete Beauchamp
Coordenação Geral de
Políticas de Formação Lydia Bechara
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Governador Geraldo Alckmin


Secretário de Ciência, Tecnologia,
Desenvolvimento Econômico e
Turismo João Carlos de Souza Meirelles
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
”JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Reitor Professor Doutor Marcos Macari

Vice-Reitor Professor Doutor Herman Jacobus Cornelis Voorwald


Faculdade de Ciências do
Campus de Bauru

Diretor Professor Doutor José Brás Barreto de Oliveira

Vice-Diretor Professor Doutor Osmar Cavassan


SEXUALIDADE E INFÂNCIA

ORGANIZADORES
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
ARI FERNANDO MAIA
© 2005 – CAMPUS DE BAURU – FACULDADE DE CIÊNCIAS
www.fc.unesp.br
ISBN – 85-99703-01-3
Série: CADERNOS CECEMCA

CADERNOS CECEMCA
Coordenação Geral – UNESP Professora Doutora Maria Amélia Máximo de Araújo
Coordenação CECEMCA Núcleo Bauru Professor Doutor João José Caluzi
Coordenação CECEMCA Núcleo Rio Claro Professora Doutora Maria Isabel Castreghini de Freitas
Coordenação CECEMCA Núcleo EaD Professor Doutor Eugênio Maria de França Ramos
Organizadores do Caderno de Sexualidade Ana Cláudia Bortolozzi Maia
e Infância Ari Fernando Maia
Comitê Técnico Científico Adriana Josefa Ferreira Chaves, Ana Maria de Andrade
Caldeira, João José Caluzi, João Pedro Albino, José Misael
Ferreira do Vale, Mara Sueli Simão Moraes, Nelson Antonio
Pirola, Roberto Nardi, Washington Luiz Pacheco de Carvalho
Corpo de pareceristas Adriana Josefa Ferreira Chaves, Aparecida Valquíria Pereira
da Silva, Carmem Lúcia B. Passos, Lair de Queiroz Costa,
Rosimar Poker, Sonia Maria Martins de Melo, Vera Mariza
Regino Casério, Wilson Massashiro Yonezawa
Bolsistas Carolina Zumiani Navarro, Juliana Campregher Pasqualini,
Rodrigo Marques Pucci
Revisão Carla Lisboa Porto, Christina de Almeida Peter
Assessoria Ana Carolina Galvão Marsiglia, Glória Georges Feres
Avaliação preliminar dos textos Bruna Di Richelly Mattar Padovani, Noemia Tereza Góes
Maciel, Patricia Gonçalves Leão de Besso, Priscila Campesi
Aníbal, Regina Almeida dos Santos, Rita de Cássia Bastos
Zuquieri, Rosa Inês Ungaro Verinaud, Rose Mary Pachele
Mattiazzo, Rosely Fatima Adami Kronka, RosemaraGasparini
Candosin Sementille
Dados para catologação
Sexualidade e Infância / organizado por Ana Cláudia Bortolozzi e Ari Fernando Maia.- -Bauru: FC/CECEMCA:
Brasília: MEC/SEF, 2005.
204 páginas. ( Cadernos Cecemca, n. 1).
ISBN: 85 -99703- 01-3
1. Sexualidade. 2. Repressão sexual. 3. Educação sexual. I. Série.
CDD - 370
Recomenda-se a classificação das publicações desta Série, na área de Educação, por tratar de temática multidisciplinar
sobre ensino e aprendizagem.
Autorizado a reprodução desde que citada a fonte
APRESENTAÇÃO CECEMCA

A partir da parceria com o Ministério da Educação com


instituições de ensino superior, ongs e empresas privadas,
foram formados Centros de Educação Continuada para profes-
sores da Educação infantil, do ensino fundamental e médio.
Estes Centros constituem uma rede nacional para atender
as necessidades de professores que lecionam em escolas
municipais e estaduais. Desde sua concepção, o objetivo é
aprimorar o trabalho articulado entre diferentes Centros de
Educação Continuada. Grupos e instituições não associadas de
todo o país também serão beneficiados.

O Centro de Educação Continuada em Educação


Matemática, Científica e Ambiental (CECEMCA), responde
por ações dirigidas à formação continuada de professores e,
também, pela produção de material didático. Participam do
CECEMCA profissionais da Universidade Estadual Paulista
– UNESP que atuam nas áreas de Educação Matemática,
Científica e Ambiental.

A coleção Cadernos CECEMCA é composta de 15


cadernos para a Educação Infantil e Ensino Fundamental de
1ª a 4ª séries. Os cadernos CECEMCA, núcleo Bauru são:
Sexualidade e Infância, Ciências Naturais, Matemática e Edu-
cação Infantil, Inclusão Digital, Educação Inclusiva: iniciando o
debate, Fundamentos da Educação, Saberes Pedagógicos da
Educação Infantil e Ciência, Tecnologia e Implicações Sócio-
Ambientais. Os cadernos CECEMCA, núcleo Rio Claro são: A
Terra em que vivemos, Cartografia e Meio Ambiente, Fauna,
Entomóptica, Áreas Verdes, Consumo Sustentável e Conhe-
cimento Indígena. Os conteúdos disciplinares dos cadernos
oferecem aos professores condições de participarem crítica
e efetivamente de questões pedagógicas e sócio-ambientais,
atualmente em discussão na sociedade brasileira.

A Coordenação CECEMCA
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO
Ana Cláudia Bortolozzi Maia 09

TEMA 1 Sexualidade também tem história:


comportamentos e atitudes sexuais através dos tempos
Paulo Rennes Marçal Ribeiro 17
TEMA 2 Sexualidade e educação escolar: algumas
reflexões sobre orientação sexual na escola
Giselle Volpato dos Reis e Paulo Rennes Marçal Ribeiro 35

TEMA 3 Processo de educação e repressão sexual


Ana Cláudia Bortolozzi Maia e Ari Fernando Maia 47

TEMA 4 Identidade e papéis sexuais: uma discussão


sobre gênero na escola
Ana Cláudia Bortolozzi Maia 67

TEMA 5 O desenvolvimento da sexualidade na infância


Ana Cláudia Bortolozzi Maia 85

TEMA 6 Masturbação e jogos sexuais infantis


Ana Cláudia Bortolozzi Maia 105

TEMA 7 Diálogos sobre sexualidade com a criança


Ana Cláudia Bortolozzi Maia 121
TEMA 8 Abuso sexual infantil
Ana Cláudia Bortolozzi Maia 143

TEMA 9 Mídia e a sexualidade infantil


Ari Fernando Maia e Ana Cláudia Bortolozzi Maia 161

TEMA 10 Sexualidade e deficiências


Ana Cláudia Bortolozzi Maia 179
INTRODUÇÃO

O presente Caderno, “Sexualidade e Infância”, tem por


objetivo refletir sobre o tema da sexualidade. A partir dos
textos nele contidos, forneceremos subsídios para que os
educadores possam se apropriar, tanto de discussões teóricas
sobre o desenvolvimento da sexualidade na infância, quanto
de questões mais práticas sobre as diferentes manifestações
da sexualidade dos alunos na escola. Com essas ferramentas,
os professores estarão mais bem preparados para lidar com
esse tema de modo produtivo e ético, visando à educação
integral da criança. Não se trata de um manual, uma vez que
não pretende oferecer “receitas prontas” para ensiná-lo a atuar
em relação ao assunto. Mesmo porque, agir nesse âmbito
sempre implica em uma reflexão sobre sua própria história
de educação sexual. Tal reflexão, repetimos, é imprescindível
para trabalhar com a sexualidade das crianças e este exercício
exige uma disposição pessoal do professor que não pode ser
garantida por qualquer manual que tente oferecer receitas, ou
atitudes que sejam sempre consideradas adequadas.
Este material apresenta um conjunto de dez temas
diferentes que versam sobre o mesmo assunto, a sexualidade
infantil. Entendemos que cada um deles vá contribuir para

9
uma compreensão mais ampla e geral sobre esse assunto.
Ao final de cada tema, há as referências bibliográficas que
nortearam a elaboração do texto e que permitem, ao leitor
interessado, um maior aprofundamento por meio de livros e
textos citados.

O primeiro tema, Sexualidade Também tem História:


Comportamentos e Atitudes Sexuais Através dos Tempos,
apresenta uma distinção entre os conceitos de sexo e sexuali-
dade. Discorre sobre a dimensão sócio-cultural da sexualidade,
destacando que ela é alicerçada historicamente, por meio de
normas e padrões que permeiam a percepção dos indivíduos
sobre a sexualidade. O texto comenta sobre a historicidade
da sexualidade, isto é, apresenta atitudes e comportamentos
sexuais típicos da Antigüidade, da Idade Média, do Puritanismo
e do Vitorianismo, apontando que existe uma influência da
história nas concepções atuais sobre a sexualidade.

O segundo e terceiro temas, respectivamente, Sexu-


alidade e Educação Escolar: Algumas Reflexões Sobre
Orientação Sexual na Escola e Processo de Educação e
Repressão Sexual, vão explorar os conceitos de educação e
orientação sexual, destacando que na escola há tanto um pro-
cesso como o outro. A orientação sexual limita-se a oferecer
instruções e informações, enquanto a educação sexual é um
processo geral, que permeia toda a vida do sujeito na socieda-

10
de, e é mais voltado para a formação de atitudes. Como tal,
encerra o conceito de repressão sexual que, como um conjunto
de regras e valores sociais, dá sentido e representatividade à
sexualidade.

O quarto tema, Identidade e Papéis Sexuais: Uma


Discussão Sobre Gênero na Escola, reflete sobre uma forma
de socialização típica de nossa época. Nela, prepondera uma
educação sexista, ao naturalizar diferenças entre os sexos
masculino e feminino, atribuindo características desvantajosas
ao gênero feminino, o que sem dúvida é uma ideologia inques-
tionável. O texto apresenta o conceito de identidade sexual e
sua relação com a manifestação dos papéis sexuais. Procura
alertar sobre o papel da escola na reprodução dessa ideologia,
que reforça as desigualdades e justifica a discriminação e a
dominação de um gênero sobre o outro. Esperamos assim
proporcionar o questionamento e a reinvenção dos padrões ora
estabelecidos.

Os temas 5, 6 e 7 concentram uma discussão geral sobre


o desenvolvimento da sexualidade no período da infância. Expli-
cita condutas típicas, como a masturbação e os jogos sexuais
infantis e destaca a importância do diálogo sobre sexualidade
com a criança. O quinto tema, “O Desenvolvimento da Sexu-
alidade na Infância”, explora principalmente, os conceitos de
Freud sobre o amadurecimento psicossexual humano. O sexto
e sétimo temas, respectivamente, “Masturbação e Jogos

11
Sexuais Infantis” e “Diálogos sobre Sexualidade com a
Criança”, foram separados para garantir uma reflexão mais
pragmática em relação a estas manifestações sexuais das
crianças no cotidiano da escola. Para ajudar o professor,
procuramos oferecer uma reflexão geral sobre o assunto
e, ao final, responder algumas perguntas freqüentes sobre
o tema. Além disso, sugerimos alguns livros de orientação
sexual destinados às crianças, para facilitar o trabalho do
professor que pretende orientar seus alunos. Estes três temas
são centrais para a reflexão sobre a sexualidade na infância,
porque neles são discutidas questões que, em geral, são muito
relevantes no trabalho educativo da escola. Além disso, uma
vez que os comportamentos citados são comuns nas escolas,
existe uma demanda freqüente de dúvidas por parte de muitos
educadores.

O oitavo tema trata de um assunto delicado e importante,


o Abuso Sexual Infantil. Embora não seja agradável, este
assunto não pode ser excluído de um caderno sobre sexualida-
de na infância, pois a escola não pode ser omissa quanto a esse
tipo de violência. Começamos esclarecendo sobre o conceito
de abuso sexual, as condições em que freqüentemente ocorre
e a necessidade do educador estar preparado para ajudar a pre-
venir sua ocorrência, orientando e educando as crianças para
reconhecer situações desse tipo, evitá-las ou denunciá-las.
Também são apresentadas respostas às perguntas freqüentes
no final do texto.

12
O nono tema fala sobre a Mídia e a Sexualidade
Infantil, que é um assunto muito atual e importante, na medida
em que a indústria cultural media a formação das pessoas,
inclusive quanto à sexualidade, de um modo muito abrangente
na sociedade atual. É apresentada neste texto, quase sempre
com a televisão como exemplo, uma discussão sobre o concei-
to de mídia e sobre a indústria cultural. Apontamos a hipótese
que a indústria cultural é o grande agente de reprodução da
repressão sexual atualmente. Depois, procura-se estabelecer
uma relação entre estes conceitos e o desenvolvimento da
sexualidade infantil. Procuramos sugerir ferramentas como
o professor pode contribuir para uma educação, por meio do
diálogo com a criança, questionando os preconceitos e estere-
ótipos veiculados nos meios de comunicação de massa.

E, finalmente, o tema 10, discute a Sexualidade e


Deficiências, pois não poderíamos desconsiderar o paradigma
da educação inclusiva ao pensar em sexualidade. O texto apre-
senta uma reflexão geral sobre a sexualidade da pessoa com
deficiência, fazendo apontamentos gerais sobre a sexualidade
da pessoa com deficiência mental, sensorial (surdez e ceguei-
ra) e física. Conhecer estas questões pode auxiliar o trabalho
educativo do professor, em relação às manifestações sexuais,
quando se trata da criança com necessidades educativas
especiais.
Procuramos produzir textos simples, mas sem desconsi-
derar a relevância das questões tratadas e sua complexidade.
Esse é um limite à simplicidade dos textos: não é possível
13
tratar o que é complexo de forma simples, sem falsificar o
tema tratado. Portanto, procuramos tratar de assuntos mais
próximos ao cotidiano da escola e à relação do professor com
os alunos, sem descuidar de questões teóricas fundamentais.
É evidente que as posturas e opiniões sobre a sexualidade
envolvem dimensões filosóficas, religiosas, morais, históricas,
etc., que todos nós, conscientemente ou não, carregamos a
partir de nossa formação. Os textos apresentam, de maneira
geral, o resultado de discussões sobre os temas mais comu-
mente debatidos nas conversas que tivemos com professores
e profissionais em diversas escolas. Oferecemos informações,
esclarecimentos e reflexões para ajudar o professor a conhecer
melhor a sexualidade na infância para que tenha mais seguran-
ça ao lidar com esta temática, para além de suas concepções
pessoais sobre o assunto.

Acreditamos que os professores são bem intencionados


ao tratar da sexualidade na escola, mas ainda há lacunas na
sua formação que dificultam seu envolvimento de modo
adequado nesta tarefa. Além disso, infelizmente, são escassas
as publicações que efetivamente possam ajudar o professor
no cotidiano da escola. Esperamos que todas as discussões
tenham sido apresentadas em uma linguagem menos técnica
e mais apropriada aos educadores. E que possam, de fato, ser
úteis para que, efetivamente, possamos atingir os objetivos
pertinentes e desejáveis na educação infantil.

14
Agradeço, imensamente, a contribuição dos colegas
Paulo Rennes Marçal Ribeiro, Giselle Volpato dos Reis e Ari
Fernando Maia, profissionais que eu respeito e admiro e que
muito enriqueceram a elaboração do Caderno, seja na redação
de temas importantes ou oferecendo sugestões gerais sobre o
projeto como um todo.

Ana Cláudia Bortolozzi Maia

15
TEMA

SEXUALIDADE TAMBÉM TEM HISTÓRIA:


COMPORTAMENTOS E ATITUDES
SEXUAIS ATRAVÉS DOS TEMPOS
PAULO RENNES MARÇAL RIBEIRO
Tema 1

Quando pensamos em questões envolvendo sexo ou


quando nos deparamos com situações sexuais que nos levam
a tomar alguma posição, (seja para concordar, para conter ou
reprimir) não ocorre à maioria das pessoas que aquele pensa-
mento, atitude ou comportamento talvez tenha sido normal ou
natural em alguns períodos. Ou ainda, contido e negado em
outras épocas. A maneira como as civilizações entendiam e
lidavam com comportamentos, valores e normas ligados ao
sexo nunca foram iguais e, tampouco, constantes. Cada cultura
e momento histórico viam e viviam sua sexualidade diferente-
mente. Inclusive, o pensamento sexual ocidental é fruto, em
grande parte, das concepções e valores do século XIX. Um
período muito próximo de nós e que nada tinha em comum
com as práticas e atitudes sexuais da Antigüidade, da Idade
Média e da Idade Moderna. Em dez mil anos de história, a rela-
ção sexo – humanidade sempre foi extremamente complexa,
pois envolveu (e envolve) questões sociais, culturais, religiosas
e psicológicas, construídas historicamente, determinadas
diferentemente em cada povo e época. Daí o título deste artigo,
pois a sexualidade também tem história. Tão longa quanto a da
humanidade, aliás, uma vinculada à outra. Afinal, sem sexo não
teríamos história, aliás, nós nem existiríamos.
Primeiramente, precisamos fazer uma distinção entre
sexo e sexualidade.
A sexualidade, no nosso entender, é um conjunto de
fatos, sentimentos e percepções vinculado ao sexo, ou à vida 17
Tema 1
sexual. É um conceito amplo, que envolve a manifestação do
impulso sexual e o que dela é decorrente: o desejo, a busca
de um objeto sexual, a representação do desejo, a elaboração
mental para realizar o desejo, a influência da cultura, da socie-
dade e da família, a moral, os valores, a religião, a sublimação,
a repressão. Em sua essência, a sexualidade é biológica, e tem
como objetivo primordial – aqui com o significado de fonte, prin-
cípio, origem – a perpetuação da espécie. Mas o ser humano,
com o uso da razão e das outras faculdades mentais, pôde ir
além do impulso biológico e usar a manifestação da sexualidade
para outros fins. Mais precisamente, encontrou nela uma forma
de dar e receber prazer. Essa sensação ocorre por intermédio
do sistema nervoso central, é estimulado por sentimentos e
fantasias sexuais e é decorrente de uma resposta sexual a um
dado estímulo plantado em sua mente.
Já o sexo é um conjunto de práticas, atitudes e compor-
tamentos vinculados ao ato sexual, resultante das concepções
existentes sobre ele. (Existe, é claro, o sexo biológico, que
determina o macho e a fêmea de uma espécie, a partir de um
conjunto de características hereditárias, físicas e biológicas que
nasce com cada um. Tais características são determinadas já
na fecundação do óvulo pelo espermatozóide, mas não é este
conceito que nos interessa no momento).
O conceito de sexualidade só foi criado no século XIX e
está voltado para o saber. A sexualidade refere-se a um saber
sexual, decorrente da incitação à manifestação sexual verbal e
escrita que foi acentuada no século XIX. O sexo, por sua vez,
está voltado para o fazer, ou seja, as práticas e atitudes sexuais
18
Tema 1
no cotidiano do indivíduo e dos grupos. Tanto a significação da
sexualidade quanto a prática do sexo são construídos cultural-
mente. Existe, então, uma dimensão sócio-cultural, alicerçada
historicamente por normas e padrões que dá a todo indivíduo a
percepção do que seja sexo e sexualidade. Ela será exemplifi-
cada quando estudarmos as diferentes culturas do ocidente.

ATITUDES E COMPORTAMENTOS
SEXUAIS NA ANTIGÜIDADE

Quando falamos nos antigos impérios, lembramos da


Mesopotâmia, com os assírios, caldeus e babilônios; do Egito
e a grandiosidade das pirâmides e dos faraós; da Grécia e a
democracia e de Roma, que construiu dominou o mundo então
conhecido. Na Babilônia, a mulher tinha posição social inferior
ao homem, mas podia receber a herança paterna. Ocupava-se
com várias atividades: cozinheiras, tecelãs, babás, sacerdoti-
sas, adivinhas, dentre outras.
O divórcio era prerrogativa masculina. O homem podia
se divorciar caso a mulher fosse estéril. A mulher infiel podia
ser condenada à morte, mas o homem podia ter concubinas.
No chamado Segundo Império Babilônico (de 625 a.C. a 536
a.C.) há registros sobre a ida da mulher, ao menos uma vez
na vida, ao Templo de Milita. Após ter relações sexuais com
um estranho em troca de uma moeda, entregava o dinheiro
recebido ao tesouro do templo. Na Assíria, existiam templos
com sacerdotisas que se entregavam sexualmente para sacer-
dotes e devotos. E na Caldéia havia o costume de oferecer as
mulheres da casa para os hóspedes. 19
Tema 1
O Egito foi grande na visão positiva que tinha sobre sexo e
no destaque que dava a figura da mulher, que alcançou liberda-
de sem igual comparada às outras civilizações. No vocabulário
egípcio não existia a palavra virgem, pois virgindade não fazia
sentido para eles. A mulher podia ter relações sexuais antes
do casamento e isso não seria motivo para sua desonra. Havia
também os contratos de casamento temporário, que poderia
se tornar definitivo, ou o casal se separaria.
O que é interessante na cultura egípcia era o fato de a
fidelidade ser uma das bases para o casamento. Daí a exis-
tência de práticas em que primeiro se testava o compromisso
(casamento experimental) ou havia ligações passageiras antes
de dar um passo definitivo. O adultério era falta grave. No
divórcio, a mulher podia receber uma pensão, que garantia sua
subsistência, ou recebia bens, sendo protegida da ganância do
marido em separações abusivas. Por exemplo, nesta época era
recomendado que um homem se separasse de sua mulher se
ela fosse estéril (JACQ, 2000).
No Egito antigo a mulher podia ocupar funções importan-
tes, como médicas, escribas, administradoras de províncias,
empresárias, proprietárias, e até ser faraó, como Hatchepsut
e Tausert. Representações de mulheres em túmulos nos
mostram uma capitã de barco, tecelãs, artesãs, donas de
casa, altas funcionárias do Estado (JACQ, 2000). Somente no
declínio do Império, quando Alexandre, o Grande, dominou o
Egito e levou para lá a cultura helênica, foi que a mulher, pouco
a pouco, cedeu à influência discriminatória grega.
De fato, há diferenças enormes entre a mulher grega e a
20 mulher Egípcia, no tocante a seu status. Em Atenas as mulheres
Tema 1
são submissas aos seus maridos, não podem sair sozinhas e
tem um espaço na casa destinado a elas – o gineceu. Tem
papel social definido – ser filha e mãe – e tem na casa e na
família o seu mundo e a razão de sua existência.
Mas tabus de nossos dias, como a virgindade, inicialmen-
te não existiam, como explica Vrissimtzis (2002, p. 29), sobre
o Período Homérico:
A virgindade, enquanto detalhe anatômico, não era impres-
cindível às jovens. Em todas as passagens em que ocorre a
palavra virgem (parthénos) ela denota simplesmente a moça
não casada. Ao que tudo indica, a virgindade per se não era
considerada um pré-requisito da futura noiva. Havia relações
sexuais antes do casamento…

No Período Clássico, no entanto, as mulheres deveriam


permanecer virgens até o casamento, que era voltado para a
procriação. Não era comum a atração sexual entre marido e
mulher. Os homens se casavam em torno dos 30 anos e as
mulheres com 16. Não se desejava aos noivos que se amas-
sem ou que fossem fiéis, como no nosso até que a morte os
separe. O divórcio era concedido em caso de adultério, se a
mulher fosse estéril ou se fosse vítima de violência por parte
do marido. Mas, para ela, em termos práticos, o divórcio não
era uma boa solução. Sua condição de divorciada tornava-se
pública e ela não seria bem vista.
Em Esparta, todavia, a autonomia da mulher era maior e
seu status era muito diferente do das atenienses. As meninas
e os meninos espartanos eram educados juntos e os exercícios
21
Tema 1
físicos realizados conjuntamente. As espartanas usavam saias
curtas, que deixavam as pernas à mostra, enquanto que as
atenienses usavam longas túnicas. A espartana gozava de uma
relativa liberdade, havia, inclusive, escolas especiais destinadas
à sua educação.
Havia, na Grécia, uma classe de mulheres independentes,
educadas, possuidoras de boas maneiras, com conhecimento
de instrumentos musicais e dança. Eram as hetairas, que
participavam dos banquetes em que esposas e filhas não
podiam estar, entretendo os homens e inclusive relacionar-se
sexualmente com eles. Algumas delas participavam de debates
filosóficos, também eram competentes em discussões e
de extrema beleza. Acumulavam riqueza e, muitas delas,
se associavam a nomes ilustres, formando casais famosos:
Aspásia e Péricles, Timandra e Alcibíades, Leóntion e Epicuro,
Taís e Alexandre, o Grande (VRISSIMTZIS, 2002). Percebemos,
então, que as restrições sexuais visavam não à mulher em si,
mas àquela que seria a esposa do cidadão, já que muitas delas
ocupavam um status diferenciado.
Já em Roma, a mulher ocupa importante papel social, vai
ao teatro, às festas, faz compras, participa de reuniões políticas,
embora se submeta à autoridade masculina. A mulher romana
se casava jovem, a partir dos doze anos, em geral com um
homem bem mais velho. Era dela a prerrogativa do divórcio e
podia manter os bens de solteira que trazia para o casamento.
Quando falamos em sexo para os romanos é preciso
entender como funcionava essa sociedade: era escravocrata,
hierarquizada e de predomínio masculino. As relações sociais
22
Tema 1
se pautavam em regras rigorosamente seguidas porque
sustentavam o poder do cidadão. Conseqüentemente, espe-
rava-se que o homem livre tivesse iniciativa, liderança, voz de
comando e que fosse sempre dominador e ativo. Por outro
lado, esperava-se o oposto das mulheres, crianças e escravos:
deveriam obedecer e ser socialmente submissos, ou seja,
deveriam ser indivíduos passivos.
Este modelo social também era aplicado nas relações
sexuais: o homem deveria ser sempre ativo, enquanto escravos
e mulheres deveriam ser passivos. Devemos entender que ser
ativo sexual significava penetrar e ser passivo significava ser
penetrado. Por isso, em Roma, aceitava-se naturalmente que
um cidadão tivesse relações sexuais com um escravo. Entre-
tanto, não poderia quebrar a hierarquia e o papel ativo, que o
cidadão deveria ter sempre. Não se admitia que ele tivesse um
papel passivo, não estava de acordo com as regras sociais. Era
uma postura alterada e artificial (VEYNE, 1987). E esse escravo
não poderia ter pelos no corpo, ou seja, deveria estar ainda na
puberdade. O crescimento dos pelos dava a ele um status de
homem o que o desclassificava como amante do senhor. Em
uma sociedade escravagista, o amo exercia seu direito de ser o
dono e senhor do escravo, que por sua vez se submetia diante
dos desejos dele.
O poeta Artedomiro, em sua obra Onirocritica ilustra
essa regra, dizendo que as relações sexuais podem ser “com
a esposa, com uma amante, com um escravo, homem ou
mulher. Todavia, ser penetrado por seu escravo não é bom;
é uma investida e isso indica desprezo por parte do escravo”
23
Tema 1
(VEYNE, 1987, p. 40). Ou seja, não se condenava a homofilia
como o amor de um homem por seu escravo e sim a quebra da
hierarquia. Os homófilos passivos, se não eram escravos, eram
expulsos do exército e desprezados pela sociedade. Veyne
(1987, p. 41) reforça a naturalidade romana sobre quais relações
sexuais eram admitidas:
O horror sagrado pelo pederasta não existia: a homofilia ativa
está presente nos textos gregos, bem como nos romanos.
Catulo gaba-se de suas proezas e Cícero cantou os beijos que
colhia dos lábios de seu escravo-secretário. De acordo com
seus gostos, cada qual optava pelas mulheres, pelos rapa-
zes ou por umas e outros. Virgílio gostava exclusivamente de
rapazes, o imperador Cláudio, de mulheres; Horácio repete
que adora ambos os sexos.

Havia porém aqueles, que de fato, se apaixonavam pelo


escravo e, querendo prorrogar o envolvimento, fazia com que
ele raspasse todos os pelos do corpo para continuar com o
aspecto tolerado pelos seus iguais.
Exemplificando o cotidiano amoroso em Roma, Veyne
(1987, p. 46) diz que
um nobre romano tem uma esposa, que trata com considera-
ção, pois depende apenas dela se divorciar, levando seu dote;
escravas que, se necessário, são suas concubinas…; um
pequeno escravo que ele cria, um alumnus, em quem extra-
vasa seus instintos paternais e geralmente é seu filho com
uma escrava… E um favorito, ou todo um batalhão de favori-
tos: a esposa tem ciúme, o marido protesta dizendo que não
24
Tema 1
faz nada de mal com eles… A senhora só fica aliviada no dia
em que começa a nascer o bigode do favorito: ele deixa de
ser adolescente e, passando a ser homem, o amo não mais
poderá infligir-lhe tratamento que é considerado indigno para
um homem.

Há outras características da sociedade romana que


podem ser mencionadas para nos dar uma idéia de como as
atitudes e comportamentos sexuais eram muito diferentes
daqueles que temos hoje no mundo ocidental. Era comum
oferecer dinheiro a uma mulher que era cortejada. Uma hones-
ta matrona não ficaria ofendida com este gesto e nem seria
tomada por uma prostituta. O sexo oral era atividade indigna
para um homem. Tão grave que, sendo acusado desta prática,
um cidadão preferia reconhecer-se homófilo passivo do que
praticante de sexo oral. São passagens que surpreendem o
leitor leigo, mas que são importantes para entender que, em
matéria de atitudes e comportamentos sexuais, não há uma
moralidade homogênea e aplicada, sem diferenças, em todas
as culturas.

