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ED.

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Ano 4 | N. 15 | Jan. 2016
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“ESTADO DAS COISAS”: AGIR NO CORPO, AGIR NA ARTE DA
PERFORMANCE
Cinthia Mendonça

Neste artigo veremos o propósito da arte da performance a partir da diferença entre agir
e fazer. O agir ao qual me refiro podemos encontrar na peça Este Corpo que me Ocupa,
de João Fiadeiro, quando se coloca quase vazio, como coisa. Vemos este agir na
maneira como se movimenta Yvonne Rainer em Trio A, retirando o virtuosismo da
bailarina de cena e dando lugar ao movimento. O mesmo agir parece estar também na
ação observada por Fernand Deligny nos traços dos mapas dos trajetos das crianças
autistas na fazenda onde viviam na França. Nesse caso, o mapa substitui a fala, e nos
possibilita enxergar um agir anterior ao sujeito subjetivado e quiçá mais livre dos efeitos
dos dispositivos de poder que tendem a formatar a existência de corpos e de sujeitos no
mundo.
Descrevo, nas páginas que seguem, as referências e inquietações que me mobilizam no
âmbito do trabalho que cruza pesquisa e experimentação artística e que nomeio Estado
das Coisas. Este resulta dos anos de minha pesquisa de mestrado em Artes Visuais na
Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Por meio de três
séries, que vão sendo criadas com performances, fotografias e vídeos, a produção que
leva este título ora evidencia a subjeção que pode existir entre sujeito e objeto técnico,
ora propõe linhas de fuga a essa condição, abrindo possibilidades para novas formas de
existências e outros usos, apontando, assim, a outras perspectivas além do
antropocentrismo ao qual estamos acostumados. O objeto técnico ao qual me refiro está
profundamente inserido em nosso cotidiano e tem especial relevância na formação de
nossa subjetividade. Ele é produzido em linhas de montagem de fábricas, em escala
industrial, e é parte de uma cadeia de extração, produção, venda e consumo.
O trabalho aqui apresentado está no limiar entre dança e artes visuais. Além disso, a
tecnologia é trazida como tema e a sonoridade é tratada com bastante atenção. Na
composição das performances utilizo, de maneira simples, a vibração e a ressonância
que pode produzir a matéria de objetos técnicos em contato com o corpo e seus
movimentos. Estado das Coisas vem problematizar esteticamente a centralidade do
sujeito assim como a perspectiva que homogeneíza os modos de existência.

pessoa, objeto, pedra, planta


Deligny assinala, em suas pesquisas, a existência de um agir que abre possibilidade a
modos de existência desprendidos de uma certa imagem unitária centrada em torno do
sujeito. A questão de Deligny é como existir sem impor à pessoa os ditames do sujeito e
as determinações da linguagem. Para ele, o autista é o indivíduo em ruptura de sujeito e,
por isso, nos interessa aproximar alguns elementos da experiência de Fernand Deligny,
com enfoque no que ele define como agir, a determinadas manifestações da arte da
performance. Será possível encontrar na performance um sujeito que pode romper,
enquanto age, com os a-sujeitamentos impostos a ele?
Deligny defende o agir como diferente do fazer, como algo que nos aproxima de um
mundo onde “o balanço da pedra e o ruído da água não são menos relevantes do que os
murmúrios dos homens” (PELBART, 2013: 261). O fazer seria fruto da vontade
dirigida a uma finalidade, enquanto agir é o gesto desinteressado, o movimento não
representacional, sem intencionalidade, que dá lugar ao intervalo, ao tácito, à irrupção,
ao extravagar, à dessubjetivação (Ibidem).
Agir faz parte de um mundo onde a linguagem ainda não está ou já deixou de estar. Esse
agir nos aproximaria do universo a-consciente do mineral, do vegetal e do animal, então
“entregues ao inato que os anima” sem que seja necessário “fazer como ou imitar, como
‘paimãe’” (Ibidem, p. 263). Sendo assim, podemos dizer que existe um agir que pode
ser procedimento não significante, não representacional, sem finalidade (não
engendrado na lógica de causalidade do tempo), isto é, maquínico. O agir maquínico
nos aproxima do desejo, do acontecimento, do atual, operando como uma linha de fuga
aos dispositivos de poder, enquanto o fazer nos conecta como parte engendrada dos
dispositivos de controle e nos mantém totalmente articulados com os enunciados de
poder.
Cinthia Mendonça e Andreas Trobollowitsch, |Stand :: estado das coisas, 2015

Na série pessoa, objeto, pedra, planta realizo performances que trabalham a disposição
sem hierarquia entre sujeitos e objetos técnicos. A ideia de trabalhar o sujeito frente ao
objeto vem de um desejo de tensionar e questionar o lugar de poder ocupado por ambos.
Quem manipula o quê? Somos manipulados pelos objetos na mesma medida em que os
manipulamos? Exemplos do material criado a partir dessas indagações estão nas
performances “a coisa muda”, “|Stand” e “Juntos”.
Nessa série, trabalho com operações que chamo de disposição e deslocamento, em que
objeto, humano, vegetal e mineral são dispostos lado a lado sem hierarquias e, em
seguida, deslocados de suas significações. A disposição está na simples organização de
corpos no espaço, seguida de inércia e tempo para observação. O deslocamento do
objeto está na identificação de sua tecnicidade, isto é, de sua estrutura principal e, em
seguida, em sua modificação, dando a ele nova função, novo uso ou, ainda,
desutilizando-o. A operação relativa ao deslocamento do sujeito consiste em deslocá-lo
de seu lugar de manipulador do objeto. Já o deslocamento de plantas, pedras e demais
representantes dos reinos vegetal e mineral se dá pela proposição de outras maneiras de
uso. Os deslocamentos são operações de busca de novas formas, ou de novos modos de
existência, sobretudo para o sujeito e para o objeto. Realizando tais operações tenho, por
fim, um produto que está conectado, ao mesmo tempo, com o imaginário e com a
técnica.

