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Doutorado em Psicologia
Fortaleza
2017
Sarah Vieira Carneiro
Fortaleza
2017
A todas as pessoas que, no âmago da dor mais profunda,
compartilharam comigo suas histórias
AGRADECIMENTOS
Partindo da convicção íntima de que esta tese é um marco na minha jornada de quase duas décadas de
estudos sobre a morte e o luto, agradeço profundamente, na pessoa da Profa. Dra. Fátima Severiano, a todos
os professores, que mesmo não compartilhando diretamente do meu interesse pelo tema, mantiveram-me
acreditando que eu podia desenvolvê-lo e, também, a mim mesma. Desde que entrei na graduação em Psicologia
na UFC em 1998, passando pela pós-graduação na USP-SP e pelo mestrado em Psicologia Clínica na PUC-SP,
ambos em 2003, a morte e o luto fazem parte de meus trabalhos acadêmicos, palestras, cursos, atividade
profissional, reflexões, mas, sobretudo, fazem parte da construção que fiz de mim mesma e daqueles que
cruzaram meu caminho de modo a torná-lo mais rico.
Sou especialmente grata aos membros da Banca Examinadora, por terem dispensado seu precioso
tempo no intuito único de engrandecer este trabalho: à Profa. Dra. Ana Frota, por sua maneira carinhosa e
discreta de apontar melhorias; à Profa. Dra. Fátima Severiano, por ser uma referência de honestidade
acadêmica e seriedade desde a minha graduação; à Profa. Dra. Luana, por sua contundência onde se fez
necessário; à Profa. Dra. Anna Karynne, por não me deixar perder de vista a perspectiva clínica.
Sinto-me extremamente abençoada e grata pelo meu Orientador, Prof. Dr. Georges Boris, pelo apoio
acadêmico, emocional, moral e pelo desafio que me ofereceu ao me apresentar a filosofia de Jean-Paul Sartre,
de quem eu tinha, então, um conhecimento superficial. Prof. Boris foi implacável na tarefa de acreditar em mim
e de me guiar na empolgante, mas difícil, empreitada de expor meu pensamento. Seu estilo de orientação é
absolutamente congruente com seu entendimento de ser humano: livre em situação.
Fazer parte da UNIFOR me deu a oportunidade de integrar dois grupos de pesquisa extraordinários: o
APHETO e o NUFEX, onde conheci pessoas únicas e que muito me inspiraram e a quem agradeço por meio de
seus coordenadores: Profa. Dra. Virgínia Moreira, Profa. Dra. Anna Karynne Melo e Prof. Dr. Georges
Boris. Agradeço aos mais diversos setores da Universidade de Fortaleza e aos que os compõe, com destaque
para os professores e funcionário do Programa de Pós-graduação em Psicologia, PPGPsi, sempre tão
disponíveis, atenciosos e, sobretudo, afetuosos.
Agradeço imensamente à minha mãe, Nilzete, por ter sido fonte perene de amor incondicional; ao meu
pai, Josniel, por ter provocado meu desejo pelo saber desde a minha mais tenra infância; à minha irmã,
Luciana, pelo suporte silenciosos e certo; às minhas sobrinhas, Laura e Alice, por me apresentarem a um amor
absolutamente novo; ao meu marido, Bruno, companheiro de pequenas e grandes conquistas, sempre
disponível, paciente e pronto para o bom combate. Por fim, o mais importante, agradeço a Deus por colocar
cada uma destas pessoas em minha vida e por me segurar em Seus braços nos momentos mais sombrios: graças
Te dou!
O luto é destinado aos que amam amar.
Vinga-se a pessoa que odeia amar, odeia continuar amando.
É o encontro do mais extremo ódio com o mais extremo amor.
A união de dois terrorismos.
Fabrício Carpinejar
Carneiro, S.V. (2017). O Luto na Contemporaneidade à Luz da Fenomenologia Existencial
de Jean-Paul Sartre (Tese de Doutorado). Universidade de Fortaleza, Fortaleza/CE.
RESUMO
Ainda que o luto seja amplamente reconhecido como uma experiência humana universal,
uma resposta normal e esperada à perda, sua abordagem em pesquisas em saúde mental é
crescente. A medicalização da vida se expandiu de modo a alcançar também a vivência da
perda. A literatura especializada aponta características (sintomas) normais e patológicas do
luto, o tempo de duração, a intensidade, o curso, o prognóstico e o seu tratamento. Há mesmo
um “movimento” científico para inclusão do luto ou do luto patológico como categorias
clínicas nos manuais diagnósticos, processo que se encontra em franca expansão. O principal
objetivo desta tese é compreender o luto na contemporaneidade, à luz da fenomenologia
existencial de Jean-Paul Sartre. Na persecução deste propósito, caminhamos no sentido de: 1)
delinear as condições de possibilidade da morte e do luto na sociedade contemporânea, em
termos de história, cultura, mercado e etiqueta; 2) discutir o processo de patologização do
luto; 3) analisar, a partir do histórico das edições do DSM (Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders), a inserção do luto como transtorno mental; 4) examinar a perspectiva
científica mais atual em relação ao luto, qual seja, sua neurobiologização; e, 5) articular a
fenomenologia existencial sartreana com os fenômeno da morte e do luto. Assim, a
compreensão do fenômeno do luto na contemporaneidade não pode se dar apenas por meio de
um estudo teórico, mas deve entrever a significação individual dos elementos do mundo.
Desta forma, a presente pesquisa se produziu no vaivém (progressivo-regressivo) da história
singular e da determinação geral das condições de vida do sujeito, o que nos permitiu
reconstituir progressivamente a existência material do sujeito e alcançar a “lógica da
liberdade” (Sartre, 1960/2004, p. 69) do seu luto. Desta forma, utilizamos como método a
dialética liberdade/situação. Pudemos compreender que não há algo como um luto
patológico, mas que cada luto se insere no projeto-de-ser de cada enlutado, em uma dada
cultura e num tempo histórico específico. O que a contemporaneidade oferece é a
mercantilização dos ritos, a negação do sofrimento e a medicalização do luto, que não siga
suas rígidas regras de etiqueta e de saúde. As condições de possibilidade de enlutamento na
nossa sociedade são estratégias de má-fé. A etiqueta fúnebre é outra versão cotidiana: o choro
e a tristeza não convêm; é importante que a perda seja sentida o mínimo possível e que a
comunidade se aperceba dela de modo muito superficial e rápido: 1) o cadáver deve ser um
simulacro aprimorado do corpo vivo e, ante a sua desaparição, prontamente se apresentam o
dever moral e a obrigação social de evitar a dor em público; 2) a retomada de uma vida
produtiva, funcional e; enfim, 3) o compromisso de parecer feliz o mais rápido possível.
Escolher-se doente é um caminho de má-fé possível e, cada vez mais, eleito, uma vez que
traduz a expectativa da coletividade e reproduz o saber médico. O sujeito do nosso caso foi
do “contra”, rejeitando o diagnóstico, a medicação, viveu (e ainda vive) seu luto à sua
maneira.
Palavras-chave: 1) Luto; 2) Existencialismo; 3) DSM; 4) Diagnóstico; 5) Jean-Paul Sartre.
ABSTRACT
Although mourning is widely recognized as a universal human experience, a normal and
expected response to loss, its approach in mental health research is increasing. The
medicalization of life expanded in order to reach the experience of loss. The specialized
literature points out normal and pathological characteristics (symptoms) of mourning,
duration, intensity, course, prognosis and treatment. There is even a scientific "movement" to
include mourning or pathological mourning as clinical categories in diagnostic manuals, a
process that is in rapid expansion. The main objective of this thesis is to understand the
mourning in the contemporaneity, in the light of the existential phenomenology of Jean-Paul
Sartre. In pursuit of this purpose, we are moving towards: 1) delineating the conditions of
possibility of death and mourning in contemporary society, in terms of history, culture,
market and etiquette; 2) discuss the process of pathologization of mourning; 3) to analyze,
from the history of the DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), the
insertion of mourning as a mental disorder; 4) to examine the most current scientific
perspective regarding grief, that is, its neurobiologization; and, 5) articulate Sartre´s
existential phenomenology with the phenomenon of death and mourning. Thus, the
understanding of the phenomenon of mourning in contemporaneity can not be given only
through a theoretical study, but must glimpse the individual significance of the elements of
the world. In this way, the present research took place in the (progressive-regressive) shuttle
of singular history and the general determination of the subject's life conditions, which
allowed us to progressively reconstitute the subject's material existence and achieve the
"logic of freedom" (Sartre, 1960, p. 69) of his mourning. In this way, we use as method the
dialectic freedom / situation. We could understand that there is no such thing as a
pathological mourning, but that every mourning fits into the design-of-being of every
mourner, in a given culture, and in a specific historical time. What contemporaneity offers is
the mercantilization of rites, the denial of suffering and the medicalization of mourning,
which does not follow its rigid rules of etiquette and health. The conditions of possibility of
swindling in our society are strategies of bad faith. The funeral etiquette is another daily
version: crying and sadness do not suit; it is important that the loss be felt as little as possible
and that the community should be aware of it in a very superficial and rapid way: 1) the
corpse must be an improved simulacrum of the living body and, upon its disappearance, the
moral and the social obligation to avoid pain in public; 2) the resumption of a productive,
functional life and; finally, 3) the commitment to look happy as soon as possible. Choosing to
be sick is a path of bad faith that is possible and, increasingly, elected, since it reflects the
expectation of the community and reproduces medical knowledge. The subject of our case
was the "against", rejecting the diagnosis, the medication, lived (and still lives) his mourning
in his own way.
Figura 1. Site de Empresa Funerária em Fortaleza/CE, com destaque para o Velório Virtual
EEG – Eletroencefalograma
LC – Luto Complicado
NA – núcleo accumbens
1. APRESENTAÇÃO.....................................................................................................15
2. A FENOMENOLOGIA DE JEAN-PAUL SARTRE: LIBERDADE,
RESPONSABILIDADE, ANGÚSTIA E MÁ-FÉ ...................................................18
3. MÉTODO ...................................................................................................................23
4. CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE: A MORTE E O LUTO NUMA
PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL .........................................................28
4.1. MORTE, LUTO E HISTÓRIA .........................................................................29
4.2. MORTE, LUTO E CULTURA .........................................................................35
4.3. O LUCRO DO LUTO ........................................................................................38
4.4. ESTILO DE VIDA, ESTILO DE MORTE, ESTILO DE LUTO ..................44
5. O LUTO COMO CATEGORIA DIAGNÓSTICA ................................................50
6. O CONCEITO DE LUTO AO LONGO DAS EDIÇÕES DO DSM: DA
EXPERIÊNCIA À DOENÇA ...................................................................................58
6.1. DSM – PRIMEIRA EDIÇÃO ...........................................................................59
6.2.DSM-II ..................................................................................................................61
6.3. DSM-III ...............................................................................................................63
6.4. DSM-III-R ...........................................................................................................67
6.5. DSM-IV ...............................................................................................................69
6.6. DSM-IV-TR ........................................................................................................73
6.7. DSM-5 ..................................................................................................................73
7. A NEUROBIOLOGIA DO LUTO ...........................................................................88
8. MORTE E LUTO NA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL SARTREANA .104
9. “QUANDO O AMOR É LEAL, O LUTO NÃO TEM FIM” ..............................110
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................120
REFERÊNCIAS ............................................................................................................124
1. APRESENTAÇÃO
Na infância, ouvi, muitas vezes, de meu pai, a história do enterro de seu irmão recém-
nascido. Minha avó parira em casa, como em todas as outras vezes, mas “assim quis Deus
que o bebê não vingasse” e morresse. Acomodado numa caixa de sapato e, em cima da mesa
da sala, o corpo do bebê ficou por algum tempo. Não houve ali grande acontecimento, foi
pouca a visita. Como minha avó estivesse muito fraca e meu avô não tivesse a isso dado
maior importância, meu pai, então com sete anos de idade, foi incumbido de enterrar o irmão
“no mato”, dentro da caixa de sapato. Descalço e com a caixa na mão, seguiu para escolher
um lugar “nem perto nem longe”. Cavou um buraco num sítio de bananeiras, colocou o corpo
do irmão, cobriu com terra e voltou pra casa. Ali, nada lhe perguntaram. Seguiu a vida. O ano
era 1958 e, no sertão central do Ceará, muitas crianças enterravam seus irmãos. A morte
ainda era parte do cotidiano.
Pouco mais de 50 anos depois, não é raro que alguém chegue à vida adulta sem nunca
ter experimentado uma perda significativa. A morte cotidiana é a morte distante da televisão
e da “internet”, é a morte do outro, produto de violência, de catástrofes, de guerras. As
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Ainda que o luto seja amplamente reconhecido como uma experiência humana
universal, uma resposta normal e esperada à perda, sua abordagem em pesquisas em saúde
mental é crescente. A medicalização da vida se expandiu de modo a alcançar também a
vivência da perda. A literatura especializada aponta características (sintomas) normais e
patológicas do luto, o tempo de duração, a intensidade, o curso, o prognóstico e o seu
tratamento. Há mesmo um “movimento” científico para inclusão do luto ou do luto
patológico como categorias clínicas nos manuais diagnósticos, processo que se encontra em
franca expansão (Biondi, Constantini & Parisi, 1996; Gündel, O’Connor, Littrell, Fort &
Lane, 2008; Freed, Yabaguhara, Hirsch & Mann, 2009; American Psychiatric Association,
2013; Cordeiro, 2014; Assareh, Sharpley, McFarlane & Sachdev, 2015; dentre outros).
Recentemente, uma decisão polêmica, envolvendo o Manual Diagnóstico e Estatístico dos
Transtornos Mentais (DSM), tomou conta do ambiente acadêmico especializado: foi definida
a retirada do luto como critério de exclusão para o diagnóstico de transtorno depressivo
maior, desde que a duração dos “sintomas” seja superior a duas semanas. Desta feita,
depressão e luto passam a se confundir (American Psychiatric Association, 2013).
aos adolescentes, o cérebro e a língua, aos convidados, a ponta dos dedos e a gordura do
fígado (Rodrigues, 1983). Em 1981, Simone de Beauvoir (1981/1985), em seu livro de
memórias sobre os últimos anos de vida e morte de seu companheiro Jean-Paul Sartre,
“Cerimônia do Adeus”, narra seu luto, suportado com o uso de diazepan® e bebida alcoólica.
Beauvoir descreveu como sua mente estava vazia, durante o enterro, e sua incapacidade de
comparecer à cerimônia de cremação. Narrou ainda, um episódio “delirante”, que antecedeu
uma internação hospitalar. A distância abissal que parece separar essas duas experiências
aponta para o fato de que o luto é um fenômeno histórico, cultural, atravessado pelas
características de cada sociedade, bem como pela particularidade de cada indivíduo. Dessa
forma, a apresentação das manifestações de luto se dão de modo dialético, a partir da
interseção de uma subjetividade num mundo dado.