O SEXO NA IDADE MÉDIA

Com as invasões bárbaras e o esfacelamento do Império


Romano, surgiram na Europa reinos onde se misturavam os
costumes romanos, bárbaros e cristãos. Invasores como
os germanos, godos, gauleses e francos se fixavam Europa
adentro, assimilando a cultura romana e formando os diversos
reinos, que passaram a dar um novo rosto ao mapa da Europa. 25
Tema 1
A Igreja Católica, que se consolidava, fazia aliança com
os nobres convertidos ao cristianismo, levando o povo com
eles. Permaneciam, no entanto, apegados aos valores pagãos
dos antepassados, principalmente o camponês, que distante
das cidades e dos nobres, demorou para assimilar os valores
cristãos como regras de vida.
Os bárbaros eram apegados à terra e aos cultos de
fertilidade. Portanto, o sexo era prática corrente nos ritos e
festas que ocorriam na época da colheita e do plantio. Estes
costumes, passados de geração para geração, não foram
totalmente erradicados com o advento do cristianismo, daí
uma possível explicação para as liberdades sexuais que se
contrapunham á moral pregada pela Igreja. O alto índice de
mortalidade, devido à peste e às guerras, e a necessidade de
nascimentos para que o camponês tivesse mão de obra para
a lavoura também podem ser considerados como estímulos
sociais para a liberdade sexual.
De fato, o sexo é natural. As pessoas andavam nuas,
homens e mulheres tomavam banhos juntos e, nos quadros,
até os santos eram representados nus. Era comum que amas
masturbassem as crianças para que ficassem calmas. Até a
obrigatoriedade do celibato para os religiosos não existia. No
século XI, padres tinham vida sexual ativa (USSEL, 1980).
No começo da Idade Média, a mulher ocupava impor-
tante espaço na Igreja Católica institucionalizada. Abadessas
acumulavam riquezas e influenciavam a hierarquia católica até
o século XII. Elas perdem poder após esse período, justamente
quando tomou corpo uma visão aristotélica da mulher por parte
26
Tema 1
da doutrina da Igreja. Três santos – São Paulo, Santo Agostinho
e São Tomás de Aquino – fundamentavam a doutrina da Igreja.
Dentre outras imposições, determinava que o sexo só deveria
acontecer dentro do casamento e com o único objetivo de
procriação. Não poderia haver demonstração de paixão entre
os cônjuges e ainda, determinaram os pecados contra o corpo:
prostituição, adultério, homossexualidade, auto-erotismo.
Determinavam-se também os dias que se podiam ter relações
sexuais. A culpa é instalada no imaginário popular, assim
como o medo do Inferno. Ainda assim, as práticas sexuais
continuaram fazendo parte do cotidiano amoroso de homens e
mulheres, pois não era possível de um momento para o outro
neutralizar costumes em vigência há séculos.
Somente a partir do século XVI (com maior força no
século XVIII), com o advento do puritanismo, é que houve
mudanças no caráter, na moral e nos valores do homem europeu
– notadamente o inglês – que se transformou gradativamente
em um homem contido, regrado e controlado.

O puritanismo e o vitorianismo.

O puritanismo, como afirma Leites (1987), não pretendia


atingir a sexualidade com suas idéias de autocontrole, constân-
cia, apelo à firmeza de sentimento, demonstrar menos emo-
ção. Porém, buscava modificar o homem de comportamento
desregrado e de temperamento oscilante, tão comum na Idade
Média. Tentou-se integrar sensualidade e espiritualidade, mas
o que acabou predominando foi o caráter ascético, que
27
Tema 1
desvalorizou o corpo e a sensibilidade para alcançar a plenitude
moral. Conseqüentemente, o sexo, para os puritanos, também
seria desprovido de prazer.
O puritanismo espalhou-se pela Europa e chegou à
América, mais precisamente nas colônias inglesas, que poste-
riormente, deram origem aos Estados Unidos. Ele é importante
para entender o caráter sexual de homens e mulheres ocidentais
nos dias de hoje por dois motivos. O primeiro foi exatamente
por causa de seu ascetismo, que facilitou a inserção, na
Europa do século seguinte, de uma ideologia médico-social
de controle, normatização e classificação de atos, atitudes
e comportamentos sexuais. O segundo foi a ética moral da
constância de caráter, da introspecção e da formulação de um
rígido padrão de comportamento. Não havia mais lugar para a
sensualidade e o prazer sexual, que não estavam de acordo
com a disciplina sugerida. Indivíduos formados sob a égide do
puritanismo, portanto, eram indivíduos seguidores de normas e
regras com facilidade de conter as emoções.
Considerando que a Europa passou, durante os séculos
XVI até o XVIII, por uma convulsão social, resultante da Reforma
Protestante, da Contra-Reforma e do advento do capitalismo.
Nos países católicos e protestantes houve uma chamada para
que o povo aderisse a uma nova ordem moral (e sexual), que se
opunha à liberdade da Idade Média.
O capitalismo transformou a vida e a sociedade, introduziu
um modo de vida fundamentado na produção, exploração do
homem, venda da força do trabalho, acúmulo de bens. Enfim, o
ter submeteu o ser. O sexo passou a ser controlado, submetido
28
Tema 1
a regras e normas e, para tal, era necessário uma sustentação
científica para justificar essas concepções. Buscando apoio
em Foucault (1980, 1984), o saber sexual, vinculado à ciência
sexual européia surgida a partir do século XIX, se opôs à uma
arte erótica que, no oriente, visava a satisfação e o prazer
sexual.
Cabral (1999) sintetiza muito bem as transformações
ocorridas com o advento da burguesia e do capitalismo, que
resultaram no pensamento dominante no século XIX.
Primeiro, que a moral:
dessa nova classe que aparecia pautava-se em valores opos-
tos aos princípios morais mais essenciais do mundo feudal.
No lugar do princípio de casta, surgia uma radical indivi-
dualização, novo código da pequena família burguesa. A
colaboração, uma das principais características da econo-
mia comunal, dava sinais de morte, e em seu lugar nascia a
concorrência. As idéias comunais, por fim, sucumbiram aos
princípios da poderosa sociedade privada (p. 128).

Numa segunda análise, diz que:

é o início de novas relações de produção, caracterizadas pela


exploração capitalista de um proletariado assalariado. Cam-
poneses arruinados por terem sido expulsos de suas terras,
artesãos esmagados pela concorrência, mercenários dos
senhores feudais que ficaram desempregados e todos aque-
les que fugiam da opressão feudal, livres, mas expropriados
de seus meios de produção, vêem-se obrigados a vender sua
força de trabalho, para não morrer de fome. O burguês, que
29
Tema 1
se originou da produção mercantil, compra esta força de traba-
lho, pois, para ele, tudo se compra e tudo se vende. A partir daí
o homem não só se escraviza no trabalho, como também se
aliena nele. É o fim, também, do trabalho artesanal que cede
lugar ao trabalho manufatureiro (p. 128).

São transformações que resultaram não só num novo


modo de produção, mas também na ascensão e consolidação
da ciência, da tecnologia e da razão, fundindo

as idéias do velho puritanismo com as novas modas inte-


lectuais, formando-se deste modo um novo sistema moral
conveniente às ambições sociais geradas pelo vitorianismo
(p. 136).

Estava, então, o mundo ocidental preparado para


receber, sem contestação uma nova moral sexual, diferente de
todas as tendências morais já vistas na História: o vitorianismo
do século XIX. Tratava-se de uma ideologia sexual repressora,
que nortearia o comportamento e as atitudes sexuais dos
indivíduos a partir do século XIX, com reflexos importantes até
os dias de hoje.
O século XIX tornou-se o palco ideal para a repressão
sexual, baseada em padrões e normas negativistas e restriti-
vas, que sustentavam o controle sexual pregado pela moral
médica. Católicos, protestantes, médicos, educadores, todos
se aliavam para normatizar as atitudes e comportamentos
sexuais através de postulados pseudocientíficos. Como analisa
Loyola (1999, p. 32-33),
30
Tema 1
o erotismo deveria ser regulado pela exigência de reprodução
da espécie e dos ideais de amor a Deus e à família. É na medi-
cina que a sexualidade termina por ser unificada como instinto
biológico voltado para a reprodução da espécie e que todos
os demais atributos ligados ao erotismo, desde sempre tidos
como sexuais, passaram a ser submetidos a essa exigência
primordial. A sexualidade é assim identificada com genitali-
dade e heterossexualidade…

O ocidente foi, então, influenciado por uma ciência


sexual que instiga o falar sobre o sexo, visando o máximo de
conhecimento sobre ele para controlá-lo. Essa é a conclusão
dos estudos de Michel Foucault.

Considerações finais

No final do século XX e início do século XXI, a herança


médico-cultural do vitorianismo, aliada a um modo de vida con-
sumista e individualista de uma sociedade capitalista e globali-
zada, nos lega uma concepção de sexualidade ainda limitada,
normatizada e geradora de culpa, angústia e ansiedade. Nós,
indivíduos do século XXI, ainda sofremos as conseqüências
desta moral anti-sexual rígida, austera, contida, que influenciou
profundamente as atitudes em relação à sexualidade. É neste
quadro que inserimos a questão da orientação sexual na escola.
Quando levamos para a escola a tentativa de trabalhar com a
sexualidade, levamos junto com essas propostas e projetos
toda esta história de repressão e preconceitos.
31
Tema 1
REFERÊNCIAS

CABRAL, J. T. Sexualidade no mundo ocidental. Campinas:


Papirus, 1999.

FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber.


Rio de Janeiro: Graal, 1980.

FOUCAULT, M. História da sexualidade: o uso dos prazeres.


Rio de Janeiro: Graal, 1984.

JACQ, C. As egípcias: retratos de mulheres do Egito faraônico.


São Paulo: Bertrand Brasil, 2000.

LEITES, E. A consciência puritana e a sexualidade moderna.


São Paulo: Brasiliense, 1987.

LOYOLA, M. A. (org.) A sexualidade nas ciências humanas.


Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1999.

USSEL, J. van. Repressão sexual. Rio de Janeiro: Campus,


1980.

VEYNE, P. A homossexualidade em Roma. In: ARIÉS, P. e


BÉJIN, A. (Org.). Sexualidades ocidentais: contribuições para
a história e para a sociologia da sexualidade. São Paulo: Brasi-
liense, 1987.

VRISSIMTZIS, N. Amor, sexo e casamento na Grécia Antiga.


32 São Paulo: Odysseus, 2002.
Tema 1
ANOTAÇÕES

33
TEMA

SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO ESCOLAR:


ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE ORIENTAÇÃO
SEXUAL NA ESCOLA
GISELLE VOLPATO DOS REIS
PAULO RENNES MARÇAL RIBEIRO
Tema 2

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), propõem


a Sexualidade e Orientação Sexual como um tema transversal,
que pode ser trabalhado pelo professor em sala de aula. Com
essa atitude, reconhecem que questões envolvendo sexo
permeiam o cotidiano escolar. Tais questões estão presentes
em atitudes e comportamentos dos alunos, nas reações dos
professores, nos grafites dos banheiros, nas brincadeiras
e piadas, enfim, o sexo ocupa ostensivamente o espaço
escolar, embora a escola tente trabalhar temas sexuais apenas
timidamente.
Este artigo pretende mostrar alguns requisitos essenciais
para desenvolver programas de orientação sexual na escola e
levar o leitor a questionar sobre alguns preconceitos que fazem
parte de nossa cultura e estão presentes em nossas atitudes.
Na maioria das vezes, sequer percebemos sua intromissão na
formação de nossos valores sexuais.
Primeiramente, gostaríamos de fazer uma distinção entre
educação sexual e orientação sexual. Os PCN adotaram
este último termo e vários autores utilizam o primeiro para
denominar a intervenção que se propõe fazer nas escolas,
envolvendo os alunos e suas necessidades sobre as questões
sexuais.
Utilizamos o termo educação sexual quando nos referi-
mos à educação recebida pelo indivíduo desde o nascimento,
inicialmente na família, posteriormente na comunidade, com
35
Tema 2
seu grupo social e religioso, com a mídia, educação. Essa edu-
cação é contínua, indiscriminada e decorrente dos processos
culturais que envolvem a aquisição de normas, regras e valores
sobre o sexo. Utilizamos o termo orientação sexual para nos
referir a um trabalho planejado, organizado, sistematizado, com
tempo e objetivo limitados, realizado por um profissional espe-
cializado. O objetivo deste trabalho é informar, debater e refletir
sobre questões da sexualidade com os indivíduos, levando-os
a conhecer seu próprio corpo, entender sentimentos, medos e
angústias, a ser sujeitos de sua própria sexualidade.
Esta distinção já havia sido feita por Ribeiro (1989;1990)
e essa conceituação foi compartilhada pelo Grupo de Trabalho
e Pesquisa em Orientação Sexual, de São Paulo (GTPOS, ABIA
e ECOS, 1994) e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
(Brasil, 1997). O termo orientação sexual é utilizado por vários
outros autores, como França (1984); Silva (1995); Sayão (1997);
Peres et al. (2000) e Egypto (2003).
Já para Vitiello (1995), a educação sexual é um conjunto
de informação, orientação e aconselhamento que não se limita
a mera informação, mas a formação do sujeito. Este autor nos
esclarece:
Informar é uma atividade de ensino, de instrução, e não de
educação, ao menos enquanto a informação for passada iso-
ladamente. Já a orientação implica num mecanismo mais
elaborado, segundo o qual, baseando-se em sua experiência
e em seus conhecimentos, o orientador ajuda o orientando a
analisar diferentes opções disponíveis, tornando-o assim apto
a descobrir novos caminhos. Aconselhar, por outro lado, con-
36
Tema 2
siste em auxiliar o aconselhando a decidir-se por um ou vários
dos possíveis caminhos que ele próprio já conhece, em outras
palavras, aconselhar significa “ajudar a decidir”. Educar, final-
mente, embora possa passar por informar, por orientar e por
aconselhar, é mais do que a soma dessas partes isoladas.
Educar, no sentido mais amplo, significa formar, não na acep-
ção de que o educando seja uma cópia do educador, mas sim
na de que o educador dá ao educando condições e meios
para que cresça interiormente (VITIELLO, 1995, p.18).

Em seu cotidiano sexual o indivíduo desenvolve o seu


modis vivendi a partir da educação sexual recebida desde o
nascimento. Parker (1994) fala em uma cultura sexual brasileira
cheia de contradições, fundamentada hi storicamente em uma
ordem social patriarcal e dominada pela Igreja Católica, em que
permissividade e proibição, práticas sexuais e culpa fazem
parte do contexto sexual brasileiro desde a Colônia.
Ao chegarmos no final do século XX e no início do século
XXI, a herança judaico-cristã trazida pelos portugueses no
período colonial, e a influência médico-cultural do vitorianismo,
aliadas à um modo de vida consumista e individualista da
sociedade de nossos dias, nos lega uma concepção de sexu-
alidade limitada, normatizada e geradora de culpa, angústia
e ansiedade. É com toda esta história de preconceitos e de
repressão sexual que muitos projetos de orientação sexual são
elaborados e realizados nas escolas.
Os professores e demais profissionais que lidam com
crianças e jovens têm um papel fundamental no processo de
37
Tema 2
aquisição de conhecimentos e valores por parte de seus alunos.
Isso implica numa necessidade estes educadores também
terem um espaço onde possam se formar como orientadores
conscientes e capazes de indicar caminhos e escolhas que
tornem a vida do indivíduo menos traumática, com menos
culpa, ansiedade, preconceitos e desinformação.
A escola, geralmente tem uma visão de que o sexo é
perigoso para os alunos, pode causar doenças, transmite a
AIDS, é responsável pela gravidez precoce e indesejada. Ou
seja, se tem uma idéia negativa de sexo associando-o a doen-
ças ou a problemas. A orientação sexual parece ser a solução
para os problemas sexuais que aparecem na escola e que nós
achamos que precisam ser eliminados. A orientação sexual
na escola, contudo, precisa ser emancipatória (Melo, 2004)
e com algumas características que tirem dela a idéia corrente
de ser paliativa para problemas que incomodam professores e
diretores.
A primeira característica é ser combativa (GOLDBERG,
1986): combater o preconceito, a discriminação, a desigualda-
de, os estereótipos. Seja com crianças, seja com adolescentes,
o orientador sexual tem de estar atento para não transmitir
preconceitos e trabalhar questões de gênero, enfatizando a
igualdade entre os sexos. Em todas as situações de aula e lazer
o professor pode dar exemplo, fazer comentários e passar
atividades em que o aluno possa assimilar valores igualitários
e entender o quanto é prejudicial os preconceitos e estereó-
tipos. A orientação sexual precisa ser reflexiva, para que o
aluno questione sobre estas desigualdades, estabeleça juízo
38
Tema 2
de valores, não ser passivo, não aceitar tudo o que é imposto
como modismo. Também precisa ser crítica, para ajudar o
aluno a construir sua própria escala de valores, a partir de uma
consciência crítica que o capacite a ver, questionar, julgar e
agir. Outra característica, que, no entanto não pode ser isolada,
é que a orientação sexual precisa também ser informativa.
Deve fornecer informações científicas a respeito da anatomia e
da fisiologia sexual e das doenças sexualmente transmissíveis.
E ainda, possibilitar que seu aluno encontre um espaço para
debater e entender seus medos, ansiedades e angústias. Esta
quarta característica, no entanto, tem de estar ancorada nas
características anteriores.
O orientador sexual também precisa ter alguns pré-
requisitos que respaldem sua atuação. Deve, antes de tudo,
acreditar em sua proposta, na necessidade de levar para a
sala de aula o debate sobre sexo e sexualidade. Também
deve ser uma pessoa coerente com a sua proposta, que não
tente passar modelos. Ao invés disso, analisa com os alunos as
diferentes situações e visões que existam sobre o tema; deve
ser verdadeiro, sem se achar portador da verdade absoluta;
conhecer o assunto sem ser onipotente; ter sensibilidade para
perceber as necessidades dos alunos e procurar elaborar um
programa que vá ao encontro dessas necessidades e das
expectativas desses alunos; firmar relação de confiança com o
aluno, não estabelecer juízo de valores ou criticar as diferentes
formas de expressão da sexualidade, e entender que crianças
e jovens estão buscando o prazer e respostas às curiosidades
e dúvidas que a vivência da sexualidade naturalmente gera em
39
Tema 2
todos nós. O orientador sexual deve estar bem preparado e
protegido de desequilíbrios pessoais que possam inibi-lo ou
fazer com que tenha uma postura moralista e tendenciosa.
Deve ser confiável, acessível e disponível (SUPLICY, 1981;
RIBEIRO, 1990).
Talvez alguém ache, com razão, que estas características
sejam essenciais para alguém ser considerado um bom profes-
sor. No caso do orientador sexual, porém, estas características
são indissociáveis. O orientador sexual lida com o afeto, a
angústia, o medo e a culpa, que caminham lado a lado das
questões que envolvem sexo. Não lida só com o intelecto e
a inteligência. Não basta saber, é preciso sentir. É essa a dife-
rença marcante entre ensinar Física, Português ou História,
e orientar a sexualidade de uma criança e de um adolescente.
A orientação sexual envolve tanto conhecimento quanto
percepção, tanto condições intelectuais quanto capacidade de
escutar.
Sua formação intelectual envolve (RIBEIRO, 1990):
a) Conhecimentos gerais de anatomia, fisiologia,
psicologia do desenvolvimento, psicologia da infância e da ado-
lescência, psicologia das relações humanas, aconselhamento
psicológico;
b) Conhecimentos específicos de sexualidade humana
(desenvolvimento psicossexual, sentimentos e funções,
repressão sexual, doenças sexualmente transmissíveis);
c) Conhecimentos didáticos que incluam didática da
orientação sexual, dinâmica de grupo, metodologia do ensino;

40
Tema 2
d) Que toda esta formação seja permeada por uma
postura crítica, que provoque reflexão e questionamentos
para que o orientador sexual reformule suas atitudes frente ao
sexo, reveja tabus e preconceitos e seja capaz de tratar com
naturalidade os alunos e suas questões polêmicas.
No entanto, a condição mais importante é sentir-se à
vontade para falar de sexo com seus alunos, aceitar que a
sexualidade é natural e necessária na vida de todos nós e que
tabus e preconceitos não podem fazer parte da orientação
dada aos alunos.
Além disso, há outros aspectos importantes a considerar.
Quem lida com orientação sexual, lida também com valores
familiares e com modos de conduta em relação à sexualidade.
Tais valores e condutas podem parecer, à primeira vista,
estranhos ou não usuais, ao lado de outros que nos parecem
desejáveis e certos. Uma vez que a sociedade comporta uma
grande diversidade em relação ao poder aquisitivo, à origem,
à fé religiosa, às convicções políticas e aos padrões para a
organização da família, existem modelos válidos para oferecer
às crianças? Que critérios devemos utilizar para fornecer as
informações? Aprofundando a questão, existem parâmetros
morais ou comportamentais válidos para todas as tentativas de
realizar uma orientação sexual?
Parece-nos que a imposição de qualquer tipo de valor
dogmático na escola confundiria as finalidades da orientação
sexual, tomando-a como um dos mecanismos pelos quais
ocorre a repressão sexual. A abertura para falar sobre o tema
é necessária, mas também é fundamental aceitar e conviver
41
Tema 2
com a diferença, a diversidade de condutas, valores, crenças
e convicções que caracterizam diferentes grupos sociais.
Por exemplo, embora eu possa acreditar que determinada
condição é desvantajosa sob determinado aspecto, não tenho
o direito de impor essa minha crença a outros, ou de julgá-los
com base nessa convicção.
Por isso é essencial que a escola se disponha a debater
esses temas com a sociedade como um todo, envolvendo
principalmente a família e as instâncias internas do ambiente
escolar: professores, funcionários e direção. Além disso, o
compromisso com a orientação sexual, idealmente, não deve
estar vinculado à ocorrência de “problemas” a serem resolvi-
dos, mas à compreensão de que o diálogo sobre a sexualidade
no cotidiano escolar, além de favorecer a promoção da saúde
sexual, desenvolve cidadãos mais livres e conscientes sobre
essa dimensão de suas vidas.

42
Tema 2
REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação


Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade
cultural e orientação sexual. Brasília: MEC / SEF, v. 10, 1997.

EGYPTO, A. C. (Org.) Orientação sexual na escola: um proje-


to apaixonante. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

FRANÇA, C. A. V. Orientação sexual: algumas considerações.


Revista Prospectiva. Porto Alegre, v. 2, n. 13, 1984, p. 41-43.

GOLDBERG, M. A. A. Educação sexual: uma proposta um


desafio. São Paulo: Aruanda, 1986.

GTPOS. ABIA. ECOS. Guia de orientação sexual: diretrizes e


metodologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.

MELO, S. M. M. Corpos no espelho: a percepção da corporei-


dade em professoras. Campinas: Mercado de Letras, 2004.

PARKER, R. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no


Brasil contemporâneo. São Paulo: Best Seller, 1994.

PERES, C. A.et al. Fala educadora! Fala educador! São Paulo:


NEPAIDS / USP; GTPOS; P.E.DST/AIDS-SP, 2000.

RIBEIRO, P. R. M. Educação sexual além da informação. São


Paulo: EPU, 1990.
43
Tema 2
RIBEIRO, P. R. M. Uma contribuição ao estudo da sexuali-
dade e da educação sexual. 1989. Dissertação (Mestrado) –
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas.

SAYÃO, Y. Orientação sexual na escola: os territórios possíveis


e necessários. In: AQUINO, J. G. (Org.) Sexualidade na esco-
la: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus Edito-
rial, 1997. p. 107-117.

SILVA, R. C. A orientação sexual vivida por educadores


e alunos: possibilidades de mudanças. 1995. Dissertação
(Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.

SUPLICY, M. Educação sexual: verdade ou moral? Folha de S.


Paulo. São Paulo, p. 3, 14 jun. 1981.

VITIELLO, N. A educação sexual necessária. Revista Brasileira


de Sexualidade Humana, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 15-28, 1995.

44
Tema 2
ANOTAÇÕES

45
TEMA

PROCESSO DE EDUCAÇÃO E
REPRESSÃO SEXUAL
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
ARI FERNANDO MAIA
Tema 3

A sexualidade é um tema presente em nossa vida desde


o nascimento. Nossa formação, isto é, nossos sentimentos e
ações em relação à nossa vida sexual, advém de um apren-
dizado constante, que inclui valores e concepções sociais e
históricas. Cada sociedade e cultura pauta-se em valores,
modos de vida e conjuntos de regras que culminam numa
concepção de “normalidade”. O mesmo vale com relação às
questões da sexualidade.
A educação sexual, portanto, é um processo que se
concretiza na personalidade individual, é construído ao longo da
vida, por meio de relações sociais, e culmina, na vida adulta, na
possibilidade de fazer escolhas e viver a própria sexualidade. As
concepções e aprendizados diversos, frutos da educação sexu-
al, influenciam as atitudes do sujeito em relação à sexualidade,
tanto à própria, quanto às das outras pessoas (CAVALCANTI,
1993; MAIA, 2001; RIBEIRO, 1990; 2002; VITIELLO, 1992;
1995; WEREBE, 1981).
Nesse processo de educação sexual podemos distinguir
diferentes dimensões, pois só podemos compreendê-lo incluin-
do aspectos biológicos, psicológicos e sociais. A dimensão
biológica da educação sexual diz respeito às mudanças físicas
e corporais que ocorrem ao longo do desenvolvimento humano.
Também diz respeito aos nossos desejos, que respondem às
demandas corporais, biológicas, relacionadas à sexualidade.
A dimensão psicológica diz respeito à nossa compreensão
47
Tema 3
subjetiva e à vivência emocional relacionadas às modificações
corporais e aos desejos que nos ocorrem. Porém, o aspecto
psicológico não pode ser compreendido sem a mediação da
sociedade, sem considerar como a família, a escola e outras
instâncias sociais dão sentido e influenciam nossos padrões
de “normalidade”. A dimensão social, portanto, é todo um con-
junto de normas e regras que a sociedade impõe, em função
de uma determinada cultura em um dado momento histórico,
consideradas desejáveis e necessárias para uma vida sexual
“adequada”. Em função destes padrões é que construímos
nossas atitudes em relação a nossa vida sexual e à de outros.
Como educadores, todos influenciamos e somos
influenciados por um enorme conjunto de aprendizagens sobre
a sexualidade, que tem início antes mesmo de nascermos. Um
educador terá tanto mais influência sobre seus educandos
quanto mais intensa, contínua e duradoura for sua relação com
eles. Este tipo de influência é bem estabelecido na família e
na escola. As crianças têm, cada vez mais precocemente,
freqüentado as escolas, e por um período muito longo. A
socialização na escola, a relação entre diferentes pessoas,
sejam elas crianças, funcionários, educadores ou dirigentes
tem um importante papel na educação sexual. Por isso, o
preparo do professor para atuar na educação sexual de seus
alunos é fundamental (VITIELLO, 1995).
Vitiello (1995) esclarece:
Neste sentido, a educação sexual sistemática só pode ser
feita por familiares ou por professores, pois apenas a família
e a escola, como instituições sociais, conseguem preencher
48
Tema 3
os pressupostos que explicitamos antes, isto é, só elas con-
seguem atuar de maneira contínua e duradoura. Se essa
educação é de boa ou má qualidade, se é ou não satisfató -
ria, é outro problema; o que é indiscutível é ser ela a única
a se dar de forma sistemática. Já a educação assistemá-
tica, ocasional, pode ocorrer de forma espontânea, no seio
da própria sociedade (em grupos de parceria, por exemplo)
ou mesmo de forma proposital, quando o educando procura
por iniciativa própria freqüentar cursos, ler matérias ou assistir
conferências sobre o tema. […] Voltando à discussão do tema
do papel do profissional na educação sexual, queremos dei-
xar bem clara nossa opinião de que o médico, a enfermeira,
o psicólogo ou o assistente social, quando fazem palestras
em escolas não estão exercendo verdadeiramente a educa-
ção sexual, mas sim funcionando como meros informadores.
Claro que bem intencionadas tentativas são meritórias e fun-
cionam no sentido de desmistificar o tema; são entretanto
absolutamente contraproducentes enquanto medidas educa-
doras. […]. Continuamos a insistir, no entanto, que o caminho
real para a educação sexual não é levar profissionais de várias
áreas às escolas, mas sim preparar professores interessados
para a tarefa de fazê-la (VITIELLO, 1995, p.19).