fábrica
Recorro à fabricação para tratar do agir no corpo. A fabricação de um corpo se dá com a
ativação da potência de criação de cada indivíduo. Para entendermos melhor o processo
de fabricação de corpos e sua conexão com o agir, que pode ser diferente do fazer,
trazemos relatos sobre um outro modo de existir apresentados em estudos do
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que nos apresenta a maneira ameríndia de
perceber o corpo (e com isso a subjetividade), em que, ao contrário da maneira
ocidental, o corpo não é algo dado, mas sim algo a ser fabricado. Nessa perspectiva,
age-se sobre o corpo porque ele é constantemente submetido a essa fabricação. Na
puberdade, no casamento, no nascimento dos filhos, na doença ou no processo de
transformação de uma pessoa em xamã, em todos esses momentos de movimento e
mudança está a fabricação dos corpos.
O antropólogo cita o exemplo da cultura Yawalapíti [1], cujos membros necessitam ter
o corpo submetido a processos intencionais e periódicos de fabricação, que consiste em
um conjunto de intervenções sobre as substâncias que conectam o corpo ao mundo e
sobre fluidos vitais, alimentos, eméticos, tabaco, óleos e tinturas vegetais, além da
abstinência e da reclusão. O corpo é fabricado no âmbito natural e social, sem distinção.
Ele passa por uma verdadeira metamorfose em que os processos fisiológicos e
sociológicos não se distinguem da transformação do corpo, das relações sociais e dos
estatutos que as condensam em uma só coisa. “Assim a natureza humana é literalmente
fabricada ou configurada pela cultura. O corpo é imaginado, em todos os sentidos
possíveis da palavra, pela sociedade” (CASTRO, 2002: 72).
Na natureza fabricada pela cultura do povo Yawalapíti, o corpo em metamorfose parece
em estado constante e imanente de descentralização de si, na medida em que a
materialidade do corpo é o foco da existência. Ou ainda, usando o termo de Giorgio
Agamben, existe, nessa prática, um constante profanar, um trazer para si (para o mundo)
a matéria que parece escapar. Seguindo esse raciocínio, podemos considerar a existência
de um agir que sobrepõe tempos e símbolos numa condição atemporal e a-subjetiva.
Além disso, o agir, nesse tipo de ritual, tem dimensão coletiva, na medida em que existe
desde a perspectiva de uma coletividade que o mantém como operador de realidades.
Na série fábrica, trago, por um lado, a proposta de uma perspectiva animista e, por
outro, a “coisitude”. Como seria ver o mundo considerando que tudo é dotado de
humanidade? Ou, como seria se tudo fosse coisa? A matéria, nesse contexto, ora ganha
vida ora a-sujeita-se enquanto coisa, abrindo, dessa forma, possibilidade para se ver
além das ideias já estruturadas pelo antropocentrismo em nosso tempo. Fábrica se
apresenta como um exercício de perspectiva que, por meio da performance e da
fotografia, busca maneiras outras de se estar no ou de se ver o mundo.
É uma fábrica porque trata da matéria que fabrica corpos e objetos. É um experimento
sobre contato e sobre as muitas partes que pode ter o todo. Na fábrica produzo
fotografias em preto e branco de performances que tratam da matéria do corpo na
relação com a matéria dos objetos técnicos por meio de perspectivas distintas: a ideia
animista presente em algumas culturas ameríndias e um “devir coisa” como uma poética
de resistência do objeto. [2] Segundo André Lepecki, a categoria coisa em sua coisitude
pode, para além da funcionalidade, da utilidade do “objeto utilitário de consumo”,
indicar-nos um possível devir fora de um regime de uso e mais valia e, então, quiçá,
escapar dos dispositivos de poder. Em relação ao sujeito, pode ocorrer o mesmo ao
deslocar-se de seu centro de gravidade em direção a sua coisitude. Aproximando-se de
algo anterior ao conceito que tem de si mesmo, o sujeito poderá abdicar de sua posição
soberana no mundo, dando passagem a outras formas de sentir e agir. Essa suspensão do
objeto de sua usabilidade e do sujeito de sua própria subjetividade, apesar de
momentânea, tem sua potência. A coisa que aqui propomos funciona como um escape.
Anterior ao humano e a tudo que existe, a coisa talvez seja como uma involução, um
processo de depuração em devir: cada vez mais simples, econômica e sóbria
(PELBART, 2013: 282).
Quando me refiro à matéria, estou interessada no contato com a matéria manufaturada,
isto é, com aquilo que foi desterritorializado e transformado para dar forma ao objeto
técnico. Penso a tensão, a deformação e a reorganização que se dá neste contato entre
matérias distintas. Também o tempo é um elemento a se considerar. Sobretudo, estou
atenta às distintas temporalidades que há no acesso das pessoas às tecnologias, bem
como observo o abandono proveniente do desgaste da matéria, seja ela do corpo ou do
objeto.
Cinthia Mendonça, ding :: Estado das Coisas (díptico), 2015

Como exemplo, trago o díptico ding, composição fotográfica onde mostro, em detalhe,
o contato da pele com o metal de um velho trator. No contexto dessa série, fotografo a
matéria-objeto (alumínio, aço, cobre, plástico, entre outras) e a matéria-corpo (pele,
pelos, articulações, estrutura óssea, entre outras), considerando o peso, a textura, a
forma, o design e demais qualidades de ambos. E então mostro os detalhes do contato
entre corpo e objeto, evidenciando: contraste; fricção; tensão; resistência;
vulnerabilidade; deformação; reorganização.
As imagens produzidas na série fábrica levam como inspiração o exemplo de algumas
culturas ancestrais que consideram o corpo físico, a alma e a psique como uma só e
única coisa. Isto se mostra em rituais onde a matéria é trabalhada na liberação da própria
matéria, por meio de uma identificação com a própria materialidade. Por exemplo: as
vísceras de um animal morto são colocadas sobre a barriga de um paciente em
tratamento xamânico. As vísceras do animal em contato com o corpo do paciente vivo
transformam a simbologia em coisa concreta, e a parte do animal morto opera na cura
da parte da pessoa viva. Quando o corpo de um animal é usado para curar o corpo de
um humano, existe entre o humano e esse corpo de animal uma identificação. Não se
trata de simbologia, posto que é evidente a relação material estabelecida entre a pessoa e
a operação de cura. Trata-se, então, de uma matéria em devir que edifica um corpo em
processo de cura. Nesse caso, não há mesmo separação entre corpo e espírito, ou
espírito e matéria.
O mesmo poderia ocorrer em alguns casos da arte da performance? Acredito que sim,
porque o agir na performance fabrica enunciados de ordem coletiva, assim como fabrica
corpos, isto é, o maquínico, o ritual e a performance podem contar com o agir que
promove agenciamentos de dimensões, aproximando o sujeito (o corpo) novamente do
mundo, sem mediações, esvaziando-o de seus mecanismos dados e datados e, em
seguida, conectando-o com seu próprio desejo.