Jean-Paul Sartre morreu em 1980, após longo período de doença, aos 75 anos, mas o
primeiro sinal de alarme ocorreu 25 anos antes: um pico de pressão alta, que o levou ao
hospital, logo após sua jornada pela União Soviética, no verão de 1954. Quatro anos depois,
Sartre sofreu um pequeno derrame e, na iminência de um infarto, Simone de Beauvoir, sua
companheira da vida inteira, contou que, a partir de então, a ameaça da morte estava sempre
presente: “os médicos me disseram que suas artérias e arteríolas estavam muito estreitas.
Toda manhã, quando ia despertá-lo, eu ficava impaciente até me certificar de que ele estava
respirando” (Beauvoir, 1981/1984, p. 9). À agonia do período de doença de Sartre, Simone
acrescentou, para si mesma, a tarefa de evitar que ele fosse confrontado com a sua real
situação de saúde, com o sofrimento e com a morte iminente. Acreditando que saber-se
próximo à morte somente pioraria a condição de Sartre, ela, cuidadosamente, evitou o assunto
e cuidou para que os médicos também o fizessem. Para ela, a ameaça da morte pairava no ar
e, mesmo, nas coisas:
este estúdio, tão alegre desde meu regresso, mudou de cor. O bonito
tapete escuro evoca luto. É assim que será preciso viver, talvez ainda
com felicidade e momentos de alegria, mas com o peso da ameaça – a
vida colocada entre parênteses (p. 8).
Em 15 de abril de 1980, Simone foi avisada da morte de Sartre pelo telefone. Ele
estava no CTI há quase uma semana, no qual as visitas eram controladas. Ao chegar ao
hospital, a impressão que Simone teve foi de que ele estava igual a ele mesmo: só não
respirava. A absurdidade da morte era perturbadora. Ela pediu a amigos que lhe trouxessem
uísque e passou a noite no hospital, na companhia deles, bebendo e conversando sobre Sartre.
Durante o velório, ficou alheia e atônita. Mesmo após o longo período de doença do
companheiro, o choque era evidente:
uma imensa multidão acompanhava... Eu não via nada. Estava mais ou menos
anestesiada por Valium1 e agarrada ao meu desejo de não desmoronar. Quando
desci do carro fúnebre, o caixão estava já no fundo do túmulo. Eu pedi uma
Nos dias que seguiram, Simone bebeu muito e seguiu com o uso de tranquilizantes. Numa
dessas ocasiões, bebeu tanto que teve de ser carregada por amigos. Estava muito esgotada para
comparecer à cremação de Sartre. Como não pôde voltar para casa, permaneceu na casa de Sylvie2,
na qual sofreu uma queda e foi encontrada, delirando, no tapete. Foi hospitalizada com uma
pneumonia, da qual se recuperou dali a duas semanas.
Simone se posicionou frente à perda de Sartre com choque, descrença, uísque, drogas
psicotrópicas, alteração de consciência e uma enfermidade que acabou custando, a ela, uma
internação hospitalar. Apenas um ano após a morte do companheiro, como uma homenagem
(que ele jamais receberia), ela publicou dados dos últimos anos de Sartre, em seu livro A
Cerimônia do Adeus (Beauvoir, 1981/1984). No entanto, muito mais e muito além de uma
narrativa sobre Sartre, a obra é uma narrativa do próprio luto de Simone. Ela, assim, se
manifesta ao companheiro morto:
este é o primeiro dos meus livros – o único certamente – que você não
terá lido antes de ser impresso. Ele é total e inteiramente devotado a
você; e você não será afetado por ele. Quando éramos jovens e, ao
final de uma discussão apaixonada um de nós triunfava
ostensivamente, o vencedor costumava dizer: “Aí está você na sua
pequena caixa”! Aí está você na sua pequena caixa; não sairá daí e eu
não devo me juntar a você. Mesmo que eu seja enterrada próximo de
você, não haverá comunicação entre suas cinzas e as minhas. Quando
eu digo você é só um pretenso dispositivo retórico. Ninguém ouve.
Estou falando para ninguém (p. 3).
Com efeito, dirigir-se a Sartre, já falecido, é apenas um engodo, um artifício retórico.
Ele já estava morto, não poderia argumentar, mudar de ideia, escolher: findou-se, está “do
outro lado do muro” (Sartre, 1943/2011, p. 531). Não obstante, sua obra permaneceu: como
objeto, tomado e compreendido por outras consciências, por outras liberdades. Esta era uma
preocupação de Sartre (1964/1993), ainda menino: como haveria de ser lido, compreendido,
quando já estivesse morto? Em seu livro autobiográfico As Palavras, ele, assim, se
expressou:
No entanto, a morte foi, para Sartre (1943/2011), um tema periférico, pois toda sua
fenomenologia existencial está fundamentada no conceito de liberdade. A partir do estudo de
sua obra fundamental, O Ser e o Nada, de sua autobiografia, As Palavras, dos seus escritos
durante a Segunda Guerra Mundial e da obra de Simone de Beauvoir, A Cerimônia do Adeus,
dedicada postumamente à Sartre, nos propomos a discutir os conceitos de morte e de luto na
fenomenologia existencial de Sartre, bem como a delinear uma abordagem sartreana do luto.
Para o filósofo, o homem é arremessado na liberdade, está condenado a ser livre, a escolher
posicionar-se desta ou daquela forma diante do mundo que a ele se apresenta. E, ainda que
em face da absurdidade da morte3, ela não constitui um obstáculo à liberdade do ser vivente,
mas dá, a ela, novos contornos. Saber-nos mortais não nos torna menos livres; ainda que
tivéssemos a nossa própria morte sempre na consciência (como em tempos de guerra,
conforme discorreremos adiante), ainda assim estaríamos livres para viver nossa vida como
melhor nos aprouvesse ou, ainda, para liquidá-la, escolhendo, assim, antecipar o fim. Este
fato inevitável desenha nossa situação. Continuamos livres para nos posicionar diante de
nossa mortalidade, desde que ainda estejamos vivos: “a liberdade que é minha liberdade
permanece total e infinita; não que a morte não a limite, mas por que a liberdade jamais
encontra esse limite... Não sou ‘livre para morrer’, mas sou um livre mortal” (p. 671). É certo
que a realidade humana encontra, por toda parte, obstáculos que ela não criou, mas tais
obstáculos são resistências que apenas têm sentido na e pela livre escolha. Para Sartre, a
situação tem estruturas. O conceito de liberdade de Sartre não deve ser jamais interpretado a
partir do senso comum, pois não se trata de ter o que se quer, mas de determinar-se por si
mesmo, a querer: “em outros termos, o êxito não importa em absoluto à liberdade (...)
Qualquer que seja sua condição ele [um prisioneiro] pode projetar sua evasão e descobrir o
valor de seu projeto por um começo de ação” (p. 595). Assim, ser livre não é escolher o
mundo no qual surgimos, nem o que nos acontece, mas escolhermos, a nós mesmos, neste
mundo, seja lá como ele a nós se apresente; significa, sobretudo, autonomia de escolha. À
condição do mundo, Sartre denomina facticidade, isto é, o dado absoluto, o inevitável: meu
lugar, meu passado, meus arredores, o outro e, ainda que em tese, minha morte. A liberdade
se manifesta sempre, portanto, em situação, ou seja, na forma escolhida pelo ser frente ao
mundo: “assim, começamos a entrever o paradoxo da liberdade: não há liberdade a não ser
em situação, e não há situação a não ser pela liberdade” (p. 602); é à luz da minha escolha
que um dado se revela como obstáculo, é à luz de um projeto-de-ser que o homem se escolhe
e se faz ser.
Assim como o conceito de liberdade, o de má-fé não deve ser apreendido a partir do uso
popular. Correntemente, o termo má-fé é utilizado para definir uma espécie de deslealdade
consciente e fraudulenta. Em oposição, para Sartre, a má-fé jamais se pode confundir com a
mentira, uma vez que se trata de uma apreensão pré-reflexiva, de uma tentativa do homem de
escapar do fato de que é livre e de que essa gratuidade da existência gera sofrimento: “na má-
fé, não há mentira cínica nem sábio preparo de conceitos enganadores. O ato primeiro da má-
fé é fugir do que não se pode fugir, fugir do que se é” (1943/2011, p. 118). Negar-se livre é se
crer determinado.
22
Assim sendo, para Sartre, não há outro modo de compreender um fenômeno humano
que não seja a partir do binômio situação-liberdade. Para entender de que forma um indivíduo
se posiciona no mundo, é preciso saber de que mundo se trata, quais as condições materiais
que se apresentam, bem como quais as condições de possibilidade entendias como seus
possíveis ao indivíduo, à luz de seu projeto-de-ser. Em relação ao luto, especificamente, não
nos basta analisa-lo como um processo puramente psicológico ou “interno”, há um mundo
“externo” que situa o processo, que oferece formas dadas de sentimentos e de
comportamentos. A morte de um ser amado é um fato inescapável, um dado, mas o que o
mundo “espera” de nós? Que condições de possibilidade nos oferece para experimentá-la?
Propor respostas a essas questões seria nos aproximar do que seria a situação do enlutado, a
moldura de suas escolhas. Vejamos como estes conceitos estão articulados com nosso
método.
23
3. MÉTODO
Desde sua constituição como ciência, a Psicologia esteve às voltas com o dilema da
objetividade versus subjetividade. Como se moldar ao método científico positivista e, ao
mesmo tempo, dar conta de toda a riqueza e a profundidade da experiência humana? A
multiplicidade de abordagens, de métodos e de objetos psicológicos é uma marca inconteste
deste esforço. Outro impasse histórico à pesquisa psicológica concerne na separação
positivista entre sujeito e objeto, noção cara a quem pretende uma ciência pura. Para atender
a tal exigência, seria preciso eliminar todo e qualquer rastro de subjetividade do pesquisador
e de interferências do meio. Assim, isolado, o homem se ofereceria à análise de sua
verdadeira natureza, expressa na mais límpida forma de leis. Foi em reação a este quadro que,
no início do século XX, Edmund Husserl (1913/2006) lançou as bases da fenomenologia. Em
seu livro Cerimônia do Adeus, Simone de Beauvoir (1981/1985) descreveu a exultação de
Sartre quando tomou contato com a fenomenologia de Husserl e com o mundo que se abria
diante dele: a possibilidade de fazer filosofia a partir de uma taça na mesa do café, do homem
comum e de sua experiência no mundo. Ainda que, ao longo de sua trajetória como pensador,
Sartre tenha contestado, em muitos momentos, as ideias de Husserl, suas contribuições estão
indelevelmente marcadas pelo período em que ele esteve com o mestre, em Berlim, nos anos
de 1933 e 1934.
Em seu livro Para um Esboço da Teoria das Emoções, Sartre (1939/2006) fez duras
críticas à ciência psicológica e, particularmente, ao psicologismo. Para Sartre, os psicólogos
de então teimavam em partir de um amontoado de fatos agrupados sob seu olhar
pretensamente neutro, fatos isolados, universais, descontextualizados: “os psicólogos não se
dão conta de que, com efeito, é tão impossível atingir a essência amontoando os acidentes
quanto chegar à unidade acrescentando indefinidamente algarismos à direita de 0,99” (p.16-
17). Os fenômenos humanos não se manifestam de nenhuma forma “pura”, pois não se tratam
do espelhamento de uma essência ou natureza humana universal, mas são frutos do homem
em situação, reagindo, em sua liberdade, ao e no mundo. Para compreender os “fatos
psíquicos” ou os fenômenos humanos, não cumpre isolá-los e analisá-los, mas situá-los no
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os fatos psíquicos com os quais nos deparamos nunca são os primeiros. Eles
são em sua estrutura essencial reações do homem contra o mundo; portanto,
supõem o homem e o mundo, e só podem adquirir seu sentido verdadeiro se
inicialmente elucidarmos essas duas noções (p. 21).
Influenciado também pelo marxismo, Sartre (1939/2006) propôs a construção de uma
antropologia estrutural e histórica, uma totalização perpetuamente em curso:
mas o psicólogo não se compromete: ele ignora que a noção de homem não
é arbitrária. Ela pode ser muito vasta: nada diz que o primitivo australiano
pode ser incluído na mesma classe psicológica que o operário americano de
1939. Seja como for, o psicólogo proíbe-se rigorosamente de considerar os
homens que o cercam como seus semelhantes. Essa noção de similitude, a
partir da qual se poderia talvez construir uma antropologia, lhe parece
irrisória e perigosa (p. 15).
Os fatos, por si mesmos, não são nem verdadeiros nem falsos e não têm significado, a não ser
se referidos a diferentes sistemas parciais de mediação. Assim, não poderíamos tratar do luto
sem situar a morte, social e culturalmente, bem como sem refletir sobre o modelo médico e
axial que aprisiona o luto e que tem suas bases ideológicas tão eficazmente aderidas à
sociedade que já formam parte de nossa forma de perceber o homem e o mundo.
precisamente para a realidade humana existir é sempre assumir seu ser, isto
é, ser responsável por ele em vez de recebê-lo de fora como uma pedra. E,
como a “realidade humana” é por essência sua própria possibilidade, esse
existente pode “escolher-se” ele próprio em seu ser, pode ganhar-se, pode
perder-se. Essa assunção de si que caracteriza a realidade humana implica
uma compreensão da realidade humana por ela mesma, por obscura que
seja essa compreensão (Sartre, 1939/2006, p. 22-23).
Assim, o pesquisador não pode incorrer no risco de violar a experiência vivida, negligenciar
os pormenores constrangedores e simplificar grosseiramente os dados em prol de sua teoria
(Sartre, 1960/1966). Acreditamos que assim o faz o modelo médico quando reduz toda
25
O processo de escuta do indivíduo enlutado não pode ocorrer sem cuidados éticos
básicos, tendo tal preocupação norteado todo o desenho da pesquisa, cuidando dos princípios
da autonomia, não maleficência, justiça, fidelidade e veracidade. Especial atenção foi
investida na evitação de conflitos de interesse e na preservação da liberdade de escolha da
participante da pesquisa. O consentimento livre e esclarecido forma parte deste processo,
garantindo, dentre outros direitos, o de interromper a participação, a qualquer momento, e o
de ser acompanhado após o término da pesquisa. Dados não essenciais à análise foram
alterados para evitar identificação.
pesquisa lhe foi apresentada em termos mais minuciosos e o termo de consentimento livre e
esclarecido foi lido e assinado. Nele, a paciente aceitou que usássemos os dados provenientes
de seus atendimentos pregressos, bem como os dados de suas redes sociais. Marcamos, ainda,
dois encontros presenciais, que tiveram como pergunta disparadora: “Como foi perder seu
pai?”. Por meio de uma pergunta disparadora ampla, buscamos não conduzir Filomena, mas
permitir que se expressasse, agora de modo pregresso, da forma mais livre possível, sobre sua
experiência em relação à morte do pai. Assim, o entendimento do luto de Filomena, de forma
singular, lança luz sobre a compreensão dialética do enlutamento na contemporaneidade.
4 Numa tradição iniciada por Charles Darwin (The Expression of the Emotions in Man and Animals, de 1872)
até os mais recentes estudos com neuroimagem funcional: O’Connor, M.-F. (2012). Immunological and
neuroimaging biomarkers of complicated grief. Dialogues in Clinical Neuroscience, 14(2), 141–148.