Para Werebe (1977) a educação sexual é um processo


que engloba um conjunto de ações diretas ou indiretas,
deliberadas ou não, conscientes ou não, exercidas sobre uma
pessoa, ao longo de seu processo de desenvolvimento.
Como um processo educativo assistemático, ele existe nas
49
Tema 3
relações humanas em geral, e não precisa estar relacionada
exclusivamente a uma “aula sobre sexo”. Sem querer esgotar
a questão, o importante é considerar que, de uma forma ou
de outra, com nossa postura, gestos, silêncio ou palavras,
nós educadores influenciamos a educação sexual de nossos
alunos, queiramos ou não. Nem sempre somos conscientes
de nossa influência sobre a educação sexual das pessoas,
mas esse tipo de educação vai existir desde o nascimento até
a morte. Aprendemos e ensinamos, por ações deliberadas ou
não, sobre muitos conceitos relacionados à nossa sexualidade
constantemente. E, segundo os autores Cabral (1995), Cunha
(1981), Fagundes (1992) e Nunes (1987), todo esse aprendizado
sofre modificações em função da história.
Para compreender a educação sexual que recebemos, é
fundamental considerar as formas sociais de repressão sexual,
como acontece a educação sexual, que tipos de práticas
sexuais são estimuladas, quais são consideradas tabus, quem
tem a incumbência de educar nesse âmbito, como ocorrem
as práticas sexuais, o que é considerado normal, como são
punidos os desviantes, entre outras questões. Os desejos que
fazem parte de nosso corpo são ora estimulados, ora reprimi-
dos, dependendo de como a sociedade encara a sexualidade.
Algum nível de repressão sexual sempre existiu, em
todos os lugares e épocas, nas diferentes culturas conhecidas.
Ao que parece, segundo a intuição de Freud e os estudos da
antropologia, como os feitos por Levis-Strauss, a repressão
sexual está ligada ao início da civilização humana. Se for assim,
sempre há uma incompatibilidade entre os desejos do indivíduo
50
Tema 3
e as normas e leis que ele tem de seguir para pertencer a uma
cultura humana. Tais desejos sobrevivem no inconsciente,
segundo Freud, e influenciam a vida e as atitudes dos indivídu-
os, sem que eles percebam. Por isso, quase sempre, adotamos
atitudes em relação à sexualidade de que somos pouquíssimos
conscientes, pois elas, em boa medida foram construídas na
luta entre o desejo e a repressão.
No entanto, para nossa discussão, o que interessa mais
de perto é compreender que nem sempre a repressão sexual
ocorre de modo visível e claro. E se formos mais conscientes
sobre como a repressão atua, teremos condições de não
repetir, na educação que oferecemos, os conflitos que fizeram
parte de nossa educação sexual. Em geral, quando pensamos
em repressão sexual, pensamos em contenção de alguns
desejos, punição de alguns comportamentos ou, ainda,
omissão e silêncio sobre certas práticas. Mas, nesta reflexão,
vamos argumentar que, muitas vezes, a repressão sexual
ocorre também por meio de permissões ou da imposição de
certas atitudes.
Será que a tolerância em relação à possibilidade de
realizar certos atos sexuais, como o estímulo em um grupo de
jovens sobre a perda da virgindade e ocorrência de relações
sexuais irresponsáveis antes do casamento, pornografia de
fácil acesso, exposição de corpos desnudos em vários meios
de comunicação, etc, não seriam formas veladas de repressão?
Várias são as regras que nos oprimem diariamente. Embora
não estejam consolidadas na forma de leis, há pressões sociais
reais, que se traduzem em obrigações para os indivíduos: ter
51
Tema 3
que ser heterossexual, casar-se com tal idade (especialmente
as mulheres), ter filhos após o casamento (para a construção
de uma família feliz), ser bela (incluindo aí um corpo escultural),
ter que sentir orgasmos, ter ereção e um bom desempenho
sexual, etc.
Mas não percebemos essas regras como repressivas,
embora soframos, diariamente, com essas imposições sociais,
seja pela existência da cobrança, ou pela culpa pessoal e a
sensação de desajuste, porque a cobrança e a regra foram
internalizadas. Esse é o efeito mais notável da educação
sexual: por meio dela tornamo-nos capazes de reprimir nossos
desejos mais intensos sem percebermos que houve uma
repressão da sexualidade. É bem verdade que tais desejos
não deixam de se manifestar, seja como sintomas neuróticos,
ou o ressentimento em relação à cultura. Mas o fato é que
raramente somos conscientes dos desejos reprimidos e do
processo de educação que recebemos.
A repressão sexual, basicamente, é definida por um
conjunto de regras, valores, atitudes e concepções gerais
sobre a sexualidade impostas às pessoas, numa sociedade
e cultura determinadas, acompanhadas da ameaça do
isolamento e punições, tanto físicas quanto psicológicas, como
a pena de não “ser feliz para sempre”. Aliás, ser feliz, tem
diferentes sentidos para diferentes pessoas e, quase sempre,
o esquecimento dessa verdade é uma das faces da repressão
sexual na atualidade.

52
Tema 3
Segundo Chauí (1985):
A repressão sexual pode ser considerada como um conjunto
de interdições, permissões, normas, valores, regras estabe-
lecidos histórica e culturalmente para controlar o exercício da
sexualidade… (p.9) […]
De modo geral, entende-se por repressão sexual o sistema
de normas, regras, leis e valores explícitos que uma socie-
dade estabelece no tocante a permissões e proibições nas
práticas sexuais genitais (mesmo porque um dos aspec-
tos profundos da repressão está justamente em não admitir
a sexualidade infantil e não genital). Essas regras, normas,
leis e valores são definidos explicitamente pela religião, pela
moral, pelo direito e, no caso de nossa sociedade, pela ciên-
cia também (p.77).

A repressão sexual, então, tanto pode ser evidente e


explícita como camuflada, velada, sutil e disfarçada. Ela ocorre
não somente nas proibições (imperativos de conotação nega-
tiva) mas também nas permissões (aquilo que se deve fazer).
Como aprendemos e internalizamos este conjunto de regras e
normas de conduta? Por meio da educação. Quando tais regras
não são “seguidas” há punições e sanções que podem ser
sentidas individualmente com dor, sofrimento e culpa (CHAUÍ,
1985). É preciso considerar que a repressão sexual não é um
fenômeno fundamentado na natureza orgânica do homem,
mas é mediado por fatores sociais. Há diferenças marcantes
dos efeitos da repressão entre classes abastadas e proletárias,
assim como em diferentes sociedades e culturas. Mas, se
53
Tema 3
toda cultura dita, em geral, regras em relação à sexualidade
que podem ser caracterizadas como repressivas, isso não diz
nada sobre a natureza e a finalidade da repressão. Como ocorre
atualmente a repressão sexual em nossa sociedade? Que tipo
de finalidade pode ter a repressão sexual atualmente?
Um filósofo alemão, chamado Herbert Marcuse, levantou
questões importantes para pensarmos a respeito. Analisando
filosoficamente a obra de Freud, Marcuse (1998) aponta que
1
Além do texto de os conceitos fundamentais da psicologia freudiana são intrin-
Marcuse já citado, al- secamente sociais e políticos, embora Freud tenha analisado
guns textos de Freud são
exclusivamente indivíduos. Segundo Marcuse, a estrutura
também importantes pa-
ra acompanhar a crítica psíquica descrita por Freud é um jogo dinâmico de forças em
marcusiana e para com- luta: vida e morte, princípio do prazer e princípio de realidade,
preender os conceitos id, ego e superego. A luta entre essas forças antagônicas toma
freudianos. Em especial,
forma nos indivíduos e a neurose que eles expressam é uma
indicamos: O ego e o id;
forma de protesto contra a opressão social. O conflito descrito
O mal-estar na civilização
ou Esboço de psicanálise, por Freud como Complexo de Édipo expressaria as raízes
todos contidos na edição históricas do princípio de realidade existente e da opressão
brasileira das obras com- do homem pelo homem1. Se é assim, a repressão sexual tem
pletas de Freud (1976).
também uma dimensão política, que precisamos explicitar
para definir nossas ações sobre ela. Em poucas palavras, ela
contribui para justificar e naturalizar a sociedade existente,
frustrando as tentativas de criar novas formas de sociabilidade.
Contribui também para o direcionamento dos impulsos sexuais
reprimidos para a tarefa de dominar a natureza e os próprios
homens.
A sociedade atual é adjetivada por Marcuse (1968) como
unidimensional, ou seja, uma sociedade na qual a cultura, que
54
Tema 3
no século XIX era uma esfera pretensamente separada da vida
material, torna-se parte do mundo dos negócios. Oferece aos
indivíduos mercadorias culturais que, por isso mesmo, perdem
a força crítica e emancipatória que ainda tinham as obras de
arte. É verdade que tais obras, ao prometerem a felicidade e
a beleza como valores universais usufruídos pelos indivíduos,
produziam um discurso ideológico. Isto é, é mentira que é
possível usufruir a beleza de uma obra de arte em meio à
miséria objetiva. Mas essa ideologia tinha, pelo menos, como
elemento de verdade a apresentação de um valor (a beleza),
que permitia aos homens medir a distância a que se encontrava
a sociedade da realização de uma condição realmente humana.
A arte e a filosofia, entre outras manifestações da cultura,
criavam em algumas de suas obras, essa outra dimensão, que
permitia a crítica à sociedade.
Mas, atualmente, se a cultura não pretende mais ser
autônoma em relação à vida material, a sociedade torna-se
unidimensional. E sua justificativa para continuar a existir
como tal é a sua eficiência técnica. Trata-se de uma sociedade
administrada tecnicamente, e um dos meios mais notórios
pelo qual essa administração opera é a indústria cultural.
Nessa sociedade a repressão sexual não é realizada somente
pela família, mas também, talvez essencialmente, por meio
da indústria cultural. Trata-se de uma repressão curiosa, que
opera por meio da abundância da oferta de produtos que, apa-
rentemente, satisfazem os desejos dos indivíduos. Marcuse
chama essa nova forma de repressão de dessublimação
repressiva.
55
Tema 3
Para compreender esse conceito é preciso lembrar o
conceito de sublimação, criado por Freud. Tal conceito indica
que um impulso sexual foi desviado de seu alvo e de seu objeto
original e encontra-se vinculado a um objetivo não sexual. A
atividade artística e a investigação intelectual seriam exemplos
de atividades que não visam, de modo direto, uma atividade
sexual, embora sejam alimentadas por um desejo que, em sua
origem, é sexual. Segundo Marcuse (1998), dessublimação
indicaria que não há sublimação. Segundo ele, atualmente,
há vários objetos que são oferecidos como possibilidades
de gratificação direta dos desejos sexuais. Mas, por que
tal dessublimação seria repressiva? Porque, ainda segundo
Marcuse (1998), a natureza do desejo erótico é tal que, sendo
ele necessariamente associal, sua gratificação, por meio de
bens padronizados, leva necessariamente ao conformismo e à
repressão. A base do argumento do autor está no conceito de
sexualidade de Freud. Nas palavras de Marcuse:
No centro desse conceito [de sexualidade] está o conflito
entre a sexualidade (como força do princípio do prazer) e
a sociedade (como instituição do princípio de realidade): a
última é necessariamente repressiva perante as exigências
inflexíveis das pulsões de vida primárias. Através de sua força
mais interna, Eros “manifesta-se” “contra a pulsão gregária”,
recusando “a influência da massa”. Hoje, na dessublimação
comercial, parece dominar justamente a tendência contrária.
O conflito entre o princípio de prazer e o princípio de reali-
dade é dirigido por meio de uma liberalização controlada, que
realça a satisfação obtida com aquilo que a sociedade ofe-
56
Tema 3
rece. Mas nessa forma de liberação a energia libidinal muda
sua função social: na medida em que a sexualidade é sancio-
nada e até encorajada pela sociedade (não “oficialmente”, é
claro, mas através dos costumes e modos de comportamento
considerados “normais”), ela perde a qualidade que, segundo
Freud, é sua qualidade erótica essencial, a saber, o elemento
de emancipação no que se refere ao social (MARCUSE, 1998,
p. 106).

Em outras palavras, em nossa sociedade vigora um tipo


de repressão sexual que não é sentida como tal. O sujeito tem
várias “liberdades” e pode usufruir de várias mercadorias que
satisfaçam seus desejos. Mas essa satisfação é repressiva
justamente porque implica, no próprio ato de satisfazer-se, a
repressão, pois sempre o sujeito cede à sociedade ao realizar o
ato. Isso porque a própria forma de obter satisfação é padroni-
zada, não permite a expressão individual do desejo, elemento
essencial à própria natureza dele. A liberdade individual, a
satisfação que afrontava a sociedade que, quando reprimida,
permitia constatar a distância entre os interesses do indivíduo
e os interesses da cultura, é atualmente administrada tecni-
camente de modo que o indivíduo seja reprimido sem que se
sinta reprimido. O elemento de emancipação frente ao social
era uma qualidade essencial da vida erótica e, ainda segundo
Marcuse (1998, p. 106)
Era nessa esfera que habitava a liberdade ilícita, a perigosa
autonomia do indivíduo sob o princípio de prazer: sua limi-
tação autoritária por parte da sociedade testemunhava a
57
Tema 3
profundidade do conflito entre indivíduo e sociedade, ou seja,
em que extensão a liberdade era reprimida. Agora, com a
integração dessa esfera ao campo dos negócios e dos diver-
timentos, a própria repressão é recalcada: a sociedade não
ampliou a liberdade individual, e sim o seu controle sobre o
indivíduo (p. 106).

Ao que parece, vivemos em uma sociedade que oferece


variadas fontes de satisfação, evidentemente, dependendo
de nossa capacidade de adquirir mercadorias. Com isso,
nos adaptamos de tal modo às regras incluídas no próprio
consumo desses bens, que a repressão ocorre em um nível
muito abrangente, sem que o indivíduo perceba que está
sendo reprimido.
Para Ribeiro (1990), apesar da história da sexualidade
mostrar mudanças significativas no comportamento sexual,
ainda não superamos a repressão à sexualidade. Para ele,
embora a realidade sugira que a Igreja e outras instituições que
mediam nossa educação, não formem mais a mentalidade da
maioria das pessoas. O sexo é mostrado explicitamente nos
meios de comunicação, como a televisão e o cinema, nossa
sociedade é permeada de regras, valores, normas que, de
forma sutil, acabam por culminar na manifestação de uma
sexualidade repressiva.
Se vivemos em uma sociedade repressiva, onde estaria
a possibilidade da liberdade? Onde está a liberdade quando
seguimos, irrefletidamente, padrões sociais aceitos e vigentes,
bons comportamentos ou atitudes normais? Ou seria a liber-
58
Tema 3
dade algo inatingível? Como a escola pode pensar a repressão
sexual, lutando contra estes padrões?
Há quem defenda que a liberdade é inatingível porque
somos criaturas necessariamente culturais (SILVA, 1984), de
modo que a liberdade esbarrará sempre nos limites sociais. Há
outros, no entanto, que acreditam que pode haver liberdade
dentro de uma sociedade repressiva, na medida em que
encontremos a possibilidade de reinventar e questionar a
necessidade de controle sobre a vida sexual de uma sociedade
(ARAÚJO, 1997; CANELLA, 1984).
Nas palavras de Canella (1984, p.59), a liberdade:
constitui a possibilidade de questionar, criticar, refletir, rein-
ventar e intervir sobre o status quo… pois é da repressão à
sexualidade que derivam os maus costumes; a liberdade leva
à responsabilidade, já a repressão é a ante-sala da mentira e
da dependência (CANELLA, 1984, p.59).

Para discutir uma liberdade, devemos considerar que,


quando se fala em seres humanos não há nada que seja ime-
diatamente natural. O fato de sermos também seres sociais
implica em podermos modificar as condições que damos sobre
a sexualidade. Por outro lado, é importante compreender que,
como seres também “naturais” temos necessidades que não
devem ser descartadas. Pensar a liberdade no que diz respeito
à sexualidade implica em recuperar a possibilidade de ações
ético-políticas, que transformem a própria sociedade, que se
utiliza da repressão à sexualidade para perpetuar as relações de
poder que a caracterizam.
59
Tema 3
Como educadores sexuais devemos lutar por uma
educação sexual que incentive, em nossos educandos, a busca
pela autonomia. Que nossas ações e atitudes, em relação à
sexualidade, sejam de fato escolhas e não mera reprodução de
regras aprendidas ou incorporadas. Certamente isso não é uma
tarefa fácil. Romper com os padrões vigentes é remar “contra
a maré”. Mas, precisamos ser vigilantes quanto à seguinte
questão: em que medida nós mesmos reproduzimos as regras
aprendidas e as tomamos como “naturais?” Ao assumirmos os
fracassos e nos desvencilharmos da repressão como problemas
individuais, aumentamos nossas culpas e sofrimentos?
Se nós, adultos, começarmos a assumir conscientemen-
te nosso papel de agentes de educação sexual, garantindo às
crianças uma formação de atitudes, com maior autonomia,
talvez, possamos vislumbrar uma sociedade em que os adoles-
centes vivenciem sua sexualidade com prazer e responsabilida-
de. E os adultos sejam mais satisfeitos e menos enraizados em
concepções conservadoras e limitadas, que possam reinventar
a história. Como vemos, nossa responsabilidade como educa-
dores é enorme!
A Psicologia tem contribuições importantes sobre essa
questão, mas não podemos dispensar também a História e a
Filosofia para embasar nossas reflexões para criticar radical-
mente a repressão sexual na sociedade contemporânea. No
entanto, é importante não pensar a Psicologia como mera forma
“terapêutica”. De nada adianta tratar o mal depois de instalado,
se não procurarmos modificar a educação que fornecemos às
crianças. Essa educação só mudará de fato se nos opusermos
60
Tema 3
à sociedade repressiva como um todo. Sem diálogo não há
educação! Se houver oportunidades para as crianças falarem
livremente e expressarem seus medos, dúvidas, desejos
e “teorias” sobre a sexualidade, sem dúvida criaremos um
ambiente menos repressivo. Quem sabe, podemos ensiná-los
que nessa seara não há verdades absolutas, que todos temos
direito ao prazer e à expressão de nossa individualidade, que
os valores e regras da sociedade são, em grande medida,
arbitrários e que podemos contribuir para modificá-los.

61
Tema 3
REFERÊNCIAS

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62
Tema 3
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Paulo: Febrasgo, 1984, p. 33-36.

63
Tema 3
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VITIELLO, N. Outra vez a educação sexual. Boletim Informati-


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WEREBE, M. J. G. A educação sexual nas escolas. São


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WEREBE, M. J. G. Educação sexual: instrumento de democra-


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Paulo, n. 36, p. 99-110, 1981.

64
Tema 3
ANOTAÇÕES

65
TEMA

IDENTIDADE E PAPÉIS SEXUAIS: UMA


DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO NA ESCOLA
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
Tema 4

A discussão sobre questões relativas ao gênero na


escola é atual, pertinente e necessária. Numa sociedade que
apresenta tantas diferenças entre os sexos masculino e femi-
nino quanto aos padrões de consumo, estética, produtividade,
enfim, aos padrões sociais gerais, é preciso pensar em como
temos educado nossas meninas e meninos na escola. Será
que estamos contribuindo para perpetuar a situação ou para
modificá-la?
Ainda que, aparentemente, meninos e meninas
freqüentem o mesmo espaço na escola e recebam o mesmo
tratamento acadêmico, é preciso reconhecer que há ações
sutis do dia a dia que revelam a enorme diferença que a
sociedade impõe ao tratamento dado aos gêneros, e o quanto
estas diferenças são reproduzidas no contexto da escola. A
diferença, em si, não é prejudicial a ninguém, pelo contrário.
O ideal democrático implica na convivência pacífica entre
os diferentes. O problema é que estas diferenças, em geral,
constituem desvantagens para um grupo em relação ao outro,
tratando-os como desiguais.
A definição do sexo, feminino ou masculino, é um fato
biológico. Ao nascermos, nossa anatomia nos define como
homem ou como mulher. A sexualidade biológica inclui o
chamado sexo genético e o sexo somático (sexo gonadal, sexo
genital e sexo extragenital) (CAVALCANTI, 1990; COSTA, 1994).
O sexo genético é constituído pela união dos cromossomos
67
Tema 4
sexuais, (XX para fêmeas e XY para os machos), provenientes
dos gametas paterno e materno. O sexo somático (referente
ao corpo) envolve:
a) o sexo gonadal, que consiste na definição sexual,
através do desenvolvimento da gônoda sexual no
embrião que até a 6ª semana de vida uterina não está
ainda diferenciada, e culmina na formação dos testículos
dos machos e dos ovários nas fêmeas;

b) o sexo genital, que consiste na diferenciação dos geni-


tais internos no 3º. mês de vida embrionária, diretamente
subordinada ao sexo gonadal, incluindo as vesículas
seminais, a próstata e o epidídimo nos machos e o útero,
as tubas uterinas e o canal vaginal nas fêmeas;

c) o sexo extragenital, que constitui a determinação


biológica do sexo, através das transformações corporais
da puberdade e que incluiria as características sexuais
secundárias, a partir da liberação hormonal que ocorre
nesse período.

Estas características seriam: nas mulheres, a menarca,


o aparecimento dos pêlos axilares e pubianos, o crescimento
das mamas e a ocorrência de lubrificação vaginal. Nos homens
ocorre o crescimento do pênis, a ejaculação com espermatozói-
des, o aparecimento dos pêlos axilares e pubianos, a barba, o
engrossamento da voz e o crescimento do tórax (CAVALCANTI,
1990; DUARTE, 1995).

68
Tema 4
No entanto, apesar do imperativo biológico, vivemos
em sociedade e o gênero humano é também uma construção
cultural. É na sociedade que nos tornamos uma pessoa femi-
nina ou masculina, principalmente pela introjeção de valores
e normas de conduta relacionada aos gêneros. Diferentes
culturas têm revelado as manifestações de padrões diferen-
ciados ao que chamamos masculino e feminino (MEAD, 1988;
WHITAKER, 1995).
Viver em sociedade implica em representar diferentes
papéis sociais. O papel social nos diz como devemos ser e agir
em diferentes contextos. Tome-se como exemplo os papéis
de aluno, professor, diretor ou de outros profissionais, e as
representações e obrigações produzidas na sociedade sobre
essas diferentes possibilidades de atuação a que estamos
expostos. Os papéis se constituem em um conjunto de atitu-
des esperado por um determinado grupo social, numa cultura
determinada, também em relação ao gênero. Para Cavalcanti
(1990), entende-se por papéis de gênero (ou papéis sexuais)
todas as expectativas e os encargos definidos pelo grupo
social, de acordo com o padrão de normalidade esperado para
seu sexo biológico. Ou seja, há papéis bastante determinados
relacionados ao gênero humano. O que é ser masculino na
nossa cultura? O que é ser feminino? Como aprendemos isso?
Em que medida representamos adequadamente estes papéis e
a que custo? Que tipo de punições existem quando há alguma
diferença do padrão esperado?
A manifestação dos papéis sexuais, na vida dos indiví-
duos, tende a refletir e a se ajustar a uma identidade sexual
69
Tema 4
ou identidade genérica. Por identidade sexual ou genérica
entende-se a noção da “consciência” que cada indivíduo tem
de si mesmo com relação ao seu gênero. É o “sentir-se
como”, “homem” ou “mulher”. A identidade sexual - que faz
parte da identidade do indivíduo como um todo - forma-se
sob a influência de fatores biológicos, sociais (culturais) e
psicológicos (CAVALCANTI, 1990; COSTA, 1994; DUARTE,
1995; PAIVA, 1989).
A identidade sexual ou genérica só poderá ser expressa
de duas maneiras: ou nos sentimos homens ou nos sentimos
mulheres. Ela não pode ser confundida, nem tomada como
sinônimo de orientação afetivo-sexual, que diz respeito às con-
dutas homossexual, heterossexual ou bissexual. A Identidade
sexual seria a consciência de pertencer a determinado gênero:
homens ou mulheres. Uma mulher homossexual, que como
tal, tem como seu objeto afetivo e erótico outra mulher, “não se
sente homem”. Ela pode até manifestar comportamentos asso-
ciados, pela maioria das pessoas, ao papel sexual masculino.
Entretanto, se sente, nem deseja ser um homem. Da mesma
forma, um homem homossexual, que, como tal, tem como seu
objeto afetivo e erótico outro homem, “não se sente mulher”.
Ele não deseja tornar-se mulher. Ele se sente um homem e
gosta de outro homem e pode, em maior ou menor grau, mani-
festar diferentes comportamentos considerados “masculinos”
ou “femininos”. O fato de ele ser afeminado não significa que
tenha problemas com sua identidade sexual. Isso não implica
que ele se sinta mulher, apenas que ele não corresponde aos
padrões considerados masculinos na nossa sociedade. Uma
70
Tema 4
prova disso é que há homens ditos efeminados que não são
homossexuais e mulheres ditas masculinizadas, que não
seguem os padrões vigentes de feminilidade e, nem por isso,
são lésbicas.
Segundo Tucker e Money (1981), há alguns imperativos
biológicos característicos da identidade sexual (o homem
fecundar e a mulher menstruar, gerar e amamentar) que jamais
sairiam da fronteira da identidade para o terreno dos papéis
sexuais. Há características próprias de homens e mulheres,
que são definidas biologicamente e, por isso, são imutáveis.
Porém, é preciso reconhecer que tudo o que escapa a esses
imperativos biológicos pode ser considerado papel sexual
(papel social de ser homem ou mulher). Ou seja, todas as
demais características, ainda que algumas sejam mais comuns
em homens do que em mulheres, podem ser desenvolvidas,
independentemente do gênero. Basta que o indivíduo (homem
ou mulher) queira e seja estimulado. Por exemplo, um homem
pode apresentar maior força física, porque sua constituição
implica, naturalmente, em uma maior massa muscular. Mas
mulheres também podem se tornar musculosas se desejarem
e forem estimuladas devidamente para isso.
Há uma expectativa de que as pessoas mantenham uma
relação de unicidade entre a identidade e os papéis sexuais que
ela expressa predominantemente. Quanto mais as atitudes de
uma pessoa em relação aos papéis sexuais correspondem à
sua identidade sexual (como a pessoa “se sente”), mais “adap-
tada” ela será na sociedade. Esta “adaptação” quer dizer que
a pessoa sofrerá menor discriminação e preconceito quando
71
Tema 4
age de acordo com sua identidade. Ao mesmo tempo, é uma
forma de manter a sociedade tal como ela está (status quo).
Talvez seja mais fácil agir de acordo com a identidade, mas isso
limita muito a expressão do feminino e do masculino, sobre
como aprendemos estas questões. A função dos estereótipos
sexuais (dos papéis sexuais estabelecidos culturalmente) é,
portanto, a de manter uma representação ideológica sexista,
que só interessa a grupos dominantes (CAVALCANTI, 1990;
PAIVA, 1989).
Essa reflexão faz pensar sobre a questão de gênero.
O que fazemos quando alguém se mostra desviante? Como
agimos ou julgamos alguém que acreditamos ser homem,
mas tem comportamentos femininos? Ou uma mulher que
não segue os padrões de feminilidade, ainda que estes sejam
visivelmente cruéis e exigentes com relação à estética, por
exemplo? Por que agimos assim? Por que reproduzimos estes
papéis e punimos os desviantes com a exclusão do grupo? Por
que cobramos deles que atuem de modo coerente com esses
estereótipos sexuais?
Estereótipos sexuais são marcas atribuídas aos gêneros
sexuais. E elas são tão impregnadas ao nosso dia-a-dia, que
costumamos considerar “naturais”. Uma vez que a sociedade
define o que é ser homem ou mulher, menino ou menina, os
estereótipos sexuais tornam-se tão inquestionáveis que, na
educação sexual, na família e na escola, modelamos essa
expectativa social, reforçando os padrões e os papéis sexuais.
Ou seja, não há nenhuma vantagem, para quem quer que
seja, em manter os estereótipos rígidos que existem em
72
Tema 4
nossa sociedade em relação à sexualidade. Ao vivenciá-la,
somos todos diferentes e a aceitação de uma gama mais
ampla de comportamentos, dentro do que seria considerado
normal, permitiria à muitas pessoas desfrutar da própria
sexualidade sem medo de sofrer as terríveis conseqüências
da exclusão social.
Para se ter uma idéia da rigidez e da inadequação
desses estereótipos, tomemos o exemplo do feminino. Às
mulheres, são impostos papéis sexuais (sociais) que incluem
atitudes como timidez, recato, prudência, insegurança,
fragilidade, emotividade, suavidade, sentimentalidade, afetivi-
dade, romantismo, dependência, passividade, sensibilidade,
delicadeza, vaidade, etc. Além dos comportamentos citados,
as mulheres devem também se casar, ter filhos, estar à dispo-
sição dos desejos sexuais masculinos e trabalhar fora, desde
que não deixem de cuidar da família e da casa. Em relação ao
masculino a situação não é menos rígida. Aos homens, são
impostos ideais masculinos que incluem atitudes de agressivi-
dade, audácia, conquista, atividade, segurança, rudeza, frieza,
intelectualidade, racionalidade, autoridade, força, independên-
cia, rigidez, competitividade, agressividade, etc. Além desses
comportamentos, os homens devem também trabalhar fora
e serem provedores, sustentando o lar e a família (ALVES e
SOARES, 2001; AZEREDO, 1993; GROSSI, 1992; MORENO,
1999; SUPLICY, 1985; TOSCANO, 2000; WHITAKER, 1988;
1995). Corresponder a todas estas expectativas tem um
custo emocional muito grande. Homens e mulheres poderiam
vivenciar todas estas características, mas não é isso que
73
Tema 4
ocorre. Quando há flexibilidade ou inversão destes papéis, há
também, muita discriminação e preconceito.
Atualmente, entretanto, parece haver tendências que
parecem questionar a rigidez dos estereótipos, como a moda
unissex, a maior preocupação masculina com a aparência
e a ascensão da mulher a postos de comando em grandes
corporações. Tais tendências impõem variações nos papéis
masculino e feminino. Apesar disso, a dicotomia parece tão
arraigada que, mesmo quando há variabilidade no padrão, em
geral, aos olhos da sociedade os comportamentos desviantes
acabam sendo rotulados de uma forma ou de outra, gerando
críticas, discriminações ou mesmo culpa. Há mulheres que
ganham mais que seus parceiros e elas mesmas lamentam
isso. Ainda hoje, sabemos que há, em muitos estados brasi-
leiros, mulheres assumindo um trabalho idêntico ao de muitos
homens, mas que, ainda ganham menos simplesmente porque
são mulheres.
Na verdade, mesmo havendo mudanças nesse cenário,
precisamos modificar a tendência de pensar no masculino e o
feminino como determinações naturais. Assim, seria possível
deixar de lidar com papéis rígidos e alheios à imensa variabilida-
de de possibilidades de conduta, em relação à sexualidade que
é própria dos seres humanos. Manter essa tendência reforça
o preconceito que pesa sobre aqueles que desafiam essas
discriminações sociais.
A família e a escola são instituições importantíssimas
para produzir, na socialização da criança, o estabelecimento ou
não dos papéis sexuais. Este processo de socialização é funda-
74
Tema 4
mental no desenvolvimento de qualquer pessoa, mas é preciso
perceber que a educação formal deve ser reflexiva. O educador
deve questionar se a manutenção de um sistema de crenças
e valores sociais discriminatórios, num processo de violência
simbólica que se expressa por meio de mecanismos sutis, é
desejável ou não. Também deve criar situações educativas em
que tais valores sejam questionados, inclusive pelo educando.
Isso é de fundamental importância, pois os educadores são
pessoas importantes em nossa formação, que aprovam ou
desaprovam nossas atitudes. Isso faz com que assumamos
comportamentos estereotipados sobre nossa sexualidade que
podem permanecer durante toda nossa vida (CAVALCANTI;
FRANCO, 2001).
Na escola o processo de socialização ocorre por meio de
um constante relacionamento interpessoal, com uma variedade
de pessoas, portadoras de diferentes valores e atitudes. Diante
da diferença, no entanto, parece prevalecer uma imposição
dos padrões hegemônicos, esperados numa sociedade e ditos
como corretos, naturais, desejáveis. A escola, incluindo aí a
figura do professor e dos materiais didáticos, constituem um
forte apelo à aprendizagem de gênero que queremos imputar.
Em que medida a escola está preparada para questionar e
reinventar esses modelos?
Whitaker (1988) comenta que:
[…] a escola espera das meninas “um comportamento sem-
pre dócil, meigo, obediente, justificando atitudes agressivas
dos meninos alegando ser esta uma das suas características”
e que alguns mestres (ou mestras) confessam ser involunta-
75
Tema 4
riamente mais afetuosos com as meninas e mais exigentes
com os meninos, porque “menino tem que ser preparado para
iniciativa” enquanto menina deve ser incentivada à “doçura,
desprendimento, o dom de si mesma”. Assim, o professor
aceita mais bagunça do menino do que da menina. Na linha
da repressão sobre o menino, descobrimos ainda que muita
gente acredita que “o menino tem que ser forte, competidor
e briguento, além de pouco amoroso” para não virar “mari-
cas”. Esses depoimentos revelam, com toda transparência, o
quanto são fortes os modelos tradicionais de comportamento
sexista e a forma como são reproduzidos pela escola (WHI-
TAKER, 1988, p.64).

