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Desejo na Ética a Nicômaco

Introdução

A presente tese aborda a questão da Ética a Nicômaco de como o desejo pode


ser aperfeiçoado sob a influência da razão, considerando a distinção estabelecida por
Aristóteles entre a finalidade da ação e o meio de realizá-la1, e a definição de que o
desejo o é de um fim e a escolha do meio (EN, III, 2, 1111b 37). O desejo busca por
definição o bem, e o faz tendo como inclinação obter o prazer e evitar a dor. Ora, na
ética aristotélica o prazer não é critério para conclusão sobre o valor moral da ação.
Aristóteles chega a afirmar que “é por causa do prazer que praticamos más ações” (EN
II, 3, 1104 b 25). Contudo, a frase precisa ser contextualizada; ela não sugere que
precisamos nos libertar do prazer para poder praticar boas ações. Na verdade, pode
indicar que é possível sentir prazer com a prática de ações más, ou que o prazer que
advém de algumas ações são um bem aparente e não verdadeiro. Assim, Aristóteles
mostra que não há um vínculo absoluto entre o prazer e a boa ação, embora afirme que
o prazer faça parte de uma vida virtuosa. Por definição, o desejo é função da parte não-
racional da alma e portanto não pode, por si mesmo, se orientar para o bem verdadeiro.

Aristóteles afirma que o fim último do homem, a eudaimonia, é a atividade


conforme o plano que os seres racionais tem a possibilidade de se determinar através
da faculdade racional. Dessa forma, o fim último é a eudaimonia, que é o objeto
desejado e que para ser alcançado é necessário o auxílio da razão. Por isso, Aristóteles
não afirma que há uma impossibilidade do desejo e da razão se relacionarem, antes que
de algum modo é necessário que o desejo escute a razão. O desejo não é uma instância
que deve ser suprimida ou superada por ser um obstáculo para a realização da natureza

1
A ética de Aristóteles é nitidamente teleológica. No entanto, também é feita a distinção entre a ação,
válida por si mesma, e a produção, que tem seu valor deduzido pelo que produz. Há diferença entre a
proposta da execução de certas ações porque as consideramos como corretas em si mesmas, e aquelas
que realizamos por serem as capazes de nos aproximar mais do bem. A distinção entre fins e meios parece
ter proeminência na ética aristotélica, e segundo Ross é “pela categoria de meio e de fim que interpreta
a acção humana.” No entanto, é justamente a distinção entre fim e meio que é tema de grande
controvérsia entre os intérpretes, como mostraremos.
humana, tampouco a razão deve servir de mero instrumento para fornecer o fim
pretendido pelo desejo. O que Aristóteles está propondo é que desejo e razão devem
estar conciliados para que o bem-viver seja alcançado pelo homem, porém não sem com
isso nos colocar algumas – e grandes – dificuldades. Como parece muito bem ter notado
Allan, muito mais poderia ter sido dito na Ética sobre esse desejável estado de coisas
em que “o desejo do bem e o ajuizar da sua natureza deverão ser amalgamados de
alguma forma numa unidade tal que nenhuma das partes se submeta à outra” 2.
Certamente, são bastante diversos os caminhos que os comentadores tomaram ao
interpretar essa obra admirável que é a Ética a Nicômacos. Contudo, parece-me que de
algum modo a ideia de Allan representa aquela que Aristóteles buscou realizar na Ética.
E tal ideia insere o desejo como elemento central dentro da proposta ética aristotélica.

A faculdade desejante não é refratária à faculdade racional, mas deve de algum


modo receber seu auxílio. Assim, Aristóteles divide a parte irracional que existe no
agente em duas: a parte vegetativa, que é sumamente irracional e “não participa de
modo algum da razão”, e a parte desiderativa, que é “capaz de obedecer à razão [...] na
medida em que a ouve e lhe obedece” (EN, I, 13, 1102b 31). É preciso ter clareza, primeiro,
de porque o desejo precisa ser socorrido em sua função de colocar o fim, uma vez que
este já busca naturalmente o bem. À primeira vista, vê-se que o desejo ordena-se já de
início seguindo certo critério e não aleatoriamente, a saber, se direciona para aquilo que
lhe aparece como bem (fainomenon agathon). Para Aristóteles, o desejo pelo bem é
dado inelutavelmente, e deve haver um fim último que é desejado por si mesmo e em
razão do qual se realiza todas as ações. Assim, se o desejo já tem por princípio buscar o
bem, porque o filósofo propõe que investigação da Ética deve ter por objeto o bem, e
que conhecê-lo é ter maiores chances de atingi-lo? Podemos já ver que Aristóteles não
propõe simplesmente que a razão sirva como instrumento para a realização do fim que
é algo desejado como bem.

Nesse ponto, é importante fazer referência à distinção do fim último com os


outros fins. De modo simplificado, podemos dizer que Aristóteles observa que certas
atividades são realizadas tendo em vista uma finalidade que não é a própria ação, mas

2
D. J. Allan, A Filosofia de Aristóteles.
um produto distinto da ação, e aquelas atividades que são buscadas por si mesmas. Com
isso constata-se que os indivíduos agem tendo em vista fins particulares que podem ser
diferentes, mas que todos os fins particulares são desejados por causa de um fim último,
justamente o que Aristóteles vai considerar como o “bem para o homem”. Apesar da
constatação de que os indivíduos realizam coisas diferentes para alcançarem fins
particulares que variam, estes fins primários são sempre perseguidos em vista da
felicidade, o fim último. Aristóteles não conta o fim último ao lado dos outros fins; antes,
distingue entre os meios para um fim e o fim em si. Algo que pode ser desejado como
fim em si, quando em relação com o fim último, pode ser considerado um meio 3. A
cadeia de fins primários, dessa forma, não pode prosseguir infinitamente: há um fim
último comum para todas as ações que, por ser o fim último, é aquilo em vista do qual
toda as outras coisas são feitas e do qual nada mais pode ser buscado para além.

Há grande debate sobre o rigor lógico de Aristóteles que o permitiu afirmar no


início da Ética que há um bem que é o fim das ações humanas, assim como sobre a
natureza deste bem. O debate teve a contribuição de Peter Geach, que acredita não
haver autorização para passar da premissa de que há um fim para cada série de ações,
para a conclusão de que há um fim em comum para todas as séries. A discussão sobre
esse ponto é de grande relevância, mas não pretendemos abordar o sucesso ou fracasso
de Aristóteles em demonstrá-lo, mas abordar um a questão do fim último em relação
com fins primários que abre passagem para desenvolver o tratamento da noção de
desejo.

É tese central da Ética a Nicômacos a relação da deliberação e da escolha com os


meios e do desejo com os fins. Há pelos intérpretes, como veremos, tentativas de
atenuar a tese apontando para a necessidade da razão incidir também sobre os fins,
ainda que não operando com a função do desejo de colocá-los. Se de um lado há espaço
para fazer uma defesa da razão deliberar sobre os fins enquanto estes podem ser
considerados como meios se colocados em perspectiva com o fim último, por outro,
dentro dessa interpretação em que cada fim torna-se meio e portanto objeto de

3
Comentadores como Tomás e Brewer vão explicar o caráter relativo do esquema meio-fim, mostrando
que sob a perspectiva do fim último todos os outros fins podem ser tidos como meios e, por
consequência, serem objeto de deliberação. Tal explicação será abordada quando buscarmos abordar o
problema se a razão pode deliberar sobre os fins ou apenas sobre os meios.
deliberação, apenas o fim último escaparia de ser colocado sob o trabalho da razão4.
Isso porque o bem é o que se pretende em toda ação, e mesmo havendo fins primários
que são desejados por si mesmos, estes são buscados em prol da felicidade. Ser o bem
final a que visam as ações é, portanto, uma das características da felicidade. A outra
característica é ser auto-suficiente, que Aristóteles define como “aquilo que, em si,
torna a vida desejável por não ser carente de coisa alguma” (EN I 5 1097b17). Segundo
essa afirmação, entende-se que a felicidade não é um fim desejado em detrimento dos
outros fins, mas pode entendida como um fim de segunda ordem e que se constitui
justamente pela realização de outros fins. Desse modo, o fim último não parece
partilhar do mesmo estatuto dos fins primários que o constituem, pois a felicidade como
fim último não admite deliberação e tem uma “força lógica” que a torna um fim
necessário5. Para o homem, isso significa que não está em seu poder não ter a felicidade
como o fim em razão do qual os outros fins são feitos. Ou seja, não é algo ao qual se
possa dizer sim ou não, pois não pode ser escolhido ou desejado diferentemente. Se o
fim último - que como vimos é a felicidade - é dado, os demais fins ou atividades que o
constituem, por sua vez, podem ou não representar um fim para o agente na medida
em que podem ser tomados ou não como um bem (ou mal). Em outros termos, os fins
primários que em conjunto podem promover a felicidade, diferentemente desta devem
ter a abertura a serem tomados ou não como fim pelo agente na medida em que são
apreendidos sob determinado ângulo.

Tem grande relevância para o propósito ético aquilo que está no poder do
homem, e Aristóteles introduz uma tese forte na Ética de que agir corretamente está ao
nosso alcance. Essa tese tem dois pontos principais: (i) que os fins que são objetos da
ação devem em alguma medida estar sob o poder (em grego: to eph´ hêmin) do homem,
e (ii) que deve estar sob o poder do homem realizar ou não a ação, que ocorre após o
assentimento do elemento que conclui a análise do meio em vista do fim. Os dois pontos
são centrais para o projeto da ética aristotélica porque o processo de ação é formado
também por dois momentos determinantes e, em certa medida, independentes.
Primeiramente, o sujeito tem um desejo que é o fim, isto é, o objeto da ação. Assim que

4
Kant chega a afirmar: felicidade
5
Ackril
o desejo é despertado na parte desejante, busca-se os meios para realizá-lo, e esse é o
processo de deliberação (bouleusis). Esse é o segundo momento, em que o agente toma
a decisão a partir de razões que reconhece como as melhores e que pode dar lugar à
escolha (prohairesis), que é o que desencadeia a ação. Assim, o desejo ou o fim é o
princípio da deliberação, e a escolha deliberada é o princípio da ação (EN VI 2 1139a31-
33). Deve-se ter presente que afirmar que esses momentos da ação são em certa medida
independentes não conduz ao sentido de que não estão em relação. A escolha não é um
ato distinto do fim que é desejado e do pensamento que é o exame da deliberação sobre
os meios, mas é justamente o ponto de junção do desejo com o pensamento6. Com
efeito, delibera-se sobre o meio7 sempre a partir de um desejo que é o fim. Ainda que a
instância do desejo e da razão são momentos de um mesmo processo, eles são
independentes, pois há um hiato entre o que o desejo coloca como fim e dá início à
deliberação, e o que esta, que por sua vez é a análise dos meios e não mais do fim,
conclui como objeto de deliberação e que funciona como princípio de ação. São dois
aspectos constituintes do mesmo processo do agir moral em Aristóteles, mas pode-se
entendê-los como independentes pois “uma vez estabelecido o fim, examina-se como e
por que meios ele será realizado”8 (EN III 5 1112b15-16). Aristóteles reafirma a tese da
independência dos momentos da ação no livro VI, afirmando que “a origem da ação (sua
causa eficiente, e não final) é a escolha, e a origem da escolha está no desejo e no
raciocínio dirigido a algum fim” (EN VI 2 1139ª31-33).

É nesta independência entre o desejo e o agir mediante deliberação que a noção


de estar em nosso poder aparece enquanto possibilidade ao homem agir moralmente.
Aristóteles diferencia os dois momentos da ação, mas enfatiza também que eles são
complementares, pois a razão de algum modo incide sobre o desejo, e o desejo deve
aderir ao agir racional. Isso ocorre porque uma das teses mais importantes da Ética é

6
Gauthier. La Morale d´Aristote, pág. 30.
7
O termo meio é a tradução da expressão grega τò πρòζ τò τελοζ, isto é, “as coisas que se reportam ao
fim”. Cf. ZINGANO, pág 219.
8
Precisamente no mesmo capítulo e logo a seguir a essa passagem Aristóteles afirma que “quando, após
a deliberação, chegamos a um juízo de valor, passamos a desejar de conformidade com nossa deliberação”
(EN III, 3, 1113a25). Essa afirmação parece contrária e nega a conclusão que chegamos a partir da primeira
passagem, isto é, de que o fim é colocado inicialmente e que dá origem à deliberação. No entanto, no
capítulo dedicado ao estudo da incidência da razão sobre os fins buscaremos mostrar porque não há
inconsistência entre as passagens.
que tendo o poder de decidir em última instância por qual ação realizar a partir de uma
regra racional, somos senhores de nossas ações nos tornamos senhores, de certo modo,
dos fins tais como eles se nos apresentam. Aristósteles afirma expressamente que não
temos do mesmo modo9 o poder sobre a ação e sobre os fins, e a razão dessa diferença
está em que a deliberação está limitada unicamente aos meios, enquanto o desejo está
relacionado aos fins. Essa limitação, da razão aos meios e do desejo aos fins é visto
como uma das dificuldades que Aristóteles nos legou e tentativas foram feitas para
atenuá-la. Nossa tese, contudo, é de que essa limitação já manifesta a necessidade do
desejo ser aperfeiçoado, e que Aristóteles está justamente apontando para o papel
central do desejo na ação moral ao relacioná-lo com os fins. Como a possibilidade de
sermos de certa forma responsáveis dos fins aos quais nos inclinamos depende do modo
com que somos autores de nossas ações, cumpre primeiramente analisar em que
sentido a função deliberativa é importante para a ação e se relaciona com os meios para
a partir de então entender em que sentido é possível a razão incidir sobre o desejo e o
agente poder ser, de algum modo, causa e autor dos fins. Com efeito, se não estiver em
alguma medida sob o poder do homem ser responsável pela natureza dos fins tais como
lhe aparecem, o projeto ético estaria fadado ao fracasso, a ação correta seria
meramente questão de acaso e o plano humano estaria reduzido ao domínio natural.

