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DIREITO AO ABORTO,

DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO
Dimensão Moral
Argumentação Jurídica
Dignidade Humana
Pluralismo Ideológico
Liberdade Religiosa
Consciência Laica
2 Teresinha Inês Teles Pires

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Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco

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Curitiba: Juruá, 2016.
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Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 3

Teresinha Inês Teles Pires

DIREITO AO ABORTO,
DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO
Dimensão Moral
Argumentação Jurídica
Dignidade Humana
Pluralismo Ideológico
Liberdade Religiosa
Consciência Laica

Curitiba
Juruá Editora
2016
4 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 5

À Beatriz, motivo de tudo o que sinto, penso e faço.


Aos meus pais, Aldo e Eunice (em memória), com muito amor.
A todas as mulheres brasileiras, que lutam por um mundo mais
livre de violência e opressão aos seus direitos.
6 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 7

AGRADECIMENTOS

Agradeço, inicialmente, à minha família, pela compreensão e


apoio em todos os momentos, especialmente, à minha filha Beatriz, a quem
peço perdão por todas as vezes em que deixei de estar ao seu lado em razão
da dedicação à escrita da tese.
Agradeço ao meu ex-marido, Jurandir dos Santos Júnior, pelo
amor e cumplicidade que sempre dedicou à nossa filha em seus treze anos
de existência.
Ao meu orientador, Carlos Bastide Horbach, pelo incentivo e pelas
preciosas críticas que em muito contribuíram para o aperfeiçoamento deste
estudo.
À minha coorientadora, Daniela Kraiem, diretora do Women and
the Law Program da American University Washington College of Law,
Instituição perante a qual frequentei o programa Visiting Scholar, direcio-
nado aos pesquisadores internacionais, durante o período de agosto/2013 a
julho/2014. Sem a valorosa intervenção de Daniela não teria sido possível
realizar de forma eficiente a produção dos capítulos da tese relacionados ao
direito norte-americano. Agradeço, ainda, à professora Jéssica Waters,
membro do corpo docente adjunto na Washington College of Law, pelas
lições prestadas em aulas e discussões pessoais acerca da produção da mi-
nha pesquisa.
Aos professores do programa de Doutorado em Direito do Uni-
CEUB, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, cujo auxílio na etapa inicial do
doutorado foi de grande importância, e Luís Carlos Martins Alves Júnior,
que tanto me desafiou no sentido de melhor sustentar minhas convicções.
Agradeço, em especial, ao professor José Emílio Medauar Ommati
(PUC/MG), com quem tive o privilégio de trocar ideias e contar com escla-
recimentos e críticas fundamentais no tocante ao correto direcionamento do
trabalho.
8 Teresinha Inês Teles Pires

Ao Coordenador do programa de Mestrado e Doutorado do Uni-


CEUB, professor Marcelo Dias Varella, pela presença decisiva nos períodos
mais difíceis do curso e pelo incentivo ao empenho necessário para se viabi-
lizar a pesquisa no exterior.
Ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, particu-
larmente, ao Conselho Superior da Instituição, pela concessão de afasta-
mento para estudos no exterior, experiência esta fundamental para o desen-
volvimento e conclusão da pesquisa.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), pela concessão de bolsa, na modalidade doutorado sanduíche,
durante o tempo da minha permanência na cidade de Washington/U.S.
Aos meus colegas promotores do Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios, Rita de Cássia Mendes de Souza, Leonardo Assis dos
Santos e Liz Rocha Liberato, pelo apoio e esforço no sentido de suprir, com
dedicação e responsabilidade, meu afastamento do exercício da profissão
durante todo o ano em que realizei a pesquisa no exterior.
À minha secretária e servidora lotada nas promotorias cíveis do
Gama/DF, Maristânia Barbosa de Freitas, que ao facilitar, com sua costu-
meira seriedade, o exercício das minhas atribuições profissionais, tornou
possível a dedicação paralela aos compromissos acadêmicos.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 9

―The danger which threatens human nature is not the excess, but
the deficiency, of personal impulses and preferences‖.
―O perigo que ameaça a natureza humana não é o excesso, mas a
deficiência, de impulsos e preferências pessoais‖.
John Stuart Mill
10 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 15

Parte I
ABORTO E DEMOCRACIA: COMO INTEGRAR PRINCÍPIOS
MORAIS E POLÍTICOS AO SIGNIFICADO CONSTITUCIONAL DA
DIGNIDADE HUMANA
Capítulo 1 – O DIREITO AO ABORTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE
DEMOCRACIA DE RONALD DWORKIN E DE JOHN RAWLS .................. 33
1.1 Situando o tema do aborto nas esferas da ética, da moral e da política: uma
tensão entre a liberdade de consciência e os deveres morais ..................... 34
1.2 O aborto como um direito moral e como um direito legal ......................... 44
1.3 O pluralismo ideológico no regime democrático: o direito ao aborto como
expressão de uma doutrina ética aceitável sobre o valor da vida humana . 53
1.4 A concepção constitucionalista da democracia: legitimação da judicial
review na regulamentação do direito ao aborto ......................................... 60
1.5 Conclusão parcial ...................................................................................... 70
Capítulo 2 – O SIGNIFICADO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE
HUMANA E DA LIBERDADE RELIGIOSA EM FACE DOS DIREITOS
REPRODUTIVOS .................................................................................................. 73
2.1 A dignidade humana no âmbito da concretização do direito ao aborto:
como moldurar a dignidade do nascituro e a dignidade da mulher ........... 74
2.2 A doutrina da personalidade do nascituro: resposta inadequada para o
problema da delimitação dos interesses jurídicos da vida potencial .......... 88
2.3 O princípio da igualdade em uma perspectiva de gênero ........................ 103
2.4 Concretização da liberdade religiosa e da liberdade moral na esfera
reprodutiva: releitura da tese de Dworkin................................................ 116
2.5 Conclusão parcial .................................................................................... 132
12 Teresinha Inês Teles Pires

Parte II
O CASO DO ABORTO NO DIREITO NORTE-AMERICANO:
PADRÃO PARADIGMÁTICO DE UMA DEMOCRACIA
CONSTITUCIONALISTA ...................................................................... 133
Capítulo 3 – A CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO AO ABORTO
VOLUNTÁRIO: PARADOXOS DA AUTONOMIA PROCRIATIVA DA
MULHER .............................................................................................................. 135
3.1 A discussão prévia da Suprema Corte acerca do direito de privacidade .. 136
3.1.1 Contracepção como liberdade básica derivada do direito de
privacidade e da cláusula do devido processo legal ........................... 136
3.1.2 Introdução da abordagem da cláusula da igual proteção em matéria
de contracepção e controle de natalidade ........................................... 149
3.2 A inclusão do direito ao aborto na Carta de Direitos (Bill of Rights):
privacidade pessoal, marital, familiar e sexual ........................................ 155
3.3 O valor da vida pré-natal e a autonomia moral da gestante na
regulamentação do direito ao aborto: contornos precisos às legislaturas
estaduais e à judicial review .................................................................... 162
3.4 Conclusão parcial .................................................................................... 168
Capítulo 4 – A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO À LUZ DAS CLÁUSULAS
DA LIBERDADE RELIGIOSA .......................................................................... 169
4.1 Colocação do tema a partir do significado específico da establishement
clause e da free exercise clause ............................................................... 169
4.2 O envolvimento da liberdade de consciência no conteúdo da free
exercise clause: laicidade como padrão para a definição individual do
significado da vida ................................................................................... 185
4.3 Delimitação da free exercise clause no tocante à objeção de
consciência na assistência médico-reprodutiva ....................................... 202
4.4 Conclusão parcial .................................................................................... 211
Capítulo 5 – AS RESTRIÇÕES LEGISLATIVAS À PRÁTICA DO ABORTO
VOLUNTÁRIO: NOVO PADRÃO DE ANÁLISE NAS DECISÕES
POSTERIORES A ROE V. WADE...................................................................... 213
5.1 A desconstrução da garantia da liberdade reprodutiva: redução da proteção
conferida pelas cláusulas do devido processo legal e da igual proteção
perante a lei ............................................................................................. 213
5.2 O novo padrão de análise da constitucionalidade do direito ao aborto:
necessidade de reformular Roe v. Wade à luz da autonomia ética
da mulher ................................................................................................. 227
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 13

5.3 Conclusão parcial .................................................................................... 244

Parte III
A IMPLEMENTAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO NA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO
BRASIL: ABORDAGEM DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL
Capítulo 6 – O PRINCÍPIO DA AUTODETERMINAÇÃO INDIVIDUAL E A
TUTELA DO NASCITURO NO SISTEMA CONSTITUCIONAL
BRASILEIRO: ADEQUABILIDADE DA APLICAÇÃO DA CLÁUSULA DA
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA ......................................... 249
6.1 O crime do aborto e sua desconformidade com a carta de direitos
fundamentais: dignidade humana, devido processo legal e igual proteção
perante a lei ............................................................................................. 250
6.2 O direito à vida e os interesses do nascituro: esquema de proteção da vida
pré-natal associado à garantia da dignidade da mulher ........................... 269
6.3 Liberdade de consciência e de crença na dogmática jurídica e na
Constituição ............................................................................................. 289
6.4 O direito ao aborto como um corolário da liberdade de consciência ....... 308
6.5 Conclusão parcial .................................................................................... 320
Capítulo 7 – A AUTORIZAÇÃO DAS PESQUISAS CIENTÍFICAS COM
CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS (CASO DA ADIn 3510):
IMPLICAÇÕES DA DECISÃO NA CRIAÇÃO DE UM PADRÃO
NACIONAL DE PROTEÇÃO À VIDA NASCITURA E À AUTONOMIA
PROCRIATIVA .................................................................................................... 323
7.1 Exposição dos fatos, interesses envolvidos e valorações morais ............. 325
7.2 Os argumentos jurídicos e os princípios constitucionais em debate ........ 331
7.3 As conclusões do julgamento e suas reverberações interpretativas na
abordagem do direito ao aborto ............................................................... 338
7.3.1 Soluções jurídicas encontradas: uma integração constitucional de
princípios fundamentais ..................................................................... 339
7.3.2 Os argumentos tecidos no julgamento da ação e a
constitucionalidade do direito ao aborto ............................................ 348
7.4 Conclusão parcial .................................................................................... 359
Capítulo 8 – A DESCRIMINALIZAÇÃO DA “ANTECIPAÇÃO
TERAPÊUTICA DO PARTO” DE FETO PORTADOR DE ANENCEFALIA
(CASO DA ADPF 54): APERFEIÇOAMENTO DAS CATEGORIAS
CONCRETIZADAS NA ADIn 3510 ................................................................... 361
14 Teresinha Inês Teles Pires

8.1 Breve histórico das etapas e do contexto argumentativo da arguição ...... 362
8.2 Avanços obtidos na conformação constitucional do princípio da
laicidade, do direito à vida e da autonomia procriativa ........................... 368
8.3 A aplicação dos princípios constitucionais legitimados na ação à demanda
feminina pelo direito ao aborto de feto compatível com a vida ............... 379
8.4 Um olhar crítico sobre as diretrizes metodológicas indicadas
no julgamento em vista da análise do direito ao aborto ........................... 390
8.5 Conclusão parcial .................................................................................... 397
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 399
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 407
ÍNDICE ALFABÉTICO ...................................................................................... 433
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 15

INTRODUÇÃO

A finalidade do presente trabalho é demonstrar que as normas


que criminalizam a prática do aborto no Brasil são incompatíveis com a
Constituição, porque violam as cláusulas do devido processo legal, da
igual proteção perante a lei e da liberdade de consciência e de crença.
Escolheu-se a seguinte estratégia argumentativa: inicialmente, apresentar
as premissas teóricas da tese defendida; em seguida, adensar o estudo de
um modelo específico de prática jurisdicional aplicável ao tema; em ter-
ceiro lugar, adentrar na análise do sistema brasileiro, normas constitucio-
nais e jurisprudência, tomando-se por direção os resultados obtidos nas
etapas anteriores.
A controvérsia política e jurídica que perpassa o debate sobre o di-
reito ao aborto voluntário1, não somente nos países em que sua prática ainda
é proibida, mas também naqueles em que o tema já foi objeto de regulamen-
tação legal, é sempre um assunto sensível que desafia todos os esforços em-
preendidos em direção ao equacionamento do problema. A questão é marca-
da por uma divergência extrema, polarizada de forma passional entre duas
posições que se digladiam sem que se vislumbre qualquer possibilidade de
consenso. É notório que não é possível refletir sobre o aborto, na perspectiva
da teoria democrática, sem assumir, de plano, que não se está pisando, ex-
clusivamente, no terreno do direito, em sentido puro, mas também no espaço
do pensamento moral e político, e, particularmente, no espaço do pensamen-
to religioso.
O ponto de partida da investigação é o estudo do constitucionalis-
mo democrático, considerando que seus pressupostos permitem formular
uma abordagem equilibrada a respeito dos novos critérios de legitimação das
1
Conforme VERMON, Laura. A closer look into abortion including laws, issues and
controversies. paperback, 2012. p. 3, denomina-se aborto voluntário, ou eletivo, aquele
que se realiza a pedido da gestante, independentemente de suas razões. De outro lado, de-
nomina-se aborto terapêutico aquele realizado para salvar a vida ou preservar a saúde da
gestante, física ou mental, ou em caso de anomalia fetal.
16 Teresinha Inês Teles Pires

normas legislativas no que concerne a matérias de direitos fundamentais2.


Tema atualmente palpitante, na seara da garantia dos direitos de liberdade,
reside no delineamento de uma moldura adequada para o exercício da função
jurisdicional no controle de constitucionalidade das leis. Diversos são os
mecanismos à disposição do poder judiciário para submeter o conteúdo das
políticas legislativas às exigências comandadas pelos princípios constitucio-
nais da dignidade humana, da liberdade, em suas múltiplas especificações, e
da igual proteção perante a lei.
A análise do direito ao aborto está intimamente relacionada ao
complexo embate em torno dos limites do ativismo judicial em face dos pos-
tulados modernos da democracia representativa. No Brasil, o dimensiona-
mento da matéria é ainda mais problemático, haja vista que as normas penais
em questão datam do ano de 1940, sendo, portanto, em muito anteriores à
nossa Constituição, e considerando que todas as tentativas até aqui realizadas
para o enfrentamento do tema, perante as instâncias legislativas, foram infru-
tíferas. De um lado, a leniência do Congresso Nacional em encampar a tarefa
de rever regras punitivas que, por tão vetustas, estão a exigir urgente refor-
mulação em face da evolução do sistema de garantias constitucionais e das
diretivas edificadas pelo direito internacional. De outro lado, a dificuldade
doutrinária na elaboração de institutos processuais que sejam manejáveis no
controle de constitucionalidade das leis pré-constitucionais, o que é objeto de
recente e progressivo aperfeiçoamento3.

2
Conforme FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista y constitucionalismo
garantista. Madri: Marcial Pons, 2012. p. 11-12, existem várias perspectivas da teoria do
constitucionalismo, sendo que todas têm em comum a ideia de que os poderes institucio-
nais se subordinam às normas de direitos fundamentais. A essência desta doutrina reside
na imposição de restrições, formais e materiais, ao exercício da autoridade normativa do
Estado a partir de uma análise jurídica da validade das leis consubstanciada na exigência
de “coerência dos seus conteúdos com os princípios de justiça constitucionalmente esta-
belecidos”. No original: “coherencia de sus contenidos com los principios de justicia
constitucionalmente estabelecidos”. No mesmo sentido, CHUEIRI, V. Karam GODOY,
M. G. Constitucionalismo e democracia: soberania e poder constituinte. Revista de Direi-
to Getúlio Vargas. São Paulo, 6(1), p. 159-174, jan./jun. 2010. Disponível em:
<www.scielo.br/pdf/ rdgv/v6n1/09.pdf>. Acesso em: 06 out. 2012. p. 166, esclarecem que
o constitucionalismo se estruturou no sistema norte-americano da Rule of Law, e tem por
principal implicação restringir a ação do Estado considerando a necessidade de se preser-
var a supremacia de determinadas normas fundamentais.
3
Para o aprofundamento sobre o controle de constitucionalidade do direito pré-
-constitucional, bem como sobre as diversas técnicas de interpretação constitucional, con-
sulte-se PIRES, Teresinha Inês Teles. Os direitos individuais e a revisão do direito pré-
-constitucional brasileiro em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Revista
da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, v. 59, n. 3, p.
37-54, 2014; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet e MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 17

Tomar-se-á por marco teórico as concepções de constitucionalismo


de John Rawls e de Ronald Dworkin, sobretudo, o segundo, pontuando as
similaridades das respostas por eles dadas à pergunta relativa aos limites da
obrigação moral e política. A hipótese avançada é a de que a utilização dos
padrões de análise jurídica deriváveis da teoria da justiça dos citados autores
configura método correto para a justificação da fundamentalidade do direito
ao aborto e, portanto, para a defesa da jurisdição constitucional, enquanto
instância decisória apropriada no que se refere à regulamentação da matéria.
Esclareça-se, ainda, que não se preocupou com a precedência cro-
nológica da teoria de Rawls em relação à de Dworkin. Em boa parte dos
capítulos, os argumentos de Dworkin, inclusive, foram introduzidos antes,
eis que suas teses relacionadas ao princípio da dignidade humana constituem
a principal direção conceitual de todo o trabalho. Não se vislumbrou nenhum
problema em tal estratégia, considerando a convicção de que, em relação ao
tema pesquisado, as categorias formuladas pelos dois autores são convergen-
tes e se reforçam mutuamente. Em linhas gerais, as doutrinas de Rawls e de
Dworkin oferecem sustentação segura e coerente para a perspectiva do reco-
nhecimento público das exigências da dignidade humana individual e do
pluralismo ideológico, na medida em que não haja o comprometimento de
interesses importantes do Estado. Solidifica-se, nas suas concepções, um
modelo de Estado Constitucional, segundo o qual o Direito e a Moral intera-
gem entre si por meio da incorporação dos princípios éticos e políticos ao
significado substantivo das normas fundamentais. Não existe, assim, em suas
teorias, uma separação conceitual entre os termos “democracia” e “constitu-
cionalismo”4.

direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 108-110, 1230-31 e 1261-
1288; MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de descumprimento de preceito funda-
mental. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 115-119 e 269-300; BARROSO, Luís Rober-
to. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011.
p. 204-210; APPIO, Eduardo Fernando. Interpretação conforme a Constituição: ins-
trumentos de tutela jurisdicional dos direitos fundamentais. Curitiba: Juruá, 2011, passim;
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constituci-
onal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 119-20; MORAES, Alexandre de. Constituição
do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p.
2531-2554; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constitui-
ção. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1314-1316; TAVARES, André Ramos. Tratado
da arguição de preceito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2001; BASTOS, Celso Ribei-
ro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em
05.10.1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 367.
4
Confira-se, neste aspecto, as palavras de FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princí-
pios fundamentais do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 43: “Na
verdade, vigora atualmente a crença numa simbiose entre constitucionalismo e democra-
18 Teresinha Inês Teles Pires

Como se disse no início, o tema do aborto envolve o entrelaça-


mento entre a esfera da moralidade e a esfera do direito. Por meio da
reformulação do conceito de dignidade humana, Dworkin especifica o
conteúdo das categorias da eticidade, da moralidade pessoal e da morali-
dade política, evidenciando sua intersecção com o conceito do direito, em
sentido interpretativo. Essa teoria é uma das referências mais elucidati-
vas, no contexto da investigação contemporânea sobre o significado da
dignidade, e muito tem a contribuir para o equacionamento da questão do
aborto5. Com suporte em tal esquema de pensamento, é possível pacificar
um critério de justiça que incorpore a admissibilidade do direito da mu-
lher de interromper a gestação, o que exige uma interpretação evolutiva
do sistema constitucional à luz dos princípios da razoabilidade6 e da re-
ceptividade à diversidade moral.

cia, democracia e constitucionalismo. Assim, o estabelecimento da Constituição é visto


como o mesmo que instituição da democracia e a instituição da democracia passa pela
adoção da Constituição”.
5
Sucintamente, o que se aprofundará no primeiro capítulo da obra, defende DWORKIN,
Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press,
2011. p. 191 e 327-30, que os assuntos éticos dizem respeito ao bem-estar individual, de-
vendo ser conferido, neste campo, amplo espaço ao exercício do direito à autodetermina-
ção; os assuntos de moralidade pessoal são aqueles em que se atribui a cada pessoa a au-
tonomia do juízo acerca do que se deve ou não fazer aos outros, em consideração aos seus
interesses; e os assuntos de moralidade política são aqueles que envolvem interesses cole-
tivos e essenciais à organização político-democrática, em cuja seara as pessoas se subme-
tem, em regra, ao processo deliberativo.
6
O termo “razoabilidade” tem vários sentidos, tanto na doutrina quanto na prática jurispru-
dencial. Por isso, é importante esclarecer, desde já, que se o utiliza com dois significados,
os quais estão intrinsecamente implicados. Primeiro, com o significado teórico-filosófico
atribuído por John Rawls na elaboração de sua teoria do liberalismo político. Segundo,
com o significado constitucional derivado da cláusula do devido processo legal substan-
tivo, como desenvolvido no direito constitucional norte-americano, ou seja, na qualida-
de de um critério para o controle do próprio mérito das regras jurídicas. Para Rawls, o
termo “razoabilidade” aplica-se à avaliação das concepções do bem moral passíveis de
ser aceitas no espaço público. As concepções do bem não razoáveis são aquelas que não
conseguem obter a aprovação da comunidade política, e que, ademais, não se sustentam
em nenhum princípio constitucional de direito fundamental. Este sentido da “razoabili-
dade”, como se demonstrará, conjuga-se à aplicação da cláusula do devido processo le-
gal substantivo, que, por sua vez, possibilita atribuir efetividade, na esfera da interpr e-
tação jurisdicional do conteúdo normativo das leis, ao princípio político formulado por
Rawls. No plano da teoria moral e política, a “razoabilidade” conecta-se à teoria da jus-
tiça como equidade; por outro lado, no plano da argumentação jurídica, a “razoabilid a-
de” conecta-se à concretização ampliada da carta de direitos fundamentais, mediatizada
pelo princípio do devido processo legal. Na mesma perspectiva, defender-se-á a impor-
tância do princípio da razoabilidade, na esquematização de uma leitura eficaz da ideia
de integridade do direito (DWORKIN), e de sua utilização na regulamentação do abo r-
to. Sobre a origem do princípio da razoabilidade, tal como veiculado no sistema norte-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 19

As concepções de justiça de Rawls e de Dworkin têm em comum a


indispensabilidade de uma interpretação conjunta dos princípios da liberdade
e da igualdade. Não é importante defender a primazia de uma das catego-
rias, liberdade ou igualdade, em relação à outra. Não se pode dizer que
exista uma separação ou contraposição entre estes dois princípios funda-
mentais. Ao tratar do assunto, Rawls propõe a precedência da liberdade,
mas tal precedência somente é válida se a liberdade for assegurada a to-
dos os cidadãos em condições de igualdade. Esse é o sentido de sua ex-
pressão “liberdades iguais”7, categoria constitutiva da abertura da norma-
tividade jurídica ao acolhimento da pluralidade de concepções do bem.
Dworkin, embora atribua precedência à categoria da igualdade, eviden-
cia, no seu posicionamento em diversos assuntos afetos à interpretação
constitucional, a necessidade do revigoramento do princípio da liberdade
na delimitação do poder coativo do Estado. Em relação ao aborto, como
se verá, Dworkin escolhe como fundamento primordial de sua constitucio-
nalidade a cláusula da liberdade religiosa.
Diante da escolha por marcos teóricos específicos, decidiu-se não
inserir no trabalho a consideração das doutrinas comunitaristas, em geral, no
que pese sua importância crítica em relação aos postulados liberais da demo-
cracia constitucionalista. A intenção não foi outra senão manter o foco da
investigação na sugestão de que as teorias de Rawls e de Dworkin proporcio-
nam a metodologia mais coerente para uma interpretação constitucional no
que diz respeito, especificamente, ao tema do aborto. Ademais, as principais
obras dos citados autores, utilizadas no trabalho, foram suas obras finais,
Justiça para Ouriços (DWORKIN) e Liberalismo Político (RAWLS), as
quais já incorporaram em seus argumentos uma resposta às críticas comuni-
taristas. No caso do Liberalismo Político, sobretudo, Rawls, recepcionando
as objeções apresentadas à sua doutrina inicial, empreendeu uma reformula-
ção de sua “teoria da justiça”, aperfeiçoando o perfil igualitário de sua con-
cepção de justiça8.

americano por meio da cláusula do devido processo legal, e sua inserção nos padrões de
análise da judicial review, confira-se as lições de BARROSO, Luís Roberto. Curso de
direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do
novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 255-261; MARTEL, Letícia de Campos Ve-
lho. Devido processo legal substantivo: razão abstrata, função e características de
aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 354-374; OMMATI, José Emílio
Medauar. Liberdade de expressão e discurso de ódio na Constituição de 1988. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 121-129.
7
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 250-2.
8
Conforme GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve
manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 223-5.
20 Teresinha Inês Teles Pires

Na busca de uma interpretação holística dos princípios da liberdade


e da igualdade, serão aprofundados os vários significados da dignidade hu-
mana e da autonomia procriativa, em sua interligação com a dimensão da
igualdade de gênero. A única maneira de enfrentar, com seriedade, os para-
doxos da proibição do aborto consiste em estruturar uma definição constitu-
cional sobre os limites da dignidade do nascituro. É premente que se estabe-
leça, na esfera política e jurisdicional, um paradigma interpretativo para tra-
çar uma linha divisória entre a prevalência da dignidade moral da mulher ou
da dignidade moral do feto. Tentar-se-á dialogar com a vertente que defende
a atribuição de personalidade ao nascituro com apoio no direito à vida, atual-
mente em crescimento no ambiente acadêmico e político. Como será mos-
trado, os principais postulados de tal corrente não repousam em nenhuma
categoria constitucional, genérica ou específica, de direitos fundamentais.
Os limites da tutela jurídica da vida fetal devem ser configurados
tomando-se por contraponto a concretização da cidadania da mulher na esfe-
ra reprodutiva. Nesse particular, a investigação sobre os contornos do direito
ao aborto não poderia deixar de fora a vertente feminista, que defende a su-
premacia do princípio da igualdade de gênero na afirmação da autonomia
procriativa. Será dedicada uma seção ao estudo da vertente em questão, as-
sumindo-se ser inegável que o controle do Estado sobre a reprodução produz
discriminação e desigualdade sexual no que diz respeito às oportunidades de
se ter uma vida boa. Todavia, a análise terá um viés crítico, porque não se
chegou a um convencimento quanto à suficiência das premissas da teoria
feminista, em termos constitucionais, para a fundamentação do direito ao
aborto9.
De outro lado, o trabalho proporá que as cláusulas da liberdade de
consciência e de religião devem ser objeto de uma atenção maior no debate
sobre o aborto. O objetivo perseguido é mostrar que os demais princípios
constitucionais, como os da liberdade e da igualdade, em sentido genérico,
da privacidade, da integridade corporal e do planejamento familiar, não sus-
tentam uma resposta completa para justificar o direito da mulher à autono-
mia procriativa, considerando a invocação, naturalmente inserida no debate,
dos interesses do nascituro. A liberdade de consciência contém em si o signi-
9
Sobre o assunto, consulte-se MACKINNON, Catharine A. Reflexions on sex equality
under law, 100 Yale Law Journal, Mar. 1991, passim; JOHNSEN, Dawn E. The creation
of fetus rights: conflicts with women’s constitutional rights to liberty, privacy and equal
protection. 95 Yale Law Journal, January 1986, passim; SIEGEL, Reva B. Equality and
choice: sex equality perspectives on reproductive rights. In: the Work of Ruth Bader
Ginsburg. 25 Colum. J. Gender & L. 63-80 (2013), passim.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 21

ficado da independência ética e moral em relação aos assuntos que não con-
figuram questão política a enquadrar-se nos interesses públicos passíveis de
tutela. A introdução dos requisitos do Estado laico é imprescindível para
uma melhor conceituação da categoria da liberdade de consciência e para sua
vinculação ao direito ao aborto, o que será afirmado em todo o estudo en-
quanto padrão central de análise de sua constitucionalidade.
Far-se-á uma recomposição da tese de Dworkin de que o funda-
mento último para a defesa do direito à interrupção voluntária da gestação se
encontra na garantia da liberdade religiosa, sendo que esta tem por raiz o
conceito genérico de liberdade de consciência. A ideia veiculada pelo autor
parte da compreensão de que o valor da vida pré-natal, nos estágios incipien-
tes do seu desenvolvimento, é intrinsecamente uma concepção de natureza
ética, se inserindo, portanto, no espaço da autonomia da consciência indivi-
dual. A moldura da dimensão do sagrado, das questões existenciais substan-
cialmente caracterizadas pela busca de respostas fundamentais que atribuam
sentido à vida humana, deve ser derivada de conceitos morais prévios, que
possam ser traduzidos para a linguagem jurídica. É preciso perceber que o
termo “religião” apresenta um conteúdo abrangente, no qual estão incluídas
não apenas as doutrinas religiosas, mas também as convicções de natureza
laica, esquema esse cuja essência está incorporada à resposta dada por
Dworkin ao problema do aborto.
Em parte destacada, será empreendida uma análise sobre a opera-
cionalidade do sistema norte-americano no que concerne à proteção das li-
berdades individuais básicas e, particularmente, em relação à constituciona-
lidade do direito ao aborto. É importante esclarecer que não se intenciona,
como escopo principal, realizar um estudo de direito comparado, daí porque
se reputou mais apropriado não expor ou discutir os fundamentos específicos
da legalização do aborto nos diversos países em que sua prática é aceita.
Tem-se por pressuposto a evidência de uma tendência crescente em direção
ao reconhecimento desse direito, em todo o mundo, com suporte na liberda-
de de escolha, cada vez mais aperfeiçoada em face da evolução internacional
dos direitos reprodutivos, e na garantia da saúde da mulher10.

10
Uma boa síntese sobre a regulamentação do aborto nos países europeus e latino-
-americanos é apresentada por SARMENTO, Daniel. Legalização do aborto e Consti-
tuição, 2012. Disponível em: <www.daniel sarmento.com.br/contentemente/uplotes/2012/
09/Legalização-do-Aborto-versão-final.pdf>. Acesso em: 24 mar. 2012. Destaquem-se os
seguintes países: a) na França o aborto foi legalizado em 1975 através de ato do poder le-
gislativo, tendo o Conselho Constitucional reconhecido, em seguida, a “compatibilidade
da norma” com a Constituição do país. Em 2001 uma nova lei aumentou o prazo de 10 pa-
ra 12 semanas para a admissibilidade da conduta; b) na Itália, a Corte declarou, em 1975,
22 Teresinha Inês Teles Pires

A razão pela escolha metodológica de se detalhar, minuciosamente,


a abordagem constitucional do direito ao aborto no sistema jurisdicional
norte-americano, no lugar de percorrer os fundamentos de sua legalização ao
redor do mundo, reside na circunstância inegável de que em nenhum outro
país a ênfase no exercício da função interpretativa do direito se edificou com
tamanha solidez e consistência. Trata-se de uma perspectiva que se coaduna
com o conceito do direito na forma defendida por Rawls e Dworkin. Por
outro lado, o aperfeiçoamento da categoria da autonomia procriativa, no
contexto constitucional estadunidense, por meio do julgamento dos casos a
serem analisados, foi o resultado de um constructo gradual, capaz de auxiliar
o desenvolvimento da matéria em outros países.
Como é do conhecimento geral, o direito nos Estados Unidos ali-
cerça-se, desde os seus primórdios, na primazia da Constituição sobre os
poderes do Parlamento, sendo referência originária e inabalável em qualquer
tipo de compreensão da teoria do constitucionalismo e do controle de consti-
tucionalidade das leis. Levando-se em conta a tradição do sistema da com-
mon law, sedimentado na doutrina dos precedentes e no pragmatismo jurídi-
co, a elaboração do direito constitucional do país desenvolveu-se não tanto
pelo trabalho doutrinário, e sim pela atividade judicante dos tribunais, em

a inconstitucionalidade da punibilidade do aborto, e, em 1978, o legislador editou norma


regulamentando sua prática em conformidade com a referida decisão judicial, permitindo-
-a nos primeiros 90 dias de gravidez; c) na Alemanha, caso mais complexo, uma lei de
1974 descriminalizou o aborto até 12 semanas, mas o Tribunal Constitucional a declarou,
em 1975, inconstitucional (caso Aborto I), alterando-se a legislação. Com a unificação do
país (ocidental e oriental), editou-se outra lei, em 1992, que permitiu o aborto até 12 sema-
nas. Em nova decisão (1993), o Tribunal voltou a considerar inconstitucional o aborto, de-
terminando, contudo, que sua prática não precisava ser punida criminalmente, e sim evitada
por meio de medidas assistenciais e administrativas destinadas a convencer a mulher a ter o
filho (caso Aborto II). Por fim, norma editada em 1995 descriminalizou o aborto até 12 se-
manas, desde que a mulher fosse submetida a um serviço de aconselhamento; d) na Espanha,
o aborto é permitido a qualquer tempo, desde 1985, para proteger a vida e a saúde física ou
psíquica da gestante. Dada a ampla proteção de sua saúde psíquica, vem prevalecendo no pa-
ís uma visão elástica que estende as possibilidades de garantia do acesso ao aborto (Idem, p.
11-24); e) em Portugal, o aborto foi legalizado até 10 semanas de gestação, por um referen-
dum realizado em 2007, cujos parâmetros foram incorporados a uma lei editada no mesmo
ano. Na América Latina o aborto voluntário, em quaisquer circunstâncias, é permitido so-
mente: f) em Cuba, desde 1965; g) na cidade do México até 12 semanas, por meio de lei dis-
trital de 2007 (Disponível em: <https://www.guttmacher.org/pubs/journals/3411008.html>);
e h) no Uruguai, até 12 semanas, por lei federal de 2012 (Disponível em: <http://www.
hrw.org/news/2012/10/26/ uruguay-new-abortion-law-breaks-ground-women-s-rights>); e i)
por decisão recentíssima, no Chile, onde a Câmara dos Deputados descriminalizou, em
17.03.2016, a prática do aborto nas hipóteses de risco de vida para a mãe, de estupro e de
inviabilidade fetal (Conforme matéria. Disponível em: <http://m.huffpost.com/br/
entry/9497044>.). Sobre a “legalidade do aborto no mundo”, em uma visão mais panorâ-
mica, confira-se, ainda, FAÚNDES, Aníbal; BARZELATTO, José. O drama do aborto:
em busca de um consenso. São Paulo: Komedi, 2004. p. 187-191.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 23

especial da Suprema Corte11. Ademais, foi nos Estados Unidos que se de-
senvolveu o significado do princípio da razoabilidade na qualidade de um
método autônomo de interpretação jurídica, sendo essa a visão que será ado-
tada na leitura da Constituição do Brasil no que possuir pertinência ao tema
do aborto.
A solidificação da jurisdição constitucional nos Estados Unidos foi
estabelecida no julgamento do caso Marbury v. Madison, no ano de 1803, no
qual se afirmou que a Suprema Corte Federal tem o poder de declarar a nuli-
dade de uma lei que contrarie uma norma constitucional. O precedente lan-
çou as bases para se retirar do poder legislativo o protagonismo na delimita-
ção do juízo último de validade dos seus atos. A afirmação do poder judicial
de revisão das leis fundamentou-se na sobreposição da Constituição em rela-
ção às leis ordinárias incompatíveis com os seus preceitos12.
Os padrões de julgamento estabelecidos pelas cortes judiciais norte-
-americanas, na busca de uma solução para a questão do aborto, são utilizados
em uma dinâmica estruturada nos chamados “testes” de constitucionalidade,
segundo os quais é possível definir critérios para decidir o que é o direito em
cada caso concreto, em consideração ao parâmetro da razoabilidade das políticas
legislativas. Tais “testes” partem do significado, procedimental e substantivo,
das cláusulas de direitos fundamentais. Ver-se-á, no estudo dos casos pertinen-
tes, como esses testes são efetivados na prática jurisdicional e como são edifica-
dos em um sistema unitário por meio da teoria dos precedentes13.

11
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os concei-
tos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 43-4. Ver,
também, MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral: co-
mentários aos arts. 1º e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil: doutrina e
jurisprudência. Coleção Temas Jurídicos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 1. Sobre a
common law, A. Ribeiro Mendes, ao traduzir a obra de HART, Herbert L. A. O conceito
de direito. 2. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. p.
112, esclarece, em nota explicativa, que se trata de uma expressão cuja tradução não é
possível. Common law, para o autor, “significa aquela parte do direito da Inglaterra que
foi formulada e desenvolvida pelos antigos tribunais régios, a partir do século XIII, base-
ada originariamente nos costumes gerais do Reino (direito não escrito)”.
12
Marbury v. Madison, 1 Cranch 137, 1803, 176-179. Como ressalta FERREIRA FILHO,
Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.
73 e 75, esta decisão é considerada fonte originária do conceito de controle de constitucio-
nalidade, tendo gerado, à época, intensa reação por parte dos juristas europeus, que se mos-
traram hostis ao novo sistema implementado nos Estados Unidos. Sobre o caso Marbury v.
Madison, confira-se, ainda, ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fun-
damentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 349-350; GODOY, Arnaldo Sampaio
de Moraes. Direito nos Estados Unidos. Barueri: Manole, 2004. p. 64-66.
13
Em linhas gerais, a expressão “teste de validade” deriva da concepção tradicional do
direito anglo-saxão, estando incorporada até mesmo à linguagem dos autores positivistas.
24 Teresinha Inês Teles Pires

O impacto resultante do desenvolvimento do constitucionalismo,


na vertente em questão, acarretou mudanças positivas nos países que seguem
o sistema da civil law, como o Brasil, no que se refere à moldura do poder
jurisdicional de controlar a constitucionalidade das leis. No que pese a dis-
tância temporal entre a Constituição Americana e a Constituição Brasileira14,
ambas possuem um perfil assemelhado, na parte relacionada aos direitos
fundamentais individuais. Assim, o estudo da prática judicial nos Estados
Unidos contribui para delinear os contornos da legitimidade da atuação do
Supremo Tribunal Federal, no nosso sistema.
Ao longo da história, o Brasil vem mitigando o tradicional sistema
da civil law, recepcionado no início do império português, na tentativa de
construir, no contexto do julgamento dos casos concretos, um modelo inter-
pretativo sustentado na ideia de primazia da Constituição em relação às re-
gras jurídicas infraconstitucionais. A introdução do controle concentrado
(direto) de constitucionalidade no ano de 1965, por meio de Emenda à Cons-
tiuição de 1946, possibilitou o decreto de nulidade das leis, com efeitos erga
omnes e vinculantes para os demais tribunais e juízes e para as autoridades
administrativas. A Constituição vigente adota o princípio da “justicialidade”
(art. 5º, inc. XXXV), que tem sua raiz no sistema da rule of law, caracteriza-
do pela submissão da discricionariedade dos atos promulgados pelas autori-
dades políticas ao poder decisório dos juízes em matérias que envolvam
lesão a direitos individuais15. Além disso, a cláusula do devido processo

Ver, sobre o assunto, HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 2. ed. Tradução de A.


Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. p. 116 e 126.
14
A Constituição dos Estados Unidos é a mais antiga do mundo, tendo sido escrita em 1789.
As dez primeiras Emendas foram ratificadas em 1791, e adicionadas ao texto constitucio-
nal sob a denominação de “Bill of Rights”. A XI Emenda foi adicionada em 1795, a XII
em 1804, a XIII em 1865, a XIV em 1868, a XV em 1870, e as demais já no século XX. A
Constituição possui, atualmente, um total de 27 Emendas. Tais informações estão dispo-
níveis em: <http://teachingamericanhistory.org>. Ver, também, GODOY, Arnaldo Sam-
paio de Moraes. Direito nos Estados Unidos. Barueri: Manole, 2004. p. 81-2. Nos capí-
tulos próprios, serão estudadas a fundo a I Emenda e a XIV Emenda, fazendo-se menção,
ainda, em alguns trechos, à IV Emenda e à V Emenda, por serem aquelas que se relacio-
nam diretamente com a composição de uma interpretação analítica e satisfatória para a in-
clusão do direito ao aborto no sistema constitucional do país.
15
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 1999. p. 113, 115, 124 e 126. No mesmo sentido, ver ABBOUD, Georges.
Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012. p. 350-3, que defende a importância do aperfeiçoamento, no Brasil, da judicial revi-
ew. A judicial review, segundo o autor, é o que atribui efetividade plena ao direito de
acesso à justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, como um direito
fundamental. No tocante às distintas tendências prevalentes nas constituições anteriores
quanto à receptividade do controle judicial dos atos governamentais, ver, ainda, HOR-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 25

legal foi, pela primeira vez, explicitamente incluída na Constituição (art. 5º,
LIV), indicando-se, claramente, por influência do direito norte-americano,
uma abertura ao acolhimento do seu estatuto substantivo.
Nos Estados Unidos, há uma história de mais de quarenta anos de
debate legislativo e jurisdicional sobre o aborto, adensado no ano de 1973,
quando a conduta foi legalizada pela Suprema Corte no julgamento do caso
Roe v. Wade16, à luz do direito à privacidade enquanto uma derivação da
cláusula do devido processo legal em seu caráter substantivo. A análise dos
casos pertinentes ao direito à contracepção e ao aborto oferece oportunidade
ímpar de adensamento da teoria do devido processo legal substantivo, e,
particularmente, de sua aplicabilidade à proteção da autonomia procriativa.
Entretanto, a partir da década de 1980, algumas modificações foram imple-
mentadas no país por leis federais e estaduais, e endossadas pela Suprema
Corte com base em novos testes de constitucionalidade, acarretando lamen-
tável restrição ao efetivo acesso das mulheres ao procedimento abortivo17.
Como será proposto, ainda, na esteira de Ronald Dworkin, é perti-
nente invocar, na análise constitucional do tema, no contexto norte-
americano, o envolvimento das cláusulas da liberdade religiosa, cujo conteú-
do impõe a delimitação da incidência dos princípios da neutralidade do Esta-
do e do secularismo. O que significa neutralidade do ponto de vista da rela-

BACH, Carlos Bastide. Controle Judicial da Atividade Política: as Questões Políticas e os


Atos de Governo. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 46, n. 182, abr./jun.
2009, passim. Por fim, sobre a doutrina dos precedentes, recomenda-se, igualmente, a lei-
tura dos seguintes ensaios: FAIS, Juliana Marteli; SILVA, Leda Maria Messias da. Com-
mon law em relação ao direito brasileiro. In: Iniciação Científica (CESUMAR), v. 08, n.
01, p. 25-34, jan./jun. 2006; SOARES, Guido Fernando Silva. Estudos de direito com-
parado (i): o que é a common law, em particular a dos EUA. 1997. Disponível em:
<www.revistas.usp.br/rfdusp/article/ download/67360/69970>. Acesso em 16 set. 2014; e
CASTRO, Guilherme Fortes Monteiro de; GONÇALVES, Eduardo da Silva. A aplicação
da common law no Brasil: diferenças e afinidades. 2012. Disponível em: <www.
gov.ufsc.br/portal/categoria/tipo/artigo>. Acesso em: 16 set. 2014.
16
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013.
17
Informe-se que se teve a oportunidade de realizar um estudo sobre a legislação e a juris-
prudência da Suprema Corte do país, em relação à matéria, durante o período de agos-
to/2013 a julho/2014, tempo em que foi possível participar de programa de pesquisa pe-
rante a American University Washington College of Law, na qualidade de Visiting Scho-
lar. A base de dados foi colhida no endereço: <www.supremecourt.gov>. Foi possível,
ainda, utilizar os recursos encontrados no site: <www.lawschool.westlaw.com>, disponi-
bilizados aos visitantes internacionais para pesquisa de artigos, leis e decisões judiciais de
todas as cortes, federais e distritais. Para a busca dos Atos legislativos utilizou-se, tam-
bém, os seguintes locais: <https://www. govtrack.us/congress/ bills/108/s3> e <http://
www.loc.gov/law/>, o segundo por meio do portal Law Library of Congress.
26 Teresinha Inês Teles Pires

ção entre o pensamento religioso e o sistema jurídico? A pergunta remete


diretamente à histórica proibição, no país, do estabelecimento público de
uma religião específica e da redução indevida do direito ao livre exercício da
consciência religiosa. Ver-se-á que um estudo criterioso sobre a evolução de
tais garantias é salutar para se demonstrar que a maior parte das restrições
legislativas mais recentes à prática do aborto importam em violação ao signi-
ficado amplo da liberdade religiosa.
Após esse percurso de investigação teórica e prática, na esfera in-
ternacional, partir-se-á para a análise, no sistema brasileiro, dos princípios
abstratos da dignidade, da liberdade, com enfoque na cláusula do devido
processo legal, e da igualdade. Sabe-se que tais princípios adquiriram status
privilegiado na Constituição de 1988, o que permite uma interpretação segu-
ra que indique a extensão do seu conteúdo material à garantia dos direitos
reprodutivos. Ademais, um pormenorizado estudo doutrinário será feito so-
bre a cláusula da liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), sobretu-
do, em sua acepção laica, e da cláusula que veda o estabelecimento público
da religião (art. 19, I), a fim de comprovar sua centralidade na definição dos
requisitos da dignidade humana e na estruturação da constitucionalidade do
direito ao aborto.
A concepção de uma democracia constitucionalista, à luz do que
ensinam os referenciais teóricos adotados, pode ser posta na base da configu-
ração, na nossa Constituição, das cláusulas do devido processo legal, da
igual proteção perante a lei, e de determinadas liberdades expressamente
previstas ou implicitamente envolvidas nos preceitos enumerados. Qual o
nível de extensão da judicial review, na análise da questão do aborto, é pas-
sível de aceitabilidade institucional em nosso país, em face das característi-
cas do sistema da civil law? Qual a moldura dos direitos positivados, no tex-
to constitucional, deve ser delineada para uma correta avaliação interpretati-
va da legitimidade das políticas legislativas? A Constituição de 1988 atribui
proeminência aos preceitos fundamentais enumerados, sendo que os mais
abstratos exigem o desenvolvimento, na esfera da prática jurídica, de padrões
de análise, mediante os quais a norma-princípio, formalmente enunciada, pos-
sa ser conectada e aplicada aos direitos materiais envolvidos nas demandas
sociais. Além disto, o § 2º do art. 5º da Constituição confere autoridade às
cortes judiciais, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, para a deriva-
ção de direitos fundamentais não expressos a partir de uma interpretação
integrativa18.
18
Nas palavras de BRANCO, Paulo Augusto Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos
fundamentais. In: Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Instituto Bra-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 27

No Brasil, a prática política, na esfera legislativa, vem afirmando,


desde a vigência do nosso Código Penal, a impossibilidade da descriminali-
zação do aborto em face da garantia do direito à vida, previsto no caput do
art. 5º da Constituição Federal, e da limitação estabelecida no seu art. 60, §
4º, inc. IV, que confere aos direitos individuais a qualidade de cláusulas
pétreas. Tentar-se-á demonstrar que a inviolabilidade do direito à vida não se
aplica à proteção do nascituro, o que se depreende do próprio texto ex-
presso do art. 5º, anteriormente mencionado. A leitura deste dispositivo,
em relação ao tema do aborto, exige concretização jurisdicional, cujo
aperfeiçoamento impõe a aplicação do princípio da dignidade de forma
bilateral, com a definição de uma consideração constitucional do valor da
vida pré-natal e, no mesmo passo, da autonomia procriativa da mulher. E
isso, com o envolvimento do significado da liberdade de consciência,
sede da capacidade de escolha nos assuntos de caráter ético, sob o enfo-
que do paradigma da laicidade.
Serão pontuados, ainda, alguns dispositivos da lei de planeja-
mento familiar19, instrumento essencial na garantia do controle individual
sobre a vida reprodutiva e da assistência integral à saúde da mulher.
Acredita-se que a proteção conquistada por meio desta lei se entrelaça
com a defesa de uma justificação do direito ao aborto em uma abordagem
sistêmico-constitucional.
Em relação à luta feminina pelo reconhecimento do direito ao abor-
to no Brasil, não há material significativo a ser colhido nos debates legislati-
vos, do ponto de vista do desenvolvimento de padrões de interpretação cons-
titucional aplicáveis ao caso. Os projetos de lei mais importantes, que propu-
seram a reformulação das normas punitivas da prática do aborto, foram, em

siliense de Direito Público-IDP, 2ª tir. São Paulo: Brasília Jurídica, 2002. p. 160-1, “o pa-
rágrafo em questão dá ensejo a que se afirme que se adotou um sistema aberto de direitos
fundamentais no Brasil, não se podendo considerar taxativa a enumeração dos dire i-
tos fundamentais no Título II da Constituição”. [...] “Direitos não rotulados expres-
samente como fundamentais no título próprio da Constituição podem ser como tal
considerados, a depender da análise do seu objeto e dos princípios adotados pela
Constituição. A sua fundamentalidade decorreria da sua referência a posições jur í-
dicas ligadas ao valor da dignidade humana, que, por sua importância, não podem
ser deixadas à disponibilidade absoluta do legislador ordinário ”. Sobre a originali-
dade da Constituição vigente, no que concerne à proeminência das “liberdades públi-
cas” e ao caráter exemplificativo, não taxativo, da carta de princípios fundamentais,
consulte-se FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamen-
tais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 97-100.
19
BRASIL. Presidência da República. Lei 9.263, de 12.01.1966. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm>. Acesso em: 23 jul. 2014.
28 Teresinha Inês Teles Pires

sua maioria, arquivados antes de chegar à votação do Congresso Nacional.


Alguns foram discutidos e rejeitados, sempre com espeque no direito à vida.
Atualmente, existem, inclusive, novas frentes políticas que combatem a de-
manda pela descriminalização do aborto e propõem o acolhimento da doutri-
na da personalidade jurídica do nascituro20.
É notável que o aprofundamento, por parte do poder legislativo
brasileiro, das categorias fundamentais constitucionais, em relação ao aborto,
é obstaculizado pela influência das frentes religiosas que se organizam, fer-
renhamente, em prol da defesa do direito à vida nascitura. Tratam-se de gru-
pos políticos que, ao se unirem entre si, alcançam percentual significativo de
parlamentares, e conseguem, devido a tal grau de representatividade política,
barrar o progresso e a aprovação de quaisquer projetos favoráveis à amplia-
ção das hipóteses permissivas do direito ao aborto. É uma situação que evi-
dencia, de forma inequívoca, a hegemonia das doutrinas religiosas majoritá-
rias no cenário político brasileiro21.
Sendo assim, diante da inexistência de um debate sólido e abran-
gente, que utilize uma argumentação mais propriamente jurídica, não religio-
sa, perante o Congresso Nacional, no encaminhamento do tema, decidiu-se
por não dedicar um capítulo para tratar de sua história legislativa, o que não
traria nenhum acréscimo à abordagem que se pretende desenvolver na obra.
Não se quer dizer que não se vá pincelar alguns dispositivos constantes dos
mencionados projetos, a fim de elucidar aspectos que estejam conectados aos
objetivos do trabalho.
Na etapa final, demonstrar-se-á que o Supremo Tribunal Federal
abriu o caminho para a modificação dos artigos do Código Penal que tipifi-
cam a interrupção voluntária da gestação desde o momento da concepção.
Será feito um estudo pormenorizado da ADIn 3.510/DF e da ADPF 54/DF22.
20
Na parte da obra em que se irá tratar do direito à vida na Constituição Federal de 1988,
será apresentado um breve relato sobre os principais projetos relacionados ao assunto, já
arquivados ou em andamento no Congresso Nacional.
21
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Direitos humanos e liberdade religiosa: os domínios
recalcitrantes do direito internacional: as tensões entre as diversidades religiosas e o pro-
cesso de internacionalização dos direitos humanos. Brasília: Senado Federal, 2014. v. 205,
p. 129-132 e 261-2.
22
A primeira (ADIn 3510/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. em 29.05.2008) considerou consti-
tucional a Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança), que permitiu a utilização de células-
tronco nas pesquisas científicas, e a segunda (ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j.
em 12.04.2012) declarou inconstitucional a proibição da antecipação terapêutica do parto
em caso de feto portador de anomalia grave. Os dois julgamentos estão disponíveis, na ín-
tegra, na página do Supremo Tribunal Federal: <www.stf.jus.br>.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 29

O julgamento da ADIn 3.510 contém, em seus fundamentos, o entendimento


de que a proteção constitucional da vida humana não se estabelece a partir
do momento da fertilização do óvulo. Nesse sentido, a decisão proferida no
caso deve colocar-se na qualidade de um fio condutor para a interpretação
futura do direito à vida pré-natal, no que diz respeito à ampliação das hipóte-
ses do aborto legal. O julgamento da ADPF 54 sedimentou uma interpretação
evolutiva dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, introduzin-
do teses inovadoras no que diz respeito à liberdade de escolha e à integridade
moral e psíquica da mulher, embora não de maneira suficiente para a tratativa
do tema do aborto como um todo. Foi enfatizada a aplicabilidade do princípio
da dignidade humana às decisões individuais relativas ao planejamento repro-
dutivo. A cláusula da liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º, inc. VI)
foi discutida nas audiências públicas que precederam o julgamento e utilizada
nos votos dos ministros que acompanharam a opinião majoritária.
O presente texto está dividido em três partes, cada uma composta
por dois ou três capítulos, entendendo-se que tal distribuição facilitou a or-
ganização dos amplos aspectos a serem discutidos. Para auxiliar a compreen-
são do leitor, esclareça-se o seguinte:
a) na primeira parte, apresentam-se dois capítulos (1 e 2), cujo ob-
jeto de estudo relaciona-se à concepção de democracia de John
Rawls e Ronald Dworkin, à doutrina do pluralismo moral e po-
lítico e aos princípios constitucionais da dignidade humana, da
liberdade e da igualdade;
b) na segunda parte, analisa-se, ao longo de três capítulos (3, 4 e
5), o percurso normativo de proteção do direito ao aborto nos
Estados Unidos da América desde os anos de 1970 até os dias
atuais;
c) na terceira parte, tenta-se postular, também em três capítulos (6,
7 e 8), a aplicabilidade das conclusões obtidas nos capítulos an-
teriores à possível legalização do aborto voluntário no sistema
brasileiro, partindo-se do estudo da nossa carta de direitos fun-
damentais e da atuação do Supremo Tribunal Federal no julga-
mento da ADIn 3.510 e da ADPF 54.
Esclareça-se que a escrita do texto envolve grande preocupação
com a interligação entre os argumentos avançados, bem como os pressupos-
tos que lhes serviram de fundamentos, a fim de não causar a impressão de se
estar criando uma organização desconectada, de partes e capítulos, no que
concerne aos propósitos e objetivos da pesquisa. Assim, a apresentação de
conclusões parciais, ao final de cada capítulo, permite introduzir uma noção
30 Teresinha Inês Teles Pires

de continuidade, e, sobretudo, explicitar, com maior clareza, o desencadea-


mento das ideias e perspectivas defendidas. A hipótese da tese não é exposta
em um único capítulo, e sim articulada nas linhas e entrelinhas da totalidade
do trabalho, acreditando-se que sua demonstração será alcançada de maneira
integrativa, cujo fechamento pode ser extraído do somatório das conclusões
parciais e das considerações finais. Quanto à última, teve-se por meta mos-
trar o resultado da proposta de se formular, na concretização do direito ao
aborto, uma visão unitária que reúna em si a abordagem da teoria do direito,
em dimensão universal, e do sistema normativo brasileiro, em especial, em
sua intersecção com a produção interpretativa do poder judiciário.
Espera-se conseguir, assim, produzir uma leitura acadêmica sobre a
questão investigada, construída ao longo de quatro anos de pesquisa, em uma
fundamentação dotada de coerência sistêmica, sem perder de vista que o
tema do aborto envolve uma ampla ramificação de conceitos e valores caros
à sociedade e à organização jurídica do Estado. Não é a curto prazo que se
estabelece um sólido regime de respeito às liberdades fundamentais, particu-
larmente, quando se trata de um direito que desafia concepções morais acen-
tuadamente majoritárias.
A escolha por uma metodologia centrada no princípio da razoabili-
dade e na aplicação evolutiva dos testes de constitucionalidade das leis in-
tenciona comprovar a hipótese de que o Brasil pode aperfeiçoar seu sistema
institucional, político e jurídico de proteção aos direitos reprodutivos por
intermédio de um simples olhar mais profundo para o que diz a Constituição.
Sem desprestigiar a participação significativa das normas de direitos huma-
nos internacionais23, faz-se necessário, acima de tudo, levar a sério a Consti-
tuição e os poderes que ela confere às autoridades que a interpretam, bem
como à sociedade como um todo, em matéria de garantia do exercício da
cidadania.

23
Serão explicitadas, nas ocasiões oportunas, as principais regras contidas nos tratados
internacionais de direitos humanos, ratificados pelo governo brasileiro, em relação à im-
plementação do direito das mulheres ao planejamento procriativo, bem como em relação à
tutela da vida pré-natal. Para um aprofundamento acerca do estatuto normativo dos direi-
tos humanos na definição do conteúdo dos preceitos fundamentais consulte-se OLIVEIRA,
James Eduardo. Constituição Federal anotada e comentada: doutrina e jurisprudência,
2013, p. 331-3; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional In-
ternacional, 2007. p. 255-265.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 31

PARTE I
ABORTO E DEMOCRACIA: COMO INTEGRAR
PRINCÍPIOS MORAIS E POLÍTICOS AO SIGNIFICADO
CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA
32 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 33

Capítulo 1

O DIREITO AO ABORTO À LUZ DA


CONCEPÇÃO DE DEMOCRACIA DE
RONALD DWORKIN E
DE JOHN RAWLS

O desafio a ser encampado, no presente capítulo, é tentar mos-


trar que os modelos concebidos por John Rawls e Ronald Dworkin de um
regime constitucional-democrático apresentam congruência sob a pers-
pectiva da argumentação moral, política e jurídica aplicável à análise do
direito ao aborto. Os dois autores adotam conceitos distintos para funda-
mentar a validade objetiva dos juízos de valor. Rawls afirma que as vi-
sões morais que se mostrarem razoáveis devem ser aceitas por toda a
comunidade política. Dworkin defende a possibilidade da busca da ve r-
dade das proposições morais como critério de validade das decisões de
moralidade política. Mas, como se verá, o parâmetro da razoabilidade das
visões morais abrangentes e a tese da verdade moral não se contrapõem e
até se complementam. Pretende-se situar o debate sobre a admissibilidade
moral do aborto, tomando por referência a conjugação entre as principais
teses do pluralismo moral e político de Rawls e o conceito de Dworkin de
independência ética. No mesmo passo, ao final do capítulo, serão apre-
sentados argumentos favoráveis ao exercício da função jurisdicional na
proteção do direito ao aborto, em uma estrutura que delimite, adequada-
mente, a legitimidade da premissa majoritária e a supremacia das liberda-
des fundamentais.
34 Teresinha Inês Teles Pires

1.1 SITUANDO O TEMA DO ABORTO NAS ESFERAS DA


ÉTICA, DA MORAL E DA POLÍTICA: UMA TENSÃO
ENTRE A LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E OS
DEVERES MORAIS

É necessário expor, como ponto de partida, os conceitos que


Dworkin formula de independência ética, moralidade pessoal e moralidade
política, e sua intersecção com o princípio maior da dignidade humana. En-
tende-se que essa base argumentativa tornará possível afirmar a similaridade
da teoria do autor com a concepção de justiça política de Rawls e sua defesa
do pluralismo moral razoável, o que também será estudado na presente se-
ção. Pretende-se demonstrar que os dois padrões de análise, o da objetivida-
de moral (DWORKIN) e o da razoabilidade das concepções de bem
(RAWLS) permitem incorporar o direito ao aborto, por decisão da mulher,
às esferas protegidas pelas liberdades morais básicas.
Dworkin concebe o princípio da dignidade enquanto uma categoria
interpretativa por meio da qual se torna possível articular sua tese da “unida-
de do valor”. Essa unidade promove a integração entre a ética e os dois âm-
bitos da obrigação moral, o pessoal e o político. Em tese, a ética representa a
esfera de livre decisão individual daquilo que constitui uma boa vida. A mo-
ralidade pessoal, ao contrário, envolve os deveres que cada um possui em rela-
ção ao bem-estar dos demais membros de sua comunidade. E a moralidade
política delimita as obrigações que a sociedade organizada pode impor aos
cidadãos, restringindo, assim, o exercício de sua autonomia deliberativa. Na
realidade, existe uma interação entre as três esferas da moralidade, sendo que o
conteúdo de uma delas não é determinável sem os limites impostos pelas ou-
tras. Da mesma forma em que a ética funciona como guia para a definição dos
deveres morais, pessoais e políticos, a moral e a política funcionam, igualmen-
te, como guias para a interpretação do significado da vida ética24.

24
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 1 e 193. É importante esclarecer que, em obra anterior, DWORKIN,
Ronald. Principles for a new political debate - is democracy possible here? Princeton/
Oxford: Princeton University Press, 2006. p. 9-10, Dworkin define a dignidade a partir
dos princípios do valor intrínseco da vida e da responsabilidade pessoal. O primeiro prin-
cípio sustenta que “toda vida humana” (“every human life”) tem uma espécie de “valor
objetivo” (“ojective value‖) e deve, em tese, ser vivida de maneira exitosa. O segundo
princípio sustenta que cada indivíduo é responsável por seu próprio bem-estar, de acordo
com seu próprio conceito de felicidade. No entanto, na obra DWORKIN, Ronald. Justice
for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press, 2011. p. 210-11,
Dworkin reconstrói o significado moral da dignidade, a fim de elaborar sua tese da unida-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 35

Na última formulação de Dworkin sobre a dignidade humana, a


unidade do valor se consubstancia nos requisitos do “respeito próprio”
(“self-respect”) e da “autenticidade” (“authenticity”). O primeiro exige que
cada um leve a sério sua responsabilidade de assegurar para si mesmo uma
boa vida, e o segundo acrescenta a tal exigência o compromisso do indivíduo
de preservar a coerência de suas escolhas com o seu próprio caráter ou modo
de vida. Por outro lado, o “respeito próprio” inclui o respeito pela vida de
todos os seres humanos, contendo em si as implicações, no âmbito da inde-
pendência ética, das obrigações morais que temos para com a humanidade
como um todo25.
Não se pode perder o foco na precedência que Dworkin confere ao
princípio da igual consideração na estrutura do seu pensamento moral e polí-
tico. A categoria da igualdade é central no pensamento de Dworkin, como
um todo. O reconhecimento dos direitos de liberdade é necessário por se
tratar de uma exigência do direito à igual consideração26. Nesse sentido, a
passagem da esfera da ética e da moralidade pessoal para a esfera da morali-
dade política é conceptualmente sedimentada através da análise das obriga-
ções morais do indivíduo para com os interesses dos outros na dimensão
coletiva, ou seja, no que se refere às suas obrigações políticas.
A doutrina da verdade na moral e na política se completa com a pos-
tulação da inexistência de um conflito interpretativo entre os princípios da
liberdade e da igualdade. A ação política do Estado, ao impor restrições às
liberdades básicas, se justifica na medida em que todos os membros da comu-
nidade política são tratados com igual respeito. A independência do indivíduo
na definição de suas escolhas éticas não retira o poder coativo do Estado de
impor restrições morais e políticas de acordo com os interesses coletivos. A
“tese da independência”, esclarece Dworkin, não significa inexistência de

de do valor, ou seja, da unidade das esferas da ética, da moralidade individual, da morali-


dade política e do direito. Na nova concepção de dignidade, o princípio da responsabili-
dade pessoal não é suficiente para justificar os juízos éticos, porque não é possível ao in-
divíduo determinar para si mesmo, de forma isolada, os parâmetros da busca da felicidade
sem levar em conta os deveres morais que possui de ajudar os outros. Ver, neste sentido,
OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2014. p. 33-4.
25
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 203-4, 209, 255 e 260. José Emílio Ommati explica que o princípio
originário de Dworkin da sacralidade da vida está incorporado ao princípio do “respeito
próprio”, enquanto o princípio originário da responsabilidade pessoal está incorporado ao
princípio da “autenticidade” (op. cit., p. 33).
26
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 273-4.
36 Teresinha Inês Teles Pires

“deveres morais”27. O espaço da liberdade negativa, que veda a intervenção do


governo nas decisões de natureza ética, tem por contraponto a construção de
uma sociedade democrática em que a todos seja assegurado o mesmo grau de
independência e respeito perante a lei. As exigências da igualdade incorporam
o sentido positivo da liberdade, sedimentado na ideia clássica de autodetermi-
nação na esfera política, ou seja, na ideia de “autogoverno”28.
A teoria política de Dworkin, assim como sua teoria do direito, tem
suas raízes na interpretação dos conceitos morais. A política aplica tais con-
ceitos às estruturas institucionais de exercício do poder coativo do Estado, e
o direito vincula a moralidade política a um sistema de garantias constitucio-
nais, atribuindo-lhe caráter normativo. Desse modo, a teoria política é um
braço da moral, assim como a teoria do direito integra a moralidade política,
estando todas as esferas unificadas pelos princípios originários da moralida-
de compreendida em sentido abrangente29.
Com base em tais pressupostos teóricos, Dworkin problematiza a
possibilidade de se afirmar uma solução correta para a efetivação do direito
ao aborto. Para o autor, a incerteza das respostas dadas pelas duas posições
conflitantes, a favor e contra o aborto, não importa na admissão de que não
exista uma acomodação correta entre elas. Normalmente, nos casos difíceis
(hard cases), não se alcança uma decisão que se pretenda correta, adotando-
-se completamente uma das posições antagônicas, ou seja, nenhum dos dois
lados apresenta o melhor argumento como um todo30.

27
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 99. No original: “independence thesis‖ … “moral duties”.
28
Ibidem, p. 327-8, 330-1 e 379. Sobre a relação de complementariedade entre as categorias
da liberdade e da igualdade, bem como a natureza política do princípio da igual conside-
ração perante a lei, consulte-se OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos
fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 70-8. Ver, também, CHAMON JÚ-
NIOR, Lúcio Antônio. Teoria da argumentação jurídica: constitucionalismo e demo-
cracia em uma reconstrução das fontes do direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009. p. 98 e 101. Ainda será explorado, especialmente na seção 1.4, a concepção
de “autogoverno” adotada por Dworkin na formulação de sua proposta de democracia co-
participativa, em contraposição à democracia majoritária. A título ilustrativo, mencione-se
a seguinte passagem: “According to the partnership conception, government by ‗the people‘
means government by all the people, acting together as full and equal partner in a collective
enterprise of self-government” (DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue: the theory and prac-
tice of equality. Cambridge/Massachusetts/ /London: Harvard University Press, Fourth
printing, 2002. p. 358). Em tradução livre: “De acordo com a concepção coparticipativa,
governo pelo povo significa governo por todas as pessoas, agindo em conjunto enquanto
parceiros plenos e iguais em um empreendimento coletivo de autogoverno”.
29
DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. London: Harvard University Press, 2006. p. 35.
30
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 42, 44 e 95.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 37

Tem-se que justificar, sem recorrer a premissas externas ao discur-


so moral, se o aborto é sempre um ato incorreto, ou se, em determinadas
circunstâncias, pode ser afirmado como um ato correto com fundamento em
juízos éticos. Não se pode concordar com a opinião dos céticos, segundo a
qual as diversas opiniões sobre o assunto são igualmente válidas, se equiva-
lem. O fato de nenhum dos argumentos contrapostos, na qualidade de opiniões
subjetivamente formadas, ser absolutamente correto não quer dizer que não
se possa encontrar um raciocínio equilibrado, aceitável como sendo aquele
que apresenta a melhor solução da questão. Se o aborto fosse considerado
certo ou errado exclusivamente com apoio nas opiniões pessoais, não seria
plausível sustentar uma resposta adequada do ponto de vista dos valores
constitucionais objetivos31.
É oportuno esclarecer que Dworkin defende um critério de objeti-
vidade dos juízos morais, em substituição ao conceito de verdade das teorias
realistas. A objetividade representa uma metodologia de avaliação das con-
vicções morais que se distingue das categorias epistemológicas32. Pretensões
morais não se validam por sua correspondência a fatos, ou, melhor dizendo,
não possuem estatuto ontológico. A verdade, ou objetividade, dos juízos
substantivos de valor é demonstrável com base em argumentos morais. Co-
mo explica Dworkin, proposições ou convicções morais são verdadeiras com
fundamento em um “argumento moral adequado” que lhes confira o estatuto
de verdade33. O que Dworkin quer dizer com verdade moral é, simplesmente,
que a interpretação dos princípios morais e políticos comporta juízos de va-
lor objetivos, que indicam o que os indivíduos estão autorizados a fazer para
terem uma boa vida e o que não devem fazer em respeito aos direitos alheios
e às obrigações políticas34.
Na perspectiva de Dworkin, considerando essa estrutura dos deve-
res morais, em quais circunstâncias a mulher gestante está autorizada a optar
pela realização do aborto? Melhor dizendo, em quais circunstâncias se pode
afirmar a inexistência de uma obrigação moral de preservar a vida do em-
brião? Essa análise depende da compreensão que se adote acerca da extensão
do princípio do “respeito próprio” aos interesses do nascituro. Se a ética e a

31
DWORKIN, Ronald. Objectivity and truth: you'd better believe it. In: Philosophy and
Public Affairs, v. 25, n. 2, p. 95-99, Spring, 1996.
32
Ver, nesse sentido, TERSMAN, Folke. Moral disagreement. Cambridge/New York:
Cambridge University Press, 2006. p. 18.
33
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 37. No original: “adequate moral argument”.
34
Ibidem, p. 24-26.
38 Teresinha Inês Teles Pires

moral se autocomplementam, na abordagem interpretativa, a decisão da ges-


tante de interromper a gestação, a fim de tornar possível sua qualidade de
vida, se justifica em argumentos de moralidade pessoal, desde que a mulher
empreenda esse juízo antes que o embrião se desenvolva ao ponto de invia-
bilizar a precedência dos seus interesses éticos35.
A interrupção voluntária da gestação não é um ato imoral em cará-
ter absoluto, tanto que existe quase um consenso em torno de sua aceitação
em caso de estupro. Se a mulher engravida, de forma voluntária ou involun-
tária, deve ser concedido a ela algum tempo do processo gestacional para
que ela tome uma decisão? Ou, ao contrário, sua obrigação moral de preser-
var a vida do embrião não permite exceções sustentáveis em parâmetros
éticos? Dificilmente, é possível demonstrar que a vida do embrião é digna de
respeito, no mesmo grau de imperatividade, não importando o período do
seu desenvolvimento.
Assim, defende-se que a justificação do direito ao aborto envolve
conclusões distintas de acordo com o estágio da gestação, e essa é a posição
que Dworkin adota ao tratar especificamente do direito à vida, em sua obra
Life‘s Dominion, da qual se falará adiante. O direito ao aborto pode ser, as-
sim, moldurado a partir da distinção integrativa que Dworkin estabelece
entre as esferas da independência ética e da moralidade pessoal e política.
Até determinado estágio da gestação parece adequado propor que o aborto é
moralmente admissível, considerando que os juízos morais relativos à exi-
gência de igual respeito pela vida nascitura não se sobrepõem à responsabili-
dade da mulher de tornar possível uma vida boa para si própria. Em outros
termos, com base no princípio da dignidade, a gestante tem a capacidade
moral de avaliar a sua conduta, em matéria de decisão procriativa, nos pri-
meiros estágios da gestação, sendo isso uma prerrogativa compatível com os
requisitos do “respeito próprio”. Nesse caso, o princípio do “respeito pró-
prio” não impõe, sob o prisma da exigência de igual consideração pelos inte-
resses dos outros, restrições à liberdade de escolha, não se configurando,
portanto, as premissas da obrigação moral.
O melhor argumento a favor da liberalização do aborto, do ponto
de vista da relação entre a ética e a moral, consistiria, portanto, na postulação
de que o dever moral da gestante de preservar a vida do embrião não é impo-
sitivo, sobretudo, quando isso acarretar uma redução significativa de suas
chances de ter uma boa vida. Se está falando, obviamente, da hipótese de o
35
Ibidem, p. 202-3. Serão adensados, mais abaixo, os argumentos que podem ser utilizados
para se definir de forma correta qual o estágio da gravidez a partir do qual não há justifi-
cativa aceitável para a legalização do aborto.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 39

embrião encontrar-se, ainda, nos estágios iniciais de sua evolução orgânica,


circunstância apta a conferir legitimidade à liberdade de escolha da mulher.
Em diversas situações, a chegada de um filho atinge irreversivelmente os
projetos pessoais de vida da mulher, ao ponto de transgredir seu dever éti-
co de ter uma vida boa. O aborto pode ser interpretado, assim, como um
requisito dos dois princípios da dignidade, o “respeito próprio” e a “auten-
ticidade”. Sob o prisma da dignidade, aliás, ainda que a mulher decida
praticar o aborto por motivos frívolos, trata-se de um juízo ético e não mo-
ral, por isso a questão deve ser deixada à sua livre escolha 36. Em tal enfo-
que, o aborto provocado, por exemplo, para salvar a vida da gestante e o
aborto realizado por escolha da mulher são igualmente justificáveis enquanto
decisões eticamente válidas.
No que concerne à teoria política de Rawls, a parte mais importan-
te da análise será deixada para a seção 1.3, local onde se discutirá a aplica-
ção do princípio do pluralismo ideológico à busca do melhor argumento
sobre o tema do aborto. Entretanto, pode-se introduzir aqui alguns dos seus
conceitos que evidenciam a consonância da doutrina do liberalismo político
abrangente, formulada pelo autor, com a tese da interdependência entre a
ética, a moral e a política.
A concepção política de justiça como equidade conduz aos mes-
mos raciocínios desenvolvidos por Dworkin para demonstrar sua tese da
unidade do valor. O liberalismo político não tem uma preocupação direta
com o estabelecimento de critérios de verdade das proposições morais. Ao
contrário, Rawls rejeita, em tese, esse conceito, afirmando que as “doutrinas
abrangentes” (“comprehensive doctrines”) acerca do bem não são verdadei-
ras ou falsas, e sim razoáveis ou não razoáveis. Nesse sistema, sustenta-se a
precedência da política em relação à moral. Os valores morais somente ad-
36
Nas palavras de DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts:
Harvard University Press, 2011. p. 378: “A woman betrays her own dignity when she
aborts for frivolous reason: to avoid rescheduling a holiday, for instance. I would reach a
different ethical judgment in other cases: when a teenage girl‘s prospects for a decent life
would be ruined if she became a single mother, for example. But whether the judgment is
right or wrong in any particular case, it remains an ethical, not a moral judgment. It must
be left to women, as their dignity demands, each to take responsibility for her own ethical
convictions. ” Em tradução livre: “Uma mulher trai sua própria dignidade quando ela
aborta por razões frívolas: para evitar remarcar um feriado, por exemplo. Eu faria um
juízo ético diferente em outros casos: quando as perspectivas de uma adolescente de ter
uma vida decente seriam arruinadas caso ela se tornasse uma mãe solteira, por exemplo.
Mas se o juízo está certo ou errado, em quaisquer dos dois casos particulares, ele perma-
nece sendo um juízo ético, não um juízo moral. Deve ser deixado a cada mulher, como
sua dignidade exige, assumir a responsabilidade por suas próprias convicções éticas”.
40 Teresinha Inês Teles Pires

quirem significado enquanto conectados a um esquema de cooperação social,


em que os cidadãos devem submeter suas compreensões do bem moral ao
consenso coletivo. O critério da razoabilidade distingue-se do critério da
verdade objetiva, no sentido de que a justificação das doutrinas do bem não
deriva de um argumento essencialmente moral e sim da aceitabilidade social
das visões particulares que cada pessoa apresenta sobre as exigências da
obrigação moral e política. O juízo a respeito do que é correto e aceitável
não é externo ou anterior à política, resultando de um “equilíbrio reflexivo”
(“reflective equilibrium”) mediante o qual os cidadãos aderem aos termos do
acordo social37.
O próprio Rawls afirma que a pretensão de Dworkin de encontrar
uma fundamentação ética para a delimitação da autonomia ideológica, no
tocante à escolha das concepções de bem, contrasta, em certo sentido, com
sua teoria política. Tal contraste se centra na circunstância de que para Rawls
qualquer tipo de constrição à livre adoção das doutrinas compreensivas do
bem moral somente se justifica a partir de argumentos extraídos da melhor
concepção política de justiça, não sendo o caso de se buscar na teoria ética
os parâmetros da legitimidade da autoridade do Estado. Essa é a razão pela
qual não haveria necessidade de se formular um juízo coletivo acerca da
verdade das concepções do bem38.
De outro lado, o que se está a afirmar, em Rawls, nesse ponto, é a
inseparabilidade da ética e da política na consideração do respeito a ser con-
ferido à liberdade de consciência. Tanto é assim que, como ainda se explica-
rá melhor, o acordo de cooperação social deve reconhecer a validade do
maior número possível de doutrinas do bem, em acolhimento às pretensões
éticas dos indivíduos que dele participam. Ressalte-se que Dworkin abando-
na, na obra Justiça para Ouriços, sua pretensão anterior de encontrar na
ética, em caráter exclusivo, os fundamentos de sua concepção de justiça,
passando a sustentar o padrão da interdependência entre todas as esferas do
agir moral e político. Desse modo, a mesma ideia da mútua implicação da
ética e da teoria da justiça está também na base do pensamento de Dworkin.
A perspectiva da justiça como equidade, em Rawls, é permeável
à interferência de categorias éticas que, de outra ponta, também modulam
os critérios de validade do acordo político. A concepção política de justi-
ça recorre a determinados parâmetros morais, necessários à garantia das
37
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 107, 115, 52,
141 e 143.
38
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press, 2005. p. 211, nota 42, e p. 62-3.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 41

liberdades básicas, os quais envolvem a afirmação do “respeito próprio”


(“self-respect”) enquanto expressão do exercício da capacidade subjetiva
de definir, do ponto de vista da construção de um projeto particular de
vida, em que consiste o bem moral. A faculdade de escolher uma doutrina
do bem, e de agir de acordo com ela, representa, no contexto da prece-
dência dos valores políticos, a esfera da independência ética 39. Assim, ao
mesmo tempo em que o respeito próprio assegura o valor que a pessoa
confere ao seu bem-estar, pressupõe-se sua disposição, como membro de
uma comunidade política, de cooperar para a formação de um acordo
social justo. A ideia do respeito próprio, está, assim, relacionada aos dois
poderes morais de que são dotados os cidadãos, ou seja, o senso de justi-
ça e a capacidade para a adoção de uma concepção razoável do bem. Isso
na medida em que a noção do respeito próprio implica o respeito mútuo
entre cidadãos iguais e razoáveis40. Toda a principiologia ética utilizada
por Dworkin na formulação do seu conceito vetor da dignidade humana
está inserida no pensamento de Rawls, partindo daí a defesa por este fei-
ta, na dimensão do pluralismo moral e político, da validade do maior
número possível de doutrinas do bem.
A compatibilidade da teoria da justiça de Rawls com a tese de
Dworkin da unidade do valor, conforme se propõe neste estudo, não é isenta
de crítica. Para Cristóbal Orrego, por exemplo, Rawls incide no erro de sepa-
rar a esfera pública da esfera privada, o que negaria o “modelo ético” de
Dworkin, primado por critérios objetivos de justiça. Além disso, nas palavras
do citado crítico, o conceito que Rawls introduz de uma “pessoa razoável”
não se sustenta objetivamente, e representa um argumento “circular”, porque
toma por premissa a capacidade prévia de todos os cidadãos de moldar suas
pretensões políticas unicamente a partir de “razões públicas”41.
Não é isso, todavia, o que se extrai de um estudo mais apurado do
modelo de justiça de Rawls, à luz de sua doutrina do liberalismo político,
como ainda se irá aprofundar. O critério da razoabilidade das doutrinas do
39
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 173, 72 e 77-8. Observe-se que Rawls também se utiliza da expressão
“respeito próprio” (Ibidem, p. 77) ao sustentar os requisitos do livre exercício das capaci-
dades morais e a pretensão de se viver de acordo com determinadas doutrinas do bem. E,
no mesmo sentido assumido por Dworkin, Rawls vincula o “respeito próprio” à aptidão
do indivíduo de incorporar em suas visões éticas o dever de respeito ao bem-estar de to-
dos (Ibidem, p. 318).
40
Ibidem, p. 318-9 e 81.
41
ORREGO S., Cristóbal. Liberalismo y libertad religiosa en el debate político sobre la
justicia: argumentos sobre el aborto legal. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.).
Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 126, 130 e 146-7.
42 Teresinha Inês Teles Pires

bem, criado pelo autor, assegura uma base não meramente subjetiva aos
juízos éticos, considerando que sua validade depende, na maioria dos assun-
tos, da aceitação social, obtida por meio da sobreposição de um consenso
argumentativo. O que de forma alguma importa na negação da instância
decisória ética, ou na cisão entre o público e o privado. A doutrina de Rawls
contém em si uma concepção moral de justiça, na medida em que exige de
todos o exercício das capacidades racionais necessárias para a adesão a um
acordo político que acolha todas as visões particulares de bem que se mos-
trem razoáveis, ou seja, um acordo que não importe na violação de direitos
fundamentais. A autonomia ética e a garantia do respeito próprio são valores
incorporados à perspectiva da justiça como equidade, e integram o sentido
político da aceitabilidade das compreensões de bem razoáveis. Pode-se dizer
que Rawls constrói um esquema próprio de unidade entre a ética, a moral e a
política, com o propósito de estabelecer critérios objetivos para o reconhe-
cimento público das doutrinas morais. Em outros termos, os requisitos do
sistema equitativo de cooperação social envolvem aspectos substantivos
conectados a valores e princípios que constituem o conteúdo da melhor con-
cepção política de justiça42.
Em linhas gerais, Rawls reformula o princípio da autonomia da
vontade de Kant no sentido literal de uma capacidade da razão prática para a
autodeterminação moral. No mesmo passo, enuncia uma concepção ideali-
zada de sociedade que se autodefine pela precedência da justiça em relação
às dimensões do bem moral. Do ponto de vista argumentativo, Rawls não
incide em um raciocínio circular na formulação do padrão da razoabilidade.
Os princípios da justiça permitem o reconhecimento de concepções diferen-
ciadas daquilo que constitui o bem à luz da vida pessoal de cada um. De
outro lado, espera-se que os cidadãos em conjunto possam chegar aos mes-
mos juízos acerca dos princípios do justo. É necessário tolerar as diferentes
visões, no tocante aos requisitos de uma boa vida, pois o que é bom para
algumas pessoas pode não o ser para outras43. A distinção entre a esfera da
justiça e a esfera da concepção individual do bem leva à conclusão de que
nem todas as ações humanas devem se sujeitar ao método do “equilíbrio
reflexivo”, no cenário político, simplesmente porque em alguns assuntos a
autoridade do Estado, ou o consenso social, encontra limites impostos pelo
respeito às liberdades individuais.
42
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 54, 73, 77, 127,
131, 140 e 144. Roberto GARGARELLA apoia essa interpretação, em sua obra As teori-
as da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política, 2008. p. 232.
43
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 552-5.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 43

Nesse esquema, é coerente a busca de uma resposta correta para a


problemática do aborto, desde que suportada em parâmetros aceitáveis à luz
do necessário equilíbrio entre a liberdade e a igualdade. Defende-se que, na
compreensão de Dworkin, a ideia da verdade se concilia com a afirmação da
independência ética no que diz respeito a decisões individuais que não afe-
tam, de forma significativa, direitos de outras pessoas. Se é assim, o sentido
da busca da decisão correta, na análise do direito ao aborto, não se afasta
tanto do princípio da razoabilidade proposta por Rawls, entendendo-se que a
ideia do razoável articula em nível suficiente os valores morais extraídos das
faculdades racionais dos cidadãos enquanto pessoas livres. Em suma, o direi-
to da gestante de formar sua própria convicção sobre o peso moral que deve
ser atribuído ao aborto, em determinadas circunstâncias, encontra justificati-
va, seja com fundamento em categorias éticas, seja com fundamento em
categorias políticas. No segundo caso, afirmando-se que o domínio da políti-
ca inclui o domínio da ética na qualidade de um componente essencial à
validade do consenso coletivo.
Na interpretação que aqui se faz dos conceitos políticos de Rawls,
a aceitação pública da decisão da gestante de interromper a gestação repre-
senta a concretização de uma liberdade básica, cujo exercício deve compor a
concepção de justiça como equidade. Como bem pontuado por Rawls, a
equidade é um valor político e circunscreve o espaço do exercício da cidada-
nia no contexto da vida comunitária, mas a “autonomia ética” deve ser deli-
neada individualmente em conformidade com as doutrinas adotadas por cada
um44. O melhor argumento ético é também o melhor argumento moral, na
medida em que se mostra compatível com as exigências da justiça e da igual
proteção perante a lei.
Ver-se-á, a seguir, como a autonomia ética pode ser delineada,
mediante a explicitação da especificidade da categoria dos direitos mo-
rais, em sua tensão com os direitos legais. Seguindo os passos de Rawls e
de Dworkin, é preciso sedimentar a ideia de que os direitos expressamen-
te positivados não esgotam a expectativa despertada pelo preceito consti-
tucional da dignidade. Pode-se dizer, inclusive, que os princípios funda-
mentais previstos no texto das constituições democráticas contêm, em seu
cerne, dimensões morais da existência humana, as quais devem direcionar
a prática argumentativa no que concerne à ampliação do seu substrato
material.

44
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 123.
44 Teresinha Inês Teles Pires

1.2 O ABORTO COMO UM DIREITO MORAL E COMO UM


DIREITO LEGAL

Para elaborar um conceito adequado de direitos morais, deve-se


começar com a remissão à diferença entre princípios e regras jurídicas. A
doutrina é por demais discutida pelos estudiosos do direito e não é preciso
explicitar, em detalhes, a matéria, mas apenas salientar sua importância.
Dworkin considera a moralidade uma esfera determinada por princípios ori-
ginários, que participam do sentido a ser atribuído às regras no procedimento
interpretativo. Para concretizar o conteúdo material das leis e as obrigações
delas decorrentes, o intérprete recorre a juízos formulados sob a forma de
princípios. Quer dizer, o caráter vinculante das leis requer sua validade em
face de algum princípio reconhecido como sendo fundamental45.
Os princípios gerais e abstratos são princípios morais porque ex-
pressam valores fundamentais. A visão de Dworkin da inexistência de uma
cisão rígida entre regras e princípios é bem explicada por Neil MacCormick.
O autor chama a atenção para o fato de que a justificação de uma decisão
com base em princípios não significa desconsiderar sua necessária compati-
bilidade com as normas estabelecidas. As normas impõem limites à interpre-
tação46, mas, a contrario sensu, a interpretação adota critérios objetivos para
afirmar a conformidade das normas aos juízos valorativos subsumidos ao
sistema de princípios constitucionais. Há uma intersecção entre princípios
jurídicos, morais e políticos, de tal modo que a interpretação de casos, que
envolvem matéria de direitos fundamentais, requer a articulação de suas
circunstâncias fáticas aos valores adotados na Constituição47.
Em termos gerais, os direitos morais são aqueles cuja titularidade
deriva dos princípios, e os direitos legais são aqueles assegurados pelas re-
gras do direito positivo. Por meio das decisões baseadas em princípios, al-
45
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 5, 15, 21, 73 e 76.
46
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 233-4 e 256-7.
47
Ibidem, p. 313-4. Sobre a relação entre o direito e a moral, consulte-se também NINO,
Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. 2ª tir. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
p. 40-47; SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicida-
de. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 23-9. Uma abordagem suscinta dos aspectos relaci-
onados à caracterização histórica dos direitos fundamentais, também denominados direi-
tos humanos fundamentais, pode ser lida, ainda, na obra de FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Sarai-
va, 2010. p. 82-93.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 45

guns direitos morais se transformam em direitos legais48. Dworkin apresenta


uma concepção mais completa dos direitos morais, afirmando que eles se
caracterizam não apenas por sua fundamentação em princípios, mas também
pela centralidade das exigências da dignidade humana. Sempre que o Estado
invade a esfera protegida do respeito próprio e da autenticidade está violando
um direito moral individual. Os direitos morais não possuem uma conotação
ontológica, mas antes política. São direitos arguíveis contra o Estado e con-
tra a opinião majoritária. As divergências relativas aos “direitos morais indi-
viduais” (“individual moral rights”) se distinguem das disputas políticas, em
que a solução é obtida por meio do critério majoritário. Dworkin aproxima
os direitos morais aos direitos constitucionais, e postula que o indivíduo
precisa ser protegido contra as maiorias, mesmo diante de algum interesse
coletivo importante49.
Certamente, o Direito não se identifica com a Moral, inserindo-se
cada um em seu contexto argumentativo próprio. A tese da “unidade do va-
lor” não rejeita essa diferenciação conceitual, mas evidencia que a interação
dialética entre suas premissas, no âmbito da justificação das proposições
jurídicas, constitui uma estratégia consistente na análise dos casos concretos.
Os princípios morais precisam ser traduzidos para a linguagem jurídica, a
fim de serem incorporados ao sistema normativo, no juízo de aplicação, o
que se faz por intermédio dos direitos fundamentais. Tal tradução confere
legitimidade à atividade jurisdicional, assentada na interpretação do Direito
como um sistema de princípios50.
A especificade do direito, em relação à moral, é bem explicitada
por Dworkin logo no primeiro capítulo da obra Levando os Direitos a Sé-
rio. Efetivamente, o governo tem autoridade para impor obrigações legais,
portanto, a instância da validade das regras jurídicas representa o alicerce do
papel a ser exercido pelo direito na organização das sociedades políticas.
Nem todos os direitos vinculados à autonomia ética podem ser contrapostos
ao Estado, ou às maiorias, ou seja, nem todos os direitos individuais podem
ser classificados como direitos morais. Muitas das obrigações impostas por
lei são legítimas, e delimitam a esfera dos direitos morais. Dworkin esclarece
que os juízes seguem as leis, ao proferirem suas decisões; porém, nem sem-
pre eles estão apenas aplicando uma regra prévia a um novo caso jurídico.
48
MACCORMICK, Neil. Op. cit., p. 333.
49
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 139-40, 143 e 146.
50
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da argumentação jurídica: constituciona-
lismo e democracia em uma reconstrução das fontes do direito moderno. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 181-2.
46 Teresinha Inês Teles Pires

Muitas vezes, eles precisam apelar aos princípios da justiça, o que não quer
dizer que estejam utilizando padrões pessoais de moralidade, e sim que suas
decisões seguem regras de caráter mais abstrato. Nos casos difíceis, nos
quais os juízes parecem estar criando novas regras, estão, na verdade, crian-
do novos padrões de validade das regras estabelecidas. É nesse sentido que o
juízo sobre a validade das regras, em uma abordagem não convencional do
direito, envolve a análise dos princípios morais51.
Em sua obra O Império dos Direitos, ao aperfeiçoar sua concep-
ção do direito como integridade, Dworkin explicita melhor, ainda, a caracte-
rização dos direitos como direitos legais. Ensina o autor que os direitos le-
gais advêm das regras e decisões judiciais preexistentes, seja quando estão
nelas explicitamente enunciados, seja quando derivam de “princípios de
moralidade pessoal e política”, utilizados como pressupostos que justificam
sua a validade. Para definir o que é o direito, na prática jurídica, os juízes,
por exemplo, refletem não sobre as regras jurídicas, propriamente ditas, mas
sobre seus fundamentos. O ato de interpretar é teoricamente estruturado e as
novas dicções dos direitos são, em rigor, reafirmações de novos sentidos aos
direitos já incorporados às regras jurídicas. Em geral, alguns “paradigmas”
de análise são rejeitados, e outros, novos, são desenvolvidos. O cerne da
interpretação consiste em justificar o exercício da autoridade coativa do Es-
tado, levando-se em consideração as visões das minorias políticas. Trata-se
de demonstrar os fundamentos por meio dos quais as leis conferem legitimi-
dade à coação governamental. Em tal perspectiva, exige-se que o poder pú-
blico assegure, de forma igualitária, determinados direitos fundamentais,
permitindo-lhe restringir outros direitos que não estejam protegidos pela
Constituição52.
A permeabilidade dos direitos morais permite sua transposição pa-
ra a linguagem das liberdades individuais, fornecendo subsídios interpretati-
vos para que os mesmos sejam reconhecidos na qualidade de direitos legais
constitucionalmente garantidos. Os direitos morais básicos são inalienáveis,
invioláveis e apoiam-se, segundo a teoria de Dworkin, em argumentos de
princípios. Referindo-se a Dworkin, Neil MacCormick afirma que a função
dos princípios é racionalizar as normas de modo a pavimentar o caminho
para a averiguação de sua validade, tomando-se por pressuposto que as nor-
51
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 4-5 e 7.
52
DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge/Masschusetts: Harvard University
Press, 1986. p. 4-6, 89-90, 96-7, 185 e 190-2 e 244. No original: “principles of personal
and political morality” (...) “paradigms”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 47

mas não são isentas de valores53. Pois bem, as normas proibitivas do aborto
se submetem ao sistema de princípios, razão pela qual as decisões, cujo obje-
to é determinar se tais normas se compatibilizam ou não com o esquema
constitucional, devem partir da interação conceitual entre os direitos morais
e os direitos legais. Guiando-se por essa interação, alguns direitos fundamen-
tados em princípios jurídicos são passíveis de ser derivados das normas posi-
tivadas, no âmbito da interpretação constitucional54, na qual o pensamento de
Dworkin se torna efetivo, pois a moral, a política e o direito se unem no pro-
cesso decisório.
No mesmo sentido, Rawls afirma que os limites estabelecidos pela
razão pública não se aplicam a todos os temas de natureza política, mas,
exclusivamente, às questões de direitos fundamentais constitucionais, as
quais assumem estatuto prioritário em relação ao exercício da autoridade
coativa do Estado. Temas relacionados a taxas e impostos legislativos, por
exemplo, não se submetem àqueles limites. Todavia, quando não existem
interesses políticos envolvidos e as razões apresentadas não possuem cono-
tação pública, a precedência dos direitos morais, sejam individuais, sejam de
grupos corporativos, impede a imposição de normas que atinjam sua efetivi-
dade, desconstituindo a imperatividade do padrão do majoritarianismo55. A
justificação da validade das leis, em conformidade com as salvaguardas
constitucionais, é articulada por Rawls, assim como por Dworkin, com fun-
damento na exigência de legitimidade do poder político56.
Desse modo, o direito ao aborto pode ser classificado como um di-
reito moral, ou constitucional, que não deve ser invadido pela ação gover-
namental, mesmo que a opinião majoritária considere sua prática um ato
censurável, por emanar dos requisitos do princípio da dignidade humana e
do princípio da razoabilidade. Os interesses da maioria, no caso, não compe-
tem com o direito moral da gestante de realizar o aborto. Somente direitos
53
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 304-5.
54
Ibidem, p. 308-9.
55
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 214, 217 e 220. A expressão “razão pública” é aqui conceituada da se-
guinte maneira: “in a democratic society, public reason is the reason of equal citizens
who, as a collective body, exercise final political and coercive power over one another in
enacting laws and in amending their constitution”. Em tradução livre: “em uma sociedade
democrática, razão pública é a razão de cidadãos iguais que, enquanto um corpo coleti-
vo, exercem poder coercivo e político definitivo uns sobre os outros ao promulgarem leis
e emendarem suas constituições”.
56
Ibidem, p. 217.
48 Teresinha Inês Teles Pires

individuais de outras pessoas poderiam competir com esse direito ao ponto


de justificar sua interdição. É preciso diferenciar os direitos da maioria dos
direitos dos indivíduos que integram a opinião majoritária. Somente direitos
individuais podem sobrepor-se a outros direitos individuais57. A mulher que
deseja realizar o aborto está protegida pelo princípio da dignidade, em espe-
cial, por seu direito moral à autenticidade e sua decisão não atinge o direito
moral de outras pessoas que entendem, à luz dos seus valores pessoais, que o
aborto é um ato condenável. As mulheres que integram a posição da maioria
contrária ao aborto poderão, em caso de gravidez, agir autenticamente, op-
tando por ter o filho, ainda que isso lhes exija grandes sacrifícios. Entretanto,
não é um argumento moral adequado dizer que todas as mulheres devem ser
impedidas de optar pelo aborto porque a maioria das pessoas, em dada socie-
dade, acredita que o ato é imoral.
As liberdades básicas são consideradas moralmente inalienáveis e
incorporam em si, na prática da interpretação jurídica, o âmbito protetivo dos
direitos morais. Viu-se que a dignidade para Dworkin representa a unidade
entre a liberdade e a igualdade. A igualdade, veiculada através do princípio
do “respeito próprio”, não exige a redução das liberdades básicas, dentre as
quais Dworkin discrimina a liberdade de consciência, de religião e a liberda-
de de escolha, no tocante a assuntos fundamentais58.
O aborto, na compreensão assumida neste estudo, é um direito mo-
ral individual sustentado na dignidade humana e inclui, assim, a pretensão de
reconhecimento por parte das regras jurídicas, enquanto um direito de cate-
goria constitucional. Isso porque, na acepção de Dworkin, direitos morais e
direitos constitucionais são categorias intersectadas, embora não idênticas.
Melhor explicando, o direito ao aborto deve ser reconhecido como um direi-
to constitucionalmente assegurado, pois deriva de princípios de justiça sub-
sumidos a determinadas normas de direitos fundamentais. Ou, ainda em ou-
tros termos, na medida em que o direito ao aborto está amparado por uma
“concepção de filosofia moral e política” inserida na própria normatividade
das cláusulas constitucionais da dignidade, da liberdade e da igualdade, sua
garantia, em parâmetros adequados, é condição necessária para a validade
das leis que restringem sua prática. As normas que proíbem o aborto desde o
início da gestação não se conformam, nessa leitura, à exigência da efetivida-
57
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 194.
58
DWORKIN, Ronald. Sovereign virtue: the theory and practice of equality. Cam-
bridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, Fourth printing, 2002. p. 120,
123 e 127.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 49

de dos direitos individuais e da dignidade humana. A justificação das leis


deve partir do estabelecimento de um conteúdo satisfatório da dignidade em
seu sentido ético, ou seja, do ponto de vista da responsabilidade de cada um
de assegurar para si próprio uma vida boa59.
Na linguagem de Rawls, o direito ao aborto deve ser reconhecido
com base na concepção dos cidadãos como pessoas morais, ou seja, pessoas
livres e iguais. Pessoas morais têm autonomia em grau suficiente para a ado-
ção de visões individuais do bem, especialmente na determinação de seus
planos de vida. A capacidade para o senso de justiça, pelo qual as pessoas
aderem a um sistema coletivo de justiça, não inviabiliza o direito igual ao
exercício das liberdades fundamentais. Assim como Dworkin, Rawls lista as
principais liberdades básicas e confere posição de destaque à liberdade de
consciência e de religião60. Afirma que os indivíduos têm liberdade de cons-
ciência quando não estão sujeitos a restrições na efetivação de “seus interes-
ses morais, filosóficos ou religiosos” e quando os outros indivíduos têm o
“dever jurídico de não intervir”61. A liberdade de consciência é, portanto, no
sentido filosófico, uma ideia remetida à formação moral da personalidade
humana, e, no sentido jurídico, uma ideia estruturante do sistema de justiça.
O conceito de personalidade está o tempo todo presente na investi-
gação jurídica referente à postulação dos direitos morais da mulher, senão
explicitamente, ao menos implicitamente. Há várias formas de delinear quais
são os titulares de determinados direitos e liberdades individuais. Existem,
igualmente, várias linguagens para fundamentar sua efetiva concretização,
dentre as quais se destaca a linguagem da garantia da plena “cidadania”, do
reconhecimento dos direitos positivados e da capacidade subjetiva para ad-
quiri-los. Historicamente, as mulheres sempre lutaram para expandir, utili-
zando-se de todas essas linguagens, os contornos dos seus direitos de perso-
nalidade para sua inclusão na categoria de sujeito intelectualmente apto à
tomada de decisões políticas, o que se explicita, por exemplo, na luta por seu
direito ao voto62.
Os direitos morais estão associados aos direitos de personalidade e
ao sentido originário da cidadania, englobando todas as dimensões do “ser”
59
NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. 2. tir. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2013. p. 492-3.
60
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 333, 344-5 e
358-9.
61
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 247-8.
62
MATAMBANADZO, Saru M. Embodying vulnerability: a feminist theory of the person.
20 Duke Journal of Gender Law & Policy, fall 2012. p. 47 e 50.
50 Teresinha Inês Teles Pires

político. A criação de novas estratégias de luta e resistência em prol do reco-


nhecimento dos direitos morais da mulher, na definição do projeto reprodu-
tivo, possibilita a visualização pública de sua “vulnerabilidade” (vulnerabi-
lity) em face das normas jurídicas63.
Conforme ensinado por Betty Friedan, a pretensão da mulher de
assumir o domínio do processo reprodutivo redimensiona o debate sobre
o aborto, de modo que a categoria da autonomia moral se conecte à cons-
ciência do prejuízo social impingido ao “ser” feminino, ainda uma reali-
dade inegável. A sustentação do direito ao aborto, em caráter fundamen-
tal, torna-se robusta pela referência aos critérios equitativos de justiça. A
manifestação da vontade da gestante representa a única voz que deve ser
ouvida quando se trata da decisão de ter ou não ter um filho. Sob esse
prisma, a legalização do aborto fundamenta-se nos três princípios supre-
mos do constitucionalismo considerados em conjunto: “liberdade, igual-
dade e dignidade”. Liberdade e igualdade se fundem em seus papéis pro-
tetivos da autonomia individual em contraposição à intervenção do Esta-
do, como Estado legislativo, na medida em que se afirmam na qualidade
de elementos básicos da dignidade humana e da personalidade moral. A
verdadeira revisão da história de discriminação sexual feminina exige
uma reviravolta na condição política da mulher, no sentido da passagem
da passividade e da “coisificação” (reification) para o exercício pleno da
autodeterminação e da dignidade moral 64.
É, claramente, perceptível a vinculação fundamental entre a pers-
pectiva dos direitos morais e as liberdades de pensamento, de consciência e
de crença. Daí se infere que a constitucionalidade do direito ao aborto pode
ser justificada com suporte na inviolabilidade do direito de consciência, do
ponto de vista da concretização de um sistema de justiça. Segundo Rawls, o
acordo cooperativo não é razoável se excluir a autonomia para o exercício
das capacidades morais, e isso se efetiva pela realização das concepções
particulares do bem. Dentro dos limites da justiça como equidade, é impor-
tante ampliar o alcance do acolhimento de visões particulares, em assuntos
específicos, sobre o conteúdo dos deveres morais65.

63
Ibidem, p. 81.
64
Palestra proferida por Betty FRIEDAN, First National Conference for Repeal of Abortion
Laws, Chicago, Feb 14, 1969, intitulada: Abortion: A Woman’s Civil Right. Apud
SIEGEL, Reva B. Roe’s Roots: the women’s rights claims that engendered Roe. Boston
University Law Review, [v. 90:1875], nov. 8, 2010, p. 1881 e nota 21, e 1882.
65
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 121-2 e 363.
Confira-se a análise de SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e
historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 66-75, sobre a visão de Rawls e de
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 51

A mulher que reivindica o direito de praticar o aborto está plei-


teando o reconhecimento de sua capacidade de compreender, com base
em seus valores pessoais, o impacto da interrupção voluntária da gestação
em sua vida como um todo. No mesmo passo, avalia o impacto negativo
que a assunção da responsabilidade pelos encargos da maternidade pode
produzir em sua vida. Se o embrião não possui ainda os direitos de per-
sonalidade, e se o seguimento da gestação e o nascimento futuro da cri-
ança levará a uma grande perda em termos de expectativas de felicidade,
a mulher é capaz de balancear todos os elementos éticos e morais envol-
vidos em sua escolha. Acredita-se que a mulher, com apoio na percepção
que tem de si mesma enquanto agente moral, tem o direito de formular
juízos valorativos no que concerne à importância da vida, cujo desenvol-
vimento apenas se inicia em seu ventre. Rawls chega a sugerir que a res-
ponsabilidade da pessoa pelo respeito ao seu próprio modo de vida justi-
fica que se lhe permita até mesmo cometer erros, considerando a pressu-
posição do senso de justiça. O risco de enganar-se faz parte da construção
do ser pessoa humana 66.
Como destacado por Carlos Santiago Nino, na visão de Rawls,
qualquer projeto ético racionalmente definido pelo indivíduo, na moldura
dos iguais direitos de liberdade, é aceitável e não deve ser banido de um
sistema de justiça. Isso, prossegue Nino, legitima a proteção de quaisquer
“direitos instrumentais” para a realização daqueles projetos, tais como a
liberdade de consciência e de expressão. A inviolabilidade da dignidade
humana tem a extensão que se fizer necessária para a afirmação da auto-
nomia em níveis que não conduza à transgressão de outras liberdades ou
direitos67.
Arrisca-se afirmar que o respeito à dignidade da mulher inclui a
garantia de sua autonomia procriativa e que a escolha pelo aborto é uma
escolha moralmente admissível porque emana do direito à liberdade de
consciência. Usando a ideia de Nino, esta liberdade tem uma função ins-
trumental na estruturação da autonomia decisória na esfera reprodutiva. O
projeto reprodutivo da mulher é um projeto ético de construção de uma
vida boa e não se efetiva se não lhe for assegurada a autonomia de cons-
ciência. Autonomia procriativa e autonomia de consciência são categorias
conjugáveis na formulação de um argumento correto que conduza à libe-

Dworkin, no tocante à garantia das liberdades básicas, que, como narra o autor, associa a
racionalidade do discurso dos direitos humanos à teoria moderna da moralidade política.
66
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 368-9.
67
NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. 2. tir. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2013. p. 495-6.
52 Teresinha Inês Teles Pires

ralização do aborto nas sociedades democráticas. O direito constitucional


à liberdade de consciência incorpora em seu conteúdo um direito moral,
em sentido genuíno. Como afirma Dworkin, o Estado pode restringir di-
reitos morais, mas não os minimizar em um nível que equivalha à sua
efetiva inexistência 68.
Dizer que o direito moral ao aborto deriva, dentre outros princí-
pios genéricos, da cláusula da liberdade de consciência configura uma
estratégia correta à luz da ideia de coerência interpretativa 69. A normati-
vidade da liberdade de consciência é abrangente o bastante para orientar a
afirmação de direitos fundamentais não expressos, que se mostrem de-
terminantes na análise da constitucionalidade das leis restritivas em maté-
ria afeta à autonomia procriativa. O conteúdo da liberdade de consciência
é metodologicamente aplicável à justificação do direito ao aborto enquan-
to um direito moral à independência ética na tomada de decisões funda-
mentais. O direito ao aborto não se identifica com a liberdade de consci-
ência, mas integra o seu conteúdo, desde que se compreenda que falar em
independência ética é o mesmo que falar em liberdade de consciência. A
dignidade impõe limites à autonomia, mas não ao ponto de banir a pers-
pectiva do seu reconhecimento jurídico. Há uma conformação correta da
tensão entre a dignidade da mulher e a dignidade do embrião, que se in s-
tala na problemática do aborto, sendo que essa conformação exige a defi-
nição de um espaço razoável para a independência ética da mulher e para
a exigência moral de respeito à vida nascitura.
Em suma, os princípios enunciam direitos fundamentais, razão pela
qual a incorporação ao sistema jurídico do direito ao aborto, por vontade da
mulher, não é uma proposta radical de rejeição do positivismo jurídico.
Constitui apenas um movimento em direção à evolução interpretativa da lei,
a fim de adequá-la a uma ordem contemporânea centralizada em princípios,
que traz para o debate a reunificação do direito e da moral, mediatizada por
categorias políticas de estruturação dos limites e prerrogativas dos poderes
institucionais.

68
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 191-2.
69
Sobre esse conceito, explica Ibidem, p. 198: “Formular os princípios de um sistema jurí-
dico com o qual a pessoa está comprometida envolve uma tentativa de lhe dar coerência
em termos de um conjunto de normas gerais que expressam valores justificatórios e ex-
planatórios do sistema‖.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 53

1.3 O PLURALISMO IDEOLÓGICO NO REGIME


DEMOCRÁTICO: O DIREITO AO ABORTO COMO
EXPRESSÃO DE UMA DOUTRINA ÉTICA ACEITÁVEL
SOBRE O VALOR DA VIDA HUMANA

A demanda pelo reconhecimento da diversidade de juízos éticos ou


concepções de bem de caráter fundamental remete o conceito de democracia
ao estabelecimento reflexivo de um paradigma moral e legal objetivamente
válido. O fio condutor para essa investigação é mais uma vez, na nossa vi-
são, a distinção de Dworkin entre juízos éticos, morais e políticos, bem como
a distinção de Rawls entre concepções de bem razoáveis e não razoáveis. A
ideia de objetividade normativa para os dois autores, é bom lembrar, é coin-
cidente no sentido de sustentar-se no método da busca do melhor argumento
para a justificação dos direitos individuais e coletivos.
Nesta seção, será dedicado maior espaço à análise da teoria política
de Rawls, por apresentar uma complexa abordagem do pluralismo ideológi-
co em sua inserção ao sistema de justiça. A primeira questão lançada pelo
autor é a da dificuldade de se conciliar as várias doutrinas do bem moral,
religiosas ou laicas, no ordenamento constitucional democrático. A resposta
é construída com suporte na ideia de uma justificação política em bases pú-
blicas. Trata-se do conhecido padrão da razão pública, cujo conceito já se
mencionou antes, que expressa nada mais do que uma estratégia argumenta-
tiva para a aceitação pública dos valores individuais. As razões justificadoras
desses valores, quando razoáveis, devem ser aceitas não apenas por seus
defensores, mas por todos os concidadãos, sendo essa a característica que
distingue uma base pública de “outras bases não-públicas”70.
O melhor sistema de justiça exige a formação de um consenso que
englobe todas as espécies de compreensões abrangentes do bem, morais,
religiosas e filosóficas. Por isso, o “equilíbrio reflexivo” tem que conduzir a
um resultado que não pode ser o da adoção de uma única visão moral, o que
importaria no “uso opressivo do poder estatal”. Os valores políticos não po-
dem anular os valores pessoais, de forma que cada pessoa deve, no exercício
de sua liberdade de consciência, realizar um juízo ético que vincule as con-
cepções majoritárias às suas “doutrinas abrangentes”71.
É bom lembrar que Rawls admite que sua concepção de justiça é
pontuada por princípios morais, mas sua especificidade, em relação às de-
70
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 24-27.
71
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 50-2, 81 e 185.
54 Teresinha Inês Teles Pires

mais concepções morais, deriva justamente de sua não identificação com


nenhuma doutrina particular. A concepção de justiça deve ser independente,
em grau máximo, das doutrinas afirmadas pelos membros da comunidade
política. O consenso sobreposto não exige que todos adotem a mesma dou-
trina do bem, mas apenas que todos adotem a mesma concepção de justiça.
O pluralismo razoável exclui a ideia de que a coesão social exige a concor-
dância de todos com o conteúdo de uma única visão do bem. Ao contrário,
afirma-se que essa coesão é possível por meio do consenso sobreposto, que
pressupõe a coexistência de diversas doutrinas72. Esse aspecto é fundamental
para a sustentação do princípio da imparcialidade do Estado, que, como se
verá adiante, deu origem à exigência dos requisitos do secularismo, da tole-
rância religiosa e da neutralidade das leis.
Para delimitar a esfera do consenso sobreposto, Rawls defende que
alguns assuntos sejam retirados da deliberação política, por serem assuntos
controvertidos e porque o direito igual à liberdade de consciência assim o
exige. O consenso sobreposto não precisa ir além do que é necessário à meta
política da igual cidadania. A exigência do respeito mútuo estabelece um
balizamento justo entre as “garantias constitucionais” e a cooperação políti-
ca, criando ambiente propício à adesão de todos à concepção política de
justiça. Essa é a moldura do pluralismo moral razoável por meio da qual o
consenso sobreposto adquire a feição de um “consenso constitucional”73.
O equacionamento da relação entre a obrigação política e as liber-
dades individuais, nessa visão, não apresenta conotação excessivamente
liberal, embora se possa ter a impressão, em primeira vista, de que todas as
questões morais e religiosas sobre as quais as múltiplas doutrinas forneçam
respostas divergentes devam ser postas fora do consenso sobreposto, por
respeito à independência ética dos cidadãos. Cristóbal Orrego, crítico do
modelo de Rawls do liberalismo político, como já dito, afirma que o plura-
lismo razoável se baseia em um “argumento laicista” que retira da autoridade
do Estado o poder coativo de adotar quaisquer princípios éticos questionados
perante uma ou outra doutrina do bem moral. Somente juízos ético-morais
cobertos por um consenso sobreposto, aceito por todos os cidadãos razoá-
veis, poderiam, assim, ser impostos pelo Estado74.
72
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 9-10, 39, 60 e 201.
73
Ibidem, p. 197, 199, 202-3 e 210-11.
74
ORREGO S., Cristóbal. Liberalismo y libertad religiosa en el debate político sobre la
justicia: argumentos sobre el aborto legal. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.).
Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 129.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 55

Cristóbal Orrego não leva em conta a distinção operacionalizada


por Rawls entre os valores políticos e os não políticos. Argumenta como se o
princípio da laicidade representasse um tipo de “confessionalidade ideológi-
ca”, como afirma textualmente, violadora do respeito à visão religiosa da
maioria das pessoas75. Com esse raciocínio, fica impossível traçar uma linha
divisória entre a legitimidade da coação do Estado e o respeito à liberdade de
consciência. A questão seria enunciada por meio de um paradoxo irresolú-
vel: a admissão da independência ética importaria em impor às maiorias a
aceitação das visões morais minoritárias; sua rejeição importaria em impor
às minorias as visões majoritárias. É perceptível que o argumento de Orrego
tangencia o fato óbvio de que o direito das minorias, religiosas ou laicas, de
conduzir-se de acordo com seus juízos éticos, nos temas compatíveis com a
esfera da independência ética, não exige que as maiorias sigam os mesmos
juízos. Ao contrário, se uma lei, que restringe a liberdade de consciência,
tem por fundamento a doutrina moral majoritária, estará efetivamente im-
pondo às minorias a renúncia às suas convicções pessoais, no tocante a deci-
sões fundamentais para a construção de uma boa vida. O que Rawls propõe
com a ideia do consenso sobreposto é justamente resolver esse paradoxo,
estabelecendo uma justa medida para a prevalência de uma moralidade sub-
sumida ao ordenamento jurídico em detrimento da liberdade de consciência.
Tentar-se-á discutir, nesse ponto, se a decisão da mulher de prosse-
guir ou não a gestação pode ser incluída entre os temas que não envolvem
valores políticos, como sugerido por Rawls. O choque entre as posições mo-
rais favoráveis e contrárias ao aborto evidencia uma divergência de fundo
filosófico muito problemática. Existe um interesse social, sustentado em
argumentos de ordem pública, que exija a escolha por uma ou outra posição
como sendo imperativa, desde o momento da fertilização do óvulo, para
todas as pessoas? Se fosse dada uma resposta positiva à questão, a liberdade
de consciência, no que diz respeito à autonomia procriativa da gestante, não
estaria, em face dos interesses do nascituro, minimamente amparada. A
compreensão de bem que afirma ser razoável provocar o aborto quando o
embrião não completou, por exemplo, três ou quatro meses de sua formação,
pode não ser adotada pela maioria dos membros de uma comunidade, como
ocorre nos países cuja lei criminaliza a conduta. Nos moldes do critério ma-
joritário, essa compreensão do bem não seria aceitável e seria, portanto, ba-
nida na formulação do consenso sobreposto. Se, ao contrário, se pensa que o
interesse social na regulamentação do tema, ainda que exista algum, não é
convincente o bastante, em todas as circunstâncias, o direito de escolha da
75
Ibidem, p. 140.
56 Teresinha Inês Teles Pires

mulher, sustentado em sua liberdade de consciência, precisa ser assegurado


na esfera da interpretação constitucional. O que é o mesmo que dizer, sob o
prisma do pluralismo abrangente, que esse direito é um direito fundamental
que deve ser incorporado à concepção democrática de justiça.
O planejamento reprodutivo da mulher envolve a escolha do mo-
mento apropriado para se ter filhos, bem como a escolha quanto ao número
de filhos se deseja ter. Esse planejamento constitui uma esfera essencial da
construção de uma boa vida. A visão coletiva, no caso, não é determinante
em relação à visão moral que a gestante adota ao realizar ou não o aborto,
pois se trata de uma escolha tão valiosa para a vida pessoal da mulher ao
ponto de legitimar uma posição neutra por parte do Estado. A conduta da
mulher, no caso, é de natureza “não política”, enquadrando-se entre aquelas
condutas permissíveis, porque tem por suporte uma doutrina razoável do
bem. É claro que esses argumentos sempre se referem à permissão do aborto
até determinado estágio gestacional. O parâmetro de Rawls é o de que o
“consenso sobreposto” deve se adaptar ao “pluralismo razoável” e ao
“princípio da tolerância”, reduzindo a tensão entre os “valores políticos” e
os valores “não-políticos”76. Assim, entende-se que coagir a mulher a levar
a gestação a termo importa na rejeição do pluralismo moral e político, e
solapa a coerência do consenso sobreposto. Tal coação retira da ideia de
adesão à concepção de justiça seu elemento substantivo, qual seja o da
concordância moral dos cidadãos aos termos do acordo. Lembre-se de que
o requisito do autogoverno, ou seja, da igual cidadania na participação das
decisões políticas, perpassa as entrelinhas de qualquer teoria democrática,
não apenas a de Rawls.
Dworkin confere validade à incorporação do pluralismo ético e
moral ao estabelecimento de uma verdadeira democracia constitucionalista.
Também clarifica essa exigência ao situá-la no debate relativo à proteção dos
direitos das minorias e de sua independência ética. A “igualdade política”
(“political equality”) não é assegurada no âmbito das decisões majoritárias
porque nem todos têm as mesmas oportunidades de apresentar os argumen-
tos a favor de suas concepções éticas77.
76
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 222-3, 238, 186,
190 e 195.
77
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 385, 388 e 391. A abordagem da “democracia coparticipativa”, defen-
dida por Dworkin, será feita na próxima seção. Adiante-se, apenas, que a defesa desse
modelo de democracia faz parte do raciocínio desenvolvido pelo autor para atribuir legi-
timidade à atuação dos juízes no procedimento de revisão judicial das leis cujo conteúdo
possa violar as liberdades constitucionais.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 57

É oportuno pontuar que a busca da decisão correta, no tocante à


aceitabilidade dos argumentos éticos, envolve a tolerância à diversidade,
desde que esses argumentos sejam adequados sob o ângulo da responsabili-
dade moral e política, ou seja, das exigências do princípio da dignidade. A
questão é de natureza interpretativa. Através de uma “reflexão compreensi-
va” (“comprehensive reflexion”) as pessoas podem conquistar o reconheci-
mento público do seu direito de viver com base em seus próprios juízos éti-
cos. Como alcançar tal nível ideal de convergência entre a autonomia e a
reponsabilidade moral e política? Elaborando um sistema de valores abran-
gente, no qual a opinião de todos seja endossada, sem que isso transgrida as
necessárias restrições impostas pelo acordo político. Dworkin expressa a
harmonia existente entre a ideia de verdade moral e o pluralismo ético da
seguinte forma: “as pessoas, em sua diversidade, ainda têm que decidir o
que é verdade, e isso é uma questão de justificação das convicções”78.
As mulheres não são totalmente livres para fazer ou não o aborto,
porque o “respeito próprio” lhes impõe levar em conta sua responsabilidade
para com os outros e para com a sociedade política. Elas não são, assim,
totalmente livres para decidir-se de acordo com suas concepções éticas acer-
ca da importância da vida nascitura. Mas é coerente propor que a melhor
doutrina a guiar a definição dos deveres morais e políticos, no que concerne
ao assunto, implica no reconhecimento da autonomia ética das mulheres,
especialmente quando elas conseguem tomar uma decisão, fundamentada no
princípio da dignidade, no início do processo gestacional ou antes da viabili-
dade fetal. As razões para se aceitar o direito de escolha das mulheres, em
tais condições, parecem mais convincentes do que as razões trazidas pela
compreensão do bem que se lhes nega esse direito. Os “valores morais” são
múltiplos79 e as obrigações políticas devem adequar-se a essa pluralidade.
Seja para Rawls, seja para Dworkin, as doutrinas éticas abrangen-
tes sobre o respeito que se deve ter pela vida humana equilibram, como já
afirmado, todos os componentes do princípio da dignidade. Não é preciso
distinguir a abordagem política da abordagem moral para encontrar o melhor
argumento a favor do aborto. Sob o prisma da doutrina do pluralismo, o teste
fundamental para delinear a obrigação moral para com a vida do embrião é o
da justificação da tutela de sua dignidade à luz dos interesses éticos da ges-
tante. Ninguém se oporia ao entendimento de que a vida do embrião deve,
78
Ibidem, p. 38-9 e 48. No original: “People, in their diversity, must still decide what is true,
and this is a matter of the justification of conviction”.
79
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 113.
58 Teresinha Inês Teles Pires

em regra, ser respeitada. O problema é que esse respeito pode afetar o respei-
to pela vida da gestante.
Dworkin sugere que, em tal caso, se deve “calcular” a gravidade do
prejuízo decorrente do argumento moral para os dois lados. Para a aplicação
do teste, a quantificação do prejuízo deve ser objetiva e não conforme a opi-
nião subjetiva de quem irá sofrer o dano80. O primeiro raciocínio, para cons-
truir o melhor argumento, pode levar, por exemplo, à seguinte conclusão:
destruir o embrião antes que ele adquira viabilidade fetal e destruí-lo após
esse tempo não produz o mesmo significado em termos de perda da vida
humana. Por outro lado, o prejuízo sofrido pela mulher, na sua expectativa
de felicidade, pode ser extremamente deletério, o que independe de sua opi-
nião subjetiva sobre o valor intrínseco da vida. A ideia de que a vida poten-
cial não merece o mesmo respeito em todos os seus estágios, para os fins de
um objetivo político importante, justifica a concepção do bem segundo a
qual o aborto não representa violação aos interesses do embrião. Essa con-
cepção do bem é convincente, à luz do pensamento de Dworkin, por unificar
um padrão adequado de responsabilidade moral, em relação ao respeito pela
vida humana, e um compromisso com a coerência pessoal ditada pelo prin-
cípio da autenticidade.
É claro que não é possível estabelecer uma metodologia exata, a
fim de apurar caso a caso o grau do prejuízo à vida da mulher derivado da
maternidade mandatória. Tentar responder até que ponto esse prejuízo priva
a mulher das “oportunidades ordinárias para perseguir uma boa vida”81
acabaria conduzindo a uma resposta incerta. Não há como escapar a uma
margem de independência ética da gestante para formular esse juízo, de ma-
neira que a decisão deve ficar ao seu encargo, sem a ingerência da sociedade.
Isso até o limite em que o interesse da sociedade de intervir, definindo um
juízo coletivo, não se mostra mais digno de aceitação. E a medida desse inte-
resse não é calculável, objetivamente, sem diferenciar o respeito a ser confe-
rido, na ordem jurídica, à vida do embrião, em conformidade com seu mo-
mento evolutivo.
É Dworkin quem pontua, ainda, que o poder coativo do Estado de-
ve atender um esquema integrado de valores, interpretado em conjunto. Nes-
se sentido, liberdade e igualdade interagem entre si, não sendo o caso de
escolher uma ou outra na definição da linha exata entre a intervenção pública
legítima e ilegítima na autonomia ética ou na liberdade de consciência de
80
Ibidem, p. 275.
81
Ibidem, p. 276. No original: “ordinary opportunities to pursue a good life”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 59

cada pessoa82. Esse aparato conceitual, que, diga-se de passagem, é também


o substrato do consenso sobreposto de Rawls, permite inferir a necessária
compatibilização da doutrina ética contrária ao aborto com a doutrina ética
de sua admissibilidade moral. Não há sistema de justiça que não falhe, no
paradigma do pluralismo moral, se excluir do arranjo político uma ou outra
dessas doutrinas.
Cada pessoa que adote uma visão particular sobre o valor da vi-
da nascitura não tem ou não pode ter a pretensão de impô-la aos outros.
Há um problema aqui para conciliar as visões razoáveis com um conceito
moral coletivo normalmente identificado sob o nome de “moralidade
pública” (“public morality”). O padrão da moralidade pública costuma
ser situado pela opinião majoritária em posição suprema, acima de qual-
quer patamar de exigência do princípio da tolerância. Para Dworkin, tal
posição é equivocada, pois deve haver uma tolerância máxima à autono-
mia, desde que consistente com a integridade do direito. É admissível que
a sociedade deseje preservar a conformidade da conduta humana a dete r-
minados valores morais, em questões essenciais à manutenção da paz e
da segurança coletiva. Como exemplo de um padrão moral, cuja impera-
tividade é aceitável, Dworkin cita o caso da monogamia, entendendo que
a proibição jurídica da poligamia se justifica para estabilizar os contornos
da vida social. Como exemplo de uma imposição estatal injustificável,
em termos de moralidade pública, Dworkin menciona a adoção oficial de
uma religião específica. É importante enfatizar, assim, que, em regra, a
moral social é padrão fraco para legitimar, por si só, a coação legal. Uma
“lei criminal” (“criminal law”), sobretudo, não pode se sustentar, exclu-
sivamente, na moralidade pública 83.
Deve-se admitir que a visão da moralidade pública, na maioria das
sociedades, coincide com a tese proibitiva do aborto. Porém, isso pode, no
máximo, justificar que a sociedade, conforme a opinião da maioria dos seus
membros, considere o aborto um ato imoral, mas não justifica que o conside-
re um ato ilegal. O grupo majoritário tem o direito de adotar tal doutrina
82
DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. London: Harvard University Press, 2006. p. 26.
83
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 241-243 e 247-8. Dworkin acentua, ainda, esse entendimento
em sua obra Sovereign virtue: the theory and practice of equality. 4. ed. Cam-
bridge/Massachusetts/London: Harvard University Press, 2002. p. 152, afirmando: “legal
prohibitions cannot be justified on the sole ground that the conduct prohibited is offensive
to some dominant religion or moral orthodoxy”. Em tradução livre: “proibições legais
não podem ser justificadas pelo simples fato de que a conduta proibida é ofensiva para
algumas religiões dominantes ou para a ortodoxia moral”.
60 Teresinha Inês Teles Pires

compreensiva do bem, no que se refere ao valor da vida pré-natal, mas não


tem o direito de exigir que a mesma se transforme, pelo viés da ideia de mo-
ralidade pública, em uma doutrina imperativa no espaço público. O princípio
do pluralismo moral e político, por integrar a estrutura do regime constitucio-
nal, impede a conversão de uma obrigação moral, fixada em parâmetros
majoritários, em uma obrigação legal, salvo, excepcionalmente, se o respeito
ao pluralismo significar uma ameaça à estabilidade social. Como já visto, um
direito moral não pode ser banido na esfera legal em dimensões desnecessá-
rias. Essa compreensão é fortalecida pelo pluralismo democrático.
A título de conclusão da seção, enfatize-se que a contraposição
entre a moralidade pública e a independência ética é passível de ser paci-
ficada pela concessão de um espaço de validade para o direito à livre
formação da consciência individual, sendo que esse espaço inclui o juízo
ético a respeito do aborto. São vários os princípios morais que fundamen-
tam essa abordagem, desde os conceitos interpretativos de eticidade, mo-
ralidade, política e direito, até a composição entre o ideal de justiça e o
acolhimento do pluralismo abrangente. Ver-se-á, a seguir, como todas
essas premissas se conjugam na definição de um modelo contemporâneo
de democracia.

