Sie sind auf Seite 1von 143

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR

Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – VRPPG

Programa de Pós-Graduação em Psicologia – PPG-Psi

Doutorado em Psicologia

Sarah Vieira Carneiro

O LUTO NA CONTEMPORANEIDADE À LUZ DA FENOMENOLOGIA


EXISTENCIAL DE JEAN-PAUL SARTRE

Mourning in contemporaneity in the light of Jean-Paul Sartre's existential


phenomenology

Fortaleza

2017
Sarah Vieira Carneiro

O LUTO NA CONTEMPORANEIDADE À LUZ DA FENOMENOLOGIA


EXISTENCIAL DE JEAN-PAUL SARTRE

Mourning in contemporaneity in the light of Jean-Paul Sartre's existential


phenomenology

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Psicologia da Universidade de Fortaleza –
UNIFOR como requisito parcial à obtenção do grau
de Doutor em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Georges Daniel Janja Bloc


Boris

Fortaleza

2017
A todas as pessoas que, no âmago da dor mais profunda,
compartilharam comigo suas histórias
AGRADECIMENTOS
Partindo da convicção íntima de que esta tese é um marco na minha jornada de quase duas décadas de
estudos sobre a morte e o luto, agradeço profundamente, na pessoa da Profa. Dra. Fátima Severiano, a todos
os professores, que mesmo não compartilhando diretamente do meu interesse pelo tema, mantiveram-me
acreditando que eu podia desenvolvê-lo e, também, a mim mesma. Desde que entrei na graduação em Psicologia
na UFC em 1998, passando pela pós-graduação na USP-SP e pelo mestrado em Psicologia Clínica na PUC-SP,
ambos em 2003, a morte e o luto fazem parte de meus trabalhos acadêmicos, palestras, cursos, atividade
profissional, reflexões, mas, sobretudo, fazem parte da construção que fiz de mim mesma e daqueles que
cruzaram meu caminho de modo a torná-lo mais rico.
Sou especialmente grata aos membros da Banca Examinadora, por terem dispensado seu precioso
tempo no intuito único de engrandecer este trabalho: à Profa. Dra. Ana Frota, por sua maneira carinhosa e
discreta de apontar melhorias; à Profa. Dra. Fátima Severiano, por ser uma referência de honestidade
acadêmica e seriedade desde a minha graduação; à Profa. Dra. Luana, por sua contundência onde se fez
necessário; à Profa. Dra. Anna Karynne, por não me deixar perder de vista a perspectiva clínica.
Sinto-me extremamente abençoada e grata pelo meu Orientador, Prof. Dr. Georges Boris, pelo apoio
acadêmico, emocional, moral e pelo desafio que me ofereceu ao me apresentar a filosofia de Jean-Paul Sartre,
de quem eu tinha, então, um conhecimento superficial. Prof. Boris foi implacável na tarefa de acreditar em mim
e de me guiar na empolgante, mas difícil, empreitada de expor meu pensamento. Seu estilo de orientação é
absolutamente congruente com seu entendimento de ser humano: livre em situação.
Fazer parte da UNIFOR me deu a oportunidade de integrar dois grupos de pesquisa extraordinários: o
APHETO e o NUFEX, onde conheci pessoas únicas e que muito me inspiraram e a quem agradeço por meio de
seus coordenadores: Profa. Dra. Virgínia Moreira, Profa. Dra. Anna Karynne Melo e Prof. Dr. Georges
Boris. Agradeço aos mais diversos setores da Universidade de Fortaleza e aos que os compõe, com destaque
para os professores e funcionário do Programa de Pós-graduação em Psicologia, PPGPsi, sempre tão
disponíveis, atenciosos e, sobretudo, afetuosos.
Agradeço imensamente à minha mãe, Nilzete, por ter sido fonte perene de amor incondicional; ao meu
pai, Josniel, por ter provocado meu desejo pelo saber desde a minha mais tenra infância; à minha irmã,
Luciana, pelo suporte silenciosos e certo; às minhas sobrinhas, Laura e Alice, por me apresentarem a um amor
absolutamente novo; ao meu marido, Bruno, companheiro de pequenas e grandes conquistas, sempre
disponível, paciente e pronto para o bom combate. Por fim, o mais importante, agradeço a Deus por colocar
cada uma destas pessoas em minha vida e por me segurar em Seus braços nos momentos mais sombrios: graças
Te dou!
O luto é destinado aos que amam amar.
Vinga-se a pessoa que odeia amar, odeia continuar amando.
É o encontro do mais extremo ódio com o mais extremo amor.
A união de dois terrorismos.
Fabrício Carpinejar
Carneiro, S.V. (2017). O Luto na Contemporaneidade à Luz da Fenomenologia Existencial
de Jean-Paul Sartre (Tese de Doutorado). Universidade de Fortaleza, Fortaleza/CE.

RESUMO
Ainda que o luto seja amplamente reconhecido como uma experiência humana universal,
uma resposta normal e esperada à perda, sua abordagem em pesquisas em saúde mental é
crescente. A medicalização da vida se expandiu de modo a alcançar também a vivência da
perda. A literatura especializada aponta características (sintomas) normais e patológicas do
luto, o tempo de duração, a intensidade, o curso, o prognóstico e o seu tratamento. Há mesmo
um “movimento” científico para inclusão do luto ou do luto patológico como categorias
clínicas nos manuais diagnósticos, processo que se encontra em franca expansão. O principal
objetivo desta tese é compreender o luto na contemporaneidade, à luz da fenomenologia
existencial de Jean-Paul Sartre. Na persecução deste propósito, caminhamos no sentido de: 1)
delinear as condições de possibilidade da morte e do luto na sociedade contemporânea, em
termos de história, cultura, mercado e etiqueta; 2) discutir o processo de patologização do
luto; 3) analisar, a partir do histórico das edições do DSM (Diagnostic and Statistical Manual
of Mental Disorders), a inserção do luto como transtorno mental; 4) examinar a perspectiva
científica mais atual em relação ao luto, qual seja, sua neurobiologização; e, 5) articular a
fenomenologia existencial sartreana com os fenômeno da morte e do luto. Assim, a
compreensão do fenômeno do luto na contemporaneidade não pode se dar apenas por meio de
um estudo teórico, mas deve entrever a significação individual dos elementos do mundo.
Desta forma, a presente pesquisa se produziu no vaivém (progressivo-regressivo) da história
singular e da determinação geral das condições de vida do sujeito, o que nos permitiu
reconstituir progressivamente a existência material do sujeito e alcançar a “lógica da
liberdade” (Sartre, 1960/2004, p. 69) do seu luto. Desta forma, utilizamos como método a
dialética liberdade/situação. Pudemos compreender que não há algo como um luto
patológico, mas que cada luto se insere no projeto-de-ser de cada enlutado, em uma dada
cultura e num tempo histórico específico. O que a contemporaneidade oferece é a
mercantilização dos ritos, a negação do sofrimento e a medicalização do luto, que não siga
suas rígidas regras de etiqueta e de saúde. As condições de possibilidade de enlutamento na
nossa sociedade são estratégias de má-fé. A etiqueta fúnebre é outra versão cotidiana: o choro
e a tristeza não convêm; é importante que a perda seja sentida o mínimo possível e que a
comunidade se aperceba dela de modo muito superficial e rápido: 1) o cadáver deve ser um
simulacro aprimorado do corpo vivo e, ante a sua desaparição, prontamente se apresentam o
dever moral e a obrigação social de evitar a dor em público; 2) a retomada de uma vida
produtiva, funcional e; enfim, 3) o compromisso de parecer feliz o mais rápido possível.
Escolher-se doente é um caminho de má-fé possível e, cada vez mais, eleito, uma vez que
traduz a expectativa da coletividade e reproduz o saber médico. O sujeito do nosso caso foi
do “contra”, rejeitando o diagnóstico, a medicação, viveu (e ainda vive) seu luto à sua
maneira.
Palavras-chave: 1) Luto; 2) Existencialismo; 3) DSM; 4) Diagnóstico; 5) Jean-Paul Sartre.
ABSTRACT
Although mourning is widely recognized as a universal human experience, a normal and
expected response to loss, its approach in mental health research is increasing. The
medicalization of life expanded in order to reach the experience of loss. The specialized
literature points out normal and pathological characteristics (symptoms) of mourning,
duration, intensity, course, prognosis and treatment. There is even a scientific "movement" to
include mourning or pathological mourning as clinical categories in diagnostic manuals, a
process that is in rapid expansion. The main objective of this thesis is to understand the
mourning in the contemporaneity, in the light of the existential phenomenology of Jean-Paul
Sartre. In pursuit of this purpose, we are moving towards: 1) delineating the conditions of
possibility of death and mourning in contemporary society, in terms of history, culture,
market and etiquette; 2) discuss the process of pathologization of mourning; 3) to analyze,
from the history of the DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), the
insertion of mourning as a mental disorder; 4) to examine the most current scientific
perspective regarding grief, that is, its neurobiologization; and, 5) articulate Sartre´s
existential phenomenology with the phenomenon of death and mourning. Thus, the
understanding of the phenomenon of mourning in contemporaneity can not be given only
through a theoretical study, but must glimpse the individual significance of the elements of
the world. In this way, the present research took place in the (progressive-regressive) shuttle
of singular history and the general determination of the subject's life conditions, which
allowed us to progressively reconstitute the subject's material existence and achieve the
"logic of freedom" (Sartre, 1960, p. 69) of his mourning. In this way, we use as method the
dialectic freedom / situation. We could understand that there is no such thing as a
pathological mourning, but that every mourning fits into the design-of-being of every
mourner, in a given culture, and in a specific historical time. What contemporaneity offers is
the mercantilization of rites, the denial of suffering and the medicalization of mourning,
which does not follow its rigid rules of etiquette and health. The conditions of possibility of
swindling in our society are strategies of bad faith. The funeral etiquette is another daily
version: crying and sadness do not suit; it is important that the loss be felt as little as possible
and that the community should be aware of it in a very superficial and rapid way: 1) the
corpse must be an improved simulacrum of the living body and, upon its disappearance, the
moral and the social obligation to avoid pain in public; 2) the resumption of a productive,
functional life and; finally, 3) the commitment to look happy as soon as possible. Choosing to
be sick is a path of bad faith that is possible and, increasingly, elected, since it reflects the
expectation of the community and reproduces medical knowledge. The subject of our case
was the "against", rejecting the diagnosis, the medication, lived (and still lives) his mourning
in his own way.