transdução
Na série transdução trabalho a transferência que pode haver no contato de sujeitos e
objetos. Essa operação pode ser via transdução ou ressonância. Segundo Gilbert
Simondon, a ressonância interna “é o modo mais primitivo da comunicação entre
realidades de ordens diferentes; ela contém um duplo processo de amplificação e de
condensação” (SIMONDON, 2009: 31). Já a transdução, tem como resultado a
transformação do que passou de um registro a outro, por um processo que mistura
transmissão, tradução e deslocamento no espaço e no tempo. Ambas operações,
ressonância interna e transdução, se aplicam ao processo de individuação do ser, que, na
perspectiva do autor, não é algo estável, “o ser possui uma unidade transdutora, isto é,
ele pode defasar-se em relação a si próprio, ultrapassar a si próprio de um lado e de
outro de seu centro” (Ibidem: 110).
A transdução [3], que dá título a essa série, usada como modelo de operação pode nos
servir para o entendimento do que vem a ser um sujeito de subjetividade parcial, isto é,
em devir objeto, animal, substância e coisa.
Como sabemos, a ressonância interna é o que emana a matéria seja ela viva ou não. Ela
é a via pela qual a matéria realiza trocas com o meio, com sua exterioridade. Portanto, a
ressonância está presente na matéria, assim como os enunciados estão presentes nos
objetos. Dessa forma, a hipótese da série transdução é de que as operações de
deslocamentos, como, por exemplo, o “devir-coisa”, possuem uma ressonância que
substitui o enunciado que se insere em objetos e sujeitos. Porque a coisa aproxima. Esta
proximidade é o que nos faz perceber a coisa em sua concretude. Não é exatamente o
olhar que debruçamos sobre ela, ou o tato, o que nos faz ter certeza de que estamos
diante da coisa, mas sim a percepção da matéria através de sua ressonância. Sabemos
que entre o objeto (ou sujeito) e a coisa o que existe é ressonância, a mesma ressonância
que se encontra na nuvem semântica da palavra. Justamente por ressoar, e não por
significar ou representar, a ressonância seria uma espécie de antienunciado da matéria?
Nessa série me interesso justamente pelo entre meio que há em cada sujeito e objeto,
aquilo que os aproxima como “coisas”, isto é, em um devir sem contornos em que
dentro e fora se misturam.
A aproximação, nesse contexto, não significa relação ou comunicação, mas sim espaço
de contato ou disposição para contato. A transferência aqui vem a substituir a ideia de
comunicação ou relação que, em geral, prioriza a existência prévia de contornos
definidos para sujeitos e objetos. Neste caso, tentamos provocar o des-centramento de
objetos e sujeitos, a exemplo do vídeo transdução [4], onde trabalho a proximidade de
um objeto técnico, que, no caso, é uma roçadeira de motor de dois pontos, e uma
pessoa. Com isso, propomos deslocar o objeto e o sujeito de seus centros de gravidade,
apagando, assim, os contornos existentes na definição de cada um deles, propondo, com
isso, um devir que seja um tanto animal e um tanto coisa.
Cinthia Mendonça, transdução :: Estado das Coisas, 2015

