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A LÍNGUA DA MONTANHA

De Harold Pinter
Transcriação de Tauã Teixeira
PERSONAGENS ///

JOVEM
VELHA
ESPOSA
SARGENTO
OFICIAL
GUARDA
SEGUNDO GUARDA
PRISIONEIRO 1
PRISIONEIRO 2
HOMEM ENCAPUZADO
1.
SALA DE REVISTA
Uma fila de mulheres. Uma VELHA de mão trêmula. Uma cesta a seus pés. Uma
JOVEM mulher com seu braço sobre o ombro da ESPOSA.
Um SARGENTO entra seguido de um OFICIAL. O SARGENTO aponta para a JOVEM.

SARGENTO​ – Nome?

JOVEM​ – Já demos nossos nomes.

SARGENTO​ – Nome?

ESPOSA ​ – No-nossos nomes.

OFICIAL (​Para o S​ ARGENTO​) Pare com essa merda. ​(Para a ​JOVEM)​ Alguém tem
alguma reclamação para fazer?

VELHA​ – Estou com sede.

JOVEM​ – Ela foi mordida.

OFICIAL​ – Quem? ​(Pausa)​ Quem? Quem foi mordida?

JOVEM – Ela. Ela está com a mão dilacerada. Olhe. A mão dela foi mordida. Isto é
sangue.

SARGENTO – ​(Para a ​JOVEM​) Cale a boca. ​(Ele caminha até a E​ SPOSA​) ​O que
aconteceu com a sua mão? Alguém mordeu você? Alguém mordeu a sua mão? (A
ESPOSA lentamente levanta a mão) Quem fez isso? Quem fez isso com você? Quem
mordeu a sua mão?

JOVEM​ – Um cachorro.

OFICIAL​ – Existem muitos cachorros.

JOVEM​ – Um cachorro daqui. Um pastor alemão.

OFICIAL – Qual deles? ​(Pausa) Qual deles? ​(Pausa) SARGENTO! ​(S​ ARGENTO dá um
passo à frente)

SARGENTO​ – Sim, Senhor!

OFICIAL – Olhe para a mão desta mulher. Acredito que seu dedo esteja caindo. ​(Para a
ESPOSA)​ Quem fez isso com você? Quem fez isso? (E​ SPOSA olha assustada para ele)
Quem fez isso?

JOVEM​ – Foi um cachorro. Um grande cachorro.


OFICIAL – Qual era o nome dele? ​(Pausa) Qual era o nome dele? ​(Pausa) Todo
cachorro tem um nome! Eles respondem a seus nomes. Foram dados a eles pelos seus
mestres e estes são seus nomes. Foram dados a eles por suas famílias e estes são seus
nomes. Foram registrados em cartórios, os seus nomes, e estes são seus nomes.
Depois de morderem, eles dizem seus nomes. É um procedimento formal. Eles dizem
seus nomes depois, imediatamente depois que eles mordem. Deve ser registrado o
nome, deve ficar registrado o nome de cada um deles, depois de morderem. Está no
regimento interno da instituição. Eles respondem a seus nomes. Eles respeitam os seus
nomes e devem dizer seus nomes depois de morderem, vocês entendem? Qual era o
nome dele? Se você me disser que foi um de nossos cachorros quem mordeu essa
mulher sem dizer seu nome, eu terei que sacrificá-lo! ​(Silêncio) Agora – Atenção! –
Silêncio e atenção! Sargento!

SARGENTO​ – Sim, senhor!

OFICIAL​ – Acabe de anotar as reclamações dessas senhoras.

SARGENTO​ – Certo. Alguma reclamação? Alguém tem alguma reclamação?

VELHA​ – Nos disseram para estar aqui às seis horas desta manhã.

SARGENTO – Certo. Exatamente certo. Seis horas esta manhã. Totalmente certo. Qual
a sua reclamação, senhora?

VELHA​ – Nós chegamos aqui às seis horas da manhã. Agora são cinco horas da tarde.

JOVEM - Estamos esperando de pé por mais de doze horas, depois de termos passado
horas viajando até aqui. No sol. As comidas que trouxemos cozinhando ao sol.
Azedando ao sol. Fermentando. Apodrecendo. Esperamos no sol por mais de 12 horas.
Os guardas deixaram os cachorros soltos nos amedrontando.

VELHA​ – Um deles mordeu a mão dessa mulher.

OFICIAL​ – Qual o nome do cachorro? ​(A ​VELHA ​olha para ele)

VELHA​ – Eu não sei o nome dele.

SARGENTO​ – Com sua permissão, senhor?

OFICIAL​ – Vá em frente.

SARGENTO – Seus maridos, seus filhos, seus pais, seus irmãos, seus amigos – estes
homens que vocês estão esperando para ver, eles são um monte de merda. Viadinhos,
bandidos, inimigos do estado, terroristas, safados, traficantes, pretos, arrombados.
Eles são um monte de merda. Esses homens que vocês estão esperando para visitar,
esses homens que vocês amam, eles são um monte de merda. Nós não nos
importamos com eles. Eu não me importo com eles, ele não se importa com eles, não
nos importamos. Não damos a mínima. Os cachorros estavam soltos, como a senhora
pode notar, para que pudessem farejar. Farejar algum contrabando, alguma droga,
uma arma. Um utensílio escondido. A presença ostensiva dos cachorros e de
armamento militar para prevenir o acontecimento de certos crimes, já tivemos
problemas assim antes. Sim. É preciso demonstrar o desprezo. Mostrar que estamos
preparados para o pior, se for necessário. Morder, atirar. Matar se for necessário.