1.4 A CONCEPÇÃO CONSTITUCIONALISTA DA


DEMOCRACIA: LEGITIMAÇÃO DA JUDICIAL
REVIEW NA REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO AO
ABORTO

Ronald Dworkin formula sua concepção de democracia constitu-


cionalista com base na distinção entre dois modelos teóricos de democra-
cia: a “democracia majoritária” (“majoritarian democracy”) e a “democra-
cia coparticipativa” (“partnership democracy”). De acordo com o primeiro
modelo, os poderes políticos são exercidos na forma representativa, na qual
prevalece a opinião da maioria dos cidadãos. Já para o segundo modelo, as
decisões do governo devem ser tomadas com o apoio de todos os membros
da comunidade política, supondo-se ser possível sua participação na cons-
trução de uma sociedade mais justa e inclusiva. Dworkin defende a demo-
cracia coparticipativa como sendo o melhor regime político, porque não se
sustenta exclusivamente em uma regra procedimental, mas vincula o poder
decisório ao compromisso com os aspectos substantivos da justiça. Somen-
te dessa forma, a democracia adquire um sentido genuíno, verdadeiro, e o
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 61

próprio governo representativo é justificado em suas prerrogativas na ela-


boração das leis84.
O que Dworkin tem em mente, ao propor que a verdadeira demo-
cracia se sedimenta na ideia do autogoverno, é a perspectiva da legitimação
da revisão judicial (judicial review). Os juízes podem e devem invalidar leis
majoritárias que solapem a supremacia dos princípios constitucionais. A
judicial review, se aplicada corretamente, contribui para aperfeiçoar a demo-
cracia. Os juízes estão autorizados, nesta abordagem, a realizar, em alguns
casos complexos, juízos de moralidade política, sempre que o critério majo-
ritário importar na violação aos direitos individuais85.
Retorna-se, assim, à base do pensamento de Dworkin, a imbricação
entre a moral e o direito. A aplicação das leis aos casos concretos é mediati-
zada por juízos de moralidade pessoal e política. A integridade do direito
impõe aos juízes uma leitura moral da Constituição, não sendo permitido a
eles, em tese, seguir suas próprias convicções morais86. Em seu poder de
interpretar e definir o que é o direito, os juízes também não podem seguir o
paradigma da moralidade pública ou convencional, uma vez que os deveres
morais e políticos não derivam exclusivamente do “consenso social” (“social
consensus”), e os indivíduos são titulares de alguns direitos que vão além
dos direitos positivados87.
A judicial review tem por alicerce a ideia da integração entre os di-
reitos morais e os direitos legais, o que já se discutiu antes. Essa ideia ofere-
ce um critério convincente para formular o que Dworkin denomina de “con-
dições democráticas” (“democratic conditions”) da igual cidadania e da vali-
dade da deliberação majoritária88. Mostrou-se, anteriormente, que essa com-
preensão da democracia exige que algumas questões de direitos fundamen-
tais sejam retiradas da agenda política e decididas pelos juízes em sede de
interpretação constitucional. Mediante o entendimento de que o aborto é um
84
Cf. DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard
University Press, 2011. p. 384 e 394. Confira-se, ainda, do mesmo autor, Justice in
Robes. London: Harvard University Press, 2006. p. 147, e Sovereign virtue: the theory
and practice of equality. Cambridge/Massachusetts/London: Harvard University Press,
Fourth printing, 2002. p. 358 e 363-5.
85
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 394, 396 e 398. E, também, Life`s dominion: an argument about abor-
tion, euthanasia and individual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 120.
86
DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution.
Cambridge, Massachussets: Havard University Press, 1996. p. 3, 7 e 11.
87
Ibidem, p. 57 e 60.
88
Ibidem, p. 17.
62 Teresinha Inês Teles Pires

direito fundamental dessa espécie, sendo tal classificação algo que decorre
da proteção da liberdade de consciência no regime democrático, os juízes
devem determinar quais os limites de sua aceitabilidade no âmbito legal. Na
leitura ora apresentada, o suporte jurídico, que serve de guia para essa deli-
mitação, seria exatamente a construção de um conteúdo satisfatório e justo
para a independência ética, e, particularmente, para a autonomia procriativa.
No entanto, tal resposta ainda é incompleta, considerando ser ne-
cessário justificar por que a decisão sobre a legalidade ou ilegalidade do
aborto não seria mais democrática se ficasse nas mãos dos legisladores. Em
rigor, os legisladores também estão autorizados a formular juízos morais e
políticos relativos aos direitos fundamentais. Eles podem cometer erros, mas
os juízes não estão isentos de incidir no mesmo risco. Se não fosse possível
considerar a categoria dos direitos morais, insiste Dworkin, todas as decisões
de moralidade política deveriam ser tomadas pelas instituições da democra-
cia representativa. O direito ao aborto é um direito moral, porque pode ser
reivindicado contra o Estado e contra a opinião majoritária. Regra geral,
decisões que envolvam os direitos das minorias não podem ser tomadas pe-
las maiorias, já que se lhe são contrapostas. Esse é o paradoxo lançado por
Dworkin: como os direitos morais, sendo caracterizados como direitos con-
tra o Estado e a opinião majoritária, podem ser decididos nos parâmetros de
sua “aceitabilidade social” (“social acceptability”)?89.
Aqueles que estão no exercício do poder político não devem “ser
os únicos juízes de suas próprias decisões”90. Em um contexto político histo-
ricamente proibitivo da prática do aborto, como conferir aos legisladores
poder exclusivo na interpretação das exigências do Estado constitucional? A
doutrina da justiça em Rawls proporciona base crítica apropriada para afir-
mar a legitimidade da autoridade judicial na apreciação do tema do aborto.
Qualquer tentativa de construir uma “democracia constitucional” pressupõe
a supremacia dos “valores” “incorporados à Constituição”. O esquema social
tem que assegurar a liberdade de consciência no sentido constitucional, não
somente no “sentido político”91.
Reservar à função adjudicatória dos juízes o poder de intervir na
regulamentação do direito ao aborto não conduz à desestabilização do poder
político. A concepção democrático-constitucional da justiça discrimina quais
são as liberdades fundamentais e possibilita a derivação de outras liberdades
89
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 141-3 e 146.
90
Ibidem, p. 143.
91
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 79 e 213.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 63

não expressas, dado o caráter aberto da carta de direitos, sem que isso desfa-
ça a base do consenso político92. A legitimação da judicial review, na inter-
pretação da tutela jurídica do direito ao aborto, não cria um confronto irreso-
lúvel entre as fronteiras de cada um dos poderes institucionais. Simplesmen-
te, como já dito, tanto o poder legislativo quanto o poder judiciário têm legi-
timidade para regulamentar a prática do aborto com fundamento em testes
próprios da análise constitucional. O problema é que, em boa parte dos paí-
ses, o poder legislativo não conseguiu submeter o procedimento majoritário
às premissas da democracia constitucional, deixando à margem a abordagem
das restrições impostas pela linguagem dos direitos individuais93.
O exercício do poder político, em qualquer de suas instâncias, tem
por medida a correspondência dos seus veredictos às normas constitucionais.
Não basta a positivação jurídica dos direitos de liberdade. Há que se encon-
trar uma metodologia política que determine como as instituições governa-
mentais ou não governamentais devem ser organizadas, para viabilizar, da
maneira mais justa possível, o exercício da cidadania moral em igualdade de
condições94.
A Suprema Corte dos países democráticos pode desenvolver me-
lhores estratégias argumentativas para escapar ao domínio das maiorias, que
se mostram mais articuladas no avanço de suas posições na esfera da delibe-
ração coletiva. Nesse contexto, a atuação da Suprema Corte na garantia dos
direitos individuais tem conotação democrática no sentido da inclusão dos
interesses das minorias95. Se a Suprema Corte define a moldura do direito ao
92
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 271-3.
93
Dworkin explicita essa constatação na seguinte passagem: “Judicial review may well be
less necessary in nations where stable majority have a strong record of protecting the le-
gitimacy of their government by correctly identifying and respecting the rights of individ-
uals and minorities. Unfortunately, history discloses few such nations, even among the
mature democracies” (DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambrid-
ge/Massachusetts: Harvard University Press, 2011. p. 398). Em tradução livre: “A revisão
judicial pode muito bem ser menos necessária em países onde a maioria estável tem um
forte histórico de proteção da legitimidade de seu governo por identificar corretamente e
respeitar os direitos dos indivíduos e das minorias. Infelizmente, a história revela poucas
dessas nações, mesmo entre as democracias maduras”.
94
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 338.
95
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 182 e 284. Em
linhas gerais, a teoria da democracia de Rawls, assim como a de Dworkin, tem estreita
vinculação à incrementação do controle de constitucionalidade das leis. Ver, nesse senti-
do, MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido processo legal substantivo: razão abs-
trata, função e características de aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.
344-7. A autora também reforça a natureza inclusiva da atividade do Poder Judiciário no
64 Teresinha Inês Teles Pires

aborto, a partir da aplicação de cláusulas ou testes constitucionais, em um


país, cuja legislação repudia sua admissibilidade moral, está, em realidade,
incorporando direitos minoritários ao esquema constitucional de proteção
igual da liberdade de consciência. Ninguém há de negar que os direitos das
maiorias contrárias à prática do aborto estão suficientemente protegidos pe-
las decisões legislativas. Por isso, a judicial review atende à necessidade de
proteção das minorias que defendem a liberdade de escolha da gestante, e,
efetivamente, a proteção das mulheres que desejam realizar o aborto.
Rawls defende a atuação da Suprema Corte como sendo o principal
exemplar de efetivação do paradigma de uma razão pública, considerando o
apelo e o comprometimento dos juízes com as restrições estabelecidas na
Carta de Direitos, especialmente aquelas que advêm das cláusulas do devido
processo legal e da igual proteção perante a lei. Nessa medida, a democracia,
na perspectiva constitucionalista, caracteriza-se por um dualismo sistêmico.
De um lado, o poder legislativo ordinário, e de outro, o poder constitucional,
de maior hierarquia normativa. Ao aplicar os pressupostos da razão pública,
a Corte impede que os preceitos constitucionais sejam violados pelas leis
ordinárias. O padrão da razão pública impõe, ainda, que os juízes deixem de
invocar seus valores pessoais ou quaisquer visões morais particulares en-
quanto fundamentos de suas decisões. Ao afirmar, aqui, o protagonismo da
Suprema Corte, Rawls solidifica a ideia de que a razão pública tem por con-
teúdo uma concepção política de justiça que atribui caráter prioritário a de-
terminadas liberdades básicas, expressamente ou implicitamente consignadas
na Constituição96.
No tocante ao aborto, Rawls explica que a questão deve ser solucio-
nada à luz de três valores políticos: o “devido respeito” (“due respect”) pela
vida humana, a necessidade da reprodução da sociedade política, inclusive
da instituição familiar, e a igual consideração da cidadania das mulheres. O
esquema traçado por Rawls sustenta que qualquer doutrina compreensiva do
bem que exclua o direito das mulheres ao aborto, no primeiro trimestre da
gestação, não é razoável, porque, nesse estágio, o valor político da igualdade
das mulheres se sobrepõe aos outros valores. Negar-lhes esse direito seria
incompatível com a ideia de razão pública. Afirma, ainda, que um raciocínio

que concerne à proteção das minorias políticas, na medida em que se entende que a “regra
da maioria” não se identifica com a democracia, sendo apenas “uma das técnicas à dispo-
sição” da efetivação do regime democrático. A Democracia não se define por critérios
procedimentais, e sim por padrões que garantam a concretização “de direitos materiais e
de real e igual participação” (Ibidem, p. 384-5).
96
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 223, 232-3 e 236.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 65

razoável pode conceder esse direito à mulher, mesmo após tal estágio, em
determinadas hipóteses97.
Observe-se que Rawls situa a análise do tema na perspectiva de um
modelo de interpretação constitucional, construído por meio da utilização
das categorias da liberdade e da igualdade na qualidade de padrões originá-
rios da garantia das liberdades básicas. O autor, mais adiante, no mesmo
texto, acrescenta que a regulamentação do direito ao aborto envolve a defini-
ção do âmbito central de proteção da independência ética, no sentido de de-
terminar o que está ou não incluído nesse espaço individual de formação de
valores morais. A liberdade de consciência é, assim, uma dimensão que inte-
gra o valor político da igual cidadania das mulheres. Isso é o mesmo que
dizer que a conversão do direito ao aborto de um direito puramente moral em
um direito legal tem por fundamento a garantia institucional da “igual liber-
dade de consciência”, seja majoritária ou minoritária no cenário político98.
É claro que a análise constitucional dos temas sensíveis é bem mais
complexa. No caso do aborto, não se propõe, neste estudo, a aplicação direta
da liberdade de consciência, em termos exclusivos, à proteção da autonomia
ética da mulher. A interpretação tem que englobar também a concretização
das cláusulas fundamentais do devido processo legal e da igual proteção
perante a lei. O direito ao aborto, na dimensão das restrições constitucionais
à prevalência da opinião majoritária, se configura pela unificação do rol de
liberdades fundamentais, que, em conjunto, conferem imperatividade aos
direitos morais. O direito ao aborto está protegido pela liberdade de cons-
ciência, porque a liberdade genérica e a igualdade, ambas em sentido subs-
tantivo, alicerçam a tese de que a categoria dos direitos morais seja articulá-
vel na descoberta de direitos fundamentais não expressos na Constituição99.
A cláusula da consciência acresce aos princípios abstratos maior exatidão
analítica, no tocante ao substrato moral da defesa constitucional do direito ao
aborto.
A validade da lei que proíbe ou restringe o aborto depende de uma
interpretação moral da Constituição, haja vista que seus preceitos não garan-
tem o reconhecimento da totalidade dos direitos morais, e sequer explicam o
que são esses direitos perante a lei100. Pode-se situar o direito ao aborto na
qualidade de um direito à liberdade de consciência, na medida em que o
97
Ibidem, p. 243-4, nota 32.
98
RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 351 e 366-7.
99
Ver, a esse respeito, DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cam-
bridge/Massachusetts: Harvard University Press, 1977/1978. p. 134-138.
100
Ibidem, p. 186.
66 Teresinha Inês Teles Pires

regime democrático exige que a sociedade organizada conceda um espaço


privativo para a adoção de convicções éticas na solução de diversos proble-
mas afetos ao planejamento da vida. Para Dworkin, essa concessão é a base
normativa da liberdade religiosa, que, como se adensará adiante, tem por
matriz a liberdade de consciência, assim como é a base normativa da cláusu-
la do devido processo substantivo101.
Os tribunais superiores precisam aperfeiçoar uma interpretação
convincente do significado material dessas cláusulas fundamentais. Trata-se
de uma atuação hermenêutica que deve refletir, em primeiro lugar, o que
representa a “fidelidade” (“fidelity”) das leis ordinárias à Constituição. Essa
questão antecede a pergunta relativa ao melhor arranjo institucional a ser
estabelecido para tornar efetivos os dispositivos constitucionais. Não importa
tanto colocar em tensão o poder legislativo e o poder judiciário, como se
fosse a essência do debate determinar a qual desses poderes atribuir a autori-
dade para dar a última palavra sobre um assunto ou outro102.
O sistema jurídico deve enfrentar a demanda pelo reconhecimen-
to do direito ao aborto, buscando delimitar em que grau tal direito é fun-
damental o bastante para enquadrar-se na lista das liberdades básicas103. É
oportuno perguntar: qual espécie de legislação é compatível com as cláusu-
las do devido processo substantivo, da igual proteção perante a lei e da
liberdade de consciência? Essa compatibilidade está preservada, mais ade-
quadamente, na legislação que proíbe o aborto, na lei que o restringe ou na
lei que o permite de forma mais liberal? Parece que a posição intermediá-
ria, que legitima determinadas restrições à prática do aborto, sem proibi-lo,
ao menos nos estágios iniciais da gestação, é mais equilibrada e baliza
todos os interesses envolvidos, os da mulher, os do feto e os interesses
interventivos do Estado. Nesse caso, quais são as restrições que apresentam
consistência com aquelas cláusulas constitucionais? Depois de empreender
essa reflexão, aí sim, em um segundo momento, é necessário analisar se o
governo está implementando, através de seus legisladores, o compromisso
com a supremacia da Constituição, em relação à autonomia procriativa, e
qual o nível de ativismo judicial é necessário para compensar o descom-
passo legislativo no trato da matéria.
Os testes constitucionais estão na base da proposta interpretativa
defendida por Neil MacCormick. Para o autor, a justificação das leis se-
101
DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. London: Harvard University Press, 2006. p. 134.
102
Ibidem, p. 120 e 122-3.
103
Ibidem, p. 123.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 67

gue um procedimento derivativo. Isso quer dizer que a vinculação obriga-


tória das regras normativas aos comandos da Constituição se atém aos
princípios nela enunciados. Por outro lado, tal exigência de coerência
pode ser estendida de modo a alcançar novos direitos constitucionais que
decorram dos direitos expressamente enumerados. MacCormick explica
que uma derivação dessa espécie não é necessariamente dedutiva, mas os
juízes têm que fundamentar suas decisões a partir do que está explicitado
nas normas positivadas 104. O Supremo Tribunal não pode simplesmente
dizer que o aborto é um direito fundamental. Tem que mostrar em qual
dos princípios enunciados na Constituição esse direito está incluído. A
ideia dos direitos não enumerados, ou implícitos, requer uma congruência
com os direitos enumerados.
Seguindo esse caminho, que não desestabiliza o positivismo sis-
temático, um outro aspecto importante, para legitimar a atividade herme-
nêutica dos juízes, reside no reconhecimento da insuficiência dos preceitos
constitucionais mais abstratos. Permitir que os juízes sustentem o direito ao
aborto unicamente nos conceitos genéricos de liberdade e igualdade, tal
como descritos na carta de direitos, ainda parece desafiar o respeito a ser
concedido ao texto da lei. Para invalidar uma lei ordinária que restringe o
aborto, não basta apelar para aqueles conceitos, que, de tão abertos, dão
margem a um certo subjetivismo. Aqui entra a postulação central da pre-
sente investigação, ora explicitamente declarada, ora implicitamente supos-
ta ao longo de todo o presente estudo: a liberdade de consciência e de reli-
gião é a cláusula específica que guarnece a fundamentalidade do direito ao
aborto. Essa é a cláusula que protege o direito ao aborto, porque ela envol-
ve os componentes conceituais da independência ética, do pluralismo ideo-
lógico e da dignidade humana.
A adequação das normas positivadas aos princípios morais e aos
precedentes judiciais equaciona os problemas apontados pela teoria da
argumentação jurídica formulada por MacCormick, e torna sua aborda-
gem consistente com a concepção da democracia constitucionalista, no
que pese sua filiação assumida ao positivismo de Herbert Hart105. O Su-
premo Tribunal pode, desse modo, derivar o direito ao aborto a partir de
determinadas liberdades básicas, dentre as genéricas e as específicas,
construindo “uma leitura particular da lei”, cujo conteúdo bane do siste-
104
MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 23-4, 25-6 e 136.
105
Confira-se, nesse sentido, a obra citada na nota supra, MACCORMICK, Neil. Argumen-
tação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 301-7, onde o au-
tor analisa a perspectiva dos princípios de Ronald Dworkin.
68 Teresinha Inês Teles Pires

ma de proteção constitucional a admissibilidade da decisão da mulher de


interromper a gestação. Reconhecer que os princípios constitucionais
identificam direitos individuais específicos que se sobrepõem às regras
legislativas é uma questão difícil. Não é algo justificável sem uma abor-
dagem interativa entre princípios e regras 106.
A regulamentação do aborto por intermédio da “adjudicação cons-
titucional” (“constitutional adjudication”) é também defendida por Reva
Siegel, levando-se em consideração que as Cortes, normalmente, buscam
uma integração entre o conteúdo dos princípios constitucionais, a fim de
evitar a alegação de estarem atuando de forma discricionária. Assim, as Cor-
tes não estão impondo valores desconectados do sistema de princípios e re-
gras, pois utilizam técnicas e testes sustentados em diretivas interpretativas,
com o intuito de introduzir, na política, as exigências veiculadas pelas nor-
mas constitucionais. Saliente-se que essa proposição é endossada pela dou-
trina da força normativa da Constituição, que postula a positividade do direi-
to constitucional. Daí se extrai a vinculação do legislador aos preceitos fun-
damentais constitucionais e, ainda, o padrão de sua aplicabilidade imediata
aos casos concretos, que, por sua vez, sustenta o decreto de inconstituciona-
lidade das leis incompatíveis com a Carta de Direitos107.
Os juízes, no ideário hercúlico de Dworkin, precisam testar a inter-
pretação que reputem a mais correta, para um dado caso, relacionando-a às
decisões precedentes da comunidade política. Não basta computar quais as
decisões corroboram uma ou outra possível interpretação da regra jurídica; é
primordial averiguar, sobretudo, quais as decisões se apoiam, com maior
importância, nos princípios constitucionais, cuja precedência é passível de
ser afirmada com suporte em uma teoria política coerente, apta a justificar o
sistema de justiça como um todo. Pode-se chegar à conclusão de que as deci-
sões políticas devem ser respeitadas, em grande parte dos casos e, ao mesmo
tempo, admitir que tal presunção perde sua consistência, chegando até mes-
mo a ser eliminada, em algumas circunstâncias, quando “sérios direitos
constitucionais estão em questão”108.
106
Ibidem, p. 280 e 325-6.
107
SIEGEL, Reva B. The constitutionalization of abortion. In: Abortion law in transna-
tional perspective. Pennsylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 14-
5. Confira-se, ainda, no tocante à sobreposição das normas constitucionais no ordenamen-
to jurídico, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constitui-
ção. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1176-9.
108
Conforme DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge/Masschusetts: Harvard
University Press, 1986. p. 245-9 e 257. No original: “serious constitutional rights are
in question”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 69

Entende-se que o conceito de direito fixado pelo constituciona-


lismo democrático se distingue do conceito derivável da democracia
majoritária exatamente pela centralidade reflexiva no método analítico
acima esboçado. O poder atribuído aos juízes de, em sede de judicial
review, modificar os julgamentos de “moralidade política” endossados
pelos legisladores não é, por definição, “antidemocrático” (“antidemo-
cratic”)109. Essa autoridade tem seus limites, e deve circunscrever-se em
uma interpretação da lei que não importe necessariamente em sua reve r-
são integral.
Nessa dimensão, Dworkin enfatiza, inclusive, que o conceito de di-
reito próprio da concepção de justiça de Rawls, baseado na ideia do consen-
so sobreposto, igualmente não confere suporte incondicional à democracia
majoritária. Ademais, trata-se de uma concepção que formula critérios para a
escolha dos argumentos que devem conduzir a atuação jurisdicional. Não há
nenhuma incongruência entre o método da concretização dos princípios no
julgamento de casos específicos e a teoria da justiça como equidade. Como
já demonstrado, nenhum dos princípios da justiça de Rawls chancela uma
visão positivista exclusiva que impeça os juízes de ir além do simples ato de
preencher as lacunas da lei, na tentativa de justificá-las com fundamento em
argumentos de princípios. O justo equilíbrio estrutural entre a lei e um cor-
reto esquema interpretativo é parâmetro aplicável ao caso do aborto, de ma-
neira que seja razoável sugerir que o assunto possa receber definição mais
adequada na esfera da adjudicação judicial. Pressupondo-se o pluralismo
moral e político, os juízes devem fixar uma posição constitucional dos inte-
resses do feto que concilie as visões abrangentes do significado intrínseco da
vida humana110.
Na medida em que emitem esse julgamento de valor, os juízes pro-
ferem uma decisão de moralidade política, que conduz à institucionalização
do direito moral ao aborto. Não há como pacificar a controvérsia sobre os
interesses da vida pré-natal sem assumir uma concepção particular no tocan-
te aos limites de sua proteção legal. A lei que criminaliza o aborto contém
em si uma visão moral sobre a tutela do embrião, determinada pela opinião
da maioria, que é igualmente uma visão particular. A interpretação dessa lei
envolve exatamente a análise do acerto ou desacerto da compreensão do
valor da vida por ela endossado, do ponto de vista das premissas da demo-
cracia coparticipativa, que leva em conta os direitos das pessoas que adotam
109
DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. London: Harvard University Press, 2006. p. 133.
110
DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. London: Harvard University Press, 2006. p. 242,
246-8, 253-6 e 258.
70 Teresinha Inês Teles Pires

visões de bem minoritárias. Ampliar a proteção do direito ao aborto, para


alcançar outras hipóteses além das que são permitidas pela legislação, pode
ser uma exigência da democracia quando se vislumbra a necessidade da efe-
tivação de um direito moral arguível contra o Estado. A perspectiva da ex-
tensão do direito ao aborto não se contrapõe à esfera da legalidade, ao con-
trário, reforça a importância da lei em sua intersecção com os princípios
fundamentais111. Como bem salienta Carlos Santiago Nino, somente pelo
estabelecimento de uma interação entre as leis e os princípios, os juízes se
tornam capazes de desempenhar “seu papel de intermediários entre a coa-
ção e a justiça”112.
Regra geral, a legalização do aborto, no âmbito do direito cons-
titucional, se efetiva através do alargamento das hipóteses de sua admis-
sibilidade. O decreto de rejeição da norma punitiva se operacionaliza em
parâmetros relativos. As restrições ao aborto podem ser consideradas
inconstitucionais, mas não em sua integralidade. Imagine-se que o poder
jurisdicional, ao analisar a validade de uma lei que proíbe o aborto, salvo
em situações muito excepcionais, proferisse uma decisão liberando sua
realização durante todo o período gestacional. Se assim o fizesse, a Corte
estaria ultrapassando os limites objetivos impostos pela lei à sua legítima
atuação. Mas, se os juízes decidem, diferentemente, declarar que o abor-
to, por ser um direito fundamental derivável de determinados preceitos
constitucionais, pode ser praticado desde que a mulher faça essa escolha
até determinado estágio da gravidez, estão, na realidade, preservando a
estrutura da lei que o proíbe. A proibição permaneceria válida durante o
período gestacional mais avançado, em face da obrigação moral de res-
peito à dignidade da vida nascitura.

1.5 CONCLUSÃO PARCIAL

O estudo feito, no primeiro capítulo, permitiu compreender que


a defesa do caráter fundamental do direito ao aborto envolve a leitura
moral da Constituição. A leitura moral não encontra respaldo teórico em
qualquer concepção de democracia, mas, somente, em uma doutrina que
tenha por pressuposto a unificação metódica do pensamento moral, polí-
111
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/19788. p. 90, 124, 147 e 149.
112
NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. 2. tir. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2013. p. 513.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 71

tico e jurídico, em uma visão holística. Dentro desse recorte da teoria


democrática, evidenciou-se que alguns direitos morais estão na base das
cláusulas constitucionais de direitos fundamentais. Ademais, explicitou-
se por que o aborto deve ser concebido como um direito moral derivado
das categorias da independência ética e do pluralismo ideológico. Por
fim, sustentou-se a tese de que o direito ao aborto está incluído, em ter-
mos constitucionais, na proteção conferida pela cláusula da liberdade de
consciência e de religião.
Nesse quadrante, concluiu-se que a legitimidade do poder revisio-
nal dos juízes de modificar, sem anular integralmente, as leis que criminali-
zam a prática do aborto de forma incompatível com os preceitos constitucio-
nais, deve se apoiar na adoção de critérios de interpretação consistentes, que
conjuguem os aspectos substantivos dos princípios da liberdade, em sentido
genérico, da igualdade e da liberdade de consciência. A possibilidade de
ultrapassar as restrições legislativas, com a ampliação do direito da gestante
de interromper a gestação, se fundamentada, através de uma análise inclusi-
va, no significado abrangente daquelas cláusulas fundamentais, não resulta
em uma decisão arbitrária dos juízes. O aperfeiçoamento do esquema consti-
tucional de proteção à autonomia ético-procriativa da gestante, no tema es-
pecífico do direito ao aborto, reforça, ao contrário de solapar, as bases do
regime político democrático.
72 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 73

Capítulo 2

O SIGNIFICADO CONSTITUCIONAL DA
DIGNIDADE HUMANA E DA LIBERDADE
RELIGIOSA EM FACE DOS DIREITOS
REPRODUTIVOS

Tentar-se-á, nessa sede, percorrer as possibilidades de concretiza-


ção do princípio da dignidade humana, definindo, com maior apuração, sua
aplicabilidade aos interesses do nascituro e aos direitos reprodutivos das
mulheres. Neste segundo capítulo, a busca do conteúdo substantivo da dig-
nidade se guiará pela dimensão do direito constitucional e não da teoria da
moralidade política, como se procedeu no capítulo anterior. É claro que a
dignidade, enquanto um conceito moral, é a base da construção do seu signi-
ficado jurídico. No âmbito jurídico, a dignidade é uma cláusula fundamental
interligada à proteção da integridade moral individual, de modo a tornar
possível a justificação do direito ao aborto com base em uma concepção de
personalidade desfocada dos parâmetros biológicos da formação da indivi-
dualidade genética113.
Considera-se importante trazer à baila os argumentos da vertente
feminista, segundo os quais o princípio da igualdade sexual é o que melhor
sustenta a legalização do aborto, a fim de ressaltar o peso opressivo do con-
113
A fim de se facilitar a compreensão da relação entre os direitos fundamentais individuais e
os direitos de personalidade, cite-se MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucio-
nal. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV, p. 56: “direitos de personalidade” […] “são di-
reitos de exigir de outrem o respeito da própria personalidade; têm por objeto não algo
de exterior ao sujeito, mas modos de ser físicos e morais da pessoa ou bens da personali-
dade física, moral e jurídica”.
74 Teresinha Inês Teles Pires

trole político sobre a liberdade reprodutiva das mulheres. Defender-se-á, em


contrapartida, que a utilização da categoria de gênero no tema do aborto
deve estar inserida no argumento primário da autonomia moral, único a atri-
buir às mulheres, em sentido amplo, a condição de igual cidadania.
Além disso, o preceito da liberdade de consciência será aperfei-
çoado, em sua interação com o direito ao aborto, na perspectiva de aden-
sar a sugestão de que a defesa da tutela obrigatória do nascituro, desde o
início da gestação, não se sustenta em parâmetros constitucionais. Com
esse objetivo, far-se-á uma interpretação da tese de Ronald Dworkin no
sentido de ser a cláusula da consciência o fundamento mais abrangente
do direito ao aborto, em face das múltiplas compreensões acerca da ideia
de sacralidade da vida humana.

2.1 A DIGNIDADE HUMANA NO ÂMBITO DA


CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO AO ABORTO: COMO
MOLDURAR A DIGNIDADE DO NASCITURO E A
DIGNIDADE DA MULHER

Sem que se tenha a intenção de relatar a origem histórica da ideia


de dignidade humana, inicialmente concebida em um contexto teológico-
-cristão, partir-se-á, em face dos propósitos da obra, da noção introduzida
pela racionalidade moderna, durante os séculos XVII e XVIII, que sustenta o
modelo do Estado laico e os princípios jurídicos da igualdade e da liberdade
moral114. O significado moral-racional do princípio da dignidade e sua con-
sequente desvinculação da dimensão religiosa converteu-se em pressuposto
universal da teoria do direito a partir da proposição kantiana, tão conhecida,
de que o homem deve ser considerado nunca como meio, mas sempre como
fim em si mesmo115.
A proteção da dignidade exige a análise do seu conteúdo nas rela-
ções concretas vivenciadas pelo ser humano. Mais ainda essa análise é ne-
cessária no tocante à polêmica proteção da dignidade do nascituro. Se o
aborto representa agressão à dignidade do embrião ou feto, não é questão
114
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
p. 37-38.
115
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70,
1986, BA.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 75

que possa ser respondida sem que se a posicione sob o prisma de sua notável
contraposição à dignidade da mulher de escolha de convicções individuais.
O status moral do embrião sempre foi questão ambivalente. Ne-
nhuma área do conhecimento humano, desde a filosofia até a medicina, con-
seguiu, até os dias de hoje, fornecer uma resposta unívoca no que diz respei-
to ao tratamento que deve ser conferido ao embrião na sistemática constitu-
cional e política, de modo a apaziguar com segurança as controvérsias que se
articulam no debate público sobre o assunto. De todo modo, o conceito jurí-
dico de personalidade não é o vetor correto da argumentação, como se mos-
trará abaixo. Pode-se, no máximo, legitimar a tutela da vida pré-natal de
acordo com o estágio de sua evolução biológica. Nesse caso, não seria refu-
tada, incondicionalmente, nenhuma das duas teses: nem a de que o nascituro,
na qualidade de um ente potencialmente predisposto ao nascimento com
vida, possua interesses tuteláveis, ao menos a partir de determinado estágio
da gestação, nem a de que a aquisição da personalidade plena somente ocor-
re após o nascimento. Quanto à primeira tese, a proteção do nascituro seria
legitimada, seja com espeque no conceito de viabilidade – possibilidade de
existência fora do útero – seja com espeque na formação das habilidades
cognitivas e sensitivas116.
No Brasil, diga-se de passagem, o Código Civil adota textual-
mente a teoria natalista, determinando que o início da personalidade civil
começa no nascimento com vida. O Supremo Tribunal Federal teve opor-
tunidade de firmar posicionamento nesse sentido, no julgamento da ADIn
3510, já mencionada na introdução do presente estudo. O Rel. Min. Carlos
Ayres Britto, adotando a tese de que a potencialidade da vida embrionária
não impõe que se atribua aos embriões congelados o mesmo tratamento
concedido às pessoas, nascidas com vida, concluiu que não se pode falar,
no caso, de “pessoa humana embrionária”, mas, no máximo, de “embrião
de pessoa humana”117. Essa constatação, por si só, não resolve o dilema
moral em torno do aborto, pois negar que o feto seja pessoa não importa
em negar que ele possua interesses passíveis de tutela por parte do Esta-
do, nem tampouco negar que a ideia de potencialidade da vida não seja
116
LUKER, Kristin. Abortion and the politics of motherhood. Berkeley/Los Ange-
les/London: University of California Press, 1985. p. 3, 5 e 180.
117
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 10 maio 2013, fl.
172. Ainda será objeto de análise, em capítulo próprio, o julgamento da ADIn 3510. A in-
tenção será mostrar que esse julgamento representa o primeiro precedente que deve norte-
ar a atuação futura do STF, se lhe for dada a oportunidade de construir uma interpretação
constitucional do direito ao aborto.
76 Teresinha Inês Teles Pires

ainda uma questão a ser pontuada na tentativa de justificar a legitimidade


do direito ao aborto.
Para que se alcance uma resposta satisfatória, nesse ponto, é ne-
cessário considerar, inicialmente, a importante distinção entre os concei-
tos de “dignidade humana”, que se refere à “humanidade como um todo”,
e “dignidade da pessoa humana”, que se refere a uma “pessoa humana
individualmente considerada”. A ideia de que o aborto, assim como a
utilização das técnicas de biotecnologia em geral, possam violar a digni-
dade fetal somente tem sentido quando se pensa na dignidade humana
como um conceito genérico 118.
Dworkin desenvolve uma investigação minuciosa sobre o estatuto
jurídico do feto, debruçando-se não na interpretação do conceito de persona-
lidade, isto é, não na solução da questão de se o feto é ou não pessoa, mas
sim na avaliação de se o feto “em si mesmo” possui direitos e interesses
desde o instante da concepção119. Se a resposta a essa pergunta for positiva, o
argumento a favor da legalização do aborto torna-se facilmente refutável, eis
que não seria possível restringir a proteção da vida nascitura, mesmo sob a
pressuposição de não se tratar de pessoa humana.
O raciocínio de Dworkin parte de uma distinção entre os tipos de
objeções que podem ser feitas ao direito ao aborto:
a) a “objeção derivativa”, segundo a qual o feto é equiparado ao ser
humano nascido com vida, possuindo, portanto, o Estado uma
“responsabilidade derivativa” de proteger os seus interesses;
118
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 63-
64. Também MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra:
Coimbra, 1993. t. IV, p. 169, chama a atenção para o fato de que a dignidade da pessoa
humana, como base da Constituição de Portugal, é a da “pessoa concreta, na sua vida real
e quotidiana”, “ o homem ou a mulher”, e não a “dignidade humana” como categoria di-
rigida à qualidade do que é humano em si mesmo. Em contexto argumentativo distinto,
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 51-3, distingue, igualmente, aqueles dois sentidos de dignidade humana, e escla-
rece que sua abordagem do valor intrínseco do homem diz respeito à sua existência en-
quanto espécie, valor esse derivado, portanto, de um conceito genérico de dignidade. Na
sua visão, esse conceito confere aos embriões apenas o direito à proteção específica contra
o risco da instrumentalização da vida. Habermas afirma, ainda, ser equivocada a ideia de
que o conteúdo da dignidade seja estendido, sob o prisma constitucional, à proteção da vi-
da humana “desde o início”, o que levaria à interrupção do debate sobre o tema e ao ani-
quilamento do “pluralismo ideológico” (HABERMAS, Jürgen. Op. cit., p. 41 e 92).
119
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 9.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 77

b) a “objeção destacada”, segundo a qual o feto não possui os


mesmos direitos conferidos à pessoa humana, mas o governo
deve tutelar seus interesses em consideração ao valor intrínseco
da vida humana.
Para o autor, o desacordo em torno do aborto se fundamenta, na rea-
lidade, na segunda objeção (“objeção destacada”) e não na primeira (“obje-
ção derivativa”), tratando-se de uma controvérsia moral e não biológica120.
O pensamento de Dworkin é dotado de uma sofisticação ímpar, e
direciona, da forma mais correta, a solução do inigualável impasse que con-
torna o tema do aborto. Não é preciso definir se o feto é ou não pessoa, afir-
ma o autor, porque o que está em questão não é essa definição, e sim, a im-
prescindibilidade de se delinear se o feto possui o direito de receber da lei o
mesmo tratamento conferido à pessoa humana, ou seja, se os requisitos dire-
cionados à preservação de sua dignidade são os mesmos aplicáveis à pessoa
nascida com vida. A questão jurídica presente, na indagação acerca do direi-
to do feto à vida, caracteriza-se como uma questão moral. Confira-se, nesse
aspecto, as próprias palavras de Dworkin:

Eu considero, portanto, a questão legal – se o feto é uma pessoa constitu-


cional – como sendo a questão de se a Constituição exige que os estados
tratem um feto enquanto possuindo os mesmos direitos que possuem as
crianças e os adultos; e a questão moral – se o feto é uma pessoa moral –
como sendo a questão de se ao feto deve ser conferido os mesmos direitos
morais que as crianças e os adultos inegavelmente possuem 121.

Assim, o significado do termo “pessoa”, em tal contexto argumen-


tativo, é meramente heurístico e pragmático. Dizer que o feto é pessoa cons-
titucional é o mesmo que dizer que ele possui os direitos morais, na concep-
120
Ibidem, p. 11 e 13-4; e também p. 22-3 e 68-9. No original: “derivative objection” [...]
“derivative responsibility” [...] “detached objection”. Ver, ainda, do mesmo autor, Free-
dom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge, Massachussets:
Harvard University Press, 1996. p. 84-7; e Unenumereted Rights: Whether and How Roe
Should Be Overruled, 59 University of Chicago Law Review 381, Winter 1992. p. 396.
121
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 23. No original: “I therefore take the
legal question – whether a fetus is a constitutional person – to be the question of whether
the Constitution requires states to treat a fetus as having the same rights as children and
adults; and the moral question – whether a fetus is a moral person – to be the question of
whether a fetus should be given the same moral rights as children and adults undeniably
have” (tradução livre).
78 Teresinha Inês Teles Pires

ção que se enunciou no primeiro capítulo desta obra, próprios da pessoa


humana. Segundo Dworkin, como ainda se falará adiante, o feto efetivamen-
te pode ser dotado desses direitos, ou seja, pode-se assegurar seus interesses
em consideração ao que ele representa, em si mesmo, independentemente da
questão destacada da sacralidade intrínseca da vida, a partir do sétimo mês
de gestação. Por essa razão, nesse estágio, o Estado pode legitimamente proi-
bir o aborto sem que isso implique em violação à autonomia procriativa da
mulher. Tomar-se-á essa conclusão como sendo paradigmática na presente
reflexão: o feto não se torna uma pessoa, no sentido conceitual-sistêmico do
termo, a partir de determinado estágio do desenvolvimento gestacional, mas
o grau avançado de sua formação biológica justifica, do ponto de vista mo-
ral, o exercício coativo do Estado na preservação dos seus interesses, inclu-
indo-se o direito a não interrupção de sua vida.
Indagar se o feto possui interesses em si mesmo, passíveis de tutela
jurídica, ou seja, se o Estado tem uma “responsabilidade derivativa” de pro-
teger sua vida, não é o mesmo que indagar se ele possui interesses em consi-
deração ao estatuto de pessoa que lhe será conferido após o nascimento. O
que se avalia, naquela primeira indagação, são os eventuais interesses do feto
no tempo da realização do aborto, e não os interesses que o feto adquiriria
após o nascimento, caso a gestação tivesse sido levada a termo. A presunção
de que o nascituro possui direito à vida, como se fosse pessoa, é negada até
mesmo pelas exceções à punibilidade do aborto. Se o feto não possui direito
à vida, em caso de estupro ou para salvar a vida da mulher, então não pode
ser equiparado à pessoa em matéria de responsabilidade do Estado na tutela
da vida122. Além disso, o Estado, em um país em que o aborto voluntário é
crime em qualquer período da gestação, não impede a mulher de realizá-lo
em outro país, no qual a legislação o permita. O poder punitivo do Estado
não alcança o aborto praticado em país estrangeiro, o que denota que a con-
duta não é equivalente ao homicídio, fato típico punível em todos os paí-
ses123. A causa dessa diferenciação seria exatamente o entendimento de que
122
DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 19, 22 e 89. Veja, também, quanto ao último comentário,
TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton
& Company, 1990. p. 122; LUKER, Kristin. Abortion and the politics of motherhood.
Berkeley/Los Angeles/London: University of California Press, 1985. p. 31.
123
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 112. No mesmo sentido, TRIBE,
Laurence H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton &
Company, 1990. p. 121, afirma: “Probably all believe, even reluctant to say, that abortion
is not equivalent to killing a born person, and that abortion should not be punished as a
homicide”. Em tradução livre: “Provavelmente todos acreditam, mesmo que relutem em
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 79

ao feto não se confere, sem nenhum tipo de gradação valorativa, a mesma


proteção jurídica que se confere à pessoa.
Do ponto de vista da “responsabilidade destacada” do Estado na tu-
tela dos interesses do feto, é preciso compreender que o valor intrínseco da
vida, consubstanciado na categoria genérica da dignidade humana, não for-
nece fundamento suficiente para banir, sem temperamentos, o direito ao
aborto. Por outro lado, a importância da vida pré-natal se torna, naturalmen-
te, mais relevante à medida em que avança o processo de sua evolução bio-
lógica, visão essa que levou Dworkin a defender o critério da viabilidade
fetal como parâmetro ideal para a fixação do dever de proteção do Estado no
que diz respeito à matéria.
O antagonismo histórico entre os defensores do aborto e os defen-
sores dos interesses do nascituro não considera a tematização do valor intrín-
seco da vida, que envolve uma noção de “indisponibilidade”, extremamente
complexa. Por mais alargado que seja o debate político sobre o tema, não se
obtém um consenso a respeito de uma etapa específica do processo gestacio-
nal até a qual seja moralmente aceitável a livre disposição da vida humana.
“Ninguém duvida do valor intrínseco da vida humana antes do nascimento”,
e nem Dworkin nega esse valor. Mas é ainda cabível perguntar: há um mo-
mento em que a vida pré-natal se torna, sob o prisma normativo, indisponí-
vel? Em outras palavras, há um momento a partir do qual é legítima a proibi-
ção do aborto, não importem as convicções religiosas, filosóficas ou biológi-
co-naturalistas da gestante?124 No universo jurídico, o que se busca, em rela-
ção ao aborto, é uma delimitação justa dos direitos da mulher em face do
estatuto indisponível da vida. Um “equilíbrio reflexivo” exige a não proteção

dizer, que o aborto não é equivalente a matar uma pessoa nascida, e que o aborto não
deve ser punido como um homicídio”.
124
HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 45-6. O aborto não é objeto direto de análise no texto citado. Habermas trata aqui
dos limites morais da instrumentalização da vida humana no contexto da biotecnologia.
No seu entendimento, a total liberdade de pesquisa, nessa área, põe em risco “os funda-
mentos morais do Estado constitucional”. Deixa claro, porém, que “ao embrião” não se
pode atribuir, “desde o início”, “a proteção absoluta da vida”. O que evidencia que a no-
ção do autor de “indisponibilidade” da vida humana não é obstáculo para a moralidade do
aborto, restringindo-se sua crítica às pesquisas de seleção genética, assunto em relação ao
qual não se pretende adentrar nesse trabalho. A análise de Habermas do valor intrínseco
da vida se compatibiliza, nas suas próprias palavras, com o “pluralismo ideológico”, pa-
râmetro central para a defesa do direito ao aborto (Op. cit., p. 57 e 60). Em uma passagem
específica, deixa clara sua posição: “Quando não se leva em conta o aspecto da seleção
realizada intencionalmente, há, por certo, outro ponto de vista” “[...] que recobre o direi-
to da mulher à autodeterminação, numa situação de aborto, que é uma situação de outra
natureza: a capacidade dos pais de enfrentar as circunstâncias” (Ibidem, p. 95, nota 57).
80 Teresinha Inês Teles Pires

absoluta de nenhum dos dois polos: nem a primazia da vida nascitura desde a
concepção, nem a total rejeição do poder do Estado de regulamentar o abor-
to, em atendimento às premissas constitucionais, morais, e também às pre-
missas biológicas referentes ao estatuto do feto.
Outras teorias tentam avançar uma resposta correta ao problema
do aborto, estando todas, direta ou indiretamente, ligadas ao princípio da
dignidade da vida humana. Parte-se, em geral, do entendimento de que o
respeito antecipado à vida fetal, por si só, não legitima a imposição às mu-
lheres, em caráter incondicional, do dever de levar a termo a gestação.
Segundo Anja Karnein, por exemplo, obrigar as mulheres, desde o início
da gestação, a garantir o nascimento da criança fere a noção jurídica da
razoabilidade. Considerando que o desenvolvimento biológico do nascituro
depende do corpo da mulher, ela tem, em tese, o direito de recusar-se a
submeter-se a tal propósito, sem necessidade de apresentar razão justifica-
dora para tal recusa. O simples fato de não possuir a gestante condições
para assumir os encargos da maternidade pode caracterizar motivo sufici-
ente para a interrupção da gestação125.
Trata-se de um raciocínio muito interessante por levar à conclusão
de que a dignidade humana, enquanto aplicada à vida nascitura, não acarreta,
por si só, a responsabilidade da gestante de dar a vida ao ser em desenvolvi-
mento no seu útero, quando isso antagoniza com seus planos pessoais e, via
de regra, com sua condição socioeconômica. Ao optar pelo aborto, em um
prazo razoável, as mulheres exercem, de forma legítima, o controle sobre sua
integridade corporal e seu direito à autodeterminação em relação ao valor
dos embriões ou fetos, diante da circunstância de que estes ainda não estão
aptos à existência independente. Isso não representa um comportamento que
desrespeita frontalmente a vida pré-natal, e sim uma atitude de respeito que a
mulher explicita pelo valor de sua própria vida. Grosso modo, ao realizar o
aborto, a gestante atua a favor dos seus interesses e não contra os interesses
do nascituro126.
Na forma representada por Judith Thomson, obrigar as mulheres a
levar a termo a gestação é o mesmo que obrigar, por exemplo, uma pessoa a
permanecer por nove meses de repouso conectada a tubos a fim de salvar
uma outra pessoa estranha da morte por doença renal. A comentada figura do
famoso violinista inconsciente, criada pela autora, é o símbolo mais acurado
do direito à integridade corporal, no sentido de não ser legítimo impor a nin-
125
KARNEIN, Anja J. A theory of unborn life: from abortion to genetic manipulation.
Oxford/New York: Oxford University Press. 2012. p. 17, 26 e 48.
126
Ibidem, p. 49-50.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 81

guém o dever de dispor o próprio corpo em benefício de outrem, ainda que


seja para salvar-lhe a vida. Judith tenta demonstrar que o direito à vida,
mesmo tendo supremacia em relação ao direito à integridade corporal, não é
fundamento para exigir-se tamanho sacrifício individual. Por conseguinte, se
o aborto fosse moralmente inadmissível com base no direito à vida fetal,
também o seria a recusa em salvar a vida de um paciente por meio da dispo-
nibilização do próprio corpo. Como isso não configura obrigação imposta às
pessoas em nenhuma sociedade, o prosseguimento da gestação igualmente
não pode ser imposto às mulheres127.
Sob o prisma do direito à integridade corporal, do qual partem as
abordagens já mencionadas, o feto, mesmo sendo geneticamente viável, não
possui existência independente, e sua sobrevivência depende da disponibili-
zação do corpo da mulher, incumbindo a esta decidir se quer prosseguir a
gestação, que pode ou não, conforme sua decisão, resultar no nascimento de
uma criança. Nesse sentido, não há justificativa para forçar a mulher a ter o
filho, sem que lhe seja concedido prazo suficiente para refletir sobre o im-
pacto da maternidade em seus planos de vida128.
Considerando-se o significado constitucional da dignidade huma-
na, é claro que o princípio da integridade corporal é um fundamento frágil
para sustentar, por si só, o direito ao aborto. Até mesmo a analogia de Thom-
son, do “famoso violonista”, não resolve a questão, sendo, no máximo, “su-
gestiva”. Primeiro, porque se trata de uma hipótese; segundo, porque a mu-
lher, ao contrário do que ocorreria no exemplo da autora, não fica em situa-
ção de imobilidade física em decorrência da gestação; terceiro, porque o feto
não se equipara a uma pessoa para a gestante129.
Ainda assim, o interesse do Estado em proteger a vida do nascitu-
ro, em respeito à sua dignidade moral, enquanto entidade representativa da
espécie humana, deve ser avaliado levando-se em conta a exigência do con-
sentimento da gestante, se não em relação à sua integridade física, ao menos
em relação à sua disponibilidade para a assunção dos encargos inerentes à
maternidade responsável. A mulher pode optar por ter e criar o filho ou por
entregá-lo para doação. Entretanto, nenhuma das duas situações pode ser, no
contexto democrático, objeto de obrigação moral, política ou jurídica, salvo
127
THOMSON, Judith. J. A defense of abortion. 1 Philosophy and Public Affairs 47
(1971), passim.
128
KARNEIN, Anja J. A theory of unborn life: from abortion to genetic manipulation.
Oxford/New York: Oxford University Press. 2012. p. 18, 26 e 29.
129
POSNER, Richard A. The problematic of moral and legal theory. Cambridge/Massa-
chusetts: Harvard University Press, 1999. p. 54-5.
82 Teresinha Inês Teles Pires

nos estágios avançados do desenvolvimento fetal. Aqui o raciocínio de


Dworkin ajuda a equacionar todos esses argumentos, dando-lhes sustenta-
ção, pois, segundo a tese do autor, como exposto, o direito de escolha da
gestante só é passível de ser banido a partir do momento em que se justifica
a consideração do feto não apenas com base no valor intrínseco da vida, mas
enquanto uma vida dotada de interesses próprios.
É oportuno expor, ainda, a classificação apresentada por Reva Sie-
gel, bastante esclarecedora, das dimensões do princípio da dignidade. Em
suas lições, a dignidade possui três padrões de análise:
a) “dignidade como liberdade” (dignity as liberty), relacionada à
autonomia, à privacidade e ao livre desenvolvimento da perso-
nalidade;
b) “dignidade como igualdade” (dignity as equality), relacionada
ao status, à honra, ao respeito e reconhecimento;
c) “dignidade como vida” (dignity as life), sentido primeiro do
termo, que simboliza o significado último da vida humana,
moldurado na sistemática jurídica através da normatização do
nascimento, da morte e da sexualidade130.
Nesse esquema, o terceiro sentido, “dignidade como vida”, é o mais
problemático, e tem sido afirmado como um fundamento constitucional para a
defesa dos direitos do embrião em contraposição ao direito de autodeterminação
da mulher, no tocante ao aborto, competindo com os dois outros sentidos de dig-
nidade. Assim, os direitos de liberdade e de igualdade da mulher seriam dignos
de respeito, desde que não implicassem em danos à dignidade do nascituro131.
Vislumbrar a primazia, a tal ponto, da dignidade da vida pré-natal
conduz ao estreitamento do alcance da dignidade como autonomia e como
igualdade, o que contraria a doutrina de Dworkin da unificação do “respeito
próprio” e da “autenticidade”, componentes importantes, de modo equiva-
lente, da dignidade humana, como já estudado. O engrandecimento da digni-
dade do nascituro contraria, ainda, o modelo de Rawls da justiça como equi-
dade, que impõe o equacionamento das três dimensões da dignidade enuncia-
das por Siegel. A dignidade do nascituro e a dignidade da mulher se equili-
bram, sob o prisma do consenso sobreposto e do pluralismo moral e político,
130
SIEGEL, Reva B. Dignity and sexuality: claims on dignity in transnational debates over
abortion and same-sex marriage. Yale Law School, Public Law Working Paper n. 259,
2012. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=2137596>. Acesso em: 26 mar. 2014.
p. 365.
131
Ibidem, p. 371-2.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 83

na visão de Rawls. As pessoas que se opõem incondicionalmente ao aborto,


por acreditarem que a vida é tutelável desde a concepção, podem aceitar um
modelo de justiça política que não seja inteiramente coincidente com seus
códigos morais pessoais132. O mesmo deve ser exigido das pessoas que acre-
ditam ser o aborto admissível até instantes antes do nascimento da criança.
Para isso, os dois grupos precisam apenas separar a esfera da consciência
individual da esfera da vida pública.
Pode-se assentar que também para Siegel o significado da vida
humana nascitura, em estágios incipientes, deve ser definido pela gestante,
porque a “dignidade como vida” não se separa da “dignidade como igualda-
de” e da “dignidade como autonomia”. O destino reprodutivo da mulher
deve ser formado, em larga extensão, com apoio em suas próprias referên-
cias valorativas e em suas circunstâncias sociais de existência133. As três
perspectivas da dignidade requerem uma construção conjunta, em um es-
quema interpretativo coerente. Uma formulação independente e exclusiva de
cada significado da dignidade não contém razoabilidade na esfera jurídica.
Outra classificação pertinente, que facilita a compreensão do prin-
cípio da dignidade, é a classificação concebida por Luís Roberto Barroso.
Segundo esse autor, a dignidade possui três elementos conceituais funda-
mentais, que estão na base do seu conteúdo protetivo: o valor intrínseco da
vida, a autonomia e a dimensão dos valores comunitários134. O valor intrín-
seco, de inspiração kantiana, justifica o direito ao aborto na medida em que a
mulher não pode ser utilizada como meio, ou instrumento, para dar vida a
um outro ser. A autonomia assegura à gestante o exercício da autodetermi-
nação nas decisões que ela precisa tomar no que se refere às questões básicas
de sua vida. Em relação à dimensão da moral coletiva, o fato de não ser pos-
sível um consenso que defina um contorno justo para a questão do aborto
leva à conclusão no sentido de que o Estado deve se manter neutro, absten-
do-se de adotar uma visão em detrimento das outras135.
132
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 151.
133
NELSON, Lawrence J. Of persons and prenatal humans: why the constitution is not silent
on abortion. Lewis & Clark Law Review, Spring 2009. p. 169.
134
Conforme BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in
contemporary law and in the transnational discourse. 35 Boston College International
and Comparative Law Review, Spring, 2012. p. 331-334; e A dignidade da pessoa
humana no Direito Constitucional Contemporâneo: a construção de um conceito jurí-
dico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 11.
135
BARROSO, Luís Roberto. Bringing abortion into the Brazilian debate: legal strategies for
anencephalic pregnancy. In: Abortion Law in Transnational Perspective. Pennsylva-
84 Teresinha Inês Teles Pires

Um último comentário é preciso ser feito sobre a problemática


ideia da moralidade comunitária, na tentativa de firmar uma ponte entre o
esquema interpretativo proposto por Barroso e a teoria do direito de Dwor-
kin. Como explicado na seção 1.3, Dworkin endossa a dimensão dos valores
comunitários como um elemento que pode, excepcionalmente, justificar a
proibição legal de determinados padrões morais, quando sua permissão im-
plicar em algum risco à vida social. Isso ocorreria, por exemplo, se o Estado
permitisse a escolha pela poligamia. Por outro lado, Dworkin rejeita a legi-
timidade da intervenção da moralidade pública na interpretação dos princí-
pios constitucionais aplicáveis à regulamentação de temas afetos à liberdade
religiosa, quando nenhum interesse público está em pauta, como ocorre, de
acordo com sua doutrina, no caso do aborto.
Da mesma forma, Barroso admite que certos valores caros à comu-
nidade política justificam a imposição de algumas restrições à independência
ética. Contudo, também para o autor, tais restrições somente são válidas em
caráter de excepcionalidade, sob pena de desembocar em uma postura mora-
lista por parte do Estado, ou na concessão de um privilégio ao “majoritaria-
nismo moral”. A fim de moldurar adequadamente a validade das restrições
políticas às concepções individuais acerca do bem viver, Barroso apela aos
padrões do secularismo e da neutralidade, ambos relacionados à proteção da
liberdade de consciência e de crença. As premissas teóricas centrais para
defender a autonomia individual contra a moralidade pública se suportam,
assim, na sobreposição da “visão racional humanista” (“humanist rational
view”) em relação às doutrinas religiosas. Para acentuar o princípio da neu-
tralidade, o autor se refere ao pensamento de John Rawls e afirma o dever do
Estado de reconhecer, no espaço público, as múltiplas concepções razoáveis
do bem136. Essa moldura conceitual da dignidade humana tem total conso-

nia/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 274-5; OMMATI, José Emílio


Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p.
30, questiona a ideia de Barroso da “dimensão comunitária”, entendendo haver certa obs-
curidade no seu significado, já que levar em conta essa dimensão poderia endossar a pre-
cedência da concepção moral majoritária na definição dos critérios para se ter uma vida
boa, solapando, assim, a autonomia ética individual e, portanto, o justo equilíbrio demo-
crático entre liberdade e igualdade no campo da cidadania. No entanto, Barroso, no último
escrito, acima citado, esclarece que a moral comunitária, embora seja um elemento da
dignidade humana, reforça a defesa do direito ao aborto, porque sua consideração está
submetida aos limites impostos pelo princípio constitucional da neutralidade.
136
BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary
law and in the transnational discourse. 35 Boston College International and Compara-
tive Law Review, Spring, 2012. p. 360-1; e A dignidade da pessoa humana no Direito
Constitucional Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurispru-
dência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 90-1.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 85

nância com o modelo de vida política concebido por Dworkin em sua última
obra, Justice for Hedgehogs. O próprio Barroso afirma isso textualmente, ao
defender o status constitucional da dignidade, enquanto um princípio moral e
legal na esfera da normatividade dos direitos fundamentais137.
Para Dworkin, é bom lembrar, o princípio da “autenticidade” adi-
ciona ao conteúdo da liberdade a exigência do respeito à identidade moral
individual; e o princípio do “respeito próprio”, por sua vez, estabelece as
devidas balizas à autonomia, sem caracterizar um conflito de interesses. É da
própria essência da dignidade a consideração dos efeitos da ação voluntária
do indivíduo na vida dos outros. Nessa linha de raciocínio, direciona-se a
sugestão de Barroso no sentido de vincular a noção de sacralidade da vida ao
princípio da responsabilidade pessoal e aos limites da intervenção da moral
comunitária.
Pode-se indagar qual o fundamento para a diferenciação dos está-
gios da formação fetal no tocante à dignidade da vida em si mesma, se, em
geral, a dignidade da mulher, numa conotação filosófica e moral, confere ao
direito ao aborto o estatuto de um direito fundamental. Segundo Dworkin, a
viabilidade fetal, no aspecto da possibilidade de sobrevivência do feto fora
do útero, marca o fim da proteção prioritária dos direitos da gestante, consi-
derando o estágio avançado da formação do “cérebro” (brain) do nascituro
ao ponto de ser possível, inclusive, sua sensibilidade à dor, ainda que em um
nível primitivo de consciência. A partir daí, prossegue Dworkin, é razoável
137
BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary
law and in the transnational discourse. 35 Boston College International and Compara-
tive Law Review, Spring, 2012. p. 354-5. Nessa passagem, o autor, além de apoiar-se em
Dworkin, refere-se, ainda, ao pensamento de Robert Alexy, ao trazer à baila os princípios
da proporcionalidade e da otimização do peso dos princípios. Saliente-se que, na visão
adotada neste estudo, tais princípios não devem ser aplicados ao tema do aborto porque
poderiam comprometer a coerência da argumentação jurídica que se propôs, a qual toma
por premissa a inexistência de colisão de direitos. Já se disse na introdução da obra que a
investigação da matéria melhor se estrutura por meio da aplicação do princípio da razoa-
bilidade, cujo método se conforma aos pressupostos morais e políticos de Rawls e de
Dworkin. Tal posição será suficientemente explicitada nos capítulos finais, onde se espera
demonstrar a pertinência de se fundamentar o direito ao aborto, na prática brasileira, no
princípio da razoabilidade, sem necessidade de se o vincular à técnica de Alexy da pro-
porcionalidade. Nesse particular, no que pese a remissão de Barroso à teoria de Alexy, ao
tratar do princípio da dignidade, entende-se que isso não desconstrói o acerto do seu es-
forço em aperfeiçoar essa categoria como mecanismo constitucional primal na efetivação
dos direitos fundamentais, e, em especial, do direito ao aborto. De qualquer sorte, a base
originária do raciocínio do ministro são as teorias de Rawls e de Dworkin, na medida em
que ele defende a conexão intrínseca da dignidade ao pluralismo moral e à autonomia de
consciência.
86 Teresinha Inês Teles Pires

dizer que o feto passa a ter interesses próprios, e, sobretudo, que já foi con-
cedido à mulher grávida oportunidade e tempo suficiente para refletir e for-
mar sua convicção no que diz respeito a prosseguir ou não sua gestação.
Essas são as razões pelas quais, para Dworkin, o Estado tem legitimidade
para proibir o aborto a partir do sétimo mês de gestação, sem que a dignida-
de da mulher seja violada138.
Peter Wenz também defende a diferenciação entre os estágios ges-
tacionais como critério para a regulamentação do direito ao aborto e para a
acomodação das dimensões da dignidade. Em parâmetros distintos dos utili-
zados por Dworkin, o citado autor rejeita o critério da viabilidade fetal como
sendo o mais adequado para equilibrar os interesses do nascituro. Sugere a
noção de similaridade entre a condição biológica do nascituro e a do recém-
-nascido como critério orientador da extensão da autonomia procriativa,
considerando-a mais objetiva que a noção de viabilidade, porque não está
sujeita a modificações provenientes do avanço das tecnologias de sobrevi-
vência fora do útero. Wenz indica como momento determinante para a prote-
ção da vida fetal a idade de oito meses de gestação, ponderando que nesse
estágio o nascituro difere do recém-nascido somente por sua localização (no
útero da gestante), pela forma em que recebe oxigênio para respirar (por in-
termédio ainda do oxigênio transportado pelo corpo da gestante) e pela for-
ma em que é alimentado (igualmente ainda através do corpo da gestante)139.
Falar do estatuto moral do feto ou de sua dignidade (o que, em ri-
gor, é a mesma coisa), significa averiguar em quais circunstâncias o aborto
ou o descarte de embriões produzidos artificialmente devem ser legalizados.
No tocante ao aborto, em determinadas hipóteses, como as já permitidas pelo
ordenamento brasileiro – salvar a vida da gestante, estupro ou anencefalia –
a legalização do procedimento deve abranger período mais avançado da ges-
tação ou, até mesmo, ser acolhida não importando o estágio; adiante-se, ain-
da, que, em outras hipóteses, como a do aborto voluntário por livre escolha
da mulher ou do casal, há que se reconhecer sua admissibilidade no mínimo
nos estágios iniciais do desenvolvimento fetal. Como destacado por Luís
138
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 169-170.
139
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 53, 66-7 e 77. Ainda se irá esclarecer na segunda parte desse trabalho os
fundamentos constitucionais presumidos por Wenz na elaboração de sua doutrina, uma
vez que sua perspectiva adensa, de forma importante, os significados das cláusulas consti-
tucionais, no contexto norte-americano, protetivas das liberdades individuais. Ademais, a
questão do tempo gestacional adequado para se moldurar o direito da mulher de praticar o
aborto será problematizada adiante, em diversos capítulos.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 87

Barroso, o valor intrínseco da vida é a raiz da qual brotam os direitos funda-


mentais, sendo o direito à vida um elemento da dignidade humana. Esse
princípio maior, a dignidade, cobre quase todas as facetas do direito à vida,
mas permite exceções em algumas circunstâncias controvertidas, tais como o
aborto e o suicídio assistido140.
Nas palavras de Ingo Sarlet, para além da “perspectiva ontológica”
ou “histórico-cultural”, é preciso postular um conceito jurídico do princípio
“da dignidade da pessoa humana”, que esteja pautado no respeito à “integri-
dade física e moral” individual. A dignidade humana, na esfera jurídico-
-constitucional, é o “critério aferidor da legitimidade” do Estado Democrático
de Direito de controlar a conduta humana. Por isso, no contexto da análise da
autonomia procriativa, o direito à vida, como um direito fundamental, no que
pese apoiar-se no princípio da dignidade, deve ser delimitado em parâmetros
equilibrados, levando-se em conta a condição da mulher de sujeito moral, ou
seja, de “pessoa”, no sentido jurídico, dotada de uma identidade própria141.
A extensão da proteção de um direito fundamental depende da con-
sideração de sua aplicação ao contexto empírico, onde se desenvolve o
transcurso das relações interpessoais. Defende-se, em suma, que a dignidade
da vida nascitura justifica o exercício da coação estatal para regulamentar o
aborto, desde que os direitos de liberdade da mulher sejam igualmente asse-
gurados, definindo-se as hipóteses para sua admissibilidade moral em con-
140
BARROSO, Luís Roberto. Here, there and everywhere: human dignity in contemporary
law and in the transnational discourse. 35 Boston College International and Compara-
tive Law Review, Spring, 2012. p. 363.
141
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 71-2,
92-3 e 142. Segundo o autor, aliás, no caso do Brasil, “nem todos os direitos fundamentais
positivados na Constituição de 1988” podem “ser reconduzidos diretamente e de modo
igual ao princípio da dignidade”, sobretudo em razão das “peculiaridades de algumas
normas de direitos fundamentais”. A “relativização” da dignidade na concretização de um
direito fundamental é exigida porque a proteção do direito de uma pessoa pode afetar ne-
gativamente o direito de outra, devendo ser avaliada ―a natureza e a intensidade dessa
ofensa” (Ibidem, p. 93, nota 215, e p. 149-150). No mesmo sentido, ver MIRANDA, Jor-
ge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV, p. 41-3, para
quem os direitos fundamentais, devido ao seu caráter indeterminado, sempre exigem um
procedimento de justificação, seja no plano teórico, seja no plano da “interpretação jurídi-
ca” ou da “política legislativa”. Dizer o contrário implicaria na desconsideração da com-
plexidade que caracteriza a relação entre o homem, como pessoa, indivíduo, a sociedade e
o Estado. Veja que a concepção dos direitos fundamentais, apresentada por Miranda, nos
coloca em contato com a problemática enfrentada por Rawls e por Dworkin ao dimensio-
narem uma teoria moral, política e jurídica que equacione, em bases objetivas, ou públi-
cas, o espaço da eticidade e o espaço de um padrão adequado para o exercício do poder
coativo do Estado.
88 Teresinha Inês Teles Pires

sonância com o sistema de princípios constitucionais como um todo, o que


impõe, no sistema brasileiro, em particular, uma releitura dos dispositivos
penais relativos à matéria142.

2.2 A DOUTRINA DA PERSONALIDADE DO NASCITURO:


RESPOSTA INADEQUADA PARA O PROBLEMA DA
DELIMITAÇÃO DOS INTERESSES JURÍDICOS DA
VIDA POTENCIAL

Viu-se, anteriormente, que a validade da deliberação coletiva, fun-


dada no critério majoritário, não pode se estender a todos os assuntos, sob
pena de violação à necessária garantia de determinados direitos fundamen-
tais. Constatou-se, também, que o modelo do pluralismo moral e político
impede a prevalência incondicional de uma concepção majoritária a respeito
do valor intrínseco da vida humana. Sugeriu-se, por fim, que o direito deve
formular uma definição própria dos limites da tutela da vida nascitura, que
moldure a legitimidade da intervenção do Estado nas decisões individuais,
na esfera dos direitos reprodutivos. Agora, reputa-se salutar posicionar a
perspectiva pluralista no contexto da doutrina jurídica da personalidade do
nascituro. O que se pretende, aqui, é refletir sobre essa doutrina em uma
leitura centrada na dimensão constitucional da dignidade humana, a fim de
oferecer respostas aceitáveis que se contraponham aos seus argumentos. O
intuito visado é aperfeiçoar um critério objetivo indicador de um estágio
fisiológico específico a partir do qual os interesses da vida pré-natal possam
ter primazia em relação à liberdade moral da mulher gestante, sob o prisma
de um conceito jurídico de personalidade.
De início, é oportuno informar que, a partir dos anos de 1990, uma
forte corrente de pensamento passou a postular, perante as instâncias políti-
cas das sociedades democráticas, a garantia dos direitos de personalidade à
vida pré-natal, desde a concepção. Tal corrente se apoia nas proposições
científicas da embriologia, que comprovam a formação da individualidade
genética a partir do momento da união dos gametas masculino e feminino.
142
Consoante será discutido na terceira parte da obra, a conclusão dessa releitura indicará
que os artigos que criminalizam o aborto, na forma em que se encontram redigidos, não se
conformam aos preceitos adotados pela Constituição de 1988. Isso não apenas na perspec-
tiva dos direitos de igualdade e de liberdade, diretamente remetidos à condição (e digni-
dade) da mulher no campo reprodutivo, mas também com fundamento nas restrições legí-
timas que devem ser estabelecidas à obrigatoriedade da tutela dos direitos do nascituro.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 89

Argumenta-se, em acréscimo, que a atribuição de personalidade às corpora-


ções, sob o título de pessoas jurídicas, e a proteção aos animais, em crescen-
te valorização nos nossos tempos, oferecem suporte para a extensão dos
mesmos direitos ao nascituro143. Grosso modo, a ideia de “potencialidade da
vida”, apresentada sob a forma de uma tese biológica, foi apropriada pelos
oponentes ao direito ao aborto com o objetivo de avançar seus argumentos a
favor da primazia dos interesses do nascituro.
Os reflexos das teses da embriologia genética, na sedimentação dos
valores sociais, que estão na base da interpretação do direito, podem dificul-
tar, se não absorvidos racionalmente, uma solução correta que pacifique a
controvérsia existente no tratamento do direito à vida pré-natal. Há uma ten-
dência, inclusive, de se manipular as conclusões desses estudos a fim de
estigmatizar as visões morais que defendem a admissibilidade do aborto144.
143
CRAMPTON, Stephen M. An apologia for personhood. 6 Liberty University Law Re-
view, winter/2012. p. 299-300. Para aqueles que tenham interesse no assunto, em Nota
publicada pela 114 Harvard Law Review Association, April 2001, sob o título: What we
talk about when we talk about persons: the language of a legal fiction. 114 Harvard Law
Review Association, April 2001. p. 1750-54, encontra-se boa abordagem a respeito da ju-
risprudência norte-americana afeta à personalidade das corporações, na condição de “pes-
soas não humanas” (non human people). Na mesma Nota, a p. 1768, explicita-se a pro-
blemática que contorna o debate sobre os direitos dos animais, incluindo os animais trans-
gênicos – nem precisamente humanos nem não humanos – e sobre os seres “artificialmen-
te inteligentes” (artificially intelligent) – réplicas de consciência humana.
144
Conforme CHAZAN, Lilian Krakowski. Fetos, máquinas e subjetividade: um estudo
sobre a construção social do feto como pessoa através da tecnologia de imagem. Disserta-
ção de Mestrado, UERJ, Instituto de Medicina Legal, 2000, CDU 612.647. Disponível
em: <http://thesis. icict.fiocruz.br/pdf/chazanlkm.pdf>. Acesso em: 01 jan. 2013. p. 5-6,
71 e 88, essa espécie de manipulação manifesta-se, cada vez com maior influência, na se-
ara da medicina fetal, cujo desenvolvimento acarreta novos conflitos intrapsíquicos, de-
sestabilizadores do estado de bem-estar das mulheres que acreditam ser o aborto, em da-
das circunstâncias, a melhor opção para suas vidas. A medicina fetal representa uma nova
especialidade médica, e os direitos do feto “já são objeto de legislação própria” em alguns
estados dos EUA. Trata-se de uma linha de estudos que constrói uma imagem social do
feto como um novo indivíduo “destacado da mulher”. Essa tendência provoca uma inver-
são de hierarquia, colocando o feto em posição superior à da mulher “do ponto de vista
legal”. Com isso, os representantes dos “grupos anti-aborto”, utilizando-se das modernas
técnicas de “imagens fetais” produzidas nos exames de ultrassom, substituíram o discurso
religioso pelo “discurso e autoridade médico-técnicos”, atribuindo cientificidade aos seus
argumentos. O lado negativo dessa construção da medicina fetal é a criação de uma mora-
lidade paralela à moralidade religiosa, o que reforça os mecanismos políticos de controle
sobre o corpo da mulher e de rejeição dos seus direitos reprodutivos. Sobre a interferência
da tecnologia de visualização do feto, na tentativa de atribuir-lhe um status independente,
desconectado da vida da gestante, ver também, no direito norte-americano, MACKIN-
NON, Catharine A. Reflexions on sex equality under law, 100 Yale Law Journal, mar.
1991. p. 1310-11. A autora acentua que a forma em que as imagens são produzidas acarre-
90 Teresinha Inês Teles Pires

Sendo assim, é preciso apontar as incongruências da transposição para o


direito de raciocínios acolhidos pela ciência médica. Dizer que a vida bioló-
gica tem início na fecundação não é fundamento para a supremacia absoluta
e incondicional do direito à vida do embrião. O direito ao planejamento pro-
criativo, do ponto de vista da categoria constitucional da laicidade, legitima
algumas restrições à tutela da vida nascitura. Para justificar a legalização do
aborto, temos que interpretar as premissas biológicas sobre o início da vida,
pontuando seus distintos estágios evolutivos. O desafio, portanto, reside na
desconstrução da tese de que o embrião tem direito absoluto à vida desde a
concepção.
Em rigor, o papel exercido pelo conceito de personalidade na teoria
do direito exige uma definição cautelosa, que envolva todos os elementos
que o compõem, não somente o aspecto biológico, mas também o aspecto da
racionalidade do sujeito agente e a ideia de “unidade da consciência” (unity
of consciousness). Para sustentar as premissas morais e jurídicas na garantia
dos direitos fundamentais, qualquer enfoque fragmentado da constituição da
personalidade é inadequado e apenas serve para afirmar concepções metafí-
sicas particulares a respeito do significado da vida humana145.
A personalidade jurídica tornou-se um conceito tão abstrato quanto
o conceito de dignidade humana, na medida em que se estabeleceu sua ex-
tensão a múltiplas entidades, individuais ou associativas. Definir quais privi-
légios, direitos e deveres devem ser atribuídos a cada uma delas passou a ser
uma tarefa bastante complicada. Em relação à discussão atual sobre a perso-
nalidade da vida fetal, não se pode desconsiderar sua projeção negativa nos

ta, como efeito epistemológico, a transformação do feto em um ser dotado de maior grau
de realidade do que a própria mulher gestante. No mesmo sentido, NELSON, Erin. Law,
police and reproductive autonomy. Oxford: Oxford and Portland, Oregon, 2013. p. 167-
8. Por fim, nas palavras de Laurence H. TRIBE: “Those who oppose abortion often use a
visualization process to move people. What they ask us to see is an isolated figure of a fe-
tus. Where is the person who develops, nurtures, and sustains the fetus for which we are
looking at? Where is the woman? In this view, she is meaningless, devalued. When a
woman somehow appears momentarily before our view, it becomes translucent, a ghost of
a real person” (In: Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton &
Company, 1990. p. 136). Em tradução livre: “Aqueles que se opõem ao aborto frequente-
mente utilizam-se de um processo de visualização para emocionar as pessoas. O que eles
nos pedem para visualizar é uma figura isolada de um feto. Onde está a pessoa que de-
senvolve, alimenta, e sustenta o feto para o qual estamos olhando? Onde está a mulher?
Nessa visão, ela é insignificante, desvalorizada. Quando a mulher de alguma forma apa-
rece momentaneamente diante da nossa vista, ela se torna translúcida, um fantasma de
uma pessoa real”.
145
OHLIN, Jens David. Is the concept of the person necessary for human rights? 105 Co-
lumbia Law Review, p. 209-214, jan. 2005.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 91

direitos reprodutivos da mulher146. Presencia-se uma tensão entre interpreta-


ções que competem entre si, de maneira a diluir os arranjos constitucionais
derivados do uso do termo “personalidade”. A discussão pode conduzir a
dificuldades lógicas e envolver um argumento de perfil circular: garantem-se
direitos porque seus titulares são pessoas ou estes são pessoas porque lhe são
garantidos direitos? A resposta certa, arrisca-se dizer, é a segunda, pois a
designação “pessoa” é reservada, numa acepção puramente normativa, aos
titulares de direitos. A precedência do conceito de personalidade apresenta,
assim, uma feição pragmaticamente autocontraditória, e não tem validade na
fundação dos direitos147.
Na dimensão jurídica, a insuficiência do conceito biológico de vida
humana é clara, não justificando, por si só, a sedimentação de uma doutrina
da personalidade, porque tal conceito conflita diretamente com a noção de
“agente racional” (rational agent) dotado de faculdades morais que o capaci-
tam à aquisição de direitos. Afirmar que a vida humana, uma vez iniciada
sua evolução celular, é dotada de uma dignidade intrínseca, não é o mesmo
que afirmar a formação da personalidade desde a união entre o óvulo e o
espermatozoide. Em outros termos, existe uma diferenciação notável entre a
ideia de existência, em sentido biológico, e a ideia de sujeito, em sentido
146
MATAMBANADZO, Saru M. Embodying vulnerability: a feminist theory of the person.
20 Duke Journal of Gender Law & Policy, fall 2012. p. 45 e 70. O autor destaca, nesse
ensaio, que a teoria feminista deve engajar-se na determinação do conceito jurídico de
“pessoa”, já que os esforços empreendidos pelos grupos Pro-Life (A favor da Vida) pa-
ra expandir o reconhecimento dos direitos do embrião ou feto podem reduzir significa-
tivamente a proteção às escolhas das mulheres em matéria de controle da procriação
(idem, p. 63-4).
147
OHLIN, Jens David. Is the concept of the person necessary for human rights? 105 Co-
lumbia Law Review, p. 217-8 e 237, jan. 2005. No mesmo sentido, MATAMBANAD-
ZO, Saru M. Embodying vulnerability: a feminist theory of the person. 20 Duke Journal
of Gender Law & Policy, fall 2012. p. 66-67, que equipara o termo conferir “direitos le-
gais” (legal rights) ao termo conferir “personalidade legal” (legal personality), querendo
significar, com isso, que o conceito de personalidade não é uma premissa, mas sim uma
derivação do reconhecimento institucional dos direitos humanos. A título de esclareci-
mento, a filosofia analítica designa como uma contradição pragmática, ou “círculo vicio-
so”, ou, ainda, “falácia naturalística” (naturalistic fallacy), o procedimento de prova da
validade de qualquer proposição, epistemológica ou prática, que tome por premissa o pró-
prio objeto da prova. O raciocínio, nessa perspectiva, é falso e contraditório, porque pres-
supõe aquilo que se quer demonstrar. Nesse particular, consulte-se PIRES, Teresinha Inês
Teles. O primado da razão prática em Kant. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2012. p. 27-
35. Em relação ao conceito de personalidade jurídica, sua pressuposição na análise do re-
conhecimento dos direitos implica em uma contradição pragmática, porque se trata de
uma designação que deve ser conferida às pessoas a partir da validação dos direitos no
âmbito de sua pretensão de normatividade. Esse é o sentido da crítica dos autores acima
citados.
92 Teresinha Inês Teles Pires

jurídico, apto à aquisição de direitos legais. A pergunta que precisa ser feita,
portanto, não é se o nascituro é ou não pessoa humana, mas sim se a vida
humana biológica é significativa o bastante para justificar a titularidade de
direitos humanos. O discernimento da centralidade dessa pergunta é essenci-
al para a posição avançada no presente trabalho, no tocante ao atrelamento
do conceito de personalidade às características do sujeito capaz de autode-
terminação moral, com a rejeição das interpretações que o reduzam às pro-
priedades biológicas148.
Nessa abordagem, o conceito de “agente racional” é muito mais
amplo do que o de “pessoa” e está na base, antes que qualquer outro, da legi-
timidade da titularidade de direitos. Por conseguinte, às “entidades biológi-
cas” e aos “agentes racionais” são assegurados direitos diferenciados de
acordo com o tratamento moral que a natureza de cada um exige da sistemá-
tica constitucional. Não há nenhuma dificuldade em classificar o primeiro
grupo na qualidade de entes merecedores de determinado grau de proteção
jurídica, embora não pessoas, e classificar somente o segundo grupo na qua-
lidade de “pessoas”. O raciocínio contrário estaria focado exclusivamente no
significado terminológico-semântico de “personalidade”, não necessaria-
mente portador de valor normativo. O conceito de personalidade não tem
conteúdo próprio, pois sua função é apenas a de substituir as premissas mais
densas, de caráter moral, que estruturam os direitos humanos149.
Pontuou-se, antes, que o valor moral do nascituro corresponde à
avaliação dos limites de sua dignidade em sentido constitucional. Ambas
as expressões, “valor moral” e “dignidade humana”, permitem a constru-
ção de um modelo que delineie a legitimidade da intervenção do Estado
na tutela dos interesses da vida pré-natal. Porém, nesse esquema de pen-
samento, na esteira de Dworkin, não há a perspectiva de que o nascituro
possua interesses “em si mesmo” desde o princípio de sua formação ge-
148
OHLIN, Jens David. Is the concept of the person necessary for human rights? 105 Co-
lumbia Law Review, p. 227, 229 e 234-5, jan. 2005. No mesmo sentido, nas palavras de
BORGMANN, Caitlin E. The meaning of “life”: belief and reason in the abortion de-
bate. 18 Columbia Journal of Gender anad Law, 2009. p. 555: “The unsurprising
fact that an embryo or fetus is biologically ‗human life‘ simply does not respond to the
moral (or legal) question of whether and when it should be granted to this life some or
all rights of a person‖. Tradução livre: “O fato não surpreendente de que um embrião ou
feto é, biologicamente, ―vida humana‖ simplesmente não responde à questão moral (ou
legal) de se e quando devem ser concedidos a essa vida alguns ou todos os direitos de
uma pessoa”.
149
OHLIN, Jens David. Op. cit., p. 235-6, 238, 242-3, 246 e 248-9. Ver, também, RUBEN-
FELD, Jed. On the legal status of the preposition that “life begins at conception”. 43
Stanford Law Review, fev. 1991. p. 601.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 93

nética. O interesse é do Estado, ou da sociedade, na proteção do signifi-


cado moral da vida humana, na medida em que isso for interpretado como
uma intervenção aceitável nas decisões reprodutivas da gestante. Não se
pode concordar com o argumento de que no debate sobre o direito ao
aborto existam, de forma igualitária, três interesses envolvidos: o do E s-
tado, o da gestante e o do nascituro 150. Ao menos nos primeiros estágios
da gestação, existem somente dois interesses a serem balizados na regu-
lamentação do direito ao aborto: o interesse da mulher gestante de livre
decisão reprodutiva e o interesse do Estado de preservar o valor intrínse-
co da vida. Como bem delineado por Dworkin, os interesses do nascituro,
considerado em si mesmo, surgem em determinado momento da gestação,
pois antes disso ele não tem interesses em si mesmo.
Com tal entendimento, é plausível acentuar que a potencialidade da
vida não merece o mesmo grau de tutela que se confere à garantia da vida
após o nascimento. Se o nascituro for considerado como portador de perso-
nalidade jurídica, portanto, se possuir interesses próprios desde a concepção,
a vida potencial se transmuda em vida atual, e o aborto teria que ser equipa-
rado ao homicídio, pois a todas as pessoas são concedidos os mesmos direi-
tos fundamentais, por uma exigência do princípio da “igual proteção” (equal
protection) perante a lei. A aplicação da cláusula da “igual consideração” ao
nascituro iria competir com a aplicação da mesma cláusula às mulheres ges-
tantes, que, na condição de “pessoas constitucionais” (constitutional per-
sons), perderiam parcela importante de suas liberdades fundamentais em
matéria reprodutiva. O status superior da gestante, como pessoa, em relação
ao valor intrínseco da vida, e sua autonomia, embora não ilimitada, deixariam
de ser assegurados151.

150
Essa é a opinião manifestada, por exemplo, por LOTIERZO, Amy. The unborn child, a
forgotten interest: reexamining roe in light of increased recognition of fetus rights. Tem-
ple Law Review. Spring 2006. p. 311-12. Pretende-se, nessa visão, inverter a ordem do
raciocínio jurídico, para afirmar que o nascituro possui direitos constitucionalmente pro-
tegidos que são afetados pelas decisões das gestantes de realizar o aborto. Na verdade, o
juízo correto vai na direção contrária, pois as gestantes é que possuem direitos constituci-
onalmente protegidos que são afetados, e de forma grave, pela pretensa prevalência dos
interesses do nascituro desde a concepção.
151
Cf. NELSON, Lawrence J. Of persons and prenatal humans: why the constitution is not
silent on abortion. Lewis & Clark Law Review, Spring 2009. p. 171, 156 e 159; No
mesmo sentido, RUBENFELD, Jed. On the legal status of the preposition that “life begins
at conception”. 43 Stanford Law Review, February 1991. p. 612; e GERTLER, Gary B.
Brain birth: a proposal for defining when a fetus is entitled to human life status. Southern
California Law Review, July 1986. p. 1066. Lembre-se que na visão de Dworkin é exa-
tamente a não equiparação do estatuto jurídico do feto ao da pessoa humana que justifica
o envolvimento da liberdade de consciência na regulamentação do direito ao aborto. De
94 Teresinha Inês Teles Pires

Os interesses da vida potencial, na medida em que forem tutelá-


veis, não excluem a proteção constitucional dos direitos da mulher gestante à
autodeterminação reprodutiva. Numa investigação estritamente biológica, a
vida potencial existe antes mesmo da concepção, no óvulo ainda não fertili-
zado ou mesmo no gameta masculino. Por isso, equiparar a vida potencial à
vida da pessoa nascida é um propósito que pode conduzir à desestabilização
do edifício constitucional de proteção às liberdades individuais, historica-
mente firmado como contraponto à autoridade coativa do Estado. Na regula-
ção do processo reprodutivo, afirmar essa equiparação entre o valor moral da
vida potencial e da vida atual acarretaria grandes retrocessos, podendo justi-
ficar a proibição discricionária não somente do aborto, como também da
contracepção152.
Como já dito, os oponentes à legalização do aborto associam a
ideia de vida potencial à evidência científica de que a individualidade gené-
tica se forma no momento da concepção, com todas as características de uma
unicidade biológica. Tal associação, especialmente no que concerne às suas
implicações na concretização dos direitos fundamentais, não produz efeitos
jurídicos. O apelo à “compleição genética” (genetic complexion) representa
um argumento falho e frágil, tendo em vista, inclusive, a evolução das tecno-
logias reprodutivas. A clonagem de tecidos nucleicos, por exemplo, atribui
“às células não zigóticas” (not zigotic cells) a potencialidade para o desen-
volvimento da vida. Sendo assim, todas as células ou seus núcleos poderiam
ser considerados pessoas, já que contêm em si mesmos uma individualidade

outro lado, ORREGO S., Cristóbal. Liberalismo y libertad religiosa en el debate político
sobre la justicia: argumentos sobre el aborto legal. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva
(Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 151, ressalta
que grande parte dos países democráticos reconhecem a personalidade jurídica do feto e
ainda assim permitem a prática do aborto sem apelar à liberdade de consciência. Esses pa-
íses, ao confeir tutela reduzida ao feto, em relação às pessoas nascidas com vida, rejeitam
a premissa basilar de Dworkin de que todos os sujeitos, reconhecidos como pessoas, pos-
suem iguais direitos fundamentais. Orrego argumenta no sentido de contrapor-se à respos-
ta de Dworkin ao problema, mas aponta, com razão, a incongruência da solução dada ao
caso do aborto, no contexto internacional, não norte-americano. Isso reforça a convicção
de que a não aplicação da cláusula da liberdade de consciência na liberalização do aborto
resulta em uma solução incompleta e violadora do princípio da igual proteção perante a
lei. A resposta correta para o caso deve partir do questionamento acerca da inclusão ou
não do nascituro na categoria de pessoa humana, perante a ordem jurídica. Se o melhor
argumento indicar uma resposta negativa, a liberdade de consciência, na definição do va-
lor intrínseco da vida potencial, passa a estar justificada enquanto um fundamento para o
direito ao aborto.
152
RUBENFELD, Jed. On the legal status of the preposition that “life begins at conception”.
43 Stanford Law Review, February 1991. p. 613.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 95

genética, estando capacitados para gerar, a partir do seu código genético


único, sem se mesclarem com outra célula, uma nova vida humana153.
Regra geral, as cortes judiciais, ao proferirem decisões que ampliam
as hipóteses de admissibilidade da prática do aborto, adotam um posicionamento
mais liberal, que, em tese, não exige outros argumentos que não o da simples
garantia do direito de escolha. É conhecido o raciocínio utilizado, nessa sede, de
que a definição do início da vida, ou do valor da vida pré-natal, deve ser deixada
ao encargo dos indivíduos em suas decisões de natureza bioética. A vertente
liberal costuma pensar que o aborto é um assunto íntimo que pode ser articulado
com base no direito à privacidade, de acordo com as circunstâncias particulares
da existência de cada pessoa, sem o apelo à cláusula da liberdade de consciên-
cia154. Chega-se a argumentar que o aborto é uma conduta aceitável, ainda que
se considere o feto como pessoa, em parâmetros legais, o que, como afirmado
acima, é uma resposta equivocada à luz do princípio da igualdade. Em decorrên-
cia desse posicionamento, encontra-se em progressivo vigor a doutrina da atri-
buição de personalidade jurídica ao nascituro, cujo objetivo é exatamente retirar
o suporte constitucional para a legitimidade do aborto voluntário, com base na
premissa de que se trata de uma exceção não merecedora de reconhecimento,
em face do dever de proteção, em geral, da vida humana155.

153
Ibidem, p. 625-6. Esclareça-se que células zigóticas são aquelas que se formam desde o
instante da fecundação até que o composto celular adquira o número de ao menos quatro
células, ponto a partir do qual recebe a designação de embrião. Nesse intervalo o compos-
to celular recebe o nome de “zigoto”. “Células não zigóticas”, portanto, são aquelas que
precedem a união dos gametas masculino e feminino, ou seja, as células nucleicas e não
nucleicas não fecundadas. Como se sabe, as células nucleicas de uma única pessoa são
passíveis de ser transformadas em células embrionárias através das técnicas de clonagem
de tecidos genéticos, dando início ao desenvolvimento da vida potencial sem terem sido
associadas a tecidos genéticos pertencentes a outro indivíduo. Ademais, tanto na hipótese
de fertilização natural quanto na hipótese de fertilização artificial, por meio de suas diver-
sas tecnologias, o zigoto pode dividir-se, durante os primeiros dias de sua evolução, dando
origem a dois ou múltiplos zigotos idênticos, criando assim “mono-zigotos” (mono-
zygotes) gêmeos ou triplos. Qual deles, pergunta WENZ, Peter. Abortion rights as reli-
gious freedom. Philadelphia: Temple University Press, 1992. p. 60-1, deve ser considera-
do uma pessoa que passou a existir no momento da fertilização? Quem são ou outros?
Eles também possuem plenos direitos humanos? Se possuem, sua personalidade passa a
existir não na fertilização (quando havia apenas um) mas algum tempo (possivelmente dias)
depois, quando o zigoto se divide? Como definir qual deles se tornou uma pessoa na ferti-
lização e qual(ais) adquiriu(iram) personalidade posteriormente?
154
Mostrar-se-á, na parte do estudo dedicada à constitucionalidade do aborto nos Estados
Unidos (segunda parte) que o direito à privacidade não é um fundamento satisfatório e
não resolve o problema sem ser associado a outros princípios.
155
BORGMANN, Caitlin E. The meaning of “life”: belief and reason in the abortion debate.
18 Columbia Journal of Gender anad Law, 2009. p. 568, 563 e 560.
96 Teresinha Inês Teles Pires

É verdade que alguns temas de moralidade pessoal podem ser deixa-


dos para a reflexão individual, mas o conceito de personalidade, sob o enfoque
do debate político sobre o aborto e do significado das garantias constitucionais, é
um assunto de importância ímpar, não sendo uma boa estratégia que as instân-
cias jurisdicionais se abstenham de formular uma resposta consistente ao pro-
blema. No exercício do controle constitucional das leis, o poder judiciário não
pode simplesmente alicerçar a admissibilidade do aborto no princípio da liber-
dade de escolha reprodutiva, em seu sentido negativo e genérico. Trata-se de
uma interpretação que minimiza o conteúdo da dignidade enquanto categoria
normativa primária na delimitação do direito das mulheres à não assunção obri-
gatória da maternidade156. É preciso ampliar a análise do problema, para que a
autonomia procriativa, aplicada ao aborto, adquira uma densidade de conteúdo e
um núcleo fundamental que se sobreponha ao poder interventivo da coletividade
em seu interesse na preservação da vida pré-natal.
Nessa dimensão, várias respostas são possíveis. O critério da “via-
bilidade fetal” foi adotado pela Suprema Corte norte-americana para traçar a
linha divisória entre a permissão e a proibição do aborto. No caso, “viabili-
dade” significa o momento a partir do qual o feto tem aptidão para sobrevi-
ver fora do útero. O critério da “viabilidade” é objeto de inúmeras críticas
que estão pondo em risco a estabilidade da legalização do aborto no país. Na
tentativa de reformular o desenho da decisão Roe v. Wade157, que tornou
constitucional a prática da conduta, alguns autores propõem novos critérios
para a abordagem do desenvolvimento fetal, que facilitem a compreensão do
direito em questão158.
Algumas doutrinas defendem que a sobreposição da dignidade fetal
em face da autonomia da gestante deve iniciar a partir do momento da for-
mação do córtex, ou seja, da “atividade cerebral” (brain activity) intelectual,
que caracteriza a singularidade da espécie humana159. Em termos de estágio
156
Ibidem, p. 573, 580-1 e 556.
157
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013.
158
Na realidade, as forças políticas conservadoras nos Estados Unidos estão concentrando
seus ataques à decisão Roe mais diretamente na crítica à validade do direito à privacidade
enquanto fundamento do direito ao aborto. Contudo, além do criticismo à extensa prote-
ção da privacidade sexual e reprodutiva, os grupos pro-life combatem o critério da viabi-
lidade fetal, reputando-o incerto e relativo. A partir de tal enfoque, os mesmos grupos
começaram a sedimentar a doutrina da personalidade do nascituro. Como exposto na in-
trodução, a análise do caso Roe v. Wade será feita no local próprio.
159
GERTLER, Gary B. Brain birth: a proposal for defining when a fetus is entitled to
human life status. Southern California Law Review, July 1986. p. 1061. O autor
esclarece que o gráfico da atividade eletro-encefálica (EGG) começa entre 22 e 25
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 97

gestacional, a formação completa das funções intelectuais é, aproximada-


mente, coincidente com o estágio da viabilidade fetal, tendo em vista os atuais
recursos médicos de assistência ao recém-nascido. Mas, na abordagem nor-
mativa, a substituição da viabilidade pela formação do córtex permite a fixa-
ção de uma medida objetiva, não sujeita a alterações de acordo com o avan-
ço das técnicas médico-hospitalares. Além disso, trata-se de um critério dire-
tamente centrado nas características da evolução do processo vital, e não na
aquisição da independência do feto em relação ao útero materno, o que faci-
lita a elaboração de uma dicção jurídica sobre a importância da vida nascitu-
ra, questão salutar nessa investigação160.
O que dizem realmente os resultados da embriologia? Apesar de
não se buscar o detalhamento das pesquisas científicas sobre o desenvolvi-
mento biológico da vida, reflexões adicionais ainda são necessárias para
rebater a visão central atualmente adotada pelas teses abolidoras do direito
ao aborto. Em linhas gerais, as principais demonstrações científicas podem
ser assim resumidas:
a) fertilizado o óvulo, o composto celular se transforma em em-
brião no prazo de aproximadamente 24 horas;
b) com uma semana, o embrião, se for o caso, se implanta no útero
materno;
c) com oito semanas, são discerníveis os dedos dos pés e das
mãos;
d) com 10 semanas, todos os órgãos aparecem em forma ainda ru-
dimentar;
e) entre 19 e 30 semanas, ocorre a formação do cérebro;

semanas da idade gestacional, de acordo com dados fornecidos nos seguintes estudos:
J. HUGHES, EGG in clinical practice. p. 69-70 (1982); D. SCOTT, Understanding
EEG: an introduction to electroencephalography; DREYFUS-BRISAC, The electro-
encephalogram of the premature infant, 3 World Neurology 5 (1962); EL-
LINGSON, Studies of the electrical activity of the developing human brain, 9 Progress
Brain Research, 26, 27 (1964).
160
Saliente-se que esses parâmetros estão distantes da realidade política da sociedade brasi-
leira, em que o debate gira em torno da proposta de legalização do aborto no primeiro tri-
mestre de gestação. Essa proposta, obviamente, ainda será discutida. No presente capítulo,
procura-se firmar, em linhas gerais, posição pessoal no que tange à abrangente doutrina da
atribuição de personalidade jurídica ao nascituro, e, consequentemente, em relação aos ar-
gumentos relativos à evolução biológica da vida. Seja para permitir o aborto durante o
primeiro trimestre ou até o segundo trimestre de gestação, a interpretação, no âmbito do
direito, deve envolver a consideração dos diferentes estágios gestacionais, já que a con-
trovérsia diz respeito à definição do momento a partir do qual se justifica a tutela dos inte-
resses do nascituro.
98 Teresinha Inês Teles Pires

f) somente entre 22 e 24 semanas, o córtex cerebral começa a


amadurecer, “estruturalmente e funcionalmente”161.
A embriologia ensina, ainda, que, após a concepção, a multiplica-
ção das células embrionárias ocorre em uma rapidez impressionante e que,
com maior velocidade ainda, se desenvolve o processo posterior de diferen-
ciação dos órgãos. O embrião se torna pluricelular no prazo de duas semanas
e, em mais cinco ou seis semanas, ele se torna um organismo dotado de for-
ma humana. Entretanto, “o sistema nervoso central” somente completa seu
desenvolvimento a partir da vigésima semana de gestação. A imagem de um
embrião de sete semanas já apresenta um aspecto humano, com cabeça, de-
senho da face, membros superiores e inferiores. É por isso que as imagens
mostradas nos exames de medicina fetal causam tamanho impacto na discus-
são sobre o aborto162.
No entendimento de Michel Tooley, sob o prisma exclusivo da bio-
logia evolutiva, não se pode dizer que todos os tipos de organismos que se
enquadrem na definição de “Homo Sapiens” têm um direito inalienável à
vida. Do contrário, aqueles exemplares que nunca teriam aptidão para a au-
161
Conforme RUBENFELD, Jed. On the legal status of the preposition that “life begins at
conception”. 43 Stanford Law Review, February 1991. p. 617-8; PRITCHARD, Jack A.
& MCDONALD, Paul C. Williams obstetrics, 79-84 (15th ed. 1985); SOKOL, Robert J.
& ROSEN, Mortimer G. The fetal electroencephalogram, 1 Clinics Obstetrics & Gyne-
cology, 123 (1974); e COCHARD, Larry R. Netter Atlas de embriologia humana. Tra-
dução: Igor Iuco da Silva et al. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, passim.
162
Conforme LIMA, Celso Piedemonte. Genética humana. 3. ed. São Paulo: Harbra, 1996.
p. 55-6, na linguagem médica considera-se embrião a vida nascitura até a sétima ou oitava
semana de gestação. “A partir da oitava ou nona semana, o embrião passa a ser chamado
de feto”. Sobre os estudos biológicos referentes ao desenvolvimento fetal, ver, também,
WARREN, Rachel. Pro (whose) choice: how the growing recognition of a fetus’s right to
life takes the constitutionality out of roe. 13 Chapman Law Review, Fall 2009. p. 235-6.
Essa autora assume explicitamente uma posição a favor da vida nascitura, fazendo remis-
são a dados da biologia celular segundo os quais o DNA humano surge em cinco a seis
dias após a concepção, quando o embrião entra no estágio de “blastocisto” (blastocyst). A
partir daí, acredita Warren, não se está mais falando, na ótica dos biólogos, em “vida po-
tencial” (potential life), mas em “vida humana” (human life), o que permitiria a compre-
ensão de uma “personalidade embriônica separada” (separate embryonic personality).
Outros exemplos de posicionamentos assemelhados a este podem ser mencionados:
STENGER, Robert L. Embryos, fetuses and babies: treated as persons and treated with
respect. 2 Journal of Health & Biomedical Law, 2006. p. 37-8; e DUNAWAY, Rita M.
The personhood strategy: a state’s prerrogative to take back abortion law. 46 Willamette
Law Review, Winter 2011. p. 340-342. Tais correntes de pensamento não são aceitáveis,
pois seus argumentos não consideram o significado específico de cada expressão que uti-
lizam. Por certo, “vida humana” é um conceito genérico, que inclui a “vida potencial” e a
“vida atual”. A distinção entre “vida potencial” e “vida humana”, portanto, é imprestável
tanto no aspecto lógico-semântico quanto, e mais ainda, no aspecto jurídico.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 99

toconsciência e o pensamento racional, como os fetos portadores de


anencefalia ou outra anomalia incompatível com a vida, não poderiam ser
excluídos da esfera de proteção constitucional desse direito. Avançando
no argumento: é correto dizer que os organismos, potencialmente, predis-
postos à aquisição da capacidade cognitiva têm, incondicionalmente,
direito à vida? Em outros termos, o conceito de potencialidade por si
mesmo é razão suficiente para conferir ao ente biológico o direito à vida?
Tornar factível uma reposta a tais perguntas é de grande importância para
a delimitação da moralidade do aborto 163.
A distinção entre “potencialidade passiva” (passive potentiality) e
“potencialidade ativa” (active potentiality) é uma referência apropriada para
o adensamento da reflexão. Diz-se que os gametas humanos – óvulos e es-

163
TOOLEY, Michel. Why a liberal view is correct. In: TOOLEY, Michel et al. Abortion:
three perspectives. New York/Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 23 e 36-7. Ob-
serve que o conceito do autor de “potencialidade” da vida humana se sustenta na capaci-
dade cognitiva, o que coincide com a proposição de Gertler, já mencionada, segundo a
qual o momento do “nascimento do cérebro” deve fixar o início da tutela da vida nascitu-
ra. Trata-se de um critério paradigmático na regulamentação do aborto e da eutanásia. No
primeiro caso, a ausência do cerebelo (cérebro superior) no embrião ou feto o tornaria um
organismo que, no que pese enquadrar-se, em tese, no conceito de “potencialidade”, não
reúne os requisitos para a inviolabilidade de sua vida; no segundo caso, a paralisação das
funções cerebrais estaria subsumida à definição médica do momento da morte encefálica
(conforme a Lei 9.434/97, que regulamenta, no Brasil, o transplante de órgãos), possibili-
tando a interrupção da vida por um ato de vontade. A permissão do testamento vital, do-
cumento no qual a pessoa declara sua intenção de não permanecer viva na hipótese de en-
contrar-se, no futuro, em situação de inconsciência, por doença em estágio terminal, sem
possibilidade de manifestar sua vontade, é um precedente interessante para a afirmação da
tese de que a vida humana não é necessariamente objeto de tutela do Estado. No Brasil
não há legislação específica sobre a formalização do testamento vital, mas não há nenhum
impedimento para sua validade. O Conselho Federal de Medicina manifestou-se sobre o
assunto na Resolução 1.995/2012, apoiando a liberdade de decisão individual na confec-
ção do testamento vital, o que se converteu, a partir de então, em comando a ser seguido
pelos médicos, sob pena de quebra do Código de Ética Médica. Consultem-se, a esse res-
peito, as informações disponibilizadas na internet. Disponível em: <http://www.portal.
cfm.org.bindex.php?option=comcontent&view=article&id=23585:testamentovital&catie6
>. Acesso em: 11 maio 2013. Em relação à mitigação do valor moral da vida, trata-se de
uma concepção que dá suporte à reflexão sobre o aborto. Claro que no caso do testamento
vital, a pessoa dispõe sobre a própria vida; já no caso do aborto, mais complexo em alguns
aspectos, a mulher estaria dispondo sobre a vida do nascituro. Mas a Resolução
1.995/2012 do CFM não deixa de significar um ponto de apoio para o balizamento da tu-
tela da vida humana, tendo por parâmetro a ausência de funcionamento das funções cere-
brais. Esse parâmetro está na base de uma das linhas de argumentação pró-aborto, pela
qual se defende que nos estágios iniciais do desenvolvimento fetal, quando ainda não
existe a formação do sistema neurológico, há justificativa para o reconhecimento constitu-
cional do direito de escolha reprodutiva.
100 Teresinha Inês Teles Pires

permatozoides – possuem uma “potencialidade passiva”, enquanto os embriões,


implantados no útero, possuem uma “potencialidade ativa” para a aquisição
das funções cognitivas. Nessa concepção, o direito à vida fetal está direta-
mente relacionado à probabilidade de um organismo tornar-se uma pessoa
humana. De fato, ninguém afirma ser moralmente errado o descarte dos ga-
metas, ocorrência cotidiana na vida sexual das pessoas e nos métodos de
contracepção, porque antes da união do óvulo ao espermatozoide não se
iniciou o processo natural, independente da ação humana, de evolução da
vida.. Na opinião de Tooley, contudo, tal distinção não tem significado al-
gum na resposta à pergunta: o embrião ou feto humano tem, seriamente,
direito à vida devido a suas “potencialidades”? O embrião congelado, produ-
zido artificialmente, por exemplo, enquadra-se na noção de “potencialidade
passiva” para seu completo desenvolvimento, pois sua evolução somente se
iniciará mediante intervenção humana, com sua transferência para o útero
materno em procedimento de reprodução humana assistida. Em tese, porém,
é razoável propor, na esteira do pensamento de Tooley, que se a destruição
do embrião congelado não é moralmente condenável, então a destruição de
um embrião pós-implantação no útero igualmente não o seria. Ambos os
organismos constituem material genético em estágio assemelhado de desen-
volvimento, portanto, igualmente portadores das “potencialidades” necessá-
rias para a aquisição das funções cognitivas, cuja destruição importa na in-
terrupção da evolução biológica da vida humana164.
164
TOOLEY, Michel. Why a liberal view is correct. In: TOOLEY, Michel et al. Abortion:
three perspectives. New York/Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 39-41 e 44. Es-
pecifique-se aqui o posicionamento de Dworkin, que, assim, como Michel Tooley, apoia a
legalização do aborto. Entretanto, suas concepções morais acerca do tema são distintas, no
seguinte sentido: Tooley adota integralmente a visão liberal clássica, chegando ao ponto
de defender, em sua obra Abortion and infanticide. Oxford: Clarendon Press, 1983. p.
77, até mesmo a moralidade do infanticídio, embora não consiga determinar até que mo-
mento, após o nascimento, sua prática deva ser aceita, segundo seu entendimento. Peter
Singer assume posição semelhante, em sua obra Practical Ethics. Cambridge: Cambridge
University Press, 1993. p. 186-8 apud DEVINE, Celia Wolf; DEVINE, Philip E. Abor-
tion: a communitarian pro-life perspective. In: TOOLEY M. et al. Abortion: three pers-
pectives. New York/Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 83-5, e notas 49 e 51. Para
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 32, ao contrário, o aborto representa
sempre uma decisão grave e problemática, devido à “individualidade genética” (genetic
individuality) do embrião, que se forma desde a fertilização do óvulo. A visão liberal de
Dworkin se caracteriza, assim, por um parâmetro moderado sob o prisma dos limites mo-
rais da conduta humana. Informe-se, por fim, que a análise do significado jurídico da vida
biológica potencial no contexto dos precedentes da jurisprudência brasileira será oportu-
namente feita no Capítulo 7 desse estudo, com a interpretação dos fundamentos utilizados
no julgamento da ADI 3510/DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. em 29.05.2008, a qual autori-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 101

Em rigor, “vida potencial” (“potential life‖) é uma expressão am-


bivalente, que, sem uma referência segura, não indica critério sólido para a
tutela jurídica do nascituro. Trata-se de uma expressão vazia e carregada de
emotividade. A mera potencialidade para o início da função cerebral não se
sobrepõe à autonomia procriativa da mulher165. Assim, o surgimento do cé-
rebro, em analogia ao encerramento de sua atividade, no momento da morte,
é, em termos gerais, o melhor argumento normativo para autorizar o Estado
a regular e restringir o aborto. Outras espécies de atividade orgânica, como,
por exemplo, a respiração e o batimento do coração, não são relevantes166.
A origem do termo “personalidade” é filosófica e diz respeito à
descrição das faculdades racionais do homem. Sua aplicação ao contexto do
direito, com tal conotação, é importante por subsidiar a classificação dos
direitos das pessoas a serem protegidos perante a lei. A definição singular do
DNA, de qualquer sorte, não garante a titularidade de direitos, sejam legais
ou morais, diante da ausência da faculdade racional e da autoconsciência,
que caracteriza os estágios embrionários da vida pré-natal. Tais caracteres
representam o “estatuto moral maior” (greater moral status) da pessoa. Ter
“estatuto moral” é o mesmo que ter interesses próprios. A personalidade é
elemento constitutivo da formação moral da mente humana, não derivando,
assim, de padrões genético-cromossômicos específicos167. Em síntese, a rela-
ção a ser estabelecida para a proposição de um conceito de personalidade
perante a lei não é entre individualidade genética e direitos fundamentais, e
sim entre relevância moral e direitos fundamentais. Tudo isso vai ao encon-

zou a pesquisa científica com células-tronco embrionárias (BRASIL. Supremo Tribunal


Federal. ADI 3510/DF. Rel. Min. Carlos Ayres Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em:
<www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014).
165
GERTLER, Gary B. Brain birth: a proposal for defining when a fetus is entitled to human
life status. Southern California Law Review, July 1986. p. 1067-1068.
166
Ibidem, p. 1068-1069 e 1071. Efetivamente, a não equiparação da vida biológica ao
conceito jurídico de vida humana tutelável se mostra verossímil pela analogia com a con-
duta médica adotada em todos os países em relação ao transplante de órgãos. Estes órgãos
são retirados quando o coração e os pulmões dos pacientes ainda funcionam, a fim de
manter a oxigenação do corpo. Na esfera da biologia, os pacientes ainda estão vivos, pois
alguns órgãos não pararam de funcionar. Mas, como explica OHLIN, Jens David. Is the
concept of the person necessary for human rights? 105 Columbia Law Review, p. 218-
219, jan. 2005, no âmbito normativo a comunidade médica solucionou a questão definin-
do que a morte do cérebro, ocorrida antes da paralização total do organismo como um to-
do, permite considerar os pacientes como não sendo mais “pessoas”, “perante a lei”, auto-
rizando, assim, sem que isso seja questionado perante as instâncias jurídicas, a extração
dos órgãos, para transplante, antes da morte biológica propriamente dita.
167
PONS, Brendan F. The law and the philosophy of personhood: where should south Dako-
ta abortion law go from here? 58 South Dakota Law Review, 2013. p. 120, 139 e 142-5.
102 Teresinha Inês Teles Pires

tro das teses que foram defendidas nos capítulos e seções anteriores, à luz
das teorias formuladas por Rawls e por Dworkin no dimensionamento de um
conteúdo unitário do princípio da dignidade humana.
O conjunto das considerações feitas, na presente seção, é suficiente
para demonstrar a não adequação da doutrina da “vida potencial” como pa-
drão para o início da personalidade jurídica, e para tornar também explícito
que a insistência nessa doutrina não tem por motivação as teses científicas da
embriologia e da medicina, como se apregoa, e sim as teses religiosas do
início da vida no momento da concepção, incorporadas que foram pela mo-
ralidade tradicional.
A esse respeito, mencione-se a expressão que Julieta Lemaitre
denomina de “constitucionalismo católico” (“catholic constitutiona-
lism”), a fim de se referir à doutrina que define a intangibilidade da vida
humana a partir da formação do DNA. Explica a autora que tal visão se
enraíza nas referências religiosas dos tempos medievais, segundo as quais
o início da vida ocorre no momento da entrada da alma no “corpo huma-
no” (“human body”). Nessa crença, e não em pressupostos constitucio-
nais, reside o raciocínio de que o aborto, desde a fertilização do óvulo, se
equipara ao homicídio. Vincular a definição da personalidade humana ao
momento da fertilização do óvulo somente tem significado dentro de uma
concepção religiosa da existência do mundo168. Regra geral, os opositores
ao aborto não desejam conectar seus argumentos às doutrinas teístas, por
isso não recorrem ao conceito metafísico da alma humana. Para tangenciar
o discurso religioso e tentar atribuir à defesa da personalidade do nascitu-
ro uma conotação laica e jurídica, apoiam-se nos resultados científicos da
embriologia, desviando o debate público sobre o aborto de sua dimensão
puramente constitucional 169.
A tese da tutela da “vida potencial”, desde a formação da indivi-
dualidade genética, vem conseguindo provocar, na esfera legal, um discur-
so equivocado, em termos conceituais, que identifica no “feto”, e não na
“mulher”, “o locus do direito”, especialmente do direito reprodutivo. Por
meio desse movimento, conferem-se direitos ao feto, considerado em si
mesmo, de modo a desequilibrar a perspectiva do nascimento com vida
enquanto marco inicial da personalidade jurídica. O que abre margem à
168
LEMAITRE, Julieta. Catholic constitutionalism on sex, women, and the beginning of life.
In: Abortion law in transnational perspective. Pennsylvania/Philadelphia: University
Pensylvania Press, 2014. p. 246-249.
169
BORGMANN, Caitlin E. The meaning of “life”: belief and reason in the abortion debate.
18 Columbia Journal of Gender and Law, p. 592, 2009.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 103

criação dos “direitos fetais” (fetal rights) em contraposição aos direitos da


mulher gestante170.
No que diz respeito aos direitos reprodutivos, os sistemas legislati-
vos, em geral, precisam manter a atenção no sujeito originário a ser tutelado
– a mulher gestante. Quais os interesses da mulher, em situação de gravidez,
devem ser garantidos? Defende-se que a mulher precisa de um prazo razoá-
vel para decidir, de acordo com os seus valores e convicções pessoais e as
circunstâncias de sua vida concreta, se prossegue ou interrompe a gestação.
A mulher gestante, e não a coletividade, vislumbra, com maior propriedade,
a complexidade das questões que precisam ser balanceadas a fim de se che-
gar a uma decisão refletida171. Por isso, a abordagem mais consistente do
valor da “vida humana”, em relação à regulamentação do aborto, é a de que,
nos primeiros estágios da sua evolução pré-natal, o interesse público na sua
preservação não se sobrepõe aos interesses das mulheres e aos seus direitos
morais de autodeterminação172. Tal corrente de pensamento, que pode ser
nominada corrente gradualista, é consentânea com os postulados da catego-
ria da autonomia procriativa, que assegura às mulheres o poder de decisão
sobre o valor moral do feto até uma etapa específica da gestação, a partir da
qual este passa a merecer proteção assemelhada a de um recém-nascido173.

2.3 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE EM UMA


PERSPECTIVA DE GÊNERO

Em sua aplicação à regulamentação das decisões sexuais e repro-


dutivas, a consideração do princípio da igualdade de proteção perante a lei
introduz elementos analíticos vinculados à realidade histórica de subordina-
ção social e econômica da mulher. O controle governamental do planejamen-
to reprodutivo apoia-se na visão tradicional do exercício das funções familia-
res, sob a pressuposição de que incumbe, exclusivamente, à mulher o papel
de cuidado e criação dos filhos, o que importa na diminuição de suas oportu-
nidades de progresso educacional, profissional e de participação nas decisões
170
JOHNSEN, Dawn E. The creation of fetus rights: conflicts with women’s constitutional
rights to liberty, privacy and equal protection. 95 Yale Law Journal, January 1986. p.
603 e 605.
171
Ibidem, p. 611 e 613.
172
BORGMANN, Caitlin E. The meaning of “life”: belief and reason in the abortion debate.
18 Columbia Journal of Gender anad Law, 2009. p. 602.
173
NELSON, Erin. Law, police and reproductive autonomy. Oxford: Oxford and Portland,
Oregon, 2013. p. 115-116.
104 Teresinha Inês Teles Pires

políticas da sociedade. Nesse contexto, a restrição da autonomia sexual e


reprodutiva da mulher viola o princípio da igual cidadania. A proibição do
aborto parte da presunção de que as mulheres estão predestinadas ao desem-
penho da função de criar os filhos, sendo que a mesma obrigação não é im-
posta aos homens. Via de consequência, as restrições ao acesso seguro ao
aborto, calcadas no estabelecimento de papéis familiares, convencionalmente
firmados em uma perspectiva de gênero, acarreta a consideração do homem
e da mulher como cidadãos pertencentes a esferas sociais estanques, o que
contraria a base igualitária dos sistemas constitucionais do nosso tempo174.
Banir o acesso legal ao aborto tem o condão de obrigar as mulheres
a assumir, em diversas circunstâncias, responsabilidades sexuais e de de-
sempenho da função parental. A abordagem do princípio da igualdade, no
campo sexual e reprodutivo, está intimamente vinculada à estruturação este-
reotipada das instituições familiares, com seus papéis e atuações estereotipa-
das, realidade preponderante no ambiente da modernidade175. Grosso modo,
a contracepção e o aborto apresentam aspectos diferenciados de um único
problema: as funções que as mulheres têm que desempenhar na sociedade.
Tanto um quanto o outro, contracepção e aborto, são questões de natureza
constitucional, por colocarem em pauta a demanda pelo direito das mulheres
à participação na vida pública, com igualdade de oportunidades, em todas as
esferas, “social, política e econômica”176.
174
SIEGEL, Reva B. What Roe v. Wade should have said: the nations top legal experts
rewrite America’s most controversial decision. Editado por Jack M. Balkin. New York:
New York University Press, 2005. p. 63, 69, 7, 74 e 78. Os termos “gênero” e “sexo” se-
rão sempre utilizados, na presente análise, enquanto conceitos equivalentes, seguindo su-
gestão apresentada por BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion
of identity. New York, London: Routledge, 1990. p. 112-3, para quem a ideia de sexuali-
dade se associa primariamente às categorias de gênero, porque é interpretada a partir dos
significados político e cultural que performam as relações heterossexuais convencionais.
175
SIEGEL, Reva B. What Roe v. Wade should have said: the nations top legal experts
rewrite America’s most controversial decision. Editado por Jack M. Balkin. New York:
New York University Press, 2005. p. 81 e 245. Ver, também, da mesma autora, Equality
and choice: sex equality perspectives on reproductive rights. In: the Work of Ruth Bader
Ginsburg. 25 Colum. J. Gender & L. 63-80 (2013). p. 65-6. Nesse ensaio, Siegel, anali-
sando as ideias da Juíza Ruth Bader Ginsburg, leciona que as posições por esta defendidas
desafiam a legitimidade da imposição, pelo governo, de papéis sexuais convencionais ao
homem e a mulher, além de sedimentar a certeza de que a gravidez “mandatória” (manda-
tory) reforça as pressões sobre a mulher para que abandone suas aspirações profissionais,
alimentando o ciclo do seu status de cidadã dependente, na seara familiar e social, e de
sua condição de subordinação econômica e política.
176
GINSBURG, Ruth Bader. Sex equality and the constitution: the state of the art. Wom-
ens’s Rights Law Reporter, Spring Fall, 1992. p. 361. No original: “social, political and
economic”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 105

Essa argumentação pode parecer não tão convincente em um olhar


puramente abstrato, descontextualizado da vida familiar e social, em que se
inserem as relações de gênero. No entanto, torna-se fortemente demonstrável
quando situada em tal realidade. Na base da resistência à legalização do
aborto, está a concepção de que a mulher, ao decidir-se por sua realização,
está renunciando ao dever da maternidade, como se a maternidade fosse um
destino inexorável determinado pela “anatomia” feminina, uma característica
natural de sua fisiologia177. O aborto, em tal visão, é concebido, culturalmen-
te, como uma manifestação da resistência feminina aos deveres maternais e
maritais. A linguagem tradicional do determinismo fisiológico é articulada,
assim, na qualidade de um discurso de gênero que justifica o controle legal
da conduta reprodutiva da mulher178.
As mulheres estão inseridas em uma condição de desigualdade em
todos os ciclos do processo procriativo – concepção, gravidez, parto e cria-
ção dos filhos. Segundo Catharine MacKinnon, a definição do conceito de
igualdade de gênero deve promover a inclusão dos direitos reprodutivos nas
abordagens jurídica e sociológica da discriminação sexual, o que conduz à
ressignificação normativa do relacionamento entre a mulher grávida e o feto.
Para a autora citada, não se deve perder de vista que nenhum evento produz
tantas consequências no destino das mulheres, ao longo de suas vidas, como
a gravidez e a maternidade. Por isso, o controle do Estado sobre sua capaci-
dade de planejar o ato de procriar, sob o fundamento de que o feto possui um
estatuto jurídico independente, agrava sua situação de subordinação ao mo-
delo familiar tradicional. Aqui é fácil visualizar a tensão existente entre os
direitos da vida nascitura e a garantia da igualdade sexual entre homens e
mulheres. Mackinnon acredita que o combate à discriminação sexual exige
que se delimite a proteção do direito à vida a partir do momento do nasci-
mento da criança179.

177
SIEGEL, Reva B. Op. cit., p. 75. Ver, também, TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash
of absolutes. New York/London: W. W. Norton & Company, 1990. p. 33-4.
178
SIEGEL, Reva B. Abortion as a sex equality right: its bases in feminist theory. In:
Mothers in law: feminist theory and the legal regulation of motherhood. Editado por
Martha Albertson Fineman e Isabel Karpin. New York: Columbia University Press, jun.
1995. p. 49, 55 e 58.
179
MACKINNON, Catharine A. Reflexions on sex equality under law, 100 Yale Law Jour-
nal, Mar. 1991. p. 1308-9 e 1313-16. O mesmo raciocínio é adotado por TRIBE, Lauren-
ce H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton & Company,
1990. p. 132-3. Observe-se que a delimitação da tutela da dignidade da vida fetal, investi-
gada na seção anterior, interage diretamente com a garantia da igualdade sexual e repro-
dutiva veiculada pelo princípio da igual proteção perante a lei.
106 Teresinha Inês Teles Pires

As esferas da “sexualidade”, da “reprodução” e das características


de “gênero” se apresentam, na história de vida das mulheres, enquanto di-
mensões inseparáveis, o que deve permear o debate sobre o aborto. A pre-
sunção de que as mulheres controlam sua experiência sexual é falsa, pois as
relações sexuais, que dão causa à gravidez, não são comumente determina-
das de modo igualitário. O “sexo forçado” (forced sex) ou direcionado às de-
mandas masculinas ainda é uma realidade. As relações privadas escondem a
coerção masculina, supondo-se o consentimento da mulher ao sexo e, muitas
vezes, às agressões dos parceiros. Regra geral, sobretudo nas camadas sociais de
menor poder aquisitivo, o ambiente da intimidade representa para as mulheres o
domínio da opressão marital. Uma ampla abordagem do direito ao aborto não
pode adotar o raciocínio da cisão entre o público e o privado, que suporta a
afirmação da liberdade enquanto privacidade. Ao contrário, é necessário concep-
tualizar o privado, nas relações de gênero, como instância política de explicita-
ção de desigualdades estruturais. Sob o prisma feminino, a leitura da privacida-
de, obrigatoriamente, deve transcender os seus próprios limites180.
Os movimentos feministas seguiram, e seguem, essa direção, na
busca de uma transformação que realmente alcance o sentido de uma lingua-
gem de gênero eficaz, com a redefinição, em bases constitucionais, dos pa-
péis sexuais no plano da própria sexualidade e, principalmente, do exercício
da função parental. As leis que criminalizam o aborto chancelam o poder da
sociedade de decidir, por meio do critério majoritário, os projetos de vida de
todas as mulheres que buscam uma atuação social compatível com sua qua-
lidade de cidadã, em igualdade de condições e oportunidades. Essas mesmas
leis punitivas confundem o consentimento para o sexo – ou a falta dele –
com o consentimento para a assunção dos encargos da maternidade. A
opressão majoritária sobre as escolhas reprodutivas, nesse aspecto, é desas-
trosa na vida da mulher, à qual se concede, em caso de gravidez, apenas duas
opções: ou permitir o nascimento da criança, submetendo o seu próprio cor-
po a esse objetivo, ou correr os riscos de um aborto “autoinduzido” ou prati-
cado por profissional médico desqualificado para assegurar-lhe condições
regulares de sobrevivência181.
Somente um argumento substancial que explicite como as leis, na
prática, funcionam de maneira a reforçar o status secundário da cidadania da
mulher é capaz de fazer avançar a teoria da estreita vinculação entre o poder
180
MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. Cam-
bridge/London: Harvard University Press, 1991. p. 184-5, 190-1 e 193.
181
SIEGEL, Reva B. Roe’s Roots: the women’s rights claims that engendered Roe. Boston
University Law Review, [vol. 90:1875), Nov. 8, 2010. p. 1882-3 e 1889, nota 66.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 107

estatal e as estruturas sociais convencionais, do ponto de vista das relações


de gênero, aspecto tão camuflado pelos sistemas jurídicos. Às mulheres não
se atribui, em relação aos homens, o mesmo tratamento social. Elas se torna-
ram desiguais no processo histórico de edificação das forças reprodutivas e
familiares, o que se institucionalizou por intermédio da adesão das leis aos
mesmos valores já embutidos na realidade. Como transformar a lei, de ma-
neira a que ela favoreça o crescimento do status da condição feminina, corri-
gindo uma desigualdade sistêmica?182 Como já pontuado, a doutrina do plu-
ralismo político de Rawls e seu conceito de consenso sobreposto viabilizam
a mobilização de vozes excluídas da deliberação representativa. Em tal lin-
guagem, pode-se exigir que a ação governamental leve em conta os reais
interesses das mulheres, não como sujeitos de direitos “abstratos”, mas como
grupo social concretamente situado. No tocante ao aborto, uma lei restritiva,
em se evidenciando opressora e danosa ao destino da gestante, não satisfaz
as condições fundamentais de justiça, porque legitima a divisão discrimina-
tória do poder político numa sociedade cuja operacionalidade segue perfis
conceptualmente condicionados pelo pertencimento ao gênero, masculino ou
feminino, embora isso pareça imperceptível sob um olhar simplório183.
Em linhas gerais, toda a argumentação que ora se apresenta
compõe o arcabouço da tentativa de construir uma nova fundamentação
para o direito ao aborto estruturada no conceito de igualdade entre os
sexos. Parte-se da constatação de que a regulamentação do processo re-
produtivo tem origem no modelo de relações sociais estabelecido no sé-
culo XIX, no qual as restrições à contracepção e ao aborto tinham por
escopo manter as mulheres casadas envolvidas exclusivamente com o
cumprimento dos seus deveres na condição de esposas e mães. Até mes-
mo a alegação de que a tutela da vida humana deva ter início no momento
da concepção representa mais um elemento que contribui para afirmar a
centralidade das faculdades reprodutivas femininas como alicerce do
modelo tradicional de vida comunitária 184.
Para Cass Sunstein, o princípio da igual proteção perante a lei é o
fundamento maior para a defesa da inconstitucionalidade das restrições ao
182
MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. Cam-
bridge/London: Harvard University Press. 1991. p. 159-60 e 163.
183
Ibidem, p. 163 e 169.
184
SIEGEL, Reva B. Abortion as a sex equality right: its bases in feminist theory. In: Moth-
ers in law: feminist theory and the legal regulation of motherhood. Editado por Martha
Albertson Fineman e Isabel Karpin. New York: Columbia University Press, jun. 1995. p.
43-5 e 49. Para maiores detalhes acerca da correlação entre o papel reprodutivo da mulher
e a garantia da ordem social, consulte-se o texto citado. p. 49-53.
108 Teresinha Inês Teles Pires

aborto, haja vista a evidência de que as leis elaboradas com esse intuito con-
têm, inegavelmente, uma medida classificatória sustentada na categoria do
gênero. Mesmo quando se considera que a gravidez é biologicamente uma
condição que diferencia a mulher como ser capacitado para o desenvolvi-
mento da reprodução, são as práticas jurídicas que convertem as diferenças
biológicas em fonte de desvantagem socioeconômica, procedimento e estru-
tura facilmente identificáveis na criminalização do aborto. As diferenças
advindas da natureza não devem produzir tão amplos efeitos nas oportuni-
dades sociais concretas das pessoas. As leis não podem transformar as ca-
racterísticas biológicas femininas em uma espécie de “prejuízo social sis-
têmico para as mulheres”, e menos ainda atribuir à natureza a inevitabili-
185
dade desse prejuízo .
A discriminação sexual suportada e fortalecida pela legislação
produz concretamente um ciclo de desvantagem na vida das mulheres,
através da conjugação de múltiplas searas de subordinação, que compreen-
dem o desemprego, a má formação educacional, a ausência de poder políti-
co e a pobreza, de modo a predispô-las à violência e ao crime. Para dar
uma resposta a esses problemas, o que se deve ponderar não é se existem
ou não diferenças de gênero, pois efetivamente elas existem, mas sim, se é
viável modificar a abordagem dessas diferenças, no âmbito da lei e das
relações sociais, a partir de uma justificação constitucional apropriada. Em
determinadas circunstâncias, as classificações distintivas, além de serem
arbitrárias, em sua adesão a valores morais específicos, criam desigualdade
para pessoas que integram grupos particulares e taxativamente definidos,
no caso, as mulheres. A organização sociopolítica, na medida em que acolhe
uma estrutura de classes hierarquicamente estabelecida, termina produzindo
dois níveis de cidadania:
185
SUNSTEIN, Cass R. The partial constitution. Cambridge/London: Harvard University
Press, 1993. p. 259 e 261. No original: “systemic social prejudice for women”. Essa
posição é também defendida por JOHNSEN, Dawn E. The creation of fetus rights: con-
flicts with women’s constitutional rights to liberty, privacy and equal protection. 95 Yale
Law Journal, January 1986. p. 600 e 620. Sunstein já havia afirmado essa mesma ideia
em Three civil rights fallacy, 1991. p. 771, ao pontuar: “Differences that imply inequali-
ty are the result of legal and social practices, not of nature, and not of the differences
themselves”. Tradução livre: “Diferenças que implicam desigualdade são o resultado de
práticas legais e sociais, não da natureza, e não das diferenças em si mesmas”. No que pe-
se o autor esclarecer, na obra The partial constitution. Cambridge/London: Harvard
University Press, 1993. p. 261, não ter a intenção de declarar a precedência da igualdade
sobre a liberdade, enquanto princípios constitucionais básicos, firma posição no sentido
de que o princípio da liberdade não captura todos os aspectos envolvidos na abordagem
do aborto, porque não assegura a proteção de todas as escolhas individuais.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 109

a) a primeira cidadania, a cujos membros se confere pleno exercí-


cio dos seus direitos; e
b) a segunda cidadania, cujos membros são parcialmente, muitas
vezes de forma decisiva, excluídos da igualdade de oportunida-
des de vida186.
Sunstein oferece uma explicação lógica e convincente para de-
monstrar que as restrições ao aborto não são neutras, em matéria de classifi-
cação de gênero. Enfatiza que as proposições: “nenhuma mulher pode obter
um aborto” (no woman can get an abortion) e “nenhuma pessoa pode obter
um aborto” (no person can get an abortion) são equivalentes. Por isso, a
seletividade da proibição seria irrefutável. A analogia de Judith Thomson, já
mencionada, pela qual o governo não tem autoridade para exigir de alguém
que submeta o próprio corpo à preservação da vida de outrem, fornece su-
porte para esse entendimento. Tendo em mente a proteção da integridade
física da mulher, enfatiza Sustein, o aborto não pode ser visto como um ho-
micídio, no sentido originário do termo, mas como uma recusa em colocar o
próprio corpo a serviço do desenvolvimento do feto187.
Além disso, as razões apresentadas para a regulação do aborto re-
fletem juízos de valor sobre a mulher e também sobre o nascituro. Se os
argumentos relativos aos papéis sociais da mulher e os estereótipos construí-
dos em torno das suas funções e tarefas familiares interferem nas restrições
ao aborto, é o caso de asseverar que tais restrições infringem a igual proteção
legal. Aí está um critério ponderado para definir em que circunstâncias a
proibição da desigualdade de gênero se aplica às classificações vinculadas ao
estado gestacional188. Quando a distinção operada pela lei corresponde não a
características naturais, mas a conceitos sociais, ela é ilegítima e gera desi-
gualdades de tratamento. A determinação do sentido da igualdade sexual
deve ir além dos aspectos que assemelham homem e mulher, alcançando
esferas em que o raciocínio analógico não funciona189. A alegação de ser o
186
SUNSTEIN, Cass R. Three civil rights fallacy. 79 Califórnia Law Review, May 1991. p.
771-2.
187
SUNSTEIN, Cass R. The partial constitution. Cambridge/London: Harvard University
Press, 1993. p. 273-4.
188
SIEGEL, Reva B. The new politics of abortion: an equality analysis of woman-protective
abortion restrictions. University of Illinois Law Review 991 (2007). p. 997-9. No mesmo
sentido, MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. Cam-
bridge/London: Harvard University Press, 1991. p. 218.
189
MACKINNON, Catharine A. Reflexions on sex equality under law, 100 Yale Law Jour-
nal, Mar. 1991. p. 1288-91. O método utilizado na interpretação do conceito de igualdade
sexual, segundo a autora, é o concebido por Aristóteles: tratar os iguais como iguais e os
110 Teresinha Inês Teles Pires

processo gestacional uma condição, exclusivamente, feminina não confere


validade às restrições ao autocontrole da procriação, que venham a produzir
prejuízos irreparáveis à mulher, no que se refere à igual oportunidade de
desenvolvimento das potencialidades humanas e de participação política.
Nessa visão, a fragilidade do conceito de integridade corporal é
pressuposta, sendo necessário outro substrato argumentativo para alcançar os
fatores políticos e sociais presentes na realidade das mulheres que são impe-
didas de optar pelo aborto. O argumento adicional é representado, exatamen-
te, pelo princípio da igualdade sexual, que, segundo Sunstein, Siegel e Ma-
cKinnon, remete o debate para a condição de subordinação da mulher, pro-
duzida pela divisão estereotipada de papéis sociais e pela consequente cria-
ção de uma “classe secundária” (secondary class) em matéria de cidadania. O
argumento da igualdade sexual enfatiza as consequências das restrições ao
aborto na vida das mulheres, não tocando no problema dos interesses fetais.
Não se mostra necessário, em tal visão, enfrentar o problema do status moral
ou jurídico da vida potencial. Sunstein chega a considerar tal aspecto como
algo positivo, afirmando que a justificação do aborto, se fundamentada na
autonomia, como liberdade genérica, ou na integridade corporal, é mais com-
plicada por não evitar o adensamento dos limites da tutela da vida nascitura190.
No entanto, na maioria das vezes, não se alcança comprovação su-
ficiente do caráter discriminatório das classificações legais, ao ponto de sus-
tentar a inconstitucionalidade de uma lei restritiva de direitos. A relação
entre o aborto e o princípio da igual cidadania, se interpretada, exclusiva-
mente, sob o prisma da discriminação sexual, é paradoxal, dada a impossibi-
lidade de se demonstrar até que nível a maternidade, forçada ou voluntária,
impede o exercício dos poderes sociais e políticos. Seria a maternidade, em
si, incompatível com a plena cidadania? Ou apenas se poderia dizer isso no
que concerne à maternidade forçada?191 O conceito de discriminação de gê-
desiguais como desiguais. Esse raciocínio é insatisfatório por garantir a equidade na pro-
teção dos interesses da mulher somente até o ponto em que ela se identifica com o ho-
mem. Naquilo em que ambos se distinguem, e a analogia não funciona, como é o caso do
controle reprodutivo, costuma-se não vislumbrar discriminação nas classificações legais,
ainda que a estrutura social seja a causa central do seu estabelecimento. Acentua, ainda,
MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. Cambrid-
ge/London: Harvard University Press, 1991. p. 218, que a categoria do “gênero”, na forma
absorvida por nossa cultura, não propicia a criação de padrões de diferenças e semelhan-
ças, mas antes legitima um modelo social hierárquico sustentado na desigualdade.
190
SUNSTEIN, Cass R. The partial constitution. Cambridge/London: Harvard University
Press, 1993. p. 274 e 277-80.
191
BACHIOCHI, Erika. Embodying equality: debunking equal protection arguments
for abortion rights. 34 Harvard Journal of Law & Public Policy 889, Summer
2011. p. 908-11.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 111

nero, devido a essas particularidades, é bastante vulnerável ao balizamento


de outros interesses, sejam públicos ou privados. A perspectiva de aplicar o
princípio da igual proteção aos direitos reprodutivos das mulheres perde
facilmente seu poder de convencimento diante do argumento de que o nasci-
turo possui interesses em si mesmo, sobretudo, pela assunção da fundamen-
talidade do direito à vida192.
Pode-se concordar com o caráter fundamental da igualdade de gênero
na análise da autonomia reprodutiva da mulher. Aceite-se que a reflexão sobre o
aborto não pode margear os conflitos e o contexto social no qual se inserem.
Efetivamente, leis que criminalizam o aborto tornam, muitas vezes, mandatória
a maternidade sob a pressuposição do papel reprodutivo tradicionalmente im-
pingido à mulher, violando a proibição da discriminação baseada no sexo, na
forma veiculada pela cláusula da igual proteção perante a lei. Restringir o aborto
sem critérios adequados configura, assim, uma forma arbitrária e intrusiva de
controle público sobre a vida das mulheres. Em suma, reivindicar que a legaliza-
ção do aborto seja conduzida à luz de uma análise crítica dos múltiplos ângulos
das relações familiares e da sistematização social dos papéis reprodutivos é uma
reivindicação constitucionalmente fundamentada193.
Por outro lado, entende-se que a abordagem da igualdade sexual e da
dimensão discriminatória da regulamentação do aborto precisa ser articulada
não como uma categoria jurídica independente, mas como um elemento da
liberdade de escolha da mulher no campo reprodutivo. E isso não somente no
sentido da autonomia no controle sobre o próprio corpo, mas também no sen-
tido da afirmação da capacidade de decisão moral individual no tocante ao
valor da vida pré-natal. A igualdade pode até ter uma importância maior do
que o próprio exercício da autonomia individual, mas isso não quer dizer que a
“objeção feminista” (feminist objection) à utilização do princípio da liberdade
seja adequada em relação à tentativa de reformular o direito ao aborto. Cons-
truir um conteúdo contextualizado para legitimar a autonomia reprodutiva
pode representar uma vertente mais forte a favor da admissibilidade do aborto,
do ponto de vista da engenharia dos princípios constitucionais, do que aquela
apontada pelo discurso da desigualdade social feminina194.