A influência dos modelos de gênero na televisão, dos


padrões feminino e masculino familiares, da educação sexista
na escola, são muitas vezes, maneiras que reforçam a idéia
da diferença entre gênero. Especialmente quando atribui uma
desvantagem às mulheres. Elas mulheres são prejudicadas por
uma suposta condição feminina de passividade, submissão,
assexualidade, etc. (BELOTTI, 1975; BONAZZI e ECO, 1980;
GROSSI, 1992; GUEDES, 1995; LOURDES e NOSELLA, 1981;
SUPLICY, 1985). Segundo Whitaker (1995), também nas ações
do cotidiano da socialização sexista na família e na escola, esti-
mulam-se (ou não) comportamentos diferentes, dependendo
do gênero. Para esta autora, quatro fatores são considerados
importantes na vivência social da infância, que têm reforçado a
educação sexista:

76
Tema 4
a) orientação espacial;
b) auto-estima e autoconfiança;
c) aspirações e expansão do eu;
d) habilidades e experiências gerais.

No caso dos meninos, são incentivados a brincar em


espaços amplos e com o espaço, o movimento estimula o
desenvolvimento da orientação espacial; também são reforça-
dos quanto a auto-estima e autoconfiança, na medida em que
são menos cobrados pela sua higiene e por um comportamento
reservado; suas aspirações são estimuladas para a ousadia (ser
bombeiro, andar de espaçonave, etc.).
Entre as meninas, por sua vez, predominam brinca-
deiras em espaço restrito (casinha, boneca). Elas são muito
reprimidas quanto à linguagem e à vestimenta, a higiene e
o “bom comportamento” são consideradas e, em geral, são
estimuladas a tarefas femininas, como a maternidade e profis-
sões com menos ousadia. Em relação às habilidades gerais,
na nossa cultura estimula-se nas meninas as habilidades de
dança e artesanato, o que não acontece com os meninos, sob
a “pena da homossexualidade”. O que, no caso, seria uma
desvantagem ao gênero masculino.
Nas escolas, as tarefas e atividades acadêmicas são
as mesmas, mas ainda vemos a separação de meninos e
meninas em atividades como judô, futebol, ateliê, dança, etc.
Se a participação mista nestas atividades nas escolas não é
proibida, a flexibilidade também não é incentivada e o que se
vê, é uma repetição geral dos padrões dessas atividades para
77
Tema 4
meninos e meninas. Na sala de aula, o próprio professor acaba
reforçando diferentes comportamentos, incentivando a vaidade
das meninas (limpinha, cheirosa, bonita) e a autonomia dos
meninos (arrojado, agressivo, independente). Se pensarmos
no conjunto das ações – educativas ou não – predominantes
na infância, no espaço escolar ou familiar, diversas situações
evidenciam que a educação (processo de socialização) é mar-
cada pelas diferenças entre os comportamentos “reforçados”
e “não reforçados”, ou ainda, “punidos”, quando se trata da
educação de meninas ou meninos. Esses comportamentos
são desejados (esperados, permitidos e incentivados) ou inde-
sejados (proibidos, punidos, reprimidos), de acordo com sua
representação no contexto dos papéis sexuais dominantes.
Apesar da existência de várias formas comuns de atri-
buição de papéis de gênero às crianças pelos adultos dentro
da escola, a reprodução de preconceitos e estereótipos não
é tão explícita. Há até a impressão de que são inexistentes.
Várias são as formas sutis utilizadas na escola para reforçar
uma educação sexista: brincadeiras e atividades impostas em
função do gênero, diferenças quanto à aceitação ou não de
comportamentos agressivos ou passivos, critérios subjetivos,
utilizados pelo professor para avaliar academicamente seus alu-
nos em função do gênero, recursos pedagógicos empregados,
como os livros, os vídeos, as histórias… tudo tão carregado de
ideologia! O fato de o professor, muitas vezes, não perceber
esta ideologia reflete a forma velada de repressão, tão constan-
te na vivência escolar. E as diferenças são relevadas, reforçadas
e reproduzidas insistentemente.
78
Tema 4
Embora a discussão da sexualidade tenha, atualmente,
ganhado espaço e importância, acreditamos que a temática do
gênero é ainda incipiente. Parece-nos que a escola ainda não se
encontra preparada para tratar o tema com justiça. Chamamos
a atenção para o fato de que muitas relações sociais no espaço
da escola conservam e reforçam as atitudes preconceituosas
entre seus alunos, sem refletir e questionar sobre essas
atitudes. E o professor tem um papel fundamental na formação
de indivíduos que possam ser mais livres de preconceitos e
idéias distorcidas acerca das diferenças de gênero entre as
pessoas. Que seja estabelecido uma autonomia em relação
às possibilidades de expressão da sua identidade sexual com
maior flexibilidade e, portanto, menor sofrimento.

79
Tema 4
REFERÊNCIAS

ALVES, F. E.; SOARES, V. S. Meninos e meninas: universos


diferenciados na família e na escola. In: FAGUNDES, T. C. P. C.
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Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. p. 39-50.

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80
Tema 4
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profissão, Brasília, v. 15, n. 1/3, p. 4- 6, 1995.

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gia subjacente aos textos didáticos. São Paulo: Morais, 1981.

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81
Tema 4
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WHITAKER, D. C. A. Mulher – homem: o mito da desigualda-


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alunos: o problema da diversidade cultural. São Paulo: Editora
da UNESP, 1995, 31-52.

82
Tema 4
ANOTAÇÕES

83
TEMA

O DESENVOLVIMENTO DA SEXUALIDADE
NA INFÂNCIA
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
Tema 5

Todos os componentes da sexualidade humana, se


considerarmos no seu sentido amplo (englobando o genital, o
emocional e o psicossocial) são mediados pelas experiências
interpessoais, ao longo do nosso desenvolvimento. Nossa
sexualidade é modelada, em grande medida, pelos padrões
existentes na cultura numa determinada época, aprendidos
durante a socialização. Nem sempre são aprendidos de
forma explícita e refletida. Na maior parte das vezes, eles são
subentendidos. Encontra-se em modos de falar, em gestos
sutis e em condutas que não são problematizadas por fazerem
parte do cotidiano. A infância é a época mais importante neste
aprendizado e a vivência da sexualidade na infância é básica
se quisermos compreender as manifestações da sexualidade
na vida adulta. Podemos dizer que nossas concepções sobre
a sexualidade refletem a educação sexual recebida em nossos
primeiros anos de vida e como as manifestações da nossa
sexualidade na infância foram vivenciadas.
Para refletir mais profundamente sobre esta questão,
devemos começar questionando a própria noção de infância.
O que queremos dizer quando utilizamos essa expressão? A
que infância estamos nos referindo? Como compreendemos
a criança hoje? A noção de infância, tal como a concebemos,
é um conceito moderno, especialmente se pensarmos que,
até o século XVII, a criança era apenas reconhecida como um
“adulto em miniatura” (ARIÉS, 1981). Não havia a separação
85
Tema 5
do desenvolvimento em etapas como, infância, adolescência e
idade adulta, como compreendemos hoje o desenvolvimento
humano. Quando a infância passou a ser reconhecida como
tal, estabeleceu-se também a idéia de que as crianças, nessa
etapa da vida, são puras e assexuadas. Como a observação das
crianças apontava que sua genitália era pouco desenvolvida, e
que não havia nenhuma atividade sexual, chegou-se à conclu-
são de que as crianças eram ingênuas, puras, angelicais.
No século XX, no entanto, muitas mudanças ocorreram
sobre o enfoque dado à sexualidade da criança no seu
desenvolvimento, devido fundamentalmente à divulgação dos
estudos e teorias postulados por Freud. Contrariando a opinião
popular, que entendia as crianças como “assexuadas”, Freud
discorreu sobre como certas condutas e aspectos comuns
na infância revelavam os traços essenciais da pulsão sexual.
Defendeu a tese de que a grande dificuldade do mundo adulto,
em compreender a sexualidade na infância, se baseava na
ocorrência nos adultos da chamada “amnésia infantil”. Trata-se
de um processo pelo qual os adultos esqueciam, ou melhor,
“recalcavam” vários aspectos da sua sexualidade vivida na
infância.
A este respeito, lembrando a concepção de uma criança
pura e ingênua do século XVII, Vitiello (1997) comenta que:
[…] acreditava-se ser essa inocência proveniente da igno-
rância sobre o sexo, sendo então defendida a postura da
conservação dessa inocência pela manutenção da ignorân-
cia. A partir desses conceitos, foi valorizando um tipo de
educação que ao mesmo tempo mantinha as crianças (e
86
Tema 5
os adolescentes) desinformados e impunha-lhes um padrão
repressor de comportamento, visando-se mantê-las afasta-
das da curiosidade e dos conhecimentos sobre a sexualidade.
Os resquícios sociais de tais padrões educacionais podem
ficar bem evidenciados na angústia que a maioria dos adultos
atuais sofre frente às manifestações da sexualidade infantil,
como a masturbação, por exemplo. (VITIELLO, 1997, p.32)

Freud contrariou as concepções de assexualidade da


criança, afirmando que era próprio do desenvolvimento infantil
o auto-erotismo, a descoberta prazerosa do corpo entre outras
manifestações da sexualidade. A sexualidade infantil, então,
é compreendida como uma questão humana, que envolve a
inter-relação afetiva e não está relacionada exclusivamente a
noção de genitalidade (relação sexual). Freud (1976) descrevia
as manifestações da sexualidade infantil pautado na idéia bási-
ca de pulsão sexual. Havia comportamentos da criança que
estimulavam a sensação prazerosa do contato corporal, por
exemplo, o chuchar e o toque no próprio corpo. Para explicar
melhor o conceito de pulsão sexual, vamos a um exemplo:
um bebê mama. O contato com o mamilo, com o seio e com
a pele da mãe, o aconchego que ela lhe proporciona e o leite
quente e prazeroso que enchem a boca do bebê proporcionam
prazer, não somente porque ele se alimenta. Esse prazer está
ligado à um instinto de autoconservação. Mesmo depois de
satisfeito, ou sem ter fome, o bebê quer reproduzir as sensa-
ções prazerosas que obteve durante a mamada. Daí o chuchar,
a reprodução de movimentos de sugar a boca, lábios e língua,
eventualmente utilizando o dedo ou outro objeto levado à boca. 87
Tema 5
O prazer torna-se, com o tempo, independente do ato de
mamar (de alimentar-se). A boca torna-se uma zona erógena,
proporcionando prazer a chupeta ou outros objetos. A pulsão
sexual se manifesta nesses comportamentos que indicam a
busca de um prazer que é independente da sobrevivência do
indivíduo.
O conceito de zona erógena indica uma parte do corpo
em que certos tipos de estimulação provocariam uma sensação
prazerosa. Estes estímulos produtores de prazer poderiam ser
os mais variados, em diferentes condições, ligados a diferentes
partes do corpo. No caso das crianças, a pulsão infantil visaria
obter satisfação mediante a estimulação apropriada da zona
erógena eletiva, que tenderiam a ser modificadas ao longo do
desenvolvimento humano.
A primeira zona erógena seria a boca (lábios) em
que a sensação prazerosa é visível em comportamentos
de chuchar, sugar, lamber, morder, etc. Esta zona erógena
será substituída por outras ações musculares e táteis, que
proporcionarão igual satisfação prazerosa. Seguindo o desen-
volvimento psicossocial postulado por Freud, a segunda zona
erógena seria a zona anal. Ela pode ser observada quando
percebemos o prazer infantil nas ações de excretar ou reter as
fezes e também em brincar com elas. Esse comportamento
encontra um substituto na modelagem em massa, areia, etc.
A seguir, os próprios órgãos genitais tornam-se a principal
zona erógena no corpo infantil, mas não se trata ainda da
fase genital. Embora a estimulação do pênis e do clitóris seja
prazerosa para as crianças nesta fase, a fantasia infantil ainda
88
Tema 5
não distingue adequadamente os órgãos e suas funções. Na
verdade, as crianças encontram-se ligadas a uma fantasia
fálica, o que levou Freud a chamar este período no desen-
volvimento de fase fálica. Tanto meninos quanto meninas
acreditam possuir um “falo”, e torna-se aguçada a vontade
de saber, a necessidade de investigar e ver os fatos relativos
à sexualidade. Querem saber sobre a origem dos bebês, o
nascimento, as diferenças entre o corpo masculino e feminino
e o que é uma relação sexual, por exemplo.
Sobre a masturbação, Freud (1976) afirmava que havia
três fases distintas na masturbação infantil: a primeira no
período de latência (zona erógena oral), a segunda por volta
dos quatro anos de idade, em que a atividade sexual estaria
voltada para a estimulação das zonas erógenas anal e genital
e, por fim, a terceira fase, em que os indivíduos, na puberdade,
sob o domínio dos hormônios e das transformações biológicas
pubertárias, visariam o orgasmo. Para ele, a masturbação era
um comportamento esperado no desenvolvimento da sexuali-
dade infantil, com características próprias da idade e dotadas
de sensações prazerosas. Em outro tema, iremos falar de
forma mais prática sobre a questão da masturbação infantil.
Uma vez que reconhecemos que a sexualidade está
presente nas crianças, que há manifestações da sexualidade
no desenvolvimento infantil, essas manifestações são
determinantes para a vida sexual na idade adulta, é inegável
que as crianças devem receber orientação sexual desde o
momento em que mostram interesse pelo tema. E seu direito
à informação é inegável.
89
Tema 5
Sobre o direito de crianças receberem orientação sexual
de pais e educadores, Freud (1976) afirmava que eles, muitas
vezes, mostravam-se contrários a essa prática e com dificul-
dades em fazê-lo, por temerem que o diálogo aberto sobre
a sexualidade pudesse estimular precocemente a sexualidade
das crianças. Além disso, acreditava numa certa resistência
pessoal dos adultos em lembrar a afetividade e a sexualidade
da própria infância. Freud achava um tanto complicado para
os adultos romperem com esse obstáculo para se tornarem
bons educadores sexuais, isto é, pessoas capazes de instruir,
orientar e dialogar sobre as questões sexuais da infância
(FRANÇA-RIBEIRO, 1995).
É importante considerar que, atualmente, a exposição
aos estímulos ligados à sexualidade é muito freqüente,
abrangente e inegável. Na família circulam mais informações
sobre o assunto, a mídia escancara essas questões de forma
intensa e repetitiva. As crianças, em geral, têm vivenciado
uma socialização secundária, vão à escola com cada vez
menos idade. No ambiente escolar há, inevitavelmente, ocasi-
ões em que o desejo sexual vem à tona, em que se observam
manifestações da sexualidade e há troca de informações com
outras crianças sobre o assunto. Portanto, acreditamos que
as mudanças apontadas contribuem para que pais e educa-
dores resistam ao silêncio e tratem conscientemente das
manifestações sexuais das crianças, dispondo-se ao diálogo.
A partir daí, será possível oferecer algum tipo de orientação,
procurando preparar as crianças para uma vida sexual adulta
mais livre e prazerosa.
90
Tema 5
Por isso, é tão importante que adultos reflitam sobre
sua própria educação sexual, sobre sua infância, sobre as
dificuldades e limites que eventualmente tenham com o tema,
para tomar uma posição quanto à disposição de lidar com essa
questão. Se há dificuldades intensas no adulto, é recomendável
que ele recorra a um processo psicoterápico, ou mesmo, que
assuma uma opção pessoal de não trabalhar essa questão de
forma direta com seus alunos. Se há disposição, é bom que o
educador recorra ao estudo da sexualidade humana para que
possa, indo além de sua boa vontade pessoal, ajudar as crian-
ças a desenvolverem sua sexualidade de maneira sadia. Isso
porque a boa vontade não basta! A formação de um educador
sexual implica no estudo aprofundado de vários temas, ao lado
de uma atitude adequada, não repressiva e reflexiva.
Sabemos, então, que todas as crianças têm sexualidade
e que esta é mediada pela cultura, na educação que a criança
recebe em casa, na escola e no contato com os meios de
comunicação. Nesses vários ambientes, elas recebem
informações e regras, percebem atitudes e sofrem punições
ou são premiadas por sua conduta, seja ela adequada ou não
aos padrões sociais (CHAUÍ, 1985). As crianças, portanto,
irão manifestar comportamentos (verbais e não verbais) que
indicam a elaboração e a construção de representações
para situá-las quanto ao seu aprendizado sobre as questões
sexuais. Essas manifestações são percebidas pelo adulto,
e sua atitude em relação a elas é importante para o desen-
volvimento da criança. Muitas vezes, o adulto reproduz, sem
perceber, padrões existentes numa determinada sociedade e
91
Tema 5
cultura, impondo-os à criança. Chamamos esse processo de
aprendizagem, elaboração e construção de representações
sobre a sexualidade de educação sexual.
Ao nascer, o bebê usa basicamente os sentidos para se
relacionar com o mundo. É através da visão, da audição, do
olfato, do paladar e do tato que a criança estabelece contato
com o mundo. Neste contato começa a desenvolver também
o universo de seus afetos. Ao sentir-se acolhido, cuidado e
amado, o bebê desenvolve uma relação de confiança com
seus cuidadores, e também a sensação de receber amor.
Essas primeiras manifestações de afeto são importantes
para o desenvolvimento de uma vida emocional saudável e
uma sexualidade prazerosa na vida adulta (FRAIMAN, 1986;
MALDONADO, 1993).
Após esses primeiros vínculos emocionais, outros
fatores ligados à sexualidade serão estimulados ou cerceados
pelo contato e pelas informações, explícitas ou não, que
ocorrem no convívio. Tais fatores podem ser favoráveis ou
não à uma sexualidade saudável. Essas atitudes se caracte-
rizam, muitas vezes, como mensagens sutis sobre diversas
questões, como os papéis sexuais, ser menino ou menina,
ou mesmo mensagens sobre o prazer da descoberta e da
manipulação do corpo.
Suplicy (1993) afirma que, muitas vezes, alguns adultos
evitam o contato direto com a vulva ou o pênis da criança no
ato da limpeza. Outros se assustam com a ereção do pênis do
filho, sem saber que ela é natural e ainda não tem relação com
a ereção adulta, advinda de estimulação erótica. Quando isso
92
Tema 5
acontece, as crianças percebem que, para o adulto que convive
com elas essas atitudes mostram que aquela parte do corpo
é intocável, evitável, diferente. Com o avançar da idade, elas
aprendem que aquela parte do corpo também traz sensação
de prazer ao toque. Essa ambigüidade entre as sensações
experienciadas com o próprio corpo e as mensagens sutis
recebidas na primeira infância podem culminar em conflitos
emocionais mais tarde, dependendo de como a criança elabora
tais conflitos.
Para Nunes e Silva (2000), uma formação adequada
sobre a sexualidade na infância pode contribuir para que
o adulto tenha uma sexualidade saudável. Estes autores
argumentam que, no processo de socialização da criança, há
três fases importantes: a fase elementar, a fase doméstica e a
fase comunitária.
A fase elementar, do nascimento até os 3 anos, é o perí-
odo em que a criança está centrada na descoberta sensorial
de seu corpo e na experimentação de sensações concretas,
na identificação da estrutura parental e nas formas lúdicas de
aquisição da linguagem. A fase doméstica, dos 3 aos 6 anos,
é um período em que há uma cristalização dos papéis sociais,
através das descobertas das diferenças de gênero; também
há uma ampliação da socialização e uma maior variedade
de influências, de valores e idéias, pois a criança passa da
restrição familiar para a escola – pré-escola ou instituições de
educação infantil. Por fim, a fase comunitária, dos 6 ou 7 anos
em diante, é o período em que se configura a entrada da crian-
ça nas demais instituições sociais, além da família e da escola,
93
Tema 5
caracterizado pelo contato com todas as exigências de ordem
comportamental e social que passam a pesar sobre ela.
Na escola a criança irá expressar sua sexualidade e
aprender com o seu corpo e o do outro. Nunes e Silva (2000)
apontam para algumas situações específicas, em que há
a manifestação da sexualidade das crianças na realidade
institucional, e que se relacionam com a descoberta do corpo
e do sexo, as questões fundamentais sobre a vida e a morte e
à exploração dos órgãos sexuais. Isso acontece com os jogos
sexuais infantis, a masturbação, a curiosidade em observar
os outros, as conversas sexuais em grupos, o emprego de
palavras supostamente obscenas, os bilhetes e desenhos
sexuais, a fase dos encontros clandestinos e o exibicionismo,
são situações em que há aprendizagem, experimentação e o
prazer da descoberta.
Nas palavras dos autores:
Nós não temos educado crianças para a vivência plena da
curiosidade sobre sua corporeidade e sexualidade. Temos,
outrossim, produzido crianças ansiosas por saber, estimuladas
por um “não sei o quê”, um espectro inominável carregado de
fantasias sensacionais que associam o medo à curiosidade
perversa, aliam os códigos dos interditos, do “maldito”, o que
não se pode dizer bem, ou bendizer, construído um imagi-
nário que insufla a aventura e o medo, carrega o atraente e
mantém o risco do repressivo e castrador que excita as falas
e aguça os ouvidos para o torpor do que não se entende e
não se sabe porquê, pois se não se é sujeito nem mesmo das
tantas perguntas quanto mais será possível sê-lo das possibi-
lidades de respostas (NUNES e SILVA, 2000, p.112).
94
Tema 5
Para Nunes e Silva (2000) a curiosidade da criança é
definida e relatada, em nossa tradição educacional, como
uma virtude essencial à apropriação de conhecimentos e, em
geral, incentivada pelos educadores. Porém, esse impulso de
saber, o comportamento curioso e investigativo, não é aceito
e facilitado quando se trata da sexualidade, das descobertas
relacionadas ao sentido e às vivências corporais. Parece que
em todos os campos de ação humana a curiosidade é bem
vista, mas no campo da sexualidade pensamos em reprimi-la,
sob o pretexto de que sua manifestação seria maléfica e,
portanto, condenável. Sabemos que as teorias pedagógicas 1
Idéias dos autores ex-
contemporâneas afirmam o contrário, que a curiosidade da traídas do livro “A educação
criança é intuitiva e sensorial, importante para a descoberta sexual da criança: subsí-
dinâmica de sua corporeidade e das formas sociais de sua dios teóricos e propostas
práticas para uma aborda-
expressão.
gem da sexualidade para
Os mesmos autores (NUNES e SILVA, 2000) apontam
além da transversalidade”.
que as possíveis atitudes dos pais e educadores frente à Ver NUNES e SILVA (2000),
sexualidade das crianças podem ser compreendidas a partir de páginas 114-126
algumas características essenciais, segundo sua forma: atitude
autoritária e repressiva; atitude omissa, ausente e permissiva;
atitude diletante e exótica; atitude delegante e patrulhadora e
atitude humanista e emancipatória, são formas típicas pelas
quais pais e educadores se relacionam com as manifestações
da sexualidade infantil1.
A atitude autoritária e repressiva caracteriza-se,
sobretudo, pelo exercício direto da violência simbólica e da
dominação; seus fundamentos são o senso comum e a rigidez
moral, aferrando-se aos papéis sexuais tradicionais. Exteriori-
95
Tema 5
za-se de forma dogmática, por meio dos modelos patriarcais
e solidifica-se por inculcações ideológicas e exigências
institucionais, que implicam na adequação e vigilância. Entre
seus fundamentos pode, tanto estar o determinismo religioso
(apelando à autoridade divina em matéria de moral sexual),
quanto o determinismo biológico (afirmando a naturalidade de
papéis sexuais e da moral), âmbitos que, por excelência, são
produto histórico das relações humanas.
A atitude omissa, ausente e permissiva caracteriza-se
por uma compreensão equivocada da sexualidade da criança e
por uma concepção desfocada da importância e do significado
da ação dos pais sobre a construção desta sexualidade. Trata-
se de um conjunto de ações que se pautam, essencialmente,
pela negação existência da sexualidade infantil. Essa negação,
muitas vezes, não se traduz em práticas visivelmente
repressivas, mas tem seu âmago na omissão. As pessoas
que tem esse tipo de atitude acreditam que há uma suposta
naturalidade no desenvolvimento da sexualidade. É como se
ela brotasse do corpo da criança sem influências sociais, e as
informações que ela obtém sobre sexo fossem magicamente
compreendidas, sem necessidade de esclarecimentos e sem
tempo para elaboração;
A atitude diletante e exótica caracteriza-se por abordar a
sexualidade das crianças como se ela fosse um mundo mágico
e exótico, carregado de fantasias. Trata-se de uma curiosidade
inconseqüente, sem uma determinação estrutural, pontuada
por casuísmos e detalhismos superficiais. As pessoas que
tem essa atitude usam metáforas comparativas e analogias,
96
Tema 5
buscadas na similaridade com os animais e em mundos
fantasiosos, como a mitologia e a irrealidade. Ao remeterem
a sexualidade infantil a um universo de sentido mitológico e
fantástico, adotam uma espécie de idealismo educacional, em
que predomina a visão de que a criança é um ser angelical,
incapaz de compreender a realidade como ela é;
As pessoas que adotam uma atitude delegante e
patrulhadora atribuem papéis distintos para os pais e para
educadores, sem considerar que ambos integram as esferas
de educar/aprender. Enfatizam, em relação à sexualidade, uma
mentalidade que a limita à finalidade procriativa. Tal atitude
delega à escola a função, que deveria ser da família, de esta-
belecer os valores e padrões que as crianças devem seguir. No
entanto, embora admitam que é a escola que tem a tarefa de
falar sobre sexo, mostram-se vigilantes em relação ao discurso
por ela adotado, defendendo os padrões normativos oficiais;
A atitude humanista e emancipatória é característica de
pessoas que objetivam a independência plena do ser humano,
construída gradualmente. Visa educar integralmente a criança,
desenvolvendo sua responsabilidade em todas as dimensões
de seu desenvolvimento. A emancipação, nessa concepção,
passa pelo esclarecimento, pelo entendimento dos contextos
e desejos vivenciados, ou vivenciáveis, e implica na busca da
autonomia e do direito de lutar pela liberdade. É sem dúvida,
a concepção mais desejável quando pensamos em educar
realisticamente as crianças, para termos adultos saudáveis e
responsáveis.

97
Tema 5
A concepção emancipatória deverá:
a) ser cientifica, crítica, criativa, e ao mesmo tempo
cultural e politicamente aberta e livre;
b) criar nas crianças e jovens uma concepção ampla da
sexualidade baseada na crença da liberdade dos homens
em assumir com plenitude seu papel único de sujeitos;
c) ser pluralista, e considerar a visão de mundo, da socie-
dade e da sexualidade dos próprios pais e educadores;
d) compreender a sexualidade como uma dimensão
humana fundamental que não pode ser negada ou
anulada;
e) intervir junto aos alunos e filhos com motivações e
objetivos claros, com coerência entre palavras e ações;
f) entender a educação sexual como mais do que um
mero conjunto de informações médico-biológicas, ou
uma proposta terapêutica; entendê-la como a formação
da pessoa inteira para uma vivência gratificante e respon-
sável de sua inalienável capacidade humana de desejar e
ser desejado, amar e ser amado.

É claro que essas atitudes não se apresentam, no quo-


tidiano escolar, de forma estanque, tal como a apresentamos.
Muitas vezes elas se camuflam e se misturam no dia-a-dia da
relação dos professores e pais, em relação à manifestação
sexual das crianças. Nós adultos, no entanto, precisamos
refletir e identificar que tipo de atitude, dentre as descritas
acima, é mais próxima do que fazemos, em nossas ações
98
Tema 5
pessoais. Para quê reproduzimos certas atitudes e a que fins
elas se justificam? Uma reflexão séria sobre essas questões,
certamente, poderá contribuir para o desenvolvimento sadio
da sexualidade do adulto. Embora saibamos que ainda é
preciso uma grande mudança de atitudes e relacionamentos
em diferentes contextos sociais, para que a educação sexual
faça parte da vida de todas as crianças e que, por meio dela,
proporcione condições para desenvolver cidadãos conscientes,
também sobre a própria sexualidade.

99
Tema 5
REFERÊNCIAS

ARIÉS, P. História social da criança e da família. Tradução


Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.

CHAUÍ, M. Repressão sexual: essa nossa (des) conhecida.