O ​OFICIAL​ caminha até as mulheres

OFICIAL – Agora, escutem isso. Vocês são pessoas da montanha. Estão me escutando?
Quero que escutem isso: sua língua está morta. É proibida. Não é permitido falar na
língua da montanha nesse lugar. Não podem falar em sua língua com estes homens
que irão visitar. Não podem falar em sua língua – é proibida, não é permitido, vocês
entenderam? Vocês não podem falar em sua língua. É fora da lei. Vocês só podem falar
a língua da capital. É a única língua permitida aqui nesta instituição. Vocês serão
severamente punidos se tentarem falar na língua da montanha neste local. É um
decreto militar. Está na lei. Sua língua é proibida. Está morta. Não é permitido falar em
sua língua. Sua língua já não existe mais. Não existe mais. Ficou claro para vocês?

JOVEM​ – Eu não falo a língua da montanha.

​ FICIAL e o ​SARGENTO se entreolham, sorriem e vagarosamente a circulam.


Silêncio. O O
O ​SARGENTO​ põe a mão na bunda dela.

SARGENTO​ – Que língua então que você fala? (​Risos)​ Que língua esse seu rabo fala?

OFICIAL​ – Essas mulheres, sargento, você já submeteu essas mulheres à revista?

SARGENTO – Sim, senhor. Talvez tenha deixado escapar alguma coisa. Cada vez mais
espertas, a cada dia, mais espertas. Aprenderam a ser espertas, tiveram que aprender.
Na condição que nasceram. Os porcos nascem limpos, senhor. Aprende-se a sujeira, a
praticar a sujeira e a conviver com a sujeira. E, depois, mesmo que se limpasse a
sujeira, senhor, será sempre possível que se tenha deixado escapar alguma coisa.
É.Que ainda tenha ficado alguma sujeira para trás. Os cachorros acharam alguma coisa
suspeita nesse grupo. Provavelmente, deixamos escapar alguma coisa.

OFICIAL​ – ​(Para a ​JOVEM)​ ​ Tire sua calça.

JOVEM​ – O que?

OFICIAL – Tire sua calça. (​Pausa​) Temos direito de realizar este exame de revista. Está
na lei. Estamos amparados pela constituição.

JOVEM​ – Isso é um absurdo.

OFICIAL​ – Tire sua calça, agora. Ou teremos que escoltá-la a um presídio feminino.

JOVEM​ – ​(Tirando a sua calça)​ Nunca me fizeram tirar a calça antes.


SARGENTO – ​(Verificando entre as pernas, dentro da calcinha da ​JOVEM​) Ela está
limpa.

OFICIAL​ – Ela não fala a língua da montanha.

A ​JOVEM se afasta do ​SARGENTO ​e coloca novamente sua calça enquanto encara os


dois homens

JOVEM – Meu nome é Sarah Albuquerque. Eu vim visitar meu marido. É meu direito.
Onde está o meu marido?

OFICIAL – Mostre seus documentos. ​(Ela entrega uma folha de papel. Ele examina e se
volta ao ​SARGENTO)​ Ele não vem das montanhas. Ele está no pavilhão errado. Por
favor, aguarde do lado de fora enquanto localizamos seu marido.

JOVEM​ sai. Silêncio

SARGENTO​ – Ela me parece ser uma intelectual.

OFICIAL​ – Vamos foder essa puta qualquer visita dessas.

SARGENTO – Ela deve ter dinheiro para pagar um advogado. Ela vai nos denunciar e
pagar um advogado, se tiver dinheiro.

OFICIAL – Ninguém vai acreditar numa puta ao invés de um oficial. Está na lei. ​(Pausa)
E outra. Os rabos dos intelectuais são os melhores pra foder.

BLACKOUT
2.
CELA 1
O PRISIONEIRO 1 sentado. A ESPOSA se senta. Um GUARDA está de pé, atrás dela. O
PRISIONEIRO 1 e sua ESPOSA conversam numa língua irreconhecível. Silêncio.

ESPOSA – (​Levantando sua mão​) Um cachorro me mordeu. ​(G


​ UARDA golpeia a
ESPOSA​ com o cassetete)

GUARDA – Proibido! Língua proibida. ​(Ela olha para ele. Ele a golpeia) É proibido. ​(Para
​ RISIONEIRO 1)​ ​ Diga a ela para falar na língua da capital.
oP

PRISIONEIRO 1​ – Ela não sabe. ​(Silêncio)​ Ela não fala essa língua.​ (Silêncio)

ESPOSA – (​Segurando nas mãos do P ​ RISIONEIRO 1)​ Eu não me importo com ele, não
​ UARDA​ a golpeia e ela grita)
me importo que ele esteja aqui, estou feliz em te ver. ​(O G

GUARDA – PROIBIDO! PROIBIDO, PROIBIDO, PROIBIDO! JESUS CRISTO! ​(Para o


PRISIONEIRO 1​)​ ELA NÃO ENTENDE O QUE EU DIGO?

PRISIONEIRO 1​ – NÃO! Ela não entende uma palavra do que você diz.

GUARDA – Ela não entende? ​(Ele se curva para ela) Você não entende? (​Ela olha
assustada para ele)

Silêncio

PRISIONEIRO 1​ – Ela não entende, ela não entende. Por favor. Deixe ela em paz.