192
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 76.
193
SIEGEL, Reva B. Abortion as a sex equality right: its bases in feminist theory. In:
Mothers in law: feminist theory and the legal regulation of motherhood. Editado por
Martha Albertson Fineman e Isabel Karpin. New York: Columbia University Press, jun.
1995. p. 54, 58-60 e 64.
194
NELSON, Erin. Law, police and reproductive autonomy. Oxford: Oxford and Portland,
Oregon, 2013. p. 41 e 43. Nessa obra, o autor propõe uma refundação da autonomia re-
112 Teresinha Inês Teles Pires

Em um contexto sociopolítico, em que a categorização das diferen-


ças de gênero sempre foi utilizada para minimizar o status ocupado pelas
mulheres, talvez seja preciso repaginar os parâmetros da equidade em maté-
ria sexual, de modo a constituir uma visão relativamente desfocada da lin-
guagem tradicional de enunciação daquelas diferenças e voltada para a equi-
paração do status moral e político sob o ângulo do conceito de cidadania.
Diminuir a ênfase que o discurso da igualdade de gênero atribui à situação
de subordinação histórica dos papéis femininos pode contribuir para posicio-
nar uma imagem renovada das mulheres como iguais cidadãs, no pleno exer-
cício de suas capacidades morais, neutralizando sua imagem como sujeitos
culturalmente inferiorizados195.
A definição das características de gênero apresenta grandes difi-
culdades, quando aplicada às diferenças concretas que especificam a identi-
dade das mulheres nos diversos contextos culturais e políticos em que estão
inseridas. Para Judith Butler, o termo “gênero” se entrelaça com inúmeras
estratégias discursivas de constituição de “identidades”, dentre elas as espe-
cificidades de raça, classe social, etnia e regionalidade. Isso torna, pratica-
mente, impossível construir um suporte global para o feminismo, até mesmo
por não existir igualmente uma visão universal da hegemonia do patriarca-
lismo. A opressão sustentada no gênero não tem como expressar-se fora dos
elementos culturais da realidade vivenciada pelas mulheres no exercício de
suas funções sociais. Um significado separado para uma identidade de gêne-
ro termina por eliminar as particularidades de cada grupo de mulheres, que

produtiva centrada no conceito de integridade corporal, pretendendo, com isso, unificar o


argumento da autonomia e o argumento da igualdade e solidificar o compromisso do go-
verno com o oferecimento de condições que otimizem o exercício do direito da mulher à
procriação planejada. Para maiores detalhes sobre tal ponto de vista, veja-se a obra citada.
p. 62-70. Todavia, como pincelado antes, a integridade corporal é um fundamento insatis-
fatório em relação ao aborto, e sua mera conjugação a uma noção ampliada da autonomia
reprodutiva não tem o condão de dar-lhe a solidez defendida por Erin. A intersecção entre
gênero e equal protection deve ser incorporada à análise da autonomia reprodutiva, mas
não pela mediação do direito ao controle sobre o corpo, e sim por meio da ideia de digni-
dade moral no tocante à definição do próprio destino. Nesse sentido, consulte-se BACHI-
OCHI, Erika. Embodying equality: debunking equal protection arguments for abortion
rights. 34 Harvard Journal of Law & Public Policy 889, Summer 2011.
p. 913-16.
195
ROSENFELD, Michel. Just Interpretations: Law Between Ethics and Politics. Berke-
ley/Los Angeles/London: University of California Press, 1998. p. 64. O autor esclarece,
nessa passagem, que sua ideia de “igualdade como identidade” (equality as identity), a
despeito de sua aparente incompletude e parcialidade, é o primeiro passo para o desenvol-
vimento de um conceito mais englobante de “igualdade como diferença” (equality as dif-
ference).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 113

não sofre, da mesma maneira e no mesmo grau, os efeitos da dominação


histórica masculina. Grosso modo, a categoria de gênero é incompleta e deve
ser preenchida a partir dos seus múltiplos elementos constitutivos, sendo a
sexualidade, no aspecto fisiológico, apenas um deles196.
Quando se fala que a igualdade sexual e reprodutiva, como ga-
rantia constitucional, é fundamento para o direito ao aborto, leva-se em
conta a situação de desvantagem da mulher nas sociedades políticas, ine-
vitavelmente agravada pelos encargos decorrentes da maternidade obriga-
tória. O banimento do acesso ao aborto alimenta o ciclo de subordinação
feminina e reforça a divisão categórica do desempenho de papéis sexuais
estanques, reservando-se às mulheres a responsabilidade pelo cuidado
com os filhos. Contudo, regra geral, dependendo da raça, condição social,
etnia e localização geográfica, as mulheres têm ou não maiores possibili-
dades não só de acesso aos meios contraceptivos como também ao aborto
em condições seguras. Nesse sentido, pode-se dizer que o princípio da
igual proteção se aplica à classificação de gênero, em matéria reproduti-
va, mas não em uma concepção discursiva genérica, e sim por intermédio
da convergência das relações socialmente estruturadas formativas da
identidade feminina.
Fora do contexto padronizado da identidade feminina, utilizando-se a
linguagem de Butler, como promover uma acomodação constitucional adequada
do direito da gestante à interrupção da gravidez? As especificidades reprodutivas
196
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York,
London: Routledge, 1990. p. 3-4 e 14-15. Butler desenvolve uma complexa leitura sobre
as possibilidades de subversão dos sentidos da identidade de gênero adotados pelo discur-
so da “heterossexualidade compulsória” (compulsory heterosexuality), que, segundo a au-
tora, nitidamente funciona por meio de um modelo de reprodução sexual igualmente
mandatória, bloqueando a formação das categorias do masculino e do feminino fora da rí-
gida “estrutura binária” (binary structure) da sexualidade. Apresenta-se uma análise da
caracterização da homossexualidade feminina enquanto uma possibilidade culturalmente
incorporável desconectada da construção social do corpo da mulher, que não representa,
necessariamente, um símbolo de sua identidade. Com base em referenciais filosóficos, so-
ciológicos e psicanalíticos, Butler relativiza o valor da “identidade de gênero” (gender
identity), trazendo vários questionamentos às premissas das teorias feministas. Tais pre-
missas, na sua ótica, uniformizam o significado cultural da sexualidade feminina e retiram
da mulher o estatuto de um sujeito moral universal por meio da “reificação” (reification),
ou substancialização, de sua experiência de subordinação social ao modelo patriarcal. Em
realidade, tais argumentos não se contrapõem essencialmente às teses feministas. Ao con-
trário, pressupõem seu substrato da não naturalidade da divisão desigual de papéis sociais.
Por outro lado, os argumentos lançados por Butler adensam a discussão sobre as classifi-
cações de gênero e problematizam sua eficácia na defesa do direito ao aborto, revelando
sua instabilidade discursiva. Para maior aprofundamento dessa crítica, recomenda-se a lei-
tura da obra citada, p. 16-25, 35-56 e 111-128.
114 Teresinha Inês Teles Pires

da mulher não condicionam negativamente a vida de todas elas, sob o prisma da


igual proteção perante a lei, de modo a que a desigualdade de gênero, por si só,
proporcione suporte satisfatório à inconstitucionalidade da proibição do aborto.
Em outras palavras, na medida em que o corpo da mulher, e sua fisiologia re-
produtiva, é parâmetro não universal para a consideração de sua personalidade
como sujeito de direitos, em que dimensão a igualdade sexual é fundamento
para a proteção de sua autonomia procriativa? Inicialmente, a discriminação
atingiria exclusivamente as mulheres férteis. Em segundo lugar, somente as que
não possuem recursos para assegurar para si mesmas a realização do aborto
seguro, estariam em uma situação de desigualdade estruturada pelo sistema
patriarcal. Nesse particular, o debate acerca do aborto parece envolver, sob
qualquer aspecto, o problema social da má distribuição de renda e do preconcei-
to racial. Poder-se-ia, inclusive, sustentar a admissibilidade do aborto com fun-
damento no direito à saúde, já que sua criminalização não é eficiente para evitar
sua prática, apenas aumentando a procura pelo aborto ilegal. Entretanto, em uma
interpretação constitucional, a garantia da saúde, como categoria independente,
também não oferece suporte suficiente para a ampliação da autonomia procriati-
va da mulher197.
Em princípio, quando se pensa na remissão da problemática do
controle reprodutivo à estratificação de classes sociais, realidade comum a
todas as sociedades contemporâneas, não haveria justificativa para a não
sobreposição do direito à saúde da mulher na regulamentação do aborto. De
qualquer sorte, porém, o argumento não resolve a questão por uma única
razão: a reflexão sobre o aborto tem por diretiva, em um olhar mais profun-
do, a necessidade de balizar os dois direitos que mais reclamam o estatuto de
direitos “absolutos”, embora nenhum deles possa tê-lo: de um lado o direito
à vida, e de outro o direito à liberdade. Essa tensão é demarcada por ambien-
tes sociais específicos e explicita convicções de índole existencial a respeito
da definição de um estilo de vida adequado a cada pessoa198. Não há como,
portanto, evitar a sustentação do aborto como um direito decorrente do prin-
cípio da liberdade, se não sob o aspecto da privacidade, sob o aspecto da
autonomia moral.

197
A tendência mundial não é escolher o direito à saúde como fundamento primeiro para a
legalização do aborto, e sim os direitos de liberdade ou, na vertente feminista contempo-
rânea, os direitos de igualdade. No Brasil, como se verá adiante, a última tentativa de des-
criminalização do aborto, por meio de projeto de lei, teve por argumento essencial a ne-
cessidade ao combate ao aborto ilegal. A proposta não foi aceita pelo Congresso Nacio-
nal, resultando no arquivamento do projeto.
198
TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton
& Company, 1990. p. 3 e 27.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 115

Na sistemática constitucional o tema do aborto melhor se exprime no


argumento das liberdades morais, de consciência e religiosa, por sua maior
generalidade, independentemente das diversas circunstâncias culturais deter-
minantes das opções reprodutivas de cada grupo de mulheres. Construir uma
tese favorável ao aborto, na dimensão da cidadania igual, envolve os aspectos
mais fundamentais da personalidade e da autonomia feminina. Dentre as di-
mensões plurais de poder que edificam a subserviência sexual das mulheres
destaca-se a predominância da moralidade convencionalmente ditada pelo
discurso masculino. Nas entrelinhas desse discurso, a mulher é posta a serviço
de suas funções reprodutivas por ser identificada como uma cidadã de segunda
classe, moralmente e politicamente. A intersecção entre sexo e poder, impedi-
tiva da construção espontânea dos papéis sexuais, parte da minimização das
habilidades femininas de escolha de seus próprios referenciais valorativos, seja
na definição de sua identidade sexual, seja na definição de seus projetos repro-
dutivos. Pugnar pelo ser mulher, não com os olhos voltados para “as estruturas
simbólicas” (symbolic structures) de sua fisiologia, mas antes com os olhos
voltados para sua plena capacidade moral, até ao ponto de contrapor-se à dic-
ção masculina da proibição do aborto, é a verdadeira transformação cultural de
gênero que a pós-modernidade precisa empreender199.
Essa análise mostra que a crítica feita por Dworkin à supremacia do
princípio da igualdade de gênero na legitimação do aborto, crítica essa dirigida
particularmente aos argumentos de MacKinnon, expostos anteriormente, não é
desarrazoada. Segundo o autor, a referência ao direito à privacidade, prevalente
na jurisprudência do seu país, em relação ao assunto, não representa um erro
interpretativo ou uma negação da subordinação social da mulher e não deve ser
rejeitada. Ao contrário, a dominação masculina sobre a mulher aumenta a certe-
za de que se deve persistir na defesa do direito feminino de autonomia no con-
trole da própria sexualidade e reprodução. Reconhecer o direito à privacidade,
nas questões procriativas, não reforça a desproteção da mulher contra a violência
sexual, por exemplo, e não desobriga o Estado de financiar o aborto. A privaci-
dade, como garantia constitucional, significa autodeterminação no que concerne
a processos decisórios de natureza particular, relativos a matérias específicas e
fundamentais. Sintetizando, o direito à privacidade não compete com a amplia-
ção da garantia da igualdade sexual. Diferentemente, é um pressuposto, não um
entrave, para sua efetivação200.
199
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York,
London: Routledge, 1990. p. 93, 98, 101 e 106.
200
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 51 e 53-4.
116 Teresinha Inês Teles Pires

2.4 CONCRETIZAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA E DA


LIBERDADE MORAL NA ESFERA REPRODUTIVA:
RELEITURA DA TESE DE DWORKIN

Como se falou antes, Dworkin defende que a tutela da vida do em-


brião tem por pressuposto a ideia da sacralidade da vida. As crenças das
pessoas que se opõem ao aborto se sedimentam na concepção de que a vida
humana, em quaisquer de suas manifestações, é sagrada e inviolável. Toda-
via, sabe-se que não há divergência em relação a esse ponto. Todas as vi-
sões, liberais ou conservadoras, admitem que a interrupção da gestação é, em
princípio, um ato moralmente problemático, porque a vida humana possui
um valor intrínseco. Uma vez iniciado o seu desenvolvimento, não se pode
dizer que o aborto seja uma questão simples de se resolver, mesmo conside-
rando que o nascituro não possui o direito constitucional à vida201.
É razoável sustentar que o aborto pode ser moralmente repreensí-
vel e, ao mesmo tempo, que o governo não possui legitimidade para ditar à
mulher o que ela deve ou não fazer, em situação de gravidez, desde que não
se esteja, ainda, em seus estágios mais avançados? A resposta é positiva,
porque a decisão, no caso, é ética, ou seja, apoia-se na concepção “espiritu-
al” individual acerca da sacralidade da vida. Além disso, a gestante é a pes-
soa “cuja consciência” está “mais diretamente” envolvida na decisão a ser
tomada e cuja vida será definitivamente afetada em caso de se optar por le-
var a gestação a termo. A liberdade de escolha da gestante de realizar ou não
o aborto é uma “implicação da liberdade religiosa”, cabendo ao governo
assegurar-lhe essa liberdade, mesmo que ela possa tomar sua decisão procria-
tiva levando em conta, também, outras razões de ordem prática202. Em outras
palavras, o valor intrínseco da vida não pode ser objeto de um juízo coletivo,
tratando-se, no contexto da justificação do direito ao aborto, de uma questão
inserida no direito à liberdade religiosa.
Mostrou-se, anteriormente, que os argumentos dos defensores da
personalidade do nascituro não são verdadeiros, seja sob o prisma científico,
seja sob o prisma moral, considerando que a “vida potencial” e a formação
da individualidade genética não são substratos racionais suficientes para a
constitucionalidade da tutela da vida pré-natal desde a concepção. O apelo a
essas ideias não parte de uma visão secular, e sim religiosa, entendendo-se o
201
Ibidem, p. 34-5.
202
Ibidem, p. 14-5, 26 e 33. No original: “spiritual” [...] “whose conscience” [...] “most
directly” [...] “implication of the religious freedom”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 117

termo religião, aqui, como expressão de uma convicção particular sobre o valor
da vida humana. Segundo Dworkin, uma crença, para ser classificada como uma
crença religiosa, não exige a pressuposição da existência de uma divindade,
bastando que o seu conteúdo seja essencialmente religioso. Qualquer indagação
que se debruce sobre a busca de respostas aos significados mais profundos da
existência humana possui o estatuto de uma questão religiosa. As questões reli-
giosas são aquelas que distanciam o indivíduo de suas vivências subjetivas e o
conectam a valores transcendentes. Distinguem-se substancialmente das ques-
tões de moralidade política e das questões afetas à justiça como equidade e à
melhor distribuição de recursos, as quais claramente não possuem natureza reli-
giosa. Daí se nota que a definição do valor intrínseco da vida conduz o ser hu-
mano ao espaço reflexivo da religiosidade e da espiritualidade, nada tendo em
comum com os problemas práticos da justiça social203.
Observando-se a divisão de forças políticas no julgamento da mo-
ralidade do aborto, fácil é notar que o problema se apresenta sob uma forte
influência do pensamento religioso-teológico204. Por outro lado, a dimensão
religiosa está conceitualmente conectada à dimensão moral, cuja extensão
possibilita a inclusão do humanismo laico, enquanto doutrina ética merece-
dora da mesma importância, no espaço público, em comparação às visões
teístas. O significado da inviolabilidade da vida insere-se no contexto da
categoria genérica da moralidade, que envolve as crenças teístas e os princí-
pios éticos. A destruição do embrião ou feto, mesmo considerando que ele
não possui direitos próprios, irradia na mente humana um sentimento negati-
vo de perda, em sentido moral, cujo peso leva muitas pessoas a repelir a
aceitação do direito ao aborto em circunstâncias várias.
203
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 155-6 e 162-4. Consoante ensinado
por WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple Univer-
sity Press, 1992. p. 112, as crenças possuem natureza religiosa quando não são suportadas
por raciocínios e metodologias seculares.
204
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 36. Para uma análise histórica e filo-
sófica da influência das visões teológicas na política, consulte a mesma obra. p. 36-50.
Dworkin aproveita-se de seu estudo sobre o assunto para reforçar seu ensinamento no sen-
tido de que nunca a opinião das instituições religiosas supôs que o feto seria pessoa. Essas
opiniões professam antes a ideia de que o aborto sempre representa um desperdício da vi-
da humana. A doutrina católica, enfatiza o autor, desenvolve atualmente um discurso di-
recionado à construção de uma “Consistente Ética da Vida” (“Consistent Ethic of Life”,
idem, p. 49). Não é o caso de se aprofundar a investigação sobre a histórica relação entre a
igreja e o poder, porque o tema da pesquisa não é a liberdade religiosa em si, razão pela
qual importa discutir diretamente o significado dessa cláusula fundamental em sua aplica-
bilidade ao direito ao aborto.
118 Teresinha Inês Teles Pires

Para Dworkin, o respeito que todos professam pelo início da vida,


pela natureza, pela preservação das espécies, é uma representação do respei-
to pelo processo de criação em si mesmo. Não é propriamente a ideia da
perda de uma vida a causa do desconforto moral que está na base da censura,
individual ou coletiva, à prática do aborto ou da eutanásia, e sim a ideia da
frustração dos “investimentos” (“investments”) realizados em uma vida que
já tenha sido naturalmente iniciada. Isso explica porque todas as pessoas
reputam o aborto uma conduta mais repreensível na fase tardia da gravidez.
Há uma presumida gradação no conceito moral que se tem da perda da vida
humana. A medida que o feto se desenvolve a vida se torna mais e mais in-
violável, o que justifica, por exemplo, o padrão europeu, em regra, da per-
missão do aborto somente no primeiro semestre da gestação205.
Nem todas as doutrinas religiosas são contrárias ao aborto, por-
tanto, nem todas atribuem ao valor intrínseco da vida a mesma importân-
cia, em face dos direitos reprodutivos da mulher 206. Propor, como faz
Dworkin, que o direito ao aborto está incluído na proteção da liberdade
religiosa, traz para o debate a necessidade de se investigar a fundo a co n-
sistência desse princípio. O favorecimento aos valores professados pelas
religiões majoritárias em detrimento do reconhecimento das religiões
minoritárias viola o princípio constitucional da liberdade religiosa? Proi-
bir uma conduta moralmente aceita por algumas religiões minimiza o
livre exercício das crenças minoritárias, inviabilizando a acomodação da
diversidade religiosa? A reflexão se torna ainda mais oportuna quando se
pondera que essa acomodação envolve também o reconhecimento do pen-
samento laico, o direito de não aderir a nenhuma religião e de não acredi-
tar em nenhum tipo de entidade divina.
205
Ibidem, p. 79, 84, 88-9 e 99.
206
Conforme leciona MAGUIRE, Daniel C. Sacred choices: the right to contraception and
abortion in ten world religious. Minneapolis: Fortress Press, 2001, passim, as religiões
não teístas (Budismo, Taoísmo e Confucionismo) pincelam a liberdade de consciência na
qualidade de fundamento justificador da não proibição do aborto. As religiões teístas (Ju-
daísmo, Cristianismo e Islamismo), no que pese a crença em um Ser transcendente, tam-
bém não são unânimes na censura ao aborto. O Hinduísmo, que pressupõe a existência de
vários deuses, apesar de conter em seus escritos a prescrição de que o aborto é classificá-
vel como ato censurável perante as leis divinas, não repercute dogmaticamente no sistema
jurídico dos países nos quais a religião tem primazia. Na Índia, por exemplo, o aborto foi
legalizado em 1971 nas hipóteses de estupro, incesto e para a proteção da saúde mental da
mulher. Os preceitos religiosos estão em constante transformação. No catolicismo convi-
vem, atualmente, posições Pro-Life e Pro-Choice. Os adeptos da segunda posição enten-
dem que as mulheres católicas são livres para tomar suas próprias decisões de consciência
no tocante ao aborto. Não há ensinamentos infalíveis sobre o aborto, sendo que a Bíblia
não condena o aborto e não o equipara ao assassinato.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 119

Muitas críticas foram feitas à correlação sugerida por Dworkin en-


tre o direito ao aborto e a garantia da liberdade religiosa. Segundo a maioria
dessas críticas, Dworkin não teria conseguido provar nem que o feto não é
pessoa nem que a decisão do aborto tem natureza religiosa por pressupor a
“santificação” da vida como uma ideia universalmente compartilhada. Ale-
ga-se que nem todos os opositores ao aborto entendem que o feto seja pes-
soa, existindo, no fundo de suas crenças múltiplas orientações valorativas. A
insistência na abordagem da independência ética, sedimentada em um códi-
go moral individual, não seria, portanto, um argumento válido na defesa do
direito ao aborto207.
Em outra frente, os ataques à tese de Dworkin apoiam-se na afir-
mação de que a decisão de realizar o aborto de forma nenhuma é determina-
da pela concepção individual da mulher no tocante ao valor intrínseco da
vida. Ao contrário, a gestante costuma levar em conta não o valor moral do
feto, mas as obrigações e responsabilidades pessoais advindas do nasci-
mento da criança, bem como suas implicações nos seus relacionamentos,
carreira e situação financeira. Diante de um conflito interno, no sentido da
capacidade para assumir responsabilidades, do antagonismo entre desejos,
demanda biológica e compromissos preexistentes e futuros, a mulher visua-
liza as obrigações que tem condições de cumprir ou não em relação à criação
de um filho208.
Uma terceira vertente do criticismo à vinculação do direito ao
aborto à liberdade religiosa alega que se trata de uma tese irrelevante, tendo
em vista que a pergunta central a ser feita, no tema do aborto, não se refere
ao respeito às convicções éticas individuais, mas sim à questão da justiça, ou
seja, se o ato de abortar é ou não injusto. Se a conduta for considerada injus-

207
GREENWOOD, Daniel J. H. Beyond dworkin’s dominious: investments, memberships,
the tree of life and the abortion question life’s dominium: an argument about abortion, eu-
thanasia and individual freedom by Ronald Dworkin. 72 Texas Law Review, February,
1994. p. 561, 563, 565 e 570-1. Igualmente, TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash of
absolutes. New York/London: W. W. Norton & Company, 1990. p. 116, embora se posi-
cione a favor do aborto, afirma que a cláusula da liberdade religiosa não soluciona o pro-
blema, no tocante ao seu estatuto fundamental. Crítica assemelhada é feita, ainda, por
BRADLEY, Gerard V. Life’s Dominium: a Review Essay. 69 Notre Dame Law Review,
1993. p. 374-5, que chega a afirmar que Dworkin, na tentativa de abordar direitos na qua-
lidade de experiências subjetivas ou propriedades da consciência, não considera seriamen-
te os questionamentos que fragilizam o seu argumento.
208
GREENWOOD, Daniel J. H. Beyond dworkin’s dominious: investments, memberships,
the tree of life and the abortion question life’s dominium: an argument about abortion, eu-
thanasia and individual freedom by Ronald Dworkin. 72 Texas Law Review, February,
1994. p. 591-2 e 600.
120 Teresinha Inês Teles Pires

ta, o Estado pode proibi-la, mesmo quando sustentada em uma convicção


religiosa, ou quando a proibição coincida com uma doutrina religiosa. E para
definir se o aborto é um ato injusto seria preciso, portanto, simplesmente
posicionar-se sobre o direito à vida do feto, dizendo se ele é ou não pessoa
humana ou a partir de que momento ele adquire esse estatuto. De acordo
com esses argumentos, mesmo que se conclua que o feto não é pessoa, não
há razão para apelar à liberdade religiosa, pois realizar o aborto, no caso,
deixaria de ser um ato injusto, já que a gestante, ao fazê-lo, não estaria vio-
lando direitos alheios. A proteção veiculada pela categoria genérica da liber-
dade seria suficiente para fundamentar seu direito à autonomia procriativa209.
Essas críticas, na visão adensada no presente estudo, passam ao
largo da perspectiva que Dworkin quis introduzir no debate sobre o aborto.
Quanto à primeira crítica, relativa ao estatuto jurídico do nascituro, esgotou-
-se sua análise nas seções anteriores do presente capítulo. Sabe-se que a
imanência da sacralidade da vida na reflexão sobre o aborto, como defende
Dworkin, configura um raciocínio complexo. Mas é plausível postular sua
consistência constitucional na medida em que o apelo à autonomia da cons-
ciência demonstra a construção equivocada da doutrina da personalidade do
nascituro. Se a prática jurídica, em sua função interpretativa, pode levar a
que se declare a inconstitucionalidade da doutrina da personalidade jurídica
do embrião, por ausência de compatibilidade sistêmica, certamente pode
também veicular, em seus fundamentos, as premissas morais que edificam
sua defesa. Nesse particular, as doutrinas religiosas majoritárias e a ideia da
tutela da vida pré-natal desde a concepção estão inevitavelmente entrelaça-
das, se não sob o aspecto puramente argumentativo, ao menos sob o aspecto
do embate político. Por isso, não há como refletir sobre o significado da vida
pré-natal sem tocar nos contornos a serem definidos para a garantia das cláu-
sulas da consciência.
Quanto à segunda crítica, no sentido de que a mulher não leva em
consideração o valor intrínseco da vida ao tomar sua decisão de realizar o
aborto, é preciso esclarecer o seguinte: uma coisa é analisar as motivações
que levam a gestante à escolha pelo aborto, que, por óbvio, como já dito, têm
a ver com suas circunstâncias de vida; outra coisa, bem diferente, é solidifi-
car uma fundamentação constitucional para a legitimação da autonomia pro-
criativa. O fato de nem todos estarem de acordo com a proposição de que o
209
ORREGO S., Cristóbal. Liberalismo y libertad religiosa en el debate político sobre la
justicia: argumentos sobre el aborto legal. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.).
Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 139, 141, 149-150 e
152.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 121

valor sagrado da vida está envolvido na decisão da mulher, que opta pelo
aborto, em nada altera a base argumentativa de Dworkin. O que está em
questão, à luz dos princípios da liberdade religiosa, é a ilegitimidade do Es-
tado de fundamentar a criminalização de uma conduta em uma convicção
religiosa de caráter não universal.
As arguições baseadas na realidade socioeconômica da gestante
podem ser adequadas na esfera penal, para a postulação de causas excluden-
tes da ilicitude do ato delituoso, como o estado de necessidade, ou excluden-
tes da culpabilidade, no âmbito da inexigibilidade da conduta diversa. Os
mesmos argumentos não são, porém, satisfatórios na postulação de que o
aborto é um direito constitucionalmente assegurado. Em outras palavras, o
princípio da responsabilidade pessoal deve ser estimulado pelo Estado, mas
não serve para demonstrar que o aborto é um direito fundamental. Já se disse
que na última obra de Dworkin, Justiça para Ouriços, o princípio da res-
ponsabilidade pessoal passou a ter expressão por meio do primeiro requisito
da dignidade, a autenticidade, cujo contorno não se torna claro sem a exten-
são do juízo ético ao dever de promover o bem para todos os membros da
comunidade política. Assim, a destruição do embrião ou feto envolve sim
um juízo sobre o dever moral para com a preservação de sua vida, nas cir-
cunstâncias em que um dever de tal espécie estiver caracterizado em bases
constitucionais.
Por fim, a terceira crítica, que alega ser prescindível a inclusão do
princípio da liberdade religiosa no debate sobre o aborto, desconsidera o
significado atribuído por Dworkin à dignidade humana. Há uma diferencia-
ção emblemática, no aspecto da interpretação constitucional, entre os direitos
fundamentais em espécie e o princípio da dignidade, sendo que este último,
por sua ligação à ideia do pleno exercício da cidadania, afirma o dever do
Estado de assegurar o reconhecimento público dos valores morais que estão
na base da linguagem dos direitos. O sistema de justiça é um pressuposto de
toda a argumentação de Dworkin a respeito da dignidade humana, cujo subs-
trato unifica as esferas do pensamento moral e político e introduz a necessi-
dade da proteção da independência ética. O direito à vida não é a única cate-
goria a ser concretizada no que concerne aos interesses do feto. A aborda-
gem da matéria, sob o enfoque do princípio da dignidade, torna possível
aperfeiçoar o debate, redimensionando o paradigma da justiça e do direito
como integridade de princípios.
Como foi visto na seção 2.1, nesse mesmo capítulo, mesmo que se
demonstre que o feto não é pessoa, a proibição do aborto poderia fundamen-
tar-se na garantia da dignidade de sua vida pela importância intrínseca ine-
122 Teresinha Inês Teles Pires

rente a toda espécie de vida humana. Dado esse segundo aspecto da impor-
tância da vida humana, Dworkin precisou situar o problema do aborto no
contexto das exigências da dignidade, em um primeiro momento, na obra O
Domínio da Vida, sedimentando o envolvimento da liberdade religiosa co-
mo um elemento reflexivo naturalmente presente na decisão da gestante; e,
em um segundo momento, reformulando o conceito de dignidade, na obra
Justiça para Ouriços, a fim de reforçar seu entendimento de que o aborto
pode ser proibido no terceiro semestre gestacional em face do respeito que se
deve ter pela vida pré-natal, considerando o valor de sua dignidade. Em úl-
tima instância, isso é o mesmo que dizer que o aborto é um ato injusto nos
estágios avançados da gravidez por violar a dignidade da vida fetal. A con-
trario sensu, não é um ato injusto nos estágios iniciais em face da proteção
assegurada pela dignidade conferida à vida da gestante, na dimensão dos
princípios da autenticidade e do respeito próprio.
É sempre importante pontuar que a discussão em torno da constitu-
cionalidade do direito ao aborto traz consigo a necessidade da concretização
de preceitos fundamentais portadores de alto grau de abstração, dentre os
quais se destacam os princípios da liberdade e da igualdade. Por um viés
lógico, a autonomia procriativa enquadra-se na proteção da liberdade en-
quanto liberdade de escolha na esfera do planejamento reprodutivo. Entre-
tanto, seja sob as vestes do conceito de privacidade, tradicionalmente utili-
zado nas sociedades democráticas, sobretudo nos Estados Unidos da Améri-
ca, como ainda se verá, seja sob as vestes da noção de autonomia em si
mesma, o princípio da liberdade é por demais genérico, o que dificulta sua
ampliação com o propósito de justificar o reconhecimento de determinados
direitos.
Por isso, acredita-se que a tentativa de Dworkin de situar a admis-
sibilidade do aborto na garantia da liberdade religiosa pode significar a supe-
ração dos limites encontrados na utilização exclusiva daquelas cláusulas
constitucionais genéricas, acima indicadas. Peter Wenz endossa o pensamen-
to de Dworkin quando defende que a liberdade religiosa, na qualidade de
uma categoria específica de direito fundamental, incorpora a autonomia pro-
criativa das mulheres. Segundo Wenz, a privacidade é um parâmetro instável
e encontra acolhimento apenas em uma visão liberal extrema, que confere
grande poder criativo aos juízes na declaração de novos direitos fundamen-
tais não explicitamente previstos na Constituição. O entendimento do autor é
por ele mesmo definido como uma posição politicamente moderada, que se
situa entre o respeito total ao critério majoritário e a tutela absoluta dos direi-
tos de liberdade. Nessa visão, o alcance interpretativo de cada categoria
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 123

constitucional específica pode ser ampliado para incluir o reconhecimento de


novos direitos210.
Sem dúvida alguma, o pensamento de Dworkin sobre o tema do
aborto configura, mais ainda, uma visão moderada, não radicalmente liberal.
Antes que Wenz desenvolvesse sua resposta ao problema, Dworkin havia
manifestado indiretamente sua opinião no sentido de que uma cláusula fun-
damental de conteúdo específico poderia ser firmada como sendo a raiz do
direito constitucional ao aborto, vislumbrando, na cláusula da liberdade reli-
giosa, proteção adequada para o reconhecimento da autonomia procriativa.
Para os autores que advogam a superioridade do argumento femi-
nista, a resposta de Dworkin retira da discussão sobre o aborto a proeminên-
cia da cláusula da igual proteção perante a lei. No lugar de aperfeiçoar a
força do direito à igualdade de gênero, Dworkin se limitaria a questionar a
legitimidade do poder estatal de impor uma concepção religiosa majoritária
que prescreve a precedência do direito à vida do nascituro211. De acordo
com a vertente feminista, o aborto deve ser pensado como uma questão que
se relaciona prioritariamente à estruturação da identidade das mulheres nos
vários papéis que passou a desempenhar nas sociedades modernas. De fato,
à primeira vista, a abordagem de Dworkin parece tangenciar a constatação
de que o movimento pro-life tem suas raízes em um conjunto de crenças
preestabelecidas a respeito da formação da identidade feminina. Sua lin-
guagem provoca uma falsa impressão de que a reflexão filosófica sobre a
sacralidade da vida não considera os parâmetros do movimento feminista a
favor do controle da mulher sobre a reprodução e sua habilidade política
para avançar seus interesses, em igualdade de condições, no âmbito do
exercício da cidadania212.
Mas não é bem assim. A análise de Dworkin não negligencia os
postulados centrais das teorias feministas, o que se explicitou quando se
investigou o princípio da igualdade sexual e sua importância na contraposi-
ção a uma visão minimalista dos direitos reprodutivos das mulheres. Aliás,
nenhuma leitura de Dworkin, qualquer que seja o assunto discutido, teria
coerência, se propusesse o rompimento discursivo com a supremacia da
igual proteção perante a lei. Não há como oferecer suporte a nenhuma liber-
210
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 13, 18, 28, 30-2 e 43.
211
MECCAFFREY John C.; NOVKOV, Julie. Life’s dominion: an argument about abortion,
euthanasia, and individual freedom by Ronald Dworkin. 21 New York University Re-
view of Law & Social Change, 1993-1994. p. 186 e 222-3.
212
Ibidem, p. 224, 226, 228-9.
124 Teresinha Inês Teles Pires

dade individual, em um sistema de justiça, a não ser que se garanta seu exer-
cício de forma igualitária.
Convém enfatizar que Dworkin, ao escrever sua obra O Domínio
da Vida estava preocupado em reformular, no contexto da política norte-
americana, o poder do governo federal de controlar as novas tendências dos
estados federados de restringir o direito ao aborto. Certamente, o autor vis-
lumbrou, na estratégia veiculada pelo princípio da “igual proteção”, do ponto
de vista do gênero, tantas dificuldades interpretativas quanto as que podem
ser arguidas contra o padrão da privacidade familiar, razão pela qual empre-
endeu uma leitura moral-filosófica da autonomia procriativa, expandindo o
conceito de sacralidade213. Em realidade, o padrão da igual proteção perante
a lei está contido na tese da conexão entre o direito ao aborto e a liberdade
religiosa no sentido primal do igual reconhecimento das convicções e cren-
ças pessoais.
Entende-se, assim, que o antagonismo entre os argumentos da li-
berdade religiosa e da igualdade de gênero, na articulação constitucional do
direito ao aborto, é apenas aparente. O discurso da igualdade sexual, no de-
bate político, envolve também o pressuposto de que a coação do Estado so-
bre as decisões reprodutivas das mulheres é ilegítima, o que Dworkin se
esforça por defender. Além disso, o padrão da igualdade de gênero desconsi-
dera a necessidade da definição do estatuto jurídico do nascituro, dando
abertura ao crescimento da influência política das doutrinas que defendem
sua tutela desde a concepção. Apesar de todas as evidências da opressão
social das mulheres, tão marcantemente detalhadas pelas teorias feministas,
os dogmas religiosos afirmativos da supremacia do direito à vida pré-natal
persistem em franca projeção, minimizando os reflexos positivos das abor-
dagens de gênero no debate sobre o aborto. Daí porque a busca de novos
referenciais de análise constitucional, no que diz respeito à matéria, tal como
o que Dworkin sugere, da aplicação da cláusula da liberdade religiosa, se
torna tão importante.
As exigências do princípio da igualdade, em matéria de gênero, in-
clusive, têm interessante pertinência ao tema da liberdade religiosa, o que se
aplica significativamente à análise do direito ao aborto. Vale mencionar que
a interferência política do pensamento religioso cristão se contrapõe às ban-
deiras feministas pelo reconhecimento dos seus direitos, na qualidade de
direitos humanos, fato este que vem se fortalecendo mais e mais desde a
213
MECCAFFREY John C.; NOVKOV, Julie. Life’s dominion: an argument about abortion,
euthanasia, and individual freedom by Ronald Dworkin. 21 New York University Re-
view of Law & Social Change, 1993-1994. p. 223-4.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 125

década de 1980. O discurso religioso, no caso, reforça a ideologia da subor-


dinação das mulheres nos sistemas políticos acentuadamente patriarcais e
atribui validade às visões tradicionais acerca dos papéis sexuais, reforçando
o percurso histórico de negação do direito à contracepção e ao aborto. Trata-
-se de um fenômeno que parte não apenas das correntes fundamentalistas,
foco maior das críticas atuais em prol do pluralismo ideológico, mas também
das práticas religiosas diárias e das posições religiosas mais moderadas214.
Voltando, então, ao cerne da inovadora e controversa tese apresen-
tada por Dworkin, uma outra objeção, posta pelos críticos, afirma que o ar-
214
JEFFREYS, Sheila. Man’s dominium: the rise of religion and the eclipse of women’s
rights. London/New York: Routledge, 2012. p. 5,-e 13. Jeffreys relata que na década de
1990, em que os direitos das mulheres avançaram fortemente perante os Órgãos das Na-
ções Unidas, as instituições religiosas se uniram e alcançaram, nas Conferências cuja
agenda incluiam os interesses femininos, um status de Órgãos consultivos. Foi quando es-
ses blocos religiosos passaram a apresentar franca oposição à admissibilidade moral do
aborto, enviando a esses fóruns a quantidade de representantes que desejassem. Seus de-
legados sempre defenderam a preservação dos valores familiares tradicionais. Os grupos
islâmicos, por exemplo, consideraram a 4ª Conferência Mundial das Nações Unidas sobre
as Mulheres (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Quarta Conferência Mundi-
al sobre as Mulheres. Beijjng/1995. Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/
daw/beijing/ fwcwn.html>. Acesso em: 24 nov. 2013) um encontro claramente antirreligi-
oso e tendente a apoiar uma visão secularizada sobre os direitos reprodutivos. O Vaticano,
que participa das conferências na condição de um “estado territorial” (territorial state),
sob o título de “Holy See”, obstrui significativamente, em regra, as prescrições internacio-
nais a favor da legalização da contracepção e do aborto. De outra parte, consoante dados
indicados, em 2008, por grupos católicos que não concordam com os ditames do Vaticano
(“Católicos pelo Direito de Escolha”), em torno de 80 por cento dos fiés se manifestaram,
em pesquisa realizada no ano de 1999, no sentido de que se sentiam confortáveis para pro-
fessar a religião e ao mesmo tempo não seguir absolutamente os ensinamentos oficiais da
Igreja. Além disso, as mulheres engajadas na luta feminista estão demandando que a Hole
See perca seu status de “estado territorial” perante a ONU, a fim de abrir o caminho para
que o termo liberdade de religião incorpore o direito à não interferência das restrições im-
postas pela Igrejas na liberdade de decisão reprodutiva. As ativistas combatem as estraté-
gias políticas potencialmente danosas aos interesses das mulheres, as quais passaram a ser
defendidas através do apelo ao “direito à religião” (right to religion). A argumentação po-
lítica não pode sustentar dogmas religiosos que levam à violação dos direitos humanos
das mulheres (Ibidem, p. 62-3, 67-68 e 75-76). Esses questionamentos atualmente produ-
zem reflexos na mentalidade da alta cúpula da Igreja Católica. O atual papa, Francisco,
declarou em entrevista concedida à ANSA (Agência Italiana de Notícias), publicada em
19.09.2013, que sua Igreja deve deixar de insistir tanto em temas como o aborto e a con-
tracepção, e dar maior atenção aos divorciados e aos homossexuais, procurando visualizar
sempre a pessoa como um todo, em sua própria condição existencial (Disponível em:
<www.ansabrasil.com.br/>). Igualmente, em entrevista concedida a uma revista católico-
-jesuíta, em setembro de 2013, o papa afirmou que a igreja não pode “interferir espiritu-
almente na vida das pessoas”, em assuntos tais como a identidade sexual e a liberdade re-
produtiva (conforme Revista Veja, 19.09.2013. Disponível em: <www.veja.abril.com.br/>).
126 Teresinha Inês Teles Pires

gumento lançado pelo autor norte-americano é pautado por uma inconsistên-


cia interna na medida em que não inclui expressamente a proteção das cren-
ças seculares. Nesse sentido, a justificação do aborto, exclusivamente com
base na cláusula da liberdade religiosa, deixaria de envolver princípios cen-
trais, tais como os princípios da justiça, da equidade, e da moralidade215.
Esclareça-se, em resposta a tal indagação, que Dworkin acentuou o estatuto
religioso da noção de sacralidade ou inviolabilidade da vida porque a Consti-
tuição norte-americana, através da dicção de sua primeira Emenda, não faz
referência à liberdade de consciência, em seu significado moral, mas sim à
liberdade religiosa. A própria linguagem desenvolvida em O Domínio da
Vida mostra que o autor alarga o sentido do conceito de religião, e situa a
escolha pelo aborto na esfera da consciência individual, não importando se
referenciada a ensinamentos eminentemente religiosos ou a convicções de
moralidade pessoal. As noções de equidade, justiça e moralidade encontram-
se implicitamente inseridas em seu raciocínio, que sempre se sustenta no
conceito do direito enquanto integridade de princípios216.
Nessa dimensão, Dworkin tenta atribuir conteúdo à cláusula da li-
berdade de consciência, no contexto específico da procriação, através da
afirmação da autonomia moral, no que se refere à escolha de convicções
relacionadas à importância da vida pré-natal. A decisão da gestante, em rela-
ção à possibilidade de interromper a gestação, é determinada por sua dispo-
nibilidade prática para a assunção dos encargos da maternidade, do ponto de
vista de sua vida pessoal, de seus relacionamentos ou dos filhos que já pos-
sui, bem como por sua concepção pessoal sobre o significado moral do em-
brião ou feto por si gerado. No último aspecto, não se lhe pode negar o direi-
to à autonomia de consciência. Sabe-se que Dworkin propõe uma leitura
moral da Constituição e, na esfera das liberdades individuais, chama a aten-
ção para a necessidade de estabelecer os contornos do majoritarianismo. No
espaço público, cada um pode articular qualquer argumento a favor ou con-
tra o aborto, calcado no valor que atribui à vida nascitura, mas a decisão da
gestante, nesse particular, é uma questão de consciência.
Pode-se dizer, ainda, que o senso de responsabilidade está incluí-
do na formação da visão pessoal do valor intrínseco da vida, na medida
215
MECCAFFREY John C.; NOVKOV, Julie. Life’s dominion: an argument about abortion,
euthanasia, and individual freedom by Ronald Dworkin. 21 New York University Revi-
ew of Law & Social Change, 1993-1994. p. 217-8.
216
Voltar-se-á a esse ponto na segunda parte da obra, local onde a cláusula da liberdade de
consciência será relacionada à regulamentação do aborto no contexto dos pesos e contra-
pesos da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 127

em que estão em questão não só as implicações da maternidade na vida


da gestante, mas igualmente a dignidade da vida potencial. Não basta
levar a termo a gestação pelo desconforto moral que o aborto causaria à
gestante. É preciso pensar na vida que será proporcionada à futura cria n-
ça. Grosso modo, em qualquer análise das razões justificadoras do aborto,
ainda que de fundo sociológico, não há como excluir uma consideração
particular da dignidade intrínseca da vida. Em sua dimensão mais pro-
funda, a opção pelo aborto é de índole moral, porque importa no desper-
dício da vida humana potencial. O argumento de Dworkin causa grande
impacto, por não disfarçar a constatação de que o aborto é uma escolha
pela interrupção do desenvolvimento da vida biológica. A gestante, ao
provocar o aborto, não escapa da consciência desse significado último do
seu ato, podendo, contudo, atribuir-lhe o valor que reputar compatível
com sua personalidade e identidade moral 217.
Diante dessas conclusões, no que pese sua complexidade analítica,
podem ser enunciadas três constatações, no tocante à justificação do direito
ao aborto:
a) o controle governamental sobre a capacidade reprodutiva é ori-
ginariamente um controle moral, exercido diretamente sobre a
consciência individual da gestante. A coerção se efetiva no pla-
no da autonomia moral e produz efeitos no plano da autonomia
sexual e reprodutiva;
b) a decisão da mulher de gerar ou não uma criança é uma decisão
que envolve um juízo religioso, no tocante ao significado da vi-
da em si mesma;
c) a coerção moral, na questão do aborto, é uma imposição seletiva
e discriminatória, porque nega aos não crentes, ou melhor,
àqueles que adotam visões minoritárias, o direito de autodeter-
minação, o que não é negado aos que professam crenças religio-
sas majoritárias e aos que adotam valores morais tradicionais.

217
Conforme BRADLEY, Gerard V. Life’s Dominium: a Review Essay. 69 Notre Dame
Law Review, 1993. p. 329 e 375, os ativistas Pro-Life muitas vezes utilizam-se da inter-
pretação de Dworkin, no sentido de que o aborto produz a interrupção da vida, para refor-
çar seus argumentos em defesa da personalidade do nascituro. Afirmam que a permissão
do aborto atribui à mulher o direito de destruir propositadamente a vida de um ser inocen-
te, incapaz de se defender, o que lhe daria o poder de controle sobre a vida e a morte. Tal
visão confunde o conceito de personalidade do nascituro com o valor moral que a ele se
atribui em razão do caráter inviolável da vida. Na realidade, contudo, as duas ideias repre-
sentam componentes bem diferenciados da dignidade, já que o conceito de personalidade
engloba não somente os aspectos morais, mas também a estrutura geral dos direitos legais.
128 Teresinha Inês Teles Pires

Como se defende, a justificação normativa do direito à interrup-


ção voluntária da gestação deve ser construída por argumentos morais e
não por argumentos biológicos. Isso pressupondo-se a unificação do di-
reito e da moral, o que possibilita compreender as duas primeiras consta-
tações acima mencionadas. A terceira constatação merece um pouco mais
de atenção. A seletividade por motivo de consciência ou crença é discri-
minatória por conferir tratamento diferenciado a duas classes de pessoas
que merecem a mesma consideração. As leis que restringem o aborto,
sem critérios razoáveis, transformam o endosso aos valores tradicionais
referentes ao valor intrínseco da vida em um tipo de discriminação baseada
na consciência. Desse modo, violam, ao mesmo tempo, a cláusula do
devido processo legal substantivo, como autonomia, e a cláusula da igual
proteção perante a lei. A mulher, diretamente atingida por tal discrimina-
ção, sofre um prejuízo em sua dignidade. A lei proibitiva, no caso, ca-
rimba a mulher de um status de sujeito dependente, incapaz de conduzir-
-se autonomamente218.
Para Dworkin, o conceito de autonomia procriativa deriva da apli-
cação do direito à privacidade ao âmbito da vida reprodutiva, na qual estão
envolvidos os temas da contracepção e do aborto. O conceito de privacidade
envolve a liberdade de consciência, logo, não é um conceito destacado, daí o
motivo por que está na base, nesse sentido extenso, do conteúdo da autono-
mia procriativa. O caráter fundamental das decisões procriativas caracteriza-
-se, assim, pela dimensão do princípio da independência ética na compreen-
são do valor intrínseco da vida, sendo que sua definição reflete convicções
religiosas referenciadas à personalidade moral. A salvaguarda da sacralidade
da vida não tem primazia no teste da garantia da autonomia procriativa, à luz
da liberdade de consciência, sendo que as comunidades políticas estão divi-
didas em relação à valoração religiosa da vida intrauterina. Se o governo
pudesse proibir o aborto a despeito das convicções pessoais da gestante,
estaria ditando-lhe uma concepção exclusiva sobre o valor da vida em si
mesma, e, portanto, insultando sua dignidade. Compreender que a tormento-
sa divergência moral em torno do assunto é essencialmente “espiritual” con-
tribui para a unificação social e para mostrar que a vida comunitária é possí-
vel mesmo diante de “profundas divisões religiosas”219.
218
SIEGEL, Reva B. Equality and choice: sex equality perspectives on reproductive rights.
In: the Work of Ruth Bader Ginsburg. 25 Colum. J. Gender & L. 63-80 (2013). p. 66.
219
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 101 e 157-9. No original: “spiritual”
[…] “deep religious division”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 129

Os princípios constitucionais, em regra, não incluem textualmente


o direito à autonomia procriativa. A questão básica a ser respondida é se uma
interpretação coerente dos primeiros fornece suporte para o reconhecimento
da segunda. A inviolabilidade da vida, do ponto de vista intrínseco, não re-
presenta um valor absoluto e não legitima, portanto, a proibição do aborto. É
certo que a dignidade intrínseca da vida aumenta a complexidade da legali-
zação do aborto, mas se trata de uma premissa que precisa ser moldurada sob
o enfoque dos interesses e direitos das mulheres. A ideia do sagrado deve ser
posicionada na relação entre a ética e a moral. Daí parte a centralidade da
liberdade religiosa na justificação constitucional do direito ao aborto. A in-
dependência do juízo ético e o pluralismo político mitigam a validade do
majoritarianismo na seara da autonomia procriativa.
É preciso perceber que a tese de Dworkin não é dogmática. O que
se busca, do ponto de vista do pluralismo ideológico, é equilibrar os argu-
mentos religiosos que fundamentam a doutrina da personalidade do nascitu-
ro. Não se quer rebater as proposições científicas sobre o início da vida e
nem defender que as mesmas não possuem valor algum. É verdade que a
destruição do feto interrompe o processo da evolução da vida de um com-
posto celular que já contém em si características genéticas individualizadas.
No entanto, afirmar que esse fato torna o aborto um ato equiparado, em sua
essência, ao homicídio traz consigo conceitos próprios de uma visão particu-
lar sobre o valor da vida.
Nesse sentido, o Estado não tem legitimidade para impor às mu-
lheres a concordância com os valores religiosos majoritários, que expres-
sam o dever de preservação da vida pré-natal, desde a concepção, em
razão de sua sacralidade intrínseca. Do mesmo modo, o Estado não pode
exigir, sob o mesmo fundamento, que as mulheres não optem pelo aborto
a não ser nas hipóteses consideradas aceitáveis, segundo a opinião da
maioria. A exigência de conformidade com essa opinião obrigaria as mu-
lheres a determinar suas ações de maneira contrária à sua própria visão
sobre a maneira em que a dimensão do sagrado se relaciona aos proble-
mas de sua vida concreta. Em assuntos controversos, a melhor posição do
Estado consiste em permitir e até encorajar as pessoas a enfrentar a inevi-
tabilidade do desacordo político e a impossibilidade de sua resolução
unânime, supondo que todos são responsáveis por suas decisões e pelas
consequências delas advindas 220.
220
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 150-1.
130 Teresinha Inês Teles Pires

Dworkin esclarece que o Estado deve contribuir para que as mu-


lheres vislumbrem a possibilidade do aborto como uma decisão moral-
mente importante por envolver valores intrínsecos fundamentais. Se o
Estado simplesmente legitima uma interpretação como sendo a única
aceitável, coagindo todas as mulheres a se conformarem com ela, não
está admitindo que o valor intrínseco da vida é algo, indubitavelmente,
contestável. Não se esqueçam que para Dworkin o feto tem interesses
próprios no terceiro trimestre da gestação e que tais interesses não são
justificáveis a partir da ideia de sacralidade da vida, mas sim com base na
dignidade de sua vida, em face de sua viabilidade. A viabilidade fetal
torna o feto capaz de existência independente, por isso o dever de respe i-
to à sua vida passa a ser vinculante 221.
O paradigma das sociedades democráticas plurais envolve uma cer-
ta flexibilidade na implementação das regras procedimentais que regem a
vida pública. O pluralismo constrói-se a partir de uma interpretação substan-
tiva das normas constitucionais, que viabilize a integração de cada concep-
ção do bem que coexista dentro da comunidade política, mesmo em se
tratando de uma concepção adotada por um grupo reduzido de pessoas.
Alguns não se identificam com nenhuma doutrina religiosa ou se identifi-
cam apenas parcialmente com uma determinada religião. Conciliar todas as
doutrinas razoáveis do bem é a expressão mais rica do conceito criado por
Rawls do consenso sobreposto, tão consentâneo com a proposta de se tra-
zer para a investigação do direito ao aborto a utilização do princípio da
liberdade religiosa. Rawls percebeu que a concepção da justiça como equi-
dade não era suficiente para garantir a unidade social diante da existência
de tamanhas divergências religiosas, cujos reflexos alcançam os mais varia-
dos assuntos de moralidade política. Por isso, incorporou em sua doutrina o
padrão da razoabilidade, aplicado às concepções do bem, direcionando,
assim, de forma insuperável, a interpretação jurídica de temas controverti-
dos como o aborto222.
Nesse paradigma, a ideia de pluralidade ética e moral permite
expandir o significado do princípio da separação entre o Estado e a Igre-
ja, justificando a inserção, em sua análise, dos temas da contracepção e
do aborto. A inclusão da autonomia procriativa nas liberdades fundamen-
tais e o respeito às concepções individuais sobre os limites da inviolabili-
221
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 150-1.
222
Sugere-se, aqui, o retorno aos ensinamentos de RAWLS, na obra Political liberalism.
Expanded Edition. New York: Columbia University Press. 2005. p. 133-139.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 131

dade da vida humana tornam-se, assim, exigências normativas da diversi-


dade de valores. Por tal razão, a interpretação das leis proibitivas ou res-
tritivas do acesso ao aborto voluntário deve ser feita à luz do princípio da
liberdade religiosa.
Obviamente, não se pode esquecer os limites impostos pelo ne-
cessário respeito à dignidade humana a fim de que os juízos éticos sejam
aceitos. Isso se operacionaliza através do significado da razoabilidade, no
tocante às doutrinas do bem, que, no sentido conferido por Rawls, se asso-
cia à primazia do sistema de justiça. Ademais, é sempre importante ressal-
tar, as exigências da dignidade se sedimentam, particularmente, na distin-
ção que Dworkin faz, no plano da eticidade, entre ter uma boa vida e viver
bem. A pessoa que maximiza o prazer e obtém condições confortáveis de
vida tem uma boa vida. Mas isso não é o mesmo que viver bem. Viver bem
exige que a boa vida que se pode ter seja pautada pelas “responsabilidades
éticas” em relação ao respeito à dignidade dos outros. Não se pode dizer
que uma pessoa que teve uma boa vida através da prática de “atos imorais”
tenha vivido bem223.
O encontro entre a ética e a moral se explicita nessas passagens
com uma clareza ímpar, facilitando a compreensão dos fundamentos que
justificam o reconhecimento do direito ao aborto. Em relação à condição
feminina, acredita-se que a mulher, para ter uma vida boa, precisa, em algu-
mas circunstâncias, optar pela prática do aborto. Isso é um direito que não
lhe pode ser negado, supondo-se que o aborto não é, incondicionalmente, um
ato moralmente censurável, a fim de possibilitar-lhe seu dever ético para
com sua própria vida. Ela terá que definir para si mesma até que ponto a
destruição do embrião lhe impedirá ou não de viver bem. Cabe a ela fazer
esse juízo: onde traçar a linha entre a ética e a moral, entre ter uma vida boa
e viver bem. Nos primeiros trimestres da gestação é plausível conceder à
mulher o domínio sobre sua consciência, porque, em tese, interromper a
gestação não interfere em sua expectativa de viver bem. A permeabilidade
dessas duas dimensões, da vida boa e do viver bem, estabelece-se, natural-
mente, na escolha procriativa da mulher entre levar a gravidez a termo ou
realizar o aborto. Esse “equilíbrio reflexivo”, usando o termo de Rawls, de-
pende da visão pessoal da gestante sobre o valor sagrado da vida. O envol-
vimento da liberdade de consciência ou de religião, na justificação dessa
autonomia ética e moral, é bastante intuitivo.

223
DWORKIN, Ronald. Justice for hedgehogs. Cambridge/Massachusetts: Harvard Univer-
sity Press, 2011. p. 199-200. No original: [...] “ethical responsibilities” [...] “imoral acts”.
132 Teresinha Inês Teles Pires

2.5 CONCLUSÃO PARCIAL

O presente capítulo permitiu completar a metodologia de análise


do direito ao aborto, segundo a qual todos os significados do princípio da
dignidade humana estão unificados. Pressupôs-se, o que estará implícito ao
longo da obra como um todo, a validade do magistério de John Rawls e de
Ronald Dworkin, no que se refere ao reconhecimento público do pluralismo
moral e dos juízos éticos. Assentou-se a impossibilidade interpretativa de
apelar, no debate sobre o aborto, à dignidade da vida pré-natal sem associá-
-la à dignidade moral da mulher. Alinhavou-se, também, que a categoria
constitucional da liberdade religiosa deve guiar esse balanceamento entre as
duas dimensões da dignidade.
Como destacado, a abordagem da igualdade de gênero está incluída
no significado extenso do princípio da dignidade, especialmente no sentido
formulado por Dworkin da unidade da ética e da moral. Os rígidos papéis
sexuais, estabelecidos na prática social, explicitam a existência de dois ní-
veis diferenciados de cidadania, em violação aos direitos morais e políticos
das mulheres. Todavia, a utilização do princípio da igualdade, em matéria de
gênero, não é suficiente, por si só, para justificar o direito ao aborto, porque
tangencia a definição dos limites da tutela da vida do nascituro.
Por fim, demonstrou-se a pertinência da tese de Dworkin de que o
direito ao aborto está protegido pela cláusula da liberdade religiosa, na me-
dida em que se compreende que tal cláusula incorpora a dimensão da mora-
lidade laica. O argumento trazido pelo direito de consciência aplica-se à
análise constitucional do direito ao aborto e permite a construção do conceito
de autonomia procriativa. A dignidade da vida do embrião envolve a con-
cepção da sacralidade da vida, e precisa ser delimitada levando-se em consi-
deração a unidade da ética, da moral, da política e do direito. Conseguiu-se
fechar a perspectiva da integridade, no âmbito da pesquisa, situando a con-
sistência da independência ética e do pluralismo moral na justificação do
direito ao aborto. No mesmo passo, demonstrou-se a inconsistência constitu-
cional da proteção absoluta da vida do embrião, desde a concepção.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 133

Parte II
O CASO DO ABORTO NO DIREITO
NORTE-AMERICANO: PADRÃO PARADIGMÁTICO DE
UMA DEMOCRACIA CONSTITUCIONALISTA
134 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 135

Capítulo 3

A CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO
AO ABORTO VOLUNTÁRIO: PARADOXOS
DA AUTONOMIA PROCRIATIVA
DA MULHER

Para afirmar que o direito ao aborto é um direito fundamental,


com o viés adotado nesse estudo, é imprescindível analisar como o tema
foi implementado nos Estados Unidos, em sede de judicial review, por
meio da integração do significado de diversas cláusulas constitucionais.
A construção de um esquema amplo de proteção ao planejamento repro-
dutivo foi iniciada com a legalização do direito à contracepção. Partiu -se
da definição da privacidade enquanto uma categoria de direito fundamen-
tal não expressamente prevista na Carta de Direitos (Bill of Rights). In-
troduziu-se, ainda, o envolvimento da cláusula da igual consideração
perante a lei no momento em que se colocou a necessidade da garantia do
direito à contracepção não somente às pessoas casadas, mas também às
pessoas solteiras, fora do contexto das relações conjugais. A extensão
posterior da proteção da privacidade ao tema do aborto, efetivada na de-
cisão Roe v. Wade224, resultou na reelaboração da doutrina do devido
processo legal, no sentido de que se lhe fosse conferido um estatuto subs-
tantivo, e não meramente procedimental. Esse foi o percurso do amadure-
cimento da questão na prática jurisdicional do país, cujo desenvolvimento
será posto em pauta a seguir.

224
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013.
136 Teresinha Inês Teles Pires

3.1 A DISCUSSÃO PRÉVIA DA SUPREMA CORTE


ACERCA DO DIREITO DE PRIVACIDADE

O entrelaçamento entre os princípios do devido processo legal e da


igual proteção perante a lei deu causa a complexas divergências no tocante à
precedência de um ou de outro no julgamento dos casos nos quais se discutiu
a configuração do conceito constitucional de privacidade. O resultado mais
importante da investigação foi o reconhecimento de que o direito à privaci-
dade tem plena aplicabilidade ao âmbito do controle da reprodução, o que
permitiu estabelecer critérios sólidos para a apreciação da validade das leis
que regulavam, de forma restritiva, o direito à contracepção.

3.1.1 Contracepção como liberdade básica derivada do direito de


privacidade e da cláusula do devido processo legal

Antes de se adentrar na abordagem dos casos diretamente relacio-


nados à contracepção, far-se-á menção ao conteúdo de algumas decisões
precedentes nas quais o direito de privacidade foi, inicialmente, introduzido
pela atividade interpretativa na esfera da proteção das relações familiares e
da autonomia procriativa como um todo. Esclareça-se que o direito à priva-
cidade não está previsto na Constituição bem como em nenhuma das emen-
das constitucionais (Bill of Rights), mas acabou sendo escolhido, no ano de
1973 (Roe v. Wade), como fundamento central para a admissibilidade do
aborto, a partir do entendimento anteriormente adotado pela Suprema Corte
na regulamentação do acesso à contracepção.
A primeira decisão importante, em nível federal, no tocante à inti-
midade familiar não teve ainda relação com o tema da contracepção, e sim
com o direito dos pais de conduzirem a educação dos filhos de acordo com
suas preferências. Trata-se do caso Meyer v. Nebraska, julgado pela instân-
cia constitucional no ano de 1923. Nesta decisão, uma lei do Estado de Ne-
braska, que proibia o ensino aos alunos de qualquer língua estrangeira nas
escolas, públicas ou particulares, até a conclusão do oitavo ano, foi declarada
arbitrária e inconstitucional225. A opinião da Corte, no sentido de que o ba-
225
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Meyer v. Nebraska, 262 U.S. 390
(1923). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 08 out. 2013. O propósito
da lei invalidada (Act Neb. April 9, 1919), evidentemente, era fazer com que o inglês fos-
se adotado como língua materna por todas as crianças educadas no estado, inclusive os fi-
lhos de famílias imigrantes.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 137

nimento em questão representava explícita violação à liberdade de decisão


individual quanto a melhor forma de educar os filhos, nos termos da Décima
Quarta Emenda226, alavancou o aperfeiçoamento de uma definição jurispru-
dencial do direito de privacidade. A vinculação da categoria da privacidade à
proteção assegurada pela cláusula do devido processo e à obrigatoriedade de
os estados demonstrarem convincentemente a existência de um interesse
público que justifique restringir o exercício de qualquer direito fundamental,
tornou-se pressuposto essencial da posterior legalização do aborto no país.
No caso Pierce v. Society of Sisters of the Holy Names of Jesus and
Mary227, a Suprema Corte invalidou uma lei adotada pelo Estado de Oregon,
que obrigava os pais a matricularem seus filhos, na idade de 8 a 16 anos,
exclusivamente em escolas públicas, entendendo que a medida violava o
direito de escolha dos pais em relação ao local apropriado para a formação
educacional dos filhos e, também, o direito das corporações privadas de em-
preenderem autonomamente seus próprios negócios. O fundamento da deci-
são foi mais uma vez a Décima Quarta Emenda, que protege a autonomia
familiar e o direito de propriedade no tocante ao exercício de atividade lucra-
tiva lícita.
A evolução do debate judicial acerca da privacidade prosseguiu no
julgamento do caso Olmstead v. U.S.228, em que se apreciou pedido de decla-
ração da inconstitucionalidade de interceptação telefônica realizada, sem
autorização judicial prévia, com o intuito de instruir ação criminal pela práti-
ca de crime federal. A análise, dessa vez, centralizou-se na proteção consti-
tucional da casa, intimidade, e documentos pessoais, contra as apreensões
arbitrárias do poder público, sem o devido mandado de busca (Quarta
Emenda), e nas garantias contra condenações, prisões e produção de provas
em desacordo ao devido processo criminal (Quinta Emenda). A Suprema
Corte, entretanto, sustentou a validade da medida, concluindo que o bem por
226
De acordo com a parte final do texto da emenda citada, os estados não podem: “deprive
any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person
within its jurisdiction the equal protection of the laws” (Conforme ESTADOS UNIDOS.
National Archives, Washington/DC. The Constitution of the United States of America
at the National Archives). Tradução livre: “privar qualquer pessoa da vida, liberdade, ou
propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa, dentro de sua ju-
risdição, a igual proteção das leis”.
227
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Pierce v. Society of Sisters of the
Holy Names of Jesus and Mary, 268 U.S. 510 (1925). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 08 out. 2013.
228
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Olmstead v. U.S., 277 U.S. 438
(1928). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em 08 out. 2013.
138 Teresinha Inês Teles Pires

ela atingido não se enquadra no conceito de “pessoa”, “casa” ou “papéis”, no


sentido das Emendas invocadas, com o que as evidências apresentadas no
respectivo julgamento não foram consideradas abusivas e contrárias ao texto
constitucional229.
Essa decisão atribuiu conteúdo mais estreito ao direito de privaci-
dade. Como afirmado pelo juiz Brandeis, dissidente no caso, a Corte fechou
os olhos para o crescimento dos meios sutis e silenciosos postos à disposição
do governo para ter acesso à intimidade das pessoas, o que caracteriza forma
de controle até mais efetiva do que as formas tradicionais de invasão física
da residência. A interceptação telefônica expõe a integralidade das conversas
entabuladas no aparelho cooptado, incluindo os assuntos confidenciais, ao
conhecimento dos oficiais do governo, transformando-se em verdadeiro ins-
trumento de opressão e exercício autocrático do poder230. Curiosa a atualida-
de desse comentário, quando se lembra a decisão proferida pelo juiz federal
Richard Leon, da Corte Distrital do Distrito de Columbia, em 16.12.2013,
declarando inconstitucional o programa do governo federal de combate ao
terrorismo, em relação à coleta de dados armazenados em telefones celulares
de todos os cidadãos norte-americanos. Firmou-se que o interesse do gover-
no na preservação da segurança nacional não justifica tamanho grau de inva-
são da privacidade individual231.
Em um precedente de maior densidade jurídica, a Suprema Corte
anulou uma lei do Estado de Oklahoma, que determinava a obrigatória este-
rilização dos condenados duas ou mais vezes por crimes contra o direito de
propriedade praticados mediante uso de violência232. Aqui a autonomia pro-
criativa foi inserida no contexto da apreciação constitucional do direito de
privacidade. A opinião do juiz Douglas enfatizou a cláusula da igual prote-
ção (Décima Quarta Emenda), aduzindo que a classificação operada pela lei,
no caso, é discriminatória, no tocante a determinados indivíduos ou grupos,
sem comprovação alguma de que os crimes elegidos pelo decreto de esterili-
zação importam em maior probabilidade de transmissão hereditária que os
demais crimes. Em matéria de direitos fundamentais, as classificações legais
229
Ibidem, p. 465-6.
230
Ibidem, p. 473-6.
231
UNITED STATES DISTRICT COURT, DISTRICT OF COLUMBIA. Klayman v.
Obama, Not Reported in F.Supp.2d (2013). Disponível em: <www.dccourts.gov>. Aces-
so em: 08 fev. 2014.
232
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Skinner v. State of Okl. ex rel.
Williamson, 316 U.S. 535 (1942). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em:
08 out. 2013.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 139

sujeitam-se a um grau maior de controle judicial e a uma exigência máxima


de que os estados demonstrem seu interesse e a necessidade da imposição de
restrições normativas à conduta individual, o que recebe o nome, nos países
de common law, de “padrão do escrutínio rígido”233.
Outro elemento significativo na argumentação desenvolvida no ca-
so Skinner v. State of Oklahoma foi a divergência manifestada entre os ma-
gistrados, no que pese a decisão ter sido unânime quanto ao mérito, na esco-
lha da cláusula constitucional mais adequada para a afirmação do direito em
apreciação. O juiz Douglas, como já mencionado, fundamentou seu voto na
233
Ibidem, p. 541. No original: “strict scrutiny standard”. De acordo com o quadro explicati-
vo formulado por FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico Anglo-Americano.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 30, foram estabelecidos no sistema norte-
-americano três padrões básicos para a análise da constitucionalidade das leis: a) o escru-
tínio mais rígido (strict scrutiny), aplicável aos direitos fundamentais assegurados à luz da
cláusula do devido processo (due process clause) e da cláusula da igual proteção (equal
protection clause) no tocante às classificações suspeitas, tais como raça ou nacionalidade.
Esse padrão exige que o governo demonstre um interesse imperativo, da maior relevância,
na restrição imposta pelas leis; b) o escrutínio intermediário (intermediate scrutiny), apli-
cável à luz da equal protection clause em relação às classificações “quase suspeitas”, tais
como diferenças de tratamento com base em gênero ou idade, que exige do governo a
comprovação de um interesse substancial, um objetivo importante, que justifique a restri-
ção a direito individual; e c) o escrutínio de base racional (rational-basis scrutiny), apli-
cável aos direitos protegidos pela due process clause que não tenham o estatuto de direi-
tos fundamentais e àqueles protegidos pela equal protection clause quanto às classifica-
ções não suspeitas, em tese, como, por exemplo, em matéria de “regulação econômica”,
em relação às quais o governo precisa apenas evidenciar uma base racional que vincule a
restrição da lei a um interesse público legítimo. Em linguagem sintética, se o preceito priori-
tário envolvido no caso em julgamento é a equal protection clause, as Cortes utilizam um
dos três padrões de análise dependendo da matéria objeto da classificação legal; e se o
preceito prioritário é o da due process clause, são utilizados o primeiro ou o último pa-
drão, ou seja, ou o caso deve ser julgado à luz do strict scrutiny ou do rational-basis scru-
tiny, não havendo lugar para o intermediate scrutiny. No âmbito das decisões da Suprema
Corte, uma boa explicação desses padrões da judicial review pode ser lida na opinião do
juiz Alito no caso U.S. v. Windsor, ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court.
U.S. v. Windsor, 133 S.Ct. 2675 (2013). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 09 abr. 2014. Em muitos casos, é até mesmo difícil identificar, com precisão,
nos argumentos dos juízes, qual o padrão utilizado. No caso Skinner v. State of Oklahoma,
a Suprema Corte utilizou explicitamente a doutrina do strict scrutiny, mas não amadure-
ceu suficientemente suas premissas analíticas, referindo-se ao conceito em sua forma ge-
nérica. Não se avançou, por exemplo, a discussão quanto à aplicação do escrutínio mais
rígido aos direitos não enumerados, previstos na Nona Emenda. Voltar-se-á a problemati-
zar, ao longo da análise de outros casos, a importância do padrão do strict scrutiny na re-
gulamentação de matérias como contracepção e aborto. Conforme se verá, o rompimento
com esse padrão de controle da ação governamental, a partir das decisões posteriores à era
Roe v. Wade, acarretou a diminuição e a relativização dos direitos das mulheres ao passo
em que aumentou o poder interventivo dos estados.
140 Teresinha Inês Teles Pires

cláusula da igual proteção. O juiz Stone, ao contrário, fundamentou seu voto


na cláusula do devido processo, entendendo que não se pode presumir a na-
tureza discriminatória da classificação da lei. Isso porque os estados, em seu
interesse de reduzir a criminalidade nas futuras gerações, poderiam conside-
rar, pelas circunstâncias psíquicas de cada pessoa, que determinadas condu-
tas criminosas, quando reiteradas, denotam maior tendência a serem transmi-
tidas hereditariamente. Segundo Stone, o que está em questão na proibição
da esterilização compulsória é se tão excessivo nível de intrusão na liberdade
individual de um grupo específico, sem um procedimento que possibilite ao
condenado apresentar as razões pelas quais acredita não se enquadrar na
presunção legal, constitui uma ação legítima dos estados. Por fim, o juiz
Jackson defendeu a aplicação das duas cláusulas, ponderando que um amplo
modelo de classificação legal, protegido pela cláusula da igual proteção, se
caracterizaria exatamente pela inclusão da manifestação do indivíduo como
uma exigência do devido processo legal234.
No caso Griswold v Connecticut o direito de privacidade foi redi-
mensionado para inserir-se no âmbito das relações conjugais, no que toca à
liberdade de utilização de métodos contraceptivos de acordo com o planeja-
mento familiar do casal e com a orientação do médico escolhido235. A deci-
234
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Skinner v. State of Okl. ex rel.
Williamson, 316 U.S. 535 (1942). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em:
08 out. 2013. p. 544-6. A centralidade de determinada provisão constitucional na garantia
dos direitos reprodutivos é bastante controversa e representa o ponto mais sensível no to-
cante ao balizamento entre liberdades individuais e intervenção estatal. No julgamento
dos casos posteriores a Skinner, referentes à contracepção e ao aborto, a questão foi sem-
pre um dos maiores focos de divergências e estratégias argumentativas utilizadas na defe-
sa das posições conflitantes.
235
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. Em li-
nhas gerais, o assunto chegou à Suprema Corte através de apelo interposto por alguns mé-
dicos, os quais haviam sido condenados por terem fornecido instruções e conselhos pro-
fissionais aos seus pacientes casados no que concerne à prevenção da contracepção, em
desacordo com dispositivo de uma lei promulgada pelo estado de Connecticut, proibitiva
da conduta praticada pelos apelantes. Segundo a lei em espécie, o uso generalizado, por
qualquer pessoa, de artigos medicinais para fins de prevenção da gravidez estaria sujeito a
multa de no mínimo cinquenta dólares e a prisão por um período de sessenta dias a um
ano. Nos termos dos dispositivos legais gerais do estado de Connecticut, as mesmas pena-
lidades se aplicariam àqueles que aconselhassem ou prescrevessem a outras pessoas a rea-
lização do ato proibido. Não é tão importante, para os propósitos dessa obra, a argumenta-
ção referente à caracterização da conduta dos médicos como sendo criminosa ou não, o
que a Corte considerou negativamente. Importa, antes, a forma como a elaboração de um
padrão aberto para a definição do direito constitucional à privacidade foi assentado nesse
julgamento, no que se concentrará a análise que se segue.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 141

são declarou a lei então questionada inconstitucional por invadir o direito de


privacidade marital, violando, assim, a garantia do devido processo legal, na
forma instituída pela Décima Quarta Emenda. O devido processo legal foi o
fundamento exclusivo em Griswold, razão pela qual a Corte teve a oportuni-
dade de ampliar seu significado na limitação do poder estatal no controle das
liberdades individuais. Foi assentado que o devido processo legal abrange
não apenas as garantias enumeradas, mas igualmente as que estejam implici-
tamente nelas incluídas.
A noção do devido processo legal substantivo recebeu, assim, sig-
nificativa evolução, como uma categoria essencial para a vinculação entre os
direitos protegidos pelas primeiras oito emendas e a cláusula da liberdade na
forma veiculada pela Décima Quarta Emenda (due process clause). Nos
precedentes já mencionados, não se estruturou claramente um modelo inter-
pretativo que permitisse a descoberta de direitos fundamentais não expres-
sos. Em Griswold, os juízes conseguiram vislumbrar que os direitos anteri-
ormente afirmados de autonomia na educação dos filhos (Meyer e Pierce)
também não estavam expressamente previstos na Constituição ou na Bill of
Rights. Os juízes perceberam, assim, que esses direitos eram legítimos por-
que emanavam das liberdades de expressão e de pensamento, asseguradas
pela Primeira Emenda. Nas palavras do juiz Douglas, “a Primeira Emenda
tem uma penumbra onde a privacidade está protegida contra a intrusão
governamental”236. O devido processo legal não se resume aos aspectos pro-
cedimentais da Bill of Rights, abrangendo igualmente suas imposições de
caráter substantivo, que limitam o exercício do poder estatal237. Não se trata,
portanto, de concretizar exclusivamente as liberdades especificadas na Cons-
tituição, mas de afirmar a supremacia dos direitos fundamentais, em sentido
amplo, contra qualquer tipo de arbitrariedade pública impeditiva de sua ple-
na eficácia238.
Nessa perspectiva, a fundamentação da decisão, em Griswold,
uniu, por uma interpretação de caráter substantivo da cláusula do devido
236
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 483.
No original: “the First Amendment has a penumbra where privacy is protected from gov-
ernmental intrusion”.
237
BARRON Jerome A.; DIENES Thomas. Constitutional law in a nutshell. Eighth edi-
tion. St. Paul: West Publishing Co, 2013. p. 216. Ver, também, GREENE, Jamal. The so-
called right to privacy, 43 U.C. Davis Law Review 715, February 2010. Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract=1456026>. Acesso em: 25 nov. 2013. p. 720-3.
238
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 24.
142 Teresinha Inês Teles Pires

processo legal, a proteção da autonomia nas relações intrafamiliares (Pierce)


e a proteção da autonomia procriativa (Skinner)239. Contudo, a argumentação
girou em torno da proteção da intimidade da vida marital240, perdendo-se a
oportunidade de promover um debate mais significativo no tocante aos direi-
tos reprodutivos. Ainda assim, Griswold é o principal precedente da decisão
Roe v. Wade, por ter avançado, de forma importante, a proibição da inter-
venção do Estado em determinadas matérias afetas ao pensamento indepen-
dente e à conduta humana241.
Nesse tempo, o debate acerca da autonomia procriativa e do con-
trole da natalidade não se centralizava nos direitos das mulheres. É evidente
que isso não retira o valor dos progressos que se seguiram à decisão do caso
Griswold. No entanto, mesmo em Roe v. Wade, é bom salientar, não foi a
mulher e a proeminência de suas prerrogativas na definição do projeto da
maternidade o fator determinante para a legalização do aborto, mas sim a
preservação da atuação dos médicos envolvidos na prática do aborto ilegal,
que aumentava mais e mais desde os anos trinta, em decorrência da depres-
são econômica que assolou o país. A despeito de tais elementos, que estão
nas entrelinhas da cultura jurisprudencial da época, o dimensionamento do
direito à privacidade, enquanto um freio à arbitrariedade dos estados na re-
gulamentação das relações familiares e das relações médico-paciente, foi o
primeiro passo para envolver no esquema constitucional o reconhecimento
do caráter fundamental da autonomia procriativa.
Ao julgar Griswold a Suprema Corte não vislumbrou a necessidade
da abordagem do princípio da igual proteção perante a lei. No caso Skinner,
como já dito, esse princípio foi objeto de análise, na tentativa de afirmar que
a esterilização compulsória de um grupo de condenados por crimes específi-
cos importava em uma classificação discriminatória. Mas a discussão do
assunto diluiu-se dentro da argumentação como um todo, que terminou enfa-
tizando mais a proteção da liberdade (due process clause). Em linhas gerais,
a discriminação de gênero, em particular, não foi sequer mencionada nos
precedentes à era Roe v. Wade, em matéria de contracepção. Os movimentos
das mulheres que avançaram a busca dos seus direitos civis estavam no iní-
cio, e não contavam com elementos conceituais suficientes para provocar
239
Ibidem, p. 24.
240
Veja-se, nesse sentido, o voto do juiz Goldberg, ESTADOS UNIDOS. United States
Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S. 479 (1965). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 495-7.
241
BROWN, Bárbara A.; EMERSON, Thomas I.; FALK, Gail; FREEDMAN Ann E. The
equal rights amendments: a constitutional basis for equal rights for womem. 80 Yale Law
Journal 871, April 1971. p. 900.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 143

uma reflexão, no que toca à afirmação dos seus direitos, a partir de uma lin-
guagem propriamente feminista, não focada apenas na privacidade familiar.
Não era ainda perceptível que ao falar-se em contracepção o sujeito direta-
mente envolvido na pretensão, em caráter primordial, era a mulher e não o
casal, o homem ou os médicos242.
Nesse contexto, o direito à privacidade foi delineado, em Griswold,
como um direito derivado, inicialmente, da proteção da vida íntima e da
inviolabilidade da casa das pessoas (Terceira e Quarta Emendas). Firmou-se,
ainda, que a privacidade estaria incluída nas garantias do processo crimi-
nal, como o direito de não testemunhar contra si mesmo (Quinta Emen-
da)243. Além disso, defendeu-se o entendimento no sentido de que os direi-
tos fundamentais protegidos pelas primeiras oito emendas foram incorpo-
rados à cláusula do devido processo legal, veiculada pela Décima Quarta
Emenda, seja explicitamente, seja implicitamente. Em outras palavras,
afirmou-se que aqueles direitos estão implicados no princípio da liberdade
protegida pela Décima Quarta Emenda. Este argumento permitiu, inclusive,
a identificação da privacidade enquanto um direito não enumerado, confor-
me previsão contida na Nona Emenda. A abordagem conjunta de diversas
cláusulas constitucionais protetivas do direito à contracepção contribuiu para
a afirmação, em termos gerais, de um sistema integral de garantia das liber-
dades individuais aplicável não somente à ação dos estados como também à
ação do governo federal244.

242
SIEGEL, Reva B. Roe’s Roots: the women’s rights claims that engendered Roe. Boston
University Law Review, [vol. 90:1875), Nov. 8, 2010. p. 1884-5.
243
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 484.
244
De acordo com BARRON Jerome A.; DIENES Thomas. Constitutional law in a nut-
shell. Eighth edition. St. Paul: West Publishing Co, 2013. p. 211-2, a teoria da incorpora-
ção integral dos direitos fundamentais ao princípio da liberdade da Décima Quarta Emen-
da foi proposta pelo juiz Black no caso Adamson v. People of State of Califórnia, 332 U.S.
46 (1947), como uma metodologia para interpretar a extensão da due process clause. Se-
gundo Black, tal compreensão confere maior objetividade e certeza de conformação à in-
tenção original dos autores da Constituição. A outra teoria apresentada no mesmo caso,
pelo juiz Frankfurter, arguiu que o comando da due process clause deve ser buscado no
sentido de justiça socialmente aceito. Para Black, contudo, essa teoria apenas levaria ao
resgate das superadas categorias do direito natural. Esclareça-se que existe uma discussão
na doutrina norte-americana em relação à aplicabilidade das primeiras emendas constitu-
cionais ao poder normativo dos estados federados. Como indicado na nota supra n. 226,
apenas a Décima Quarta Emenda determina textualmente, em sua parte final, que para li-
mitar direitos fundamentais os estados se condicionam ao imperativo da due process clau-
se. A Primeira Emenda, por exemplo, que prescreve a liberdade religiosa, de expressão,
de imprensa, e de assembleia, é dirigida ao Congresso, e não aos estados (Ibidem, p. LIX
144 Teresinha Inês Teles Pires

O argumento da incorporação possibilitou o aperfeiçoamento do


estatuto substantivo da due process clause da Décima Quarta Emenda, que
passou a representar uma base constitucional sólida para a presunção da não
validade das leis violadoras dos direitos fundamentais, transferindo ao go-
verno o ônus de demonstrar a necessidade da restrição imposta em suas polí-
ticas. Trata-se de uma concepção que foi inicialmente introduzida no caso
Lochner v. New York245, tendo sido abandonada na década de 1930, por mo-
tivos econômicos, em que o governo foi forçado a reduzir direitos. Em Roe

e LXIII). É inquestionável que os autores da Primeira Emenda visavam limitar apenas os


atos do Governo Federal. As restrições que possam, doravante, ser impostas aos estados
derivam da Décima Quarta Emenda, conforme ESTADOS UNIDOS. United States Su-
preme Court. School District of Abington v. Schempp, 374 U. S. 203 (1963). Disponível
em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 253. Daí a importância do
envolvimento das primeiras oito Emendas na liberdade veiculada pela due process clause
(Décima Quarta Emenda), como postulado pelo juiz Black. Por meio de sua tese, a discri-
cionariedade dos estados nas restrições dos direitos individuais passa a estar indubitavel-
mente submetida ao controle da Suprema Corte Federal. Em outra dimensão, a integração
entre as primeiras oito Emendas e as cláusulas da Décima Quarta Emenda permite a apli-
cação ao governo federal das amplas exigências desta última em matéria de proteção ge-
nérica à liberdade e à igualdade. Vê-se que o esquema de interpretação constitucional é
complexo e sofisticado. De um lado, as Emendas elaboradas pelos formuladores da Cons-
tituição direcionam-se aos atos do Congresso, mas não aos atos dos estados. De outro la-
do, a Décima Quarta Emenda, posteriormente acrescentada, direciona-se aos atos dos es-
tados, mas não aos atos do governo federal. A tese da integração das categorias funda-
mentais firmadas em todas as Emendas soluciona o impasse, o que é coerente e fortalece o
sistema de controle da jurisdição constitucional. Uma ótima abordagem explicativa sobre
o assunto, cuja leitura ora se recomenda, é apresentada por STEVENS, John Paul. The bill
of rights: a century of progress. 59 University of Chicago Law Review 13, Winter 1992.
p. 21-7. Ver, também, AMAR, Akhil Reed. The Bill of Rights Primer: a Citizens’s
Guidebook to the American Bill of Rights. New York: Skyhorse Publishing, 2013. p. 55-
6, 64-5 e 219-24.
245
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Lochner v. New York, 198 U.S 45
(1905). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. Através da
abordagem da autonomia individual no estabelecimento das regras dos contratos de traba-
lho, a Corte apresentou, nesse caso, importante análise, à luz da Décima Quarta Emenda,
a respeito dos limites do poder de polícia dos estados. Conforme enfatizado pelo juiz
Peckham, a atuação do governo, muitas vezes necessária, pode configurar, em determina-
das circunstâncias, uma ingerência ilegítima, dispensável, e não fundamentada em razões
públicas, no protegido exercício da liberdade individual. Afirmou-se, assim, a supremacia
da função judicante na apreciação dos comandos normativos, em relação às matérias dis-
postas nas cláusulas fundamentais (Ibidem, p. 56-7). Acrescente-se, ainda, que essa dire-
ção adveio não apenas do adensamento da substantive due process clause, mas também da
aplicação do padrão da “autorrestrição” (self-restraint) ao poder de polícia do governo.
Saliente-se, por fim, que a self-restraint caracteriza a doutrina da limitação dos poderes
dos juízes na interpretação das leis sob o pressuposto da prevalência, na fase de sua elabo-
ração, do processo deliberativo-democrático.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 145

v. Wade a mesma concepção foi resgatada e adotada, amplamente, sob a


influência das decisões Meyer v. Nebraska, Pierce v. Society of Sisters of the
Holy Names of Jesus and Mary e Skinner v. Oklahoma, casos já menciona-
dos acima246.
Laurence Tribe adota, explicitamente, a doutrina da incorpora-
ção (Black)247 e, por conseguinte, o sentido substantivo da due process
clause. Acentua que a redução dessa cláusula ao seu aspecto puramente
procedimental é insustentável, não havendo nenhuma base para a limita-
ção dos direitos de liberdade àqueles especificamente mencionados na
Bill of Rights. A liberdade, em sua conotação substantiva, é a fonte de
todas as outras liberdades constitucionais, inclusive dos direitos não
enumerados da Nona Emenda, que, portanto, também se aplicaria aos
estados. Tribe é um forte defensor da autoridade da Suprema Corte na
especificação dos direitos fundamentais e dos preceitos a serem utilizados
na concretização do âmbito protetivo da liberdade definida na Décima
Quarta Emenda248.
Voltando ao caso Griswold, saliente-se que não houve unanimida-
de na aceitação da tese da incorporação dos direitos expressos no conteúdo
da Décima Quarta Emenda, por meio do sentido substantivo da due process
clause. O juiz Goldberg manifestou sua discordância, nesse aspecto, acentu-
246
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 18-23. Este autor, como se verá mais adiante, critica o amplo acolhimento
da substantive due process clause e a escolha da privacidade enquanto fundamento consti-
tucional do direito ao aborto. O autor defende a aplicabilidade direta, no caso, das cláusu-
las da liberdade religiosa.
247
Sobre o significado desta doutrina, confira-se a nota supra n. 244.
248
TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton
& Company, 1990. p. 87-8 e 90-1. É oportuno salientar a concepção de DWORKIN,
Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge,
Massachussets: Havard University Press, 1996. p. 76-81, de que a distinção entre direitos
enumerados e não enumerados não tem nenhuma utilidade na interpretação constitucional
da Bill of Rigths. A proximidade entre um direito concreto, como o caso do aborto, à lin-
guagem constitucional deve ser firmada em uma perspectiva holística, por meio de argu-
mentos não mediatizados por categorias abstratas adicionais, focando-se tão somente nos
princípios enunciados na Constituição e no requisito da coerência. No mesmo sentido,
ainda segundo DWORKIN, Ronald. Unenumereted Rights: Wether and How Roe Should
be Overruled, 59 University of Chicago Law Review 381, Winter 1992. p. 382, 387 e
390, o sistema de prescrições constitucionais é integrativo, porque se sustenta, com peso
equivalente, tanto na liberdade genérica quanto na igual consideração perante a lei. Al-
guns princípios são abstratos, uns mais outros menos, enquanto outros princípios são con-
cretos, mas, em seu conjunto, definem um projeto político, consubstanciado na idealiza-
ção de uma sociedade na qual os direitos de igual liberdade e de cidadania sejam efetiva-
mente usufruídos.
146 Teresinha Inês Teles Pires

ando que a vinculação da liberdade, nos termos da Décima Quarta Emenda,


ao texto da Nona Emenda (direitos não enumerados) é suficiente para se
concluir que os direitos fundamentais não se resumem àqueles enunciados
nas primeiras oito emendas, e para assentar, assim, a proteção da privacidade
nas relações conjugais em matéria de planejamento familiar249. O juiz Harlan
acompanhou esse entendimento, afirmando que a cláusula do due process,
em sua aplicação aos casos concretos, é autossustentável, não dependendo
das provisões especificadas na Bill of Rights, que podem, no máximo, auxili-
ar a investigação250.
Os votos divergentes, apenas dois, centraram-se na consideração de
que o direito de privacidade seria revestido de alto grau de obscuridade,
permitindo que qualquer questão seja nele incluída, ao ponto de atribuir ao
poder judiciário a prerrogativa para invalidar qualquer ato legislativo que
repute não razoável ou ofensivo, de acordo com a noção particular dos juízes
acerca do significado concreto da vida privada. Da mesma maneira, a cláusu-
la do devido processo legal não teria sido concebida para dimensionar a esse
grau o poder de revisão judicial251. Segundo o juiz Stewart, dissidente, não
poderia a lei combatida pelos apelantes ser anulada por violação ao devido
processo legal (Décima Quarta Emenda), uma vez que não foi negado aos
apelantes a obediência ao correto procedimento no curso do julgamento cri-
minal, inexistindo qualquer equívoco jurídico capaz de tornar a condenação
passível de ser declarada inconstitucional252.
249
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 486-
7 e 491-3.
250
Ibidem, p. 500.
251
Griswold, justice Black. p. 509-12. No tocante ao devido processo legal, a mesma opini-
ão foi manifestada no voto dissidente do juiz Harlan, no caso Lochner v. New York, que
arguiu a impropriedade do alargamento da concepção original da Décima Quarta Emenda
(ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Lochner v. New York, 198 U.S 45
(1905). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 73-4).
252
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 528.
Observa-se que a opinião de Stewart respalda a due process clause somente em seu senti-
do procedimental, desconsiderando os argumentos desenvolvidos pelos demais juízes no
aperfeiçoamento da substantive due process clause. A crítica de Stewart é facilmente re-
batida quando se pressupõe esse aperfeiçoamento, pois o devido processo legal, no caso,
não deixou de ser observado em relação ao regular procedimento criminal, e sim em rela-
ção à proteção constitucional do direito de expressão (Primeira Emenda) dos condenados
e em relação à proteção constitucional do direito de autodeterminação das pessoas casadas
nas decisões que concernem ao planejamento reprodutivo-familiar (derivativo da Quarta
emenda).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 147

O argumento da autossuficiência do devido processo legal, em sen-


tido substantivo, é de difícil sustentação, e enfraquece qualquer perspectiva
de se responder satisfatoriamente às indagações apresentadas nos votos di-
vergentes, anteriormente resumidas. O direito de liberdade, em sua forma
genérica, não justifica, por si só, a inclusão do direito à privacidade no rol
dos direitos fundamentais, aspecto em relação ao qual se pode concordar
com o juiz Black. Enquanto cláusula abstrata, o devido processo legal não
configura, em caráter exclusivo, um critério seguro para a construção de um
padrão aceitável de análise constitucional no âmbito da prática interpretativa.
Por outro lado, não se pode concordar com Black quando afirma que ne-
nhuma das provisões constitucionais oferece guarida para a proteção da pri-
vacidade, em Griswold, e que a liberdade de expressão (Primeira Emenda)
não protege a conduta dos médicos condenados pela prescrição de contra-
ceptivos em desacordo com lei253. Adotando a concepção de Black, mas
contrapondo-se à sua opinião no caso Griswold, entende-se que a ideia da
incorporação no significado substantivo da Décima Quarta Emenda dos di-
reitos, expressamente protegidos nas oito primeiras emendas, melhor funda-
menta a garantia da privacidade. Postular o envolvimento da due process
clause no conteúdo das cláusulas da liberdade de expressão e de pensamento
permite conferir-lhe densidade no tocante ao controle dos atos arbitrários dos
estados, sujeitos, nessa matéria, ao strict scrutiny standard254.
Lembre-se que o padrão do strict scrutiny é normalmente invocado
na interpretação acerca dos direitos fundamentais enumerados, sendo que o
grau de exigência na demonstração do interesse interventivo do governo
depende, regra geral, da intensidade do ônus decorrente da restrição do direi-
to em questão. Por outro lado, quando se trata de um direito fundamental não
enumerado, como privacidade ou relações familiares, é bastante problemáti-
co ampliar os limites da atividade jurisdicional no controle das leis. Para
alguns críticos, o conceito de strict scrutiny nada mais representa do que a
doutrina da adjudicação judicial em linguagem alternativa, cujo sentido con-
siste no resgate dos pressupostos do direito natural à luz da cláusula do devi-
do processo legal255. Em contrapartida, como destacado pelo juiz Harlan, o
parâmetro da self-restraint, embora seja indispensável para o exercício do
253
Ibidem, p. 508-9 e 521.
254
Em relação ao aborto, como será mostrado na análise do caso Roe v. Wade, a escolha do
direito de privacidade como emanação direta da cláusula da liberdade, sem o apoio em
nenhuma cláusula expressa e específica, tornou frágeis os fundamentos da decisão, dando
margem aos ataques que a ela se seguiram.
255
BARRON Jerome A.; DIENES Thomas. Constitutional law in a nutshell. Eighth edi-
tion. St. Paul: West Publishing Co, 2013. p. 235-7.
148 Teresinha Inês Teles Pires

poder constitucional revisional, não tem aplicação significativa na esfera das


liberdades básicas. Se o tivesse, poderia ser inadequadamente invocado co-
mo um artifício para restringir o conteúdo da due process clause256.
Equilibrar os padrões do strict scrutiny e da self-restraint é
questão crucial na definição do papel dos poderes legislativo e judiciário
na regulamentação tanto da contracepção quanto do aborto. Um posicio-
namento moderado que estruture o modelo do strict scrutiny sem cair nos
excessos da opinião liberal extremista revela-se o mais adequado. Não é
plausível, entretanto, concordar com a opinião de que a doutrina da i n-
corporação (direitos enumerados e due process clause) possa reduzir a
amplitude da liberdade prescrita na Décima Quarta Emenda. Acredita-se,
ao contrário, que tal doutrina possa até estender a aplicação da due pro-
cess caluse aos casos concretos e delimitar corretamente os parâmetros da
self-restraint. A tese da incorporação não importa no esvaziamento da
Nona Emenda (direitos não enumerados). Apenas indica que a direção
inicial, na interpretação constitucional, consiste na ponderada extensão
do âmbito de proteção dos direitos expressos, reservando-se, para uma
segunda análise, a perquirição acerca da dicção de novos direitos funda-
mentais com base em um raciocínio derivativo.
É com essa concepção que se defende, para uma resposta eficaz
aos críticos do controle jurisdicional de constitucionalidade, a conjugação
entre as cláusulas abstratas e as cláusulas específicas de direitos fundamen-
tais, de maneira a dar-lhes conteúdo e efetividade máximos. Entende-se que
essa conjugação contribuiu para o estabelecimento de um padrão rígido de
análise das leis restritivas em matéria de direitos reprodutivos, na fase inicial
de sua abordagem, e para uma definição aceitável do conceito de privacida-
de. Em Griswold, verificou-se que a meta pretendida pelo Estado de Connec-
ticut não tinha consistência o bastante para legitimar, no esquema do strict
scrutiny, a restrição imposta ao direito ao planejamento familiar. A rationale
da lei, segundo arguição dos apelados, seria desestimular as relações extra
-conjugais, incentivando, assim, a estabilidade familiar, por meio da criação
de empecilhos ao controle de natalidade. A proibição do uso de contracepti-
vos com base em tal justificativa revelou-se, perante a Corte, medida desne-
cessária e atentatória ao sistema de garantias fundamentais257. Com efeito, se
256
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 501-2.
257
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 497-
8 e 505.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 149

existem questões morais envolvidas, nesse caso, trata-se de um juízo atinente


à esfera da moralidade privada. O uso individual de contraceptivos não pode
ser considerado uma conduta que tende a comprometer a moralidade pública
ao ponto de desestabilizar a pacificação social258. Nesse particular, é bom
frisar, por fim, que a interação argumentativa entre a due process clause e as
liberdades de expressão e de pensamento, sustentada em Griswold, favorece
a sobreposição da autonomia moral na esfera procriativa, salvo na hipótese
de existência de um interesse irresistível do Estado.

3.1.2 Introdução da abordagem da cláusula da igual proteção em


matéria de contracepção e controle de natalidade

Não levou muito tempo para que o direito de privacidade voltasse a


ser posto na agenda do poder judiciário, dessa vez com novos elementos de
indagação acerca do alcance das cláusulas constitucionais protetivas da li-
berdade individual no contexto reprodutivo. No caso Einsenstadt v. Baird,
uma lei estadual foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte por ex-
cluir expressamente o acesso das pessoas solteiras à utilização de métodos
contraceptivos259.

258
GRISWOLD, Estelle T.; BUXTON, C. Lee. Appellants, v. State Of Connecticut, Ap-
pellee, 1965, WL 92599 (Amicus Curiae).
259
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Einsenstadt v. Baird, 405 U.S. 438
(1972). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. A mencio-
nada lei foi promulgada pelo Estado de Massachusetts com o intuito de regulamentar a
distribuição dos instrumentos contraceptivos. Em face da decisão Griswold v. Connecti-
cut, os legisladores entenderam legítima a proibição da disponibilidade de tais instrumen-
tos às pessoas solteiras para fins de prevenção da gravidez, permitindo-se-lhes o acesso
unicamente para o controle de doenças. Desse modo, perante a lei, a distribuição, por par-
te de qualquer pessoa, de métodos contraceptivos visando evitar a procriação, somente es-
taria autorizada às pessoas casadas. O autor do apelo dirigido à Suprema Corte, neste ca-
so, foi condenado por ter exibido, em uma palestra, mercadorias anticonceptivas e por ter
entregado a uma mulher jovem um pacote contendo esse tipo de artigo. A Corte estadual
já havia afastado, por unanimidade, a condenação dos apelantes pelo ato de exibirem os
instrumentos na palestra, com fundamento no seu direito de expressão (Primeira Emenda),
mas restou mantida a condenação pela distribuição do produto à mulher interessada, con-
siderando os termos da lei regulamentadora do assunto. A diferença em relação à lei de
Connecticut, que deu causa à ação julgada no caso Griswold, reside no fato de que neste a
lei invalidada proibiu o uso de instrumentos contraceptivos enquanto que no caso Einsens-
tadt a lei proibiu sua distribuição. Isso não modifica os aspectos debatidos para a concre-
tização do direito à privacidade. Ao contrário, observa-se que a reflexão seguiu, de um ca-
so para o outro, uma linha evolutiva em direção ao aperfeiçoamento do direito de decisão
quanto a ter ou não ter filhos e quanto ao momento de fazê-lo.
150 Teresinha Inês Teles Pires

A intenção do Estado, explicitada na lei, era preservar a moral


convencional através da regulamentação das relações sexuais das pessoas
solteiras, sob a crença de que isso diminuiria a atividade sexual pré-
-matrimônio e as possibilidades de conluio entre casados e solteiros260. Co-
mo não poderia ter sido diferente, a Suprema Corte acentuou, seguindo seu
precedente (Griswold), a não aceitabilidade do argumento do Estado no sen-
tido de que proibindo o acesso aos métodos medicamentosos de contracep-
ção se estaria protegendo a saúde das pessoas e, ao mesmo tempo, conser-
vando o modelo familiar tradicional de relacionamento afetivo. Não há fun-
damento, sob o prisma do princípio da igual proteção perante a lei, para dis-
tinguir os direitos de privacidade a partir do estado civil das pessoas. Do
ponto de vista da proteção à saúde, o Estado tampouco conseguiu demons-
trar seu interesse em banir a distribuição de contraceptivos às pessoas soltei-
ras, assim como não conseguiu demonstrar que isso pudesse representar uma
forma razoável de prevenção médica da gestação. Se as pessoas casadas
podem livremente optar pelo uso de medicamentos contraceptivos, mesmo
ponderando os riscos potenciais daí decorrentes para a sua saúde, é forçoso
concluir que a mesma autonomia deve ser conferida aos não casados. No
tocante ao interesse público no desestímulo ao sexo antes do casamento ou
às relações sexuais extramaritais entre pessoas casadas e solteiras, não há
como afirmar a legitimidade de uma intenção como essa em detrimento da
liberdade de escolha no que se refere à prevenção procriativa.
Como já se sabe, quando se opera uma distinção entre grupos espe-
cíficos de pessoas, em matéria de direitos fundamentais, aplica-se, na maio-
ria dos assuntos, o padrão do strict scrutiny na avaliação da pertinência das
razões justificadoras da classificação legal. Não há distinção, nesse aspecto,
se a Corte utiliza a due process clause ou a equal protection clause na análi-
se do caso, pois irá ser decidido, em ambas as hipóteses, se a liberdade em
demanda é importante o suficiente para ser garantida na condição de um
direito fundamental. Em regra, se a restrição incorporada na lei alcança direi-
to conferido a todas as pessoas, a due process clause é a cláusula adequada
para a análise do caso; e se o direito é negado apenas a um grupo de pessoas,
sendo concedido aos demais, a análise deve estar alicerçada na garantia da
equal protection clause261. Quando se define que o direito negado pela lei é

260
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Einsenstadt v. Baird, 405 U.S. 438
(1972). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 442 e
449.
261
CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York:
Aspen Publishers, 2006. p. 792-4.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 151

de natureza fundamental, de qualquer sorte os estados devem mostrar não


somente a finalidade perseguida pela restrição estabelecida, mas também sua
necessidade.
O caso Einsenstadt foi julgado à luz da equal protection clause, em
face do caráter nitidamente discriminatório da lei em relação às pessoas sol-
teiras. Distinções relacionadas ao estado civil configuram, sem dúvidas,
classificações obscuras, o que desfaz a presunção da garantia da igual consi-
deração perante a lei. Quer dizer, a presunção de que as leis aprovadas pelo
critério majoritário não reduzem, de forma injusta, os direitos das minorias
deixa de existir, incumbindo ao poder público, em sede de apreciação da
constitucionalidade de suas provisões, comprovar que a meta visada não
seria alcançada por meio de outras medidas menos invasivas e onerosas no
tocante à garantia das liberdades básicas262.
A lei de controle de natalidade, em Einsenstadt, foi considerada ar-
bitrária, reputando-se desarrazoado o interesse na proteção da saúde ou no
impedimento das relações sexuais entre pessoas solteiras ou entre pessoas
casadas e solteiras. Negada essa rationale, restava responder se a lei poderia
ser legitimada sob o argumento de que a contracepção é em si mesma imo-
ral. A indagação pertinente, nesse particular, é a seguinte: a imoralidade
passível de ser atribuída às relações sexuais fora do casamento é do tipo que
configure uma imoralidade que possa ser afirmada em uma base pública, ou
se trata de questão atinente à vida privada das pessoas? No primeiro caso, os
estados estariam autorizados a formular um juízo coletivo acerca da contra-
cepção, impondo as restrições necessárias ao enquadramento das decisões
individuais ao conceito adotado. No segundo caso, o conteúdo moral da con-
tracepção seria algo a ser definido por cada pessoa na consecução do seu
planejamento procriativo263.
Essa resposta é dada em Griswold, cujo decreto sustentou a admis-
sibilidade da contracepção para as pessoas casadas. Não haveria motivo para
enfrentar a questão uma segunda vez. Embora o direito à privacidade tenha
sido conferido apenas às pessoas casadas, quanto à matéria apreciada, em
última instância o que se sedimentou ali foi a privacidade individual de esco-
262
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 7-8 e 75.
263
Vê-se que a indagação acima se consubstancia na distinção categorial que Dworkin esta-
belece entre as esferas da dignidade humana, especialmente a delimitação entre as maté-
rias cuja normatização possa ser feita com fundamento nos princípios da moralidade
política, e as que não o possam por configurarem questões de moralidade ou eticid a-
de individual.
152 Teresinha Inês Teles Pires

lha, pois o casal não configura, em si mesmo, um ser autônomo, mas uma
união entre duas pessoas, tendo cada uma delas personalidade independente,
nos planos emocional e intelectual. Se, para as pessoas casadas, o acesso à
contracepção é uma emanação do direito à privacidade, não havendo, assim,
fundamento para a sua proibição, sob o ponto de vista do significado moral
da prevenção da gravidez em si, o mesmo raciocínio há de prevalecer para as
pessoas solteiras264. Em Eisenstadt, o conceito de privacidade é desfocado do
contexto das relações familiares para ser aplicado diretamente à autonomia
procriativa, adquirindo o estatuto de um direito individual propriamente dito,
tal como fora anteriormente anunciado no caso Skinner265. Restringir o aces-
so ao planejamento procriativo simboliza um ato ainda mais invasivo, em
termos de privacidade, do que restringir a prática do aborto, porque impede o
exercício do controle sobre o próprio corpo e o direito a ter relações sexuais
sem assumir obrigatoriamente o risco de gravidez266.
No que concerne ao envolvimento das cláusulas constitucionais no
tema da contracepção, o aspecto mais interessante, no caso Einsenstadt, para
os propósitos deste estudo, é o da interação entre liberdade, enquanto priva-
cidade, e igualdade, apesar de ainda não se colocar em pauta a perspectiva
do gênero. De qualquer sorte, sob o prisma da garantia da igual liberdade,
para se restringir o direito ao controle de natalidade de uma classe específica
de pessoas seria preciso que o critério para essa diferenciação estivesse inti-
mamente relacionado ao objetivo visado pela lei, e, ainda, que esse objetivo
constituísse justificativa plausível para o banimento do acesso das pessoas
solteiras à contracepção267. Ocorre que nenhum dos requisitos exigidos por
essa diretiva interpretativa foi preenchido pelos argumentos dos apelados.
A análise da cláusula da igual proteção, entretanto, foi extrema-
mente superficial. Apenas o juiz Brennan deu a ela maior destaque. Os de-
mais votos concorrentes mantiveram o foco na liberdade de expressão da
Primeira Emenda, aplicável aos estados em razão da Décima Quarta Emen-
da. O juiz Douglas chegou a dizer que o caso Einsenstadt se resume a esse
ponto268, já que se trata simplesmente de justificar ou não a atitude do apela-
264
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Einsenstadt v. Baird, 405 U.S. 438
(1972). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 452-3.
265
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 28.
266
HUMAN RIGHTS FOR WOMEN, EINSENSTADT, Appelants, v. BAIRD, Appellee,
1971, WL 133621 (as Amicus Curiae).
267
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Einsenstadt v. Baird, 405 U.S. 438
(1972). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 487.
268
Ibidem, p. 455.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 153

do de entregar o produto à terceira pessoa, diante da circunstância de que ele


não era profissional autorizado a prescrever o tipo de medicamento em ques-
tão. Esse estreitamento argumentativo se deve, em parte, ao fato de que a lei
apreciada proibia a distribuição e não o uso de contraceptivos, motivo pelo
qual os julgadores preocuparam-se mais em investigar a aceitabilidade da
conduta do condenado, a fim de reverter sua condenação, e não o interesse
de todas as pessoas, sem distinção, ao acesso a métodos de prevenção da
concepção.
Em termos gerais, a Suprema Corte ainda não conseguiu definir
parâmetros exatos para o controle da ação dos estados em matérias de caráter
supostamente discriminatório. Não se elaborou, com maior clareza, se os
limites das classificações legais são ou não idênticos quando se trata, por
exemplo, de diferenciações por motivo de raça, religião, nacionalidade ou
pensamento político. A doutrina do controle constitucional sobre as normas
classificatórias desenvolveu-se mais, no tocante ao tema da discriminação
racial, e, assim mesmo, com uma certa obscuridade no que concerne ao pa-
drão da equal protection clause. Presume-se, regra geral, que as premissas
básicas para conter a atuação legislativa dos estados, ainda sendo estáveis e
universais, podem ser aplicadas de modo diferenciado de acordo com as
circunstâncias específicas do caso. Como utilizar essa doutrina na esfera dos
direitos reprodutivos das mulheres?269 Trata-se de uma seara a ser adensada
pela Suprema Corte, com a contribuição marcante das premissas estabeleci-
das pelas teorias feministas, que, como vimos na seção 2.3, vêm sendo aper-
feiçoadas na qualidade de um dos paradigmas de constitucionalidade, na
garantia do direito ao aborto.
No entanto, apesar da densidade dos argumentos introduzidos
pela análise da igualdade de gênero no sistema norte-americano, não ser-
viria muito, em termos constitucionais, substituir a substantive due pro-
cess clause pela equal protection clause enquanto categoria fundamental
para assegurar a efetividade dos direitos reprodutivos, pois a classificação
por motivo de gênero é admissível com base no padrão do escrutínio in-
termediário. À luz da equal protection clause, o interesse do governo na
preservação da moralidade tradicional ou na proteção da vida potencial,
no caso do aborto, viria a ser considerado legítimo mediante a simples
alegação de tratar-se de um objetivo importante dos estados, embora não
necessário ou premente. Quer dizer, a análise da constitucionalidade da

269
BROWN Bárbara A.; EMERSON, Thomas I.; FALK, Gail; FREEDMAN Ann E. The
equal rights amendments: a constitutional basis for equal rights for womem. 80 Yale Law
Journal 871, April 1971. p. 905-6.
154 Teresinha Inês Teles Pires

regulação pública da contracepção e do aborto segue critérios assemelha-


dos, seja aplicando-se a due process clause, seja aplicando-se a equal
protection clause270. Em Einsenstadt, foi seguido o padrão da strict scru-
tiny porque a discriminação, nas circunstâncias apreciadas, não dizia res-
peito à classificação de gênero e sim, como visto, à injustificável classifi-
cação baseada no estado civil das pessoas.
A decisão em Einsenstadt foi significativa, tanto em relação ao te-
ma da contracepção quanto em relação ao tema do aborto, não só porque
universalizou o direito ao acesso à contracepção, rompendo com o conteúdo
restritivo do julgamento do caso Griswold, que, como se sabe, assegurou
esse direito somente às pessoas casadas. Além disso, o que é ainda mais
significativo, Einsenstadt forneceu fundamento para ampliar o alcance do
direito à privacidade, no sentido de não mais aplicar-se exclusivamente à
contracepção, mas igualmente à interrupção da gestação271. A garantia do
acesso à prevenção da concepção tem por motivação principal acautelar a
liberdade de ter relações sexuais sem o risco de gerar uma criança. Para as
mulheres solteiras, em especial, essa liberdade envolve a definição do mo-
mento adequado para o projeto da maternidade. Como pontuado por Lauren-
ce Tribe, a decisão Roe v. Wade seguiu primordialmente os passos interpre-
tativos desses dois precedentes que regulamentaram o direito à contracepção,
Griswold v. Connecticut e Einsenstadt v. Baird272.

270
CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York:
Aspen Publishers, 2006. p. 824. No mesmo sentido, ressaltando que a articulação da equal
protection clause na fundamentação do aborto não teria o condão de assegurar o escrutí-
nio rígido como padrão de análise das restrições dos estados, consulte-se SMITH, Priscilla
J. Give justice ginsburg what she wants: using sex equality arguments to demand exami-
nation of legitimacy of state interests in abortion regulation. 34 Harvard Journal of Law
& Gender 377, Summer 2011. p. 406-7.
271
WARREN, Rachel. Pro (whose) choice: how the growing recognition of a fetus’s right to
life takes the constitutionality out of roe. 13 Chapman Law Review, Fall 2009. p. 223. A
autora refere-se à seguinte afirmação do juiz Brennan: “if the right of privacy means any-
thing, it is the right of the individual, married or single, to be free from unwarranted govern-
mental intrusion into matters so fundamentally affecting a person as the decision whether
to bear or beget a child” (Einsenstadt. p. 453). Tradução livre: “se o direito de privacida-
de significa alguma coisa, é o direito do indivíduo, casado ou solteiro, de estar livre de
uma intrusão governamental não autorizada em matérias que afetam tão fundamental-
mente a pessoa, como a decisão de sustentar ou gerar uma criança”. De fato, como bem
salientado pela autora, o padrão da proteção máxima conferida a esse tipo de decisão, nos
termos do pronunciamento do juiz Brennan, permite aplicar o direito de privacidade ao
aborto, o que efetivamente foi feito em Roe v. Wade.
272
TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton
& Company, 1990. p. 94.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 155

3.2 A INCLUSÃO DO DIREITO AO ABORTO NA CARTA


DE DIREITOS (BILL OF RIGHTS): PRIVACIDADE
PESSOAL, MARITAL, FAMILIAR E SEXUAL

A Suprema Corte manteve o caráter fundamental do direito de


privacidade ao apreciar a inconstitucionalidade de uma lei criminal do Es-
tado do Texas, que proibia o aborto a não ser na hipótese em que fosse
necessário para salvar a vida da gestante. A ação foi movida por uma mu-
lher solteira, no ano de 1970, sob a alegação de que gostaria de interromper
sua gestação em condições seguras e de que seu direito de privacidade
estaria protegido pelas Primeira, Quarta, Quinta, Nona e Décima Quarta
Emendas constitucionais. Trata-se do caso Roe v. Wade273, conhecido como
sendo o mais complexo e controverso dentre todos aqueles relacionados às
liberdades individuais.
Para sustentar a extensão do conceito normativo de privacidade ao
direito de interrupção voluntária da gravidez, a Suprema Corte partiu dos
demais direitos assegurados em seus precedentes, no que concerne à preser-
vação da vida íntima das pessoas. Conforme já explicitado, nesses preceden-
tes foi sedimentada a perspectiva de que a categoria genérica da liberdade
inserida na Bill of Rights assegura, implicitamente, a não interferência dos
estados nas decisões referentes às relações conjugais e familiares, à criação e
educação dos filhos, à procriação e à contracepção274.
Em linhas gerais, a Corte retomou, em Roe, a doutrina da substan-
tive due process clause, discutida, sobretudo, em Griswold, para declarar que
a proteção da privacidade abrange o direito ao aborto, por meio da Décima
Quarta Emenda. O juiz Stewart acentuou que a Constituição não contém
provisões específicas concernentes à intimidade no casamento e nas relações
familiares, não sendo possível, portanto, evitar, no tema do aborto, a adoção
do conceito amplo de liberdade, na forma prevista na Décima Quarta Emen-
da275. A opinião de Tribe dá inteiro suporte a este entendimento. Como já
mencionado, para o autor a due process clause da Décima Quarta Emenda
exige uma construção jurisprudencial, tendo sido, desde o seu estabeleci-
273
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013.
274
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 152-3.
275
Ibidem, p. 167-8. Saliente-se que, ao defender a aceitabilidade do sentido substantivo da
due process, Stewart modificou a posição que assumiu no caso Griswold, no qual enten-
deu não cabível a mesma cláusula (Griswold, 1965. p. 528).
156 Teresinha Inês Teles Pires

mento, também compreendida como uma categoria substantiva em matéria


de direitos individuais276.
Considere-se, porém, que a atribuição de tamanha abrangência ao
conceito de privacidade não é isenta de dificuldades e, como se mostrará
adiante, não atende satisfatoriamente o propósito de caracterizar o aborto
como um direito fundamental protegido pela Décima Quarta Emenda, embo-
ra isso tenha sido sustentado em Roe v. Wade. Afigura-se problemático, por
exemplo, o argumento de Tribe, segundo o qual a existência da vida do em-
brião, ou feto, não retira o caráter “privado” da decisão da gestante. Esta
visão deixa à margem do debate o fato de que o aborto importa não apenas
no direito ao livre controle sobre a gestação, mas envolve, de maneira con-
troversa, a destruição do feto. Sem levar em conta tal circunstância, a solu-
ção da questão parece simples, pois basta argumentar que o caso do aborto
não se distingue, no tocante às categorias jurídicas a ele aplicáveis, dos
casos relacionados à contracepção. Tribe chega a dizer que uma eventual
reversão do caso Roe exigiria também a reversão do caso Griswold. Do
contrário, a Corte teria que traçar uma linha divisória entre o direito das
mulheres de evitar a gravidez e a desintegração do seu direito de interrom-
pê-la logo após a fertilização do óvulo, o que, para o citado autor, somente
seria possível pela afirmação de que o embrião possui direitos próprios des-
de a concepção277.
Mas não é bem assim, pois a demarcação da linha divisória mencio-
nada por Tribe poderia se centralizar no valor moral do nascituro, mesmo
não se pressupondo sua personalidade como sujeito de direitos. Basta lem-
brar a distinção operada por Dworkin entre a condição da pessoa humana,
como titular do direito à vida, e a condição do nascituro, cuja dignidade mo-
ral pode ser protegida em razão do significado intrínseco da vida278. A deci-
são em Roe firma expressamente essa interpretação, quando declara que o
276
TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton
& Company, 1990. p. 83-4.
277
TRIBE, Laurence H. Abortion: the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton
& Company, 1990. p. 96, 98, 101 e 115. Em outra linguagem, RUBENFELD, Jed. On the
legal status of the preposition that “life begins at conception”. 43 Stanford Law Review,
February 1991. p. 603, apoia esse entendimento, quando pondera não haver razão para di-
ferenciar o aborto da contracepção, em termos de proteção constitucional, considerando a
ausência de determinação constitucional prévia sobre o estatuto da vida nascitura.
278
Para elucidar, nesse ponto, a tese de Dworkin, frise-se seu argumento, já explorado na
primeira parte da obra, seção 2.1, relativo aos dois distintos interesses que podem ser tute-
lados pelo estado no que concerne à preservação da vida: de um lado, uma pretensão deri-
vada do direito à vida, aplicável às pessoas, e de outro lado uma pretensão destacada, des-
vinculada da proteção direta desse direito e fundamentada na ideia de sacralidade da vida.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 157

fato de o nascituro não ser pessoa, em termos constitucionais, não fornece


uma resposta completa para legitimar o aborto. O sentido substantivo da
liberdade (Décima Quarta Emenda), sem o recurso a raciocínios adicionais,
não responde à tese apresentada pelo Estado do Texas de que a vida tem
início no momento da concepção. A Corte precisou investigar se o governo
tem ou não um interesse convincente na tutela da vida em si mesma 279. Algo
mais tinha que ser dito em relação à aplicação da Décima Quarta Emenda ao
caso do aborto. Nessa direção, a Corte articulou o argumento de que o siste-
ma legal como um todo, excetuando-se a lei que criminaliza o aborto, não
endossa a garantia da vida antes do nascimento. Construiu-se, nessa base, o
entendimento de que o interesse convincente dos estados de preservar a vida
potencial somente se configura a partir da viabilidade fetal. Depois desse
ponto, como declarado pela opinião majoritária, a tutela do feto é justificável
sob os prismas lógico e biológico280.
O posicionamento adotado, no tocante aos direitos da vida pré-
-natal, é o aspecto mais turbulento da decisão Roe v. Wade. A Corte prefe-
riu não se pronunciar sobre a definição do início da vida, salientando, con-
tudo, que as leis, em regra, atribuem direitos aos não nascidos somente em
circunstâncias estritamente delimitadas e, assim mesmo, sua efetiva aquisi-
ção pressupõe o nascimento com vida. Por outro lado, a decisão não é
omissa na determinação do início da tutela da vida nascitura. Ao contrário,
o conhecido padrão trimestral, então elaborado, é bastante claro. Determi-
nou-se o seguinte:
a) no primeiro trimestre da gestação, a escolha deve ficar ao en-
cargo da mulher e do seu médico;
b) no segundo trimestre, os estados estão autorizados a regulamen-
tar o aborto exclusivamente para a proteção da saúde da gestan-
te;
c) no terceiro trimestre, os estados podem regulamentar e até
mesmo proibir o aborto em vista do seu legítimo interesse na
proteção da vida humana potencial281.
Desse modo, antes da viabilidade fetal, os estados não podem res-
tringir o aborto com base na alegação de que têm interesse na proteção da
279
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 159.
280
Ibidem, p. 161 e 163.
281
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113
(1973). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 159,
161 e 164-5.
158 Teresinha Inês Teles Pires

vida do nascituro. Não está incluído nos poderes dos estados a possibilidade
de determinar que o nascituro tem personalidade jurídica ou que a vida co-
meça na concepção.
Quando a gestação envolve riscos à vida ou à saúde da mulher,
o procedimento do aborto pode ser feito a qualquer tempo. Não havendo
riscos, o critério é o da viabilidade fetal. Já foi discutido antes se esse
critério é ou não arbitrário. Em Roe, a questão foi posta sob um ângulo
pragmático. A ideia inicial do juiz Blackmun era garantir o aborto so-
mente no primeiro trimestre de gestação, mas outros juízes acolheram a
ideia de que muitas mulheres, sobretudo as mais pobres, não teriam con-
dições de se decidirem em tão curto tempo. Por essa razão, resolveram
fixar o prazo máximo de 28 semanas de gestação para a realização do
aborto. A regra foi elaborada de acordo com um critério razoável de jus-
tiça na visão dos magistrados. Entendeu-se que a mulher que não faz a
sua escolha até a viabilidade fetal consentiu tacitamente com a autoridade
do governo de intervir na regulamentação de sua conduta, em vista do
estágio adiantado do desenvolvimento fetal. Simplesmente traçou-se uma
linha divisória, sopesando-se que não é necessário assegurar o aborto
durante toda a gestação na hipótese de ser realizado por decisão da mu-
lher, ou seja, não por prescrições médicas, bastando conceder-lhe um
prazo suficiente, em igualdade de condições, para, tendo ciência do seu
estado, realizar ou não o procedimento 282.
Nesses contornos, a Suprema Corte assumiu o estatuto fundamen-
tal do direito ao aborto à luz da abordagem da due process clause feita em
Griswold. O poder dos estados de regulamentar o aborto, em decorrência do
seu interesse na tutela da vida pré-natal foi delimitado sob o prisma do pa-
drão do strict scrutiny. A origem dessa compreensão, como esclarecido no
julgamento, está na própria definição constitucional do termo “pessoa”, que
não inclui, no sentido da Décima Quarta Emenda, o nascituro. Foi também
rejeitado o argumento de que a restrição da lei visava proteger a saúde das
282
BALKIN, Jack M. Abortion and original meaning. constitutional commentary. v. 24:291,
n. 101, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper n. 128. Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract=925558>. Acesso em: 13 abr. 2014. p. 345. É pertinente
enfatizar que conforme DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the
American Constitution. Cambridge, Massachussets: Havard University Press, 1996. p.
114-5, a justificativa para que o governo esteja autorizado a regulamentar e até proibir o
aborto após seis meses de gravidez reside justamente no argumento de que até esse tempo
a gestante teve tempo suficiente para agir com autonomia, sem nenhum tipo de interferên-
cia externa. Lembre-se de que o modelo de democracia de Dworkin acentua a fundamen-
tação moral do direito ao aborto, suportada pela categoria da dignidade.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 159

mulheres, considerando que, conforme indicações médicas seguras, os riscos


do procedimento, nos dois primeiros trimestres da gestação, são menores do
que os riscos do próprio parto283.
Por outro lado, o paradoxo trazido pelo conceito de vida potencial,
no que toca à justificação da livre escolha pelo aborto, torna o direito de
privacidade um fundamento incompleto, ainda que possa estar incluído, im-
plicitamente, em determinados preceitos da Bill of Rights. Como se defende
neste estudo, o apelo à privacidade, embora satisfatoriamente aplicável à
proteção do direito ao uso de contraceptivos, não é forte o bastante para jus-
tificar a decisão de interromper a gestação, sendo necessária uma revisita ao
paradigma estabelecido em Roe.
Saliente-se aqui a posição de Peter Wenz, segundo a qual a priva-
cidade, na forma sustentada em Griswold e invocada em Einsenstadt e Roe,
não é parâmetro adequado para a proteção do aborto, e não se compatibiliza
com outras interpretações construídas pela Suprema Corte em casos nos
quais o conceito de privacidade estava em discussão. Esclareça-se que a
rationale escolhida pelo citado autor é oposta à de Lawrence Tribe, por
rejeitar o padrão da due process clause, em sentido substantivo, e contra-
por-se ao recurso aos direitos não enumerados, que, em sua opinião, atri-
buem poder excessivo aos juízes. Para Wenz, as cláusulas específicas da
Constituição, expressamente mencionadas, são aplicáveis independente-
mente da utilização das cláusulas abstratas 284. Em realidade, Wenz não
aceita, no caso Roe, nem a justificativa do juiz Blackmun (privacidade),
nem a do juiz Stewart (liberdade da due process clause). Nesse ponto, adi-
ante-se que a Suprema Corte, nos casos que se seguiram a Roe v. Wade,
terminou reduzindo gradualmente a utilização da categoria da privacidade.
Em contrapartida, o conceito da substantive due process clause passou a
receber maior extensão, indicando-se, claramente, o crescimento da impor-
tância dessa cláusula na declaração dos direitos fundamentais não expres-
sos285. É plausível defender, nessa seara, que a doutrina da incorporação (juiz
Black), utilizada no caso Griswold, dá margem a que se reelabore a aplica-
ção do princípio genérico da liberdade (Décima Quarta Emenda) ao caso do
283
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 153, 155-8 e
170.
284
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 36, 17, 47-8, 99 e 103.
285
GREENE, Jamal. The so-called right to privacy, 43 U.C. Davis Law Review 715, Febru-
ary 2010. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=1456026>. Acesso em: 25 nov. 2013.
p. 724-5.
160 Teresinha Inês Teles Pires

aborto, de forma a conectá-lo a uma cláusula constitucional específica, tam-


bém relacionada às liberdades básicas286.
Nenhuma reflexão foi feita, no caso Roe, sobre o significado dos
direitos previstos nas demais emendas. Até mesmo o voto do juiz Rehnquist,
dissidente, pressupôs a consideração exclusiva da Décima Quarta Emenda
para a solução do caso, sendo que sua oposição ao entendimento majoritário
consistiu unicamente na arguição do caráter não absoluto da liberdade. No
seu sentir, a proibição do aborto estaria dentro dos poderes legítimos dos
estados de elaborar leis compatíveis com seus interesses, o que somente ex-
trapolaria os critérios de razoabilidade, se a proibição se estendesse à hipóte-
se de salvamento da vida da gestante287.
A excessiva confiança da Corte na concretização da autonomia
procriativa com base no conceito de liberdade da due process clause abriu
o caminho para o criticismo em relação ao paradigma da decisão Roe v.
Wade. O juiz Rehnquist chamou a atenção para esse fato, ao ponderar que
a transposição do padrão do interesse convincente dos estados (strict scru-
tiny) para a due process clause da Décima Quarta Emenda poderia trazer
maior confusão para a interpretação das leis288. Não parece consistente esse
raciocínio, pois é essencial a utilização de um critério rígido no balizamen-
to das motivações dos estados na regulamentação dos direitos reprodutivos.
O strict scrutiny, aliás, nunca deveria ter sido abandonado pela Suprema
Corte na apreciação das leis restritivas da prática do aborto, como se deu no
julgamento do caso Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v.
Casey289.
O maior problema consistiu em sustentar, na condição de funda-
mento único do aborto e da contracepção, a noção de privacidade familiar e
286
Essa ideia restou expliciada na seção 3.1.
287
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 172-3.
288
Ibidem, p. 173. Nessa passagem do seu voto, o magistrado esclarece que o modelo do
strict scrutiny foi concebido, no âmbito jurisdicional, para a apreciação das leis cujo con-
teúdo remete à equal protection clause, também da Décima Quarta Emenda. Aplicar o
mesmo modelo à due process clause, como de fato fez a Corte em Griswold e Roe, não é,
em sua opinião, estratégia adequada, por extrapolar a moldura do poder de controle nor-
mativo das ações dos estados, em conformidade com a concepção original dos autores da
Constituição.
289
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. Essa decisão fortaleceu significativamente os poderes dos esta-
dos na criação de obstáculos à realização do aborto, enfraquecendo e até revertendo parci-
almente a decisão Roe. O caso ainda será objeto de análise na próxima seção.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 161

procriativa extraída da due process clause em sentido substantivo. No jul-


gamento Roe v. Wade, a Corte não teve a percepção de que o conteúdo da
autonomia procriativa abrange mais do que a simples garantia da liberdade,
em sentido abstrato, contra a coerção estatal, no que pese a densa discussão
prévia, travada nos casos Griswold e Einsenstad, sobre os requisitos da cláu-
sula do devido processo legal. Não inserir, de forma clara, na fundamentação
constitucional do aborto, a consideração dos direitos básicos definidos na
Primeira Emenda, em particular a liberdade religiosa, gerou uma certa insta-
bilidade na proteção assegurada em Roe. Passou despercebido o questiona-
mento que o juiz Stewart já havia feito em Griswold quanto a não arguição
da establishement clause como base constitucional para a liberdade de utili-
zação de métodos anticonceptivos290.
Em outra dimensão, a não abordagem da perspectiva da igual-
dade de gênero também reduziu a abrangência do esquema constitucional
que, em sua integralidade, legitima a autonomia procriativa. Nesse ponto,
perdeu-se a oportunidade de avançar na interpretação do envolvimento da
equal protection clause na efetivação dos direitos reprodutivos. O único
caminho vislumbrado pelos julgadores, em Roe, diante do histórico dos
seus precedentes, foi o da vinculação do tema do aborto ao da contracep-
ção. Essa rota, como não poderia ser diferente, foi, posteriormente, objeto
de crítica ardorosa por parte das doutrinas feministas, que rejeitam total-
mente o parâmetro do direito de privacidade, sob o argumento de que a
presunção da autonomia decisória das mulheres, na esfera íntima, é um
grande equívoco. Já se mencionou antes a advertência feita por Catharine
Mackinnon de que, ao situar a autonomia procriativa como uma matéria
referenciada à vida privada, a Corte deixou de lado a complexidade das
relações de gênero, contribuindo, assim, para escamotear o processo cul-
tural de violação dos direitos das mulheres 291. Entretanto, esse enfoque
não estava ainda amadurecido no tempo da decisão Roe, quando se en-
tendia que a mulher não carecia de uma tutela especial e que qualquer
remissão ao princípio da igualdade sexual significaria não uma medida
contra a discriminação baseada no gênero, mas antes uma “ação afirmati-
290
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 528-
9. A establishement clause, ainda se verá, caracteriza um dos sentidos da liberdade religiosa
da Primeira Emenda, e se consubstancia na proibição da adoção por parte dos estados de
uma doutrina religiosa específica, seja expressamente, seja através do acolhimento norma-
tivo dos seus preceitos.
291
Confira-se MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. Cam-
bridge/London: Harvard University Press. 1991. p. 185, 187-8, 192, 216 e 224.
162 Teresinha Inês Teles Pires

va”292, um benefício social não articulável na condição de uma função


normativa justificadora do dever positivo de proteção do Estado.
A posição alavancada neste trabalho, enfatize-se, é a de que as res-
trições legais ao aborto são ilegítimas também com fundamento na garantia
da igualdade sexual. Contudo, uma reformulação da estrutura da decisão Roe
precisa adentrar, sobretudo, na delimitação jurídica da tutela da vida nascitu-
ra, e, a partir daí, na ressignificação do conceito de personalidade.