Guattari afirma que ter a máquina [5] como um agenciamento seria abolir tudo aquilo
que representa entidades fechadas umas em relação às outras, pois um dispositivo
fechado implica modos de comunicação, ou seja, é o universo da referência
comunicacional que opera. Ao contrário, se invertermos essa perspectiva, “a
transferência deve ser primeira, deve já estar lá” (GUATTARI, 2003: 49). A máquina de
subjetivação existirá quando os limites do ser forem ultrapassados, abrindo espaço a
uma autocriação (autopoiética) onde “alguma coisa sempre passa”. O agir, nesse caso,
opera justamente onde “alguma coisa se passa”; sua dinâmica não é mesmo da ordem da
comunicação, mas da ordem da afecção, da transferência, ou melhor, da transdução
(SIMONDON, 2007: 10-11). Dessa maneira, podemos considerar que há uma potência
transdutora e irruptiva que habita as artes performativas, mas isso dependerá do agir ou
do fazer e não somente da dissidência de um artista.
O fazer pressupõe um sujeito enquanto o agir é conduzido por um agenciamento mais
complexo da ação que envolve desejo, vontade do corpo, e uma série de fatores não
conscientes que, por fim, dão à ação uma consistência relevante para além do sujeito
que a realiza. Explicando de maneira simples, talvez seja como ter mais intuição e
menos afirmação como sujeito.
Por não ser facilmente apreendida pela visão, a ressonância interna seria algo da ordem
da motilidade, do movimento invisível que nos aproxima do outro (objeto, aparelho,
coisa), sem que esta aproximação seja por meio de um sentido de funcionalidade, de
interpretabilidade ou representabilidade. Trata-se talvez de um fenômeno de in-
corporação seguido de ex-corporação. A in-corporação por ressonância se dá na
assimilação, na digestão, na elaboração do efeito do outro em si (o sujeito, o objeto, o
aparelho ou a coisa), enquanto a ex-corporação por ressonância se dá quando os efeitos
desse outro em si começam a aflorar, a suar nos poros, a mostrar-se, a transbordar, a
fazer o sujeito descentrar-se.
Falemos do agir a título de exemplo do que acontece na prática da dança butô. O butô
será tratado, nesse caso, como prática e não exatamente como forma de espetáculo por
conta do contexto que nos pede uma análise mais relativa ao processo do que ao produto
em si.
Segundo o diretor do grupo de butô Sankai-Juku, Ushio Amagatsu, “o butô é mais uma
tentativa de articular a linguagem corporal do que de transmitir alguma ideia e visa
proporcionar a cada espectador uma viagem particular ao seu mundo interior”
(BAIOCCHI, 1995: 17). No contexto da prática da dança butô, a vida do corpo é
trabalhada para além de uma instância totalmente consciente, ou melhor, a consciência é
compreendida como algo que se faz também desde a vontade do corpo e não somente da
mente que supostamente comanda.
Denominado por Tatsumi Hijitaka [6] como a dança da escuridão, a dança butô extrai o
movimento desde o interior do corpo, de suas vísceras, de sua energia mais primária, e
não exatamente de uma forma coreográfica ou de um enunciado vindo do exterior para a
superfície do corpo. O butô se compromete com o exercício constante de buscar na
escuridão de um corpo, em seus meandros ainda não iluminados, o movimento da dança
que está sob forma de energia. Tais movimentos, por vezes, são tão mínimos que a
visão não nos basta para captá-los. Por vezes, a dança se faz na motilidade do corpo, em
outras palavras, nos movimentos involuntários, invisíveis — os fluidos nas veias, as
batidas do coração, isto é, na ressonância do corpo. A autonomia do corpo é ouvida, é
sentida e transformada em movimento e em dança. Um pouco parecido a esse
agenciamento de energia é o que faz Yvonne Rainer, quando estabelece a diferenciação
entre energia aparente e energia investida. Pode parecer um tanto estranha a
aproximação entre o trabalho de Rainer e o butô, porém, é possível perceber o que
proponho justamente no agenciamento da energia do corpo que evidencia o movimento
e não o artista que dança. Ambos parecem apresentar uma força de liberação, e ao
mesmo tempo são disciplinados. Apesar da disciplina, o butô nem sempre será
coreografado; ele não trabalha fundamentalmente dentro do conceito de coreografia. Já
Rainer, parece querer fazer da coreografia “o lugar” para provar e refletir sobre a dança
e sobre o movimento que se funde a ela. Com isso ela faz irromper dentro da
coreografia a vontade de um corpo.
Os movimentos da contracultura do butô dos anos de 1950 entendem a escuridão que
lhes propõe Hijikata como sendo algo, digamos, não interpretado, não significado, não
explicado pela colonização ocidental. Existe, nessa ideia de escuridão, uma proposição
de desfalque comunicacional, significativo, que evidencia que a linguagem não dá conta
dos processos corporais e subjetivos. O modo ocidental de ver e sentir o mundo, que se
estabelece desde os enunciados da linguagem, não pôde interpretar o corpo e a
subjetividade japonesa daquela época.
As práticas do butô funcionam de acordo com a dança de cada corpo, conforme o desejo
e a imaginação de cada um, ou ainda de cada mestre de butô. “Não importa a técnica,
mas o fazer sem intenção” (BAIOCCHI, 1995: 18). Um exercício recorrente do trabalho
de criação se faz por meio da imobilização. São longas sessões de inércia em que se
coloca o corpo em um estado de esvaziamento. Esvaziamento dos gestos e memórias
cotidianas, para abrir espaço a outras intensidades. Muitas vezes, nesse processo de
tentar fazer com que o corpo não se mova, muita energia é contida nele e, do ato de
deixar sair ou no escape involuntário dessa energia que foi contida na imobilização, é
que muitas vezes nasce um movimento. Após esse processo, o movimento que então vai
preenchendo o corpo vem da imaginação. O butô põe a mente para imaginar, ocupando-
a com aquilo que parece ser imprescindível para a criação. É imaginação concreta,
material, imaginar e deixar que a vida interna do corpo decida para onde vai o
movimento. A relação estabelecida entre imaginação e ação é direta. Por exemplo,
algumas vezes, enquanto praticava o butô, eu era instruída a não separar essas coisas,
pelo contrário, era levada a tentar provar a fusão delas. Decerto, o movimento nasce da
materialidade da imaginação, da energia agenciada pela vida interna do corpo. Talvez
isso se dê porque de fato exista em algum momento a fusão entre a alma e a matéria
(corpo) e entre a ação e a imaginação.
Enquanto pratico o butô, parece-me que o processo que leva ao movimento me coloca
em proximidade com o contexto que, segundo Gilles Deleuze, propicia o encontro com
o desejo. Praticando-o senti-me muitas vezes próxima do “vazio”, beirando o
silenciamento dos enunciados do corpo. Essa sensação me coloca no limite entre a
presença da consciência que vem da imaginação e do não controle do corpo que realiza
um movimento não programado.
Concluindo, podemos dizer que o agir está conectado ao acontecimento. O conceito
deleuziano não pode ser explicado segundo a ordem das causalidades por bifurcar a
ordem do tempo: o passado não dá mais conta de explicar e agir sobre o presente e o
novo que se instaura, não respeita uma lógica de causa e consequência. O
acontecimento é uma ruptura brusca, intempestiva, que faz com que o corriqueiro se
torne intolerável. Ele opera uma transformação, abre procedente a novas e outras
possibilidades. Porém, segundo Deleuze, esse “possível” não é exatamente o que é
realizável, mas sim a própria potência de criação, “algo novo sob o sol”. Novos modos
de sentir, perceber e agir são resultados do acontecimento que tem em sua medida o
mundo que está por vir.
Por ser exterior ao sujeito e funcionar como um fenômeno de vidência, enxergando o
que extrapola, excede, transborda, o acontecimento motiva, ou pode motivar, o ato
performativo. Acima de tudo, ele depende de um encontro com o outro: o
acontecimento não se dá pela discursividade, mas sim pela dimensão afetiva da
coletividade que se forma nele. Acoplamento, agenciamento, pertencimento: afecção.
Sendo assim, o acontecimento traz o corpo como medida ou desmedida: o que aguenta o
corpo, ou o que o corpo não aguenta mais (LAPOUJADE, 2002: 82). Isso se explica,
por exemplo, quando há uma incompatibilidade entre uma sensação de porvir e uma
realidade intolerável, pois é aí que se inserem as linhas de força que podem nos levar a
um deslocamento ou quiçá a uma transformação. O corpo por onde “algo passa” é a
bussola da construção da nova subjetividade que tratamos nesta pesquisa. É por ele e
através dele e de suas afecções que novos modos de ver e sentir o mundo serão
pautados.
Desse modo, podemos dizer que o agir não repete, não representa, não cria metáforas,
ele abre possibilidades ao acontecimento, opera como um desarticulador da dinâmica de
alienação imposta ao corpo pelos dispositivos de mediação que alimentam a distância
entre o sujeito e o mundo. Ele funciona como agente conector entre o ser e a ação, na
medida em que não depende das mediações impostas pelos dispositivos de poder que
operam na formatação dos sujeitos.
O deslocamento ou o desaparecimento do sujeito é característica fundamental para que
se possa agir na performance. Nesse contexto de deslocamento, a performance tende a
evidenciar a obra, ou o movimento, ou ainda o objeto e as outras coisas em detrimento
do sujeito que manipula. No agir da performance, o que move o sujeito é a coisa, ou ele
é a própria coisa que se move [7].