Deliberação, escolha e ação

Como vimos, Aristóteles sustenta que no mesmo processo da razão prática há


dois aspectos distintos e independentes. Na argumentação em que está buscando
diferenciar a escolha do desejo, Aristóteles atribui a diferença entre as funções em razão
da escolha se relacionar com o meio, e o desejo ser responsável por determinar o fim10.
Desse modo, além das faculdades possuírem funções diferentes, parece que os objetos
com que se relacionam também são distintos.

Como parte de um mesmo processo, o desejo desperta um fim, que por sua vez
dá origem à deliberação que investiga os meios para realizá-lo. Embora delibera-se em
vista de um fim, o processo intelectual que é a deliberação pressupõe uma

9
EN.
10
“o desejo relaciona-se com o fim e a escolha com os meios” EN . “Não deliberamos acerca de fins,
mas a respeito de meios” EN
temporalidade estendida em que o homem, como ser de reflexão, pesa as razões que
possui em momento que precede a ação. Sabemos que é em referência à disposição do
agente que os fins aparecem de determinado modo. Contudo, no momento da
deliberação abre-se um hiato entre o desejo e a razão, e agora o agente delibera não
unicamente a partir de sua disposição, tampouco age automaticamente em função do
desejo, mas seu agir é agora resultado da apreensão das razões que reconhece como
verdadeiras. A deliberação busca a realização do fim tendo por base a investigação do
meio. O termo meio, como mostra Zingano, é a tradução da expressão grega τò πρòζ τò τελοζ,
isto é, “as coisas que se reportam ao fim”, e possui para além disso o sentido do modo de agir,
que está expresso na passagem em que Aristóteles relaciona a deliberação com os meios, e não
com os fins, pois “dão a finalidade por estabelecida e consideram a maneira e os meios de
alcançá-la;” (EN III, 5 1112b25). Dessa forma, analisar o meio não é simplesmente uma operação
intelectual subserviente e escrava do desejo, que unicamente busca alcançar um fim dado. É
nesta independência entre desejo e deliberação que a razão, que é designada como
aquilo que possui capacidade de estabelecer um plano ou regra, apropria-se do processo
que se iniciou com o fim desejado, e agora é dado ao agente poder orientar-se de acordo
com o que a razão prescreve como correto. De alguma forma, a deliberação tem por
base razões que não são hauridas da disposição de caráter, mas aquelas que o agente
se instituiu ou pode se instituir como regra de ação. Assim, a deliberação tem grande
importância para a ação moral, uma vez que ela instaura a “medida humana” para além
da physis, e possibilita ao homem agir de acordo com razões que se estabelece para si e
não unicamente em função de sua parte natural11. A noção de meio é, dessa forma,
intercambiável com a noção de ação, e por ser determinada pela função deliberativa faz
que aquilo que põe em movimento o agente seja o que foi decidido em função de exame
de razões e não mais a partir de sua disposição ou desejo.

Por ser aquilo que foi decidido através de deliberação que o agente passa a agir
e não mais a partir do desejo que a motivou, a deliberação pode fazer com que o
indivíduo desista de agir e neutralize o desejo que serviu como princípio da deliberação.
A razão é uma faculdade aberta aos contrários, isto é, aberta a possibilidade de dizer

11
Zingano interpreta que a recusa de realizar um fim que é possível ao agente mediante a deliberação
“instaura um plano humano para além do domínio natural” pág. 234
sim ou não para as razões que podem servir de princípio da ação, e com isso o filósofo
pode afirmar:

“Lá onde depende de nós agir, depende de nós também não agir, e lá onde
depende de nós dizer não, depende também de nós também dizer sim; por conseguinte,
se agir, quando a ação é boa, depende de nós, não agir, quando a ação é má, depende
também de nós;” (EN III, 7 1113b7-11)

Com isso, Aristóteles está introduzindo expressamente a noção de estar em


nosso poder em relação à ação. A noção de estar em nosso poder, que é recorrente no
livro III, é apresentada juntamente com outra noção, a saber, a do princípio da ação que
está em nós. Parece haver com efeito, como mostrou Gauthier12, haver certa falta de
clareza por parte de Aristóteles no uso das duas noções, pois ora o sentido de estar em
nosso poder se refere ao sentido psicológico de estar ao alcance do homem orientar-se
por razões para agir e controlar os desejos, e ora se refere ao sentido cosmológico, isto
é, aos objetos externos, no sentido de que só podemos deliberar e escolher sobre “as
coisas que estão em nosso poder”, que seriam aquelas coisas que podem ser de outro
modo e excluiriam, por exemplo, os objetos da ciência, os eventos passados e aquilo
que não depende de nós13. Ainda assim, as duas noções servem para apontar que pelo
princípio da ação estar no agente, assim está em seu poder agir ou não agir: “aquelas
ações cujo princípio reside no próprio agente estão ao alcance do agente de fazer ou
não fazer” (EN III, 1110 a17). A partir do que vimos, pode-se dizer que a deliberação é
uma análise regressiva, pois parte do fim desejado, e a conclusão da deliberação que na
ordem da análise vem em último lugar é o primeiro na ordem da ação14 e, uma vez que
o princípio da ação está no agente, é possível ao agente poder abster-se de agir
mediante o reconhecimento de que o único meio à sua disposição não é bom. O ponto
principal é que, em suma, segundo a tese da deliberação de Aristóteles quem age com
base em deliberação toma a decisão em função de razões que possui e não unicamente
em função do desejo que dá origem à deliberação. Ademais, se a ação não é realizada
irrefletidamente em função do fim, mas a partir de uma análise de razões pelo indivíduo,

12
Gauthier
13
Aubenque explora magistralmente o sentido objetivo e cosmológico em A prudência segundo
Aristóteles.
14
EN III, 3, 1113 a 1.
pode-se concluir que o homem é “um princípio motor e pai de suas ações como o é de seus
filhos”.

É importante notar, contudo, que há uma diferença entre o indivíduo reconhecer


que a asserção que é o último elemento da deliberação é o correto a ser feito e o
acatamento subjetivo desta asserção. A deliberação sobre o meio de realizar
determinado fim, ainda que conclua com a melhor asserção possível ao alcance do
sujeito, ainda não é condição suficiente para o agente realizar a ação. Isto porque o
processo de deliberação é uma análise de razões às quais se pode dizer sim ou não, mas
sua conclusão ou deliberação não é seguida imediatamente pela ação, pois deve ter o
assentimento do sujeito por meio da escolha (proairesis). A escolha, por sua vez, como
afirma expressamente Aristóteles, é tanto um intelecto que deseja como um desejo que
raciocina15. O assentimento que será dado pelo sujeito ao último elemento da
deliberação através da escolha é feito também a partir do estado de caráter do agente,
ou em termos aristotélico, de sua disposição (hexis). De fato, a escolha envolve um
princípio racional e o pensamento, mas também o desejo com um fim em vista. Como
escreve o filósofo, “[...]a escolha não pode existir nem sem razão e intelecto, nem sem
uma disposição moral; pois a boa ação e o seu contrário não podem existir sem uma
combinação de intelecto e de caráter” (EN, VI, 2). A escolha acrescenta à deliberação
dos meios um assentimento que esta não possui por si mesma e que leva à ação (EN, VI,
9, 1142-b15). A ação é precedida pelas razões que a deliberação fornece mas que não
são limitadas à natureza do indivíduo, mas o assentimento que é dado à conclusão do
que foi deliberado deve sê-lo também pelo pela disposição de caráter para que o
individue realize a ação. Assim, se a razão não é subserviente ao que o desejo
inicialmente adotou como fim e fornece razões, também o desejo não segue
automaticamente o que a razão conclui como o correto a ser feito e deve assentir de
algum modo para que o agente passe à ação.

Essa intepretação é compartilhada por Gauthier, que observa que a disposição


de caráter dirige a escolha e, por consequência, a ação. Na sua exposição sobre a
proairesis, ele observa que a escolha é um ato comum entre o pensamento e o desejo;
“o encontro do pensamento com o desejo leva assim à escolha e, pela escolha, à ação”.

15
“raciocínio desiderativo ou desejo raciocinativo” (EN 1139b15)
Desta maneira, a deliberação não conduz sozinha à escolha, pois o conhecimento não
possui por si mesmo a infalibilidade que leva necessariamente à ação. A disposição de
caráter é uma “hexis proairetike”, ou seja, disposição que dirige a escolha, e Aristóteles
define a virtude moral no livro II da Ética a Nicômacos como “uma disposição de caráter
relacionada com a escolha”. A relação da disposição de caráter com a escolha é afirmada
porque a disposição de caráter intervém na escolha dos meios, pois para Aristóteles o
conhecimento da regra moral não basta e se requer a intervenção do desejo para a
realização efetiva da ação.

Como, porém, interpretar a seguinte afirmação; “como o objeto da escolha é


algo ao nosso alcance, que desejamos após deliberar, a escolha será um desejo
deliberado de coisas ao nosso alcance quando, após a deliberação, chegamos a um juízo
de valor, passamos a desejar de conformidade com nossa deliberação” (EN III, 3,
1113a25). Há ainda a seguinte passagem que temos que lidar; “o objeto de escolha já
está determinado, uma vez que aquilo que foi decidido em decorrência da deliberação
é o objeto de escolha”, em que Aristóteles está expressamente afirmando que aquilo
que foi deliberado é de seguida o objeto da escolha.
Tais passagens estão precisamente no mesmo capítulo e logo em seguida à
afirmação que serviu de base para a intepretação que adotamos sobre a deliberação, a
saber, que ela sucede o desejo buscando os meios para realizar a ação a partir da análise
de razões, e que antecede a escolha, que põe termo à deliberação podendo dar origem
à ação ou abster-se de agir. Afirmar que passamos a desejar conforme a deliberação
parece negar a conclusão16 de que a deliberação é condição necessária para uma
escolha moral17, mas não suficiente, pois o agente não age automaticamente a partir do
que foi concluído através da deliberação. Temos que lidar também com essas
afirmações, que apresentam uma inconsistência entre passagens da Ética e dizem

16
As citações não poderiam servir de base textual para a interpretação de que é possível desejar um fim
que foi determinado pela razão, pois contraria e é incompatível com a tese já bem estabelecida de
Aristóteles de que a deliberação concerne unicamente aos meios e não aos fins. Se as passagens que
foram citadas afirmam que passamos a desejar após e em conformidade com a deliberação forem
interpretadas dentro da doutrina aristotélica da deliberação que a limita unicamente aos meios em
detrimentos dos fins, impõe-se a leitura que, nessas passagens, embora não o afirme expressamente,
Aristóteles está dizendo que passamos a desejar após a deliberação não o fim, mas o meio.
17
Aristóteles não nega que podemos agir sem deliberação, mas agir por escolha tem como condição a
deliberação prévia.
respeito à correta interpretação da noção de escolha, que parece articular as duas
instâncias, raciocinativa e desiderativa, embora pareça no momento ser apenas a
conclusão da deliberação, ato por excelência da razão na estrutura da ação.
Para não haver qualquer mal-entendido, deve-se enfatizar que estamos tratando
da deliberação e da escolha que, como é afirmado ex professo na Ética, relacionam-se
com o meio e não com o fim. Portanto, estamos investigando a estrutura da ação a partir
do desejo inicial que coloca o fim e que dá início à deliberação, à escolha e à ação. Ou
seja, não estamos ainda considerando o desejo inicial que adota certo fim, o que
faremos na segunda parte da pesquisa. A questão de fundo, portanto, é se podemos
concluir que para Aristóteles o agente que delibera sobre o meio necessariamente
deseja em conformidade com o que deliberou, ou é possível que o agente não realize o
que foi deliberado, podendo realizar, inclusive, seu contrário?
Acrasia como fraqueza de vontade

Há um exemplo concreto que Aristóteles analisa no livro VII, o caso da acrasia,


cuja menção pode esclarecer melhor em que sentido há uma divisão de operação entre
as partes racional e irracional dentro do mesmo processo de ação e mostra em que
sentido essas operações possuem independência. Como vimos anterioemente, há um
desejo inicial que põe o fim, este desejo por sua vez motiva a deliberação, uma operação
da razão, que investiga e faz uma análise dos meios. O objeto de deliberação do
indivíduo é imediatamente seguido pela ação, ou pode o agente possuir o conhecimento
do que deve fazer e, mesmo assim, não agir, ou fazer o contrário do que julgou?
Aristóteles quer compreender justamente a possibilidade da acrasia, pois julga
excessiva a identificação socrática de que as virtudes são razões. Da posição de Sócrates
decorre a impossibilidade da acrasia, pois, como observa Zingano, “tudo o que pode
ocorrer é que o agente ignore o bem, e aja assim de fato mal, mas nunca que, sabendo
qual seu bem, faça outra coisa por ser movido por uma paixão”. A posição socrática que
nega a possibilidade da acrasia18 diverge da posição na época comumente aceita que
via evidências empíricas de sua ocorrência, e constatava-se que por vezes, após a
conclusão pelo agente através de operação racional sobre o que fazer, este muitas vezes

18
A negação da acrasia afirmada por Sócrates parece ter sido amenizada por Platão aa República. Lá
está a famosa e significativa passagem que parece o retrato da acrasia: Deosdato, que ao ver um corpo
insepulcro e decomposto determina-se que o melhor é não observá-lo o olha a despeito de sua decisão.
caia em contradição prática e não agia em conformidade com o que foi deliberado, dessa
forma havendo um divórcio entre o que o agente conclui e o que faz. A investigação do
fenômeno da acrasia visa esclarecer como isso pode ocorrer, pois era de esperar que o
agente agisse conforme o que conclui por meio do cálculo racional.