3.3 O VALOR DA VIDA PRÉ-NATAL E A AUTONOMIA


MORAL DA GESTANTE NA REGULAMENTAÇÃO DO
DIREITO AO ABORTO: CONTORNOS PRECISOS ÀS
LEGISLATURAS ESTADUAIS E À JUDICIAL REVIEW

Como se deixou claro, na primeira parte da obra, o paradigma do


pluralismo ideológico impede que o poder público imponha às mulheres,
na qualidade de agentes morais e políticos, qual o valor deve ser atribuído
à vida nascitura nos primeiros estágios do seu desenvolvimento. Será aden-
sado, agora, a legitimação desse entendimento do ponto de vista da decisão
Roe v. Wade, a partir da interpretação que foi dada à categoria da liberdade
da Décima Quarta Emenda, não no sentido de privacidade na vida íntima,
mas no sentido de autonomia procriativa. Ressalte-se que, embora o julga-
mento, no caso, tenha se centrado no direito à privacidade, a fundamenta-
ção constitucional acolhida importou na afirmação implícita da liberdade
como autonomia moral, na medida em que o poder de decisão sobre o des-
tino da gestação, em seus dois primeiros trimestres, envolve diretamente a
independência ética da gestante no tocante à importância a ser atribuída à
vida pré-natal.
Os defensores do direito de personalidade do nascituro costumam
alegar que o sistema constitucional norte-americano não confere à Suprema
Corte autoridade absoluta para declarar o momento a partir do qual a vida
tem início, bem como a quem, ou quais entidades, assegurar o direito à vida.
De acordo com essa visão, o papel do poder judiciário, no modelo federalis-
ta, não inclui a faculdade de definir o conteúdo das leis, e, em particular, o
valor da vida nascitura. Se assim o fosse, afirmam alguns autores, as restri-
ções originariamente impostas à autoridade pública federal, na interpretação
292
Conforme MACKINNON, Catharine A. Toward a feminist theory of the state. Cam-
bridge/London: Harvard University Press. 1991. p. 234. No original: “affirmative action”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 163

da Constituição, seriam esvaziadas, o que representaria a negação da auto-


nomia dos estados293.
Essa linha de argumentação não é razoável sob o aspecto da teo-
ria constitucionalista, base do sistema judicial do país. A posição susten-
tada em Roe, no sentido de que a vida do nascituro não é tutelável, em
caráter absoluto, nos termos da Décima Quarta Emenda, se compatibiliza
com a divisão de poderes, em sua concepção original, entre o governo
federal e os estados. Além disso, assenta um parâmetro moderado para
equilibrar o interesse público e a autonomia procriativa, porque não rejei-
ta a discricionariedade governamental na proteção da vida potencial,
pressupondo-a, inclusive, na justificativa de uma delimitação diferencia-
da do poder interventivo dos estados em cada etapa do processo gestacio-
nal. Consoante destacado por Dawn Johnsen, a consideração dos interes-
ses fetais em Roe reflete a possibilidade de que os estados estabeleçam
suas políticas, no que diz respeito à tutela da vida potencial, desde que as
mesmas não infrinjam os direitos das mulheres de interrupção da gesta-
ção ou os contornos da proteção constitucional de sua independência
moral e intelectual 294.
O principal objetivo das leis estaduais que perseguem a garantia da
personalidade fetal é tentar preencher o que ficou sem resposta na decisão
Roe, a definição do início da vida. Dissociar o conceito de personalidade da
constatação de que a vida humana potencial existe desde a concepção não foi
suficiente para isentar a perspectiva da privacidade e da autonomia procriati-
va do criticismo subsequente, enraizado nos interesses fetais. É necessário,
então, que a Suprema Corte reformule o modelo argumentativo traçado no
caso Roe e afirme, claramente, na esteira de Dworkin, que o status moral da
vida pré-natal não equivale ao status moral das mulheres gestantes. Isso po-
de representar um novo fundamento constitucional para a proibição do abor-
to, e pacificar o entendimento de que se trata de um assunto cuja concretiza-
ção é papel do poder jurisdicional, em sede federal, no exercício da judicial
review, não sendo o caso de retornar para o âmbito de apreciação das legisla-
turas estaduais295.
293
CRAMPTON, Stephen M. An apologia for personhood. 6 Liberty University Law Re-
view, winter 2012. p. 304-5.
294
JOHNSEN, Dawn E. The creation of fetus rights: conflicts with women’s constitutional
rights to liberty, privacy and equal protection. 95 Yale Law Journal, January 1986. p.
614.
295
Ao contrário do defendido por DUNAWAY, Rita M. The personhood strategy: a state’s
prerrogative to take back abortion law. 46 Willamette Law Review, Winter 2011. p. 343,
348, 351 e 353.
164 Teresinha Inês Teles Pires

Quando se pensa na função constitucional da Suprema Corte, no


tocante à definição de restrições aos direitos fetais, o referencial adotado não
é o conceito do início da vida potencial, em sua dimensão biológica. O exer-
cício da autoridade jurisdicional circunscreve-se à concretização, na esfera
jurídica, do âmbito de proteção da vida potencial, sendo, nesse aspecto, legí-
timo. No que diz respeito às propostas legislativas dos estados, que reivindi-
cam o reconhecimento do direito à vida do nascituro, em contraposição à
decisão Roe, essas sim são notavelmente inconstitucionais e ilegítimas296.
Delegar às instâncias político-representativas a regulamentação do
tema, sob o argumento de que uma atuação não “minimalista” (minimalist)
do Estado poderia melhor assegurar os interesses das mulheres, não condu-
ziria a resultados positivos. Robin West formula a ideia de uma “justiça re-
produtiva” (reproductive justice) que, no seu sentir, justificaria a construção
de um padrão de análise menos individualista na definição do direito ao
aborto297. Entretanto, ao contrário do defendido por Robin, não há injustiça
alguma no padrão jurisprudencial da privacidade, no sentido de autonomia
296
Alguns estados apresentaram, a partir da década de 2000, projetos de emenda constitucio-
nal cujo objetivo é a afirmação do direito à vida do nascituro desde a concepção. Outros
estados efetivamente promulgaram leis conferindo ao nascituro algumas garantias na área
criminal, contra atos de terceiros, e de direito de família, contra abusos e negligência por
parte dos genitores. Além disso, parte dessas leis legitima o dever de proteção à persona-
lidade fetal, o que vem chegando cada vez mais à Suprema Corte, já com algumas deci-
sões que não são, estritamente falando, adequadas às diretivas firmadas em Roe. Voltar-
-se-á a esse ponto nas próximas seções. Para um aprofundamento acerca do conteúdo dos
mencionados projetos e normas legislativas, consulte-se MATAMBANADZO, Saru M.
Embodying vulnerability: a feminist theory of the person. 20 Duke Journal of Gender
Law & Policy, fall 2012. p. 57; LOTIERZO, Amy. The unborn child, a forgotten interest:
reexamining roe in light of increased recognition of fetus rights. Temple Law Review,
Spring 2006. p. 281, 290-1 e 303; e NELSON, Erin. Law, police and reproductive au-
tonomy. Oxford: Oxford and Portland, Oregon, 2013. p. 122-6. Conforme, ainda, CAR-
TER, Molly E. In: Regulating abortion through direct democracy: the liberty of all versus
the moral code of majority, 91 Boston University Review, jan. 2001. p. 306-9 e 312-15,
as leis estaduais, para produzirem efeitos, dependem da aprovação majoritária dos respec-
tivos eleitores, o que se realiza através de dois processos de democracia direta regulamen-
tados no país: a) initiative (petição proposta, mediante assinaturas, pelos próprios cida-
dãos); e b) referendum (votação). A rigor, a democracia direta tem sido historicamente
utilizada pelos estados, desde os anos 1970, para restringir a admissibilidade do aborto.
297
WEST, Robin L. From choice to reproductive justice: de-constitutionalizing abortion
rights. Yale Law Journal, v. 118, n. 7, p. 1394-1431, nov. 17, 2009. Disponível em:
<http://ssrn.com/ abstract=1508035>. Acesso em: 22 jul. 2014. p. 1396-7. Aqueles que se
interessarem por mais acurado conhecimento sobre a crítica do autor ao que ele chama de
“antidemocratic features of U.S. constitucionalism”, consulte-se o ensaio citado. p. 1.405-
21. Em tradução livre: “características antidemocráticas do constitucionalismo dos Esta-
dos Unidos”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 165

moral, em matéria de escolha reprodutiva. As mulheres não devem ser vistas


como seres incapazes de se responsabilizar por seus atos, por isso o aborto
deve ser legitimado, em parâmetros constitucionais, como uma escolha acei-
tável em caso de falha no uso de métodos contraceptivos. A visão político-
-legislativa tende a focar-se, prioritariamente, no significado moral-coletivo
da vida potencial e não na autonomia-dignidade da mulher.
As disposições das legislaturas estaduais, segundo as quais ao nas-
cituro se confere o status de pessoa, não se coadunam com a estrutura do
direito à vida, explicitada na Quinta e na Décima Quarta Emendas, o qual se
fundamenta no significado substantivo da due process clause e no conteúdo
da equal protection clause. Acentue-se, para melhor compreensão do leitor,
que na Quinta Emenda, antes da menção à due process clause, a Constitui-
ção prescreve que “nenhuma pessoa” (any person) pode ser forçada, em
processo criminal, a prestar testemunho contra si próprio. Pela própria natu-
reza da questão inserida no texto e pela linguagem dos constituintes originá-
rios, há um entendimento intuitivo que denota a não inclusão do nascituro
também no conceito de pessoa veiculado por essa Emenda. Nenhum dos
juízes em Roe, nem mesmo os dissidentes, fizeram referência à doutrina da
personalidade do feto, exatamente devido à dificuldade de se vislumbrar na
Constituição, especialmente nas Emendas direcionadas à titularidade dos
direitos fundamentais, qualquer noção capaz de sugerir alguma preocupação
com o tratamento dos interesses da vida pré-natal. A questão também não foi
levantada nos casos posteriores a Roe sequer pelos juízes declaradamente
contrários a que se mantenha sob o poder da Corte Federal a última palavra
sobre a proteção constitucional ao aborto298.
Além disso, o status moral do nascituro é reconhecido por cada es-
tado de forma diferenciada, o que cria obscuridades na definição de uma
direção comum para a abordagem do conceito de personalidade. Se a ques-
tão voltasse para o controle das legislaturas estaduais, em alguns estados, as
mulheres seriam obrigadas a acatar a visão imposta pelas leis, segundo as
quais se presume a igualdade entre pessoas nascidas e não nascidas. Em
outros estados, as mulheres, diferentemente, teriam direito a uma convicção
própria acerca do valor moral da vida potencial. Nas decisões judiciais das
cortes estaduais, igualmente, observa-se a mesma dubiedade e instabilidade
na doutrina da personalidade jurídica, pela confusão implementada entre a
esfera do direito e a esfera da moralidade pública. Ao aproximar a categoria
298
BALKIN, Jack M. Abortion and original meaning. constitutional commentary. v. 24:291,
n. 101, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper n. 128. Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract=925558>. Acesso em: 13 abr. 2014. p. 337.
166 Teresinha Inês Teles Pires

da personalidade à ideia do valor intrínseco da vida humana, as cortes termi-


nam estabelecendo certos padrões morais, regra geral, os mais aceitos pela
comunidade, na condição de regras jurídicas299. Em síntese, ao adotarem e
imporem às mulheres uma determinada concepção sobre o valor intrínseco
da vida humana, sob as vestes do conceito de personalidade, as leis e deci-
sões estaduais eliminam qualquer nível de concretização da liberdade de
consciência, ou liberdade religiosa, no tocante aos direitos reprodutivos.
Todavia, não há dubiedades, no texto constitucional, a respeito do
alcance da proteção do direito à vida, razão pela qual não se pode permitir a
delimitação da tutela do nascituro de acordo com a compreensão particular
de cada estado. A controvérsia existente no tema do aborto deve ser resolvi-
da fora do esquema do federalismo, tendo-se em mente que o direito à vida
se aplica somente às pessoas que se enquadram na categoria jurídica da per-
sonalidade. Banir o direito ao aborto importaria na classificação das mulhe-
res como pessoas constitucionais parciais, isto é, não em seu significado
pleno, em violação à perspectiva da igualdade e também da liberdade300. Em
Roe v. Wade, o fundamento do direito ao aborto foi situado na due process
clause, mas, em realidade, sua constitucionalidade deriva também de outras
garantias, como o princípio da igual cidadania. A consideração da condição
inferiorizada da mulher, como cidadã de segunda classe, elaborada pelos
teóricos da igualdade de gênero, está presente, indiretamente, na rationale
adotada em Roe. Diz-se isso porque a decisão do caso avançou entendimento
segundo o qual o controle do governo sobre a gestação é ilegítimo por im-
portar na redução da autonomia moral da mulher301.

299
HARVARD LAW REVIEW ASSOCIATION. What we talk about when we talk about
persons: the language of a legal fiction. 114 Harvard Law Review Association, April
2001. p. 1747, 1755, 1759, 1762 e 1764. Ver, também, TRIBE, Laurence H. Abortion:
the clash of absolutes. New York/London: W. W. Norton & Company, 1990. p. 126.
300
NELSON, Lawrence J. Of persons and prenatal humans: why the constitution is not silent
on abortion. Lewis & Clark Law Review, Spring 2009. p. 160, 162 e 165. Ver, também,
RUBENFELD, Jed. On the legal status of the preposition that “life begins at conception”.
43 Stanford Law Review, February 1991. p. 601-2; WARREN, Rachel. Pro (whose)
choice: how the growing recognition of a fetus’s right to life takes the constitutionality out
of roe. 13 Chapman Law Review, Fall 2009. p. 243; e JOHNSEN, Dawn E. The creation
of fetus rights: conflicts with women’s constitutional rights to liberty, privacy and equal
protection. 95 Yale Law Journal, January 1986. p. 620.
301
BALKIN, Jack M. Abortion and original meaning. constitutional commentary. v. 24:291,
n. 101, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper n. 128. Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract=925558>. Acesso em: 13 abr. 2014. p. 319-20. O autor propõe
que o aborto seja delineado como um direito básico à cidadania, que, conforme esclarece,
tem estreita relação com o argumento sustentado à luz da equal protection clause (Idem,
p. 336). Veja que a leitura apresentada nesse estudo acerca do princípio da igualdade, feita
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 167

Volta-se, assim, à doutrina da inclusão no texto da Décima


Quarta Emenda dos direitos fundamentais especificados nas demais
emendas, adotada pela Suprema Corte, em matéria reprodutiva, desde a
decisão Griswold. É no contexto da análise do conteúdo substantivo da
Décima Quarta Emenda que a garantia do pluralismo ideológico na defi-
nição do valor da vida pré-natal encontra suas raízes. Entretanto, é neces-
sário acrescentar à decisão Roe, com base na proteção assegurada pela
liberdade religiosa da Primeira Emenda, uma determinação judicial no
sentido de que o estatuto moral do nascituro não pode ser imposto pelos
estados. A partir daí, seria possível demonstrar a inaceitabilidade dos
projetos de emendas constitucionais cujo objeto é o reconhecimento da
personalidade do nascituro. Como advertiu o juiz Blackmun, se essas
emendas fossem aprovadas, a decisão Roe seria automaticamente reverti-
da pelo reconhecimento da aplicação da Décima Quarta Emenda ao nasci-
turo, no tocante ao direito à vida302.
Uma das estratégias dos proponentes das mencionadas emendas é
tentar mostrar que sua aprovação não importaria na reversão do caso Roe,
mas apenas na produção de alguns efeitos no que concerne à proteção da
vida nascitura, o que seria positivo, segundo essas correntes, até por estimu-
lar o debate e promover a diversidade entre os estados. Resgatar a autonomia
dos estados na regulamentação da matéria, alega-se, não modificaria a ad-
missibilidade do aborto, por tratar-se de um direito solidamente instituído no
país como um todo303. Essas considerações não são verossímeis, pois o re-
torno da discricionariedade dos estados, no caso, não faria outra coisa senão
substituir a autonomia das mulheres pela autonomia dos estados, banindo a
liberdade de consciência individual por meio da precedência de uma concep-
ção moral e religiosa convencional. Como se defende aqui, o valor moral do
feto somente pode ser definido coletivamente a partir de certo estágio do
processo gestacional.

na seção 2.3, coincide com a perspectiva da Balkin. Em uma outra linguagem, afirma-se
que a due process clause, em sentido substantivo, caracteriza o direito ao aborto como um
direito moral da mulher, e isso exatamente porque a garantia de sua liberdade de decisão,
no tocante à matéria, integra o princípio da autonomia moral, portanto, da plena cidada-
nia.
302
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 156-7.
303
SCOTT, T. J. Why state personhood amendment should be part of the pro-life agenda. 6
University of St. Thomas Journal of Law & Public Policy, Fall 2011. p. 233, 244 e
253-4. Esclareça-se que, antes do julgamento Roe v. Wade, os estados tinham o poder de
regulamentar o aborto sem interferência do governo federal, por isso o autor toma essa re-
ferência como parâmetro condutor do seu argumento.
168 Teresinha Inês Teles Pires

3.4 CONCLUSÃO PARCIAL

Percebe-se que o direito à privacidade foi a categoria que guiou a


constitucionalização do direito ao aborto no país. A incorporação desse direi-
to iniciou nos anos de 1920, no contexto das escolhas familiares afetas à
educação dos filhos. Em um segundo momento, nos anos de 1940, o direito à
privacidade foi acolhido em questões reprodutivas. Até que nos anos de
1960, foi utilizado como fundamento do direito à contracepção e, nos anos
de 1970, como fundamento do direito ao aborto. Viu-se que essa trajetória
promoveu a abertura das cláusulas do devido processo legal e da igual prote-
ção perante a lei para a inclusão de determinados direitos substantivos, em
especial, o direito ao aborto.
A proposta de construir uma base constitucional democrática para
a legalização do direito ao aborto requer uma interpretação da carta de direi-
tos fundamentais em uma dimensão integrativa. A unidade entre a liberdade
e a igualdade é o alicerce da atuação da Corte Constitucional, o que materia-
liza a perspectiva do sistema de justiça moral e política, como estabelecido
por Rawls e Dworkin. Além disso, o julgamento do caso Roe v. Wade refor-
ça a convicção de que a análise do direito ao aborto exige a discussão sobre
os limites da tutela da vida nascitura em parâmetros jurídicos e laicos.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 169

Capítulo 4

A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO
À LUZ DAS CLÁUSULAS DA
LIBERDADE RELIGIOSA

É essencial considerar a perspectiva da independência ética na de-


finição do valor da vida potencial e, consequentemente, o envolvimento das
cláusulas da liberdade religiosa no debate sobre o aborto, no contexto das
principais decisões da Suprema Corte relativas à matéria. Será indicado, à
luz da posição assumida na seção 2.4 da obra, que tal abordagem é consentâ-
nea com os precedentes da Suprema Corte, sobretudo quando se reflete acer-
ca da inclusão da moralidade laica no significado do livre exercício das con-
vicções de consciência. Além dos casos que envolvem o conteúdo constitu-
cional da liberdade religiosa em si mesma, serão analisados, sucintamente,
os casos que delimitam o direito à objeção de consciência nos serviços de
atendimento à contracepção e ao aborto.

4.1 COLOCAÇÃO DO TEMA A PARTIR DO SIGNIFICADO


ESPECÍFICO DA ESTABLISHEMENT CLAUSE E DA
FREE EXERCISE CLAUSE

Em Griswold, várias liberdades fundamentais foram invocadas pa-


ra sustentar o direito de privacidade na esfera da autonomia procriativa, in-
clusive, as liberdades de expressão e de pensamento, comandadas pela Pri-
meira Emenda Constitucional. Entretanto, não se fez referência, como visto,
às provisões constitucionais relativas à liberdade religiosa, seja a establish-
170 Teresinha Inês Teles Pires

ment clause, seja a free exercise clause, também previstas na Primeira


Emenda. Em Roe, igualmente, perdeu-se a oportunidade de amadurecer a
abrangência do conteúdo destas cláusulas, e sua conexão ao paradigma subs-
tantivo da due process clause e da equal protection clause (Décima Quarta
Emenda).
Deve-se esclarecer, antes de tudo, a diferença existente entre os
dois conceitos envolvidos na concretização da liberdade religiosa, a fim de
situar, adequadamente, a inclusão, em seu conteúdo, do direito ao aborto.
Para tanto, é crucial inserir a tese de Dworkin na leitura da Constituição
Americana, por meio de uma investigação conjunta da evolução do sentido
da establishement clause e da free exercise clause.
No caso School Dist. of Abington Tp., Pa. v. Schempp, a Suprema
Corte tentou sedimentar o assunto, embora com uma certa instabilidade.
Acentuou-se, de início, que as duas cláusulas perseguem, igualmente, a exi-
gência de neutralidade do estado diante da diversidade de crenças religiosas.
Por outro lado, a opinião da Corte destacou que as leis que importem na
adoção oficial de uma doutrina específica violam diretamente a establish-
ment clause304. A free exercise clause tem finalidade distinta, de impedir a
interferência do governo na livre escolha dos indivíduos quanto às suas cren-
ças pessoais, estando, portanto, mais diretamente vinculada ao impedimento
da coerção estatal305.
Há uma tendência a se atribuir um conteúdo mais extenso à liber-
dade de religião para os propósitos da free exercise clause e um conteúdo
mais reduzido à mesma matéria quando se trata de analisar a aplicação da
establishement clause. Todavia, no caso Everson v. Board of Education of
Ewing Tp., tal visão foi rejeitada, declarando-se que, nos termos da Primeira
Emenda, não há fundamento para diferenciar o grau de relevância das cláu-
sulas religiosas no controle das ações do governo306.

304
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. School District of Abington v.
Schempp, 374 U. S. 203 (1963). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em:
01 fev. 2014. p. 232.
305
Ibidem, p. 221-3. Para o o juiz Brennan, a interação lógica entre as duas cláusulas pode
fazer com que uma alegação de violação à establishement clause seja, ao final, sustentada
em face das dimensões do agir humano asseguradas pela free exercise clause (Ibidem,
p. 247).
306
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Everson v. Board of Education of
Ewing Tp., 330 U. S. 1 (1947). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01
fev. 2014. p. 32 (conforme CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and
policies. 3. ed. New York: Aspen Publishers, 2006. p. 1187).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 171

Um ano antes do julgamento do caso Abington, a Suprema Corte,


em Engel v. Vitale, sustentou, com maior clareza, que qualquer espécie de
tentativa, mediatizada pelo poder público, de influenciar coativamente as
crenças pessoais, ou de oferecer suporte a qualquer delas, infringe o coman-
do da establishement clause307. A preocupação marcante, aqui, reside no
impedimento do favorecimento, por parte do governo, à prevalência das
religiões majoritárias, de modo a comprometer a espontaneidade dos credos
minoritários.
A vinculação entre a establishement clause e a due process clause
da Décima Quarta Emenda foi efetivada no caso Everson, acima citado.
Como então explicado pelo juiz Black, o governo, federal ou estadual, não
pode criar uma instituição religiosa, preferir uma ou outra dentre essas
instituições ou subvencionar as atividades de qualquer igreja ou grupos
eclesiásticos. Igualmente, tais grupos não podem ter participação na reso-
lução dos assuntos políticos. Em suma, a establishment clause é a expres-
são mais direta do “muro” da separação entre a Igreja e o Estado308, impe-
dindo, inclusive, que o governo favoreça determinadas doutrinas religiosas
em prejuízo de outras309. Não se exige a demonstração do envolvimento
direto e expresso do comando da lei com os preceitos de uma determinada
doutrina, bastando a evidência de que seu conteúdo dificulta o exercício
pleno, sem obstáculos, de outras doutrinas.
A free exercise clause, por sua vez, envolve o exercício em si
das crenças pessoais e a liberdade de conduzir-se de acordo com elas na
ausência de um convincente interesse social que se lhes sobreponha. O
poder regulatório do governo é, neste ponto, bastante limitado e submete-
se ao padrão da strict scrutiny 310. A cláusula é normalmente invocada em
três circunstâncias:
307
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Engel v. Vitale, 370 U. S. 421
(1962). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 429-
30. Ver, neste sentido, NUSSBAUM, Martha C. Liberty of conscience: in defense of
american’s tradition of religious equality. New York: Basic Books, 2008. p. 236-8.
308
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Everson v. Board of Education of
Ewing Tp., 330 U. S. 1 (1947). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01
fev. 2014. p. 15-6 e 18.
309
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Church of the Lukumi Babalu Aye
Inc. v. City of Hialeah, 508 U. S. 520 (1993). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 23 nov. 2013. p. 533.
310
Como declarado em ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Wisconsin v.
Yoder, 406 U. S. 205 (1972). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01
fev. 2014. p. 215, apenas os interesses do governo de maior relevância devem ser sobre-
postos aos requisitos da free exercise clause. Posteriormente, como se falará, o padrão da
172 Teresinha Inês Teles Pires

a) quando a lei proíbe um comportamento exigido pela religião


seguida pelo reclamante;
b) quando a lei impõe a prática de uma conduta proibida por sua
religião;
c) quando a lei onera ou cria impecilhos à observância dos precei-
tos religiosos adotados pelo indivíduo311.
A incorporação da free exercise clause na due process clause da
Décima Quarta Emenda foi definitivamente alicerçada sete anos antes da
incorporação da establishment clause, o que se deu no julgamento do caso
Cantwell v. State of Connecticut, cujo decreto acentuou a liberdade de cons-
ciência e de adesão a quaisquer organizações ou cultos religiosos. Tal prote-
ção abrange a liberdade de crença e a faculdade de agir de acordo com as
convicções pessoais312.
Em tal contorno, a interrupção voluntária da gestação é uma conduta
que pode ser interpretada à luz das cláusulas religiosas? Para tentar responder a
tal pergunta, é preciso fazer uma leitura dos critérios estabelecidos pela Suprema
Corte para sua aplicabilidade, com o envolvimento da due process clause e da
equal protection clause da Décima Quarta Emenda313. A ideia central, que estará
na base da presente leitura, é a tese de Dworkin de que não há um parâmetro
secular ou científico para a primazia, em quaisquer circunstâncias, da tutela da
vida pré-natal em relação à autonomia moral das mulheres.
Pode-se assentar, primeiramente, que as restrições ao aborto desar-
ticulam a acomodação da diversidade religiosa e institucionalizam uma es-
pécie de hostilidade ao secularismo, importando na violação da establishe-
ment clause. Em seguida, pode-se sugerir que a autonomia da mulher na
condução do destino da gestação está subsumida ao conteúdo da free exerci-
se clause, considerando que o valor intrínseco da vida é uma questão de mo-
ralidade pessoal.

revisão judicial em relação à matéria foi modificado, de maneira que nem sempre prevale-
ce o escrutínio rígido.
311
CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York:
Aspen Publishers, 2006. p. 1247.
312
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Cantwell v. State of Connecticut,
310 U. S. 296 (1940). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 08 out.
2013. p. 303-4. Ver, sobre este caso, GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito nos
Estados Unidos. Barueri/SP: Manole, 2004. p. 86.
313
Lembre-se de que, na seção 3.1, foi explicitada a teoria da incorporação dos direitos fun-
damentais na due process clause da Décima Quarta Emenda. Como esclarecido, a Supre-
ma Corte segue esta doutrina na interpretação do alcance da Bill of Rights na revisão judi-
cial das leis estaduais.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 173

Para Peter Wenz, a proibição do aborto viola diretamente a esta-


blishement clause, considerando que seu comando impõe a anulação das leis
cujo propósito não é secular ou cuja consequência imediata consiste no
avanço ou na inibição da crença no valor sagrado da vida314. Ronald Dwor-
kin, diferentemente, afirma que a questão está compreendida no conteúdo
das duas cláusulas. Na medida em que os estados não podem impor às pes-
soas uma interpretação ortodoxa sobre o valor da vida humana, mesmo sen-
do a visão escolhida e apoiada pela maioria, a proibição do aborto viola a
establishement clause e solapa a dignidade da gestante. Esta mesma restrição
infringe, ainda, a free exercise clause, se se considera que a definição do
significado da vida e da morte possui, em seu próprio conteúdo, natureza
religiosa315.
Quando se está diante de uma matéria “essencialmente religiosa”
(“essentially religious”), o governo não pode promover e sequer sustentar
uma das posições divergentes. Em outros termos, se o propósito de uma lei é
avançar uma vertente do pensamento religioso, desfavorecendo as outras
visões, ela é inconstitucional por violação a establishement clause316. De
outro lado, já se discutiu que a diferenciação feita por Dworkin entre crenças
religiosas de caráter teísta e princípios morais-filosóficos possibilita definir
adequadamente a substância da free exercise clause. O valor sagrado da vida
é um assunto religioso mesmo quando sustentado por ateus, agnósticos ou
pessoas que não professam religiões teístas. Igualmente, nem todos os religio-
sos são conservadores em relação ao aborto317.

314
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 198-9.
315
DWORKIN, Ronald. Unenumereted Rights: Wether and How Roe Should be Overruled,
59 University of Chicago Law Review 381, Winter 1992. p. 418 e 422; ver também, do
mesmo autor, Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cam-
bridge, Massachussets: Havard University Press, 1996. p. 106-110.
316
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 92-3, 156 e 161-2; e Unenumereted
Rights: Wether and How Roe Should be Overruled, 59 University of Chicago Law Re-
view 381, Winter 1992. p. 420-1.
317
Existe nos Estados Unidos, por exemplo, uma organização não governamental denomina-
da “Catholics for Choice”, que representa a voz daquelas pessoas que aderiram à religião
e, ao mesmo tempo, acreditam que a doutrina católica tradicional endossa, em sentido mo-
ral e legal, o direito da mulher de conduzir sua vida sexual e reprodutiva a partir dos de-
sígnios de sua consciência. Para conhecimento acerca dos propósitos e convicções da Or-
ganização, consulte-se o seguinte endereço: <http://www.catholicsforchoice.org/about/
default.asp>. No mesmo sentido, uma outra Organização – “Religious Coalision for Re-
productive Choice” (RCRC) – defende a posição Pro-Choice (Pró-Escolha) enquanto um
componente da perspectiva da justiça reprodutiva. Os membros da Coalisão pertencem a
174 Teresinha Inês Teles Pires

No que pese a não abordagem da liberdade de religião no âmbito


das políticas públicas reprodutivas, sua aplicação normativa à regulamenta-
ção do aborto introduz no debate a exigência de igual consideração entre as
concepções de bem. O dever de respeito à autonomia procriativa produz
efeitos na dimensão política, delimitando os poderes dos estados na impo-
sição de restrições ao aborto em nome dos interesses ou dos valores morais
coletivos ou de terceiras pessoas318. Dworkin é quem melhor define, no
contexto constitucional, a categoria da autonomia procriativa como sendo
um direito moral proveniente da due process clause e das cláusulas da li-
berdade religiosa319, o que se conforma ao padrão de análise construído
pela Suprema Corte Federal através da tese da incorporação dos direitos
fundamentais ao significado substantivo do devido processo, como expli-
cado no capítulo anterior.
A perspectiva da unificação das duas cláusulas da liberdade religiosa
exige a aplicação conjunta da substantive due process clause e da equal pro-
tection clause. Na compreensão de Martha Nussbaum, deve ser acrescida à
categoria da igualdade uma dicção autônoma do conteúdo da liberdade de
consciência. Do contrário, a igualdade pode ser concretizada através da ne-
gação da liberdade de religião, caso em que seríamos iguais na ausência de
liberdade. A autora complementa seu pensamento afirmando que a teoria do
pluralismo moral e político de Rawls se centraliza na liberdade religiosa,
sendo este o significado essencial de sua defesa da acomodação das “doutri-
nas abrangentes”, em especial as que se relacionam à sacralidade da vida320.

religiões diversas e defendem a capacidade decisória das mulheres e seu direito de ter
acesso ao aborto e à contracepção (conforme informações disponíveis em:
<http://rcrc.org/>). As duas organizações citadas estão sediadas em Washington D.C. e fo-
ram fundadas em 1973, ano em que foi proferida a decisão Roe v. Wade.
318
NELSON, Erin. Law, police and reproductive autonomy. Oxford: Oxford and Portland,
Oregon, 2013. p. 35-6. Ver, também, RICHARDS, David A. J. Toleration and the Con-
stitution. New York/Oxford: Oxford University Press, 1986. p. 140-1, 145 e 149, para
quem o interesse em desestimular o aborto deriva de sua disparidade com os princípios re-
ligiosos majoritários, segundo os quais o desenvolvimento natural da vida potencial deve
ser garantido desde a concepção. O autor presume, na perspectiva investigada no presente
trabalho, que a base moral da establishement clause reside no “igual respeito à consciên-
cia individual” (“equal respect for individual conscience”), demarcando, assim, os limites
da autoridade do Estado. O comando é claro, enfatiza Richards, ao exigir que o governo
não adote “valores sectários” (“sectarian values”) e não encampe propósitos religiosos,
endossando, assim, uma visão particular de moralidade.
319
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 160.
320
NUSSBAUM, Martha C. Liberty of conscience: in defense of american’s tradition of
religious equality, New York: Basic Books, 2008. p. 12, 16 e 21-2 e 57. Ver, também
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 175

De fato, cabe aqui a menção direta à preocupação de Rawls com


os contornos da separação entre Religião e Estado sob o prisma da garan-
tia das liberdades civis e políticas. O padrão da razoabilidade das doutri-
nas do bem retira da agenda política a discussão sobre a veracidade das
crenças religiosas, na medida em que elas não seriam úteis, em uma base
pública, na busca de um consenso capaz de incluir todas as visões abran-
gentes passíveis de reconhecimento. As exigências da proibição do esta-
belecimento de uma religião têm por fundamento, na linguagem de
Rawls, a compreensão de que a imposição pelo poder político de uma
única doutrina não é razoável. Os limites da razão pública trazem para a
perspectiva do consenso sobreposto a necessidade do endosso à igual
liberdade religiosa 321.
Sendo assim, é plausível dizer que o direito ao aborto está protegi-
do pelo direito à liberdade religiosa da Primeira Emenda, em sua conexão à
substantive due process clause, como sugere Dworkin, e também pela equal
protection clause, no sentido do pluralismo reflexivo de concepções de bem.
Em outro enfoque, as duas cláusulas abstratas (due process clause e equal
protection clause), igualmente, se complementam na esfera da concretização
das cláusulas da liberdade religiosa, à luz de sua leitura unificada. O entrela-
çamento entre as categorias morais e políticas de Rawls e de Dworkin apare-
ce aqui de maneira bastante nítida. O devido processo legal traz para o deba-
te sobre o aborto a dimensão da independência ética, enquanto que a igual
proteção da lei lhe acrescenta a dimensão do pluralismo razoável, implicita-
mente amparada pelo conteúdo da establishement clause. A prática jurisdicio-

AMAR, Akhil Reed. The Bill of Rights Primer: a Citizens’s Guidebook to the American
Bill of Rights. New York: Skyhorse Publishing, 2013. p. 238-39, que analisa a esta-
blishement clause na condição de um direito civil individual, em contraposição à conota-
ção de um direito de caráter público. Mesmo quando o ato do governo não cria uma reli-
gião mandatória, pode representar violação aos direitos de liberdade e de igualdade de re-
ligião. Veja-se que a establishement clause, em tal concepção, está conjugada à proteção
da free exercise clause. Segundo Amar, não é possível falar em liberdade religiosa se uma
determinada doutrina é beneficiada pelo Estado. No mesmo sentido, KURLAND, Philip
B. Religion and the law: of church and state and the Supreme Court. New Bru-
nswick/U.S. e London/U.K.: Aldine Transaction: a Division of Transaction Publishers,
2009. p. 17-8, pondera que a utilização de ambas as cláusulas, de forma conjugada, é
complicada, mas é necessária para a efetivação do seu comando. A separação entre a Igre-
ja e o Estado atribui realidade à tolerância prescrita pela free exercise. Os dois preceitos –
tolerância e separação – lidos, enquanto uma normatização unificada, impedem o governo
de adotar um padrão religioso de avaliação, seja quando concede benefícios, seja quando
impõe obrigações.
321
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 61-2, 138 e 151-3.
176 Teresinha Inês Teles Pires

nal do país pressupõe, logicamente, o método interpretativo dos autores cita-


dos, segundo o qual as categorias da liberdade e da igualdade não se contra-
põem, mas antes integram, conjuntamente, o edifício da proteção dos direitos
fundamentais.
É preciso esclarecer que a concretização da establishment clause
nos Estados Unidos passou por um processo evolutivo, com certas instabi-
lidades argumentativas. A Suprema Corte afirmou, em alguns julgamentos,
que a establishement clause proíbe exclusivamente o envolvimento direto,
claramente discriminatório, do governo com as doutrinas religiosas. Um
certo grau de envolvimento é aceitável, constituindo exigência imposta
pela própria necessidade de tornar efetiva, no espaço público, a free exerci-
se clause322.
Como declarado em Lemon v. Kurtzman, nem sempre é possível
identificar em uma lei o descumprimento da establishement clause, muito
embora o padrão do pluralismo religioso imponha balizas claras a seu
respeito. Observou-se não existir nas decisões prévias da Suprema Corte
a exigência de uma separação absoluta entre o Estado e a religião, desde
que obedecidos alguns limites 323. Este caso tornou-se emblemático por-
que influenciou, através do chamado “Lemon test”, todas as análises pos-
teriores da establishement clause. O teste então articulado estabeleceu
três critérios básicos:
a) o propósito da lei deve ser secular;
b) o reflexo primário da lei não pode promover ou desfavorecer a
religião;
c) a lei não pode representar um envolvimento excessivo com a re-
ligião324.
322
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Walz v. Tax Commission of City of
New York, 397 U. S. 664 (1970). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em:
01 fev. 2014. p. 675; e ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Corporation
of Presiding Bishop of Church of Jesus Christ of Later-Day Saints et al v. Christine
J. Amos et al, 483 U. S. 327 (1987). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso
em: 12 dez. 2013. p. 334.
323
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Lemon v. Kurtzman, 403 U.S. 602
(1971). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 612 e
614. Sobre o assunto, consulte-se MURRAY, Justin. Exposing the underground estab-
lishement clause in the Supreme Court’s abortion cases. 23 Regent University Law Re-
view 1, 2010-2011. p. 7-13.
324
NUSSBAUM, Martha C. Liberty of conscience: in defense of american’s tradition of
religious equality. New York: Basic Books, 2008. p. 287. Ver, também, CHEMERIN-
SKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York: Aspen Publishers,
2006. p. 1202-1206.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 177

Entende-se que o primeiro critério, acima mencionado, relativo ao


propósito secular das leis, envolve a proteção do direito ao aborto. Se a
tutela da vida fetal, desde a concepção, não se fundamenta em razões mo-
rais públicas, não religiosas, como acredita Dworkin, as normas que res-
tringem o aborto são tendenciosas. Há respaldo, nos precedentes judiciais
da Suprema Corte, para o entendimento no sentido de que proibir o aborto,
desde o momento da concepção do nascituro, não encontra fundamento em
nenhuma categoria secular compreensível que possa constituir um argumen-
to neutro, não determinado por juízos prescritos por crenças ou convicções
particulares325.
Em Thornburg v. American College of Obstetricians and Gyneco-
logists, a Corte acentuou que a questão central na reflexão sobre o aborto
consiste em dizer se a decisão deve ser tomada pelo indivíduo, no caso, a
gestante, ou pela coletividade, nos moldes do critério majoritário. O juiz
Stevens, que defendia, explicitamente, a aplicação da establishement clause
na regulamentação do aborto, enfatizou que “um poderoso argumento teoló-
gico” pode ser utilizado para justificar que “o interesse governamental em
proteger a vida fetal é igualmente consistente durante o período inteiro da
gestação, desde o momento da concepção até o momento do nascimento”326.
No caso Webster v. Reproductive Health Services, Stevens avan-
çou, de forma ainda mais enfática, o argumento da establishement clause
para rebater a legitimidade da tutela da vida potencial durante todas as etapas
da gestação. Afirmou, textualmente, que existe uma diferença substancial e
bem discernida entre o nascituro e o ser humano. Contrapõe-se, em tal racio-
cínio, religião e razão, conferindo à perspectiva da exigência de laicidade do
Estado, no que concerne ao aborto, uma proeminência não observada em
Roe e nem em Thornburgh327. Stevens reforçou sua tese, posteriormente,

325
Conforme declarado no caso ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Church
of the Lukumi Babalu Aye Inc. v. City of Hialeah, 508 U. S. 520 (1993). Disponível
em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 533.
326
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Thornburg v. American College of
Obstetricians and Gynecologists, 476 U.S. 747 (1986). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 778. No original: “a powerful
theological argument‖ [...] “the governmental interest in protecting fetal life is equally
compelling during the entire period from the moment of conception until the moment of
birth‖.
327
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Webster v. Reproductive Health
Services, 492 U.S. 490 (1989). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12
dez. 2013. p. 560 e 552-3. Como lembrado por MURRAY, Justin. Exposing the under-
ground establishement clause in the Supreme Court’s abortion cases. 23 Regent Univer-
sity Law Review 1, 2010-2011. p. 36, três outros juízes liberais (Blackmun, Brennan e
178 Teresinha Inês Teles Pires

afirmando que a posição pro-life (pró-vida) não considera as distinções fisio-


lógicas perceptíveis entre os estágios da vida fetal, e, se adotada na esfera
pública, resulta na sobreposição de uma crença majoritária nos domínios da
consciência individual328.
O julgamento do caso Roe v. Wade endossa o requisito do secula-
rismo, na forma prescrita pela establishement clause. De acordo com as teses
pro-life, não há prova de que as leis restritivas da prática do aborto possuam,
necessariamente, motivações religiosas, até porque não existem critérios
exatos para caracterizar se o propósito visado pela lei é ou não secular (Le-
mon test). Como distinguir uma motivação secular de uma motivação religio-
sa? Os casos relacionados à objeção de consciência, dos quais se falará adi-
ante, oferecem direção esclarecedora, neste aspecto, mas as indagações neles
levantadas melhor se inserem na análise da free exercise clause, e não na
análise da establishement clause329. Por isto, a colocação do tema do aborto
sob o prisma da proteção da consciência individual precisa ser também fun-
damentada na free exercise clause.
Imagine que alguém se autodefina como sendo um ateu ou agnósti-
co e, ao mesmo tempo, manifeste oposição ao aborto. Voltando novamente a
Dworkin, pode-se afirmar que nem por isso a opinião de tal pessoa tem por
fundamento um valor “a-religioso”. O que se analisa não são as crenças par-
ticulares das pessoas que rejeitam a admissibilidade moral do aborto, e sim a
natureza assertiva da proposição em si mesma de que o feto é pessoa, ou de
que a vida do ser humano tem um valor objetivo, não importando o estágio
de sua evolução330. A visão pro-life advém, de toda sorte, de um conceito de
verdade que refoge ao paradigma da razão prática, daí sua insustentabilidade
sob o prisma do sistema de constitucionalidade das leis. Trata-se de uma
visão derivada das tradições culturais e históricas das sociedades contempo-
râneas ocidentais, fortemente determinadas pelo pensamento cristão331.

Marshal) sugeriram, no mesmo caso (Webster) que a abordagem de Stevens em Thorn-


burgh encontra raízes nos argumentos lançados em Roe.
328
STEVENS, John Paul. The bill of rights: a century of progress. 59 University of Chicago
Law Review 13, Winter 1992. p. 31.
329
MURRAY, Justin. Exposing the underground establishement clause in the Supreme
Court’s abortion cases. 23 Regent University Law Review 1, 2010-2011. p. 2, 6 e 14-19.
330
DWORKIN, Ronald. Unenumereted Rights: Wether and How Roe Should be Overruled,
59 University of Chicago Law Review 381, Winter 1992. p. 413-4.
331
Mário CUOMO, ex-governador do Estado de Nova York, in Religious beliefs and public
morality: a Catholic Governer’s perspective, discurso proferido em 03.09.1984 no Depar-
tamento de Teologia da Universidade de Notre Dame. Disponível em: <www.
arquives.nd.edu>. Acesso em: 02 mar. 2014. Ver também MARSHALL, William P. In
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 179

Passe-se, agora, à análise da concretização da free exercise clause,


cujo ponto de partida são as ações em que a Suprema Corte é instada a mani-
festar-se sobre os contornos do direito à objeção de consciência por motivos
religiosos. Os critérios para a recusa ao serviço militar, por exemplo, foram
estendidos no caso U.S. v. Seeger332. Entenderam os juízes, com espeque na
due process clause da Quinta Emenda, que a free exercise clause se aplica
não somente aos motivos expressamente religiosos, mas também àqueles
calcados em códigos morais individuais. O tema do serviço militar proporcio-
nou excelente espaço para se sedimentar o conceito de liberdade de consci-
ência. Com efeito, a dimensão religiosa vai além da adesão a uma doutrina
eclesiástica, incluindo concepções filosóficas ou preceitos morais destaca-
dos333. Segundo Dworkin, o caso U.S. v. Seeger lançou paradigma definitivo
para uma “definição constitucional” (“constitutional definition”) do conceito
de religião. O termo “religião”, consoante nitidamente declarado pela Corte,
neste caso, inclui as crenças teístas e também os “princípios éticos” (“ethical
principles”)334. Tal paradigma corrobora a tese do autor, segundo a qual o
valor intrínseco da vida humana é questão de caráter religioso.
Em um primeiro momento, conferiu-se ampla deferência às con-
vicções religiosas, como ocorreu, por exemplo, no caso Thomas v. Review

defense of smith and free exercise revisionism, 58 University of Chicago Law Review
308, Winter 1991. p. 316-7. É oportuno mencionar, ainda, que, conforme RICHARDS,
David A. J. Toleration and the Constitution. New York/Oxford: Oxford University
Press, 1986. p. 138, no caso ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. U.S. v.
Ballard, 322 U.S. 78 (1944). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 08
out. 2013, a Suprema Corte rejeitou a perspectiva dos preceitos religiosos enquanto crité-
rios válidos na apreciação da constitucionalidade das políticas legislativas.
332
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. U.S. v. Seeger, 380 U.S. 163 (1965).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014.
333
Ibidem, p. 172. A mesma posição foi sustentada no caso ESTADOS UNIDOS. United
States Supreme Court. Welsh v. U. S., 398 U. S. 333 (1970). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. Como ensina CHEMERINSKY,
Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York: Aspen Publishers,
2006. p. 1189, esta equiparação entre valores religiosos e valores seculares é positiva,
porque facilita a abordagem dos requisitos da establishement clause. GREENAWALT,
Kent. Religion and the constitution: free exercise and fairness, v. 1, 2006. Princeton and
Oxford: Princeton University Press. p. 155, chega ao ponto de afirmar que o favorecimen-
to aos motivos religiosos, se concedido, configura violação à establishement clause e à
equal protection clause. Far-se-á uma investigação separada, na próxima seção, sobre a
proteção da liberdade de consciência laica através da leitura das premissas adotadas na
formulação da free exercise clause, bem como das premissas subsumidas a outras deci-
sões da Suprema Corte, além das duas decisões citadas.
334
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 162.
180 Teresinha Inês Teles Pires

Board of Indiana Employment Section Division335, cuja decisão acolheu o


direito ao recebimento de seguro-desemprego por parte das pessoas que se
recusavam, por motivos religiosos, a exercer determinadas atividades profis-
sionais. Posteriormente, tal deferência foi significativamente reduzida nos
casos Employment Div. Department of Human Resources of State of Oregon
v. Smith I e II336. Declarou-se, nos dois casos, a legitimidade da recusa do
governo em pagar o seguro-desemprego aos então demandantes, que foram
demitidos por desobediência à lei criminal que proibia o uso do “peyote” em
cultos religiosos.
Em Smith II, a Corte adotou um novo padrão de análise que passou
a vigorar, desde então, na aplicação da free exercise clause, no seguinte sen-
tido: se a lei é neutra e de aplicação geral, dirigindo-se, portanto, a todos os
cidadãos, independentemente de suas crenças, e o assunto é passível de ser
regulamentado pelos estados, não há fundamento para reconhecer a exceção
religiosa337.
Com base neste padrão, em Church of the L. B. Aye Inc. v. C. of
Hialeah foi declarado que os estados não podem banir o sacrifício de ani-
mais em celebrações religiosas quando a proibição está direcionada, exclusi-
vamente, às práticas religiosas. A Suprema Corte justificou sua posição atra-
vés da reafirmação dos critérios da neutralidade e da generalidade enquanto
condições para a aplicação da free exercise clause. No caso, ponderou-se que
a lei tinha por objeto único suprimir componente essencial da prática religio-
sa em questão, não ditando a mesma proteção em outras circunstâncias em
que os animais são igualmente mortos por razões não religiosas338. Em Emp.
v. Smith I e II, diferentemente, a proibição do uso de alucinógenos dirigia-se
a todos os cidadãos e não tinha por escopo prioritário impedir o livre exercí-
cio de determinadas crenças.

335
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Thomas v. Review Board of Indi-
ana Employment Section Division, 450 U. S. 707 (1981). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 714-6.
336
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Employment Div., Dept. of Human
Resources of State of Oregon v. Smith, 485 U.S. 660 (1988). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014; ESTADOS UNIDOS. United States
Supreme Court. Employment Div., Dept. of Human Resources of Oregon v. Smith, 494
U.S. 872 (1990). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014.
337
Ibidem, p. 876-9. Breve relato do caso pode ser lido na obra de GODOY, Arnaldo Sam-
paio de Moraes. Direito nos Estados Unidos. Barueri/SP: Manole, 2004. p. 92-3.
338
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Church of the Lukumi Babalu Aye
Inc. v. City of Hialeah, 508 U. S. 520 (1993). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 23 nov. 2013. p. 521.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 181

Houve uma tentativa, perante o Congresso Nacional, de rejeitar a


redução da proteção da free exercise clause, operacionalizada nos casos su-
pracitados, e reestabelecer integralmente o parâmetro do strict scrutiny, atra-
vés do Religious Freedom Restouration Act (RFRA), de 1993. No entanto,
no caso City of Boerne v. Flores, foi determinado que esta lei não se aplica
aos estados, permanecendo válido, portanto, somente na apreciação da cons-
titucionalidade das leis federais339.
Ressalte-se que a redução da proteção da free exercise clause,
operacionalizada em Smith II e Hialeah, faz parte de um processo de con-
tenção da generosidade excessiva com a preservação das exceções legais
por motivos religiosos, sendo esta a questão que interessa de perto neste
estudo. Como será mostrado, na próxima seção, a mudança jurisprudencial
nos critérios da concretização da liberdade de religião possibilitou a exten-
são dos direitos de consciência, a fim de acomodar as visões éticas de cará-
ter laico. A partir daí, defender-se-á a incorporação no esquema constitucio-
nal da autonomia moral-procriativa da mulher no que se refere à definição
do valor intrínseco da vida.
Em linhas gerais, à luz da free exercise clause, os mesmos requisi-
tos da neutralidade e da generalidade devem ser adotados na análise das es-
tratégias utilizadas pelas legislaturas estaduais para reduzir o acesso aos pro-
cedimentos abortivos. Obviamente, tais restrições não atingem a liberdade de
exercício da religião, em seu significado literal, pois não interferem no exer-
cício das respectivas práticas e não criam obstáculos para a observância dos
respectivos preceitos. No entanto, se a gestante deseja abortar, e considera o
ato moralmente aceitável, é constrangida a não práticá-lo. Em um sentido
muito particular, isso representa sobrepor moralidades alheias, ou preceitos
de doutrinas religiosas específicas, à sua própria identidade moral, em viola-
ção à liberdade de exercício de crença religiosa340.
339
CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York:
Aspen Publishers, 2006. p. 1248, 1259-1261 e 1263-4. ESTADOS UNIDOS. United
States Supreme Court. City of Boerne v. Flores, 521 U. S. 507 (1997). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. Como salientado por ASHE, Marie.
Womens’s wrongs, religions’ rights: women, free exercise, and establishement in Ameri-
can Law. 21 Temple Political & Civil Righs Law Review 163, Fall 2011. p. 201, o
RFRA/1993 tentou retomar a padronização da free exercise clause nos moldes anterior-
mente sustentados, com a intenção de desconstruir a base e a sobreposição dos critérios
firmados sobretudo em Smith II. Mas a questão é ainda problemática no âmbito da revisão
judicial das leis federais, em relação às quais a Corte se condiciona às regras do
RFRA/93. Esta lei pode ser lida na seguinte página da internet: <http://www.justice.gov>.
340
Ver, neste sentido, RICHARDS, David A. J. Toleration and the Constitution. New
York/Oxford: Oxford University Press, 1986. p. 140-1.
182 Teresinha Inês Teles Pires

É oportuno pontuar que a Corte declarou, em Church v. Hialeah,


que a free exercise clause assegura proteção não apenas contra “hostilidade
governamental” (governmental hostility) explícita, mas, igualmente, contra
aquela que se mostra disfarçada, que também pode representar tratamento
discriminatório, em violação à equal protection clause341. Na mesma classi-
ficação podem ser situadas as normas que, ao dificultar o aborto, predispõem
a mulher a levar a gestação a termo, mesmo quando isto não corresponde aos
seus desejos e interesses. Tais normas não são neutras porque privilegiam o
grupo de pessoas que acreditam, por motivos religiosos, ser o aborto um ato
moralmente censurável, não conferindo igual respeito e proteção à indepen-
dência ética das demais pessoas. É uma outra dimensão da free exercise
clause não voltada, propriamente, para o exercício dos cultos religiosos, mas
antes para o direito à não interferência das doutrinas religiosas em decisões
de caráter fundamental342.
Daí porque se entende existir, no paradigma estabelecido em Smith
e Hialeah, uma correlação entre a autonomia procriativa e a free exercise
clause, sob o enfoque do requisito da neutralidade. Em Smith II, foi susten-
tado que a lei é inconstitucional quando proíbe uma conduta em razão do
caráter religioso de sua motivação. Sendo assim, não é incoerente afirmar
que a proibição da lei pode também ser ilegítima quando envolve a rejeição
de códigos morais seculares ou códigos ditados por religiões minoritárias. O
humanismo secular343 sugere a admissibilidade moral do aborto, havendo
341
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Church of the Lukumi Babalu Aye
Inc. v. City of Hialeah, 508 U. S. 520 (1993). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 23 nov. 2013. p. 533-4 e 540.
342
Remete-se, aqui, o leitor à nota 214, Parte I, seção 2.4, deste trabalho, na qual se fez
menção à colocação de Jeffreys no sentido de que o termo “liberdade de religião” precisa
ser expandido para incluir a liberdade de estar livre do caráter impositivo dos preceitos re-
ligiosos-institucionais.
343
Segundo STEVENS, Fritz; TABASH, Edward; HILL, Tom; SIKES, Mary Ellen;
FLYNN, Tom. What is secular humanism? Tradução de Luís Dantas, 27.01.1999. Dis-
ponível em: <www.dantas.com/ ateísmo/def_hs.htm>. Acesso em: 15 out. 2015, dentre os
princípios que caracterizam tal doutrina, podem ser destacados os seguintes : a) “Uma
convicção de que dogmas, ideologias e tradições, quer religiosas, políticas ou sociais,
devem ser avaliados e testados por cada pessoa individual em vez de simplesmente acei-
tos por uma questão de fé”; b) “Compromisso com o uso da razão crítica, evidência fac-
tual, e método científico de pesquisa, em lugar da fé e misticismo, na busca de soluções
para os problemas humanos e respostas para as questões humanas mais importantes”
(Disponível em: <www.dantas.com/ateísmo/def_hs.htm>). Para um estudo mais profundo
sobre o assunto, consulte-se KITCHER, Philip. Life after faith: the case for secular
humanism. New Haven and London: Yale University Press, 2014; CLAY, Jimmy.
Discovering secular humanism: questions and answers for the novice and the curi-
ous, Published by The Evolving Money, 2010. Disponível em: <www.evolving-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 183

fundamentos razoáveis, de acordo com o significado amplo da free exercise


clause, para declarar que os estados não estão autorizados a regular o aborto
desde o momento da concepção344.
No que diz respeito ao requisito da generalidade, as leis que supri-
mem o acesso desimpedido ao aborto, igualmente, não passam no teste, pois
não intencionam regular a conduta de todos os cidadãos, mas impor um con-
trole público sobre a gestação, com base no valor da vida pré-natal. Diferen-
temente, na regulamentação da reprodução humana assistida, os progenitores
dos embriões remanescentes, não utilizados nos respectivos procedimentos,
podem descartá-los livremente, não se assegurando os interesses da vida
potencial nos parâmetros sustentados nas leis antiabortivas. O mesmo se
observa nas regras que normatizam a pesquisa com células-tronco345. Esta
distinção em matéria de tutela do embrião, nos assuntos reprodutivos, forne-

monkey.com>. Acesso em: 15 out. 2015; BOWERS, Morris. Secular humanism: the
official religion of the United States of America. Maryland: America Star Books,
2007; e KURTZ, Paul. In: Defense of secular humanism. Amherst, New York: Pro-
metheus Books, 1983.
344
Conforme RICHARDS, David A. J. Toleration and the Constitution. New
York/Oxford: Oxford University Press, 1986. p. 141 e 144-6, a jurisprudência reduziu a
proteção da free exercise clause, em matéria religiosa, a fim de balizar as exigências da
establishement clause; mas, ao mesmo tempo, ampliou o alcance da primeira em relação
às decisões determinadas por convicções de consciência, não importando a natureza dos
princípios éticos adotados por cada pessoa. Esta tendência foi construída a partir da ex-
pansão do próprio conceito de religião, o que permitiu acomodar, de forma inclusiva, a to-
lerância ao direito de consciência quando inexistir interesse público que prescreva o seu
controle e a coação estatal. Sobre os paradoxos encontrados pela Suprema Corte em seu
propósito de definir, em termos amplos, um conceito constitucional de religião, consulte-
se GREENAWALT, Kent. Religion and the constitution: free exercise and fairness.
Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2006. v. 1, p. 125-9.
345
Sobre a regulamentação da reprodução humana assistida consulte-se a página da Ameri-
can Society for Reproductive Medicine (<www.asrm.org>). A Suprema Corte dos Estados
Unidos nunca chegou a apreciar o assunto da procriação no contexto da reprodução assis-
tida, mas no âmbito estadual a Suprema Corte do Estado de Tennessee julgou, em 1992, o
primeiro caso relativo à disposição dos embriões congelados. Com base nos precedentes
federais, sobretudo Griswold e Roe, a decisão foi no sentido de permitir que a escolha por
sua utilização, doação ou descarte seja feita pelo casal, de acordo com sua vontade mani-
festada prévia ou posteriormente ao procedimento reprodutivo (UNITED STATES. Su-
preme Court of Tennessee. Davis v. Davis, 842 S.W.2d 588 (1992). Disponível em:
<www.tncourts.gov>. Acesso em: 08 fev. 2014). As mesmas diretrizes foram, posterior-
mente, firmadas pela Suprema Corte do Estado de Iowa no caso In re Marriage of Witten,
(UNITED STATES. Supreme Court of Iowa. In: re Marriage of Witten, 672 N.W.2d 768
(2003). Disponível em: <www.iowacourts.gov/Supreme_Court>. Acesso em: 08 fev.
2014). Sobre a permissão do uso de células-tronco em pesquisas científicas, consulte-se as
informações fornecidas pelo Department of Health & Human Services – National Institu-
tes of Health. Disponível em: <http://stemcells.nih.gov>.
184 Teresinha Inês Teles Pires

ce elementos para arguir que as restrições ao aborto constituem uma classifi-


cação injusta, em relação aos interesses das mulheres, desatendendo os prin-
cípios da generalidade e do igual tratamento perante a lei.
Em regra, os requisitos da neutralidade e da generalidade da lei en-
contram-se intersectados, ou seja, a não satisfação do primeiro requisito é
uma forte evidência da não satisfação do segundo, em igual medida346. Além
disso, foi declarado no caso Cantwell v. Connecticut que a free exercise
clause, se conjugada com outras cláusulas de direitos fundamentais, pode
fornecer suporte para invalidar as leis que envolvam “ação religiosamente
motivada” (religiously motivated action), mesmo em se concluindo que são
neutras e genéricas347.
Propõe-se, assim, que a regulação do aborto desde o início da ges-
tação é ilegítima, à luz das cláusulas religiosas, enquanto categorias específi-
cas, e das cláusulas do devido processo legal substantivo e da igual proteção
perante a lei, enquanto categorias genéricas, todas expressamente previstas
no texto constitucional. A interpretação de tais preceitos, em conjunto, torna
possível acrescer aos fundamentos jurídicos adotados em Roe v. Wade as
premissas do secularismo, da neutralidade e da generalidade, na forma exi-
gida pela Primeira Emenda, eliminando a necessidade da remissão à doutrina
dos princípios constitucionais não enumerados348.
346
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Church of the Lukumi Babalu Aye
Inc. v. City of Hialeah, 508 U. S. 520 (1993). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 23 nov. 2013. p. 531.
347
Conforme ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Employment Div., Dept.
of Human Resources of Oregon v. Smith, 494 U.S. 872 (1990). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 881.
348
Reafirme-se, aqui, a concretude do argumento de Dworkin, citando-se a seguinte passa-
gem: “The First Amendment prohibits government from establishing any religion, and it
guarantees all citizens the free exercise of their own religion. The Fourteenth Amendment,
which incorporates the First Amendment, imposes the same prohibition and the same re-
sponsibility on the states. These provisions guarantee the right of procreative autonomy. I
do not mean that the First Amendment defense of that right is stronger than the due pro-
cess clause defense. On the contrary, the First Amendment defense is more complex and
less demonstrable as a matter of precedent. I take it up because it is, as I shall try to
show, a natural defense, because it illuminates an important dimension of the national
debate about abortion, and because the argument for it illustrates both the power and the
constraining force of the ideal of legal integrity”. Em tradução livre: “A Primeira Emenda
proíbe o governo de estabelecer qualquer religião, e garante a todos os cidadãos o livre
exercício da sua própria religião. A Décima Quarta Emenda, que incorpora a Primeira
Emenda, impõe a mesma proibição e a mesma responsabilidade sobre os estados. Estas
disposições garantem o direito de autonomia procriativa. Isso não quer dizer que a defe-
sa desse direito com base na Primeira Emenda seja mais forte do que sua defesa com ba-
se na cláusula do devido processo. Pelo contrário, sua defesa à luz da Primeira Emenda
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 185

Em suma, acredita-se, na esteira de Dworkin, que a maternidade bio-


lógica mandatória, consubstanciada na proibição do aborto, importa na ado-
ção, na esfera pública, de uma doutrina particular sobre o valor da vida poten-
cial, em violação à establishement clause. Acredita-se, ainda, que a proibição
do aborto transgride o direito das mulheres à autodeterminação procriativa, em
violação à free execise clause. A primeira questão foi suficientemente analisa-
da na presente seção. A segunda questão demanda uma investigação adicional
acerca da intersecção entre a liberdade de consciência laica e o conteúdo do
livre exercício da religião. É o que se tentará fazer a seguir.

4.2 O ENVOLVIMENTO DA LIBERDADE DE


CONSCIÊNCIA NO CONTEÚDO DA FREE EXERCISE
CLAUSE: LAICIDADE COMO PADRÃO PARA A
DEFINIÇÃO INDIVIDUAL DO SIGNIFICADO DA VIDA

A linguagem original utilizada pelos autores da Constituição na


elaboração das cláusulas religiosas da Primeira Emenda não se refere à cate-
goria da liberdade de consciência. Tal circunstância deu causa a uma contro-
vérsia histórica acerca de sua aplicabilidade à proteção das convicções mo-
rais de natureza secular. A questão é analisada na jurisprudência, nas instân-
cias políticas e nos círculos acadêmicos. Os estudos referentes ao debate
legislativo desenvolvido, quando da elaboração da Emenda, mostram que se
chegou a cogitar a utilização do termo “direitos de consciência” (rights of
conscience). Todavia, ao final, o texto aprovado singularizou, exclusivamen-
te, a proteção do “livre exercício da religião” (free exercise of religion) dei-
xando de fora a perspectiva de se atribuir, expressamente, o mesmo nível de
reconhecimento constitucional às motivações de consciência que não deri-
vam de nenhuma doutrina teísta particular349.

é mais complexa e menos demonstrável em matéria de precedentes. Eu a assumo porque


ela é, como tentarei mostrar, uma defesa natural, porque ela ilumina uma dimensão im-
portante do debate nacional sobre o aborto, e porque o argumento nela utilizado ilustra o
poder e a força mandatória do ideal da integridade do direito” (DWORKIN, Ronald.
Unenumereted rights: whether and how Roe should be overruled, 59 University of Chi-
cago Law Review 381, Winter 1992. p. 419; e Freedom’s law: the moral reading of the
American Constitution. Cambridge, Massachussets: Havard University Press, 1996. p.
105).
349
MCCONNELL, Michael W. The origins and historical understanding of free exercise
clause. In: The free exercise of religion clause (the first amendment): its constitutional
history and the contemporary debate. New York: Prometheus Books, 2008. p. 94-5.
186 Teresinha Inês Teles Pires

De fato, os constituintes orginários discutiram qual seria o termo


adequado para explicitar a liberdade de crença, se deveriam referir-se à ex-
pressão “direitos de consciência” ou, simplesmente, “livre exercício da reli-
gião”. Segundo Martha Nussbaum, os legisladores, provavelmente, não opta-
ram pela primeira expressão em decorrência de sua não utilização nos docu-
mentos oficiais daquele tempo, chegando à conclusão de que “exercise”
(“exercício”) era a palavra que precisavam para firmar a proteção tanto das
práticas religiosas quanto das crenças pessoais em geral. A partir daí, os
constituintes podem ter escolhido o termo “religião” sem vislumbrar uma
noção precisa sobre o significado específico dos valores espirituais e filosó-
ficos e suas distinções conceituais350. É importante que o entendimento então
adotado seja situado no contexto histórico-político, e até linguístico, no qual
a Emenda foi escrita.
Ademais, não é razoável direcionar a interpretação dos direitos
fundamentais por uma visão estanque, do ponto de vista da linguagem literal
dos formuladores da Constituição. O sentido atual do texto não se restringe
meramente àquilo que os termos então escolhidos designavam ao tempo em
que foi escrito. Em relação às palavras “consciência” e “religião”, se apre-
sentavam ideias equivalentes à época da redação da Primeira Emenda, na
linguagem contemporânea, ao contrário, expressam signos diferenciados,
cuja unicidade nem sempre é compreendida adequadamente351. Observe-se
350
NUSSBAUM, Martha C. Liberty of conscience: in defense of american’s tradition of
religious equality. New York: Basic Books, 2008. p. 102.
351
Ibidem, p. 100. Assumindo a mesma visão, DOUGLAS, Laicock. Sex, atheism and the
free exercise of religion. 88 University of Detroit Mercy Law Review 407, Spring 2011.
p. 923, afirma que a tarefa do intérprete não é congelar os aspectos obscuros não especifi-
cados pelos autores da Constituição, mas efetivar suas preocupações nos novos contextos
da formação social. Sobre a unicidade entre a proteção das crenças e da conduta na pers-
pectiva original da liberdade de religião, ver, ainda, HALL, Timothy L. Roger Williams
and the foundations of religious liberty. 71 Boston University Law Review 455, May
1991. p. 497-501. Saliente-se que Roger Williams é considerado uma das maiores refe-
rências históricas no debate contemporâneo sobre a compreensão original das cláusulas
religiosas da Primeira Emenda, além de ser um dos formuladores, juntamente com Tho-
mas Jefferson, da tese da separação entre igreja e estado na América. Recomende-se, ain-
da, a leitura do artigo citado por último, p. 513-23, onde o autor expõe as raízes teóricas
das cláusulas religiosas no contexto do conflito entre as três tradições culturais em tensão
à época: o puritanismo teológico Inglês (século XVII), o protestantismo evangélico (sécu-
lo XVII) e o humanismo racionalista (século XVIII). O contexto histórico e ideológico
desse tempo é também analisado por WITTE JR., John. The essential rights and liberties
of religion in the american constitutional experiment. In: The free exercise of religion
clause (the first amendment): its constitutional history and the contemporary debate.
New York: Prometheus Books, 2008. p. 34-39; KURLAND, Philip B. Religion and the
law: of church and state and the Supreme Court. New Brunswick/U.S. e London/U.K.:
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 187

que a necessidade de se aperfeiçoar, nos tempos atuais, o significado da li-


berdade de consciência decorreu da tendência equivocada, comum na prática
jurídica em um momento inicial, de se restringir a proteção constitucional da
liberdade religiosa às crenças divinas, com a exclusão das convicções laicas.
Como se mostrou antes, na visão de Dworkin, as categorias da liberdade de
consciência e da liberdade de religião possuem conteúdo intercambiáveis, eis
que a religiosidade, na forma concebida pela Primeira Emenda, envolve os
princípios ético-filosóficos.
Não se irá adentrar na investigação sobre as divergências doutriná-
rias pertinentes às vertentes originalistas e não originalistas no tocante à
interpretação constitucional. Mas é bom enfatizar que a perspectiva deste
estudo está vinculada à defesa de um constitucionalismo evolutivo, alicerça-
do na transposição do conteúdo dos preceitos fundamentais para as circuns-
tâncias concretas e as necessidades sociais, em constante transformação. A
interpretação principiológica não importa em negar o texto original, mas
antes em adequá-lo às expectativas atuais de sua aplicação352. A compreen-
são das cláusulas religiosas, particularmente, não deve se manter sob a mol-
dura rígida das visões pontuais que levaram à promulgação da Primeira
Emenda, haja vista que atualmente a rejeição majoritária dos credos alterna-
tivos, não cristãos, bem como do agnosticismo e do ateísmo, adquiriu pro-
porções inimagináveis naquele tempo353.

Aldine Transaction: a Division of Transaction Publishers, 2009. p. 840-860; RICHARDS,


David A. J. Toleration and the Constitution. New York/Oxford: Oxford University
Press, 1986. p. 104-128; TRIBE, Laurence H. American constitutional law. 2. ed. Mine-
ola/NY: The Fundation Press, Inc., 1988. p. 1155-1166.
352
Como bem esclarecem POST, Robert C.; SIEGEL, Reva B. Democratic constitutionalism,
in The Constitution in 2020. Oxford/New York: Oxford University Press, 2009. p. 25-8,
30 e 32, o apelo ao originalismo cresceu a partir do início do governo Ronald Reagan, in-
tegrando um movimento conservador calcado na proposição de uma atuação jurisdicional
minimalista. Explicam os autores que essa vertente não corresponde aos ideais da maioria
dos americanos, que situam na Constituição a autoridade da lei e a distinguem da política.
Também JOHNSEN, Dawn E. A progressive reproductive rights agenda for 2020. In: The
Constitution in 2020. Oxford/New York: Oxford University Press, 2009. p. 257-60, ex-
plicita a campanha desenvolvida pelo governo Reagan em prol do enaltecimento da inter-
pretação originalista da Constituição, direcionada ao propósito político de avançar os va-
lores adotados pelo partido republicano. Para maior conhecimento acerca do criticismo à
doutrina originalista, consulte-se, ainda, BALKIN, Jack M. Abortion and original mea-
ning. Constitutional commentary. v. 24:291, n. 101, 2007; Yale Law School, Public
Law Working Paper n. 128. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=925558>. Acesso
em: 13 abr. 2014. p. 295-311; DOUGLAS, Laicock. Non preferencial aid to religion: a
false claim about original intent, 27 William and Mary Law Review 875, 1985/1986. p.
879-894.
353
STEVENS, John Paul. The bill of rights: a century of progress. 59 University of Chicago
Law Review 13, Winter 1992. p. 29.
188 Teresinha Inês Teles Pires

Comentar-se-á, de início, de forma suscinta, um caso julgado em


1879, Reynolds v. United States, no qual a Suprema Corte teve a primeira
oportunidade de balizar a problemática das exceções religiosas. Foi declara-
do, na decisão, que os praticantes de religiões poligâmicas não estão autori-
zados a descumprir as leis em razão de suas crenças. A Corte percebeu que a
exceção, se concedida, introduziria um componente adicional à lei penal,
criando duas situações díspares: aqueles que professam determinadas religiões
seriam isentados das penas imputadas à prática da conduta, e as demais pes-
soas seriam, nas mesmas circunstâncias, consideradas culpadas. A concep-
ção originalista foi inteiramente afastada neste caso, através do entendimento
de que a lei deve ser operacionalizada de forma equânime, não se justifican-
do o favoritismo a uma concepção moral específica354.
De um modo geral, a Suprema Corte, com a contribuição de
apontamentos doutrinários, começou a traçar critérios para se aceitar ou
não a primazia do pensamento religioso em relação ao pensamento secu-
lar, tendo em vista que a sociedade adquiriu, sobretudo a partir do século
XX, um perfil pluralista em matéria de convicções morais, nem sempre
fidelizadas à cartilha de uma dogmática religiosa específica. Segundo
Nadia Sawicki, tal mudança de paradigma atribuiu uma nova roupagem à
liberdade de consciência, que deixou de ser necessariamente identificada à
dimensão teológica355.

354
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Reynolds v. United States, 98 U.S.
145 (1878). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014, con-
forme BERG, Thomas C. Introductory essay. In: The free exercise of religion clause
(the first amendment): its constitutional history and the contemporary debate. New
York: Prometheus Books, 2008. p. 59. TRIBE, Laurence H. American constitutional
law. 2. ed. Mineola/NY: The Fundation Press, Inc., 1988. p. 1271-2, coloca sob suspeição
a necessidade de promover o modelo monogâmico de casamento, que não configura, para
o autor, um “interesse convincente” (compelling Interest) do governo. Não é o caso de se
discutir aqui as implicações da proibição da poligamia à luz da establishement clause, im-
portando antes destacar a direção apontada pela Suprema Corte no que concerne ao trata-
mento a ser conferido aos objetores de consciência por motivos religiosos, motivos esses
que, conforme então assentado, não recebem proteção especial em comparação às visões
laicas. A solidificação da equivalência entre todas as espécies de convicções religiosas, na
acepção de Dworkin (teísmo e secularismo), é o que se introduz de importante, conforme
isso possa ser interpretado como uma diretriz aplicável à análise da constitucionalidade
das medidas políticas de controle da decisão da mulher de interromper ou não a gestação.
355
SAWICKI, Nadia M. The hollow promise of freedom of conscience, 33 Cardozo Law
Review 1389, April 2012. p. 1397. No mesmo sentido, vale transcrever as palavras de
CUOMO, Mário. Religion on the Stump: Politics and Faith in America. Pew Research:
Religion & Public Life Project, 2002. Disponível em: <www.pewforum.org>. Acesso
em: 02 mar. 2014: “The word religion has been defined by the Supreme Court quite clear-
ly to include belief systems like secular humanism, Buddhism, ethical culture, belief sys-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 189

Veja-se que, nesta visão, o termo “consciência” engloba a adoção


tanto das doutrinas teístas quanto das não teístas, sendo o pensamento religio-
so, em sua conotação tradicional, uma especificação do pensamento moral.
O percurso da jurisprudência reconstruiu o conteúdo da free exercise clause,
que adquiriu o estatuto de uma categoria constitucional derivada, de forma
imediata, do princípio primário da liberdade de consciência, em uma acep-
ção filosófica, estando inexoravelmente vinculada a ele356. A partir daí, é
possível afirmar que a proteção da “zona” psíquica da moralidade individual
envolve a liberdade de crença religiosa e de consciência ética, as quais com-
põem a esfera denominada por Dworkin de “eticidade”.
A proteção da liberdade de consciência, independentemente de sua
vinculação a dogmas religiosos, foi pincelada no caso U. S. v. Macintosh,
tendo o juiz Hughes acentuado, então, que se trata de um direito de natureza
constitucional que por si mesmo exige respeito por parte dos legisladores.
Como declarado na respectiva decisão, não há razão para provocar atritos
prescindíveis com os desígnios da consciência individual357. No entanto, não
foi possível, neste julgamento, balizar as dificuldades posteriormente encon-
tradas na composição social entre as demandas dos grupos religiosos e os
requisitos das doutrinas laicas. O que foi feito, em um primeiro momento, no
caso Prince v. Massachussets, em que a Corte rejeitou a aplicação da exce-
ção religiosa prevista na free exercise clause. Sopesou-se que a autoridade

tems, which, in general, reject the notion of God”. Tradução livre: “A palavra religião
tem sido definida claramente pela Suprema Corte para incluir sistemas de crenças como
o humanismo secular, o Budismo, a cultura ética, sistemas de crenças, que, em geral, re-
jeitam a noção de Deus”. Como explicado, ainda, por ASHE, Marie. Womens’s wrongs,
religions’ rights: women, free exercise, and establishement in American Law. 21 Temple
Political & Civil Righs Law Review 163, Fall 2011. p. 182-5, a Suprema Corte teve uma
participação crucial no crescimento do pluralismo moral como elemento integrante da cul-
tura do país, principalmente no período compreendido entre as décadas de 1940 a 1990,
no qual foi proferida a maioria das decisões que, através da extensão da free exercise
clause às correntes não religiosas, limitaram significativamente a especial garantia das
crenças teológico-cristãs.
356
WITTE JR., John. The essential rights and liberties of religion in the american constitu-
tional experiment. In: The free exercise of religion clause (the first amendment): its
constitutional history and the contemporary debate. New York: Prometheus Books, 2008.
p. 42-3. Igualmente, na linguagem de RICHARDS, David A. J. Toleration and the Consti-
tution. New York/Oxford: Oxford University Press, 1986. p. 133-4, o livre exercício da
religião envolve vários sentidos de liberdade, desde a sua concepção negativa até a ideia
de autocondução da própria vida. A liberdade de consciência, assim entendida, representa
a supremacia da razão prática no tocante ao pleno exercício das duas capacidades morais
básicas: “racionalidade e razoabilidade” (rationality and reasonableness).
357
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. U. S. v. Macintosh, 283 U. S. 605
(1931). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 08 out. 2013. p. 634.
190 Teresinha Inês Teles Pires

parental, assunto em questão, pode ser restringida pelo estado para o bem-
-estar dos filhos menores, não importando se a regra legal criada nesse senti-
do é violada por motivos de crença religiosa ou por motivos seculares358. O
decreto diz, sem qualquer dubiedade, não haver justificativa para se conce-
der tratamento especial à consciência religiosa “em circunstâncias nas quais
arguições seculares assemelhadas seriam rejeitadas”359.
Oito anos depois, em Zorach v. Clauson, a compreensão da neutra-
lidade das leis, imposta pela Primeira Emenda, foi adensada, afirmando-se
que se trata de uma exigência aplicável tanto à não discriminação entre as
distintas crenças quanto à contraposição entre religião e secularismo360. Pos-
teriomente, no caso Torcaso v. Watkins, a Suprema Corte destacou sua preo-
cupação com a não coerção coletiva sobre a liberdade de pensamento laico.
Ao manifestar a opinião majoritária, o juiz Black afirmou que o governo não
pode validar as leis que contenham exigências desvantajosas para os não
crentes, auxiliando a opressão das ideologias independentes por parte das
religiões, entendendo-se que aquelas ideologias incluem qualquer conjunto
unitário de valores alicerçados em uma base filosófica originária. Do mesmo
modo, prossegue Black, o governo não pode endossar, em suas políticas, as
doutrinas teístas, em prejuízo ao exercício de outras crenças361.
Seguindo a linha dos precedentes mencionados, a decisão em um
novo caso, Engel v. Vitale, reafirmou a inclusão do pensamento laico no
requisito da neutralidade das leis, sob o enfoque da liberdade religiosa da
Primeira Emenda, o que foi corroborado pela manifestação do juiz Douglas,
358
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Prince v. Massachussets, 321 U. S.
158 (1944). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 08 out. 2013. O caso
apreciou conduta praticada por Testemunha de Jeová, que permitiu uma criança, sob
sua custódia, vender revistas religiosas nas ruas, contrariando as regras proibitivas do
trabalho de menores. Em seu apelo, a autora do ato sustentou que a criança estava
sendo preparada para tornar-se membro da Igreja e que teria que pregar a doutrina e
divulgar as revistas porque foi assim ordenada por Deus, razão pela qual o estado não
teria poderes para intervir.
359
MARSHALL, William P. What is the matter with equality? An assessement of the equal
treatment of religion and nonreligion in the first amendment jurisprudence. 75 Indiana
Law Journal 193, Winter 2000. p. 197. No original: “in circumstances where similar
claims by nonreligious claimants would have been denied”.
360
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Zorach v. Clauson, 343 U.S. 306
(1952). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014, conforme
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Engel v. Vitale, 370 U. S. 421
(1962). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014, 12 (U.S.,
2006).
361
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Torcaso v. Watkins, 367 U.S. 488
(1961). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 495.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 191

concorrente. Em suas palavras, a rationale da Emenda reside na ideia de que


“o ateísta ou agnóstico – o não crente – tem o direito de seguir o seu pró-
prio caminho”362. Neste caso, a linguagem tornou-se mais enfática através da
menção expressa às ideologias não teístas. Mais adiante, a Suprema Corte
reforçou, no caso Wallace v. Jaffree, a conclusão de que a liberdade de cons-
ciência da Primeira Emenda envolve a prerrogativa individual de se adotar,
na condução da própria vida, qualquer ortodoxia metafísica ou de não se
adotar nenhuma delas363.
Em rigor, se o significado da free exercise clause fosse interpreta-
do de forma estreita, sem incluir a moralidade laica, sua importância no es-
quema da Bill of Rights seria reduzida. Com efeito, as ideologias religiosas
já estariam protegidas pela cláusula da liberdade de expressão. E, no que
concerne à discriminação, por motivos religiosos, sua proibição encontraria
suporte na equal protection clause. Diante da diversidade de crenças e valo-
res existenciais, a razão para atribuir atenção especial às crenças religiosas,
bem situada no século XVIII, perdeu seu sentido, tornando-se até mesmo
indefensável o estabelecimento de “exceções” ao cumprimento da lei por
motivo de fé364.
Por outro lado, se se entende que a free exercise clause tem um
significado mais amplo, a ação do governo, nesta seara, requer a existência
de objetivos importantes de ordem pública. Ao contrário do afirmado pelo
juiz Scalia, em City of Borne v. Flores, a acomodação dos direitos de consci-
ência não é algo apenas “moralmente desejável” (morally desirable), mas,
sobretudo, “constitucionalmente exigido” (constitutionally required)365.

362
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Engel v. Vitale, 370 U. S. 421
(1962). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 443. No
original: “the atheist or agnostic—the nonbeliever—is entitled to go his own way”.
363
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Wallace v. Jaffree, 472 U.S. 38
(1985). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 52-3,
conforme STEVENS, John Paul. The bill of rights: a century of progress. 59 University
of Chicago Law Review 13, Winter 1992. p. 29-30.
364
DOUGLAS, Laicock. Sex, atheism and the free exercise of religion. 88 University of
Detroit Mercy Law Review 407, Spring 2011. p. 423-4 e 431. No mesmo sentido, LEI-
TER, Brian. Why tolerate religion? 25 Constitucional Comentary 1, Spring 2008. p. 12-
27; CONCKLE, Daniel O. Religious truth, pluralism and secularization: the shaking
foundations of american religious liberty. 32 Cardozo Law Review 1755, May 2011,
passim; PEPPER, Stephen. Taking the free exercise clause seriously: can it mean so
much? Can it mean so little? In: The free exercise of religion clause (the first amend-
ment): its constitutional history and the contemporary debate. New York: Prometheus
Books, 2008. p. 49-54.
365
MCCONNELL, Michael W. Freedom from persecution or protection of the rights of
conscience? A critique of justice scalia’s historical arguments in City of Borne v. Flores.
192 Teresinha Inês Teles Pires

Ainda assim, observa-se grande dificuldade na inclusão das cláusu-


las religiosas na discussão sobre o direito ao aborto, em função da concepção
de que a liberdade de autodeterminação veiculada pela Primeira Emenda se
refere, exclusivamente, ao exercício das crenças e condutas impostas por
doutrinas teístas. O problema todo está em tentar posicionar a aplicação da
free exercise clause fora do contexto das exceções ao cumprimento da lei
por motivos religiosos, na perspectiva de garantir a liberdade de consciência
enquanto categoria constitucional limitativa da validade em si das restrições
legislativas. Pode-se dizer que se a free exercise clause significa alguma
coisa, e se ainda há justificativa para garanti-la, ela deve direcionar-se, pri-
mordialmente, à proibição da exclusão das visões seculares do processo de
acomodação das diversas concepções de moralidade pessoal. Quer dizer, se
essa cláusula é, ainda nos dias de hoje, indispensável, isso se deve à necessi-
dade de restringir a interferência das doutrinas majoritárias na formulação
das regras políticas que versem sobre questões de direitos fundamentais366.
Vale, aqui, observar o referencial de Dworkin na definição da cate-
goria dos direitos morais, cuja abordagem resulta na especificação de direi-
tos fundamentais que possam ser arguidos contra o Estado e contra as maio-
rias políticas. A intersecção entre o significado substantivo da liberdade de
exercício da autonomia da consciência e a dimensão dos direitos morais,
conforme se propôs no primeiro capítulo da obra, representa ponto de articu-
lação útil do ponto de vista do raciocínio hermenêutico.
É oportuno enfatizar, igualmente, o pensamento de Rawls, segundo
o qual a faculdade de escolher uma concepção do bem (um dos poderes mo-
rais do ser humano) tem sua centralidade na liberdade de consciência, en-
quanto um princípio que se aplica às doutrinas morais, religiosas e filosófi-
cas. Não é, portanto, aceitável conceder menor grau de liberdade de consci-
ência às pessoas que adotam visões minoritárias, razão pela qual maiores
garantias constitucionais precisam ser oferecidas contra os atos públicos que
possam violar o exercício dessa liberdade em igualdade de condições367.
Nos casos relacionados à contracepção e ao aborto, desde Griswold
até Roe, a questão da moralidade individual perpassou as entrelinhas das

39 William and Mary Law Review 819, February 1998. p. 832 e 836-7; City of Borne
v. Flores, 501 U.S. 507 (1997). p. 541.
366
BERG, Thomas C. Introductory essay, in The free exercise of religion clause (the first
amendment): its constitutional history and the contemporary debate. New York: Prome-
theus Books, 2008. p. 30.
367
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 310-11 e 337.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 193

decisões da Suprema Corte. Em Einsenstadt v. Baird, especialmente, foi


declarado que as leis que restringem o acesso ao controle de natalidade ter-
minam favorecendo a moralidade convencional através da regulação da vida
privada das pessoas. Enfatizou-se que a contracepção não é imoral, mas sim
um direito que firma uma prerrogativa contra a ingerência do governo nos
assuntos concernentes ao planejamento reprodutivo, em face do seu caráter
fundamental no âmbito do direcionamento da vida individual368.
Como bem colocado pelo juiz Brennan, em Eisenstadt v. Baird, o
significado último da privacidade reside no direito individual de estar isento
do controle público sobre as decisões relacionadas ao planejamento do pro-
cesso reprodutivo, que, no seu entendimento, afetam sobremaneira a vida da
pessoa369. Aqui se pode defender que a composição entre a liberdade de
consciência, em sentido englobante, e o padrão secular de constitucionalismo
representa uma direção correta para a imposição de limites à intervenção do
governo na conduta individual em geral e no planejamento reprodutivo em
particular.
No caso Roe v. Wade, o conceito de autonomia moral integrou a
argumentação adotada para justificar o direito ao aborto. A relação entre a
privacidade e o debate acerca do valor constitucional da vida pré-natal mos-
tra que a liberdade da mulher de interromper a gestação remete a um sentido
particular de vida privada, não centrado exclusivamente nas relações conju-
gais e familiares, mas no caráter íntimo dos desígnios da consciência indivi-
dual. A recusa dos juízes de delinear o momento a partir do qual a vida tem
368
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Einsenstadt v. Baird, 405 U.S. 438
(1972). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. p. 442 e
452-3.
369
Ibidem, p. 453. Igualmente, no magistério de DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the
moral reading of the American Constitution. Cambridge, Massachussets: Havard Univer-
sity Press, 1996. p. 50-1: “The Court‘s previous privacy decisions can be justified only on
the assumption that decisions affecting marriage and childbirth are so important, so inti-
mate and personal, so crucial to the development of personality and sense of moral re-
sponsibility, and so closely tied to religious and ethical convictions protected by the
First Amendment, that people must be allowed to make these decisions for themselves,
consulting their own conscience, rather than allowing society to thrust its collective d e-
cision on them‖. Em tradução livre: “As decisões prévias da Corte, em matéria de pri-
vacidade, somente podem ser justificadas sob a assunção de que as decisões que afetam
o casamento e o nascimento da criança são tão importantes, tão íntimas e pessoais, tão
cruciais ao desenvolvimento da personalidade e do senso de responsabilidade moral, e
tão proximamente vinculadas às convicções éticas e religiosas protegidas pela Primei-
ra Emenda, que se deve permitir às pessoas tomar essas decisões para si mesmas, con-
sultando sua própria consciência, no lugar de permitir à sociedade impor suas decisões
coletivas sobre elas”.
194 Teresinha Inês Teles Pires

início se sustenta no comando da establishement clause, na compreensão


nela contida de que a questão é de natureza “ética”, não sendo, portanto,
resolúvel, de forma unitária, se forem utilizados, exclusivamente, raciocínios
seculares e pautados em motivações públicas370. Dessume-se da decisão Roe
v. Wade que o aborto deve ser tratado enquanto um assunto a ser definido
com fundamento nas convicções de consciência do indivíduo, pois a visão
particular sobre sua admissibilidade é composta por valores filosóficos e
religiosos, ou seja, por códigos morais pessoais371. Sob este prisma, o anta-
gonismo entre o valor da vida potencial e a autonomia decisória da gestante
não poderia ser completamente resolvido, no contexto norte-americano, sem
uma leitura da Primeira Emenda que englobe o significado abrangente da
garantia das duas cláusulas religiosas.
No caso Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Ca-
sey, a Corte proporcionou uma visão progressiva acerca da autonomia
procriativa, à luz da Décima Quarta Emenda, ao enfatizar que em seu
cerne se encontra o direito de autodeterminação no tocante aos aspectos
existenciais da vida humana. Foi reconhecido que a decisão de interrom-
per ou não a gestação tem origem na interioridade da consciência e das
crenças pessoais. É claro que, conforme então destacado, o aborto é um
ato singular, que vai além das especulações filosófico-morais, por impli-
car em consequências para a vida da própria gestante, dos profissionais
que lhe dão assistência e dos seus familiares. Ademais, o ato produz con-
sequências para a sociedade, já que muitos consideram que o procedi-
mento abortivo representa a destruição violenta da vida humana incipiente
e, como tal, incapaz de se defender372.
À parte a dimensão do balizamento dos interesses envolvidos, os
elementos conceituais introduzidos em todos esses argumentos permitem
370
MURRAY, Justin. Exposing the underground establishement clause in the Supreme
Court’s abortion cases. 23 Regent University Law Review 1, 2010-2011. p. 23-4.
371
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 160 e 116, con-
forme mencionado por MURRAY, Justin. Exposing the underground establishement
clause in the Supreme Court’s abortion cases. 23 Regent University Law Review 1,
2010-2011. p. 26.
372
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. p. 851-2. Para DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral
reading of the American Constitution. Cambridge, Massachussets: Havard University
Press, 1996. p. 42 e 120-1, a decisão em Casey, embora restrinja o acesso ao aborto, in-
corpora uma explícita adoção de sua leitura moral da Constituição. Voltar-se-á a essa
decisão adiante.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 195

concluir que a privacidade, no âmbito reprodutivo, é uma designação dife-


renciada que se confere à compreensão da intimidade dos valores morais
pessoais, sejam eles expressos em linguagem religiosa ou filosófica. No fun-
do, a proteção da autonomia da consciência é um consectário lógico dos
direitos conferidos pela Primeira Emenda373.
A visão particular de qualquer indivíduo sobre o aborto está conec-
tada à sua perspectiva sistêmica de moralidade, o que pode envolver ou não
crenças religiosas374. Em outros termos, a moldura axiológica que cada pes-
soa constrói para si mesma, centrada em suas experiências de vida, é deter-
minante na opinião que se tem acerca da moralidade do aborto. Por tal razão,
a proibição de sua prática, sem levar em conta as peculiaridades da evolução
fetal, é inconsistente e arbitrária, do ponto de vista moral375. Criar empeci-
lhos para a interrupção voluntária da gestação viola o igual respeito, que
deve ser assegurado, à capacidade de exercício dos poderes morais individuais.
A finalidade normativa da free exercise clause é fazer com que o Estado
respeite cada pessoa enquanto uma “fonte independente de valores” (inde-
pendent source of values), não se justificando, à luz do direito de consciên-
cia, o não reconhecimento das visões sedimentadas em crenças não cristãs
ou no humanismo secular376. Quando a coerção do Estado sobre o sistema
pessoal de valores morais não atende um propósito secular, o livre exercício
da liberdade religiosa, em uma dimensão expandida, está sendo negado.
O aborto é uma questão essencialmente de alicerce moral-
-filosófico, portanto, a análise de sua admissibilidade constitucional não
pode estar desconectada do significado da free exercise clause. Aceitando-se
a interpretação segundo a qual a sobreposição dos valores religiosos majori-
tários em relação à racionalidade laica não se compatibiliza com o modelo
do pluralismo democrático, acomodar as duas perspectivas, a do grupo pro-
life (pró-vida) e a do grupo pro-choice (pró-escolha), é uma imposição deri-
vada do princípio da liberdade de consciência. Na Constituição norte-
373
SIMMONS, Paul D. Casey, Bray and beyond: religious liberty and the abortion debate. 13
Saint Louis University Public Law Review, 467, 1993. p. 481.
374
MURRAY, Justin. Exposing the underground establishement clause in the Supreme
Court’s abortion cases. 23 Regent University Law Review 1, 2010-2011. p. 49.
375
MCCONNELL, Michael W. The origins and historical understanding of free exercise
clause. In: The free exercise of religion clause (the first amendment): its constitutional
history and the contemporary debate. New York: Prometheus Books, 2008. p. 95. Ver
também, LEITER, Brian. Why tolerate religion? 25 Constitucional Comentary 1, Spring
2008. p. 14.
376
RICHARDS, David A. J. Toleration and the Constitution. New York/Oxford: Oxford
University Press, 1986. p. 136-8 e 142.
196 Teresinha Inês Teles Pires

americana, a expressão desta liberdade está implicada na free exercise clau-


se. Só resta um passo argumentativo para se levar a sério a presente aborda-
gem: tomar como fundamento da ideia de “livre exercício” da consciência a
autonomia moral e não os valores místico-religiosos. Como destacado por
Dawn Johnson, é preciso que se vislumbre a necessidade da inclusão da ca-
tegoria da liberdade de consciência na agenda progressista em defesa dos
direitos reprodutivos377.
A leitura das cláusulas da liberdade religiosa a partir do princípio
da autonomia moral é defendida, com afinco, por Martha Nussbaum, segun-
do a qual a free exercise clause envolve a proteção tanto das práticas religio-
sas quanto das crenças, incorporando, embora com um conteúdo vago, os
“direitos de consciência”. Todos possuem prerrogativas morais ou religiosas
que merecem o mesmo respeito, sejam elas compreendidas como emanações
da consciência, do espírito, ou, ainda, como expressões da dignidade huma-
na378. É possível, assim, estabelecer, à luz da free exercise clause, a equipa-
ração entre a garantia da liberdade de crença e da liberdade de consciência
moral, à luz do princípio da acomodação das convicções morais minoritárias.
Este princípio é identificado por Nussbaum na qualidade de um preceito
político fundante da tradição religiosa americana, marcadamente caracteriza-
da pela tolerância às diferenças. Em um mundo ditado pelo majoritarianis-
mo, essa é a base para a concretização igualitária da free exercise clause379.
É intuitivo perceber que a equiparação da moralidade eminente-
mente religiosa à moralidade secular, enquanto visões merecedoras da mes-
ma proteção legal, pode produzir atritos, na esfera pública, entre grupos de
pessoas que acreditam, inexoravelmente, em uma ou outra concepção. William
Marshall mostra bem as dificuldades de se lidar com a acomodação dessas
liberdades na regulamentação das exceções religiosas ao cumprimento das
leis. Nesse campo, claramente a deferência especial ao exercício das crenças
religiosas antagoniza com a afirmação do paradigma secular. Como susten-
tado por Marshall, admitir exclusivamente exceções motivadas por crenças
religiosas promove uma classificação vantajosa para o “livre exercício” de
determinadas crenças, deixando à margem das garantias individuais a liber-
377
JOHNSEN, Dawn E. A progressive reproductive rights agenda for 2020. In: The Consti-
tution in 2020. Oxford/New York: Oxford University Press, 2009. p. 258.
378
NUSSBAUM, Martha C. Liberty of conscience: in defense of american’s tradition of reli-
gious equality. New York: Basic Books, 2008. p. 52 e 101; no mesmo sentido, DICKENS,
Bernard M. The right to conscience. In: Abortion law in transnational perspective.
Pennsylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 211 e 214.
379
DAY, David S. Some reflexions on modern free exercise doctrine: a review essay. 55
South Dakota Law Review 498, 2010. p. 499 e 501.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 197

dade de não seguir e de não se conduzir por nenhuma religião. Essa é a pro-
blemática central das restrições ao aborto, a sobreposição das visões religio-
sas cristãs, em relação às demais visões, explicitamente convertida em um
favorecimento normativo, produzindo o rompimento com o paradigma da
igualdade em matéria de dignidade e de pluralidade ideológica380.
No plano da jurisdição estadual e distrital, a compreensão sobre o
assunto também se apoia, em regra, na não especificidade da religião em
comparação com as idelogias laicas. A Corte de Apelação do Distrito de
Columbia, no julgamento do caso Washington Ethical Society v. District of
Columbia, esclareceu que os termos “religião” e “religioso” não correspon-
dem a ideias rígidas e não estão isentos de ambivalências. Incluem, em seu
significado cultural, não só o cristianismo, mas também outras visões sobre-
naturais e a noção de lealdade a valores alternativos nutridos no plano da
consciência381. Com maior ênfase, a Corte Distrital de Apelação da Califór-
nia, no caso Fellowship of Humanity v. Alameda County, sustentou a aplica-
ção do significado da palavra “religião” às questões vinculadas à consciência
moral. O parâmetro adequado, segundo então acentuado, consiste na preser-
vação da liberdade de consciência e de crença não apenas para os seguidores
de doutrinas teístas382.
Ressalte-se que a moralidade laica, em tal compreensão, passaria a
integrar igualmente a proteção da establishement clause, já que o governo
não poderia favorecer em suas políticas os valores religiosos, e reduzir o
espaço do pensamento secular. Lembre-se de que o objetivo da establishe-
ment clause é reparar as dissimilaridades entre o peso e a influência de gru-
380
MARSHALL, William P. In defense of smith and free exercise revisionism, 58 Universi-
ty of Chicago Law Review 308, Winter 1991. p. 312-13 e 320. É oportuno esclarecer que
o autor considera corretos os limites firmados em Smith I e II para a aceitação da recusa
de consciência por motivos religiosos. Sua crítica, no artigo citado, aplica-se somente ao
tema das exceções à imposição do comando legal. Não se busca, neste estudo, analisar a
aplicação da free exercise clause às práticas religiosas, mas se busca, no que se comporta
nos propósitos da pesquisa, chamar a atenção para a preocupação com a garantia da liber-
dade genérica de consciência. Assim, assume-se o parâmetro do pluralismo laico, pelo qual
se justifica tanto uma visão restrita no âmbito da regulação da objeção de consciência, ampa-
rada na interpretação de Marshall, quanto a ampliação do significado da liberdade de reli-
gião para integrar em seu conteúdo o direito à não interferência do pensamento religioso, no
tocante às decisões reprodutivas que envolvam a definição do valor da vida potencial.
381
UNITED STATES COURT OF APPEALS. District of Columbia Circuit. Washington
Ethical Society v. District of Columbia, 249 F.2d 127 (1957). Disponível em:
<https://www.cadc.uscourts.gov/>. Acesso em: 08 fev. 2014. p. 373.
382
UNITED STATES DISTRICT COURT OF APPEAL. First District, Division 1, Califor-
nia. Fellowship of Humanity v. Alameda County, 153 Cal.App.2d 673 (1957). Disponí-
vel em: <www.courts.ca.gov>. Acesso em: 08 fev. 2014. p. 402.
198 Teresinha Inês Teles Pires

pos específicos, representantes de ideologias próprias, no âmbito da esfera


pública. O propósito desta cláusula é criar uma situação de igualdade políti-
ca, equiparando o status e a dignidade de todos os cidadãos383.
É coerente postular que a free exercise clause expressa genuina-
mente, em matéria religiosa, a categoria da liberdade, daí porque o envolvi-
mento da autonomia moral na proteção da Primeira Emenda deve ser media-
tizado pelo significado abrangente e genérico da liberdade. No tocante ao
aborto, a due process clause continua sendo uma premissa constitucional
fundamental, visão também pertinente no padrão da free exercise clause em
razão da ideia primeira que está em sua base, ou seja, proteger a liberdade de
ação. Por outro lado, os requisitos da equal protection clause, veiculados
pela establishement clause, dão estrutura sólida à limitação do poder gover-
namental na regulamentação do planejamento reprodutivo, na medida em
que permite interpretar a proibição do aborto como sendo potencialmente
violadora do direito ao igual reconhecimento da liberdade de consciência384.
A principal inferência a ser extraída da visão de Dworkin a respeito
da dignidade humana consiste na percepção de que a Ética não se separa da
Moral Política e do Direito porque os princípios da autenticidade e do respei-
to próprio se implicam mutuamente. Na mesma direção, o direito ao aborto
pode ser justificado como um direito implicitamente incluído no conteúdo
das duas cláusulas da liberdade religiosa, pressupondo-se que se trata de uma
383
NUSSBAUM, Martha C. Liberty of conscience: in defense of american’s tradition of
religious equality. New York: Basic Books, 2008. p. 86 e 91.
384
É bom esclarecer que o argumento de Martha Nussbaum, na obra acima citada, Liberty of
conscience: in defense of american’s tradition of religious equality, adota a perspectiva
exclusiva da equal protection clause na interpretação seja da free exercise clause, seja da
establishement clause. Esta é a estrutura da sua teoria que perpassa toda a obra. Sobretudo
na conclusão, parte final, sua preocupação com a equiparação entre convicções majoritá-
rias e minoritárias é claramente explicitada. Entretanto, a divergência que se pode identi-
ficar entre a abordagem da autora e a que se apresenta neste trabalho é meramente concei-
tual, e em nada interfere na aceitação de suas principais sugestões. É necessário, apenas,
assentar que a proteção da free exercise clause não deve estar centrada somente na equal
protection clause. Conforme afirmado por DAY, David S. Some reflexions on modern
free exercise doctrine: a review essay. 55 South Dakota Law Review 498, 2010. p. 505-
7, o sentido da free exercise clause deriva, com maior propriedade, da “liberdade indivi-
dual substantiva” (substantive individual liberty) e, como mostram os precedentes da Corte,
notadamente os analisados na presente seção e na seção anterior, o conteúdo da free exercise
clause está sedimentado na categoria da liberdade enquanto autonomia, podendo envolver,
conjuntamente, o princípio da igualdade. Sugere-se, ainda, a leitura de SHIFFRIN, Steven
H. The pluralistic foundations of the religious clauses. 90 Cornell Law Review 9, No-
vember 2004. p. 9-18, 27-8 e 39-4, que, ao reconhecer a primazia atribuída pela Suprema
Corte, em matéria de free exercise clause, ao valor da liberdade, tenta traçar critérios para
a afirmação da importância do valor da igualdade na abordagem do tema.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 199

questão de natureza moral, e que incumbe somente à mulher balizar, no con-


texto da gravidez, os valores inseridos em sua decisão. Com efeito, a abor-
dagem de Dworkin da unidade do valor se amolda ao padrão conceitual da
liberdade religiosa. Arrisca-se sugerir que a free exercise clause é uma ex-
pressão do princípio da autenticidade e que a establishement clause, por sua
vez, é uma expressão do princípio do respeito próprio. Essa correlação analí-
tica facilita postular que, na questão do aborto, o “livre exercício” da religião
inclui a autonomia procriativa, na perspectiva da realização da personalidade
moral, enquanto a establishement clause inclui a igual prerrogativa de uma
definição individual do valor intrínseco da vida, em consideração aos deve-
res morais relativos ao embrião ou feto.
A doutrina do pluralismo moral e político de Rawls fornece os
mesmos subsídios conceituais para seguir o raciocínio segundo o qual os
obstáculos à prática do aborto implicam na supressão da free exercise clause,
na dimensão da laicidade e em sua interação com a establishement clause.
Do ponto de vista do método do “consenso sobreposto”, as opiniões susten-
tadas por crenças minoritárias ou por convicções seculares sobre a admissi-
bilidade do aborto merecem o mesmo reconhecimento, considerando que
constituem visões morais razoáveis, portanto, passíveis de acomodação no
espaço público. Deste modo, no âmbito não das práticas religiosas, e sim dos
valores pessoais e da autodeterminação moral, garantir ao nascituro o direito
à vida durante todo o período gestacional minimiza a liberdade de consciên-
cia das pessoas que não professam as crenças majoritárias.
O paradigma religioso, presente no debate político contemporâneo
acerca da sacralidade da vida potencial, fere o respeito à moralidade laica e
gera preocupação por seus efeitos negativos na coexistência pacífica das
múltiplas visões acerca do bem moral. Os conflitos daí decorrentes vêm se
agravando, tanto no cenário internacional quanto na vida social de diversos
países, e só não se assemelham às tensões religiosas históricas dos séculos
XVI e XVII porque não envolvem o mesmo nível de violência385.
Em contrapartida, convém mecionar, de passagem, a existência de
uma teoria que defende ser admissível o favorecimento público às religiões,
em conjunto, desde que o governo não apoie uma doutrina em detrimento
das outras. Trata-se da chamada “ajuda não preferencial” (“non preferencial
aid”) ao cultivo das tradições teológicas. Seus articuladores apoiam-se na
ideia de que essa teria sido a intenção dos formuladores das cláusulas de
385
DOUGLAS, Laicock. Sex, atheism and the free exercise of religion. 88 University of
Detroit Mercy Law Review 407, Spring 2011. p. 418.
200 Teresinha Inês Teles Pires

proteção ao direito à religião, razão pela qual qualquer interpretação menos


restritiva da matéria importaria em apoderamento ilegítimo da “história le-
gislativa” (―legislative history”). Na realidade, contudo, a tese de que os
constituintes originais pretendiam, de forma consciente, chancelar a “ajuda
não preferencial” não encontra nenhum respaldo nos dados oficiais386. Aliás,
ainda que houvesse alguma pertinência em tal argumento, sua validade, na
abordagem da liberdade religiosa, não seria determinante, pois, como foi
esclarecido antes, o parâmetro da visão originária dos constituintes precisa
ser atualizado de acordo com os fatos concretos e as demandas sociais do
tempo presente.
A equiparação constitucional entre os diversos sistemas do pensa-
mento moral, desde as crenças religiosas até as doutrinas seculares, precisa
ser aperfeiçoada e transposta para a esfera das decisões individuais de natu-
reza fundamental, em especial as que se relacionam ao processo reprodutivo.
Na prática, porém, as perspectivas religiosas sobre o caráter sagrado da vida
humana, por estarem impregnadas na cultura social e moral da sociedade
como um todo, acabam condicionando as diretrizes políticas no concernente
à regulamentação do aborto387. Em rigor, se a garantia da autonomia religio-
sa envolve também a garantia da autonomia moral laica, afirmar que o em-
brião ou feto possui direito à vida tem o mesmo valor, na esfera da razão
prática, que se pode atribuir à afirmação contrária, inexistindo um razoável
interesse público na resolução da controvérsia por parte das instâncias políti-
cas e legislativas.
Na medida em que o Estado privilegia a concepção religiosa sobre
o valor da vida pré-natal, proibindo ou restringindo o aborto, está assumindo
como verdade uma proposição sectária, não demonstrável em termos cientí-
ficos e não convincente em termos morais. Não é possível saber o que é ver-
dadeiro ou falso em matéria de sacralidade da vida sem que se submeta a
legitimidade dos respectivos juízos, pessoais ou coletivos, ao padrão trazido
pelo princípio da dignidade, na leitura final de Dworkin, e ao padrão do plu-
ralismo ideológico, na leitura do liberalismo político de Rawls. Não há como
dizer, grosso modo, qual a doutrina está com a razão, a do cristianismo, que
reputa o aborto um ato pecaminoso desde a concepção, ou a do judaísmo ou
do budismo, que o considera, pautado em critérios razoáveis, um ato moral-
mente aceitável. Na visão de William Marshall, não há como determinar se o
386
DOUGLAS, Laicock. Non preferencial aid to religion: a false claim about original intent,
27 William and Mary Law Review 875, 1985/1986. p. 877-8.
387
MARSHALL, William P. In defense of smith and free exercise revisionism, 58 Universi-
ty of Chicago Law Review 308, Winter 1991. p. 321-2.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 201

misticismo, em geral, ou o humanismo secular oferecem respostas mais ou


menos adequadas para julgar, no âmbito jurídico, a decisão da mulher e os
motivos que a levam a interromper a gestação388.
A partir daí, é possível vislumbrar que as leis restritivas ao direito ao
aborto que refogem ao precedente Roe v. Wade não preenchem os requisitos do
secularismo e da neutralidade, na forma construída pelas cláusulas da liberdade
religiosa. Mario Cuomo acentuou, em alguns dos seus discursos políticos, que,
em uma democracia pluralista, é preciso criar condições para que todos tenham
a mesma oportunidade de afirmar suas crenças, especialmente as crenças mino-
ritárias. Destaca, ainda, que as normas legais devem ser formuladas tendo por
um dos seus parâmetros a proteção dos direitos minoritários, em termos gerais,
como, por exemplo, o direito ao divórcio, ao controle da natalidade e, inclusive,
ao aborto. Na opinião de Mário Cuomo, a censura à prática do aborto representa
um valor pertencente à concepção católica de moralidade, que não deve ser
transposta para a lei civil, pois esta é feita tanto para os “crentes” (believers)
quanto para os “não crentes” (non-believers)389.
Em outra via, Robert George assevera que o argumento de Cuomo
é falacioso, e que, se fosse aceito, poderia ser aplicável também a outras
questões morais, como o assassinato de crianças, a apropriação de escravos e
a exploração de trabalhadores. Qualquer prescrição legal que pudesse ser
questionada à luz do direito à liberdade religiosa seria invalidada pela su-
premacia da Constituição. Defende o autor que se as restrições legais ao
aborto fossem proibidas com fundamento na free exercise clause todas os
temas supramencionados se enquadrariam na mesma categoria constitucio-
nal. Acrescenta, a título de exemplo, que no século XIX muitos seguiam
religiões que não condenavam a escravidão. Segundo sugerido por Cuomo,
as normas contrapostas ao direito ao aborto importam em coagir as pessoas
que não se opõem à sua prática a seguir a religião daqueles que consideram o
procedimento como sendo um pecado. Isto, na visão de George, é o mesmo
que dizer que a repressão à escravidão, em bases constitucionais, significa
forçar as pessoas que consideram sua prática uma conduta aceitável a seguir
a religião daqueles que se lhe contrapõem390.
388
MARSHALL, William P. What is the matter with equality? An assessement of the equal
treatment of religion and nonreligion in the first amendment jurisprudence. 75 Indiana
Law Journal 193, Winter 2000. p. 206-7.
389
CUOMO, Mário. Religious beliefs and public morality: a Catholic Governer’s perspec-
tive, discurso proferido em 03.09.1984 no Departamento de Teologia da Universidade de
Notre Dame. Disponível em: <www.arquives.nd.edu>. Acesso em: 02 mar. 2014. p. 4-6.
390
GEORGE, Robert P. Conscience and its enemies. Wilmington, Delaware: ISI Books,
2013. p. 188-9.
202 Teresinha Inês Teles Pires

Percebe-se que a comparação entre os interesses fetais e os direitos


à igualdade racial, ou as outras injustiças citadas por Robert George, é ina-
dequada, tanto em termos morais quanto constitucionais. A linguagem utili-
zada pelo autor, ao referir-se à vida pré-natal, já é em si incoerente, pois
atribui aos embriões ou fetos a designação de “seres humanos” em estágio
evolutivo, ou, ainda, “seres humanos” inocentes391. Trata-se de uma perspec-
tiva que passa ao largo das referências doutrinárias que guiam o presente
texto, pois pretende identificar em uma única doutrina, a que equipara o nas-
cituro à pessoa humana, a corretude dos juízos éticos e da interpretação
constitucional.
Em última instância, o aborto pode ser considerado um pecado para
determinadas doutrinas religiosas, mas não é passível de criminalização, desde o
momento da concepção, porque a classificação punitiva de determinadas condu-
tas deve estar invariavelmente fundamentada nos direitos humanos universais e
em propósitos políticos legítimos sob o ângulo da democracia e do interesse
público. Uma lei que proíbe a escravidão é neutra e genérica, e deita suas raízes
na equal protection clause, contando, no nosso tempo, com o assentimento de
todas as comunidades políticas democráticas. Banir o aborto, ao contrário, não é
compatível com os parâmetros constitucionais da liberdade e da igualdade, pois
a vida pré-natal, não sendo equiparada à do ser humano, não possui valor jurídi-
co incondicional, se depuradas todas as reflexões religiosas.

4.3 DELIMITAÇÃO DA FREE EXERCISE CLAUSE NO


TOCANTE À OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA NA
ASSISTÊNCIA MÉDICO-REPRODUTIVA

A extensão do significado constitucional da free exercise clause


possibilita, como se defendeu na seção anterior, trazer para o âmbito de sua
aplicação a garantia do direito ao aborto. Por outro lado, esta mesma cláusu-
la precisa ser criteriosamente acomodada quando se está na presença de ou-
tros interesses, que, por sua própria natureza, possam se mostrar mais rele-
vantes. Uma das controvérsias mais sensíveis, no que diz respeito à concreti-
zação da free exercise clause, é a que provém da objeção de consciência à
prestação de assistência à contracepção e ao aborto.
É preciso enfrentar os paradoxos da inevitabilidade da restrição
da free exercise clause nesta matéria, na tentativa de delimitar em quais
391
Ibidem.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 203

circunstâncias a redução de sua proteção é aceitável e em quais circuns-


tâncias não o é. Obviamente, a análise que se segue será sintética, mas
necessária como um complemento ao estudo do conteúdo da free exercise
clause, já que os critérios para o seu delineamento precisam ser coerentes
em todos os assuntos aos quais se aplica. A objeção de consciência adqui-
re cada vez maior complexidade não só nos Estados Unidos como em
todos os outros países que vêm, a exemplo do Brasil, legalizando ou am-
pliando as hipóteses de admissibilidade da interrupção voluntária da ges-
tação, exigindo, portanto, uma investigação mais profunda, somente pos-
sível em outro trabalho.
Após a decisão Roe v. Wade, alguns estados editaram leis estabele-
cendo as chamadas “cláusulas de consciência”, permitindo aos profissionais
que prestam assistência médica nos serviços reprodutivos o direito à objeção,
por motivo de consciência, em realizar ou assistir procedimentos relativos à
contracepção e ao aborto. O fundamento da objeção, regra geral, consiste na
alegação de que a prestação dos mencionados serviços médicos viola as
crenças ou valores pessoais do objetor. Na maioria dos casos, as leis estaduais
que regulam a objeção de consciência dificultam e até bloqueiam o acesso
das mulheres ao planejamento reprodutivo392.
Tais leis asseguram, ainda, aos farmacêuticos o direito de recusa
em relação à venda de medicamentos contraceptivos, mesmo diante da
apresentação de prescrição médica. As respectivas associações profissio-
nais, em nível federal e estadual, impuseram certas restrições ao exercício
do direito de consciência. Determinou-se, por exemplo, que o farmacêutico
que se nega a devolver a prescrição à paciente ou indicar-lhe outro local
em que o medicamento possa estar disponível, está sujeito a sanções, po-
dendo até perder a licença para o exercício de suas atividades. A regra, no
caso, tem por fundamento a preservação da saúde, do bem-estar e da segu-
rança da mulher393. As leis estaduais, entretanto, não são uniformes. Al-
guns estados admitem amplamente a objeção de consciência do farmacêu-
tico, outros o obrigam a fornecer qualquer tipo de medicamento prescrito
para controle de natalidade, e outros o obrigam a vender estritamente o
392
McLEAN, Margaret R. A case of conscientious refusal: rights and responsibilities. Arti-
go apresentado na Conferência “The Spark of Conscience Inflames Debate: Conflicts of
Conscience in Health Care”. Santa Clara University, nov. 3, 2011. Disponível em:
<http:// www.scu.edu/ethics/practicing/focusareas/medical/ conscientious-refusals.html>.
Acesso em: 12 fev. 2014, passim.
393
Ver, sobre o assunto, ANDERSON, Richard M. Pharmacists and conscientious objec-
tion. National Reference Center for Bioethics Literature, 2006. Disponível em: <http://
bioethics.georgetown.edu>. Acesso em: 23 abr. 2014.
204 Teresinha Inês Teles Pires

contraceptivo de emergência, conhecido como pílula do dia seguinte, aco-


lhendo a objeção nos demais casos394.
Em termos gerais, a recusa em prestar assistência à contracep-
ção e ao aborto envolve um conflito entre a responsabilidade profissional
e as crenças pessoais, baseado na alegação, por parte do objetor, de que,
ao fornecer o contraceptivo ou o tratamento para interromper a gestação,
está contribuindo para a prática de um ato condenável perante seu código
moral pessoal. De um lado, a identidade e a integridade moral do profis-
sional, de outro seu dever de não provocar danos às pacientes, o que in-
clui os danos previsíveis e desnecessários. O respeito absoluto pela mora-
lidade individual do prestador do serviço pode afetar diretamente o plane-
jamento reprodutivo da mulher, sobretudo nas áreas rurais, onde costuma
haver um único provedor de medicamentos e serviços395. Além disso, a
tendência à extensão do direito à objeção de consciência por motivos
religiosos, no âmbito dos serviços de contracepção e aborto, reforça o
estigma que incide sobre as mulheres que optam por evitar a gravidez e a
maternidade, aumentando os fatores potencialmente produtores de dis-
criminação sexual 396.
O Congresso Nacional aprovou três Emendas que regulamentam
a cláusula da objeção de consciência no âmbito das instituições de saúde
financiadas pelo poder público, conferindo-lhe uma proteção extrema-
mente ampla. As Emendas mencionadas são as seguintes: Church Amen-
dment, Coats Amendment e Weldon Amendment. A primeira proíbe que se
imponha ao indivíduo realizar procedimentos de esterilização ou aborto
se isso contraria suas convicções morais ou religiosas; a segunda garante
às instituições o direito de recusa ao fornecimento de treinamento e de
394
NATIONAL CONFERENCE OF STATE LEGISLATURES. Pharmacists conscience
clauses: laws and information, 2012. Disponível em: <http://www.ncsl.org/research/
health/pharmacist-conscience-clauses-laws-and-information.aspx>. Ver, também, NATI-
ON WOMEN’S LAW CENTER. Pharmacy Refusal 101. Disponível em: <http://
www.nwlc.org>. Acesso em: 23 abr. 2014.
395
McLEAN, Margaret R. A case of conscientious refusal: rights and responsibilities. Arti-
go apresentado na Conferência “The Spark of Conscience Inflames Debate: Conflicts of
Conscience in Health Care”. Santa Clara University, nov. 3, 2011. Disponível em:
<http:// www.scu.edu/ethics/practicing/focusareas/medical/ conscientious-refusals.html>.
Acesso em: 12 fev. 2014, passim.
396
Veja, nesse sentido, COOK, Rebbeca; DICKENS, Bernard M. Reducing stigma on repro-
ductive health, International Journal of Gynecology and Obstetrics, 125 (2014). Dis-
ponível em: <http://ssrn.com/abstract=2408025>. Acesso em: 16 jul. 2014. p. 89 e 91; e
DICKENS, Bernard M. The right to conscience. In: Abortion law in transnational pers-
pective. Pennsylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 220-1.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 205

serviços relacionados ao aborto. A terceira proíbe o financiamento públi-


co às organizações que discriminam entidades que se recusam a participar
dos serviços de aborto397.
O governo George W. Bush promulgou, no final de 2008, uma re-
gulamentação destinada a orientar a aplicação destas Emendas, que ampliou
os serviços e procedimentos em relação aos quais a objeção em prover assis-
tência à saúde reprodutiva pode ser aceita. Tais medidas permitiram a apli-
cação da cláusula da objeção de consciência até mesmo àqueles profissionais
que arguíam seu direito ao não cumprimento do dever de referência. O dever
de referência exige, por parte dos objetores, a indicação à gestante de outro
profissional em condições de atendê-la. Alguns objetores alegam que ao
cumprirem tal exigência estão participando indiretamente da prática do abor-
to, e que isso contraria suas crenças398.
A proteção, sem reservas, da objeção de consciência, no tocante ao
acesso à contracepção e ao aborto, foi reforçada por decisão recente da Su-
prema Corte Federal. No julgamento do caso Burwell v. Hobby Lobby Stores
Inc, a Corte sustentou que o governo não pode obrigar as corporações de fins
lucrativos a fornecer aos seus empregados planos de saúde que incluam a
cobertura a métodos contraceptivos de natureza abortífera399. Segundo a
397
a) Church Amendment (42 U.S.C. § 300a-7, 1973); b) Coats Amendment (Public Health
Service Act § 245, 42 U.S.C. & 238n, 1996); e c) Weldon Amendment (Consolidated Ap-
propriations Act, 2005-2010, Pub. L. n. 111-117, § 508d, 123 Stat. 3034, 3280), conforme
STERLING, Steph; WATERS Jessica. Beyond religious refusal: the case for protecting
health care workers’ provision of abortion care. Harvard Journal of Law & Gender, v.
34:2, Summer 2011. p. 466-8. Ver, também, ODELL, Jere. A short overview, conscien-
tious objection in the healing professions: a reader’s guide to the ethical and social is-
sues. Indiana University-Purdue University Indianapolis, February 1, 2014. Disponível
em: <https://scholarworks.iupui.edu/bitstream/ handle/1805/3845/conscientious-objec
tion-short-overview-20140201.pdf>.
398
HARRIS, L.H., Recognizing conscience in abortion provision. The New England Jour-
nal of Medicine, 367:981-983, set. 2012. Disponível em:
<http://www.catholicsforchoice.org/ topics/abortion/Recog nizingConscienceinAbortion-
Provision.asp>. Acesso em: 29 mar. 2014. Esclareça-se que a recusa em cumprir o dever
de referência foi posteriormente invalidada pelo governo do presidente Barack Obama.
399
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Burwell v. Hobby Lobby Stores,
Inc., 573 U.S.____ (2014). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 05 jul.
2014. A Corte apreciou, neste caso, a validade da lei federal denominada Patient Protec-
tion and Affordable Care Act (PL 111-148, March 23, 2010, 124 Stat 119), que efetivou
modificações expressivas no sistema nacional de assistência à saúde (Medicaid). O Pati-
ent Protection and Affordable Care Act (ACA), conhecido sob o nome de President Oba-
ma‘s Health Care Overhaul Law, representa a criação, pela primeira vez nos Estados
Unidos, de um sistema ampliado de saúde pública. A finalidade da medida é aumentar o
número de pessoas que possuem cobertura de planos de saúde e diminuir os custos do go-
206 Teresinha Inês Teles Pires

opinião majoritária, a imposição da cobertura à contracepção impõe um


“ônus substancial” (substantial burden) aos empresários no que concerne à
condução dos seus negócios de acordo com as suas convicções religiosas.
Embora o governo possua um interesse convincente na cobertura à contra-
cepção, entendeu a Corte que o acesso das mulheres aos respectivos métodos
pode ser assegurado por meios menos restritivos400.
A interpretação da objeção de consciência, em relação ao Patient
Protection and Affordable Care Act (ACA), não foi feita à luz da free exer-
cise clause da Primeira Emenda, e sim à luz do Religious Freedom Restoura-
tion Act (RFRA), de 1993. Como já mencionado na seção 4.1, esta lei ampliou
a proteção da liberdade de religião, sendo aplicável às normas legislativas
federais. As disposições do ACA, referentes à cobertura da contracepção,
são neutras e de aplicação genérica. No entanto, mesmo quando a lei preen-
che tais requisitos, o RFRA impõe a aplicação do teste do “interesse convin-
cente” (strict scrutiny) do governo, bem como do teste dos “meios menos
restritivos” (least restrictive means).
Os juízes que acompanharam a decisão da Corte apoiaram-se em
uma interpretação integrativa destes padrões e testes de constitucionalidade.
A associação do strict scrutiny ao teste dos “meios menos restritivos” tornou
muito elástica a possibilidade de acolhimento da objeção de consciência. No
caso, a Corte entendeu que o governo não conseguiu demonstrar que não
havia meios menos restritivos para assegurar o acesso das mulheres aos ser-
viços de contracepção, por meio dos quais não se imporia aos objetores um
“ônus substancial” ao exercício de sua liberdade de religião. Considerou-se,
por exemplo, que o governo poderia fornecer às empregadas a assistência
reprodutiva excluída, por motivo de consciência, da cobertura dos planos de
saúde oferecidos por seus empregadores. Considerou-se aceitável que o go-
verno dispenda recursos adicionais para acomodar o exercício das crenças
religiosas401.
Em seu voto dissidente, a juíza Ginsburg explica a estratégia utili-
zada pela Corte para escapar aos padrões da aplicação da Primeira Emenda,
que não exige a acomodação excessiva do direito à cláusula da objeção de

verno com a assistência médica através do aperfeiçoamento dos serviços de prevenção. O


ACA está disponível no site: <www.hhs.gov/healthcare/rights/law/index.html>. Acesso
em: 11 jan. 2014.
400
Ibidem, p. 5-6.
401
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Burwell v. Hobby Lobby Stores,
Inc., 573 U.S.____ (2014). Disponível em: <www.supremecourt. gov>. Acesso em: 05
jul. 2014.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 207

consciência quando outros interesses importantes estão envolvidos. Na opi-


nião de Ginsburg, a vinculação entre o dever de cobertura à contracepção e o
direito à objeção de consciência é muito frágil para caracterizar um “ônus
substancial” (substantial burden). O direito à contracepção se compatibiliza,
inclusive, com os requisitos do Religious Freedom Restouration Act
(RFRA), segundo os quais a acomodação da objeção de consciência não é
admissível na hipótese de produção de prejuízos a terceiros. No caso, todas
as mulheres, empregadas das empresas objetoras, estarão desprotegidas no
que diz respeito ao direito à contracepção. Como explica, ainda, a juíza
Ginsbusrg, mesmo que o governo assuma o ônus de prestar a estas mulheres
a devida assistência reprodutiva, elas terão que aderir ao Patient Protection
and Affordable Care Act (ACA) e cumprir todos os passos para a sua parti-
cipação. Além disso, a transferência ao governo de custos com saúde em
decorrência das exceções religiosas precisa ter um limite402.
Para sustentar a existência de um “ônus substancial”, a Corte baseou-
-se simplesmente na pressuposição da sinceridade das crenças dos objetores,
abstendo-se de considerar os parâmetros do ônus criado para as mulheres,
derivado da exclusão da cobertura integral dos serviços de prevenção à ges-
tação. Estender a garantia da objeção de consciência às corporações de fins
lucrativos, com fundamento nas crenças religiosas dos empregadores, au-
menta as restrições aos interesses das empregadas que não professam as
mesmas crenças. Isto, como reconhecido no caso United States v. Lee403,
leva à imposição a terceiros de crenças adotadas por um grupo particular de
pessoas. Por outro lado, acolher a exceção religiosa aos serviços de contra-
cepção e não legitimar a mesma acomodação de outras exceções, tais como
as objeções a transfusões de sangue ou vacinas, pode caracterizar violação à
establishement clause404.
Saliente-se, em consonância com o voto dissidente no caso Hobby
Lobby, que não somente a proteção da saúde da mulher justifica o baliza-
mento da objeção de consciência, mas também sua liberdade moral de seguir
suas próprias convicções. A primazia da autonomia de consciência da paci-
ente é a chave para a solução da questão, na medida em que a recusa do pro-
402
Justice Ginsburg, ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Burwell v. Hobby
Lobby Stores, Inc., 573 U.S.____ (2014). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 05 jul. 2014. p. 30-5, 38-39 e 41-2.
403
455 U.S. 252 (1982).
404
Justice Ginsburg, ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Burwell v. Hobby
Lobby Stores, Inc., 573 U.S.____ (2014). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 05 jul. 2014. p. 43-4.
208 Teresinha Inês Teles Pires

fissional acarreta prejuízos ao seu livre exercício de religião. A paciente, no


caso, não possui as mesmas crenças dos médicos, prestadores de serviços ou
empregadores. Todavia, é privada do acesso a um direito reprodutivo sem
que se questione que também suas crenças pessoais deveriam ser acomoda-
das de forma menos restritiva.
Neste aspecto, pode-se dizer que as leis que conferem ampla prote-
ção à objeção de consciência nos serviços de saúde violam a establishement
clause, considerando que o acolhimento dos motivos religiosos ou morais
dos profissionais ou empregadores, sem o balizamento dos prejuízos causa-
dos aos direitos reprodutivos da gestante, importa em endossar, na esfera
pública, uma concepção particular de moralidade. A assistência à saúde da
mulher em matéria de controle de natalidade deve ser prestada de maneira a
acomodar suas necessidades e seu código moral individual405.
As políticas legislativas destinadas a conceder garantia especial às
convicções dos prestadores de determinados serviços reprodutivos, depen-
dendo das circunstâncias, também infringem a equal protection clause, pois,
em regra, são as mulheres que buscam a assistência à contracepção e aos
procedimentos abortivos. A garantia da liberdade de consciência do profissio-
nal pode ser assegurada pela alternativa que lhe é dada de, não desejando
intervir diretamente na conduta, indicar à paciente outro profissional que
possa fazê-lo, de modo a preservar seu acesso ao tratamento planejado. Em
caso de inexistência de outro profissional apto a realizar o procedimento, o
alcance da free exercise clause tem que ser restringido em face da suprema-
cia do direito à saúde. Em relação ao Patient Protection and Affordable Care
Act (ACA), outras alternativas foram apresentadas aos empregadores que
não quisessem oferecer, em seus planos de saúde, cobertura à contracepção.
Eles poderiam pagar uma taxa ao governo pela não cobertura dos serviços ou
acrescer ao salário dos empregados valor adicional em compensação pela
exclusão da cobertura. As duas opções acarretariam para os empregadores
custos equivalentes ao da própria cobertura à saúde reprodutiva406.
405
Sobre a vinculação dos argumentos dos objetores de consciência a uma “ordem moral
objetiva” (“objective moral order”), prescrita pela doutrina cristã, e a necessidade de ade-
quar o direito à recusa em prestar assistência ao aborto aos padrões da democracia secular
e do princípio da separação, ver LEMAITRE, Julieta. Catholic constitutionalism on sex,
women, and the beginning of life. In: Abortion law in transnational perspective. Penn-
sylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 249-251.
406
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Burwell v. Hobby Lobby Stores,
Inc., 573 U.S.____ (2014). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 05 jul.
2014, Oral Argument (Audio), Argument Session: March 25, 2014. Disponível em:
<http://www.supremecourt. gov/default.aspx>.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 209

Essas alternativas possibilitam a conciliação entre os distintos valo-


res e crenças pessoais sobre o significado da vida. Carolyn McLeod propõe
que o “dever de referência”, especialmente, seja o principal critério para
regulamentar a objeção de consciência407. O “dever de referência” é uma
exigência polêmica, mas, de um modo geral, é aceito enquanto uma medida
que permite ao profissional a não participação na realização do ato conside-
rado, no seu juízo, censurável, solucionando, assim, sua controvérsia mo-
ral408. Ademais, a admissibilidade moral do aborto é um argumento que deve
ser adicionado ao princípio da autonomia procriativa e ao direito constitucio-
nal à saúde, a fim de justificar as restrições à cláusula da objeção de consci-
ência na prestação dos serviços médicos, de modo a garantir o acesso ao
planejamento reprodutivo.
Os contornos da legitimidade da objeção de consciência denotam
que as categorias da moralidade individual e da moralidade política estão
naturalmente envolvidas na análise do direito ao aborto, seja no que concer-
ne à sua constitucionalidade, seja no que concerne ao acesso aos respectivos
serviços médicos. A consciência individual, em termos simples, expressa o
censo moral que cada pessoa possui em relação aos seus próprios atos, ou
seja, representa a concepção subjetiva dos limites da atuação individual, na
dimensão da vida concreta. A moldura da liberdade de consciência, para
além do quadrante restrito da objeção por motivo de crença religiosa, é ainda
instável, mas está em franca expansão409.
Sendo assim, é oportuno perguntar: por que a proteção da consci-
ência não é uma questão discutida no adensamento do direito da mulher à
autonomia procriativa? Na medida em que se trata de uma cláusula justifica-
dora da opção dos profissionais da saúde de não participar diretamente dos
procedimentos abortivos, deveria aplicar-se também à acomodação da esco-
lha da gestante pela interrupção da gravidez, e isso no contexto da interpre-
tação do conteúdo substancial das leis. A partir do julgamento do caso Bur-
407
McLEOD, Carolyn. Referral in the wake of conscientious objection to abortion. Hypatia:
A Journal of Feminist Philosophy, v. 23, Issue 4, p. 30-47, nov. 2008. p. 2.
408
Ver, neste sentido, CAVANAUGH, T. A. Professional conscientious objection in medi-
cine with attention to referral. 9 Ave Maria Law Review 189, Fall 2010; GOODRICH
Luke W. The health care and conscience debate, 12 Engage: Journal of the Federalist
Society’s Practices Groups, June 2011; SAWICKI Nadia M. The hollow promise of
freedom of conscience, 33 Cardozo Law Review 1389, April 2012; DICKENS, Bernard
M. The right to conscience. In: Abortion law in transnational perspective. Pennsylva-
nia/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014.
409
SAWICKI, Nadia M. The hollow promise of freedom of conscience, 33 Cardozo Law
Review 1389, April 2012. p. 1395-6.
210 Teresinha Inês Teles Pires

well v. H. Lobby, a Corte implementou um padrão máximo de proteção à


consciência dos empregadores no que concerne à cobertura dos seus planos
de saúde. Em contrapartida, a liberdade de consciência da gestante foi men-
cionada no julgamento de forma periférica.
Existem estudos que propõem a disponibilização da cláusula da ob-
jeção de consciência, nos serviços médicos, também aos profissionais que
procuram, com fundamento em suas convicções morais, prestar assistência
ao aborto nas instituições religiosas onde trabalham. Se o sistema jurídico
reconhece que a oposição ao aborto pode ter raiz em prescrições religiosas,
deve-se admitir que a intenção de oferecer suporte à sua realização, em aten-
dimento à demanda das mulheres, se sustente nas mesmas razões. Tal pers-
pectiva está contida no Título VII do 1964 Civil Rights Act e também na
Church Amendment, justificando a compreensão de alguns provedores de
saúde no sentido de que assistir o aborto é um “imperativo moral” (moral
imperative) de caráter religioso410.
Entende-se, nessa direção, que a não articulação da garantia da li-
berdade de consciência, veiculada pela free exercise clause, na concretização
do direito ao aborto caracteriza uma incoerência sistêmica. Seguindo o racio-
cínio de Sterling e Waters, segundo o qual o 1964 Civil Rights Act funda-
menta a recusa de consciência por parte dos profissionais que desejam assis-

410
STERLING, Steph; WATERS Jessica. Beyond religious refusal: the case for protecting
health care workers’ provision of abortion care. Harvard Journal of Law & Gender, v.
34:2, Summer 2011. p. 476-478, 491 e 495. No mesmo sentido, HARRIS, L.H., Recog-
nizing conscience in abortion provision. The New England Journal of Medicine,
367:981-983, set. 2012. Disponível em: <http://www.catholicsforchoice.org/topics/
abortion/RecognizingConscienceinAbortionProvision.asp>. Acesso em: 29 mar. 2014; e
DICKENS, Bernard M. The right to conscience. In: Abortion law in transnational per-
spective. Pennsylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 212-213. A
Church Amendment já foi mencionada (nota 393). Quanto ao 1964 Civil Rights Act (42
U.S.C. § 2000e (j), 2006), tem por objeto restringir a discriminação, nas relações de traba-
lho, baseada em “raça, cor, religião, sexo ou origem nacional”. Esta lei presume uma vi-
são ampla no sentido de que o significado da religião não se limita às teses teológicas, in-
cluindo também as doutrinas morais e éticas (conforme EEOC Guidelines on Discrimi-
nation Because of Religion, 45 Fed. Reg. 72, 610, 1980. Disponível em: <www.
eeoc.gov>. Acesso em: 11 jan. 2014). Para um estudo sobre as disposições do 1964 Civil
Rights Act, Título VII, consulte-se GREENAWALT, Kent. Religion and the constitu-
tion: free exercise and fairness, v. 1, 2006. Princeton and Oxford: Princeton University
Press, p. 333-358; WATERS, Jéssica. Testing Hosanna-Tabor: implications for pregnancy
discrimination claims and employees’ reproductive rights. Stanford J. of Civil Righs &
Civil Liberties, v. IX, Issue 1, January 2013. p. 55-66; TRIBE, Laurence H. American
constitutional law. 2. ed. Mineola/NY: The Fundation Press, Inc., 1988. p. 1196-1199; e
o próprio texto legal em referência, disponível em: <http://www.eeoc.gov/laws/statutes/
titlevii.cfm>.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 211

tir o aborto, é razoável afirmar que a free exercise clause protege, da mesma
forma, o direito das mulheres de realizar o aborto à luz das suas convicções
morais, religiosas ou éticas. Muitas gestantes, ainda que não todas, praticam
o aborto porque não desejam ser mães, no tempo da gestação, e também
porque seus valores lhes obrigam a não permitir o nascimento de uma crian-
ça sem que se esteja em condições de suprir suas necessidades. Veja que se
fosse somente a não assunção dos encargos da maternidade, a entrega da
criança para adoção resolveria o problema. Mas não é só isso, porque o ato
em si de ter um filho representa uma questão de consciência411.
O embate é sensível, pois nem sempre a perspectiva da autoidenti-
dade moral merece proteção contra as prescrições legais. De qualquer sorte,
o padrão da liberdade de consciência, ou liberdade religiosa, deve assumir
papel central na solução do problema do aborto. A acomodação balanceada
da consciência individual, no âmbito das decisões reprodutivas, está na
agenda jurídica desde a decisão Roe v. Wade. É importante lembrar que no
caso do aborto, ao contrário do que ocorre em outros assuntos em cuja análi-
se se faz apelo à liberdade de consciência, a argumentação jurídica não se
relaciona à validação de exceções à aplicação da lei, mas antes à análise da
legitimidade da lei dentro do esquema constitucional. Em linguagem direta,
trata-se de definir qual é a “prioridade normativa” (“normative priority”), a
proteção da consciência da gestante ou a proteção da vida potencial412. Em
Roe v. Wade, se estabeleceu um modelo justo para a delimitação da “priori-
dade normativa” de acordo com os estágios da gestação.