Keywords: 1) Mourning; 2) Existentialism; 3) DSM; 4) Diagnosis; 5) Jean-Paul Sartre.


RESUMEN
Aunque el luto es ampliamente reconocido como una experiencia humana universal, una
respuesta normal y esperada a la pérdida, su enfoque en investigaciones en salud mental es
creciente. La medicalización de la vida se ha ampliado para alcanzar también la vivencia de
la pérdida. La literatura especializada apunta características (síntomas) normales y
patológicas del luto, el tiempo de duración, la intensidad, el curso, el pronóstico y su
tratamiento. Hay un "movimiento" científico para inclusión del luto o del luto patológico
como categorías clínicas en los manuales diagnósticos, proceso que se encuentra en franca
expansión. El principal objetivo de esta tesis es comprender el luto en la contemporaneidad, a
la luz de la fenomenología existencial de Jean-Paul Sartre. En la persecución de este
propósito, caminamos en el sentido de: 1) delinear las condiciones de posibilidad de la
muerte y del luto en la sociedad contemporánea, en términos de historia, cultura, mercado y
etiqueta; 2) discutir el proceso de patologización del luto; 3) analizar, a partir del historial de
las ediciones del DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), la inserción
del luto como trastorno mental; 4) examinar la perspectiva científica más actual en relación al
luto, cuál sea, su neurobiologización; y 5) articular la fenomenología existencial sartreana con
los fenómenos de la muerte y del duelo. Así, la comprensión del fenómeno del luto en la
contemporaneidad no puede darse sólo por medio de un estudio teórico, sino que debe
entrever la significación individual de los elementos del mundo. De esta forma, la presente
investigación se produjo en el vaivén (progresivo-regresivo) de la historia singular y de la
determinación general de las condiciones de vida del sujeto, lo que nos permitió reconstituir
progresivamente la existencia material del sujeto y alcanzar la "lógica de la libertad" (Sartre,
1960/2004, p. 61) de su duelo. De esta forma, utilizamos como método la dialéctica libertad /
situación. Hemos podido comprender que no hay algo como un luto patológico, pero que
cada luto se inserta en el proyecto de ser de cada enlutado, en una cultura dada y en un
tiempo histórico específico. Lo que la contemporaneidad ofrece es la mercantilización de los
ritos, la negación del sufrimiento y la medicalización del luto, que no siga sus rígidas reglas
de etiqueta y de salud. Las condiciones de posibilidad de vivir el luto en nuestra sociedad son
estrategias de mala fe. La etiqueta fúnebre es otra versión cotidiana: el llanto y la tristeza no
convienen; es importante que la pérdida sea sentida lo menos posible y que la comunidad se
da cuenta de ella de modo muy superficial y rápido: 1) el cadáver debe ser un simulacro
mejorado del cuerpo vivo y, ante su desaparición, prontamente se presentan el deber moral y
la obligación social de evitar el dolor en público; 2) la reanudación de una vida productiva,
funcional y; en fin, 3) el compromiso de parecer feliz lo más rápido posible. El escoger
enfermo es un camino de mala fe posible y, cada vez más, elegido, una vez que traduce la
expectativa de la colectividad y reproduce el saber médico. El sujeto de nuestro caso fue del
"contra", rechazando el diagnóstico, la medicación, vivió (y aún vive) su luto a su manera.

Palabras clave: 1) Luto; 2) Existencialismo; 3) DSM; 4) Diagnóstico; 5) Jean-Paul Sartre.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Site de Empresa Funerária em Fortaleza/CE, com destaque para o Velório Virtual

Figura 2. Propaganda do curso de “Reconstituição Facial” no site da ABREDIF

Figura 3. Empresa americana oferece “velório drive thru”

Figura 4. Esposa presta ao marido falecido sua última homenagem

Figura 5. Grief Recovery Experts

Figura 6. Propaganda de Empresa Funerária de Fortaleza/CE

Figura 7. Expressões de luto em Darwin

Figura 8. Mecanismos neurais de regulação do luto


LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Critérios propostos para Luto Complicado – LC

Quadro 2. Entrevista de Formulação Cultural – EFC

Quadro 3. Transtorno do luto complexo e persistente


LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Uso de medicamento com retenção de receita no Ceará

Tabela 2. Prevalência de problemas de saúde – PNAD


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABREDIF - Associação Brasileira de Empresas e Diretores Funerários