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sexualidade para além da transversalidade. Campinas: Autores
Associados, 2000. (Polêmicas do nosso tempo, 72).
100
Tema 5
SUPLICY, M. A importância da mãe no desenvolvimento da
capacidade amorosa. In: RIBEIRO, M. (Org.). Educação sexu-
al: novas idéias, novas conquistas. Rio de Janeiro: Rosa dos
Ventos, 1993. p. 51-54.

VITIELLO, N. Sexualidade: quem educa o educador?. São


Paulo: IGLU, 1997.

101
Tema 5
ANOTAÇÕES

102
Tema 5
ANOTAÇÕES

103
TEMA

MASTURBAÇÃO E JOGOS SEXUAIS INFANTIS


ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
Tema 6

As manifestações da sexualidade entre as crianças


estão entre as ocorrências mais aflitivas do cotidiano escolar
para a maioria dos professores. Boa parte deles finge não
ter visto o que de fato viu, outra parte procura esconder, seja
propondo outra atividade ou, coibindo diretamente as crianças.
O fato é que, poucos professores procuram refletir sobre o
porquê de tais atitudes, assim como poucos têm condições de
estabelecer um diálogo aberto com a criança, para que ela seja
esclarecida sobre o ocorrido.
Essas circunstâncias demonstram tanto o despreparo da
maioria dos professores para lidar com as manifestações da
sexualidade na escola, quanto à educação repressora e punitiva
que a maioria de nós teve na infância. No entanto, indepen-
dentemente da vontade dos professores ou pais, a sexualidade
é um fato da vida também para elas e suas manifestações
ocorrerão de um modo ou de outro. Assim, a atitude mais
adequada não é esconder os fatos, mas nos prepararmos para
lidar com eles de forma madura e adequada.
Entre as mais comuns estão a masturbação, atividade
sexual muito freqüente na infância. Essas experiências
masturbatórias (homossexuais e heterossexuais) têm caráter
exploratório e vários autores destacam a importância dessas
experiências para a vida sexual adulta (CONCEIÇÃO, 1986;
COSTA, 1986; FRAIMAN, 1986; MAIA, 2004; NUNES e
SILVA, 2000; RODRIGUES JR., 1994; SENATORE e RIBEIRO,
105
Tema 6
2001; SUPLICY, 1990). Lembramos que Freud (1976) defendia
que as crianças são ativas erótico-afetivamente, o que é
normal e saudável. O desejo e o prazer, no entanto, estão
inevitavelmente relacionados aos padrões sociais. Em geral,
esses padrões impõem ao educador a adoção de atitudes
repressoras e proibitórias em relação ao prazer infantil.
Vale lembrar que não é indesejável que as crianças mani-
festem prazer com seu corpo e o do outro. O prazer erótico
infantil não é exatamente igual ao do adulto. As manifestações
do erotismo infantil podem ocorrer de modo adequado, sem
que sejam enquadradas no que chamamos de perversidades.
O tom libidinoso e patológico está no pensamento dos adultos
e não nas atitudes das crianças.
Também é importante dizer que existem exceções.
Há crianças que mostram comportamentos libidinosos
impróprios para a idade. Estes casos, em geral, são fruto da
imitação e ocorrem, por exemplo, após a exposição da criança
a cenas de sexo entre adultos (entre os pais ou mesmo de
filmes pornográficos). Uma criança que usa de palavras
incomuns para a sua idade, ou tende a simular uma relação
sexual com colegas, em geral, está dizendo aos educadores
que a cercam que vivem num ambiente em que recebe uma
estimulação erótica inadequada para a sua idade. Mas isso,
como já dissemos, não é comum. Na maioria das vezes,
as crianças apresentam manifestações afetivas adequadas,
que contribuem para seu desenvolvimento normal e não
prejudicam a ela ou aos seus colegas.

106
Tema 6
Ainda que comportamentos inadequados aconteçam, a
criança que os pratica não deve ser meramente censurada,
como se isso resolvesse o problema. Ela merece receber
orientação e esclarecimento, maior atenção e respeito, mas
nunca atitudes de punição. Além disso, ela não será, necessa-
riamente, um adulto pervertido porque foi exposta a cenas de
sexo que ela, ainda, não é capaz de compreender em toda a
sua dimensão. Embora uma criança exposta a cenas explícitas
possa perceber o que ocorre fisicamente entre os adultos,
uma relação sexual envolve muitas outras coisas: o respeito
e a consideração pelo outro, a responsabilidade num ato que
pode ter conseqüências indesejadas, o diálogo sobre como ter
e proporcionar prazer, o aspecto lúdico, o amor, entre outras
dimensões relativas à questão. A educação sexual, sendo
realista ao lidar com a sexualidade, visa desenvolver também
uma reflexão sobre tais dimensões e integrá-las à vida dos
educandos.
Além disso, toda criança tem o direito de explorar seu
próprio corpo e de viver a fase da descoberta das diferenças
(com colegas de mesma idade). Não é necessário que isso
seja interpretado como aberrante, ou absurdo, pois é uma
fase natural do desenvolvimento. Neste período, em geral
entre 3 e 6 anos, é muito comum a masturbação infantil (hoje
denominado auto-erotismo) e do que chamaremos de jogos
sexuais infantis.
A masturbação pode ser definida pela manipulação da
genitália para a obtenção de prazer sexual. Historicamente,
pelo menos a partir do século XVIII, era considerada uma práti-
107
Tema 6
ca inadequada, decorrente de distúrbios psicológicos e morais.
Suas conseqüências físicas seriam desastrosas, incluindo
desde o nascimento de pêlos nas mãos até a inevitável loucura
(BRENOT, 1998; LINS, 1997).
Como nos lembra Lins (1997):
A masturbação foi, então, punida com a morte. Não é de se
estranhar que durante muito tempo se acreditou que a mas-
turbação causava ataques epilépticos, loucura, reumatismo,
impotência, acne, asma, idiotice, cegueira e até crescimento
de pêlos nas palmas das mãos. Muitos adolescentes hoje
não têm certeza de que não sofrerão nenhum tipo de preju-
ízo pela atividade masturbatória já que a idéia de pecado ainda
está presente, provocando culpa e medo. Na Idade Média,
a ejaculação do homem só deveria ocorrer com a finalidade
de procriação e na Inquisição o acusado de masturbação era
considerado herege, podendo ser condenado à morte na
fogueira (LINS, 1997, p.302).

Atualmente, porém, é consenso entre os cientistas


que lidam com este tema que a masturbação não faz mal e
deve ser considerada uma prática normal no desenvolvimento
humano (BRENOT, 1998; COSTA, 1986; RODRIGUES JR.,
1994). Entretanto, ainda hoje persiste entre nós a herança
histórica do antigo preconceito, baseada em idéias que a
identificam como uma prática pecaminosa e danosa. Na
verdade, essa postura talvez reflita a grande dificuldade que
muitos adultos têm em praticar a masturbação, em si mesmos
ou em seus parceiros (as) afetivos. Ou pode ser que tenham
108
Tema 6
dificuldade em falar sobre isso, ou presenciar a masturbação
em seus alunos ou filhos.
A masturbação é feita pela estimulação da genitália pela
pessoa ou por outrem, pelas mãos ou por algum outro objeto,
visando o prazer genital, mesmo que não ocorra o orgasmo. No
caso das crianças, ainda que não inclua a presença de fantasias
eróticas, denota prazer e prazer e pode manifestar-se diferente-
mente entre meninos e meninas. As meninas costumam usar
travesseiros e panos entre as pernas, movimentam-se (num
vai e vem) nas pernas dos adultos, braços de sofás ou canto
de mesas e também se estimulam com os dedos das mãos
ou o jato de água do chuveirinho. Os meninos, por sua vez,
estimulam-se, ou em contato com alguma superfície como o
colchão ou, o que é mais freqüente, com as próprias mãos.
Há, todavia, uma diferença no modo como os adultos
lidam com a masturbação infantil de meninos e meninas. Essa
diferença demonstra a maior liberdade sexual que o gênero
masculino tem. Quando se trata de meninos, essa conduta é
mais tolerada e, às vezes, é até mesmo considerada desejável,
pois ela está ligada à manifestação da masculinidade (desejo
sexual, vigor, virilidade). Em relação às meninas, há menor
tolerância e maior repressão. Teme-se a perda da virgindade
precoce, ou mesmo o despertar de desejos incontroláveis, coi-
sa que seria aceita num menino, mas seria inconcebível para
uma menina. Essa opinião reflete uma diferença, estabelecida
histórica e socialmente, diante do prazer sexual masculino e
feminino: permitido aos homens e limitado às mulheres. Esta
diferença também está presente nas atitudes dos adultos
109
Tema 6
diante da masturbação infantil feminina e masculina (RODRI-
GUES JR., 1994).
Todo o processo de masturbação infantil se relaciona com
a aprendizagem dos papéis sexuais (observação dos adultos
nos papéis sociais e sexuais da paternidade e maternidade), à
observação de outras crianças nas suas diferenças e semelhan-
ças. Também diz respeito ao processo de construção de sua
identidade em relação ao gênero e à observação das normas
culturais e dos padrões de comportamento sexual. De outro
lado, a masturbação também se relaciona com a aprendizagem
do prazer a partir do contato corporal (contatos carregados de
afetividade e prazer e contatos lúdicos nas brincadeiras). Essa
aprendizagem favorecerá o desenvolvimento da capacidade de
criar vínculos afetivos com as pessoas e também contribui para
a descoberta do próprio corpo.
O percurso da masturbação sexual infantil começa pela
aprendizagem do prazer em tocar-se (manipulação infantil).
Tem característica auto-erótica, sem que haja fantasias sexuais
similares às que ocorrem em adultos. Por volta dos dois anos
de idade, as aquisições sexuais são solitárias e voltadas para
a aprendizagem do prazer sexual (tocar-se; descobrir-se). Em
poucas palavras, trata-se da manipulação dos órgãos sexuais
pelo prazer da descoberta do corpo.
Entre os três e quatro anos, quando a criança já tem
controle dos esfíncteres, ela começa a descobrir que seu
corpo pode lhe proporcionar prazer. Ao mesmo tempo, o
desenvolvimento motor e da linguagem que ocorre neste
período, permite a ela conhecer o corpo do outro e os
110
Tema 6
prazeres que podem lhe proporcionar. Embora com conotação
prazerosa, esses episódios iniciais de masturbação infantil
ainda têm um caráter essencialmente exibicionista e não têm
as fantasias sexuais que percebemos no adulto. Assim, entre
quatro e cinco anos, as crianças masturbam-se por prazer, mas
ainda de forma ingênua, tanto que o fazem na frente dos pais,
professores ou de outras pessoas. Elas ainda não apresentam
as fantasias sexuais adultas, nem incorporaram totalmente os
mecanismos sociais repressivos.
Somente a partir dos seis ou sete anos é que irá ocorrer
a masturbação com finalidade intencional de buscar prazer.
Um pouco mais tarde, tornar-se um ato privado e movido
por fantasias sexuais, que incluem um possível parceiro (a).
Nesse caso já ocorre a masturbação característica da vida
adulta (VITIELLO, 1997). Há, portanto, um aumento gradual da
incidência e uma modificação de como ocorrem a masturbação
e os jogos sexuais infantis.
Os jogos sexuais infantis correspondem a brincadeiras
que incluem a exploração do próprio corpo e o de outras crian-
ças da mesma faixa etária. Essas brincadeiras proporcionam
sensações prazerosas e ocorrem entre crianças, de ambos
os sexos, com idades próximas. O toque corporal de cunho
erótico comumente ocorre, mas é movido pela curiosidade em
descobrir as diferenças entre os gêneros ou entre indivíduos.
Não existe a intenção libidinosa própria das experiências sexu-
ais na vida adulta.

111
Tema 6
Segundo Vitiello (1997):
Neste estágio do desenvolvimento psicossexual a criança
inicia o relacionamento interpessoal com outras crianças. O
interesse pelos órgãos genitais, que é claramente amplifi-
cado pelo clima de mistério feito pelos familiares, leva a uma
exploração mútua, muito mais motivada pela curiosidade do
que pela sensualidade, que culmina, entre os meninos, num
simulacro de coito anal, o denominado “troca-troca”. A fase de
descoberta do corpo do outro inclui a curiosidade pelo corpo da
mãe e do pai. Tem início a socialização sexual da criança. Esta
etapa ocorre até o início da puberdade (VITIELLO, 1997, p.34).

A masturbação ou as brincadeiras sexuais entre as crian-


ças favorecem a descoberta das diferenças corporais entre os
gêneros e das diferentes formas de sentir prazer com o próprio
corpo. É importante ressaltar que nas vivências infantis, pelo
menos os até seis anos, há uma dissociação entre o prazer
sexual egocêntrico e o prazer sexual ligado a outra pessoa. O
prazer sexual infantil nessas atividades é individual, voltado
para si mesmo e, portanto, exibicionista. O prazer sexual
do adolescente e do adulto, em geral, se relaciona à outra
pessoa (ainda que seja em fantasia). Os jogos sexuais infantis
envolvem a descoberta do próprio corpo e o corpo do outro,
independentemente da existência de uma relação de afeto e
amor entre as crianças envolvidas.
Os jogos ou brincadeiras sexuais, bastante comuns entre
crianças de quatro anos, tornam-se mais explícitos aos cinco
e seis anos. Esses jogos são treinos importantes para que
112
Tema 6
elas aprendam e desenvolvam, biológica e psicossocialmente,
sua sexualidade através da exploração de todo o corpo (e não
somente da genitália) e de vivências que contribuem para
construir as noções de identidade e os papéis sexuais. Para
Vitiello (1997) os jogos sexuais são importantes no processo
geral de desenvolvimento humano, pois auxiliam a exploração
do ambiente e das relações interpessoais entre as crianças,
favorecendo o desenvolvimento cognitivo e emocional.
Algumas brincadeiras sexuais muito comuns são o “Brin-
car de Médico”, “Mia Gatinho”, “Brincar de Luta”, etc. São
brincadeiras que envolvem contato corporal entre as crianças,
mas sem a intenção de realizar uma penetração vaginal ou
anal. Como brincadeiras, as ações entre as crianças envolvem
o toque e a descoberta de sensações prazerosas e das dife-
renças corporais. Outra brincadeira sexual muito freqüente é o
beijo na boca, também chamado de “selinho”. O beijo na boca
entre colegas de mesma idade surge por imitação de adultos,
ou cenas de filmes e novelas. Esse tipo de beijo é diferente
daquele trocado por adultos em situação erótica. Sendo uma
brincadeira, não tem maiores conseqüências e sua ocorrência
tende a diminuir com o tempo. Porém, quando o professor
presencia tais comportamentos na escola, deve lembrar que a
escola tem regras quanto à tolerância a essas manifestações.
Se uma criança mais velha beijar crianças menores, pode
ocorrer uma situação de abuso. Pode ser também que os pais
beijem a criança na boca. Por ser um comportamento familiar,
pode criar desconforto entre os professores, outros pais ou
outros alunos. Ao invés de propor a liberação ou a repressão
113
Tema 6
de tal conduta, a escola deveria conversar com os pais e
estabelecer parâmetros para as manifestações de afeto de
comum acordo entre as partes.
Essas brincadeiras e jogos sexuais tendem a passar com
o tempo, sem que haja a necessidade de repressão por parte
de pais e professores. Quando acontecem na escola, o que é
muito comum, é fundamental que os educadores lembrem aos
alunos que tais brincadeiras e o prazer que proporcionam não
são errados, mas o local, no caso a escola, é inapropriado. A
escola é um local de socialização, de amizade e relacionamento
social, mas as crianças a freqüentam para aprender e desenvol-
ver atividades acadêmicas. Se essas situações acontecem com
freqüência, seria apropriado que o professor, ao invés de se
desesperar, desenvolvesse algum trabalho formalmente com
as crianças. Pode-se aproveitar a curiosidade delas e introduzir
esse conteúdo com figuras e atividades para esclarecê-las e
despertar nelas a possibilidade de dialogar sobre o assunto
diretamente com o professor.
Na nossa cultura nossas experiências homossexuais e/ou
heterossexuais ocorridas na infância, explícitas nessas brinca-
deiras sexuais, costumam ser relegadas ao esquecimento. Isso
acontece por meio de mecanismos de defesa, que tem muito
a ver com a repressão sexual presente em nossa sociedade.
Quando nós, adultos, afirmamos que “nunca fizemos isso”
referindo-nos às vivências dos jogos sexuais infantis é porque
as reprimimos, num processo que chamamos de recalque.
Esse processo, e que implica tanto no esquecimento do que
foi vivido quanto o medo de tudo aquilo que diz respeito a ele.
114
Tema 6
É muito provável que todo adulto tenha tido experiências que
podem ser caracterizadas como brincadeiras sexuais típicas da
infância, mas o recalque faz com que nos “esqueçamos” do
vivido. Ao mesmo tempo, temos grande dificuldade em admitir
essas manifestações em nossos filhos ou alunos, pois eles nos
“lembram” nossa própria infância.
Talvez, por isso, seja tão difícil para um adulto encarar
a masturbação e os jogos sexuais entre crianças como
manifestações naturais do desenvolvimento. Nossos olhares
são genitalizados, isto é, olhamos as manifestações eróticas
interpretando-as como sexo, coito, relação sexual, pornografia,
etc. Mas essas idéias correspondem à imagem da sexualidade
própria de um grande número de adultos na nossa cultura. É
importante dizer novamente que as crianças vivem a fase da
experimentação corporal, baseada em uma curiosidade natural,
para descobrir novas sensações e o seu lugar na vida social.
Elas não vivem tais experiências do mesmo modo e com as
mesmas fantasias que os adultos.
Essa projeção da maioria dos adultos, que vêem a sexu-
alidade infantil por seu próprio prisma, ajuda a compreender
porque ainda é muito difícil falar deste tema. Tão difícil quanto,
é presenciar crianças tendo essas experiências sem tomar
atitudes caracterizadas simplesmente pela repressão, pela
negação ou pela omissão. São muito comuns os sentimentos
de desconforto, indignação e insegurança diante das situações
presenciadas. Esses sentimentos são, em geral, acompanha-
dos de uma incapacidade de agir sem impor nossos valores
pessoais àqueles que estamos educando.
115
Tema 6
É preciso ter clareza de que nossas interpretações em
relação às manifestações sexuais das crianças refletem nossos
valores pessoais em relação à nossa própria sexualidade. Estes
valores provavelmente foram aprendidos em uma educação
que incluiu uma grande dose de punição quando a sexualidade
se manifestava e silêncios muito significativos em relação
ao tema. Enfim, experiências que tiveram de ser vividas “às
escondidas”, e que hoje temos dificuldade em admitir nas
crianças. Pensando sobre nossa própria educação sexual,
podemos também perceber que grande parte das atitudes das
crianças não são, em si mesmas, pecaminosas, pervertidas
ou danosas. Sobretudo é preciso entender que viver essas
experiências pode ser muito importante para a sexualidade
dessas crianças no futuro.

116
Tema 6
REFERÊNCIAS

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do). Sexualidade humana: reflexões e proposta em ação. São
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117
Tema 6
NUNES, C.; SILVA, E. A Educação sexual da criança: subsí-
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sexualidade para além da transversalidade. Campinas: Autores
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soras. In: CHAKUR, C. R. S. L. (Org.). Problemas da educação
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VITIELLO, N. Sexualidade: quem educa o educador? São


Paulo: IGLU, 1997.

118
Tema 6
ANOTAÇÕES

119
TEMA

DIÁLOGOS SOBRE SEXUALIDADE


COM A CRIANÇA

ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA


Tema 7

Toda criança é muito curiosa. Temos tendência a


estimular essa curiosidade quando se trata de assuntos
como a natureza, a língua, a história, etc., mas não o fazemos
quando se trata da sexualidade. Por quê? Porque este é um
assunto que inibe muito os adultos e que eles acham que
seria melhor se fosse esquecido! Entretanto, para as crianças,
a curiosidade sobre sexo é um fato, já que se trata de um
tema que naturalmente desperta a curiosidade (NUNES e
SILVA, 2000; MAIA, 2004; SUPLICY, 1990). Questões como
o nascimento dos bebês, as diferenças entre meninos e
meninas, as sensações provocadas pelo toque nos genitais,
ou fatos como o namoro do irmão mais velho e o beijo visto na
novela, chamam a atenção da criança que se sente instigada a
procurar respostas para suas questões.
O problema é que o tema é cercado de tabus, o que acaba
por culminar em uma situação em que há pouco diálogo. Quan-
do vê uma oportunidade, a criança expressa sua curiosidade
com perguntas ou atitudes que, às vezes, soam embaraçosas
aos adultos. As perguntas e comentários sobre sexo ocorrem,
mais facilmente, quando há estímulos do ambiente para que
isso ocorra. Dentre os estímulos mais comuns há o convívio
com outras crianças de mesma idade ou maiores (no caso das
escolas) e também a exposição à mídia, o que comentaremos
mais profundamente em outro tema.

121
Tema 7
Atualmente, temos a impressão de que esses estímulos
ocorrem cada vez mais precocemente, pois existe uma grande
exposição às mais variadas informações sobre sexo (verbalmen-
te ou por imagens). Isso coloca a criança diante de mensagens
que ela, principalmente antes de completar seis ou sete anos,
não tem condições de compreender bem. O desenvolvimento
da capacidade de abstração na criança ocorre por meio da
construção de funções cognitivas, que dependem essencial-
mente do ambiente social que a cerca. Antes dos sete anos,
toda informação recebida, especialmente sobre sexo, passa
pelo pensamento mágico infantil, que “fantasia” e “interpreta”
a mensagem segundo seu nível de desenvolvimento. Por isso,
acreditamos que toda informação solicitada pela criança deve
ser respondida com explicações que não recorram a fantasias
e analogias absurdas, com alusões a sementes ou animais,
por exemplo. Deve-se levar em conta a idade e a capacidade
intelectual das crianças. Uma coisa é certa: não podemos
ignorar que as crianças têm contato com os diferentes temas
da sexualidade desde os primeiros anos de vida.
Nas primeiras perguntas, a criança não busca grandes
detalhes e sim respostas simples, imediatas, diretas e, se
possível, verdadeiras. Ela quer saber sobre o tema, como
gostaria de saber sobre qualquer outro assunto, principalmente
se estiver diante de alguma situação que desperte nela maior
curiosidade. Uma parente grávida, cenas vistas em filmes ou
na televisão, narrativas de fábulas e estórias, etc., podem
levar à questões feitas pela criança sem considerar o possível
embaraço que representam para o adulto. Se a resposta for
122
Tema 7
dada também sem embaraço, a curiosidade é saciada e ela
criança pode se ocupar de outros assuntos. Mas se a criança
percebe que o tema gera silêncio, respostas evasivas ou
mentirosas, ou que a partir da sua pergunta se cria uma história
fantástica para explicar uma pergunta simples, além de não
respondê-la, a criança terá a impressão (verdadeira) de que é
um assunto proibido (FRAIMAN, 1986; MAIA, 2004; SUPLICY,
1990; VITIELLO, 1997).
Entre as perguntas mais comuns encontram-se aquelas
sobre o nascimento e a origem da vida. O mistério que cerca o
assunto, produzido em diferentes contextos, expõe a criança a
muitas dúvidas. Em primeiro lugar, ela deseja saber a sua ori-
gem, a partir de uma pergunta essencial (“De onde eu vim?”).
Depois, quer saber sobre o nascimento e o parto (“Como eu
saí da barriga?”) e, finalmente sobre a concepção e a relação
sexual (“Como eu entrei na barriga?”). É interessante notar
que, em primeiro lugar, a criança vai querer saber como é que
sai o bebê da barriga da mãe. Só depois é que vai perguntar
como é que entrou. Além disso, essas perguntas não vêm de
uma vez só. As crianças fazem uma questão num dia, outra em
outro dia, e vão compreendendo as informações recebidas e
elaboram novas perguntas. Daí a importância de uma resposta
objetiva por parte do adulto, numa linguagem compreensível
para a criança. Dessa forma, tem-se a garantia que estas
perguntas serão feitas para ele. E também que o diálogo sobre
o assunto sexo e sexualidade seja mantido com um adulto
confiável e esclarecedor, de fato.

123
Tema 7
Há também, além das perguntas sobre reprodução
humana, outros questionamentos. Dada as transformações
ocorridas recentemente na sociedade, questões mais com-
plexas relacionadas ao sexo, que envolvem muitos valores,
ficaram muito mais explícitas e não passam despercebidas às
crianças. Temas como homossexualidade, virgindade, aborto,
prostituição, em geral, são mais embaraçosos de se comentar
e vem à tona nas dúvidas infantis. Segundo uma reportagem
da Revista VEJA (2000), um novo repertório de perguntas
das crianças, apenas retratando o grau de curiosidade normal
nesta idade, está assustando pais e educadores. Essas dúvidas
vêm carregado de palavras e expressões consideradas adultas
por remeterem à situações eróticas. O contato com novelas,
filmes, pessoas mais velhas, etc pode gerar perguntas como:
“Professora, você é virgem?”;
“Como um homem faz sexo com outro?”;
“Por que ninguém gosta que o filho diga que vai
sair pra transar?”;
“O que é uma camisinha?”;
“Todo mundo pega AIDS?”;
“O que é 69?”;
“O que é traição?”;
“O que é puta?”;
“Por que uma pessoa vira gay?”.