NOTAS
[1] Os Yawalapíti são um grupo étnico que vive na porção sul do Parque Indígena do
Xingu, região que ficou conhecida como Alto Xingu.
[2] No ano de 2009, André Lepecki realizou a curadoria do festival In Transit 09,
ocorrido em Berlim sob o título de Resistência do Objeto. Dentre os temas e questões
levadas pelas obras presentes no festival, o conceito “coisa” aparece como denotação de
uma força de fuga. Analisando algumas das obras apresentadas no contexto do festival,
Lepecki afirma que a coisa é uma inapreensibilidade, um não utilitarismo, o
inalcançável (e o mais próximo também), isto é, em objetos, em animais, em pedras, em
plantas, em pessoas, existirá sempre algo que escapa ao que o objeto faz e é feito para
fazer: funcionar de acordo com a vontade (ou plano) do sujeito. Sujeito-Objeto são um
só. O que faz com que ambos deixem de o ser é a coisa em cada um deles. Assim, a
coisa não se reduz ao objeto ou ao duro do ente, ao contrário, ela existe como uma
potência de linha de fuga. (LEPECKI, 2012: 77-78). O tema do festival faz menção aos
estudos de Fred Moten, poeta, professor da Universidade da Califórnia em Riverside.
[3] Em suas teses, Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos [Du mode
d’existence des objets techniques], de 1958, e O Indivíduo e sua Gênese Físico-
biológica [L’individu et sa genèse physico-biologique], de 1964, Gilbert Simondon nos
traz os conceitos de transdução e de ressonância interna.
[4] Disponível em: <https://vimeo.com/139866491>.
[5] Máquina, maquinismo, <<maquínico>>: não é nem mecânico, nem orgânico. A
mecânica é um sistema de ligações em cadeia de termos dependentes. A máquina, pelo
contrário, é um conjunto de <<vizinhança>> entre termos heterogêneos independentes
(a vizinhança topológica é independente da distância ou da contiguidade). O que define
um agenciamento maquínico é o deslocamento de um centro de gravidade sobre uma
linha abstrata. […] A máquina é um conjunto de vizinhança homem-utensílio-animal-
coisa que é anterior em relação a eles, uma vez que é a linha abstrata que os atravessa e
os faz funcionar em conjunto. (DELEUZE; PARNET, 2004: 127-128).
[6] Tatsumi Hijikata nasceu em 1928 e morreu prematuramente aos 57 anos de idade.
Ele influenciou toda uma geração de japoneses que são hoje referências para a dança
butô: Mishima, Kazuo Ohno, Tadashi Suzuki, entre outros.
[7] André Lepecki, em “Moving as Thing: Choreographic Critiques of the Object”, p.
78.

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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros
Ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
________. “Entrevista”. Rio de Janeiro, 2009. Apud MELITOPOULOS, Angela;
LAZZARATO, Maurizio. “O animismo maquiń ico”. Cadernos de Subjetividade, São
Paulo, ano 8, n. 13, out. 2011, p. 8.

PARA CITAR ESTE TEXTO


MENDONÇA, Cinthia. “‘Estado das Coisas’: Agir no Corpo, Agir na Arte da
Performance”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 4, n. 15, jan. 2016. ISSN: 2316-
8102.
https://performatus.net/estudos/estado-das-coisas/
Simondon, um espaço por vir
PUBLICADO EM 9 de novembro de 2016

Introdução ao pensamento de Emília Marty ( por Amnéris Maroni)


Abaixo a interpretação de Emilia Marty (Multitudes 18 – out/2014) sobre o pensamento
de Gilbert Simondon. O artigo de Marty, ¨Simondon, um espaço por vir¨ nos sugere que
a obra do filósofo, particularmente, aquela sobre Individuação, nos acena desde o
futuro. Abertura de um espaço outro, por vir, inscrita no próprio ato do conhecimento,
além da cisão sujeito-objeto.
Essa mudança de espaço efetua-se por um desvio do pensamento: da realidade
individuada, à realidade pré-individual, Apeiron, o Ilimitado. Trata-se de desviar o
pensamento dos indivíduos e dirigi-lo à realidade pré-individual a serviço da
individuação.
Simondon usa indistintamente a palavra Apeiron e a palavra Natureza, no sentido dos
pré-socráticos. É do Apeiron que brota, segundo Anaximandro, toda a forma
individuada e, então, a Natureza não é o contrário do Homem, e sim a primeira fase do
ser.
Como Simondon, Marty valoriza a angústia como um ¨possível caminho de
individuação¨. Mas, Marty é radical e nos propõe que ao final da des-individuação,
propiciada pela angústia, não há, na sua interpretação, re-individuação. Há, para ela, ¨o
outro que não o indivíduo¨, o ser da orla, que não mais faz passagens, nem ganha
formas. O que, doravante, caracteriza o ser é a partida – e não mais uma forma, uma
individuação, nova individuação. É assim que Marty interpreta a frase de Simondon:
¨Ela a angústia é partida do ser¨. Para Marty, através da angústia, o ¨ser se tornou
partida. O ser como partida é um ser do começo. Habitando a orla, voltado para a
realidade pré-individuada, ele vive na proximidade da ´fonte viva´¨. E a ´fonte viva´está
lá onde se criam mundos.
E, com isso, a natureza mesma do conhecimento se transforma. Conhecer já não
pressupõe sujeito e objeto e torna-se análogo à criação artística. Cito Marty:…¨O
pensamento, aqui, não é mais o meio do domínio, ou até da dominação, sobre os objetos
que ele estuda. Ele é um ato de co-criação do vivente, acompanhando as etapas da
individuação¨. E como o pensamento/ conhecimento se dá em relação àquilo que nos é
exterior? É um pensamento que acompanha a gênese de tudo que há, dos indivíduos
como um todo, seja ele, homem, planta, rocha ou pensamento.
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No final do artigo, Marty faz uma linda homenagem a Simondon:…¨Essa obra nos
acompanha em nosso caminho de individuação e, reciprocamente, nós todos, viventes
do presente que somos no caminho da co-individuação, continuemos a individuar esse
pensamento¨.
Boa leitura!