APA – American Psychiatric Association

CID – Classificção Internacional de Doenças

CTI – Centro de Terapia Intensiva

DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders

EEG – Eletroencefalograma

EFEC – Entrevista de Formulação Cultural

FDA – Food and Drug Administration

FMRI – Functional Magnetic Resonance Imaging

FMUSP – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

LC – Luto Complicado

NA – núcleo accumbens

NIMH – National Institute of Mental Health

PNAD – Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio

RDoC – Research Domain Criteria

SEFEC – Sindicato das Empresas Funerárias do Estado do Ceará

TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

USVA – United States Veteran Administration

UTI – Unidade de Terapia Intensiva


SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO.....................................................................................................15
2. A FENOMENOLOGIA DE JEAN-PAUL SARTRE: LIBERDADE,
RESPONSABILIDADE, ANGÚSTIA E MÁ-FÉ ...................................................18
3. MÉTODO ...................................................................................................................23
4. CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE: A MORTE E O LUTO NUMA
PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL .........................................................28
4.1. MORTE, LUTO E HISTÓRIA .........................................................................29
4.2. MORTE, LUTO E CULTURA .........................................................................35
4.3. O LUCRO DO LUTO ........................................................................................38
4.4. ESTILO DE VIDA, ESTILO DE MORTE, ESTILO DE LUTO ..................44
5. O LUTO COMO CATEGORIA DIAGNÓSTICA ................................................50
6. O CONCEITO DE LUTO AO LONGO DAS EDIÇÕES DO DSM: DA
EXPERIÊNCIA À DOENÇA ...................................................................................58
6.1. DSM – PRIMEIRA EDIÇÃO ...........................................................................59
6.2.DSM-II ..................................................................................................................61
6.3. DSM-III ...............................................................................................................63
6.4. DSM-III-R ...........................................................................................................67
6.5. DSM-IV ...............................................................................................................69
6.6. DSM-IV-TR ........................................................................................................73
6.7. DSM-5 ..................................................................................................................73
7. A NEUROBIOLOGIA DO LUTO ...........................................................................88
8. MORTE E LUTO NA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL SARTREANA .104
9. “QUANDO O AMOR É LEAL, O LUTO NÃO TEM FIM” ..............................110
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................120

REFERÊNCIAS ............................................................................................................124

ANEXO I (TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO) ..........134

ANEXO II (PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA) ..................................................137


15

1. APRESENTAÇÃO

Quage que eu dava um desmaio,


Naquele pé de juá
E lá da ponta de um gaio,
Os dois véio sabiá
Mostrava no triste canto
Uma mistura de pranto,
Num tom penoso e funéro,
Parecendo mãe e pai,
No hora que o fio vai
Se interrá no cimitéro
(Patativa do Assaré, 1986/2008, p. 72)

Na infância, ouvi, muitas vezes, de meu pai, a história do enterro de seu irmão recém-
nascido. Minha avó parira em casa, como em todas as outras vezes, mas “assim quis Deus
que o bebê não vingasse” e morresse. Acomodado numa caixa de sapato e, em cima da mesa
da sala, o corpo do bebê ficou por algum tempo. Não houve ali grande acontecimento, foi
pouca a visita. Como minha avó estivesse muito fraca e meu avô não tivesse a isso dado
maior importância, meu pai, então com sete anos de idade, foi incumbido de enterrar o irmão
“no mato”, dentro da caixa de sapato. Descalço e com a caixa na mão, seguiu para escolher
um lugar “nem perto nem longe”. Cavou um buraco num sítio de bananeiras, colocou o corpo
do irmão, cobriu com terra e voltou pra casa. Ali, nada lhe perguntaram. Seguiu a vida. O ano
era 1958 e, no sertão central do Ceará, muitas crianças enterravam seus irmãos. A morte
ainda era parte do cotidiano.

Pouco mais de 50 anos depois, não é raro que alguém chegue à vida adulta sem nunca
ter experimentado uma perda significativa. A morte cotidiana é a morte distante da televisão
e da “internet”, é a morte do outro, produto de violência, de catástrofes, de guerras. As
16

transformações sociais em relação à morte e ao luto são amplas e profundas. Vivemos um


período histórico e cultural no qual a morte é um tabu, objeto da técnica, da ciência e do
mercado. Falar sobre a morte é mórbido, é quase pornográfico, a não ser do ponto de vista
científico ou do consumo. Inquestionavelmente, a ciência escrutinizou a morte e,
consequentemente, o luto. Assistimos a um processo de secularização da morte e da perda,
bem como o esvaziamento progressivo do sentido dos rituais fúnebres, em nome de rituais
mercantilizados e técnicos (Ariès, 2003; Da Matta, 2011; Gorer, 1955; Imber-Black, 1998).

Ainda que o luto seja amplamente reconhecido como uma experiência humana
universal, uma resposta normal e esperada à perda, sua abordagem em pesquisas em saúde
mental é crescente. A medicalização da vida se expandiu de modo a alcançar também a
vivência da perda. A literatura especializada aponta características (sintomas) normais e
patológicas do luto, o tempo de duração, a intensidade, o curso, o prognóstico e o seu
tratamento. Há mesmo um “movimento” científico para inclusão do luto ou do luto
patológico como categorias clínicas nos manuais diagnósticos, processo que se encontra em
franca expansão (Biondi, Constantini & Parisi, 1996; Gündel, O’Connor, Littrell, Fort &
Lane, 2008; Freed, Yabaguhara, Hirsch & Mann, 2009; American Psychiatric Association,
2013; Cordeiro, 2014; Assareh, Sharpley, McFarlane & Sachdev, 2015; dentre outros).
Recentemente, uma decisão polêmica, envolvendo o Manual Diagnóstico e Estatístico dos
Transtornos Mentais (DSM), tomou conta do ambiente acadêmico especializado: foi definida
a retirada do luto como critério de exclusão para o diagnóstico de transtorno depressivo
maior, desde que a duração dos “sintomas” seja superior a duas semanas. Desta feita,
depressão e luto passam a se confundir (American Psychiatric Association, 2013).

Cada vez mais afastadas da experiência e da cultura, as definições do DSM não


incluem fatores pessoais e contextuais. Compreendido apenas como um manual, é
compreensível e esperado que o DSM seja simplificado, mas não que isto deva empobrecer a
prática clínica. Um manual deve ser visto como apenas uma “pequena parte de uma avaliação
global que exaustivamente dá conta dos aspectos mais complicados e individuais de cada
paciente" (Rapley, Moncrieff & Dillon, 2011, p. 25). Como ficará mais claro adiante, nem
sempre a morte e o luto foram objetos de investigação científica e, mesmo dentro do mesmo
período histórico, num país continental como o Brasil, formas aparentemente antagônicas de
manifestação de pesar coexistem.
Diante da morte de um ente querido, os índios tupinambás, no Brasil, seccionavam os
cadáveres de seus entes queridos, antes de comê-los, às mulheres, cabendo os órgãos genitais,
17

aos adolescentes, o cérebro e a língua, aos convidados, a ponta dos dedos e a gordura do
fígado (Rodrigues, 1983). Em 1981, Simone de Beauvoir (1981/1985), em seu livro de
memórias sobre os últimos anos de vida e morte de seu companheiro Jean-Paul Sartre,
“Cerimônia do Adeus”, narra seu luto, suportado com o uso de diazepan® e bebida alcoólica.
Beauvoir descreveu como sua mente estava vazia, durante o enterro, e sua incapacidade de
comparecer à cerimônia de cremação. Narrou ainda, um episódio “delirante”, que antecedeu
uma internação hospitalar. A distância abissal que parece separar essas duas experiências
aponta para o fato de que o luto é um fenômeno histórico, cultural, atravessado pelas
características de cada sociedade, bem como pela particularidade de cada indivíduo. Dessa
forma, a apresentação das manifestações de luto se dão de modo dialético, a partir da
interseção de uma subjetividade num mundo dado.

O principal objetivo desta tese é compreender o luto na contemporaneidade, à luz da


fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre. Na persecução deste propósito, caminhamos
no sentido de: 1) delinear as condições de possibilidade da morte e do luto na sociedade
contemporânea, em termos de história, cultura, mercado e etiqueta; 2) discutir o processo de
patologização do luto; 3) analisar, a partir do histórico das edições do DSM (Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders), a inserção do luto como transtorno mental; 4)
examinar a perspectiva científica mais atual em relação ao luto, qual seja, sua
neurobiologização; e, 5) articular a fenomenologia existencial sartreana com os fenômeno da
morte e do luto.