A possibilidade e o reconhecimento da acrasia para Aristóteles não parece


apresentar grandes problemas, uma vez que ele concebe a ação como constituída pelo
cruzamento de duas faculdade distintas, a razão prática, que delibera sobre os meios, e
o desejo - este, é importante dizer, parece estar presente em dois momentos da ação:
enquanto desejo responsável por colocar o fim e que motiva a deliberação, e também
após a deliberação, enquanto constitui a escolha (proairesis), que deve dar
consentimento ou não ao que foi deliberado. Dessa forma, a possibilidade do fenômeno
da acrasia é visto por Aristóteles a partir do conflito entre as duas instâncias do sujeito:
a racional e a desiderativa. Neste sentido, a acrasia é pensada a partir do conflito entre
o que o agente conhece e delibera, e o que deseja em determinado momento. Poder-
se-ia objetar que Aristóteles afirma que o acrático não age por razão deliberada (EN
1114b13-14). No entanto, não agir por deliberação não significa que o acrático não
delibera19, mas o ponto fundamental é que mesmo o agente bem deliberando e
reconhecendo aquilo que deveria fazer, ele não faz por não ter sido “persuadido pela
razão” (EN) e age dominado pelo apetite (epithimia). Aristóteles enfatiza o papel do
conflito do acrático como base para que a o resultado do que deliberou a razão não seja
acompanhado e tomado como objeto do desejo, e o agente contrarie o próprio
julgamento. Isso ele expõe de modo manifesto, como a seguir;

“o mesmo homem é julgado continente e disposto a sustentar o resultado de


seus cálculos, ou incontinente e pronto a abandoná-los. E o homem incontinente,
sabendo que o que faz é mau, o faz levado pela paixão, enquanto o homem continente,

19
Enquanto fraqueza de vontade, a acrasia pode ser entendida pela substituição do desejo, que deveria
concordar com a razão deliberativa, por uma paixão. E o agente agindo por paixão, pode ser que o faça
sem deliberação, ainda que a paixão não seja impulso completamente racional, porque também
apreendido como bem. Ainda assim, no VI, portanto fora do tratado dedicado à acrasia, Aristóteles afirma
que o “homem incontinente e o homem mau, se forem hábeis, alcançarão como resultado de seu cálculo
o que propuseram a si mesmos, de forma que terão deliberado corretamente, mas o que terão alcançado
é um grande mal para si mesmo”. Na passagem, Aristóteles também aproximou a figura do incontinente
(acrático), que deseja e conhece o bem mas é demovido de agir pela paixão, e o maldoso (kakos), cuja
intenção é já perversa, mas age habilmente para realizar o fim.
conhecendo como maus os seus apetites, recusa-se a segui-los em virtude do princípio
racional” (EN VII, 1)

Indagávamos justamente a questão se, para Aristóteles, a ação é seguida ao que


imediatamente havia sido deliberado. Deve-se notar, contudo, que a acrasia não expõe
uma deficiência no argumento da ação, mas uma deficiência da parte desiderativa do
agente, pois incontinência é justamente visto como uma fraqueza de vontade em seguir
o que a razão prescreve. O problema, portanto, não está na razão, que deve determinar
a ação, mas em que, quando o agente terá deliberado corretamente, seria necessário
que ele agisse, mas a instância desiderativa pode impedir o homem de orientar-se pela
razão e “manter-se firme em suas convicções contra apetites poderosos”. Recusar agir
conforme o resultado do raciocínio e agir em função do apetite não significa, contudo,
afirmar que o agente está entre o que é racional e o plenamente irracional, pois o apetite
– assim como o desejo20, do qual o apetite é um tipo - não é o surgimento de um
elemento puramente irracional e avesso à razão. O agente delibera e tem consciência
do que deveria fazer, mas como seu desejo é contrário a seu julgamento, cai em
contradição prática. Em vez de agir conforme a deliberação, o acrático age por ser
vencido pelo apetite. A acrasia é uma fraqueza da vontade: isso significa que, antes dela
ser uma ação por impulso gerado sob uma afecção (pathos), ela é primeiro o abandono
do desejo que daria consentimento ao que foi concluído racionalmente como o correto
a ser feito. Ser acrático é ser vencido por um apetite que se mostrou mais intenso21 que
o desejo que deveria aderir ao agir racional. Age-se por acrasia quando um apetite toma
o lugar e faz as vezes do desejo que seguiria o que foi deliberado pela razão e daria
origem à ação. Portanto, a acrasia tem esse dois sentidos que quero salientar no conflito
da razão e do desejo: é tanto uma ação pelo agente motivado pelo apetite, como a
recusa do desejo em consentir com o resultado do cálculo racional. A ideia de acrasia é,
portanto, a ausência de um desejo que segue a razão em detrimento de um apetite que

20
Na segunda parte, abordarei em que sentido pode-se falar de um desejo em contexto racional,
mostrando que a interpretação de que a razão atua apenas após o desejo inicial que coloca o fim não
parece ser o que Aristóteles afirma.
21
No De anima, Aristóteles afirma que o conflito entre a razão e o desejo deve ser analisado não só pela
intensidade, mas também deve-se considerar a percepção do tempo do agente, pois o cálculo racional
conclui sobre a moderação com vistas ao futuro, e o apetite é influenciado pelo que aparece agradável e
bom aqui e agora, sem considerar o futuro (DA 433 b8-10)
faz com que o agente realize outra ação, que não é motivada pelo desejo racional. A
ideia do conflito está presente nesse sentido na seguinte passagem:

”tanto do homem que possui o conhecimento mas não o usa como daquele que
o possui e usa dizemos que sabem, [mas] fará grande diferença se o homem que pratica
o que não deve possui o conhecimento mas não o exerce, ou se o exerce; porque a
segunda hipótese parece estranha, mas não a primeira.”

Aristóteles está operando com a distinção entre o conhecimento que está em


potência e em ato. No fenômeno da acrasia, o conhecimento do que o agente deve fazer
é reconhecido, e nesse sentido pode-se dizer que está em potência. Contudo, como a
ação que deveria advir do conhecimento não ocorre, diz-se que o conhecimento não
está em ato, pois estar em ato seria precisamente o agente fazer uso do conhecimento.
Fazer uso do que a razão conclui como o que deve ser feito não ocorre, como vimos,
imediatamente e espontaneamente após a deliberação, pois que o desejo deve assentir
com o que foi deliberado. O desejo, contudo, não opera racionalmente. Quando
Aristóteles afirma que o agente não faz uso de seu conhecimento, pode-se entender
que o divórcio entre a razão e o desejo ocorre porque a parte desejante do agente não
está apta para aderir ao que a razão deliberou, de forma que a razão não consegue
operar sobre o desejo. No caso do acrático, ele está impedido de desejar conforme a
razão porque foi vencido pelo apetite.

Como mostra Aristóteles, para alguns é estranho que o homem detenha o


conhecimento e possa ser dissuadido de agir em conformidade com seu conhecimento
em razão de outro elemento que toma seu lugar, como o apetite. Esse argumento de
Sócrates é apresentado no Protágoras, em que analisa a crença da maioria das pessoas
da época de que era possível o homem conhecer o bem, mas não realizá-lo por ser
vencido pelo prazer. Sócrates adota uma postura hedonista associando o prazer ao bem,
e conclui que tal crença é incoerente, pois se o sujeito sabe que A é o melhor a fazer,
mas faz B por ser prazeroso, ele age pelo prazer, portanto pelo bem, pois o prazer é
identificado como bem. Sócrates dessa forma vai recusar o comportamento do
incontinente, pois se a indivíduo soubesse o que é o melhor para si, de modo algum
contrariaria o que julgou ser o melhor, e os homens apenas procedem assim por efeito
de ignorância. A proposta de Sócrates e Aristóteles divergem de forma considerável,
pois enquanto Sócrates entende que o homem só age mal em razão de uma deficiência
de julgamento e nada pode ser tomado no lugar de quem julga com acerto, Aristóteles
entende que o problema está em que os desejos do homem não estão em harmonia
com a razão, podendo não acompanhar imediatamente o que o agente julgou a partir
da razão e darem espaço para o que o agente seja movido pelo apetite.

Contudo, como visto, Aristóteles afirmou que “após a deliberação, desejamos


em conformidade com o deliberado”. Tivesse seguido esse raciocínio, certamente o
estagirita prosseguiria com uma argumentação que endossa o cognitivismo socrático,
para quem o conhecimento é condição suficiente para o agente agir corretamente.
Aristóteles, surpreendentemente, não o nega completamente: opõe-se ao
intelectualismo, chegando a afirmar expressamente que o “intelecto, sozinho, nada
move”, mas preserva em alguns pontos a tese de Sócrates. A oposição que Aristóteles
assume em relação a Sócrates é ainda tema de amplo debate, e discute-se em que
medida ele se distancia ou se aproxima da proposta socrática. Com efeito, Aristóteles
concede e mantém que a razão deve ter papel preponderante na determinação do agir.
No entanto, entende que a ação virtuosa não é realizada unicamente a partir do que o
agente delibera, e atribui um lugar de relevo ao desejo na ação. A inserção do desejo
como um crivo pelo qual deve passar, ou melhor, como instância que deve acompanhar
o que foi objeto de deliberação da parte racional é o aporte original de Aristóteles, que
veio a se somar ao intelectualismo socrático, que continua a ser assumido na Ética. A
boa deliberação é a operação característica do prudente, indivíduo que representa a
virtude em Aristóteles e que pesa as razões não mais a partir de sua disposição de
caráter ou unicamente em função do desejo, como vimos. Incluindo o desejo, contudo,
a razão não é mais condição suficiente para a ação virtuosa, mas requer-se que a parte
desiderativa esteja de acordo e tenha como objeto aquilo que foi deliberado, senão o
conhecimento prático não passaria de um conhecimento apenas pensado, sem alcançar
sua conclusão que é a ação.

No entanto, como mostra Zingano, Aristóteles não abordou o fenômeno da


acrasia unicamente a partir do conflito entre o desejo e a razão. O conflito é uma das
explicações que utiliza para explicar a acrasia, mas ele lança mão de uma certa
ignorância para dar razão ao que Sócrates afirmara ao basear a contradição prática, no
final do capítulo 3 do livro VII em que analisa a acrasia, em relação com o tipo de
conhecimento que o agente possui que é demovido pelo apetite, pois o agente não é
demovido de seu saber se este fosse propriamente conhecimento: “não é em presença
daquilo que consideramos conhecimento propriamente dito que surge a afecção da
incontinência (nem é verdade que ele seja "arrastado" pela paixão), mas o que se acha
presente é apenas o conhecimento perceptual.” (EN, VII, 3, 1147 b 15)

Essa afirmação traz grandes dificuldades e, de certa forma, cria uma ruptura na
argumentação de Aristóteles, que até o momento do tratado da acrasia havia apontado
para o conflito entre a razão e o desejo, que tem por base o aparecimento do apetite
que pode ser preferido em detrimento da ação originada pelo desejo racional. Isso,
como vimos, colocava o problema no desejo enquanto incapaz de seguir o que foi
concluído racionalmente. Aristóteles parece agora nos dizer que o problema de alguma
forma está no tipo de conhecimento do agente, e não mais em razão de um elemento
novo que demoveria o agente de agir em conformidade com o que deliberou. De certo
modo, é a tese socrática sendo revisitada, pois o agente que não agiu conforme sua
reflexão o faz porque o resultado de sua reflexão não era ciência, pois quem possui o
“conhecimento propriamente dito” sem nenhuma deficiência, isto é, em sua expressão
completa, necessariamente age em conformidade com seu conhecimento e não pode
ser demovido de agir por outro elemento, como a paixão.

A afirmação surpreende porque destoa da características do conflito entre a


razão e o desejo entre o qual Aristóteles havia situado a acrasia (que basicamente é a
possibilidade do desejo não acompanhar o que a razão conclui por ser demovida por um
apetite), e que se contrapõe à doutrina socrática que nega que a ciência pode ser
demovida pela paixão. Se Aristóteles quisesse apenas endossar a doutrina de Sócrates,
não haveria razão da investigação sobre a acrasia na Ética, notadamente antagônica em
sua maior parte em relação a doutrina socrática. Com efeito, Aristóteles distancia-se não
só no tratado da acrasia da concepção socrática, esforçando-se para nos alertar que o
conhecimento não basta para tornar o homem virtuoso, incluindo, a importância da
formação do desejo. No momento, porém, cumpre esclarecer em que sentido
Aristóteles entende o que é “conhecimento propriamente dito” (kyríos epistímis) em
seu sistema filosófico e, por conseguinte, se é possível determiná-lo em sua doutrina
ética.

A questão da phronesis

Para abordar a noção de ciência (episteme) na Ética a Nicômacos, devemos


também, e sobretudo, abordar a noção de prudência (phronesis), o que faremos de
modo sucinto e na medida que é relevante para o propósito do presente estudo, que é
mostrar que em Aristóteles é necessário que o agente eduque o desejo através da razão
para agir eticamente. Para mostrar como a razão pode determinar o desejo, é preciso
ter claro qual é o objeto da razão quando esta serve de orientação ao desejo. O que
também pode ser entendido, em outras palavras, pelo entendimento de qual é
“fundamento intelectual da moral de Aristóteles”22. Por certo, como dissemos acima,
esse tema será abordado de modo breve, pois a determinação de o que é intelecto
prático e seu objeto nas Éticas de Aristóteles é um problema bastante disputado entre
os comentadores, presente já entre os intérpretes antigos gregos, e que posteriormente
teve uma interpretação de linhagem intelectualista por Tomás de Aquino, e entre os
comentadores modernos o debate parece ter se acirrado ainda mais com o
aparecimento da intepretação empiricista feita por autores como Jaeger e Walter, e
mais recentemente, nas décadas de 60 e 70, os posicionamentos antagônicos entre
Aubenque e Gauthier23. Portanto, não buscaremos dar uma interpretação definitiva,
mas apresentaremos alguns pontos essenciais de alguns desses autores no debate para
assumir uma posição que entendemos ser válida para os objetivos do presente estudo.