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Simondon, um espaço por vir


Emilia M. O. Marty, Multitudes 18 – Outono de 2014
Tradução de Carla Ferro

Nós podemos somente individuar, nos individuar, e individuar em nós[i]


_______

O pensamento de Gilbert Simondon perturba. Pensamento da totalidade, não se pode


acomodá-lo nos recortes obrigatórios das disciplinas. Os avatares das edições
acompanham suas flutuações. A publicação, não como três tomos, mas como livros
independentes, permitiu sua difusão, mas contribuiu para segmentá-la. Durante muito
tempo Simondon foi conhecido não por seu pensamento sobre a individuação, mas por
sua abordagem do objeto técnico. Atualmente, o tomo que trata da “Individuação física
e coletiva” suscita uma onda de interesse. Aí também ele é tratado de um modo
disciplinar.[ii] Simondon é utilizado como uma nova “caixa de ferramentas”,
permitindo vir alimentar e regenerar notadamente os conceitos de indivíduo e de meio.
Tal prática desnatura o pensamento da individuação e oculta seu lugar, o de um outro
que não o das ciências humanas.

para além das ciências humanas


Ao lado do pensamento sobre o homem dominado pelas ciências humanas, desenvolve-
se profusamente um movimento que busca, nas culturas das sociedades tradicionais, ao
mesmo tempo uma sabedoria para viver e uma outra concepção do homem e de suas
relações com o outro, com a natureza e com o invisível. Bem antes desse movimento,
Gilbert Durand colocou em evidência a figura do homem tradicional, o homem
primordial, em contraponto ao homem objetivado e fragmentado das ciências do
homem.[iii] Ele defende a ideia da necessidade de sair das ciências do homem, que se
tornaram, aliás, “ciências sociais”, para se dirigir a uma ciência do homem. Simondon
inscreve-se nessa busca de um outro pensamento sobre o homem. Por um lado, sua
teoria da individuação reconcilia as diferentes ciências e o humano. Por outro lado, sua
abordagem do homem, pensando inseparavelmente o indivíduo e o coletivo em uma
época em que essas duas noções eram cuidadosamente separadas, faz explodir a noção
de ciências humanas.
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Eu gostaria de defender aqui a ideia de que essa obra não deve ser referida ao passado,
seja ele o passado das ciências humanas, da Enciclopédia, das tradições ou dos
esoterismos, mas ao futuro. Gilbert Simondon abre uma porta para um conhecimento de
outra natureza. Um espaço para o pensamento e para o homem, que individuaria (e não
religaria ou unificaria) ciências e tradição. Um espaço além. Um espaço por vir. Mas
esse além não é constituído por uma mudança de objeto. Trata-se da abertura de um
espaço outro, além da cisão sujeito-objeto. Aqui, o que seria pertinente pensar não é
mais essa cisão e suas múltiplas pontes, mas o ato de conhecimento ele-mesmo.

a realidade pré-individuada, o apeiron


Essa mudança de espaço efetua-se por um desvio do pensamento, da realidade
individuada à realidade pré-individuada. O pensamento da individuação, e não do
individuado, apoia-se na noção de apeiron, do qual Simondon vai fazer o pré-
individual. Saindo do indivíduo como campo de pensamento e se dirigindo ao
pensamento da individuação, ele introduz a ideia da realidade pré-individuada, mas a
serviço, poderíamos dizer, da individuação. Em seu texto sobre a Angústia, temos em
revanche uma inversão de perspectiva, já que ele é centrado menos sobre a individuação
do que sobre a entrada em contato do individuado com os efeitos da realidade pré-
individual.
A dificuldade de abordar a noção de apeiron, o Ilimitado, é a mesma que temos quando
consideramos a natureza do “pré-individual”. Simondon usa indistintamente a palavra
natureza, no sentido dos pré-socráticos, e a palavra apeiron. “Poderíamos chamar de
natureza essa realidade pré-individual que o indivíduo carrega em si, procurando
reencontrar na palavra natureza o significado que os filósofos pré-socráticos lhe davam:
os Fisiólogos jônicos encontravam aí a origem de todas as espécies de seres, anterior à
individuação: a natureza é a realidade do possível, sob as espécies desse apeiron do qual
Anaximandro vê emergir toda forma individuada: a Natureza não é o contrário do
Homem, e sim a primeira fase do ser.”[iv]
“Anaximandro […] disse que o princípio – isto é, o elemento – dos seres é o infinito
(apeiron) […] Ele diz que não é nem a água, nem nenhum desses que se diz serem os
“elementos”, mas uma certa natureza infinita, da qual nascem todos os céus e os
mundos neles: mas, daquilo em que se dá, para os seres, geração, é nele também que
acontece a destruição, segundo o que deve ser; porque eles se conferem justiça e
reparação, uns aos outros, de sua mútua injustiça, conforme o desígnio do Tempo.”[v]
Talvez Anaximandro retire da contemplação do Mar Egeu, do espetáculo que ele
contempla todos os dias, a essência do mar, isto é, o Ilimitado. Ou talvez porque seja
habitado pela luz tão particular da Grécia que dá ao mar tanta intensidade e profundeza.
Mas esse ilimitado não é o caráter de algum elemento natural, água, terra, ar, fogo. Ele
não se abre, por essa naturalidade, sobre os abismos da terra. Ele se abre sobre um
espaço totalmente diferente, “o céu profundo”, diz Marcel Conche. O céu, entretanto, é
para os gregos dessa época uma cúpula fechada, posta sobre o horizonte: ele não tem
nada de ilimitado. Somente o fluxo de sua aparência gasosa pode dar essa sensação de
indeterminação, característica, aliás, que define o apeiron.
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A confusão do apeiron com a matéria, no sentido aristotélico, tornou-se fácil pela
predominância de características comuns: ela é indeterminada, incognoscível,
inengendrada e indestrutível. Mas o apeiron é fonte geradora, e portanto uma realidade
outra, e separada dos seres e dos mundos que ela engendra. O apeiron é uma potência
de determinação, enquanto a matéria, indeterminada, recebe sua determinação. Essa
dimensão de genesis abre para o caráter criativo do apeiron que é potência. Ele é causa
de um movimento eterno que gera os seres por separação dos contrários.
O apeiron não é uma substância intermediária entre os elementos, entre mundos ou
ainda, no interior dos mundos, entre os seres – como será mais tarde a natureza
primordial, definida como ar pelo sucessor de Anaximandro, Anaxímenes. Esse ar
produz os seres por rarefação e condensação. O apeiron engendra as coisas por um
fenômeno de ejeção a partir da origem. O apeiron não é um reservatório de confusão
original, como se substâncias, no estado indiferenciado, estivessem amalgamadas em
uma materia prima, espécie de magma primordial. Lembremo-nos de que
o apeiron pertence ao registro do “céu profundo”, e não ao dos abismos da terra. Quer
dizer, ele não pertence ao mundo do caos. Ele não é, tampouco, reservatório de seres
potenciais ainda não determinados pelo seu advento como mundos. Não existem
“dentro” do apeiron seres em potência. Enfim, ele não é um reservatório dos contrários
que nele repousariam, indeterminados e não-conflituosos, antes de se aventurarem no
mundo.
O apeiron é o infinito. No sentido qualitativo, esse infinito é indeterminação. Mas como
origem dos seres determinados, a determinação não é uma transformação desse
indeterminado. Há separação entre o princípio e as formas que ele engendra.
O apeiron é imenso uma vez que ele é sem limites temporais, mas também sem limites
espaciais. Além disso, ele engendra “mundos inumeráveis”. Sua potência se exerce
além de todas as fronteiras, tanto temporais como espaciais.
A despeito da comodidade das imagens, o apeiron não é um corpo, ele não participa da
realidade sensível, ele não pode ser apreendido pelo olhar, ele pode somente ser
pensado. Marcel Conche precisa que “o rigor conceitual com que Anaximandro
argumenta implica que ele concebe o infinito, e não se limita a imaginar. O infinito é
certamente pensado por ele na plenitude de sua significação”. Entretanto, se o apeiron é
infinito no tempo, e infinito no espaço, ele não é o espaço infinito e o tempo infinito.
“Ele abre o espaço e o tempo: pelo mesmo ato, ele desdobra o espaço e o tempo e se
desdobra no espaço e no tempo.” Ele é, assim, indeterminado não somente quanto à
essência, mas também em grandeza. Essa infinitude em grandeza não é a de uma
espacialidade, mas a de um poder gerador.
Essa fonte não é a passagem da potência ao ato. “Ela é atualização, mas daquilo que
toma forma nessa própria atualização. A geração é a forma se dando, não o vir-à-luz de
uma forma preexistente, mas o processo de geração de uma forma que a natureza vai em
seguida deixar ser à luz.”[vi] A fonte é fonte de vida, ela não é lugar de passagem de
uma forma indeterminada de ser a uma forma determinada enquanto sendo. Não há
desgaste da fonte, fonte de todo nascimento, ela é ela mesma infinitamente nascente.
Mas nem por isso existe independência do Ilimitado. O modelo da soberania, trazendo
majestade e distância, está excluído aqui também: a fonte está ligada ao fato de que
existem “sendos”: “ela é apenas na medida em que ela faz ser… É o gesto de lhes dar
nascimento que a constitui como physis (…) ato de fazer passar do não-ser ao ser.”[vii]
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~o outro que não indivíduo~, o ser da orla