GUARDA – (​para a E​ SPOSA​) Eu não posso fazer nada por você. É a lei. Está escrito na
nossa Constituição: eu – não – posso – fazer – nada – por – você. Você entende?

PRISIONEIRO 1 ​– Ela não foi alfabetizada na capital. Por favor.

GUARDA​ – A culpa não é minha.

PRISIONEIRO 1 – Ela não sabe falar a língua da capital. Ela nunca frequentou a capital,
por favor, nos deixe em paz.

GUARDA ​– Eu lhe garanto que sua visita irá transcorrer sem maiores problemas -

PRISIONEIRO 1​ – (​o interrompendo​) Obrigado!

GUARDA – Desde que ela fale a língua da capital. Desde que ela aprenda então a falar
a língua da capital. Você pode ensiná-la agora. E nós iremos corrigi-la. Iremos corrigir
você também. Não será mais um estuprador quando sair daqui.
PRISIONEIRO 1​ – Eu nunca estuprei ninguém!

GUARDA – A culpa não é minha. Não é minha, isso posso te dizer: não é minha
responsabilidade. Executo ordens. Eles me pedem que faça alguma coisa, eles di​zem:
vá lá. Faça alguma coisa. ​E te digo outra coisa: se não estuprou, então seu irmão. Ou
seu pai. O seu povo, seu povo é um povo bárbaro, de estupradores selvagens,
primitivos, comedores de lixo. Animais indomesticáveis. O crime está no cerne do seu
povo, a corrupção, o roubo, o assassinato. Se não estuprou ainda é porque não teve
oportunidade.

PRISIONEIRO 1 ​ – Estou aqui com minha esposa -

GUARDA – (​o interrompe)​ A sua esposa que não sabe nem falar. Ela não sabe falar, não
poderia fazer uma reclamação. Não seria capaz de preencher o formulário. Não seria
capaz de fazer uma única ligação.

PRISIONEIRO 1 – Por favor, estou te implorando. Não fizemos nada. Nós não lhe
fizemos nada. Vou pedir pra que ela fique em silêncio, nós dois vamos ficar em silêncio
até o final da visita, por favor, só nos deixe em paz.

GUARDA – Peço que entenda que não é pessoal. Não tenho prazer nenhum em fazer
isso que estou fazendo. Apenas, ordens. São ordens que sigo. Eles me dizem, vá lá,
bote terror neles, bote uma moral, uma banca, mostre a eles o lugar deles, o lugar que
eles merecem, o lugar que eles pertencem, eles me dizem, vá lá e mostre a eles o país
deles, mostre a nação, o estado que eles pertencem. Quem é que manda aqui. Dê o
seu pior. Não tenho prazer nenhum nisso. Bom, não tinha prazer nenhum nisso. A
gente se adapta. Quero dizer, qual a graça? Mas aí a gente vê, a gente percebe umas
dessas, gostosinhas, assim, meio mudas, né? Mas, mesmo assim, jeitosinhas, você
percebe? Não é como se elas fossem deficientes, não são mudas de verdade, nem
aleijadas, não, nada disso, elas simplesmente não sabem, não teriam como saber,
como diferenciar o certo do errado, nem teriam tampouco como nos denunciar se
soubessem, não é mesmo? E eu aposto que ela não ia nem ligar, é, talvez até gostasse,
ela não ia ligar, não é mesmo? Aposto que ela não liga se eu passar minha mão nessas
tetas dela (​esfregando as mãos nas telas dela​)...

ESPOSA – (​assustada, cai no chão se desvencilhando do ​GUARDA​) O que ele está


fazendo comigo?

PRISIONEIRO 1 – (​se levanta de uma vez​) SEU FILHO DA PUTA, NÃO ENCOSTA NELA
SEU FILHO DA PUTA!

GUARDA​ – (​saca sua arma e a aponta para o ​PRISIONEIRO 1)​ Paradinho.

ESPOSA​ – (​chorando)​ O que está acontecendo aqui? Meu amor?

GUARDA – (​indo em direção ao P ​ RISIONEIRO 1)​ Parado aí, você tá vendo? Na primeira
oportunidade, você mostra quem você é de verdade. Pronto para nos desafiar, pronto
para nos atacar, os seus superiores. Não há civilidade, obediência, noção de hierarquia.
Estou aqui, estou armado, faço meu trabalho, obedeço meus superiores. Pode parecer
pra vocês que eu sou mau, um sujeito perverso, psicótico, perigoso, mas sou apenas
um cidadão comum obedecendo ordens. Ordens para aterrorizar, prender, dividir em
blocos, celas, presídios inteiros designados para população da montanha. Pro povo da
montanha. Seu povo é um câncer que se espalha pela humanidade, consome nossos
recursos, destróis nossas famílias, estupram nossas esposas e filhas e estripam nossos
bebês em seus rituais religiosos satanistas, o seu povo se espalha como uma peste
pelas cidades e não basta erguermos muros e construirmos presídios. Vocês
continuam aparecendo, brotando das brechas como uma erva daninha. Não basta
prender vocês, a gente tem que algemar vocês, enjaular vocês, amordaçar e matar,
exterminar e incinerar cada um de vocês. E só assim que a gente vai ter paz. Mão atrás
da cabeça! De joelhos! (​enquanto algema o P ​ RISIONEIRO 1)​ Essa é a única solução. A
única saída para a violência. É o único jeito de acabar com a criminalidade.