Mencionou-se acima que é preciso abordar o que Aristóteles entende por


“conhecimento propriamente dito” (kyríos epistímis) citado no tópico anterior, em que
mostramos que o problema da acrasia é entendido tanto como uma fraqueza da
vontade em adotar o que foi deliberado pela instância racional, como também a
possibilidade da acrasia ser uma deficiência na forma do conhecimento, ou seja, que a
depender da forma de conhecimento que o agente possui, se este saber for o

22
Título do livro de uma obra do padre Gillet, citado por Aubenque em A prudência de Aristóteles, pág.
51.
23
O debate sobre a phronesis mostrou-se tão irresoluto na discussão em Aubenque e Gauthier que este
último faz a seguinte pergunta em seu comentário após ter lido a obra de Aubenque que trata
especificamente do tema; “A questão que fica em aberto é, afinal, o que é a phronesis?”
“conhecimento propriamente dito” (kyríos epistímis), de modo algum seu desejo
poderia deixar de dar consentimento à razão e não concluir realizando a ação motivada
pela deliberação. Como vimos, esses posicionamentos parecem de alguma forma
inconsistentes, negando e corroborando a doutrina platônica ao mesmo tempo;
negando-o quando visto como fraqueza da vontade em determinar-se pela razão, e
corroborando-o enquanto é entendida como uma deficiência de conhecimento, pois
como vimos Aristóteles também define a acrasia como um erro moral que provém da
ignorância do conhecimento propriamente dito, uma vez que o agente que erra é
porque desconhece o que é o melhor para si, do contrário o escolheria.

Na passagem em que Aristóteles expressa que não é diante do “conhecimento


propriamente dito” que o desejo cede, poder-se-ia concluir que o kyríos epistímis possui
uma força que atrai necessariamente para si a ação moral, e assim que esse saber não
pode ser substituído pela paixão. É preciso portanto ter claro o que está sendo suposto
como essa forma de conhecimento, e se esse conhecimento tipo de conhecimento é
possível no conhecimento prático e possui na Ética a Nicômacos a força de atrair
inelutavelmente a ação moral.

De acordo com Gauthier, a exegese dita “sistemática” ou ainda “tradicional”, que


alcançou grande relevância na obra de Tomás de Aquino, revelou numerosas
contradições nas obras de Aristóteles, mas as contradições não foram empecilho para
lidar com os textos. Para interpretá-las, buscou-se explicações em outras partes do
“sistema” – a ideia do corpus aristotelicum. Dessa forma, por exemplo, para
fundamentar os tratados éticos buscou-se explicações na psicologia e na Metafísica. Por
outro lado, a exegese dita “genética”, teve início com a obra Aristóteles de Jaeger, a
qual, segundo Aubenque, serviu-se das contradições presentes nas parte do Corpus
aristotelicum para propor que estas não poderiam ter se dado no mesmo período
cronológico, mas revelavam uma evolução do pensamento de Aristóteles, e as teses
conflitantes deveriam ser vistas como partes de etapas distintas e assim “deixam de ser
signos de incoerência para se tornarem testemunhos de uma gênese”24.

24
AUBENQUE, P., A prudência em Aristóteles, p.25.
Embora as referidas exegeses divergem quanto à forma de lidar com as
inconsistências das obras, parece haver um ponto sobre o qual convergem; os autores
representantes da exegese “sistemática” distinguem os tratados éticos de Aristóteles
diferenciando-os a partir do público a que se destinam25, mas apesar das conclusões
divergentes acerca da autenticidade dos tratados e do público ao qual são destinados,
consideram que há uma só doutrina ética, que é fundada não sobre as Ideias platônicas,
mas refletem o pensamento autêntico de Aristóteles que se baseia na natureza e na
experiência.

A outra modalidade de exegese, a chamada exegese genética surge, como vimos


acima, com a intepretação de Jaeger, o qual sustentou a tese que Aristóteles utiliza a
noção de phronesis como sinônimo de episteme e não tem o trabalho de dividir as duas
formas de conhecimento em obras como Metafísica, no De coelo e na Física, e faz a
distinção entre a phronesis e episteme apenas na Ética a Nicômacos. Assim, na
Metafísica lemos que a teoria das Ideias foi formulada por Platão para salvar um saber
imutável dos objetos imutáveis, uma vez que admitida a doutrina heraclitiana da
realidade entende-se que não há ciência sobre os objetos sensíveis que estão sob fluxo
permanente, e que “portanto, se deve haver ciência e conhecimento de alguma coisa,
deverão existir, além dos sensíveis, outras realidades que permaneçam imutáveis”26.
Como observou Aubenque, nessa passagem Aristóteles está fazendo uso do termo
phronesis (conhecimento) e epistemis (ciência) como sinônimos, designando ambos,
como vimos, o saber das naturezas invariáveis. A noção de phronesis irá apresentar uma
evolução nos textos éticos, como presume a exegese genética; é utilizada como a
mesma noção filosófica que seguindo o uso platônico, como no Protético, em que a
phronesis representa a ciência dos seres imutáveis, e este conhecimento serve também
de fundamento para a ação correta. Como sabemos, essa acepção é a de Platão, como
no Filebo, diálogo em que a phronesis é a contemplação dos objetos imutáveis e que
serve como base da ação correta e, por conseguinte, da vida boa. Aristóteles utiliza a
phronesis no Protrético também como sinônimo dos termo epistemê, e além do mesmo

25
Düring 1961, advoga que Magna Moralia se dirige a alunos mais jovens, o Protréptico tem fins
“publicitários”, a Ética Eudêmia serve a ouvintes mais eruditos, e a Ética Nicomaquéia é mais adequada
ao grande público. Os estudiosos buscaram também fundamentar a diferenças dos tratados éticos sobre
a autenticidade ou falsidade de cada uma delas, e chegam as conclusões completamente divergentes.
26
ARISTÓTELES, Metafísica, 1078b15.
uso na Metafísica, o faz também no De coelo e na Física, designando a phronesis como
o “conhecimento por excelência”27. Dessa forma, inicialmente a noção de phronesis
utilizada por Aristóteles é tanto um saber que compreende a natureza das coisas como
o saber propício para o conhecimento do que é útil para a vida. A evolução por que
passará a phronesis ocorre pela separação e distanciamento gradual por Aristóteles da
teoria das Ideias de seu mestre Platão, e que alcança seu ponto de culminância na Ética
a Nicômacos. Nesta obra, que Jaeger considera ser o último estágio da ética aristotélica,
a noção de phronesis e de episteme são dissociadas definitivamente, representando
realidades completamente diferentes e que de certo modo se opõem. Aristóteles
introduz uma subdivisão na parte racional da alma, e uma destas partes se relaciona
com as coisas que podem ser diferentes do que são, ou seja, podem variar: esta é a parte
calculativa, cuja virtude é a phronesis e designa agora o saber que avança por
deliberação para atingir o “bem humano” e passa a designar justamente o saber
direcionado aos objetos particulares, que são contingentes e mutáveis. A outra parte da
alma racional é dita científica (epistmionikon) e denota a ciência superior dos objetos
imutáveis. No Protrético, portanto, Aristóteles não se preocupa em distinguir o saber
superior e teorético, que é a busca do conhecimento por si mesmo, do saber voltado ao
que é últil para a vida, e ambos estão compreendido na noção de phronesis. Na Ética a
Nicômacos essa diferenciação é feita de forma taxativa, e segundo Jaeger é a phronesis
aparece despojada de todo o seu alcance teorético e diferenciada sua esfera da sophia
episteme:

“A Ética a Nicômaco oferece um quadro totalmente diferente. Nesta obra está rejeitada
definitivamente a phronesis do Protréptico. No livro sexto dedica-se um espaço considerável à
questão do lugar da phronesis entre as faculdades intelectuais. Em todo lugar lê-se nessas linhas
uma intenção polêmica. Aristóteles reduz o termo à sua significação na linguagem usual, isto é,
ao sentido que tinha antes de Platão”.

Desse modo, quando Aristóteles entende que o agente possuidor do


“conhecimento propriamente dito” ” (kyríos epistímis) não pode ter seu desejo pelo
objeto da deliberação demovido por uma paixão - como ocorre no fenômeno da acrasia
- , devemos ter presente que apesar do Estagirita reconhecer a força de atração moral

27
AUBENQUE, pág. 43.
do conhecimento assim como Platão, ele não mais entende a noção de conhecimento
prático do mesmo modo que seu mestre, pois já havia rompido com a doutrina platônica
das Ideias. Na Ética a Nicômacos, o saber das coisas superiores é agora designado como
sophia ou episteme, onde Aristóteles também afirma que esse é o conhecimento por
excelência, pois a prudência não é a forma mais elevada de saber, pois enquanto essa
versa sobre o que é vantajoso ao homem, a espiteme se relaciona com os objetos
superiores, pois há “outros seres muito mais divinos que o homem, por exemplo, para
nos atermos aos mais manifestos dentre eles, os Corpos dos quais o Universo é
formado”28. A diferença está que o conhecimento das outras realidades além dos seres
sensíveis, de uma Norma transcendente, não é mais o fundamento da ação. O
conhecimento transcendente da episteme pretende-se imutável porque versa sobre
objetos imutáveis, mas não pode prestar qualquer auxílio como norma imediata da
ação, que ocorre sobre o particular. Em todo o livro VI da Ética a Nicômaco Aristóteles
faz a dissociação entre conhecimento metafísico e prático, entre ciência e prudência,
entre razão teórica e razão prática. A phronesis que deve ser “capaz de orientar a ação
rumo ao que é imediatamente útil e bom para o homem, mas sem nenhuma referência
à norma transcendente”29. Aristóteles tem muito cuidado em opor a phronesis da
episteme:

Dessa forma, a phronesis que havia compreendia também o conhecimento


metafísico que é a episteme30 e que segundo Jager no
Protrético servia como norma da ação, agora aquela não encontra mais nesta um
modelo e guia, e deve procurar em seu próprio nível uma nova norma.

Portanto, a referência de Aristóteles sobre o “conhecimento propriamente dito”


” (kyríos epistímis) como sendo a forma de conhecimento ante o qual não ocorre a
acrasia é surpreendente, uma vez que na Ética a Nicômaco a episteme não fornece mais
qualquer auxílio para a ação moral e é excluída do conhecimento que deve orientar a

28
EN, 1141 a 24.
29
30
“Citou-se acima os textos, especialmente a Metafísica, que provam que phronesis é sinônimo de
sophia ou de epistêmê, e designa o conhecimento por excelência, exatamente como no Protrético. Tudo
de passa como se Aristóteles, por uma espécie de negligência terminológica [...] continuasse a empregar
a palavra no sentido platônico, mesmo quando, no domínio ético, ele já tinha renunciado há muito
tempo ou mesmo criticado expressamente” AUBENQUE, p. 43.
ação. Segundo Aristóteles: “Que a sabedoria prática não se identifica com o conhecimento
científico, é evidente; porque ela se ocupa, como já se disse, com o fato particular imediato,
visto que a coisa a fazer é dessa natureza.”

Se a phronesis perdeu a base transcendental de outrora, qual será agora seu


critério? Pode-se dizer que a phronesis é criadora de um tal saber, e que por descuido
Aristóteles queria afirmar que é ante o que é propriamente prudência (kyríos phronesis)
que o desejo segue o que foi deliberado, e diante da prudência não ocorre o fenômeno
da acrasia? Para Aristóteles, na Ética a Nicômaco a phronesis é a virtude da parte
calculativa da alma, que avança agora por deliberação, e não por “dedução”. Ora,
delibera-se apenas sobre o que é possível ser de outro modo, isto é, sobre os
particulares e, ademais, “delibera bem no sentido irrestrito da palavra aquele que,
baseando-se no cálculo, é capaz de visar à melhor, para o homem, das coisas alcançáveis
pela ação”. Se a finalidade é agir e as circunstâncias sobre as quais agimos variam, a
regra de ação também varia de acordo a com a variabilidade das circuntancias, assim
como régua de Er.

Eis parte da definição que Aristóteles faz da virtude, que ora nos interessa: “a
virtude [..] consiste numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é
determinada por um princípio racional próprio do phronimos —homem dotado de
phronesis.” Na definição de virtude, Aristóteles afirma que a reta regra (ortho logos) é
tal como o determina o homem prudente. A afirmação, como bem observa Aubenque,
nos coloca o problema do critério na Ética, pois a regra da ação deixa de ser uma medida
objetiva e passa a ser o que o indivíduo prudente determina. O indivíduo prudente, por
seu turno, não age tendo como medida as Ideias abstratas, por exemplo, do que é o
justo em si, objetivando alcançar o Bem em si de uma Totalidade abstrata, como o sábio-
teórico deve agir segundo Platão, que considerava ciência essas formas de
conhecimento como base da ação, mas o bem do homem (EN VI, 13). Por isso, na Ética
a Nicômaco o julgamento ético é comparado ao julgamento do carpinteiro sobre o
ângulo reto, pois este o analisa na medida em que é útil ao seu trabalho, diferente do
geômetra que “indaga o que ou que espécie de coisa ele é; pois o geômetra é como que
um espectador da verdade” (EN I, 7, 1098 a 26).
A mudança radical de sentido da phronesis, último estágio na gênese da ética de
Aristóteles, promoveu entre os comentadores uma disputa acirrada sobre a
possibilidade de não apenas existir uma norma geral para a ação aos moldes da Ideia de
Platão, que parece já abandonada pelo estagirita, mas também sobre a possibilidade de
um não hdo agente poder é a Ética Nicomaquéia Aristóteles também concebe que a
ação deve ter a orientação da razão, mas diverge quanto à regra adotada pela razão

As traduções de logos variam entre a noção da faculdade racional do homem, e


a regra que a faculdade racional se determina e serve de norma para a ação. Optamos
pela primeira, pois Aristóteles, ao dividir as virtudes da alma entre a virtude do caráter
e a virtude do intelecto, afirma que a alma possui duas partes “a que concebe uma regra
ou princípio racional e a privada de razão”. Com efeito, a formação das disposições de
caráter não são obras mais do estudo e do conhecimento, mas da prática de ações e do
hábito, pois que a parte da alma da qual é virtude é irracional. Contudo, as disposições
devem ser adquiridas conforme as escolhas (proairesis), pois que não são dadas
naturalmente, através da prática de ações concordando com uma regra da escolha
determinada pela razão.