Os pais e professores não precisam ficar apavorados


diante destas perguntas, imaginando que seu filho ou aluno
seja um pervertido por falar de assuntos que, aparentemente,
não fazem parte do mundo infantil. Na verdade, as crianças
124
Tema 7
apenas estão reproduzindo certos estímulos sociais a que são
expostas, o que não implica em uma personalidade patológica.
Claro que devemos considerar a individualidade de cada uma,
o mundo de estímulos a que está exposta, etc. Há crianças, de
uma mesma idade, mais ingênuas que outras, são mais “desli-
gadas” desse assunto, enquanto outras são mais espertas, isto
é, mais atentas a qualquer sinal que direcione a esse assunto.
É muito importante que o adulto interprete o tom
malicioso e libidinoso das perguntas feitas pelas crianças
como se tivessem as mesmas intenções e fantasias adultas.
Provavelmente, quando utiliza um vocabulário próximo ao
utilizado pelo adulto, ela está reproduzindo algo que ouviu
sem compreender completamente o sentido. É o adulto quem
interpreta os comentários das crianças e atribui a eles a idéia
de que são uma aberração. Em geral comete um erro, pois
pode construir uma barreira entre ele e a criança que impede
o diálogo. Talvez seja esse um dos motivos principais da
dificuldade de um adulto manter um diálogo aberto sobre as
questões das crianças sobre sexualidade, sem demonstrar um
certo embaraço.
Diante das perguntas, quer sejam estas sobre reprodu-
ção ou valores, é preciso considerar que um diálogo aberto,
simples e direto é sempre a melhor solução. Quando dizemos
“diálogo aberto” queremos dizer que o adulto deve respeitar
o nível de compreensão da criança, oferecer informações
corretas e, também, considerar e refletir sobre a sua própria
dificuldade em dialogar sobre o assunto. Também significa
que, ao fornecer informações, o adulto deve se eximir de,
125
Tema 7
simplesmente, reproduzir seus próprios valores. Também deve
evitar que o discurso pareça uma censura moral. Impor seus
próprios valores – especialmente se você não for o pai ou mãe
da criança – é abusivo e desrespeitoso. Mesmo que seja com
a melhor das intenções.
Embora os pais possam, devido a sua autoridade familiar,
considerar válido transmitir seus valores aos filhos, deve ficar
claro que não são valores universais. A criança precisa saber
que há outras formas de pensar na sociedade e que todas
as outras famílias, com suas diferentes formas de encarar as
mesmas questões, merecem respeito. Quando respondemos
a uma criança algo a partir de um valor pessoal, devemos
explicitar que essa posição é nossa, ou da nossa família, mas
que há diferentes formas de pensar sobre o assunto. Esta
informação é mais justa e ética.
Talvez seja preferível fornecer informações à criança de
modo que os valores não entrem na informação. Vale a pena
persistir nessa questão, pois esta dimensão do diálogo sobre
sexualidade com a criança é fundamental. Evidentemente,
é difícil um adulto elaborar uma resposta completamente
isenta de valores, em especial duvidas que dizem respeito à
sexualidade. Nós defendemos que, ao responder e dialogar
com uma criança, devemos limitar nosso comentário ao
oferecimento de alguma informação. Deve-se procurar, ao
máximo, não relacionar a resposta a nenhum valor pessoal.
Se isso não for possível, o valor preciso ser explicitado. Além
disso, outras alternativas valorativas devem ser apresentadas
ao lado da escolhida.
126
Tema 7
Por exemplo: quando ocorre uma pergunta sobre como
nascem os bebês, é muito comum as respostas dos adultos
associarem a relação sexual a um casamento e este ao amor
entre dois adultos heterossexuais. Além disso, teriam o filho
a partir de uma gestação planejada e desejada. Dizemos ou
lemos em livros de orientação sexual: “Papai e mamãe se
casaram, se amavam muito e fizeram sexo só para ter você”.
Ora, mas nem sempre uma gestação ocorre assim! O que dizer
das pessoas que, ao terem uma relação sexual que resultou
numa gravidez, não se amavam ou mesmo, mal de conheciam?
Quantas gestações, mesmo ocorrendo com pessoas casadas
oficialmente, não foram planejadas? Claro que, se houve amor
na concepção da criança, isso é ótimo. Mas não podemos dizer
que todos os casais se amam quando têm relações sexuais, ou
que toda relação sexual é feita para se ter um bebê. Fazendo
isso, corre-se o risco de discriminar muitos casais e reforçar o
sentimento de rejeição de muitas crianças. Filhos de casais em
outras circunstâncias, são, necessariamente, menos amadas
que outras crianças? Deixam de ter tido um pai e uma mãe na
concepção? Vocês já pensaram sobre isso?
Se você é pai ou mãe de uma família religiosa e seu
filho também é, os valores religiosos podem ser explicitados.
Mas se você espera que seu filho tenha a liberdade de decidir
sobre a religião quando ficar adulto, ou se você é uma educa-
dora, os valores da família da criança devem ser respeitados. A
criança pode compreender o sexo sem associá-lo a questões
ideológicas. Isso é importante, como já dissemos, para
garantir que ela não discrimine, ou seja, discriminada, caso
127
Tema 7
tenha sido concebida sem o amor dos pais, ou sua família não
seja convencional (papai, mamãe e filhos), por exemplo. Uma
boa educação sexual deve favorecer a autonomia. Ela deve
construir seu próprio mundo de valores e concepções sem,
obrigatoriamente, responder a uma imposição da família ou da
professora, irrefletidamente.
É importante também compreender que evitar o diálogo
de nada adianta para diminuir a curiosidade da criança. Quando
os adultos dizem “depois conversamos sobre isso”, “quando
ficar mais velho, eu explico” ou ainda, “vá perguntar para
outra pessoa”, essas frases não resolver e nem saciam sua
curiosidade. Na verdade o adulto, ao dizer isso, dá a entender
é um assunto proibido, cercado de segredos e vedado às
crianças. Você poderá até dizer que não sabe a resposta (se
isso for verdade), que ela pode conversar sobre isso mais
detalhadamente com outra pessoa, como o pai ou a mãe, etc.
Mas é necessário responder de alguma forma para satisfazer
sua curiosidade imediata e garantir a sua confiança na interação
verbal estabelecida.
O mais importante, ainda segundo Vitiello (1997), é “dei-
xar clara a existência de um canal aberto para a comunicação,
canal este que poderá ser acionado sempre que a criança assim
o desejar” (p.34). Sobretudo, porque garantir este canal será
fundamental para que pais e educadores façam orientações
preventivas até a época da adolescência. As conseqüências de
omitir-se, ou negar informação à criança podem ser trágicas.
As informações obtidas por meio de amigos da mesma idade
(ou não), revistas, da televisão, podem ser distorcidas, erradas,
128
Tema 7
fantasiosas e podem incluir preconceitos, estereótipos. E o
que é pior, a criança aprende que não pode contar com os pais
quando se trata de assuntos relativos à sexualidade.
Crianças que tiveram adultos por perto, dispostos a
responder às suas questões, vêem neles pessoas com quem
podem dialogar, sobretudo sobre suas angústias e dúvidas. Um
bom diálogo na infância favorece o desenvolvimento de uma
relação de confiança na adolescência e este tipo de relação é
fundamental para prevenir doenças ou gravidezes indesejadas.
O sucesso da educação sexual depende do diálogo e de
respeitar a curiosidade e a autonomia que a criança desenvolve,
desde que tenha liberdade para perguntar.
A educação sexual é um processo que tem início antes
mesmo de nascermos e nos acompanha ao longo do nosso
desenvolvimento. A cultura dita regras de conduta em relação à
sexualidade e, por outro lado, há mecanismos biológicos asso-
ciados ao prazer sexual que se fazem notar desde muito cedo.
Nesse processo é impossível dissociar os aspectos biológicos
dos sociais e, além disso, cada um vivencia seus desejos e
as proibições impostas pela vida em sociedade de uma forma
única. Muitos adultos têm dificuldades com a educação sexual
das crianças em função da sua própria história de educação
sexual, que, em geral, é omissa ou repressiva. Mas essas difi-
culdades podem ser amenizadas se conseguirmos transmitir
a elas aquilo que aprendemos sobre sexualidade tem muito a
ver com a cultura. Além disso, a educação deveria prever o
desenvolvimento de sua autonomia sobre a formação de con-
ceitos, valores e atitudes sobre sua vida sexual. Não deveriam
129
Tema 7
prever que a educação sexual implica na mera reprodução de
modelos impostos pelos pais, pelos educadores, pelos amigos
e pela mídia.
Fazer uma educação sexual nesse sentido é um desafio,
uma vez que a imobilidade ou a omissão, só reproduzem os
valores arraigados e preconceituosos característicos de nossa
sociedade. Nela, existe uma aparente ‘liberdade sexual‘ mas,
cada vez mais estudiosos de diferentes áreas, psicólogos,
educadores, sociólogos, antropólogos e biólogos têm
compreendido que continuamos a viver formas muito intensas
de repressão sexual. Ainda existem modelos e regras bastante
rígidos quanto à conduta sexual, quanto às formas previstas
para amar, lidar com o corpo, etc. Quem sabe se as crianças
das futuras gerações possam viver numa sociedade que não
entenda a sexualidade como um fenômeno meramente natural
e homogêneo, que não discrimine as diferenças, nem se
feche para o diálogo? Quiçá em um futuro próximo possamos
falar de sexo de forma ética, sem generalizar nossos valores
nem impor regras (de abstinência ou de promiscuidade), e
possamos conversar mais livremente nas famílias, nas escolas,
na televisão, etc.
Há, no mercado brasileiro, muitos livros de orientação
sexual para crianças. Alguns são para serem lidos pelos
adultos, outros são para a criança. Os adultos poderiam lançar
mão deste recurso para ajudá-los na tarefa de comentar e
dialogar sobre sexualidade com seus filhos ou alunos. No
entanto, é preciso escolher, entre os livros disponíveis, aqueles
que falem do assunto sem generalizar valores. Especialmente
130
Tema 7
quando lecionamos em escolas públicas, que não tem incluído
no seu projeto pedagógico nenhum princípio religioso. Os
livros escolhidos devem ser minuciosamente analisados pelos
professores antes de serem lidos pelos alunos, observando
se as figuras, o texto, ou as informações não contém valores
implícitos indesejados. Neste caso, os professores devem pro-
curar refletir junto com os alunos sobre outras alternativas de
resolução para as histórias, sobre o conteúdo das mensagens
no texto, nas figuras, etc. Algumas questões me parecem
fundamentais para serem observadas nesta análise:
a) O livro tem valores explícitos morais e religiosos,
contrários a uma educação laica, própria das escolas
brasileiras?;
b) Os pais ou os educadores têm boa compreensão sobre
as informações apresentadas? Sentem-se confortáveis
ou incomodados com o livro (conteúdo ou ilustrações)?;
c) O livro tem informações valorativas ou preconceituo-
sas, que reforçam estereótipos e idéias distorcidas sobre
papéis sexuais, sobre fecundação e nascimento, sobre
casamento e família?;
d) O conteúdo do livro é pertinente, atual e completo? No
geral, é apropriado para a idade que se propõe?;
e) A linguagem utilizada no livro é acessível?
É adequada?;
f) Como são as ilustrações? Realistas, objetivas, claras,
apropriadas?;
g) O livro apresenta objetivos claros? O livro (conteúdo e
ilustrações) atende esses objetivos? 131
Tema 7
LIVROS INDICADOS

AUGUSTO, M. G. F.; COSTA, M. e PALADINO, M. S. As crian-


ças querem saber, e agora? São Paulo: Casa do Psicólogo (3
a 8 anos), 1991.

BENETTI, S.; FERRARI, C.; CAMILUCCI, A. Papai e Mamãe


me contam tudo: educação sexual para crianças. Tradução
de Georges Maissiat. São Paulo: Paulus, 1994.

BRITO, N.; et al. Daniel e Letícia: falando sobre Aids. São


Paulo: Ave Maria, 2000.

LOPES, C. Sexo e Sexualidade: que bicho é esse? (Coleção


de livros). Brasileitura, s/d.

MAYLE, P.; ROBINS, A.; WALTER, P. De onde Viemos?: expli-


cando fatos da vida sem absurdos. Tradução A. M. Santos e M.
Rittener. São Paulo: Nobel, 1994.

MAYLE, P.; ROBINS, A. e WALTER, P. O que está acontecen-


do comigo?: guia para a puberdade, com respostas às pergun-
tas mais embaraçosas do mundo. Tradução Ruth Rocha. São
Paulo: Nobel, 1984.

RIBEIRO, M. Menino brinca de boneca? Rio de Janeiro: Sala-


mandra, 1990.

RIBEIRO, M. Mamãe, como eu nasci? São Paulo: Salaman-


dra, 1991.
132
Tema 7
REIS, I.; ALVES, M.J.; GONÇALVES, Y. A Sexualidade. Ilus-
trações Maxx. São Paulo: Impala, 2003. (Coleção Satisfaçam a
minha curiosidade)

SOLDEVILLA e MAYLEE. Coleção: Minha primeira enciclo-


pédia de educação sexual. Volume 1 “O que acontece quan-
do amamos”, Volume 2 “Como nascem os meninos e meni-
nas?” e Volume 3 “O que diferencia os meninos das meni-
nas?”. Tradução Glaucenira Maximino da Costa. Tora Livraria e
Editora, 1998.

SUPLICY, M. Papai, mamãe e eu: o desenvolvimento sexual


da criança de zero a 10 anos. São Paulo: FDT, 1999. (acompa-
nha pranchas).

TORDJMAN, G.; MORAND, C. Uma vivência de amor. São


Paulo: Scipione, 1985.

TORDJMAN, G. Primeiras emoções amorosas: falando de


sexo 10 a 13 anos. Tradução Marlina Leão. São Paulo: Scipio-
ne, 1991.

133
Tema 7
PERGUNTAS FREQÜENTES SOBRE O TEMA:

É saudável conversar sobre sexo com crianças?

É possível conversar com as crianças sobre qualquer


assunto. Para muitas das perguntas feitas a elas já têm
respostas próprias. Estas respostas infantis correspondem às
fantasias que produziram sobre o que perguntam. Na verdade,
muitas vezes, elas só querem checar se você está aberto para
falar sobre o assunto e se vai falar a verdade. Se o adulto não
se sentir bem ou não souber responder, pode dizer exatamente
isso e procurar encaminhá-las a fontes onde possam obter
respostas precisas. Eufemismos e histórias como a da ‘semen-
tinha’, da ‘cegonha’ e da ‘vontade de Deus’ só alimentam a
fantasia da criança e não devem ser utilizadas. Não há neces-
sidade de adentrar a intimidade do adulto (contando sobre
como gosta de transar ou sobre os orgasmos) para explicar
uma relação sexual. A idéia é falar sempre a verdade, de forma
simples, sem complicar, respondendo somente aquilo que a
criança perguntar. Se ela não estiver satisfeita, as perguntas
vão continuar e você saberá até onde precisa ir. Pode usar
exemplos de conhecidos, de histórias e filmes e, também, de
figuras de diferentes livros que lidam com a orientação sexual.
Enfim, é muito saudável que se possa conversar sobre sexo
com as crianças, atender sua curiosidade espontânea, para
esclarecê-la e incentivá-la a manter um diálogo franco com
um adulto confiável.

134
Tema 7
Qual a melhor maneira de se falar sobre sexo com
crianças?

Sempre de forma natural, isto é, sem subterfúgios,


segredos, espanto, risinhos e proibições. Tudo pode ser
respondido e é importante que tudo possa ser perguntado…
Os nomes a serem utilizados para os órgãos sexuais devem
ser os corretos, ainda que você os associe com alguns
infantilizados, como ‘xoxota’, ‘piu-piu’, etc. Cada família pode
usar os nomes que desejar, mas é preciso sempre associá-los
aos nomes corretos, para que as crianças se familiarizem com
os termos que serão utilizados quando elas tiverem acesso
à literatura sobre o tema. Denominações igualmente com-
plicadas são utilizadas cotidianamente por elas no ambiente
escolar, mas quando se trata da sexualidade os adultos usam
eufemismos e nomes simplificados, o que acaba complicando
a compreensão. Parece que isso ameniza a situação para os
adultos, tornando mais fácil para eles falar sobre o tema, mas o
mesmo não ocorre com elas. Os especialistas têm percebido
que as perguntas sobre nascimento e reprodução já não são
as mais comuns atualmente. Com a sexualidade cada vez mais
precocemente escancarada às crianças (na televisão, etc.) as
perguntas, evidentemente, fogem aos temas tradicionais e são
influenciadas pela moda. Os temas, em geral, decorrem de
cenas presenciadas em novelas e propagandas de televisão. É
preciso falar sobre esses assuntos de forma simples e direta,
lembrando que a omissão não vai sanar a curiosidade que a
sociedade já despertou na criança. Se ela não ouvir de você,
ou de um adulto confiável, como os educadores, certamente
135
Tema 7
irá ouvir de outra pessoa… o que é temeroso. Falar com uma
criança sobre os conceitos de ‘‘prostituição’, ‘aborto’, ‘abuso’,
‘aids’, etc. pode parecer assustador, mas se o assunto for
abordado adequadamente, considerando as capacidades
cognitivas e emocionais dela, diminuem as chances de haver
problemas. Certamente, há sempre um certo grau de incerteza
quanto ao futuro de qualquer pessoa, mas manter um diálogo
aberto sobre a sexualidade pode contribuir para desenvolver
uma maior autonomia.

Como explicar às crianças os palavrões?

É comum o aprendizado e o uso de palavrões, quando


há o desenvolvimento da linguagem e maior comunicação
entre as crianças de mesma idade. Crianças, em geral, adoram
falar palavrões em público, talvez pela satisfação que sentem
ao gerar risos entre os adultos ou entre os colegas, talvez
por desafiarem o que aconteceria com elas. Diante destes
episódios, os adultos não devem simplesmente reprimi-las ou
puni-las. Ao ouvir palavrões delas, o adulto deve, primeiramen-
te, tentar identificar onde a criança aprendeu (com quem e em
que situações) e por que usou esses palavrões. Os adultos vão
perceber que esse comportamento, comumente, existe por
imitação de outras crianças (de mesma idade ou mais velhas)
ou ainda de outros adultos. O mais adequado é conversar
sobre isso, repetir a palavra usada explicando, literalmente, o
significado. Quando as crianças falam palavrões, em geral, não
sabem seu significado, apenas sabem que são palavras usadas
136
Tema 7
em determinados contextos, como xingamento ou para ofender
alguém. Por exemplo, quando uma criança fala “bosta”, deve-
se explicar a ela que “bosta” quer dizer cocô. Ou então, quando
fala “puta”, que isto quer dizer prostituta e que prostituta é uma
pessoa que faz sexo em troca de dinheiro, etc. Explicações
simples, mas sempre corretas, é a melhor maneira de lidar com
os palavrões. As palavras ganham o sentido “literal” e perdem
a sua função, isto é, “perdem a graça” diante dos demais. Além
disso, se você conversar sobre eles, sem repreender nem rir
diante dos palavrões, é muito provável que elas parem de usá-
los. Quanto ao ambiente, você deve explicar que, em certas
situações, o uso de palavrões é bastante indesejado, como a
escola, por exemplo. Explicar que isso não é “educado”, do
mesmo modo que se ensina outros comportamentos de boa
conduta como pedir licença, agradecer, etc. Isso pode explicar
a elas porque é que alguns adultos (muitas vezes os pais das
crianças) usam palavrões em certas situações, como dentro
de casa, ou diante de pessoas conhecidas, ou familiares com
quem esse tipo de vocabulário seja permitido. Alguns adultos
acabam usando essas palavras para ferir alguém, ou aliviar a
tensão diante de algo que está errado (como gritar “merda”
diante um acidente inevitável) e não devemos julgá-los sobre
isso. A criança, no entanto, ainda precisa respeitar certas regras
gerais de convívio, principalmente no ambiente da escola.

137
Tema 7
Como devem ser as respostas às perguntas sobre
sexo das crianças?

As próprias perguntas sobre sexo feitas pelas crianças


indicam quais os assuntos a serem abordados no diálogo
com ela. Cada uma vai ter sua curiosidade despertada num
determinado momento, que será o momento apropriado para
responder às suas perguntas. Não se precipite, nem fique
preocupado. Quando ela sentir necessidade de perguntar, se
houver diálogo, ela o fará. Comumente, as primeiras perguntas
são sobre as diferenças sexuais entre meninos e meninas, ou
entre crianças e adultos, ou ainda sobre o nascimento, o parto
e a relação sexual. Provavelmente, quando as perguntas se
referirem à relação sexual, as diferenças sexuais entre meninos
e meninas já são evidentes para as crianças, e pode-se explicar
sobre a concepção, o prazer, os órgãos genitais, etc.
Em nenhuma das questões é preciso dar uma “aula”,
cheia de detalhes e nomes técnicos. Isso pode ser até mais
fácil para o adulto, mas é menos eficaz para esclarecer uma
criança. Nunca devemos usar metáforas, porque isso as
confunde na sua fantasia infantil. Para Vitiello (1997), por
exemplo, a metáfora da sementinha, é de difícil compreensão.
Os adultos, muitas vezes, tentando ser “neutros” e mais
“técnicos”, deixam de explicar os fatos corretamente em suas
respostas às perguntas das crianças.

138
Tema 7
REFERÊNCIAS

FRAIMAN, A. P. Sexualidade na infância. In: SÃO PAULO (Esta-


do). Sexualidade humana: reflexões e proposta em ação. São
Paulo: SE/CENP, 1986. p. 66- 67.

MAIA, A.C.B. Reportagem de Ciça Valleiro. A descoberta da


sexualidade. Suplemento Feminino, n. 2728. O Estado de S.
Paulo, sáb. /dom ; 13/14 de março de 2004.

NUNES, C.; SILVA, E. A Educação sexual da criança: subsí-


dios teóricos e propostas práticas para uma abordagem da
sexualidade para além da transversalidade. Campinas: Autores
Associados, 2000. (Polêmicas do nosso tempo, 72).

SUPLICY, M. Papai, mamãe e eu. São Paulo: FDT, 1990.

VEJA: revista semanal. O que é isso, mamãe? – como respon-


der às perguntas de seu filho pequeno sobre o que ele vê nas
novelas. São Paulo: Abril, n. 11 de out. 2000, p.170-171.

VITIELLO, N. Sexualidade: quem educa o educador? São


Paulo: IGLU, 1997.

139
Tema 7
ANOTAÇÕES

140
Tema 7
ANOTAÇÕES

141
TEMA

ABUSO SEXUAL INFANTIL


ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
Tema 8

É difícil falar sobre abuso sexual. Trata-se de um tema


que nos lembra da existência de um tipo de violência que
aprendemos a rejeitar e que desejamos reprimir. Infelizmente,
ainda existem casos de abuso e a questão é se temos
feito tudo o que está ao nosso alcance para prevenir essas
ocorrências e evitar que ainda existam crianças vitimadas por
abusadores. É claro que seria melhor se esse assunto nem
precisasse fazer parte de assuntos relacionados à sexualidade.
Porém, os abusos existem, com mais freqüência do que
imaginamos e nossa omissão só agrava a situação. Portanto,
devemos nos preparar para esclarecer as crianças, tentando
prevenir a ocorrência de abusos.
O abuso sexual constitui uma exploração sexual feita em
crianças e adolescentes, que sofrem uma intensa dominação
de um adulto. Numa sociedade patriarcal e adultocêntrica, as
relações de poder entre homens adultos em relação à mulher
e à criança são desiguais. E é bastante freqüente que homens
adultos utilizem esse poder para satisfazer seus desejos de
modo inadequado. Isso pode explicar por que, na maioria dos
casos de abuso sexual, o abusador é homem e não mulher
(AZEVEDO e GUERRA, 2000).
O abuso sexual se define como a participação de uma
criança, ou de um adolescente menor, em atividades sexuais
que não é capaz de compreender, impróprias à sua idade e
ao seu desenvolvimento psicossexual. Os abusos ocorrem
143
Tema 8
por sedução ou força e que transgridem as leis e os preceitos
sociais (GAUDERER, 1999). Pode também ser definido como
um evento em que a criança serve como um objeto de “gratifi-
cação” para satisfazer os desejos ou as necessidades sexuais
de pessoas mais velhas. Se aproveitam da sua força e poder,
considerando a ingenuidade delas.
O crime de abuso sexual de crianças e adolescentes no
Brasil é chamado de Pedofilia. Para efeito da lei, segundo o
Código Penal Brasileiro, a diferença de idade entre um abusador
e a vítima deve ser maior que 5 anos, para que o contato sexual
seja considerado abuso. Isto quer dizer que um adolescente
também pode abusar de uma criança se esta for cinco anos
mais nova que ele. Evidentemente, toda vez que uma pessoa
é constrangida por qualquer meio, a manter relações sexuais
contra sua vontade, temos uma situação indesejável e crimi-
nosa, mas neste contexto, procuramos delimitar o abuso como
um tipo específico de violência sexual.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina,
entre seus artigos, que o abuso sexual em crianças e adoles-
centes é de notificação obrigatória. Aqueles que se omitirem
de denunciá-lo estarão sujeitos às penalidades legais. Isso quer
dizer que não podemos constatar esse crime sem denunciá-lo,
seja ao Conselho Tutelar, ou à autoridade policial, se não houver
outra alternativa (SADIGURSKY, 1999).
Há vários tipos de atitudes que configuram um abuso
sexual: a) estimulação sensorial, isto é, a exposição da criança
à pornografia, ao exibicionismo, ou a uma linguagem sexual
obscena; b) manipulação das partes íntimas do corpo da criança
144
Tema 8
pelo adulto, isto é, a masturbação, o contato genital incompleto
e a tentativa ou a penetração vaginal, anal ou oro-genital e c)
indução a situações públicas constrangedoras, como relacio-
namento sexual grupal, shows e filmagens pornográficas para
divulgação.
Para fins de punição legal, é importante notar que, embo-
ra todas as situações citadas configurem um tipo de violência,
segundo o código penal, considera-se estupro somente a
penetração vaginal, e todas as demais situações configurariam
outro crime: ‘atentado violento ao pudor’. O estupro só existe,
na lei, se houver comprovação da penetração vaginal. Isto é,
em pessoas do sexo feminino, com rompimento de hímen ou
violência na penetração.
Os dados estatísticos sobre o abuso sexual no Brasil não
são muito precisos. Uma pesquisa divulgada pela revista Veja,
em abril de 1994, denunciou que o SOS Criança, na cidade de
São Paulo em 1993 registrou que 84% das vítimas de abuso
sexual eram meninas e 16% meninos. Dos abusadores, 50%
eram pais, 18% eram parentes e somente 32% eram pessoas
estranhas. Ou seja, os abusadores, na maioria dos casos, são
pessoas próximas, que geralmente convivem com as vítimas.
Os tipos de abusos denunciados neste período foram: estupro
(44%) e sexo oral, anal e toques (33%). Estes últimos foram
enquadrados sob a figura jurídica do “atentado violento ao
pudor”, como já comentamos.
Neste sentido, os estudos mostram que a vítima mais
comum é mulher, em geral, menor de 13 anos de idade, o
agressor mais comum é um homem, em geral, heterossexual.
145
Tema 8
Os agressores, na maioria das vezes, são conhecidos e familia-
res, ou empregados, amigos, parentes e educadores. Ou seja,
pessoas com as quais tenha algum envolvimento afetivo.
Embora não existam dados precisos em quantidade, a
existência de várias denúncias tem levado alguns autores a
divulgar, por meio de artigos e livros, informações sobre esta
questão, para prevenir sua ocorrência e oferecer modelos
sobre como lidar com crianças vitimadas. Autores como Gabel
(1997), Gauderer (1999) e Azevedo e Guerra (2000) no Brasil,
e estrangeiros como Sánchez e Pérez (1996) e Watson (1984)
mostram, especificamente, propostas educativas voltadas para
a prevenção do abuso sexual infantil. O trabalho do CRAMI
– Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância,
em diferentes cidades brasileiras, também merece destaque
na luta pela identificação da violência doméstica e pela defesa
dos direitos de crianças e adolescentes (CRAMI, 2002).
Sánchez e Pérez (1996) defendem que:
As crianças realmente são vítimas fáceis porque justamente
carecem de informações e habilidades que as facilitem poder
defender-se a tempo. Pensamos que já se esperou muito
tempo para se tomar alguma atitude, agora não podemos
permitir que o silêncio continue; já são demais as vítimas.
Por que oferecer Educação Sexual e assim prevenir o abuso
sexual infantil? Já é hora de falar sobre como nascem os
bebês, como são diferentes as meninas dos meninos, como é
o abuso sexual e como dizer não ao abuso. Não permitam que
estranhos ensinem as crianças de forma enviesada ou errada
algo tão delicado… não esperem que seu filho ou filha seja
146
Tema 8
vítima de abuso sexual para depois buscar este tipo de ajuda
ou se este já ocorreu, ele voltará a ocorrer se não houver pre-
venção (SÁNCHEZ e PÉREZ, 1996, p. 5) [Tradução nossa].

O grande desafio consiste em tornar as crianças mais


capazes de identificar a situação de abuso como uma situação
inadequada. Isso, eventualmente só acontece tarde demais,
uma vez que o abusador, em geral, é uma pessoa conhecida,
que pode seduzi-la e enganá-la. Como uma criança pode
compreender o abuso sexual como algo errado, quando isso
acontece com alguém que ela conhece, confia e ama? Como,
então, prevenir o abuso sexual?
É arriscado dizer que seja totalmente possível prevenir a
ocorrência de um abuso sexual, mas certamente é desejável
e necessário. Pais e educadores devem conversar com seus
filhos e alunos, esclarecendo o que é o abuso sexual. Seria
muito bom se não tivéssemos que falar sobre isso, ou sobre
doenças sexualmente transmissíveis e outras conseqüências
ruins relacionadas à sexualidade, mas é errado omitir essas
coisas das crianças, pois se tiverem esclarecimento elas têm
boas chances de evitá-las.
Mas como orientá-las? Como é possível dizer à criança
que existem tais coisas? Alguns elementos chave estão pre-
sentes em praticamente todas as situações de abuso: o toque,
que nem sempre é indesejado por ela (é preciso lembrar que
ela também tem prazer quando alguém toca seus genitais),
e principalmente, ameaças e pedidos de segredo. É preciso
orientá-las e ensiná-las a diferenciar um diálogo aberto sobre
147
Tema 8
sexo de um toque indesejado de uma pessoa mais velha ou um
adulto, seguido de ameaças e pedidos de segredo.
Que adulto pode tocar uma criança? Qualquer um que
esteja cuidando dela: pais, professores, médicos, etc. sem que
isso seja um segredo, e sem que se configure uma situação de
sedução. Quando alguém manipula o corpo de uma criança,
ainda que isso propicie sensações prazerosas, e pede segredo
(ou o faz escondido), ela criança precisa ser orientada a avisar
alguém de sua confiança. Crianças mal informadas e que não
possam dialogar sobre isso com os pais, são alvos mais fáceis
de abusadores.
É interessante perceber que, em geral, dizemos às crian-
ças para tomar cuidado com pessoas estranhas mas, para o
entendimento infantil, uma pessoa estranha é um sujeito “não
normal”, uma pessoa fora dos padrões conhecidos. Assim,
para muitas delas, uma pessoa estranha é um “lobo mau”, e
como tal deve ter uma fisionomia assustadora e deformada.
Uma pessoa idosa, o homem que dirige a perua escolar, ou
que atende na padaria, o professor de natação ou o tio distante,
portanto, não vão estar enquadrados na categoria “estranho”,
embora um abusador possa ocupar qualquer uma dessas
posições. Claro que estas são apenas algumas comparações
à guisa de exemplos, mas é preciso chamar a atenção para o
fato de ela criança não reconhecer como estranha e perigosa
uma pessoa que tem, para ela, uma aparência normal. Os
abusadores sexuais, em geral, não se distinguem por raça, cor,
condição financeira, parentesco, fisionomia, etc.