ESPOSA​ – (​para cima do ​GUARDA​) POR FAVOR! ELE É MEU MARIDO!

GUARDA – (​a empurra, se desvencilhando dela e a jogando no chão​) Quietinha!


Quietinha que agora a gente vai ver se pelo menos você tem salvação.

BLACKOUT
3.
CELA 2
O PRISIONEIRO 2 está em pé junto da grade. Fuma um cigarro. A VELHA está
sentada atrás dele com uma cesta em cima da mesa. O SEGUNDO GUARDA está de
pé, atrás do PRISIONEIRO 2.

VELHA​ – Trouxe as roupas que você pediu. Está muito frio aqui pra esse lençol.

PRISIONEIRO 2 – Eles não permitem cobertores aqui. Talvez eles proíbam os lençóis e
as camisas compridas também. Muito suicídio. Não pega bem pra imagem do presídio.
A mídia da capital, veja bem, a mídia da capital não está mais a favor do governo deles.
Embora ela ainda apoie o regime.

VELHA – Devia parar de falar sobre essas coisas. Falar sobre essas coisas te fez parar
aqui, olha pra esse lugar, olha pro que aconteceu com a sua vida. Olha pra mim. Olha
pra mim, meu filho. Não durmo direito já tem meses. Eu sonho com tiros e latidos e
sangue. Eles revistam nossa casa, semana sim, semana não.

PRISIONEIRO 2​ – E o meu

VELHA – (​o interrompe)​ Não encontraram nada. Não tem o que encontrar: somos só
eu e as crianças. Só eu e minhas duas netas.

PRISIONEIRO 2​ – Ele conseguiu. Conseguiu escapar.

VELHA​ – Escute.

PRISIONEIRO 2​ – Todos esses dias, essas noites...

VELHA – (​o interrompe novamente)​ Escute, por favor. Tem, bom. Tem uma coisa que
preciso te contar.

PRISIONEIRO 2​ – O que foi?

VELHA​ – Ele não escapou.

Silêncio

VELHA​ – Ele não escapou.

PRISIONEIRO 2​ – O que aconteceu?

Silêncio

VELHA – Numa dessas semanas, dois dias depois da última visita. Bateram de
madrugada. Os cachorros correram pro sótão, foi como se eles soubessem. Como se
eles soubessem que tinha alguém lá. Eu corri pro quarto das crianças, pra ver se eles
não tinham levado as crianças. Elas estavam acordadas, assustadas. Chorando. Eu
sentei com elas na cama e comecei a chorar também. Os latidos não paravam, então
começaram os gritos. Os gritos e as risadas. Eu tentei, eu tentei tapar os ouvidos delas,
eu pensei em tirar elas dali de casa, mas tive tanto medo, senti tanto medo. Não
consegui me mexer. Ficamos sentadas na cama, congeladas, estátuas de pedra e água
e o sol se mexendo na fresta das janelas, na soleira da porta, o sol mexendo as
sombras das silhuetas dos soldados, ficamos sentadas na cama talvez a manhã toda,
mas pareceram meses. Então ouvimos. Alto, inconfundível. Um tiro.

Silêncio

PRISIONEIRO 2 – Então, então quer dizer que eles executaram, na minha própria casa,
eles invadiram minha casa e eles assassinaram, eles mataram o meu marido?

GUARDA 2​ – Ele não pode dizer isso. Diga pra ele. É a nova lei.

VELHA​ – Escute, é muito importante isso. Por favor, me escute! Me escute!

PRISIONEIRO 2​ se vira para ela

VELHA – Eles proibiram todo tipo de conversa subversiva em ambientes institucionais,


e isso inclui você e o seu (​em tom mais baixo​) o seu marido. Não é mais permitido dizer
isso. Eles executaram o seu amigo.

PRISIONEIRO 2​ – O meu amigo?

VELHA​ – Sim, o seu amigo.

PRISIONEIRO 2​ – E as nossas filhas?

VELHA – (​em tom ainda mais baixo​) As suas filhas, você quer dizer. Com sua
ex-esposa. Que ele adotou?

PRISIONEIRO 2​ – Que ele adotou?

VELHA – (​quase inaudível)​ Pelo amor de deus, fique quieto, você vai meter aquelas
meninas em problemas por nada, por favor, fique quieto!

PRISIONEIRO 2​ – Minhas filhas com minha ex-esposa. Que ele adotou.

GUARDA 2 – (​dando risada)​ Que decepção você deve ser pra sua ex-esposa, hein? Ela
deve ficar pensando onde foi que errou, que a culpa é dela, que ela não entendia do
assunto. Quero dizer, como alguém não percebe que você é frutinha?

PRISIONEIRO 2​ – É, como alguém não percebe?

GUARDA 2 – E aqui até que não deve ser tão ruim. Quero dizer, para alguém como
você. Alguém da sua laia. Do seu tipo. Alguém que não gosta de trabalhar. Sem
aluguel, sem contas pra pagar. Sem preocupações. E um monte de homem. Alguém
que gosta de homem com esse monte de homem aí dentro. Deve ser uma putaria do
caralho.

VELHA – O senhor também não pode quebrar o decoro, é proibido, o senhor não pode
falar isso aqui dentro!