29
buscamos nos aproximar da experiência do luto é, para afirmar o mínimo, uma violência
antropológica e psicológica: é uma tentativa de encaixar todas as experiências de luto ao
redor do mundo no padrão anglo-saxão, de onde parte a esmagadora maioria das pesquisas na
área. A partir das pesquisas sobre os ritos mortuários, pode-se facilmente constatar a tentativa
de encontrar comunalidades nas diversas culturas em relação à morte, na forma da busca por
fenômenos pretensamente universais (Rosenblatt, 1993).
Num estudo com 78 culturas, o psicólogo americano (professor emérito da
Universidade de Minnesota) e sua equipe, Rosenblatt, Walsh e Jackson (1976) investigaram
como os indivíduos encaravam a morte, o pesar e o luto, buscando padrões universais entre as
diversas culturas. Em publicação posterior, Rosenblatt (1993) comentou sobre seu viés inicial
de tentar encontrar representações que fossem universais, ou seja, semelhantes em todas as
culturas. Refutando sua própria hipótese, mostrou-se mais cauteloso, argumentando que é
preciso identificar como cada sociedade entende a morte, a futura possibilidade de reunião
com o morto, o significado de várias emoções expressas após a morte, as coisas a serem ditas
a si mesmo e aos outros e as crenças acerca da morte. Em suas considerações finais, ele
defendeu que os rituais definem o luto do enlutado, ao tempo que seu comportamento
também oferece sinais não-verbais, dando parâmetros de emoção, controle emocional,
significado da morte e de “etiqueta fúnebre”. Tais ritos e suas interações dizem respeito a
todos os valores, as estruturas e as perspectivas da sociedade. Eles não tratam apenas da
morte, mas das relações de gênero, do lugar do trabalho na vida dos indivíduos, da força
política, do status social, da ordem social, do significado das coisas, das maneiras apropriadas
de comer e de vestir e de inumeráveis outros aspectos. Toda esta argumentação, para Sartre
(1960/2004), é evidente, para quem o ponto inicial de qualquer investigação dialética parte da
compreensão do concreto absoluto do homem, de suas condições de possibilidade, de sua
realidade objetiva e da materialidade: “ademais, precisamos entender que não há algo como o
homem; há pessoas, definidas por sua sociedade e pelo movimento histórico que as carrega”
(p. 36). Tais condições de possibilidade de uma totalização se traduzem, basicamente, na
história e na cultura. Foi no intuito de situar o homem e seu luto num tempo histórico e numa
dada cultura, evitando o etnocentrismo e o psicologismo, que este capítulo foi pensado.
A Morte Domada
2) A morte era uma cerimônia pública e organizada pelo próprio moribundo, que a
presidia e conhecia seu protocolo;
3) Como cerimônia pública, entrava-se no quarto, livremente, inclusive as crianças;
4) Os ritos de morte eram aceitos e cumpridos com simplicidade, de modo cerimonial,
mas sem caráter dramático ou gestos de emoção excessivos;
5) Os enterros eram realizados dentro das igrejas;
6) Os ritos se centravam na salvação da alma (numa perspectiva cristã).
A Morte de Si Mesmo
a) O juízo final: antes, acontecia no final dos tempos, e não havia lugar para a
responsabilidade individual e para um cômputo das boas e das más ações. Então, a cena se
transformou: haveria uma avaliação das almas pelo arcanjo São Miguel. A ideia do juízo final
permaneceu sendo representada por uma corte de justiça. O Cristo sentado no trono como
juiz, rodeado por sua corte (os apóstolos). Surgiu, então, a ideia de um livro de contas
individual;
b) O cadáver decomposto: surgiu não somente o horror à decomposição do corpo após a
morte, estendido, também, à decomposição em vida, representada pela doença e pela velhice.
A morte tornou-se o lugar em que o homem tomou consciência de si mesmo;
c) As sepulturas: deu-se a individualização das sepulturas, significando o desejo de
conservar a identidade do túmulo e a memória do desaparecido;
32
d) Permaneceu, aqui, a salvação da alma como foco central, ainda que de uma forma
mais individualizada.
A Morte do Outro
A partir do século XVIII, o homem das sociedades ocidentais tendeu a dar à morte um
sentido novo. Exaltava-a, dramatizava-a e desejava-a, impressionante e arrebatadora. Mas, ao
mesmo tempo, já se ocupava menos de sua própria morte, e, assim, a morte romântica,
retórica, era, antes de tudo, a morte do outro. Como o ato sexual, a morte tornou-se, a partir
de então, cada vez mais considerada uma transgressão que arrebata o homem de sua vida
quotidiana, de sua sociedade racional e de seu trabalho monótono, para lançá-lo em um
mundo irracional, violento e cruel. Consequentemente, a expressão de dor dos sobreviventes
era devida a uma intolerância nova diante da separação. A simples ideia da morte comovia.
Chorava-se, desmaiava-se, desfalecia-se e jejuava-se. Confiando nos que lhe eram próximos,
o moribundo delegava-lhes parte dos poderes que havia, ciosamente, exercido, até então, por
meio dos testamentos amplos.
A morte no hospital não é mais ocasião de uma cerimônia ritualística, presidida pelo
indivíduo à morte, em meio à assembleia de seus parentes e amigos. A morte é um fenômeno
técnico, causado pela parada dos cuidados, ou, de maneira mais declarada, por decisão do
médico e da equipe hospitalar. Em muitos casos, há muito, o moribundo já perdeu a
consciência. A morte foi dividida, parcelada em etapas, dentre as quais, definitivamente, não
se sabe qual seria a verdadeira morte, aquela em que se perdeu a consciência ou em que
cessou a respiração. O momento exato da morte, constante no atestado de óbito (preenchido e
atestado, exclusivamente, pelo médico) é uma convenção. Até mesmo a pesquisa científica é
controversa no que tange à definição do momento da morte (Haque, Shamim, Siddiqui, Irfan
& Khan, 2013). Há protocolos variados para situações variadas. Se o paciente é idoso e a
família é “tranquila”, assina-se um termo autorizando a não reanimação do paciente e a
descontinuação dos meios artificiais de manutenção da vida (“desligamento dos aparelhos”):
o coração parou de bater, cessou a respiração, morreu, ateste-se. Caso se trate de uma criança,
cuja mãe luta, com todas as forças, para mantê-la viva, a equipe médica lançará mão de todas
as máquinas, testes, drogas e protocolos. Uma vez a batalha perdida (porque é disso que se
trata, uma guerra contra a morte), o maquinário mantém a criança respirando e seus órgãos
funcionando e, apenas após a realização de três (às vezes, quatro) eletroencefalogramas
(EEG), com intervalo de 8 horas entre si, que não atestem qualquer (nenhuma mesmo)
atividade cerebral, a família é consultada sobre o desligamento dos aparelhos. Apenas assim,
34
pode-se esperar a vida seguir seu curso e a morte ser atestada. A partir deste momento, a
família pode ser consultada sobre a possibilidade da doação de órgãos (Verheijde, Rady &
McGregor, 2009).
Recentemente, atendi um casal que perdeu o filho único, de um ano e nove meses.
Um câncer cerebral avançou rapidamente e matou a criança, dois meses após o diagnóstico.
A questão principal que os trouxe à psicoterapia foi a dificuldade de marcar a missa de um
ano de falecimento da criança. O pai queria seguir a data do atestado de óbito (digamos, dia
12), mas a mãe sentiu que seu filho morrera dois dias antes (dia 10), quando ficou
inconsciente. A avó materna achava que deviam considerar o dia anterior ao do atestado de
óbito, quando o primeiro EEG foi realizado e não havia mais atividade cerebral (dia 11).
Questões individuais, familiares, religiosas e culturais entraram em cena. Toda a realidade do
nosso tempo e da nossa sociedade, em relação à morte, se encerrava nestas questões: quando
morreu esta criança? O que e quem o define? Por que buscaram a mim, uma profissional de
saúde mental? A família entregou seu filho único, morrendo, aos médicos; seu corpo, à
funerária; e seu luto, a mim. Diante da morte, desprovida, desnorteada, confusa e em
sofrimento, entregou-se à técnica, à ciência e aos profissionais.
Sobre a relação com a morte, no Brasil, DaMatta (1984/2011) pontua que falar dos
mortos é negar a própria morte, pois, na sociedade brasileira, o morto continua existindo,
voltando, sistematicamente, para pedir ajuda e dar lições de humildade cristã; enfim,
35
permanece em lugar privilegiado, em sua comunidade e família: “no Brasil, a morte mata,
mas os mortos não morrem” (p. 71). Esta relação de proximidade com o mundo dos mortos
também se alterou, em nosso país, tendo em vista o processo de medicalização e de
secularização.
Não em tempos imemoriais, mas, hoje, no Brasil, os wari’5 comem seus mortos
(Vilaça, 1998). Um complexo ritual oferece aos indivíduos um papel determinado. Quando
alguém cai doente, juntam-se os mais próximos, num canto fúnebre. A partir do momento da
morte, que ocorre por meio da constatação rudimentar da cessação dos batimentos cardíacos e
da respiração, a família é convocada, estando, muitas vezes, em tribos vizinhas. O tempo
necessário para a chegada dos familiares permite ao cadáver entrar em putrefação (em geral,
três dias) e, apenas depois de podre, é lavado, esquartejado e colocado sobre o moquém
(grelha feita de paus para assar carne). A cabeça vai, primeiro, ao moquém e, das vísceras,
são comidos o coração e o fígado, assados em embrulhos de folha. Os genitais e outros
órgãos são atirados, diretamente, ao fogo. Apenas os não-parentes podem esquartejar e assar
o cadáver. Os não-parentes, também, são os que comem a carne, mas não convém que o
façam com muita avidez, pois pode ser considerado ofensivo para a família. Em geral, os
miolos são reservados às crianças. Os ossos são queimados junto com o que sobrou de carne,
e as cinzas, misturadas em mel, que deve ser consumido aos poucos. Ao término desta fase,
acontece o “varrer”, realizado por parentes, quando todos os vestígios da cerimônia são
removidos, assim como os pertences do falecido. Tudo é, novamente, queimado. Segue-se o
período de luto, variando de alguns meses a um ou mais anos, dependendo do grau de
5 Povo indígena, falante da língua da família txapakura. Vivem no oeste de Rondônia e somam
cerca de 1800 pessoas.
36
parentesco com o defunto. Diferentes grupos de parentes realizam o ritual que marca o fim do
luto, em momentos distintos. O rito que sinaliza o fim do período de luto é feito com uma
caça (em geral, um macaco), dentro de um cesto, tratada como o falecido, mas que, ao final, é
assada e comida, também, pelos parentes. Este intrincado ritual trata de passar o indivíduo a
um status de coisa (a caça) e assimilá-lo. Ainda sobre o canibalismo, Rodrigues (1983)
descreve:
O Estado do Ceará dista cerca de 2.800 quilômetros de Rondônia, terra dos wari’.
Em nossa capital, Fortaleza, a ideia de assar e comer entes queridos falecidos é absolutamente
horripilante, comportamento associado a tramas de terror e de serial killers. Que este ponto
fique claro: não se pode falar do luto no Brasil. Sendo um país multicultural e de dimensões
37
6 Chama-se “anjinho” à criança que morre, inocente, sem pecado, que não passou da primeira
infância.
38
Cerimonialista;
Violonista, coral e músicos;
Fotógrafo, com fotos reveladas em álbuns ou em formato digital;
Cinegrafista;
Revoada de balões;
Chuva de pétalas de rosas, atiradas de helicóptero;
Efeitos especiais (luzes, fumaça de gelo seco e equipamento de som); e, ainda,
“Velório online”, por meio do qual a cerimônia é transmitida, em tempo real,
pela “internet”, para todo o mundo.
Figura 1 – Site de Empresa Funerária em Fortaleza, com destaque para o Velório Virtual
A preparação do corpo, antes realizada por membros das famílias, é, agora, dominada pela
técnica e pela estética. A tanatopraxia é realizada em clínicas especializadas, nas quais a
40
Especialmente, dois pacientes e suas famílias nos ensinaram muito a esse respeito. Em
2004, na UTI pediátrica do Hospital das Clínicas da FMUSP, acompanhamos a morte de
Ângela9, 10 anos, conforme foi descrito em trabalho anterior (Carneiro, 2004). Ângela foi
diagnosticada com um quadro de mal convulsivo (epilepsias de ausência). O uso do
medicamento para controle das convulsões levou a um choque séptico, que ocasionou
falência múltipla de órgãos. Antes de desligar os aparelhos que mantinham Ângela viva, o
médico recorreu ao serviço de psicologia, com a seguinte demanda:
7 O termo médico se refere a humor normal (tranquilidade de espírito), mas, em geral, significa
“aquele paciente que não dá trabalho”.
8 “Estilo de morrer”, “estilo aceitável de viver enquanto se morre”, “estilo aceitável de encarar a
morte”.
9 Nome fictício.
45
- Hoje, vamos fazer novo EEG e, se der tudo certo, amanhã a gente já
decreta a morte cerebral.
Para que tudo desse “certo”, era preciso que a morte de Ângela ocorresse no tempo e do
modo previstos e, para tranquilidade da equipe, a mãe, agora classificada como paciente
psiquiátrica, se comportasse bem na morte da filha, “sem escândalos, nenhuma surpresa”. A
anestesia psíquica, sob a forma de calmantes, é parte importante da etiqueta fúnebre, sendo
um dos primeiros recursos a serem oferecidos a quem acaba de sofrer uma perda, antes
mesmo do lenço. Nos velórios atuais, há sempre uma cartela de tranquilizantes, passando de
mão em mão. Num processo inverso do de compartilhar emoções, compartilha-se uma atitude
meio blasé ou meio “zumbi”, que aliena os sujeitos do seu sofrimento.
O segundo caso a que nos referimos é recente, de setembro de 2015, e aconteceu num
hospital de Fortaleza. De passagem pelos corredores da internação, uma movimentação maior
que o habitual em um dos quartos nos chamou a atenção. A porta estava aberta e vários
membros da equipe hospitalar entravam e saíam, de um por um. Perguntamos de quem era o
quarto e um auxiliar nos respondeu: “ué, a senhora ainda não conhece a D. Eliene10? É uma
10 Nome fictício.
46
lenda nesse hospital”. Não a conhecíamos, pois ninguém havia nos chamado para “avaliá-la”
(o que é comum com “pacientes difíceis”). Descobrimos, depois, que Eliene, de 77 anos,
tinha um câncer terminal e já estava em cuidados paliativos. No prontuário, constava que os
remédios para dor já estavam perdendo o efeito. Antes de entrar no quarto, imaginamos o
horror da dor de um câncer terminal. Seu quarto era iluminado, com portas e janelas abertas.
Havia flores e livros e a TV estava sempre ligada. Encontramo-la, sentada na poltrona. Nada,
nela ou no ambiente, fazia entrever o desfecho que se anunciava, cada vez mais próximo.
Mesmo pela manhã, Eliene estava maquiada, penteada e bem vestida. Notamos que usava
prótese dentária. Ela nos recebeu muito bem-humorada, nos abençoou e perguntou se Sarah
era casada e se tinha filhos. Depois, disse: “a partir de agora, você já está nas minhas
orações”. Elogiou muito nossa aparência e deu dicas de como engravidar mais rápido. Falou
pouco sobre o câncer, pois tinha certeza absoluta que ia ficar boa, já que confiava em Deus e
nos médicos. Nenhum membro da família chorava perto dela, e, também, nunca a vimos
chorar. Manteve-se assim até entrar em coma e morrer, um dia depois. A equipe lamentou
muito a sua partida, comparecendo, em peso, ao seu enterro, ao velório e à missa de 7º dia.