148
Tema 8
Os estudos sobre as características gerais do abusador
indicam que ele não tem um perfil definido. Ele não tem carac-
terísticas pessoais visíveis, que permitam caracterizá-lo como
tal. Qualquer pessoa pode ser um abusador sexual, e não há
nenhum traço físico ou de personalidade que indique, a priori,
que aquele sujeito tem potencial para ser um abusador sexual.
Diante disso, fica ainda mais difícil identificar um abusador para
garantir uma prevenção eficaz.
É por isso que o esclarecimento que devemos oferecer a
elas não deve ser limitado a um conjunto de cuidados. Dizer a
ela para tomar cuidado com esta ou aquela pessoa não basta.
Devemos explicar o que é um abuso sexual, investigar se ela é
capaz de identificá-lo e evitá-lo. Também devemos orientá-la
sobre que providências deve tomar diante de uma ameaça
de abuso. Sem criar um clima aterrorizante, é possível dizer à
criança que o abuso sexual ocorre quando um adulto ou uma
pessoa maior que ele pede para fazer coisas relacionadas à
sexualidade, que não são próprias para serem feitas. Como
exemplos podemos citar: quando um adulto força a criança a
olhar para seu corpo nu ou a tocar a sua genitália; quando um
adulto manipula propositalmente o corpo nu dela ou esfrega
seu corpo insistentemente no dela, especialmente na genitália,
ânus, nádegas, mamas; quando um adulto fala coisas sobre
sexo e palavras que a criança não entenda e que a incomode,
etc. Todos estes comportamentos vêm acompanhados de
uma situação específica: a criança, sozinha, ou com outras,
está escondida com este adulto, que lhe pede que tudo o que
ocorre entre eles seja mantido em sigilo. Por isso o pedido de
149
Tema 8
segredo é uma das características mais comuns às situações
de abuso, e a criança deve ser esclarecida para identificar essas
situações.
É preciso que elas compreendam que, quando um adulto
toca a sua genitália, seja para exame clínico, no caso do médi-
co, seja para limpeza, no caso de professoras ou cuidadores,
isso nunca será um abuso sexual, porque não se trata de um
segredo! Quando este adulto, porém, pede que nunca conte o
que ocorre com eles, isso é errado. Na infância, não há nada
em relação ao toque corporal legítimo que aconteça entre uma
criança e um adulto que a mãe (ou a pessoa responsável e de
confiança da criança) não possa saber. Em geral, o pedido de
segredo vem acompanhado de ameaça: “Se você contar para
alguém eu não vou gostar mais de você”; “Se você contar
para alguém, eu bato em você depois”; “Se você contar para
alguém, sua mãe vai ficar brava”, “Se você nunca contar para
ninguém, eu lhe dou um presente”, etc. A criança precisa
aprender que quando alguém diz isso a ela, somado a uma
situação de intimidade sexual, isso será sempre caracterizado
como abuso sexual. Além disso, ela precisa saber que isso será
abuso sexual, mesmo que ela goste e tenha prazer. O prazer
que ela pode sentir não a culpa de nada e, mesmo que ela gos-
te, ela não deve se submeter aos pedidos de um adulto que a
incita a fazer coisas que não podem ser contadas a ninguém.
É importante lembrar que o esclarecimento sobre abuso
sexual só é eficaz se há diálogo aberto entre a criança e seus
educadores (pais ou professores) também sobre sexualidade.
Se o assunto é proibido, considerado tabu, ou se os pais e
150
Tema 8
educadores se omitem sobre esse tema, provavelmente o
segredo sobre as questões da sexualidade já faz parte da
relação da criança com os adultos, o que favorece o abusador,
que depende justamente, do segredo para perpetrar um ato de
violência contra ela.
Por isso, se estimularmos as crianças a dialogar sobre
assuntos relativos à sexualidade é muito mais provável que se
sinta livre para contar sobre as possíveis ocorrências de abuso,
ou seja, é preciso também investir numa orientação sexual
adequada desde a infância. Se ela souber nomear as partes
do corpo adequadamente, conhecer a genitália masculina e
feminina pelo nome e for esclarecida sobre o abuso sexual,
ela estará mais preparada para identificar situações de risco
e, se eventualmente algo ocorrer com ela, saberá contar para
alguém. Uma grande dificuldade que os profissionais têm ao
entrevistar crianças supostamente abusadas sexualmente é
que elas não sabem contar exatamente o ocorrido, nem nome-
ar, adequadamente, as partes manipuladas pelo abusador.
Contar o ocorrido é sempre difícil porque as pessoas, em
geral, nunca acreditam nelas. Muitos adultos acreditam que
fantasiam sempre, que tudo o que dizem é somente “conto de
fadas”. Mas, uma criança não mente sobre a ocorrência de um
abuso. Ela pode até fantasiar algo ou ser induzida a dizer algo,
sem saber exatamente do que se trata, mas é muito difícil que
invente estórias mirabolantes sobre abuso sexual, com detalhes
que, somente quem vivenciou a situação poderia saber.
De fato, as crianças têm dificuldades cognitivas para des-
crever situações por ela experienciadas e, por isso, as melhores
151
Tema 8
fontes de informação, para um bom observador, vêm do seu
comportamento não-verbal, mais do que pela linguagem,
isto é, do que ela fala. Ela não chegará dizendo “Fui abusada
sexualmente e não sei direito o que é isso”. Comportamentos
como: choro sem motivo aparente, a ocorrência de palavras
ou expressões sobre sexo que antes eram desconhecidas,
medo ou repulsa a pessoas ou situações, que remetem ao
abuso ou ao abusador ou, por outro lado, o estabelecimento
de uma relação por demais estreita com um adulto que lhe
dá atenção privilegiada, ou presentes constantes, são sinais
que devem chamar a atenção dos pais ou responsáveis para
que investiguem um possível abuso. Por exemplo: atendemos
um caso de uma criança que se recusava a ir a escola. A
família toda já estava preocupada, mas procurava na escola os
motivos da recusa. Foi necessário um bom tempo até que se
descobrisse que o motorista da perua escolar, que levava as
crianças à escola, abusava de uma menina, que era a última a
ser deixada em casa.
Portanto, atenção: precisamos estar atentos a toda
mudança brusca de comportamento: apatia, superexcitação,
choro excessivo, medo, agressividade, etc. Obviamente, esses
sintomas podem ocorrem por conta de vários fatores e não
indicam diretamente a ocorrência de abuso sexual. Por isso,
saber ouvir a criança, e informá-la, num ambiente em que ela
saiba que poderá falar sobe isso, com os pais ou professores,
sem ser punida, é a melhor medida que podemos tomar para
evitar situações indesejáveis. Pelo mesmo motivo, discutir o
abuso sexual, nos programas de orientação sexual na infância,
152
Tema 8
me parece fundamental. É importante também repetir que
todo abuso sexual deve ser denunciado. Para isso existem
instituições, como o CRAMI, ou o Conselho Tutelar, por exem-
plo, que a partir de uma denúncia, anônima ou não, investigam
se há abuso sexual ou violência sexual na família para tomar
providências junto às delegacias e aos psicólogos.
Quando uma situação de abuso ocorre, toda a família
precisa de orientação e tratamento. Não só a criança é abusa-
da, mas também os pais, familiares e, até mesmo, o abusador.
Muitas famílias escondem a ocorrência de um abuso sexual,
não denunciam e se calam, por medo, vergonha ou omissão.
Mas o abuso não será apagado nunca da vida de uma criança e
ela deve saber falar sobre isso e compreender, na sua dinâmica
emocional, como lidar com este fato.

PERGUNTAS FREQÜENTES SOBRE O TEMA

Ver relação sexual dos pais pode induzir uma


criança a aceitar uma situação de abuso sexual?

Ver cenas de sexo, seja na televisão, revistas ou mesmo


entre os pais, não “estimula”, nem “induz” a ocorrência do
abuso sexual. Isto que dizer que a criança não vai favorecer
uma situação de abuso sexual, com um adolescente ou um
adulto, porque viu cenas de sexo. Evidentemente, é preciso
cautela e respeitar o desenvolvimento emocional das crianças,
evitando que presenciem cenas de sexo que ainda não são
capazes de compreender. No caso da relação sexual dos
153
Tema 8
pais, espera-se que ocorra de maneira reservada e discreta,
em momentos e locais em que as crianças não possam
presenciá-la. Elas entendem que seus pais namorem, beijem
na boca e troquem carícias, mas uma relação sexual, em geral,
é repleta de movimentos e sons que não são habituais a elas.
Elas podem interpretar o que vêem como uma agressão do
pai em relação à mãe, ou uma briga entre o casal. Por isso, se
a criança presenciar cenas de sexo, é preciso dialogar sobre a
questão, respeitando sua necessidade de ser compreendida
e esclarecida. É preciso explicar que beijar na boca, trocar
carícias e ter relações sexuais são ações próprias de casais
adultos e não de crianças. O amor fraternal não precisa de
intimidade sexual. As crianças são capazes de compreender
isso, ainda que a existência desses limites possa gerar
raiva, ciúmes de um progenitor, competição, etc. Mas essas
regras (e essas frustrações) fazem parte do crescimento e
do amadurecimento sexual. Toda pessoa precisa aprender a
dar e receber amor, diferenciando o amor próprio do vínculo
familiar daquele que incluirá sua escolha erótica afetiva na vida
adulta. Isso pode ajudar uma criança no seu amadurecimento
psicossexual e também a prevenir o abuso sexual, pois as
crianças precisam reconhecer que o ato de receber amor de
adultos não está ligado à uma aceitação de envolvimento com
comportamentos “sexuais”.

154
Tema 8
O que fazer quando um professor desconfia que
um(a) de suas(eus) alunas(os) está sendo vítima
de abuso sexual em casa?

Um professor deve estar sempre atento às questões


de violência sexual e doméstica entre seus alunos. É possível
perceber quando há algo estranho, quando nota uma mudança
brusca de comportamento no aluno ou aluna. No caso do
abuso sexual, esta criança pode apresentar comentários sus-
peitos (relativos a relações sexuais ou a segredos com adultos),
medos aparentemente infundados, ou mesmo, expressar esta
situação em desenhos e trabalhos da escola. Quando o profes-
sor perceber isso, deve procurar conversar com a criança, sem
expor a situação em público. È preciso fazer com que ela confie
no professor e se abra, relevando suas angústias e medos. Se
um diálogo for bem estabelecido é possível que ela dê indícios
sobre possíveis violências sofridas. O professor deve comunicar
à direção da escola, e outros profissionais que possam ajudar
a dialogar sobre o fato com a família, uma assistente social,
uma psicóloga, ou mesmo, uma coordenadora pedagógica, por
exemplo. A conversa com a família deve ser muito cuidadosa,
porque, muitas vezes, são eles que escondem a violência por
diferentes razões: vergonha, medo, negação, etc. Quando a
mãe ou a pessoa responsável compreender a suspeita de
abuso, por parte da escola, foi para ajudar a criança, talvez ela
passe a cooperar, ficando atenta sobre esta questão em casa.
No caso do abusador ser um parente próximo da criança (pai,
padrasto) é papel da mãe denunciar e tomar providências tanto
155
Tema 8
em relação ao atendimento médico e psicológico da criança,
quanto em relação ao enquadramento legal para o abusador. No
entanto, considerando que o abusador pode ser um parceiro da
mãe, a situação fica mais difícil. Em caso de omissão da mãe,
é a escola que deve tomar as providências e fazer a denúncia,
para uma real investigação do caso. É importante não levantar
falsas suspeitas, isto é, não fazer denúncias sem evidências
palpáveis. Ao mesmo tempo, a negligência em relação a um
abuso constatado não somente é crime, como é uma postura
eticamente inaceitável. Toda a família vai precisar de ajuda,
não somente a criança e a escola deve estar preparada para
dar suporte pedagógico a ela, se o ocorrido influenciar seu
desempenho acadêmico.

156
Tema 8
REFERÊNCIAS

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zadas: a síndrome do pequeno poder: violência física e sexual
contra crianças e adolescentes. São Paulo: IGLU, 2000.

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e responsabilização do agressor. São Paulo: Cortez; Brasília:
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ção Sonia Goldfeder. São Paulo: Summus, 1997.

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centes: os profissionais de saúde e os aspectos legais. Revis-
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SANCHEZ, L. PÉREZ, L. Manual de educación sexual para


la prevención del abuso sexual infantil. Peru: Libro Amigo,
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VEJA: REVISTA SEMANAL. O Drama em silêncio dos


inocentes. São Paulo: Abril, n.1335, 13 abr., 1994, p.72-77.

157
Tema 8
WATSON, J. D. Talking about the best kept secrect: sexual
abuse and children with disabilities. The Execptional Parent,
v.14, n.1, p.15-20, 1984.

158
Tema 8
ANOTAÇÕES

159
TEMA

MÍDIA E A SEXUALIDADE INFANTIL


ARI FERNANDO MAIA
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
Tema 9

Atualmente, é comum escutarmos críticas sobre a pro-


gramação televisiva, filmes ou revistas, que atribuem à “mídia”
a responsabilidade por várias condutas das crianças relativas
à sexualidade. Afirma-se que, uma vez que tenham acesso a
esses meios, são vítimas da programação e das mensagens
veiculadas por ela. As conseqüências do contato das crianças
com esses meios seriam: erotização precoce, adoção de
modelos inadequados, banalização do sexo, estabelecimento
de uma relação entre sexo e violência, etc.
Saber se essa vinculação entre o contato com produtos
midiáticos e as conseqüências apontadas é verdadeira, ou
mesmo em que medida ela é verdadeira, levanta uma série
considerável de dificuldades, que tem ocupado vários pesqui-
sadores em várias partes do mundo. Mas parece-nos que a
questão pode ser pensada de modo menos linear. Devemos
pensar a televisão, os filmes, revistas, etc, como produtos de
nossa sociedade, para produzirmos uma compreensão dos
fenômenos ligados a eles. Essa reflexão não deve resultar
numa mera afirmação de que a exposição à violência ou a
cenas eróticas causa ou não causa violência e erotização
precoce.
Assim, para começar, podemos discutir brevemente
o conceito de mídia. A palavra mídia, comumente utilizada
entre nós vem do latim medium (pl. media), através do inglês
media. É uma palavra muito utilizada, originalmente, no campo
161
Tema 9
da comunicação e da publicidade e designa todos os tipos
de suportes tecnológicos de difusão de informações. São os
veículos, os meios intermediários, pelos quais as informações
são transmitidas, ou então o conjunto de veículos utilizados
numa campanha publicitária, entre outros sentidos associados.
Jameson (1997), falando sobre o significado original na língua
de origem, explica que a palavra medium e, em especial, seu
plural, referem-se a três signos relativamente distintos: o de
modalidade artística ou forma de produção estética, o de uma
tecnologia e o de uma instituição social. Parece-nos que é
essencial pensar como se articulam atualmente esses três
campos citados pelo autor. Para facilitar nossa tarefa, vamos
nos restringir, a partir de exemplos, a um dos meios de comu-
nicação, talvez o mais comum em nosso país: a televisão.
A televisão congrega os três sentidos citados para a
palavra mídia: é uma modalidade de produção estética, envolve
uma série de tecnologias para a criação, produção, gravação,
divulgação e venda de programas e é também uma instituição
social. Na verdade, os três níveis estão estreitamente interliga-
dos. Quando pensamos no tipo de produção estética divulgada
pela televisão, vemos imediatamente que se constitui em
fórmulas reproduzidas tecnologicamente – como as novelas,
telejornais, etc - envolve um conjunto de tecnologias, de meios
técnicos – como câmeras, computadores, etc assim como, a
instituição social – as redes de televisão – são marcadamente
determinadas por uma série de tecnologias, envolvidas na
administração empresarial e na venda de suas mercadorias.
Assim, talvez, o uso disseminado do termo mídia tenha um
162
Tema 9
conteúdo de verdade, se considerarmos que o aspecto técnico
dos meios é a chave essencial para iluminar, o tipo de produção
estética que predomina na televisão, também em outros mídia,
quanto o funcionamento das redes de televisão, que produzem
e divulgam programas.
Não entendemos a tecnologia aqui somente como o
conjunto de aparatos técnicos envolvidos na produção da
programação televisiva, como as câmeras, computadores,
ilhas de edição, aparelhos de transmissão de imagens, etc.
Consideramos que a tecnologia é também sempre um
processo social, o que implica, não somente a existência de
aparatos técnicos. Também se leva em conta a determinação
de suas finalidades e os tipos de sociabilidade produzidos pela
sua mediação. A tecnologia, assim, contribui não somente para
tornar mais eficiente nosso controle sobre os processos natu-
rais. Também pode contribuir para organizar a sociedade de
determinada forma, seja ajudando a manter as relações sociais
como estão, ou tendo potencial para modificá-las. Ou seja,
uma sociedade como a nossa, fortemente determinada em
termos tecnológicos, produz uma forma de racionalidade típica
e também padrões para o desenvolvimento dos indivíduos, que
precisam ser pensados de modo mais abrangente.
Assim, vista a “mídia” por esse prisma, as perguntas
iniciais perdem um pouco seu sentido, ou melhor, ganham
nova dimensão. Não se trata mais de pensar o que determi-
nado programa, que mostra uma cena erótica, produz numa
criança. Trata-se de considerar que os meios tecnológicos de
comunicação contemporâneos pressupõem determinados
163
Tema 9
modos de sociabilidade, que tanto podem ser reforçados como
problematizados no âmbito desses meios. É preciso, então,
refletir sobre esses modos de sociabilidade, pressupostos nas
mensagens televisivas, e investigar como eles influenciam a
sexualidade, as relações familiares e a educação, por exemplo.
Talvez seja possível compreender isso como uma preocupação
com a forma de um determinado programa ou mensagem,
sem descuidar, evidentemente, de seu conteúdo. Essa “influ-
ência” se faz por meio da totalidade das técnicas envolvidas na
televisão, considerada em meio ao aparato tecnológico, como
um todo. Isto é, só compreendemos criticamente a televisão
se compreendemos criticamente a sociedade que a produz do
modo como ela é.
Por isso, um conceito fundamental para essa discussão é
o de indústria cultural. Criado por dois filósofos alemães, Max
Horkheimer e Theodor Wiesengrund Adorno (1991), na década
de 40 do século passado. Esse conceito aponta a apropriação
e a reprodução das manifestações culturais pela indústria de
“entretenimento”, “diversão” e “lazer”, culminando numa
situação em que todas as expressões culturais, capturadas
pela indústria, perdem seu caráter emancipatório. Dessa forma,
contribuem para manter as relações sociais estranhadas aos
homens que as produzem. Em outras palavras, tanto as pro-
duções que chamamos de artísticas, como as manifestações
espontâneas da cultura popular, são apropriadas pela televisão.
Depois são manipuladas tecnicamente para se encaixarem em
padrões criados no próprio meio televisivo para serem vendidas
como mercadoria cultural.
164
Tema 9
Mas com isso, as mercadorias culturais perdem o caráter
emancipatório que caracterizava a obra artística. A leitura das
obras de um autor importante da língua portuguesa, como Eça
de Queiroz, ou Machado de Assis, por exemplo, traz dificulda-
des ao leitor comum. Para que sejam superadas, ele deve se
formar na leitura da obra, um leitor mais apto, mais perspicaz e
mais atento. Assim, é capaz de descobrir aspectos da vida que
ainda se encontravam obscuros, ampliando sua capacidade
de compreender a si mesmo e ao mundo. A tradução de uma
obra desses autores para a televisão apara as dificuldades,
adaptando a obra às capacidades do “espectador médio”. Essa
expressão é, uma abstração produzida pela própria indústria
em seu próprio interesse. Com isso, ao invés de tornar o sujeito
mais capaz de ler criticamente a realidade complexa à sua volta,
os produtos da indústria cultural reproduzem essa realidade de
forma simplificada – e falsificada – para ser consumida sem
dificuldades. Mas, dessa forma, ela dificulta a compreensão da
realidade pelos sujeitos. Ela oferece uma realidade substituta,
que prende o sujeito nas malhas de uma sociedade profunda-
mente injusta e violenta e que, por meio da indústria cultural,
se reproduz como tal.
Há ainda outros aspectos a considerar. Os produtos
da indústria cultural são, antes de mais nada, mercadorias
culturais. Como tal, em sua produção, operam processos que
reproduzem a fragmentação e a alienação (ou estranhamento)
característicos da produção industrial. Se, ao chegar em casa, o
sujeito cansado de realizar um trabalho que não lhe interessa e
que o oprime, assiste à televisão ou lê uma revista ilustrada, ele
165
Tema 9
encontra nesses meios o mesmo estranhamento que caracteri-
za sua relação com o trabalho. O prazer buscado nesse contato
é frustrado, na medida em que tais produtos nunca cumprem o
que prometem. Filmes e novelas prometem romance, aventura
e diversão. Se pensarmos um pouco, é como se um restaurante
prometesse sabor, prazer e saciedade, oferecendo a leitura do
cardápio. Às vezes o que é oferecido é, explicitamente, uma
mentira, tal como ocorre com batatas fritas vendidas como se
tivessem “sabor churrasco” ou “sabor pizza”, etc.
Todos os produtos fabricados nesse âmbito têm como
finalidade produzir um efeito no espectador: que ele permaneça
consumindo, indefinidamente, o mesmo produto ou seus subs-
titutos. A utilização das técnicas com essa finalidade culmina
na oferta de produtos, cujo efeito sobre o espectador seja
comprovadamente eficaz nesse sentido. Isso resulta na oferta
de produtos aparentemente diferentes, mas que são sempre
iguais. Quem já não teve a impressão, assistindo a um filme,
ouvindo uma música popular ou vendo uma telenovela, de estar
em contato com algo já assistido, ouvido e visto? A repetição
é uma característica fundamental dos produtos oferecidos na
indústria cultural. E conseqüentemente, os espectadores é que
adaptam sua sensibilidade, seus sentidos, à percepção das
pequenas diferenças entre os produtos consumidos. Abrem
mão de sua capacidade de pensar mais abrangentemente e
perceber as semelhanças e as diferenças entre os produtos.
Isso não é um efeito direto das técnicas utilizadas na produção,
mas é o efeito do uso de técnicas com a finalidade precípua de
produzir mercadorias.
166
Tema 9
Daí que, na indústria cultural, são veiculados precon-
ceitos e estereótipos. Até porque as diferentes redes de
televisão, por exemplo, são também negócios, que precisam
dar lucro e que tem seus próprios interesses. Ao adaptar seus
produtos ao “primado do efeito”, eles tornam-se padronizados,
reproduzindo em sua forma e em seu conteúdo modos
estereotipados de ver, pensar e sentir o mundo. A ideologia
na televisão confunde-se com a oferta de conjuntos de
idéias estereotipadas, às quais o sujeito deve simplesmente
aderir. Afinal, elas não são oferecidas para serem debatidas
ou pensadas. Evidentemente, é possível que os espectadores
pensem e não se limitem à mera adesão ou rejeição das idéias
apresentadas. Mas a seqüência velocíssima de imagens que o
fascinam na tela dificulta, também, o pensamento crítico, que
precisa de tempo e concentração num tema, para que possa
se desenvolver.
Aparentemente estivemos longe de nosso objeto, que
é a relação entre os media e a sexualidade infantil. Mas se
pensarmos que a sexualidade não se restringe à genitalidade,
veremos que a qualidade das relações eróticas depende,
em grande medida das formas sociais previstas para essas
relações. Sem dúvida, são produzidas e reproduzidas, por meio
da indústria cultural, as formas contemporâneas de sociabili-
dade, nas quais se manifesta o erotismo. Em outras palavras,
atualmente, por meio da indústria cultural, são reprimidas as
necessidades eróticas compatíveis com a emancipação dos
indivíduos. Ao mesmo tempo, são satisfeitas várias outras
necessidades eróticas, mas de tal modo que, na exata medida
167
Tema 9
em que a indústria oferece meios de satisfação, tal prazer, sen-
do administrado, implica a adesão a formas estereotipadas de
pensar e agir que justificam a ordem social vigente. Ao aderir às
formas de gratificação erótica administrada, o indivíduo sofre
uma repressão sexual intensa, embora ele imagine estar livre.
É preciso explicar melhor essa questão. Marcuse (1968),
num texto ainda muito atual, afirma que as satisfações ofe-
recidas pelos meios tecnológicos atuais são, em si mesmas,
repressivas. E o que é pior, trata-se de uma repressão que é
percebida como liberdade. De fato, nunca houve tanta liberdade
sexual. Atualmente, há livros sobre o tema por toda parte e as
revistas femininas reivindicam prazer nas relações sexuais para
as mulheres e defende-se que as crianças devam também ser
esclarecidas sobre a sexualidade. No entanto, citando Freud,
Marcuse afirma que eros, a pulsão sexual humana, é por
natureza associal, isto é, há sempre demandas eróticas no indi-
víduo que serão refreadas pela sociedade. Até aí, estamos no
campo daquilo que chamamos civilização, que implica sempre
alguma repressão. Isso acontece porque nossas necessidades,
incluindo as eróticas, são sempre satisfeitas por meio de rela-
ções sociais. Contudo, Marcuse (1968) chama a atenção para
o fato de que existe um nível de repressão necessário para que
haja a civilização e outro, que ele chamou de mais-repressão,
indica uma repressão administrada tecnicamente, que visa a
manutenção da dominação social.
A possibilidade de obter gratificação implica uma for-
mação em que o indivíduo acolhe em si as demandas sociais
de modo crítico. Isto é, de modo que não ocorra a adesão a
168
Tema 9
papéis e estereótipos somente em função do medo de ser
excluído. Se uma formação predominantemente crítica ocorre,
o indivíduo estrutura sua personalidade, tendo condições
de pensar as próprias regras sociais. O mesmo acontece
com os estereótipos veiculados na indústria cultural, que
atuam como contingências que podem ser modificadas. Essas
contingências, que dizem respeito ao indivíduo na medida em
que também se sente responsável por manter e validar tais
regras. Ou, por outro lado, ele pode perceber a violência, que
se esconde por detrás de condutas aparentemente normais,
que são veiculadas na indústria cultural como se fossem da
natureza do homem. Atualmente, poucas pessoas têm oportu-
nidade de serem educadas dessa forma. Mesmo a escola, ao
que parece, aderiu ao esquema da indústria cultural, adotando
objetivos como “passar” conteúdos para as crianças. São
utilizadas como se fossem mercadorias, cuja posse garantiria o
saber. Ou então, procura facilitar os conteúdos para garantir sua
“apreensão” pelas crianças.
Mas é importante também considerar que há alternativas
para essa situação. A infância é uma etapa da vida fundamental
para a formação da personalidade. Ao pensar que alguma for-
ma de educação sexual ocorre, mesmo contra nossa vontade,
podemos contribuir para que as crianças sejam adultos capazes
de perceber e criticar a mais-repressão. Por outro lado, tam-
bém podemos contribuir para naturalizar a sociedade existente,
justificando a violência que ela exerce sobre os indivíduos. Se
na indústria cultural são produzidas mercadorias culturais que
carregam, em si, estereótipos, então ela é o principal meio
169
Tema 9
pelo qual ocorre a repressão sexual no mundo atual. Portanto,
é fundamental que procuremos criar, juntamente com as
crianças, ocasiões para que os produtos dessa indústria sejam
questionados, criticados e pensados, para desnaturalizar as
idéias e padrões que eles veiculam.
Em uma novela, assim como na programação infantil, há
uma série de padrões que se repetem sempre. Eles implicam
em receitas de como ser, pensar e agir, que abrangem também
a sexualidade. E não podemos esquecer que as crianças
assistem também às novelas. Bem, é verdade que padrões
sociais sempre existiram, que sempre é necessário ensiná-los
a elas. Mas quando eram transmitidos por pessoas de carne e
osso, em relações próximas, a criança tinha também o poder
de influenciar o adulto. Quando uma criança se envolve numa
relação com outras crianças ou com adultos que se importam
com ela, sempre existem regras em jogo, mas a criança
sempre procura ser reconhecida, seja quando adota o padrão
seja quando o questiona e o nega; de um modo ou de outro,
ela tem a oportunidade de dialogar com seus pares, adultos ou
crianças. Nesse diálogo, ela pode elaborar o sentido da regra,
medindo internamente as dificuldades e as perdas.
Se o contato com os produtos da indústria cultural não
permite esse diálogo, é necessário então que o adulto que
acompanha a criança converse com ela sobre o que foi visto,
ouvido ou lido nesses produtos. E deve procurar minimizar a
autoridade unilateral que dela provém. Quando um programa
infantil mostra uma criança vestida em trajes adultos, com ape-
lo erótico, numa encenação que inclui trejeitos que remetem à
170
Tema 9
sexualidade adulta, esse modelo deve ser discutido com elas.
Com uma conversa é possível relativizar os valores e padrões
presentes nas imagens. Evidentemente, isso só é possível se
o adulto tem ouvidos para as curiosidades infantis, sobre as
questões da sexualidade e se ele próprio não adota uma atitude
acrítica em relação ao que vê.
A escola deveria incluir entre os conteúdos de seu currículo
não somente a educação sexual, mas uma crítica à televisão. É
preciso considerar que ela é onipresente nos lares brasileiros e
que as crianças passam várias horas por dia diante dela. Dessa
forma a escola contribuiria de modo inestimável à educação e
à formação de cidadãos. Tal contribuição seria importante se
ensinasse que aquilo que aparece na televisão não é a realidade
e que há interesses políticos e econômicos em tudo o que
nela aparece, que há padrões de comportamento, papéis,
estereótipos e preconceitos veiculados ininterruptamente na
tela. E também, que há uma modalidade de repressão sexual
que se faz por meio de sua programação.
A ideologia veiculada na indústria cultural é tão crua
e direta, remete tão diretamente às formas sociais injustas
e violentas típicas de nossa época, que não deveria ser
difícil aos indivíduos perceber que se trata de um engodo.
Se é verdade que o prazer prometido pelo consumo de tais
produtos é sempre superficial, reduz-se, como já se disse, à
leitura do cardápio, então a percepção de que se trata de uma
mentira não deve estar longe da consciência dos indivíduos.
Em relação às crianças, no entanto, precisamos considerar
que sua dependência dos adultos faz com que sejam mais
171
Tema 9
facilmente enganadas pela indústria cultural. Mas isso ocorre
na exata medida em que os adultos são extremamente dóceis
em relação ao seu poder.
Neste sentido, se um adulto tem alguma crítica ao con-
teúdo da televisão, talvez seja mais interessante, no aspecto
educativo, fazer com a criança uma discussão a respeito,
evitando a omissão. Evidentemente, ela crianças deve ser ouvi-
da, pois suas idéias sobre o que vêem não são tão ingênuas
quanto o senso comum faz crer. Claro que a ajuda de um adulto
bem informado e crítico é fundamental para orientar o debate
e para ajuda a definir o que seria mais ou menos adequado
para elas assistirem. No entanto, não se trata somente de
limitar os programas a serem assistidos. Só isso não garante o
questionamento, necessário e importante, em qualquer fase do
desenvolvimento humano. Quando elas assistirem a televisão
em casa, na escola, qualquer que seja o programa, por que
não criar um ambiente apropriado para a reflexão, crítica e a
estimulação do pensamento sobre o que se vê e ouve? Sobre
os padrões “ensinados” e sobre o “exagero”, as mitologias
veiculadas na indústria cultural? Nesse debate elas devem ter
voz e é preciso respeitar as diferentes posições apresentadas.
Ao problematizar com elas os temas apresentados deve-se ter
sempre em vista que as normas só são válidas na medida em
que são compreendidas pelos indivíduos.
Certo dia, vendo televisão com a minha filha, na ocasião
com 4 anos, ela me perguntou por que o pai dela reclamou
que havia, naquele canal, muita propaganda, quando ela
assistia aos desenhos. Era perto do “Dia das Crianças” e até
172
Tema 9
mesmo os canais considerados “mais educativos” estavam
repletos de comerciais sobre brinquedos. Eu me dei conta
que tirar simplesmente a possibilidade de ela ver a propaganda
não iria garantir nela, uma crítica necessária aos apelos dos
comerciais. Lembrei-me, também, que um dia, ela assistiu a
um programa infantil em que havia cenas de crianças tomando
sorvete. Quando o programa terminou, ela me pediu sorvete,
dizendo que estava com “vontade”. Mostrei a ela, então,
várias propagandas e um padrão repetitivo de mostrar cenas
com brinquedos maravilhosos e crianças brincando com muita
felicidade. E cada propaganda parecia mostrar o brinquedo mais
perfeito e lindo, etc. Então, tentei explicar a ela que aquilo fazia
a televisão: “criava vontades” e que, no caso dos brinquedos,
essas vontades poderiam ser impossíveis de serem realizadas.
A frustração, portanto, causaria sofrimento e tristeza em muita
gente, pensando nas crianças sem recursos, por exemplo.
Nos seus poucos 4 anos, ela demonstrou ter continu-
ado a pensar após a conversa. Pelo menos em relação às
propagandas, ela adotou certa crítica e um distanciamento
emocional. Pude constatar isso, quando, numa outra ocasião,
ela comentou comigo que percebeu que, numa propaganda, a
boneca parecia muito maior do que ela era na realidade. Ela disse
que a televisão estava mostrando “uma mentira” para fazer as
pessoas comprarem a boneca. Não vislumbro que minha filha
esteja livre da influência da televisão – como modelo – nem
das regras repressivas impostas no ambiente de socialização,
como a escola, por exemplo. Mas, tenho certeza que pais mais
atentos a essa questão podem contribuir para que a criança
173
Tema 9
cresça desenvolvendo uma maior autonomia em relação a este
tipo de padronização que a televisão, muitas vezes, impõe às
crianças, seja nas propagandas ou no conteúdo dos programas
a que assiste.