GUARDA 2 – Cale a boca, sua velha. Vocês são a escória da sociedade. Velhos,
aposentados, homossexuais pervertidos, promíscuos. Mofados. Adoecidos. Inválidos.
Desvalidos. Podres, pobres, desempregados, mendigos. Vivendo às nossas custas.
Vivendo às custas do sistema. Sim, senhor, comendo do nosso pão. (​Pausa)​
Partilhamos a mesma língua. Você e eu. (​Pausa)​ Envergonhando nosso povo. Cada um
à sua maneira, suponho. Cada um com sua vergonha. (​Pausa)​ Mas não somos iguais.
Aqui, você é só uma velha que não pode falar assim comigo, você entende? (​Pausa)​
Aqui dentro, quem decide como e o quê pode ser falado somos nós, você entende?
(​Pausa)​ Eu sou seu Deus aqui dentro, agora. (​Pausa)​ Eu decido se você fala ou não.
(​Pausa)​ Eu decido se você vive ou não. (​Pausa)​ Lá fora, bom... lá fora. Parece um lugar
muito distante agora. Que há muito tempo não visitamos. Você vê, eles revezam as
nossas escalas. Trabalhamos durante os dias numa semana e durante as noites em
outra semana. Eles fazem isso, fazem isso para mexer com nossos cérebros. Um dia
você acorda, em sua cama, com seu cobertor e uma poça de sangue e esse sangue em
suas mãos e esse mesmo sangue saindo da boca da sua esposa, da boca dos seus filhos
e então, sob forte emoção, trêmulas as mãos sob essa mesma arma, o cano dessa
mesma arma, o cano metálico dela, o cano frio e metálico dessa mesma arma, os
dedos tremendo, os dedos frios e metálicos dessa mesma arma apertam o gatilho e
você dispara essa arma mas aí você acorda e sua família ainda está ali e você tem
alguma coisa para lutar, alguma coisa para morrer, alguma coisa para matar antes que
eles matem você, antes que eles acabem com você, é um jogo em que não se vê as
extremidades, partes brigando pelos restos, os cadáveres da cidade brigando pelos
ossos, pelos seus próprios ossos ou um cachorro escondendo, cavando fundo sua
própria cova para esconder seus próprios ossos antes que eles possam roer, lá fora nós
somos normais, duas pessoas normais, com seus empregos, suas famílias, veja bem, lá
fora alguém poderia dizer que somos até parecidos. (​Pausa)​ Eu e você. (​Pausa)​ Que
temos uma fisionomia parecida, que falamos a mesma língua. (​Pausa)​ Que somos de
uma mesma cultura. (​Pausa)​ De uma mesma sociedade. (​Pausa​) O velho e o novo.
(​Pausa)​ Alguém estaria errado. (​Pausa)​ Alguém não está certo, não somos nada
parecidos, eu e você, vocês são a escória, vocês são as notícias que não gostamos de
receber, ouvir ou ler à respeito, vocês são como um parente muito velho ou muito
doente que, pelo bem de todos, seria melhor se já estivesse morto ou se nunca tivesse
existido, é, seria melhor se nunca tivessem existido ao invés de andarem por aí,
destruindo cada pedaço, cada esquina do nosso estado, sujando nossas ruas com a sua
imundice, defecando e urinando em nossas ruas, morando nessas ruas, roubando
mulheres e homens e comuns, cidadãos comuns, transeuntes, assassinando por causa
de migalhas, subvertendo nossas crianças e usurpando nossas riquezas, usufruindo dos
benefícios do nosso estado, nos criticando e precisando constantemente do nosso
auxílio, precisando constantemente do nosso apoio. Lá fora, alguém poderia até
ajudá-la, testemunhar a seu favor, contra a tirania dos funcionários do governo, mas
dentro dessa cela você tem que entender que o estado é o meu uniforme, sim,aqui
dentro, o estado é o meu uniforme, a minha farda e o meu distintivo são o seu
governo aqui. A minha identificação, minha fé pública é a lei. Aqui dentro quem decide
o que é quebra de decoro ou não sou eu, ficou claro?
Silêncio

GUARDA 2 – Agora. Voltando ao assunto. Como alguém não percebe que você é
frutinha?

PRISIONEIRO 2​ – Não sei. Talvez seja por que eu não tenha isso estampado na testa.

GUARDA 2​ – (​desembainha uma faca​) Bom, isso é algo que podemos resolver.

​ UARDA 2 e o PRISIONEIRO 2​) Por favor! Chega! Ele é meu


VELHA – (​se coloca entre o G
neto, por favor!

GUARDA 2 – Não sou um monstro sem coração, (​guarda a faca​) só fiz uma pergunta,
entende?

PRISIONEIRO 2​ – E eu só lhe respondi.

GUARDA 2 – Ora, ora, temos um engraçadinho aqui. Não percebeu ainda? Não tem
mais espaço pro seu tipo entre nós. Gente demais. Tem gente demais no planeta. Que
diabos, tem gente demais nesse presídio, isso é certo. Algumas pessoas precisam
morrer para nossa espécie ser salva, vagabundos, prostitutas, presos, pessoas que não
valem nada, pessoas cuja existência não significa nada, ninguém notaria a falta deles,
perambulando viciados sem casas, sonâmbulos sem teto, sem terras, indígenas,
indigentes, quilombolas, ladrões, batedores de carteira, menores abandonados,
menores infratores, pobres, miseráveis. A escória do planeta. As coisas não vão
continuar assim, um quarto, uma hospedagem do estado, roupas limpas e água e
energia elétrica, não, não no que depender de nós, isso eu lhes garanto. Certos tipos
de comportamento, sim, senhor, certas piadas e as medidas corretivas que iremos
aplicar, daqui pra frente, será sancionada uma lei, estamos aguardando a sanção dessa
lei, você vai ficar sabendo, haverá uma nova lei para engraçadinhos como você.