4.4 CONCLUSÃO PARCIAL

Extrai-se do estudo sobre o significado das cláusulas religiosas da


Constituição Americana embasamento importante para a presente obra. As
categorias teóricas adotadas, desde o início do texto, a dignidade, a indepen-
dência ética e o pluralismo moral e político, sinalizam que o direito ao abor-
411
Consoante DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia
and individual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 103-4: “Adoption, even when
it is available, does not remove the injury, for many women would suffer great emotional
pain for many years if they turned a child over to others to raise and love”. Em tradução
livre: “Adoção, mesmo quando está disponível, não remove a lesão, para muitas mulheres
que sofreriam uma grande dor emocional por muitos anos se elas entregassem uma crian-
ça para outros criarem e amarem”.
412
SAWICKI, Nadia M. The hollow promise of freedom of conscience, 33 Cardozo Law
Review 1389, April 2012. p. 1400, 1402-3 e 1409.
212 Teresinha Inês Teles Pires

to não está à margem da proteção da liberdade de consciência. A exigência


de um padrão de interpretação em bases seculares traz consigo a necessidade
de equilibrar, no tocante à matéria, a proteção das crenças religiosas majori-
tárias e a proteção do pensamento laico.
Em linhas gerais, a introdução das cláusulas religiosas na funda-
mentação constitucional do direito ao aborto, implicitamente acolhida nos
precedentes da Suprema Corte, integra a aplicação dos princípios abstratos da
liberdade e da igualdade. Tal integração, sedimentada na permeabilidade entre
o direito à privacidade e a liberdade de consciência, impede o favorecimento
público à visão moral, segundo a qual a vida do nascituro tem, desde a con-
cepção, valor equiparado ao da vida da pessoa humana. A igual proteção das
convicções religiosas, em geral, precisa ser assegurada, inclusive, na regula-
mentação da objeção de consciência à assistência integral à saúde reproduti-
va, a partir do adensamento dos direitos de consciência das mulheres.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 213

Capítulo 5

AS RESTRIÇÕES LEGISLATIVAS À
PRÁTICA DO ABORTO VOLUNTÁRIO:
NOVO PADRÃO DE ANÁLISE
NAS DECISÕES POSTERIORES
A ROE V. WADE

A sustentabilidade da estrutura da decisão Roe v. Wade foi gradati-


vamente abalada até os dias atuais, com o fortalecimento do poder dos esta-
dos na proteção dos interesses fetais e a redução da garantia do acesso de-
simpedido das mulheres à realização do aborto. As restrições sustentadas
pela Suprema Corte comprometeram o significado das cláusulas constitucio-
nais do devido processo legal e da igual proteção perante a lei, no âmbito dos
direitos reprodutivos, e assumiram uma visão moral específica sobre a im-
portância da vida humana, o que viola os princípios da autonomia de consci-
ência e do pluralismo ideológico.

5.1 A DESCONSTRUÇÃO DA GARANTIA DA LIBERDADE


REPRODUTIVA: REDUÇÃO DA PROTEÇÃO
CONFERIDA PELAS CLÁUSULAS DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL E DA IGUAL PROTEÇÃO
PERANTE A LEI

Em Harris v. McRae413 a garantia do direito ao aborto com funda-


mento na proteção da vida privada, sem o envolvimento de outras cláusulas
413
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Harris v. McRae, 448 U.S. 297
(1980). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013.
214 Teresinha Inês Teles Pires

constitucionais, além da cláusula do devido processo legal, mostrou sua fei-


ção mais frágil. Apreciou-se, nesse julgamento, a validade de uma lei do
Congresso Federal, denominada Hyde Amendment, que restringiu o repasse
de recursos financeiros aos estados para cobertura da assistência médica ao
aborto414. A discussão, em Harris, envolve duas questões:
a) a existência ou não da obrigação dos estados de oferecerem co-
bertura ao aborto nas circunstâncias em que o governo federal
suspendeu o auxílio financeiro anteriormente assegurado;
b) a constitucionalidade da disposição central da Hyde Amendment
no sentido de suprimir a assistência integral aos serviços de
atendimento ao aborto.
Em relação à primeira questão, a Suprema Corte ponderou que o
modelo de cooperação estabelecido pelo sistema Medicaid não envolveu a
concepção de que os estados teriam que arcar unilateralmente com os encar-
gos financeiros de nenhum dos serviços incluídos no programa, na forma
originalmente estabelecida. Deste modo, se o próprio governo federal deixa
de prover, subsequentemente, o devido reembolso a determinados tipos de
tratamento médico, considerou-se não ser razoável exigir dos estados que
participam do plano o oferecimento de tais serviços contando exclusivamen-
te com suas receitas locais415.
Em relação à segunda questão, a Suprema Corte sustentou a com-
patibilidade da Hyde Amendment com a due process clause da Quinta
Emenda, a equal protection clause enquanto um componente da mesma
Emenda, e a establishement clause da Primeira Emenda. No que concerne à
free exercise clause, a Corte entendeu que os apelantes careciam de interesse
na respectiva arguição porque atuavam em nome de todas as mulheres que
eventualmente, estando grávidas, precisassem realizar o aborto na rede pú-
blica de saúde. Na ausência de uma coerção atual que representasse violação
ao exercício de suas crenças pessoais, concluíram os juízes pela inexistência
414
No ano de 1976, a Hyde Amendment adicionou ao Social Security Act, também conhecido
como Medicaid Act, disposição segundo a qual foi proibido ao governo federal reembol-
sar aos estados os custos provenientes dos serviços de assistência ao aborto, salvo quando
tal assistência é prestada para salvar a vida da gestante ou nas hipóteses de gravidez resul-
tante de estupro ou incesto. Esclareça-se que, conforme Harris v. McRae, 1980. p. 300-1 e
308, o sistema de saúde pública, nos Estados Unidos, desde a criação do programa “Medi-
caid”, em 1965, se baseia em um modelo de cooperação entre o governo federal e os esta-
dos. Estes não são obrigados a aderir ao programa, mas, uma vez que o façam, são obri-
gados a cumprir suas exigências, dentre as quais se inclui o dever de oferecer tratamento
médico às pessoas necessitadas.
415
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Harris v. McRae, 448 U.S. 297
(1980). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 309.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 215

de fundamento para submeter a Hyde Amendment ao significado específico


da free exercise clause.
Não é o caso de se analisar a primeira questão antes enunciada,
ou seja, os aspectos relativos ao comprometimento dos estados com as
exigências do programa Medicaid, cuja natureza é meramente estatutária.
Muito mais importante se mostra uma abordagem atenta acerca da segunda
questão (a validade da Hyde Amendment), a qual se insere, diretamente, na
defesa da constitucionalidade do direito ao aborto. Saliente-se, inicialmen-
te, que a cláusula da liberdade protegida pela Quinta Emenda é interpretada
de modo a envolver o significado abrangente que a Décima Quarta Emenda
lhe atribuiu. Como foi explicado na seção 3.1.1, a Suprema Corte vem
adotando a tese da incorporação dos direitos fundamentais na due process
clause da Décima Quarta Emenda como uma forma de equacionar a aplica-
ção unificada dos preceitos constitucionais ao controle das leis federais e
estaduais. O texto da Quinta Emenda não contém a proteção da igual con-
sideração perante a lei. No entanto, a partir da tese acima mencionada,
construiu-se uma interpretação afirmativa do envolvimento também das
exigências da equal protection clause na proteção da liberdade prevista na
Quinta Emenda416. É por isso que a apreciação da constitucionalidade da
416
Como explicado por STEVENS, John Paul. The bill of rights: a century of progress. 59
University of Chicago Law Review 13, Winter 1992. p. 20, a fim de aplicar o princípio
da igualdade às ações do governo federal, a Corte formulou a ideia de que a due process
clause contém um “componente da equal protection” (“equal protection component”)
embutido no significado da liberdade veiculado pela Quinta Emenda. No caso Bolling v.
Sharp, 347 U. S. 497 (1954), a interconexão entre as Emendas originais e os requisitos da
Décima Quarta Emenda foi sedimentada, constituindo uma referência interpretativa até os
dias atuais. Trata-se de um caso em que foi assegurada a inconstitucionalidade da segre-
gação racial nas escolas públicas do Distrito de Columbia, com base na concepção inte-
grativa da due process clause da Quinta Emenda e da due process clause e da equal pro-
tection clause da Décima Quarta Emenda. A due process clause da Quinta Emenda refere-
-se à proteção da liberdade contra constrições físicas no contexto do processo criminal, is-
to é, contra os atos de detenção arbitrária pela prática de conduta criminosa. A due pro-
cess clause da Décima Quarta Emenda, por sua vez, diz respeito à proteção da liberdade
contra qualquer espécie de arbitrariedade do poder público. Do ponto de vista desta
Emenda, liberdade e igualdade não são conceitos “mutuamente excludentes” (“mutually
exclusive”), estando, ao contrário, associados na consideração da proibição de discrimina-
ções que não se justifiquem com base em algum interesse público. Porém, apesar de ser
possível incluir a due process clause na abordagem constitucional da discriminação, a
equal protection clause é a categoria que oferece a “salvaguarda mais explicita” (“more
explicit safeguard”) no tocante à questão, razão pela qual precisa integrar a perspectiva da
liberdade na medida em que a mesma se estende a todos os grupos sociais (conforme Bol-
ling v. Sharp, 1954, p. 499). Neste caso, a intersecção entre a due process clause prevista
nas duas mencionadas Emendas, com o envolvimento da equal protection clause da Dé-
cima Quarta Emenda, foi necessária para assegurar a proteção contra a discriminação ra-
216 Teresinha Inês Teles Pires

Hyde Amendment envolveu a análise da equal protection clause. Tendo em


mente tais esclarecimentos, pode-se, a seguir, analisar, sucintamente, a
resposta dada pela Corte à aplicabilidade de cada um dos princípios fun-
damentais questionados em Harris v. McRae.
Inicie-se pela categoria da liberdade prescrita pela due process
clause, em cuja perspectiva a redução do financiamento público à assistên-
cia ao aborto, embora significativa, não se mostrou inconstitucional para a
opinião majoritária. Com efeito, a conotação substantiva da liberdade não
foi assumida como fundamento satisfatório para a garantia do dever do
Estado de oferecer assistência ilimitada, na rede pública de saúde, às mu-
lheres que desejam interromper a gestação. Como já se teve oportunidade
de pontuar, o princípio da liberdade enquanto privacidade, incorporado em
Roe v. Wade, foi essencialmente alicerçado na mera proibição da interven-
ção do governo na decisão da mulher de interromper ou não a gestação.
Protegeu-se, exclusivamente, o direito fundamental ao aborto em seu senti-
do negativo, declarando-se a inconstitucionalidade de sua proibição através
de lei federal ou estadual.
Assim, não se vislumbrou nenhuma categoria jurídica capaz de
firmar uma ligação entre o dever de não interferência do governo e seu dever
positivo de assegurar às mulheres necessitadas a realização do aborto. Proi-
biu-se a criação de obstáculos à escolha pelo aborto, mas a pobreza em si
não é obstáculo criado pelo governo, razão pela qual a proteção do direito de
interromper a gestação não garante, na esteira do paradigma Roe v. Wade, a
cobertura pública aos respectivos procedimentos médicos. Nada impede,
portanto, que o Congresso Federal elimine o reembolso financeiro à cobertu-
ra dos serviços de atendimento ao aborto, assim como nada impede que os
estados, por uma questão de política legislativa, ofereçam cobertura ao aten-
dimento médico ao parto e não ao aborto. O propósito dos estados seria en-
corajar as mulheres a levar a gravidez a termo, favorecendo o nascimento da
criança e desestimulando o aborto417.
A questão da aplicação da due process clause ao direito ao financia-
mento público dos serviços de saúde oferecidos pelo programa Medicaid foi,

cial no Distrito de Columbia. Lembre-se de que a Décima Quarta Emenda não se aplica ao
governo federal, portanto, ao Distrito de Columbia, a não ser através da adoção da tese da
incorporação, ao significado de suas cláusulas, dos direitos fundamentais expressos. Uma
vez solidificado tal entendimento, a estratégia, inicialmente usada no âmbito da discrimi-
nação racial, mostrou-se operante também no julgamento do caso Harris v. McRae.
417
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Harris v. McRae, 448 U.S. 297
(1980). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 314-6.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 217

anteriormente, apreciada nos casos Beal v. Doe e Maher v. Roe418. Nos dois
casos a Suprema Corte considerou que os estados podiam participar do pro-
grama do governo federal sem se obrigarem a financiar a assistência ao abor-
to “não terapêutico” (non-therapeutic)419. Já nestes dois casos (Beal v. Doe e
Maher v. Roe) foi declarado que os estados não estão submetidos, na imple-
mentação de suas políticas de alocação de recursos destinados à saúde, ao
escrutínio rígido, não precisando, assim, demonstrar uma rationale convin-
cente nas medidas escolhidas para regular os serviços reprodutivos. O padrão
do escrutínio de base racional adotado em tais precedentes refletiu em Harris
v. McRae que, igualmente, para sustentar a validade da Hyde Amendment,
em relação à restrição do financiamento ao aborto, avaliou apenas se a ratio-
nale do governo no favorecimento do nascimento da criança era aceitável,
levando-se em conta seu objetivo de proteger a vida do nascituro. Ressalte-
se que nos casos Beal e Maher as restrições julgadas legítimas concernem ao
aborto por livre escolha da mulher nas hipóteses de não existência de ne-
nhum risco à sua saúde (aborto não terapêutico), enquanto que em Harris v.
McRae as restrições estabelecidas, no âmbito federal, comprometeram ainda
mais os interesses das mulheres, por aplicarem-se também à maioria das
hipóteses do aborto terapêutico, excetuando-se somente os casos de necessi-
dade para salvar a vida da gestante, de estupro ou incesto.
No caso Beal v. Doe, o juiz Brennan, dissidente, acentuou a au-
sência, mesmo no rational-basis scrutiny, de uma justificativa secular que
legitimasse a opção do governo de financiar a assistência ao parto, com
base no alegado interesse na proteção da vida potencial, ao mesmo tempo
eliminando o repasse de recursos para a assistência ao aborto voluntário.
Sob o ângulo da due process clause, a medida, no seu entendimento, confi-
gura ingerência do Estado na relação médico-paciente quanto à liberdade de
escolha entre os dois procedimentos médicos à disposição das gestantes, ou
o parto ou o aborto420.
Efetivamente, é inegável que a diferenciação entre o auxílio finan-
ceiro aos procedimentos do parto e do aborto, em favorecimento do primei-
ro, representa uma forma de controle sobre o destino da gestação, que pode
418
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Beal v. Doe, 432 U. S. 438 (1977).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013; ESTADOS UNI-
DOS. United States Supreme Court. Maher v. Roe, 432 U. S. 464 (1977). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013.
419
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Maher v. Roe, 432 U. S. 464 (1977).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 465-6.
420
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Beal v. Doe, 432 U. S. 438 (1977).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 449-50.
218 Teresinha Inês Teles Pires

caracterizar violação à due process clause, de acordo com o padrão da deci-


são Roe v. Wade. Todavia, o argumento é frágil para rebater, por si só, a
concepção majoritária. Retirar o financiamento público aos métodos aborti-
vos, na esfera das políticas governamentais, não constitui intervenção direta
na autonomia procriativa das mulheres, sendo isso o que restou estritamente
garantido em Roe. Neste caso, Roe v. Wade, somente a partir do terceiro
trimestre de gestação o interesse dos estados na proteção da vida potencial se
sobrepõe à liberdade substantiva da Décima Quarta Emenda. No entanto, o
raciocínio foi então sustentado dentro do padrão do escrutínio rígido. Em
Harris v. McRae, por outro lado, o dever de financiamento público ao aborto
seguiu o padrão do escrutínio de base racional, o que obstaculizou o avanço
dos direitos da gestante frente às políticas legislativas com base pura e sim-
ples na proteção da privacidade e da autonomia.
Seguindo a linha interpretativa adotada nos precedentes, a Suprema
Corte reafirmou em Webster v. Reproductive Health Services a validade de
uma lei do Estado de Missouri que proibiu o uso de recursos públicos na
assistência ao aborto, salvo nos casos de sua necessidade para salvar a vida
da gestante. Referida lei proibiu, ainda, o oferecimento, nos hospitais públi-
cos, de qualquer serviço destinado a aconselhar ou encorajar as mulheres a
praticar o aborto421. Por fim, a lei em questão impôs à gestante a realização
de exames, antes da prática do aborto, a partir de 20 semanas de gestação, a
fim de certificar a viabilidade do feto. Neste caso, a legitimidade dos estados
na proteção da vida potencial foi estendida a tal ponto que já não se pode
dizer que a decisão Roe v. Wade, à luz da due process clause, seja uma refe-
rência inabalável perante a Corte. Como declarado em Roe, o governo não
tem autoridade para assumir uma posição dogmática que defina o começo da
vida a fim de legitimar seu controle sobre a prática do aborto422. Determinou-
se que a viabilidade fetal ocorre a partir de aproximadamente 28 semanas de
gestação, podendo, porém, ocorrer antes, a partir de 24 semanas423. Por isto,
autorizar testes médicos cujo intento é sustentar o início da viabilidade, com
base na idade gestacional, no peso do feto, ou em qualquer outro fator bioló-

421
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Webster v. Reproductive Health
Services, 492 U.S. 490 (1989). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12
dez. 2013. p. 501.
422
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. City of Akron v. Akron Center of
Reproductive Health, 462 U. S. 416 (1983). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013, Justice Powell. p. 444.
423
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 160.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 219

gico de medição, desconstrói, sob o enfoque do modelo da stare decisis424, o


que foi substancialmente assegurado às mulheres em Roe v. Wade.
Trata-se aqui de uma efetiva reversão parcial desta histórica deci-
são através da admissão da intervenção do estado na autonomia da gestante
no tocante à decisão de realizar o aborto no segundo trimestre de gestação.
Observa-se que o padrão da strict scrutiny também não foi preservado em
Webster, ainda que isto não tenha sido dito expressamente. Com efeito, con-
siderou-se aceitável, no caso, que o governo tinha um interesse racionalmen-
te justificável na imposição dos testes de confirmação da não viabilidade
fetal, mesmo antes do início do terceiro trimestre425. Não foram ponderados
os riscos que possam advir destes exames para a saúde das mulheres bem
como os custos adicionais impostos pela medida aos procedimentos de abor-
to. Como afirmado pelo juiz Scalia, dissidente em parte, todas as restrições
legislativas ao aborto buscam, no fundo, criar uma nova sistemática que leve
a Suprema Corte a declarar, algum dia, que o decreto firmado em Roe não
mais se compatibiliza com o esquema interpretativo implementado no país.
No que se refere à lei sustentada em Webster, seu próprio preâmbulo, em
relação ao qual a Corte absteve-se de analisar, afirma que a vida tem início
no momento da concepção e que os estados devem proteger ao máximo o
nascituro não importando o estágio de sua evolução biológica. Na opinião do
juiz Blackmun, o resultado de tal reversão de paradigma não será outro se-
não fazer com que boa parte das gestantes, especialmente as de baixo poder
aquisitivo, desafiem as leis e recorram ao aborto inseguro, arriscando suas
vidas, “tudo em nome de uma moralidade forçada ou ditados religiosos ou
falta de compaixão”426.
424
Conforme MENDES, A. Ribeiro. In: HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 2. ed.
Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. p. 149, nota explica-
tiva, a expressão stare decisis “designa o princípio fundamental do direito inglês segundo
o qual os precedentes constantes das decisões anteriores dos tribunais régios gozam de
autoridade, são vinculativos, devendo ser seguidos por todos os tribunais quando ocor-
ram no futuro casos semelhantes”.
425
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Webster v. Reproductive Health
Services, 492 U.S. 490 (1989). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12
dez. 2013. p. 518-519. Lembre-se de que, nos termos da decisão Roe v. Wade, no segundo
trimestre de gestação o governo pode regular o aborto apenas quando se evidencia a exis-
tência de um interesse razoavelmente vinculado à proteção da saúde da gestante. Não há
autorização, em tal estágio gestacional, para sustentar o interesse público na tutela do nas-
cituro, que se mostra convincente, apoiado no escrutínio rígido, apenas a partir do terceiro
trimestre.
426
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Op. cit., Justice Blackmun. p. 543,
552 e 557-558. No original: “all in the name of enforced morality or religious dictates or
lack of compassion”.
220 Teresinha Inês Teles Pires

Além das regulações comumente formuladas na seara do financia-


mento público ao aborto e do controle sobre as prescrições e condutas mé-
dicas, é bastante recorrente o estabelecimento de regras cujo escopo, na
concepção dos estados, é assegurar que o consentimento da gestante à prá-
tica do aborto ocorra da forma mais esclarecida possível. Contudo, as me-
didas visam, em realidade, supervisionar a conduta médica e interferir na
escolha da gestante.
Neste assunto, a Suprema Corte manteve, nas decisões que prece-
deram o caso Webster, uma posição mais consentânea com o modelo prote-
tivo da liberdade firmado em Roe v. Wade. Em City of Akron v. Akron Cen-
ter of Reproductive Health427, por exemplo, foi rejeitada, à luz da due pro-
cess clause, a constitucionalidade de restrições que impunham a obrigato-
riedade do consentimento informado da gestante, do consentimento paren-
tal em caso de gestante menor, e do período de espera de 24 horas. Da
mesma forma, no caso Thornburgh v. American College of Obstetricians
and Gynecologists428 foram rejeitadas outras restrições legais da mesma
natureza. A Corte analisou, aqui, as exigências de que a mulher seja infor-
mada acerca da assistência ao acompanhamento da gestação até o parto e
da disponibilidade de material da rede de saúde local que descreve as ca-
racterísticas do feto e oferece alternativas para evitar o aborto. Ao final,
declarou-se que as exigências de informação e de consentimento, de qual-
quer espécie, constituem uma intrusão indevida do governo na relação mé-
dico-paciente com o propósito não de informar, mas antes de persuadir a
gestante a não abortar.
Na mesma linha de raciocínio, para assegurar o acesso ao aborto
sem empecilhos às menores de 18 anos, foi considerada inconstitucional,
no caso Hodgson v. Minnesota 429, uma lei que exigia a notificação dos
dois genitores da gestante e a espera de um prazo de 48 horas após a noti-
ficação para a realização do procedimento. Ao mesmo tempo, a maioria
dos membros da Corte sustentou que os estados têm legitimidade para
impor essa mesma exigência desde que o estatuto conceda à menor a al-

427
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. City of Akron v. Akron Center of
Reproductive Health, 462 U. S. 416 (1983). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013.
428
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Thornburg v. American College of
Obstetricians and Gynecologists, 476 U.S. 747 (1986). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013.
429
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Hodgson v. Minnesota, 479 U.S.
417 (1990). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. Obser-
ve-se que este caso foi julgado no ano seguinte ao julgamento do caso Webster.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 221

ternativa de pleitear autorização judicial para realizar o aborto, hipótese


em que poderá demonstrar ter maturidade para decidir sozinha. De qual-
quer sorte, a manifestação da gestante menor, sem a notificação dos pais,
restou garantida por meio do recurso à ação judicial própria, sendo possí-
vel o reconhecimento de sua capacidade decisória. Pressupôs-se que a
proteção assegurada pela due process clause e pela equal protection
clause (Décima Quarta Emenda) contra a ingerência governamental, sem
justificativa plausível, na escolha da mulher de se ter ou não o filho se
aplica também à menor de 18 anos 430.
A Corte já havia adotado, em um caso julgado no ano de 1976, a
compreensão no sentido de que a autonomia procriativa da menor estaria
preservada por prescrições normativas que lhe conferisse a alternativa de
evitar, por meio de procedimento judicial, a notificação dos genitores. Isto
foi firmado em Planned Parenthood of Central Missouri v. Danforth, que
contou com igual preocupação com a proteção do direito da menor de deci-
dir de acordo com seus interesses pessoais431. Em suma, até o início dos anos
1990, a Suprema Corte derrubava, com base em uma ampla concepção de
liberdade, como categoria genérica substantiva, a maioria dos obstáculos
trazidos pelas leis estaduais à realização do aborto, particularmente, os re-
quisitos que se referiam ao consentimento.
Pode-se notar uma marcante inconsistência entre as decisões rela-
cionadas ao consentimento informado e as decisões relacionadas à cobertura
dos serviços públicos de atendimento ao aborto, no que concerne aos seus
fundamentos. Por que os estados estão autorizados a favorecer o nascimento
da criança e desestimular o aborto, por meio de medidas políticas, nos casos
que tratam do financiamento dos tratamentos médicos e não nos casos que
tratam das exigências de informações à gestante?432 A diferença não encon-
tra justificativa, em termos constitucionais, pois, a rigor, os dois tipos de
restrições são potencialmente inibitórios em relação ao desejo da mulher de
interromper a gestação. A partir de tal incongruência, a Corte terminou sus-
tentando, em momento posterior, a validade de outra lei, desafiada à luz da
substantive due process clause, que impunha várias exigências relacionadas
430
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Hodgson v. Minnesota, 479 U.S.
417 (1990). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 434-
5, 455 e 479.
431
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood of Central
Missouri v. Danforth, 428 U.S. 52 (1976). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 23 nov. 2013. p. 90-91.
432
WENZ, Peter. Abortion rights as religious freedom. Philadelphia: Temple University
Press, 1992. p. 225.
222 Teresinha Inês Teles Pires

à garantia do consentimento informado da gestante. A questão foi julgada no


caso Planned Parenthood Southeastern Pennsylvania v. Casey433, do qual
ainda se falará mais atentamente na próxima seção, que representou a maior
conquista dos estados em matéria de controle sobre a regulação do aborto,
em detrimento da autonomia procriativa. A decisão proferida neste caso
enfraqueceu, significativamente, os rígidos critérios estabelecidos em Roe v.
Wade para a aceitação da intervenção pública na decisão da gestante.
Em matéria de financiamento público aos serviços de saúde re-
produtiva, a Suprema Corte rejeitou, nos casos Maher v. Roe e Harris v.
McRae a aplicação da equal protection clause ao controle da discriciona-
riedade dos estados, no primeiro caso, e do governo federal, no segundo
caso. Não se pode concordar com os argumentos introduzidos pela Corte
no julgamento desses casos. Em Roe v. Wade, foi assegurado às mulheres
o direito fundamental ao aborto. Alocar recursos públicos nos serviços de
assistência pré-natal e de realização do parto e não os alocar nos serviços
de assistência ao aborto implica na negação às mulheres necessitadas do
exercício de um direito fundamental. O que, dentro de um mesmo esque-
ma constitucional, configura uma classificação discriminatória, portanto,
suspeita.
O mesmo raciocínio, como acentuado na seção 2.3, não é convin-
cente quando utilizado para sustentar a aplicação do princípio da igualdade
sexual, ou de gênero, na fundamentação do direito ao aborto em si. Afirmar
que o aborto é um direito fundamental, exclusivamente, a partir da equal
protection clause, em assuntos de gênero, é uma tese de difícil acolhimento,
devido à razoável maleabilidade atribuída aos estados na justificação de suas
classificações legais. Por outro lado, do ponto de vista da garantia do acesso
ao aborto em igualdade de condições, retirar o financiamento público dos
respectivos serviços impede uma classe específica de mulheres de controlar
autonomamente a gestação através da opção de abortar, o que viola um direi-
to fundamental já assegurado. Em outras palavras, para declarar, como feito
em Roe v. Wade, que o aborto é um direito fundamental não expressamente
protegido pelas cláusulas constitucionais, a categoria da equal protection
clause, se utilizada isoladamente, não é satisfatória. Porém, ela deve ser apli-
cada, em caráter primordial, quando está em questão a garantia do exercício
pleno de um direito fundamental suficientemente solidificado, cujas restri-
ções legais atinjam particularmente determinados grupos sociais.

433
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 223

Em Maher v. Roe, a Corte argumentou exatamente em sentido con-


trário. Afirmou-se que o direito ao aborto, nos termos da decisão Roe v.
Wade, impede que o governo imponha condições que dificultem a escolha da
mulher de interromper ou não a gestação, como, por exemplo, exigir o con-
sentimento do pai da criança ou, em caso de gestante menor, dos seus genito-
res. Entretanto, a amplitude de tal direito não chegaria ao ponto de limitar a
autoridade dos estados de adotar um “juízo de valor” (“value judgement”)
que justifique o favorecimento ao parto e o desestímulo ao aborto, por meio
de suas políticas. O mesmo raciocínio atribuiria validade às escolhas do go-
verno em matéria de alocação de recursos públicos, que fossem mais favorá-
veis ao nascimento da criança434. Sabe-se que esta posição foi reafirmada em
Harris v. McRae, sendo, nos dois casos, o resultado do não adensamento das
possibilidades de aplicação da equal protection clause.
Caberia a pergunta: existe alguma circunstância que dificulte mais
a decisão quanto a realizar ou não o aborto, em relação às mulheres sem
recursos financeiros suficientes, do que o corte do oferecimento dos métodos
abortivos perante a rede de saúde pública? É certo que a pobreza dificulta o
exercício de vários direitos, não havendo como assegurar a igualdade perante
a lei em todos os assuntos435. Entretanto, neste caso, na medida em que o
governo arca com os custos do atendimento pré-natal e do parto, muito mais
onerosos, e não arca com o atendimento ao aborto, exclusivamente, em razão
de um “juízo de valor” discricionário, está infringindo os parâmetros da
equal protection clause e, praticamente, forçando algumas mulheres a levar
a gravidez a termo.
A autoridade dos governos estaduais de adotar juízos de valor que
favoreçam a opção da gestante por ter o filho também foi mantida pela Su-
prema Corte na esfera municipal, no caso Poelker v. Doe436. O caso foi jul-
gado à luz da equal protection clause, declarando-se, com fundamento ainda
em Maher v. Roe, a não violação de suas premissas. Mas a voz dissidente do
juiz Brennan corrobora o entendimento acima avançado, quando afirma que
a não provisão de serviços públicos de atendimento ao aborto não terapêuti-
co coloca um obstáculo invencível às mulheres pobres, diante de sua impo-
tência no sentido de arcar com os custos dos respectivos procedimentos nos
hospitais privados. Brennan alertou que a decisão do caso será sentida mais
434
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Maher v. Roe, 432 U. S. 464 (1977).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 473-4.
435
Ibidem, p. 471.
436
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Poelker v. Doe, 432 U.S. 519
(1977). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013.
224 Teresinha Inês Teles Pires

gravemente nas regiões em que se efetivar a suspensão da assistência ao


aborto voluntário nos hospitais da rede pública e a procura por sua realização
perante as clínicas privadas não for suficiente para manter o atendimento aos
mesmos serviços437.
No âmbito da aplicabilidade da due process clause, é plausível
arguir que o poder público não tem como financiar a contento todos os
serviços médicos exigidos para assegurar o direito à saúde em geral, sendo
necessário adotar diretivas políticas de acordo com as metas governamen-
tais prioritárias. Do ponto de vista lógico, se o Estado não financiasse a
assistência reprodutiva nem às mulheres que desejam levar a termo a ges-
tação, nem às que desejam interrompê-la, em face da justificável premên-
cia de atender outras demandas que envolvam maior interesse público, não
haveria como afirmar a inconstitucionalidade da ação governamental por
violação à autonomia da mulher no controle da gestação. Obviamente, a
situação atingiria o direito à saúde, mas não o direito de escolha procriati-
va. Todavia, se o governo decide financiar somente o atendimento às mu-
lheres que desejam ter o filho, e não o aborto, precisa demonstrar um inte-
resse público em tal diferenciação, sob pena de violação ao princípio da
igual consideração perante a lei. Em síntese, acredita-se que os casos Beal
v. Doe, Maher v. Roe e Harris v. McRae deveriam ser lidos e apreciados à
luz da garantia da equal protection clause.
No que concerne à establishement clause, não há muito o que co-
mentar neste sítio. Em Harris v. McRae, o julgamento dissipou a controvér-
sia, declarando que a suspensão do repasse de recursos públicos determinada
na Hyde Amendment não representa envolvimento excessivo do governo
com uma doutrina religiosa em particular, mas apenas reflete valores sociais
tradicionais relativos à imoralidade do aborto. A coincidência entre os valo-
res assumidos pelo texto da Emenda, na restrição à assistência ao aborto,
com os preceitos oficiais do catolicismo ou de outras religiões, não implica,
de acordo com os precedentes da Corte, em violação à establishement clau-
se438. Isto já foi suficientemente explicitado na abordagem da aplicação das
cláusulas da liberdade religiosa à regulamentação do aborto. No entanto, é
oportuno salientar que, a despeito das dificuldades da aplicação da esta-
blishement clause ao corte dos recursos públicos ao aborto, parece cristalina
a circunstância de que o propósito da lei, no caso, não diz respeito a um es-
quema de prioridades na garantia do direito à saúde, e sim a uma argumenta-
437
Ibidem, p. 523-4.
438
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Harris v. McRae, 448 U.S. 297
(1980). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 319-20.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 225

ção moral muito particular. O que contraria a finalidade básica do programa


Medicaid, idealizado para fazer face às necessidades da população no âmbito
da saúde e da assistência médica em geral. Se os serviços de atendimento ao
aborto representam demanda enquadrável na mesma espécie de “necessida-
des”, uma visão pessoal de moralidade não deveria ser posta como parâme-
tro para restringi-los de forma discriminatória439.
Por fim, ao não apreciar, ainda no caso Harris, a possível aplicação
da free exercise clause às restrições da Hyde Amendment ao financiamento
público ao aborto, a Suprema Corte terminou abordando apenas de forma
periférica, no contexto da categoria da liberdade de consciência, os efeitos,
na vida concreta da mulher, da preferência política pelo estímulo à opção de
se ter o filho e o desestímulo ao aborto. O incentivo ao nascimento da crian-
ça, em tais circunstâncias, representa uma intrusão do Estado na formação do
convencimento da gestante, supondo-se sua capacidade plena como agente
moral? No lugar de afirmar uma posição não interventiva, o Estado, ao banir
a utilização de recursos públicos na assistência ao aborto, não estaria, ao
contrário, assumindo uma atuação interventiva em aspectos protegidos pela
liberdade de seguir concepções morais individuais no que se refere ao plane-
jamento reprodutivo?
Entende-se que sim, e que, mais uma vez, se mostra visível o ca-
bimento da proposta de assentar como um dos fundamentos do direito ao
aborto a liberdade de consciência moral ou religiosa na avaliação dos valores
éticos envolvidos na interrupção do desenvolvimento da vida pré-natal. Na
seara reprodutiva, em especial no caso do aborto, não basta, como adensado
no presente estudo, assegurar aquela liberdade no sentido negativo, pela
proteção da privacidade contra a intervenção estatal. É salutar assegurá-la no
sentido positivo, ou seja, incorporando ao sistema jurídico uma concepção
constitucional dos interesses do embrião ou feto não atrelada aos valores
tradicionais majoritários, possibilitando uma interpretação da categoria da
personalidade que se conforme à proteção dos direitos morais da mulher.
Consoante pincelado por Dworkin, o caso Roe v. Wade não foi cor-
retamente decidido, do ponto de vista da integridade da proteção da autono-
mia procriativa, eis que, no tema do aborto, é possível que os estados de-
monstrem a existência de uma “razão convincente” (“compelling reason”)
para restringir, ainda que indiretamente, o direito das mulheres à privacida-
de. Não se pode negar que o caso do aborto se diferencia, significativamente,
439
CUOMO, Mário. Religious beliefs and public morality: a Catholic Governer’s perspec-
tive, discurso proferido em 03.09.1984 no Departamento de Teologia da Universidade de
Notre Dame. Disponível em: <www.arquives.nd.edu>. Acesso em: 02 mar. 2014, passim.
226 Teresinha Inês Teles Pires

do caso da contracepção, porque conduz à perda da vida potencial. Assim, à


luz estreita do direito à privacidade, seria articulável a legitimidade dos esta-
dos de restringir o aborto embora não o seja, de forma razoável, a proibição
da maior parte dos métodos contraceptivos440. Daí por que o referencial teó-
rico de Dworkin da integração entre a ética, a moral e o direito na análise
dos interesses da vida nascitura, mediatizada pelo envolvimento das cláusu-
las da liberdade religiosa, é o melhor esquema para a concretização da auto-
nomia procriativa na regulamentação do direito ao aborto.
Pode-se perceber em todos os casos analisados na presente seção
que a autoridade dos estados de reduzir as possibilidades de acesso ao aborto
foi fortemente estendida, especialmente, no que concerne aos aspectos éticos
das respectivas políticas legislativas. John Ely é enfático ao afirmar ser legí-
tima tal autoridade, não havendo razão, em sua opinião, para transferir aos
juízes o poder de definir quais os valores morais devem ser honrados prefe-
rencialmente. Segundo o autor, por um lado o aborto se assemelha ao infan-
ticídio e por outro lado à contracepção. Ely critica a decisão Roe v. Wade,
afirmando que não existe em nenhuma das cláusulas fundamentais do texto
constitucional algum tipo de suporte capaz de solucionar objetivamente as
questões morais441.
Apesar da notável contraposição da leitura aqui desenvolvida ao
argumento de Ely, seu ensaio, acima mencionado, é pertinente por situar
claramente o direito ao aborto no contexto da análise dos valores morais
que podem ou não ser extraídos da Constituição. Em sua essência, nisto se
pode concordar com o autor, a rationale adotada em Roe não encontra uma
base sólida no direito à privacidade enquanto um direito implicado na Pri-
meira Emenda ou na concepção integral da Bill of Rights. Trata-se de uma
rationale que apresenta, outrossim, fraca conexão ao apelo à ideia de
“classificação suspeita” (suspect classification) baseada no sexo. Por outro
lado, não se pode concordar com o autor quando o mesmo afirma não ser
possível identificar na Constituição quaisquer valores aptos, em uma pers-
pectiva principiológica, a justificar o controle judicial do exercício da sobe-
rania dos estados442.
As decisões da Suprema Corte posteriores a Roe v. Wade sustenta-
ram o discurso moral embutido nas legislações que regulamentaram, de for-

440
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 107.
441
ELY, John Hart. The wages of crying wolf: a comment on Roe v. Wade. 82 Yale Law
Journal 920, April 1973. p. 927, 943 e 946.
442
Ibidem, p. 932-3 e 948-9.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 227

ma restritiva, o procedimento do aborto. O que é observável na leitura dos


casos ora abordados, e, mais ainda, como se verá, nos casos julgados a partir
da década de 1990. Em geral, a “retórica política” (political rethoric) utiliza-
da para demonstrar o interesse do governo na proteção da vida potencial se
despreendeu do debate jurídico e assumiu feição marcadamente centrada em
uma concepção de “moralidade pública” (public morality) muito próxima,
vale pincelar, do argumento que marca o discurso religioso dos nossos tem-
pos, em muitas comunidades políticas443.
No passo em que Ely questiona qual seria o fundamento para
limitar a soberania estatal no controle político sobre o direito ao aborto,
Dworkin empreende o raciocínio oposto e questiona qual seria o funda-
mento para autorizar os estados a restringir o aborto 444. A discussão se
insere, de qualquer sorte, na problemática do suporte constitucional aos
valores morais individuais e políticos. O corte do financiamento público
aos serviços de atendimento ao aborto, a exigência de exames médicos de
viabilidade fetal e as medidas implementadas em nome do consentimento
informado da gestante foram justificados com apoio em uma única moti-
vação, declarada ou não: os estados podem formular medidas que influ-
enciem a mulher no sentido de ter o filho no lugar de realizar o aborto. A
justificativa pode ser expressa distintamente: os estados podem favorecer,
no controle sobre o processo reprodutivo, valores morais acerca da im-
portância da vida pré-natal não convincentemente demonstráveis em ba-
ses constitucionais.

5.2 O NOVO PADRÃO DE ANÁLISE DA


CONSTITUCIONALIDADE DO DIREITO AO ABORTO:
NECESSIDADE DE REFORMULAR ROE V. WADE À
LUZ DA AUTONOMIA ÉTICA DA MULHER

A decisão mais emblemática da mudança de perspectiva na proteção


do direito ao aborto foi proferida no caso Planned Parenthood Southeastern
443
DWORKIN, Ronald. Unenumereted Rights: Wether and How Roe Should be Overruled,
59 University of Chicago Law Review 381, Winter 1992. p. 395 e 412. É sempre opor-
tuno lembrar que para Dworkin os estados não podem restringir o aborto com fundamento
na moralidade pública, como faz em relação a outros assuntos, porque as convicções mo-
rais sobre o valor intrínseco da vida humana são extremamente fundamentais para nossa
“personalidade moral” (“personal morality”) (Ibidem, p. 412).
444
DWORKIN, Ronald. Unenumereted Rights: Wether and How Roe Should be Overruled,
59 University of Chicago Law Review 381, Winter 1992. p. 409.
228 Teresinha Inês Teles Pires

Pennsylvania v. Casey445, no qual várias restrições legislativas, todas elas ge-


radoras de dificuldades para as mulheres que optam pela interrupção da gesta-
ção, foram declaradas constitucionais pela Suprema Corte. Tais restrições
consistem, resumidamente, na imposição do consentimento informado da ges-
tante, até 24 horas antes de realizar o aborto, do consentimento dos pais, na
hipótese de gestante menor, e do relatório médico, a ser enviado pelo profissi-
onal que assiste a gestante às instituições de saúde que oferecem atendimento
ao aborto. A única exigência rejeitada, a favor do direito de escolha procriati-
va, foi a da notificação prévia ao pai da criança, reputada inconstitucional com
fundamento na integridade corporal da gestante.
As decisões proferidas nos casos City of Akron v. Akron Center e
Thornburgh v. American College, mencionadas na seção anterior, foram
expressamente revogadas em Casey, sob o entendimento de que são incon-
sistentes com o reconhecimento em Roe do interesse do governo na preser-
vação da vida potencial. Além disto, a Corte rejeitou a estrutura da regula-
mentação trimestral estabelecida em Roe para afirmar ser legítimo aos esta-
dos proteger a vida do nascituro durante todos os estágios da gestação. Foi
estabelecido um novo padrão para a análise das leis restritivas ao aborto, o
do “ônus indevido” (“undue burden”), segundo o qual as políticas do gover-
no somente são inaceitáveis quando impõem excessivos encargos às mulhe-
res que queiram interromper a gestação. Em linhas gerais, esta é a decisão
que, ao romper com o padrão do “escrutínio rígido” (“strict scrutiny”), desti-
tuiu, em certo sentido, o estatuto fundamental do direito ao aborto446.
Foi reafirmado em Casey que a proteção da substantive due pro-
cess clause da Décima Quarta Emenda alcança também outros direitos não
enumerados compatíveis com o conceito de privacidade, dentre os quais se
inclui o aborto447. Declarou-se que o modelo da rule of law, adotado pela

445
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013.
446
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. p. 837-840. Uma boa análise acerca da rejeição, em Casey, do
strict scrutiny, em favor do undue burden, é apresentada por GAYLORD, Scott W.;
MOLONY Thomas J. Casey and a woman’s right to know: ultrasounds, informed con-
sent, and the first amendment. 45 Connecticut Law Review 595, December/2012. Dis-
ponível em: <http://ssrn.com/abstract=2017041>. p. 620-627.
447
Ibidem, p. 847-8. Alguns autores posicionam-se no sentido de que a decisão em Casey
fortaleceu a aplicação das categorias constitucionais da dignidade, da liberdade e da
igualdade à autonomia da mulher, em relação ao aborto. Esta é a opinião de SIEGEL, Re-
va B. The constitutionalization of abortion. In: Abortion law in transnational perspec-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 229

Constituição do país, exige a continuidade das premissas adotadas nos pre-


cedentes judiciais. A stare decisis não representa um decreto inexorável, mas
a reversão da proteção de um direito de liberdade envolve a análise do grau
de confiança que as pessoas depositaram na estabilidade do sistema jurídico
em relação às suas garantias individuais. É preciso, ainda, avaliar se a regra
posta em questão perdeu a funcionalidade em face de modificações pragmá-
ticas, tais como a ocorrência de fatos novos ou de uma evolução dos parâme-
tros da interpretação constitucional, que tornem anacrônico o comando cen-
tral do caso anterior448.
Em relação a Roe v. Wade, a Suprema Corte não vislumbrou o pre-
enchimento dos requisitos que autorizariam sua reversão. Todavia, entendeu-
-se que as restrições firmadas na lei apreciada em Casey deixam intacto o ve-
redicto de que a mulher tem autonomia para interromper a gestação. A mu-
dança de enfoque diria respeito somente à admissão do interesse dos estados
na proteção do feto e não ao reconhecimento do direito, conferido com base na
Constituição, à interrupção da gestação por decisão da mulher. Sob o argu-
mento de que a decisão do caso Roe v. Wade admitiu o interesse dos estados
em proteger a vida potencial, independentemente da aceitação da crença de
que a vida começa na concepção, articulou-se a ideia de que é legítimo o esta-
belecimento de medidas favoráveis ao nascituro, não importando o estágio da
gestação. Por meio destas medidas estaria vedado banir o direito ao aborto,
mas seria admissível a formulação de exigências compatíveis com o valor
moral da vida potencial. Foi então que se enunciou o padrão do undue burden,
para sustentar que tais exigências apenas são inválidas, sob o prisma da due
process clause, quando impõem um “ônus indevido” (“undue burden”), um
“obstáculo substancial” (substantial obstacle), sobre a capacidade da mulher
de tomar sua decisão no tocante ao prosseguimento da gestação449.

tive. Pennsylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 25-6; e também


de DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and in-
dividual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 152-4. Entretanto, quando se pensa
nos consectários do esquema então estabelecido, no tocante aos testes de constitucionali-
dade das restrições legislativas, a decisão enfraqueceu, significativamente, no âmbito da
prática interpretativa, os padrões firmados em Roe v. Wade. Isto se evidencia, claramente,
nos casos posteriores a Casey, como se mostrará a seguir, nos quais o paradigma do undue
burden foi articulado enquanto uma metodologia recorrente para o endosso de novos limi-
tes e novas normas restritivas da realização dos procedimentos médico-abortivos.
448
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. p. 854-5.
449
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. p. 858, 868, 870, 874, 876-7 e 886.
230 Teresinha Inês Teles Pires

Não obstante, a perspectiva da ilegitimidade da regulamentação do


aborto a não ser no segundo trimestre, desde que para proteger a saúde da
gestante, integra a regra central firmada em Roe. Além disso, como se sabe,
no terceiro trimestre, é permitido restringir e até proibir o aborto, em nome
dos interesses fetais. Ocorre que as exigências das normas legislativas que
contaram com a aprovação da Corte, no caso Casey, em nada se relacionam
com tais hipóteses. Foi declarado em Roe que o governo tem autoridade para
manifestar interesses que vão além da exclusiva proteção da saúde da gestan-
te, na medida em que se está diante da ideia de potencialidade da vida450.
Entretanto, tal afirmação se inseriu na reflexão sobre o período da gestação a
partir do qual o interesse público na vida potencial poderia sobrepor-se à
autonomia procriativa da mulher ao ponto de justificar a regulamentação da
conduta. Trata-se de uma afirmação contextualizada, segundo a qual o en-
volvimento da vida potencial justifica a admissibilidade da restrição da prá-
tica do aborto em estágio avançado do desenvolvimento do feto, tal como
defendido por Dworkin, em consideração ao valor intrínseco de sua vida. De
outro lado, a mesma restrição antes do terceiro trimestre, fundamentada em
outras razões que não a garantia da saúde da mulher, significa sim rejeitar,
em sua essência, as premissas do precedente Roe v. Wade.
A decisão do caso Casey importou no engrandecimento do controle
público sobre o aborto e na reversão de várias normas protetivas da auto-
nomia procriativa, causando mudanças substanciais no significado das
cláusulas constitucionais utilizadas em Roe. Na interpretação feita no
caso Gonzales v. Cahart 451, acerca das políticas legislativas sustentadas
em Casey, tais mudanças foram ainda maiores. Os contornos do direito à
interrupção da gestação tornaram-se incompatíveis com um perfil pro-
gressista dos direitos de liberdade. As leis que restringem o acesso da
gestante à prática do aborto voluntário estão cada vez mais distanciadas
da regra firmada em Roe v. Wade452.
A redução do âmbito de proteção ao direito ao aborto introduz pa-
radoxos e ambivalências na definição da categoria da privacidade. Depois de
decretado que os estados podem limitar ou dificultar o acesso à interrupção
450
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 150 e 162.
451
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Gonzales v. Cahart, 550 U. S. 124
(2007). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. Ainda se irá
falar deste caso logo abaixo.
452
JOHNSEN, Dawn E. A progressive reproductive rights agenda for 2020. In: The Consti-
tution in 2020. Oxford/New York: Oxford University Press, 2009. p. 257.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 231

da gestação sem estarem submetidos ao strict scrutiny, a garantia da privaci-


dade perdeu sua consistência, abrindo-se margem, em tese, no contexto da
concretização dos princípios da liberdade e da igualdade, para a regulamen-
tação das decisões individuais em quaisquer outros assuntos de natureza
fundamental. No caso do aborto, novas restrições certamente serão firmadas,
no plano legislativo e nas políticas administrativas de governo, de maneira a
reforçar o “estigma” (“stigma”) que pesa sobre as mulheres que fazem um
aborto. Isto alimenta, ainda, a resistência social à discussão do tema, deses-
timulando os defensores de sua constitucionalidade a enfrentar a controvér-
sia moral que está na base da argumentação política dos estados453.
Em linhas gerais, com base em Webster v Reproductive Health
Services e Planned Parenthood v. Casey, o governo pode impor exigências
diversas à prática do aborto porque tem interesse, em uma base racional,
em favorecer a vida do nascituro desde o início da gestação. Os preceden-
tes da Corte apontam, com um grau razoável de clareza, em que consiste a
liberdade de expressão, de associação e de religião, dentre outras, em sua
intersecção com a categoria da liberdade da Décima Quarta Emenda. No
caso do aborto tal clareza foi quebrada, em face da reversão dos padrões de
análise de sua constitucionalidade. Não existe, no momento, um paradigma
confiável nos precedentes da Corte, em atendimento à premissa da stare
decisis, para determinar o fundamento normativo da aplicação da due pro-
cess clause, em sentido substantivo, na contenção da ação do governo em
matéria reprodutiva.
Em Casey, foi defendido que a aplicação do strict scrutiny, nos mol-
des do julgamento de Roe v. Wade, não permite nenhum tipo de intervenção
do governo com o intuito de garantir que a mulher, ao optar pelo aborto, pos-
sui todas as informações importantes para chegar a uma decisão refletida e
consciente. Considerou-se que qualquer medida, nesta direção, não seria con-
vincente o bastante para passar no teste do strict scrutiny. O padrão do undue
burden pareceu aos juízes uma metodologia mais apropriada para acomodar a
atuação dos estados, no que se refere ao aborto, porque possibilitava anular
somente aquelas políticas desnecessárias ao propósito de dotar a decisão da
mulher do maior grau possível de esclarecimento454. Assim, a situação se in-
verteu: se o strict scrutiny barrava a maioria das retrições legais para a realiza-
ção do aborto, agora, no teste do undue burden, raras serão as políticas repeli-
453
Ibidem, p. 256.
454
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. p. 872 e 878.
232 Teresinha Inês Teles Pires

das, na esfera judicial, por violação à autonomia procriativa da mulher. Em


rigor, qualquer restrição poderá ser considerada racionalmente aceitável desde
que não impeça diretamente a interrupção da gestação.
É oportuno mencionar aqui a advertência do juiz Blackmun, dissi-
dente em parte, no sentido de que o padrão do undue burden é instável e, ao
contrário do padrão do strict scrutiny, historicamente reconhecido e incorpo-
rado ao esquema interpretativo, constitui um comando não projetado para
enraizar-se como base sólida no âmbito da análise da constitucionalidade das
leis455. O novo padrão, na realidade, não articula nenhuma referência balan-
ceada para a delimitação do “escrutínio” (“scrutiny”) a ser seguido nos jul-
gamentos. O undue burden simplesmente elimina a necessidade de os esta-
dos demonstrarem um interesse “convincente” (“compelling”) em intervir na
conduta individual. A decisão, no caso Casey, sustenta que os estados não
podem criar empecilhos à prática do aborto, e, ao mesmo tempo, sustenta
que eles podem desestimular o aborto e encorajar a mulher a levar a gravidez
a termo. O argumento é “circular” e não oferece uma direção segura para
caracterizar a intensidade do ônus imposto à mulher. A Corte passa a ideia
de que o undue burden só existe quando a lei impede, de forma absoluta, a
gestante de ter acesso ao aborto456.
O modelo trimestral em Roe pressupôs que, no primeiro trimestre,
em nenhuma circunstância os estados podem intervir na decisão da mulher, e
que qualquer ação, ainda que de caráter informativo, esconde, no fundo, uma
intenção dissuasória, intrusiva na relação de confiança entre médico e paci-
ente. Esta é a base da conclusão então expressa de que o interesse dos esta-
dos, no primeiro trimestre, não é convincente, e não pode afetar a liberdade
de escolha da gestante. Não há elementos apoiados em razões públicas e
racionais que indiquem o desacerto de tal avaliação. O método analítico ado-
tado em Roe continua sendo o mais adequado e justo na normatização do
direito ao aborto, sendo o teste do strict scrutiny aquele que oferece a segu-
rança exigida pela Constituição, no que pertine à efetivação dos direitos re-
produtivos, delimitando, apropriadamente, o espaço do exercício do poder
coativo do Estado. Certamente, as restrições impostas pela lei objeto de aná-
lise em Casey seriam invalidadas na hipótese de utilização do escrutínio
judicial rígido457.
455
Ibidem, p. 964-6.
456
CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional law: principles and policies. 3. ed. New York:
Aspen Publishers, 2006. p. 829-30.
457
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. p. 930, 934 e 926.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 233

Qual seria o parâmetro para decretar, à luz do undue burden, que


uma medida é necessária para contribuir com a formação do convencimento
refletido da gestante? Não é razoável supor que o médico que a acompanha
não seja competente ao ponto de prestar-lhe, segundo seus critérios profissio-
nais, os devidos esclarecimentos para auxiliá-la a fazer a sua escolha consci-
entemente, requerendo, inclusive, os exames que considerar importantes. O
próprio conceito de “intervenção necessária” do Estado, supostamente calca-
da ou na proteção da saúde da mulher ou no favorecimento ao nascimento da
criança, lança a jurisprudência sobre o aborto em um esquema duvidoso,
retirando-lhe a certeza implementada em Roe v. Wade.
As políticas legitimadas em Casey teriam o propósito de aperfeiçoar
o consentimento da gestante ou de impor, indiretamente, um “obstáculo
substancial” (“substantial obstacle”) à realização do aborto?458 A linha divi-
sória entre estas duas hipóteses é bastante tênue. Entende-se que o interesse
do Estado na proteção da vida potencial contém em sua base a perspectiva de
preservar crenças religiosas tradicionalmente aceitas pela maioria das pessoas,
de maneira a interferir na habilidade moral da gestante de formar seu con-
vencimento.
Com efeito, as medidas implementadas com fundamento no direito
da gestante ao consentimento informado raramente são explicáveis à luz de
tal conceito. Consentimento informado exige que a gestante passe pelo cons-
trangimento de ter que esperar o tempo que o governo considera necessário
para que ela tenha certeza do que quer? Exige que ela seja submetida a ouvir
informações sobre o desenvolvimento fetal ou a ver imagens que lhe mos-
tram os movimentos fetais e os órgãos que já estão formados? Consentimen-
to informado exige que a gestante realize exames dispensáveis, do ponto de
vista de sua saúde, destinados a atestar a viabilidade fetal? Ou tudo isto é
imposto em decorrência de uma intenção do governo, não assumida, de con-
vencer a mulher de que o aborto é um ato moralmente censurável?
Segundo Paul Simmons, as informações costumeiramente reputa-
das essenciais para auxiliar a gestante terminam exercendo sobre ela uma
forte pressão que vai de encontro, muitas vezes, às suas noções particulares
de religiosidade, cujo conteúdo lhe permite o aborto como uma opção moral.
De fato, enfatiza Simmons, os protocolos destinados a aprimorar o consen-
timento da gestante são compatíveis com as “convicções de consciência”
(“concientious convictions”) das mulheres que são contrárias ao aborto, mas
458
SMITH, Priscilla J. Give justice ginsburg what she wants: using sex equality arguments to
demand examination of legitimacy of state interests in abortion regulation. 34 Harvard
Journal of Law & Gender 377, Summer 2011. p. 400.
234 Teresinha Inês Teles Pires

violam as convicções daquelas que são favoráveis à sua prática. Tal distin-
ção somente deixaria de ocorrer se houvesse “salvaguardas” (“safeguards”)
para a afirmação pública das crenças pessoais sem risco de hostilidade soci-
al459. Na prática, a doutrina do consentimento informado abre margem para
imposições governamentais arbitrárias e onerosas às gestantes que desejam
realizar o aborto, imposições estas que somente seriam justificáveis em uma
conotação protecionista clássica, sob cuja ótica a mulher necessita de orien-
tação do governo para tomar suas decisões reprodutivas. Do ponto de vista
dos seus interesses reais, acima da preocupação com o consentimento infor-
mado, o que precisa ser priorizado é a proteção de sua liberdade de consci-
ência e dignidade individual460.
Pode-se concordar com a colocação de Dworkin, já antes referida,
no sentido de que a opinião concorrente adotada no caso Casey desenvolveu
um argumento até mais poderoso do que o desenvolvido no caso Roe, pelo
juiz Blackmun, no que tange à configuração ética da autonomia procriativa e
à aplicação do princípio da liberdade religiosa, em relação ao aborto. Ade-
mais, acentuou-se a importância de delimitar a legitimidade do governo de
impor aos cidadãos juízos coletivos, em geral, sobre os “assuntos espirituais”
(“spiritual matters”). Em síntese, Dworkin chama a atenção para o fato de
que sua tese da proteção do direito ao aborto com fundamento na liberdade
religiosa se adequa totalmente aos argumentos contidos na decisão do caso
Casey, sendo que a mesma ênfase não se encontra tão fortemente em Roe.
Embora sem mencionar a ideia da sacralidade da vida, e sem apelar para a
459
SIMMONS, Paul D. Casey, Bray and beyond: religious liberty and the abortion debate. 13
Saint Louis University Public Law Review, 467, 1993. p. 482.
460
Ibidem, p. 480 e 483. Ver, também, DICKENS, Bernard M. The right to conscience. In:
Abortion law in transnational perspective. Pennsylvania/Philadelphia: University Pen-
sylvania Press, 2014. p. 222-3. Sobre o protecionismo baseado no gênero, ASHE, Marie.
Womens’s wrongs, religions’ rights: women, free exercise, and establishement in Ameri-
can Law. 21 Temple Political & Civil Righs Law Review 163, Fall 2011. p. 211, escla-
rece que a ideia de vulnerabilidade da mulher, como um ser que necessita de uma tutela
especial do Estado, começou a ser construída no caso ESTADOS UNIDOS. United States
Supreme Court. Reynolds v. United States, 98 U.S. 145 (1878). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014, citado na seção 4.2. De fato, a não
aplicação da free exercise clause à aceitação da poligamia, por motivos religiosos, susten-
tou-se na preocupação de salvar a mulher, identificada com seu papel familiar de esposa e
mãe, do sofrimento de ter que se submeter a um regime matrimonial não monogâmico.
Nas decisões mais recentes, mais propriamente a partir de Casey, a marca da vulnerabili-
dade feminina expressa-se através do argumento de que a gestante precisa ser protegida
contra os efeitos negativos de sua decisão de realizar o aborto, ainda que o procedimento
seja, à luz de sua consciência, uma opção moralmente admissível no contexto do controle
da reprodução.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 235

Primeira Emenda, os juízes concorrentes, em Casey, nela se apoiaram, indi-


retamente, quando declararam ser vedado aos estados a imposição de uma
“visão oficial” (“official view”) sobre a moralidade do aborto, o que está
explicitado na seguinte passagem: “no coração da liberdade está o direito de
definir um conceito próprio da existência, do significado, do universo, e do
mistério da vida humana”. E mais: “Crenças sobre estas questões não pode-
riam definir os atributos da personalidade”461.
Por outro lado, no que pese ser profícua a utilização da argumenta-
ção empreendida no caso Casey com o propósito de demonstrar o envolvi-
mento da Primeira Emenda na justificação do direito ao aborto, o resultado
mais efetivo, em termos práticos, do decreto ali contido foi desestabilizar sua
proteção constitucional. Basta lembrar que o teste aplicável ao caso foi mo-
dificado, como se mostrou acima. A adoção do padrão do undue burden deu
início ao avanço de diversas estratégias destinadas à reversão do caso Roe v.
Wade, ou, no mínimo, a uma significativa redução do acesso das mulheres
ao procedimento abortivo. Viu-se, por exemplo, que, no julgamento do caso
Burwell v. Hobby Lobby Stores462, o teste do undue burden serviu para en-
dossar a exclusão da cobertura dos planos de saúde aos serviços de contra-
cepção e aborto, amparando o direito à objeção de consciência dos emprega-
dores. O próprio Dworkin havia advertido, ao tratar do caso Casey, que a
Corte teria que apurar o teste do undue burden devido às restrições que os
estados passariam a criar, a partir de então, visando chegar bem próximo a
uma quase proibição do aborto463.
De fato, várias outras políticas foram implementadas pelos esta-
dos, nesta direção, após o julgamento de Casey. Algumas tiveram por
objetivo declarado informar a gestante acerca das características do feto.
Outras incluíram nos serviços reprodutivos a exigência de realização de
exames de ultrassom antes da prática do aborto, o que parece um propósi-
to disfarçado de conferir ao nascituro uma dimensão personificada e ma-

461
DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia and indi-
vidual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 171-2 e 175. A citação acima trans-
crita foi extraída de Planned Parenthood Southeastern Pennsylvania v. Casey, 1992,
851. No original: “At the heart of liberty is the right to define one‘s own concept of exist-
ence, of meaning, of the universe and of the mystery of human life” […] “Beliefs about
these matters could not define the attributes of personhood”.
462
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Burwell v. Hobby Lobby Stores,
Inc., 573 U.S.____ (2014). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 05 jul.
2014.
463
DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 173.
236 Teresinha Inês Teles Pires

nipular a conduta da mulher 464. Existe, ainda, um projeto de lei, introdu-


zido no Congresso Federal em fevereiro 2013, que determina a obrigação
dos médicos de informar as gestantes de que o feto, conforme dados cien-
tíficos, pode experimentar algum tipo de dor após 20 semanas contadas
da fertilização do óvulo465. Nesse caso, o feto é tratado sob a designação
de “criança não nascida” (“unborn child”), adquirindo, assim, o caráter
de um paciente destacado da gestante. A medida, se aprovada, não impor-
tará no banimento do direito ao aborto, porque se trata de um procedi-
mento destinado a regulamentar a conduta médica nos serviços de assis-
tência reprodutiva. É digno de observação, contudo, que a proposta, ob-
viamente, não está focada no interesse da gestante e sim na perspectiva
de atribuir personalidade ao nascituro.
Além dos aspectos relacionados ao consentimento informado, que,
como se viu, reduz a autonomia procriativa da mulher, verifica-se também
uma crescente diminuição na garantia do seu direito à saúde. É oportuno
pontuar que à época da decisão Roe v. Wade se conferia ampla proteção à
saúde da mulher no contexto da normatização do direito ao aborto. No caso
Doe v. Bolton466, a Corte apreciou a validade de uma lei criminal, provenien-
te do Estado de Georgia, que proibia o aborto salvo para salvar a vida ou
preservar a saúde da gestante, e em caso de estupro ou má-formação fetal. A
decisão não sustentou a inconstitucionalidade da lei como um todo, já que
não foi questionado, no respectivo apelo, os fundamentos da proibição em si
do aborto, mas apenas determinadas restrições à condução médica do proce-
dimento nos casos permitidos.
A Corte julgou inconstitucionais as exigências impostas na mencio-
nada lei, em relação à obrigatória realização do aborto em hospitais creden-
ciados à rede pública e à interposição de um Comitê para avaliar a necessi-
dade do aborto, entendendo que tais imposições poderiam por em risco o
bem-estar da gestante e a autonomia do médico de sua confiança de decidir,
464
Conforme GUTTMACHER INSTITUTE. States policies in brief: requerimentos for
ultrasom. February 1, 2014. Disponível em: <www.guttmacher.org>. Acesso em: 18 fev.
2014. Ver também, GAYLORD, Scott W.; MOLONY, Thomas J. Casey and a woman’s
right to know: ultrasounds, informed consent, and the first amendment. 45 Connecticut
Law Review 595, December/2012. p. 642-5.
465
ESTADOS UNIDOS. United States Government Publishing Office. S. 536: Unborn
Child Pain Awareness Act of 2013. Disponível em: <http://www.gpo.gov/fdsys/search>.
Acesso em: 18 fev. 2014.
466
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Doe v. Bolton, 410 U.S. 179 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. Observe-se que es-
te caso foi julgado no mesmo ano da decisão Roe v. Wade.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 237

segundo seu juízo clínico, sobre a conveniência da indicação do procedimen-


to. A própria lei examinada centrava-se, prioritariamente, na proteção da
saúde da gestante, pois todas as exceções à criminalização do aborto apoia-
vam-se em um amplo conceito de saúde, que envolvia o estado de bem-estar
físico, mental, psicológico e emocional. As disposições anuladas pela Su-
prema Corte, igualmente, tiveram por parâmetro essencial este significado
abrangente do direito à saúde, na medida em que se concebeu ser o médico
da gestante a pessoa adequada para ministrar-lhe, sem a interferência de
outros profissionais e do governo, os melhores cuidados de acordo com sua
condição individual467.
Com base no novo padrão de análise da constitucionalidade do di-
reito ao aborto, instituído em Casey, a concepção de saúde foi se estreitando
e se afastando fortemente do modelo anterior estabelecido sobretudo em Doe
v. Bolton. A primeira lei restritiva relacionada à proteção à saúde reprodutiva
veio do Estado de Nebraska, e foi apreciada em sede federal no caso Sten-
berg v. Carhart468. A lei, no caso, proibia a utilização de um método especí-
fico de realização do aborto no segundo trimestre, chamado, em uma conota-
ção politicamente tendenciosa, de “partial birth abortion”, algo como “abor-
to de nascimento parcial” (D & X)469. A lei foi julgada inconstitucional pela
única razão de que a proibição da D & X excepcionava, exclusivamente, a
hipótese da necessidade do procedimento para salvar a vida da gestante, mas
não a hipótese de que pudesse ser indicado para preservar sua saúde, inde-
pendentemente da existência ou não de risco de vida. Diante da ausência
467
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Doe v. Bolton, 410 U.S. 179 (1973).
Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 192 e 197.
468
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Stenberg v. Carhart, 530 U.S. 914
(2000). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013.
469
A D & X é uma das modalidades do método denominado na linguagem médica como
“dilatação e extração” (dilation and extraction – intact D & E), que consiste na retirada
do tecido fetal ainda intacto, para ser em seguida desmembrado e destruído. Em termos
gerais, a “dilatação e evacuação” (dilation and evacuation - D & E) é o procedimento
mais indicado no início do segundo trimestre da gestação. Em sua realização, ao menos
uma parte do tecido fetal é removida através de instrumentos cirúrgicos. A “intacta D &
E” (intact D & E) é uma variação da D & E, na qual, como dito, se remove não apenas
parte do tecido fetal, mas todo ele. A intacta D & E pode ser realizada de duas formas: ou
iniciando-se a extração pelos pés ou pela cabeça do feto. Quando pela cabeça, recebe o
nome de D & X, sendo somente esta designada pelo termo “partial birth abortion”. A in-
tacta D & E, em suas duas modalidades, é considerada o método mais seguro a partir da
16ª semana de gestação porque facilita a extração integral dos tecidos, evitando uma série
de complicações que podem levar, inclusive, à morte da gestante. (Conforme ESTADOS
UNIDOS. United States Supreme Court. Stenberg v. Carhart, 530 U.S. 914 (2000). Dis-
ponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 915-6 e 925-6).
238 Teresinha Inês Teles Pires

desta segunda exceção foi declarado, em conformidade com as premissas de


Roe e Casey, que a lei em questão impunha um ônus indevido à autonomia
da mulher de optar, sob a orientação do seu médico, pelo método de sua
preferência para praticar o aborto, o que violava, intrinsecamente, o direito à
liberdade de escolha470.
Observe-se que a decisão, embora tenha mantido a importância
da proteção da saúde da mulher em sua conexão com a liberdade de esco-
lha, já abriu, em suas entrelinhas, o caminho para a regulamentação dos
procedimentos abortivos, no segundo trimestre da gestação, com funda-
mento na proteção da vida potencial. A rationale da Corte foi no sentido
de que, de acordo com Roe, mesmo no terceiro trimestre as restrições do
governo não são válidas quando o aborto for necessário para preservar a
saúde da gestante, portanto, não seria razoável sustentar uma lei que, ao
restringir o aborto no segundo trimestre, não excepcionava as mesmas
circunstâncias. A lei foi anulada também porque não fazia uma distinção
precisa entre a intacta D & E, genericamente falando, e a D & X, única
supostamente banida por sua alegada semelhança ao próprio nascimento
do feto viável. Pela falta de precisão, a Corte concluiu que a mesma lei
seria aplicável a todos os procedimentos da D & E, sendo, portanto, in-
constitucional por acarretar ônus excessivo à decisão da mulher. Assim,
não foi a intervenção do governo na decisão da mulher o fundamento da
inconstitucionalidade da lei, e sim a falta de especificidade, em sua lin-
guagem textual, quanto ao método proibido. Em última instância, restou
articulável o retorno da questão à apreciação federal, desde que as leis
seguintes utilizassem uma redação mais estratégica.
Calorosa discussão se desenvolveu no julgamento de Stenberg v.
Carhart, em relação ao significado do modelo analítico do undue burden.
Como já dito, a opinião majoritária considerou que a proibição do método da
D & X, sem excepcionar a hipótese de que isto possa criar riscos à saúde da
mulher, não passa no teste do padrão do undue burden. A opinião dissidente,
por sua vez, argumentou que a decisão importaria no retorno à era anterior a
Webster, em que o aborto voluntário era assegurado em contraposição a
qualquer espécie de interesse público. Nas palavras do juiz Thomas, ao de-
clarar a lei inconstitucional, no caso Stenberg v. Carhart, a Corte estaria
desconsiderando o significado do decreto ditado no caso Planned Parentho-
od Southeastern Pennsylvania v. Casey471. A manifestação não seria preocu-
470
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Stenberg v. Carhart, 530 U.S. 914
(2000). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 930.
471
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Stenberg v. Carhart, 530 U.S. 914
(2000). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 983.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 239

pante se não tivesse obtido a concordância de outros três juízes dissidentes,


em um julgamento que bem denota o momento delicado de divisão entre os
membros da Suprema Corte, prenunciando a tendência ao retorno da regu-
lamentação do aborto ao domínio dos estados federados, com o esvaziamen-
to da conquista obtida pelas mulheres em Roe v. Wade.
O chamado Partial Birth Abortion foi, posteriormente, proibido
por uma lei federal, no ano de 2003472, igualmente sem conter a exceção da
proteção da saúde da gestante, e o assunto voltou à Suprema Corte por meio
do caso Gonzales v. Carhart473. Desta vez, foi afirmada a validade da lei, sob
o argumento da inexistência de um consenso médico sobre os riscos advin-
dos da proibição do método da D & X para a saúde da gestante. Sopesou-se,
ainda, que a lei, apreciada no caso, não representava um ônus excessivo por-
que outros métodos alternativos permaneceram disponíveis para a livre esco-
lha da mulher que deseja interromper a gravidez. A decisão Stenberg v.
Carhart foi, assim, revertida, e a jurisprudência federal reconheceu a autori-
dade dos estados para balancear as situações marginais de riscos desde que
se evidencie a busca de uma finalidade explicável em bases racionais474.
Na elaboração da lei em referência, os legisladores foram cautelo-
sos ao incluir na redação do texto alguns indicadores de que a D & X nunca
é necessária para assegurar a saúde da gestante, a fim de superar as dificul-
dades encontradas em Stenberg, que terminaram levando ao decreto de in-
constitucionalidade da lei estadual. Além disso, os congressistas afirmaram
que a D & X provoca graves riscos à saúde reprodutiva da mulher. Tais ar-
gumentos, sem base científica segura, foram usados como uma estratégia
para expressar a real intenção dos legisladores, consistente na afirmação de
que os estados têm interesse em preservar a vida do nascituro, considerando
o entendimento de que a proibição do método da D & X não afeta a proteção
da saúde das gestantes. Nos termos da redação da lei federal, o banimento da
D & X permitirá traçar uma linha divisória explícita entre o aborto e o infan-
ticídio. A partir daí, o texto apresenta raciocínios adicionais direcionados à
tese de que o chamado partial birth abortion conduz à visualização destaca-
da do feto, em relação ao corpo da mulher, dada a sua “similaridade ao as-
sassinato de uma criança recém-nascida”475.

472
CONGRESS.GOV. Partial-Birth Abortion Ban Act, S. 3 (108th Congress), 2003-2004. Dis-
ponível em: <https://www.congress.gov/bill/108th-congress>. Acesso em: 09 nov. 2013.
473
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Gonzales v. Cahart, 550 U. S. 124
(2007). Disponível em: <www.supremecourt.g ov>. Acesso em: 12 dez. 2013.
474
Ibidem, p. 162 e 167-8.
475
No original: “similarity to the killing of a newborn infant”, conforme: CONGRESS.GOV.
Partial-Birth Abortion Ban Act, S. 3 (108th Congress), 2003-2004. Disponível em:
240 Teresinha Inês Teles Pires

Segundo a Suprema Corte, a lei federal de 2003 foi mais específi-


ca, em relação aos casos aos quais se aplica, comparada à lei apreciada em
Stenberg476. Entretanto, como afirmado pela juíza Ginsburg, dissidente, no
caso em questão, solidificou-se, em Casey, a compreensão de que a regula-
mentação dos procedimentos médico-abortivos, mesmo após o início da viabi-
lidade fetal, deve submeter-se ao dever de proteção da saúde da mulher. Os
dados compilados pelo Congresso, por ocasião do julgamento do caso Sten-
berg v. Carhart, não demonstram a inexistência de riscos à saúde, em algumas
circunstâncias, e, muito menos, as noticiadas sequelas do procedimento da D
& X na capacidade reprodutiva futura da gestante. As evidências médicas
apresentadas ao próprio Congresso indicam, ao contrário, incerteza nos parâ-
metros apurados na lei, já que um grupo substancial de médicos manifestaram,
à ocasião, oposição ao texto na forma em que foi, nesta parte, redigido477.
Em rigor, está dito, mesmo que não expressamente, em Gonzalez v.
Carhart, que a proteção da vida potencial pode se sobrepor, a critério das
preferências dos estados, à proteção da saúde da mulher. É a primeira vez,
desde o início da primazia do direito à saúde na apreciação das leis antiabor-
tistas, cujo ponto alto ocorreu em Doe v. Bolton, julgado em 1973, que a
Suprema Corte derruba a exceção da inexistência de riscos à saúde para a
aceitação de qualquer normatização restritiva em relação à matéria. Tal re-
dução da tutela dos interesses da gestante está a serviço de um valor ao qual
boa parte da comunidade política vem atribuindo cada vez maior peso, ou
seja, o valor moral da vida nascitura.
Alguns autores acreditam que as restrições ao aborto escondem es-
tratégias legislativas tendentes a revigorar normas tradicionais de gênero.
Com apoio nas teses de Reva Siegel, defende-se, nesta direção, que a proibi-
ção do partial birth abortion advém da disposição de enfraquecer a tutela da
autonomia procriativa, chegando ao ponto de comprometer a garantia da
saúde da mulher, não para salvar o nascituro, mas para explicitar uma visão
ideológica arraigada no simbolismo cultural478. Ainda que esta hipótese não

<https://www.congress.gov/bill/108th-congress>. (12), (13), e (14). Text as of Oct 21,


2003. Acesso em: 09 nov. 2013.
476
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Gonzales v. Cahart, 550 U. S. 124
(2007). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 133.
477
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Gonzales v. Cahart, 550 U. S. 124
(2007). Disponível em: <www.supremecourt.g ov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 169-70 e
176-7.
478
APPLETON, Susan Frelich. Gender, abortion and travel after roe‘s end. 51 Saint Louis
University Law Journal 655, Spring 2007. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=
956191>. Acesso em: 13 abr. 2014. p. 660-1 e 665-6.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 241

seja demonstrável, percebe-se, ao menos, uma intenção, embora velada, por


parte dos legisladores e juízes, no sentido de apoiar a visão majoritária sobre
a sacralidade da vida. É claro que os tradicionais papéis de gênero estão
pressupostos na rationale do Congresso e da Corte, mas a questão do valor
moral-religioso da vida pré-natal, base da posição pro-life, coloca-se como o
grande referencial do esforço político tendente ao bloqueio gradativo do
acesso ao aborto.
A fim de disfarçar a minimização da importância da saúde da
gestante, os juízes, ainda em Gonzales v. Cahart, recorreram a uma “retó-
rica” (rethoric) inconsistente no sentido de que o aborto representa uma
escolha complexa e traumática, do ponto de vista moral, em relação a
qual algumas mulheres se arrependem e são acometidas de acentuado
quadro depressivo e outras complicações psicológicas 479. Na realidade, o
risco do arrependimento existe em qualquer decisão relacionada ao desti-
no reprodutivo, e a mulher, como sujeito autônomo, tem consciência de
tal possibilidade, assim como pondera, igualmente, que pode arrepender-
-se de levar a gestação a termo. Veja que a doutrina do arrependimento e
dos danos psicológicos é sustentada, no caso Gonzales v. Cahart, em

479
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Gonzales v. Cahart, 550 U. S. 124
(2007). Disponível em: <www.supremecourt.g ov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 159. Sa-
liente-se que não existem estudos concludentes sobre os efeitos psicológicos da realização
do aborto na vida das mulheres. Conforme explica JOHNSEN, Dawn E. A progressive re-
productive rights agenda for 2020. In: The Constitution in 2020. Oxford/New York: Ox-
ford University Press, 2009. p. 265, muitas mulheres vivenciam o aborto de forma trágica,
mas muitas absorvem bem a experiência compreendendo que não tinham condições de ter
o filho, além de não atribuírem à sua decisão a carga moral veiculada pela opinião dos le-
gisladores. A retórica dos danos psicológicos contribui para avançar os esforços pro-life
no sentido de criar uma imagem das mulheres enquanto “vítimas” (victms) prejudicadas
pelo erro de interromper a gestação, na suposição de que elas foram influenciadas pelas
leis e pelos profissionais e instituições médicas que encorajam a conduta. Tal abordagem,
na visão da autora, foi “irresponsavelmente” (irresponsibly) assumida pelos juízes da Su-
prema Corte no caso em comento. Segundo DICKENS, Bernard M. The right to con-
science. In: Abortion law in transnational perspective. Pennsylvania/Philadelphia: Uni-
versity Pensylvania Press, 2014. p. 234-235, e notas 94 e 95, alguns estudos mostram, in-
clusive, que os riscos à saúde mental da mulher, decorrentes de um aborto realizado no
primeiro trimestre, não são maiores do que os mesmos riscos que derivam do nascimento
de um filho indesejado. Outro estudo mostra a não existência do aumento da procura por
serviços de assistência psiquiátrica, por parte das mulheres, após a realização do aborto, e
a existência de um leve aumento desta procura depois do nascimento da criança. O autor
refere-se aos seguintes estudos: o primeiro intulado “Abortion and Mental Health: Evalu-
ating the Evidence‖, publicado na American Psycologist 64 (2009): 863-85; e o segundo
intitulado “Induced First-Trimester Abortion and Risk of Mental Disorder”, publicado no
New England Journal of Medicine 364 (2011):332-39.
242 Teresinha Inês Teles Pires

relação ao aborto em geral e não apenas no contexto do método ali com-


batido. Acredita-se que esta decisão dará subsídios aos estados para im-
por restrições adicionais ao aborto 480.
O caso Gonzales v. Cahart demonstra, mais que qualquer outro, o
quanto as restrições legislativas ao aborto são fundamentadas em termos de
moralidade política. No que pese a tentativa de vincular a proibição do mé-
todo da D & X aos interesses da preservação da saúde da gestante, reprodu-
tiva ou psicológica, a base do texto da lei, e também dos votos dos juízes
concorrentes, não foi outra senão a perspectiva ideológica da sacralidade da
vida potencial. Na interpretação do Partial Birth Abortion Act a Suprema
Corte mostrou sua disposição de acolher crenças morais influenciadas por
doutrinas religiosas em um assunto de fundamental importância na vida das
mulheres, tanto no tocante à sua independência ética, quanto à garantia de
sua saúde. Não se vislumbrou qualquer fundamento médico ou científico
para banir a autonomia da mulher, apelando-se para a simples arguição de
que o aborto envolve uma carga emocional negativa. Não há razoabilidade
na rationale da Corte, que, neste caso, atinge profundamente a concepção
jurisprudencial sobre a “liberdade e igualdade das mulheres em relação à
autodeterminação e à escolha moral”481.
O posicionamento adotado no caso Gonzales v. Cahart contraria
vários precedentes, tais como Colautti v. Franklin e Thornburg v. Ameri-
can College of Obstetricians and Gynecologists, os quais deixaram claro
ser vedado aos estados submeter as mulheres a riscos à sua saúde no con-
texto da escolha dos métodos abortivos. O mesmo entendimento foi ado-

480
GUTHRIE, Chris. Cahart, constitutional rights, and the psychologie of regret. 81 South-
ern California Law Review 877 (2007-2008). Disponível em: <http://ssrn.com/abstract
_id =1031235>. Acesso em: 15 mar. 2014. p. 879 e 886. O argumento desenvolvido em
Gonzales v. Carhart é criticado, igualmente, por vários autores, dentre eles: BALKIN,
Jack M. Abortion and original meaning. Constitutional commentary. v. 24:291, n.
101, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper n. 128. Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract=925558>. Acesso em: 13 abr. 2014; TOOBIN, Jeffrey. Com-
ment five to four. New Yorker 35, June 25, 2007; POLLITT, Katta. Regrets Only, The
Nation, May 14, 2007 apud GUTHRIE, Chris. Cahart, constitutional rights, and the psy-
chologie of regret. 81 Southern California Law Review 877 (2007-2008). Disponível em:
<http://ssrn.com/abstract_id =1031235>. Acesso em: 15 mar. 2014, notas 2 e 9.
481
ASHE, Marie. Womens’s wrongs, religions’ rights: women, free exercise, and estab-
lishement in American Law. 21 Temple Political & Civil Righs Law Review 163, Fall
2011. p. 210-12. No original: “women's freedom and equality with regard to self-
definition and moral choice”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 243

tado em Casey, que confirmou tal inadmissibilidade 482. No caso Calautti,


uma lei foi anulada por não especificar, indubitavelmente, que a saúde e a
vida da gestante têm precedência sobre a vida do feto, na hipótese de se
ter que balizar os dois interesses. Em Thornburgh, seguindo o mesmo
raciocínio, a Corte declarou inválida uma outra lei porque sua linguagem
e o seu propósito não asseguravam a proibição de que a gestante viesse a
se submeter a um “risco médico aumentado” (increased medical risk), em
função do interesse em se preservar a vida do nascituro, mesmo já estan-
do este em estágio de viabilidade 483.
Os votos dissidentes em Stenberg v. Cahart lançaram a semente
para a destituição do lugar ocupado pela proteção da saúde reprodutiva no
esquema da regulamentação do aborto. Como afirmado em Casey, o undue
burden somente se configura quando o obstáculo causado pela regulação é
substancial484. Assim, a sustentação, em Gonzales v. Cahart, da razoabilida-
de do banimento de um método abortivo específico restou facilitada para os
juízes favoráveis à validação da lei, bastando, para tanto, articular as infor-
mações médicas de um modo a dar a impressão de que a garantia da saúde
da mulher não estava efetivamente sendo atingida. Porém, inegavelmente, o
conceito de “risco médico aumentado”, utilizado em Thornburgh, foi des-
considerado, pois, mesmo existindo outros métodos abortivos utilizáveis no
segundo trimestre, a lei federal que baniu a D & X não possuía informações
suficientes para comprovar a inexistência de riscos à saúde nas circunstân-
cias particulares de cada caso.
Apesar de as estatísticas indicarem que 90% dos abortos no país
são praticados no primeiro trimestre da gestação 485, trata-se de um dado
que não diminui o significado da mudança do paradigma constitucional
na regulamentação do tema. O que está em questão é a reversão da garan-
tia do direito ao aborto, sedimentado na qualidade de um direito funda-
mental em Roe v. Wade. Em Casey, sua fundamentalidade foi rompida

482
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Stenberg v. Carhart, 530 U.S. 914
(2000). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013, Justice
Breyer. p. 931.
483
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Colautti v. Franklin, 439 U.S. 379
(1979). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013, p. 400;
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Thornburg v. American College of
Obstetricians and Gynecologists, 476 U.S. 747 (1986). Disponível em:
<www.supremecourt.gov>. Acesso em: 12 dez. 2013. p. 768-769.
484
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Stenberg v. Carhart, op. cit., p. 1.006.
485
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Stenberg v. Carhart, 530 U.S. 914
(2000). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 23 nov. 2013. p. 923.
244 Teresinha Inês Teles Pires

para a validação, através da instituição do padrão da undue burden, de


restrições à autonomia da mulher, com a imposição de requisitos vários
que comprometem sua habilidade de decidir livremente e dificultam o
caminho para aquelas que desejam interromper a gestação. Em Gonzales,
operou-se a redução tanto da garantia da liberdade de escolha quanto da
garantia da inexistência de riscos à saúde da gestante. Não há um prog-
nóstico positivo de mudança futura no direcionamento da regulamentação
do aborto, já que isto exigiria o rompimento com o significativo respaldo
conferido pela Suprema Corte às ideologias religiosas e sua hostilidade à
autonomia procriativa das mulheres. Diante da dominação, no espaço
público, do discurso da religião majoritária, o referencial constitucional
para a definição do compromisso com a igualdade, sobretudo, em relação
à independência ética, foi perdido 486.

5.3 CONCLUSÃO PARCIAL

Todas as restrições ao direito ao aborto, legitimadas nos julgamen-


tos da Suprema Corte, a partir dos anos de 1980, foram motivadas por con-
cepções morais específicas acerca do direito à vida do nascituro. Desde a
retirada do dever de financiamento público à prática do aborto, até a proibi-
ção do partial birth abortion, a discussão girou em torno dos interesses dos
estados em favorecer o nascimento da criança, ainda que isto signifique uma
interferência, de caráter persuasório, na decisão da gestante. A redução pro-
gressiva do acesso aos procedimentos abortivos foi estabelecida com base
em mudanças de paradigmas na interpretação do sentido substantivo das
cláusulas do devido processo legal e da igual proteção perante a lei.
O quadro atual de análise é o de que os estados podem tomar me-
didas que protejam a vida do nascituro desde o momento da concepção. A
substituição do strict scrutiny pelo padrão do undue burden atingiu o cerne
da decisão Roe v. Wade, e afastou da discussão sobre o aborto o envolvimen-
to da Primeira Emenda e sua vinculação ao reconhecimento do humanismo
secular. A tese de Dworkin de que o direito ao aborto está protegido pelas
cláusulas da liberdade religiosa restou, assim, enfraquecida.

486
ASHE, Marie. Womens’s wrongs, religions’ rights: women, free exercise, and estab-
lishement in American Law. 21 Temple Political & Civil Righs Law Review 163, Fall
2011. p. 213-4. No mesmo sentido, STOPLER, Gila. The liberal blind: the conflict be-
tween women’s rights and patriarchal religion in the liberal state. 31 Soc. Theory &
Practice 191, (2005), passim.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 245

É fundamental o resgate da defesa dos direitos de consciência da


mulher na abordagem do tema, o que exige o aperfeiçoamento do padrão
do “ônus indevido”. É possível incluir em tal ideia a proteção da inde-
pendência ética da gestante. A tentativa do governo de induzi-la, por
meio de suas políticas, a não praticar o aborto, no tempo legalmente per-
mitido, representa, sob este prisma, um “ônus indevido” à sua autonomia
moral487.

487
Exemplo emblemático do propósito dos estados de criar vários tipos de obstáculos à
realização do aborto está em um novo caso, que está prestes a ser julgado pela Su-
prema Corte norte-americana. Trata-se do caso ESTADOS UNIDOS. United States
Court of Appeals. Fith District, Texas. Whole Woman’s Health v. Cole: 2015. Dis-
ponível em: <http://www.ca5.uscourts.gov/opinions/pub/14/14-50928-CV0.pdf>. Acesso
em: 07 nov. 2015. O caso diz respeito a uma lei do estado do Texas, que impõe uma
série de exigências às clínicas prestadoras dos serviços de atendimento ao aborto, p a-
ra que mantenham seu funcionamento. Exige-se, por exemplo, que as instalações de
tais clínicas satisfaçam normas previstas para o funcionamento de centros cirúrgicos
ambulatoriais, o que significa que elas precisam se transformar em verdadeiros hosp i-
tais, sob pena de serem forçadas a fechar as portas. Além disso, impõe-se às clínicas
que apenas possam atender as mulheres que residem em áreas próximas à sua locali-
zação, especificamente determinadas na lei. Diante de tais medidas, dentre outras cri a-
das pela lei em referência, várias clínicas no Texas serão fechadas, e grande parte das
mulheres residentes no estado não terão acesso a nenhuma clínica apta a oferecer -
lhes os procedimentos e métodos abortivos. A lei foi declarada válida pela Court of
Appeals for the Fith Circuit, tendo algumas clínicas sediadas no estado apresentado
recurso perante a Suprema Corte Federal.
246 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 247

Parte III
A IMPLEMENTAÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO
DEMOCRÁTICO NA DESCRIMINALIZAÇÃO DO
ABORTO NO BRASIL: ABORDAGEM DOUTRINÁRIA E
JURISPRUDENCIAL
248 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 249

Capítulo 6

O PRINCÍPIO DA
AUTODETERMINAÇÃO INDIVIDUAL E A
TUTELA DO NASCITURO NO SISTEMA
CONSTITUCIONAL BRASILEIRO:
ADEQUABILIDADE DA
APLICAÇÃO DA CLÁUSULA
DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA
E DE CRENÇA

Serão analisados, nos próximos capítulos, os componentes da carta


de direitos fundamentais da Constituição de 1988 que possuam aplicabilida-
de à normatização da prática do aborto voluntário. Sob o prisma da busca de
uma decisão correta e do princípio da razoabilidade, toda a controvérsia que
perpassa o debate é passível de solução por meio de uma adequada composi-
ção entre o significado das cláusulas da dignidade humana, da legalidade, em
sua vinculação ao devido processo legal, da igualdade perante a lei e da li-
berdade de consciência e de crença. Os requisitos da dignidade funcionam,
na nossa Constituição, como origem normativa da liberdade de consciência,
além de indicar a centralidade do padrão do devido processo legal, em senti-
do substantivo, na análise do direito ao aborto.
250 Teresinha Inês Teles Pires

6.1 O CRIME DO ABORTO E SUA DESCONFORMIDADE


COM A CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS:
DIGNIDADE HUMANA, DEVIDO PROCESSO LEGAL E
IGUAL PROTEÇÃO PERANTE A LEI

Durante os anos de 1967 a 1977, grande parte dos países empreen-


deu, por meio do exercício da Jurisdição Constitucional, a revisão das leis
que criminalizavam o aborto. As Cortes dos Estados Unidos, Canadá e paí-
ses da Europa, particularmente, regulamentaram o direito ao aborto, por
vontade da gestante, com suporte na necessidade de conformar as leis vigen-
tes aos preceitos constitucionais488. Nas décadas posteriores, o mesmo cami-
nho foi seguido por outras jurisdições nacionais. No sistema brasileiro, a
análise das normas tipificadas no Código Penal, em relação à prática do
aborto, deve partir igualmente do estudo do texto constitucional e da dimen-
são unificante dos direitos fundamentais, mais especificamente dos direitos
individuais de liberdade489.
Um dos propósitos que direciona a obra, como se sabe, é propor a
aplicação da metodologia de análise do sistema norte-americano na delimita-
ção constitucional do direito ao aborto, a partir da interpretação conjunta do
significado material de determinadas cláusulas de direitos fundamentais pre-
vistas na Constituição brasileira. A intenção não é transpor, na íntegra, para
o contexto pátrio, os passos seguidos pela Suprema Corte Americana. Ao
contrário, pretende-se extrair do estudo feito, nos capítulos 3, 4 e 5, um per-
curso mais coerente e direto para demonstrar que a moldura da criminaliza-
ção do aborto no Brasil precisa ser revista, a fim de se adequar aos preceitos
constitucionais.
488
SIEGEL, Reva B. The constitutionalization of abortion. In: Abortion law in transna-
tional perspective. Pennsylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 16.
489
A definição dos “direitos fundamentais” pode ser cunhada, em uma narrativa bastante
elucidativa, na obra de MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed.
Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV, p. 9-10, nos seguintes termos: “direitos fundamentais”
podem “ser entendidos prima facie como direitos inerentes à própria noção de pessoa,
como direitos básicos da pessoa, como direitos que constituem a base jurídica da vida
humana no seu nível actual de dignidade, como as bases principais da situação jurídica
de cada pessoa”; “eles dependem das filosofias políticas, sociais e econômicas e das cir-
cunstâncias de cada época e lugar”. Mais adiante, leciona o autor que os direitos funda-
mentais podem ser classificados em “individuais e institucionais”, sendo os primeiros
aqueles que inerem às pessoas como “seres individuais” e os segundos aqueles que lhes
pertencem como seres inseridos “em instituições” ou, ainda, os direitos das próprias “ins-
tituições ao serviço das pessoas” (MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional.
2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV, p. 74).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 251

Nos Estados Unidos, a Corte iniciou a abordagem da autonomia


procriativa pelo adensamento do direito de privacidade, seguindo-se o
envolvimento da cláusula da igual proteção perante a lei, para depois
chegar à aplicação da cláusula do devido processo legal em sentido subs-
tantivo. O significado da dignidade humana não foi objeto de atenção,
considerando tratar-se de um princípio que, em geral, recebeu pequeno
desenvolvimento na prática jurídica do país, até por não estar textualmen-
te previsto na Constituição. Todavia, nos últimos anos, os Estados Unidos
vêm aumentando, por influência da jurisprudência internacional, sua re-
ceptividade à incorporação da análise dos requisitos da dignidade no seu
sistema interpretativo. Tais requisitos passaram a ocupar, ainda que não
explicitamente mencionados, papel central no julgamento de vários casos
jurídicos, como, por exemplo, aqueles que tratam do direito a uma morte
digna490. Além disso, a Suprema Corte não incluiu expressamente, na
regulamentação do aborto, a aplicação das cláusulas da liberdade religi o-
sa, na forma postulada por Dworkin; mas, como se mostrou antes, a pro-
teção da liberdade de consciência compôs, implicitamente, a base central
da argumentação dos juízes, seja na garantia da contracepção, seja na
garantia do aborto.
Convém pontuar, antes de se adentrar na análise dos dispositivos
da Constituição brasileira, que a argumentação que se irá desenvolver não
se sustenta na dogmática germânica dos direitos fundamentais, norteada
pelos princípios da proporcionalidade e da ponderação de valores, enquan-
to métodos adequados para a solução dos casos que envolvam uma suposta
colisão de direitos. Entende-se, junto com Dworkin, que os direitos e valo-
res constitucionais não entram em colisão, uma vez que há sempre uma
solução correta que indica qual a pretensão de reconhecimento de um direi-
to, aparentemente colidente com outra pretensão, é compatível com o sis-
tema democrático-constitucional. O direito que se mostrar conforme a Cons-
tituição deve ser assegurado em sua plenitude, e o que, ao contrário, eviden-
ciar não possuir tal conformidade deve ser julgado inexistente à luz do orde-
namento jurídico491.

490
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial.
Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 11, 20, 40-2 e 55.
491
OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2014. p. 49-51. Como acentuado pelo autor, nestas passagens: “não
faz sentido se falar em limites dos direitos fundamentais ou limites dos limites dos di-
reitos fundamentais. Ou, ainda, da proteção do núcleo ou conteúdo essencial dos direi-
252 Teresinha Inês Teles Pires

O desenvolvimento da função do Judiciário na concretização dos


direitos fundamentais exige que se evite ao máximo as “arbitrariedades in-
terpretativas”. A fim de reduzir o espaço da discricionariedade e a abertura
das normas constitucionais abstratas, a busca de uma solução correta para os
casos jurídicos transforma-se em uma necessidade inerente ao ato de inter-
pretar a lei, ou seja, inerente ao próprio conceito contemporâneo de direito.
Sem o parâmetro da verdade interpretativa, seria possível fundamentar di-

tos fundamentais, como teimam em fazer os principais autores do Direito Constitucio-


nal Brasileiro”. Emílio refere-se, dentre outros, a autores como Gilmar Ferreira Men-
des, Paulo Gustavo Gonet Branco, Virgílio Afonso da Silva e Ingo Wolfgang Sarlet.
Em síntese, segundo a teoria de ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed.
São Paulo: Malheiros, 2011. p. 91-102 e 116-120, o princípio da proporcionalidade é
utilizado quando existe uma colisão entre princípios, que se soluciona por meio do so-
pesamento entre os interesses envolvidos no caso concreto, onde um deles adquire maior
ou menor peso. Nesse método, nenhum dos princípios é declarado inválido porque não
há uma precedência, em termos absolutos, de um em relação ao outro. A técnica da
ponderação dos princípios, valores ou interesses, cria, assim, um padrão de reconheci-
mento dos direitos fundamentais no qual cada um deles é assegurado no grau máximo,
ou seja, sob a ótica da “otimização”, e não de forma plena. OMMATI, José Emílio Me-
dauar. Liberdade de expressão e discurso de ódio na Constituição de 1988. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 129 e 131, explica que esse modelo se contrapõe
diretamente à teoria de Dworkin por duas razões: por admitir múltiplas interpretações
igualmente convincentes, o que importa em negar a tese da existência de uma única d e-
cisão correta; e por supor que os direitos fundamentais são relativos e podem colidir,
estando sujeitos, portanto, à ponderação. Ver, no mesmo sentido, STRECK, Lenio Luiz.
Hermenêutica jurídica e(m) crise uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 386-389, que destaca a
expansão da utilização da teoria de Robert Alexy por parte da doutrina brasileira e do
Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal, particularmente, “faz constantes refe-
rênciais ao termo ‗ponderação‘” e “a princípios constitucionais em conflito”. No en-
tanto, a metodologia da ponderação não fornece uma resposta convincente à questão da
discricionariedade das decisões judiciais. Uma visão crítica da utilização do método da
ponderação de valores pode ser lida, ainda, em DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Di-
reitos humanos e liberdade religiosa: os domínios recalcitrantes do direito internacio-
nal: as tensões entre as diversidades religiosas e o processo de internacionalização dos
direitos humanos. Brasília: Senado Federal, v. 205, 2014. p. 181-186. Por fim, para um
aprofundamento sobre o princípio da proporcionalidade, consulte-se MENDES, Gilmar
Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009. p. 46-72; PEDRON, Flávio Quinaud. A solução do conflito entre prin-
cípios pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: a Técnica da proporciona-
lidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, a. 97, v. 875, set. 2008; BARROS, Suzana de
Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das
leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2003; ÁVILA,
Humberto Bergmann. A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever
de Proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador/BA, a. I, v. I, n. 4, jun.
2001. Originalmente publicado na Revista de Direito Administrativo, (215):151-179.
Rio de Janeiro: Renovar, jan./mar. 1999.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 253

versas decisões que, embora divergentes, se mostrassem igualmente adequa-


das no contexto da argumentação jurídica492.
Os juízes precisam fundamentar as decisões considerando a neces-
sidade de se assegurar, “no maior grau possível”, “iguais liberdades funda-
mentais a todos”. Existe um único “juízo de correção normativo” para cada
caso concreto a ser solucionado, que pode ser alcançado através da conside-
ração, de forma imparcial, de todos os argumentos apresentados pelas partes.
As outras respostas possíveis sempre vão conter um déficit material em ter-
mos de promoção da justiça. Essa perspectiva requer a vinculação do signifi-
cado que se atribui aos direitos fundamentais ao modelo da democracia cons-
titucionalista. Na dinâmica entre a teoria do direito e os elementos concretos
dos casos jurídicos, a interpretação das normas legislativas deve alicerçar-se
em um esquema jurisdicional unitário que se reestrutura em cada etapa do
seu desenvolvimento. Em outros termos, o aperfeiçoamento dos princípios
constitucionais, no juízo de aplicação, possibilita encontrar a decisão correta
para os casos particulares, e, ao mesmo tempo, construir grades de análise
que reverberam no julgamento de casos futuros. É nesse processo que se
efetiva o padrão da coerência jurídica e, portanto, a dimensão do direito co-
mo integridade493.
É preciso deixar claro que, no caso do aborto, a resposta correta
não é a mesma em todos os estágios do período gestacional; isto é, pode-
se reconhecer e garantir o direito da mulher ao aborto no primeiro trimes-
tre ou até um pouco mais adiante, e reconhecer, no mesmo passo, que, a
partir desses estágios da gravidez, o valor da vida fetal justifica a prote-
ção dos seus interesses em vista do grau avançado do seu desenvolvimen-
to. Ou, como no sistema norte-americano, declarar a constitucionalidade
do direito ao aborto até o segundo trimestre da gravidez. Lembre-se, aqui,
da sugestão que se fez, anteriormente, no sentido de que o princípio da
razoabilidade, na concepção de Rawls, reforça a tese da “unidade do va-
lor”. Além disso, conforme demonstrado na primeira parte da obra, em
especial nas seções 1.1 e 1.3, a aplicação de tal princípio permite, em
uma abordagem complexa, porém, consistente, a inclusão do direito ao
aborto na carta dos direitos fundamentais, nas hipóteses em que não se
evidencie um interesse público a legitimar sua proibição.
492
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise uma exploração hermenêuti-
ca da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 390-1
e 394.
493
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da argumentação jurídica: constituciona-
lismo e democracia em uma reconstrução das fontes do direito moderno. 2. ed. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2009. p. 149, 151, 155, 176-9.
254 Teresinha Inês Teles Pires

Nesta direção, a leitura ora empreendida, no tocante à concretiza-


ção dos princípios constitucionais, sugere que os principais conceitos da
dogmática clássica dos direitos fundamentais não são eficazes para a conclu-
são de que o aborto não pode ser classificado como ato criminoso, desde a
fertilização do óvulo. Com base em tais referenciais, haverá sempre uma
margem de indeterminação, no aspecto da moralidade da conduta, que sus-
tentará a precedência do direito à vida potencial em face da autonomia de
consciência da mulher. Por outro lado, o método de análise dos princípios,
sob o prisma da integridade do direito, por pressupor a independência ética e
a razoabilidade das doutrinas morais abrangentes, compatibiliza-se com o
sistema político-normativo brasileiro, o que é demonstrável em face da larga
proteção conferida pela Constituição às liberdades individuais.
No sistema brasileiro, a dignidade é a base argumentativa sob a
qual se deu início à investigação jurídica relacionada aos direitos reproduti-
vos. O conceito de dignidade desenvolvido por Dworkin sedimenta esse
raciocínio como sendo o mais adequado para definir um padrão objetivo de
interpretação constitucional, que possa conduzir ao reconhecimento do direi-
to ao aborto. Para a Suprema Corte dos Estados Unidos, o princípio da dig-
nidade, como dito acima, não é um valor fundamental independente, mas
está subsumido aos direitos fundamentais, enumerados ou não, particular-
mente, no que se refere aos “direitos à privacidade e à igualdade”, na forma
prescrita pela Décima Quarta Emenda Constitucional. De qualquer sorte, a
proteção conferida à liberdade de escolha, nos casos relativos ao tema do
aborto, pelo viés do direito à privacidade, contém em si os requisitos da dig-
nidade, na visão defendida no presente trabalho494. No mesmo sentido, a tese
de Dworkin da utilização das cláusulas da liberdade religiosa, firmadas na
Primeira Emenda, como fundamento do direito ao aborto, pressupõe sua
conexão aos requisitos da dignidade humana.
Os alicerces do autogoverno e da democracia coparticipativa, con-
cebidos por Dworkin495, aparecem no primeiro artigo da Constituição brasi-
leira, cujos incisos indicam a centralidade dos princípios da dignidade hu-

494
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial.
Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 42-4. Barroso ressalta, inclusive, que no caso Planned
Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey (505 U.S. 833, 1992) a dignidade foi
textualmente pincelada nos votos de alguns juízes.
495
Remete-se, aqui, o leitor à seção 1.4 da obra, onde se explicou a distinção estabelecida por
Dworkin entre a democracia majoritária e a democracia coparticipativa, e as razões pelas
quais o autor elegeu o segundo modelo (coparticipativa) como sendo o único adequado
para a efetiva implementação de um regime democrático constitucionalista.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 255

mana, da cidadania e do pluralismo político. Essa parte compõe o Título I do


texto, que inclui também o princípio da independência e da harmonia dos
poderes institucionais, a vinculação do regime político ao ideal de uma soci-
edade livre, justa e solidária, e a prevalência dos direitos humanos. O sistema
de direitos fundamentais individuais está enunciado, de forma extensa e ana-
lítica, no Título II, Capítulo I, art. 5º, da Constituição, onde aparece, como
noção básica e raiz da integridade do direito, o princípio da igualdade peran-
te a lei. No caput do artigo, assegura-se a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade e à igualdade, sob o manto da essencialidade da igual proteção
jurídica a todos os cidadãos.
A conexão entre a dignidade e o exercício da cidadania atribui às
premissas da teoria moral e política uma função basilar na esfera da positi-
vação dos direitos fundamentais. Pode-se dizer que a unidade da moral e do
direito formulada por Ronald Dworkin se conforma inteiramente ao modelo
de organização política e jurídica fortalecido pela Constituição de 1988.
Operacionalizou-se uma espécie de transposição de “pressupostos axiológi-
cos” para a esfera do direito positivo. A autonomia moral possui nítido cará-
ter de uma garantia constitucional, englobando a liberdade, em sentido gené-
rico, e o igual status da pessoa humana na dimensão da autodeterminação da
consciência. Não se concebe a dignidade sem sua vinculação à autonomia e,
portanto, aos direitos morais496.
A supremacia da igualdade, explicitamente adotada na Constitui-
ção, é um preceito heurístico condutor do método interpretativo a ser se-
guido na delimitação do direito à vida e dos direitos de liberdade, especi-
almente, na investigação sobre a legalização do aborto. O princípio da
igualdade está sempre em pauta, em matérias fundamentais, enquanto um
fio condutor funcional capaz de alargar a elasticidade da garantia material
dos direitos. Não basta assegurar a igualdade perante a lei, em sentido for-
mal, mas vincular o legislador à elaboração de leis que sejam, em seu pró-
prio conteúdo, leis igualitárias, que atribuam, em regra, tratamento equita-
tivo a todas as pessoas497.
A metodologia mais correta para a inserção do princípio da igual-
dade na solução dos casos jurídicos consiste na investigação sobre a existên-
cia de eventual tratamento diferenciado, de caráter discriminatório, no cerne
do conteúdo da norma aplicável a cada caso concreto. E, sendo identificado
496
OLIVEIRA, James Eduardo. Constituição Federal anotada e comentada. Rio de Janei-
ro: Forense, 2013. p. 10-11.
497
Ver, nesse sentido, CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da
Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 409-410 e 426-432.
256 Teresinha Inês Teles Pires

algum fator de desigualdade, é preciso avaliar se a classificação da lei pode


ser justificada de forma logicamente aceitável. Um tratamento distinto para
diferentes grupos de pessoas é arbitrário, quando o elemento do descrimen
não se associa a um objetivo acolhido pelo sistema jurídico. As classifica-
ções que envolvem matéria relacionada à raça, ao sexo, às convicções de
consciência ou crença religiosa, e às classes sociais, são as de maior contro-
vérsia e as que requerem uma fundamentação mais rígida para serem legiti-
madas em um esquema constitucional498.
O princípio da igualdade sexual está expressamente previsto no
primeiro inciso do art. 5º da Constituição, cujo significado material se asso-
cia a diversas outras disposições, que também perseguem o nivelamento
entre os direitos do homem e da mulher499. Regra geral, as distinções aceitas,
por motivo de sexo, são as que têm por finalidade reduzir os desníveis sexuais
porventura existentes na garantia dos direitos fundamentais500. Assim, o
princípio da igual proteção perante a lei, em uma conotação de gênero, pode
ser utilizado, no sistema pátrio, como um dos fundamentos para acolher o
direito à interrupção da gravidez em seus estágios iniciais. É preciso levar
em consideração as desvantagens socioeconômicas que atingem a vida da
mulher, que é obrigada a assumir um filho por imposição legal, aspecto elu-

498
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucio-
nal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 114. Sobre o significado do princípio jurídico da
igualdade perante a lei, confira-se MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo ju-
rídico do princípio da igualdade. 3. ed., 21ª tir. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 15-19 e
37-40; MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral: comen-
tários aos arts. 1º e 5º da Constituição da República Federativa do Brasil: doutrina e juris-
prudência. Coleção Temas Jurídicos. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 81-9; BASTOS,
Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 05.10.1988,
2001. p. 5-14; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. Belo Hori-
zonte: Mandamentos, 2000. t. I, p. 88-93; MIRANDA, Jorge. Manual de direito consti-
tucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV, p. 205-216.
499
Conforme MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação
constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 125, nos termos do art. 5º, inc. I, “ho-
mens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”; nos termos do art. 3º, inc. IV, é ob-
jetivo fundamental da República combater a discriminação de qualquer espécie, inclusive
a discriminação por motivo de sexo; o art. 7º, incs. XVIII e XIX, prevê o direito à licença-
-maternidade e à licença-paternidade; os arts. 40, § 1º, inc. III, e 201, § 7º, preveem o di-
reito à aposentadoria por tempo de serviço, com prazo diferenciado para homens e mulhe-
res; o art. 143, § 2º, prevê a isenção da mulher no tocante à prestação do serviço militar
obrigatório; por fim, o art. 226, § 5º, prevê a igualdade entre o homem e a mulher no
exercício dos “direitos e deveres referentes à sociedade conjugal”.
500
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucio-
nal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 126. No mesmo sentido, SILVA, José Afonso da.
Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 74-76.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 257

cidado na seção 2.3, bem como os gravíssimos riscos à sua saúde e à sua
vida, advindos da prática do aborto ilegal501.
O padrão da igualdade de gênero proporciona elementos de análise
hábeis a edificar uma ligação entre a autonomia procriativa da mulher e seu
direito de interromper o desenvolvimento da vida embrionária, representan-
do uma abordagem recepcionada pela Constituição de 1988. Tal perspectiva
é correta, sobretudo, em face da norma contida em seu art. 5º, § 2º, na parte
em que se determina a possibilidade da incorporação de novos direitos de-
correntes dos documentos internacionais, especificamente, no caso, aqueles
documentos cujas prescrições protegem os direitos das mulheres, conferindo
força ímpar ao dever do Estado de assegurar a equiparação sexual em todas
áreas do exercício da cidadania502.
501
Sobre o aborto ilegal no Brasil e o dever do Estado de tomar medidas legais e políticas
para eliminar a sua prática, consulte-se PIRES, Teresinha Inês Teles. O princípio da segu-
rança jurídica e o direito da mulher à saúde reprodutiva: uma análise acerca do dever do
Estado na prestação de assistência à saúde física e mental da mulher no contexto da ilega-
lidade do aborto. Revista de Informações Legislativas. Brasília, a. 51, n. 201, p. 129-49,
jan./mar. 2014. CDD 340.05/CDU 34(05). p. 137-9 e 142-5; VIANA, Paula (Coord.);
FREITAS, Ângela (Redação). Colaboração Beatriz Galli [et. al.]. Jornadas Brasileiras pe-
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curumim.org.br/site/imprensa/kit_jornalistas6.pdf>. Acesso em: 14 maio 2013. p. 23-41;
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Aborto e saúde pública no Brasil: 20 anos. Secretaria de
Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Departamento de Ciência e Tecnologia. Bra-
sília, 2009. Série B – Textos Básicos de Saúde. p. 17-38, e Magnitude do aborto no
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tuações de violência sexual. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Pro-
gramáticas Estratégicas. Brasília, 2008. Área Técnica de Saúde da Mulher, II, Título III.
Série B, passim; AQUINO, Estela M. L.; MENEZES, Greice. Pesquisa sobre o aborto no
Brasil: avanços e desafios para o campo da saúde coletiva. Cad. Saúde Pública. Rio de
Janeiro, 25 Sup 2:S193-S204, 2009, passim; TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto
inseguro: é necessário reduzir riscos. 2008. Disponível em: <http://www.aads.org.
br/arquivos/Torres_2008.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2012. p. 5-11 e 22; SANTIAGO,
Ricardo Cabral. Saúde da mulher e aborto. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de
decidir: múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 33-9;
MEDEIROS, Patrícia Flores; GUARESCHI Neuza M. de F. Políticas públicas de saúde
da mulher: a integralidade em questão. Estudos feministas. Florianópolis, 17(1): 296,
jan./abr. 2009. p. 42-8; e MEDEIROS, Patrícia Flores; GUARESCHI Neuza; NARDINI
Milena; WILHELMS Daniela M. O aborto e as políticas de atenção integral à saúde da
mulher. Pesquisa e Práticas Psicossociais, 2 (1). São João Del Rey, p. 18-23, mar./ago.
2007.
502
Conforme art. 5º, § 2º, CF: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Esclareça-se que a
abordagem da igualdade de gênero, sob o prisma do direito internacional, já alcançou um
grau de aperfeiçoamento significativo, cujo adensamento não se comporta dentro dos pro-
258 Teresinha Inês Teles Pires

Por outro lado, uma argumentação abrangente sobre o tema do


aborto não pode deixar de enfocar, diretamente, a definição do alcance da
liberdade da mulher de decidir e agir com base em seus juízos éticos sobre o
significado moral da interrupção da gravidez, quando este for o seu intento.
O adensamento das cláusulas da liberdade, no caso, requer, de toda sorte, a
utilização do princípio da igualdade, na medida em que não se pode permitir
uma proteção diferenciada, em relação ao sexo, da “dignidade jurídica, mo-
ral e social”503 da pessoa humana. Na Constituição do Brasil, a matriz da
liberdade de ação voluntária reside no princípio da legalidade esculpido no
seu art. 5º, inc. II. Aí está enunciada a categoria abstrata da liberdade, que
indica os critérios para a legitimação do poder coativo do Estado, estruturan-
do, assim, a base do Estado de Direito504. Deve-se, inicialmente, delimitar a

pósitos do presente trabalho. Pode-se mencionar, apenas para transmitir ao leitor um pa-
norama geral sobre o assunto, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ratificada pelo Brasil no ano de 1984, a qual
criou extensa plataforma de direitos em prol do crescimento do status das mulheres, tor-
nando-se uma referência para todo o mundo em termos de diretrizes públicas voltadas ao
combate às desigualdades sexuais. O texto integral da CEDAW está disponível para con-
sulta no site da United Nations: <www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/>. Acesso em: 24
nov. 2013. Vale salientar, ainda, que a Convenção Inter-Americana sobre Prevenção, Pu-
nição e Erradicação da Violência Contra as Mulheres (Convenção do Belém do Pará),
através dos seus arts. 2º e 3º, incluiu no conceito de violência qualquer ato, público ou
privado, que resulte em opressão física, sexual ou psicológica, em violação à liberdade
das mulheres. E, no art. 4º (b), (e) e (f), o mesmo documento reafirma o direito das mulhe-
res à integridade mental e moral, à dignidade e à igualdade. Ao dilatar o conceito de vio-
lência de modo a envolver qualquer espécie de restrição ao exercício das liberdades fun-
damentais, por parte das mulheres, inclusive, a opressão à sua integridade moral na toma-
da de decisões de natureza privada, os padrões de análise da Convenção do Belém do Pará
produzem efeitos importantes na garantia da autonomia procriativa. O documento está
disponível em: <www.oas.org/juridico/english/treaties/a-61.html>. Acesso em: 24 nov.
2013. Conforme SARMENTO Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos limites da vida: aborto,
clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro:
Lumen Juiris, 2007. p. 54-63 e 66, além dos documentos internacionais já mencionados,
vários outros contêm recomendações no sentido de que os Estados-Membros garantam o
exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e revisem suas legislações pu-
nitivas no tocante ao aborto, enfrentando o problema do aborto ilegal como uma questão
prioritária. Pode-se pincelar, dentre tais documentos, a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento, Cairo/1994, a Quarta Conferência Mundial sobre as Mu-
lheres, Beijing/1995, as Recomendações 19 (1992) e 24 (1999) dos Comitês da CEDAW,
os Comitês da ONU sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC (1966),
e a Segunda Conferência Mundial sobre a Mulher, Copenhagen/1980.
503
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do
Brasil: promulgada em 05.10.1988. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 20.
504
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 237-8. Ver, também, MORAES, Alexandre de. Constituição do Bra-
sil interpretada e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 130-1.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 259

vinculação do direito ao aborto ao significado genérico da liberdade, verifi-


cando-se, após, se a matéria se enquadra, ainda, no conteúdo de alguma
categoria específica, que proteja a autonomia individual, na forma estabe-
lecida pelo texto constitucional; por fim, é possível, e até mesmo imperati-
vo, averiguar se a proibição do aborto representa uma normatização dis-
criminatória, que importe em violação à garantia do exercício igual das
liberdades em questão.
O princípio abstrato da liberdade é um parâmetro conceitual para
a concretização da liberdade de expressão (art. 5º, incs. IV e IX), da liber-
dade de consciência, crença ou convicção filosófica (art. 5º, incs. VI e
VIII), da privacidade, da intimidade (art. 5º, inc. X) e da inviolabilidade da
casa (art. 5º, inc. XI). Dentre estas cláusulas específicas, afetas aos direitos
de liberdade, a liberdade de consciência e de crença é a única que possui
um elo direto e satisfatório com a afirmação da fundamentalidade do direi-
to ao aborto, razão pela qual, dando sequência ao que se propôs demonstrar
desde o início, tentar-se-á aprofundar a questão. Não será difícil evidenciar
que os princípios da dignidade humana, da autonomia ética e do pluralismo
político foram recepcionados pela Constituição brasileira com o perfil esta-
belecido pelas teorias da democracia constitucionalista, na linha pressuposta
ao longo da obra.
A proteção da privacidade, da intimidade e da casa tem em sua ba-
se o direito a um espaço doméstico de construção da vida familiar e sexual, e
das relações entre pais e filhos, sem a interferência do Estado, da sociedade e
de terceiros. Tal proteção inclui até mesmo “a liberdade” de se ter “relações
homossexuais”505. No entanto, tais matérias, mesmo se consideradas em seu
conjunto, não comportam de forma indubitável o envolvimento do direito da
mulher à interrupção voluntária da gestação, a não ser que sejam conectadas
a outras categorias jurídicas. O estudo do tema no direito norte-americano
tornou explícita a insuficiência da noção de privacidade enquanto um princí-
pio fundamental capaz de envolver, por si só, a precedência da autonomia
decisória da mulher em face dos interesses do nascituro. Por isso, não serão
tecidos aqui maiores comentários sobre as categorias da privacidade e da
intimidade e seu papel na justificação constitucional do direito ao aborto.
505
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 209. No mesmo sentido, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES,
Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 280-
1; MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitu-
cional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 160-1; BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives
Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 05.10.1988. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 71.
260 Teresinha Inês Teles Pires

Essa estratégia não impede destacar a vinculação jurídica da pro-


teção da privacidade à dignidade humana no sentido de autonomia moral.
A esfera da vida privada representa a esfera do respeito à personalidade
humana e à capacidade de decisão individual dentro dos contornos permi-
tidos pelas obrigações morais e políticas sustentadas em interesses públi-
cos. Tanto a liberdade quanto a privacidade não são corretamente compre-
endidas, sem a inserção, em seu conteúdo, das premissas éticas da dignida-
de, com os limites estabelecidos pelo dever de ajudar aos outros. Isso cons-
titui o cerne da doutrina de Dworkin. Neste sentido, a dignidade, embora
não seja um princípio constitucional autônomo, exerce o papel de um “fun-
damento jurídico-normativo dos direitos fundamentais”, o que é válido,
particularmente, no que diz respeito aos direitos não expressos na Consti-
tuição506. A dignidade é a raiz conceitual originária que possibilita susten-
tar, inclusive, no Brasil, o direito ao aborto, na qualidade de um direito
fundamental. Melhor dizendo, a dignidade pode ser articulada como fonte
interpretativa da cláusula da liberdade de consciência, portanto, como cri-
tério de justificação moral do direito à livre adoção de convicções pessoais
sobre o valor intrínseco da vida humana.
Em outra dimensão, a Constituição proporciona ampla margem pa-
ra o aperfeiçoamento da aplicação da cláusula do devido processo legal (art.
5º, inc. LIV), em sua interação com o princípio geral da legalidade (art. 5º,
inc. II), considerando não apenas o sentido formal do devido processo, mas,
sobretudo, seu sentido substantivo. Essa cláusula, até mesmo por pressupor
os componentes da dignidade humana, é o principal instrumento metodoló-
gico para o exercício do controle judicial da validade dos atos legislativos507.
A implementação do controle de constitucionalidade desconstruiu a cisão
506
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial.
Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 59, 64 e 66.
507
OLIVEIRA, James Eduardo. Constituição Federal anotada e comentada. Rio de Janei-
ro: Forense, 2013. p. 253. Nas palavras de FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direi-
tos humanos fundamentais. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 119-20, o devido proces-
so legal foi importado “do direito anglo-norte-americano” (a due process clause), conten-
do, indiscutivelmente, a força substantiva que lhe foi atribuída na prática jurisdicional da-
quele país, como se viu na segunda parte da obra. Sobre o papel central do devido proces-
so legal substantivo no desenvolvimento do controle de constitucionalidade, confira-se,
ainda, LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio An-
tonio Fabris, 1999. p. 121-136; CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Te-
oria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 492-500; MARTEL, Letícia de
Campos Velho. Devido processo legal substantivo: razão abstrata, função e característi-
cas de aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 59-72.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 261

entre as dimensões formal e substancial da regra jurídica, o que resultou na


reelaboração do valor normativo do direito positivo. A ação do Estado su-
bordina-se aos dois níveis de legalidade, sendo que a “legalidade substanci-
al” “vincula o funcionamento dos três poderes à garantia dos direitos fun-
damentais”508.
A dimensão substantiva do devido processo legal contém em si a
perspectiva da unidade da ética, da moral, da política e do direito. Para que
uma lei seja legítima, não basta que ela tenha sido aprovada na esfera do
procedimento deliberativo; é preciso, ainda, que ela não seja incompatível
com as normas constitucionais. O devido processo legal impõe a exigência
do respeito à dignidade individual e ao pluralismo político, categorias que se
inserem nos parâmetros da integridade do direito e da razoabilidade das con-
vicções de consciência, operacionalizando-se enquanto cláusulas limitativas
da ação do Estado. A norma jurídica que restrinja a liberdade de ação indivi-
dual não pode ser validada sem a demonstração da existência de um interesse
público cuja realização dependa da restrição imposta. O padrão da “razoabili-
dade” autoriza os juízes a proceder a um raciocínio vinculado, de forma pre-
ponderante, ao aspecto da “justiça da norma”, de modo a realizar um contro-
le sobre seu próprio conteúdo, daí decorrendo a legitimidade para o decreto
de sua inconstitucionalidade, se for o caso509.