Para tanto, no capítulo 2, apresentamos temas essenciais à obra de Sartre, como:


liberdade, responsabilidade, angústia e má-fé. O capítulo 3 trata do método. No capítulo 4,
buscamos responder à questão: como convém enlutar-se em nossa sociedade? Apresentamos
as condições de possibilidade do enlutamento na contemporaneidade, em termos históricos,
culturais, mercadológicos e de etiqueta fúnebre. No capítulo 5, discutimos o processo de
patologização e de medicalização do luto, alçando-o à condição de categoria diagnóstica. O
capítulo 6 consta de uma revisão de todas as edições do DSM e de uma análise de como sua
relação com o luto foi se modificando ao longo do tempo. No capítulo 7, tratamos da
tentativa corrente, e dotada de vultosos investimentos, de compreender o luto em termos
neurobiológicos. O capítulo 8 é dedicado à articulação da fenomenologia existencial sartreana
com os fenômenos da morte de do luto. O capítulo 9 apresenta um caso clínico único, numa
aproximação com o método biográfico de Sartre, discutindo como o luto pode ser
18

compreendido a partir de tal perspectiva. À guisa de conclusão, o capítulo 10 visa à


compilação de nossos principais achados e aponta a necessidade de pesquisas futuras.

2. A FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL DE JEAN-PAUL SARTRE:


LIBERDADE, RESPONSABILIDADE, ANGÚSTIA E MÁ-FÉ

Jean-Paul Sartre morreu em 1980, após longo período de doença, aos 75 anos, mas o
primeiro sinal de alarme ocorreu 25 anos antes: um pico de pressão alta, que o levou ao
hospital, logo após sua jornada pela União Soviética, no verão de 1954. Quatro anos depois,
Sartre sofreu um pequeno derrame e, na iminência de um infarto, Simone de Beauvoir, sua
companheira da vida inteira, contou que, a partir de então, a ameaça da morte estava sempre
presente: “os médicos me disseram que suas artérias e arteríolas estavam muito estreitas.
Toda manhã, quando ia despertá-lo, eu ficava impaciente até me certificar de que ele estava
respirando” (Beauvoir, 1981/1984, p. 9). À agonia do período de doença de Sartre, Simone
acrescentou, para si mesma, a tarefa de evitar que ele fosse confrontado com a sua real
situação de saúde, com o sofrimento e com a morte iminente. Acreditando que saber-se
próximo à morte somente pioraria a condição de Sartre, ela, cuidadosamente, evitou o assunto
e cuidou para que os médicos também o fizessem. Para ela, a ameaça da morte pairava no ar
e, mesmo, nas coisas:

este estúdio, tão alegre desde meu regresso, mudou de cor. O bonito
tapete escuro evoca luto. É assim que será preciso viver, talvez ainda
com felicidade e momentos de alegria, mas com o peso da ameaça – a
vida colocada entre parênteses (p. 8).
Em 15 de abril de 1980, Simone foi avisada da morte de Sartre pelo telefone. Ele
estava no CTI há quase uma semana, no qual as visitas eram controladas. Ao chegar ao
hospital, a impressão que Simone teve foi de que ele estava igual a ele mesmo: só não
respirava. A absurdidade da morte era perturbadora. Ela pediu a amigos que lhe trouxessem
uísque e passou a noite no hospital, na companhia deles, bebendo e conversando sobre Sartre.
Durante o velório, ficou alheia e atônita. Mesmo após o longo período de doença do
companheiro, o choque era evidente:

uma imensa multidão acompanhava... Eu não via nada. Estava mais ou menos
anestesiada por Valium1 e agarrada ao meu desejo de não desmoronar. Quando
desci do carro fúnebre, o caixão estava já no fundo do túmulo. Eu pedi uma

1 Medicamento cujo princípio ativo é o diazepam, tranquilizante do grupo dos benzodiazepínicos.


19

cadeira e permaneci sentada ao lado da cova aberta, a cabeça oca. Vislumbrei


pessoas escalando os muros, as sepulturas, numa agitação confusa. Levantei-me
para retornar ao carro: este estava apenas a dez metros de distância, mas a
multidão era tão densa que pensei que seria esmagada (Beauvoir, 1981/1984, p.
126).

Nos dias que seguiram, Simone bebeu muito e seguiu com o uso de tranquilizantes. Numa
dessas ocasiões, bebeu tanto que teve de ser carregada por amigos. Estava muito esgotada para
comparecer à cremação de Sartre. Como não pôde voltar para casa, permaneceu na casa de Sylvie2,
na qual sofreu uma queda e foi encontrada, delirando, no tapete. Foi hospitalizada com uma
pneumonia, da qual se recuperou dali a duas semanas.
Simone se posicionou frente à perda de Sartre com choque, descrença, uísque, drogas
psicotrópicas, alteração de consciência e uma enfermidade que acabou custando, a ela, uma
internação hospitalar. Apenas um ano após a morte do companheiro, como uma homenagem
(que ele jamais receberia), ela publicou dados dos últimos anos de Sartre, em seu livro A
Cerimônia do Adeus (Beauvoir, 1981/1984). No entanto, muito mais e muito além de uma
narrativa sobre Sartre, a obra é uma narrativa do próprio luto de Simone. Ela, assim, se
manifesta ao companheiro morto:

este é o primeiro dos meus livros – o único certamente – que você não
terá lido antes de ser impresso. Ele é total e inteiramente devotado a
você; e você não será afetado por ele. Quando éramos jovens e, ao
final de uma discussão apaixonada um de nós triunfava
ostensivamente, o vencedor costumava dizer: “Aí está você na sua
pequena caixa”! Aí está você na sua pequena caixa; não sairá daí e eu
não devo me juntar a você. Mesmo que eu seja enterrada próximo de
você, não haverá comunicação entre suas cinzas e as minhas. Quando
eu digo você é só um pretenso dispositivo retórico. Ninguém ouve.
Estou falando para ninguém (p. 3).
Com efeito, dirigir-se a Sartre, já falecido, é apenas um engodo, um artifício retórico.
Ele já estava morto, não poderia argumentar, mudar de ideia, escolher: findou-se, está “do
outro lado do muro” (Sartre, 1943/2011, p. 531). Não obstante, sua obra permaneceu: como
objeto, tomado e compreendido por outras consciências, por outras liberdades. Esta era uma
preocupação de Sartre (1964/1993), ainda menino: como haveria de ser lido, compreendido,
quando já estivesse morto? Em seu livro autobiográfico As Palavras, ele, assim, se
expressou:

2 Amiga íntima do casal.


20

eu estremecia, atravessado pela minha morte, verdadeiro sentido de


todos os meus gestos, despossuído de mim mesmo, e tratava de voltar
a atravessar a página em sentido contrário para encontrar-me
novamente do lado dos leitores. Levantava a cabeça, pedia socorro à
luz. Pois bem, isto também era uma mensagem; essa inquietude
repentina, essa dúvida, o movimento dos olhos e do pescoço. Como
me interpretarão em 2013, quando tiverem as duas chaves para abrir-
me: minha obra e minha morte? (p. 138).