Muito já foi dito sobre a reformulação da noção de phronesis na história da


filosofia antiga, assim como das modificações que o conceito que teve dentro do
pensamento de Aristóteles31. De uma noção de sabedoria sobre os elementos mais
elevados e dignos de estima para uma noção mais lata sobre “aquilo que não é o que
há de melhor no universo” que é a vida humana, a sabedoria prática diz respeito na Ética
a Nicômacos aquilo que é variável. Por ter como objeto o que é variável e ser
sumariamente imperativa, isto é, ordenar a ação considerando as circunstâncias nas
quais ela ocorre, o critério que a prudência utiliza é também variável32. Mais ainda, o
problema do critério aparece porque Aristóteles não afirma expressamente qual é a
característica do julgamento que define a prudência33. No lugar de determinar qual é a

31
Cf. Jaeger. Aubenque.
32
Variável
33
Cf. Aubenque e Ackril.
reta regra (ortho logos), Aristóteles aponta para a figura do prudente, que manifesta em
suas ações a regra e que define o critério. Desse modo, não é a definição da regra que
define quem é prudente, mas é o prudente que determina qual é a regra. Se Aristóteles
acentua o caráter contingente dos particulares, marcado pela mudança e a variabilidade
das circunstâncias, aquilo que é “propriamente conhecimento” no domínio da ação
sofre grande mudança, podendo mesmo ocorrer que aquele que não sabe mas possui a
experiência seja mais prático que os outros que sabem (EN, VI, 7, 1141 b 17). O motivo,
segundo Aristóteles, é que; “essa espécie de sabedoria diz respeito não só aos universais
mas também aos particulares, que se tornam conhecidos pela experiência. Ora, um
jovem carece de experiência, que só o tempo pode dar.”

Não quero, porém, entrar no conhecido problema do critério da prudência da


Ética. Como vimos, Aristóteles diferencia o domínio da sabedoria prática daquele da
ciência; aqui, o parâmetro utilizado para diferenciar a prudência da ciência é o objeto,
pois enquanto se delibera sobre o que é variável, a ciência diz respeito ao necessário e
não-variável. A prudência também se distingue da arte, pois a prudência visa à ação,
enquanto arte visa a produção (EN VI). Aqui nota-se uma diferença, pois as coisas
produzidas da arte está na mesma classe do variável com as coisas praticadas (EN VI, 4,
1140a); ou seja, do contingente, que pode ser entendido em dois sentidos: aquilo que
pode ser como não ser (p. ex., o homem que deixará de sê-lo, ou o objeto produzido
etc.), e aquilo que pode ser diferentemente. A ação prática e a ação produtiva estão
juntamente na classe do variável, e também se assemelham por possuírem um fim
qualquer em vista, pois aquele que age o faz tendo em vista um fim assim como quem
produz alguma coisa o faz com um fim em vista (EN, VI, 2, 1139b1). O que diferencia,
assim, a arte da sabedoria prática? Para Aristóteles, a diferença é que a arte tem seu
valor pela coisa que é produzida e não pela ação que a produz, enquanto que a ação
prática possui valor por si mesma, pois é a boa ação o fim ao qual visa o desejo. A
diferença da prudência e da arte é, portanto, não possuir ou não finalidade, como entre
o conhecimento prático e o teórico, mas o tipo da finalidade, pois “ao passo que o
produzir tem uma finalidade diferente de si mesmo, isso não acontece com o agir pois
que a boa ação é o seu próprio fim” (EN VI, 1040 11 4 b). A afirmação trouxe um
problema gigantesco que é, basicamente, se a filosofia moral de Aristóteles é ou não
heterônoma, como foi apontado corretamente por Gauthier, e do qual trataremos mais
adiante. Segundo ele, Aristóteles desde o primeiro livro trabalha com o esquema de
meios e fins, em que a ação é boa na medida em que promove a realização de um dado
fim, que nos foi apresentado como a eudaimonia, pois os indivíduos põem como fim a
vida feliz. No livro VI, precisamente na passagem acima, Aristóteles introduz a noção de
que a ação possui um valor intrínseco, isto é, não possui valor por um fim diferente dela
mesma, mas por si mesma. Essa afirmação se confronta com o esquema meio-fim
adotado no livro I. Novamente alternando a base, Aristóteles prossegue afirmando que
é pela boa ação ter um fim por si própria que reconhecemos a qualidade prudencial em
um personagem como Péricles e homens como ele, pois estes são prudentes por serem
capazes de perceber o que é bom para si mesmos e para os homens em geral (EN, VI, 5,
1140 b 8). Dessa forma, com efeito, Aristóteles parece não estar convicto se descreve a
ação moral pelo esquema meio-fim, isto é, como um meio para alcançar um fim, ou se
pretende descrevê-la tendo em vista a ação com um valor por si mesma e não na medida
em que contribui para o fim humano.

A caracterização que Aristóteles faz a respeito dos homens prudentes como


aqueles que se preocupam com o bem dos indivíduos e da sociedade - contrariamente
a filósofos como Tales, que investiga coisas grandiosas, mas inúteis – é apenas um modo
de Aristóteles caracterizar a prudência a partir da análise tipológica de pessoas em quem
reconhecemos essa qualidade. A definição da prudência, porém, também é dada
expressamente, pois segundo Aristóteles “a sabedoria prática deve, pois, ser uma
capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito aos bens humanos” (EN 1140
b 20)34.

34
A prudência é definida também em 1040 b 4, com uma pequena variação; “Resta, pois, a alternativa
de ser ela [prudência] uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são
boas ou más para o homem”.
Não buscaremos, destarte, justificar o posicionamento que encerra o tratado,
mas buscar novamente colocar em relevo o que Aristóteles apresenta como sua
doutrina da ação moral.

As explicações apresentadas anteriormente já dão certa noção da doutrina de


Aristóteles. Contudo, o ponto levantado anteriormente motiva apresentar em que
sentido Aristóteles entende as operações racional e desiderativa como independentes,
que nos levou ao problema que a razão em sua atividade deliberativa não ser apenas
instrumental do desejo, mas agir por razões e cálculo que ultrapassam a disposição de
caráter, assim como que o desejo não acompanha imediatamente a deliberação. Para
ilustrar o problema, recorremos à exposição do fenômeno da acrasia, que mostrou
justamente que o desejo não segue o que a razão conclui como objeto de ação.

Na acrasia, o desejo que deveria acompanhar a razão é substituído pelo apetite.


Contudo, entende-se que mesmo sem existir a paixão que move o agente e o impede
de agir conforme o que prescreve a razão, Aristóteles entende que a formação moral do
agente deve passar não só pela deliberação correta, mas pela educação do desejo de
forma que esse tenha como objeto aquilo que foi deliberado pela razão. Deixemos claro,
novamente, que o desejo atua em dois momentos da ação segundo Aristóteles, como
desejo inicial que põe o fim, e como desejo como uma da parte da escolha que age
posteriormente e deve dar consentimento ao objeto da deliberação.

No tratado da acrasia, Aristóteles expôs a relação de conflito como causa da


contradição prática. A acrasia, sucintamente, é a desistência do desejo em assentir com
o deliberado em substituição pelo apetite. Assim definida, está presente a desarmonia
do desejo em relação à razão, no sentido de que aquele não consegue atualizar o saber
que o agente possui em potência. Aristóteles expressa essa peculiaridade da natureza
humana (1147a) mencionando o caso daquele que, embriagado, cita os versos e as
demonstrações de Empédocles (1147ª20), como aquele que repete a lição após acabar
de aprender (1147ª21), ou que cita um texto como fazem os atores (1147a22). Poder-
se-ia traçar um paralelo do fenômeno singularmente humano da acrasia com o da
hipocrisia, que não é mais do que reconhecer e proferir como verdade o que se deve
fazer e mesmo requisitar dos outros fazê-lo e, no entanto, não acompanhar as próprias
palavras. Outra expressão de origem popular, como é ao gosto de Aristóteles se referir35,
é aquela que muitas vezes dizemos de alguém que fala da boca pra fora. Como era
crença corriqueira na época do estagirita, reconhecia-se que o homem possui a
peculiaridade de concluir por um modo de agir e, por algum motivo, não fazê-lo.
Aristóteles está claramente apontando que a causa dessa contradição prática está na
desarmonia entre a razão e o desejo. A solução dessa contradição prática é apenas
possível porque o desejo pode e deve ser aperfeiçoado pela razão, como veremos
adiante.

Pode-se dizer que a noção de sabedoria prática36, para Aristóteles, envolve o


elemento desiderativo. Dessa forma, quando ele afirma que não é propriamente
conhecimento que é demovido em razão da paixão que o incontinente age, pode-se
apontar que o conhecimento, nas questões práticas, é um conhecimento que o agente
deve possuir como parte de si mesmo e não apenas um conhecimento que pode ser
reconhecido como verdadeiro e enunciado pelo agente. A distinção do conhecimento
prático, portanto, é que para ser realmente conhecimento não é suficiente que seja
verdadeiro (que é relevante para o calculo deliberativo), mas que de certo modo seja
um conhecimento que é parte da disposição do agente. É exatamente essa noção que
Aristóteles quer passar ao comentar que nada prova o fato de alguns homens usarem a
linguagem própria do conhecimento, pois;

“Para ser realmente conhecida, é preciso que se torne uma parte deles, e isso
requer tempo. Logo, é de supor que o uso da linguagem por parte de homens em estado
de incontinência não signifique mais que as declamações de atores em cena.”

35
. A análise que Aristóteles realiza na Ética sendo mais intérprete sobre tipos e sobre a linguagem popular
do que um crítico que propõe ampla mudanças é atestado por descrições como “A melhor forma de
considerar o que é prudência é considerar quais são os homens que chamamos prudentes”, ou. ... Em
geral, a abordagem das virtudes seguem um padrão não sistemático e descritivo, fazendo referência
normalmente ao que se faz e o que se ouve em sua época, eu valem como manifestações das próprias
coisas enquanto dados da experiência ou um uso linguístico. Cf. Aubenque, pág 67.
36
O termo também é traduzido por prudência.
e levanta o problema de como a disposição do agente pode ser aperfeiçoada
para que este passe a desejar em conformidade e a dar o assentimento ao que a razão
prescreve.

Disposição do caráter e hábito

Como havíamos visto, há dois aspectos independentes dentro do mesmo


processo da razão prática que, no entanto, são complementares. Analisamos até o
momento em que sentido eles são independentes e, especificamente, em qual sentido
se diz que está no poder do homem o princípio de ação. Então, se impôs a dificuldade
de que, embora pela deliberação o agente possa instituir-se um plano que julga correto
de ação, é necessário que este tenha o assentimento do agente, que é o mesmo que
dizer que o agente deve desejar o que foi concluído através da deliberação.

Com efeito, Aristóteles adverte que

para decidir agir ou não que busca os meios para realização do fim o que leva à
ação não é mais unicamente o desejo, mas o assentimento que o agente dá ao escolher
agir ou não de acordo com as razões propostas. Agir com base na deliberação é,
portanto, agir com base em razões e não em referência ao desejo que motivou a
deliberação. Por essa razão, a partir da deliberação o indivíduo age de acordo com as
razões que reconhece como boas, ou se recusa a agir se os meios à sua disposição não
são reconhecidos como bons.
“no propósito reside o elemento essencial da virtude e do caráter.” Se a virtude do
caráter assegura a retidão da escolha deliberada, como a virtude do caráter pode ser formada –
ou seja, ainda não está aperfeiçoada - através da prática de ações corretas? (A eudaimonia é
entendida como atividade que tende para a virtude, não durante um curto espaço de
tempo, mas deve “estender-se por toda a vida” (EN, I, 7, 1098a21). A vida virtuosa
também é por definição necessariamente acompanhada de prazer. Desse modo, a
doutrina de Aristóteles indica que é possível que o indivíduo realize atos virtuosos e
tenha simultaneamente uma vida feliz e prazerosa.)Contudo, se o desejo é incapaz de
conceber o plano que possibilita atingir o fim último, é preciso que o desejo obedeça ao
plano que a razão é capar de impor e se habitue a ter prazer com o que deve. Assim, a
tendência a sentir prazer e dor pelo desejo deve ser orientada pela razão em torno das
ações corretas. No entanto, ao problema que surge quando Aristóteles define o desejo
como determinante da finalidade, mas mostra-o como incapaz de compreender a ação
correta a ser feita, soma-se a distinção que faz da razão; esta tem a capacidade de
compreender a correção, no entanto é limitada a se relacionar com o meio, embora
Aristóteles por vezes a incumba de determinar o objeto de escolha através da
deliberação, após o que passamos a desejar o objeto deliberado. (EM)