Ouvimos muitas vezes: “a gente entrava lá pra cuidar dela e ela cuidava da gente”, “nunca
ouvi d. Eliene reclamar” e “quero morrer assim, velhinha e feliz”. Eliene soube morrer com
estilo, na idade certa, do jeito certo, pois seguiu o protocolo do acceptable style of dying.
Freire Filho (2010), em suas pesquisas sobre a felicidade como um valor da sociedade
contemporânea e como tecnologia do governo neoliberal, trabalha com o termo homo felix. O
direito à felicidade tornou-se uma máxima e um horizonte a ser buscado, mas nunca
alcançado:
físico, dormir bem, não ter estresse, viajar, tomar bastante água e evacuar uma vez ao dia,
assim por diante, infinitamente). Depois do “por que comigo?”, segue uma busca implacável
por uma causa e, frequentemente, o indivíduo sente-se traído pelo sistema (médico, jurídico
ou de valores). Questionar os valores em que vive uma sociedade pode significar um fardo
demasiadamente pesado para quem já tem que lidar com uma perda. Hodgkinson (1998)
propôs o conceito de mundo presumido, que é a noção que todos carregamos de que nossa
vida tem um sentido ou uma ordem e que segue uma lógica. Desta forma, vivemos como se
fôssemos invulneráveis (“essas coisas só acontecem com os outros”), dignos (“eu sou uma
pessoa boa, decente e não mereço que nada de mal me aconteça11”) e seguros (“o mundo é
um lugar seguro, previsível”). O oposto disto seria o caos da angústia pura: “qualquer coisa
pode me acontecer”; “eu sou fraco e devo ter merecido o que me aconteceu” e “o mundo é
perigoso, caótico e imprevisível”.
11 Vale a leitura do “best-seller” de Kushner, de 1981, When Bad Things Happens to Good
People.
12 No Brasil, o período de dispensa do trabalho por ocasião da morte de familiar pode chegar a
até 7 dias, dependendo do grau de parentesco com o falecido.
48
não pára (“tempo é dinheiro”). Assim, mais uma vez, ele recorre à ciência. Primeiro, ao
médico, o clínico geral, para uma bateria de exames que devem encontrar algo físico, que
justifique tanto mal-estar ou que afaste a sombra do contágio da morte. Diante do nada no
corpo, vai aos profissionais de saúde mental. Desviar-se do roteiro previsto para o luto é cair
nas malhas da saúde mental. O luto não-saudável, patológico, complicado ou não-resolvido é
problema da psiquiatria e da psicologia. Caso o enlutado não conheça algum profissional a
quem recorrer, a própria empresa funerária o encaminha para atendimento, em suas próprias
instalações, o que se caracteriza como um grande diferencial competitivo.
2) Esta síndrome pode aparecer logo após uma crise; pode ser adiada; pode ser
exagerada ou ficar aparentemente ausente;
4) Com técnicas apropriadas, tais quadros distorcidos podem ser transformados com
sucesso em reações normais de luto com resolução.
Tal tendência da divisão do luto em fases marcou profundamente o campo de estudo do luto
em saúde mental. O psiquiatra britânico Colin M. Parkes, que trabalhou com Bowlby por
algumas décadas, teve e continua tendo grande expressão na área da pesquisa do luto. Em
1972, Parkes publicou seu livro Luto: Perdas na Vida Adulta. Parkes (1972/1998) também
trabalhava com as fases propostas por Bowlby e, a partir de um vasto trabalho com viúvas,
sugeriu que, no luto patológico, a pessoa se fixa em determinada etapa do processo de luto e
“não consegue” completá-lo. Sugeriu a seguinte classificação para o luto patológico:
Também propôs uma terapia do luto para resolver o “luto patológico”, dividindo-o em três
principais categorias:
a) Luto prolongado;
c) Luto exagerado.
de depressão e a inclusão do “luto complicado” como uma nova categoria diagnóstica. Neste
ponto, no sentido de oferecer maior contextualização, julgamos de suma importância
apresentar um breve histórico do surgimento e do desenvolvimento do DSM como literatura
de referência diagnóstica. Por ocasião da Segunda Guerra Mundial, as forças armadas dos
EUA criaram e expandiram uma classificação das doenças mentais. O DSM-I (publicado em
1952) e o DSM-II (publicado em 1968) foram, ambos, revisados pela “Administração dos
Veteranos” e pela Associação Americana de Psiquiatria. Os dois manuais não foram
amplamente lidos, usados ou considerados importantes. Até 1980, os DSM eram pequenos
livros obscuros, que poucos demonstravam interesse de ler. O DSM-III mudou radicalmente a
cena, um livro conciso que, rapidamente, se tornou um ícone cultural, um best-seller perene,
finalmente, se transformando na “bíblia” da psiquiatria (Frances, 2013). Uma vez que o
DSM-III postulava os limites cruciais entre a normalidade e a doença mental, ele se tornou
extremamente significativo para a sociedade e passou a servir de guia para toda uma gama de
importantes decisões, com enorme impacto na vida das pessoas, como: quem era considerado
normal e quem era doente; qual tratamento deveria ser oferecido; quem pagava pelo
tratamento; quem tinha direito a benefícios previdenciários; quem era elegível para serviços
exclusivos de reabilitação para doentes mentais; quem seria contratado para um emprego;
poderia ou não adotar uma criança; pilotar um avião; quem seria considerado um assassino ou
um doente mental; quais seriam as consequências em ações judiciais; e muito, muito mais. É
fato que os critérios diagnósticos do DSM-III estavam baseados na superfície dos sintomas e
não diziam nada sobre as causas e o tratamento. Porém, sintomas superficiais se encaixavam
nos modelos biológico e médico dos transtornos mentais e os promoveram enormemente.
Segundo Frances (2013), psiquiatra e chefe da força tarefa que desenvolveu o DSM
IV, o DSM-V cometeu grandes erros, em parte, porque foi gestado como um processo secreto
e fechado, sem abertura para consultores externos. Segundo o autor, “a psiquiatria sensível
55
Shear et al (2011) apresentam um quadro com os critérios propostos para Luto Complicado
(LC):
A. A pessoa tem estado enlutada (por exemplo, passou pela morte de um ente querido), por
pelo menos 6 meses
B. Pelo menos um dos seguintes sintomas de intenso luto agudo estiver presente por um
período maior que o esperado por outros de seu círculo social e cultural
sem a pessoa que morreu, ou um desejo recorrente de morrer para se reunir com o
falecido;
4. Pensamentos frequentes e preocupantes sobre a pessoa que morreu, por exemplo,
pensamentos ou imagens intrusivas sobre a pessoa que faleceu, interferindo em
atividades e no funcionamento normal do enlutado;
C. Pelo menos 2 dos seguintes sintomas estão presentes por pelo menos 1 mês:
2) Perda do apoio social, que se mostra diferente para a depressão (eliciando hostilidade
estigma e rejeição) e para o luto (apoio social e simpatia);
DA EXPERIÊNCIA À DOENÇA
O DSM nem sempre foi conhecido como a “bíblia da psiquiatria”. Sua primeira
edição nasceu de uma necessidade norte-americana de gerar dados estatísticos para o censo
demográfico, tendo sido, para tanto, necessária uma classificação dos transtornos mentais. No
recenseamento de 1840, uma única categoria foi contabilizada: idiotice/ loucura. Na pesquisa
de 1880, o censo abordou sete categorias: mania, melancolia, monomania (um tipo de
paranoia, no qual o paciente é obcecado por um único tipo de ideia), paresia (perda parcial da
motricidade), demência, dipsomania (alcoolismo) e epilepsia (American Psychiatric
Association, 2015).
Apesar de o termo luto não estar presente de forma alguma na primeira edição do
DSM, a relação entre depressão e perda era inequívoca, tomando boa parte desta pequena
descrição clínica supracitada e apontada na gênese e na manutenção da reação depressiva.
Assim, a ansiedade decorrente da perda seria aliviada pela reação depressiva, como um
mecanismo de defesa do paciente. Na descrição do transtorno, não havia referência à
genética, à biologia, ao funcionamento cerebral ou a qualquer “defeito” ou mau
funcionamento inerente ao paciente. O que havia era uma apreciação, ainda que superficial,
da forma como o indivíduo reagia diante do que lhe aconteceu, uma concepção muito
próxima da fenomenologia existencial de Sartre. Como veremos, este enfoque vai sendo
perdendo espaço ao longo da próxima edição e é praticamente extinto a partir do DSM-III.
6.2. DSM-II
Com críticas à CID 6 e à sua forte influência sobre a primeira edição do DSM , o
DSM-II foi lançado em 1968. Seu presidente seguiu sendo um militar, o capitão Ernest
Gruenberg, veterano da II Guerra Mundial e diretor executivo do Comitê de Saúde Mental de
Nova Iorque. Ainda na introdução, tal Comitê argumentava que o livro se baseava na
crescente premissa de que “todas as nações vivem num único mundo” e que a “rápida
integração da psiquiatria à medicina” (American Psychiatric Association, 1968, p. 7) criara a
necessidade de um sistema de classificação integrado às outras áreas médicas, o que exigia,
portanto, uma codificação dos fenômenos mentais (psicológicos ou comportamentais) em
sintomas, síndromes e transtornos. Para se encaixar e ser aceita pelo modelo médico, a
psiquiatria se baseou na superfície dos sintomas e pouco tratou sobre as causas ou o
tratamento dos transtornos mentais. De todo modo, esta abordagem superficial acabou se
62
mostrando, pela sua simplificação, mais facilmente absorvida pelo público leigo. A premissa
de que todas as nações vivem num mesmo mundo salta aos olhos, uma vez que tal mundo,
certamente, se tratava, tão somente, de um recorte da sociedade norte-americana. Tal viés
diagnóstico e a expectativa globalizante de um único código de normalidade/patologia
acompanharam toda a história e o desenvolvimento do DSM, como trataremos adiante.
I) Retardamento Mental15;
IV) Neuroses;
15 Optamos por grafar os nomes de transtornos em maiúsculas para evitar confusão com o texto
cursivo.
63
6.3. DSM-III
A terceira edição do DSM foi um marco em muitos aspectos. Resultado de uma força-
tarefa que durou cinco anos e publicado em 1980, o DSM-III consistia em um manual com
mais de 500 páginas, em contraste com as 140 de sua edição anterior. Seu presidente foi o
psiquiatra Robert Spitzer, professor de psiquiatria da Universidade de Columbia e a quem se
atribui a arquitetura moderna dos diagnósticos psiquiátricos. Segundo Frances (2013), até
1980, os DSM eram livros obscuros e pouco lidos. O DSM-III mudou, radicalmente, a cena,
uma vez que era um livro que distinguia, de modo conciso, a loucura da sanidade, tornando-
se, rapidamente, um ícone cultural, um best-seller e, finalmente, se transformando na “bíblia”
da psiquiatria. O manual impactou, fortemente, o cotidiano das pessoas comuns por meio de
políticas públicas e privadas, pois oferecia diretrizes sobre quem era normal ou doente, que
tipo de tratamento receberia, quem financiaria seu tratamento, quem poderia receber
aposentadoria por invalidez, ou, ainda, quem estava apto para um emprego, para adotar uma
criança, pilotar um avião ou dirigir um carro, quem poderia ser condenado criminalmente,
dentre muitas outras regulamentações. Da mesma forma que a justiça distingue, na forma de
leis, o crime do que é legal, a psiquiatria passou a fornecer limites claros para o
comportamento humano normal ou patológico. Restaram instituídos, não apenas os valores
64
médico e cultural do DSM, mas um imprescindível valor burocrático. De fato, o DSM III
introduziu mudanças significativas, principalmente uma descrição mais longa e detalhada dos
diagnósticos, critérios explícitos, um sistema de avaliação diagnóstica multiaxial e um foco
descritivo (não mais na etiologia) dos transtornos mentais. Robert Spitzer, presidente da
força-tarefa que desenvolveu o manual, expressamente, o considerava “ateorético” (American
Psychiatric Association, 1980, p. 20). O objetivo principal do DSM-III foi proporcionar a
definição exata dos transtornos mentais para uso clínico e, secundariamente, voltando seu uso
à pesquisa e à administração. Suas categorias diagnósticas foram divididas em:
A associação direta entre luto “normal” e depressão foi amenizada com a introdução
do luto como critério de exclusão para o diagnóstico de Episódio Depressivo Maior, ainda
que o manual afirmasse, categoricamente, que, no caso de luto severo ou prolongado
(complicado), o diagnóstico de Depressão Maior deveria ser confirmado:
Tabela 1 - Uso de medicamento com retenção de receita no Ceará. Fonte: Brasil (2011).
6.4. DSM-III-R
O DSM-III-R é uma revisão da edição anterior e foi lançado em 1987. Com o
psiquiatra Robert Spitzer ainda como presidente da força-tarefa, foram identificadas, no
DSM-III, “inconsistências no sistema e casos em que os critérios de diagnóstico não eram
totalmente claros ou eram mesmo contraditórios” (American Psychiatric Association, 1987,
p. XVII). Desta feita, a American Psychiatric Association nomeou um grupo de trabalho para
rever o DSM- III, que desenvolveu as revisões e correções que levaram à publicação do DSM
-III-R, em 1987. As principais categorias do DSM-III-R eram:
Bymaster, 2005). A então denominada pílula da felicidade foi apresentada como panaceia
para todo sofrimento psíquico, com indicações de uso que iam da Depressão Maior ao
Transtorno Obsessivo Compulsivo. Ainda que, nos dias atuais, haja muita produção científica
séria que desminta a hipótese da causa serotoninérgica da depressão (Rajkowska, 2003;
Horwitz & Wakefield, 2012; Frances, 2013; Shorter, 2013; Mann, 2013; Albert &
Benkelfat16, 2013), a associação do neurotransmissor com a depressão se manifesta quase
como um fenômeno cultural, uma moda que vem ao encontro do anseio, de toda uma época,
pela felicidade instantânea e permanente e pelo humor “mais que bom” da psiquiatria
cosmética. Se o indivíduo está deprimido, falta-lhe serotonina, “o motivo provoca o ato como
a causa física o efeito; tudo é real, tudo está cheio” (Sartre, 1943/2011, p. 496). Em tal
processo determinista de tentar tomar causas e efeitos como coisas, não há lugar para a
subjetividade e para a liberdade. Onde tudo é concreto, as significações que o sujeito daria a
seus estados, seus pensamentos e seus sintomas não têm relevância, pois estamos no campo
da má-fé, no caminho desperdiçado de aplacar a angústia. Ainda que em vão, o processo de
patologização da conduta humana, como restará claro adiante, seguiu como um fio condutor
das demais edições do DSM.