No entanto, a morte foi, para Sartre (1943/2011), um tema periférico, pois toda sua
fenomenologia existencial está fundamentada no conceito de liberdade. A partir do estudo de
sua obra fundamental, O Ser e o Nada, de sua autobiografia, As Palavras, dos seus escritos
durante a Segunda Guerra Mundial e da obra de Simone de Beauvoir, A Cerimônia do Adeus,
dedicada postumamente à Sartre, nos propomos a discutir os conceitos de morte e de luto na
fenomenologia existencial de Sartre, bem como a delinear uma abordagem sartreana do luto.
Para o filósofo, o homem é arremessado na liberdade, está condenado a ser livre, a escolher
posicionar-se desta ou daquela forma diante do mundo que a ele se apresenta. E, ainda que
em face da absurdidade da morte3, ela não constitui um obstáculo à liberdade do ser vivente,
mas dá, a ela, novos contornos. Saber-nos mortais não nos torna menos livres; ainda que
tivéssemos a nossa própria morte sempre na consciência (como em tempos de guerra,
conforme discorreremos adiante), ainda assim estaríamos livres para viver nossa vida como
melhor nos aprouvesse ou, ainda, para liquidá-la, escolhendo, assim, antecipar o fim. Este
fato inevitável desenha nossa situação. Continuamos livres para nos posicionar diante de
nossa mortalidade, desde que ainda estejamos vivos: “a liberdade que é minha liberdade
permanece total e infinita; não que a morte não a limite, mas por que a liberdade jamais
encontra esse limite... Não sou ‘livre para morrer’, mas sou um livre mortal” (p. 671). É certo
que a realidade humana encontra, por toda parte, obstáculos que ela não criou, mas tais
obstáculos são resistências que apenas têm sentido na e pela livre escolha. Para Sartre, a
situação tem estruturas. O conceito de liberdade de Sartre não deve ser jamais interpretado a
partir do senso comum, pois não se trata de ter o que se quer, mas de determinar-se por si
mesmo, a querer: “em outros termos, o êxito não importa em absoluto à liberdade (...)
Qualquer que seja sua condição ele [um prisioneiro] pode projetar sua evasão e descobrir o

3 “É absurdo que tenhamos nascido, é absurdo morrermos” (p. 670).


21

valor de seu projeto por um começo de ação” (p. 595). Assim, ser livre não é escolher o
mundo no qual surgimos, nem o que nos acontece, mas escolhermos, a nós mesmos, neste
mundo, seja lá como ele a nós se apresente; significa, sobretudo, autonomia de escolha. À
condição do mundo, Sartre denomina facticidade, isto é, o dado absoluto, o inevitável: meu
lugar, meu passado, meus arredores, o outro e, ainda que em tese, minha morte. A liberdade
se manifesta sempre, portanto, em situação, ou seja, na forma escolhida pelo ser frente ao
mundo: “assim, começamos a entrever o paradoxo da liberdade: não há liberdade a não ser
em situação, e não há situação a não ser pela liberdade” (p. 602); é à luz da minha escolha
que um dado se revela como obstáculo, é à luz de um projeto-de-ser que o homem se escolhe
e se faz ser.

A responsabilidade sobre a conduta humana no mundo é central no existencialismo


sartreano. Uma vez que a liberdade é inescapável, não há qualquer ideia ou entidade prévia
que sustente o seu ser. Não há algo como uma natureza humana, destino ou Deus que possa
conferir, de fora, sentido, finalidade ou propósito à vida: “o homem nada é além do que ele se
faz” (Sartre, 1946/2012, p. 25), e o desamparo advindo de tal constatação, ou seja, da
responsabilidade de se fazer ser, leva, invariavelmente, à angústia. Contudo, ainda que seja
para lidar com a angústia, somos livres. O homem busca as mais variadas formas de mascarar
a angústia, de livrar-se dela, arquitetando uma realidade em que se ache, aí, como uma coisa
entre coisas, ou, dito de outra forma, urdindo toda espécie de determinismo. Estamos diante
da má-fé:

o homem busca ser às cegas ocultando de si mesmo o projeto livre


que constitui esta busca; faz-se de tal modo que seja esperado pelas
tarefas, dispostas ao longo do seu caminho. Os objetos são exigências
mudas, e ele nada mais é em si do que a obediência passiva a essas
exigências (Sartre, 1943/2011, p. 764).

Assim como o conceito de liberdade, o de má-fé não deve ser apreendido a partir do uso
popular. Correntemente, o termo má-fé é utilizado para definir uma espécie de deslealdade
consciente e fraudulenta. Em oposição, para Sartre, a má-fé jamais se pode confundir com a
mentira, uma vez que se trata de uma apreensão pré-reflexiva, de uma tentativa do homem de
escapar do fato de que é livre e de que essa gratuidade da existência gera sofrimento: “na má-
fé, não há mentira cínica nem sábio preparo de conceitos enganadores. O ato primeiro da má-
fé é fugir do que não se pode fugir, fugir do que se é” (1943/2011, p. 118). Negar-se livre é se
crer determinado.
22

Assim sendo, para Sartre, não há outro modo de compreender um fenômeno humano
que não seja a partir do binômio situação-liberdade. Para entender de que forma um indivíduo
se posiciona no mundo, é preciso saber de que mundo se trata, quais as condições materiais
que se apresentam, bem como quais as condições de possibilidade entendias como seus
possíveis ao indivíduo, à luz de seu projeto-de-ser. Em relação ao luto, especificamente, não
nos basta analisa-lo como um processo puramente psicológico ou “interno”, há um mundo
“externo” que situa o processo, que oferece formas dadas de sentimentos e de
comportamentos. A morte de um ser amado é um fato inescapável, um dado, mas o que o
mundo “espera” de nós? Que condições de possibilidade nos oferece para experimentá-la?
Propor respostas a essas questões seria nos aproximar do que seria a situação do enlutado, a
moldura de suas escolhas. Vejamos como estes conceitos estão articulados com nosso
método.
23

3. MÉTODO

Desde sua constituição como ciência, a Psicologia esteve às voltas com o dilema da
objetividade versus subjetividade. Como se moldar ao método científico positivista e, ao
mesmo tempo, dar conta de toda a riqueza e a profundidade da experiência humana? A
multiplicidade de abordagens, de métodos e de objetos psicológicos é uma marca inconteste
deste esforço. Outro impasse histórico à pesquisa psicológica concerne na separação
positivista entre sujeito e objeto, noção cara a quem pretende uma ciência pura. Para atender
a tal exigência, seria preciso eliminar todo e qualquer rastro de subjetividade do pesquisador
e de interferências do meio. Assim, isolado, o homem se ofereceria à análise de sua
verdadeira natureza, expressa na mais límpida forma de leis. Foi em reação a este quadro que,
no início do século XX, Edmund Husserl (1913/2006) lançou as bases da fenomenologia. Em
seu livro Cerimônia do Adeus, Simone de Beauvoir (1981/1985) descreveu a exultação de
Sartre quando tomou contato com a fenomenologia de Husserl e com o mundo que se abria
diante dele: a possibilidade de fazer filosofia a partir de uma taça na mesa do café, do homem
comum e de sua experiência no mundo. Ainda que, ao longo de sua trajetória como pensador,
Sartre tenha contestado, em muitos momentos, as ideias de Husserl, suas contribuições estão
indelevelmente marcadas pelo período em que ele esteve com o mestre, em Berlim, nos anos
de 1933 e 1934.