508
ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012. p. 90, 328 e 473. A fim de se ter uma breve noção acerca do
sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, caracterizado por ser um sistema
misto (controle concentrado e difuso) consulte-se a obra de FERREIRA FILHO, Manoel
Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Sarai-
va, 2010. p. 141-9.
509
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 1999. p. 119-20. Vários outros autores brasileiros articulam a validade do
conceito interpretrativo-hermenêutico do direito, inspirado na doutrina norte-americana da
judicial review, segundo o qual as decisões judiciais não apenas desvelam o sentido da lei,
ou a vontade do legislador; muitas vezes ultrapassam o significado semântico da norma-
-texto, concretizando seu conteúdo material. Seguem essa vertente, fortemente consagrada
na seara dos direitos fundamentais, que pode ser chamada vertente substancialista, autores
como: ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 60-77; SAMPAIO, José Adércio Leite. A Consti-
tuição reinventada pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002;
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise uma exploração hermenêuti-
ca da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 52-4;
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os concei-
tos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 87-93;
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da argumentação jurídica: constituciona-
lismo e democracia em uma reconstrução das fontes do direito moderno. 2. ed. Rio de Ja-
neiro: Lumen Juris, 2009. p. 193-204; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
262 Teresinha Inês Teles Pires

Os pressupostos desta vertente estão na origem da concepção de di-


reitos fundamentais adotada pela Constituição brasileira, e permitem cons-
truir uma diretiva consistente para defender que o direito ao aborto deve ser
regulamentado em sede de revisão judicial das normas penais pré-
-constitucionais, relativas à matéria. A legislação que pune criminalmente a
prática do aborto no Brasil (CP, arts. 124, 126 e 128) viola a cláusula do
devido processo legal (CF, art.5º, LIV), em sua conexão ao princípio da ra-
zoabilidade, porque elimina a autonomia procriativa da mulher, afetando,
assim, sua dignidade ético-moral. Perante a carta de direitos fundamentais da
Constituição, não há um interesse público que justifique manter a criminali-
zação do aborto, desde o momento da fertilização do óvulo, a não ser que se
aceite que o endosso à concepção moral majoritária, em relação à importân-
cia da vida potencial, constitui objetivo coletivo essencial à preservação da
segurança jurídica. O que seria admissível no modelo da democracia repre-
sentativa, mas não no modelo dworkiano da democracia coparticipativa.
A raiz conceitual do devido processo legal substantivo é o princí-
pio da autodeterminação. No que pese o alto grau de abstração da dimensão
semântica deste princípio, é possível assentar uma base argumentativa para
sua utilização, em sede de interpretação constitucional. Regra geral, a cláu-
sula do devido processo legal pode ser invocada sempre que se verificar uma
privação “desarrazoada” ou arbitrária de um direito que se relacione à prote-
ção da vida, da liberdade ou da propriedade. No entanto, dada a “vaguesa”
desta conceituação, o devido processo, para ser aplicado aos casos concretos,
precisa ser concretizado, em um procedimento de justificação, apoiado nas
circunstâncias específicas da questão analisada. Há que se considerar, ainda,
que o caráter flexível e plástico do princípio em referência facilita sua articu-
lação no reconhecimento de direitos fundamentais não expressos510.
O devido processo legal, em sentido substantivo, foi concebido
como fonte dos direitos de liberdade e como expressão positivada da dig-
nidade humana. Por volta do início do século XX, assumiu papel determi-
nante na garantia dos direitos de autonomia das mulheres 511. Não é demais
repetir que, na legalização do aborto nos Estados Unidos, o direito à priva-
cidade foi afirmado com fundamento na cláusula do devido processo legal
da Décima Quarta Emenda. A partir da evolução do conceito do devido
processo legal chegou-se à constatação de que o direito da mulher de reali-
510
MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido processo legal substantivo: razão abstrata,
função e características de aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 299, 302
e 308-10 e 313.
511
Ibidem, p. 316.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 263

zar ou não o aborto se ampara na necessidade de se conter a arbitrariedade


da ação governamental512.
No Brasil, as Constituições anteriores à atual, desde a de 1824 até a
de 1969, não consagraram textualmente a cláusula do devido processo legal
substantivo. Por outro lado, todas elas, exceto a de 1824, continham disposi-
ção prevendo a possibilidade da proteção de outros direitos fundamentais,
além dos enumerados, decorrentes do regime e dos princípios por elas ado-
tados. Assim, a doutrina assumiu o entendimento de que o devido processo
legal substantivo, no sentido construído pelo direito norte-americano, foi
incorporado ao nosso ordenamento jurídico. Na prática, contudo, somente a
partir da Constituição vigente o Supremo Tribunal Federal passou a utilizar
expressamente o princípio do devido processo legal na garantia dos direitos
fundamentais. A filiação desta cláusula à perspectiva da democracia consti-
tucionalista, e, portanto, do desenvolvimento da efetividade do controle de
constitucionalidade das leis, tornou-se, então, um padrão irrefutável do nosso
sistema jurídico513.
A dimensão da dignidade como autonomia, envolvida no conteúdo
do devido processo legal substantivo, incorporou-se à Carta de direitos fun-
damentais individuais. Nossa Constituição arrola uma série de direitos fun-
damentais, que podem ser ou não conjugados, na prática interpretativa, à
natureza substantiva do devido processo legal. É verdade que a invocação
deste princípio, com o propósito de assegurar direitos não expressos, é mais
restrita no sistema brasileiro do que no sistema estadunidense, devido ao fato
de termos uma Constituição recente, que, como tal, já detalha e especifica a
512
É preciso que se compreenda a importância da cláusula do devido processo legal substan-
tivo na formulação do significado do princípio da razoabilidade, cuja utilização na análise
do direito ao aborto deve assumir, como se defende, posição de destaque. Como afirmado
por BRAGA, Valeschka e Silva. Princípios da proporcionalidade & razoabilidade. Cu-
ritiba: Juruá, 2004. p. 42, o parâmetro da razoabilidade possui a função precípua de aper-
feiçoar o “controle da discricionariedade dos atos legislativos e governamentais”, daí sua
origem residir na extensão da cláusula do devido processo legal à esfera dos direitos mate-
riais, ou substantivos.
513
LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1999. p. 159, 165-8, 172-4 e 185-9. Conforme MORAES, Alexandre de. Consti-
tuição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
p. 322-3, dentre as decisões do Supremo Tribunal Federal que proclamam a natureza
substantiva do devido processo legal, sua vinculação ao princípio da razoabilidade, e sua
importância na limitação das competências legislativas para restringir as liberdades fun-
damentais, encontram-se as seguintes: STF/Pleno, ADIn 1.158/AM, Medida Liminar, Rel.
Min. Celso de Mello, 19.12.1994; e STF, Suspensão de Segurança 1.320-9/DF, Rel. Min.
Celso de Mello, DJ, Seção I, 14.04.1999. No mesmo sentido, BRAGA, Valeschka e Silva.
Op. cit., p. 62-3.
264 Teresinha Inês Teles Pires

maioria dos direitos fundamentais instituídos pelas demandas atuais da socie-


dade. Entretanto, o devido processo legal merece maior elaboração e é um
preceito eficaz, haja vista o disposto no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal,
já citado, que permite a derivação de direitos implícitos, que estejam envol-
vidos na proteção daqueles textualmente enunciados514. A declaração dos
direitos que decorrem do regime jurídico adotado no país não tem lugar ex-
clusivamente na esfera do exercício do majoritarianismo político, situando-
-se, também, em sentido largo, no espaço das decisões judiciais concretiza-
doras dos princípios constitucionais que integram o conceito do Estado De-
mocrático de Direito.
Ressalte-se que, do ponto de vista da metodologia argumentativa,
há uma distinção entre a categoria dos direitos implícitos e a categoria dos
direitos não enumerados. Ambas foram instituídas por meio do comentado
art. 5º, § 2º, da Constituição Federal. Contudo, é preciso ter em mente que a
noção dos direitos implícitos está associada ao conteúdo jurídico do princí-
pio da dignidade humana, a qual, como se sabe, é a base da concepção subs-
tantiva dos direitos fundamentais, interpretada a partir da ideia da suprema-
cia normativa da Constituição515. Nas palavras de Paulo Gustavo Branco, a
finalidade daquele dispositivo (art. 5º, § 2º da CF) é indicar que a dignidade
humana pode justificar a proteção de direitos não expressamente previstos
nos respectivos incisos. E que, muitas vezes, o acréscimo de um direito não
significa a criação de direitos novos, mas antes a especificação daqueles já
enumerados pelo constituinte516.
Neste enfoque, entende-se que os direitos implícitos constituem
uma dimensão estendida dos direitos expressos, sendo que tal extensão está
sedimentada no princípio da dignidade. Não estão claramente enunciados,
mas se enquadram no conteúdo, ou no significado abrangente, das cláusu-
las enumeradas. Os direitos implícitos não se incluem entre os direitos não
enumerados, porque seu pertencimento à Carta de Direitos é declarado por
meio de um raciocínio derivativo. Os direitos não enumerados, ao contrá-
rio, são direitos novos, não inseridos na proteção dos direitos enumerados,
nem mesmo de forma implícita. Em vários países, o reconhecimento dos
direitos implícitos, em sede de interpretação constitucional, representa
514
LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1999. p. 357, nota 666.
515
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constituci-
onal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 103-4 e 116.
516
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitu-
cional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 130 e 171.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 265

“hoje a dimensão mais importante de ativismo judicial”517. A Suprema


Corte norte-americana, por exemplo, apesar de já ter reconhecido diversos
“direitos fundamentais não enumerados na Bill of Rights, tem preferido
apresentá-los como desdobramento de direitos expressos, fundamentando-
os, portanto, nestes”518.
No caso do aborto, seguindo esta metodologia de interpretação, a
concretização do devido processo legal substantivo no direito brasileiro não
se afasta do padrão norte-americano. Diz-se isso, particularmente, porque
não se está propondo a aplicação autônoma da cláusula, mas antes a ligação
do seu significado à garantia específica da liberdade de consciência e de
crença. Aliás, firma-se posição no sentido da insuficiência do devido proces-
so legal, inclusive, no contexto norte-americano, no tocante à regulamenta-
ção adequada do direito ao aborto. Em contrapartida, a invocação isolada da
cláusula da liberdade de consciência e de crença pode mostrar-se menos
operacional, daí a importância de se buscar subsídios interpretativos na cláu-
sula do devido processo legal substantivo. No âmbito da prática judicial, o
devido processo legal recebeu, a fim de adquirir consistência, uma sofistica-
da estrutura metódica sustentada, como já pontuado, no princípio da razoabi-
lidade, o que facilita sua utilização com maior margem de acerto519.
517
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do ativismo judicial do STF. Rio
de Janeiro: Forense, 2014. p. 165.
518
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios fundamentais do direito constituci-
onal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 101.
519
MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido processo legal substantivo: razão abstrata,
função e características de aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 356, ex-
plica que o teste da razoabilidade possui três etapas analíticas: a) se existe ou não a priva-
ção de um direito material, que decorre da regra jurídica em apreciação; b) se o objetivo
visado pela lei é legítimo; c) se a restrição por ela estabelecida configura o meio menos
oneroso para se realizar tal objetivo. Os três requisitos precisam ser preenchidos. Se o
primeiro não se caracteriza, ou seja, se a conclusão for no sentido da inexistência da vio-
lação (privação) de um direito tutelado, à luz do devido processo legal, as etapas seguintes
sequer são analisadas. Ainda sobre o assunto, LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido
processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 200-208 e 273-287, escla-
rece que o Supremo Tribunal começou a utilizar, já na década de 1960, o teste da razoabi-
lidade, na aplicação do devido processo legal às ações de controle de constitucionalidade.
Pontua, ainda, a autora, que a doutrina brasileira, bem como a jurisprudência, tende a
identificar o princípio da razoabilidade com o princípio da proporcionalidade. Embora o
devido processo legal tenha chegado ao país pela influência do direito norte-americano,
nossa teoria constitucionalista, como se sabe, passou a guiar-se, igualmente, pelas premis-
sas do direito “romano-germânico”. Esta é a razão que motivou a aplicação conjunta dos
dois princípios, razoabilidade e proporcionalidade, em sentido unitário. Gilmar Mendes,
por exemplo, utiliza os dois princípios “como expressões intercambiáveis”. Em outra di-
reção, alguns autores, no direito internacional, esforçam-se por distinguir os significados
266 Teresinha Inês Teles Pires

Enfatize-se que o presente trabalho segue a compreensão de Dwor-


kin no sentido de que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
não são “intercambiáveis”, sob o prisma da interpretação constitucional. A
razoabilidade é mais consentânea com a defesa de Dworkin da existência de
uma única decisão correta para cada caso jurídico. O critério da proporciona-
lidade permite, em tese, várias respostas possíveis, e alcança, com menor
exatidão, na forma explicada na nota supra, o preenchimento da primeira
etapa do teste da razoabilidade, ou seja, a demonstração de que um determi-
nado ato normativo viola um direito material protegido pelo sistema jurídico.
Ademais, a razoabilidade do devido processo legal, para estar vinculada ao
conceito de justiça de Rawls, segundo o qual a garantia dos direitos incorpora
os requisitos do pluralismo moral, envolve, com a maior abrangência possível,
a aceitabilidade das concepções pessoais do bem como critério de interpreta-
ção das leis. A perspectiva do pluralismo moral razoável tem em sua base a
ideia de que as doutrinas morais não colidem entre si, em sentido genuíno,
pois partem de referenciais éticos distintos e igualmente válidos. O direito à
igual liberdade de consciência impede que se confira maior grau de reconhe-
cimento social às doutrinas majoritárias em relação às doutrinas minoritárias;
portanto, todas elas, sendo razoáveis, merecem plena proteção constitucional
e não se submetem a um grau de efetividade ótimo ou relativo.
Na concretização do direito à autonomia procriativa, a razoabi-
lidade, considerando seus aspectos moral, político e jurídico, impõe a
acomodação das visões do bem que coexistem no ordenamento social 520.

da razoabilidade e da proporcionalidade. Rosynete cita, nessa linha, Nicholas Emiliou,


que defende ser a razoabilidade um padrão genérico de análise da validade das obrigações
legais em face das condições particulares dos casos concretos, possibilitando a considera-
ção dos aspectos subjetivos que contornam a realidade da vida das pessoas envolvidas; a
proporcionalidade, diferentemente, para o autor citado, suporta-se em uma relação entre
“meios e fins”, contendo, por isso, uma conotação menos expansiva no que diz respeito à
efetivação material dos direitos. No Brasil, a especificidade dos dois princípios é defendi-
da, dentre outros autores, por OMMATI, José Emílio Medauar. Liberdade de expressão
e discurso de ódio na Constituição de 1988. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p.
121-129; SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais
798 (2002), 23-50. p. 27-30; BRAGA, Valeschka e Silva. Princípios da proporcionali-
dade & razoabilidade. Curitiba: Juruá, 2004. p. 99-134; ÁVILA, Humberto Bergmann.
A Distinção entre Princípios e Regras e a Redefinição do Dever de Proporcionalidade.
Revista Diálogo Jurídico. Salvador/BA, a. I, v. I, n. 4, jun. 2001. Originalmente publica-
do na Revista de Direito Administrativo, (215):151-179. Rio de Janeiro: Renovar,
jan./mar. 1999. p. 3-4 e 29-31.
520
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no Direito Constitucional
Contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial.
Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 101.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 267

Esta é a ideia principal que deve ser cunhada da complexa doutrina do


devido processo legal, a fim se postular sua inteira aplicabilidade ao si s-
tema brasileiro. Pode-se acentuar, em tal visão, que a proibição rígida do
aborto voluntário é incompatível com a ordem jurídico-democrática,
compreendida como um sistema de princípios, por importar, à luz do
princípio da razoabilidade, em violação à liberdade de ação, protegida
pelo devido processo legal, e à liberdade de consciência e de crença, em
sua conexão à escolha procriativa.
Tal proposta de associar uma cláusula genérica (devido processo
legal) a uma cláusula específica (liberdade de consciência e de crença), como
critério adequado para a concretização de um direito fundamental, é endos-
sada pelo mestre Canotilho. Com efeito, o jurista formula uma tese por ele
denominada “doutrina dos princípios constitucionais estruturantes”, os
quais incluem princípios gerais, princípios especiais e regras constitucionais.
Afirma o autor que a interpretação jurídica não ocorre em uma única via, dos
princípios mais abstratos (gerais) para os mais concretos, e sim através de
um movimento de mão dupla, em que também as regras constitucionais con-
tribuem para definir o âmbito de aplicação tanto dos princípios especiais
quanto dos princípios gerais. Da mesma forma, os princípios especiais po-
dem ser úteis para o propósito de aplicar os princípios gerais à análise de
determinados direitos que possam ser considerados fundamentais, apesar de
não estarem expressamente discriminados na Constituição. O adensamento
do ato de interpretar, em tal dinâmica, aumenta a complexidade e, ao mesmo
tempo, o grau de precisão do significado a ser atribuído aos princípios estru-
turantes, que, na linguagem de Canotilho, estão no topo da pirâmide. Todos
os princípios, em conjunto, formam “uma unidade material (unidade da
Constituição)”521.
Com apoio em Canotilho, é “razoável” propor, em vista da concre-
tização do direito ao aborto, que a dignidade humana seria o princípio estru-
turante que se materializa por intermédio do desenvolvimento simultâneo do
significado substantivo do devido processo legal, da igual proteção perante a
lei (princípios genéricos) e da liberdade de consciência e de crença (princípio
especial). Seja na esfera legislativa, seja na esfera judicial, o direito ao abor-
to deve ser concretizado com fundamento em uma leitura inequívoca que
reúna em si todos os sentidos da principiologia constitucional aplicáveis ao
caso. Assim, a seta adequada para alcançar tal resultado, sob o prisma, sem-
pre presente, da integridade da ética, da moral, da política e do direito
521
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.
Coimbra: Almedina, 2003. p. 1174-5.
268 Teresinha Inês Teles Pires

(DWORKIN), reside no pincelamento das cláusulas de direitos individuais


ora destacadas.
À luz das teorias de Rawls e Dworkin, a cláusula genérica da
igualdade, como já se afirmou antes, é um pressuposto essencial da definição
do âmbito protetivo de qualquer direito fundamental. Para os propósitos
deste trabalho, não é possível delimitar o conteúdo da liberdade de consciên-
cia e de crença sem ao mesmo tempo postular a garantia da igual indepen-
dência ética na adoção dos valores morais inseridos no direito ao livre plane-
jamento procriativo. Tal opção metódica está clara na investigação empreen-
dida, no Capítulo 5 da obra, sobre a aplicação das cláusulas da liberdade de
religião no sistema norte-americano.
Em suma, sob o prisma da leitura conjunta das três cláusulas (devi-
do processo, igual proteção e liberdade de consciência), e da limitação do
poder coativo do Estado na esfera dos direitos individuais, a regulamentação
do aborto, na moldura estabelecida pelo Código Penal Brasileiro, não se
sustenta. Os três padrões mencionados por Letícia Martel (nota supra 519)
denotam que as regras penais em questão não passam no teste do devido
processo legal substantivo. Vale dizer, não passam no teste porque condu-
zem à privação de uma liberdade básica da gestante e porque inexiste um
objetivo público legítimo cuja consecução dependa da punibilidade da práti-
ca do aborto.
Observe-se que o envolvimento da liberdade de consciência e de
crença, na perspectiva de se postular que o aborto é um direito fundamental,
é de suma importância, inclusive, à luz da cláusula do devido processo legal,
a fim de demonstrar que sua proibição desarrazoada produz a efetiva priva-
ção de um direito. Isto se justifica, especialmente, no sistema brasileiro, no
qual, consoante já afirmado, a aplicação autônoma do princípio do devido
processo legal é restrita. Uma vez que o direito ao aborto não está expressa-
mente protegido pela Constituição, pode-se deduzir sua derivação de um
outro direito de liberdade enumerado – a liberdade de consciência e de cren-
ça – derivação esta que tem adequação ao padrão analítico do devido proces-
so legal substantivo. Lembre-se, por oportuno, de que, consoante defendido
por Dworkin, a liberdade de consciência e o direito da gestante de interrom-
per voluntariamente a gestação são categorias intrinsecamente implicadas.
No caso da contracepção, é mais aceitável arguir sua derivação di-
reta do devido processo legal substantivo. Considerando a inexistência de
uma vida potencial, o direito à contracepção pode ser afirmado, em si mes-
mo, como um direito fundamental, cujo banimento é vedado pelo poder pú-
blico, sob pena de violação à autonomia protegida pelo devido processo le-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 269

gal. No caso do aborto, ao contrário, como se mostrou em capítulos anterio-


res, a interpretação dos contornos da liberdade, com base exclusiva nos prin-
cípios da dignidade e do devido processo legal, dificilmente conduz a uma
resposta satisfatória aos questionamentos relacionados ao eventual interesse
público de se preservar a vida do embrião. Proibir o aborto representaria a
privação do direito de escolha; todavia, poder-se-ia justificar que este direito,
no que se refere ao assunto, não é por si só passível de tutela, em face da
precedência do valor da vida nascitura.
É por meio da aplicação da categoria da liberdade de consciência e
de crença que se revela legítimo afastar, com fundamento no padrão da razoa-
bilidade, a autoridade do Estado de impor uma visão particular sobre o valor
intrínseco da vida. Na análise da legitimidade dos fins perseguidos pelo Es-
tado, ao proibir o aborto, o direito de escolha derivado do devido processo
legal adquire outro significado, quando se pensa que o objeto da tutela é a
escolha de convicções éticas afetas ao valor da vida em si mesma. Nesta
conotação, é plausível avançar o argumento de que na base da pretensão do
governo de proteger a vida do nascituro está uma retórica moldada por uma
moralidade particular que, por majoritária, se confunde com a moralidade
pública. E que, sendo assim, o fim visado pela medida restritiva não se justi-
fica por desatender o critério da razoabilidade522.

6.2 O DIREITO À VIDA E OS INTERESSES DO


NASCITURO: ESQUEMA DE PROTEÇÃO DA VIDA
PRÉ-NATAL ASSOCIADO À GARANTIA DA
DIGNIDADE DA MULHER

A Constituição de 1988 não definiu um regime de regulamentação


do direito ao aborto. Durante as discussões foram postas em pauta três pro-
522
Consoante MARTEL, Letícia de Campos Velho. Devido processo legal substantivo:
razão abstrata, função e características de aplicabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005. p. 363-4, o teste da razoabilidade, nesta etapa, leva em conta a averiguação sobre a
real intenção do ato do governo, pois pode ser que o motivo alegado, aparentemente legí-
timo, escamoteie um motivo ilegítimo, inconstitucional. Em diversos casos jurídicos, a
Suprema Corte norte-americana identificou, em algumas leis, fins escusos disfarçados por
argumentos aparentemente jurídicos. No caso Poe v. Ullman (367 U.S. 497, 1961), por
exemplo, o Estado alegou que a lei, proibitiva do uso de contraceptivos, visava “promover
a fertilidade” e “evitar o adultério”. Mas os Juízes perceberam que a lei tinha por meta, na
verdade, impor a visão moral de determinadas pessoas, segundo a qual a anticoncepção é
uma conduta censurável, sobre as demais.
270 Teresinha Inês Teles Pires

postas: a primeira postulava que se deveria proibir expressamente a prática


do aborto, assegurando-se o direito à vida desde a concepção; a segunda
defendia que o direito à vida deveria ser garantido após o nascimento da
criança, hipótese em que o valor da vida “intrauterina” se inseriria na esfera
da responsabilidade da mulher no sentido de refletir sobre as consequências
de sua decisão; a terceira proposta sustentava que a Constituição deveria
assumir uma posição neutra, nem liberando nem proibindo o aborto523.
Infere-se do texto constitucional que a terceira corrente prevale-
ceu, pois não há nenhuma prescrição expressa acerca da regulamentação do
aborto. A questão foi, assim, deixada para o âmbito da interpretação dos
princípios constitucionais fundamentais. Em rigor, a Constituição garante o
direito à vida, mas não diz a partir de que momento do processo gestacio-
nal, se for o caso, tem início a sua proteção524. José Afonso afirma que a
controvérsia precisa ser resolvida pela “legislação ordinária”, havendo
hipóteses em que se justifica permitir a prática do aborto, como nos casos
já previstos no Código Penal525. Embora este autor não advogue a amplia-
ção, em sede de revisão judicial, das hipóteses já estabelecidas, salienta a
legitimidade da atualização das leis pré-constitucionais, em geral, por meio
da atividade interpretativa, a fim de que elas se conformem à sistemática
adotada pela Constituição.
Na opinião de Ives Gandra, o art. 5º, caput, é claro ao afirmar que
o direito à vida é inviolável, impondo, assim, a proibição de se destruir a
vida do embrião, desde a concepção. Gandra entende, inclusive, que a ad-
missibilidade da prática do aborto, em caso de estupro, foi eliminada pela
Constituição, haja vista que o caput do art. 5º menciona, pela primeira vez, a
expressão “inviolabilidade do direito à vida”. Nas Constituições anteriores,
523
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 205; e Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2009. p. 67. Ver, também, DOMINGUES, Roberto Chateaubriand. Entre normas
e fatos, o direito de decidir: o debate sobre o aborto à luz dos princípios constitucionais.
In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir: múltiplos olhares sobre o aborto. Be-
lo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 81; LOREA, Roberto Arriada. Aborto e direito no Bra-
sil. In: CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e
direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 174; FEGHALI,
Jandira. Aborto no Brasil: obstáculos para o avanço da legislação. In: CAVALCANTE,
Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São
Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 216-7.
524
OLIVEIRA, James Eduardo. Constituição Federal anotada e comentada. Rio de Janei-
ro: Forense, 2013. p. 59 e 67.
525
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 205.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 271

falava-se simplesmente no respeito à inviolabilidade dos “direitos concer-


nentes à vida”, linguagem adotada, por exemplo, pela Emenda Constitucio-
nal 1/69526.
A interpretação de Ives Gandra, acima comentada, não tem a mí-
nima correspondência aos ditames do dispositivo constitucional em questão,
não havendo, em rigor, nenhuma distinção, em termos de conteúdo, entre a
linguagem da Constituição de 1988 e a linguagem das Constituições anterio-
res. A inviolabilidade do direito à vida, conforme textualmente prescrita,
nada diz sobre o problema de sua titularidade, que impõe uma reflexão jurí-
dica fundamentada na principiologia da carta de direitos como um todo. A
fim de se determinar quais são os sujeitos cuja vida não pode ser atingida, e
em quais circunstâncias, por ato do Estado ou de terceiros, é preciso verificar
o que diz a Constituição, especificamente, no que se refere ao alcance do
direito à vida. Em relação à vida pré-natal, é preciso, ainda, conjugar o signi-
ficado jurídico que a vida humana possui, quando ausente os atributos da
personalidade, e os componentes da dignidade humana e dos princípios da
liberdade e da igualdade, como se defende neste estudo.
A linguagem textual do art. 5º, caput, da Constituição, ao definir os
destinatários dos direitos que assegura, refere-se aos “brasileiros e aos es-
trangeiros residentes no país”. É claro que a linguagem literal da norma em
comento não pode ser tomada de forma estrita. Como afirma Celso Bastos, o
constituinte intencionou, no caso, alcançar hipóteses não expressamente
previstas, como, por exemplo, a proteção do estrangeiro não residente, es-
tando em trânsito no país, e das pessoas jurídicas, particularmente, no tocan-
te ao direito de propriedade527.
A maioria dos constitucionalistas defensores do direito à vida,
desde a concepção, alicerçam seus argumentos na compreensão de que a
inviolabilidade da vida se aplica a todas as formas em que se possa apr e-
sentar a vida humana, seja ela produzida naturalmente ou por meio das
técnicas de reprodução assistida. Na esteira de Ives Gandra, Paulo Gusta-
vo Branco também apoia esta posição, afirmando que o embrião não é
apenas um ser humano potencial, mas sim um ser humano que, por per-
526
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O direito do ser humano à vida. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005.
p. 25 e 29; e, do mesmo autor, O Pacto de São José e o direito à vida desde a concep-
ção, 2011. p. 503 e nota 3.
527
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do
Brasil: promulgada em 05.10.1988. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 4-5. No
mesmo sentido, MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legis-
lação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 103-4.
272 Teresinha Inês Teles Pires

tencer à espécie “homo sapiens”, se equipara às pessoas nascidas, no que


diz respeito à tutela do direito à vida. Considerando que o direito à vida
decorre do princípio da dignidade humana, a questão do aborto, para o
autor, não pode ser solucionada por meio do mero apelo à autodetermina-
ção da gestante, porque o valor da vida, à luz do art. 5º, caput, da Consti-
tuição, teria primazia sobre os demais valores, não estando, assim, sub-
metido ao princípio da ponderação 528.
Essa vertente de pensamento parte dos postulados biológicos da
individualidade genética, aos quais se dedicou longa análise, com o intuito
de mostrar sua impropriedade enquanto critério necessariamente vinculante,
à luz do significado jurídico dos princípios constitucionais. Além disso, a
identificação entre todas as formas de manifestação da vida humana, propos-
ta pelos citados autores, não pode ser sustentada como um parâmetro impli-
citamente incorporado ao sistema de direitos fundamentais, em face do si-
lêncio absoluto da Constituição no que diz respeito à inclusão do nascituro
entre os titulares do direito à vida529. Este silêncio denota uma opção do
constituinte originário de possibilitar a revisão da legislação punitiva da prá-
tica do aborto, por parte das instâncias jurídicas competentes. Na verdade,
quando se pensa no princípio da igualdade, a elasticidade protetiva do caput
do art. 5º da Constituição restringe-se à proibição de discriminação contra o
estrangeiro, em qualquer circunstância, e contra os interesses das pessoas
jurídicas. Em relação às pessoas físicas, o direito à vida está vinculado à
garantia da continuidade da vida da pessoa nascida e da dignidade de suas
condições existenciais. Os argumentos a favor da inclusão do nascituro, co-
528
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitu-
cional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 258-9 e 262. Outros autores brasileiros adotam
o mesmo entendimento, como MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 108-9; e Direitos
humanos fundamentais: teoria geral: comentários aos arts. 1º e 5º da Constituição da
República Federativa do Brasil: doutrina e jurisprudência. Coleção Temas Jurídicos. 6. ed.
São Paulo: Atlas, 2005. p. 266, 269 e 271; SILVEIRA, Néri da. Parecer. In: MARTINS,
Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin,
2005. p. 87; MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. Belo Hori-
zonte: Mandamentos, 2000. t. I, p. 188-190.
529
Como argumenta LOREA, Roberto Arriada. Aborto e direito no Brasil. In: CAVAL-
CANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos huma-
nos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 174, “A Constituição Federal
vigente não recepcionou a doutrina da proteção da vida desde a concepção, posto que
deixou de fazê-lo expressamente, como seria necessário para que assim fosse interpreta-
da, a exemplo do que ocorre em outros países”. Lorea menciona, como exemplo, a Cons-
tituição do Chile, que assegura expressamente, em seu art. 19, a proteção da vida do nas-
cituro, e a Constituição do Peru, que da mesma forma, em seu art. 4º, estende o direito à
vida ao embrião desde o momento da concepção (Ibidem, nota 11).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 273

mo titular do direito à vida, são, portanto, frágeis e inconsistentes, em pa-


drões hermenêutico-sistêmicos.
O apelo à supremacia da dignidade do nascituro em relação à dig-
nidade da mulher é um raciocínio simplista, por partir da falsa pressuposição
da existência de uma colisão de direitos, cuja solução deva ser alcançada
pelo princípio da ponderação. Na visão daqueles que entendem ser a inviola-
bilidade da vida pré-natal equivalente à inviolabilidade da vida da gestante, o
princípio da dignidade é articulável para se concluir que a mulher deve se
submeter a todos os tipos de prejuízos em prol da preservação da vida do
embrião, desde o início de sua formação. Neste caso, o princípio da pondera-
ção, se aplicado, não levaria a outro resultado senão o da exclusão absoluta
do direito de autodeterminação da gestante, considerando a primazia do va-
lor da vida se comparado à autonomia procriativa.
Todavia, a Constituição, como dito acima, não adota a equivalência
do valor da vida, antes e após o nascimento, sendo este o único sentido que
se pode extrair da conotação nitidamente neutra da redação do caput do seu
art. 5º em relação à proteção do nascituro. A melhor interpretação do princí-
pio da dignidade evidencia que existe uma diferença entre o estatuto jurídico
da pessoa e o do nascituro. Neste aspecto, Alexandre de Moraes acentua que
o conceito de vida, para a Constituição, se prolonga, de modo a alcançar a
garantia da liberdade, incluindo-se a liberdade sexual, uma vez que a viola-
ção aos direitos de liberdade caracteriza uma forma de se “atentar contra a
vida”. As hipóteses de permissão do aborto, firmadas no Código Penal, bem
como a hipótese do feto inviável, sem condições de sobrevivência extraute-
rina, seriam, assim, justificáveis, porque a Constituição impõe o respeito à
dignidade e aos direitos fundamentais da gestante. Entretanto, o citado autor
posiciona-se contrário à ampliação do direito ao aborto a outras hipóteses,
acreditando que o direito à vida, fora daquelas circunstâncias, alcançaria o
dever de proteção ao nascituro, sob pena de ferir sua dignidade e a igualdade
perante a lei530.
Veja-se que, nesta concepção, existe o reconhecimento de que a
vida extrauterina é digna de um maior grau de tutela do que a vida intraute-
rina, e de que a categoria do direito à vida se aplica também aos direitos da
gestante, no que se refere ao tema do aborto. Sendo assim, não há um argu-
530
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucio-
nal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 111-112; e também, do mesmo autor, Direitos hu-
manos fundamentais: teoria geral: comentários aos arts. 1º e 5º da Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil: doutrina e jurisprudência. Coleção Temas Jurídicos. 6. ed.
São Paulo: Atlas, 2005. p. 79-80.
274 Teresinha Inês Teles Pires

mento plausível que dê suporte à ideia de que a vida do nascituro tem o


mesmo valor constitucional, desde o instante inicial de sua existência, en-
quanto vida potencial, até o nascimento. A livre decisão da mulher, em rela-
ção ao seu desejo de prosseguir ou interromper a gestação, de acordo com
seus planos pessoais, está envolvida no conteúdo do seu direito à vida, im-
pondo-se a ela, todavia, que sua decisão seja tomada antes que o feto alcance
uma etapa avançada de sua formação biológica, ao ponto de adquirir interes-
ses em si mesmo. Não é razoável travar a reflexão sobre a questão, em con-
sideração ao dever de garantia do direito à vida da mulher, na esfera da auto-
nomia procriativa, sob o pressuposto de que o embrião merece ser protegido
a partir da união entre o óvulo e o espermatozoide. Tal pressuposto é incom-
patível com a intersecção, assumida pelo texto constitucional, particularmen-
te, na dicção do seu art. 5º, caput, entre as categorias “vida”, “liberdade” e
“igualdade”.
A regra penal que tipifica a prática do aborto está a exigir nova
conceituação e uma reformulação consentânea com o significado constitucio-
nal da intangibilidade da vida humana, o qual não alcança o período integral
da vida intrauterina. Não se pode, sequer, falar, numa acepção jurídica, em
“morte do feto”, sendo mais apropriado referir-se à interrupção do desenvol-
vimento biológico da vida pré-natal, ou, como descrito por Cláudio Spolido-
ro, do “produto da concepção”, que, ao menos na fase embrionária, é “me-
ramente” “potencial”, ou seja, “um estado potencial de vida futura”. É ade-
quado que o esquema normativo envolva a proteção dos interesses do nasci-
turo em estágios nos quais se possa conceber sua “autonomia biológica”, ou,
ao menos, o desenvolvimento avançado de suas funções orgânicas, sem que
isso implique em afirmar sua personalidade jurídica. Por rigor à terminologia
sistêmica do direito, não se pode chegar a outra conclusão senão a de que
existem duas etapas da vida biológica nitidamente delimitadas: a que prece-
de o nascimento com vida e a que o sucede. Por isto, a lei civil pode pôr a
salvo os interesses patrimoniais do nascituro, desde o momento da concep-
ção, e, ao mesmo tempo, determinar que a personalidade jurídica tem início
no nascimento com vida. A legislação infraconstitucional, no caso, não con-
fere à vida potencial o direito pleno à vida e os atributos da personalidade,
não sendo aceitável, portanto, que a tutela penal do nascituro se distancie de
tais referenciais interpretativos531.

531
SPOLIDORO, Cláudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo: Lejus,
1997. p. 10-11, 73, 84-5, 98 e 136-7. Ver, também KARAM, Maria Lúcia. Proibições,
crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o aborto. In: Escritos sobre a liberda-
de. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 2, p. 48-9; BATISTA, Nilo. Aborto: a Retórica
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 275

Para se compreender que a vida intrauterina não recebe igual pro-


teção jurídica em todos os estágios gestacionais, é de grande auxílio conside-
rar o posicionamento de Ronald Dworkin, relativo à ideia de inviolabilidade
da vida humana. Dizer que o nascituro não possui direito à vida não é o
mesmo que dizer que sua vida não possa representar um interesse público
legítimo, em determinadas circunstâncias. No entanto, nos estágios iniciais
de sua evolução biológica, se está diante não dos seus próprios interesses, e
sim da consideração do significado intrínseco da vida; em tal abordagem, os
termos “santidade” e “inviolabilidade” são intercambiáveis, ou indistintos532.
Ainda que Dworkin não trate da matéria sob o prisma estritamente
brasileiro, recolocar, aqui, suas ideias, é importante para reforçar o entendi-
mento de que não é o caso de se adotar, também no Brasil, a tese de que a
tutela da vida do nascituro tem início no momento da fertilização do óvulo.
É bastante elucidativa, no aspecto hermenêutico, a distinção estabelecida por
Dworkin entre o conteúdo do direito à vida, que se assegura somente à pes-
soa humana, e a possibilidade de se proteger os interesses do feto, em decor-
rência dos atributos que ele passa a conter, ao aproximar-se do final da ges-
tação. Trata-se de uma diretriz correta, a fim de se concretizar a norma cons-
titucional da tutela da vida, bem como o sentido de sua inviolabilidade, na
forma prescrita pelo art. 5º, caput, da nossa Constituição.
Voltando ao contexto brasileiro, uma outra ramificação argumenta-
tiva utilizada para justificar a compreensão de que a tutela da vida da gestan-
te, como sujeito dotado de personalidade jurídica, e a vida do nascituro não
se equivalem consiste na remissão às hipóteses excludentes da punibilidade
do crime do aborto. Não que este seja o principal raciocínio que evidencie a
necessidade de uma revisão da proibição da prática do aborto no Brasil. Po-
rém, é inequívoco que o próprio Código Penal estabelece uma hierarquiza-
ção entre o direito da gestante à vida e o interesse público na proteção do
nascituro (CP, art. 128, inc. I). A vida da gestante recebe tão maior grau de
tutela jurídica, em relação à vida pré-natal, ao ponto de se dispensar, inclusi-

contra a Razão. In: Temas de Direito Penal. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1984. p. 43-4;
CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. Pluralidade de vozes em democraci-
as laicas: o desafio da alteridade. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir:
múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 108, nota 2. Enfati-
zam as duas últimas autoras citadas que o art. 2º do Código Civil vigente (2002) salva-
guarda somente os direitos patrimoniais, especialmente, os direitos sucessórios, do nasci-
turo, os quais serão efetivados após o seu nascimento com vida, se for o caso.
532
Confira-se DWORKIN, Ronald. Life`s dominion: an argument about abortion, euthanasia
and individual freedom. New York: Vintage Books, 1994. p. 110, 113 e 115. Recomenda-
-se ao leitor o retorno às explicações contidas na seção 2.1 da presente obra.
276 Teresinha Inês Teles Pires

ve, o seu consentimento com a realização do procedimento abortivo, quando


há perigo iminente capaz de resultar na sua morte (CP, art. 146, § 3º, inc. I).
Não somente a vida da gestante, como também sua saúde psíquica,
é assumida pela norma penal enquanto um bem mais digno de tutela do que
a vida do nascituro, o que se explicita na hipótese da gestação decorrente do
estupro, conhecida com o nome de “aborto sentimental” (CP, art. 128, inc.
II). Neste caso, reconhece-se o direito ao aborto, por livre decisão da gestan-
te, ainda que sua decisão importe na destruição de um feto viável, sem qual-
quer anomalia que impeça sua sobrevivência extrauterina533. Se a dignidade
da mulher não merecesse maior consideração do que a dignidade fetal, esta
não poderia ser preterida em face dos sentimentos e da integridade psíquica
da gestante, uma vez que o feto não é sujeito ativo do crime de estupro, por-
tanto, não poderia sofrer nenhum prejuízo em seus direitos devido ao lamen-
tável incidente que deu causa à sua concepção534. Sendo assim, é “razoável”
postular a licitude do aborto em várias outras situações, que não a da fatali-
dade do estrupro, em razão das quais a mulher manifesta seu consentimento
com a interrupção da gestação535.
É notável que as normas que criminalizam o aborto tiveram por
sustentação uma visão rígida no que diz respeito à responsabilidade da mu-
lher pela gravidez, supondo-se que ela, ao consentir com a prática do ato
sexual, assumiu o risco de uma gravidez, devendo, assim, arcar com as con-
sequências que a maternidade traz para sua vida. Tal visão se torna explícita
na admissibilidade do aborto resultante do estupro, cuja motivação reside no
fato de que o ato sexual se realizou sem o consentimento da mulher. Trata-se
de uma valoração do legislador, que se explicita, ainda, na pena prescrita
533
DELMANTO, Celso, et al. Código Penal comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
470. Segundo Delmanto, tais elementos demonstram que a “celeuma do feto anencefá-
lico” não tem razão de ser, diante do reconhecimento do direito ao aborto sentimental, o
que representa uma contradição da lei penal, em seus fundamentos centrais. Não é coe-
rente permitir a destruição de um feto viável, com base na ocorrência circunstancial do
estupro, e, ao mesmo tempo, proibir a destruição de um feto inviável (Ibidem). Será
mostrado, no capítulo final da obra, como o Supremo Tribunal Federal corrigiu tal con-
tradição, ao julgar a ADPF 54, firmando padrões decisivos, em relação ao respeito à dig-
nidade da mulher.
534
SPOLIDORO, Cláudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo: Lejus,
1997. p. 145. No mesmo sentido, DOMINGUES, Roberto Chateaubriand. Entre normas e
fatos, o direito de decidir: o debate sobre o aborto à luz dos princípios constitucionais. In:
MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir: múltiplos olhares sobre o aborto. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008. p. 74-5.
535
KARAM, Maria Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o
aborto. In: Escritos sobre a liberdade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 2, p. 53.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 277

para o crime do aborto, bem inferior à prescrita para o crime do homicídio,


como ocorre nas legislações de grande parte dos países, compreendendo-se,
neste esquema, que a suposta negligência da mulher, ao não prevenir a ges-
tação, não pode ser punida tão gravemente, já que o feto não se equipara à
pessoa humana na proteção do direito à vida536.
A resposta ao problema do aborto deve ser construída sob o padrão
de análise dos princípios, e não das regras. Não é demais enfatizar, mais uma
vez, as lições de Dworkin no sentido de que “princípios têm uma dimensão
que regras não têm – a dimensão do peso ou importância”537. A maior im-
portância da vida e da dignidade da mulher, em relação à vida e à dignidade
do nascituro, assumida em nossa Constituição, permite retirar do sistema
constitucional a proteção do segundo nos dois primeiros trimestres da gesta-
ção, ou, no mínimo, durante o primeiro trimestre, ou até 14 semanas de vida
biológica. A redução da tutela da vida pré-natal, tão controversa, justifica-se
em face do conteúdo protetivo da liberdade de escolha e da igual garantia da
dignidade da mulher, em relação ao seu planejamento reprodutivo. Como o
padrão dos princípios, ao contrário do padrão das regras, não implica na
afirmação de sua validade ou não validade, em termos incondicionais538, há
consistência em se defender que a vida do nascituro é digna de proteção
apenas em estágios avançados do seu desenvolvimento biológico. Pode-se
dizer, ainda, que, na dimensão do peso a ser atribuído a cada princípio cons-
titucional, é prescindível a utilização do critério da ponderação, pois, nos
estágios iniciais, o embrião não possui interesses em si mesmo passíveis de
tutela, razão pela qual a interrupção da gestação, neste período, não fere a
sua dignidade.
Os diversos incisos do art. 5º da Constituição nada dizem sobre as
especificidades da inviolabilidade da vida, a não ser em relação ao direito à
privacidade, mas tal direito não se confunde com o direito à vida539. De fato,
536
DOMINGUES, Roberto Chateaubriand. Entre normas e fatos, o direito de decidir: o
debate sobre o aborto à luz dos princípios constitucionais. In: MAIA, Mônica Bara (Org.).
Direito de decidir: múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.
83. Ver, também, KARAM, Maria Lúcia. Op. cit., p. 47-48. Esclareça-se que a pena do
crime de homicídio é de seis a vinte anos de reclusão, enquanto que a pena do crime do
aborto é de um a três anos de detenção.
537
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts: Harvard Uni-
versity Press, 1977/1978. p. 26. No original: “Principles have a dimension that rules do
not – the dimension of weight or importance”.
538
Ibidem, p. 24 e 26.
539
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 193; e Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São Paulo: Ma-
lheiros, 2009. p. 62.
278 Teresinha Inês Teles Pires

o inc. X do citado artigo considera inviolável, junto com a intimidade, a hon-


ra e a imagem, a “vida privada”. Ocorre que a expressão “vida privada”,
aqui, não está conectada ao direito à vida, na acepção originária do termo,
que confere aos seus titulares garantia contra a eliminação arbitrária de sua
vida, por força do disposto no caput do mesmo artigo. O termo “vida priva-
da” está vinculado à garantia da dignidade moral, da personalidade humana,
da autonomia ética, inserindo-se, no contexto da controvérsia sobre o aborto,
na delimitação de uma abordagem que reconhece a liberdade de escolha da
mulher, em uma moldura que impeça que lhe sejam impostas constrições
excessivas.
Além disso, a aplicação do devido processo legal na proteção da
vida, especialmente, no tocante à vida embrionária, é algo controverso,
haja vista que o inc. LIV do art. 5º faz menção à tutela da privação da
liberdade e dos bens, não encorpando, em sua fórmula, a tutela da vida.
Ainda assim, não há de se negar que a cláusula do devido processo legal
tem uma certa adequação na garantia do direito à vida contra atos do go-
verno, ou de terceiros. Basta lembrar que o princípio maior da dignidade
humana, insculpido no art. 1º, inc. III, da Constituição, envolve a dimen-
são da vida humana, e que a inviolabilidade da vida está disposta no ca-
put do art. 5º, acima citado540. No entanto, o envolvimento do devido
processo substantivo na concretização do direito à vida é mais restrito,
não alcançando a mesma amplitude que se lhe atribui nos domínios dos
direitos de liberdade, os quais protegem a dignidade como autonomia e
como igualdade perante a lei. Estas duas dimensões não se estendem aos
interesses do nascituro, ao ponto de endossar a proibição do aborto desde
a fertilização do óvulo.
Os projetos legislativos, que atualmente tramitam no Congresso
Nacional, de proteção do direito à vida do nascituro são inconsistentes com
as teses centrais do constitucionalismo, incorporadas ao nosso sistema jurí-
dico. A maior parte dos projetos de lei propõe o aumento das restrições à
prática do aborto. Dentre eles, merecem destaque:
a) o PL 478/2007, conhecido como “Estatuto do Nascituro”;
b) o PL 7.443/206, que determina que o aborto seja considerado
crime hediondo;
c) o PL 5.364/2005, cujo escopo é retirar do art. 128 do Código
Penal a exceção feita em caso de gravidez resultante de estupro;
540
LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1999. p. 210.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 279

d) o PL 1.545/2011, que impõe ao médico que praticar o aborto


ilegal pena de prisão de seis a vinte anos;
e) a PEC 164/2012, que propõe inserir no caput do art. 5º da Cons-
tituição Federal a afirmação de que a inviolabilidade do direito
à vida tem início no momento da concepção; e
f) o PL 5.069/2013, segundo o qual a mulher vítima de abuso se-
xual precisa fazer boletim de ocorrência e exame de corpo deli-
to, para que possa ser atendida nos serviços de atendimento ao
aborto legal. O projeto proíbe, ainda, que a mulher receba orien-
tações sobre o aborto legal e que lhe sejam fornecidos medica-
mentos considerados abortivos, como, por exemplo, a pílula do
dia seguinte.
A favor da liberalização do aborto voluntário, pode-se mencionar o
PL 1.135/91, já arquivado, que propunha a supressão do art. 124 do Código
Penal. Este projeto foi apreciado em julho/08, com a inclusão de todos os
outros projetos assemelhados, existentes à época, tendo sido rejeitado por
maioria de votos, com fundamento na inviolabilidade do direito à vida. Sali-
ente-se que tal projeto foi votado em um momento de forte influência políti-
ca da doutrina do catolicismo, logo depois de o governo ter assinado o Acor-
do Brasil-Vaticano, que consolidou o ensino religioso nas escolas e a “pres-
tação de assistência espiritual nos estabelecimentos de saúde”541.

541
VIANA, Paula (Coord.); FREITAS, Ângela (Redação). Colaboração Beatriz Galli [et.
al.]. Jornadas Brasileiras pelo Direito ao aborto legal e seguro. Aborto: guia para profis-
sionais de comunicação. Recife: Grupo Curumim, 2011. inc. 70 p. CDU: 173.4 (817.1).
Disponível em: <www.grupocurumim.org.br/site/ imprensa/kit_jornalistas6.pdf>. Acesso
em: 14 maio 2013. p. 13. Ver, também, LACERDA, Gustavo Biscaia de. Sobre as rela-
ções entre Igreja e Estado: conceituando a laicidade. In: MINISTÉRIO PÚBLICO. Em
defesa do estado laico: coletânea de artigos. Brasília: Conselho Nacional do Ministério
Público, 2014. v. 1, p. 178 e nota 81, onde se relata o incremento das relações entre o Es-
tado e as igrejas a partir do ano de 2008. Sobre o histórico da apreciação e votação do PL
1.135/91, cuja tramitação perdurou por dezessete anos, ver DINIZ, Geilza Fátima Caval-
canti. Direitos humanos e liberdade religiosa: os domínios recalcitrantes do direito in-
ternacional: as tensões entre as diversidades religiosas e o processo de internacionalização
dos direitos humanos. Brasília: Edições do Senado Federal, 2014. v. 205, p. 143-8. Quan-
to ao PL 236/2012, que propõe a reforma do Código Penal, a parte referente à descrimina-
lização do aborto até doze semanas de gestação foi excluída, por meio de substitutivo ao
texto original, apresentado pelo relator, Senador Pedro Taques (PDT/MT), em
20.08.2013, à Comissão Especial que trata do assunto. Segundo o relator, permitir a práti-
ca do aborto por livre decisão da gestante importaria em violação à Constituição. O relató-
rio substitutivo manteve a proposta de legalização do aborto do feto anencefálico, em con-
sonância com a decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida na ADPF 54/2012 (con-
forme matéria publicada em: <http://www.clicdanoticia.com.br/ ler.php?id=3687>. Aces-
280 Teresinha Inês Teles Pires

É importante acentuar que o Projeto de Lei 478/2007 (Estatuto do


Nascituro) prevê, em seu art. 3º, que o embrião possui, desde a concepção,
“natureza humana”, merecendo proteção do Estado, já a partir deste estágio
evolutivo, nas esferas civil e penal, mesmo considerando que a personali-
dade jurídica só tem início no nascimento com vida. O mesmo dispositivo,
em seu parágrafo único, assegura ao nascituro a “expectativa do direito à
vida, à integridade física, à honra, à imagem e de todos os demais direitos
da personalidade”.
Além disso, o Projeto de Lei 478/2007 contém, em seu art. 13, re-
gra expressa que importará, se aprovado, na criminalização do aborto decor-
rente de ato de violência sexual, sob o raciocínio de que o nascituro não pode
sofrer nenhum tipo de discriminação suportada em contingências fáticas
específicas. Por fim, o mesmo projeto tipifica como crime diversas condutas,
excedendo as já previstas no Código Penal vigente, alcançando até mesmo a
garantia ao acesso a medicamentos anticonceptivos que possam levar à des-
truição do óvulo fertilizado. Diz-se isso em face do teor do seu art. 24, caput
e parágrafo único, segundo o qual configura crime o simples ato de “anunci-
ar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto”, sendo a
pena aumentada se os produtos forem anunciados como “se fossem exclusi-
vamente anticoncepcionais”.
Como já esclarecido em outro sítio, o presente trabalho não se pro-
põe a discutir as teorias civilistas a respeito do estatuto jurídico do nascituro.

so em: 20 fev. 2015). Informe-se, ainda, que o posicionamento assumido por Pedro Ta-
ques contraria a recomendação encaminhada à Comissão do Senado (que aprecia o PL
236/12), pelo Conselho Federal de Medicina, no sentido da liberalização do aborto por es-
colha da mulher, no primeiro trimestre de gestação, independentemente da apresentação
de laudos médicos ou psicológicos, considerando que até este estágio o aborto não oferece
riscos à saúde da mulher e que o sistema nervoso central do embrião ainda não está for-
mado. O CFM adotou tal entendimento no “I Encontro Nacional de Conselhos de Medici-
na”, realizado em março de 2013 na cidade de Belém/PA (conforme PIRES, Teresinha
Inês Teles. O princípio da segurança jurídica e o direito da mulher à saúde reprodutiva:
uma análise acerca do dever do Estado na prestação de assistência à saúde física e mental
da mulher no contexto da ilegalidade do aborto. Revista de Informações Legislativas.
Brasília, a. 51, n. 201, p. 129-49, jan/mar., 2014. CDD 340.05/CDU 34(05). p. 143). In-
forme-se, por fim, que o PL 5.069/13, acima citado, de autoria do Deputado Eduardo Cu-
nha, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, em 10/2015, e
será encaminhado ao plenário da Câmara (Disponível em: <http://brasil.elpais.com/m/
brasil/2015/11/09/opinion/ 1447075142_888033. html>. Acesso em: 15 nov. 2015. Para a
consulta aos projetos de lei ora mencionados, utilizou-se o site do PORTAL DE LEGIS-
LAÇÃO DO GOVERNO FEDERAL. Disponível em: <http://www4. planal-
to.gov.br/legislacao> e <www.camara.gov.br/ proposiçoesWeb/prop_mostra integra?cod
teor= 443584>.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 281

Porém, é bom ressaltar que muitos autores buscam interpretar os dispositivos


do Código Civil, relativos ao conceito de personalidade humana, de modo a
reforçar os padrões incorporados ao PL 478/2007, particularmente, no que se
refere à inclusão, na categoria do nascituro, do embrião em estágio “pré-
implantatório”542. Diante de tal contexto, diminuiu-se a expectativa de que o
tema do aborto venha a ser tratado perante o poder legislativo com menor
hostilidade e com a consideração da integridade dos princípios constitucio-
nais que deve direcionar o debate. Há uma propensão, nos parâmetros da
visão majoritária, ao acirramento da ideia de que a vida tem início na fertili-
zação do óvulo, o que interfere negativamente na regulamentação do aborto
e, também, dos procedimentos de fertilização humana assistida543.
No entanto, como ainda se verá, o Supremo Tribunal Federal, no
julgamento da ADIn 3510, referente à autorização das pesquisas científicas
com células-tronco, projetou uma interpretação dos limites do direito à vida
542
Dentre os autores civilistas que firmam posição no sentido da tutela absoluta do embrião,
consulte-se: PUSSI, William Artur. Personalidade jurídica do nascituro. 2. ed. Curitiba:
Juruá, 2008. p. 231-190; CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Estatuto jurídico do
nascituro: o direito brasileiro; TARTUCE, Flávio. A situação jurídica do nascituro:
uma página a ser virada no direito brasileiro. Os dois ensaios citados por último constam
da obra DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Orgs.). Novo Código Civil.
Questões controvertidas. Parte geral. São Paulo: Método, 2007. v. 6, p. 43-81 e 83-104,
respectivamente; FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. Brasília:
Senado Federal, 2003; DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2. ed. São
Paulo: Saraiva, 2002; FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de direito civil. 4. ed.
São Paulo: Saraiva, 1996.
543
Consoante destacado por BUGLIONE, Samantha; CAMPOS, Carmen Hein. Porque a
criminalização do aborto voluntário é inconstitucional. In: BUGLIONE, Samantha;
VENTURA, Miriam (Orgs.). Direito à reprodução e à sexualidade: uma questão de éti-
ca e justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 132-3, as pesquisas de opinião pública
realizadas já no século XXI mostram que a maior parcela da sociedade brasileira manifes-
ta, ainda, posição contrária à admissibilidade do aborto, tornando explícita a dificuldade
de se chamar a atenção da população, em geral, para as questões afetas aos direitos de ci-
dadania da mulher. Com a retomada da influência religiosa no espaço público, muitos par-
lamentares desconsideram os projetos que avançam propostas favoráveis à regulamenta-
ção dos direitos reprodutivos, em especial, o direito ao aborto. Alguns propõem, inclusive,
retroceder nas hipóteses permissivas da prática do aborto, como se observa nos propósitos
do PL 478/07, acima comentado. Além disso, desde o ano de 2005 várias tentativas foram
feitas por autoridades, estaduais e municipais, no sentido de se bloquear a distribuição do
contraceptivo de emergência. Mencione-se, por fim, as ideias veiculadas por Reinaldo
Azevedo, colunista e jornalista brasileiro, que, em sua página da internet:
<http://veja.abril.com.br/ blog/reinaldo/tag/aborto>. Acesso em: 24 nov. 2014, ao se de-
clarar católico, defende a rejeição das posições mais liberais, adotadas por grupos perten-
centes à sua própria igreja, tais como as que apoiam a união civil de homossexuais, a ado-
ção por parte de homossexuais e o aborto, inclusive, a interrupção da gestação do feto
anencefálico.
282 Teresinha Inês Teles Pires

e, indiretamente, da categoria da personalidade civil, pela qual restaram afas-


tadas as teses que alicerçam o teor do PL 478/2007 – “Estatuto do Nascitu-
ro”. A distinção entre vida biológica e vida juridicamente tutelável foi aper-
feiçoada de forma salutar, na ADIn 3510, reforçando o argumento da não
conformidade dos arts. 124 a 128 do Código Penal, que punem a prática do
aborto desde o momento da concepção, com a Constituição Federal. Em
rigor, o Código Penal, nesta parte, deixou de observar, desde o tempo em
que foi promulgado, as normas então existentes sobre o direito à vida, eis
que o art. 4º do Código Civil de 1916 já determinava, em consonância com
os princípios constitucionais vigentes à época, que a personalidade civil tem
início no nascimento com vida. Desde esse tempo, já havia sido assentada a
premissa de que o nascituro possui apenas uma expectativa de vida, e de que
a titularidade dos direitos que lhe são assegurados por lei se condiciona ao
seu futuro nascimento com vida. Assim, o crime do aborto jamais poderia
figurar no capítulo do Código Penal que cuida dos crimes contra a vida544.
Viu-se, antes, que o § 2º do art. 5º da Constituição Federal amplia o
conteúdo protetivo dos direitos da mulher à igualdade de tratamento perante
a lei, em face da normatividade dos documentos internacionais. De outro
lado, o mesmo dispositivo está envolvido na delimitação dos interesses da
vida pré-natal. Dentre as normas de direito internacional, destaca-se, na aná-
lise do tema em questão, o art. 4º, § 1º, da Convenção Americana de Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Além disso, em atenção aos
direitos das mulheres, diretamente conectados à perspectiva da tutela do
nascituro, é necessário incluir no debate, em caráter igualmente prioritário,
as obrigações impostas aos Estados-Membros pelos arts. 2º e 12º da Con-
venção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher (CEDAW)545.

544
SPOLIDORO, Cláudio Amerise. O aborto e sua antijuridicidade. São Paulo: Lejus,
1997. p. 23-4, 60, 68 e 95. No mesmo sentido, DOMINGUES, Roberto Chateaubriand.
Entre normas e fatos, o direito de decidir: o debate sobre o aborto à luz dos princípios consti-
tucionais. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir: múltiplos olhares sobre o
aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 70. Interessante comentar, ainda, que, conforme
BATISTA, Nilo. Aborto: a retórica contra a razão. In: Temas de Direito Penal. Rio de Ja-
neiro: Liber Juris, 1984. p. 40-41, nunca houve, na dogmática do direito penal, uma pacifi-
cação conceitual quanto ao objeto da tutela do crime do aborto. Além do direito à vida, vá-
rias outras respostas foram dadas à questão, propondo a doutrina que a punição da prática do
aborto se sustentaria também, dentre outras alternativas, no interesse do Estado de proteger a
moralidade pública, a organização familiar, a integridade corporal da gestante, o direito pa-
terno à filiação ou até mesmo o interesse público no crescimento demográfico.
545
O Pacto de São José, ratificado pelo Brasil em setembro de 1992, dispõe em seu art. 4º, §
1º (tradução livre): “Toda pessoa tem o direito de ter sua vida respeitada. Esse direito de-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 283

Com fundamento no estatuto constitucional das normas de di-


reito internacional, há autores que defendem que o nascituro tem direito
à vida desde a concepção, em face do mencionado dispositivo do Pacto
de São José. Por outro lado, há autores que defendem que o aborto é um
direito fundamental, em face da força normativa da CEDAW, no que
concerne à proteção à saúde reprodutiva da mulher e do direito ao plane-
jamento familiar 546.

ve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém deve ser
arbitrariamente privado de sua vida” (American Convention on Human Rights. Disponí-
vel em: <www.oas.org/dil/treaties_B-32_American_Convention_on_Human_ Rights.htm>.
Acesso em: 24 nov. 2013). A CEDAW, por sua vez, dispõe em seus arts. 2 e 12 (tradução
livre): “Art. 2. Os Estados Membros condenam a discriminação contra as mulheres em
todas as suas formas, concordam em estabelecer por todos os meios uma política para a
eliminação da discriminação contra as mulheres e, com essa finalidade, providenciar: a)
incluir o princípio da igualdade entre homens e mulheres em suas constituições nacionais
ou outra legislação apropriada, se ainda nelas não incorporado, e assegurar, através da
lei ou de outros meios apropriados, a realização prática desse princípio”. “Art. 12. 1. Os
Estados Membros devem tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discrimi-
nação contra as mulheres na área da saúde e assegurar, em uma base de igualdade entre
homens e mulheres, acesso aos serviços de saúde, incluindo aqueles relacionados ao pla-
nejamento familiar; 2. Além das disposições do § 1º desse artigo, os Estados Membros
devem assegurar às mulheres serviços apropriados em relação à gravidez, internação e
ao período pós-natal, assegurando serviços gratuitos onde necessário, assim como nutri-
ção adequada durante a gravidez e a amamentação” (CEDAW. Disponível em:
<www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/>. Acesso em: 24 nov. 2013). Além do Pacto de
São José e da CEDAW, o Brasil ratificou a Conferência Mundial sobre População e De-
senvolvimento (Cairo/1994) e a IV Conferência Mundial da Mulher (Beijing/1995). O
primeiro documento garante o direito da mulher ao planejamento procriativo e delimita a
questão do aborto como um problema sério de saúde pública (parágrafo 8.25) (Disponível
em: <http://www.unfpa.org/sites/default/files/event-pdf/icpd_eng_2.pdf>. Acesso em: 24
nov. 2013); o segundo documento afirma o direito à vida sexual para fins não reproduti-
vos, exigindo dos Estados-Membros medidas no sentido da revisão das leis punitivas da
prática do aborto (parágrafo 106k) (Disponível em: <http://www.un.org/womenwatch/
daw/beijing/fwcwn.html>. Acesso em: 24 nov. 2013).
546
No sentido da defesa do direito à vida, ver MELLO, Gustavo Miguez de. Direito funda-
mental à vida. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vi-
da. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 272-3; MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Pacto
de São José e o direito à vida desde a concepção, 2011. p. 503-7. No sentido da defesa
do direito ao aborto, ver OMMATI, José Emílio Medauar. O direito fundamental ao abor-
to no ordenamento jurídico brasileiro. In: FABRIZ, Daury Cesar et al. O tempo e os di-
reitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 551-561; PIOVESAN, Flávia. Di-
reitos sexuais e reprodutivos: aborto inseguro como violação dos direitos humanos. In:
SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos limites da vida: aborto, clonagem huma-
na e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juirs, 2007.
p. 54-63 e 66; LOREA, Roberto Arriada. Aborto e direito no Brasil. In: CAVALCANTE,
Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São
Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 176-9.
284 Teresinha Inês Teles Pires

Em relação ao art. 4º (1), do Pacto de São José, toda a controvérsia


jurídica gira em torno do termo “em geral”, referido à circunstância de que a
proteção da vida ocorre desde a concepção. Ives Gandra é um forte defensor
de que o citado termo não relativiza o direito à vida nascitura. Sugere que a
intenção da regra é deixar claro que os Estados-Membros não se obrigam a
mencionar, expressamente, em suas Constituições, o momento a partir do
qual tem início o direito à vida, embora, “em geral”, é o que ocorre na maio-
ria das vezes. A discutida expressão significaria, assim, a mera opção confe-
rida aos Estados de seguir, de forma explícita ou implícita, o comando de
que a tutela da vida efetivamente começa na concepção547.
Essa interpretação, entretanto, não é correta. A expressão “em ge-
ral” estabelece um padrão equilibrado para delinear os direitos do nascituro à
vida, e denota que a permissão da prática do aborto, sem restrições, sobretu-
do, no primeiro trimestre gestacional, não transgride o conteúdo do art. 4º (1)
do Pacto de São José. A regra em questão contém em si a visão assumida em
diversos outros documentos internacionais, nos quais se avançou a garantia
do direito de escolha reprodutiva da gestante, e afirma a aceitabilidade de
que, em certas circunstâncias, a vida pré-natal não possa ser protegida desde
a concepção548. Tentar interpretar o referido dispositivo de maneira a susten-
tar que o direito à vida é absoluto, desde a concepção, configura “mais que
um equívoco”, sendo, na verdade, “um erro grosseiro”, além de denotar total
desconhecimento sobre a história da elaboração do Pacto de São José. Como
explicado por Roberto Lorea, a proposta original do texto simplesmente
declarava a proteção da vida desde a concepção; mas, após longo debate,
decidiu-se por incluir a expressão “em geral”, justamente com o intuito de se
respeitar as legislações dos países que permitiam o direito ao aborto549.
Nessa direção, a Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CtIDH), no julgamento do caso Artavia Murillo et al v. Costa Rica550, de-
547
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Pacto de São José e o direito à vida desde a con-
cepção, 2011. p. 506.
548
Ver, nesse sentido, CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. Pluralidade de
vozes em democracias laicas: o desafio da alteridade. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Di-
reito de decidir: múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p.
108, nota 2.
549
LOREA, Roberto Arriada. Aborto e direito no Brasil. In: CAVALCANTE, Alcilene;
XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Ca-
tólicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 175 e 178.
550
COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Artavia Murillo et
al v. Costa Rica (2000). Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articu-
lus/seriec_257_ing.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2014, julgamento n. 2000-022306, de
15.03.2000. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/ docs/casos/articulus/seriec_257_
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 285

clarou que a tese da equiparação do embrião ao ser humano, desde a fertili-


zação do óvulo, não é apropriada para definir o conteúdo dos arts. 1º (2) e 4º
(1) do Pacto de São José, porque isso implicaria na imposição, a todas as
pessoas, de crenças religiosas válidas somente para aqueles que as profes-
sam. Sustentou a Corte que o termo “em geral” foi posto no art. 4º (1) a fim
de permitir o estabelecimento de exceções à supremacia do direito à vida, e
para traçar um modelo de proteção gradual do nascituro, de acordo com o
estágio do seu desenvolvimento. Com esse raciocínio, a Corte rejeitou o
argumento apresentado pelo Estado de Costa Rica no sentido de que o “em
geral” diz respeito a exceções específicas e bem delimitadas, como, por
exemplo, a existência de risco à vida da gestante551.
Em caso anterior, apreciado pela Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos (CIDH), já havia sido pacificada, na esfera internacional, a
melhor interpretação da norma contida no art. 4º (1) do Pacto de São José,
segundo a qual é admissível restringir a tutela do nascituro no contexto da
garantia do direito ao aborto. Declarou-se, nesta decisão, que os Estados
Unidos da América, ao legalizar o aborto, não violaram os direitos previstos
na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), bem
como na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, pois as
disposições contidas nos dois documentos acerca da matéria levam à conclu-
são de que cada país é livre para delimitar, sem intervenção externa, o mo-
mento gestacional a partir do qual tem início a proteção da vida do nascituro.
O voto majoritário ponderou que a CIDH não poderia exceder a finalidade
de sua atuação na promoção dos direitos humanos imiscuindo-se, através de
um juízo de valor específico sobre o início da vida, no direito pátrio de ne-
nhum Estado, seja ou não parte da Convenção552.

ing.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2014. O caso resultou na revogação de uma decisão da Corte
Constitucional de Costa Rica que proibiu a prática, no país, do procedimento de Fertiliza-
ção in Vitro (FIV), com fundamento no direito à vida.
551
COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Artavia Murillo et
al v. Costa Rica (2000). Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articu-
lus/seriec_257_ing.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2014, parágrafos 188-9, 244, 262-4 e 168.
552
Comisión Interamericana de Derechos Humanos, Organización de los Estados America-
nos, Resolucion 23/81, caso 2141/1981, Estados Unidos. Disponível em:
<http://www.cidh.org/annualrep/80.81sp/estados unidos2141b.htm>. Acesso em: 26 jun.
2014. Informe-se que os Estados Unidos, embora tenham participado da Convenção Ame-
ricana (Pacto de São José), e assinado o documento, não firmaram sua adesão ao mesmo,
não se submetendo, portanto, ao cumprimento de suas regras. Sendo assim, a CIDH e a
CtIDH utilizam, em caráter prioritário, na análise dos casos que envolvem os Estados
Unidos, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, esta sim ratificada
pelo país (Disponível em: <www.cidh.oas.org/basicos/ portugues/b.Declaracao_Ameri
286 Teresinha Inês Teles Pires

Ademais, o Pacto de São José não se resume ao art. 4º (1), cuja in-
terpretação não pode ser feita de forma isolada, no aspecto da intenção e das
diretivas veiculadas no documento. Logo no art. 1º, o Pacto determina aos
Estados-Membros o respeito ao exercício pleno de todas as liberdades fun-
damentais, sem discriminação de qualquer espécie, seja por motivo de “raça,
cor, sexo, linguagem, religião” ou opinião política, dentre outros553. A auto-
nomia procriativa da gestante é, indubitavelmente, uma categoria interligada
à busca do conteúdo adequado para a tutela da vida nascitura. A decisão do
caso Artavia Murillo, inclusive, fundamentou-se nas premissas adotadas na
CEDAW, para concluir que os princípios da igualdade e da não discrimina-
ção exigem a precedência do direito de escolha da mulher em relação à pro-
teção da vida potencial ainda “em formação”. E que a intangibilidade da vida
do nascituro, desde a concepção, legitimaria a violação dos direitos da mu-
lher à integridade pessoal, à privacidade, à liberdade e ao planejamento fami-
liar, todos eles listados no Pacto de São José da Costa Rica554.
É importante pontuar que, neste caso, Artavia Murillo, a Corte ul-
trapassou os padrões tradicionais derivados da plataforma de direitos expres-
samente previstos no Pacto de São José, ainda não focados na perspectiva da
discriminação de gênero. O princípio da igual proteção perante a lei, no que
se refere à eliminação dos fatores de discriminação contra a mulher, foi utili-
zado, em larga extensão, para afirmar sua autodeterminação reprodutiva. A
Corte seguiu a definição de discriminação firmada no art. 1º da CEDAW,
segundo o qual qualquer restrição ao exercício de uma liberdade fundamen-

cana.htm>. Acesso em: 24 nov. 2013). No entanto, no caso citado (Resolução 23/81), a
decisão sustentou que o art. 4º (1) do Pacto de São José complementa, no tocante ao direi-
to à vida, a Declaração Americana, razão pela qual a norma foi objeto de discussão na so-
lução da questão apreciada, conduzindo à interpretação que se acabou de relatar. A CIDH,
vale acentuar, afirmou que a frase “em geral”, posta no referido dispositivo, tem por fina-
lidade reconhecer aos Estados-Membros a possibilidade da inclusão de diversas hipóteses
de aborto legal, desde que em circunstâncias justificáveis, para não ferir a segunda direti-
va do mesmo art. 4º (1), segundo a qual “ninguém pode ser arbitrariamente privado de
sua vida”. Isso quer dizer que somente a privação arbitrária, portanto, injustificável, da
vida nascitura deve ser proibida. Sobre o teor da opinião majoritária proferida no caso,
confira-se a explicação do voto do juiz Andres Aguilar M., §§ 1 a 8; e sobre o envolvi-
mento do Pacto de São José, art. 4º (1), no respectivo julgamento, confira-se o Relatório
Anual da CIDH, 1980/1981, Sumário do Caso, § 14 (b) e (c), ambos disponíveis no pri-
meiro endereço acima transcrito.
553
American Convention on Human Rights, art. 1º, item 1.
554
No original: “in formation” (COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH). Artavia Murillo et al v. Costa Rica (2000). Disponível em: <http://www.
corteidh.or.cr/docs/casos/articulus/ seriec_257_ing.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2014, pará-
grafos 227, 161, 302 e 316).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 287

tal que produza consequências desproporcionais na vida das mulheres, ainda


que este não tenha sido o propósito da lei, importa em discriminação e, por-
tanto, em violação à cláusula da igual proteção555.
Às vezes, a caracterização do fator de discriminação baseado no
sexo é complexa e de difícil sustentação, como já se discutiu. Mas, no
caso Artavia Murillo, a Corte entendeu, a partir da ideia de discriminação
de gênero indireta, que o banimento do acesso à Fertilização in Vitro
produz efeitos desproporcionais na vida das mulheres, pelo significado
psicológico, emocional e cultural de sua função procriativa. Com essa
compreensão, declarou-se a intangibilidade do direito da mulher de deci-
dir livremente se deseja ou não ter filhos, utilizando, em caso positivo,
todos os recursos médicos à sua disposição para realizar seu intento.
Também sob o enfoque da liberdade de escolha procriativa, os juízes
sustentaram que assegurar o direito à vida, em termos absolutos, traria
implicações na regulamentação do direito ao aborto, que não pode ser
proibido, em todas as circunstâncias, sob pena de violação aos direitos
prescritos na CEDAW 556.
Assim, é muito claro que o paradigma da proteção internacional
dos direitos humanos, na esfera reprodutiva, demonstra que os interesses
da vida nascitura devem ser moldurados em consideração à dignidade da
gestante, sob o prisma de sua autonomia moral e jurídica, e ao direito ao
planejamento familiar, categorias naturalmente incluídas no direito à liber-
dade de consciência. Em uma visão integrativa, o conjunto das regras dos
tratados, que associam os direitos reprodutivos ao direito à vida, mostra
que os conceitos de vida, de liberdade e de igualdade constituem, na inter-
pretação jurídica, cláusulas autocomplementares, dependendo o significado
de uma delas da interação argumentativa com o significado das demais.
Esta estrutura, bem explicitada no caso Artavia Murillo, não se distingue
do padrão protetivo da Constituição brasileira, razão pela qual o disposto
555
CEDAW, art. 1º: “Para o propósito da presente Convenção, o termo ‗discriminação
contra as mulheres‘ deve significar qualquer distinção, exclusão ou restrição feita com
base no sexo, que tenha por efeito ou propósito impedir ou anular o reconhecimento, go-
zo ou exercício pelas mulheres, independentemente do seu status material, em uma base
de igualdade entre homens e mulheres, de direitos humanos e liberdades fundamentais na
esfera política, econômica, social, cultural, civil, ou qualquer outra”.
556
COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Artavia Murillo et
al v. Costa Rica (2000). Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulus/
eriec_257_ing.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2014, parágrafo 228. Os juízes, nesta parte, se
referiram às arguições apresentadas no relatório do Comitê da CEDAW, anexado ao
processo.
288 Teresinha Inês Teles Pires

no § 2º do seu art. 5º, parte final, em nada compromete a defesa dos direi-
tos da mulher à interrupção da gestação, e até possibilita reforçar, com base
nos critérios internacionais de garantia dos direitos humanos, a tese de que
a tutela da vida do embrião não é obrigatória, devendo, ao contrário, ser
definida de forma gradualista557.
É interessante finalizar a seção lembrando que grande parte dos paí-
ses que confere valor importante aos direitos do nascituro está construindo
uma definição jurisdicional da questão, não através da proibição do aborto,
mas antes por meio de exigências de aconselhamento à mulher que deseja
realizar a conduta. No lugar de coagir a mulher a não praticar o aborto, sim-
plesmente ajudá-la a compreender a complexidade de sua decisão. Além
disso, ajudá-la a escapar da fatalidade de praticar o aborto inseguro, em con-
dições de clandestinidade, possibilitando, ao legalizar o procedimento médi-
co, uma mudança de atitude por parte dos profissionais da saúde. O fato de a
lei punitiva configurar, na prática, uma norma sem aplicabilidade alguma,
haja vista ser diariamente desobedecida pelas mulheres que não desejam
levar a gravidez a termo, não é motivo para que o Estado negligencie seu
dever de promover sua revisão. Isso porque a criminalização do aborto refle-
te na conduta dos médicos, os quais, por não poderem realizá-lo, terminam
conduzindo a gestante ao apelo aos serviços ilegais; a criminalização, no
caso, reflete, ainda, na visão da sociedade, em geral, que tende a minimizar a
gravidade do problema558.

557
Vale mencionar que na “Revisão Periódica Universal” do “Conselho de Direitos Huma-
nos das Nações Unidas‖, ocorrida em novembro de 2011, foi avaliado se o Brasil está
respeitando os direitos humanos consignados nos tratados internacionais, na área da saúde
sexual e reprodutiva da mulher (Brazil – 13th Universal Periodic Review Session” – Ge-
neva/Switzerland – 28.11.2011). A avaliação das Nações Unidas baseou-se nos dados já
consagrados, referentes à correlação entre países com leis restritivas em matéria de aborto
e altos índices de morbidade/mortalidade materna. Concluiu-se que a criminalização do
procedimento médico do aborto contraria os compromissos internacionais ratificados pelo
país em matéria de direitos humanos. O Conselho da ONU fez menção específica às nor-
mas previstas nos seguintes documentos: a) CEDAW – Convenção para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; b) CESCR – Convenção Internacio-
nal sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e c) CCPR – Convenção Internacional
sobre os Direitos Civis e Políticos (conforme IMAIS – Instituto Mulher e Atenção Inte-
gral a Saúde. Rapporteur on the Right to Reproductive Health from Plataforma Brasileira
de Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. Rio de Janeiro, 2011. Disponí-
vel em: <http://www.conectas.org/arquivos-site/file/UPRsa%C3%BAde%20reprodutiva.
pdf>. Acesso em: 27 dez. 2012. p. 6.
558
FAÚNDES, Aníbal; BARZELATTO, José. O drama do aborto: em busca de um con-
senso. São Paulo: Komedi, 2004. p. 184.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 289

6.3 LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA NA


DOGMÁTICA JURÍDICA E NA CONSTITUIÇÃO

É preciso aperfeiçoar os mecanismos constitucionais de concreti-


zação da dignidade humana, o que exige o envolvimento da cláusula da li-
berdade de consciência e de crença. Não é possível falar em dignidade moral
sem inseri-la na proteção conferida pela autonomia da consciência. Em ter-
mos gerais, o significado original da autonomia e da autodeterminação não
se explicita, em sentido constitucional, sem a remissão à proteção específica
da liberdade de consciência, ou de religião. Com efeito, o direito de autode-
terminar-se não significa outra coisa senão a liberdade de decisão, no que
concerne aos interesses pessoais de caráter fundamental. Seguir a própria
consciência, nesta seara, é a expressão mais genuína da autonomia, tratando-
-se de um padrão que legitima o comprometimento público com o respeito
ao pluralismo ideológico559. A categoria jurídica da neutralidade ou imparci-
alidade do Estado requer a abordagem do direito à livre formação dos valo-
res éticos, abrindo margem, assim, para a aplicação do princípio da razoabi-
lidade esquematizado por Rawls.
É com base em tal compreensão, sedimentada no significado amplo
do princípio da dignidade humana, que se assumiu como estratégia adequa-
da, para justificar o direito ao aborto no Brasil, a conjugação das cláusulas da
dignidade humana, do devido processo legal, e da liberdade de consciência e
de crença, sem necessidade de se partir da afirmação do direito à privacida-
de. Este foi o viés apresentado no estudo do princípio da dignidade humana
na dimensão da autonomia procriativa (Capítulo 2 da obra). Afirmou-se, aí,
o envolvimento da categoria da igual proteção perante a lei enquanto ele-
mento intrínseco aos requisitos da liberdade de consciência, como também
já havia sido elucidado, antes, em bases teóricas.
O presente estudo, como muitas vezes lembrado, parte da con-
cepção de Dworkin da unidade do valor. Compreende-se, em linguagem
constitucional, que o devido processo legal, a liberdade de consciência e de
crença e a igual proteção perante a lei são cláusulas de direito fundamental
que, se associadas em sentido hermenêutico, perfazem o significado pleno
559
MARTINS, Humberto. Liberdade religiosa e estado democrático de direito. In: MAZ-
ZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G. (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios
e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 100. Ver, também,
WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo,
pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 133.
290 Teresinha Inês Teles Pires

da unidade das esferas do pensamento jurídico-prático – Ética, Moral, Polí-


tica e Direito.
É importante acentuar, inicialmente, que a liberdade de consciên-
cia e de crença pressupõe o direito à liberdade genérica instituído pelos
princípios da dignidade humana, da legalidade e do devido processo legal.
Por outro lado, a liberdade de consciência e de crença, na qualidade de uma
categoria fundamental específica, reveste-se de um sentido normativo tão
básico e originário, como bem explicitado nas doutrinas de Rawls e Dwor-
kin, ao ponto de estar subentendida no próprio enunciado abstrato da liber-
dade de atuação individual. Em suma, a liberdade de consciência e de
crença é, ao mesmo tempo, pressuposto e especificação do conceito gené-
rico de liberdade560.
A cláusula do devido processo legal, particularmente, tem um pa-
pel central na concretização da liberdade de consciência e de crença, porque
envolve a garantia da integridade moral individual. O devido processo legal
inclui a proteção das premissas teóricas da independência ética e do plura-
lismo moral e político, as quais, como se argumentou, são centrais na análise
da constitucionalidade das leis, em matérias fundamentais561.
Para se vislumbrar a intersecção entre o significado do devido pro-
cesso legal, mediatizado pelos requisitos da dignidade humana, na forma
sedimentada no primeiro capítulo da obra, e o significado da liberdade de
consciência e de crença, é preciso investigar quais os princípios estão na
base da elaboração conceitual da segunda. A liberdade de consciência e de
crença representa a esfera da autonomia ética e moral, trazendo em seu con-
teúdo intrínseco o dever do Estado de pautar sua ação nos padrões jurídicos
do secularismo, da neutralidade e da generalidade das leis.
Uma eficaz compreensão sobre o elemento ético que está na base
do princípio da liberdade de consciência e de crença deve partir de sua asso-
ciação ao modelo do Estado laico, que, como tal, foi construído no contexto
das relações entre o Estado e as instituições religiosas. Em relação ao tema,
Jorge Miranda explica que existem dois modelos básicos, incumbindo a cada
560
Conforme proposto por SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional
positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 235, a “liberdade consiste na possibili-
dade de coordenação consciente dos meios necessários à realização da felicidade pes-
soal”. Esta definição harmoniza a liberdade “com a consciência de cada um, com o inte-
resse do agente”.
561
Sobre a essencialidade da liberdade de religião na doutrina dos direitos fundamentais,
consulte-se CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e Teoria da Constitui-
ção. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 383.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 291

país implementar, como alicerce do seu sistema jurídico, aquele que melhor
assegura a efetivação do regime democrático. São eles: o Estado confessio-
nal e o Estado laico. O primeiro caracteriza-se pela identificação do Estado
com a Religião. O segundo, ao contrário, pela não identificação das duas
esferas institucionais. O Estado laico apresenta, ainda, duas ramificações:
pode unir-se a uma confissão religiosa específica, considerada como “reli-
gião de Estado”, ou pode definir-se no sentido da separação do Estado e da
Religião. O padrão da separação, por sua vez, pode ser relativo, quando se
confere tratamento privilegiado a determinada religião, ou absoluto, quando se
prima pela igualdade das confissões religiosas perante a lei. Miranda esclarece
que o Estado laico, em quaisquer de suas manifestações, não representa oposi-
ção à Religião. Esta oposição configura modelo diverso de organização jurídi-
ca, denominado “Estado laicista”, quando se trata de uma oposição relativa, ou
“Estado ateu”, quando se extirpa qualquer nível de participação do pensa-
mento religioso nas plataformas legislativas e políticas públicas562.
Uma vez assentadas as características do Estado laico, pressuposto
da fundamentalidade do direito à liberdade de consciência e de crença, é
necessário trazer a lume o significado do processo de secularização das socie-
dades democráticas, sem o qual não se conceberia a ideia de “aconfessiona-
lidade ou laicidade” do Estado. A secularização é um processo sociológico,
que desencadeou a premência da institucionalização política do Estado laico,
em substituição ao Estado confessional563. A expansão do secularismo de-
562
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t.
IV, p. 355-6. No mesmo sentido, CUNHA, Luiz Antônio; OLIVA, Carlos Eduardo. Sete
teses equivocadas sobre o estado laico. In: Ministério Público: em defesa do estado laico:
coletânea de artigos. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2014. v. I,
p. 207-8; SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre religião e estado no Brasil: uto-
pia constitucional? Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica –
PUC/SP, 2009. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/downloadtexto/cp09
0612.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2015. p. 137 e 139; TAVARES, André Ramos. Religião e
neutralidade do estado. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G. (Coords.). Di-
reito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fó-
rum, 2009. p. 58. Na esfera internacional, para um aprofundamento acerca dos distintos
modelos de laicidade, especialmente, as vertentes francesa e estadunidense, consulte-se
LACERDA, Gustavo Biscaia de. Sobre as relações entre Igreja e Estado: conceituando a
laicidade. In: MINISTÉRIO PÚBLICO. Em defesa do estado laico: coletânea de artigos.
Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2014. v. 1, p. 189-191; e, particular-
mente, sobre o modelo mexicano de Estado laico, consulte-se BLANCARTE, Roberto. O
porquê de um estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.). Em defesa das liberda-
des laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 21-25.
563
HUACO, Marco. A laicidade como princípio constitucional do estado de direito. In:
LOREA, Roberto Arriada (Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2008. p. 39 e 47. Ver, também, LACERDA, Gustavo Biscaia de. Sobre
292 Teresinha Inês Teles Pires

mocrático representou uma nova configuração do papel da religião na orga-


nização social. A religião deixou de exercer a função que lhe era conferida,
no modelo do Estado confessional, de força reguladora das práticas sociais,
e, por conseguinte, da normatização jurídica. Pode-se dizer que a substitui-
ção dos referenciais religiosos pelos padrões da doutrina dos direitos funda-
mentais, derivada do secularismo, redimensionou a noção de sacralidade e
solidificou o alicerce moral e político da cláusula da liberdade de consciên-
cia e de crença. A independência ética, esteja ou não vinculada ao pensa-
mento religioso, finca suas raízes na esfera da intimidade pessoal, e não da
moralidade social compartilhada564.
A Constituição do Brasil prescreve a proteção da liberdade de
consciência e de crença em caráter inviolável (art. 5º, inc. VI, 1ª parte), o
que mostra que a limitação desta liberdade somente é válida em caso de
existência de um interesse público da maior importância, e, mesmo assim,
quando não houver forma menos restritiva de alcançar o propósito visado
pelo Estado. Observe-se que a reserva legal estabelecida no dispositivo em
comento se refere apenas à sua última parte, relativa à “proteção dos locais
de culto e a suas liturgias”565. Do que se infere que qualquer restrição legal
à liberdade de consciência e de crença deve estar submetida ao controle
jurisdicional de sua conformidade à Constituição. Nas palavras de Konrad
Hesse, as liberdades moral e religiosa somente podem ser limitadas “ima-
nentemente aos direitos fundamentais e pela Constituição; uma limitação
por lei é inadmissível”. A garantia da livre formação de valores pessoais
não deve sofrer nenhum tipo de influência do Estado e de seus poderes
instituídos. A liberdade de consciência e de crença, no sentido da constru-

as relações entre Igreja e Estado: conceituando a laicidade. In: MINISTÉRIO PÚBLICO.


Em defesa do estado laico: coletânea de artigos. Brasília: Conselho Nacional do Ministé-
rio Público, 2014. v. 1, p. 179-180; DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Direitos humanos
e liberdade religiosa: os domínios recalcitrantes do direito internacional: as tensões entre
as diversidades religiosas e o processo de internacionalização dos direitos humanos. Brasília:
Senado Federal, 2014. v. 205, p. 90 e 95.
564
CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. Pluralidade de vozes em democraci-
as laicas: o desafio da alteridade. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir:
múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 116-119.
565
Conforme texto literal do art. 5º, inc. VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de
crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (grifou-se). Sobre as hipóteses de in-
cidência do princípio da reserva legal, na doutrina brasileira, veja MORAES, Alexandre
de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo:
Atlas, 2007. p. 134-5; e, na doutrina portuguesa, MIRANDA, Jorge. Manual de direito
constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV, p. 290-6.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 293

ção individual dos referenciais religiosos e ideológicos, entrelaça-se à li-


berdade decisória de atuação, a partir de uma relação de identidade do in-
divíduo com sua personalidade moral566.
Na doutrina portuguesa, a liberdade de consciência é interpretada
como uma categoria mais abrangente, que incorpora a liberdade religiosa e a
liberdade de seguir princípios laicos, não religiosos. A liberdade religiosa é
considerada, assim, como uma especificação da liberdade de consciência567.
Lembre-se de que a distinção conceitual entre “liberdade de consciência” e
“liberdade religiosa”, adequada do ponto de vista do direito lusitano e da
terminologia utilizada no art. 5º, inc. VI, da Constituição do Brasil, foi, no
contexto norte-americano, desconsiderada por Dworkin, porque a Constitui-
ção do seu país não incorporou à Primeira Emenda a expressão “liberdade de
consciência”, como já explicado. Assim, “liberdade religiosa”, para os pro-
pósitos desta Emenda, é o termo genérico que designa a liberdade de foro
íntimo, na escolha de valores espirituais, incluindo as visões místicas – teís-
tas – e as visões morais filosóficas – laicas.
No Brasil, diferentemente, a “liberdade de consciência” expres-
sa o direito à adoção de ideologias laicas ou humanistas, reservando-se o
termo “liberdade de crença” à proteção do direito à adoção de qualquer
credo religioso. Deste modo, na linguagem da nossa Constituição, os
termos “liberdade religiosa” e “liberdade de crença” são equivalentes.
Como se sugerirá, a liberdade de consciência pode ser compreendida
enquanto o conceito mais genérico, em matéria de tutela da autonomia
espiritual ou ideológica, por englobar todas as espécies de concepção de
bem, do qual deriva a proteção das visões religiosas, ou seja, a liberdade
de crença. De qualquer sorte, as duas categorias asseguram, em uma cláu-
sula constitucional unitária, a ampla autonomia moral e religiosa, com o
significado defendido por Dworkin na interpretação do conteúdo integral
da palavra “religião”.
A doutrina brasileira, na esteira de Pontes de Miranda, antagoniza
com a doutrina portuguesa, por identificar, na liberdade de pensamento, a
matriz conceitual tanto da liberdade de consciência quanto da liberdade reli-
giosa. Para José Afonso, por exemplo, a liberdade de consciência e de crença
representa o “sentido interno” da liberdade de pensamento e, conforme indi-
566
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Ale-
manha. Tradução (da 20. ed. alemã) de Luís Afonso Heck. Porto alegre: Sergio Antonio
Fabris, 1998. p. 299.
567
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t.
IV, p. 365.
294 Teresinha Inês Teles Pires

cado pelos demais intérpretes, apresenta-se em duas formas: liberdade de


“convicção filosófica ou política” – liberdade de consciência – ou liberdade
de crença religiosa. Explica o autor que a Constituição de 1967 previu uni-
camente a liberdade de consciência, pressupondo-se que a liberdade de cren-
ça estaria nela incluída. A Constituição de 1988, ao contrário, preceitua,
expressamente, as duas liberdades de forma destacada, o que estaria a sugerir
sua não identidade, devendo a cada uma ser atribuído conteúdo próprio. Em
tal compreensão, a necessidade de se separar as duas liberdades derivaria do
fato de se conferir a mesma proteção à liberdade de religião e à liberdade de
não ter religião, igualando o direito à autonomia moral do crente e do não
crente – ateu ou agnóstico568.
Entende-se haver um equívoco na doutrina clássica brasileira,
no que concerne à precedência conceitual da liberdade de pensamento em
relação à liberdade de consciência. Esta, ao contrário, deve ser concebida
como um princípio autônomo que envolve em si, como uma de suas
acepções, a liberdade religiosa. Na forma já sustentada, o aspecto original
da ideia de liberdade de consciência se explicita, inclusive, por sua inte-
ração argumentativa com o princípio abstrato da liberdade e do devido
processo legal. É verdade que a Constituição vigente procedeu à separa-
ção da liberdade de consciência e da liberdade de crença. Mas isso não

568
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 36. ed. São Paulo:
Malheiros, 2013. p. 243-4 e 250-1; e Comentário contextual à Constituição. 6. ed. São
Paulo: Malheiros, 2009. p. 93-4. No mesmo sentido, TAVARES, André Ramos. Religião
e neutralidade do estado. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G. (Coords.). Di-
reito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fó-
rum. 2009. p. 55 e nota 7; MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada
e legislação constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 150-1; BASTOS, Celso Ri-
beiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em
05.10.1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 52-4; MAGALHÃES, José Luiz
Quadros de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000. t. I, p. 124-
130; MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. t. V, p. 109 e 116. Sobre a evolução normativa do
conceito de liberdade religiosa no Brasil, desde a Constituição de 1824 até a de 1969, e
sua consagração plena na Constituição de 1988, ver MARTINS, Humberto. Liberdade re-
ligiosa e estado democrático de direito. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G.
(Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21. Belo
Horizonte: Fórum, 2009. p. 102-9; SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Religião e racismo: a
Constituição e o Supremo Tribunal Federal. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO
A. G. (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21.
Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 330-2; COSTA, Maria Emília Corrêa da. Apontamentos
sobre a liberdade religiosa e a formação do estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada
(Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
p. 108-111.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 295

quer dizer que a primeira não possa ser interpretada como a gênese cate-
gorial da segunda. A liberdade de pensamento possui função diferencia-
da, razão pela qual está disposta em outro inciso do art. 5º, cuja intenção
é assegurar diretamente a livre expressão do pensamento. Por óbvio, a
liberdade de consciência se aproxima, conceitualmente, da liberdade de
pensamento, mas dela se distingue por conter um componente ético, mo-
ral e político. Ao colocar em um dispositivo separado a liberdade de
consciência e de crença, o constituinte brasileiro quis proteger o direito à
autonomia moral individual, e não o direito de expressão, contra imposi-
ções de valores morais ou religiosos por parte do Estado, materializadas
no conteúdo das leis e das políticas públicas. Trata-se efetivamente de um
âmbito interno do pensamento, mas diz respeito a uma modalidade parti-
cular de pensamento referida à formação independente de juízos éticos
que se compatibilizem com a ordem institucional 569.
É digno de nota que a Constituição de 1988 não consagrou expres-
samente o termo “liberdade religiosa”, estando ele incorporado à noção de
liberdade de crença. Além disso, falar em liberdade religiosa é também falar
em liberdade de consciência, na medida em que as duas categorias interagem
entre si, sob a raiz da primeira, pressupondo-se que a palavra religião tem
um significado extenso por dizer respeito a tudo o que se situa no universo
espiritual do “sagrado”, vinculando-se ou não à ideia do divino ou da exis-
tência de um Ser supremo570. Tal perfil conceitual permite postular que a
liberdade religiosa, veiculada pelo art. 5º, inc. VI, da Constituição, tem por
propósito o acolhimento da “maior inclusividade possível”, em assuntos
569
No Brasil, WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constituição: funda-
mentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 63,
79-81 e 91, filia-se igualmente à doutrina portuguesa no sentido de considerar a liberdade
de consciência como fonte matricial da liberdade religiosa. Acentua o autor que a liberda-
de de consciência é o princípio constitucional de maior extensão, em matéria de autono-
mia ética, por incluir o direito de não ter religião alguma, ou seja, o agnosticismo e o ate-
ísmo.
570
Como afirmado por SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre religião e estado no
Brasil: utopia constitucional? Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Ca-
tólica – PUC/SP, 2009. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/
texto/cp090612.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2015, p. 255, a expressão “liberdade religiosa”,
mesmo não estando explicitamente referida no art. 5º, incs. VI e VIII, da Constituição, in-
tegra implicitamente o conteúdo subjetivo assegurado por estas cláusulas. Para FERREI-
RA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São
Paulo: Saraiva, 1997. v. 1, p. 31-2, a “liberdade de consciência é a liberdade do foro ín-
timo, em questão não religiosa. A liberdade de crença é também a liberdade do foro ínti-
mo, mas voltada para a religião”. Sendo assim, “crença significa”, na nossa Constituição,
“restritamente convicção religiosa”.
296 Teresinha Inês Teles Pires

éticos, a fim de tutelar os interesses das minorias religiosas e enfrentar o


“desafio do fundamentalismo”571.
Na perspectiva da laicidade e do secularismo, aflora-se o signi-
ficado subjetivo da liberdade religiosa, sendo este o aspecto que engran-
dece o conteúdo elástico da liberdade de consciência, ao ponto de equipa-
rar as mundividências filosóficas, ideológicas e morais que envolvam a
dimensão da sacralidade 572. A prerrogativa da escolha de uma religião e a
preferência por não seguir nenhuma religião compõem a força normativa
do princípio da liberdade de consciência, estando igualmente ancoradas
na linguagem textual do art. 5º, inc. VI, da Constituição Federal. A liber-
dade de consciência pode ser invocada pelos ateus, no sentido do reco-
nhecimento de suas convicções filosófico-ideológicas, enquanto a liber-
571
WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo,
pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 23-4. Este autor
apresenta uma proposta interessante, a qual consiste em defender a tolerância ao “funda-
mentalismo-crença” e não ao fundamentalismo militante, sendo que o segundo se caracte-
riza quando o proselitismo religioso se converte em ingerência política. Voltar-se-á a tal
ideia na próxima seção.
572
Enfatize-se que a doutrina particulariza níveis distintos de conteúdo à liberdade religiosa.
Além da acepção originária de um direito individual (aspecto subjetivo), a liberdade reli-
giosa contém também a acepção de um direito social-coletivo, mais relacionado à adesão
aos cultos religiosos e todas as formas de exteriorização das crenças pessoais. Concebe-se,
por fim, uma terceira dimensão do princípio da liberdade religiosa, consubstanciada na
proteção da parte organizacional das instituições religiosas. A dimensão subjetiva da li-
berdade de conscidência vincula-se, por definição, ao espaço da formação dos valores pes-
soais e da privacidade, restando, por isso, mais preservada contra a autoridade coativa do
Estado. Ver, sobre o problema em destaque, NALINI, José Renato. Liberdade religiosa na
experiência brasileira. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G. (Coords.). Direi-
to à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum,
2009. p. 46; SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre religião e estado no Brasil:
utopia constitucional? Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica –
PUC/SP, 2009. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp
090612.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2015. p. 256; MIRANDA, Jorge. Manual de direito
constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1993. t. IV, p. 359 e 366-7. Não há interesse,
neste trabalho, na abordagem dos sentidos coletivo e organizacional da liberdade religio-
sa, razão pela qual de nada serviria tratar da controvérisia referente à inviolabilidade dos
cultos religiosos e às concordatas realizadas entre o governo brasileiro e a Santa Sé. Só é
útil investigar, aqui, a cláusula da consciência como expressão subjetiva da personalidade
humana. Uma análise crítica sobre os acordos eclesiásticos promovidos por diversos paí-
ses filiados ao modelo concordatário pode ser lida no ensaio de MAZUOLLI, Valério de
Oliveira. O Direito Internacional Concordatário na ordem jurídica brasileira. In: MAZ-
ZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G. (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desa-
fios e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum, 2009, passim; e na obra de
WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo,
pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 156-161.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 297

dade de crença, na qualidade de um “desdobramento da liberdade religio-


sa”, pode ser invocada por aqueles que creem em uma ou outra divinda-
de, majoritariamente compartilhada ou não. Em ambos os casos, a invo-
cação da cláusula em questão tanto pode estar sustentada no direito à
adoção de uma determinada doutrina quanto no direito de agir em con-
formidade com o próprio sistema de valores 573.
A Constituição brasileira, em comparação com a Constituição nor-
te-americana, é mais clara e abrangente na garantia da liberdade de consci-
ência, no que se refere à igual proteção das crenças religiosas e da consciên-
cia laica574. No caso brasileiro, as duas cláusulas da liberdade religiosa, na
forma estabelecida pela Primeira Emenda à Constituição dos Estados Uni-
dos, – establishement clause e free exercise clause – foram incorporadas ao
sistema de proteção à liberdade de ação individual contra atos ilegítimos do
governo. O art. 5º, inc. VI, da Constituição Federal de 1988 contém em si o
dever positivo do Estado de respeito ao princípio do “livre exercício” das
crenças ou convicções filosóficas pessoais e dos “cultos religiosos”, e o art.
19, inc. I, por sua vez, proíbe o poder público de “estabelecer cultos religio-
sos ou igrejas” específicos, “ou manter com eles” qualquer tipo de “aliança”,
exceto na hipótese de existência de um “interesse público” que imponha a
cooperação entre Estado e Religião575.
573
WEINGARTNER, Jaime Neto. Op. cit., p. 115-6. No mesmo sentido, KARAM, Maria
Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o aborto. In: Escritos
sobre a liberdade. Rio de Janeiro: Lumen Jures, 2009. v. 2, p. 3, 7 e 42; e MARTINEL-
LI, João Paulo Orsini. Os crimes contra o sentimento religioso e o direito penal contempo-
râneo. In: MAZZUOLI, Valério de Oliveira; SORIANO, Aldir Guedes (Coords.). Direito
à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século XXI. Belo Horizonte: Fórum,
2009. p. 83.
574
Como analisado na segunda parte da obra, a melhor interpretação da Primeira Emenda à
Constituição dos Estados Unidos, em relação às cláusulas da liberdade de religião, indica
a equiparação entre a liberdade de crença religiosa e a liberdade laica, no sentido do hu-
manismo secular, em termos de proteção constitucional. Avançou-se este posicionamento,
evidenciando as razões que levaram os autores da Constituição a não mencionar expres-
samente a liberdade de consciência. Demonstrou-se, ainda, que os próprios requisitos das
mencionadas cláusulas não deixam dúvidas quanto ao caráter vinculante das premissas do
secularismo moral e político, no âmbito da validade dos atos governamentais. Na nossa
Constituição, não é preciso apelar para nenhum tipo de método interpretativo para se
constatar a abrangência da proteção da liberdade de consciência, com o envolvimento da
perspectiva da laicidade, pois trata-se de um preceito textualmente enunciado.
575
OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2014. p. 79. Ver, também, SORIANO, Aldir G. O direito à liberdade re-
ligiosa sob a perspectiva da democracia liberal. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIA-
NO A. G. (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século
21. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 169 e 171.
298 Teresinha Inês Teles Pires

Dentre os requisitos dogmáticos das cláusulas da liberdade de


consciência e de crença, importa destacar o caráter impositivo do princípio
da neutralidade, ou imparcialidade, das leis – derivado da free exercise clau-
se. É preciso pincelar, ainda, a exigência de que as leis tenham por funda-
mento um propósito secular convincente – derivado da establishement clau-
se. Tudo isto, mantendo-se o foco nas estratégias utilizadas no Capítulo 4 da
obra, a fim de situar o direito ao aborto no conteúdo protetivo das referidas
cláusulas.
Os sucintos comentários anteriormente feitos sobre os conceitos de
laicidade e de secularismo tiveram por finalidade solidificar uma visão plau-
sível que justifique a efetivação do princípio da neutralidade ideológica do
Estado, tão problemático nos nossos tempos. A questão está naturalmente
inserida na reflexão sobre o conteúdo da cláusula do livre exercício da reli-
gião, enunciada no art. 5º, inc. VI, da Constituição, e a exigência dela deri-
vada de que o Estado se abstenha de criar normas coativas incompatíveis
com o respeito que se deve ter pela autonomia de consciência de cada indi-
víduo.
No que pese os novos paradoxos da interação entre o Direito e a
Religião, não é possível abandonar a imperatividade do comprometimento
público com um nível satisfatório de neutralidade legislativa em relação ao
respeito à diversidade religiosa. A Constituição brasileira destaca a permea-
bilidade entre o regime democrático e o pluralismo político (art. 1º, inc. V),
o que direciona a reflexão à aplicabilidade de um dos pressupostos mais
importantes do constitucionalismo de Rawls e de Dworkin. Trata-se da pos-
tulação de que a liberdade de consciência seja politicamente assegurada com
a maior extensão possível, sendo este o padrão correto para se delimitar o
estatuto da neutralidade ideológica do Estado.
Não se está propondo atribuir à ideia da “privatização da reli-
gião‖ o estatuto de um referencial argumentativo primordial na defesa da
liberdade de consciência e de crença, mas não se pode perder de vista a
eficácia das categorias do Estado laico. Como muito se propala atualmen-
te, a perspectiva da privatização da vida religiosa perdeu sua força diante
do chamado “ressurgimento” do fenômeno religioso enquanto uma esfera
de participação na estruturação da política e do direito. Tal processo, que
cada vez mais se legitima no mundo contemporâneo, parece ter afastado
do debate jurídico a supremacia das implicações do secularismo na orga-
nização básica das sociedades democráticas. Fala-se, atualmente, em
“pós-secularismo”, o que conduz à perigosa abertura a um intervencio-
nismo religioso exacerbado, em detrimento da concretização do modelo
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 299

do pluralismo moral e político, reconhecidamente um dos principais sus-


tentáculos do Estado Constitucional 576.
Para Jônatas Machado, o “Estado Constitucional” apoia-se nos
valores da tradição judaico-cristã, que pressupõem a crença na existência
de Deus, de maneira a não ser possível falar em uma “verdadeira neutra-
lidade”. O autor reconhece apenas o que ele próprio denomina de uma
“margem razoável de neutralidade religiosa e ideológica”, cuja finalidade
seria a de preservar a “garantia institucional da liberdade de consciên-
cia”577. Esta visão amarra a defesa dos direitos fundamentais à liberdade
de consciência e de crença à imperatividade da ortodoxia cristã-
-monoteísta, desconstruindo o padrão do pluralismo razoável lançado
pela teoria de Rawls. Os argumentos de Jônatas Machado importam na
minimização do espaço da autonomia da consciência, enquanto que o
pluralismo de Rawls se sustenta exatamente na proposição contrária, ou
seja, na aceitabilidade máxima, portanto, na restrição mínima, daquele
mesmo espaço578.
Até que ponto é legítimo postular a relativização da neutralidade
religiosa do Estado, considerando a essencialidade da cláusula da liber-
dade de consciência e do livre exercício da religião no sistema de prote-
ção à autonomia ética? É preciso perceber que a Constituição Federal, ao
prever a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença (art. 5º,
inc. VI), está tratando de uma dimensão decisória que escapa aos propósi-
tos políticos de universalidade moral. Esta cláusula tem nítida finalidade
de preservar, em um contexto de pluralidade religiosa, os interesses das
concepções éticas minoritárias, haja vista a inegável dominância, em ter-

576
Para se compreender, com maior profundidade, os elementos conceituais que definem a
expressão “pós-secularismo”, marcadamente gestada a partir do final do século XX, con-
fira-se DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Direitos humanos e liberdade religiosa: os
domínios recalcitrantes do direito internacional: as tensões entre as diversidades religiosas
e o processo de internacionalização dos direitos humanos. Brasília: Senado Federal, 2014.
v. 205, p. 17-24 e p. 95-101; WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na
Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007. p. 38-41.
577
MACHADO, Jónatas E. M. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o
teísmo e o (neo) ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 28-30, 38 e 124.
578
Consulte-se a obra citada na nota supra. p. 126-9, onde Machado faz uma crítica explícita
ao modelo de Rawls, arguindo que o igual reconhecimento das doutrinas religiosas, com
base em razões públicas, privilegia as concepções seculares, deixando de fora da ideia de
razoabilidade os valores religiosos passíveis de aceitação universal. Não se pode concor-
dar com isto, pois Rawls não elimina do espaço público a participação das doutrinas reli-
giosas, mas antes as equipara às demais, sob o prisma do igual respeito a todas as concep-
ções de bem que sejam compatíveis com o sistema de justiça.
300 Teresinha Inês Teles Pires

mos numéricos, dos seguidores da doutrina cristã 579. Afinal, a reinserção


do discurso religioso no debate político não elimina a validade da catego-
ria social do secularismo e da categoria jurídica da privacidade decisória
em assuntos cujo interesse público dificilmente encontra justificação. A
esfera da religiosidade individual, ou da eticidade, não foi extirpada do
Estado Constitucional em decorrência da participação dos valores religio-
sos no processo legislativo. Em outros termos, o diálogo dos princípios
constitucionais com o “pós-secularismo” não pode conduzir à estagnação
da consciência individual e à implementação de um “discurso teológico
unificador”, que se imponha enquanto doutrina hermenêutica dos novos
tempos580.
A exigência de neutralidade institucional na elaboração das leis e
políticas é interpretada, atualmente, no sentido da imparcialidade do Estado
frente às distintas concepções ideológicas, de caráter religioso ou filosófico,
não importando isto no banimento dos valores coletivamente compartilha-
dos. O livre exercício da religião pressupõe a inspiração secular das normas
jurídicas, entendendo-se que tal premissa é condição necessária ao reconhe-
cimento do direito de todos os grupamentos humanos que compõem a comu-
nidade política de seguir os preceitos de sua própria cosmovisão ideológica,
de natureza laica ou religiosa581. Viu-se que no direito norte-americano a free
exercise clause impõe que as leis sejam neutras e genéricas, a fim de se legi-
timarem na democracia constitucionalista582, residindo em tais requisitos o
579
Como bem acentuado por CUNHA, Luiz Antônio; OLIVA, Carlos Eduardo. Sete teses
equivocadas sobre o estado laico. In: Ministério Público: em defesa do estado laico: cole-
tânea de artigos. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2014. v. I, p. 211, a
realidade brasileira, nas questões religiosas, é, particularmente, problemática, por caracte-
rizar-se por uma abundante diversidade cultural, abrangendo religiões com graus distintos
de reconhecimento institucional. Além do cristianismo, existem grupos religiosos vincu-
lados ao politeísmo indígena, outros de tradição africana, e as religiões orientais, mais re-
centemente incorporadas ao tecido social do país, sendo que algumas delas sequer contêm
em suas doutrinas a noção de uma divindade reguladora.
580
WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo,
pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 36-7.
581
HUACO, Marco. A laicidade como princípio constitucional do estado de direito. In:
LOREA, Roberto Arriada (Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2008. p. 42. Para CUNHA, Luiz Antônio; OLIVA, Carlos Eduardo. Op.
cit., p. 210, “o Estado Laico é imparcial em matéria de religião” e, “embora não dificulte
a difusão das ideias religiosas ou contrárias à religião, […], “não apoia nenhuma delas,
nem sequer um conjunto delas, nem mesmo todas as religiões, caso isso fosse possível”.
No mesmo sentido, WEINGARTNER, Jaime Neto. Op. cit., p. 148-50.
582
Conforme decisões proferidas pela Suprema Corte Federal nos casos Employment Div.,
Dept. of Human Resources of Oregon v. Smith (Smith II), 494 U.S. 872 (1990) e Church
of the Lukumi Babalu Aye Inc. v. City of Hialeah, 508 U. S. 520 (1993).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 301

fundamento da necessária imparcialidade governamental, em face do plura-


lismo moral e religioso.
Sendo assim, pode-se dizer que a inviolabilidade da liberdade de
consciência, expressamente protegida na Constituição do Brasil, traz para
o nosso sistema jurídico a pertinência de se preservar um modelo ade-
quado de neutralidade, ou imparcialidade, ideológica do Estado. E que tal
modelo, para ter consistência com o próprio momento temporal da elabo-
ração da Carta Magna, deve ir além da mera noção de tolerância religio-
sa, etapa prévia ao apogeu da égide do pluralismo religioso. Tolerância
religiosa é conceitualmente compatível com a aceitação do domínio de
uma doutrina majoritária, desde que haja compreensão coletiva quanto ao
espaço do exercício das doutrinas minoritárias. O pluralismo religioso vai
muito além desta configuração sociopolítica, implicando, sem nenhuma
ressalva, no igual reconhecimento, perante o sistema jurídico, da liberd a-
de de consciência583.
O livre exercício da liberdade de consciência e de crença está asse-
gurado, ainda, no art. 5º, inc. VIII, da Constituição de 1988, onde se invoca o
direito à escusa de consciência584. Não é objetivo do presente estudo apro-
583
Elucidativas são as lições de RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New
York: Columbia University Press, 2005. p. 154, quando afirma que a possibilidade do
consenso sobreposto estende a doutrina iniciada “três séculos atrás com a gradual aceita-
ção do princípio da tolerância e conduz ao estado não confessional e à igual liberdade de
consciência”. No original: “[...] three centuries ago wiht the gradual acceptance of the
principle of toleration and led to the nonconfessional state and equal liberty of con-
science”. É oportuno pontuar, ainda, junto com COSTA, Maria Emília Corrêa da. Apon-
tamentos sobre a liberdade religiosa e a formação do estado laico. In: LOREA, Roberto
Arriada (Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2008. p. 114, que “o caminho de transição da tolerância religiosa para o pluralismo reli-
gioso é longo e tortuoso”. Por fim, segundo LACERDA, Gustavo Biscaia de. Sobre as re-
lações entre Igreja e Estado: conceituando a laicidade. In: MINISTÉRIO PÚBLICO. Em
defesa do estado laico: coletânea de artigos. Brasília: Conselho Nacional do Ministério
Público, 2014. v. 1. p. 187, ―a passagem da tolerância à laicidade cessa qualquer vínculo
entre crença religiosa e pertencimento político”.
584
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do
Brasil: promulgada em 05.10.1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. v. 2, p. 60. Para maio-
res detalhes sobre as possibilidades da arguição da escusa de consciência, consulte-se
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucio-
nal. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 158. Ademais, uma boa análise das objeções apre-
sentadas pelos profissionais da saúde, nos serviços de assistência ao aborto, e das conse-
quências negativas daí advindas para a garantia da saúde da mulher e de sua autonomia
procriativa, nas hipóteses do aborto legal, pode ser lida no ensaio de DINIZ, Débora. Ob-
jeção de consciência e aborto: direitos e deveres dos médicos na saúde pública, Rev. de
Saúde Pública, 04/2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/ 2011nahead/
2721.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2012, passim.
302 Teresinha Inês Teles Pires

fundar a investigação sobre o direito à escusa de consciência, porque a liga-


ção que se pretende estabelecer entre a liberdade de consciência e o direito
ao aborto tem conotação distinta. Não se afirma que o direito da mulher, no
caso do aborto, esteja protegido pela remissão à escusa de consciência ou, na
terminologia da teoria política, às hipóteses em que se justifica a desobedi-
ência civil aos comandos legais por motivo de consciência. Defende-se, an-
tes, que o alcance da liberdade de consciência e de crença se estende à esco-
lha pela interrupção da gestação em razão da natureza religiosa da definição
do valor da vida potencial. Tal diretiva já está suficientemente demonstrada
em tudo o que foi escrito nos capítulos anteriores.
Em regra, a doutrina brasileira discorre sobre a liberdade de cons-
ciência e de crença, exclusivamente, para delimitar a aplicabilidade da escu-
sa de consciência585. Contudo, tal aspecto da cláusula em questão está longe
de expressar seu significado integral, e até mesmo seu significado mais im-
portante. Já é tempo de vislumbrar uma interpretação dos incs. VI e VIII do
art. 5º da Constituição, sobretudo, o primeiro, que incorpore seu papel na
análise da legitimidade das leis eventualmente violadoras da autonomia éti-
ca. Em primeira instância, a consciência é, por definição, livre e independe
de sua exteriorização. Mas, mesmo assim, requer efetiva tutela constitucio-
nal, por ser passível de violação sempre que uma norma jurídica, ou qual-
quer outra ação estatal, impede o indivíduo de tomar decisões éticas pauta-
das nos desígnios de sua consciência586. É sempre bom salientar que o Esta-
do brasileiro, sob a égide da Constituição de 1988, se sustenta em um mode-

585
Ver BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito
constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 312-316; SORIANO, Aldir G. O direi-
to à liberdade religiosa sob a perspectiva da democracia liberal. In: MAZZUOLI, Valério
de O.; SORIANO, A. G. (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas
para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 193-199.
586
Em sentido contrário, CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasi-
leira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. v. II, p. 210 e ss. (apud SOU-
ZA, Josias Jacintho de. Separação entre religião e estado no Brasil: utopia constitucio-
nal? Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP, 2009.
Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ cp090612.pdf>.
Acesso em: 05 mar. 2015. p. 264-5). No entendimento de Cretella Júnior, a liberdade de
consciência não exige proteção jurídica, e o constituinte, ao estabelecer esta proteção (art.
5º, inc. VI), confundiu consciência “com projeção da consciência no mundo externo”. O
esforço empreendido na presente obra, é demonstrar, pela análise do caso do aborto, a im-
portância da tutela da liberdade de consciência nos assuntos sensíveis à opinião religiosa.
Os argumentos já tecidos na segunda parte (capítulo 4), e os que serão apresentados na
próxima seção, tentam evidenciar o acerto da tese de Dworkin, no sentido de que o caráter
fundamental do direito ao aborto é passível de reconhecimento através da aplicação das
cláusulas da liberdade religiosa.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 303

lo organizativo no qual se destaca o vetor dogmático da liberdade de consci-


ência e da laicidade, sendo o reconhecimento da “pluralidade de sujeitos
morais”, livres e iguais, uma efetiva escolha sistêmico-estrutural pela impar-
cialidade estatal na elaboração e na interpretação das normas atinentes a
valores religiosos587.
A segunda dimensão subjetiva da liberdade religiosa é aquela que
proíbe ao Estado conferir tratamento privilegiado à determinada confissão
religiosa, nos precisos termos do art. 19, inc. I, da Constituição Federal, já
mencionado acima. Aqui se explicita a consagração da “ideologia da sepa-
ração entre a Igreja e o Estado”588. Esta teoria não se resume à vedação do
estabelecimento de qualquer igreja por parte do Estado, envolvendo, tam-
bém, qualquer tipo de apoio governamental, direto ou indireto, ao funciona-
mento dos respectivos cultos, que possa representar favorecimento e auxílio
no sentido da penetração de suas doutrinas na composição dos assuntos de
interesse público.
Em linguagem mais exata, é vedado ao Estado adotar oficialmente
uma religião específica, de forma explícita ou velada. O favorecimento vela-
do pode estar presente quando um ato governamental de uma das esferas do
poder institucional é inconsistente à luz do princípio da neutralidade e do
secularismo. Tais testes de constitucionalidade alicerçam-se no princípio da
igual proteção perante a lei. Como se assumiu, nas partes anteriores da obra,
a proibição do estabelecimento de uma religião está intrinsecamente associa-
da à proibição da discriminação a qualquer doutrina religiosa e às doutrinas
laicas. Embora não se esteja banindo toda e qualquer interação entre o Esta-
do e a Igreja, o conteúdo da proibição do estabelecimento de uma religião –
establishement clause – prescreve a garantia da igualdade entre “crenças,
igrejas e indivíduos”. A concretização do princípio da laicidade é essencial
para o equacionamento da experiência religiosa, que, para ser obtido, requer
o “compartilhamento material” entre a noção de neutralidade do Estado e o
preceito constitucional da igualdade589.

587
CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. Pluralidade de vozes em democracias
laicas: o desafio da alteridade. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir: múlti-
plos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 112.
588
SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre religião e estado no Brasil: utopia consti-
tucional? Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP,
2009. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp090612.
pdf>. Acesso em: 05 mar. 2015. p. 264.
589
TAVARES, André Ramos. Religião e neutralidade do estado. In: MAZZUOLI, Valério
de O.; SORIANO, A. G. (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas
para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 60 e 65.
304 Teresinha Inês Teles Pires

No plano legislativo, isto quer dizer que os parlamentares, ao


proferir o voto, não podem basear-se em argumentos religiosos, ou bene-
ficiar interesses de igrejas ou valores eclesiásticos. Os critérios analíticos
provenientes da inspiração secular das leis, da neutralidade (ou imparcia-
lidade) e da laicidade se intersectam, de modo a atribuir maior exatidão e
alcance à cláusula da separação entre Estado e Igreja. Presumindo-se o
caráter fático e jurídico do pluralismo democrático, na prática brasileira,
o poder legislativo não pode pressupor, como fundamento de suas deci-
sões, a veracidade moral de um determinado sistema de crenças e valores,
sob pena de estar invadindo, ou competindo, com o indivíduo na defini-
ção de questões religiosas 590.
A finalidade da cláusula da proibição do estabelecimento de uma
religião é assegurar a liberdade de escolha no que diz respeito à “formação
das consciências religiosas”, ou seja, assegurar o livre exercício da religião.
Já se mostrou em outro sítio que a cláusula do estabelecimento – establishe-
ment clause – e a cláusula do livre exercício da religião – free exercise clau-
se – foram concebidas pelo direito estadunidense em sentido unitário. Possuem
significado normativo distinto, mas estão mutuamente implicadas. A separa-
ção entre a Igreja e o Estado impõe-se em decorrência da exigência de im-
parcialidade, sem a qual não seria possível proteger “a igual dignidade” de
todos os titulares do direito à liberdade religiosa. Protege-se, com a simbolo-
gia do “muro da separação”, “o aspecto voluntário que é próprio das ade-
sões religiosas”591. Em outras palavras, sem a efetividade da cláusula da
separação – establishement clause – em assuntos vários, não há liberdade
religiosa, porque simplesmente o direito do indivíduo de seguir ou não uma
religião e de compor, a partir daí, seu projeto de vida, não pode ser “desi-
gualmente distribuído”. A liberdade de consciência e de crença pressupõe
um “sério compromisso político com a igualdade religiosa”592.

590
HUACO, Marco. A laicidade como princípio constitucional do estado de direito. In:
LOREA, Roberto Arriada (Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livra-
ria do Advogado, 2008. p. 44-5.
591
SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre religião e estado no Brasil: utopia consti-
tucional? Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP,
2009. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
cp090612.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2015. p. 252-3.
592
DINIZ, Débora; LIONÇO, Tatiana. Educação e laicidade. In: DINIZ, Débora; LIONÇO,
Tatiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: Unesco,
Letras Livres, 2010. p. 25. Vale transcrever, ainda, as palavras de TAVARES, André Ra-
mos. Religião e neutralidade do estado. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G.
(Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21. Belo
Horizonte: Fórum, 2009. p. 57: “[…] embora a neutralidade do Estado não seja essencial
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 305

No que diz respeito à problemática referência a “Deus”, no preâm-


bulo da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal firmou interpre-
tação no sentido de tratar-se de disposição destituída de valor normativo593.
A doutrina explica, igualmente, que a invocação a Deus, no caso, não tem
relevância jurídica, pertencendo não à esfera do Direito, e sim à visão subje-
tiva dos constituintes originários. Assim, tal aspecto do preâmbulo em nada
interfere no conteúdo da liberdade religiosa, e não cria nenhuma ambivalên-
cia na compreensão da laicidade do Estado. A principiologia normativa,
incorporada aos primeiros artigos da Carta de Direitos (arts. 1º a 5º), sobre-
põe-se às particularidades axiológicas introduzidas no preâmbulo594. Ade-
mais, o texto expresso no preâmbulo assegura a fundamentalidade dos direi-
tos individuais, da liberdade, da igualdade e da justiça, bem como dos direi-
tos sociais, prescrevendo tais categorias como “valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Não há, assim, dúvidas
quanto ao caráter inclusivo do princípio do pluralismo no sentido do reco-
nhecimento das múltiplas concepções de bem, clarificando-se, já no preâm-
bulo, a primazia da liberdade de consciência e de crença e o paradigma do
Estado Laico595.
É crucial repensar o significado do sagrado, sob o entendimento de
que a salvaguarda do secularismo não representa o rompimento com a noção
de sacralidade, cuja imanência à história da humanidade é inegável. A res-
significação do modelo secular, implementado na modernidade, a partir das

à existência de pluralidade religiosa, esta só pode aflorar plenamente em Estados que


adotam o postulado separatista e a postura da neutralidade religiosa”.
593
No julgamento da ADIN 2076-5/Acre, Relator Ministro Carlos Veloso, 15.08.2002 (con-
forme LOREA, Roberto Arriada. O assédio religioso. In: LOREA, Roberto Arriada
(Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.
161-2).
594
LOREA, Roberto Arriada. Op. cit., p. 160-2; SOUZA, Josias Jacintho de. Separação
entre religião e estado no Brasil: utopia constitucional? Tese de doutorado. São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP, 2009. Disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/download/texto/cp090612.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2015. p. 247-
8; ver também, MARTINS, Humberto. Liberdade religiosa e estado democrático de
direito. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G. (Coords.). Direito à liber-
dade religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum,
2009. p. 106; e WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constitui-
ção: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advo-
gado, 2007. p. 185.
595
SORIANO, Aldir G. O direito à liberdade religiosa sob a perspectiva da democracia
liberal. In: MAZZUOLI, Valério de O.; SORIANO, A. G. (Coords.). Direito à liberdade
religiosa: desafios e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 174-
5.
306 Teresinha Inês Teles Pires

novas demandas veiculadas pelo resgate do pensamento religioso, é impera-


tiva em decorrência do direito fundamental à liberdade de religião. Tendo
em mente o sentido normativo da inviolabilidade da consciência, não se po-
de reverter o processo de secularização das sociedades democráticas, deven-
do o direito ocupar-se justamente com a tarefa de sustentar a aceitabilidade
social da secularização das instituições públicas e, principalmente, o com-
prometimento das forças políticas com o secularismo.
A relação com o sagrado não possui um caráter exclusivamente re-
ligioso, no sentido das doutrinas teístas, mas está incorporada igualmente às
visões morais laicas, que sustentam concepções de bem a partir das quais o
dever moral para com o próximo e para com a comunidade política se defina
por meio de premissas racionalmente estabelecidas. A escolha “entre o teís-
mo, o ateísmo e o agnosticismo” é inerente à relação subjetiva com o divino,
situando-se na esfera do direito à autodeterminação596.
A resposta correta à problemática da reinserção social do fenôme-
no religioso deve ser afirmada pela consideração da esfera do sagrado na
própria categorização constitucional da independência ética e do pluralismo
político, sendo que o segundo implica a aceitabilidade social da diversidade
ideológica. Em palavras sintéticas, o aperfeiçoamento do significado do
princípio da laicidade do Estado mantém uma conexão chave com o impres-
cindível propósito de preservar, em tempos de dominância de credos religio-
sos majoritários, o respeito a direitos fundamentais de primeira linha, tais
como a liberdade de consciência, de crença e a igualdade no exercício dessas
liberdades por parte de todos, crentes e não crentes. Este modelo político não
pode ser abandonado na legitimação do conteúdo substancial das leis, o que,
muitas vezes, ocorre sob o manto do majoritarianismo político e do pretenso
direito das forças religiosas de ditar o conteúdo normativo de decisões que
irão comandar a vida de todos os membros da comunidade597.

596
MARTINS, Humberto. Liberdade religiosa e estado democrático de direito. In: MAZ-
ZUOLI, Valério de O.; SORIANO A. G. (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios
e perspectivas para o Século 21. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 100.
597
Conforme SOUZA, Josias Jacintho de. Separação entre religião e estado no Brasil:
utopia constitucional? Tese de doutorado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica –
PUC/SP, 2009. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
cp090612.pdf>. Acesso em: 05 mar. 2015. p. 142-3, no Brasil as confissões religiosas ca-
tólicas e pentecostais possuem seus próprios partidos políticos: o Partido Social Cristão
(PSC), o Partido Trabalhista Cristão (PTC) e o Partido Social Democrata Cristão (PSDC).
De outro lado, e defendendo as mesmas visões dogmáticas do catolicismo oficial em di-
versos assuntos sensíveis, como o aborto e a união familiar homossexual, está o Partido
Republicano Brasileiro (PRB), fundado por integrantes da Igreja Universal do Reino de
Deus, atualmente um dos que apresenta maior representação na Câmara dos Deputados. É
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 307

Na seara dos documentos internacionais ratificados pelo governo bra-


sileiro, encontram-se subsídios úteis para a afirmação da importância do respeito
à liberdade religiosa e para a elucidação do conteúdo dogmático de suas cláusu-
las. Mencione-se, por exemplo, o art. 1 (1) da Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH), que inclui entre as liberdades fundamentais, cujo exercício
deve ser obrigatoriamente promovido pelo Estado, sem qualquer tipo de discri-
minação, a liberdade religiosa. Em disposição mais específica, o mesmo docu-
mento reafirma, em seu art. 12 (1), o direito inalienável de todas as pessoas à
“liberdade de consciência e de religião”, e define, como estando no âmbito de tal
direito, a livre escolha das crenças pessoais e a faculdade de professar qualquer
delas, de forma individual ou coletiva, pública ou privada598. Observe-se que a
Convenção separa a liberdade de consciência e de religião, assumindo o enten-
dimento de que a primeira diz respeito à faculdade individual de adotar convic-
ções morais seculares, além de situar as duas categorias no mesmo patamar de
exigência de reconhecimento por parte do Estado.
Já o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP),
art. 18 (1), particulariza a proteção da “liberdade de pensamento, consciência
e religião”, definindo cada uma de maneira consentânea com os termos da
Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH). Na linguagem do
PIDCP, todas as pessoas têm o direito “de ter ou de adotar uma religião ou
crença de sua escolha” e de manifestá-la publicamente599. No mesmo senti-

visível o aumento do número de líderes religiosos evangélicos no Congresso Nacional, de-


rivado do lançamento de candidaturas oficiais, o que dificulta o compromisso institucional
com o modelo do Estado laico presumido na Constituição de 1988. Consulte-se, também,
MACHADO, Maria das Dores Campos. A atuação dos evangélicos na política institucio-
nal e as ameaças às liberdades laicas no Brasil. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.). Em
defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, passim; e CU-
NHA, Luiz Antônio; OLIVA, Carlos Eduardo. Sete teses equivocadas sobre o estado lai-
co. In: Ministério Público: em defesa do estado laico: coletânea de artigos. Brasília: Con-
selho Nacional do Ministério Público, 2014. v. I, p. 213 e 216-7. Em tal quadro, alerta,
por fim, WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constituição: funda-
mentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 99,
que a despeito da complexa diversidade religiosa existente na sociedade brasileira, muitos
obstáculos existem para se garantir a “autocompreensão religiosa dos indivíduos e dos
grupos” minoritários. Daí não pode resultar outra consequência senão o esvanecimento da
igual “independência moral-prática individual”.
598
“[...] freedom of conscience and of religion” (conforme American Convention on Human
Rights. Disponível em: <www.oas.org/dil/treaties_B-32_American_Convention_on_
Human_Rights.htm>. Acesso em: 24 nov. 2013).
599
“[...] freedom of thought, conscience and religion” “[...] to have or to adopt a religion or
belief of his choice” Conforme International Convenant on Civil and Political Rights.
Disponível em: <http://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/ccpr.aspx>. Acesso
em: 24 nov. 2013.
308 Teresinha Inês Teles Pires

do, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e


Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções (Resolução 36/55,
de 1981) exige, logo no seu art. 1º (1), o respeito à “liberdade de pensamen-
to, de consciência e de religião”, sendo que o conteúdo da norma envolve o
direito de escolha de uma religião, ou “qualquer convicção”, e, igualmente, o
direito de expressá-las na esfera comunitária. Os arts. 2º, 3º e 4º da Declaração
prescrevem preceitos rígidos para o combate à “discriminação por motivo de
religião ou convicções”, seja por parte de instituições públicas, seja por parte
de grupos ou pessoas, caracterizada como verdadeira ofensa à “dignidade hu-
mana”, aos “direitos humanos” e às “liberdades fundamentais”600.
O que se mostra digno de nota é a tipologia conceitual da abordagem
da liberdade religiosa, no espaço da internacionalização do direito. Todas as
prescrições indicam a ampliação do significado do termo “religião”, de modo
a incluir a equivalência das crenças religiosas e das convicções ideológico-
-seculares. A categoria da liberdade de consciência é inequivocamente reco-
nhecida na qualidade de uma liberdade específica, em termos de formação dos
valores pessoais, destacada da liberdade de pensamento e ressignificada em
sua relação com a dimensão metafísico-religiosa. Isso se coaduna com a leitu-
ra direcionada pelas teorias de Rawls e de Dworkin, no que se refere à confi-
guração extensa da noção de sacralidade, bem como com a leitura apresentada
na segunda parte da obra, relativa ao desenvolvimento dogmático do conteúdo
das cláusulas da liberdade religiosa no direito estadunidense.