Se o desejo se guia pelo que é prazeroso, é necessário que a ação


verdadeiramente boa a que chegou a operação racional seja prazerosa para o agente
que a pratica, do contrário o homem estaria fadado a desejar sempre erradamente e
não se satisfazer jamais com a boa ação. Como se sabe, Aristóteles não exclui o prazer
da vida virtuosa, assim como não vê no prazer um obstáculo para realização da ação
moral. Inicialmente, desejamos uma ação pelo prazer que esperamos obter dela, e
aquilatamos a boa ação pelo prazer que decorre de sua prática. Contudo, ao dizer que
“o prazer inerente a uma atividade digna é boa, e o inerente a uma atividade indigna é
mau” Aristóteles indica que o prazer não pode ser determinante do valor moral da ação,
mas é antes a atividade que determina o valor moral do prazer. De fato, se o prazer fosse
buscado em si mesmo, o agente o buscaria independente da ação ser moralmente boa
ou má. O problema é que o prazer é um produto secundário da atividade (EN XXXX) e a
vida levada em busca dele por si mesmo negligencia a correção das atividades das quais
ele advém, e essa é a vida que Aristóteles busca dissuadir as pessoas de seguirem. A
opção oferecida por Aristóteles é que ação moralmente correta é aprazível e atende à
necessidade do desejo de obter prazer. O prazer ser vinculado com a ação moral é ponto
fundamental para ser possível a formação da disposição moral do agente, pois
possibilita que o agente não busque o prazer independente da ação, mas possa
consegui-lo através da ação correta. Em outras palavras, ao afirmar que a boa ação é
também prazerosa e ao considerar que há um elemento irracional que é capaz de se
submeter ao que a razão apresenta como bem verdadeiro, Aristóteles está expondo um
projeto ético em que o bem último é possível de ser alcançada mediante a harmonia
entre o desejo e a “razão correta” (ortho logos).
A afirmação de que o ato virtuoso é prazeroso em si mesmo é feita de modo
enfático por Aristóteles no cap. 8 do livro I:

“Com efeito, o prazer é um estado da alma, e para cada homem é


agradável aquilo que ele ama: não só um cavalo ao amigo de cavalos e um
espetáculo ao amador de espetáculos, mas também os atos justos ao amante da
justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude. Ora, na maioria dos
homens os prazeres estão em conflito uns com os outros porque não são
aprazíveis por natureza, mas os amantes do que é nobre se comprazem em
coisas que têm aquela qualidade; tal é o caso dos atos virtuosos, que não apenas
são aprazíveis a esses homens, mas em si mesmos e por sua própria natureza”

Seguindo o procedimento de distinção de gênero caro a Aristóteles, podemos


dizer que toda ação virtuosa é prazerosa, mas nem toda ação prazerosa é uma ação
virtuosa. No entanto, a proposta aristotélica que supõe que a ação virtuosa é boa em si
mesma coloca um problema: isso significaria assumir que o homem injusto sente prazer
e não se aborrece ao praticar atos justos, pois esses são aprazíveis em si mesmos. Mais
ainda, poderia se depreender que se a tendência natural do desejo é buscar o prazer e
evitar a dor, e se o desejo é capaz de se orientar pelo que ajuíza a razão, o mero
conhecimento pelo agente do que é verdadeiramente bom e, por consequência,
prazeroso, seria suficiente para o desejo desejar a ação virtuosa. No entanto, se assim
fosse, a proposta aristotélica não de distinguiria da proposta socrática em que a virtude
é alcançada pelo conhecimento do bem. É sabido, no entanto, que Aristóteles critica a
concepção intelectualista socrática justamente com a proposta de que a razão (logos)
não é princípio de ação; a razão se limitaria a deliberar sobre os meios, e cabe à
disposição do agente se dirigir aos fins que são objetos de desejo.
A relação entre desejo e razão é tema de não pouca controvérsia. A noção de
escolha (prohairesis) que Aristóteles discorre de modo ex professo, é definida como
princípio motivador da ação (EN 1139a31), e é um processo que “requer o uso do
pensamento e da razão” (EN 1112 a-16) e também envolve o desejo, pois “a excelência
moral é uma disposição da alma relacionada com a escolha, e a escolha é o desejo
deliberado” (EN 1139a26), sendo a origem da escolha “o desejo e o raciocínio com um
fim em vista” (EN 1139b4). Assim, Aristóteles vai definir a prohairesis como “raciocínio
desiderativo ou desejo raciocinativo” (EN 1139b15), Com efeito, parece haver na Ética a
Nicômaco afirmações em que é possível constatar que na estrutura temporal da ação os
processos de deliberação e escolha, funções da parte calculativa da razão, e o desejo,
função da parte irracional, podem se alternar enquanto elementos que engendram a
ação. Primeiro mostremos de que forma o desejo pode anteceder a função calculativa
do processo racional, e que é tese bem estabelecida na ética aristotélica. Nesse caso, é
a disposição do agente que faz com que o desejo acolha como fim o que lhe aparenta
como bem, e em seguida cabe à parte calculativa a decisão sobre os meios adequados
para realização do fim. Aqui, o cálculo racional não está relacionado à determinação do
fim verdadeiramente bom, mas sobre o que é útil e mais adequado para atingir o fim
que foi posto pelo desejo. Pois, segundo Aristóteles “a função de uma pessoa se realiza
somente de acordo com o discernimento e com a excelência moral, porquanto a
excelência moral nos faz perseguir o objetivo certo e o discernimento nos leva a recorrer
aos meios certos”. (EN, VI, 13, 1144a 7-9). Devemos considerar que o meio existe em
função de um fim a ser alcançado, desse modo pode-se inferir que o desejo é
responsável por colocar o fim e antecede a razão, que é em seguida responsável por
decidir pelos meios. Prova-o o fato de Aristóteles expressamente afirmar que uma vez a
finalidade estabelecida pelo desejo, parte-se para consideração dos meios de alcançá-
la; sendo a partir da escolha do meio que se age, o meio é o primeiro na ordem da ação,
mas “na ordem de descobrimento é o último” (EN, III, 3, 1112b 30).
Para Aristóteles, “efetivamente, a finalidade não pode ser objeto de deliberação,
mas somente os meios”; e para exemplificar que deliberamos sobre meios, mas não
sobre fins, diz: “[...] um médico não delibera para saber se deve curar, nem o orador
para saber se deve convencer, nem um estadista para saber se deve assegurar a
concórdia, nem qualquer outra pessoa delibera sobre a finalidade de sua atividade” (EN,
III, 3, 1112b 15). Ora, ao fazer o cálculo da razão recair apenas sobre deliberação e
escolha acerca do meio, como mostra Aubenque (pág. 197), entende-se que a razão
exerceria função meramente técnica, em que seu bom uso diz respeito apenas a atingir
ou não o fim dado, a despeito da qualidade moral desse fim. Levando em conta que o
desejo é insuficiente para distinguir o bem verdadeiro, retirar a escolha (prohairesis) e a
deliberação (boulenois) da decisão sobre o fim da ação seria assegurar o insucesso do
esforço ético, uma vez que é a razão que é capaz de compreender o bem. Retirar-se-ia
assim toda responsabilidade moral do agente, uma vez que este não escolhe e delibera
sobre o fim, mas somente sobre os meios. O bom uso da razão na ação não se mede
mais pela intenção, mas pela eficiência dos meios, e a escolha seria moralmente neutra
pois não é mais o lugar da imputabilidade, mas o da habilidade. Para Aubenque (pág.
201), na Ética a Nicômaco Aristóteles está bastante consciente do problema e vincula a
questão técnica da determinação dos meios com a questão da responsabilidade moral,
mas o faz de modo arbitrário e que parece contradizer sua doutrina mais constante: “o
exercício da excelência moral se relaciona com os meios; logo, a excelência moral
também está ao nosso alcance, da mesma forma que a deficiência moral” (EN III, 7,
1113b 5)
Se por um lado relacionar a excelência moral com os meios possibilita Aristóteles
propor que a virtude é voluntária porque está dentro do domínio do que está em nosso
poder (em grego, to eph´hêmin), por outro lado temos o problema que o que sobra,
quando retirado o meio, é a finalidade da ação, que é relacionada com o desejo. Dessa
forma, se o desejo de algum modo não pudesse ser direcionado para a boa ação e
pudesse se satisfazer com ela, o esforço da formação ética estaria fadada ao fracasso,
uma vez que, como vimos, para Aristóteles o desejo é incapaz de se guiar por si mesmo
para a boa ação. O desejo tende, por definição, ao prazer e quer naturalmente o bem,
mas não tem a capacidade de compreender o bem verdadeiro; este, como vimos, não é
o reflexo do prazer o qual o desejo busca. Ademais, o desejo possui a característica
quimérica de não se direcionar apenas ao possível e ao adequado; é assim que, como já
observou Platão, o indivíduo adoecido pode querer curar-se tornando-se imortal,
exemplo que também Aristóteles utiliza para demonstrar que o desejo por vezes busca
o que não é o correto a ser realizado37, mostrando assim sua inadequação e ineficiência.
Mas talvez Aristóteles tenha dado essa distinção entre fins e meios porque o desejo, por
definição, quer o bem, e se ele deseja mal assim o faz por que o fim lhe apareceu como
bem e disso não é responsável. Aristóteles aborda o problema, e afirma que a
qualificação do desejo é possível, pois;
“um homem é de alguma forma responsável pelo seu estado moral, ele
é de algum modo responsável pelo que lhe parece ser bem: enquanto
que, se não é responsável, a virtude não é mais voluntária que o vício,
sendo o fim de cada homem determinado por si, não por escolha, mas
por natureza ou de qualquer outro modo”38.
Assim, ainda que o indivíduo sempre deseja o que lhe aparece como bem, ele é
responsável pela sua disposição, que faz com que as coisas lhe pareça de tal ou tal modo.
Se o desejo é o que determina o fim da ação, e se ele é incapaz de sozinho determinar a
ação correta, de algum modo ele deve ser suscetível de ser orientado pela razão. Já a
razão, que é capaz de compreender a boa ação que também é prazerosa, deve de algum
modo poder persuadir o desejo de modo que não seja pela parte calculativa, uma vez
que essa se relaciona apenas com o meio.
Vejamos agora em que sentido poderia a razão anteceder o desejo e ser o
elemento que inicia a ação. Entre as intepretações da ética aristotélica está bem
assentada a que nega que a razão posso colocar determinar o fim, para o que se tem
farta base textual na Ética a Nicomacos, sobretudo o livro III, também citado acima.
Contudo, julgo que a seguinte passagem poderia servir de base textual para a proposta
contrária e que de algum modo atribuiria à parte racional o papel de realização da ação
(praktike), em um processo no qual a operação racional antecederia o desejo; Diz
Aristóteles: “o objeto de escolha é algo que está ao nosso alcance e que é desejada após
deliberação, a escolha é um desejo deliberado de coisas que estão ao nosso alcance;
porque, após decidir em resultado de uma deliberação, desejamos de acordo com o que

37
“Com efeito, a escolha não pode visar a coisas impossíveis, e quem declarasse escolhê-las
passaria por tolo e ridículo; mas pode-se desejar o impossível — a imortalidade, por exemplo.”
(EN III, 2, 1111 b 32)
38
EN 1113 b 3 1115 a 3
deliberamos” (EN III, 3, 1112 a36). Desse modo, caberia ao desejo apenas acolher como
fim ou não aquilo que foi concluído através de deliberação. O sujeito delibera, o que
pode dar lugar para o desejo e, feito a escolha, ocorrer a ação. Tal interpretação está de
acordo com a proposta aristotélica de que o desejo é por si insuficiente para decidir-se
sobre a boa ação, cabendo-lhe seguir o que prescreve a razão. Segundo Aristóteles,
A busca e a repulsa na esfera do desejo correspondem à afirmação e à negação
na esfera do pensamento; por isto, já que a excelência moral é uma disposição
da alma relacionada com a escolha, e a escolha é o desejo deliberado, segue-se
que, para que a escolha seja boa, tanto a razão deve ser verdadeira quanto o
desejo deve ser correto, e este deve buscar exatamente o que aquela determina.
Há ainda outra passagem em que Aristóteles está expressamente demonstrando
que o desejo deve seguir o que foi objeto de deliberação39 da razão, em que diz; “como
o objeto da escolha é algo ao nosso alcance, que desejamos após deliberar, a escolha
será um desejo deliberado de coisas ao nosso alcance, pois quando, após a deliberação,
chegamos a um juízo de valor, passamos a desejar de conformidade com nossa
deliberação” (EN III, 3, 1113a25). Contudo, essa interpretação de que é possível desejar
um fim que foi determinado pela razão, como já vimos, contraria e é incompatível com
a tese já bem estabelecida de Aristóteles de que a deliberação concerne unicamente aos
meios e não aos fins. De fato, no parágrafo exatamente a seguir à última passagem
citada, lê-se a seguinte afirmação que enfatiza a relação da razão prática com o meio:
“descrita a escolha em suas linhas gerais, e por expostos a natureza de seus objetivos e
o fato de que ela se relaciona com os meios para chegarmos aos fins” (EN III, 3, 1113a25).
Se as passagens que foram citadas afirmam que passamos a desejar após e em
conformidade com a deliberação forem interpretadas dentro da doutrina aristotélica da
deliberação que a limita unicamente aos meios em detrimentos dos fins, impõe-se a
leitura que, nessas passagens, embora não o afirme expressamente, Aristóteles está
dizendo que passamos a desejar após a deliberação não o fim, mas o meio. Por outro
lado, alguém poderia objetar que essa intepretação faria Aristóteles ter que relacionar
o desejo também com o meio e não unicamente com o fim. Afirmar que desejaríamos