Em seu livro Para um Esboço da Teoria das Emoções, Sartre (1939/2006) fez duras
críticas à ciência psicológica e, particularmente, ao psicologismo. Para Sartre, os psicólogos
de então teimavam em partir de um amontoado de fatos agrupados sob seu olhar
pretensamente neutro, fatos isolados, universais, descontextualizados: “os psicólogos não se
dão conta de que, com efeito, é tão impossível atingir a essência amontoando os acidentes
quanto chegar à unidade acrescentando indefinidamente algarismos à direita de 0,99” (p.16-
17). Os fenômenos humanos não se manifestam de nenhuma forma “pura”, pois não se tratam
do espelhamento de uma essência ou natureza humana universal, mas são frutos do homem
em situação, reagindo, em sua liberdade, ao e no mundo. Para compreender os “fatos
psíquicos” ou os fenômenos humanos, não cumpre isolá-los e analisá-los, mas situá-los no
24

tempo, no espaço e no projeto-de-ser individual. Assim, para Sartre, a única teoria do


conhecimento válida é a que se funda sobre a noção de que

os fatos psíquicos com os quais nos deparamos nunca são os primeiros. Eles
são em sua estrutura essencial reações do homem contra o mundo; portanto,
supõem o homem e o mundo, e só podem adquirir seu sentido verdadeiro se
inicialmente elucidarmos essas duas noções (p. 21).
Influenciado também pelo marxismo, Sartre (1939/2006) propôs a construção de uma
antropologia estrutural e histórica, uma totalização perpetuamente em curso:

mas o psicólogo não se compromete: ele ignora que a noção de homem não
é arbitrária. Ela pode ser muito vasta: nada diz que o primitivo australiano
pode ser incluído na mesma classe psicológica que o operário americano de
1939. Seja como for, o psicólogo proíbe-se rigorosamente de considerar os
homens que o cercam como seus semelhantes. Essa noção de similitude, a
partir da qual se poderia talvez construir uma antropologia, lhe parece
irrisória e perigosa (p. 15).
Os fatos, por si mesmos, não são nem verdadeiros nem falsos e não têm significado, a não ser
se referidos a diferentes sistemas parciais de mediação. Assim, não poderíamos tratar do luto
sem situar a morte, social e culturalmente, bem como sem refletir sobre o modelo médico e
axial que aprisiona o luto e que tem suas bases ideológicas tão eficazmente aderidas à
sociedade que já formam parte de nossa forma de perceber o homem e o mundo.

Para Sartre (1960/1966), a busca da compreensão das estruturas sociais, históricas e


ideológicas não basta, pois seria “dissolver os homens num banho de ácido sulfúrico” (p. 41),
desconsiderar a biografia de cada existente e tomá-lo a partir do todo. O existencialismo
sartreano não aceita a desconsideração da experiência individual e se funda sobre o conceito
de liberdade, sobre o fato de que o homem é livre para reagir, a partir de seu projeto, ao
mundo:

precisamente para a realidade humana existir é sempre assumir seu ser, isto
é, ser responsável por ele em vez de recebê-lo de fora como uma pedra. E,
como a “realidade humana” é por essência sua própria possibilidade, esse
existente pode “escolher-se” ele próprio em seu ser, pode ganhar-se, pode
perder-se. Essa assunção de si que caracteriza a realidade humana implica
uma compreensão da realidade humana por ela mesma, por obscura que
seja essa compreensão (Sartre, 1939/2006, p. 22-23).
Assim, o pesquisador não pode incorrer no risco de violar a experiência vivida, negligenciar
os pormenores constrangedores e simplificar grosseiramente os dados em prol de sua teoria
(Sartre, 1960/1966). Acreditamos que assim o faz o modelo médico quando reduz toda
25

particularidade da experiência humana a sintomas e a eixos do DSM. Descontextualizar as


reações humanas, transformando-as em patologia, é uma das formas mais sub-reptícias e
agressivas de má-fé, é tirar do homem a noção de que ele se faz em situação. Eis como Sartre
se referia a este método:

não mais se trata de estudar os fatos dentro da perspectiva geral do


marxismo, para enriquecer o conhecimento e iluminar a ação: a análise
consiste em unicamente se desembaraçar dos pormenores, em forçar a
significação de certos acontecimentos, em desnaturar fatos ou mesmo em
inventá-los para reencontrar, por baixo deles, como sua substância, noções
sintéticas, imutáveis, fetichizadas... procurar o todo através das partes
tornou-se essa prática terrorista: liquidar a particularidade (1960/1966, p.
27).
Cada vez mais afastadas da experiência e da cultura, as definições do DSM não incluem
fatores pessoais e contextuais. Compreendido apenas como um manual, é compreensível e
esperado que o DSM seja simplificado, mas não que deva empobrecer a prática clínica. Um
manual deve ser considerado apenas uma “pequena parte de uma avaliação mais global que
exaustivamente dá conta dos aspectos mais complicados e individuais de cada paciente”
(Rapley, Moncrieff & Dillon, 2011, p. 25).

A pesquisa teórica, de modo isolado, é a exclusão do vivido, uma ideia platônica do


que é o luto, ainda que pudesse contextualizá-lo histórica e culturalmente. Nas palavras de
Sartre (1960/1966), o vivido cai do lado do irracional, do inutilizável, sendo considerado um
não-significante. Na empresa de resgatar não apenas o homem histórico (concreto absoluto),
mas o homem livre, utilizamos a descrição fenomenológica, pois

(...) é fundamental para a efetivação do método. Partindo da premissa de


que ser e aparecer são a mesma coisa, a descrição tem por finalidade trazer
à tona a situação do ponto de vista do sujeito que a retrata,
contextualizando-a na existência do mesmo com toda sua significação e
vivência. Resulta num exercício de ‘olhar com o olhar do outro’, o que, ao
mesmo tempo, esclarece para o sujeito e para o pesquisador o fenômeno
vivido (Schneider, 2008, p. 460).
Por meio do discurso do sujeito, de suas declarações pessoais a partir da grade de
instrumentos coletivos, podemos “descobrir sua significação subjetiva (isto é, para quem a
exprime) e sua intencionalidade para compreender-lhe, a seguir, os desvios e passar enfim à
sua realização objetiva” (Sartre, 1960/1966, p. 96). Assim, a compreensão do fenômeno do
luto na contemporaneidade não pode se dar apenas por meio de um estudo teórico, mas deve
entrever a significação individual dos elementos do mundo. Desta forma, a presente pesquisa
26

se produziu no vaivém (progressivo-regressivo) da história singular e da determinação geral


das condições de vida do sujeito, o que nos permitirá reconstituir progressivamente sua
existência material e alcançar a “lógica da liberdade” (Sartre, 1960/2004, p.69) do seu luto.
Não na tentativa de fazer uma integração açodada entre indivíduo e época, mas no sentido de
mantê-las separadas “até que o envolvimento recíproco se faça por si mesmo e ponha um
termo provisório à pesquisa” (Sartre, 1960/1966, p. 110).

O processo de escuta do indivíduo enlutado não pode ocorrer sem cuidados éticos
básicos, tendo tal preocupação norteado todo o desenho da pesquisa, cuidando dos princípios
da autonomia, não maleficência, justiça, fidelidade e veracidade. Especial atenção foi
investida na evitação de conflitos de interesse e na preservação da liberdade de escolha da
participante da pesquisa. O consentimento livre e esclarecido forma parte deste processo,
garantindo, dentre outros direitos, o de interromper a participação, a qualquer momento, e o
de ser acompanhado após o término da pesquisa. Dados não essenciais à análise foram
alterados para evitar identificação.

Numa aproximação com o método biográfico sartreano, ou seja, a compreensão, em


profundidade, do modo como um sujeito se posiciona frente ao mundo, optamos por abordar
um caso clínico único. Ainda que o estudo de múltiplos casos pudesse proporcionar uma
visão mais ampla das manifestações de luto, perderia em profundidade e complexidade. A
escolha do caso se deveu a múltiplos fatores, que buscam minimizar os efeitos negativos para
a ex-paciente e apresentar uma análise fenomenológico-existencial das questões teóricas
discutidas:

a) ex-paciente da pesquisadora (há uma relação de confiança e acesso);

b) não se encontra mais em acompanhamento psicológico pela pesquisadora (não há


conflito de interesses);

c) a ex-paciente foi acompanhada por psiquiatra, recebeu diagnóstico de “luto


patológico” e fez uso de medicação psiquiátrica e;

d) trata-se de caso ilustrativo da variedade de manifestações de luto e suas relações


com a história/cultura.