VELHA – Por favor, Sr Guarda, o meu neto, ele ainda não está acostumado com o novo
regime. Ele não estudou na capital.

GUARDA 2 – Sabe de uma coisa, dona. Essa visita acabou pra você. Vou ter que pedir
que a senhora se retire da sala, enquanto examino essa cesta que a senhora trouxe.
Pode ser que a gente tenha um código B aqui. É. (​no rádio​) Sargento? Acho que temos
um código B.

BLACKOUT
4.
CELA 1
O PRISIONEIRO 1 está algemado na cadeira. A ESPOSA está deitada no chão. Um
GUARDA está nu, de pé, atrás dela, fumando um cigarro.
Luzes caem pela metade. As personagens ficam imóveis e as vozes se sobrepõem.

VOZ DA ESPOSA​ – Seu bebê está te esperando.

VOZ DO​ ​PRISIONEIRO 1 ​– Vai ficar tudo bem.

VOZ DA ESPOSA​ – Eu também. Também estou te esperando.

VOZ DO PRISIONEIRO 1​ – Você vai ficar bem, prometo.

VOZ DA ESPOSA​ – Estamos todos te esperando.

VOZ DO​ ​PRISIONEIRO 1​ – A gente vai sair dessa, eu te prometo.

VOZ DA ESPOSA​ – Um bolo.

VOZ DO​ ​PRISIONEIRO 1​ – Vai ficar tudo bem. Eu prometo.

VOZ DA ​ESPOSA – (​a voz dela deve enfraquecer até desaparecer ao final da fala)​
Quando você voltar para casa, faremos uma festa de boas-vindas. Vou fazer um bolo.
Um bolo enorme e vamos comprar refrigerante também e acender velas e encher
balões. Quando você voltar pra casa, vai ter uma festa te esperando e todo mundo vai
estar lá. Todos estão te esperando. Nós estamos todos te esperando.

VOZ DO​ ​PRISIONEIRO 1​ – Meu amor?


5.
SILHUETAS NA ESCURIDÃO DA SALA DE REVISTA

VOZ DO SARGENTO – Quem é a porra dessa mulher? O que essa mulherzinha está
fazendo aqui? Quem deixou a porra dessa mulher passar pela merda daquela porta?

VOZ DO​ ​SEGUNDO GUARDA​ – Ela é esposa dele, senhor.

Luzes se acendem. Um corredor. Um ​HOMEM ENCAPUZADO segurado pelo ​GUARDA 2


e pelo ​SARGENTO.​ A J​ OVEM​ distante deles, os olha assustada

SARGENTO – O que é isso? Uma recepção para a senhora importante? Onde está o
refresco? Quem traz aí um refresco pra madame? Quem trouxe o refresco pra merda
da senhora importante? ​(Ele se dirige a J​ OVEM​) Olá, senhora, perdão. Houve um
probleminha na administração, eu temo. Eles o trouxeram pela porta errada, veja bem,
ele não estava com seus documentos no momento da, hum, apreensão. De qualquer
forma, um equívoco lastimável. Inacreditável. Alguém irá pagar por isso. Posso lhe
garantir que alguém irá pagar por isso. De qualquer modo, iremos transferi-lo para o
pavilhão apropriado. Neste meio tempo, o que eu posso fazer pela senhora?

Luzes caem pela metade. Sombra do ​HOMEM ENCAPUZADO​ e da ​JOVEM

VOZ DE HOMEM ​– Todo dia, antes de dormir, me lembro de você dormindo do meu
lado. Lembro de você dormindo no meu peito e isso me dá força pra continuar em pé.
Isso me faz sentir um pouco de alegria. Dá um pouco de sentido pra minha vida. Um
pouco de sentido pra isso tudo. Pra essa loucura toda. Eu sorrio antes de dormir.
Mesmo que seja só por um pouco, mesmo que seja por menos de um minuto, eu
sorrio sempre que eu me lembro do seu rosto, porque ainda me lembro do seu rosto.
Porque ainda sou capaz de amar.

VOZ DA ​JOVEM – Não importa onde você esteja, você sempre tá em mim, na minha
cabeça, no meu peito, no meu pescoço, eu sinto você na minha nuca, eu passo o dia
inteiro com você dentro de mim. Não importa onde você esteja. Eles não podem tirar
você da minha cabeça. Eles não podem matar você na minha cabeça.

VOZ DO HOMEM​ – Nós estamos em um lago. É primavera.

VOZ DA​ ​JOVEM​ – É primavera. Nós estamos na Europa.

VOZ DO HOMEM ​– Eu te abraço com cada pedaço, cada célula, cada átomo do meu
corpo.

O S​ ARGENTO estala os seus dedos e o G


​ UARDA 2 leva o H
​ OMEM ENCAPUZADO
arrastado embora

VOZ DA​ ​JOVEM​ – Não!


SARGENTO – Sim, você entrou pela porta errada, deve ser o computador. Não dá para
confiar no sistema. O sistema é informatizado, falhas técnicas, você não entenderia.
Você não faz ideia de como essas coisas funcionam. Mas eu posso lhe dizer, se você
quiser, qualquer informação sobre qualquer aspecto da vida neste lugar. Você vê, tudo
aqui é inspecionado, está tudo operando nos conformes. Nós só agimos dentro da lei
aqui, temos a papelada toda para provar. Nós temos um cara que vem ao escritório
todas as terças-feiras, ele é o melhor sobre este assunto. Dê uma telefonada e ele te
receberá. Se tem alguém que pode resolver o problema do seu marido, é ele. O nome
dele é André. André Duarte.