39
Para Aristóteles, o objeto da deliberação e o objeto de escolha é a mesma coisa, porém “o objeto de
escolha já está determinado, uma vez que aquilo que foi decidido em decorrência da deliberação é o
objeto de escolha”
um fim após e em conformidade com a deliberação é incompatível com a doutrina da
deliberação e mostraria Aristóteles afirmando a possibilidade da razão se determinar a
si mesmo através de um fim, e poderia constar como mais uma tentativa de oferecer
base textual para afirmar que a deliberação pode ser determinante também dos fins.
Por sua vez, afirmar que desejaríamos o meio após deliberação contraria a afirmação de
que o desejo se relaciona com os fins. Como mostra Zingano, em EN III 4 1111b 26-27
temos a passagem que foi utilizada por Gauthier para buscar apoio à tese que a escolha
deliberada concerne sobretudo aos meios, mas não unicamente. Gauthier traduziu
assim a passagem; “o querer diz respeito sobretudo ao fim enquanto a escolha escolhida
diz respeito sobretudo aos meios”. Sua tradução alega que o termo sobretudo (μâλλον)
que está presente na afirmação o desejo diz respeito sobretudo ao fim deve ser
subentendido e estar presente também na noção de que a escolha se refere sobretudo
aos meios. A tradução-intepretação de Gauthier tem o propósito de dar sustento à tese
de que se delibera também sobre os fins. À parte a pertinência da interpretação40,
importa-nos que Gauthier dá por assentado e não ignora o termo sobretudo (μâλλον)
do texto41 da Ética a Nicômaco, que afirma que o “desejo relaciona-se sobretudo com o
fim” (1111b 26-27). Desse modo, entende-se que o desejo não se relaciona unicamente
com o fim; ou seja, pode relacionar-se também com o meio.
Há também a seguinte passagem também do livro III, que em conteúdo afirma o
mesmo que a passagem discutida anteriormente, mas que ignora justamente o termo
μâλλον em referência ao desejo se relacionar com o fim;
“Sendo, pois, o fim aquilo que desejamos, e o meio aquilo acerca do qual
deliberamos e que escolhemos, as ações relativas ao meio devem concordar com a
escolha e ser voluntárias. Ora, o exercício da virtude diz respeito aos meios”

40
Em Deliberação e Vontade em Aristóteles, Zingano entende que a interpretação de Gauthier é
filosoficamente improvável, pois considera que é “tese bem estabelecida em Aristóteles que a deliberação
concerne unicamente aos meios e não aos fins”. Usa como exemplo do posicionamento de Aristóteles a
passagem da Ethica Eudemia que afirma que “a escolha deliberada não diz respeito ao fim” (EE II 10 1226
a 17). Essa passagem, portanto, contraria a passagem corresponde da EN que Gauthier interpretou para
buscar relacionar a razão também com o fim.
41
As traduções publicadas no Brasil apresentam divergência. A edição dos pensadores ignora o termo
TAMMOS na passagem EN III 4 1111b 26-27 e tem essa tradução; “Além disso, o desejo relaciona-se com
o fim e a escolha com os meios.” A tradução da UNB não ignora a abertura do desejo aos meios e traduz
por “Ademais, a aspiração se relaciona mais com os fins, enquanto a escolha se relaciona com os meios”
Se a passagem não mais faz referência de que o desejo pode relacionar-se com
o meio, no entanto isso lá está presente se lembrarmos que, como vimos, a noção de
escolha (prohairesis) não existe sem um entrelaçamento do desejo e da razão. Dessa
forma, temos na noção de prohairesis a confirmação de que a razão prática se relaciona
com o meio, e o desejo põe o fim e também se relaciona com o meio, o que será
mostrado quando analisarmos o procedimento da ação em Aristóteles. O que também
abre espaço para compreendermos em que sentido se pode falar que o agente, embora
não possa deliberadamente colocar-se determinados fins pelo desejo, mesmo assim
pode agir segundo as razões que reconhece como boas na escolha dos meios.
A intepretação de Gauthier, por exemplo, mostra que inexiste em Aristóteles o
conceito de vontade enquanto possibilidade de escolha entre os desejos. A possibilidade
da razão prática poder colocar um fim é uma doutrina que será apresentada
posteriormente por Kant e diverge em muito da proposta aristotélica, uma vez que
neste é o desejo que tem o papel de colocar o desejo. Ademais, desejar um fim em
conformidade com o que foi deliberado possibilitaria ao homem agir sempre
corretamente, e seria a reafirmação da doutrina socrática que considera o
conhecimento do melhor a chave para a escolha da ação correta. Considera-se, contudo,
que a inserção do elemento desiderativo feita por Aristóteles representa avanço em
relação com a teoria socrática.
Em Aristóteles, o desejo que coloca o fim dá origem em seguida à deliberação,
que como vimos se relaciona com o meio. Seguindo a intepretação que limita a razão ao
meio, após a deliberação pode-se ou não passar a desejar também o meio que foi
reconhecido como melhor para alcançar o fim inicialmente posto pelo desejo. Dessa
forma, a razão seria apenas instrumental e subserviente ao desejo, e sua função é a de
encontrar o meio mais adequado para realização do fim. Contudo, a razão não se limita
a servir o desejo buscando automaticamente um meio para alcançar o fim. Há, como
nota Zingano, um descolamento entre o desejo que inicialmente coloca o fim e a
deliberação, pois Aristóteles se refere à deliberação que motivará a ação como a análise
e conclusão dos meios para alcançar determinados fins não apenas como tendo a
eficiência de parâmetro, mas também a correção moral dos meios. Aristóteles vai além
e afirma que a boa deliberação é aquela em que não somente os meios são os mais
corretos, mas também os fins aos quais visam os meios. Se for essa a interpretação
correta, é possível afirmar que o agente pode se recusar a agir mediante a negação em
praticar o meio; pois umas vez que o desejo já enxerga o fim como um bem, o agente
apenas recusaria se visse a impossibilidade de completar a ação ou que os meios
disponíveis não são corretos moralmente para realizá-la. A razão prática, segundo essa
intepretação, não teria um papel crítico de analisar o fim, mas tem tanto o papel
prescritivo como crítico acerca do meio. Para Zingano, esse é o ápice da ética
aristotélica, por sustentar que “quem age com base em uma deliberação toma sua
decisão em função das razões que reconhece como verdadeiras e não mais unicamente
em função do fim ou do desejo que motivou a deliberação” (Zingano, pág. 160).
Desse modo, vimos que as noções de razão e desejo aparecem em dois níveis
distintos na relação com os fins e os meios. Essa dualidade é apontada por intérpretes
como Ross, Gauthier e Aubenque. O problema, de acordo com Ross e que constatamos
anteriormente, é que a própria conceituação dada por Aristóteles ao termo escolha
(prohairesis) enquanto limitação explícita à escolha dos meios não se reflete na sua
utilização conferida na EN. Segundo Ross, “exceptuando duas passagens em que
proairesis é formalmente discutida, muito raramente se refere aos meios - quer no
cômputo da Ética quer nos outros trabalhos de Aristóteles, ela significa geralmente
«propósito», e refere-se, não aos meios, mas a um fim” (pág, 206). O problema que
também apontamos, é que Aristóteles afirmaria proposições contrárias acerca do
elemento que inicia a ação (pois quem coloca o fim dá início ao processo de ação), que
poderia variar sendo ora o desejo e ora a razão prática através da deliberação. A análise
das passagens resultou na conclusão que o desejo e a razão não podem variar enquanto
elementos que iniciam a ação, e tampouco o fazem concomitantemente, sendo essa
função do desejo. E que os elementos do desejo e da razão de fato alternam-se em
momentos decisivos da ação, mas fazem isso dentro de um mesmo processo contínuo,
mas não se alternam enquanto causa da ação. Quando Aristóteles afirma que se “deseja
após deliberação”, interpretou-se que este desejo é distinto e foi antecedido pelo desejo
que colocou o fim e deu início à deliberação, que visa ao meio e que é sucedido pelo
desejo que dá ou não assentimento ao objeto de deliberação e, fazendo-o, pode ou não
motivar a escolha. Assim, o esquema que mostra o processo da ação em Aristóteles,
segundo a presente interpretação, pode ser o que segue:
Desejo > Fim
Deliberação > Meio
Desejo do meio > Escolha
Ação

A intepretação feita da passagem que afirma que se deseja em conformidade ao


que foi deliberado, e que poderia ser considerada como demonstrativa da tese de que
a razão se relaciona diretamente com os fins, também foi interpretada de modo
semelhante por Allan. Com efeito, ao analisar a passagem, Allan entende que em se
afirmando que o desejo é a escolha que se segue ao que foi deliberado, ou seja, o desejo
é posterior à deliberação, exclui-se assim o desejo pelo fim e a escolha se limitaria a ser
relevante apenas em relação aos meios e eticamente irrelevante, “dado que que o
critério do caráter dum indivíduo é a natureza dos fins que são seus objetos permanente
ou desejo, e não o seu talento para escolher e selecionar os diferentes meios” (pág. 159).
Como vimos, optou-se no presente estudo interpretar que o desejo que segue a
deliberação é o desejo pelo meio, pois, de fato, Aristóteles é bastante claro que o desejo
coloca o fim, que por vez é anterior e princípio de da deliberação da qual pode resultar
a ação (EN VI 2 1139ª).
Ambas as interpretações da passagem que afirma existir o desejo que sucede a
deliberação e poderia em definitivo apontar para a possibilidade da razão interferir no
fim da ação deixam o problema em aberto. Por outro lado, como vimos, se fosse esse o
sentido da passagem 1139-, teríamos por conseguinte a maior incoerência dentro da
Ética, uma vez que imediatamente a seguir Aristóteles reafirma a tese de que o desejo
se relaciona com o fim e a faculdade racional com os meios. Ademais, como mostramos,
um dos grandes problemas que Aristóteles busca dar conta é justamente aquele em que
o agente tem clareza e convicção a respeito do que deve ser feito, mas seu desejo não
está aberto para receber as razões que possui.
Não é o desejo que inicia a ação, mas ele desencadeia a deliberação, de onde
sairá a escolha. Portanto o desejo é entendido como princípio de movimento, embora
por si mesmo ele é insuficiente, pois pode ser que algo seja desejado e não colocado em
prática após deliberação concluir pelo não agir. Inicialmente há um desejo ainda
abstrato pelo que entendemos ser a felicidade ou bem-viver, e nesse sentido o desejo
sempre visa ao bem. O problema ético em Aristóteles, portanto, não é operar uma
mudança total no desejo; mas, para fazer com que esse bem que é naturalmente
desejado seja alcançado, é preciso que os indivíduos passem a ter como bem particular
o que é apontado como o bem verdadeiro. O problema é que apesar de o desejo se
orientar sempre para o que é tomado por bem, por princípio não é ele que possui a
capacidade de ajuizar sobre a qualidade moral do bem, sendo o critério do desejo para
distinguir o bem do nocivo o prazer e a dor. Contudo, Aristóteles mostra que o prazer
não pode ser critério para avaliar se a ação é boa.
Dessa forma, se Aristóteles atribui ao desejo a importante função de iniciar a
ação, uma vez que o desejo põe o fim, mas manifesta sua incapacidade de ajuizar e
colocar o fim deliberadamente, é necessário que de algum modo o desejo receba auxílio
em sua função de colocar o fim. Para Aristóteles, apenas a razão, o desejo e as sensação
Contudo, o problema que se anuncia é que é objeto de grande controvérsia entre os
comentadores é a limitação da razão unicamente aos meios em desfavor dos fins, que
por sua vez é relacionado ao desejo. Inicialmente, vê-se uma problemática distinção
entre a função do desejo e da razão, que se relacionam por conseguinte com objetos
também distintos, isto é, o desejo com o fim e a razão com o meio. Como, portanto,
estando assim separados em suas funções, podem e devem se relacionar o desejo e a
razão para alcançar um objetivo em comum? Pois o desejo e a razão devem trabalhar
juntos, e apesar da afirmação que os distingue em funções diferentes, Aristóteles afirma
que o desejo deve buscar exatamente o que a razão determina (EN 1139-a25). Em outras
palavras, a razão deve ter influência sobre o que o desejo coloca como fim, embora de
início possa parecer incoerente com a tese de que a razão se relaciona unicamente com
os meios. Assim posto, o projeto ético de Aristóteles apresenta uma dificuldade que
precisa ser compreendida e, se possível, melhor esclarecida. Buscaremos abordar a
interpretação dos intérpretes sobre o problema e apresentar uma interpretação
própria.