De forma simplificada, o primeiro contato com a ex-paciente para participar da


pesquisa se deu por telefone, ocasião em que marcamos um encontro. Ocasião em que a
27

pesquisa lhe foi apresentada em termos mais minuciosos e o termo de consentimento livre e
esclarecido foi lido e assinado. Nele, a paciente aceitou que usássemos os dados provenientes
de seus atendimentos pregressos, bem como os dados de suas redes sociais. Marcamos, ainda,
dois encontros presenciais, que tiveram como pergunta disparadora: “Como foi perder seu
pai?”. Por meio de uma pergunta disparadora ampla, buscamos não conduzir Filomena, mas
permitir que se expressasse, agora de modo pregresso, da forma mais livre possível, sobre sua
experiência em relação à morte do pai. Assim, o entendimento do luto de Filomena, de forma
singular, lança luz sobre a compreensão dialética do enlutamento na contemporaneidade.

Agora, vejamos, quais as condições de possibilidade, oferecidas ao indivíduo, pela


história, pela cultura, pelo mercado e pela ciência.
28

4. CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE: A MORTE E O LUTO NUMA


PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL

Não era a Verdade, era a sua morte que


lhe falava através de minha boca. Nada
há de espantoso, pois, se a insípida
ventura de meus primeiros anos
apresentou por vezes um sabor fúnebre:
eu devia minha liberdade a um óbito
oportuno. Mas como: todas as pítias são
mortes, não há quem não saiba disso;
todas as crianças são espelhos da
morte.
(Sartre, 1964/1993, p. 23)

Na tentativa de compreender um fenômeno, o fato de estarmos imersos numa


determinada sociedade e num dado tempo histórico gera o risco da naturalização de nossa
forma de lidar com o mundo (Heywood, 2004). Perguntas enganosamente simples trazem, em
seu bojo, a construção sócio-histórica e o processo de apropriação humana e individual de
conceitos previamente engendrados. Como reagimos diante da morte de um ente querido?
Contrariamente aos que buscam uma causalidade linear entre o luto e o funcionamento
cerebral4, julgamos de suma importância datar a perda, circunscrevê-la no tempo e na
cultura. É sabido, principalmente a partir da obra de Ariès (1975/2003), que a visão sobre a
morte mudou ao longo da história. Vivemos, atualmente, o período que ele denominou
“morte invertida” (p. 227). A morte, antes tão presente e familiar, tornou-se suja e
vergonhosa, tendo seu lugar transferido para o ambiente asséptico do hospital e, daí, para as
empresas funerárias, que, conforme o modelo americano, dispõe de um crescente catálogo de
serviços. A diversidade cultural no tocante à concepção de morte e de luto se materializa nos
ritos fúnebres próprios de cada sociedade (e de sua variação em uma mesma sociedade),
como trataremos adiante. Não considerar o contexto histórico-cultural da morte quando

4 Numa tradição iniciada por Charles Darwin (The Expression of the Emotions in Man and Animals, de 1872)
até os mais recentes estudos com neuroimagem funcional: O’Connor, M.-F. (2012). Immunological and
neuroimaging biomarkers of complicated grief. Dialogues in Clinical Neuroscience, 14(2), 141–148.
29

buscamos nos aproximar da experiência do luto é, para afirmar o mínimo, uma violência
antropológica e psicológica: é uma tentativa de encaixar todas as experiências de luto ao
redor do mundo no padrão anglo-saxão, de onde parte a esmagadora maioria das pesquisas na
área. A partir das pesquisas sobre os ritos mortuários, pode-se facilmente constatar a tentativa
de encontrar comunalidades nas diversas culturas em relação à morte, na forma da busca por
fenômenos pretensamente universais (Rosenblatt, 1993).
Num estudo com 78 culturas, o psicólogo americano (professor emérito da
Universidade de Minnesota) e sua equipe, Rosenblatt, Walsh e Jackson (1976) investigaram
como os indivíduos encaravam a morte, o pesar e o luto, buscando padrões universais entre as
diversas culturas. Em publicação posterior, Rosenblatt (1993) comentou sobre seu viés inicial
de tentar encontrar representações que fossem universais, ou seja, semelhantes em todas as
culturas. Refutando sua própria hipótese, mostrou-se mais cauteloso, argumentando que é
preciso identificar como cada sociedade entende a morte, a futura possibilidade de reunião
com o morto, o significado de várias emoções expressas após a morte, as coisas a serem ditas
a si mesmo e aos outros e as crenças acerca da morte. Em suas considerações finais, ele
defendeu que os rituais definem o luto do enlutado, ao tempo que seu comportamento
também oferece sinais não-verbais, dando parâmetros de emoção, controle emocional,
significado da morte e de “etiqueta fúnebre”. Tais ritos e suas interações dizem respeito a
todos os valores, as estruturas e as perspectivas da sociedade. Eles não tratam apenas da
morte, mas das relações de gênero, do lugar do trabalho na vida dos indivíduos, da força
política, do status social, da ordem social, do significado das coisas, das maneiras apropriadas
de comer e de vestir e de inumeráveis outros aspectos. Toda esta argumentação, para Sartre
(1960/2004), é evidente, para quem o ponto inicial de qualquer investigação dialética parte da
compreensão do concreto absoluto do homem, de suas condições de possibilidade, de sua
realidade objetiva e da materialidade: “ademais, precisamos entender que não há algo como o
homem; há pessoas, definidas por sua sociedade e pelo movimento histórico que as carrega”
(p. 36). Tais condições de possibilidade de uma totalização se traduzem, basicamente, na
história e na cultura. Foi no intuito de situar o homem e seu luto num tempo histórico e numa
dada cultura, evitando o etnocentrismo e o psicologismo, que este capítulo foi pensado.

4.1.MORTE, LUTO E HISTÓRIA


30

O historiador e antropólogo francês Ariès (1975/2003) empreendeu a tentativa de


situar historicamente o conceito de morte no Ocidente, nos dois volumes de sua obra O
Homem Diante da Morte, nos quais ele apontou, ao longo dos séculos, quatro períodos: a
morte domada (séc. V ao XVII), a morte aparente (séculos XVII a XVIII), a morte do outro
(século XIX) e a morte interdita (século XX até os dias atuais). Faz-se necessário ressaltar
que tais períodos não devem ser tomados como estanques ou sucessivos, pois eles se
interpenetram e coexistem, mesmo na contemporaneidade.

A Morte Domada

Ariès (1975/2003) denominou a concepção de morte, entre os séculos V e XVII, de


“domada” porque o homem mantinha uma atitude de resignação diante da sua finitude, o que
impedia que a morte se apoderasse de sua vida. A morte, nesta época, era precedida por sinais
que os próprios moribundos sentiam. Não que fossem dotados de clarividência, mas todos
sabiam que iam morrer. O aviso era dado por signos naturais ou, ainda com maior frequência,
por uma “convicção íntima”, mais do que uma premonição sobrenatural ou mágica: o
reconhecimento espontâneo. Não havia meio de blefar ou de fazer de conta que nada ocorria.
Eles eram observadores dos signos e, antes de tudo, de si mesmos. Não tinham pressa em
morrer, mas quando viam chegar a sua hora, sem precipitação nem atraso, morriam como
deviam morrer os cristãos. Diante de tal clareza, o homem agonizante reunia a família e os
amigos ao redor do seu leito e, desta forma, iniciavam os ritos pré-fúnebres. Primeiramente,
ele fazia um lamento das coisas e dos seres amados que seriam perdidos, isto é, lamentava a
vida que perderia em breve. Depois, o moribundo recebia o perdão dos amigos e familiares,
despedia-se deles e os encomendava a Deus. Em seguida, recebia a absolvição sacramental
do sacerdote (“extrema unção”) e partia. Nesta época, os corpos ainda eram enterrados dentro
das igrejas (“campo santo”). Toda a cerimônia era pública, simples e familiar. Havia, no
entanto, um tipo de morte temido e vergonhoso a que Ariès denominou de mors repentina
(morte repentina). As pessoas desejavam uma morte lenta e avisada, para que todos os rituais
de adeus e de perdão pudessem ser concretizados. Quando a morte repentina acontecia, ela
era vergonhosa, pois significava castigo ou maldição para os descendentes daquela família.
Percebemos uma atitude de resignação ao inevitável, traduzida numa relação de naturalidade,
familiaridade e publicidade diante da perda, característica deste período. Assim:

1) A morte era “pré-sentida” e esperada no leito;


31

2) A morte era uma cerimônia pública e organizada pelo próprio moribundo, que a
presidia e conhecia seu protocolo;
3) Como cerimônia pública, entrava-se no quarto, livremente, inclusive as crianças;
4) Os ritos de morte eram aceitos e cumpridos com simplicidade, de modo cerimonial,
mas sem caráter dramático ou gestos de emoção excessivos;
5) Os enterros eram realizados dentro das igrejas;
6) Os ritos se centravam na salvação da alma (numa perspectiva cristã).