Nós dissemos que o espaço por vir além das ciências humanas e das tradições
necessitava de um desvio do pensamento orientado para a realidade individuada e a
individuação, na direção da realidade pré-individuada. Mas esse desvio não é somente
desvio do pensamento: ele é desvio de todo o ser.
Para Simondon, os seres humanos conhecem uma segunda individuação, que passa pelo
coletivo, isto é, pela partilha e o câmbio das “partes” de pré-individual de cada um. Isso
só pode acontecer depois de uma experiência que permita sair, por si e na relação com
os outros, das formas de identidade, fixadas nos papéis, nas funções, num
funcionamento social dominante e que impõe afetações identitárias. Essa saída se faz
através da experiência da passagem solitária pela demolição dessas formas.
“A angústia” é uma outra individuação. Simondon apresenta a angústia como um
possível caminho de individuação, mas raro e reservado a poucos seres. Comentando
essas páginas, eu tentei mostrar que, ao contrário, ela permitia uma individuação, de
uma forma nova, uma terceira individuação. E que somente o medo e a representação
catastrófica desse trabalho de metamorfoses operado pelo pré-individual no indivíduo
sob a forma de uma desindividuação interminável e intensa, impediam e obstruíam esse
caminho.[viii]
No processo de individuação, criador de indivíduo, no sentido de Simondon (quer dizer,
de indivíduo-mais-que-um, de individuado portador de seus potenciais de
transformação), o olhar e a intenção vão na direção dessa forma do individuado – com a
passagem de uma forma a uma outra sendo apenas um meio. No processo de
desindividuação da angústia, o olhar e o desejo se transmutam, e poderíamos dizer que
o ser entra em um esquecimento do individuado. Ao final da desindividuação não há re-
individuação. Há ~o outro que não indivíduo~. Eu propunha a ideia de que aí não há
mais nem passagem nem formas, mas um ser da orla. Simondon termina suas linhas
com essa frase surpreendente: “Ela (a angústia) é partida do ser.”[ix] Como se, desde
então, a partida, e não mais o individuado, caracterizasse o ser.
Mas então, o que é a orla? A orla não designa uma fronteira que delimitaria dois
espaços: aquele da realidade criada, da realidade segmentada, como diria Simondon, e
aquele da realidade pré-individuada, já que esta é o Ilimitado. Ela tampouco delimita a
identidade flutuante de um ser mergulhado no caos de uma materia prima. A realidade
pré-individuada não é nem terrestre nem telúrica, ela pertence “ao céu profundo”.
Como vimos, o céu profundo não é o espaço longínquo, ele está aqui, na familiaridade
das coisas e dos seres.
A orla está lá onde está a partida do ser. ~O outro que não indivíduo~ é o ser como
partida. O termo da angústia não é um lugar que serviria de ponto de partida ao ser. Ele
está onde, tendo abandonado definitivamente a individuação, o ser se tornou partida. O
ser como partida é um ser do começo. Habitando a orla, voltado para a realidade pré-
individuada, ele vive na proximidade da “fonte viva”. A fonte não é o Ilimitado. Ela está
lá onde se criam os mundos. Falar, aqui, de “mundo”, é falar desse outro espaço, dessa
outra realidade, que Simondon vê como “forma de comunicação organizada”. Como
pensar esse espaço, esse espaço-Mundo, esse espaço por vir?
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Em Mileto, no tempo em que aparece a filosofia com a escola jônica, e depois na Itália e
em Atenas, o que nasce com os pré-socráticos não é somente uma forma de pensamento
organizada segundo a Razão. É, inseparavelmente, um personagem: o filósofo. Esse
personagem é um mediador entre os homens mergulhados na realidade “visível”, na
qual lhes é necessário viver e agir, e a realidade “invisível”, não mais aquela do mundo
dos deuses e de seus truques, mas a da natureza e do cosmos, um invisível “laicizado”,
como diz Jean-Pierre Vernant, mas que deve ser desvelado. O deslocamento da filosofia
para as ciências humanas desmembrará esse personagem em uma multidão de figuras
diferentes. Cada sistema filosófico, e depois cada sistema disciplinar, definirá uma
posição particular para cada uma dessas figuras entre as duas ordens de realidade. Mas a
invariante será esse cenário onde todo conhecimento que se objetiva é inseparável dessa
posição do mediador.
A individuação transforma esse cenário ao mesmo tempo em que transforma a natureza
do conhecimento. “Os seres podem ser conhecidos pelo conhecimento do sujeito, mas a
individuação dos seres só pode ser captada pela individuação do conhecimento do
sujeito.”[x] O conhecimento já não se dá pela posição de recuo e pelo olhar altivo de
uma informação detida pelo sujeito[1]. Conhecer é um ato análogo à criação artística. O
pensamento, aqui, não é mais o meio do domínio, ou até da dominação, sobre os objetos
que ele estuda. Ele é um ato de co-criação do vivente, acompanhando as etapas de
individuação. Por esse ato do ser cognoscente a criação nele-mesmo, a criação que ele é,
permanece viva, e se cumpre. Mas, inseparavelmente, permanece viva a criação que lhe
é exterior: “Assim que o pensamento reflexivo se inicia, ele tem o poder de perfazer o
pensamento das gêneses, que não se efetuou inteiramente, tomando assim conhecimento
do sentido do próprio processo genético.”[xi]
Essa co-individuação, do conhecido, do cognoscente e do conhecimento, é difícil de
pensar já que nossa linguagem é essa da fase científica e do conhecimento objetivado.
Viver nesse espaço supõe uma transformação da relação com a linguagem e uma
transformação da própria linguagem.
Mas, antes de tudo, viver e conhecer nesse espaço torna-se possível para um ser ao
preço de uma transmutação de sua relação com o mundo. Em Rainer Maria Rilke o ser
que pode viver no Aberto é a criatura. Essa criatura, da oitava elegia, é misteriosa,
meio-animal, meio-vegetal. Ela designa um certo estado do ser que é abandonado,
despossuído de si mesmo, e por isso, em um contato contínuo e vivo, respirante, com
esse contínuo que é o Aberto. ~O outro que não indivíduo~ se parece com essa criatura,
sempre em contato com o contínuo reticular. Mas o trajeto de individuação na angústia
que assim o transformou fez dele uma consciência particular, uma consciência que é seu
ser-no-mundo, uma consciência como corpo. A criatura é no Aberto, banhada no
contínuo do Aberto; o ser da orla, ele é aquiescência de todo seu ser ao que é.