Dessa forma, a estrutura da ação moral em Aristóteles é precisamente esse


buscar, a partir de um fim que é desejado, os meios adequados para obtê-lo. Para que
a ação ocorra ela precisa antes ser precedida pela representação de um fim que serve
como princípio. Como vimos, o fim buscado em cada ação é o bem, uma vez que a
felicidade é o objetivo último de toda atividade humana. Dessa forma, em Aristóteles

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No entanto, se em Aristóteles o desejo dá início a toda deliberação, ainda que
ele coloque naturalmente o fim, não se pode ignorar que o desejo inicial já tenha
influência da razão e seja, de algum modo, um desejo impregnado de razão. Pelo
contrário, Aristóteles atribui ao desejo a importante função de iniciar a ação, uma vez
que o desejo põe o fim, mas sua manifesta ineficácia faz que seja imperioso que a razão
interfira não apenas na escolha dos meios. À razão prática compete também orientar o
desejo quanto à meta almejada, isto é, à sua intenção acerca dos objetivos sobre o qual
se dirige. Aristóteles expressamente afirma a necessidade da razão “orientar e ordenar”
o desejo, e pode-se inferir que não o faz unicamente sobre os meios, mas também dos
fins. [Ou seja; o desejo é responsável por colocar o fim, para cuja realização cabe à razão
escolher o meio adequado. Dada a ineficácia do desejo, é necessário que o agente se
oriente pela razão para que haja um aperfeiçoamento de sua tenção. Como o fim nos
aparece em função de nossa disposição de caráter, é preciso que a razão influencia a
disposição, o que é feito pela educação e pelo hábito de praticar ações que criam uma
disposição semelhante com base em sua repetição (EN II 1 1103b23).
É sabido que a filosofia prática de Aristóteles confere a importante função ao
desejo de determinar os fins, colocando a razão prática em função de buscar o êxito na
realização do que o desejo coloca com fim. Como vimos, a razão prática não é apenas
prescritiva, mas também crítica acerca dos meios e pode recursar-se a agir. Ou seja,
acerca dos meios, pode-se dizer que a razão prática tem predominância e é decisiva ao
deliberar sobre as razões de agir. Mas o desejo carece de ser auxiliado também em sua
intenção, em sua função de colocar como fim o bem verdadeiro, e Aristóteles também
indica que de algum modo a razão deve incidir também sobre os fins ao orientar o desejo
em sua função teleológica. De fato, Aristóteles manifesta a importância da razão prática;
ela deve orientar o desejo, ela que dá a medida do justo-meio e é ela que escolhe os
meios, podendo recusar a realizar a ação. Contudo, ela não determina o fim por
deliberação, apenas o desejo pode fazê-lo, não contudo por deliberação, mas parece
que coloca o fim naturalmente. Disso não se segue que a razão de algum modo não se
relaciona com o fim. Interpretamos que ela o faz de modo indireto, isto é, através de
sua influência sobre as disposições morais dos agentes, sendo a disposição a condição
prévia para que a razão prática opere. Inicialmente, a razão que educa o agente é
exterior a este, na forma de supervisão e orientação dos educadores, e só a partir da
disposição formada em desejar o bem que a parte desiderativa está apta a desejar o que
é indicado pela reta razão como ação correta. Visto que é a característica da disposição
moral que discrimina o que o desejo reconhece como bem e o que põe como fim, a
educação que forma os caracteres fixos deve criar certa disposição moral no agente, que
ocorre através do hábito e do exercício de ações virtuosas. O desejo deve ser orientado
para o fim correto, ou, como mostrou já Tomás de Aquino, ele busca naturalmente o fim
último, em função do qual todos os outros fins podem ser tidos como meio. Por isso,
não atenuamos a clássica doutrina da distinção que o desejo é desejo de um fim, e a
escolha o é de um meio. Pode-se reconhecer a sofisticação da doutrina de Aristóteles a
partir da compreensão correta acerca do desejo, compreendendo que esse não é
refratário à razão; ao contrário, Aristóteles manifestamente descreve a escolha como
desejo raciocinativo, indicando o processo cognitivo que está por trás da formação da
disposição de caráter, e como raciocínio desiderativo, indicando a influência que o
desejo tem sobre o pensamento prático que visa a realização de um fim. Portanto, o fim
aparece como tal para o desejo a partir da natureza prática do agente, que é formada
tanto pela prática de atos que criam uma disposição semelhante através de sua
repetição, como pela apreensão da justa medida dada pela razão, que cria uma
disposição no agente a agir como se deve, e agir como se deve é agir moderadamente.
Em outras palavras, apesar do desejo provir da parte irracional, ele é influenciado tanto
pelo elemento cognitivo do agente como pelas atividades que são realizadas. Apenas
assim é que se pode entender a doutrina de Aristóteles que, se de fato não responde a
todas expectativas de uma teoria moral, ainda assim apresenta uma rica proposta em
boa medida graças ao papel dado ao desejo no sempre em aberto trajeto da ações
humanas.
Desejo deliberante

Temos que considerar que a razão exerce uma dupla função; ela deve ser capaz
de determinar o que é verdadeiramente bem e poder orientar o desejo em sua intenção,
isto é, em sua função mesma de ser determinante dos fins, e também ser capaz de uma
vez que foi colocado o desejo, ter a função de dar as razões de agir corretas para obter
o fim, e nesse ínterim ser-lhe aberto a possibilidade de recusar-se a agir em razão de
escolher em vista de razões. O desejo, por sua vez, deve de algum modo poder se
influenciar pelas razões de agir dadas pela razão correta, pois apenas desse modo
podemos entender esse processo como possibilidade de aquisição da virtude moral pelo
agente.
A intepretação adotada da passagem que afirma que pode o desejo ocorrer em
conformidade com o que foi deliberado, como mostramos, contradiz a afirmação
expressa na EN que se delibera sobre os meios e não sobre os fins. Desse modo, acredita-
se que se impõe a leitura que Aristóteles afirma que se passa a desejar o meio após a
conclusão da deliberação.
O esquema meio-fim está na base da ética aristotélica é finalista e se relacionam
com a parte racional e a parte irracional da alma. É interessante iniciarmos pela parte
racional, pois Aristóteles a divide também em duas partes, as quais se relacionam no e
tem grande influencia no propósito de educação da disposição do agente para que se
incline aos desejos corretos. Aristóteles inicialmente divide a alma racional entre a parte
científica e a parte calculativa (1139 a 3-15). A distinção dessas partes assim
denominadas, inspirada por uma operação tipicamente platônica, está no objeto. Os
objetos necessários e imutáveis são os objetos da ciência, enquanto que os objetos
contingentes42 o são da função calculativa. Como diz Aristóteles, na parte da alma

42
Aubenque analisou longamente a contingência, que é o elemento que possibilita Aristóteles
situar a função prática como ação moral que visa ao bem do homem sobre aquilo “que pode ser de
maneira diferente” e que é variável. Para Aubenque, o contingente representa o estado de inacabamento
e imperfeição do mundo e que por isso convida o homem a agir em seu torno. Essa análise do contingente
como inacabamento será posteriormente abordada.
dotada de razão há uma parte “que nos permite contemplar as coisas cujos primeiros
princípios são invariáveis, e outra que nos permite contemplar as coisas passíveis de
variação” (EN 1139 a 8).
Contudo, como mostrou Gauthier (pág 27), no mesmo parágrafo Aristóteles
introduz outro vocabulário para distinguir as funções da parte racional. Desta vez, diz-
se que a parte racional possui duas funções distintas; uma tem função contemplativa e
a outra parte tem função prática. O que distingue o pensamento prático do especulativo
não é mais o objeto, mas sua finalidade. O pensamento prático (praktikon dianoètikon)
leva à ação para obter determinado fim, enquanto que o pensamento contemplativo
(théôrètikè dianoia) é apenas pensamento que visa ao saber e não à ação; por isso, “o
pensamento por si mesmo, todavia, não move coisa alguma, mas somente o
pensamento que se dirige a um fim e é prático” (EN VI, 2, 1139 b 6). A diferença,
portanto, é que o pensamento prático é um pensamento que está impregnado de
desejo, pois que visa agir ao se propor a realização de um fim que é objeto do desejo,
enquanto que o pensamento contemplativo é puro pensamento.
Em outra comparação feita por Aristóteles, distingue-se a ação (práxis) da
produção técnica (poiésis).

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No entanto, é importante dizer que essa operação intelectual não postula que a
ação correta é cientificamente determinável, pois as exposições na Ética a Nicomaco
insistem que o acerto na escolha deliberada é uma virtude da parte calculativa, e não
científica, da alma racional. Como afirma Aubenque, a “deliberação seguida de escolha
[...] é totalmente distinta de um raciocínio seguido de conclusão”, pois a deliberação
ocorre em domínio bastante específico sobre o possível objeto de escolha e temos,
entre um e outro, justamente o desejo enquanto medietizador e que deve estar
preparado para acolher a prescrição da razão. Não é outra a razão porque Aristóteles
vai afirmar que mesmo a virtude intelectual “por via de regra, gera-se e cresce graças
ao ensino — por isso requer experiência e tempo” (EN, II, 1, 1103 a 14). Ou seja, a
atividade intelectual virtuosa que opera com o fim de agir não o faz de modo científico,
mas calculativo, e como participa da escolha tanto razão como desejo resulta que a
operação intelectual por si mesmo não assegura uma ascenção direta ao Bem, como por
vezes parece ser a proposta socrática. Importa dizer que o conceito de “razão correta”
(ortho logos) de Aristóteles se refere, dentro do contexto das ações humanas, à
prudência (phronesis) que busca determinar o meio-termo apropriado das
circunstâncias singulares das quais depende a efetiva realização de cada ação virtuosa.
Dessa forma, falar em “razão correta” em Aristóteles não significa uma razão que busca
verdades morais43 no sentido socrático de estabelecer determinado acervo de
proposições verdadeiras que, uma vez conhecidas, garantem a ação virtuosa, e que era
o sentido que Sócrates conferiu ao logos. Em Aristóteles, o uso correto da razão trata-
se do procedimento da parte calculativa que é capaz de decidir a melhor ação que deve
ser feita, quando e como deve ser feita. O uso correto da razão, portanto, não remete a
um cálculo racional que o agente possui previamente, mas ao meio-termo que depende
de uma série de fatores singulares. Por essa razão Aristóteles descreve a virtude moral
como disposição (hexis) do agente, pois essa envolve a virtude intelectual e a virtude
moral, que agem conjuntamente tanto pelo conhecimento da ação correta como pelo
hábito de praticar atos justos e moderados, induzindo a uma tendência semelhante no
agente e o faz ter prazer nas ações verdadeiramente boas. Desse modo, uma
interpretação intelectualista da moral de Aristóteles aponta que além da razão como
orientadora na ação, deve ser possível ou, ainda mais, necessário que o desejo possa ser
preparado para ter como objeto o que a razão aponta como bem. Como foi dito, o
desejo visa ao prazer, e fruir com as ações moralmente boas é a possibilidade de
harmonização entre a parte irracional e racional do homem, que Aristóteles reconhece
como condição para uma vida virtuosa que é marcada por uma constância e habituação
de boas atividades.

43
Aristóteles chega a dizer “verdades morais” no sentido teorético, de conhecimento pelo conhecimento
sem ter em vista uma utilidade ulterior. Contudo, como aponta Angioni, salvo essa passagem, o outro uso
conferido à razão correta (ortho logos) é sempre o da razão decidir a melhor ação em referência a um uso
em referencias a circunstâncias particulares, uma vez que Aristóteles define a prudência como virtude da
parte racional, à qual cabe determinar o meio-termo.
Como vemos, a proposta ética de Aristóteles supõe a natureza humana
determinada pelo desejo a buscar o fim último (eudaimonia), cuja realização é possível
através da educação moral baseada no que prescreve a razão. Não é postulado,
portanto, uma oposição irredutível entre a parte irracional e racional do homem; pelo
contrário, pode-se reconhecer formação antropológica e psicológica no homem como
suscetível e propiciadora da formação moral, assim como certa conivência cosmológica
ao permitir a vinculação da bondade com o prazer. Alguns intérpretes, ainda que
reconheçam na existência humana a possibilidade do aperfeiçoamento moral em
Aristóteles, não deixaram de sublinhar alguns paradoxos na psicologia, antropologia e
também de ordem cosmológica44, do que também falaremos adiante. Assim, a forma
como as partes da alma se influenciam apresentam um processo complexo que precisa
ser deslindado. Então, consideremos: se o desejo é insuficiente por si mesmo de
determinar a ação correta, e é a razão que compreende o fim moralmente bom; se,
contudo, segundo Aristóteles a razão apenas delibera sobre os melhores meios de
realizar os fins que são colocados pelo desejo, como a razão pode operar na constituição
dos melhores objetivos do desejo, fazendo-o recair não sobre o que é
indiscriminadamente prazeroso, mas verdadeiramente bom e prazeroso? Sabemos que
a possibilidade da razão se envolver no fim correto que foi adotado pelo desejo é
condição para aquisição da virtude moral, que é a educação do desejo para que este
sinta prazer com as ações morais. Desse modo, cumpre esclarecer o complexo
procedimento que faz com que a razão influencie o desejo na adoção dos fins
moralmente bons, ainda que a parte calculativa da razão diga respeito aos meios
apropriados para o alcance do objeto da ação.

Definir a virtude como mediedade determinável sobre circunstâncias


particulares faz Aristóteles negar, sob certo aspecto, o intelectualismo socrático, e isso
o fará dar acentuada atenção ao hábito na formação da disposição. A educação do
desejo pelo hábito buscar exercer um papel não cognitivo na formação da disposição do

44
O problema da cosmologia em relação com a prudência é bastante explorado por Aubenque em A
prudência de Aristóteles. O problema antropológico é apontado por Gauthier em La morale d´Aristote.
agente. Nesse sentido, a aquisição da virtude requer, para além da prudência, também
o “hábito moral concernente às emoções”. É sabido que o elemento cognitivo está presente
na proposta aristotélica, uma vez que não é o desejo mas a razão que é capaz de
compreender e prescrever a ação correta. Ainda assim, o trabalho desempenhado no
desejo pela formação através do hábito age como algo que se soma à razão, e nesse
sentido não apenas a razão influencia o desejo, mas o desejo também influencia a razão.
Com efeito, Aristóteles diz que “a virtude diz respeito a ações e emoções”, sendo a
disposição (hexis) o estado segundo o qual nos portamos bem ou mal diante das emoções
(1105b 25-26). Aristóteles considera duas formas de educação do desejo; uma é o modo que a
razão é feita
Desse modo, podemos dizer que o indivíduo que desde a tenra idade foi habituado a
desejar a ação correta e a fruir com sua realização tem maiores chances de atingir o alvo quando

que não ignora e apresente as cisões tanto psicológica, antropológica e mesmo


cosmológica do homem, não postula uma oposição irredutível entre sua parte irracional
e racional. Ao contrário, é proposto que o desejo visa a um fim último (eudaimonia) que
pode ser alcançado pela ação; não, contudo, por qualquer ação, mas pela ação virtuosa
que foi determinada pela parte racional.

ademais, afirma que a ação “virtuosa é bom por si mesma”. Isso nos leva a questionar
se todo agente que pratica a ação virtuosa sentirá prazer
mas porque os atos que estão de acordo com as virtudes tenham determinado caráter,
não se segue que sejam praticados de maneira justa ou temperante. Também é
importante que o agente se encontre em determinada condição ao praticá-los: em
primeiro lugar deve ter conhecimento do que faz; em segundo, deve escolher os atos,
e escolhê-los por eles mesmos; e em terceiro, sua ação deve proceder de um caráter
firme e imutável.

[Ora: a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é
uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um
acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência
moral, portanto, é algo como a eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio
termo.] A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha
de ações e emoções

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