JOVEM – Eu só quero encontrar o meu marido. (​Pausa​) Eu só quero encontrar o meu


marido!

SARGENTO - Senhora, se tem alguém aqui capaz de localizar o seu marido, este é o
homem.

JOVEM​ – Eu preciso transar com ele? (​Pausa)​ Se eu transar com ele tudo ficará bem?

Silêncio

SARGENTO​ – Com certeza. Sem problemas.

JOVEM​ – Obrigada.

(BLACKOUT)
6.
CELA 1
GUARDA. ESPOSA. PRISIONEIRO 1. Silêncio. O PRISIONEIRO 1 tem sangue em seu
rosto. Ele está tremendo, ainda algemado na cadeira. A ESPOSA está parada no
chão. O GUARDA olha através de uma janela. Ele abotoa sua calça, sobe seu zíper e
ajeita sua camisa. Olha para ambos.

GUARDA – Ah, esqueci de dizer. Eles mudaram as regras. Ela pode falar. Ela pode falar
em sua própria língua. Até segunda ordem.

PRISIONEIRO 1​ – Ela pode falar?

GUARDA​ – Sim. Até segunda ordem. Novas regras. ​(Pausa)

PRISIONEIRO 1 – (​Ainda algemado, arrastando a cadeira em direção à mulher caída​)


Meu amor, você pode falar! (​Pausa) Estou falando com você, meu bem, você entende?
Nós podemos falar! Você pode falar comigo em sua própria língua! (Ela continua
parada) Você pode falar! Por favor! (Pausa) Fala comigo, por favor! Fala comigo, meu
amor, você tá me escutando? Eu estou falando com você em sua língua, por favor,
responde! (Pausa) V​ ocê me escuta? ​(Pausa) É a nossa língua! Estou falando com você
​ ão está me ouvindo? Você me ouve? (Ela não responde)
na nossa língua! ​(Pausa) N
Meu amor?

GUARDA – Diga que ela pode falar em sua própria língua. Novas regras. Até segunda
ordem.

PRISIONEIRO​ – MEU AMOR?

Ela não responde. Está deitada imóvel. O tremor do ​PRISIONEIRO aumenta. Ele cai com
a cadeira e começa a engasgar e tremer violentamente, ainda algemado. O ​SARGENTO
​ RISIONEIRO​ tremendo no chão.
entra na sala e estuda o P

SARGENTO – ​(Para o G ​ UARDA)​ Olhe para isso. Você faz tudo que está ao seu alcance
para ajudá-los e eles fodem tudo.

(BLACKOUT)
7.
CELA 2
O PRISIONEIRO 2 está sentado. A VELHA está em pé, do lado de fora da cela. No
começo da cena, ela se afasta da cela e desaparece. Uma cesta em cima da mesa. O
SEGUNDO GUARDA está de pé, atrás da mesa.

GUARDA 2 – Você sabe que eu posso facilitar muito as coisas pra você aqui dentro.
Digo, tenho certeza que você pode precisar de alguma ajuda com os outros presos,
alguma segurança. Digo, proteção. E posso providenciar isso pra você. Posso fornecer
isso pra você.

PRISIONEIRO 2 – E por quê aceitaria a sua ajuda? Você trabalha para eles. Trabalha
para eles e você nem sabe para quem você trabalha, eles te dizem, vá lá, aponte uma
arma na cabeça daquela senhora, mate aquela senhora, estupre aquela senhora, ateie
fogo em sua casa, envenene seus poços, seus rios, sua comida. Quero dizer, aposto
que se te pedissem para ficar de quatro você ficaria.

GUARDA 2 – (​dá um tapa na cara do P ​ RISIONEIRO 2)​ Cale a boca! (​Pausa​) Desculpe!
Eu não queria ter feito isso. Você me fez fazer isso, por quê você disse isso que você
disse? Escute. Eu gosto de você, não quero que as coisas aqui sejam mais difíceis do
que já são.

PRISIONEIRO 2 – Honestamente, se você quisesse isso de verdade, se você gostasse


mesmo de mim, você simplesmente abriria a porta dessa cela. Esqueceria de trancar a
porta dessa cela. Esqueceria de trancar a porta da cela e o portão de saída e me
deixaria ir embora desse lugar.

Silêncio

PRISIONEIRO 2​ – Eles vão me matar aqui.

Silêncio

PRISIONEIRO 2​ – Você sabe que eles vão me matar aqui.

GUARDA 2 – Eu não posso te ajudar com isso. Não posso. Não com isso. O que eles
fariam se descobrissem, se fôssemos pegos, o que eles fariam. Eu tenho uma família.
Uma esposa e quatro filhos que eu amo. Trabalhamos para o regime. Somos fiéis ao
nosso governo. Trabalhamos para o regime desde o começo, se me pegassem, eles... E
mesmo que você conseguisse fugir, para onde iria? Iria acabar de volta e aí seria ainda
pior. Não posso.

PRISIONEIRO 2 – Sabe o que me espera, não sabe? Você tava me tratando igual um
lixo até cinco minutos atrás, você sabe o que eles vão fazer comigo. Com todos que
estão aqui nessa cadeia. Não consigo imaginar como qualquer coisa possa ser pior.