PERGUNTA FREQÜENTE SOBRE O TEMA

Ver cenas de sexo é prejudicial às crianças?

Cada criança vai compreender as situações eróticas


presenciadas de diferentes maneiras. Depende da idade, da
história da família, da exposição anterior a cenas de sexo ou
erotismo, atualmente comum na mídia, e da possibilidade de
compartilhar diálogos sobre sexo com adultos ou adolescentes.
Presenciar relações sexuais, especialmente entre os pais ou em
filmes eróticos não é recomendado porque ela ainda não tem
capacidade emocional para compreender o que vê. No caso de
filmes pornográficos, a crueza das cenas e a pobreza do enredo
podem chocá-la, porque a relação sexual aparece, em geral,
como uma conduta agressiva. No caso de cenas de novelas e
filmes em que haja situações eróticas, podem despertar nela
a sensação de prazer, sem que saiba ao certo explicar por que.
Se para os pais isso é uma situação indesejável, é aconse-
lhável evitar sua exposição à essas cenas. No caso de haver
a exposição, recomenda-se conversar sobre os sentimentos
que as cenas despertaram nela e sobre o que elas pensam
sobre isso. Lembre a ela que essas situações acontecem entre
adultos e que quando crescer, isso poderá acontecer com ela.
174
Tema 9
A imitação de comportamentos e falas dos programas adultos
de televisão, que muitas crianças assistem indevidamente, é
comum, principalmente na escola. Elas não imitam situações
eróticas para agredir os professores, nem para atrair parceiros
sexuais e sim porque é prazeroso e reforçador. Além disso,
as tornam “populares” entre os colegas, o que é bastante
freqüente.

175
Tema 9
REFERÊNCIAS

ADORNO, T. W; HORKHEIMER, M. Dialética do esclareci-


mento. Tradução Guido A. de Almeida. 3. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1991.

JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capita-


lismo tardio. Tradução Maria Elisa Cevasco. 2. ed. São Paulo:
Ática, 1997.

MARCUSE, H. Eros e civilização – uma interpretação filosófica


do pensamento de Freud. Tradução Álvaro Cabral. 3. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968.

176
Tema 9
ANOTAÇÕES

177
TEMA

10

SEXUALIDADE E DEFICIÊNCIAS
ANA CLÁUDIA BORTOLOZZI MAIA
Tema 10

Para falar de sexualidade e deficiências devemos,


inicialmente, refletir que entendemos por deficiência uma
série de condições gerais que limita biológica, psicológica ou
socialmente a vida de uma pessoa, ao longo de seu desenvolvi-
mento, a despeito do diagnóstico ou rótulo que se atribua a esta
condição. Na nossa sociedade, a deficiência é compreendida
como uma diferença que se contrapõe à idéia de normalidade.
Essa diferença se manifesta diante de uma audiência que a jul-
ga como tal. E, em geral, traz em seu bojo um significado social
de desvantagem frente aos padrões desejados e impostos por
uma sociedade desigual, cujos valores predominantes são os
da classe ideologicamente dominante.
Ter uma deficiência pode significar, muitas vezes,
alterações na vida sexual de muitas pessoas. Entretanto, isso
não impede a possibilidade de expressar a sexualidade inerente
a todo ser humano, deficiente ou não. É inquestionável que a
sexualidade é inerente a todas as pessoas, independentemente
de ter ou não uma deficiência: mental, física ou sensorial
(audição ou visão). Há, atualmente, muitas pesquisas sobre
esta questão. Apesar disso, no cotidiano de muitas escolas
(especiais ou não), ainda há uma grande dificuldade em lidar
com as manifestações sexuais de pessoas com deficiência.
Também há uma dificuldade, ainda maior, de ter acesso a
recursos educacionais que contribuam no processo de orienta-
ção sexual destas pessoas.
179
Tema 10
Com as recentes propostas de inclusão social e escolar,
há um aumento de alunos com diferentes deficiências no
contexto da educação regular. Estamos diante da necessidade
de compreender a pessoa com deficiência como uma pessoa
íntegra. O mesmo deve acontecer na sua sexualidade, apesar
de algumas especificidades quando se trata de ser uma pessoa
com deficiência.
Há dois grandes mitos que rondam a sexualidade da pes-
soa com deficiência. Eles refletem uma certa omissão, de pais
e educadores, em orientar crianças e jovens com deficiência
sobre questões da sexualidade. Principalmente quando se trata
da deficiência mental: a idéia de assexualidade e a idéia de
hipersexualidade (GIAMI e D’ALLONES, 1984; PINEL, 1993;
AMARAL, 1994; FRANÇA-RIBEIRO, 2001; GLAT e FREITAS,
1996), que explicaremos a seguir.
O primeiro mito é a idéia de que as pessoas com defici-
ência não tenham sexualidade, são assexuadas, angelicais. Daí
vem uma idéia de deficiente relacionado à infância e, portanto,
à pureza. Em primeiro lugar, crianças têm sexualidade, como
já vimos, e serão sempre sexuadas, por que é uma expressão
humana. Em segundo lugar, esse pensamento nega a estas
pessoas a possibilidade de crescer e amadurecer. Essa atitude
incentiva uma eterna infantilização por parte dos demais,
desconsiderando a possibilidade de erotismo, da afetividade,
da vivência de possíveis relacionamentos (namoro, casamento)
ou, ainda, de ter relacionamentos sexuais (seja por prazer ou
para reprodução). Esta noção de assexualidade expõe mais
um preconceito e omissão dos adultos diante da sexualidade
180
Tema 10
que todos têm. Deveríamos ter o direito de expressar nossa
sexualidade, de viver relações de afeto e amor e de dialogar
sobre o assunto naturalmente.
O segundo mito é a idéia de que as pessoas com
deficiência têm uma sexualidade exagerada, que são hiper-
sexualizadas. Esta idéia foi construída a partir da freqüência
com que pessoas com deficiência têm comportamentos con-
siderados inadequados socialmente. Muitas pessoas julgam a
sexualidade da pessoa com deficiência como algo exagerado
quando presenciam comportamentos como a masturbação
pública, os toques e assédios inapropriados, etc. Na verdade,
estes comportamentos, considerados impróprios, não estão
associados à deficiência em si. Isso acontece por causa da
ausência de estratégias educacionais que ensinem o deficiente
a discriminar quais são os comportamentos socialmente acei-
tos. E isso também diz respeito à sexualidade. É importante
frisar que esses comportamentos socialmente consentidos
não significam que sejam adequados, mas somente é aceita
sua expressão pública, mas sua problematização é sempre
necessária.
Qualquer criança ou jovem irá expressar sua sexuali-
dade, seja em relação às diferenças de gênero sexual, pela
masturbação e pelos jogos sexuais, ou mesmo com perguntas
e comentários sobre o assunto. Porém, no caso de pessoas
com deficiência, especialmente a deficiência mental, estas
expressões parecem, para muitos educadores, aberrações
e patologias. Nesses casos não há como negar que se trata
de preconceito em relação às deficiências, que se juntam às
dificuldades, já conhecidas, em lidar com a sexualidade. 181
Tema 10
Somado a isso, nós devemos ressaltar que as pessoas
com deficiência, quaisquer que sejam, são muito vigiadas. Mui-
tos adultos, com a intenção de proteger e oferecer cuidados,
exercem um verdadeiro controle sobre tudo o que a pessoa
deficiente faz: aonde vai, com quem fala, como se veste, etc.
Ora, como estas pessoas podem explorar sua sexualidade na
infância? Onde podem se masturbar com privacidade? Como
estas pessoas podem exercitar seu papel masculino e femini-
no? Como e onde podem vivenciar os jogos sexuais infantis?
Ouvir e falar sobre sexo? Em geral, não podem! São muito
vigiadas, protegidas e, em geral, sofrem de um isolamento
social, restringindo os contatos sociais ao âmbito da família.
Quando estas crianças conseguem extrapolar as relações
familiares, para compartilhar o dia a dia com outras crianças
e pessoas, elas acabam encontrando uma possibilidade de
expressar a sexualidade – o que poderiam ter feito antes.
Geralmente, esta expressão ocorre de forma inexperiente e
“grosseira”, por falta de treino e aprendizado. Quando crianças
com deficiência experimentam uma ampliação da socialização,
vivem em outros ambientes além da família, como ocorre ao
entrarem na escola, os comportamentos sexuais (tão repri-
midos) podem surgir sem “controle”, de forma inadequada.
Isso acontece porque nunca foi permitido ou proporcionado
a elas nenhuma experiência, ou explicação a respeito. Como
podem expressar o desejo contido na descoberta do corpo e
do prazer sensorial ao toque, sem que isto seja encarado como
uma “aberração”? É comum a qualquer criança pequena se
masturbar em público e nós adultos, rapidamente, a ensinamos
182
Tema 10
que isso deve ser feito privadamente. Mas, o que fazer com as
crianças com deficiência que nunca receberam nenhum tipo de
instrução sobre isso? Evidentemente que problemas orgânicos
podem ocorrer, influenciando a sexualidade das pessoas com
deficiência. Principalmente quando há alterações hormonais
ou do metabolismo, em decorrência do uso de medicamentos,
ou de falhas no sistema nervoso central, por exemplo. Mas,
segundo os autores Dall´alba (1990), Pinel (1993), Gherpelli
(1995) e Denari (2002), os maiores obstáculos para uma vida
sexual satisfatória, certamente, serão os fatores psicossociais
e não os orgânicos.
Como a sociedade encara a sexualidade da pessoa com
deficiência? Para nos conscientizarmos um pouco mais sobre
a postura comum em relação à deficiência, basta pensarmos
a respeito das seguintes questões: como olhamos para uma
pessoa com deficiência física? A consideramos uma pessoa
bela e desejável? Como estimulamos uma pessoa cega a se
vestir adequadamente, para ressaltar seus atributos físicos e
corporais? Como ensinamos deficientes auditivos a falar e a
expressar afeto? Como incentivamos seus relacionamentos
amorosos? Como lidamos com deficientes mentais, que
desejam entrar numa relação amorosa? Como consideramos o
silêncio e a omissão em relação à sexualidade dos deficientes?
Achamos natural que não se ensine nada disso a eles?
Qualquer tentativa de compreender a sexualidade de
alguém com deficiência deve considerar sua educação sexual
na família e na escola. Ela é vista pelos demais como uma
pessoa sexuada? Ela é estimulada a ter uma boa auto-estima
183
Tema 10
e uma imagem corporal adequada? Ou ela sofre de isolamento
social, rejeição, baixa auto-estima e se percebe como alguém
inferior, vítima de desvantagem social?

A SEXUALIDADE DA PESSOA COM


DEFICIÊNCIA MENTAL

As pessoas com deficiência mental são as que mais


sofrem com o preconceito e a negação da sexualidade. Sob
o argumento de não conseguirem cuidar nem de si mesmas,
pesam muitos obstáculos para uma realização pessoal no
campo afetivo. Uma coisa é reconhecer que muitas pessoas
com deficiência mental não teriam condições para cuidar e
educar filhos. Outra é estender esse pensamento a todas as
pessoas às quais se atribui a condição de deficiente. Isso às
vezes, justifica esterilizações radicais, negando a elas qualquer
possibilidade de ter uma vida afetivo-sexual.
Vários autores afirmam que, nas pessoas com defici-
ência mental, o desenvolvimento biológico na puberdade,
(como o desenvolvimento das características sexuais secun-
dárias e o amadurecimento sexual) ocorre de forma bastante
semelhante às pessoas não deficientes mentais. Pode se
manifestar de forma diferente quando a deficiência mental
estiver associada a alguma síndrome, com implicações mais
abrangentes (AMOR PAN, 2003; EDWARDS, 1995; EVANS
E McKINLAY, 1988; GHERPELLI, 1995; GLAT, 1992; PINEL,
1993; REBOLHO E REBOLHO, 1991; VASCONCELOS, 1996;
ZETLIN e TURNER, 1985).
184
Tema 10
A Síndrome de Down é uma das mais freqüentes e
conhecidas entre as síndromes genéticas. Ela acontece por
causa de uma falha na divisão celular, especificamente no
cromossomo 21, por translocação ou mosaicismo. Essa
modificação leva à formação de traços físicos específicos e
implica na limitação da função intelectual na grande maioria das
crianças. Alguns autores afirmam que, mulheres com síndrome
de Down, apresentam a menarca, em média, de um a um ano
e meio antes da média da idade de pessoas não deficientes.
No caso de outras desordens mentais ou deficiências não
associada a síndromes, a menarca ocorre em idade posterior
à média. Apesar de algumas controvérsias, sabemos que a
maioria das deficientes apresenta menstruações regulares,
sem diferenças discrepantes quanto à idade da menarca se
comparadas às mulheres não deficientes. A menarca e a
menopausa são fenômenos decorrentes de influências tanto
hormonais, como sociais e ambientais e sofrem variações na
idade. E isso acontece com mulheres com deficiência mental
ou não, sem que seja considerado “anormal”. Além disso, nelas,
a fertilidade é preservada. Os riscos genéticos de gerar uma
criança com a mesma síndrome, teoricamente, são de 50%,
e aumenta a probabilidade de aborto. No caso dos homens,
há predominantemente, um quadro de infertilidade, uma vez
que a quantidade de espermatozóides nos testículos é muito
reduzida. Diferenças no desenvolvimento físico são freqüentes:
estatura menor que a normal para a idade cronológica, excesso
de peso, redução de pêlos faciais e axilares. E em alguns casos
a genitália menos desenvolvida quanto às medidas do pênis,
185
Tema 10
volume dos testículos e variações hormonais disfuncionais.
Todas essas diferenças físicas, no entanto, não anulam as
manifestações sexuais da pessoa com síndrome de Down.
Não fazem dela alguém assexuado, nem com sexualidade
exacerbada (PUSCHEL e SCOLA, 1988; EDWARDS, 1995).
As principais diferenças que, em geral, imaginadas entre
a sexualidade da pessoa com deficiência mental a de não-
deficientes decorrem da falta de orientação e do preconceito.
No âmbito social, o desenvolvimento sexual da pessoa com
deficiência mental pode ser comprometido, no que diz respeito
ao processo geral de construção da identidade sexual e da
manifestação dos papéis sexuais. Na maioria das vezes, a
criança com deficiência mental cresce segregada de deter-
minados aspectos do convívio social. Conseqüentemente, as
poucas informações que pode obter acabam sendo veiculadas
genericamente, são portanto, assimiladas de modo deturpado
no imaginário do deficiente. Ainda, a conduta sexual, as
relações interpessoais e a convivência com parceiros são fre-
qüentemente relacionadas ao grau de retardo. Segundo alguns
autores, quanto mais comprometido for o grau da deficiência
mental, menor a chance de sucesso em uma relação amorosa.
Isso pode ficar evidente no caso de um deficiente mental de
grau profundo ou severo. Não podemos, entretanto, generalizar
as dificuldades no campo da sexualidade para aqueles com
deficiência de grau leve ou moderado. Há diferenças indivi-
duais, que devem ser respeitadas em qualquer que for o caso
(ASSUMPÇÃO JÚNIOR e SPROVIERI, 1993; GHERPELLI,
1995; PINEL, 1993; FRANÇA-RIBEIRO, 2001).
186
Tema 10
A despeito das dificuldades, não há impedimentos
imperativos para que haja casais de deficientes mentais que
se relacionem e se casem. Nos EUA, por exemplo, é comum a
discussão sobre a sexualidade nos programas de reabilitação e
a oferta de casas que abrigam casais que tenham deficiência,
com a supervisão de adultos treinados (VASCONCELOS, 1996).
Nestas situações há um grande investimento na educação e
na orientação para que elas possam experienciar conviver com
quem amam. Não se nega esse desejo, nem há omissão em
relação à sexualidade. Esse desejo é esperado e considerado
normal em qualquer ser humano.
No Brasil, essas considerações são raras, e as providên-
cias para que algo nesse sentido aconteça são inexistentes.
Sequer aceitamos que as pessoas com deficiência mental
sejam sexuadas, que dirá estimular e ajudá-las a viverem um
relacionamento estável? Mas quem é que não gosta de se
sentir amado e correspondido?
Todas as noções que precisam ser aprendidas para uma
manifestação sexual adequada exigem grande esforço de pais
e educadores. As explicações e ações educativas precisam
ser repetidas e precisas, também, em relação ao tema da
sexualidade. Eles precisam aprender sobre tudo, inclusive,
para se prevenirem contra doenças, contra o abuso sexual e
uma gravidez indesejada. A negação não educa ninguém, nem
estimula a curiosidade ou a expressão sobre a sexualidade, que
já existe. A omissão pode rotulá-los como alguém eternamente
incapazes para o amor.

187
Tema 10
A SEXUALIDADE DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
SENSORIAL: VISUAL OU AUDITIVA

A sexualidade da pessoa com uma deficiência sensorial


seja uma falta ou uma limitação na visão, ou na audição, não
é afetada sob o ponto de vista orgânico. Isto é, ser cego ou
surdo em nada impede a possibilidade de alguém de ter desejo
sexual, excitação ou orgasmo, de amar e ser amado.
Mais uma vez, os limites podem aparecer na expressão
social da sexualidade. Há dificuldades no trato social com essas
pessoas e, também, para elaborar e implementar programas
de orientação sexual (MATTOS, 1995). Precisamos de mais
pesquisas e publicações no que se refere a programas de
orientação sexual voltados para cegos e surdos. Especialmente
porque são necessários recursos educacionais especiais que,
muitas vezes, são inexistente ou inacessíveis. No caso da
surdez, há uma grande discussão entre pedagogos, psicólogos
e outros profissionais quanto à forma de comunicação mais
eficaz para elas: seria a linguagem de sinais ou a oralização?
De qualquer forma, precisamos criar métodos de ensino que
os façam refletir sobre conceitos, muitas vezes, abstratos e
complexos. Mas eles são capazes de discutir e refletir sobre
as questões sexuais e viverem, igualmente, as manifestações
sexuais da infância, da adolescência e da vida adulta.
Da mesma maneira, no caso da cegueira, há todo um
investimento em orientá-los para se locomoverem e se alfa-
betizarem, por exemplo. Porém, pouco se investe em orientar
sobre a sexualidade. O toque é uma necessidade ao aprendi-
188
Tema 10
zado do cego em relação a vários conceitos, e não é diferente
com os conceitos sobre a sexualidade. Em decorrência de sua
cegueira, uma pessoa pode ter dificuldades para discriminar
ambientes adequados, ou privados, quando quiser manifestar
comportamentos sexuais solitários, por exemplo. Também
pode ter dificuldades nas interações sociais e afetivas, uma
vez que o desenvolvimento das habilidades para compreender
mensagens não verbais (como expressão facial e a linguagem
corporal), que exigem contato visual adequado, será prejudi-
cado. Sem o contato visual, o sentido do tato como um todo,
torna-se fundamental para formar conceitos, mas, sabemos,
nem sempre o toque é socialmente aceito (ALZUGARAY e
ALZUGARAY, 1995; MOREIRA, 1998; PINEL, 1993).
Como uma criança com deficiência visual pode conhecer
e reconhecer as diferenças de gênero entre meninos e meni-
nas? Como podem descobrir a diferença entre a anatomia e as
sensações provenientes das genitálias, pênis e vulva, se não
houver o toque físico? Como ensinamos deficientes visuais
a se vestirem, se arrumarem e se mostrarem para o mundo,
dotados de corpos sensuais? Em geral, há pouquíssimo
empenho em ajudar essas crianças a incluírem a sexualidade
como uma questão a ser aprendida entre as demais atividades
da vida diária.

189
Tema 10
A sexualidade da pessoa com deficiência física

Na pessoa com deficiência física, além de todos os


aspectos apontados anteriormente estarem associados, deve-
se acrescentar as limitações orgânicas e de deslocamento
da resposta sexual aos aspectos sociais. Não há um padrão
fixo para todas as deficiências físicas. Mas de modo geral,
pode haver limitações orgânicas identificadas na resposta
sexual, nas fases do desejo sexual, excitação e orgasmo. No
caso da lesão medular, por exemplo, há situações em que a
ereção pode estar comprometida, bem como a ejaculação e o
orgasmo (MAIOR, 1988; MOURA, 1992; PINEL, 1993; SALI-
MENE, 1995; BLACKBURN, 2002). Penso que a sexualidade
da pessoa com deficiência física, entre as demais (sensorial e
mental), é a que tem maior limitação do ponto de vista orgâni-
co. E infelizmente, também no plano social, é a deficiência que
vivencia maior preconceito.
A negação da sexualidade das pessoas com deficiência
física ocorre a partir de uma visão fragmentada do corpo,
tido como imperfeito. Duas questões são fundamentais no
desenvolvimento psicossexual nestas pessoas: a imagem
corporal e a auto-estima. Como elas podem desenvolver
uma imagem corporal saudável num corpo considerado
“imperfeito”, “incompleto”, “incapaz”? Como competir com a
imagem corporal, estimulada por nossa sociedade, permeada
de preconceitos e por uma estética que valoriza um corpo mais
que perfeito, jovem e saudável como sinônimo de beleza?
Como viver os papéis sexuais atribuídos aos gêneros masculino
190
Tema 10
e feminino, a despeito da deficiência física, sem sofrimento e
desajuste emocional?
É evidente que os padrões de beleza e estética corporal
são apelativos para todas as pessoas. Embora elas sofram de
forma mais contundente e drástica os efeitos desses padrões
na vivência e na percepção corporal (WEREBE, 1984). Ambos
os grupos de pessoas - deficientes ou não - estão sujeitos à
discriminação predominante na nossa sociedade. A deficiência
física é uma condição que soma e aumenta o peso sobre as
questões da repressão sexual. Discute-se muito se o para-
plégico terá ou não uma ereção, entretanto não se discute os
preconceitos e estereótipos relacionados à perfeição corporal
e à beleza física, as dificuldades de relacionamento. Ou seja, se
enamorar e de estabelecer uma relação afetiva e sexual. Tais
dificuldades devem-se aos mecanismos de repressão sexual,
que determina a todos necessidades emocionais, impostas
como “regras” sociais. No caso das pessoas com deficiência,
essas regras parecem mais inatingíveis, daí o agravamento da
discriminação e do isolamento social.

Reflexões finais

Considerando que a instituição escolar é, por sua função


histórico-social, um espaço privilegiado de socialização, ao lado
da família, é inevitável constatar que os professores, funcioná-
rios e administradores – todos na sua dimensão de educadores
– vão acabar se deparando com as questões da sexualidade
de seus educandos. No que diz respeito aos alunos com
deficiência, parece que estamos ainda menos preparados. 191
Tema 10
Pais e educadores sentem-se despreparados para lidar
com estas questões. Os pais julgam que a escola vai dar conta
de ensinar seus filhos sobre sexualidade - muitas vezes visando
um certo controle ou impedindo as expressões da sexualidade.
Os professores, por seu turno, acreditam que se trata de uma
questão que envolve muitos valores e, por isso, deve ser
trabalhada somente na família. As manifestações sexuais dos
alunos, queiram os pais e professores ou não, vão se mani-
festar na escola, e todos devemos encarar a questão. Chamar
os pais para discutir sobre as dificuldades, medos e anseios;
buscar profissionais que trabalhem a questão de modo mais
específico e que possam ajudar; incluir a sexualidade como
uma questão pedagógica de fato e, daí, planejar estratégias de
ensino sobre sexualidade também às pessoas com diferentes
deficiências, respeitando-se as suas especificidades, tudo isso
deveria estar na ordem do dia do planejamento das atividades
pedagógicas na escola (DALL’ALBA, 1990; MAIA, 2001).
Falar de sexualidade na escola para todos os alunos, com
deficiência ou não, pode ajudar a expressá-la de forma mais
adequada. É preciso reconhecer as possibilidades de prazer e
as limitações que a deficiência pode causar na sua vida afetiva
e emocional. Pessoas com deficiência compreendem sua
sexualidade, sabem refletir e gerir sua vida sexual, desde que
sejam ensinadas desde a infância, por pais e por educadores.
Mais uma vez, gostaria de ressaltar que na escola, os
educadores não sabem como agir diante das manifestações
diversas da sexualidade (masturbação, exibicionismo, jogos e
brincadeiras sexuais, namoros, etc.). Acabam por generalizar
192
Tema 10
as questões referentes à sexualidade e à deficiência, compre-
endendo uma como causa da outra. Então, os professores,
muitas vezes, reproduzem as crenças e as atitudes da família
em relação à sexualidade do deficiente. Quando há iniciativas
de orientação, em geral, restringem-se por conta de uma
noção de sexualidade genitalizada. São priorizadas as explica-
ções sobre higiene, menstruação, reprodução, anticoncepção,
etc. Entretanto, os aspectos psicossociais, as relações afetivas,
num contexto social mais amplo (que incluem questões como
namoro e casamento), são esquecidas.
A freqüente inabilidade dos educadores frente à educa-
ção sexual de seus alunos com deficiência demonstra, a meu
ver, dois aspectos: por um lado o fato de a sexualidade do defi-
ciente ser permeada de mitos e idéias distorcidas e, por outro,
o despreparo do professor sobre as questões da sexualidade
humana, no que se refere às informações básicas bem como
o trato social de sua manifestação. Somado a isso, lembramos
que muitos professores, refletindo sua história pessoal de
educação sexual, já bem discutida em outros temas deste
caderno, têm valores conservadores e preconceituosos. Eles
resistem ou se incomodam diante das manifestações sexuais
de seus alunos, ainda mais quando parecem ser “aberrantes”
ou “chocantes”, dependendo do caso.
Não devemos – nem podemos – culpá-los por sua
inadequação social. Nós, na sociedade, é que deveríamos dar
oportunidades de educação e de orientação sobre essa ques-
tão. Dizendo de outro modo, muitos julgamentos dos adultos
sobre as manifestações sexuais dos alunos, deficientes ou não,
193
Tema 10
mostram uma inabilidade e uma dificuldade pessoal, reflexo do
nosso processo de educação sexual, que precisa ser pensado
e revisto. Por isso, a importância de todo educador questionar
constantemente sobre a sexualidade na vida pessoal, para a
compreender de maneira mais ampla a sexualidade infantil.

194
Tema 10
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Tema 10
ANOTAÇÕES

199
AUTORES

Ana Cláudia Bortolozzi Maia


Ana Cláudia Bortolozzi Maia é psicóloga; especialista
no tema da Sexualidade Humana. Integrante do Núcleo de
Estudos da Sexualidade (NUSEX). Doutora em Educação
pela UNESP, Marília. Professora responsável pelas disciplinas:
“Desenvolvimento e Educação Sexual” e “Questões Especiais
da Sexualidade Humana”, no Curso de Formação de Psicólo-
gos, da UNESP, Bauru.

Ari Fernando Maia


Ari Fernando Maia é psicólogo; especialista no tema da
Indústria Cultural. Doutor em Psicologia Escolar pela USP, São
Paulo. Professor responsável pelas disciplinas: “Ética Profissio-
nal”, “Psicologia da Personalidade”, no Curso de Formação de
Psicólogos, da UNESP, Bauru.

200
Giselle Volpato dos Reis
Giselle Volpato dos Reis é pedagoga. Integrante do
Núcleo de Estudos da Sexualidade (NUSEX) e Mestranda em
Educação Escolar na Universidade Estadual Paulista (UNESP)
– Campus de Araraquara.

Paulo Rennes Marçal Ribeiro


Paulo Rennes Marçal Ribeiro é psicólogo. Professor
do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar e
Coordenador do Núcleo de Estudos da Sexualidade (NUSEX)
na UNESP em Araraquara SP. Vice-coordenador do GE 23
“Gênero, sexualidade e educação” na ANPED – Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.

201
PUBLICAÇÕES DA SÉRIE CADERNOS CECEMCA

Núcleo Bauru

n. 1 Sexualidade e Infância
n. 2 Educação Inclusiva: iniciando o debate.
n. 3 Inclusão Digital
n. 4 Saberes Pedagógicos da Educação Infantil
n. 5 Fundamentos da Educação
n. 6 Ciências Naturais
n. 7 Ciência, Tecnologia e Implicações Sócio-ambientais
n. 8 Matemática e Educação Infantil

202
203
Projeto Gráfico Inky Design - FAAC - Unesp - Bauru
Capa e Editoração Eliane Cristina Barbosa - Inky Design
Tipografia Charcoal, Univers e Verdana

Bauru, 2005

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