Gilbert Simondon no mundo vivente


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Segundo o desígnio do Tempo Gilbert Simondon nos deixou, mas ele permanece um
vivente do passado. “No momento em que um indivíduo morre, sua atividade fica
inacabada, e podemos dizer que ela permanecerá inacabada enquanto ele subsistir dos
seres individuais capazes de re-atualizar essa ausência ativa, semente de consciência e
de ação. (…) A subconsciência dos viventes é toda tecida dessa carga de manter o ser os
indivíduos que existem como ausência, como símbolos dos quais os viventes são
recíprocos.”[xii]
Todo ser, tecido em seus laços afetivos, amigáveis e familiares, e em suas tramas
genealógicas, continua, após sua morte, participando de seu mundo, pelas palavras,
pelos pensamentos, atos, emoções e sentimentos que ele colocou em movimento e que,
ligados aos dos outros, constituem esse mundo. Além disso, toda obra permanece, como
presença ativa de seu criador, no espaço coletivo. Presença ativa de uma ausência ativa
enquanto houver viventes que se deixem nutrir e inspirar por ela em suas ações e em sua
consciência, ou ainda para encontrá-la e apoiar-se nesse encontro. Mas o trabalho de
parto da História que fazem as obras se realiza de maneira secreta e na sombra.
A presença ativa da ausência de Gilbert Simondon participa desse trabalho do secreto de
uma maneira particular: ela contribui menos para participar do mundo presente do que
para individuar um mundo por vir. Com muitos outros, mas em um lugar essencial, o
lugar do pensamento que se individua.

Essa obra nos acompanha em nosso caminho de individuação e, reciprocamente, nós


todos, viventes do presente que somos no caminho da co-individuação, continuemos a
individuar esse pensamento.
[1] A palavra mídia foi traduzida duas vezes por mediador e uma vez por informação
(detida pelo sujeito).
[i] Gilbert Simondon, L’individu et sa genèse physico-biologique. L’individuation à la
lumière des notions de forme et d’information, p. 34.
[ii] Cf. edição italiana.
[iii] Science de l’homme et tradition, Berg international, 1979.
[iv] Gilbert Simondon, La Physique et l’individuation collective, p. 196.
[v] Citado e traduzido por Marcel Conche, Anaximandre. Fragments et témoignages,
Puf 1991.
[vi] Ibid, p. 75.
[vii] Ibid, p. 126.
[viii] Emilia Marty, “~Celui autre qu’individu~ le voyage de l’angoisse ou l’art de la
lisière” in collectif Gilbert Simondon, une pensée operative, Paris, Puf 2002, p. 35-38.
[ix] “O sujeito se afasta da individuação ainda sentida como possível; ele percorre as
vias inversas do ser (…). Ela (a angústia) é partida do ser.” IPC, p. 114.
[x] IGPB, p. 34.
[xi] Gilbert Simondon, Du mode d’existence des objets techniques, p. 162
[xii] IPC, p. 102.
https://pontodevistabrblog.wordpress.com/2016/11/09/simondon-um-espaco-por-vir/

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