GUARDA 2​ – Eu não estaria aqui se tudo desse errado.


PRISIONEIRO 2​ – Não sei se isso é exatamente é uma vantagem.

GUARDA 2 – Já disse, eu gosto de você. Desculpa se peguei pesado com você. A


pressão desse trabalho, você não sabe como é a pressão desse trabalho, eles não nos
deixam dormir direito, o salário, nosso salário mal paga a minha vida e meus filhos e
minha esposa também trabalham, até minha menor, que tem onze, todos trabalham.
Posso te proteger. Eu posso

PRISIONEIRO 2 – (​o interrompe​) Obrigado, mas não estou interessado. Mesmo. De


verdade.

Silêncio

GUARDA 2 – ​(dá um tapa na cara do P​ RISIONEIRO 2)​ Você está vendo? É isso que você
quer de mim? É isso que você espera de mim? Todos esperam violência de mim, você
espera de mim violência e eu tenho que vir aqui e mostrar pra você, a minha violência
tem que ser exposta pra você, a minha violência tem que ser um presente embrulhado
num pacote com um laço de seda, é isso que você espera, que todo mundo espera, é
pra isso que me pagam, é pra isso que estou aqui.

PRISIONEIRO 2 – Não me importo com a violência. Não me intimido com a violência. A


vida sempre foi violenta para mim. Uma hora você é o cárcere e na outra o
encarcerado. Não dá pra perceber com clareza quando somos qual somos e de vez em
quando acabamos presos, paralisados ali naquela situação contra nossa vontade.
Entende, essa não é a minha primeira cadeia, essa não é nem a primeira vez que fui
torturado. Eu vi o regime se instaurando e lutei contra ele o quanto eu pude. O
máximo que pude. Dei tudo de mim. Dei o máximo de mim. Não deixei de amar e
ajudar ninguém, por motivo que fosse. Briguei com algumas pessoas e tratei outras
pior do que gostaria de ter tratado, mas não tenho esse sangue que está nas suas
mãos. Não tenho o sangue da montanha toda nas minhas mãos.

GUARDA 2 – Você fala como se eu fosse o vilão. Como se eu fosse o culpado pelo
extermínio do povo da montanha.

PRISIONEIRO 2 – Guardas, soldados, sargentos, comandantes, oficiais, generais,


agentes legislativos, júri, membros da corte, excelentíssimos, a suprema corte, a igreja
e os telespectadores e os internautas e os consumidores e os fornecedores, mas,
principalmente, os fornecedores, os fornecedores bilionários, donos de inúmeras
cabeças humanas pastando com as roupas que nos fornecem e passeando com os
carros que nos fornecem, marionetes nas mãos de quem molda o destino dos nossos
estados e do nosso planeta. A ponta invisível dessa corda. O lado mais forte da moeda.
São aqueles que decidem quais partes do planeta serão habitáveis e quais serão
descartadas. Onde vai ficar a sala, o quarto, a cozinha e onde vai ficar o lixo. As línguas
que serão faladas e aquelas que devem ser extintas.

GUARDA 2​ – O que tem nessa cesta?

PRISIONEIRO 2​ – Camisetas.
Silêncio

PRISIONEIRO 2​ – E camisas de manga longa.

Silêncio

PRISIONEIRO 2​ – Ainda não são proibidas. (​Pausa​) Ou são?

Silêncio

GUARDA 2​ – O que pretende fazer com elas?

Silêncio

GUARDA 2​ – O que pretende fazer com elas?

PRISIONEIRO 2​ – Tem feito frio essas noites. Não permitem cobertores aqui dentro.

GUARDA 2​ – Você não precisa mentir pra mim. Não vou te denunciar.

Silêncio

PRISIONEIRO 2 – Eles mataram meu marido. O novo regime destruiu tudo que eu
acreditava. Eles vão nos condenar a trabalhos forçados ou vão nos usar de cobaia para
experimentos científicos, você sabe disso. Nenhum preso daqui volta para a montanha.
Só há um caminho para os que são capturados.

Silêncio

GUARDA 2​ – Eu posso atirar em você.

Silêncio

GUARDA 2 – Eu posso atirar na sua cabeça e dizer que você tentou pegar a minha
arma. É um procedimento aceitável. Ninguém irá questionar.

Silêncio

GUARDA 2​ – Quero dizer, se tiver certeza que é isso que quer.

Silêncio

PRISIONEIRO 2​ – Vou sentir dor?

GUARDA 2​ – Nenhuma. Vai ser mais rápido do que piscar os olhos.

Silêncio
PRISIONEIRO 2​ – Atire em mim.

Silêncio

PRISIONEIRO 2​ – Por favor, atire em mim.

GUARDA 2 – ​(aponta sua arma para a cabeça do ​PRISIONEIRO 2​) Esse é o único jeito
que posso ajudar. Peço que me desculpe se não posso fazer mais. É que eu poderia ser
demitido. Ou pior. Preso.

PRISIONEIRO 2​ – Tudo bem. Eu entendo.

Silêncio

GUARDA 2​ – Eu tenho uma família. Você sabe.

PRISIONEIRO 2 – Conte a verdade pra ela. Para minha mãe. Sobre como eu morri. Por
favor, conte a verdade para a minha mãe sobre como eu morri.

Silêncio

GUARDA 2​ – Não.

​ RISIONEIRO 2​ cai no chão.


Barulho de tiro. Corpo de P

BLACKOUT

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