6.5. DSM-IV
O contato dos estudantes da área de saúde mental com o DSM é precoce em sua formação
profissional, num momento em que a grande maioria ainda não tem contato com a prática
clínica e, portanto, possui, em tese, uma capacidade crítica limitada neste aspecto. A
superficialidade com que o conteúdo é apresentado, na forma de uma check-list de sintomas e
diagnósticos, pode levar o profissional recém-formado a uma falsa ideia de domínio da
grande complexidade das apresentações clínicas psicológicas e/ou psiquiátricas. Apoiados
num manual científico, internacionalmente reconhecido e trabalhando em condições precárias
(em termos de tempo, de manejo clínico e de condições ambientais), muitos profissionais
acabaram se tornando identificadores de transtornos, muito mais do que compreendendo,
psicodinamicamente, o paciente, ou sendo capaz de situar o sintoma em sua história de vida.
No DSM-IV, os transtornos mentais foram agrupados em 16 classes principais de
diagnóstico e, em uma seção adicional, “Outras Condições que Podem Ser Foco de Atenção
Clínica”, os “Códigos V” dos manuais anteriores:
I) Transtornos Usualmente Evidentes na Primeira infância, Infância ou Adolescência;
II) Deliruim, Demência, Transtornos Amnésicos e outros Transtornos Cognitivos;
III) Transtornos Mentais devidos à Condição Clínica Geral;
IV) Transtornos Relacionados a Substâncias;
V) Esquizofrenia e outros Transtornos Psicóticos;
VI) Transtornos de Humor;
VII) Transtornos de Ansiedade;
VIII) Transtornos Somatoformes;
IX) Transtornos Factícios;
X) Transtornos Dissociativos;
XI) Transtornos de Identidade Sexual e de Gênero;
XII) Transtonos Alimentares;
XIII) Transtonos do Sono;
71
Por sua vez, as diferenças culturais foram levadas em conta em sete páginas do
manual (contra pouco mais de um parágrafo, na edição anterior), constando do Apêndice I -
“Considerações Culturais e Étnicas”. Ainda na introdução do DSM-IV, foi feita uma ressalva
sobre a questão cultural, citando, como exemplo, a morte de um ente querido:
essa síndrome ou padrão não deve ser meramente uma resposta
culturalmente esperada e sancionada a um determinado evento, como
por exemplo, a morte de um ente querido. Qualquer que seja sua
causa original, deve ser considerada como uma manifestação de uma
disfunção comportamental, psicológica ou biológica. Também não
são transtornos mentais os comportamentos desviantes (por exemplo,
político, religioso ou sexual), nem os conflitos, que são
principalmente entre o indvíduo e a sociedade, salvo se o desvio ou
conflito é um sintoma de uma disfunção do indivíduo (American
Psychiatric Association, 1994, p. XXII).
Nos dois diagnósticos, a descrição do contato do indivíduo com o morto era considerada
numa perspectiva cultural, ainda que não descartasse seu enquadramento como doença, se
outras características se fizessem presentes (tentativa de suicídio, por exemplo).
Como pudemos constatar, as manifestações de luto estão relacionadas com questões
culturais em todas as edições do DSM, mas nunca antes foram tão frequentes quanto no
DSM-IV. Além das inserções ligadas à cultura, o luto seguiu relacionado à etiologia do
Transtorno de Ansiedade de Separação, à intensificação dos sintomas na Demência e como
critério de exclusão para os Transtornos de Ajustamento e Episódio Depressivo Maior, desde
que não ultrapassado o período de dois meses:
Episódio Depressivo Maior. O DSM-IV inclui o critério E que
clarifica a relação com o Luto – que é, o Episódio Depressivo Maior
deve ser diagnosticado se os sintomas perdurarem mais de dois meses
após a perda do ente querido (American Psychiatric Association,
1994, p. 780).
Como uma revisão de texto da edição anterior, o DSM-IV-TR foi lançado em 2000,
seguindo com Allen Frances à frente da força-tarefa. Os objetivos da revisão foram,
principalmente, atualizar o texto do DSM-IV, de acordo com pesquisas mais recentes e fazer
alterações que aumentassem o uso educacional do manual. A maior parte das modificações se
deveu a atualizações de revisão de literatura e de códigos, no sentido de uma
compatibilização com a CID-10. As classes diagnósticas seguiram inalteradas em relação à
edição anterior. Ao diagnóstico de Transtorno Depressivo Maior, foram acrescentados dados
de exames laboratoriais e de neuroimagem, com ênfase em alterações neurobiológicas e
hormonais. Apresentava-se mais clara a tendência da busca de uma explicação
neurobiológica para a depressão. No que tange ao luto, a única alteração em relação ao DSM-
IV foi um trecho, acrescentado ao diagnóstico de Transtorno de Ajustamento, no qual
figurava como critério de exclusão, desde que não fosse excessivo ou prolongado:
74
Como trataremos a seguir, foi no DSM-5 que a conexão ente luto e doença mental se
concretizou, em termos da proposição de um diagnóstico em separado: o do Transtorno do
Luto Complexo e Persistente.
6.7. DSM-5
Após presidirem as forças-tarefa dos DSM anteriores, Robert Spitzer (III e III-R) e
Allen Frances (IV e IV-TR) foram substituídos pelo psiquiatra David J. Kupfer, no DSM-5.
David J Kupfer trabalhou no DSM-IV, sendo internacionalmente reconhecido por suas
pesquisas nas áreas de transtornos de humor e de sono. É membro da Society of Biological
Psychiatry, da American College of Neuro-psychopharmacology e Collegium Internationale
Neuro-psychopharmacologicum17. Sob a presidência Kupfer, a força-tarefa responsável pelo
desenvolvimento do DSM-5 trabalhou desde os anos 2000 para, somente em 2013, lançar seu
produto final. Os autores do DSM-5 alegavam estar calcados no progresso real e duradouro
da neurociência cognitiva, da neuroimagem, da epidemiologia e da genética, e se propunham
a melhor satisfazer clínicos, pacientes, famílias e pesquisadores (American Psychiatric
Association, 2013).
I) Transtornos do Neurodesenvolvimento;
II) Espectro da Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos;
III) Transtorno Bipolar e transtornos relacionados;
IV) Transtornos Depressivos;
V) Transtornos de Ansiedade;
VI) Transtorno Obsessivo compulsivo e transtornos relacionados;
VII) Transtornos relacionados a traumas e estressores;
VIII) Transtornos Dissociativos;
IX) Transtornos de sintomas somáticos e transtornos relacionados;
X) Transtornos Alimentares;
XI) Transtornos de Eliminação;
XII) Transtornos de Sono-vigília;
XIII) Disfunções Sexuais;
XIV) Disforia de Gênero;
XV) Transtornos Disruptivos, de controle de impulso e de conduta;
XVI) Transtornos relacionados a substâncias e transtornos aditivos;
XVII) Transtornos Neurocognitivos;
XVIII) Transtornos de Personalidade;
XIX) Transtornos Parafílicos;
XX) Outros transtornos mentais;
XXI) Transtornos do movimento induzidos por medicamentos e outros efeitos
adversos de medicamentos;
XXII) Outras condições que podem ser foco de atenção clínica (Códigos V).
76
O instrumento proposto pelo manual para identificar a formulação cultural dos transtornos
mentais foi a Entrevista de Formulação Cultural (EFC), um questionário composto de 16
perguntas, cujo objetivo é abordar:
ESTRESSORES E SUPORTE
14. Que tipo de ajuda você acredita que lhe será mais útil
agora para seu [problema]?
Seguindo a tradição das edições anteriores do DSM, o luto, ainda que de forma
sucinta, é utilizado para exemplificar os conceitos culturais de sofrimento:
Como tratamos acima, na primeira edição do DSM, em 1952, o termo “luto” não é citado
uma única vez, ao passo que, no DSM-5, de 2013, há mais de 130 referências ao termo. Em
pouco mais de 60 anos, a abordagem do luto, pelo DSM, mudou radicalmente: de uma
experiência humana à patologia.
Uma decisão de tão ampla repercussão, como a retirada do critério de exclusão do luto para o
diagnóstico de episódio depressivo maior, é, simplesmente, no DSM-V, justificada em uma
nota de rodapé:
Na medida em que baseia a distinção entre luto e depressão no “juízo clínico” e, dado que o
luto não é propriamente discutido no manual, o que temos são profissionais que “conhecem”
a depressão, mas não o luto, e que têm, de fato, apenas alguns minutos para tomar a decisão
de diagnosticar e, consequentemente, de tratar ou não o paciente com medicamento. Em
2009, a Organização Mundial de Saúde conduziu uma pesquisa mundial sobre saúde mental e
o Brasil foi o país com a maior prevalência de depressão, com 10,4% da população
81
diagnosticada, nos últimos doze meses, o que corresponde a mais de 20 milhões de pessoas
(Viana, Teixeira, Beraldi, Bassani, & Andrade, 2009). Acreditamos que a amplitude
crescente do conceito de depressão, abarcando, cada vez mais, experiências ordinárias do
indivíduo comum, esteja levando a um uso desenfreado e sem controle de medicamentos
psiquiátricos, além de todo o pacote burocrático que advém do rótulo do diagnóstico.
Quantos enlutados estão sendo diagnosticados e medicados? No capítulo sobre Transtornos
Depressivos, encontramos um argumento ostensivo, defendendo as benesses de medicar um
enlutado, desde que apresente, como comorbidade, algo tão vasto quanto a depressão:
De mais a mais, o luto segue incluído nos “Códigos V”, na categoria Outros Problemas
Relacionados ao Grupo de Apoio Primário, e ganha a especificação “sem complicações”, o
que indica que há tipos complicados de luto. É, ainda, encontrado como diagnóstico
diferencial do Transtorno de Ansiedade de Separação e do Transtorno do Pesadelo; como
ressalva, no Transtorno de Estresse Pós-traumático, quando a morte for violenta: “o luto
complicado pode estar presente” (p. 276); como fator relevante ligado à etiologia e ao
tratamento das Disfunções Sexuais, especialmente, a Disfunção Erétil e a Ejaculação Precoce
(prematura). O luto aparece, ainda, relacionado ao Transtorno do Estresse Agudo e como
critério de exclusão para o Transtorno de Adaptação, com uma curiosa ressalva, que cita um
transtorno que, segundo o próprio manual, ainda necessita de pesquisas para ser referendado:
o transtorno de luto complexo persistente, até este ponto, ainda não apresentado no manual:
Como um diagnóstico ainda não referendado, que figura numa seção cujo título adverte
quanto à necessidade de mais pesquisas, aparece como diagnóstico diferencial de categorias
diagnósticas já ratificadas? No diagnóstico de Outro Transtorno Relacionado a Trauma e a
Estressores Especificado (309.89), o transtorno do luto complexo e persistente aparece como
especificador:
CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS
83
é experimentado em um grau clinicamente significativo na maioria dos dias e persistiu por pelos 12
meses após a morte no caso de adultos enlutados e 6 meses no caso de crianças enlutadas:
que refletem ser separado e também voltar a unir-se a um cuidador ou outra figura de apego.
crianças, essa preocupação com o falecido pode ser expressa por meio de temas e brincadeiras e
comportamento e pode se estender à preocupação com a possível morte de outras pessoas próximas a
elas.
são experimentados em um grau clinicamente significativo na maioria dos dias e persistiram por pelo
menos 12 meses após a morte, no caso de adultos enlutados, e 6 meses no caso de crianças enlutadas:
falecido.
evitação de indivíduos, lugares ou situações associados ao falecido, em crianças isso pode incluir a
morte.
desde a morte.
diminuído quanto à própria identidade (p. ex. sentir que parte de si morreu com o falecido).
indivíduo.
Especificar se:
Com luto traumático: luto devido a homicídio ou suicídio com preocupações angustiantes
perda), incluído os últimos momentos do falecido, grau de sofrimento e lesão mutiladora ou a natureza
Quadro 3- Transtorno do luto complexo e persistente (Fonte: American Psychiatric Association, 2013).
85
Ainda que um dos propósitos deste trabalho seja apontar as falhas deste modelo, que ignora a
história, a cultura, o indivíduo e seu mundo, decidimos nos deter em cada um de tais critérios
diagnósticos, com o objetivo de tornar mais óbvia a incoerência:
A) O critério A exclui todos os outros tipos de perda, por vezes, muito mais significativas,
para um sujeito determinado, do que a própria morte de alguém próximo, como separações,
perda de dinheiro e bens, imigração, limitações físicas, doenças, perda de um sonho, dentre
muitos outros. Exclui, ainda, o, já mencionado, relacionamento com animais de estimação,
atualmente considerados membros da família, com seus próprios jazigos e exéquias18. A
expressão “com quem tinha relacionamento próximo” é absolutamente inadequada, pois uma
relação distante não implica, de forma alguma, ausência de amor ou de outro tipo de afeto
capaz de desencadear profundas reações de pesar;
B) O critério B contém o disparate de delimitar o tempo para o luto normal: 12 meses para
adultos e 6 meses para crianças. Os “sintomas” a que se refere são absolutamente corriqueiros
na clínica, e são próprios de muitos processos de enlutamento: 1) Saudade persistente do
falecido; 2) Intenso pesar e dor emocional em resposta à morte; 3) Preocupação com o
falecido: certa feita, atendi uma paciente que não gostava quando chovia porque imaginava
que a decomposição do corpo da mãe aconteceria mais rápido; outros inúmeros pacientes
relatam preocupações sobre onde e como estará seu ente querido (em outro plano); 4)
Preocupação com as circunstâncias da morte: um dos pensamentos mais recorrentes e
duradouros em enlutados é a dúvida: será que sofreu? Será que sentiu dor? Será que percebeu
que estava morrendo?;
C) Este critério divide dois tipos de “sintomas”. Sofrimento relativo à morte: 1) Marcada
dificuldade de aceitar a morte: principalmente no caso de pais, a aceitação da morte é um
processo que pode durar muitos anos ou a vida toda; 2) Experimentar incredulidade ou
entorpecimento emocional quanto à perda: no processo de aceitação da morte, muitas vezes,
o pensamento de que o falecido vai voltar ou que está numa longa viagem pode ser muito
reconfortante para o indivíduo, não necessariamente indicando qualquer patologia; 3)
Dificuldade com memórias positivas a respeito do falecido: fato muito presente em relações
ambivalentes e/ou violentas; 4) Amargura ou raiva relacionada à perda: a raiva é um dos
sentimentos mais comuns quando se perde alguém que se ama; 5) Avaliações desadaptativas
em relação a si mesmo, em relação ao falecido ou à morte: estaria o DSM se referindo à
culpa? Muitos enlutados mantêm a crença mágica de que poderiam ter feito algo para salvar
seu ente querido e permanecem no jogo do “e se?” como uma forma de recuperar o controle
de uma situação absurda ou de buscar sentido para a perda; 6) Evitação excessiva de
lembranças da perda: não há um roteiro para viver a dor da perda. Há pessoas que se agarram
a memórias e a objetos, mantendo verdadeiros santuários dos que se foram; por outro lado, há
os que não se sentem preparados para entrar em contato com “estas coisas”. Perturbação
social/da identidade: 7) Desejo de morrer a fim de estar com o falecido: o desejo de morrer é
muito distinto da ideação suicida. Por vezes, a saudade é tamanha que o indivíduo deseja, de
modo transitório, reunir-se com o morto. Em nossa cultura, este aspecto é muito enfatizado
nas religiões católica, evangélica e espírita, pois todas pregam, ainda que de formas
diferentes, a reunião, na morte, com os que morreram antes de nós; 8) Dificuldade de confiar
em outros indivíduos desde a morte: é frequente que enlutados se isolem de pessoas que
tentam consolá-los, que lhes dão conselhos, que não entendem sua dor, que querem que a
pessoa volte a ser quem era, ou, ainda, que acham que eles estão ficando loucos; 9) Sentir-se
sozinho ou isolado de outros indivíduos desde a morte, como dissemos no item anterior, é
comum que a dor do luto seja vivida de modo muito particular e solitário, e que, em alguns
momentos, após ter se afastado da convivência de outros, o enlutado possa se sentir só; 10)
Sentir que a vida não tem sentido ou é vazia sem o falecido ou a crença de que o indivíduo
não consegue funcionar sem ele: há relações que justificam plenamente esta reação; o que
dizer de um casal que vive junto há 60 anos? Viveram juntos uma vida inteira, são
complementares e, não raro, observamos a morte do sobrevivente, pouco tempo após o
falecimento do cônjuge; 11) Confusão sobre o próprio papel na vida e senso diminuído
quanto à própria identidade: na mesma linha do item 10, pode ser muito difícil e doloroso
(querer ou aprender) a assumir funções que a morte impõe. Quando se perde alguém, não é
apenas o ser que se perde, mas tudo o que ele representava na vida prática do enlutado (um
amigo, um conselheiro, um analista financeiro, um motorista, um cuidador e, assim,
infinitamente, como são os tipos de relações; e 12) Dificuldade ou relutância de buscar
interesses desde a perda ou de planejar o futuro. O projeto-de-ser, está e deve estar conectado
87
com outros futuros, especialmente o daqueles que amamos. Sem tais pessoas, é necessário um
reposicionamento de futuro: quantos pais vivem sem planejar seus futuros por se encontrarem
sem seus filhos? Todo presente se conecta a um futuro e é este último que dá, ao primeiro,
seu sentido.