6.4 O DIREITO AO ABORTO COMO UM COROLÁRIO DA


LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA

Seguindo os passos de Dworkin, e adotando sua tese de que a tu-


tela da vida pré-natal deve ser analisada a partir da ideia da sacralidade da
600
A Declaração da ONU está disponível no seguinte endereço: <http://www.dhnet.org.br/
direitos/sip/onu/ paz/dec81.htm>. Acesso em: 24 nov. 2014. Outros documentos poderiam
ser mencionados, dedicados à proteção da liberdade religiosa, mas seria exaustivo discri-
miná-los neste trabalho, tratando-se de tarefa prescindível, haja vista a similitude norma-
tiva entre todas as disposições pertinentes à matéria. Para maior conhecimento do tema,
no plano internacional, consulte-se DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Direitos humanos
e liberdade religiosa: os domínios recalcitrantes do direito internacional: as tensões entre
as diversidades religiosas e o processo de internacionalização dos direitos humanos. Bra-
sília: Senado Federal, 2014. v. 205, p. 33-36; e WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberda-
de religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2007. p. 54-7.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 309

vida, tentar-se-á, aqui, mostrar que o conteúdo da cláusula da liberdade de


consciência e de crença envolve, implicitamente, o direito da mulher de
interromper a gestação com fundamento em sua própria concepção ética
sobre o valor intrínseco da vida humana. Como já afirmado anteriormente,
direitos implícitos não equivalem aos direitos não enumerados, por isso seu
reconhecimento não exige do intérprete nenhum esforço criativo. Na visão
ora presumida, o aborto constitui um direito inserido na proteção da cláu-
sula da liberdade de consciência e de crença, o que pode ser consistente-
mente demonstrado a partir da aplicação do teste da razoabilidade do devi-
do processo legal.
O aborto não precisa ser reconhecido, portanto, como um direito
não enumerado, decorrente dos tratados internacionais ou de outros princí-
pios não assegurados pela Carta de Direitos da nossa Constituição. Deve ser
reconhecido, antes, como um direito abrangido pelos contornos das cláusulas
gerais da liberdade e da igualdade, bem como pelo significado substancial da
liberdade de consciência, na medida em que esta é uma expressão da perso-
nalidade humana, mais precisamente, uma expressão da autonomia ética na
definição dos valores pessoais fundamentais.
É claro que as disposições do direito internacional, cuja obediência
é imposta às autoridades políticas e governamentais, reforçam a premência
do reconhecimento do direito ao aborto no sistema pátrio. Teve-se a oportu-
nidade de elucidar sumariamente, nas seções anteriores, a contribuição pro-
movida por aquelas normas internacionais na articulação da tese de que a
proibição da interrupção da gestação, por vontade da mulher, vai de encontro
às diretivas implementadas, em nível mundial, no sentido da garantia dos
direitos reprodutivos, em sua vinculação aos direitos humanos e às liberda-
des fundamentais. Todavia, pretende-se, neste quadro, tecer algumas refle-
xões que indiquem, à luz do esquema normativo nacional e dos apontamen-
tos doutrinários, ser adequado colocar em debate a estreita conexão existente
entre a liberdade de escolha procriativa da mulher, em relação ao aborto, e o
exercício de sua autonomia de consciência, enquanto dimensão subjetiva da
liberdade religiosa.
Enfatize-se, em primeiro lugar, que o comprometimento da demo-
cracia brasileira com o paradigma constitucionalista impede a legitimação de
leis restritivas de direitos que solapem a garantia da dignidade humana, do
pluralismo político e da diversidade religiosa. É possível argumentar que o
nosso sistema acolhe plenamente a ideia de que a imposição estatal de uma
moralidade particular, em relação a determinados assuntos, pelo simples fato
de tratar-se de uma moralidade nitidamente majoritária, fere os parâmetros
310 Teresinha Inês Teles Pires

corretos dos direitos de liberdade. É possível afirmar, ainda, nesta direção,


que o propósito político de transformar o estatuto do nascituro, para dotá-lo
de personalidade jurídica, logo, para convertê-lo em titular do direito à vida,
não deixa de reproduzir, através de uma linguagem não consagrada no texto
constitucional, a veracidade de uma única doutrina moral sobre o valor in-
trínseco da vida601.
Em geral, a sociedade e o governo brasileiros violam a liberdade de
consciência e de crença, seja por meio de leis cujo conteúdo se apoia em
crenças particulares, seja por meio de práticas incompatíveis com o princípio
da laicidade, como, por exemplo, o uso de crucifixos em repartições públicas
e os feriados nacionais em datas religiosas. A própria Constituição fere o
modelo de uma sociedade laica, ao dispor, em seu art. 210, § 1º, que as esco-
las públicas devem oferecer aos alunos do ensino fundamental formação
religiosa, em caráter facultativo602. De outro lado, o século XXI introduziu,
no cenário político, uma nova moldura para o Estado laico, como se pontuou
antes, produzindo uma necessária interação entre “crentes e não crentes”.
Com esta ressignificação, o respeito à diversidade moral terminou se acomo-
dando a um certo nível de aceitação da dominância dos credos religiosos
majoritários, tornando-se difícil coibir, com fundamento no padrão da neu-
tralidade, determinadas práticas costumeiras como a fixação de símbolos
religiosos nas instituições públicas ou a formação de bancadas religiosas no
Congresso Nacional603.
No Brasil, existe uma ampla tolerância à dinâmica entre a laici-
dade e o fenômeno religioso. O problema do respeito ao livre exercício
da religião situa-se justamente na direção contrária, ou seja, na necessi-
dade de se estabelecer limites à interferência do pensamento religioso nas
questões de foro íntimo. Sabe-se que a receptividade pública das práticas
e dos valores religiosos é admissível, desde que o espaço da liberdade de
consciência não seja atingido. A visão cristã sobre a sacralidade da vida
representa um único subsistema moral, dentre vários outros, segundo o
qual o direito à vida tem início no momento da concepção. Assim, se o
601
CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. Pluralidade de vozes em democraci-
as laicas: o desafio da alteridade. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir:
múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 106-7 e 109.
602
OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2014. p. 81-2. Sobre o assunto, ver, também, DINIZ, Débora; CAR-
RIÃO, Vanessa. Ensino religioso nas escolas públicas. In: DINIZ, Débora; LIONÇO, Ta-
tiana; CARRIÃO, Vanessa. Laicidade e ensino religioso no Brasil. Brasília: Unesco, Le-
tras Livres, 2010. p. 37-61.
603
CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. Op. cit., p. 119.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 311

Estado assume tal tese como verdade e como critério de elaboração de


uma norma penal-punitiva, está aderindo a uma moralidade particular,
sobretudo, em uma sociedade tão pluralista em matéria religiosa, como a
sociedade brasileira. É plausível articular, no tocante ao tema do aborto,
um modelo de concretização da liberdade de consciência, à luz dos prin-
cípios do secularismo e da neutralidade das leis, que se concilie com a
não exclusão da experiência religiosa 604.
A linguagem da Constituição Federal é inequívoca no que toca ao
padrão da laicidade do Estado (art. 5º, inc. VI) e da proibição do seu atrela-
mento a um credo religioso (art. 19, inc. I). A exigência de igual considera-
ção, perante a lei, das “convicções mais íntimas” das mulheres impede que
se lhes imponha o destino da maternidade, sendo este o efeito da proibição
taxativa da interrupção voluntária da gestação desde os seus primeiros está-
gios. Assim, a criminalização do aborto, na forma desenhada pelo Código
Penal de 1940, é incompatível com a laicidade do Estado e com a autonomia
procriativa das mulheres que desejam realizar o procedimento abortivo605.
Pressupõe-se, em tal argumento, o padrão constitucional, proposto por
Dworkin, no sentido de que a decisão da mulher de realizar ou não o aborto
é uma espécie de decisão cuja proteção está assegurada pelo princípio da
liberdade religiosa, já que se trata de um princípio que envolve a definição
do valor sagrado da vida humana606.

604
CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. Pluralidade de vozes em democraci-
as laicas: o desafio da alteridade. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir:
múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 119-121.
605
OMMATI, José Emílio Medauar. O direito fundamental ao aborto no ordenamento jurídi-
co brasileiro. In: FABRIZ, Daury Cesar et al. O tempo e os direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 558-9.
606
No Brasil, BOFF, Leonardo. Entrevista. In: CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce
(Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito
de Decidir, 2006. p. 20, expressa uma opinião correta sobre o tema do aborto, em uma
abordagem que se conforma à tese de Dworkin, com as seguintes palavras: “Ademais, de-
vemos entender a vida humana processualmente. Ela nunca está pronta. Lentamente, ela
vai desenrolando o código genético que conhece várias fases até que o ser concebido
possa ter relativa autonomia. […] Todo esse processo é humano. Mas ele pode ser inter-
rompido numa das fases, quando não chegou ainda a sua relativa autonomia. Isso quer
dizer que houve a interrupção de um processo que tendia à plenitude humana, mas que
não foi alcançada. Nesse quadro pode ser situado o aborto. Devemos proteger o máximo
possível o processo, mas devemos também entender que ele pode ser interrompido por
múltiplas razões, uma delas pela determinação humana. Ela não é isenta de responsabili-
dade ética. Mas essa responsabilidade deve atender ao caráter processual da constitui-
ção da vida. Não é uma agressão ao ser humano, mas ao processo que tendia constituir
um ser humano”.
312 Teresinha Inês Teles Pires

A controvérsia ética mais complexa reside na necessidade de uma


definição jurídica do momento a partir do qual o feto adquire o direito de ter
a sua vida preservada. Mas não é impossível construir uma regra legal que se
compatibilize com a proteção da liberdade de consciência. Há um “consenso
geral” segundo o qual é inaceitável descriminalizar o infanticídio, bem como
liberar o aborto quando o feto já é capaz de sobreviver fora do útero mater-
no, a não ser, no segundo caso, para salvar a vida da gestante. Há, igualmen-
te, um consenso em torno da ideia de que o respeito à vida do feto aumenta à
medida que progride o processo gestacional. De outro lado, há uma margem
de desacordo em relação aos direitos do feto no primeiro e no segundo tri-
mestre da gravidez607.
Deste modo, uma abordagem ética consistente, especialmente no
contexto social, político e constitucional brasileiro, é capaz de demonstrar a
sustentabilidade do respeito à liberdade de consciência da gestante, no tocan-
te à importância da vida nascitura, até um determinado estágio do desenvol-
vimento fetal. Na opinião de Aníbal Faúndes e José Bazelatto, 12 semanas
de gestação configura tempo mínimo adequado, no que pese relativamente
“arbitrário”, para assegurar a liberdade de consciência e de crença. Os auto-
res escolhem esse marco sob o argumento de que o valor da dignidade intrín-
seca da vida humana cresce gradualmente nos períodos subsequentes e que
aumenta também, na mesma proporção, os riscos à saúde e à vida da mulher
decorrentes do procedimento do aborto. Propõem, ainda, os mesmos autores,
a razoabilidade de se determinar que, no segundo trimestre gestacional, o
aborto seja permitido em hipóteses específicas. Defendem, por fim, que, no
terceiro trimestre, ou após 22 semanas de gestação, quando o feto já tem
condições de sobrevivência extrauterina, o aborto só deva ser permitido, se
necessário para salvar a vida da gestante ou em caso de malformação incom-
patível com a vida608.
Efetivamente, não se justifica, sob o padrão da liberdade de consci-
ência e de crença, proibir o aborto nos estágios iniciais da gestação, o que
importa em violação ao livre exercício das convicções morais e religiosas
(CF, art. 5º, inc. VI, primeira parte), e ao vedamento do estabelecimento
público de um credo religioso (CF, art. 19, inc. I). Em termos pessoais, pode-
-se concordar com o padrão norte-americano da permissão do aborto volun-
tário também no segundo trimestre de gravidez, considerando-se que a im-
possibilidade da sobrevivência extrauterina, ainda caracterizada em tal está-
607
FAÚNDES, Aníbal; BARZELATTO, José. O drama do aborto: em busca de um con-
senso. São Paulo: Komedi, 2004. p. 172.
608
Ibidem, p. 180-1.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 313

gio do desenvolvimento fetal, é circunstância que justifica a garantia da li-


berdade de consciência no âmbito do planejamento procriativo. Arrisca-se
divergir, ainda, em termos gerais, da posição dos autores Aníbal Faúndes e
José Bazelatto, portanto, do modelo adotado pela maioria dos países euro-
peus, pelos quais o aborto só deve ser legalizado até 12 semanas de gestação.
É certo que a forte resistência da sociedade e dos operadores do direito, no
tocante ao enfrentamento do assunto, dificulta a aceitabilidade do padrão
adotado nos Estados Unidos da América, mesmo se a questão ficar ao encar-
go do poder judiciário. Mas isto não quer dizer que o tempo concedido à
mulher para tomar sua decisão não possa se estender um pouco mais para
além das 12 semanas de gestação.
As razões apresentadas por Dworkin para justificar o direito ao
aborto até 24 semanas de gestação, como já se expôs, são duas: a inviabili-
dade fetal e a necessidade de se possibilitar tempo suficiente para que a ges-
tante exerça o seu direito, à luz de sua própria consciência. Nesta perspecti-
va, compreende-se que a segunda razão, relativa aos interesses da gestante,
também atingiria, se fosse negada, o igual direito à liberdade religiosa, por-
que impossibilitaria muitas mulheres, marcadamente as pertencentes às clas-
ses sociais desprestigiadas, de exercer seu direito.
Sendo assim, firma-se, como moldura propositiva da presente
obra, a defesa da ilegitimidade da proibição do aborto até 14 semanas de
gestação, no sistema brasileiro, em consideração à segunda razão pince-
lada por Dworkin, ou seja, o dever de assegurar, ou, ao menos, tentar
assegurar às mulheres tempo razoável para a formação de sua convicção e
para a realização do procedimento do aborto. Supondo-se a não aceitação,
em nossa comunidade política, do critério da viabilidade fetal, propõe -se
que a prática do aborto seja legalizada no país durante as primeiras 14
semanas, a fim de se garantir às mulheres o igual direito de escolha e a
realização do respectivo procedimento no tempo permitido. Em relação
aos períodos subsequentes da gestação, sugere-se que o aborto seja libe-
rado entre 15 e 22 semanas, nas hipóteses de gravidez resultante de estu-
pro, malformação incompatível com a vida ou para proteger a vida e a
saúde da gestante. E que, a partir da 23ª semana, o procedimento seja permi-
tido, exclusivamente, para salvar a vida da gestante609.

609
Esclareça-se que tal proposta leva em conta as barreiras práticas ao avanço do assunto nas
instâncias competentes, eis que mesmo o Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar temas
sensíveis, utiliza, muitas vezes em larga escala, o ponto de vista da moralidade pública,
conferindo cuidadosa atenção à opinião politicamente prevalente, em sentido majoritário.
Sendo assim, propor a legalização do aborto voluntário, nos parâmetros defendidos por
314 Teresinha Inês Teles Pires

As observações de John Rawls sobre o prazo adequado para a lega-


lização do aborto se coaduna com a proposta acima apresentada. Para o
autor, o problema do aborto envolve, em caráter prioritário, três valores
políticos: o respeito à vida humana, o interesse social na reprodução da
comunidade política e o direito da mulher ao igual exercício das prerro-
gativas da cidadania. A composição justa de tais valores, em qualquer
“doutrina compreensiva” (“compreenhensive doctrine”) do bem, conce-
derá à mulher o direito de interromper a gestação durante o seu primeiro
trimestre, porque neste prazo o valor da igual cidadania sobrepõe-se aos
outros dois. Ademais, afirma-se que o mesmo direito deve ser assegura-
do, em determinadas situações, por um período gestacional mais amplo.
Rawls não aprofunda a discussão, e enfatiza que seu intento é apenas
demonstrar que qualquer doutrina que exclua o direito ao aborto no pri-
meiro trimestre da gestação não há de ser considerada razoável, por
transgredir os limites da razão pública 610.
A exigência de igual consideração perante a lei estabelece um eixo
associativo entre liberdade e igualdade, em matéria de interpretação consti-
tucional, e, no que concerne à igualdade, unifica as ideias de igualdade moral
e igualdade de gênero. O interesse em garantir a todas as mulheres, de todos
os níveis de escolaridade e de condição econômica, a possibilidade da esco-
lha pelo aborto é razão plausível para estender, em todas as sociedades lai-
cas, a permissão de sua prática até, no mínimo, 14 semanas de gestação.
De outro lado, a proibição do aborto implica na rejeição dos co-
mandos determinados nos arts. 5º (1) e 12 (1) do Pacto de São José de Costa
Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos)611. Anular a integri-
dade da consciência da mulher, psicologicamente e intelectualmente, confi-
gura prática que também se enquadra no conceito de discriminação expresso

Dworkin, certamente, não teria nenhum eco, em vista do efetivo alcance de um resultado
favorável à ampliação da autonomia procriativa das mulheres.
610
RAWLS, John. Political liberalism. Expanded Edition. New York: Columbia University
Press. 2005. p. 243-4, nota 32.
611
Art. 5º (1): “Toda pessoa tem o direito ao respeito à sua integridade física, mental e mo-
ral” (“Every person has the right to have his physical, mental e moral integrity respec-
ted”); Art. 12 (1): “Todas as pessoas têm o direito à liberdade de consciência e de reli-
gião” (―Everyone has the right to freedom of conscience and of religion‖). PIOVESAN,
Flávia. Direitos sexuais e reprodutivos: aborto inseguro como violação dos direitos huma-
nos. In: SARMENTO Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos limites da vida: aborto, clonagem
humana e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007. p. 66, acentua que o Código Penal de 1940, ao punir o aborto, não reflete as aspira-
ções das mulheres, no que se refere à sua autonomia moral, e viola os direitos sexuais e
reprodutivos declarados pelo direito internacional.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 315

nos arts. 1, 2, 12 (1) e 16 (1) da Convenção sobre a Eliminação de Todas as


Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)612. Tais disposições
contribuem para clarificar a esfera protetiva a ser extraída dos artigos da
Constituição Brasileira aplicáveis ao tema investigado. No sistema brasilei-
ro, a garantia, especificamente firmada, do direito ao planejamento familiar
(art. 226 da CF) permite vincular a autonomia da consciência, em matéria
procriativa, à preservação da intimidade decisório-familiar.
De fato, os autores brasileiros favoráveis à descriminalização do
aborto utilizam, regra geral, para caracterizar seu estatuto fundamental, os
princípios genéricos da dignidade, da liberdade e da igualdade, bem como os
limites do direito à vida. Sustentam, ainda, que a criminalização, no caso,
viola o direito ao planejamento familiar, previsto no art. 226 da Constituição
Federal. E, em acréscimo aos seus argumentos, trazem para o debate o en-
volvimento do princípio da laicidade, no contexto da análise da constitucio-
nalidade ou inconstitucionalidade dos dispositivos penais em questão613.
A concretização da laicidade, em relação a qualquer assunto, não
deixa de ser problemática, pois é intuitivo que a liberdade de consciência não
é absoluta e não importa em admitir que cada pessoa crie suas próprias nor-
mas de conduta, escapando por completo das constrições legais. Do contrá-
rio, na linguagem de Jônatas Machado, a sociedade seria conduzida ao pa-
drão da “anarquia” ou “anomia”. A liberdade de consciência se reporta a
uma zona de valoração ética e moral individual, que representa a efetividade
da dignidade enquanto autonomia, mas não pode dar margem ao subjetivis-
mo axiológico extremo ou à legitimação do “irracionalismo”614. No entanto,
Machado defende a pertinência da participação do discurso religioso, na
configuração do conceito de sacralidade, em um nível que ultrapassa os limi-
tes estabelecidos pelo modelo do Estado laico. Afirma o autor que os princí-
612
Os arts. 2 e 12 (1) da CEDAW encontram-se transcritos na seção 6.2, nota 545, do presen-
te trabalho; e o art. 1 da CEDAW está redigido na mesma seção, nota 555, para onde o
leitor pode ser remetido. O art. 16 (1), ora mencionado, prescreve: “Os Estados Partes de-
vem adotar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra as mu-
lheres em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares e, em parti-
cular, devem assegurar, numa base de igualdade entre homens e mulheres: (a) O mesmo
direito de contrair matrimônio” (“States Parties shall take all appropriate measures to
eliminate discrimination against women in all matters relating to marriage and family re-
lations and in particular shall ensure, on a basis of equality of men and women: (a) The
same right to enter into marriage;”).
613
OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janei-
ro: Lumen Juris, 2014. p. 90 e 95-6.
614
MACHADO, Jónatas E. M. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o
teísmo e o (neo)ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 40, 42-3 e 88-9.
316 Teresinha Inês Teles Pires

pios morais do cristianismo protegem a sociedade de se desviar em direção a


uma disputa incontida entre “grupos de interesse”. E mais, que a proteção
constitucional da consciência visa assegurar os direitos das minorias, mas
não ao ponto de banir todas as formas de expressão pública dos valores reli-
giosos majoritários, amparando apenas “dimensões nucleares” da liberdade
religiosa e da igualdade perante a lei615.
Já se teve oportunidade de mostrar que Jônatas Machado pressupõe
uma base cultural cristã na formação do Estado Constitucional, que pratica-
mente endossa os parâmetros do Estado confessional. Segundo sua ótica, o
casamento homossexual, por exemplo, não seria tutelado pela liberdade de
consciência, porque atinge uma “estrutura milenar”, presumida pelo orde-
namento jurídico, a família, “zona sensível” do tecido social, que, como tal,
não deve ser alterada616. Este posicionamento é inadequado, à luz do padrão
do pluralismo religioso, que já assenta temperamentos corretos ao processo
de dessacralização do homem, impondo ao Estado o respeito ao igual direito
à liberdade religiosa617.
No regime democrático, adotado pela Constituição de 1988, pode-
-se dizer que as “dimensões nucleares” da liberdade religiosa têm um alcan-
ce maior do que o proposto por Jônatas Machado, envolvendo sim o direito à
autodeterminação sexual, no tocante ao casamento homossexual, e também o
direito à autodeterminação procriativa, no tocante ao aborto. No caso do
aborto, em se aceitando o atrelamento axiológico entre a doutrina cristã, na
vertente contemporânea, e a ordem constitucional democrática, realmente, a
sacralidade da vida seria, nos tempos atuais, fundamento bastante para pro-
teger o nascituro desde o momento da concepção618. Mas, não se aceitando
615
Ibidem, p. 130 e 134.
616
MACHADO, Jónatas E. M. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o
teísmo e o (neo)ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 167.
617
Conforme DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Direitos humanos e liberdade religiosa: os
domínios recalcitrantes do direito internacional: as tensões entre as diversidades religiosas
e o processo de internacionalização dos direitos humanos. Brasília: Senado Federal, 2014.
v. 205, p. 93-4, a secularização implementada no século XIII levou a humanidade à sepa-
ração absoluta entre a razão e a dimensão do sagrado. Contudo, o surgimento de novos
grupos religiosos, nos séculos XIX e XX, levou à derrocada do modelo anterior, tornando
aceitável os contornos do pluralismo religioso, em cuja essência reside o equânime reco-
nhecimento da multiplicidade de doutrinas e crenças.
618
DINIZ, Geilza Fátima Cavalcanti. Op. cit., p. 242, explica que nem sempre o aborto re-
presentou tema de tamanha controvérsia, sendo que a vida pré-natal somente adquiriu o
status de um valor sagrado intangível a partir dos ensinamentos do cristianismo. Além
disso, segundo PAIXÃO, Ivan. Aborto: aspectos da Legislação Brasileira. In: CAVAL-
CANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos huma-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 317

aquele atrelamento, o que se dessume do art. 19, inc. I, da Constituição, as


reverberações jurídicas do conceito do sagrado, aplicado ao desenvolvimento
gestacional da vida, são compatíveis com a permissão do aborto até o mo-
mento em que o feto está longe de possuir algum tipo de autonomia ou pos-
sibilidade de sobrevivência extrauterina.
Diante da dominância da doutrina cristã na sociedade brasileira, é
quase impossível negar que a punição criminal do aborto, desde a união do
óvulo e do espermatozoide, atende o apelo religioso da intangibilidade abso-
luta da vida, o que resulta na imposição de uma concepção específica da
sacralidade da vida, em violação ao princípio da igualdade. Quando uma
norma legal trata a vida como sendo “bem indisponível”, está subtraindo do
indivíduo a titularidade deste bem e sua autonomia moral. O argumento é
aplicável ao debate sobre a eutanásia e sobre o aborto, servindo para lembrar
que as leis criminais devem passar ao largo de condutas que se situem no
espaço da liberdade de consciência619.
As implicações do princípio da laicidade não se restringem aos as-
suntos diretamente religiosos, como o uso de crucifixos em espaços públi-
cos, os feriados religiosos ou o ensino religioso nas escolas. Os direitos se-
xuais e reprodutivos estão “intrinsecamente” conectados ao Estado laico, na
medida em que é dever do Estado garantir a liberdade de consciência, por-
tanto, o respeito ao pluralismo moral e religioso. As restrições aceitáveis à
liberdade de consciência não podem ir além daquilo que é exigido pela segu-
rança jurídica e por um padrão minimalista de moralidade coletiva, lembran-
do que esta tem um caráter “dinâmico” e mutável, de acordo com as novas

nos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 199-200, somente no século
XIX a Igreja Católica “declarou que a alma era parte do feto desde a sua concepção”,
não se tratando a questão, portanto, de um dogma religioso. O problema é que a partir daí
se passou a considerar, como algo inerente aos preceitos divinos, a tese de que o aborto é
um pecado punido, internamente, com a medida mais drástica, a excomunhão. Ver, tam-
bém, no mesmo sentido, KARAM, Maria Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o direito
à vida, a eutanásia e o aborto. In: Escritos sobre a liberdade. Rio de Janeiro: Lumen Ju-
ris, 2009. v. 2, p. 30; NUNES, Maria José Rosado. Aborto, maternidade e a dignidade da
vida das mulheres. In: CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa
da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p.
23-30; e FAÚNDES, Aníbal; BARZELATTO, José. O drama do aborto: em busca de
um consenso. São Paulo: Komedi, 2004. p. 129-136.
619
KARAM, Maria Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o
aborto. In: Escritos sobre a liberdade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. v. 2, p. 9-10,
13, 16 e 40-1; no mesmo sentido, MARTINELLI, João Paulo Orsini. Os crimes contra o
sentimento religioso e o direito penal contemporâneo. In: MAZZUOLI, Valério de Olivei-
ra; SORIANO, Aldir Guedes (Coords.). Direito à liberdade religiosa: desafios e perspec-
tivas para o Século XXI. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 77.
318 Teresinha Inês Teles Pires

configurações de cada época. Se a moral pública não pode ser definida por
uma “hierarquia” religiosa, os legisladores, mesmo contando com o apoio
eleitoral das doutrinas majoritárias e possuindo suas crenças pessoais, devem
primar seus veredictos pelo respeito aos direitos civis. A razão mais óbvia
para incluir o tema do aborto, e outros direitos reprodutivos, na definição do
significado substancial da laicidade advém da ligação entre a liberdade de
consciência e o pluralismo das crenças pessoais e da evidência da existência
de múltiplas visões morais sobre a interrupção do desenvolvimento da vida
pré-natal incipiente620.
A proteção da consciência individual, em relação à prática do abor-
to, conduz o intérprete a considerar, conjuntamente, a dimensão dos direitos
humanos e os princípios centrais da teoria da justiça. Os aplicadores do direi-
to, não somente os legisladores, devem estar atentos à promoção do bem
comum e não ao julgamento moral da decisão da mulher que opta por inter-
romper sua gestação. Neste sentido, as leis que restringem, excessivamente,
a prática do aborto violam o princípio da justiça “desde a perspectiva da
liberdade religiosa”621.
Como já se mencionou, a norma contida no art. 5º, inc. VIII, pri-
meira parte, da Constituição, diz textualmente que “ninguém será privado de
direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou políti-
ca”. Tal norma mostra que o “fenômeno religioso” não recebe amparo privi-
legiado em relação às doutrinas humanistas e materialistas, e que o signifi-
cado da liberdade religiosa está remetido à proteção dos interesses das mino-
rias, inclusive, seus direitos de defesa contra atos do legislador majoritá-
rio622. A potencialidade do critério majoritário para gerar fatores de discrimi-

620
BLANCARTE, Roberto. O porquê de um estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada
(Org.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.
26-7 e 30. Ver, também, PIOVESAN, Flávia. Direitos sexuais e reprodutivos: aborto in-
seguro como violação dos direitos humanos. In: SARMENTO Daniel; PIOVESAN, Flá-
via. Nos limites da vida: aborto, clonagem humana e eutanásia sob a perspectiva dos di-
reitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 67; e HUACO, Marco. A laicidade
como princípio constitucional do estado de direito. In: LOREA, Roberto Arriada (Org.).
Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 41 e 46.
O último autor, ora citado, destaca que é inegável a transgressão à igualdade perante a lei
em qualquer circunstância na qual os direitos reprodutivos são excluídos porque o Estado
apoderou-se de “certos pressupostos confessionais no momento de legislá-los, no lugar de
orientar-se pela doutrina dos direitos humanos”.
621
FAÚNDES, Aníbal; BARZELATTO, José. O drama do aborto: em busca de um con-
senso. São Paulo: Komedi, 2004. p. 170 e 178.
622
WEINGARTNER, Jaime Neto. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo,
pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 103 e 164.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 319

nação levou Weingartner Neto a propor um padrão de neutralidade do Esta-


do segundo o qual o livre exercício da religião, enquanto crença, é tolerável,
mas não o intervencionismo político das doutrinas religiosas. O autor deno-
mina o primeiro de “fundamentalismo-crença” e o segundo de “fundamenta-
lismo-militante”623.
Pode-se dizer, então, que não há problema em conferir às pessoas
o direito de professar uma crença que prescreva a inviolabilidade da vida
pré-natal desde a concepção (fundamentalismo-crença) e de manifestar
publicamente esta crença. Trata-se de algo inserido na prática comum do
proselitismo religioso, ou seja, da tentativa de convencer os outros de que
a doutrina religiosa que se professa é a mais correta. Se a visão acolhida
pela religião majoritária não tem consistência constitucional não é uma
questão importante para o Direito porque a todos se assegura a liberdade
de religião. No entanto, a partir do momento em que esta mesma visão
configura motivação exclusiva, ou no mínimo principal, para se banir o
direito ao aborto, é correto argumentar que o livre exercício da religião
resvalou para a qualidade de um ato de “fundamentalismo militante”624.
Manejável se revela, em tal contexto, o apelo ao controle de constitucio-
nalidade das leis reguladoras e proibitivas do aborto com suporte nas
barreiras fundamentais estabelecidas pelas cláusulas da liberdade de
consciência e de crença.
Afirmar a autonomia procriativa, à luz da liberdade de consci-
ência, cria uma ponte entre o exercício da cidadania e o “campo da ética
e da moral”, configurando ferramenta útil no controle das “forças funda-
mentalistas”, que, ao adquirirem o perfil de uma militância política, como
ocorre no Brasil, solapam o pluralismo democrático. Os consectários do
Estado laico conduzem à necessidade da “expansão das possibilidades da
escolha procriativa” das mulheres sob o prisma das exigências da inde-
pendência ética625.
É com esta concepção que Daniel Sarmento fala da necessidade de
se resgatar o parâmetro da “secularização do sagrado” no debate sobre os
623
Ibidem, p. 64-5.
624
Nas palavras de WEINGARTNER, Jaime Neto. Op. cit., p. 65: “Talvez seja melhor re-
formular, para dizer que, ao conceito constitucional de liberdade religiosa, desimporta o
conteúdo das concepções confessionais, mesmo que atinentes a uma verdade objetiva,
desde que se assegurem ‗cláusulas de barreira‘ para que tais verdades objetivas não se
tornem critério de distribuição de bens e direitos”.
625
NUNES, Maria José Rosado. Aborto, maternidade e a dignidade da vida das mulheres. In:
CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce (Orgs.). Em defesa da vida: aborto e direi-
tos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006. p. 32-3 e 37.
320 Teresinha Inês Teles Pires

assuntos afetos ao significado da vida e da morte, de forma a se promover


uma compreensão adequada do direito ao aborto. Trata-se de um enfoque
passível de realização apenas por meio do rompimento com determinadas
verdades religiosas, especialmente, aquelas que prescrevem a equiparação do
embrião a um ser humano completo626.
Assim, afirmar, na esteira de Dworkin, que o direito ao aborto
está incluído na proteção da liberdade de consciência e de crença não
significa ultrapassar os contornos do Estado laico. Chamar a atenção para
o fato de que a visão favorável à intangibilidade da vida é, essencialmen-
te, sustentada em valores religiosos não é algo que se aproxime de ne-
nhum tipo de defesa do ateísmo, e nem sequer do laicismo. Explicitou-se,
na seção anterior, através das lições de Jorge Miranda, a distinção entre
Estado laico, Estado laicista e Estado ateu. É comum, diante de temas
caros às confissões religiosas, ouvir-se a advertência no sentido de que
não se pode confundir tais modelos, o que é óbvio. Contudo, o argumento
traz a falsa impressão de que existe uma oposição entre Estado religioso e
Estado ateu, enquanto que a verdadeira tensão se estabelece, especial-
mente em tempos de fortalecimento do pensamento religioso, entre Esta-
do religioso e Estado laico627. Não se pode qualificar como sendo laicistas
as teses favoráveis à liberação da prática do aborto no Brasil, pelo sim-
ples fato de estarem contrapostas a valores religiosos majoritários. É i m-
portante manter o foco na correção deste raciocínio, a fim de se tentar
desconstruir o bloqueio político a uma reflexão sobre o aborto que se
vincule à plenitude dos direitos humanos ou fundamentais, com a inclu-
são e o adensamento de um conteúdo largo à liberdade de consciência.

6.5 CONCLUSÃO PARCIAL

Foi possível estruturar, no presente capítulo, a perspectiva de


uma interpretação constitucional do direito ao aborto, em nosso sistema,
vinculada à concepção de Dworkin da dignidade humana e aos parâme-
tros do pluralismo ideológico de Rawls. Restou explicitado que a base
principiológica das cláusulas do devido processo legal substantivo, da

626
SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia. Nos limites da vida: aborto, clonagem huma-
na e eutanásia sob a perspectiva dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
Apresentação, VII-VIII.
627
CUNHA, Luiz Antônio; OLIVA, Carlos Eduardo. Sete teses equivocadas sobre o estado
laico, 2014. p. 209.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 321

igual proteção perante a lei e da liberdade de consciência e de crença, no


contexto da Constituição do Brasil, encontra suporte doutrinário nas ca-
tegorias morais e políticas veiculadas pelos autores. Da mesma forma,
conseguiu-se demonstrar que a proteção à vida nascitura deve ser moldu-
rada, no que diz respeito ao direito ao aborto, com fundamento no conteú-
do material das cláusulas de direitos fundamentais enfatizadas neste estu-
do, e que tal propósito se conforma, ainda, à melhor compreensão das
normas internacionais referentes à matéria.
Solidificou-se, ainda, o entendimento de que o tema da sacrali-
dade da vida humana, interligado à importância da vida fetal, compõe a
dimensão subjetiva da liberdade religiosa, na acepção defendida por
Dworkin. A partir daí, verificou-se que a proteção assegurada, na Cons-
tituição brasileira, pelo paradigma da laicidade e pela cláusula da liber-
dade de consciência e de crença se estende à decisão da gestante de in-
terromper a gestação. Assim, foi possível concluir que as regras penais
do crime do aborto podem ser declaradas inconstitucionais por violação
ao conjunto de princípios que salvaguardam a liberdade religiosa em
sentido amplo.
322 Teresinha Inês Teles Pires
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 323

Capítulo 7

A AUTORIZAÇÃO DAS PESQUISAS


CIENTÍFICAS COM CÉLULAS-TRONCO
EMBRIONÁRIAS (CASO DA ADIn 3510):
IMPLICAÇÕES DA DECISÃO NA CRIAÇÃO
DE UM PADRÃO NACIONAL DE PROTEÇÃO
À VIDA NASCITURA E À AUTONOMIA
PROCRIATIVA

A ADIn 3510 apreciou a constitucionalidade do art. 5º da Lei


11.105, de 24.03.2005 – Lei de Biossegurança, tendo sido a primeira ação de
controle de constitucionalidade a debater os limites da inviolabilidade do
direito à vida. A ação foi julgada improcedente, por maioria de votos, autori-
zando-se a utilização em pesquisas científicas, para fins terapêuticos, de
células-tronco humanas extraíveis dos embriões congelados nos procedimen-
tos de reprodução medicamente assistida628.
O julgamento da ADIn 3510 é paradigmático para a discussão dos
limites do direito à vida do nascituro. Grosso modo, o Supremo Tribunal
628
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. Para
conferência, veja o teor do Acórdão, à fl. 1819 dos autos: “Vistos, relatados e discutidos es-
tes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar improcedente a
ação direta, o que fazem nos termos do voto do relator e por maioria de votos, em sessão
presidida pelo Ministro Gilmar Mendes, na conformidade da ata do julgamento e das notas
taquigráficas. Vencidos, parcialmente, em diferentes extensões, os Ministros Menezes Direi-
to, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e o Presidente”.
324 Teresinha Inês Teles Pires

Federal derrubou a tese que afirma ser o valor intrínseco da vida justificativa
suficiente para a proteção da vida embrionária, sustentando, expressamente,
que, à luz da Constituição, o direito à vida não se estende à vida pré-natal.
Os votos majoritários partiram do entendimento de que a questão central a
ser analisada consistia na definição dos aspectos protegidos da vida humana,
considerada em si mesma. Nesta perspectiva, os juízes declararam que a
escolha dos genitores no sentido de autorizar o uso dos seus embriões conge-
lados, para fins terapêuticos, não viola o princípio da dignidade. Com base
em tal compreensão, a decisão construiu um conteúdo significativo para o
direito ao planejamento familiar, acolhendo a aplicabilidade de diversos
aspectos do princípio da liberdade à esfera da autonomia procriativa, desta-
cando-se, dentre eles, a liberdade decisória, em relação ao projeto reproduti-
vo, e a liberdade de consciência e de crença, em relação ao valor moral da
vida potencial.
A importância do estudo minucioso dos votos dos ministros, na
ação em referência, não se restringe ao seu substrato material. Também, no
que concerne à metodologia interpretativa utilizada, há muito o que se ana-
lisar, em reforço às sugestões avançadas na presente obra. Ver-se-á que a
maioria dos julgadores aplicou, de forma direta, o significado de determi-
nados princípios fundamentais para declarar quais os direitos em questão
estavam protegidos pela Constituição, e quais os que não possuíam o mes-
mo estatuto. Pronunciou-se, no julgamento, a inexistência de colisão de
direitos, portanto, a desnecessidade do recurso ao princípio da proporcio-
nalidade e às técnicas complementares, como, por exemplo, a da interpre-
tação conforme a Constituição. Assim, a argumentação dos juízes seguiu as
estratégias delineadas nas teorias de Dworkin e de Rawls, calcadas na bus-
ca de um padrão adequado de interpretação para a dicção de uma decisão
correta, padrão este caracterizado, ainda, pela perspectiva da razoabilidade
das concepções do bem moral.
Diante de tal diretiva substancialista, focada na imperatividade dos
direitos materiais, inevitável se mostra a reflexão sobre a aplicação das con-
clusões obtidas no caso da ADIn 3510 ao tema do aborto, no que diz respeito
à dignidade da vida pré-natal, aos direitos de liberdade, em sentido ético e
moral, e à igual proteção perante a lei. É preciso aperfeiçoar, particularmen-
te, os requisitos do direito ao planejamento familiar em sua conexão à liber-
dade de consciência e, supondo-se a legitimidade de uma redução criteriosa
da obrigação política para com os interesses da vida potencial, enfrentar a
problemática do estatuto jurídico do embrião intrauterino. O Supremo Tri-
bunal pacificou, na ADIn 3510, a tese de que a fertilização do óvulo não fixa
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 325

o ponto inicial da tutela da vida humana. Com isto, não há mais como deixar
sem resposta a demanda pelo reconhecimento do direito ao aborto por meio
de uma regra que especifique um contorno coerente para o exercício dos
direitos da gestante e para a preservação dos interesses do nascituro.

7.1 EXPOSIÇÃO DOS FATOS, INTERESSES ENVOLVIDOS


E VALORAÇÕES MORAIS

O pedido apresentado pelo Procurador Geral da República, Cláudio


Fonteles, questiona a constitucionalidade do art. 5º, caput e incs. I e II, da
Lei 11.105/2005629, sob a alegação de que o embrião está protegido, desde o
momento da fertilização do óvulo, pelo direito à vida, conforme estabelecido
na Constituição Federal, art. 5º, caput. Adota-se, aqui, como critério de ava-
liação constitucional do direito à vida, a tese biológica da unicidade genética,
cuja caracterização ocorre nos primeiros estágios da vida do embrião. Para
sustentar sua posição, o Procurador Geral desafiou as constatações científi-
cas segundo as quais as pesquisas com células-tronco embrionárias são ne-
cessárias, tendo vista a incapacidade das células-tronco adultas de se trans-
formarem em todos os tipos de tecidos. Segundo Fonteles, não existe com-
provação da imprescindibilidade das pesquisas com células embrionárias
para o tratamento de qualquer doença. Com este fundamento, enunciou-se a
tese central do pedido, no sentido de que a inviolabilidade da vida, pré-natal
ou pós-nascimento, impõe a proibição da utilização terapêutica das células
do embrião, porque isto somente é possível através de sua destruição630.
Como já se expôs na seção 2.2 do trabalho, ao composto celular
formado pela união dos gametas masculino e feminino se dá o nome de
zigoto. Quando o zigoto alcança ao menos 4 células, recebe o nome de
embrião, sendo que, por volta de cinco a sete dias de vida, o embrião chega
ao estágio de blastocisto. É neste estágio que se extraem as células-tronco
629
Confira a redação do texto legal em comento: “Art. 5º. É permitida, para fins de pesquisa
e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos pro-
duzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as
seguintes condições: I. sejam embriões inviáveis; ou II. sejam embriões congelados há 3
(três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da
publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data do
congelamento”.
630
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Cláudio Fonteles, fls. 3-7. Disponível em: <www.stf.jus.br>.
Acesso em: 30 ago. 2014.
326 Teresinha Inês Teles Pires

embrionárias a serem destinadas à pesquisa terapêutica. As células-tronco


adultas são as encontradas em quaisquer tecidos do corpo humano, sobre-
tudo, na medula óssea e no cordão umbilical. Os cientistas são unânimes ao
concluir que o zigoto é a única célula “totipotente”, por ser capaz de dar
origem, a partir de si mesma, a um ser humano. As células-tronco embrio-
nárias, por seu lado, são as únicas que podem ser “pluripotentes”, ou seja,
capazes de substituir qualquer tipo de tecido humano. As células-tronco
adultas não são “pluripotentes”, e sim “multipotentes”, podendo substituir
alguns tecidos, mas não todos. São imprestáveis, por exemplo, para a subs-
tituição de tecidos neurológicos, portanto, não servem para o tratamento de
doenças degenerativas631.
A análise da constitucionalidade da Lei de Biossegurança traz a
baila o confronto entre a liberdade de pesquisa científica e os limites éticos
impostos pelo interesse público na preservação da vida humana, em todas as
suas formas. Por outro lado, devido à proximidade do tema com o adensa-
mento da tutela da vida pré-natal, o debate voltou-se para a consideração das
várias correntes que apontam, no contexto das ciências biológicas, respostas

631
Ibidem, Antônio Carlos Campos de Carvalho, ADIn 3510, Audiência Pública, 20.04.2007,
fls. 1108, 1111 e 1114. No mesmo sentido, direcionou-se a posição de vários outros pro-
fissionais da medicina genética, que se manifestaram na Audiência. Destaque-se, dentre
eles, Mayana Zatz, ADIn 3510, fls. 917-19 e 921-22, que explica serem as células-tronco
embrionárias muito importantes no controle dos processos de degeneração muscular, e
que as células adultas não funcionam no trato destas doenças, bem como no trato das do-
enças genéticas, pois, no segundo caso, todas têm a mesma mutação. Além disto, pondera
que a pesquisa com células embrionárias permitirá o aperfeiçoamento da própria potencia-
lidade terapêutica das células adultas. Rosalia Mendes Otero, ADIn 3510, fl. 950, acres-
centa que as células embrionárias são as únicas capazes de gerar neurônios com perspec-
tiva de cura de doenças específicas, como Parkinson etc. sendo que a criação de neurô-
nios, através de tal técnica, já está sendo efetivada nos laboratórios de vários países do
mundo. Lygia Pereira, ADIn 3510, fls. 1081 e 1083, chama atenção para o fato de que a
pesquisa com as células embrionárias tornará possível o aprendizado futuro, no tocante ao
controle de sua diferenciação, a fim de produzir, exatamente, os tecidos necessários à
aplicação clínica em cada paciente. A pesquisa tornará possível, ainda, um conhecimento
ampliado sobre as etapas da evolução da vida embrionária, como, por exemplo, a forma-
ção do sistema nervoso. A superioridade terapêutica das células-tronco embrionárias, em
relação às adultas, foi igualmente enfatizada pelo representante da Advocacia Geral da
União e pelo representante da Advocacia Geral do Senado (ADIn 3510, fls. 85-7 e fl.
243), nas informações que prestaram nos autos. A despeito de tais evidências, uma mino-
ria de estudiosos emitiu, na Audiência Pública acima citada, opinião divergente, arguindo
que não há certeza quanto ao resultado positivo do uso terapêutico de células embrioná-
rias. Estes estudiosos defendem que as pesquisas com células adultas são promissoras e
que as embrionárias podem ser rejeitadas pelo organismo humano ou gerar tumores (con-
forme ADIn 3510, Alice Teixeira Ferreira, fls. 990-991; Marcelo Vaccari, fls. 1003 e
1007; e Herbert Praxedes, fls. 1055-7).
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 327

distintas à problemática questão do início da vida: a vida tem seu marco


originário na fecundação do óvulo, na implantação do embrião no útero ma-
terno (nidação), após 14 dias, contados do momento da concepção, na for-
mação das primeiras estruturas do sistema nervoso ou, ainda, na formação
completa do córtex cerebral?632
O critério mais controverso, dentre as teorias relativas ao marco
inicial da vida humana, é o da formação do córtex cerebral, extraído de uma
analogia ao posicionamento da comunidade médica, relativo à morte encefá-
lica. Como se sabe, trata-se de uma concepção internacionalmente adotada
para regulamentar os procedimentos de transplante de órgãos. A associação,
em parâmetros científicos, entre a morte encefálica e o início biológico da
vida não é isenta de problemas. Na audiência pública, realizada na ação em
estudo, houve manifestações contrárias à utilização do critério da formação
do córtex cerebral na análise do direito à vida embrionária. Segundo tais
opiniões, a formação completa do “tubo neural” é uma das etapas mais
avançadas da evolução da vida nascitura, mas não simboliza o seu início 633.
Outros sustentaram que se a morte encefálica é parâmetro para declarar a
cessação da vida e se ela ocorre com o término da atividade do sistema ner-
voso, então, seria legítimo declarar que o início da vida se dá após 14 dias da
fertilização, momento em que as primeiras estruturas do sistema nervoso se
formam634.
Regra geral, os pesquisadores que firmaram oposição ao padrão da
formação do córtex cerebral opuseram-se, igualmente, a todos os outros pa-

632
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. O
Ministro LEWANDOWISKI apresenta, em seu voto, na ADIn 3510, fls. 1547-1548, um
bom relato sobre todas essas correntes do pensamento científico. Ver, também, DEL-
MANTO, Celso; DELMANTO Roberto; DELMANTO JÚNIOR, Roberto; DELMANTO,
Fábio M. de Almeida. Código Penal comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 468.
Esclareça-se que os 14 dias da concepção representam o momento em que o embrião não
pode mais se dividir, dando origem a múltiplos embriões, bem como não pode mais se
unir a outro embrião, formando uma única vida biológica. Ou seja, tal marco representa o
momento a partir do qual se caracteriza a unicidade do código genético. Em relação ao
início da formação do sistema nervoso, considera-se que ocorra quando o embrião com-
pleta 8 semanas, etapa em que adquire forma humana; o córtex cerebral somente é intei-
ramente formado entre 22 a 25 semanas de vida pré-natal, quando se inicia a atividade ce-
rebral intelectual.
633
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Op. cit. Antônio José Eça, ADIn 3510, fls. 1013-1014.
634
Ibidem, Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello, ADIn 3510, fls. 1104-1105. O pesquisa-
dor faz referência à Resolução 33 da ANVISA (RDC 33 de 17.02.2006), que regulamenta
o funcionamento dos bancos de células e tecidos germinativos. Nos termos da Resolução,
as primeiras células que darão origem ao sistema nervoso surgem no estágio dos 14 dias
contados da fecundação do óvulo.
328 Teresinha Inês Teles Pires

drões, exceto aquele que identifica na fertilização do óvulo o único momento


adequado para definir, do ponto de vista da ciência biológica, o início da
vida humana. A linha de pensamento destes pesquisadores parte da premissa
de que o critério a ser adotado, no caso, deve basear-se nos ensinamentos da
biologia, e não em conceitos de filosofia moral. E, sendo assim, acreditam
que o momento da fecundação é a única certeza que se tem em matéria de
começo do processo vital, tendo em vista que o zigoto, ainda, com 2 (duas)
células, já é “totipotente”, contendo em si todas as informações genéticas
para a formação de um organismo humano635.
Ocorre que a própria ciência biológica não fornece uma resposta
exclusiva ao problema do início da vida, ao contrário do que defenderam o
Procurador Geral da República, em sua petição inicial, e os que manifesta-
ram em audiência não estarem de acordo com as pesquisas com células-
-tronco embrionárias. Há, na realidade, “um ceticismo entre a maioria dos
biólogos quanto à possibilidade de se estabelecer uma definição para o con-
ceito de vida”. Para muitos, inclusive, a questão sequer é importante para a
Biologia, incumbindo à ciência o estudo dos “processos vitais” e dos “siste-
mas celulares”, sem que se tenha por referência a noção do código genético
enquanto elemento essencial ao significado do termo “vida”636.
Para a biologia, pode ser uma questão insolúvel delinear um mode-
lo argumentativo exato para a definição da vida. Os fluxos contínuos da vida
e os níveis de funcionalidade orgânica, nos diversos estágios do desenvolvi-

635
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. Eli-
zabeth Kipman Cerqueira, ADIn 3510, fls. 1020-1021 e 1036; e Rodolfo Acatuassú Nu-
nes, ADIn 3510, fl. 1040. Segundo ALONSO, Félix Ruiz. A inviolabilidade da vida. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo:
Quartier Latin, 2005. p. 402, 404 e 412, o argumento da “totipotencialidade” do zigoto é
uma evidência de que a vida, no aspecto da individualidade genética, começou no mo-
mento da fecundação, entendendo-se esta como sendo o estágio compreendido entre a
“entrada do espermatozoide no óvulo” e “a formação do núcleo do zigoto”. Somente o zi-
goto é capaz de impulsionar o desenvolvimento biológico até o nascimento da pessoa. As
células subsequentes, sendo apenas pluripotentes, dão origem aos componentes dos distin-
tos tecidos do organismo humano, mas aquela primeira célula germinal, o zigoto, nunca
mais se repetirá, sendo, portanto, em tal visão, a marca do início da inviolabilidade da vi-
da. A favor da inviolabilidade absoluta da vida nascitura, na área da pesquisa bioética,
ver, também, SERRÃO, Daniel. Médicos, família e abortamento. In: MINAHIM, Maria
Auxiliadora et al (Coord.). Meio ambiente, direito e biotecnologia: estudos em homena-
gem ao Prof. Paulo Affonso Leme Machado. Curitiba: Juruá, 2010. p. 179-187.
636
COUTINHO, Francisco Ângelo; MAIA, Mônica Bara; SILVA, Fábio Augusto Rodrigues.
A polissemia do conceito vida. In: MAIA, Mônica Bara (Org.). Direito de decidir: múlti-
plos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 9-10 e 17-18.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 329

mento celular, colocam a ciência biológica frente a uma série de paradoxos,


cuja solução escapa ao universo jurídico. A distinção entre vida potencial e
vida atual não tem o condão de solapar todas as aporias inerentes ao próprio
objeto de estudo da biologia. Dizer que a vida só tem início após 14 dias da
fecundação, ou após formado o sistema nervoso ou o córtex cerebral, parece
não ter sentido algum para a biologia genética637. Mas, no âmbito jurídico,
separar os significados da vida potencial e da vida pós-nascimento é uma es-
tratégia articulável. Em rigor, se o marco da fecundação fosse absoluto, as
técnicas de fertilização in vitro teriam que ser proibidas, pois inúmeros em-
briões, em torno de um milhão em três anos, são descartados638.
Foi discutido também se a associação do embrião ao útero materno
é condição imprescindível para configurar o dever de proteção da vida nasci-
tura. Aqueles favoráveis à pesquisa com células-tronco embrionárias pontua-
ram que o embrião congelado nos procedimentos de fertilização in vitro não
reúne as condições biológicas necessárias para ser considerado como vida
potencial. A possibilidade do seu desenvolvimento depende de sua implanta-
ção no útero, e aqueles embriões de que trata a Lei 11.105/2005 não terão
essa possibilidade, eis que são embriões excedentários, não utilizados pelos
doadores dos gametas. Já os que se opõem à pesquisa acentuaram que o di-
reito à vida não depende da circunstância de o embrião encontrar-se dentro
ou fora do útero, e sim do fato biológico da individualidade genética, desde o
momento da concepção. Não haveria, assim, diferença, em termos de essên-
cia, entre o embrião extrauterino e o embrião intrauterino.
Reconhecendo o caráter não determinante das teses científicas rela-
tivas ao início da vida, os juízes se centraram na reflexão sobre a valoração
637
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. O
que foi apontado por Cláudia Maria de Castro Batista, na Audiência Pública, ADI 3510,
às fls. 978 e 981, nos seguintes termos: “O embrião de três dias já tem uma autonomia
funcional, que dá uma unidade a todo um organismo como um todo […]”. “Não é hu-
mano em potencial, mas é uma vida humana num estágio específico de desenvolvimen-
to”. Também Elizabeth K. Cerqueira, ADIn 3510, Audiência, fls. 1031 e 1033, eviden-
cia tal dilema, ao afirmar: “Agora, um grande questionamento: não é indivíduo desde o
começo, porque podem aparecer os gêmeos univitelinos. […]” “É muito questionável
dizer que se ele se cinde, deveria morrer. Este argumento não está dentro da biologia
[…]” “[…] temos a certeza que um espermatozóide entra dentro de uma outra célula
chamada óvulo e começa um processo”; por fim, Dalton Luiz de Paula Ramos, idem,
fls. 1067: “a sociedade até poderá assumir um critério de ‗humanidade‘ que se baseie
na potência e viabilidade do organismo, porém não poderá negar que essa opção con-
traria o dado biológico, que caracteriza o ‗humano‘ por seus atributos genéticos e por
sua expressão orgânica”.
638
Ibidem, Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello, ADIn 3510, Audiência, fls. 1101 e 1103.
330 Teresinha Inês Teles Pires

moral que deve ser atribuída à vida do embrião. Tal referencial analítico
poderia ter levado a Corte, em princípio, a enfrentar a problemática que con-
torna a demanda por um estatuto do nascituro, construindo uma posição ju-
risprudencial que pacificasse os aspectos legais do tema, com a eliminação
de interferências conceituais de natureza metafísica ou religiosa639. A discus-
são não evoluiu, todavia, a este nível, mantendo-se o foco, exclusivamente,
nos eventuais direitos e interesses do embrião em estágio anterior ao proces-
so gestacional. Nem por isto, a abordagem dos elementos morais inerentes à
importância da vida, considerada em si mesma, margearam o envolvimento
da liberdade religiosa.
Com a mesma preocupação, Flávia Piovesan lembrou o paradigma
democrático do Estado laico, que impede a adoção pública da moral prescri-
ta, em particular, por qualquer religião. Aqui foi destacada a liberdade do
casal de escolher suas próprias convicções religiosas no que diz respeito ao
destino dos seus embriões excedentários640. O Procurador Geral rebateu tal
posição, afirmando que o tema abordado na ADIn não tem natureza religio-
sa, não sendo, portanto, o caso de apelar ao princípio da laicidade. Enfatizou
que os argumentos apresentados na formulação do seu pedido foram todos
científicos e se fundamentaram na tese de que a vida é inviolável desde o
momento da concepção641.
As prescrições estabelecidas no art. 5º da Lei 11.105/2005 conduzi-
ram, ainda, à análise de um último aspecto conceitual do conhecimento cien-
tífico: o da caracterização de um embrião como sendo inviável. O Ministro
Menezes Direito, em seu voto dissidente, sustentou que o embrião inviável,
em tese, é aquele inapto do ponto de vista do processo reprodutivo, ou cuja
639
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Débora Diniz, ADIn 3510, Audiência, fls. 1121 e 1124.
640
Ibidem, Flávia Piovesan, ADIn 3510, Audiência, fls. 203 e 215. A garantia da escolha
ética individual relativa ao valor intrínseco da vida foi veiculada também por Luís Rober-
to Barroso, ADIn 3510, fls. 394 e 396, ao manifestar-se nos autos em nome do “Movi-
mento em Prol da Vida”, na qualidade de Amicus Curiae. O então advogado salientou que
o Congresso Nacional assegurou, por meio da Lei 11.105/2005, o direito de cada pessoa
de valorar livremente a importância da vida do embrião, ao menos em se tratando de em-
briões congelados, frutos dos processos de fertilização in vitro. Para Barroso, dizer o con-
trário pressuporia, forçosamente, uma motivação religiosa, segundo a qual a vida começa
na concepção. Veja-se que Barroso defende a ideia de que a tese do início da vida na fe-
cundação do óvulo, se transposta para a esfera jurídica, adquire conotação religiosa, en-
tendimento este capitaneado por Ronald Dworkin. Ver-se-á, adiante, que o mesmo argu-
mento será incorporado aos fundamentos da decisão proferida na ADIn 3510, através dos
votos majoritários dos Ministros Joaquim Barbosa e Celso de Mello.
641
Ibidem, Cláudio Fonteles, ADIn 3510, fls. 370 e 373.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 331

chance de resultar em uma pessoa saudável é reduzida642. A preocupação do


ministro circunscreve-se ao risco de se permitir escolhas, na utilização das
técnicas de manipulação genética, que possam importar na prática da euge-
nia. A questão da eugenia não foi tratada, com profundidade, no julgamento,
por não ter sido veiculada pelas partes, pelos debatedores, bem como pelos
demais ministros. Para os juízes que acompanharam o voto vencedor, a pró-
pria lei em apreciação fixa limites adequados à necessária precaução no que
se refere ao risco da eugenia, por não autorizar a produção de embriões para
fins de pesquisa643.

7.2 OS ARGUMENTOS JURÍDICOS E OS PRINCÍPIOS


CONSTITUCIONAIS EM DEBATE

Os pontos jurídicos envolvidos no julgamento da ADIn 3510 são


múltiplos, sendo todos eles de estatuto constitucional. Além dos preceitos
específicos, relacionados à liberdade de pesquisa científica (CF, art. 5º, IX, e
art. 218), a interpretação da constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biosse-
gurança exigiu a concretização do direito à vida (CF, art. 5º, caput) e dos
princípios da dignidade (CF, art. 1º, III), da liberdade, em sentido genérico
(CF, art. 5º, caput), e da liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º,
inc. VI).
Os fundamentos jurídicos trazidos por Cláudio Fonteles, ao propor
a ação, são a inviolabilidade da vida nascitura, que, na sua opinião, confere
ao embrião o direito à vida, e o princípio da dignidade, que seria aplicável
também aos embriões congelados. Em relação ao significado da dignidade, a
tese adotada por Fonteles importa em negar qualquer padrão distintivo entre
o valor da vida do embrião congelado, do embrião pós-implantação no útero
e da pessoa humana. Aliás, a mesma tese parte do pressuposto de que o em-
brião, desde a concepção, não representa mera vida potencial, sendo, ao con-
trário, equiparado à pessoa em todas as esferas protegidas pelos direitos fun-
damentais644.
642
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Menezes Direito, ADIn 3510, fls. 1441 e 1443.
643
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Cármen Lúcia, ADIn 3510, fl. 1495.
644
Ibidem. Cláudio Fonteles, ADIn 3510, fls. 03-04 e 12.
332 Teresinha Inês Teles Pires

Em rigor, a ADIn 3510 versa, exclusivamente, sobre o direito à vi-


da dos embriões congelados, produzidos nas clínicas de reprodução humana
assistida. O embrião congelado, como explicado por Luís Barroso, não entra
na categoria do “nascituro”, por não ter sido transferido para o útero mater-
no. A Lei 11.105/2005 é a primeira norma nacional que fixa critérios para a
proteção deste tipo de embrião, à luz da dignidade intrínseca da vida. Certa-
mente, o legislador adotou balizas particulares, considerando que as células-
-tronco são extraídas antes do 14º dia, momento anterior, portanto, ao início
da formação do sistema nervoso645.
Por outro lado, ainda que se faça uma distinção categorial entre o
embrião excedentário e o nascituro, conferindo-se a segunda designação ao
embrião a partir de sua implantação no útero, trata-se, nas duas situações, de
uma vida potencial. Por isto, a apreciação da constitucionalidade do art. 5º
da Lei 11.105/2005 envolve a criação de um padrão de proteção à vida po-
tencial com fundamento no seu valor intrínseco ou em sua dignidade moral,
permitindo estabelecer que alguns estágios da vida biológica demandam
maior grau de tutela jurídica, em relação aos estágios anteriores. Do contrá-
rio, ter-se-ia que endossar o argumento de Ives Gandra no sentido de inexis-
tir um fundamento convincente para retirar da vida pré-natal a aplicação
plena do direito à vida, nos termos assegurados pela Constituição646.
Ainda sobre o ponto em comentário, o voto parcialmente dissidente
do Ministro Menezes Direito colocou a Corte diante do desafio de justificar,
em bases racionais, o fator do discrímen criado pela Lei de Biossegurança
entre o embrião viável e o inviável, no que concerne à suas chances de im-
plantação e desenvolvimento, bem como entre o embrião extrauterino e o
intrauterino. Quer dizer, a Corte tinha a tarefa de encontrar, na Constituição,
um modelo hermenêutico que demonstrasse que a extração das células-
-tronco embrionárias não configura violação do direito à vida647.

645
Ibidem. Luis Roberto Barroso, ADIn 3510, Movimento em Prol da Vida (MOVITAE),
Amicus Curiae, fls. 397-9.
646
Nas palavras de Ives Gandra: “O argumento de que a Constituição apenas garante a vida
da pessoa nascida – não do nascituro – e que sequer se poderia cogitar de ‗ser humano‘,
antes do nascimento, é, no mínimo curioso: retira do homem a garantia constitucional do
direito à vida até um minuto antes de nascer, e assegura a inviolabilidade desse direito, a
partir do instante do nascimento” (conforme documento anexado aos autos da ADIn
3510, em nome da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, fl. 1232). Sobre a
opinião do autor, frontalmente contrária à constitucionalidade da Lei de Biossegurança,
ver, também, seu ensaio O direito do ser humano à vida. In: MARTINS, Ives Gandra da
Silva (Coord.). Direito fundamental à vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 33-4.
647
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Menezes Direito, ADI 3510, fl. 1443.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 333

O problema a ser solucionado na Ação exigiu do Supremo Tribunal


a tessitura de uma interpretação que integrasse o significado do direito à vida
e o significado das cláusulas constitucionais garantidoras da liberdade de
escolha, em matéria reprodutiva. Não bastaria dizer que a personalidade
humana começa no nascimento com vida. Supondo-se a validade de tal tese,
seria necessário, ademais, moldurar o estatuto jurídico da vida potencial,
mesmo que a resposta encontrada tivesse aplicabilidade, a princípio, apenas
à vida potencial inerente aos embriões congelados. Somente, assim, seria
possível afirmar, com base em premissas satisfatórias, a constitucionalidade
do art. 5º da Lei de Biossegurança e dar início à resolução da controvérsia
que contorna a questão dos interesses do nascituro.
O Ministro Ayres Britto, relator do caso, acolheu, em seu voto,
esta metodologia, após deixar claro que todos os artigos da Constituição
relativos à tutela da vida não incluem a tutela da vida pré-natal. De modo
que a questão posta nos autos não é de natureza a exigir a determinação
do início da vida humana, sendo necessário, antes, definir quais os “as-
pectos ou momentos dessa vida estão validamente protegidos pelo Direi-
to infraconstitucional e em que medida”648. Elaborar uma posição judicial
sobre a dignidade da vida potencial não requer que se coloque em revisão
o conceito de personalidade jurídica. Não foi outra a conclusão alcançada
pelo ministro Ayres Britto ao definir o conceito de vida humana, nos
seguintes termos: “é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com
vida e a morte cerebral”649.
Para Maria Minahim, o voto do ministro traz grandes dificuldades
do ponto de vista da definição de qual o objeto se está a tutelar, considerando
os diversos interesses envolvidos na ação. Na visão da autora, Ayres Britto
retira a essencialidade da importância da vida do embrião, em si mesmo,
para enfatizar o momento da nidação como sendo aquele a partir do qual as
normas punitivas do Código Penal relativas ao aborto têm plena aplicabili-
dade. Com isto, todos os embriões gerados artificialmente estariam fora do
alcance do direito constitucional à vida, porque seu desenvolvimento depen-
de da intervenção alheia, como se tal circunstância excluísse “seu conteúdo
de humanidade”650.
648
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014,
fl. 1314.
649
Ibidem, Ayres Britto, ADIn 3510, fl. 1349.
650
MINAHIM, Maria Auxiliadora. Reflexos do dissenso moral sobre o uso de células-tronco
embrionárias no Direito Penal Brasileiro: bioética e valores. In: MINAHIM, Maria Auxi-
liadora; FREITAS, Tiago Batista; OLIVEIRA, Thiago Pires (Coords.). Meio ambiente,
334 Teresinha Inês Teles Pires

Ocorre que o Ministro Ayres Britto, ao apresentar seus argumen-


tos, procurou lançar uma luz sobre os conceitos de viabilidade e de inviabili-
dade, afirmando que a Lei 11.105/2005 apenas deixou ao arbítrio dos genito-
res decidir se usariam os embriões, nos casos ali dispostos, para implantação
no útero, se os descartariam ou se autorizariam o seu uso terapêutico. Ade-
mais, por óbvio, as normas que criminalizam o aborto somente têm incidên-
cia após o início do processo gestacional, com a imprescindível participação
do útero da mulher651.
A estrutura do voto do ministro pacificou a admissibilidade, no âm-
bito jurídico, da aplicação da categoria da vida potencial ao embrião, desde o
momento da fertilização do óvulo. Nos contornos da ADIn 3510, restava de-
clarar, como feito com precisão pelo ministro relator, que o embrião congela-
do, na qualidade de vida potencial, “que empaca nos primeiros degraus do que
seria sua evolução genética”652, por não ter sido implantado no útero, e não ter
a expectativa de sê-lo por decisão dos genitores, não é objeto de tutela jurídica
constitucional, penal, civil, ou de qualquer outra espécie.
A Ministra Cármen Lúcia, aprofundando a reflexão sobre o signifi-
cado da dignidade moral da vida potencial, ressaltou a necessidade de se
conferir ao nascituro algum nível de tutela, ou seja, algum estatuto jurídico
próprio653. O Ministro Eros Grau, por sua vez, enfatizou a distinção entre a
dignidade da pessoa e a dignidade da vida pré-natal, pontuando que o caso
do embrião congelado, objeto da Lei de Biossegurança, não diz respeito nem
ao direito à vida nem à dignidade da pessoa humana, porque não se está fa-
lando de vida ou de pessoa, nos termos concebidos pela Constituição654.
Em meio ao rico debate sobre o direito à vida e sobre a dignidade mo-
ral do embrião, pouco se falou, na fase pré-julgamento, do princípio da liberdade
enquanto um componente essencial da análise do caso. A menção à disposição
contida no art. 5º, § 1º, da Lei de Biossegurança aparece na peça processual
apresentada pelo então advogado Luís Barroso655. Nos termos deste dispositivo,

direito e biotecnologia: estudos em homenagem ao Prof. Dr. Paulo Affonso Leme Ma-
chado. Curitiba: Juruá, 2010. p. 295-6.
651
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fls. 1328-31.
652
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fl. 1331.
653
Ibidem, Cármem Lúcia, ADIn 3510, fl. 1501.
654
Ibidem, Eros Grau, ADIn 3510, fls. 1606-1608.
655
Ibidem, Movimento em Prol da Vida (MOVITAE), ADIn 3510, Amicus Curiae, fls. 383-
408.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 335

a utilização das células-tronco embrionárias exige, em qualquer hipótese, o con-


sentimento dos genitores, ou seja, dos doadores dos gametas que deram origem
aos embriões congelados. Barroso enfatizou que a Lei de Biossegurança, por
meio de tal normatização, incorporou em suas premissas o princípio do plura-
lismo político e da independência ética individual656.
Na fase do julgamento da ação, nem todos os ministros incluíram
em seus votos uma investigação mais profunda sobre as implicações dos
princípios da dignidade e da liberdade, em sua aplicação ao direito de esco-
lha dos genitores, no contexto da análise da Lei de Biossegurança. Mas mui-
tos deles o fizeram, especialmente o Relator Ministro Ayres Brito, o ministro
Joaquim Barbosa, o Ministro Celso de Mello e a Ministra Cármen Lúcia.
Cármem Lúcia sustentou, logo no início do seu voto, que o núcleo
do raciocínio acerca da constitucionalidade da lei, no caso, está na categoria
da liberdade no sentido assegurado em seu art. 5º, caput, incisos e parágra-
fos. A ministra destacou que a liberdade, na esfera da pesquisa científica, diz
respeito à “liberdade de pesquisar, de se informar, de ser informado, de
consentir, ou não, com os procedimentos a partir dos resultados obtidos com
as pesquisas”. A questão, assim, interessa a todos, no que diz respeito ao
exercício da liberdade individual de ação657.
O princípio genérico, ou abstrato, da liberdade tem aplicação ao
caso da ADIn 3510 nos dois aspectos acentuados no capítulo anterior deste
trabalho: o princípio da legalidade, matriz da liberdade genérica de ação (CF,
art. 5º, II), e a cláusula do devido processo legal substantivo (CF, art. 5º,
LIV). A possibilidade da escolha dos genitores, no contexto em questão,
promove o livre exercício, em igualdade de condições, do consentimento
informado, da liberdade de pensamento, e, em especial, do direito ao plane-
jamento familiar. É nesta extensa abordagem que se deve construir o padrão
de concretização do direito à vida e da dignidade moral da vida em si mes-
ma. Enfatize-se que tal percurso foi seguido pelo Congresso Nacional, ao
elaborar e aprovar a Lei de Biossegurança, e pelo Supremo Tribunal, ao de-
clarar sua constitucionalidade.
O direito ao planejamento familiar, particularmente, recebeu ênfase
significativa no julgamento da ADIn 3510. A Constituição Federal, em seu
656
Ibidem, ADIn 3510/DF, fl. 402, nota 58, e fl. 407.
657
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Cármen Lúcia, ADIn 3510, fls. 1477-1478. Ver, também, a obra da ministra: Vida digna:
direito, ética e ciência (os novos domínios científicos e seus reflexos jurídicos). In: RO-
CHA, Cármen Lúcia (Coord.). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.
92-95.
336 Teresinha Inês Teles Pires

art. 226, § 7º, define o planejamento familiar enquanto uma liberdade do


casal fundamentada “nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável”. A liberdade de procriação, na realidade, expressa
a autonomia individual, conferida a todos os cidadãos, em igualdade de con-
dições, de decisão no que diz respeito ao número de filhos que se deseja ter e
ao momento adequado para tê-los658. Consoante ensinado pelo Ministro
Ayres Britto, o direito ao planejamento familiar é uma especificação do di-
reito genérico à liberdade (CF, art. 5º, caput), que se sustenta na dimensão de
“privacidade decisória”, compreendida como “autonomia da vontade”. Não é
possível obrigar os casais que recorrem à técnica da fertilização in vitro a
transferir para o útero da mulher todos os embriões que resultam do proce-
dimento. O princípio da legalidade (CF, art. 5º, inc. II) impede que se impo-
nha este tipo de obrigação, reforçando, assim, o sentido da privacidade asse-
gurada pelo direito ao planejamento familiar659.
O planejamento relativo ao nascimento da prole exige de cada um
a consideração de sua capacidade financeira e de sua disponibilidade de
tempo e de afeto. Desta forma, a liberdade decisória está associada, ainda, ao
dever dos pais de garantir aos filhos o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, e demais direitos previstos no art. 227 da Constituição.
Há, aqui, um modelo próprio de planejamento familiar criado pelo consti-
tuinte brasileiro, consubstanciado no exercício da “paternidade ou procria-
ção responsável”660.
Além do sentido genérico da liberdade, do princípio da legalidade,
da liberdade de pesquisa e da autonomia procriativa veiculada pelo direito ao
planejamento familiar, coube ao Ministro Joaquim Barbosa trazer a baila o
envolvimento da categoria da laicidade no contexto do julgamento da ADIn
3510. Segundo Barbosa, o legislador escolheu três balizas para estabelecer
uma conexão entre os limites da tutela constitucional da vida e a perspectiva
do desenvolvimento científico:
658
Nos termos do art. 2º da Lei 9.263, de 12.01.1996, que trata do planejamento familiar,
regulamentando o art. 226, § 7º da Constituição Federal: “Para fins dessa lei, entende-se
planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade, que ga-
ranta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo
homem ou pelo casal”. O art. 5º da mesma lei impõe, ainda, ao Estado o dever de assegu-
rar o “livre exercício do planejamento familiar”.
659
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fls. 1334-1335 e 1337. Também o Ministro Cezar Peluso, ADIn
3510, fl. 1656, enfatizou que os embriões congelados são de livre disposição dos casais, e
que negar-lhes esse direito seria um “insulto à dignidade humana”.
660
Ibidem, Ayres Britto, fls. 1337-1338.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 337

a)a laicidade (CF, art. 19, I), incorporada ao princípio da liber-


dade de consciência e de crença (CF, art. 5º, inc. VI);
b) a liberdade como autonomia privada (CF, art. 5º, caput); e
c) a liberdade de expressão da atividade intelectual e científica
(CF, art. 5º, inc. IX)661.
No mesmo sentido, o Ministro Celso de Mello sustentou a apli-
cação da liberdade de consciência e de religião ao caso das pesquisas com
células-tronco embrionárias. Acentuou que a garantia da liberdade religio-
sa impõe ao Estado manter-se neutro diante dos temas de caráter filosófi-
co ou teológico. Afirmou, também, que o princípio da separação entre a
Igreja e o Estado tem por objetivo preservar a liberdade de crença e im-
pedir que grupos religiosos fundamentalistas dominem o poder político e
obstaculizem o pluralismo dos valores. Para o ministro, o pluralismo mo-
ral é o alicerce teórico da liberdade de consciência, por indicar a inacei-
tabilidade da eleição de uma das visões religiosas como critério de deci-
são do Estado662.
O Ministro Menezes Direito contrapôs-se à articulação da liber-
dade de consciência e de crença e do princípio do pluralismo ideológico,
arguindo que a defesa do direito à vida, desde a fertilização do óvulo, não
deriva de uma crença ou dogma religioso, mas da compreensão dos dados
científicos relativos “ao processo de reprodução humana”. As informações
da embriologia, em tal contexto, mostrariam que a definição jurídica de um
marco inicial para a tutela da vida, por meio de uma convenção, tem, inva-
riavelmente, um caráter arbitrário663. O Ministro Marco Aurélio mostrou,
através dos seus argumentos, que a tese de Menezes Direito não encontra
suporte no texto constitucional, ao afirmar que também a definição do
momento da fecundação, como marco da proteção da vida pré-natal, confi-
661
Ibidem, Joaquim Barbosa, ADIn 3510, fls. 1.616-1.618.
662
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Celso de Mello, ADIn 3510, fls. 1710, 1713-14, 1716 e 1720. Para melhor apreender
o paradigma da laicidade adotado por Joaquim Barbosa e por Celso de Mello, é po n-
tual direcionar a base dos seus argumentos às lições de Rawls a respeito do plurali s-
mo razoável. Aqui, o princípio da razoabilidade e a ideia do equilíbrio reflexivo são
bastante úteis, em termos hermenêuticos. Os limites do consenso sobreposto, estab e-
lecidos por Rawls, fundamentam a necessidade da concretização da liberdade de
consciência no quadrante das decisões procriativas que envolvam a justificação da
destruição da vida embrionária.
663
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Menezes Direito, ADIn 3510, fl. 1408.
338 Teresinha Inês Teles Pires

gura uma convenção, por não estar incorporada à Constituição, nem explí-
cita nem implicitamente664.

7.3 AS CONCLUSÕES DO JULGAMENTO E SUAS


REVERBERAÇÕES INTERPRETATIVAS NA
ABORDAGEM DO DIREITO AO ABORTO

O direito constitucional à vida não assegura a proteção do em-


brião desde o momento da fertilização do óvulo. Igualmente, o princípio
da dignidade intrínseca da vida não oferece suporte para assentar a intan-
gibilidade do embrião cujo desenvolvimento se encontra, ainda, em está-
gio incipiente. Estas são, na perspectiva da presente investigação, as duas
conclusões mais importantes da decisão da ADIn 3510, a partir das quais
as cláusulas da liberdade, no sentido da autonomia decisória, em matéria
de procriação consentida, adquiriram maior densidade substancial. Como
não poderia ser diferente, o direito ao planejamento familiar, em sua as-
sociação ao princípio do pluralismo ideológico e à liberdade de consciên-
cia, também foi um destaque no avanço obtido no julgamento em refe-
rência, especialmente, na qualidade de uma projeção extensiva da digni-
dade da pessoa humana.
A princípio, o valor moral do embrião intrauterino não foi objeto
direto do julgamento da ação. Todavia, a argumentação dos ministros, em
relação ao envolvimento das categorias de direitos fundamentais, acima
mencionadas, contém definições propositivas para a análise da validade
constitucional das normas penais que proíbem, de forma rígida, a prática do
aborto. Diante da acepção religiosa inerente à ideia de sacralidade da vida,
torna-se pertinente questionar os parâmetros da intervenção pública na pro-
teção dos interesses do nascituro. Se a tutela obrigatória da vida potencial
não começa na concepção, então é preciso definir qual seria este momento.
O decreto de constitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrioná-
rias traz consigo a aceitabilidade de se estabelecer graus diferenciados de
importância da vida nascitura, conforme o seu estágio evolutivo. É possível
afirmar que o direito da mulher de interromper a gestação se insere no con-
teúdo do planejamento familiar, sendo necessário, portanto, delimitar sua
extensão em uma interpretação que supere as referências jurídicas adotadas à
época da elaboração do Código Penal.

664
Ibidem, Marco Aurélio, ADIn 3510, fl. 1692.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 339

7.3.1 Soluções jurídicas encontradas: uma integração


constitucional de princípios fundamentais

Esclareça-se, inicialmente, que o Supremo Tribunal declarou a


constitucionalidade do art. 5º da Lei 11.105/2005 sem necessidade de recor-
rer às técnicas de interpretação conforme a Constituição e de interpretação
corretiva, reducionista, expansiva ou aditiva665. O Ministro Marco Aurélio já
havia explicado, no início do seu voto, que a técnica da interpretação con-
forme a Constituição, particularmente, deve ser aplicada com restrições,
somente sendo adequada na hipótese de ambiguidade do texto legal. No caso
da ADIn 3510, o dispositivo normativo apreciado não sugere mais de uma
interpretação, sendo, ao contrário, claro e direto em seus comandos. Assim,
incumbia ao Tribunal simplesmente declarar “a constitucionalidade ou a
inconstitucionalidade total ou parcial” da lei666.
Ainda em relação às técnicas escolhidas para a análise do caso, res-
salte-se que o Ministro Cézar Peluso defendeu entendimento importante no
sentido de ser prescindível a utilização do princípio da proporcionalidade.
Peluso asseverou que a questão analisada não envolve nenhum tipo de coli-
são de direitos, ou conflito de normas ou princípios, e que, se esta fosse a
hipótese, seria coerente assegurar a supremacia da vida e da dignidade das
pessoas doentes sobre a “dignidade ética e moral do embrião congelado”667.
665
Conforme questão de ordem levantada pelo Ministro Celso de Mello, ADIn 3510, fl.
1794, e redação do item IX da parte dispositiva da decisão, à fl. 1819, nos termos seguin-
tes: “IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO: Afasta-se o uso da técnica de ‗interpretação con-
forme‘ para a feitura da sentença de caráter aditivo que tencione conferir à Lei de Bios-
segurança exuberância regratória, ou restrições tendentes a inviabilizar as pesquisas
com células-tronco embrionárias. Inexistência de pressupostos para a aplicação da téc-
nica da ‗interpretação conforme a Constituição‘, porquanto a norma impugnada não pa-
dece de polissemia ou de plurissignificatividade. Ação direta de inconstitucionalidade
julgada totalmente improcedente”.
666
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Marco Aurélio, ADIn 3510, fl. 1689. No mesmo sentido, o Ministro Ayres Britto, ADIn
3510, fl. 1472, reputou não cabível a técnica da interpretação conforme a Constituição,
considerando claro e não polissêmico o texto da Lei 11.105/2005.
667
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. Cé-
zar Peluso, ADIn 3510, fl. 1669 e nota 64. Sustentou-se, no capítulo anterior a este, a in-
compatibilidade do princípio da proporcionalidade com um padrão de análise que se guie
pela busca de uma definição objetiva da qualidade dos direitos envolvidos no julgamento
de determinados casos concretos. A aplicação do princípio da razoabilidade, de acordo
com o direito norte-americano, pode levar à melhor solução do problema da autonomia
340 Teresinha Inês Teles Pires

Vê-se, aqui, a adoção explícita da tese de Dworkin da busca de uma decisão


correta e da consequente rejeição da colisão de direitos e da proporcionali-
dade enquanto critérios de argumentação prático-jurídica. Esta é a tese ado-
tada nos capítulos iniciais do presente estudo, em relação ao tema do aborto,
ou seja, a da não existência de conflito ou colisão entre o direito à vida nas-
citura e o direito à autonomia procriativa da mulher.
O único voto que fez referência ao princípio da proporcionalidade
foi o voto do Ministro Gilmar Mendes, que julgou a ação improcedente,
porém, com ressalvas. Assumiu-se o entendimento de que a proporcionali-
dade possui duas dimensões: a da “proibição do excesso” e a da “proibição
de proteção deficiente”. Sob o prisma da segunda dimensão, seria preciso
avaliar se o ato legislativo não é falho no aspecto da otimização de um direi-
to fundamental, e se não há medidas menos restritivas para se alcançar o
objetivo visado. Neste ponto, a Lei de Biossegurança violaria o princípio da
proporcionalidade porque não instituiu um Comitê de Ética e Pesquisa para
analisar os limites éticos das terapias científicas668.
O raciocínio do Ministro Gilmar Mendes não está correto, porque
contém a noção de que a autorização das pesquisas científicas com células-
-tronco embrionárias pode levar à extrapolação dos limites éticos aceitáveis
para o seu uso terapêutico. Ocorre que, no estágio em que o embrião se en-
contra, nas hipóteses permitidas pela Lei de Biossegurança, não há que se
falar, do ponto de vista dos seus interesses, em um direito fundamental pas-
sível de ser violado. Trata-se de uma inferência indubitável da decisão majo-
ritária proferida nos autos. Assim, a ideia de otimização dos direitos não se

procriativa, por colocar o intérprete diante da necessidade de demonstrar, logo de início,


se existe ou não um direito fundamental que esteja sendo violado pela norma em aprecia-
ção. No caso da Lei de Biossegurança, por exemplo, como se verá abaixo, os juízes che-
garam à conclusão de que a permissão da liberdade de escolha dos genitores não viola o
direito à vida, porque simplesmente o mesmo não existe perante a ordem jurídica, no que
concerne ao embrião congelado. Assim, não seria o caso de se proceder a uma ponderação
de valores, a fim de se encontrar o justo peso a ser conferido a cada um dos interesses en-
volvidos.
668
Ibidem, Gilmar Mendes, ADIn 3510, fls. 1758-1759, 1761 e 1781. O ministro esclarece
melhor o significado da ideia de proteção insuficiente de um direito fundamental em sua
obra Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 227-8. O minis-
tro defendeu, em seu voto, no presente caso, fls. 1773-74, a aplicação da técnica da inter-
pretação conforme a Constituição, para se declarar a constitucionalidade do art. 5º da Lei
11.105/2005, preservando-se o texto, mas adicionando-se a ele a necessidade da criação
de um Comitê de Ética e Pesquisa para os fins apontados. Como já dito, o voto de Gilmar
Mendes não foi acolhido, nesta parte, tendo o Tribunal simplesmente declarado a consti-
tucionalidade da lei, sem qualquer ressalva e sem o recurso à nenhuma das técnicas de in-
terpretação modificativa.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 341

aplica ao caso, o que somente teria sentido se existissem dois direitos confli-
tantes, em uma situação na qual a garantia de um deles conduzisse à restri-
ção do outro. A esfera da independência ética, no que se refere ao valor do
embrião congelado, envolve o juízo sobre a sacralidade da vida, não sendo
necessário nenhum tipo de monitoramento por parte do Estado com o intuito
de submeter as decisões dos genitores a padrões públicos de avaliação ética e
moral da aceitabilidade de suas convicções pessoais.
O Ministro Ayres Britto utilizou, expressamente, como fio condu-
tor do seu raciocínio, o pensamento de Dworkin, exposto na obra O Domí-
nio da Vida, para concluir que “o direito protege de modo variado cada eta-
pa do desenvolvimento biológico do ser humano”. A fim de delimitar a ex-
tensão de tal tutela, de acordo com o estágio evolutivo da vida pré-natal,
Ayres Britto partiu da natureza elástica do princípio da dignidade, cujo con-
teúdo pode aplicar-se ao embrião ou feto, em determinadas circunstâncias,
na hipótese de possuírem aptidão para progredir biologicamente até o mo-
mento do nascimento. Existindo esta aptidão, torna-se operacional a remis-
são ao conceito jurídico de nascituro669, justificando que se construam pa-
drões constitucionais de proteção aos seus interesses.
A primeira seta conclusiva de tal entendimento indica que o em-
brião, não sendo pessoa humana, não merece incondicionalmente proteção
constitucional com fundamento no sentido moral do princípio da dignidade.
O embrião produzido in vitro, particularmente, não se enquadra na categoria
do nascituro, pela ausência de sua implantação no útero. Sendo assim, não é
possível assegurar ao embrião congelado o direito à vida, uma vez que ele
não possui, por si mesmo, capacidade de evolução, independentemente do
útero materno670. Reforço importante da regra enunciada pelo ministro rela-
tor encontra-se nas palavras da Ministra Ellen Gracie, que disciplinou em
alto som o ponto controvertido, ao afirmar: “não se pode opor à Lei de Bios-
segurança nem a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) nem a invio-
labilidade da vida”. Ellen Gracie também apoiou a tese de que o embrião in
vitro não é nascituro porque não se pressupõe a probabilidade de que venha a
nascer671.
669
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fls. 1318 e 1320.
670
É o que se infere das palavras de Ayres Britto, ao confirmar seu voto na ADI 3510, às fls.
1465-1467.
671
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. El-
len Gracie, ADIn 3510, fls. 1363-1364.
342 Teresinha Inês Teles Pires

Na visão de Menezes Direito, o embrião in vitro em nada se distin-


gue do embrião implantado no útero, do ponto de vista de sua capacidade
para a reprodução humana. Para o voto dissidente, a dignidade moral do
embrião não está dissociada do direito à vida, não havendo coerência na
afirmação de um “estatuto intermediário” à vida pré-natal. Este estatuto re-
duzido, adotado pelos países que seguem o sistema da “common law”, afir-
ma o ministro, “é uma contradição”. O que merece proteção, na condição
biológica do embrião, é a vida em si mesma, e não a consideração de sua
aptidão futura para o exercício da autonomia moral, como se costuma alegar,
na visão liberal. O congelamento dos embriões não lhes retira a qualidade de
seres vivos. Com tal entendimento, Menezes Direito julgou o art. 5º da Lei
11.105/2005 parcialmente inconstitucional, para permitir a extração das cé-
lulas-tronco embrionárias somente por meio de técnicas que não resultem na
destruição dos embriões, se isto for possível672.
Entretanto, a decisão do Tribunal, nitidamente, marcou uma distin-
ção, para os propósitos do caso, entre o valor moral do embrião congelado e
do embrião implantado no útero, de modo a negar ao primeiro o direito cons-
titucional à vida. Se os embriões resultantes da fertilização in vitro forem
inviáveis ou se estiverem congelados há mais de três anos, a utilização tera-
pêutica de suas células-tronco não importa em violação da dignidade intrín-
seca da vida. Isto porque a existência da vida biológica não é suficiente para
sua necessária proteção jurídica. No contexto das técnicas de reprodução
humana, os contornos da dignidade dos embriões, em consideração à sacra-
lidade da vida, foram demarcados por meio das restrições previstas na pró-
pria Lei de Biossegurança, destacando-se, dentre elas, a proibição da produ-
ção de embriões para fins de pesquisa673. Pode-se dizer, então, na esteira de
Rawls e de Dworkin, que a proibição taxativa da destruição dos embriões
excedentários violaria o direito individual à igual independência ética, ou ao
igual respeito pela pluralidade de convicções de consciência. O modelo do
pluralismo razoável na justificação da obrigação moral e política, bem como
a exigência do respeito próprio como padrão de realização da dignidade hu-
mana, solapam a legitimidade de uma proibição de tal espécie.
Ainda sobre a tutela da vida pré-natal, o Ministro Ayres Britto traçou
um paralelismo entre o critério da morte encefálica, aplicável à regulamenta-
672
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Menezes Direito, ADIn 3510, fls. 1421, 1424-1425, 1429, 1431, 1435 e 1455.
673
Tal proibição é adotada na maior parte dos países, conforme explicitado no voto do minis-
tro Lewandowski, ADIn 3510, fls. 1572-1577, no voto do Ministro Joaquim Barbosa,
idem, fls. 1620-1622, e no voto do Ministro Marco Aurélio, idem, fls. 1701-1702.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 343

ção do transplante de órgãos, e o estágio evolutivo dos embriões de que trata a


Lei 11.105/2005. Declarou o ministro que os embriões excedentários, dos
quais se extrairão as células-tronco, não estão protegidos pelas normas consti-
tucionais, por não possuírem nenhum “resquício de vida encefálica”674.
A analogia entre a morte encefálica e os limites da tutela da vida
pré-natal foi refutada pelo Ministro Cezar Peluso, sob a arguição de que se
trata, no tema do transplante de órgão, de uma convenção estabelecida por
uma questão de conveniência prática, para facilitar o aproveitamento dos
órgãos doados. Segundo Peluso, a morte cerebral, para os fins da lei que
regulamenta o transplante de órgão, não importa na cessação da vida bioló-
gica, pois permanece o estado de vida vegetativa675. Ocorre que a posição
comandada pelo Ministro Ayres Britto pressupõe exatamente a não identida-
de entre a vida biológica e a vida juridicamente tutelável. Daí se infere não
existir incoerência na mencionada analogia. Assim como, para a lei ordiná-
ria, a morte cerebral interrompe o dever do Estado de tutela da vida da pes-
soa que se encontra neste estado, o padrão da formação do cérebro é articu-
lável, em tese, na delimitação da tutela da vida pré-natal. Trata-se de um
argumento que pode ser considerado um argumento adicional a compor a
solução jurídica construída no caso da ADIn 3510, no sentido da constitucio-
nalidade da destruição dos embriões congelados, ao menos, em um primeiro
momento, nas hipóteses autorizadas pela Lei 11.105/2005.
Pressupondo-se a premissa de que a destruição dos embriões con-
gelados, inviáveis ou criopreservados por mais de três anos, não viola o va-
lor intrínseco da vida, os juízes passaram a desenvolver a análise conclusiva
acerca das cláusulas da liberdade e da igualdade, na esfera reprodutiva. Com
efeito, a resposta dada pelo ministro relator, no tocante à gradação da tutela
da vida potencial, assentou que o alcance do conteúdo da dignidade depende
de sua interação com os significados da liberdade incorporados ao art. 5º da
Constituição Federal. De acordo, ainda, com a Ministra Cármen Lúcia, todas
as pessoas são iguais no gozo das liberdades fundamentais676.
674
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fl. 1353.
675
Ibidem, Cezar Peluso, ADIn 3510, fls. 1627-1629.
676
Ibidem, Cármen Lúcia, ADIn 3510, fl. 1498. Vê-se que o padrão da igualdade perante a
lei está presente em qualquer análise que envolva a garantia das liberdades fundamentais,
na qualidade de uma premissa teórica inescapável, exatamente como assentado por Rawls
e por Dworkin. É sempre salutar ter em mente que as duas categorias, liberdade e igual-
dade, são também indissociáveis na prática jurisdicional. De toda forma, como se eluci-
dou no estudo dos casos da Suprema Corte norte-americana (segunda parte do trabalho),
344 Teresinha Inês Teles Pires

A solução da controvérsia relativa à autorização para a destruição


dos embriões resultantes da fertilização in vitro reside na dimensão da digni-
dade da pessoa humana, conforme estabelecido no art. 226, § 7º, da Consti-
tuição, que fundamenta o direito ao planejamento familiar com a conotação
de uma liberdade de decisão conferida ao casal, em matéria de reprodução e
organização familiar. Neste aspecto, o texto magno deixa claro que a digni-
dade também se expressa “sob a forma de liberdade decisório-familiar”,
além de determinar ser ilegítima qualquer ação coercitiva do Estado que
interfira nesta decisão. A programação do projeto reprodutivo caracteriza
uma espécie de autonomia individual que a Constituição denomina “plane-
jamento familiar”, a qual tem por fundamentos a dignidade humana e a pa-
ternidade responsável. Trata-se de um paradigma aplicável tanto à reprodu-
ção sexual natural quanto à reprodução medicamente assistida, assegurando-
-se a não obrigatoriedade da procriação677.
O significado jurídico da dignidade, na perspectiva da liberdade de
decisão procriativa, foi também pincelado no voto do Ministro Lewandows-
ki. No que pese o ministro ter julgado parcialmente procedente a ADIn 3510,
endossou a concepção firmada pelo Tribunal em relação à categoria do pla-
nejamento familiar, ao afirmar que a dignidade não é apenas um conceito
moral ou ético, sendo dotado de “eficácia jurídica” ao produzir reflexos em
diversas “normas constitucionais positivas”, como, por exemplo, a que insti-
tui o planejamento familiar (CF, art. 226, § 6º)678.

os amplos direitos de liberdade estão na origem, do ponto de vista hermenêutico, da arti-


culação da autonomia procriativa. No caso da ADIn 3510, o desenho da proteção à liber-
dade decisória, em relação ao uso terapêutico dos embriões criopreservados, não poderia
seguir caminho distinto, pressupondo-se que as várias figurações constitucionais da liber-
dade foram gradualmente incorporadas à nossa sistemática.
677
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fls. 1345 e 1468-1469. Para a ministra Cármen Lúcia,
idem, fls. 1514-1515 e 1517, a dignidade, no que toca à Lei de Biossegurança, man i-
festa-se no respeito que a Constituição confere à liberdade (autonomia) do casal para
consentir ou não com o uso das células-tronco dos seus embriões congelados, para
fins de pesquisa científica.
678
Ibidem, Lewandowski, ADIn 3510, fls. 1562-1563. A divergência do voto de Lewan-
dowski, em relação ao voto majoritário, diz respeito ao descrímen criado pelo legislador
quanto ao embrião congelado há mais de três anos. Na visão do ministro, não há, à luz do
princípio da igualdade, justificativa plausível para conferir tratamento diferenciado ao
embrião de acordo com o tempo de sua criopreservação, considerando não ser nula a po-
tencialidade reprodutiva dos embriões congelados por tempo superior ao delimitado pela
lei (Idem, fls. 1588-1589). A posição de Lewandowski coincide com a do Ministro Mene-
zes Direito, já enunciada na seção anterior.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 345

Para bem identificar os padrões constitucionais tecidos nas solu-


ções dadas pelos juízes, no caso da ADIn 3510, é de grande auxílio interpre-
tar as cláusulas da liberdade, dispostas na Constituição de 1988, a partir da
concepção original do devido processo legal substantivo. Lembre-se de que,
na nossa Carta de Direitos, o devido processo legal está enunciado em inciso
específico do art. 5º (inc. LIV). Mas, a dimensão de sua garantia, em relação
ao princípio da liberdade, não se concebe sem a remissão ao seu significado
abstrato, na forma estabelecida no caput do art. 5º. Além disso, viu-se que o
devido processo interage com o conteúdo do princípio da legalidade (art. 5º,
inc. II). Todas estas dimensões da liberdade foram pressupostas na compre-
ensão dos ministros para que se chegasse à conclusão de não ser razoável
obrigar os genitores a destinar os embriões congelados ao processo reprodu-
tivo, sob pena de violação ao direito ao planejamento familiar. A previsão
constitucional do princípio da liberdade, nos três sítios (art. 5º, caput e incs.
II e LIV), protege, de forma equivalente, a autonomia de atuação individual
contra a intervenção desarrazoada do Estado679.
No que pese a concisão dos juízes, que em seus votos, na ADIn
3510, não falaram longamente sobre o princípio da liberdade, não se pode
negar que a abordagem do direito ao planejamento familiar, enquanto ex-
pressão de uma esfera de privacidade decisória, segue o mesmo teste da ra-
zoabilidade inserido na decisão da Suprema Corte norte-americana, no caso
Griswold v. Connecticut, que legalizou o direito à contracepção no país680.
Ao decretar a constitucionalidade da Lei de Biossegurança, art. 5º, o Supre-
mo Tribunal Federal aplicou o sentido substantivo da liberdade, com as ves-
tes do princípio da legalidade e do devido processo legal, para pacificar que
o casal tem autonomia para consentir com o uso terapêutico dos seus embri-
ões excedentários, mesmo inexistindo disposição expressa na Constituição
sobre o assunto. A Lei de Biossegurança, sendo a primeira norma brasileira a
regulamentar as decisões procriativas, no contexto da fertilização in vitro, é
compatível com a integridade dos princípios constitucionais, particularmen-
te, numa conclusão parcial, o princípio da dignidade como liberdade, o devi-
do processo legal substantivo e o direito ao planejamento familiar. Diz-se
conclusão parcial, porque os votos majoritários dos ministros buscaram fun-
damento constitucional para a decisão também na cláusula da liberdade de
consciência e de crença.
679
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fls. 1336-1338.
680
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Griswold v Connecticut, 381 U.S.
479 (1965). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014.
346 Teresinha Inês Teles Pires

Com efeito, além dos princípios já mencionados, não se pode dei-


xar de incluir na solução dada ao caso da ADIn 3510, na concretização da
autonomia procriativa, a proteção da liberdade de consciência e de crença, o
que se assentou pela intermediação da liberdade de pesquisa científica. O
direito ao planejamento familiar e o direito à adoção de convicções éticas e
morais, no que diz respeito ao valor da vida humana, foram discutidos sob o
ângulo do interesse público no desenvolvimento científico, e receberam, em
tal contexto, inteira aceitabilidade enquanto fundamentos do direito de esco-
lha dos genitores. O voto do Ministro Joaquim Barbosa contém regra expres-
sa indicando que a proibição absoluta do uso das células-tronco embrionárias
na pesquisa científica implica em violação ao princípio da laicidade, e, por-
tanto, em violação à norma constitucional prescrita no art. 5º, inc. VI, da
Constituição Federal, ou seja, a liberdade de consciência e de crença681.
A declaração enunciada pelo Ministro Celso de Mello reafirmou
esta conclusão. Indica-se, em seu voto, o dever de reconhecimento da liber-
dade igual de religião e de consciência. A autonomia dos genitores, no caso,
está contida no conteúdo material da liberdade religiosa, compreendendo-se
que a liberdade de crença é “uma das projeções da liberdade de consciência”.
Definiu-se, assim, que o princípio da laicidade é parâmetro que direciona a
concretização do significado substancial da dignidade enquanto cláusula
geral aplicável à consideração da sacralidade e da inviolabilidade da vida682.
O Ministro Ayres Britto reforçou o mesmo padrão de análise constitucional,
ao complementar a fundamentação do seu voto com a compreensão de que
não é possível pacificar uma única valoração filosófica, científica e religiosa,
no que concerne às implicações do conceito de “início da vida” nas decisões
procriativas. E que isto não é possível porque existem várias visões éticas e
morais sobre o assunto, e porque a Constituição não se pronuncia a seu res-
peito683. Até mesmo o Ministro Lewandowski acentuou que os múltiplos
posicionamentos sobre o início da vida são explicáveis a partir das diferentes
doutrinas religiosas, filosóficas ou científicas seguidas pelas pessoas. Acres-
centou o ministro que para a maioria das pessoas que professa uma crença
teológica, por exemplo, a vida constitui um “dom divino” transmissível no
momento da fecundação do óvulo684.

681
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. Jo-
aquim Barbosa, ADIn 3510, fl. 1625.
682
Ibidem, Celso de Mello, ADIn 3510, fls. 1707-1710.
683
Essa diretiva é suportada por Ayres Britto, ADIn 3510, fl. 1743, ao esclarecer, logo após o
voto do Ministro Celso de Mello, o teor geral do seu voto.
684
Ibidem, Lewandowsky, ADIn 3510, fl. 1547.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 347

Afirmou-se, assim, o envolvimento do princípio da separação entre


a Igreja e o Estado, no sentido de que um dos seus requisitos reside na sub-
missão das leis a uma análise calcada em um raciocínio secular. Lembre-se
do teste de constitucionalidade firmado pela Suprema Corte norte-americana
no caso Lemon v. Kurtzman685, para a aplicação da establishement clause,
segundo o qual o comando legal há de ser anulado se o seu propósito for de
natureza não secular, ou seja, religiosa. A contrario sensu, motivações não
seculares, igualmente, não podem servir de fundamento para se carimbar a
lei do vício da inconstitucionalidade, razão pela qual, no caso da ADIn 3510,
os ministros, vislumbrando um conteúdo religioso nos argumentos favorá-
veis à procedência da ação, concluíram pela constitucionalidade da Lei de
Biossegurança.
Os votos dos ministros, destacados logo anteriormente, envolvem,
ainda, a utilização da ideia do livre exercício do pensamento religioso, o
qual, enquanto configuração específica do princípio da liberdade, comple-
menta a abordagem do secularismo em sua inserção ao tema do início da
vida. O significado da autonomia da vontade não se integraliza, em relação à
autorização das pesquisas terapêuticas com o uso dos embriões, sem a remis-
são à esfera da capacidade moral que cada pessoa possui de formar um juízo
ético sobre a sacralidade intrínseca da vida. Esta tese, diretiva central do
presente estudo, está subsumida ao decreto da Corte, no caso da ADIn 3510
e, com o mesmo enfoque, foi adotada na decisão da Suprema Corte norte-
-americana, no caso Planned Parenthood Southeastern Pennsylvania v. Ca-
sey686. Como também já se mostrou, em Casey a garantia da liberdade de
consciência foi inserida na categoria da privacidade, sob o entendimento de
que as decisões relacionadas a se e quando se deseja procriar ocorrem na
“zona” interna da consciência. No Brasil, a linguagem usada pelos ministros
do Supremo Tribunal, na ADIn 3510, permite afirmar que a privacidade
decisória, em relação à ideia de sacralidade da vida, tem o mesmo significa-
do da liberdade de consciência, na esfera do planejamento familiar.
685
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Lemon v. Kurtzman, 403 U.S. 602
(1971). Disponível em: <www.supremecourt.gov>. Acesso em: 01 fev. 2014. A decisão
proferida neste caso foi mencionada e explicada no capítulo 4, seção 4.1, para onde o lei-
tor pode retornar.
686
ESTADOS UNIDOS. United States Supreme Court. Planned Parenthood Southeastern
Pennsylvania v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). Disponível em: <www.supremecourt.gov>.
Acesso em: 12 dez. 2013. Lembre-se que este caso se relaciona ao tema do aborto, tendo
implicado em modificações nos padrões de análise de sua constitucionalidade, que dificul-
taram a liberdade de decisão da gestante. De outro lado, a densidade da argumentação que
os juízes desenvolveram no respectivo julgamento criou importantes estratégias para o
aperfeiçoamento do debate.
348 Teresinha Inês Teles Pires

É intuitivo perceber, assim, que nossa Constituição protege, com o


seu silêncio absoluto sobre o paradoxo jurídico do início da vida, o direito
individual à independência ética e ao pluralismo das ideias. No julgamento
da ADIn 3510, o comando foi claro e efetivo, neste aspecto, na medida em
que a escolha dos genitores, nos termos instituídos pelo art. 5º da Lei
11.105/2005, foi referida à proteção assegurada pela autonomia de consciên-
cia e de crença. A Corte acolheu, mesmo sem o dizer expressamente, a tese
de Dworkin da aplicação das cláusulas da liberdade religiosa na garantia do
direito à liberdade de decisão procriativa. Não ainda com o envolvimento do
tema do aborto, como defende Dworkin; mas se trata, em última instância,
da mesma liberdade, ou seja, do direito da mulher de realizar o projeto pro-
criativo se e quando o desejar, o que se concretiza tanto nas situações que
envolvem os processos de fertilização in vitro quanto na eventualidade de
uma gravidez natural.

7.3.2 Os argumentos tecidos no julgamento da ação e a


constitucionalidade do direito ao aborto

Tentar-se-á aprofundar os padrões constitucionais estabelecidos no


julgamento da ADIn 3510 e suas consequências na abordagem do tema do
aborto. Embora se tenha afirmado, no bojo do julgamento, que a destruição
da vida embrionária, em estágio extrauterino, nenhuma vinculação possui
com a interrupção da gestação, a composição de um modelo analítico que
confira significado jurídico ao conceito de vida potencial reflete, inequivo-
camente, na doutrina dos direitos ou interesses do nascituro.
A forma em que se compreende o caráter “plurissignificativo” do
conceito de “vida” operacionaliza parâmetros práticos na perspectiva da
construção de um conteúdo coerente ao conjunto das normas positivadas na
Constituição e nas leis infraconstitucionais, que envolvem o direito à vida.
Assim, qualquer regra firmada pelo Supremo Tribunal em relação à valora-
ção intrínseca da vida terá algum grau de aplicação, na qualidade de prece-
dente judicial, a novos casos que tragam de volta a apreciação do tema, co-
mo é o caso do aborto, se vier a ser, futuramente, submetido ao poder revisio-
nal da Corte687.
Alguns pronunciamentos feitos, na Audiência Pública, apontaram
uma nítida distinção entre a pesquisa com células-tronco embrionárias e o
687
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Conforme peça informativa da Advocacia Geral da União, ADIn 3510, fls. 95-99.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 349

aborto. Enfatizou-se que a continuidade da vida dos embriões congelados


depende da intervenção humana. Nas hipóteses permitidas pela Lei de Bios-
segurança, os embriões a serem destinados à pesquisa científica não seriam
utilizados, em sua potencialidade evolutiva, para a reprodução humana688.
Além disto, a chance de sucesso no desenvolvimento de tais embriões, se
fossem implantados no útero, seria muito reduzida689.
De outro lado, outros manifestantes, os favoráveis ao decreto de
inconstitucionalidade da lei, argumentaram que a gravidez não representa
um processo essencial na definição da importância da vida potencial. A
proteção da vida do embrião não seria, assim, determinada pelas caracte-
rísticas “funcionais ou estruturais” de sua evolução, pois qualquer delimi-
tação, nesta direção, resultaria em posições arbitrárias 690. Seja no tema
das pesquisas com células-tronco embrionárias, seja no tema do aborto, o
que se questiona é a validade da marcação de um momento específico do
desenvolvimento embrionário, ou fetal, como critério para a tutela da
vida potencial. Com exceção do marco da fertilização do óvulo, indaga-se
qual o fundamento para diferenciar, sob o prisma do direito à conti nuida-
de da vida, os estágios subsequentes, 14 dias, 8 semanas, 12 semanas , ou
até período maior691.
Logo no primeiro voto proferido no julgamento, o do ministro rela-
tor, observa-se o delineamento de argumentos relacionados ao direito ao
aborto. É verdade que Ayres Britto traçou, criteriosamente, a distinção entre
o tema tratado na ADIn 3510 e o tema do aborto. Enfatizou que o uso cientí-
fico das células-tronco embrionárias não acarreta a interrupção da gestação,
não sendo, portanto, conduta submetida às regras proibitivas do aborto. A
Lei de Biossegurança autoriza, apenas, a “realização de um procedimento
extra-corporis”, e diz respeito, exclusivamente, a embriões cujo destino al-
ternativo seria o descarte692. Diferentemente, o que se tutela na repressão
penal ao aborto é a vida do embrião ou feto, em fase intrauterina. Por outro
lado, o ministro relator salientou que as normas penais relativas ao aborto
não supõem a existência do nascituro como pessoa, mas reconhecem sua

688
Ibidem, Mayana Zatz, ADIn 3510, Audiência Pública, fls. 923-924.
689
Ibidem, Patrícia Helena Lucas Pranke, ADIn 3510, Ibidem, fl. 929.
690
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. Eli-
zabeth Kipman Cerqueira, ADIn 3510, ibidem, fls. 1022 e 1025.
691
Ibidem, Rodolfo Acatuassú Nunes, ADIn 3510, ibidem, fls. 1044-1045.
692
No mesmo sentido, a Ministra Cármen Lúcia, ADIn 3510, fl. 1492, declarou que o caso
das células-tronco embrionárias não envolve o aborto, tendo em vista a inexistência do
processo gestacional.
350 Teresinha Inês Teles Pires

dignidade, mesmo não se tratando de pessoa. A Constituição, da mesma


forma, enfatizou o ministro, não acolheu a tese de que a vida do embrião
equivale à da pessoa humana desde a concepção693.
Uma decisão pautada por tais padrões de concretização do direito à
vida resulta no afastamento da tese da personalidade do nascituro, o que
engendra uma estratégia de argumentação, à luz da Constituição, aplicável à
vida do embrião, em sentido geral, seja o extrauterino, seja o intrauterino. A
proibição do aborto, obviamente, tem por motivação a preservação dos inte-
resses do nascituro, mas não em consideração ao seu direito à vida, que não
recebe positivação nas normas constitucionais. Preserva-se, sim, sua digni-
dade moral, o que retira a admissibilidade incondicional do ato de interrom-
per a gravidez. A prática da conduta em estágio avançado da gestação, por
exemplo, feriria o respeito que se deve ter pela vida pré-natal. Em relação ao
embrião intrauterino, não há uma razão justificável para estabelecer uma
diferenciação tão significativa entre o valor moral de sua vida, nos estágios
iniciais, e o valor que também poderia ser atribuído ao embrião congelado. A
linha divisória entre a sacralidade da vida biológico-embrionária que precede
o momento da nidação e a que se segue após este momento é tênue, e, se
desenhada categoricamente, conduz a um juízo muito mais arbitrário do que
um juízo que distinga o regime jurídico de proteção da vida para cada etapa
da gravidez.
A preocupação com a criação de um precedente judicial para a
apreciação futura do direito ao aborto foi manifestada pelo Ministro Eros
Grau. Chamou-se a atenção para o fato de que as restrições éticas ao uso
terapêutico dos embriões congelados criam limites específicos para a prote-
ção da vida humana, que podem ser transpostos para a reflexão sobre o direi-
693
Ibidem, Ayres Britto, ADIn 3510, fls. 1321-1323, 1329 e 1332. Saliente-se que na opinião
de OMMATI, José Emílio Medauar. O direito fundamental ao aborto no ordenamento ju-
rídico brasileiro. In: FABRIZ, Daury Cesar et al. O tempo e os direitos humanos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 551-2 e 556, uma correta interpretação do voto do relator,
neste caso, pode conduzir ao reconhecimento do direito fundamental da mulher de inter-
romper a gestação, mesmo não estando sob risco de vida ou não tendo sido vítima de es-
tupro. Emílio defende a posição adotada no presente trabalho, no sentido de que o julga-
mento da ADIn 3510 avançou uma definição jurídica dos interesses da vida pré-natal
compatível com a proteção do direito constitucional ao planejamento familiar e às regras
estabelecidas na CEDAW, produzindo, assim, reflexos inegáveis na concretização do di-
reito ao aborto. A respeito da proteção constitucional do embrião, o Ministro Gilmar
Mendes, ADIn 3510, fl. 1743, sustentou que o debate sobre o aborto, no âmbito inter-
nacional, revela que quase todas as Constituições não se pronunciam sobre o tema do iní-
cio da vida. Aliás, é exatamente tal silêncio que possibilitou a descriminalização do aborto
em boa parte do mundo ocidental, regra geral, com base na principiologia constitucional
como um todo.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 351

to à interrupção voluntária da gestação694. Para o Ministro Peluso, cujo voto


foi parcialmente vencido, a autorização para as pesquisas com células-tronco
não envolve, diretamente, os componentes do tipo penal que proíbem o abor-
to, já que este pressupõe a vida intrauterina695. Porém, o adensamento do
direito à vida, que se fez necessário ao decreto de constitucionalidade da Lei
de Biossegurança, está em franca associação com a questão dos limites da
tutela dos interesses dos embriões, extra ou intrauterinos, desde a concepção
ou a partir de estágio biológico posterior.
Ainda segundo o Ministro Cezar Peluso, tanto o embrião como a
pessoa possuem o predicado da humanidade, mas somente a pessoa possui
vida humana, no sentido da personalidade jurídica. Por outro lado, a vida
intrauterina receberia tutela constitucional por representar uma espécie de
vida individual distinta da que é própria da pessoa. Quanto aos embriões
congelados, não passariam de “puro patrimônio genético humano”; por isto,
a eles não se aplicaria a proteção do direito à vida. O Ministro Peluso firma
opinião claramente desfavorável à legitimação da prática abortiva, ao susten-
tar que a implantação do embrião no útero materno é condição indispensável
para o desenvolvimento da vida humana, razão pela qual se deveria tomar tal
momento como sendo o marco inicial para a tutela da vida potencial. Ade-
mais, na opinião de Peluso, até mesmo os métodos contraceptivos de nature-
za abortiva, como o DIU e a pílula do dia seguinte, violariam a “dignidade
constitucional da vida humana”, por implicarem em uma intervenção externa
que interrompe o processo de evolução do “ciclo vital”696.
O voto divergente do Ministro Peluso, em relação ao voto majori-
tário, tem por ponto central a não concordância com a tese instituída na deci-
são, em especial, através do voto do Ministro Ayres Britto, no sentido de que
a proteção do embrião não tem lugar no nível constitucional, e sim no nível
infraconstitucional. Peluso acredita que a dignidade do embrião, após a nida-
ção, é acobertada pela Constituição, embora se deva conferir à sua vida uma
valoração inferior à que se confere à pessoa, no que se refere à repressão
criminal dos atos que atinjam seus interesses697. O Ministro Peluso considera
que a destruição dos embriões congelados é o limite além do qual se atingiria
694
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Eros Grau, ADIn 3510, fl. 1608.
695
Ibidem, Cézar Peluso, ADIn 3510, fl. 1633.
696
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. Cé-
zar Peluso, ADIn 3510, voto, fl. 1635, 1639, nota 17, 1654, 1663, nota 52, e 1664.
697
Ibidem, fl. 1665.
352 Teresinha Inês Teles Pires

a dignidade da vida pré-natal, fornecendo como único fundamento para tal


limite a ideia de que a conexão do embrião ao útero é circunstância sem a
qual não há potencialidade viável para a vida humana.
Em rigor, ao contrapor-se, inclusive, aos métodos contraceptivos
considerados abortíferos, Peluso difunde a ideia de que a dignidade do
embrião é inviolável desde o momento da concepção, excepcionando desta
proteção apenas os embriões congelados. Há uma certa contradição em sua
forma de solucionar o problema, eis que seu argumento afirma, inicialmen-
te, que o momento da nidação – implantação do embrião no útero – delimi-
ta o começo da tutela da vida do nascituro. Porém, em seguida, o ministro
afirma, indiretamente, que mesmo antes da nidação, logo após a concep-
ção, não se pode mais autorizar a utilização de nenhum método externo
para destruir o embrião, advindo daí sua oposição ao uso dos contracepti-
vos abortíferos698.
No aspecto dos limites do direito à vida, as teses do Ministro Pelu-
so não foram, em seus fundamentos, incorporadas à decisão majoritária do
caso. Além da abordagem do Ministro Ayres Britto, a matéria foi aperfeiço-
ada pelos demais ministros que acompanharam o seu voto. O Ministro Joa-
quim Barbosa assentou a existência de graus diferenciados de proteção da
vida, ilustrando seu raciocínio com a menção aos crimes do homicídio, do
infanticídio e do aborto, que possuem cada um o seu próprio “regime jurídi-
co”699. Não é simplesmente o grau distinto de reprovabilidade da conduta
que justifica a diversidade de tratamento para cada uma delas, como acredita
o Ministro Peluso700. Mantendo o foco, exclusivamente, na comparação entre
os crimes do aborto e do homicídio, entende-se, junto com Joaquim Barbosa,
que a distinção entre os respectivos regimes de punibilidade pressupõe a
698
Em relação à pílula do dia seguinte, como bem explicado pela Ministra ROCHA, Carmen
Lucia Antunes. Vida digna: direito, ética e ciência (os novos domínios científicos e seus
reflexos jurídicos). In: ROCHA, Cármen Lúcia (Coord.). O direito à vida digna. Belo
Horizonte: Fórum, 2004. p. 160, trata-se de um “método impeditivo da nidação, quer di-
zer, não haverá possibilidade de o óvulo fecundado implantar-se regularmente no útero
materno, como ocorreria normalmente, se não tivesse feito uso daquele recurso. Nesse
caso, a mulher ovula, e, em razão da relação sexual, dá-se a concepção, mas antes de es-
se ovo chegar ao útero ele é expulso pela ação da química na pílula”.
699
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014. Jo-
aquim Barbosa, ADIn 3510, fls. 1612-1613.
700
De acordo com Cezar Peluso, ADIn 3510, voto, fl. 1630, as regras penais sobre o homicí-
dio e o aborto, por exemplo, não partem de uma classificação gradual do “bem jurídico
vida”, e sim da “reprovabilidade da conduta típica”. Tratar-se-ia de uma questão de políti-
ca criminal que não “deprecia” a importância constitucional da dignidade da vida.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 353

consideração de que a dignidade do embrião ou feto não equivale, juridica-


mente, à dignidade da pessoa humana e não possui o mesmo estatuto, em
relação aos direitos fundamentais assegurados na Constituição. No caso do
aborto, a legislação penal manifesta explícito reconhecimento da maior im-
portância da dignidade moral da gestante em comparação à dignidade do
nascituro. Ainda que assim não fosse, o Código Penal não teria supremacia
em relação às normas constitucionais. De toda sorte, as exceções à punibili-
dade do aborto denotam que, já ao tempo da vigência das nossas vetustas
regras criminais, prevalecia a compreensão de que a dignidade do nascituro e
a da pessoa humana merecem proteção diferenciada.
Na mesma linha de raciocínio, o Ministro Marco Aurélio destacou
que a controvérsia atinente à proteção constitucional da vida alcança o tema
do aborto, o que se revela, na sua visão, pela admissibilidade do aborto tera-
pêutico e do aborto humanitário (caso do estupro). Para o Ministro Celso de
Mello, o debate desenvolvido na ADIn 3510, no que diz respeito à proble-
mática do direito à vida, indica a premência de uma reflexão, em padrões
jurídicos, sobre a “bioética do começo da vida”, à luz do paradigma do secu-
larismo701. Por fim, o Ministro Gilmar Mendes corroborou a tese de que
tanto o tema da pesquisa com células-tronco quanto o tema do aborto reme-
tem o debate para argumentos de ordem moral, política e religiosa, insusce-
tíveis de um consenso. Sendo assim, a questão central, nos dois assuntos, é
definir de que maneira, e em que medida, o Estado deve e pode intervir na
defesa dos interesses do “organismo pré-natal”, não sendo necessário aden-
sar os marcos do início e do término da vida, a não ser para se concretizar
um modelo protetivo que leve em conta o conteúdo constitucional da digni-
dade da vida potencial. Em termos gerais, antes do nascimento com vida,
não há que se falar em um titular de direitos fundamentais, mas apenas na
dignidade moral do nascituro e nas restrições aceitáveis à sua tutela jurídi-
ca702.
701
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Marco Aurélio, ADIn 3510, fl. 1695; e Celso de Mello, Ibidem, fl. 1721.
702
Ibidem, Gilmar Mendes, ADIn 3510, fls. 1748, 1751 e 1753. No mesmo sentido, a Ministra
ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Vida digna: direito, ética e ciência (os novos domínios ci-
entíficos e seus reflexos jurídicos). In: ROCHA, Cármen Lúcia (Coord.). O direito à vida
digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 147-8, ressalta que a resposta a ser dada para a
questão do aborto não há de se basear no argumento de que o embrião ou feto possuem per-
sonalidade jurídica, havendo, inclusive, vários fundamentos constitucionais para negar-lhes
tal estatuto jurídico. A ministra esclarece que a dignidade atribuível à pessoa humana só po-
de ser assegurada aos entes dotados de autonomia e liberdade individual, mas não à vida
pré-natal, em decorrência de sua condição de dependência do corpo da mãe.
354 Teresinha Inês Teles Pires

Do ponto de vista da análise do direito ao aborto, não há incoerên-


cia em se admitir que a proteção das células-tronco embrionárias é inferior à
proteção do embrião intrauterino. É compatível com a tese da gradação da
importância intrínseca da vida, conforme o momento do seu estágio evoluti-
vo, estabelecer níveis diferenciados à sua garantia. Até mesmo ao embrião
congelado se reconhece não ser o caso de permitir, indiscriminadamente, sua
destruição. Da mesma forma, quanto ao embrião intrauterino, não há de se
endossar a tese de que sua destruição é moralmente aceitável até instantes
antes do nascimento. Porém, é preciso enfrentar a necessidade da transposi-
ção da discussão sobre a tutela da vida, tal como empreendida na ADIn
3510, para o contexto da regulamentação da prática do aborto. A imprescin-
dibilidade do útero materno para o desenvolvimento da vida nascitura não
suspende ou elimina toda e qualquer demanda por uma definição jurídica do
direito à vida. Se existe uma justificação constitucional para se negar ao
embrião congelado o direito à vida, existe também, na mesma medida, uma
justificação equivalente para que se reflita sobre a diferença entre a dignida-
de do embrião intrauterino, nos estágios iniciais da gestação, e a dignidade
da pessoa, como tal, nascida com vida.
No passo em que se avança esta reflexão, se aperfeiçoa, igualmen-
te, a ideia de que, até certo ponto do processo gestacional, o direito ao aborto
é passível de ser incluído entre as liberdades básicas e inalienáveis. Dizer
que existe uma única decisão correta para cada caso concreto, no sentido da
tese de Dworkin da verdade moral, não significa que o problema do aborto
não possa ser solucionado por meio de regras distintas, de acordo com o
tempo de vida do embrião ou feto. Nem poderia ser diferente, já que Dwor-
kin defende ser o aborto um direito fundamental se realizado durante o pri-
meiro e o segundo trimestres da gravidez. É devido a esta configuração da
teoria do autor que se propõe que a escolha da gestante pelo aborto é, do
ponto de vista da “unidade do valor”, um direito inserido na esfera da inde-
pendência ética e do princípio do pluralismo moral razoável, desde que a
conduta seja realizada até determinada fase da gravidez. Em relação a Rawls,
destaque-se que o acordo cooperativo, para ser razoável, deve pautar-se pela
premissa da igual liberdade na formação de convicções pessoais compatíveis
com a preservação do sistema de justiça. E que banir, inexoravelmente, o
direito ao aborto, fere a essência da categoria da liberdade de consciência.
Tais pressupostos facilitam significativamente a compreensão da
base argumentativa presumida pelos ministros, no caso em análise, e sua
projeção no adensamento, em moldes abrangentes, dos limites dos interesses
tuteláveis do nascituro. A Ministra Cármen Lúcia, por exemplo, considera
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 355

ser imprescindível uma reflexão séria sobre o aborto, inclusive, sobre os


dogmas religiosos que exercem inegável domínio na condução do debate,
tendo em mente que o assunto não representa, na história da humanidade,
uma questão intocável. Diante do silêncio da Constituição, o intérprete pre-
cisa buscar, nos princípios fundamentais da Carta de Direitos, a compreen-
são correta sobre o problema do direito à vida, a fim de enfrentar o tema do
aborto703.
Na mesma seta, Celso de Mello afirma que a inexistência de uma
definição normativo-constitucional do direito à vida exige do intérprete de-
terminar qual a concepção, dentre as várias postuladas pela sociedade, me-
lhor se conforma ao interesse público. E vai mais longe, ao dizer que o crité-
rio da morte encefálica, aplicado ao transplante de órgãos, pode servir de
parâmetro, “a contrario sensu”, para determinar o início da vida juridica-
mente tutelável, justificando, no âmbito restrito do julgamento da ADIn
3510, a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco até o estágio
em que as primeiras estruturas do sistema nervoso ainda não se formaram704.
Fechando a fundamentação de sua decisão, Celso de Mello faz re-
missão ao fato de que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto
de São José da Costa Rica), em seu art. 4º, § 1º, não adota, em caráter abso-
luto e impositivo, a tese de que a vida jurídica começa na concepção. O mi-
nistro explica que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
decidiu, ao julgar o caso Baby Boy (Resolução 23/81), que a expressão “em
geral” da citada disposição internacional traz padrões diversos de interpreta-
ção, indicando a possibilidade da restrição do direito à vida pré-natal de
acordo com as normas internas de cada país705.
A questão da influência religiosa no travamento do debate sobre o
aborto, como destacado pela Ministra Cármen Lúcia, remete, também, dire-
tamente, aos referenciais teóricos que guiam este estudo. Com efeito, para
Rawls, o pluralismo razoável requer a precedência do discurso laico na con-
sideração do valor sagrado da vida humana, a partir do qual o direito ao
aborto é digno de ser reconhecido com fundamento no livre exercício das
703
ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Vida digna: direito, ética e ciência (os novos domínios
científicos e seus reflexos jurídicos). In: ROCHA, Cármen Lúcia (Coord.). O direito à
vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 157 e 162.
704
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Celso de Mello, ADIn 3510, fls. 1730-1732.
705
Ibidem, fl. 1740. O caso mencionado (2141/Resolução 23), já comentado na seção 6.2, foi
julgado pela CIDH no ano de 1981. Baby Boy é o nome que se deu ao feto removido no
procedimento médico-abortivo tratado no processo.
356 Teresinha Inês Teles Pires

capacidades morais individuais. Este exercício somente se efetiva através da


não interferência pública na escolha das próprias concepções do bem moral,
em relação a matérias eticamente controvertidas. Da mesma forma, é exata-
mente à luz do princípio da laicidade que Dworkin demonstra que o aborto é
uma questão de liberdade religiosa, e que a proibição de sua prática, sem que
se situe a controvérsia no contexto da unidade da ética, da moralidade pessoal
e política e do direito, representa impor a toda a comunidade o acatamento
de uma visão particular da sacralidade da vida.
Efetivamente, o decreto formulado no caso da ADIn 3510, como já
dito, sedimentou o entendimento de que a tutela constitucional da vida po-
tencial não tem início no momento da fertilização do óvulo, e que a dignida-
de do embrião não impede que se autorize sua destruição, em condições
específicas, para a realização de pesquisas científicas de caráter terapêutico.
Não é arbitrário traçar limites para a proteção da vida embrionária, e não há
razão para se pensar que tal direcionamento hermenêutico não possa ser
seguido no que tange ao embrião intrauterino. Dizer que sua evolução não
depende mais da intervenção humana não soluciona o problema, porque
nada se diz, por meio deste argumento, sobre o valor intrínseco da vida.
Buscar uma linha divisória entre o direito da mulher à interrupção da gesta-
ção e o interesse público na preservação da vida nascitura requer uma argu-
mentação assemelhada à que foi feita para a hipótese dos embriões congela-
dos. Rotular como sendo arbitrária qualquer posição que se tome sobre a
matéria implica em tangenciar o cerne da questão constitucional envolvida,
bloqueando o seu enfrentamento e impedindo a efetivação do direito à igual
liberdade de consciência ética e moral.
Entende-se que um raciocínio consistente que parta da admissibili-
dade da destruição dos embriões congelados traz consigo a inevitabilidade
da abordagem do direito ao aborto. Ser favorável à pesquisa com células-
-tronco embrionárias e, ao mesmo tempo, contrário à legalização do aborto
só é coerente sob a crença de que a tutela da vida tem início nos seus está-
gios iniciais. Supondo que esta crença tem seu valor restrito à vida das pes-
soas que dela compartilham, não é aceitável sua adoção, em caráter imposi-
tivo, para todos, religiosos ou não. É contraditório afirmar, como fez o Mi-
nistro Peluso, que a vida potencial só se torna inviolável por sua associação
ao útero materno, não importando seu estágio de desenvolvimento, de ma-
neira a legitimar até a proibição da contracepção cujo efeito ocorre em mo-
mento posterior à concepção. Se a vida fosse constitucionalmente intangível
desde a fertilização do óvulo, como defendem, regra geral, os opositores ao
aborto, não haveria fundamento para autorizar o uso terapêutico dos embri-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 357

ões congelados. Ou bem a tutela da vida começa na união dos gametas, e a


pesquisa com embriões é inconstitucional, ou bem esta tutela começa em
outro estágio da evolução embrionária ou fetal. Uma vez declarada a consti-
tucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança, só seria razoável proibir,
incondicionalmente, o aborto mediante um decreto no sentido de que a in-
violabilidade da vida, em termos jurídicos, parte da etapa da implantação do
embrião no útero materno.
A discussão da questão permanece em aberto. A implantação do
embrião no útero materno – nidação – e o transcurso de 14 dias da data da
concepção não representam critérios adequados, porque em tais etapas o
embrião ainda não reúne propriedades biológicas aptas a conferir-lhe o
status de um ser cuja vida potencial está assegurada pelo princípio da dig-
nidade. Assim, o princípio do pluralismo moral e a cláusula da liberdade de
consciência autorizam o reconhecimento da autonomia decisória, no que
pertine ao assunto. Defende-se, ainda, que, embora as primeiras estruturas
do sistema nervoso apareçam por volta de 8 semanas de gestação, este pra-
zo, igualmente, não é determinante para o início da tutela da dignidade do
embrião. A formação do sistema nervoso é lenta e só se completa após o
nascimento. É preciso definir um estágio da gravidez no qual a garantia da
vida nascitura se justifique em bases racionais, considerando o respeito que
se deve ter ao seu valor intrínseco, sem invadir as esferas protegidas da
autonomia ética e moral da gestante. Como já afirmado, a decisão da ADIn
3510 superou a tese do início da tutela da vida no momento da fertilização
do óvulo. Resta aprofundar o embate sociopolítico em torno da importância
da dignidade intrínseca da vida nos primeiros meses do desenvolvimento
fetal, na tentativa de se empreender uma investigação séria acerca da exis-
tência ou não de um fundamento constitucional para coagir a mulher a
levar a termo a gestação, sem garantir-lhe um prazo razoável para tomar
sua decisão.
O Ministro Marco Aurélio avançou a perspectiva da apreciação fu-
tura do direito ao aborto, antecipando que um dos ângulos da questão irá
impor que se analise o fundamento constitucional para obrigar a mulher ges-
tante a permanecer conectada fisicamente ao embrião ou feto, durante todo o
período gestacional. Acrescenta que, no caso da doação de órgãos, não existe
nenhuma base constitucional para forçar os pais a doarem seus órgãos a fim
de salvar a vida dos filhos706. Para a garantia da liberdade de consentir e do

706
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Marco Aurélio, ADIn 3510, fls. 1698-1699.
358 Teresinha Inês Teles Pires

direito ao planejamento familiar, no contexto das pesquisas com células-


-tronco, foi o bastante presumir a impossibilidade de se compelir a mulher a
gestar todos os embriões produzidos em processo de fertilização in vitro. Na
apreciação do direito ao aborto, a Corte, certamente, dará continuidade, se
for o caso, à reflexão sobre as categorias da liberdade, bem como aos pres-
supostos constitucionais do direito ao planejamento familiar, procurando
situar, em moldes coerentes, a legitimidade da coerção da vontade da gestan-
te, em relação ao consentimento para a procriação707.
Se o conteúdo da autonomia procriativa, no sentido particular insti-
tuído pelo direito ao planejamento familiar, tem a ver com a autorização
legal para a prática do aborto, por vontade da mulher, é algo a ser soluciona-
do pelo Supremo Tribunal Federal. A associação da dignidade humana à
ideia de paternidade responsável, ou maternidade responsável, que edifica o
conceito de planejamento familiar, enquanto uma construção inovadora do
sistema jurídico brasileiro, tem inteira aplicabilidade na concretização do
direito ao aborto. Como enfatizado pela Ministra Cármen Lúcia, nosso texto
constitucional promove uma abertura para a discussão do tema, não sendo
mais o caso de, simplesmente, aplicar as respectivas normas do Código Pe-
nal, sem se atentar às novas demandas sociais e aos novos paradigmas de-
mocráticos708.
O “vislumbre da maternidade como realização de um projeto de
vida”, destacou o Ministro Ayres Britto, exige o reconhecimento jurídico do
direito à procriação consentida e planejada, por tratar-se de um “investimen-
to” físico, psicológico e afetivo a demandar “total disponibilidade” da mu-
lher para assumir uma função que reflete de forma determinante no desenro-
lar de sua vida futura709. O consentimento da mulher para a assunção dos
encargos da maternidade é o principal requisito para a efetivação do direito
ao planejamento familiar. Certamente, a autonomia procriativa se aplica,
também, à liberdade de escolha do homem quanto à paternidade responsável
e consentida. Porém, neste particular, é a Ministra Cármen Lúcia quem cha-
ma a atenção para o fato de que o histórico do debate sobre o aborto sempre
esteve focado no direito da mulher de conduzir sua vida, por ser ela a pessoa
que gesta o feto e, muitas vezes, assume as consequências de uma gravidez
707
Ibidem, fl. 1698.
708
ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Vida digna: direito, ética e ciência (os novos domínios
científicos e seus reflexos jurídicos). In: ROCHA, Cármen Lúcia (Coord.). O direito à
vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 164.
709
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 3510/DF. Relator Ministro Carlos Ayres
Britto. j. em 29.05.2008. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 ago. 2014.
Ayres Britto, ADIn 3510, fls. 1342-1344.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 359

não desejada. É notório que o desejo de não engravidar não importa na re-
núncia à vida sexual, por isto, não poucas vezes, a mulher fica grávida sem
que o queira, em muitos casos, por falha no método contraceptivo utilizado.
Em tais circunstâncias, não se pode tomar como “inexorável” que a mulher
tenha abdicado de sua liberdade de escolha, em relação à maternidade, “no
momento da prática sexual”710.
Em síntese, a via metodológica para o envolvimento de todos os
significados da liberdade e da igualdade, que se intersectam na esfera da
fundamentação do direito à autonomia procriativa, particularmente da
mulher, está sedimentada nas premissas constitucionais adotadas no jul-
gamento da ADIn 3510. A sustentação de que o direito à vida não prote-
ge, incondicionalmente, o embrião conduz, como um prolongamento na-
tural da investigação constitucional, a uma releitura do tema do aborto, à
luz das categorias da dignidade, do planejamento familiar, do pluralismo
e da independência ética, com a extensão por elas conferida ao conteúdo
da liberdade de decisão e de ação.

7.4 CONCLUSÃO PARCIAL

De grande importância foi o resultado do julgamento da ADIn


3510, no âmbito da discussão dos limites da tutela da vida potencial, bem
como dos componentes do direito ao planejamento familiar. O Supremo
Tribunal proferiu uma decisão inédita, ao declarar, expressamente, que a
proteção do embrião ou feto, em termos constitucionais, se fundamenta na
consideração do valor intrínseco da vida, e não da caracterização individual
da vida biológica humana gerada pela união dos gametas. A partir daí, che-
gou-se à conclusão de que a destruição do embrião produzido em fertilização
in vitro para fins terapêuticos pode, em determinadas condições, ser autori-
zada, porque tal autorização não importa em violação à dignidade moral da
vida humana. Concluiu-se, ainda, que a autonomia procriativa dos genitores,
nas hipóteses permitidas para o caso do embrião congelado, encontra guarida
no direito ao planejamento familiar e na liberdade de consciência e de cren-
ça, a segunda no que diz respeito ao significado intrínseco da vida.
Desta interpretação deriva a adequação de se formular critérios pa-
ra a tutela da vida do nascituro, ou seja, do embrião intrauterino, igualmente,
de forma gradativa, de acordo com o estágio do seu desenvolvimento bioló-
gico. Restou claro que a afirmação de que a personalidade jurídica tem início
710
ROCHA, Carmen Lucia Antunes. Op. cit., p. 150 e 152.
360 Teresinha Inês Teles Pires

no nascimento com vida não resolve por si só a questão do aborto. A Corte


terá que assumir para si, em momento futuro, a tarefa de delimitar o estatuto
jurídico do nascituro, e terá que fazê-lo por meio de uma concretização equi-
librada das categorias constitucionais que asseguram o igual exercício da
liberdade de escolha, em sentido genérico, e, especificamente, da liberdade
de convicção moral laica ou religiosa.
Defende-se a articulação da metodologia utilizada no julgamento
da ADIn 3510 no estabelecimento de uma solução para o problema do abor-
to. Não é necessária a utilização das técnicas complementares de interpreta-
ção constitucional, já mencionadas, nem do princípio da proporcionalidade e
da otimização dos interesses envolvidos, tendo em vista a inexistência de
qualquer colisão de direitos. A técnica de Dworkin da busca de uma decisão
correta é a mais adequada para delinear, à luz da Constituição brasileira, a
partir de qual etapa do desenvolvimento do nascituro é legítimo proibir a
prática do aborto com fundamento na proteção de sua dignidade moral.
Saliente-se, por fim, que o envolvimento da categoria da liberdade
de consciência e de crença, na análise da legalização do aborto, decorre da
tese assumida no Acórdão proferido na ADIn 3510, que, se lido de forma
abrangente e integrativa, incorporou ao nosso sistema uma moldura consis-
tente para a garantia da independência ética e do pluralismo moral e político,
na seara das decisões de natureza procriativa.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 361

Capítulo 8

A DESCRIMINALIZAÇÃO DA
“ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO
PARTO” DE FETO PORTADOR DE
ANENCEFALIA (CASO DA ADPF 54):
APERFEIÇOAMENTO DAS CATEGORIAS
CONCRETIZADAS NA ADIn 3510

A partir do enfoque atribuído na ADPF 54 ao princípio da dignida-


de humana e ao direito da mulher à integridade mental, serão analisados os
avanços obtidos por meio da respectiva decisão, na perspectiva de uma in-
terpretação coerente sobre a primazia das liberdades fundamentais nos as-
suntos de natureza ética. Ver-se-á que a abordagem da dignidade, no caso,
construiu padrões esclarecedores para a definição dos contornos do interesse
público na preservação da vida do nascituro. A investigação sobre a condi-
ção do feto anencefálico trouxe à baila, mais uma vez, o envolvimento do
paradigma do Estado laico, ampliando o alcance efetivo das cláusulas da
liberdade religiosa. Ao aperfeiçoar a justa medida a ser conferida ao signifi-
cado intrínseco da vida, no tocante ao embrião intrauterino, o decreto dos
juízes agregou novos conteúdos à categoria da autonomia procriativa da
gestante.
Como se verá, o reconhecimento do cabimento do instituto da
ADPF, em relação à tutela do feto anencefálico, contribuiu para a perspecti-
va da revisão do Código Penal, na parte relativa ao crime do aborto, em sede
de revisão judicial. Isto se mostra defensável, na medida em que o Supremo
Tribunal Federal avançou, no julgamento da ação, a adoção de critérios es-
362 Teresinha Inês Teles Pires

pecíficos para a delimitação da inviolabilidade da vida pré-natal e rejeitou,


implicitamente, a tese de que o momento da nidação é um marco absoluto
para a garantia dos interesses do embrião.
Finalmente, será apresentada uma sucinta crítica à metodologia as-
sentada no caso em relação à aplicação dos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade na solução da demanda. Tentar-se-á explicar as razões
pelas quais a escolha pelo primeiro princípio, em sua acepção autônoma,
como se defende desde o início do presente trabalho, melhor equaciona o
dimensionamento constitucional da autonomia procriativa, não somente na
hipótese da antecipação do parto do feto anencefálico, como também na
hipótese do aborto.

8.1 BREVE HISTÓRICO DAS ETAPAS E DO CONTEXTO


ARGUMENTATIVO DA ARGUIÇÃO

Em Acórdão proferido no dia 12.04.2012, o Supremo Tribunal Fe-


deral, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54,
declarou, por maioria e nos termos do voto do relator, inconstitucional a
interpretação segundo a qual “a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é
conduta tipificada nos arts. 124, 126 e 128, incs. I e II, do Código Penal”711.
A decisão solucionou a polêmica que contorna o direito da mulher de inter-
romper, voluntariamente, a gestação quando se comprova tratar-se de feto
portador de anencefalia, portanto, sem condições de sobrevivência após o
parto. Esta decisão representa grande conquista para as gestantes, que, antes
do julgamento da arguição, tinham que percorrer caminho pantanoso e com
pouca chance de sucesso por meio de pedidos de alvarás judiciais, que, mui-
tas vezes, eram extintos pela perda de objeto, porque o nascimento do bebê
ocorria antes da apreciação do pedido712.
711
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. J.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014, fl. 1886.
Vencidos parcialmente os votos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, que adi-
taram condições para o diagnóstico da anencefalia, e integralmente os votos dos Ministros
Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram improcedente o pedido. De acordo
com Heverton Neves Petterson, representante da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal,
ADPF 54, Audiência Pública, 28.08.2008, fls. 1146 e 1162, o termo anencefalia significa
ausência dos “hemisférios cerebrais” e “cerebelo” e a existência de um “tronco cerebral
rudimentar”, situação que impossibilita a sobrevivência extrauterina, a não ser, em regra,
durante poucas horas após o parto.
712
DINIZ, Débora. Quem autoriza o aborto seletivo no Brasil? Médicos, promotores e juízes
em cena. PHYSIS – Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 13 (2):13- 34, 2003. Disponí-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 363

A ADPF 54 foi proposta, em 17.06.2004, pela Confederação Naci-


onal dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), sob a alegação de que era preciso
uniformizar a conduta dos profissionais da Saúde na prestação da assistência
à gestante que deseja interromper a gravidez de feto portador de anencefalia,
considerando a existência, à época, de decisões judiciais divergentes acerca
do direito em questão.
Em sua petição inicial, o então jurista e advogado Luís Roberto
Barroso, atualmente ministro da Corte, preocupou-se em evidenciar sua tese
da não equiparação da interrupção da gestação do feto anencefálico ao abor-
to. Afirmou que, no caso do feto portador de anencefalia, a interrupção da
gestação deve ser considerada como antecipação terapêutica do parto, e não
como ato abortivo, tendo em vista a inexistência da potencialidade da vida.
Para caracterizar o aborto, entende Barroso, é necessário que a morte do feto
tenha por causa a prática do respectivo procedimento, o que não ocorre na
situação do feto anencefálico, cuja ausência de atividade cerebral já lhe con-
fere a condição de natimorto. Em razão de tal circunstância, a antecipação
terapêutica do parto não se enquadraria nas normas punitivas da prática do
crime do aborto713.
Ao pressupor que o caso não envolve interesses fetais passíveis de
tutela, diante da certeza da inviabilidade da vida extrauterina, Barroso de-
fendeu que a discussão deve circunscrever-se, exclusivamente, ao âmbito
dos direitos constitucionais da gestante. Assim, enfatizou, quanto ao mérito
da arguição, que a criminalização da antecipação terapêutica de feto anen-
cenfálico vulnera o preceito da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, IV),
o princípio geral da liberdade, derivado do princípio da legalidade (CF, art.
5º, inc. II) e o direito à saúde (CF, arts. 6º e 196)714.
No início dos debates, que ocorreram logo após a propositura da
ADPF 54, em 2004, alguns participantes manifestaram preocupação com o
distanciamento entre a argumentação a favor da antecipação do parto, para o

vel em: <http://www.scielo.br/pdf/physis/v13n2/a03v13n2.pdf>. Acesso em: 04 abr. 2012.


p. 15-18. Para maiores informações sobre as categorias jurídicas consideradas na aprecia-
ção dos alvarás judiciais, e sobre os dados numéricos de procedência ou improcedência
dos pedidos apresentados, desde o início da década de 1990, ver, da mesma autora, Abor-
to seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. 2009. Disponível em: <http://repositorio.
bce.unb.br/bitstream/10482/8205/1/ARTIGOAbortoSeletivoBrasilAlvarasJudiciais.pdf>.
Acesso em: 20 dez. 2012; 2009. p. 1-5.
713
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Op. cit., Luís Roberto Barroso, ADPF 54, fls. 8 e
19.
714
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. J.
em 12/04/2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014, Luís Rober-
to Barroso, ADPF 54, fls. 11 e 15.
364 Teresinha Inês Teles Pires

caso do anencéfalo, e o tema do aborto. Em evento promovido pelo Conse-


lho Regional de Medicina do Estado da Bahia e outras entidades representa-
tivas da classe médica no estado, o debatedor Fernando Vasconcelos, falan-
do em nome das entidades, chamou a atenção para a importância de se apro-
ximar os dois temas, a fim de que o problema da insegurança do aborto clan-
destino, que afeta mais a população de baixa renda, fosse enfrentado já no
âmbito de discussão da antecipação do parto do anencéfalo715.
No entanto, no desenvolvimento e no desfecho da ADPF, sobretu-
do nas audiências públicas, que tiveram início em agosto/2008 e se encer-
raram em setembro do mesmo ano, aqueles que se pronunciaram no sentido
da procedência do pedido reconheceram a tese de que a interrupção da
gestação do feto anencefálico não se equipara ao aborto, em razão da au-
sência de potencialidade da vida; assim, como sustentado por tais pessoas,
o direito da mulher, no presente caso, deve ser assegurado. Em contraparti-
da, os que eram contrários à tese da arguição ressaltaram que, na lingua-
gem médica, o termo utilizado para a interrupção da gestação em momento
anterior à viabilidade fetal (no sentido de possibilidade de sobrevivência
fora do útero) é “aborto”, ou “abortamento”, e que o termo “antecipação do
parto” é reservado para designar a interrupção da gestação em momento
posterior à viabilidade fetal. Para aqueles que se posicionaram desta manei-
ra, não se deveria permitir a interrupção da gestação de feto anencefálico,
por tratar-se de uma modalidade de aborto, devendo ser assegurado o valor
da vida em si mesma716.
A polarização dos pontos de vista a favor e contra a descriminali-
zação da interrupção da gestação do feto anencefálico evidenciou-se de for-
ma polêmica e emocional nas audiências públicas. A favor da procedência
do pedido, os participantes focaram suas falas nas possibilidades de diagnós-
715
CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e
Supremo Tribunal Federal. Brasília: Letras Livres, Coleção Radar, 2004. 2º v., p. 15 e
61.
716
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. J.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Confira-se a
exposição do Dr. Dernival da Silva Brandão, médico ginecologista e obstetra, ADPF 54,
Audiência do dia 04.09.2008, fls. 1331-2 e 1336, que se opôs ao direito da mulher de in-
terromper a gestação de feto anencefálico. Por outro lado, o CONSELHO REGIONAL
DE MEDICINA DO ESTADO DA BAHIA. Anencefalia e Supremo Tribunal Federal.
Brasília: Letras Livres, Coleção Radar, 2004. 2º v., p. 12, item 11, em sessão plenária de
16.08.2004, emitiu parecer favorável ao pedido veiculado pela ADPF 54, afirmando que o
Código Penal não conceitua o que é o aborto, e que a doutrina e a jurisprudência podem,
portanto, firmar o entendimento de que só existe aborto em face de evidências de “possi-
bilidade de vida e de sobrevida”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 365

tico da ciência médica, na ilegitimidade da imposição coletiva de uma de-


terminada doutrina moral ou religiosa, e no consenso ético, já estabelecido
na sociedade civil brasileira, acolhedor do direito à interrupção da gestação
de feto anencefálico. Na perspectiva dos direitos da mulher, os profissionais
da área médica relataram o impacto da gravidez de feto incompatível com a
vida na saúde mental da gestante. De outra parte, os participantes contrários
à descriminalização enfatizaram que não é possível o diagnóstico preciso de
morte encefálica nos fetos ou bebês anencefálicos, que a permissão da ante-
cipação do parto do feto anencefálico pode desencadear o aumento de inter-
rupções de gestação por motivos de eugenia, e que não há comprovação de
graves danos à saúde da gestante, se a gravidez for levada até o nascimento
da criança, no que pese a carga emocional nela envolvida.
A abordagem médica da anencefalia esteve no centro do diálogo
que se desenvolveu nas audiências. Para alguns estudiosos da neurociência,
anencefalia não é sinônimo de morte encefálica, considerando que o feto
possui parte do tronco neural e mecanismos cerebrais suficientes para o de-
sempenho das funções vitais básicas, inclusive, um certo nível de consciên-
cia717. Embora haja consenso quanto à letalidade iminente da doença, em
praticamente 100% dos casos, a divergência trazida pela neurociência em
relação à formação cerebral do feto anencefálico causou uma tensão entre a
perspectiva da autorização da antecipação terapêutica do parto e os riscos da
prática abortiva por motivos de eugenia. Contrapondo-se a esta visão, alguns
manifestantes explicaram que a antecipação do parto, em caso de anencefa-
lia, não caracteriza discriminação com base na deficiência, já que a proposta
se restringe à situação da ausência do encéfalo e, portanto, da absoluta au-
sência de expectativa de vida extrauterina, não alcançando outros tipos de
má formação congênita718.
Sob o enfoque da proteção à saúde da mulher, podem ser mencio-
nadas algumas manifestações de profissionais da área médica, que lançaram
um breve olhar sobre os dados e as diretrizes internacionais relativas ao con-
texto da morbidade e da mortalidade maternas. O Dr. Roberto Luiz D`Avila,
717
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Op. cit. Conforme Rodolfo Acatauassú Nunes e
Irvênia Luíza de Santis Prada, ADPF 54, audiência pública, 26.08.2008, fls. 1108, 1127-8
e 1132.
718
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. J.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Sobre os
questionamentos contrários à interrupção da gestação do feto anencefálico, por configurar
prática eugênica, ver Lenise Aparecida Garcia, ADPF 54, audiência pública, 28.08.2008,
fls. 1225-6; em sentido oposto, ver Débora Diniz, Ibidem, fl. 1246, e Cláudia Werneck,
Ibidem, audiência pública, 04.09.2008, fls. 1272 e 1283.
366 Teresinha Inês Teles Pires

representando o Conselho Federal de Medicina, fez referência aos altos índi-


ces de mortalidade materna provenientes de hipertensão, hemorragia e infec-
ção em gestações, não somente nos fetos inviáveis, mas também nos viá-
veis719. Com a mesma preocupação, o Dr. Jorge Andalaft, representando a
Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, salientou
que a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) prescre-
ve o dever dos médicos na eliminação dos riscos de morbidade materna, e
enfatizou que, nos países com leis restritivas ao direito ao abortamento, a
justiça não pode ser um obstáculo ao cumprimento de tal dever720. Por fim, o
então Deputado José Aristodemo Pinotti, Assessor da Organização Mundial
da Saúde para Assuntos de Saúde da Mulher desde 1993, lembrou que a
mortalidade materna no Brasil é uma das maiores do mundo, sendo trinta
vezes maior que a de Portugal. Dando sequência ao seu pensamento, acres-
centou que no Brasil são praticados todo ano de um milhão a um milhão e
meio de abortos ilegais, e que ¼ (um quarto) da mortalidade materna decorre
do aborto provocado, sendo quase 1/3 (um terço) em adolescentes721.
Em seguida à fala do Deputado José Aristodemo Pinotte, acima re-
ferida, o Ministro Marco Aurélio interviu, lançando uma perspectiva de
apreciação futura do direito ao aborto pela via da jurisdição constitucional. O
ministro afirmou que a abordagem da mortalidade materna no Brasil não
estava em pauta no julgamento da ADPF 54, mas que poderia vir a ser apre-
ciada no futuro, no “amanhã da atuação do Judiciário como a última trin-
cheira do cidadão”, como guardião do sistema jurídico e da democracia,
“compreendida nesta a autodeterminação”722.
Em outra dimensão, falou-se muito, igualmente, da vulnerabili-
dade psicológica da gestante que tem que enfrentar a proibição da interrup-
ção da gestação, quando se depara com o diagnóstico da anencefalia. Uma
das diferenças que marca, neste aspecto, a distância conceitual entre a an-
tecipação terapêutica do parto e o aborto residiria no fato de que na primei-
ra hipótese a mulher não rejeita a gravidez e a maternidade por motivos de
ordem econômica ou relacionados à sua vida pessoal, mas antes opta por
não levá-la adiante, exclusivamente, em decorrência da inviabilidade da
sobrevivência do feto723.

719
Ibidem, Roberto Luiz D’Avila, ADPF 54, audiência pública de 28.08.2008, fl. 1150.
720
Ibidem, Jorge Andalaft, fl. 1158.
721
Ibidem, José Aristodemo Pinotti, fls. 1211-1213.
722
Ibidem, Marco Aurélio, fl. 1217.
723
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. J.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Eleonora
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 367

A reflexão se direcionou, dentre outros pontos essenciais, também


ao envolvimento da laicidade do Estado brasileiro, em vista da garantia da
liberdade religiosa e da proibição da condução das políticas públicas com
base em códigos morais próprios da religião majoritária. A primeira audiên-
cia pública foi destinada à oitiva das entidades religiosas e dos sociólogos.
Os representantes da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB –
defenderam que a vida do embrião ou feto, em todo o período gestacional, é
dotada de valor humano, independentemente da existência de qualquer má
formação congênita, e que a restrita expectativa de vida não lhes retira os
direitos de identidade como indivíduos merecedores de respeito por parte da
sociedade. Mas, nem todos os líderes religiosos que foram ouvidos se mos-
traram insensíveis aos interesses das mulheres. O representante da Igreja
Universal do Reino de Deus, por exemplo, colocou à frente de sua argumen-
tação o respeito à autodeterminação da gestante, por ser ela a única pessoa
capaz de avaliar o impacto em sua vida de uma gravidez de feto portador de
anencefalia724.
A representante da organização “Católicas pelo Direito de Decidir”
chamou a atenção para o fato de que os argumentos contrários à liberdade de
escolha da mulher, no campo reprodutivo, embora se apresentem como sus-
tentáveis sob o prisma laico ou científico, são, na verdade, expressão de uma
doutrina e de uma moral religiosa particular725. É oportuno mencionar, ade-
mais, a posição da Procuradora Geral da República, em exercício ao tempo
da apresentação do parecer final do Ministério Público, Débora Duprat, se-
gundo a qual só devem ser levados em consideração, no caso, os argumentos
éticos, científicos ou jurídicos, deixando à margem da discussão argumentos
de natureza religiosa ou que constituam, essencialmente, preceitos adotados
por uma ou outra doutrina religiosa726.

Menecucci de Oliveira, ADPF 54, audiência pública, 16.09.2008, fls. 1376 e 1379; e Tal-
vane Marins de Moraes, fls. 1403-4.
724
Ibidem, pela CNBB, falaram Luiz Antônio Bento, 26.08.2008, fls. 1084-1091, e Paulo
Silveira Martins Leão Júnior, Ibidem, fls. 1095-98; pela Igreja Universal do Reino de
Deus, pronunciou-se Carlos Macedo de Oliveira, Ibidem, fls. 1098-1102.
725
Ibidem, Maria José Fonteles Rosado Nunes, ADPF 54, audiência pública, 26.08.2008, fls.
1119-20. No mesmo sentido, Débora Diniz, idem, audiência pública, 02.08.2008, fls.
1246-7, ponderou que a antecipação terapêutica do parto deve ser compreendida na quali-
dade de um assunto afeto à ética privada de cada pessoa.
726
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. j.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Débora Ma-
cedo Duprat de Britto Pereira, ADPF 54, fl. 1026.
368 Teresinha Inês Teles Pires

8.2 AVANÇOS OBTIDOS NA CONFORMAÇÃO


CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA LAICIDADE,
DO DIREITO À VIDA E DA AUTONOMIA
PROCRIATIVA

O julgamento da ADPF 54 proporcionou significativo progresso


em matéria de concretização das liberdades individuais no cenário da juris-
dição constitucional brasileira. Os direitos reprodutivos da mulher passam
por processo mundial de aperfeiçoamento, sendo que as Cortes Constitucio-
nais, em geral, vêm procurando elucidar o seu âmbito de proteção da forma
mais consentânea possível com o estágio atual da ciência médica e com as
novas demandas femininas. A decisão da Corte brasileira, no caso, seguiu,
nos limites do objeto da arguição, os parâmetros internacionais de cresci-
mento do amparo jurídico às escolhas da mulher em relação ao controle do
seu próprio corpo e à sua autonomia moral. É um precedente que, em se-
quência ao julgamento da ADIn 3510, aperfeiçoou, em linhas gerais, os cri-
térios de análise constitucional para o enfrentamento do problema do aborto,
constituindo indubitável referência analítica em relação a eventuais ações
judiciais futuras que versem sobre a matéria727.
Antes de adentrar no conteúdo dos votos dos ministros que julga-
ram a ação, convém mencionar, sucintamente, o longo debate desenvolvido no
processo, através de questão de ordem levantada pelo Procurador Geral da Re-
pública, Cláudio Fonteles, que pugnou pelo não cabimento do instituto da ADPF
e da técnica da interpretação conforme a Constituição na apreciação do caso728.

727
De acordo com ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 362 e 368-9, a doutrina brasileira, apoiando-se
no modelo da common law, acentua que a consideração de uma decisão judicial como
precedente exige um raciocínio que demonstre a adequabilidade de sua aplicação na “pro-
blematização e fundamentação” de decisões em “casos análogos”. As principais funções
dos precedentes são as seguintes: a) “configura-se como a principal modalidade argu-
mentativa na perspectiva constitucional”; b) é “o principal preceito jurídico que possibili-
ta a solução das controvérsias jurídicas pelas cortes”; c) “funciona como efeito vinculan-
te persuasivo que possibilita a aplicação isonômica e coerente do direito”; d) facilita o
“diálogo nacional/constitucional sobre o significado e alcance da própria Constituição
Federal”; e) “forma e confere clareza para a estrutura constitucional”; f) “possui função
primordial para a formação histórica da nação e da sociedade”; g) “é visto como a forma
de o Judiciário educar a população a respeito do que é e o que significa a Constituição”; h)
“a cadeia de precedentes funciona como instrumento para a formação da própria identida-
de nacional”; i) assegura “a implementação e concretização dos valores constitucionais”.
728
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Op. cit., Cláudio Fonteles, ADPF 54, parecer às fls.
207-218. A questão foi levantada logo após a liminar concedida pelo Ministro Marco Au-
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 369

É importante pincelar a questão, porque o desfecho do debate foi o ponto de


partida para a acolhimento majoritário da tese encampada na petição inicial
no sentido de que a antecipação terapêutica do parto não configura fato típi-
co, nos termos das normas penais que criminalizam o aborto.
Os Ministros Cézar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Veloso aquiesce-
ram com a posição do Procurador Fonteles, entendendo que o acréscimo de
uma excludente da ilicitude do crime do aborto somente pode ser efetivado
pelo poder legislativo, e que se o Supremo Tribunal proferir este tipo de
comando estará atuando como “legislador positivo”729. Ellen Gracie acentuou,
ainda, que o Código Penal de 1940 foi integralmente recepcionado pela
Constituição de 1988, e que, sendo assim, a incompatibilidade de qualquer
dos seus dispositivos com a Constituição deve ser pronunciada, exclusiva-
mente, por meio da revogação, total ou parcial, e nunca pelo acréscimo de
novos conteúdos normativos730.
Prevaleceu, contudo, na apreciação da mencionada questão de or-
dem, a posição favorável à admissibilidade do instituto da ADPF, conside-
rando a não equiparação da antecipação terapêutica do parto ao aborto. O
ministro Sepúlveda Pertence explicou bem a natureza do problema, lem-
brando que a pretensão inicial, no caso, não é declarar a exclusão da punibi-
lidade, e sim a atipicidade da conduta. Não se busca adicionar uma norma
nova aos dispositivos penais do crime do aborto, mas sim declarar, à luz dos

rélio, no dia 01.07.2004, que, com fundamento no direito à saúde, à liberdade e nos prin-
cípios da legalidade e da dignidade humana, autorizou a interrupção da gestação de feto
anencefálico (ADPF 54, fl. 163). O julgamento de tal questão de ordem resultou na revo-
gação da liminar e no reconhecimento do cabimento do instituto da ADPF, determinando-
-se, portanto, o prosseguimento da ação (ADPF 54, Acórdão, 27.04.2005, fls. 500-1).
729
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Cézar Pe-
luso, ADPF 54, fls. 417-8; Ellen Gracie, Ibidem, fls. 457-9; e Carlos Veloso, Ibidem,
fl. 476.
730
Ibidem, Ellen Gracie, fl. 470. Confira-se a crítica feita por CHAMON JÚNIOR, Lúcio
Antônio. Teoria da argumentação jurídica: constitucionalismo e democracia em uma
reconstrução das fontes do direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.
193-204, ao voto da Ministra Ellen Gracie, neste particular. O autor explica que a recep-
ção de normas antigas pela Constituição nunca ocorre de forma definitiva e em sua inte-
gralidade. Apreciar o fenômeno da recepção é uma “questão argumentativa” cuja condu-
ção pressupõe a ideia de que o apego ao texto da lei não é absolutamente imperativo
quando se está diante da tarefa de interpretar a Constituição. Ao submeter as normas ao
crivo dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal não atua como legislador positivo,
mas busca antes aplicar os princípios constitucionais da liberdade e da igualdade na pers-
pectiva de definir uma resposta correta para cada caso. Já se teve oportunidade de defen-
der, no Capítulo 6 da obra, esta posição, que segue os passos do método de Dworkin do
alcance de uma decisão correta.
370 Teresinha Inês Teles Pires

princípios constitucionais, que a interrupção da gestação do feto anencefáli-


co não é conduta que se subsume às referidas normas731.
Quanto ao mérito, manter-se-á a centralidade da análise nos votos
do ministro relator, e dos Ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cézar
Peluso. Ao voto do ministro relator será conferido maior atenção, destacan-
do-se, nas ocasiões oportunas, a contribuição dos votos dos outros ministros.
Em relação ao voto de Gilmar Mendes, o enfoque será crítico, em relação a
pontos importantes de sua argumentação, diga-se de passagem, aqui, contrá-
ria à tese da atipicidade do fato.
A superação da questão de ordem, anteriormente mencionada, foi
essencial para direcionar o voto do Ministro Marco Aurélio, que iniciou
esclarecendo não estar em discussão, na arguição, a “inconstitucionalida-
de abstrata” das regras penais relativas ao aborto, ou seja, não se pretende
excluir tais normas do ordenamento jurídico. Delimitada, assim, a maté-
ria, o ministro apontou os preceitos constitucionais que precisavam ser
concretizados para se solucionar a demanda: o Estado laico, a dignidade
humana, o direito à vida, a liberdade enquanto autonomia e a proteção da
saúde da mulher732.
O princípio da laicidade, e, consequentemente, as cláusulas afe-
tas à liberdade de consciência e de crença (CF, arts. 5º, inc. VI e 19, inc.
731
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Sepúlveda Pertence, ADPF 54, fls. 490-2. De toda
sorte, como já dito antes, não há espaço, no presente estudo, para investigar os distintos
mecanismos de controle jurisdicional das leis pré-constitucionais, sendo que o leitor, para
maior conhecimento sobre o assunto, pode recorrer aos autores indicados na Introdução
da obra, nota 3. Mas é preciso trazer tais questões a lume, bem como sua complexidade no
atual momento de fortalecimento da competência do Supremo Tribunal no julgamento da
constitucionalidade das leis ordinárias, em especial as que envolvem a aplicação do
princípio da dignidade humana. Voltar-se-á ao mesmo ponto nas seções seguintes, ao
se abordar as projeções da decisão do caso na reflexão sobre a interrupção da gest a-
ção de feto compatível com a vida, ou seja, na reflexão sobre o direito ao aborto.
Nesta direção, BARROSO, Luís Roberto. Bringing abortion into the Brazilian d e-
bate: legal strategies for anencephalic pregnancy. In: Abortion Law in Transna-
tional Perspective. Pennsylvania/Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014.
p. 264, destaca que a declaração do Supremo Tribunal de que, no caso em apreciação,
os requisitos formais exigidos por lei para a admissibilidade do instituto da ADPF f o-
ram preenchidos representou uma vitória em matéria de aperfeiçoamento da l egitimi-
dade da jurisdição constitucional. No que se refere, de perto, à autonomia procriativa
da mulher, a Corte prenunciou, segundo Barroso, a compreensão no sentido de que o
seu poder revisional pode sim alcançar a discussão sobre a constitucionalidade d os
dispositivos criminais relativos à prática do aborto.
732
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Marco
Aurélio, ADPF 54, fls. 1486-7.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 371

I) receberam significativo acolhimento no voto do ministro relator. Foi,


em realidade, o primeiro tema invocado pelo ministro, com a preocupa-
ção de mostrar os passos da evolução histórica por meio da qual nosso
ordenamento incorporou os requisitos do secularismo e seu princípio da
neutralidade do Estado, na acepção defendida no Capítulo 6 da presente
obra. Segundo Marco Aurélio, neste padrão constitucional, as decisões
públicas não podem ter por seta qualquer doutrina religiosa, majoritária
ou não, eis que seu conteúdo pertence à esfera da vida privada das pesso-
as. O significado substancial da liberdade religiosa e do secularismo não
se resume à tolerância às diversas práticas religiosas, mas se estende ao
tratamento a ser conferido aos direitos fundamentais, inclusive, o direito
à autonomia procriativa 733.
Os argumentos do ministro denotam, na esteira de Ronald
Dworkin, que o envolvimento das cláusulas de proteção à consciência
individual não pode ser posto à margem, quando se trata de discutir o
direito de se adotar uma concepção própria, individual, sobre o signifi-
cado da vida pré-natal, em especial, no tocante ao feto anencefálico,
comprovadamente inapto à sobrevivência extrauterina, salvo por tempo
precário. A conexão entre o princípio da laicidade e a independência
ética, na valoração do valor intrínseco da vida, já havia sido estabelecida
na ADIn 3510, e a Corte, através das considerações de Marco Aurélio,
reforçou e aprofundou, no caso da ADPF 54, a aplicação da categoria da
liberdade de consciência e de crença, e da proibição do estabelecimento
público de uma religião, à concretização da liberdade de escolha procria-
tiva. Legitimou-se, assim, a visão de Dworkin da dignidade humana,
segundo a qual é necessário definir uma linha divisória entre a indepe n-
dência ética e os deveres morais e políticos, oferecendo salvaguardas
suficientes à efetividade da primeira, também em matéria reprodutiva.
Igualmente, a seta indicada por Rawls da extensão máxima da liberdade
de consciência, que alcança a autonomia procriativa, dentro de contornos
éticos razoáveis, está na raiz da leitura abrangente que o Ministro Marco
Aurélio fez em relação ao campo de incidência do princípio da laicidade.
Sobre o mesmo tema, argumentou, com acerto, o Ministro Celso de
Mello, ao enfatizar o envolvimento do princípio da igualdade, na dimensão
da cláusula da proibição do estabelecimento da religião. A laicidade, e, junto
com ela, o conteúdo material da liberdade religiosa, não se separa da ideia de
uma democracia sustentada no princípio do pluralismo moral e político. O
ministro reafirmou, em seu voto, a concepção que já havia enunciado na
733
Ibidem, fls. 1487-90 e 1495-6 e 1498-9.
372 Teresinha Inês Teles Pires

ADIn 3510 no sentido de que a liberdade de crença emana da liberdade de


consciência. E, por fim, endossou a perspectiva da “neutralidade axiológica”
do Estado como um ponto crucial na salvaguarda da dimensão subjetiva da
igual liberdade religiosa, acentuando, não por acaso no caso da interrupção
da gravidez do feto anencefálico, que os temas de índole “teológica” ou “fi-
losófica” não estão ao alcance da censura social734.
Além disso, Celso de Mello figurou um contorno adequado para se
identificar em que medida as regras legislativas podem ferir a liberdade de
consciência e de crença, ao explicar que são duas as garantias a serem asse-
guradas sob o enfoque da supremacia da Constituição: o exercício da liber-
dade religiosa e o impedimento ao aparelhamento do Estado por grupos que,
com perfil fundamentalista, tentam impor a todos “as diretrizes de suas reli-
giões”735. Vejam que o ministro especificou, de forma incisiva, a aplicação
das duas cláusulas da liberdade religiosa, a do livre exercício da religião e a
da proibição do estabelecimento da religião, à análise constitucional em de-
bate. O que coincide com a tese de Dworkin, em sua leitura do tema do abor-
to no sistema norte-americano. Vejam, ainda, que Celso de Mello utilizou o
termo “liberdade religiosa”, também, com o significado sugerido por Dwor-
kin, ou seja, enquanto uma dimensão que envolve as crenças religiosas em si
e as convicções laicas. E, no contexto brasileiro, como uma expressão que,
embora não mencionada no texto constitucional, correponde ao conteúdo
abrangente da liberdade de consciência. Em linhas gerais, a Corte invocou,
por meio do voto do Ministro Marco Aurélio e, de forma até mais explícita,
por meio do voto do Ministro Celso de Mello, a aplicação da liberdade de
consciência, em sentido amplo, aos temas relacionados à autonomia procria-
tiva, em sua interação com a controvérsia do início da tutela constitucional
da vida humana.
Em relação ao direito à vida, a resposta dada pela Corte partiu do
pressuposto de que a não expectativa de sobrevivência do feto anencefálico
descaracteriza o dever do Estado de tutelar seus interesses, de qualquer espé-
cie, não sendo aplicável ao caso a categoria da dignidade humana, ou da
pessoa humana. Está expressamente definido, no voto do Ministto relator,
que o feto anencefálico é um natimorto, na acepção jurídica da palavra, no
que pese sua natureza de um ser “biologicamente vivo”. Delimitou-se, ou-
trossim, que a viabilidade, no sentido de potencialidade, é requisito essencial
734
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Celso de
Mello, ADPF 54, fls. 1785-6 e 1789.
735
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014, fl. 1790.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 373

para a tutela da vida, e, portanto, para a tipificação do crime do aborto.


Com fundamento no conceito de morte cerebral, o ministro relator con-
cluiu pela rejeição da tese de que o feto anencefálico configure uma vida
potencial, não se tratando, portanto, de uma vida juridicamente tutelável,
na esfera da vida intrauterina ou da vida extrauterina. A questão foi assim
solucionada, de modo a retirar do núcleo central da discussão a tutela da
vida potencial736.
O Ministro Marco Aurélio sustentou não haver, no caso, conflito
efetivo entre direitos fundamentais, tratando-se de mero “conflito aparen-
te”, diante da inviabilidade da vida. Considerou que, à época da elabora-
ção do Código Penal vigente (1940), não era possível à ciência médica
diagnosticar a anencefalia, razão pela qual tal circunstância não teria sido
prevista enquanto causa excludente de ilicitude da conduta 737. É impor-
tante notar que o ministro não utilizou a doutrina da colisão de direitos na
fundamentação do seu voto. Tomou por certa, de forma absoluta, a prote-
ção constitucional do direito da mulher à antecipação terapêutica do feto
anencefálico, não havendo que se falar em ponderação dos valores confe-
ridos à liberdade e à vida, considerando a impossibilidade de sobrevivên-
cia pós-nascimento da criança.
Ademais, o Ministro Marco Aurélio invocou, implicitamente, a
acepção independente do princípio da razoabilidade, ao pronunciar o envol-
vimento da categoria da laicidade na apreciação da matéria e optar pela ati-
picidade da conduta. Neste particular, o Ministro Cézar Peluso defendeu,
quando se manifestou sobre o cabimento, no caso, do instituto da ADPF
(questão de ordem), que os dispositivos penais do crime do aborto não pode-
riam ser lidos à luz do princípio da razoabilidade, em vista da consideração
da vida intrauterina como um valor constitucional digno de tutela738. Entre-
tanto, é uma inferência intuitiva da posição de Marco Aurélio dizer que a
decisão da gestante de interromper a gestação do feto anencefálico é moral-
736
Ibidem, Marco Aurélio, ADPF 54, fls. 1508-10. Nos termos da Lei 9.434, de 04.02.1997,
que regulamenta a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de
transplante e tratamento, art. 3º, a morte do indivíduo é determinada no momento em que
se interrompe a atividade encefálica. Como esclarecido por Ayres Britto, ADIn 3510,
2012, fl. 195-7, a jurisprudência tende a utilizar-se deste critério na delimitação do direito
à vida pré-natal, sopesando que a atividade cerebral ainda não existe nos estágios iniciais
do seu desenvolvimento, motivo pelo qual o embrião, ou feto, não apresenta os requisitos
biológicos do conceito de “vida humana” a merecer a proteção do Estado.
737
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. j.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Marco Au-
rélio, ADPF 54/DF, fls. 1486 e 1509.
738
Ibidem, Cézar Peluso, ADPF 54, fl. 418.
374 Teresinha Inês Teles Pires

mente razoável, no sentido concebido por Rawls, como se mencionou acima,


e no sentido atribuído pela cláusula do devido processo legal739.
Percebe-se, assim, que, no lugar de utilizar o princípio da propor-
cionalidade, descartado por Marco Aurélio, por ser inadequado ao julgamen-
to do caso, apelou-se à noção da razoabilidade sob o prisma dos requisitos da
laicidade do Estado. Não havendo colisão de direitos, a aplicação autônoma
do princípio da razoabilidade é a via metodológica proeminente e, por que
não o dizer, exclusiva na busca de uma decisão coerente à luz da integridade
do direito. É importante destacar, aqui, que se pressupõe o entendimento
segundo o qual os requisitos da razoabilidade não se confundem com os da
proporcionalidade. Este estudo, como se sabe, está centrado em tal hipótese,
em vista da defesa da utilização das estratégias de Rawls e de Dworkin na
abordagem da autonomia procriativa740.
De outra parte, existem alguns problemas na identificação feita pe-
lo Ministro Marco Aurélio entre os conceitos de vida viável e vida potencial,
o que não escapou ao olhar crítico do Ministro Cézar Peluso. Em seu voto
dissidente, Peluso afirma que a vida intrauterina, mesmo a do feto anencefá-
lico, se situa no âmbito do conceito constitucional de vida, merecendo a tute-
la jurídica. Daí o porquê, na sua visão, de não se poder comparar a situação
da gravidez do feto anencefálico à do embrião congelado, objeto de aprecia-
ção na ADIn 3510. Argumenta o ministro que, enquanto o embrião congela-
do não representa vida potencial, porque jamais seria implantado no útero,
constituindo mero material genético pertencente aos genitores, o feto anen-
cefálico é classificável como vida potencial capaz de resultar no nascimento
com vida e que será eliminada pela interrupção da gestação741.
Em rigor, o pensamento de Marco Aurélio da inexistência de vida
potencial no feto anencefálico é conceitualmente coerente, pois é certa sua
não expectativa de desenvolver-se ao ponto de adquirir as características que
739
Ibidem. O Ministro Marco Aurélio, ADPF 54, fl. 1496, explica, ao referir-se ao parecer da
PGR em exercício, Débora Duprat, que a locução dos argumentos religiosos exige sua
tradução em razões públicas, sendo esta a única via que assegura sua desvinculação das
doutrinas cuja validade é presumida apenas por aqueles que as professam. Como já expli-
cado antes, o princípio da razoabilidade está vinculado à interpretação das leis sob o pris-
ma da garantia da efetividade dos direitos fundamentais.
740
Voltar-se-á a falar, mais adiante, à luz dos próprios argumentos apresentados pelos minis-
tros, sobre a especificidade do princípio da razoabilidade, e da cláusula do devido proces-
so substantivo, e sua aplicação a ao caso da ADPF 54.
741
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. j.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Cézar Pelu-
so, ADPF 54, fls. 1827-8 e 1830.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 375

definem a essência da pessoa humana. No mesmo passo, é imprópria a defi-


nição de Peluso segundo a qual a vida intrauterina atribui ao feto, em todas
as circunstâncias, a proteção conferida pela dimensão normativa da categoria
vida humana. Peluso parte do equívoco de equiparar a vida biológica intrau-
terina, viável ou inviável, à vida juridicamente tutelável, o que já havia ante-
cipado no julgamento da ADIn 3510. Trata-se de abordagem rejeitada no
julgamento das duas ações, a ADIn 3510 e a ADPF 54. Por outro lado, sus-
tentou-se, no capítulo anterior, que a decisão, na ADIn 3510, especialmente,
através do voto do Ministro Ayres Britto, então relator, não excluiu do em-
brião congelado a condição de vida potencial. Assim, o raciocínio correto vai
na direção contrária ao argumento de Peluso. O embrião congelado, objeto
da ADIn 3510, enquadra-se no conceito de vida potencial, no que pese de-
pender da ação humana para prosseguir seu desenvolvimento natural, pois
não há, em sua constituição, algo que fulmine, irremediavelmente, o curso de
sua evolução orgânica. O feto anencefálico, por sua vez, mesmo estando
implantado no útero, é incompatível com a vida, razão pela qual não se pode
sustentar sua potencialidade para a sobrevida extrauterina.
É certo que o manejo dos conceitos jurídicos de vida potencial e de
vida viável, no que diz respeito à sobrevivência extrauterina, consoante fir-
mado por Marco Aurélio, cria algumas dificuldades, embora não insanáveis,
quando se pensa na necessidade de se definir os contornos da tutela dos inte-
resses do nascituro, sobretudo, em vista de eventual apreciação futura do
tema do aborto.
Está correta a negativa da atribuição do direito à vida ao feto anen-
cefálico, mas não, exclusivamente, porque ele não seja classificável como
vida potencial. Isto importaria em uma pré-compreensão no sentido de que o
feto viável, por configurar vida potencial tipificada nas normas penais proi-
bitivas do aborto, está, em quaisquer circunstâncias, sob o manto da proteção
constitucional do direito à vida. É verdade que a não viabilidade da vida
destitui o feto anencefálico do direito constitucional à vida. Mas não é ver-
dade que toda espécie de vida potencial, em sendo viável, merece a mesma
tutela. O enfoque adotado, ao longo da presente obra, pressupõe exatamente
o oposto, ou seja, que a existência da vida potencial, do ponto de vista bioló-
gico, não acarreta, necessariamente, a titularidade do direito à vida.
De qualquer sorte, no que concerne à delimitação da tutela consti-
tucional da vida intrauterina, a decisão, sob o direcionamento do ministro
relator, representa grande avanço no sentido de endossar e fortalecer a inter-
pretação segundo a qual o direito à vida não tem início no momento da ferti-
lização do óvulo, e nem, em quaisquer circunstâncias, no momento da im-
376 Teresinha Inês Teles Pires

plantação do embrião no útero materno. A decisão, constitui, em seus fun-


damentos, passo importante a pavilhar o caminho para a consideração do
tema da interrupção da gestação, em geral, por vontade da gestante742.
O Ministro Gilmar Mendes, de outra parte, insurgiu-se contra o ar-
gumento da atipicidade da antecipação terapêutica do parto do feto anencefá-
lico. Sustentou o ministro que mesmo o feto inviável está incluído no concei-
to de nascituro, sendo passível, portanto, de proteção jurídica. Apelou, ainda,
para o princípio do pluralismo político, cujo significado, na sua visão, impe-
de que se considere a interrupção da gestação, no caso, como fato atípico,
porque, se assim se entendesse, a decisão ofenderia a concepção das pessoas
que defendem os direitos e a dignidade também dos fetos anencefálicos743.
Está equivocado o entendimento do ministro. É articulável a exclu-
são do feto incompatível com a vida da categoria jurídica do nascituro, em se
compreendendo que a ratio essendi das leis que o protegem é, em termos
práticos, velar pelos interesses da vida pré-natal em desenvolvimento, que
contenha em si a potencialidade para alcançar o estágio da vida independente
pós-nascimento. Lembre-se de que Dworkin, ao discutir a questão, em rela-
ção ao aborto, salienta que o assunto deve ser dimensionado não em conside-
ração à pessoa que o feto pode vir a tornar-se, na hipótese de se levar a termo
a gestação, e sim em consideração aos interesses que lhe possam ser conferi-
dos, no momento em que a mulher decide interromper a gestação. Por óbvio,
Dworkin delineou um conteúdo normativo possível à vida pré-natal e, ao
fazê-lo, pressupôs a existência de vida potencial com o significado de uma
vida apta a seguir o processo evolutivo em condições compatíveis com a
sobrevivência extrauterina. Partindo-se de tais premissas, não se desvela
qualquer contradição, de natureza lógica ou jurídica, no reconhecimento da
atipicidade da interrupção da gestação do feto anencefálico.
O outro argumento do Ministro Gilmar Mendes também não se
legitima, uma vez que o pluralismo político, especialmente, na moldura
da teoria de Rawls, exige o respeito mútuo às variadas convicções mo-
rais, desde que elas possam coexistir no seio de uma comunidade política
sem que uma delas anule a validade das outras. No que se refere ao direi-
to da gestante de interromper a gestação, a não penalização da conduta
742
Este ponto será aprofundado na próxima seção, onde se analisará a possível aplicação dos
padrões estabelecidos no caso da ADPF 54 à perspectiva da ampliação das hipóteses de
legalização do aborto.
743
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Gilmar
Mendes, ADPF 54, fl. 1740.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 377

não exclui o direito de outras pessoas de formar suas convicções com


autonomia, podendo algumas mulheres, motivadas por suas crenças pes-
soais, levar a gravidez a termo, mesmo em condições adversas. É admis-
sível imaginar que a tese da atipicidade, na hipótese do feto anencefálico,
possa “ofender”, usando a palavra de Gilmar Mendes, as crenças de de-
terminadas pessoas, mas apenas no sentido da existência de um certo
desconforto com a não coincidência entre suas convicções e o conteúdo
normativo da decisão. Todavia, tal circunstância, de valor meramente
subjetivo, não importa em violação ao princípio do pluralismo político,
por tudo o que foi dito, nos capítulos anteriores da obra, sobre a sua apli-
cabilidade ao tema da pesquisa.
A tese esposada pelo Ministro Gilmar Mendes foi a da procedência
do pedido, com base na interpretação evolutiva do Código Penal, para acres-
cer às duas hipóteses já previstas de exclusão da punibilidade do crime do
aborto a interrupção da gestação do feto anencefálico. Arguiu o ministro que,
ao excepcionar o caso do estupro, com o intuito de velar pela saúde mental
da gestante, o legislador abriu margem para a inclusão de outras situações
nas quais esteja, igualmente, configurado o risco de dano psíquico que possa
advir da proibição da prática do aborto. Ademais, salientou o ministro, o
legislador permitiu o aborto, no caso de a mulher ter sido vítima de estupro,
mesmo em se tratando de feto viável; logo, se fosse diagnosticável, em 1940,
a anencefalia, o legislador, certamente, teria considerado como não punível a
interrupção da gestação, em tal hipótese744.
Entretanto, a tese da excludente da punibilidade, além de não pos-
suir, no caso do feto anencefálico, grau maior de sustentação jurídica, se
comparada à atipicidade do fato, não facilitaria a análise do direito ao aborto
em geral. Não haveria justificativa consistente para estender a proteção à
saúde mental da gestante, o que está na origem do aborto humanitário, à
perspectiva de se legalizar o aborto voluntário, independentemente da exis-
tência de má formação incompatível com a vida. O direito à saúde, física ou
mental, da mulher, e, especialmente, a consideração dos riscos psicológicos
que podem atingi-la em decorrência de uma maternidade mandatória, confi-
guram categorias plenamente aplicáveis às hipóteses de exclusão da punibi-
lidade do aborto, mas não fornecem subsídios, salvo em caráter complemen-
tar, para fundamentar a declaração da inconstitucionalidade, em parte, das
regras que tipificam a conduta.

744
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Gilmar
Mendes, ADPF 54, fls. 1744 e 1746-7.
378 Teresinha Inês Teles Pires

Por fim, em relação à categoria da dignidade, em matéria de au-


tonomia procriativa, pouco se discutiu, diante do acolhimento da tese da
atipicidade da antecipação terapêutica do parto do feto anencefálico. A
pressuposição de que o feto anencefálico não tem direito à vida, pela
ausência da própria potencialidade da vida, eliminou a necessidade de se
estabelecer uma baliza entre este direito fundamental e a dignidade da
gestante. Invocou-se o princípio da dignidade, primordialmente, em sua
relação com o direito à saúde psíquica da gestante 745, embora esteja tam-
bém subsumido aos requisitos do Estado laico, bem explorados nos votos
do Ministro Relator e de Celso de Mello. É inegável a conexão entre o
direito à saúde mental da mulher e a proteção de sua dignidade, o que
levou o Ministro Gilmar Mendes a fundamentar seu voto na equiparação
da gravidez do feto anencefálico à autorização já conferida pelo legisla-
dor à prática do aborto, em caso do estupro. Em geral, todos os votos
majoritários, no julgamento do caso, incluíram, em sua parte dispositiva,
o dever de tutela da saúde da mulher, entendendo-se tratar-se de um direi-
to associado ao pleno exercício de sua dignidade moral.
Por outro lado, no que diz respeito à dignidade como autonomia ou
autodeterminação da vontade, o destaque da liberdade de consciência e de
crença, bem como da neutralidade do Estado, na regulamentação da contro-
vérsia, sedimentou padrões significativos que, certamente, poderão conduzir
a apreciação de outras demandas judiciais afetas aos direitos procriativos das
mulheres. Em rigor, o princípio da dignidade, em sua aplicação ao direito da
mulher de decisão quanto a prosseguir ou não a gestação, está sempre inseri-
do na análise das garantias conferidas pelas cláusulas da liberdade, genéricas
e específicas, e da igualdade. Daí por que os ministros, regra geral, adensam
o significado da dignidade no bojo da argumentação sobre a concretização
de tais cláusulas, como ocorreu no julgamento da ADPF 54.
Do ponto de vista do princípio da igualdade, o voto do Ministro
Celso de Mello foi o único que tocou na questão do gênero e sua relação
com a efetividade dos direitos sexuais e reprodutivos, bem como do direito
ao planejamento familiar. O ministro apresentou um relato sobre o movi-
mento feminista e sobre os principais documentos internacionais cujas regras
prescrevem a eliminação dos preconceitos sexuais e da violência contra a
745
Ver, neste sentido, PEDRON, Flávio Quinaud. O algo e o alguém: reflexões sobre a tese
da personalidade humana em Robert Spaemann. In: MINAHIM, Maria Auxiliadora;
FREITAS, Tiago Batista; OLIVEIRA, Thiago Pires (Coords.). Meio ambiente, direito e
biotecnologia: estudos em homenagem ao Prof. Dr. Paulo Affonso Leme Machado. Curi-
tiba: Juruá, 2010. p. 409.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 379

mulher746. A cláusula da igual proteção perante a lei, em matéria de gênero,


está implicitamente incorporada ao voto do ministro, sem que, contudo, se
faça menção ao seu envolvimento na parte dispositiva da decisão. Mesmo
assim, a simples consideração da perspectiva de gênero, como uma das esfe-
ras da dignidade, indica a pertinência de se postular a utilização do padrão da
igual proteção perante a lei na abordagem da autonomia procriativa.

8.3 A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS


LEGITIMADOS NA AÇÃO À DEMANDA FEMININA
PELO DIREITO AO ABORTO DE FETO COMPATÍVEL
COM A VIDA

Vale repetir que o Ministro Marco Aurélio enfatizou, na parte con-


clusiva do seu voto, a supremacia dos direitos da mulher à dignidade (CF,
art. 1º, III), à liberdade sexual (art. 5º, caput), à autonomia (art. 5º, II), à pri-
vacidade (art. 5º, X), à integridade física, moral e psicológica (art. 5º, III) e à
saúde (art. 6º, caput)747. Tal arcabouço principiológico, no que pese ter sido
afirmado, exclusivamente, em relação ao feto incompatível com a vida ex-
trauterina, propicia uma abordagem constitucional a ser aperfeiçoada no
debate sobre o direito ao aborto, sob o prisma da atualização das normas
penais formuladas pelo legislador no ano de 1940748.
Saliente-se, já de início, que a interpretação conforme a Constitui-
ção foi utilizada pelo Supremo Tribunal, na ADPF 54, sob a compreensão de
que a análise da matéria não implicaria na possível modificação das normas
que criminalizam o aborto, e sim na possível declaração de sua não aplicabi-
lidade à hipótese do feto anencefálico. O que parece impor um obstáculo à
abertura da Corte à necessidade de se rever o Código Penal, tarefa a qual,
como destacado por Streck (nota supra), não vem despertando a adesão dos
746
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Celso de
Mello, ADPF 54, fls. 1770-76.
747
Ibidem, Marco Aurélio, ADPF 54, fl. 1522.
748
Como sustentado por Lenio Luiz Streck, na apresentação da obra de ABBOUD, Georges.
Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2012. p. 23, a atuação do Supremo Tribunal Federal, em relação à atualização das normas
de direito positivo, é caracterizada por um forte “grau de self restraining” (autorrestrição),
existindo, ainda, significativo corpo legislativo pré-constitucional que não foi submetido à
“necessária filtragem hermenêutico-constitucional. Exemplificando, é possível afirmar
que, efetuado um ‗rastreamento‘ no Código Penal, pouco dele restaria”.
380 Teresinha Inês Teles Pires

ministros, mais predispostos a deixá-la ao encargo dos legisladores. Trata-se


de uma visão que não se fundamenta em argumentos consistentes. O Minis-
tro Gilmar Mendes explicou, em seu voto, inclusive, que mesmo uma deci-
são tomada por meio da interpretação conforme a Constituição gera, em
muitas ocasiões, a modificação “dos sentidos originais” da lei, e que esta é a
única via que permite enfrentar os casos de inconstitucionalidade das leis
pretéritas, sem invalidá-las completamente749.
É verossímel a afirmação do Ministro Gilmar Mendes no sentido
de que a decisão da APDF 54 não deixará de acrescentar efeitos novos às
normas em questão. A Corte optou pela atipicidade da conduta como uma
forma de evitar tal discussão, mas, sob o aspecto da ressignificação da tutela
penal da vida humana e da tutela constitucional da dignidade da mulher, os
consectários interpretativos, presumidos no julgamento, não se distinguem
daqueles que seriam operacionalizados na hipótese de acolhimento da tese
da adição de uma terceira causa excludente da ilicitude do crime, como de-
fendido por Gilmar Mendes. Igualmente, em caso de futura modificação do
mesmo texto legal para se permitir o aborto por vontade da gestante, estar-
-se-ia revisando a matéria por meio da declaração de inconstitucionalidade
parcial das respectivas normas e introduzindo-se, em seu conteúdo, um novo
sentido que se compatibilize com a Constituição750.
A partir daí, é possível extrair uma série de inferências das deci-
sões dos ministros, no caso, que, indubitavelmente, se conectam ao tema do
aborto e da delimitação dos interesses do nascituro. A não expectativa de
sobrevivência extrauterina do feto anencefálico lhe retirou, na visão dos
julgadores, a natureza de vida potencial, enquadrável, portanto, no conceito
de nascituro. No caso do aborto, ao contrário, a problemática dos interesses
do nascituro, em vista de sua capacidade de desenvolvimento biológico até o
nascimento com vida, é a primeira questão a ser enfrentada. O Ministro
Marco Aurélio, ao refletir sobre a condição do feto anencefálico, fez menção
à sua decisão no julgamento da ADIn 3510, esclarecendo que havia susten-
tado ali a possibilidade de se adotar distintos critérios para a pacificação do
tema do início da vida, dentre eles os momentos da concepção, da nidação
ou da viabilidade do feto, no sentido de sua capacidade de sobreviver fora do
749
Ibidem, Gilmar Mendes, ADPF 54, fl. 1751.
750
Ibidem, confira-se as palavras de Gilmar Mendes, ADPF 54, fl. 1756: “No caso brasileiro
(...), o controle da constitucionalidade da legislação penal pré-constitucional (como é o
caso do Código Penal de 1940) pode impor à Corte a necessidade de adoção de uma in-
terpretação evolutiva atualizadora dessa legislação em face da ordem constitucional de
1988, exigindo uma decisão interpretativa com efeitos aditivos, que ocorrerá ‗in bonam
partem‘, no caso em exame”.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 381

útero, considerando o estágio da gestação. Adiantou o ministro seu entendi-


mento de que, à luz do próprio Código Penal, a proteção da vida humana
comporta “gradações”, haja vista as distintas penas previstas para os crimes
do homicídio e do aborto, permitindo-se, portanto, declarar que quanto mais
avançado o processo evolutivo da vida maior proteção se lhe deve ser confe-
rida pelo sistema normativo751.
Este entendimento foi adotado na ADIn 3510 não apenas pelo
Ministro Marco Aurélio, mas também pelo Ministro Ayres Britto, que
declarou, inicialmente, que o embrião produzido in vitro não é nascituro,
e que somente a partir da nidação é possível caracterizar o crime do abor-
to. Todavia, o Ministro Ayres Britto declarou, em seguida, que a tutela da
vida do nascituro é variável de acordo com o estágio de sua evolução
biológica, o que significa que, mesmo na seara do objeto do crime do
aborto, restrito à vida intrauterina após o momento da nidação, pode-se
postular que a tutela dos interesses do nascituro tenha início em estágios
avançados de sua evolução.
Unindo as conclusões dos julgamentos das duas ações, pode-se
dizer que enquanto na ADIn 3510 se definiu que a vida extrauterina, em
determinadas condições, não recebe tutela constitucional, na ADPF 54 se
delineou que a vida intrauterina, na qualidade de vida potencial, igual-
mente, não está protegida, em todas as circunstâncias, pelo direito consti-
tucional à vida. Depois da apurada leitura feita pelos ministros, cujos
votos prevaleceram no julgamento da ADIn 3510, no sentido de que o art.
5º, caput, da Constituição não se aplica à vida pré-natal, em termos abso-
lutos, não houve a necessidade de repetir, na ADPF 54, a mesma argu-
mentação. As decisões, no segundo caso, tomaram por pressuposto tal
compreensão, a fim de enunciar que o feto anencefálico, mesmo sendo
vida intrauterina e possuindo capacidade de desenvolver-se até o momen-
to do nascimento, no que pese a ausência das funções psíquicas básicas,
não possui direito à vida.
Em relação ao aborto, considerando a expectativa de vida, em seu
sentido pleno, há que se refletir sobre os contornos adequados das respostas
anteriormente lançadas, segundo as quais o embrião in vitro (extrauterino) e
também o embrião produzido pelas vias naturais e implantado no útero ma-
terno (intrauterino) não são titulares do direito à vida, em quaisquer circuns-
tâncias. Seguindo a orientação indicada na ADPF 54 pelo Ministro Marco
751
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. j.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Marco Au-
rélio, ADPF 54, fls. 1509 e 1512.
382 Teresinha Inês Teles Pires

Aurélio, referente à possibilidade de se pensar juridicamente sobre o início


da vida, com base em diversos critérios, convém observar o que os demais
ministros afirmaram a este respeito, no mesmo julgamento.
Ayres Britto lembrou que até mesmo no Código Penal inexiste uma
definição do início da vida, o que importa, inclusive, em uma contradição
lógica, já que o Código criminaliza o aborto sem sequer pressupor tal defini-
ção. Acrescentou que a criminalização, no caso, parece ser mais uma “políti-
ca legislativa” de proteção à vida potencial752. O Ministro Celso de Mello,
em consonância com a posição de Marco Aurélio, enfatizou que o intérprete
pode optar, dentre as várias vertentes científicas sobre o início da vida, qual
a concepção mais consentânea com o conjunto dos direitos fundamentais à
dignidade, à vida, à liberdade e à saúde. E que a solução da questão por parte
da Corte se justifica, sobretudo, em face da forte resistência dos grupos ma-
joritários atuantes na arena do Congresso Nacional à incorporação ao “direi-
to positivo” dos interesses dos grupos mais vulneráveis e dos compromissos
firmados pelo país perante as instâncias internacionais. Por fim, esclareceu
que o impedimento da opressão das minorias, medidor do “coeficiente de
legitimidade democrática da instituição parlamentar”, pode ser definido “à
luz do critério da vulnerabilidade das mulheres”, seja de ordem “social, eco-
nômica” ou “jurídica”753.
Celso de Mello recoloca, assim, de forma importante, a aplicação
da cláusula da igual proteção perante a lei enquanto um padrão articulável na
interpretação da extensão que se deve dar ao direito da mulher de interrom-
per a gestação, o que é válido tanto para a hipótese do feto inviável quanto
para a hipótese do feto viável. Não seria coerente excluir o requisito da
igualdade, em matéria de gênero, ao se apreciar as diversas circunstâncias
que podem caracterizar a vulnerabilidade da gestante, pelo simples fato de
ela estar abrigando em seu ventre um feto viável.
Para sustentar, entretanto, a fundamentação do direito ao aborto
sob o ângulo da autodeterminação da gestante e do respeito ao igual trata-
mento perante a lei, é preciso antes estabelecer a partir de que momento da
gestação o reconhecimento da autonomia procriativa já não seria razoável,
considerando que o feto já se desenvolveu ao ponto de possuir interesses em
si mesmo. Esta, como estudado antes, é a estratégia de Dworkin na tentativa
de alcançar uma resposta correta para o problema, sendo que as premissas
752
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Ayres
Britto, ADPF 54, fls. 1710 e 1712.
753
Ibidem, Celso de Mello, ADPF 54, fls. 1800-01 e 1810-12.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 383

adotadas na ADPF 54 fornecem diretrizes que contribuem para se avançar o


debate no sistema brasileiro.
Em relação à tutela da vida intrauterina, o julgamento importou na
negação da tese, defendida pelo Ministro Cézar Peluso, de que o momento
da nidação, ou seja, da implantação do óvulo fertilizado no útero materno,
estabelece, necessariamente, um marco a partir do qual nenhuma autorização
para a interrupção da gravidez deve ser permitida. Tanto é assim, que este
direito foi conferido à gestante em se tratando de feto incompatível com a
vida extrauterina. Primeiro, na ADIn 3510, foi superada a vertente que de-
fende a inviolabilidade da vida desde o instante da fecundação do óvulo; em
seguida, na ADPF 54, restou vencida, igualmente, a tentativa de se declarar
tal inviolabilidade desde o instante da nidação. Estabelecendo-se uma ponte
entre a mesma pré-compreensão e a menção aos demais critérios disponíveis
para se demarcar o início da tutela da vida pré-natal, postos enquanto opções
legítimas a serem adotadas em sede de jurisdição constitucional, é possível, e
por que não dizer, necessário dar mais um passo adiante, a fim de pacificar a
controvérsia do aborto.
O primeiro critério a se analisar é o da formação das funções cere-
brais, o qual foi levado em consideração, em analogia ao conceito de morte
encefálica, na ADIn 3510 e, mais significativamente, na ADPF 54. Na se-
gunda, não apenas o Ministro Marco Aurélio, mas também outros ministros,
buscaram, na Lei 9.434, de 04.02.1997 (referida na nota 736), subsídios para
afirmar o entendimento de que a ausência do córtex cerebral torna o feto
anencefálico um natimorto, não merecendo, então, proteção jurídica. Na
visão da Ministra Rosa Weber, a definição da existência da vida, à luz da
citada lei, requer não apenas o funcionamento do organismo humano como
um todo, mas, sobretudo, a capacidade para o exercício das “funções psíqui-
cas”. Em suas palavras, o julgamento da ADIn 3510 já havia firmado que a
vida biológica, por si só, não atribui ao embrião a titularidade do direito à
vida, ficando assentado, assim, que o significado jurídico do termo “vida”
provém não do “Biodireito”, e sim do Direito Constitucional754. Ainda no
que se refere às implicações do conceito de morte cerebral na discussão so-
bre o início da vida, a Ministra Cármen Lúcia valeu-se do argumento de que
proibir a interrupção da gestação, em caso de anencefalia, configuraria um
juízo normativo a contrariar a Lei 9.434/97755.

754
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Rosa We-
ber, ADPF 54, fls. 1561 e 1563.
755
Ibidem, Cármen Lúcia, fl. 1667.
384 Teresinha Inês Teles Pires

Certamente, uma lei ordinária não é parâmetro obrigatório em ma-


téria de interpretação constitucional. Mas, partiu-se daquela prescrição legal
(Lei 9.434/97) por ser a única existente, no ordenamento jurídico, a incorpo-
rar algum conceito relacionado aos limites da tutela da vida. Tal direciona-
mento indica uma tendência a se adotar a tese de que, na esfera da vida pré-
-natal, intrauterina, o embrião é passível de proteção jurídica quando alcança
o estágio do aparecimento das estruturas do sistema nervoso central756.
O mesmo ponto foi bastante discutido na ADPF 54, a fim de mos-
trar que a razoabilidade da permissão da antecipação do parto do feto anen-
cefálico se sustenta não somente na inexistência da expectativa de sobrevi-
vência intrauterina, mas também na compreensão de que, em sentido consti-
tucional, não há que se falar na proteção da vida humana nos estágios inici-
ais do desenvolvimento embrionário. Lembre-se de que, já na ADIn 3510, o
critério da morte encefálica foi cogitado como um referencial que pode auxi-
liar na determinação do início da tutela da vida. Na ADPF 54, esta diretriz
foi reafirmada, embora rechaçada pelo Ministro Cézar Peluso sob a alegação
de que o conceito de morte encefálica tem uma função operacional aplicável,
exclusivamente, ao aproveitamento de órgãos, a fim de salvar vidas, sendo
meramente “retórica” sua analogia com a questão do início da vida757.
Em linhas gerais, de qualquer modo, desde a ADIn 3510, o Supre-
mo vem construindo um critério de avaliação, sobre o assunto, que seja arti-
culável na reflexão sobre o aborto, na medida em que se questiona o respeito
que se deve ter pela vida do embrião antes do surgimento de suas funções
cerebrais. O Ministro Peluso vislumbrou esta perspectiva, quando afirmou
que o tratamento conferido ao feto anencefálico dará margem a que as mu-
lheres comecem a pleitear o direito de interromper a gestação em face de
outras anomalias fetais, ou mesmo em face de dificuldades “econômicas,
familiares, sociais”, ou de outra natureza758.
756
Ibidem. Remete-se, aqui, o leitor à seção 2.2 da obra, onde foram explicitadas as
divergências existentes entre as teorias científicas que discorrem sobre o problema do
início da vida. Neste particular, o Ministro Celso de Mello, ADPF 54, fls. 1792-4,
adotou quadro explicativo segundo o qual o embrião adquire as primeiras estruturas
que darão origem ao sistema nervoso central a partir da 8ª semana da gestação, sendo
que sua formação completa somente ocorre na 20ª semana da gestação. Só então (2 0
semanas) é plausível falar na existência da vida cerebral. Tratam-se de marcos que
modulam a tese segundo a qual o início da tutela da vida pré-natal deve coincidir
com a formação de suas funções neurológicas.
757
Ibidem, Cézar Peluso, ADPF 54, fls. 1831-33. O ministro já havia defendido tal entendi-
mento na ADIn 3510, tendo apenas reiterado, aqui, o mesmo argumento.
758
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. j.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014, fls. 1847-8.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 385

De fato, parece inegável a conexão, no aspecto da argumentação


jurídica, entre a decisão do caso e o direito ao aborto. A ideia de inviabilida-
de também se refere à capacidade do feto de sobreviver fora do útero consi-
derando seu estágio evolutivo, não se colocando em questão a existência de
má formação. Este, já se sabe, é o critério adotado nos Estados Unidos. Há
uma proximidade lógica entre os dois significados do termo “viabilidade”.
Ademais, a viabilidade fetal, em relação ao estágio da gestação, coincide
com a integralização das funções psíquicas, ou seja, a adoção do critério da
viabilidade fetal ou do critério da formação do cérebro resulta no mesmo
parâmetro de análise, como salientado na primeira parte da obra. Em rigor,
tanto o feto anencefálico quanto o feto saudável, até no mínimo 20 semanas
de gestação, não estão aptos à sobrevivência extrauterina, e ambos não são
dotados da formação neurológica que constitui a própria situação de viabili-
dade para o vir a ser pessoa humana. A diferença é que no segundo caso, o
do feto não portador de anomalia grave, adquirir-se-á esta capacidade se o
aborto não for realizado. Por outro lado, pressupondo-se o pensamento de
Dworkin, não há sentido em se perquirir acerca da dignidade do feto em
estágio posterior àquele em que, em conformidade com a Constituição, não
se lhe confere a proteção da vida.
É plausível propor, assim, que a decisão da ADPF 54 lançou pre-
cedente inescapável a impor a adequação da revisão do Código Penal no que
concerne ao crime do aborto. O Supremo Tribunal terá que aperfeiçoar a
conclusão obtida no julgamento, segundo a qual a viabilidade fetal é um
marco na caracterização do conceito constitucional de inviolabilidade da
vida, definindo, a partir de tal marco, os limites da responsabilidade do Esta-
do na proteção da vida potencial. Há fundamento para se declarar, na esteira
de Dworkin, que o interesse público na tutela da vida potencial tem início
em estágio avançado da gestação, supondo-se que o feto não é equiparado à
pessoa humana. Ainda que não se venha a adotar, em nosso sistema, o crité-
rio de Dworkin da viabilidade, para permitir o aborto no primeiro e no se-
gundo trimestre da gestação, o Supremo Tribunal avançou uma compreensão
que denota ser pertinente traçar, em relação ao tema, uma linha divisória
entre a autonomia da gestante e a coação do Estado. Vencidas as teses de que
o início da tutela da vida ocorre no momento da concepção, ou no momento
da nidação, a moldura do reconhecimento do direito ao aborto pode, por
exemplo, ser construída a partir do critério, afirmado na ADPF 54, da forma-
ção das estruturas cerebrais.
Assim, torna-se possível concretizar a categoria da autonomia pro-
criativa, com fundamento nos princípios constitucionais que guarnecem o
386 Teresinha Inês Teles Pires

igual direito à liberdade de consciência e de crença, sem o obstáculo que


sempre predominou nas instâncias legislativas, e no debate público em geral,
relativo à inviolabilidade do direito à vida desde a fecundação do óvulo. No
que pese a tipificação criminal da prática do aborto, é adequado pensar sobre
o espaço a ser reservado àqueles princípios, em conjunto, na esfera da inde-
pendência ética da gestante759.
A abordagem unificada de todos os componentes da dignidade
humana, sob o ângulo da autonomia moral da mulher, na esfera dos direitos
reprodutivos, foi alinhavada nas alegações finais do então advogado Luís
Roberto Barroso, na ADPF 54, quando apresentou um novo argumento, além
daqueles que já havia exposto em sua petição inicial760. No novo argumento,
Barroso defende o reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres e
759
Também, neste aspecto, o raciocínio do Ministro Cézar Peluso, ADFP 54, fls. 1835-6 e
1858, refoge à seta indicada no julgamento da ADPF 54. Veja-se as seguintes passagens
do seu voto: “Para que se possa ter por configurado o aborto como crime basta, a meu
juízo, a eliminação da vida, abstraída toda especulação quanto a sua viabilidade futura
ou extrauterina”. […] “Não há como nem por onde cogitar” […] “de resguardo à auto-
nomia da vontade, quando esta se preoordena ao indisfarçável cometimento de um cri-
me”. […] “Nesse quadro, é mal-avisada, senão imprópria, a remissão à liberdade de
crença e de expressão religiosas, bem como ao caráter laico do Estado”. Mais adiante,
afirma ainda o ministro que o apelo à “questão da liberdade de escolha em termos de pu-
ro arbítrio da mãe, diante de dolorosa experiência psíquica”, também não é aceitável
“quando se cuida da tipificação de crime”. Observe que o primeiro raciocínio vai de en-
contro à legitimidade da Corte de declarar a inconstitucionalidade parcial das normas que
tipificam o crime do aborto, e o segundo raciocínio vai de encontro ao acréscimo de novas
hipóteses de extinção de sua punibilidade. Quanto ao segundo ponto, o ministro argumen-
ta, inclusive, que no caso do estupro há justificativa para que se autorize o aborto porque a
mulher não é responsável pela gravidez, pois foi vítima de ato de violência (Ibidem, fls.
1860-2). O ministro identifica, desta forma, o consentimento da mulher para o ato sexual
com o consentimento para a assunção dos encargos da maternidade. Ressalte-se que se
optou por não aprofundar a analogia entre o desejo da mulher de interromper a gravidez,
em condições normais, ao caso do estupro, sob o entendimento de que a estratégia correta,
no que concerne à legalização do aborto por vontade da mulher, não é a da inclusão de
novas circunstâncias excludentes da punibilidade do crime, mas sim a da declaração da
inconstitucionalidade parcial do texto legislativo em questão. Também, como já esclareci-
do, qual a melhor técnica interpretativa para se proceder a essa revisão, dentre as disponí-
veis ao Supremo Tribunal, não é questão que possa ser destrinchada neste trabalho.
760
Enfatize-se que na inicial foram lançados três argumentos: a) a atipicidade da conduta,
com vistas a excluir a definição da antecipação terapêutica do parto como sendo aborto, o
que foi acolhido pelo Ministro Marco Aurélio; b) a interpretação evolutiva das normas
penais, na hipótese de se considerar a antecipação do parto do anencéfalo como aborto,
para que a conduta seja classificada como uma excludente de punibilidade; e c) a aplica-
ção do princípio da dignidade humana, na dimensão da integridade física, moral e psico-
lógica da gestante, o que, no caso do feto anencefálico, afastaria a incidência das normas
punitivas do crime do aborto.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 387

do direito à saúde como fundamentos adicionais para a análise da constitu-


cionalidade dos arts. 124 a 128 do Código Penal. Observe-se que a consi-
deração dos direitos reprodutivos foi inserida no cerne das alegações em
referência como uma projeção do princípio da dignidade. A estratégia de
Barroso teve por finalidade vincular o direito à interrupção da gestação de
feto incompatível com a vida ao direito ao aborto, construindo, assim, uma
base para a busca da coerência constitucional, no âmbito da atuação prática
dos juízes761.
O Ministro Cézar Peluso explica, apropriadamente, que os direitos
reprodutivos, incluindo-se o direito ao planejamento familiar, constituem
especificações do alcance da liberdade genérica individual, tal como conce-
bida pela Constituição Federal. O ministro recorre a este argumento para
defender que a esfera da liberdade, no caso, não se estende ao ponto de atri-
buir à mulher o poder de violar o direito à vida intrauterina do feto762. Já se
disse que o enfoque de Peluso, ora comentado, foi rejeitado na ADPF 54. Os
votos dos Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello foram os mais impor-
tantes na construção de um modelo coeso para a concretização das esferas da
liberdade a serem asseguradas do ponto de vista da autonomia procriativa da
gestante. Extrai-se da conjugação dos seus votos que a liberdade de consci-
ência e de crença é padrão primal na definição dos requisitos da dignidade
humana, bem como dos princípios da legalidade e da igual proteção perante
a lei. Daí se pode concluir que o aperfeiçoamento do conteúdo da autonomia
procriativa, vinculado ao princípio da legalidade, na forma delineada pelo
Ministro Marco Aurélio, facilita o equacionamento do tema do aborto, cuja
reflexão deve ser conduzida por meio das mesmas estratégias de argumenta-
ção endossadas na ADPF 54. Há que se pressupor, por óbvio, que o julga-
mento do caso alcançou uma moldura suficientemente clara para a correta
consideração do respeito à vida intrauterina.
761
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Luís Ro-
berto Barroso, ADPF 54, fls. 988-990 e 996. Confira-se as mesmas explicações em obra
recente do autor, Bringing abortion into the Brazilian debate: legal strategies for anen-
cephalic pregnancy. In: Abortion Law in Transnational Perspective. Pennsylvania/
Philadelphia: University Pensylvania Press, 2014. p. 268-9 e 271-4. Além disso, o autor já
havia adiantado, em texto anterior, sua compreensão no sentido de que a dignidade huma-
na desempenha papel central na interpretação constitucional de questões que envolvam
valores morais de alta complexidade, tal como ocorre na tormentosa decisão da mulher de
interromper a gestação. Consulte-se, como leitura complementar, seu ensaio Here, there
and everywhere: human dignity in contemporary law and in the transnational discourse.
35 Boston College International and Comparative Law Review, Spring, 2012, passim.
762
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Op. cit., Cézar Peluso, ADPF 54, fls. 1866-7.
388 Teresinha Inês Teles Pires

Os votos dos dois ministros, acima destacados, seguiram a lógica


de análise prescrita pelo teste do princípio da razoabilidade, como antes es-
tudado, embora sem uma explicitação clara neste sentido. A associação con-
ceitual entre legalidade, autonomia procriativa, igual proteção perante a lei e
liberdade de consciência e de crença resulta, inevitavelmente, no envolvi-
mento do significado substantivo da cláusula do devido processo legal, ponto
de partida da aplicação autônoma do princípio da razoabilidade. A decisão,
na ADPF 54, importou no reconhecimento da inexistência de interesse pú-
blico na proteção da vida intrauterina, em determinadas circunstâncias, tendo
em vista que o direito constitucional à vida não se aplica ao nascituro em
parâmetros equivalentes aos que se conferem à pessoa humana. Se é assim, a
proibição da prática do aborto, desde a concepção, caracteriza, à luz do prin-
cípio da razoabilidade, privação de um direito fundamental. Por conseguinte,
o objetivo da lei penal, no caso, não se legitima no esquema constitucional
edificado pelo Supremo Tribunal na ADPF 54.
Em linhas gerais, este decreto da Corte traz, em suas premissas, o
entendimento de que não se chega, na esfera da autonomia procriativa, à
concretização do princípio da dignidade sem a aplicação das cláusulas do
devido processo legal substantivo, da igual proteção perante a lei, e da liber-
dade de consciência e de crença. Trata-se de um esquema passível de ser
sustentado no critério de Rawls da razoabilidade das doutrinas morais e na
tese de Dworkin da unidade do valor. As duas teorias auxiliam, em muito, a
sedimentação dos padrões firmados no caso da ADPF 54 em matéria de in-
terpretação constitucional, especialmente, no que diz respeito à utilização
autônoma do princípio da razoabilidade.
Os argumentos desenvolvidos no julgamento do caso permitem
dimensionar o direito ao aborto, na qualidade de um direito fundamental
implícito, a partir do conteúdo material das cláusulas que protegem a liber-
dade, em sua extensão à integridade ética e moral da mulher. Mais precisa-
mente a aplicação da liberdade religiosa aos múltiplos enfoques da autono-
mia procriativa, posição assumida pelo Ministro Marco Aurélio, abre mar-
gem para a inclusão do aborto como uma questão inserida na esfera da inde-
pendência ética da gestante, desde que o direito de praticá-lo seja assegurado
na fase da gestação em que o feto ainda esteja excluído da proteção constitu-
cional e a mulher tenha tido tempo bastante para posicionar-se em conside-
ração aos seus interesses763. Tal assertiva, como proposto nesta obra, com
763
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Não é de-
mais acentuar que o Ministro Marco Aurélio, ADPF 54, fl. 1522, posicionou a liberdade
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 389

base nas razões invocadas por Dworkin, justifica a descriminalização do


aborto no Brasil ao menos até 14 semanas de gestação, tempo em que o feto
possui apenas estruturas cerebrais rudimentares e, em regra, a mulher já to-
mou ciência do seu estado gravídico e refletiu sobre os valores envolvidos
em sua decisão.
Para o Ministro Marco Aurélio a questão com a qual a mulher se
depara, diante de uma gravidez de feto anencefálico, é de natureza moral.
Sustenta o ministro, em seu voto, que a reprovação moral à antecipação tera-
pêutica do parto parte de alguns setores da sociedade, por motivos de crença
religiosa. E que uma conduta reputada como imoral por alguns setores não
merece “a glosa do direito penal”764. É importante destacar que não há razão
alguma para que o argumento do ministro não seja utilizado na concretização
do direito ao aborto. Como discutido no primeiro capítulo da obra, o aborto é
justificável como um direito moral, amparado na integridade de consciência,
a merecer sua inclusão no rol dos direitos fundamentais.
Atente-se ao fato de que embora o Ministro Marco Aurélio não te-
nha inserido, na conclusão do voto, as disposições relativas à liberdade de
consciência e de crença (art. 5º, inc. VI) e à proibição do estabelecimento da
religião (art. 19, inc. I), considerou, como evidenciado na seção anterior, a
pertinência de sua aplicação ao julgamento do pedido. O ministro já havia
esclarecido antes que a questão posta na ação consistia em saber se a crimi-
nalização da interrupção da gravidez do feto anencefálico se coadunava ou
não com a Constituição, no que que se refere aos princípios mencionados em
sua decisão, incluindo-se a garantia do Estado laico765. No estudo sobre o
direito ao aborto nos Estados Unidos (segunda parte da obra), foi salientada
a mesma incongruência, na medida em que os juízes, ao julgar o caso Roe v.
Wade, bem como os casos anteriores, afetos ao direito à contracepção, não
aplicaram, expressamente, as cláusulas da liberdade religiosa. Mas, como
defendido por muitos intérpretes, o envolvimento de tais preceitos encontra-
-se enraizado na própria argumentação dos juízes. No Brasil, o mesmo ocor-
reu no caso da ADPF 54, pois muito se falou sobre a incompatibilidade da
proibição da conduta, objeto da ação, com os requisitos do Estado laico.
Diante de tão longo espaço concedido a tal premissa do regime democrático,

de autodeterminação sexual e reprodutiva no art. 5º, caput, da Constituição, no qual as


dimensões da vida, da liberdade e da igualdade estão vinculadas.
764
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Marco
Aurélio, ADPF 54, fl. 1522.
765
Ibidem, fl. 1487.
390 Teresinha Inês Teles Pires

só se pode concluir que a decisão corroborou a tese de que a proteção do


direito à vida do feto anencefálico importaria, se legitimada, em violação aos
princípios da liberdade religiosa.

8.4 UM OLHAR CRÍTICO SOBRE AS DIRETRIZES


METODOLÓGICAS INDICADAS NO JULGAMENTO
EM VISTA DA ANÁLISE DO DIREITO AO ABORTO

É observável nos votos dos juízes que aderiram à tese da atipicida-


de do fato, inclusive, o do ministro relator, uma incursão tangencial nas es-
tratégias de argumentação que podem surgir em uma futura apreciação do
tema do aborto, se for o caso. Em todos os votos, ao se cogitar o enfrenta-
mento da questão do direito à vida fetal, fora do contexto da anencefalia,
introduziu-se a ideia de que a autonomia procriativa da gestante pode ser
afirmada com a utilização do princípio da proporcionalidade e por meio da
técnica da ponderação dos direitos em situação de colisão.
O Ministro Marco Aurélio esclareceu, satisfatoriamente, que o feto
anencefálico não possui direito à vida, razão pela qual não seria o caso de
aplicar-se o princípio da proporcionalidade no julgamento da ADFP 54.
Mesmo se posicionando de tal maneira, o ministro avaliou, em seu dizer, por
respeito “às opiniões divergentes”, como seria possível pacificar o assunto
na hipótese de se aceitar a tese contrária. E a resposta não foi outra senão a
de que seria necessário, então, “definir” qual “a melhor ponderação dos valo-
res em jogo”, ou seja, se seria o caso de se restringir os direitos das mulheres
– “dignidade”, “liberdade”, “autodeterminação”, “saúde”, “direitos sexuais e
reprodutivos”, ou se seria o caso de se declarar a impossibilidade da “preser-
vação do feto anencefálico” em face da primazia de outros interesses. Se-
gundo Marco Aurélio, nesta ponderação de valores, o direito à vida fetal
teria que ser preterido em favor do direito de decisão da gestante, e a solução
do caso não seria, portanto, diferente766.
Por óbvio, a estratégia adensada pelo ministro remete diretamente
ao tema do aborto. Marco Aurélio antecipou, com suas colocações, a ideia de
que, em outra situação na qual não se estaria diante de um fato atípico, à luz
dos arts. 124 a 128 do Código Penal, mas da efetiva análise da prática do
766
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Marco
Aurélio, ADPF 54, fls. 1511 e 1522.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 391

aborto por vontade da mulher, a mesma metodologia deve ser utilizada. Isto
não quer dizer que o ministro tenha atribuído ao feto não portador de anence-
falia, em quaisquer circunstâncias, o direito constitucional à vida. No entan-
to, está explícito em seus argumentos que o princípio da proporcionalidade
seria igualmente o caminho correto para se julgar, em geral, a legitimidade
da tutela da vida pré-natal.
Permite-se sugerir que a descriminalização do aborto, em confor-
midade com o estágio da gestação, seria possível em duas vias: a primeira
por meio da tese de que a vida do embrião não constitui bem jurídico tutelá-
vel, salvo a partir, por exemplo, do aparecimento das funções neurológicas,
caso em que o princípio da proporcionalidade não seria aplicável; a segun-
da via por meio da sobreposição dos direitos das mulheres, ainda em face
do reconhecimento da importância da vida do embrião, desde a nidação,
por exemplo, e, neste caso, com fundamento no princípio da proporcionali-
dade. Não se vislumbra motivo para não se optar pela primeira via, o que
pode ser consistentemente estabelecido através da utilização do princípio
da razoabilidade, portanto, do devido processo legal substantivo e da liber-
dade de consciência e de crença. As ambivalências conceituais, notada-
mente explicitadas nas considerações dos ministros sobre a técnica da pro-
porcionalidade, bem mostram o maior acerto de se tomar por guia a estraté-
gia que ora se defende.
Com efeito, a Ministra Rosa Weber enfatizou o esquema de análise
apresentado na petição inicial e nas alegações finais da arguição, no sentido
de que o julgamento precisava fundamentar-se em uma das seguintes teses: a
atipicidade do fato, a criação de mais uma excludente de ilicitude, e/ou a
proteção da dignidade, da liberdade, da sáude e dos direitos reprodutivos da
mulher. A ministra posicionou a utilização do princípio da proporcionalidade
na abordagem da terceira tese, ou seja, na definição do conteúdo da dignida-
de e seus requisitos na esfera dos direitos reprodutivos, em sua interação
com o conceito jurídico de vida. Defendendo a independência do Direito em
relação à ciência médica, declarou que o conceito de vida estabelecido no
art. 5º, caput, da Constituição não se estende ao feto anencefálico, razão pela
qual proibir a mulher de decidir livremente interromper a gestação ou não,
em tal hipótese, viola os preceitos da dignidade e da liberdade767.
Observe-se que a ministra refutou a tese de que o feto anencefálico
tem direito à vida e, ao mesmo tempo, defendeu o envolvimento do princípio
767
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio. j.
em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Rosa Weber,
ADPF 54, fls. 1547, 1557-8 e 1563-5.
392 Teresinha Inês Teles Pires

da proporcionalidade na decisão do caso, tendo em vista que, na sua visão, a


vida do feto, mesmo sendo “precária”, colide com os direitos da mulher. A
vida do feto é posta, aqui, mais como um valor a ser respeitado pelo Estado
em grau máximo, na medida em que outros direitos mais importantes não
sejam violados, o que se coaduna com o parâmetro da otimização dos direi-
tos à luz da ponderação dos valores. No aspecto metódico, o voto de Rosa
Weber diverge parcialmente do voto do Ministro Marco Aurélio, já que para
este a exclusão do feto anencefálico da proteção constitucional da vida torna
dispensável a estratégia da ponderação.
Lembre-se de que, segundo Dworkin, o respeito a ser conferido ao
valor intrínseco da vida, questão essencial na abordagem do direito ao abor-
to, é algo passível de ser definido de forma distinta em cada estágio do pro-
cesso gestacional. Em se adotando o critério da viabilidade para a sobrevi-
vência extrauterina, o valor da vida fetal, nos primeiros trimestres do seu
desenvolvimento, não pode ser contraposto à autonomia procriativa da mu-
lher. Na linguagem de Dworkin, o feto não merece tutela constitucional até
alcançar e estágio da viabilidade porque seus interesses ainda não constituem
valor ou bem jurídico que deva ser inserido na esfera da autoridade coativa
do Estado. Tal entendimento ajuda a compreender que, em todas as hipóteses
em que a Corte afirma não haver justificativa para a intervenção do Estado
nas decisões individuais de natureza ética, não há lugar para o apelo à exis-
tência de colisão de direitos. Daí se infere que, ao contrário da linha de racio-
cínio da Ministra Rosa Weber, o caso do feto anencefálico deveria ser solu-
cionado, como de fato o foi, sem aplicar o método da proporcionalidade e da
ponderação de valores.
Em outras palavras, ao se concluir pela não existência de interesse
público na proteção da vida fetal, em circunstâncias específicas, se declara,
no mesmo passo, a inadequabilidade do princípio da proporcionalidade. No
que se refere ao aborto, em se aceitando que a tutela da vida não se estende à
vida intrauterina antes de determinado ponto de sua formação neurológica,
por exemplo, não se pode inverter o raciocínio e advogar a existência de
colisão de direitos. A metodologia de Dworkin, assentada no princípio da
razoabilidade como uma derivação da cláusula do devido processo legal, é
mais coerente e afasta a discussão da técnica da ponderação dos valores. O
princípio da proporcionalidade, se utilizado pelo Supremo Tribunal na análi-
se do direito ao aborto, tendência explicitada na ADPF 54, pode até conduzir
à sua descriminalização, mas pode também resultar na prevalência da tese
contrária. Falar em colisão de valores ou princípios fundamentais torna elás-
tico o balanceamento dos interesses envolvidos, sendo aceitável atribuir
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 393

maior ou menor peso a um ou outro de acordo com as convicções pessoais


dos juízes.
O voto da Ministra Rosa Weber, particularmente, demonstra o
quanto a retórica do princípio da proporcionalidade pode conduzir a interpre-
tações várias ao se tentar definir o âmbito da prevalência de um ou de outro
princípio supostamente colidentes. Diz-se isso porque a ministra, além de ter
defendido que o caso do feto anencefálico deveria ser solucionado pela téc-
nica da ponderação, postulou que a mesma técnica não seria eficaz para o
caso do aborto. Na primeira hipótese, sustentou a ministra, é preciso sopesar
a integridade física e psicológica da gestante e a “vida precária” do feto, no
que seria forçoso concluir pela primazia da saúde da gestante. Daí, ao seu
ver, o cabimento do manejo do princípio da proporcionalidade. Na hipótese
do aborto, diferentemente, acredita Rosa Weber que não seria possível tal
manejo, considerando a precedência do valor da vida do feto, não se justifi-
cando, portanto, a omissão do Estado na sua tutela768. Dá-se a entender, as-
sim, que não há qualquer espaço para a garantia da autonomia procriativa da
gestante, sendo absoluto o direito à vida do nascituro, nas hipóteses que se
enquadram no crime do aborto, ao ponto de sequer se cogitar em colidência
de interesses. Simplesmente, seguindo a regra da proporcionalidade, decla-
rar-se-ia que o único direito em questão é a vida do nascituro, e que, portan-
to, não é o caso de balancear valores e princípios, impondo-se à gestante o
dever de levar a gravidez a termo.
A preocupação dos juízes em afastar a hipótese do feto anencefáli-
co da categoria jurídica do aborto foi tão grande que se apelou a este argu-
mento sem a devida cautela com a preservação de um conteúdo unitário aos
preceitos constitucionais. O Ministro Joaquim Barbosa, por exemplo, fez
uma afirmação inapropriada, em sua perspectiva de atribuir ênfase à autode-
terminação da gestante, no contexto da ADPF 54. Sustentou o ministro que o
aborto somente se caracteriza quando o resultado da conduta é “a subtração
da vida do feto”, e que, se assim o fosse, no caso, haveria justificativa para
proibir a mulher de interromper a gestação, mesmo em se tratando de feto
inviável769.
Tal raciocínio, mencionado rapidamente no voto de Joaquim Bar-
bosa, e mais desenvolvido no voto de Rosa Weber, sob o prisma do princípio
da proporcionalidade, deixa de lado todo o esforço doutrinário destinado a
768
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Rosa We-
ber, ADPF 54, fls. 1577, 1581, 1583 e 1585.
769
Ibidem, Joaquim Barbosa, ADFP 54, fls. 1601-3.
394 Teresinha Inês Teles Pires

delimitar o alcance do direito à vida prescrito no art. 5º, caput, da Constitui-


ção. Como se viu em capítulo anterior da tese, a melhor compreensão indica
que se trata de um direito que não se estende ao nascituro, porque a ele não
se confere o mesmo estatuto jurídico conferido à pessoa humana. O próprio
silêncio do constituinte originário revela ser esta a interpretação correta, o
que foi endossado pelo Supremo Tribunal no julgamento da ADIn 3510.
Assumindo-se tal assertiva, é plausível postular que a circunstância da invia-
bilidade fetal, por motivo de má formação do córtex cerebral, não é a única
apta a justificar a não interferência do Estado na decisão da gestante. Vê-se,
assim, que a pura e simples invocação do princípio da proporcionalidade
promove um desvio na abordagem das categorias envolvidas no caso concre-
to, cuja centralidade deveria residir no caráter substantivo dos princípios
constitucionais.
Seria muito mais consentâneo, pensando-se na problemática do
aborto, asseverar, à maneira do que foi feito pela Suprema Corte norte-
-americana, no caso Roe v. Wade, que uma lei excessivamente restritiva, em
relação à matéria, fere a Constituição porque esta não consagra a tese de que
a tutela da vida tem início no momento da concepção. Tal entendimento,
como se estudou anteriormente, é sustentável à luz do padrão da razoabilida-
de das políticas do Estado e da cláusula do devido processo legal, em sentido
substantivo. No Brasil, levando-se em conta a propensão da Corte à utiliza-
ção do princípio da proporcionalidade, no mínimo não seria o caso de se
afirmar, em bases sistêmicas, que a abordagem do direito à interrupção da
gravidez do feto compatível com a vida não traga consigo a necessidade de
balancear os interesses do feto e os interesses das mulheres. As ponderações
dos ministros, anteriormente pinceladas, são, portanto, incompatíveis com a
norma positivada no art. 5º da nossa Constituição.
É curioso como os ministros, em geral, constroem seus argumentos
com suporte no princípio da razoabilidade e nas premissas do devido proces-
so legal substantivo, sem que isto seja expressamente incorporado aos seus
votos. O Ministro Joaquim Barbosa forneceu boa contribuição no direcio-
namento dos argumentos da Corte, ao acentuar os dois ângulos sob os quais
o problema deveria ser resolvido, o ângulo do “respeito à liberdade individu-
al”, sendo a autodeterminação da gestante uma de suas manifestações, e o
ângulo dos distintos graus de tutela da vida humana770. Se o devido processo
legal configura um padrão essencial na legitimação da autoridade do Estado

770
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Joaquim
Barbosa, ADPF 54, fl. 1600.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 395

de restringir os direitos de liberdade, é intuitivo sua aplicabilidade em qual-


quer argumentação que traga, em seu cerne, a proteção da independência
ética da mulher na esfera reprodutiva. Cuida-se de averiguar se é legítimo
obrigar a mulher a levar a gestação a termo, seja no caso do feto anencefáli-
co, seja no caso da prática do aborto na forma tipificada no Código Penal. A
noção da razoabilidade da ação do Estado, sob o prisma da proibição de res-
trições indevidas ao exercício dos direitos fundamentais, deveria ser a pri-
meira estratégia a ser inserida na investigação do assunto, sem necessidade,
inclusive, de mesclá-la com outros postulados, como o da proporcionalidade.
Aliás, pode-se concordar com a leitura de Vírgílio Afonso, segun-
do a qual o Supremo Tribunal não utiliza o princípio da proporcionalidade
de maneira “sistemática”, pois, regra geral, apela-se mais diretamente aos
requisitos do princípio da razoabilidade. Como se sabe, o segundo princípio
não se sedimenta na ideia da colisão de direitos, mas antes na definição, em
cada caso concreto, do âmbito de aplicação da cláusula do devido processo
legal. Virgílio esclarece que o Supremo Tribunal não costuma explicitar, em
suas decisões, qual o fundamento constitucional do princípio da proporcio-
nalidade e, quando o faz, apela, na maioria das vezes, ao significado substan-
tivo da cláusula do devido processo legal, na forma concebida no art. 5º, inc.
LIV, da Constituição. Leciona, por fim, o autor que a vinculação entre o
princípio da razoabilidade e o devido processo legal, em sentido substantivo,
está correta, o que torna ainda mais evidente sua não identidade com o mé-
todo da proporcionalidade. Assim, todas as vezes que o Supremo Tribunal
apelar a este método deve-se entender que se está fazendo menção aos testes
da “razoabilidade”771, constatação nitidamente observável no julgamento da
ADPF 54.
Como se viu, os ministros não invocaram expressamente, no caso,
a cláusula do devido processo legal, bem como o princípio da razoabilidade,
embora o envolvimento dos dois padrões esteja implicitamente pressuposto
ao longo dos argumentos ali desenvolvidos com vistas ao reconhecimento da
autonomia decisória da gestante. Especialmente os votos dos Ministros Mar-
co Aurélio, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia bem apontam tal direção.
A Ministra Cármen Lúcia apela aos princípios de Rawls da justiça
como equidade e do respeito aos “juízos de consciência”, defendendo a ilegi-
timidade da imposição de convicções morais não fundamentadas em tais

771
SILVA, Virgílio Afonso. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais 798 (2002),
23-50. p. 30-2. Em sentido contrário, ver BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da
proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos
fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2003. p. 103.
396 Teresinha Inês Teles Pires

princípios. Pronuncia, assim, a utilização do conceito de razoabilidade, em


sentido genuíno, como parâmetro para a constitucionalidade das decisões
que restringem as liberdades básicas. Do que se infere o reconhecimento da
aceitabilidade das convicções pessoais da gestante, sendo sua decisão no
sentido de interromper ou de não interromper a gestação do feto anencefáli-
co. Entretanto, logo em seguida, afirma a ministra que o conflito entre o
direito à vida do feto e o direito da mulher à saúde e à autonomia da vontade
há que ser resolvido por meio do princípio da “ponderação de valores”, con-
siderando que as normas penais em questão não preveem expressamente o
direito reivindicado na arguição772.
No mesmo sentido, o Ministro Luiz Fux sustentou que o caso po-
deria ser facilmente decidido à luz do princípio da proporcionalidade, enten-
dendo não haver dúvida quanto à proeminência da proteção da saúde física e
mental da mulher em relação à vida do feto anencefálico. Chegou ao ponto
de acentuar não ser justo, “à luz do princípio da razoabilidade sobre o im-
pacto da proporcionalidade”, condenar criminalmente a mulher nas circuns-
tâncias apresentadas no caso, em uma posição claramente filiada à identifi-
cação entre os dois princípios, razoabilidade e proporcionalidade773.
Em contraposição à preocupação esboçada pela Ministra Cármen
Lúcia, no tocante ao cuidado que se deve ter com o respeito às normas posi-
tivadas no Código Penal, argumente-se que o conteúdo do direito à vida deve
ser buscado na Constituição, e não no Código Penal, para que se estabeleça
se os dispositivos do segundo se compatibilizam com os princípios funda-
mentais, independentemente, em relação ao crime do aborto, das hipóteses
ali tipificadas e punidas. Pressupõe-se, por óbvio, em tal assertiva, o enten-
dimento de que a interpretação das leis tem como principal critério não a
vinculação à intenção original do legislador, em sentido estrito, ou ao texto
legal, e sim a necessidade de sua atualização normativa, do ponto de vista do
significado unificante da dignidade humana. O fato de a norma penal não
dispor sobre a hipótese do feto anencefálico, no que concerne ao crime do
aborto, não impede que ela seja declarada inválida774.

772
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Cármen
Lúcia, ADPF 54, fls. 1632-4 e 1651.
773
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54/DF. Relator Ministro Marco Aurélio.
j. em 12.04.2012. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 15 nov. 2014. Luiz Fux,
ADPF 54, fls. 1617-8 e 1621-2.
774
Na visão de DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge/Massachusetts:
Harvard University Press, 1977/1978. p. 40, dizer o contrário importaria no retorno à re-
gra enunciada na doutrina positivista de Hart, segundo a qual para se considerar uma lei
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 397

A ideia da unidade da Ética, da Moral e do Direito, formulada por


Dworkin, é o ponto de partida, na perspectiva do presente estudo, para a
análise da constitucionalidade das regras que punem a prática do aborto,
levando-se em conta as exigências impostas pelos dois princípios da digni-
dade apresentados pelo autor, o da autenticidade e o do respeito próprio.
Como se viu antes, Dworkin propõe um método de interpretação jurídica que
possibilite o alcance de uma decisão correta no sentido de se delimitar a
esfera da liberdade do indivíduo de tomar suas decisões éticas, de acordo
com os elementos concretos da situação específica por ele vivenciada. Seria,
então, o caso de definir se a antecipação terapêutica do feto anencefálico se
comporta ou não na esfera da independência ética ou, em termos jurídicos,
na esfera da liberdade veiculada pelas cláusulas do devido processo legal e
da liberdade de consciência e de crença.
Em suma, a desnecessidade do princípio da proporcionalidade é
operacional quando se considera que a conduta não se enquadra na tipifi-
cação normativa dos arts. 124 a 128 do Código Penal, como mostrou o
Ministro Marco Aurélio na ADPF 54. E é também operacional quando se
está diante de uma conduta em relação à qual não se possa afirmar a tese
da atipicidade, desde que sejam utilizados os critérios hermenêutic os, em
seu significado substantivo, já construídos na doutrina brasileira e na
jurisprudência, nacional e internacional, sobre os contornos da tutela da
vida pré-natal.

8.5 CONCLUSÃO PARCIAL

Foi possível demonstrar, neste capítulo, que o modelo de argumen-


tação que se desenvolve na prática jurisdicional do Supremo Tribunal Fede-
ral, nos assuntos reprodutivos, se direciona ao envolvimento, em caráter
prioritário, das cláusulas do devido processo substantivo e da liberdade de
consciência e de crença. Viu-se que as restrições legais ao direito de inter-
romper a gestação, particularmente, em se tratando de feto incompatível com
a vida, não podem ser legitimadas, se implicarem em violação aos preceitos
constitucionais do livre exercício da consciência e da proibição do estabele-
cimento da religião. O parâmetro da razoabilidade, no que concerne às vi-
sões morais sobre o valor intrínseco da vida, está naturalmente vinculado ao
padrão da laicidade, o que restou coerentemente estabelecido no julgamento

como sendo válida é suficiente que ela tenha sido estabelecida por uma “instituição com-
petente” para fazê-lo.
398 Teresinha Inês Teles Pires

do caso. Do mesmo modo, a cláusula da igual proteção perante a lei também


desempenhou função importante, por avançar a aplicabilidade da categoria
do pluralismo moral e político à análise das leis cujo conteúdo atinge, em
geral, a autonomia procriativa da mulher.
Verificou-se, por fim, que a decisão da Corte não se fundamentou,
exclusivamente, na inviabilidade do feto anencefálico, mas também na tese
de que o dever de respeito à dignidade moral do nascituro, desde o momento
da concepção ou da nidação, não se ampara na proteção conferida pelo art.
5º, caput, da Constituição. A redução da tutela da vida potencial intrauterina,
efetivada no julgamento da ADPF 54, adensa a discussão sobre a legalização
do aborto, acentuando a necessidade de se definir um critério jurídico que
delimite, em conformidade com o estágio da gestação e à luz do princípio da
razoabilidade, o alcance da autonomia procriativa da mulher e dos legítimos
interesses do nascituro.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 399

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve por propósito avançar uma interpretação sistêmica


sobre o direito ao aborto, a partir da intersecção entre os postulados da doutri-
na moral e política dos referenciais teóricos, que se optou por adotar, e o signi-
ficado de determinadas cláusulas constitucionais de direitos fundamentais.
Decidiu-se por aprofundar a composição jurisdicional do tema, na forma efeti-
vada no modelo norte-americano, na medida em que suas estratégias de argu-
mentação fornecem suporte à investigação desenvolvida ao longo de toda a
obra. Por fim, pressupondo-se as conclusões até então obtidas, visou-se em-
preender um estudo capaz de indicar a melhor resposta a ser conferida ao pro-
blema do aborto no sistema brasileiro, à luz do conteúdo da integridade dos
princípios e garantias individuais enunciados na Constituição de 1988.
No primeiro capítulo, foi demonstrado que a justificação do direito
ao aborto pode ser estabelecida com base no critério de Rawls da razoabili-
dade das concepções de bem e no critério de Dworkin da unidade do valor.
Em relação ao primeiro, a questão foi posta sob o ponto de vista do signifi-
cado do princípio do pluralismo ideológico, moral e político; em relação ao
segundo, a questão se inseriu na análise dos requisitos do princípio da digni-
dade humana. Conseguiu-se obter, em termos gerais, importantes inferências
capazes de direcionar uma correta definição dos limites da tutela da dignida-
de da vida nascitura, por meio da vinculação entre as categorias morais, aci-
ma invocadas, e as categorias constitucionais da liberdade, da igualdade e,
especificamente, da liberdade de consciência e de crença. Por fim, compro-
vou-se a hipótese de que a admissibilidade moral do aborto é matéria que se
comporta no exercício do poder revisional dos juízes, tendo em vista a pers-
pectiva da proteção dos interesses das minorias. Neste aspecto, como escla-
recido, a utilização dos “testes” de constitucionalidade, derivados dos princí-
pios fundamentais, configura metodologia adequada para o reconhecimento
da autonomia procriativa da mulher.
Ao se investigar, no capítulo 2, a dimensão jurídica do princípio da
dignidade, evidenciou-se que a tese de Dworkin da unidade entre a moral,
400 Teresinha Inês Teles Pires

em sentido amplo, a política e o direito é passível de ser operacionalizada


com apoio na própria linguagem textual das cláusulas de direitos fundamen-
tais. Comprovou-se, assim, que a proteção constitucional da vida humana
não se aplica ao nascituro nos mesmos parâmetros em que se aplica à pessoa,
após o nascimento com vida. Mais uma vez, o fio condutor de tal conclusão
foi outro argumento de Dworkin, segundo o qual a discussão sobre o aborto
não se fundamenta na equiparação do nascituro à pessoa humana, e sim no
valor intrínseco da vida, considerada em si mesma. O acerto desta resposta
permitiu sustentar que o paradigma do início da formação individual do có-
digo genético no momento da fertilização do óvulo, presumido pela biologia,
não é determinante sob o prisma da interpretação constitucional. A partir daí,
solidificou-se a convicção de que a preservação da dignidade do nascituro
deve ser assegurada somente nos estágios avançados de sua evolução orgâ-
nica, considerando que ele passa, então, a possuir interesses morais próprios
ao ponto de merecer, inclusive, a tutela de sua vida.
Outros aspectos importantes da dignidade foram inseridos na esfera
da análise da constitucionalidade do direito ao aborto, como a abordagem do
princípio da igualdade de gênero. Verificou-se a pertinência da inclusão no
adensamento do tema, em caráter suplementar, dos pressupostos da doutrina
feminista e seu relato histórico sobre o processo de subordinação sociopolíti-
ca da mulher, constatando-se que tal circunstância reduziu o seu efetivo
exercício das prerrogativas da cidadania. Não foi difícil defender a validade
do envolvimento do princípio da igual proteção perante a lei, na dimensão do
gênero, nos padrões de concretização do direito ao aborto, por meio da de-
monstração de que a proibição de sua prática atinge, de maneira muito mais
gravosa, a vida da mulher do que a vida do homem. Por outro lado, conse-
guiu-se explicitar que a análise das classificações de gênero, à luz da igual
proteção perante a lei, precisa ser conectada à categoria da liberdade enquan-
to autonomia moral e, especificamente, procriativa.
Além disso, buscou-se avançar a centralidade da hipótese de Dworkin
no sentido de que o direito ao aborto está protegido pelas cláusulas constitucio-
nais da liberdade religiosa. Ao assentar que o debate sobre o aborto diz respeito
à questão do valor intrínseco da vida humana, o autor construiu, de forma eficaz,
um conceito abrangente de religião, que acolhe todos os assuntos relacionados
ao significado da vida em si mesmo e permite a equiparação entre as doutrinas
tradicionalmente religiosas, teístas ou não teístas, e as doutrinas laicas. Compro-
vou-se, em termos gerais, que a mesma tese é aplicável à análise jurídica sobre o
aborto e que a autonomia da consciência é uma categoria que compõe o conteú-
do do princípio da dignidade humana. No mesmo passo, explicou-se que as
cláusulas religiosas incluem diversos aspectos da autonomia procriativa. Estas
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 401

primeiras conclusões, obtidas já nos capítulos iniciais, no corpo da investigação


teórica acerca das projeções da dignidade, assumiram crucial importância, tendo
em vista que seus pressupostos foram reafirmados, em seguida, no estudo da
constitucionalidade do direito ao aborto tanto no sistema norte-americano quan-
to no sistema brasileiro.
Por meio da análise da regulamentação do aborto nos Estados Uni-
dos da América, apresentada na segunda parte da obra, alcançou-se o propó-
sito de detalhar o desenvolvimento, na prática jurídica do país, do significa-
do das cláusulas do devido processo legal, da igual proteção perante a lei e
da liberdade religiosa. Viu-se, inicialmente, que a utilização do devido pro-
cesso legal, em sentido substantivo, deu origem ao reconhecimento de liber-
dades não enunciadas na Constituição, possibilitando, assim, a criação de
uma metodologia de análise, segundo a qual alguns direitos são fundamen-
tais por estarem envolvidos no conteúdo daqueles direitos cuja proteção é
expressamente assegurada. Como se explicitou, a expansão do direito à pri-
vacidade, desde a abordagem do tema da contracepção até o tema do aborto,
lançou padrões determinantes para a defesa de uma interpretação constitucio-
nal da categoria da autonomia procriativa.
Mostrou-se, ainda, que a decisão Roe v. Wade, que descriminalizou
o aborto no país, em nível federal, incorporou em seus fundamentos a tese de
Dworkin, segundo a qual o feto, mesmo não sendo pessoa e não estando
protegido pelo direito constitucional à vida, pode possuir interesses passíveis
de tutela, sendo esta a questão que deve ser esgotada e definida na aborda-
gem do tema do aborto. Como se viu, para aplicar o princípio do devido
processo legal e do direito à privacidade à garantia da autonomia procriativa
da mulher, é preciso considerar os argumentos que afirmam os interesses do
nascituro. Somente assim, é possível construir uma regra que delimite, em
conformidade com o estágio da gestação, a esfera da independência ética e a
esfera do poder coativo do Estado, na tentativa de escapar à crítica, segundo
a qual qualquer parâmetro que seja adotado resulta em uma posição, irreme-
diavelmente, arbitrária.
Por outro lado, comprovou-se que a conexão entre o devido pro-
cesso legal substantivo e o direito à privacidade, sem a utilização de uma das
cláusulas específicas que garantem a liberdade de escolha da gestante, tal
como operacionalizado no caso Roe v. Wade, terminou por configurar um
esquema não suficientemente consistente. O que resultou na legitimação
judicial de diversas restrições impostas por leis estaduais ao efetivo exercício
do direito ao aborto. O padrão do escrutínio rígido perdeu a estabilidade que
lhe era própria quando utilizado nos casos julgados, exclusivamente, à luz da
cláusula da liberdade veiculada pela Décima Quarta Emenda à Constituição.
402 Teresinha Inês Teles Pires

A análise feita no Capítulo 5 do trabalho, em relação ao conteúdo das


cláusulas da liberdade religiosa, demonstrou a pertinência de sua aplicação con-
junta à regulamentação do direito ao aborto. Os mecanismos estabelecidos pela
Corte estadunidense, para incluir a proteção conferida por aquelas cláusulas no
significado substantivo do devido processo legal, resultaram na ampliação da
categoria da liberdade de consciência. No que pese a não invocação direta da
liberdade religiosa, no julgamento dos casos relacionados ao aborto, mostrou-se
que o direito à privacidade, na seara reprodutiva, pode ser compreendido en-
quanto expressão da autonomia da consciência, questão que perpassou a argu-
mentação dos juízes em alguns dos principais casos analisados.
Abriu-se margem, assim, para reafirmar o entendimento de Dwor-
kin de que à mulher deve ser assegurado o direito de definir, com base em
suas próprias convicções éticas, o valor a ser atribuído ao nascituro em seus
estágios iniciais de desenvolvimento. Verificou-se, na mesma direção, que as
exigências do secularismo e da neutralidade das leis retiram a legitimidade
do Estado de restringir a prática do aborto tendo por premissa uma visão
particular sobre o significado intrínseco da vida. Neste aspecto, o respeito ao
pluralismo moral e religioso adiciona elementos importantes à categoria da
autonomia procriativa, por envolver o princípio da igual proteção perante a
lei, no que se refere ao igual reconhecimento das doutrinas morais razoáveis.
Em linhas gerais, a segunda parte do estudo demonstrou a consistência
da hipótese levantada já na primeira parte, no sentido de que o direito ao aborto
está implicado na cláusula da liberdade de consciência. Ou seja, o que se aden-
sou, de início, teoricamente, restou sedimentado no contexto da prática jurisdi-
cional da Suprema Corte norte-americana, acreditando-se que o trabalho analíti-
co ali desenvolvido, no tocante ao alcance das cláusulas da liberdade religiosa,
muito tem a acrescentar ao debate constitucional sobre o aborto no Brasil.
Na terceira parte, manteve-se o foco na integridade dos princípios
adotados por nossa Constituição em sua aplicação ao tema investigado. Op-
tando-se pela defesa do método de argumentação jurídica, sustentado no
princípio da razoabilidade, elaborou-se uma resposta hermenêutica com fun-
damento nas cláusulas do devido processo legal e da liberdade de consciên-
cia e de crença. Teve-se a oportunidade de elucidar que a natureza substanti-
va do devido processo, particularmente, na forma concebida pelo direito
norte-americano, foi incorporada à Constituição brasileira, configurando
estratégia correta para o exercício do controle de constitucionalidade das
leis. Foi possível, assim, avançar a hipótese de que, à luz do princípio da
dignidade humana, as categorias da liberdade e da igualdade permitem cons-
truir uma solução coerente para o problema do aborto sem o apelo às técni-
cas da proporcionalidade e da colisão de direitos.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 403

O ponto de partida para se encontrar a resposta correta, no caso, é


compreender que os distintos estágios da gestação impõem, igualmente,
distintos parâmetros de julgamento, haja vista que os interesses fetais não
são tuteláveis na mesma medida desde a concepção ao parto. A garantia da
autonomia procriativa da gestante não exige que lhe seja conferido o direito
de abortar durante todo o período gestacional, mas apenas que lhe seja con-
ferido tempo suficiente para a tomada de uma decisão refletida. Aceitando-se
tal argumento, é intuitivo entender que a questão não se estrutura na forma
de um conflito de direitos a serem submetidos ao princípio da ponderação. O
direito ao aborto, para ser reconhecido, requer uma interpretação honesta
sobre o direito constitucional à vida, que, como se viu, não legitima a prote-
ção obrigatória da vida pré-natal desde o instante da fertilização do óvulo.
Em se delimitando que o nascituro não é titular do direito à vida, a afirmação
da autonomia procriativa da mulher, sob a moldura da razoabilidade, se des-
sume dos preceitos fundamentais que se apoiam na dignidade humana, sem
que se tenha que falar em ponderação ou otimização dos seus direitos.
Ao adensar o significado da categoria da liberdade de consciência e de
crença, na Constituição e na doutrina brasileiras, verificou-se como o padrão da
laicidade, pressuposto fundamental do nosso ordenamento jurídico, estabeleceu
diretrizes importantes para se avaliar o nível de aceitabilidade da influência dos
valores religiosos na elaboração das leis. Defendeu-se, ainda, a singularidade da
liberdade de consciência enquanto um princípio genérico de proteção da inde-
pendência ética e fonte originária da liberdade religiosa.
Sendo assim, a laicidade não compete com a tolerância à religião. Do
mesmo modo, a utilização do padrão de Rawls da razoabilidade das doutrinas
morais não privilegia as visões seculares, mas antes as equipara às visões reli-
giosas, no que concerne à sua igual consideração no espaço público. Esta direti-
va é apropriada e torna possível o aperfeiçoamento dos mecanismos constitucio-
nais pertinentes para se interpretar o fenômeno contemporâneo do ressurgimento
da religião à luz dos referenciais seculares da democracia. Não se pode conside-
rar tal fenômeno como uma mudança de paradigma, ou um rompimento com os
requisitos do Estado laico, e sim como uma circunstância que exige a revisão ou
atualização do seu significado, o que deve partir do adensamento do conteúdo
jurídico da liberdade de consciência.
Sob a compreensão de que o Estado laico permanece sendo um sus-
tentáculo do sistema democrático brasileiro, procurou-se, assim, dimensionar a
tese da inconstitucionalidade das normas que punem o aborto no país, tendo
por referência a aplicação à matéria das cláusulas da liberdade de consciência
e de crença. A resistência parlamentar à alteração do Código Penal, no que diz
respeito à criminalização do aborto, como se analisou, é, essencialmente, mar-
404 Teresinha Inês Teles Pires

cada pela presença maciça das bancadas religiosas à frente do debate. Por isto,
a invocação do princípio da independência ética, no caso, tem a função de
apresentar um contraponto à total desconsideração, no cenário político, dos
preceitos constitucionais que delimitam o direito à vida.
A revisão das regras legislativas em questão deve acolher, assim, o ar-
gumento de Dworkin, segundo o qual a importância intrínseca, ou sagrada, da
vida humana, é um assunto afeto à autonomia da consciência. No Brasil, o direito
ao aborto pode ser delineado, como se propôs, com a permissão de sua prática ao
menos até 14 (quatorze) semanas do período gestacional, por tratar-se de tempo
suficiente para que a mulher tome sua decisão e considerando-se, ainda, que o
feto está longe de alcançar alguma possibilidade de sobrevivência autônoma.
A análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510, que auto-
rizou a utilização científica de células-tronco embrionárias, demonstrou que
o Supremo Tribunal Federal deu início à concretização do direito à vida, em
relação à vida pré-natal, criando uma concepção jurisdicional sobre o assun-
to, que deve conduzir a apreciação da controvérsia em torno do aborto. Em
linhas gerais, a decisão da mencionada Ação rejeitou a tese de que o início
da tutela da vida ocorre no momento da fertilização do óvulo e declarou que,
antes do nascimento com vida, não há como invocar a titularidade de direitos
fundamentais, mas apenas os componentes da dignidade humana. Sustentou-
-se que a dignidade intrínseca da vida não é suficiente para restringir a auto-
nomia procriativa e familiar das pessoas. O julgamento do caso avançou,
igualmente, o envolvimento da cláusula da liberdade de consciência e de
crença na abordagem constitucional do direito ao planejamento reprodutivo,
ou familiar. Outro aspecto importante desta decisão, sob o prisma da argu-
mentação jurídica, reside na não adoção da tese da colisão de direitos e na
não aplicação dos princípios da proporcionalidade e da ponderação.
Em síntese, ao acolher a liberdade de decisão dos genitores, em re-
lação ao destino dos seus embriões congelados, o julgamento da ADIn 3510
propiciou, pela intermediação do direito ao planejamento familiar e da liber-
dade religiosa, importante evolução na busca de um conteúdo constitucional
para a categoria da autonomia procriativa. O Tribunal assumiu a compreen-
são no sentido de que a livre decisão quanto ao ato de procriar é uma especi-
ficação da dignidade humana, não podendo, portanto, estar sob o controle do
Estado, o que configuraria intervenção pública desarrazoada. Como se de-
monstrou, o padrão de análise adotado na solução do caso, sustentado no
método da razoabilidade, reflete naturalmente no debate sobre o aborto, se
conduzido à luz dos preceitos constitucionais. Uma vez pacificado que o
conceito de inviolabilidade da vida não se aplica ao embrião extrauterino,
objeto da Ação em comento, resta enfrentar a problemática do valor da vida
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 405

intrauterina, a fim de se definir os limites da legitimidade de sua tutela. De


outro lado, se o direito de procriar se insere na esfera da liberdade ética e
jurídica, há que se estabelecer uma moldura adequada que assegure à mulher
o direito à interrupção da gestação.
Por último, como demonstrou o estudo da Arguição de Descum-
primento de Preceito Fundamental 54, relativa à permissão da interrupção da
gestação do feto portador de anencefalia, o momento da nidação (implanta-
ção do embrião no útero materno) já não pode ser afirmado enquanto marco
inicial para a garantia da vida humana. Este é o primeiro passo para a delimi-
tação, em geral, dos interesses da vida intrauterina. O debate adensou, ainda,
em referência ao conceito de morte cerebral, a perspectiva de se considerar o
critério da existência de atividade encefálica o mais acertado para se equacio-
nar a questão, pontuando-se que tal etapa só é alcançada nos estágios avan-
çados do desenvolvimento do feto.
Como se defendeu, a decisão criou balizas para concretizar o prin-
cípio da dignidade, na esfera reprodutiva, inserindo, em suas premissas, a
invocação não somente da liberdade genérica, enquanto autonomia, mas
também da liberdade de consciência e de crença, incluindo-se, quanto à se-
gunda, a exigência do não estabelecimento de uma religião. No aspecto da
independência ética, a decisão sedimentou, assim, na mesma linha de racio-
cínio que se adotou no caso da ADIn 3510, a vinculação da autonomia pro-
criativa às exigências da laicidade, o que configura posição referencial para
qualquer futura compreensão das matérias afetas ao direito de procriar.
Mais uma vez a Corte julgou o caso sem apelar à técnica da pro-
porcionalidade e da ponderação, haja vista a não existência de um conflito de
interesses. É verdade que tal estratégia foi adotada em razão da tese de que a
antecipação terapêutica do parto do feto anencefálico é fato atípico, por ine-
xistir a potencialidade para a vida extrauterina. Entretanto, conseguiu-se
provar, nos argumentos lançados no estudo, a hipótese de que a mesma dire-
tiva deve ser utilizada para o caso do aborto, sendo esta uma inferência que
decorre dos padrões firmados na ADPF 54. A decisão foi estruturada por
intermédio de uma integração entre as categorias da legalidade, da igualda-
de, da autonomia procriativa e da liberdade religiosa. Trata-se de uma cons-
trução analítica que pressupõe a inserção, no aspecto do método de interpre-
tação, do devido processo legal substantivo e do sentido autônomo do prin-
cípio da razoabilidade, indicando o caminho para se concluir, como se de-
fende, que a proibição do aborto voluntário, desde o momento da concepção,
caracteriza violação ao direito fundamental à procriação e ao planejamento
familiar, esferas incluídas na proteção da dignidade humana.
406 Teresinha Inês Teles Pires

Foi visto que os juízes teceram, no bojo do julgamento da ADPF


54, algumas considerações sobre o método da proporcionalidade como sendo
adequado para se apreciar o direito à interrupção da gestação, quando não for
possível apelar para a tese da atipicidade da conduta. Esta posição, como se
demonstrou, é incoerente por pressupor a existência de dois direitos coliden-
tes. No caso do aborto, a utilização do princípio da proporcionalidade contra-
ria a melhor interpretação constitucional do direito à vida, haja vista restar
claro que os constituintes optaram por não incorporar em seu conteúdo nor-
mativo a tutela da vida pré-natal. Além disto, a técnica em referência corro-
bora um nível maior de arbitrariedade argumentativa, em comparação ao
teste da razoabilidade do devido processo legal, levando, no mais das vezes,
à fundamentação igualmente válida de duas decisões contrapostas.
Como explicitado na introdução, a hipótese postulada não foi de-
senvolvida em um único capítulo da obra, e sim por meio de uma composi-
ção de raciocínios e argumentos que perpassaram a tessitura da integridade
do texto produzido. Daí por que se tentou, ao máximo, articular a ligação
entre as partes e os capítulos do trabalho, não somente pela formulação de
conclusões parciais, mas também por meio de menções, em alguns capítulos,
aos pressupostos teóricos e práticos adotados nas etapas anteriores. No que
pese tal estratégia parecer, em certos momentos, repetitiva, a intenção não
foi outra senão atribuir maior coerência e sistematicidade aos propósitos e
propostas defendidos. O que se quis demonstrar e acrescentar à pesquisa
jurídica empreendida foi, em síntese, que uma argumentação séria sobre
tema tão sensível exige um arcabouço analítico que componha um modelo
de interpretação constitucional unificante, no qual se misturam elementos
teóricos, filosóficos e jurídicos, e padrões derivados do estudo de casos, que
sejam pertinentes à matéria. Não é possível assim, na visão assumida na
obra, separar a esfera do direito constitucional da esfera da atuação jurisdici-
onal, sendo esta a razão pela qual a ordem das partes e capítulos se construiu
na forma apresentada.
Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 407

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Direito ao Aborto, Democracia e Constituição 433

ÍNDICE ALFABÉTICO
434 Teresinha Inês Teles Pires

Esta obra foi impressa em oficinas próprias,


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Ela é fruto do trabalho das seguintes pessoas:

Editoração: Acabamento:
Elisabeth Padilha Afonso P. T. Neto
Thamires Santos Anderson A. Marques
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Lucia H. Rodrigues
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Iara P. Fontoura Marilene de O. Guimarães
Tania Saiki Nádia Sabatovski
Rosinilda G. Machado
Impressão: Terezinha F. Oliveira
Lucas Fontoura
Marcelo Schwb
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“.”

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