Por fim, o que o quadro 2 apresenta, nas entrelinhas (no seu negativo) é a maneira
adequada de se enlutar, do ponto de vista do saber médico, com todas as suas contradições e
interesses entrecruzados. A tentativa de fazer valer o diagnóstico de transtorno do luto
88
complexo e persistente ou outro que o valha equivale a somar o luto ao rol das experiências
com roteiro fixado pela “saúde mental”, à inflação diagnóstica, a diagnosticar e a medicar
pessoas sadias e em sofrimento, a criar uma identidade de má-fé, a “pasteurizar” culturas e
modos de vida e equivale à tentativa, sempre frustrada, de quitar do sujeito sua condição de
ser livre.
O luto não é um simples estado, não é um mero sentimento, senão uma complexa rede
de significações, situadas na história de cada pessoa, no seu tempo, no seu espaço, na sua
cultura. Há um quê de universal no luto, mas apenas na medida em que o universal oferece ao
sujeito as opções de resposta diante da morte.
7. A NEUROBIOLOGIA DO LUTO
argumento de extrema importância: que o choro pode ser causado por tosse, espirro, bocejo,
reflexo de vômito, inflamação, exposição direta dos olhos à luz forte, vários tipos de emoções
ou nenhuma em particular. Assim, fatores variados podem produzir o mesmo resultado
fisiológico, sendo o choro um “resultado incidental” do sofrimento (p. 163). Considerando o
choro como incidental ao sofrimento, podendo ser provocado não apenas por reações
fisiológicas, mas por estados internos tão díspares, como tristeza e alegria, não se corrói o
argumento dos músculos-do-luto e do caráter universal de quaisquer emoções humanas? Em
seu Esboço Para uma Teoria das Emoções, Sartre (1939/2006) já questionava algo
semelhante e, no bojo mesmo da indagação, dava pistas da reflexão que deve ser, aqui,
desenvolvida: “como admitir que reações orgânicas banais possam justificar estados
psíquicos qualificados? (p. 31). Antes de tudo, cabe ressaltar que, de forma alguma, o luto se
presta a uma análise (na medida exata do termo, como estudo de cada parte de um todo para
melhor conhecê-lo). O luto não é um simples estado, não é um mero sentimento, senão uma
complexa rede de significações, situadas na história de cada pessoa, no seu tempo, no seu
espaço e na sua cultura. Há um quê de universal no luto, mas apenas na medida em que o
universal oferece ao sujeito as opções de resposta diante da morte.
possibilidade oferecidas pelo mundo ao indivíduo estão longe de serem universais, mas se
encontram mergulhadas no tempo histórico, na cultura, no passado e no corpo de cada
indivíduo. As condições de possibilidade de viver a perda de um ser amado para um índio
wari’19, que come seus mortos, não de qualquer modo, mas de forma ritualizada, são
claramente distintas do roteiro de luto que tende a seguir um norte-americano branco e
católico. À forma como o mundo de apresenta ao indivíduo Sartre (1946/2011) denomina
facticidade. A partir da facticidade, ou seja, da apresentação do mundo ao sujeito, ele escolhe.
A liberdade, para Sartre, não é o condão de fazer o que deseja, mas a condição da qual
nenhum homem pode fugir: a de que deve escolher-se diante da situação. A singularidade de
cada luto é a forma escolhida por cada um para fazer frente à morte, a partir das condições de
possibilidade que seu mundo lhe oferece. Defender que o luto é produto de mudanças
fisiológicas é o mesmo que dizer “uma mãe está triste porque ela chora” (Sartre, 1939/2006,
p. 19, grifo nosso), reduzindo a conduta humana apenas às circunstâncias e retirando, do
homem, sua liberdade. Ora, o que pretende o RDoC (Insel, 2013), cuja sigla remete,
inequivocamente, ao saber médico (doctor), não está muito distante disto. A maioria das
pesquisas recentes busca ligar o luto à neurociência por meio dos exames de imagem,
determinando a quais estruturas cerebrais estão associadas as reações de pesar: está enlutado,
sua amígdala se ativou e isto está provado pela ressonância magnética.
Numa linha etológica, um estudo sobre a reação à separação em ratos silvestres foi
publicado na Behavioral Brain Research (Sun, Smith, Lei, Liu & Wang, 2014). Os autores
desracam o efeito danoso da perda na saúde física e mental dos animais. Após permanecer
junto às fêmeas por 24 horas, um grupo de machos foi separado delas pelo período de apenas
quatro semanas e comparado com um grupo-controle. Os pesquisadores concluíram que a
separação provocou comportamentos depressivos e/ou ansiosos, menor tendência a um
comportamento agressivo, ganho de peso e aumento do nível plasmático de corticosteróides,
fornecendo um modelo para uma melhor compreensão do comportamento, da patologia e da
neurobiologia subjacentes ao luto em seres humanos. “Felizmente”, os pesquisadores
cumpriram o seu dever ético, ao “induzir o luto” em ratos, não em seres humanos para a
realização de seu estudo, isto é, supondo que ratos experimentem luto. A questão essencial a
ser respondida na utilização de um modelo animal é: a similaridade dos processos patológicos
e de comportamento do modelo animal são teoricamente aceitáveis? (Fagundes & Taha,
19 O ritual fúnebre dos wari’ foi descrito, anteriormente, no item 4.2, Morte, Luto e Cultura.
93
2004). Ainda assim, entendemos que o uso do modelo animal no estudo de um fenômeno tão
complexo como o luto humano é muito temerário. Não há qualquer embasamento teórico que
justifique a comparação da experiência vivida por um ser humano com a reação apresentada
por ratos ao afastamento de uma fêmea, com quem estiveram pelo período de apenas 24h. O
que percebemos é uma extrapolação desmesurada dos resultados, mesmo quando
consideramos a tradição da etologia.
Por sua vez, enfatizando o componente genético, Segal e Blozis (2002) publicaram
um artigo na Twin Research and Human Genetics que trata de um estudo sobre a forma de
lidar com a perda em dois grupos: gêmeos monozigóticos e dizigóticos. Os pesquisadores
concluíram que há uma correlação positiva entre a proximidade genética e a forma de lidar
com a perda, incluindo, aí, a manifestação de sintomas somáticos. Os autores trazem à luz
determinantes genéticos de como as pessoas experimentam a perda de um ser amado, sem, no
entanto, sequer mencionar aspectos ambientais (família, cultura e história pessoal) na
construção e na expressão de tais “determinantes genéticos”.
Sobre se o luto pode produzir câncer, Biondi, Costantini e Parisi (1996), a partir de
um único estudo de caso de uma mulher de 45 anos que perdeu o filho, não encontraram
resultados conclusivos, mas defenderam que o processo de luto, especialmente na sua fase
aguda, é capaz de desencadear uma neoplasia latente. Note-se, ainda, que, com base no
mesmo argumento, os pesquisadores admitiram que outros eventos estressores têm o mesmo
poder sobre as células. Apesar de pesquisas que argumentam em contrário, muitos enlutados
permanecem saudáveis. O que explica tal fenômeno? Um grupo de pesquisadores americanos
e alemães publicou um artigo com um título bastante sugestivo, When grief makes you sick
[Quando o Luto Te Deixa Doente], argumentando que a variabilidade genética em interação
com estressores ambientais (como, por exemplo, o isolamento social ou o longo processo de
doença de um ente querido) levam a um aumento de marcadores inflamatórios, chegando à
hipótese de que o mesmo processo explica o fato de enlutados estarem mais suscetíveis a
doenças. Os pesquisadores (Schultze-Florey, Martinez-Maza, Magpantay, Breen, Irwin,
Gündel, & O’Connor, 2012) colheram e analisaram o DNA de 64 pessoas, das quais 36
haviam perdido seus cônjuges num período de até dois anos, em média. Separaram, ainda, um
subgrupo de 13 indivíduos com luto complicado, identificados a partir de um questionário.
Não foi encontrada diferença significativa entre os enlutados e os identificados como luto
complicado. Os resultados apontam para uma maior suscetibilidade a doenças, a partir da
elevação dos marcadores inflamatórios, não por conta do luto, mas justificada por um
determinado perfil de genes, recursivamente voltando à explicação genética: “a variabilidade
genética na expressão de marcadores de reposta inflamatória em resposta ao estresse é a
chave” (p. 1066). A decisão dos pesquisadores de montar uma amostra de enlutados com uma
variabilidade de tempo tão grande em relação à perda chama a atenção. Na verdade, a média
de tempo é de dois anos, mas a sua variação real foi de 2 meses a 5 anos, desde a perda do
cônjuge. Como diagnosticar um luto complicado em pessoas em fase aguda de luto? Mesmo
a literatura mais conservadora aponta o período de um ano para o luto normal. Apesar do alto
grau de tecnologia envolvido na pesquisa, este simples fator compromete seus resultados.
21 Functional magnetic resonance imaging. Neste trabalho, optamos pelo uso da sigla em inglês
para facilitar o entendimento da literatura científica.
97
Najib, Loberbaum, Kose, Bohning e George (2004) conduziram uma pesquisa sobre a
atividade cerebral em pessoas do sexo feminino que passaram por um rompimento de relação
amorosa. Nove mulheres foram orientadas a alternar pensamentos sobre o luto e sobre algo
“neutro”, envolvendo outra pessoa que não o ex-parceiro, enquanto eram submetidas a uma
fMRI. O estudo concluiu que, durante o luto agudo, houve mudanças no funcionamento
cerebral, com decréscimo da atividade na ínsula, nos córtex temporal e pré-frontal e no giro
cingulado anterior. Os pesquisadores ressaltaram a necessidade de mais estudos de imagem
cerebral para “desvendar” as conexões existentes entre tristeza normal, luto e depressão.
palavras ligadas ao luto e palavras “neutras” aos sujeitos, enquanto realizavam uma fMRI. Os
autores da investigação partiram das seguintes premissas:
a) o luto por um animal de estimação é semelhante ao luto pela perda de um ente querido;
22 Note-se que já não se usa o termo patológico, mas complicado. Ainda que soe melhor, ao não
fazer referência direta à patologia, os efeitos de padronização, de patologização e de
medicalização do sofrimento persistem.
100
entendendo que “cada pessoa é o centro de seu próprio mundo, cada ponto de vista é um
absoluto e ao mesmo tempo absolutamente relativo” (Laing & Cooper, 1964, p. 13); e
Ainda na esteira das manchas coloridas e brilhantes produzidas pela fMRI, O’Connor,
Wellisch, Stanton, Eisenberger, Irwin, e Lieberman, (2008) equipararam os sintomas
prolongados do luto às manifestações comportamentais e cerebrais de viciados em drogas,
defendendo, basicamente, que a manutenção dos sintomas de luto por períodos prolongados
ativa áreas de recompensa do cérebro, especificamente, o núcleo accumbens (NA). O’Connor
et al (2008) partem da premissa da existência da síndrome do luto complicado (Complicated
Grief, CG) e defendem sua inclusão no DSM-5. A pesquisa contou com uma amostra de 23
mulheres enlutadas, divididas em dois grupos: 12 com luto normal e 11 com luto complicado.
A distinção entre o luto normal e o luto complicado foi estabelecida a partir das respostas das
mulheres a uma entrevista clínica, não especificada no artigo, fato bastante comprometedor
dos resultados da pesquisa. Como adotado em pesquisas semelhantes, o método seguiu o
esquema de alternância de estímulos neutros (fotos de pessoas estranhas) e estímulos ligados
ao luto (fotos do ente querido falecido). Os pesquisadores concluíram que nas mulheres
previamente diagnosticadas com “luto complicado”, lembranças do falecido funcionavam
como eliciadores de respostas de craving, as mesmas observadas em indivíduos em
abstinência de drogas, dificultando a adaptação à realidade da perda.
Toda esta argumentação, para Sartre (1960/2004), é evidente, pois o ponto inicial de
qualquer investigação deve ocorrer por meio da compreensão do concreto absoluto do
homem, de suas condições de possibilidade, de sua realidade objetiva, de sua materialidade:
“ademais, precisamos entender que não há algo como o homem; há pessoas, definidas por sua
sociedade e pelo movimento histórico que as carrega” (p. 36). A patologização das reações de
luto significa negar ao homem sua situação. Reduzir tais reações a suas manifestações
neurobiológicas é desconsiderar toda a complexa rede de fatores na qual o luto está imerso,
seu tempo histórico, sua cultura, sua família. Supor que todos os seres humanos devem
experimentar o luto a partir de critérios diagnósticos é, para usar uma expressão cara a Sartre,
dar-lhes um “banho de ácido sulfúrico”, no sentido de retirar deles todo resquício de
individualidade e liberdade. Quando a saúde mental, apoiada nas neurociências, determina
um rígido parâmetro de normalidade, ela retira do homem a responsabilidade pela sua
conduta. O luto “complicado” deixa de ser seu luto: passa a ser considerado doença, pois
103
de uma concepção que vai ao encontro do epicurismo, pois defende a inutilidade de temer a
morte, uma vez que, quando ela chega, o homem já não está.
Todavia, há dois aspectos da morte que atingem a existência em cheio: o morrer e a
morte do outro, que, de modo algum, limitam a liberdade do homem, mas, em alguns casos,
tornam-na mais óbvia. O morrer e a morte do outro exigem, de minha liberdade, que eu me
posicione. Assim, mesmo em face da doença, da limitação e da morte, sou livre para fazer
escolhas. Minha posição diante da situação revela meu projeto-de-ser. O próprio Sartre viveu
uma década de gradativa agonia: arterite, desmaios, cegueira, dores, problemas dentários e de
equilíbrio, dificuldade de respirar e de caminhar e, finalmente, o edema pulmonar que o
matou. Como tratamos anteriormente, as escolhas que Sartre fez, frente à sua própria morte,
foram, minuciosamente descritas (e interpretadas) por Simone de Beauvoir (1981/1984), em
sua obra esclarecedora e comovente sobre a doença dele, seu declínio e sua morte. Segundo
Simone, Sartre, em plena consciência, sofreu cada perda, progressivamente, como aspectos
mortos de si mesmo: não podia mais fumar, beber, viajar, falar em público, caminhar sem
auxílio e, principalmente, não podia mais ler e escrever, pois já não enxergava: “tenho que
dar adeus a sessenta anos de minha vida!” (p. 45). Como defesa contra a ansiedade, Sartre
tinha episódios de confusão mental, sono excessivo e um marcado desinteresse pelo mundo.
Após um episódio em que descreveu a Simone sua estranha sensação de ser invisível e de
estar em perigo em meio a outras pessoas, preocupando-se, sobremaneira, com a
possibilidade de que, estando à morte, tivesse as pernas amputadas, ela escreveu:
“obviamente, ele estava sofrendo de ansiedade generalizada, relacionada ao seu corpo, a sua
idade e à morte” (p. 45). No livro, ela conta que, na maior parte do tempo, ele inventava
maneiras de esconder a ansiedade, principalmente, ligada à cegueira. Estar cego e não poder
ler ou escrever, era a negação do que constituía o cerne da existência de Sartre, era
equivalente à morte. Em seu livro autobiográfico, o filósofo confessou que “ao escrever,
escapava dos adultos, mas só existia para escrever. E se dizia ‘eu’, isso significava ‘eu que
escrevo’” (Sartre, 1964/2000, p. 103).
A célebre ocasião em que Sartre se negou a receber o prêmio Nobel está, diretamente,
ligada à morte. Depois de ser consagrado, de ser capturado pelo sistema burguês, de ser-um-
Nobel, que haveria de escrever?
Uma coisa me impressiona nesse relato mil vezes repetido: a partir do
dia que vejo meu nome no jornal uma mola se quebra, estou
liquidado; gozo tristemente do meu renome23, porém não escrevo
23 Grifos nossos
106
A concepção filosófica de morte, para Sartre, resta clara: a morte é nada. Entretanto,
no que tange ao processo de morrer, encontramos indefinições e contradições, dignas de um
pensamento, constantemente, em construção, não apenas em seu próprio processo de morrer,
descrito por Simone, mas, também, em escritos anteriores. Diante dos horrores da Segunda
Guerra Mundial, em seu A República do Silêncio (Sartre, 1949/1960), aproximando-se muito
do conceito heideggeriano de ser-para-a-morte, ele escreveu:
Entretanto, ainda que Sartre fizesse, aqui, clara menção ao pensamento de Heidegger,
ele não tratava de uma existência autêntica, mas de uma escolha autêntica de si mesmo, indo
ao encontro do que, antes, destacamos: o morrer e o luto provocam a liberdade de forma
inescapável. No início da mesma obra, o filósofo defendera, contra o senso comum, que a
França nunca havia sido tão livre quanto sob ocupação alemã. A ameaça nazista tornava cada
cochicho um ato de resistência, cada pensamento uma conquista, cada palavra uma
declaração de princípios: “porque o segredo de um homem não é o complexo de Édipo ou de
inferioridade, é o limite mesmo da sua liberdade, é seu poder de resistência aos suplícios e à
morte” (p. 12). Frente ao risco, ao tormento, à tortura e à possibilidade de cessar de existir, a
liberdade humana está exposta, exigida, precisa se posicionar, decidir e escolher, ainda que
para recorrer aos antigos artifícios da má-fé.
Ao morrer, o defunto passa a ser propriedade dos vivos, por meio de sua memória e
da significação e da ressignificação que podem fazer de sua existência, sem que o morto, para
nada, concorra. A desaparição do outro, como centro a que remetem minhas significações,
impregna minha existência. A inexistência torna-se presença e o mundo é infestado pela
presença, sob o fundo da ausência: “Pedro ausente infesta este bar e é condição de sua
organização nadificadora como fundo” (Sartre, 1943/2011, p. 51). O falecido encontra algum
estado de sobrevivência porquanto haja uma liberdade que o sustente, que seja por ele
responsável: “a vida morta tampouco cessa de mudar por ser morta, mas não se faz: é feita.
Significa que, para ela, os dados estão lançados” (p. 665). Os mortos são transcendências-
transcendidas, ou seja, nada mais pode lhes ocorrer pelo lado de dentro e nada pode ser feito
para penetrá-los. No entanto, cabe, aqui, destacar que a existência do morto da qual sou
guardião não se faz apenas na minha consciência, sob a forma de memórias ou de
representações, mas que meu ser-para-outro é um ser real, incluindo rastros concretos de sua
vida:
24 O grifo é nosso.
108
Aos mortos esquecidos, não ilustres, não amados, resta o aniquilamento absoluto.
Este argumento é essencial para o que, aqui, desejamos propor: o apego ao luto, entendido
pela saúde mental como patológico, é uma escolha livre do sujeito para manter existente o
querido ausente, sempre considerando sua situação. É o modo eleito por ele para a superação
de uma falta e não pode ser compreendido senão por meio de uma liberdade que escolhe ante
a facticidade. Se a morte é um dado concreto, o luto é o caminho escolhido pela liberdade
para superar o dado: “liberdade é originariamente relação com o dado” (Sartre, 1943/2011, p.
599). Determinar um roteiro rígido para responder ao dado é negar ao homem seu caráter
livre; é negar que a situação apenas pode ser compreendida em relação ao para-si. Qualquer
tentativa de parametrização do enlutamento é, portanto, uma empresa de má-fé. Atualmente,
o que percebemos são, como já discutimos em capítulos anteriores, três versões de má-fé no
que se refere ao luto:
Para o enlutado, a morte de um ser querido, como uma situação concreta, se inscreve
a partir de:
1) seu lugar;
109
2) seu corpo;
3) seu passado;
4) seus arredores;
5) sua morte.
Filomena25 chegou ao meu26 consultório quatro meses após a morte do seu pai. Eu já
vinha atendendo, em psicoterapia, outros membros da família – a mãe, o irmão mais velho e a
sobrinha -, a partir de demandas diversas. Assim, foi por meio de sua mãe que,
primeiramente, tomei contato com Filomena. Durante suas sessões, a mãe dedicava bastante
tempo para falar da vida dos filhos: “meu propósito de vida é cuidar”. Sobre Filomena, dizia
que era a caçula mimada, a “do contra”, muito questionadora, mas a “filhinha do papai”: “só
ele mesmo pra conseguir as coisas com ela, os dois vivem um grude que é até bonito de ver”.
25 Nome fictício.
26 Neste capítulo, optamos pela escrita em 1ª. pessoa, no sentido de dar maior coerência ao relato.
111
Numa viagem com a mãe de Filomena, para participar de um congresso médico, o pai
sentiu, durante uma refeição, um desconforto no estômago, mas não deu a ele maior
importância. Ao chegar ao hotel, o mal-estar voltou mais forte: estava tendo um ataque
cardíaco. Ainda foi socorrido ao hospital, mas não resistiu. Uma vez que a morte aconteceu
em outro Estado, às providências funerárias, somou-se o traslado aéreo do corpo, tudo
organizado pela mãe de Filomena, sua única companheira de viagem. O corpo teve que
passar por todos os procedimentos da moderna tanatopraxia e de embalsamamento, pois a
viagem seria longa. O caixão foi meticulosamente lacrado, como é praxe nas companhias
aéreas, e encerrado numa grande caixa de metal, que foi despachada no compartimento de
carga da aeronave. Ele tinha 69 anos, viajou na cabine com a esposa para um congresso
médico e seu cadáver voltou ao Estado natal, como carga.
Além de lidar com o luto do marido e, mesmo como parte de tal processo, as
preocupações da mãe de Filomena com a filha se intensificaram de tal modo que este assunto
era quase o único em suas sessões:
ela não quer mais trabalhar; pegou enjoo do marido; vive no escuro;
só dorme; fala em morrer e tem também muito medo que eu morra;
importuna as pessoas, todo tempo, com esse assunto; tenho medo que
ela venha a fazer uma besteira. Todo dia, me perturba para ir ao
cemitério: só quer viver lá.
Havia uma disparidade patente na forma como cada familiar expressava seu pesar: o
luto vivido por Filomena incomodava e não convinha à família, pois era muito intenso e
questionador. Muitas vezes, no luto familiar, o “paciente identificado”, aquele que
“necessita” intervenção de especialistas, não esconde sua dor, exibindo-a durante um tempo
maior do que os que estão à sua volta acham adequado. Este indivíduo impede ou dificulta
que os demais familiares se adaptem ao que a sociedade espera deles: que superem, voltem a
trabalhar, fiquem “bem” ou, mesmo, encontrem felicidade. Tal diferença fez com a mãe de
Filomena a levasse a um psicólogo, “especialista em luto”, que a diagnosticou com “luto
patológico”. Logo, o saber do profissional de saúde mental foi incorporado pela família e
utilizado como justificava para o comportamento de Filomena: ela estava doente, os
especialistas a estavam tratando e ela voltaria ao normal.
Por indicação do psicólogo (e, obviamente, pelo desejo da família), foi marcada a
primeira consulta com o psiquiatra, que concordando com o diagnóstico do psicólogo,
prescreveu a Filomena: 30 mg. de mirtazapina (antidepressivo tricíclico, indicado, também,
112
Como se recusara a retornar ao psicólogo anterior, por intermédio de sua mãe, veio
“conversar” comigo. Nossas sessões eram semanais e duraram por volta de quatro meses.
Quando chegou à primeira sessão, falou das consultas com os profissionais anteriores com
um misto de raiva e de dúvida quanto à sua sanidade mental:
27 Os dados a respeito das drogas utilizadas por Filomena foram coletados de suas respectivas
bulas. No caso do clonazepam, as indicações de uso eram tão vastas, que vão referidas aqui:
“Distúrbio epiléptico: clonazepam está indicado isoladamente ou como adjuvante no tratamento
das crises epilépticas mioclônicas, acinéticas, ausências típicas (petit mal), ausências atípicas
(síndrome de Lennox-Gastaut). Clonazepam está indicado como medicação de segunda linha em
espasmos infantis (Síndrome de West). Em crises epilépticas clônicas (grande mal), parciais
simples, parciais complexas e tônico-clônico generalizadas secundárias, clonazepam está
indicado como tratamento de terceira linha. Transtornos de Ansiedade: como ansiolítico em geral:
Distúrbio do pânico com ou sem agorafobia; Fobia social. Transtornos do Humor: Transtorno
afetivo bipolar; tratamento da mania; Depressão maior: como adjuvante de antidepressivos
(depressão ansiosa e na fase inicial de tratamento). Emprego em síndromes psicóticas:
Tratamento da acatisia. Tratamento da síndrome das pernas inquietas. Tratamento da vertigem e
sintomas relacionados à perturbação do equilíbrio, como náuseas, vômitos, pré-síncopes ou
síncopes, quedas, zumbidos, hipoacusia, hipersensibilidade a sons, hiperacusia, plenitude aural,
distúrbio da atenção auditiva, diplacusia. Tratamento da síndrome da boca ardente.
113
Filomena havia chegado próximo aos 30 anos, sem ter sofrido uma experiência
significativa de luto. Sobre a absurdidade da morte, ela disse:
28 Dadas a sua riqueza, a sua publicação anterior pela própria Filomena, a sua distribuição em ordem
cronológica e com a permissão de Filomena, decidimos utilizar as postagens dela, quando relacionadas ao seu
luto e provenientes de suas redes sociais.
114
Outra questão marcante, em seu discurso, era a comparação que fazia entre os ritos
mortuários atuais e os de seu tempo de infância. Vinte anos foram suficientes para modificar,
significativamente, os rituais funerários nas cidades do interior do Ceará. Atualmente, as
empresas funerárias tomaram para si mesmas a tarefa de dirigir os ritos de morte e os planos
funerários são grandes sucessos de venda. A família de Filomena também possuía um plano
funerário, feito pelo pai, a contragosto dela: “para que pensar nisso agora? Quando acontecer,
a gente vai lá e resolve”. No entanto, quando a morte de seu pai aconteceu, ela expressou
gratidão por não ter tido que lidar “com esse tipo de coisa”: “o pessoal da funerária é muito
preparado. Eles me ajudaram a entrar em contato com o cemitério, pouparam esse sofrimento.
Escolheram basicamente tudo”. O que realmente a incomodou foi a tanatopraxia. Ela
comparava o corpo morto do pai aos corpos dos avós: “Eles estavam normais, aquilo não me
assustou. Eu até peguei muito neles. Me impressionou muito porque o papai tava como um
boneco de cera igual a ele. Me agarrei tanto com ele que o formol me deu alergia; o olho
ardia, foi do embalsamamento”. O pai tinha se tornado um boneco de cera: era coisa, um em-
si, um embuste cheirando a formol.
O fato de ter ido ao terminal de cargas do aeroporto, buscar o corpo do pai, gerou
intenso sofrimento para todos os familiares, especialmente para Filomena: “a morte é muito
desumana, ele veio como carga. Desembarcou do avião nos carrinhos de carga, mas veio bem
camuflado. O pessoal que pesa, que transporta, é muito insensível”. De fato, para os
profissionais, o pai de Filomena, anteriormente um passageiro, havia deslizado,
integralmente, para o passado, para o mundo das coisas. Filomena, então, ainda que não
tivesse se dado conta, estava familiarizada com a profissionalização da morte e com sua
mercantilização.
Sobre o velório e o enterro de seu pai, Filomena contou que a grande quantidade de
pessoas presentes a fez se sentir acolhida, mas, também, oprimida. Uma tia lhe ofereceu um
115
“lexotanzinho”, que muitos familiares tomaram, mas a que ela se negou, achando que, se
tomasse, poderia não entender o que se passava, acreditando que tinha que sentir sua dor.
Filomena disse que, em nenhum momento, duvidou do que estava acontecendo, pois sabia
que o pai estava morto, mas, ao mesmo tempo, queixou-se: “o pior momento foi o de fechar a
tampa do caixão: eu virei de costas, não olhei. É muito cruel porque tira o ar dele, é muito
cruel”. Frequentemente, pessoas enlutadas se referem ao fechamento do caixão como o pior
momento do velório. É um choque de realidade no pensamento mágico de que, a qualquer
momento, o falecido pode voltar à vida, de que tudo não passou de um pesadelo. A jornalista
americana Joan Didion (2005/2006) narra, num livro, as mortes do marido e da filha, no
espaço de um ano. O título é significativo: O Ano do Pensamento Mágico: A Vida Muda
Rápido/ A Vida Muda num Instante/ Você Senta pra Jantar e a Vida que Você Conhecia/
Acaba de Repente. A narrativa gira em torno de todo o esforço que ela teve de fazer para
abrir mão do pensamento ilusório e onipotente de que ambos poderiam voltar. Ao tratar dos
obituários dos jornais, ela afirma:
normal”. Durante um tempo, buscou guarida na doutrina espírita, assim como a irmã mais
velha. O espiritismo acolhia todas as suas experiências de estar na presença do pai, de sentir
seu cheiro, de ouvir sua voz e de ter certeza de que ele estava por perto, mas isto não foi
suficiente para mudar de religião: “acho que, aos poucos, a alma vai perdendo autorização
para fazer contato. Há coisas no espiritismo que eu acredito, que me confortam. Outras me
incomodam, minha irmã me disse que, no plano espiritual, ele pode ter outras famílias, outros
filhos, de outras encarnações”. Ela estava imersa no catolicismo: sua cidade era católica; seus
pais eram católicos; havia sido batizada; estudou a vida inteira em escola católica; fez
primeira comunhão, crisma e casou na igreja católica.
Enraivecer-se com pessoas era relativamente fácil, até terapêutico, mas a relação de
Filomena com Deus mostrou-se bastante ambivalente. Ora, o odiava: “tenho muita raiva de
Deus: eu não merecia isso. Ele tirou de mim o direito de conviver com ele, de ver ele como
avô dos meus filhos, de tudo o que eu não vou poder...”; ora, se sentia culpada e temia ser
castigada: “acho que a morte é um castigo. Minha família está sendo castigada por algo que
eu não sei o que é. Não aceito, não dá pra entender”. Em sua rede social, escreveu: “que
Maria Santíssima possa interceder junto a Jesus pela nossa família. Eu tenho absoluta certeza
do seu merecido lugar... lindo e confortável. Livre de todas as dores e acompanhando nossa
caminhada até nosso breve reencontro”. Por fim, reconciliou-se com Deus e com a igreja
católica, assim como com o trabalho. Atribuía, com frequência, sua força a estes dois fatores.
No entanto, uma experiência, em particular, revelou-se um ponto de virada no processo de
luto de Filomena. Em meio a toda a sua raiva, ela “se encontrou” com o pai. O que a
psiquiatria denomina de “delírio” ou de “alucinação visual”, ela descreveu, simplesmente,
como um “encontro” com o pai:
ausência física do pai em seu projeto-de-ser-para-ele. Ele estaria sempre presente, de alguma
forma e, nos sonhos dela, seguiria sendo sua referência para pequenas e grandes decisões.
A internet foi outra ferramenta amplamente utilizada por Filomena para “se
comunicar” ou “se dirigir” ao pai morto, assim como o fez Beauvoir (1981/1984), com
Sartre, por meio da literatura, não exatamente como um artifício retórico, mas como um
alento mágico: a continuidade da relação, a crença de que o falecido se encontra em algum
lugar e de que ele a ouvia:
semana muito difícil... Da dor que não tem remédio. Faz um ano,
mas parece que foi ontem. Pai, você curou todas as minhas dores, as
grandes e as pequenas, mas essa não há quem cure, não há cura!
Seguimos seus passos todos os dias, torna o fardo mais leve, o
caminho do bem. Já vi que não temos escolha, se não seguir... E sei,
também, que ir, agora, tão cedo, não foi escolha sua, nem poderia:
jamais deixaria sua família sofrer. Por isso, estamos tentando superar
isso, para nos ver sofrer menos.
Como guardiã do pai morto, Filomena também decidiu mantê-lo vivo socialmente,
assegurando-se de que seus contemporâneos não o esqueceriam. Também por meio das suas
redes sociais, ela escreveu:
saber o quanto nosso pai é querido nos faz ter um orgulho ainda maior
de sermos filhos dele. Saber de suas benfeitorias, suas caridades e
caráter sabemos sim, e tudo isso hj29 está aos olhos e julgamento de
Deus. Mas em ouvirmos o povo, os amigos nos faz ter a certeza que
Deus precisa dos bons.
Garantir ao pai um legado “vivo”, divulgado por meio da internet, não apenas um punhado de
memórias e de feitos compartilhados por alguns amigos e familiares, era uma forma de
protegê-lo da “verdadeira” morte: o aniquilamento absoluto. O uso das redes sociais como
mecanismo de experimentar o luto é um fenômeno notável. Novas pesquisas poderão nos
oferecer uma compreensão mais profunda do que significa manter o perfil de um morto,
comunicar-se com ele e fazer, daquele espaço virtual, um ponto de encontro de amigos,
familiares e até desconhecidos. Por ora, e neste caso, especificamente, entendemos o uso das
redes sociais como uma forma de manter a relação com o morto, de se comunicar com ele, de
impedir que sua história caia no esquecimento (legado) e de publicizar sua dor, não
necessariamente para obter apoio social.
Assim, Filomena elegeu a si mesma para aderir seu ser, aderido ao desejo do pai,
escolhendo a má-fé de ser quem o pai desejava, fazendo com que ela vivesse numa espécie
particular de liberdade tutelada, numa ilusão de não ter que escolher, senão “acatando-a”. Na
biografia de Baudelaire, Sartre (1947/1968) assim se expressou sobre tal fenômeno,
atrelando-o, particularmente, à infância e à relação com a mãe:
o caráter sagrado desta união não podia ser melhor expressado: a mãe
é um ídolo, o filho está consagrado pelo afeto que ela professa: longe
de se sentir uma existência errante, vaga e supérflua, se pensa como
filho de direito divino. Está sempre vivo nela: isto significa que se
abrigou em um santuário; não é, não quer ser senão uma emanação da
divindade, um pequeno pensamento constante de sua alma. E
precisamente porque se absorve inteiro em um ser que parece existir
por necessidade e direito, está protegido contra toda inquietação, se
funde com o absoluto, está justificado (p. 16).
A relação de Filomena com o pai era absoluta, pois ele a justificara: ela veio ao mundo por
suas mãos e ele se mantém nela por meio de seu desejo, o que se manifesta de forma ainda
mais significativa, uma vez que tal situação se mantém até a idade adulta. O que se poderia
esperar da ruptura de uma relação como esta? Toda sua existência, todos os seus
comportamentos e todas as suas escolhas perderam sentido, já que não havia mais a
referência de seu pai. Ela manifestou tal falta de sentido, textualmente:
não consigo mais fazer planos, não projeto nada, não tenho
perspectiva de vida, vou vivendo um dia após o outro, faço as coisas
porque é o jeito. Sempre tive muita vontade de ter filhos, mas depois
que papai morreu, minha vontade é zero. Eu entendi que eu planejava
isso com papai, ele tinha que estar perto na hora do parto.
A má-fé nunca é um projeto de sucesso, e Filomena, no decorrer do processo
psicoterapêutico, foi capaz de entrevê-lo. Ela se colocou numa bifurcação: precisava escolher
entre manter a relação com o pai morto, a qualquer custo, ou ser jogada, irremediavelmente e
de uma só vez, na dor, na angústia, no nada, ou seja, na liberdade. O mundo já não lhe
oferecia as mesmas condições de existência, como antes: ela lançou mão da comédia (termo
caro à Sartre, como veremos, a seguir), que se tornou seu luto, adotando comportamentos que
visavam à manutenção da relação com seu pai. De vários modos, a partir de sua conduta,
conferiu, magicamente, ao mundo, a presença do pai:
todos esses gestos, essas palavras, essa conduta, não são percebidos
por eles mesmos. Trata-se de uma pequena comédia que represento
debaixo do cacho para conferir às uvas a característica de “muito
verdes”. Confiro magicamente à uva a qualidade que desejo. Aqui a
120
filósofos, sob a argumentação de que Sartre não chegou a desenvolver um método próprio
para a pesquisa em psicologia e que o luto é um tema absolutamente periférico em sua
filosofia. Ambas as alegações se mostraram verdadeiras, o que acabou por tornar o processo
de pesquisa ainda mais moroso e laborioso, mas, também, mais empolgante e original. Como
um filósofo compulsivo pela escrita, a densidade e a vastidão são características da obra de
Sartre.
1) o cadáver deve ser um simulacro aprimorado do corpo vivo e, ante a sua desaparição,
prontamente se apresentam o dever moral e a obrigação social de evitar a dor em
público;
O advento do DSM, principalmente a partir de sua terceira edição, foi uma ferramenta
decisiva na patologização do luto. Discutimos como, ao longo da história do manual,
mundialmente reconhecido como a “bíblia da psiquiatria”, o luto foi incorporado como
diagnóstico diferencial, critério de exclusão, agravante e/ou fator desencadeante de
transtornos mentais e foco de atenção clínica, até satisfazer as condições para alçar “voo
solo”. Numa culminação de todo este processo de patologização e de medicalização do luto,
está descrito na Seção III do DSM-5, Condições para Estudos Posteriores, como transtorno
do luto complexo e persistente. O transtorno é apresentado com critérios diagnósticos,
prevalência, curso, fatores de risco, diagnóstico diferencial, comorbidades e prognóstico,
incluindo, ainda, um especificador “luto traumático”.
Já consternados com a abordagem do luto pelo DSM, nos encontramos ainda mais
apreensivos ao deparar com o projeto do NIMH (National Institute of Mental Health), o
RDoC, que está assentado em “ciência de ponta” (genética e neuroimagem) e busca “provas”
da origem biológica dos transtornos mentais, dentre eles, o luto, já assim categorizado pelo
DSM. O que se desenrola sob nosso olhar é um projeto que visa a transformar o luto (e outras
manifestações humanas) em mero produto de circuitos cerebrais. Sob a denominação de
“medicina de precisão”, encontramos o neurodeterminismo: a crença de que a atividade
cerebral, medida por meio de exames de imagem, é a maneira mais precisa e científica de
compreender o comportamento humano. Neste sentido, um fenômeno tão complexo como o
luto é traduzido, exclusivamente, em termos de atividade neural.
expressões de pesar ao longo da história, através das culturas e, mesmo, de pessoa para
pessoa? Como vimos, a compreensão do luto de Filomena não se inicia no capítulo 9, mas no
4, no qual discutimos em quais termos é o mundo se oferece, contemporaneamente, aos
enlutados. Da mesma forma, não se encerra no relato dela, mas se produz, exatamente, na
dialética liberdade/situação, ou de modo mais simplório, no que ela fez do que lhe fizeram. O
trabalho em psicoterapia com Filomena ocorreu nos moldes do método progressivo-
regressivo de Sartre, no vai-e-vem de sua situação (de suas condições de possibilidade, do
que a realidade lhe oferecia) e de sua liberdade (das escolhas que ela fez diante disso).
Pudemos compreender que não há algo como um luto patológico, mas que cada luto se insere
no projeto-de-ser de cada enlutado, em uma dada cultura e num tempo histórico específico. O
que a contemporaneidade oferece é a mercantilização dos ritos, a negação do sofrimento e a
medicalização do luto, que não siga suas rígidas regras de etiqueta e de saúde. Escolher-se
doente é um caminho de má-fé possível e, cada vez mais, eleito, uma vez que traduz a
expectativa da coletividade e reproduz o saber médico. Filomena foi do “contra”, rejeitando o
diagnóstico, a medicação, viveu (e ainda vive) seu luto à sua maneira.
À guisa de conclusão, defendemos, fortemente, que o luto não é doença, não deve ser
patologizado ou medicalizado, nem mesmo sofrer o policiamento do dever moral da
felicidade. Não é nas reentrâncias cerebrais, nem nas imagens coloridas dos exames de
imagem que devemos buscar compreender o luto, mas no mundo como se apresenta a cada
indivíduo e nas escolhas que ele faz diante de seu projeto-de-ser livre. O luto não é mais que
a outra face do amor. Somente aquele que ama é capaz de sofrer a dor da perda. O luto exige
ser vivido e nenhuma teoria pode dar conta da experiência individual. Cada um resolve (ou
não) seu luto à sua maneira, se reinventa como pode. O luto é o preço do amor.
124
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Assinatura do participante_______________________________________
Qualquer dado que possa identificá-lo será omitido na divulgação dos resultados da pesquisa.
Caso você autorize que sua voz seja publicada, teremos o cuidado de anonimizá-la, ou seja,
sua voz ficará diferente e ninguém saberá que é sua. Caso você autorize que sua imagem seja
publicada, teremos o cuidado de anonimizá-la, ou seja, seu rosto ficará desfocado e/ou
colocaremos uma tarja preta na imagem dos seus olhos e ninguém saberá que é você.
Sarah Vieira Carneiro (85 99181-4254), ou encaminhado(a) para atendimento pelo psicólogo
Georges Daniel Janja Bloc Boris (85 99909-9262). Caso o(a) Sr.(a) aceite participar da
pesquisa, não receberá nenhuma compensação financeira. No caso de algum gasto resultante
da sua participação na pesquisa e dela decorrentes, você será ressarcido, ou seja, o
pesquisador responsável cobrirá todas as suas despesas e de seus acompanhantes, quando for
o caso, para a sua vinda até o centro de pesquisa.
8. ESCLARECIMENTOS
Se você tiver alguma dúvida a respeito da pesquisa e/ou dos métodos utilizados nela, pode
procurar a qualquer momento o pesquisador responsável.
Se você desejar obter informações sobre os seus direitos e os aspectos éticos envolvidos na
pesquisa, poderá consultar o Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza. O Comitê de
Ética tem como finalidade defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua
integridade e dignidade, e tem o papel de avaliar e monitorar o andamento do projeto, de
modo que a pesquisa respeite os princípios éticos de proteção aos direitos humanos, da
dignidade, da autonomia, da não maleficência, da confidencialidade e da privacidade.
Assinatura do pesquisador_______________________
Assinatura do participante_______________________
9. CONCORDÂNCIA NA PARTICIPAÇÃO
Se o(a) Sr.(a) estiver de acordo em participar da pesquisa, deve preencher e assinar este
documento, que será elaborado em duas vias: uma via deste Termo ficará com o(a) Senhor(a)
e a outra ficará com o pesquisador. O participante de pesquisa ou seu representante legal,
quando for o caso, deve rubricar todas as folhas do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – TCLE, apondo a sua assinatura na última página do referido Termo. O
pesquisador responsável deve, da mesma forma, rubricar todas as folhas do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, apondo sua assinatura na última página do
referido Termo.
11. CONSENTIMENTO
Pelo presente instrumento que atende às exigências legais, o(a) Sr.(a)
___________________________________, portador(a) da cédula de
identidade__________________________, declara que, após leitura minuciosa do TCLE,
teve oportunidade de fazer perguntas e esclarecer dúvidas que foram devidamente explicadas
pelos pesquisadores. Ciente dos serviços e procedimentos aos quais será submetido, e não
restando quaisquer dúvidas a respeito do lido e explicado, firma seu CONSENTIMENTO
LIVRE E ESCLARECIDO em participar voluntariamente desta pesquisa. E, por estar de
acordo, assina o presente termo.
Assinatura do pesquisador_______________________
Assinatura do participante_______________________
__________________________________________________
Assinatura do participante ou representante legal
___________________________________________________
Assinatura do pesquisador
__________________________________________________
Impressão dactiloscópica