A Morte de Si Mesmo

Este período, do século XVII ao XVIII, de mudança de concepção da morte, foi


fortemente influenciado pelos casos de catalepsia (rigidez tônica), que foram relatados em
toda a Europa, durante a Idade Média. A população europeia estava apavorada diante da ideia
de ser enterrada viva, como se nota por meio dos ilustrativos testamentos, nos quais se
encontravam pedidos para que o cortejo fúnebre só fosse iniciado quando o corpo desse sinais
de decomposição ou para que, antes de ser enterrados, golpes de lanceta fossem aplicados na
sola dos pés. O medo de ser enterrado vivo levou a sociedade a, também, estender os
velórios. Outros fenômenos, sempre relativos à preocupação com a emergência da
individualidade, são ilustrativos deste período, tais como: a representação do juízo final no
quarto do moribundo, o interesse dedicado à decomposição física e um começo de
personalização das sepulturas:

a) O juízo final: antes, acontecia no final dos tempos, e não havia lugar para a
responsabilidade individual e para um cômputo das boas e das más ações. Então, a cena se
transformou: haveria uma avaliação das almas pelo arcanjo São Miguel. A ideia do juízo final
permaneceu sendo representada por uma corte de justiça. O Cristo sentado no trono como
juiz, rodeado por sua corte (os apóstolos). Surgiu, então, a ideia de um livro de contas
individual;
b) O cadáver decomposto: surgiu não somente o horror à decomposição do corpo após a
morte, estendido, também, à decomposição em vida, representada pela doença e pela velhice.
A morte tornou-se o lugar em que o homem tomou consciência de si mesmo;
c) As sepulturas: deu-se a individualização das sepulturas, significando o desejo de
conservar a identidade do túmulo e a memória do desaparecido;
32

d) Permaneceu, aqui, a salvação da alma como foco central, ainda que de uma forma
mais individualizada.

A Morte do Outro

A partir do século XVIII, o homem das sociedades ocidentais tendeu a dar à morte um
sentido novo. Exaltava-a, dramatizava-a e desejava-a, impressionante e arrebatadora. Mas, ao
mesmo tempo, já se ocupava menos de sua própria morte, e, assim, a morte romântica,
retórica, era, antes de tudo, a morte do outro. Como o ato sexual, a morte tornou-se, a partir
de então, cada vez mais considerada uma transgressão que arrebata o homem de sua vida
quotidiana, de sua sociedade racional e de seu trabalho monótono, para lançá-lo em um
mundo irracional, violento e cruel. Consequentemente, a expressão de dor dos sobreviventes
era devida a uma intolerância nova diante da separação. A simples ideia da morte comovia.
Chorava-se, desmaiava-se, desfalecia-se e jejuava-se. Confiando nos que lhe eram próximos,
o moribundo delegava-lhes parte dos poderes que havia, ciosamente, exercido, até então, por
meio dos testamentos amplos.

O acúmulo de corpos nas igrejas (também considerado um problema de saúde pública,


devido às emanações pestilentas e aos odores fétidos) tornou-se intolerável. A exposição dos
corpos corrompia a dignidade dos mortos e parte da sociedade se voltou contra a Igreja, por
ter feito tudo pela alma e nada pelo corpo. Diante da proposta de visitar o morto, era preciso
que ele tivesse uma morada própria, de propriedade da família. Em suma, de acordo com
Ariès (1975/2003):

a) As emoções, arrebatadoramente expressas, começaram a ter lugar diante da morte;


b) O testamento cedeu à família as decisões em torno da morte, das exéquias e da
divisão de bens;
c) Preocupações com o estado do cadáver tiveram florescimento (não apenas
importando a salvação da alma, mas a “dignidade” do corpo e a saúde dos vivos);
d) A criação de jazigos de família, fora dos cemitérios, entendidos como “última
morada”, passou a ser, cada vez mais, comum;
e) O medo da morte do outro obscureceu as preocupações com a própria morte.
A Morte Interdita
33

No século XX, observamos um fenômeno inaudito. A morte, tão presente no passado


e tão familiar, vai se apaga e, quase, desaparece. Tornou-se vergonhosa e objeto de
interdição. Sem dúvida, encontramos, no cerne desta mudança, um sentimento já presente no
século XIX: aqueles que cercavam o moribundo tendiam a poupá-lo e a ocultar-lhe a
gravidade de seu estado. A verdade começou a ser problemática.

Entre 1930 e 1950, a evolução se precipitou. Esta aceleração deveu-se a um fenômeno


material importante: o deslocamento do lugar da morte. Já não se morre em casa, em meio
aos seus, mas no hospital, sozinho. Morre-se no hospital porque ele se tornou o local no qual
se prestam os cuidados que já não se podem prestar em casa. Antigamente, era o asilo dos
miseráveis e dos peregrinos; então, tornou-se um centro médico, em que se cura e se luta
contra a morte. Continuou tendo função curativa, mas começou-se, também, a considerá-lo
um lugar privilegiado para a morte. Morre-se no hospital porque os médicos não conseguiram
curar. Vamos ao hospital não mais para sermos curados, mas, mais precisamente, para
morrer.

A morte no hospital não é mais ocasião de uma cerimônia ritualística, presidida pelo
indivíduo à morte, em meio à assembleia de seus parentes e amigos. A morte é um fenômeno
técnico, causado pela parada dos cuidados, ou, de maneira mais declarada, por decisão do
médico e da equipe hospitalar. Em muitos casos, há muito, o moribundo já perdeu a
consciência. A morte foi dividida, parcelada em etapas, dentre as quais, definitivamente, não
se sabe qual seria a verdadeira morte, aquela em que se perdeu a consciência ou em que
cessou a respiração. O momento exato da morte, constante no atestado de óbito (preenchido e
atestado, exclusivamente, pelo médico) é uma convenção. Até mesmo a pesquisa científica é
controversa no que tange à definição do momento da morte (Haque, Shamim, Siddiqui, Irfan
& Khan, 2013). Há protocolos variados para situações variadas. Se o paciente é idoso e a
família é “tranquila”, assina-se um termo autorizando a não reanimação do paciente e a
descontinuação dos meios artificiais de manutenção da vida (“desligamento dos aparelhos”):
o coração parou de bater, cessou a respiração, morreu, ateste-se. Caso se trate de uma criança,
cuja mãe luta, com todas as forças, para mantê-la viva, a equipe médica lançará mão de todas
as máquinas, testes, drogas e protocolos. Uma vez a batalha perdida (porque é disso que se
trata, uma guerra contra a morte), o maquinário mantém a criança respirando e seus órgãos
funcionando e, apenas após a realização de três (às vezes, quatro) eletroencefalogramas
(EEG), com intervalo de 8 horas entre si, que não atestem qualquer (nenhuma mesmo)
atividade cerebral, a família é consultada sobre o desligamento dos aparelhos. Apenas assim,
34

pode-se esperar a vida seguir seu curso e a morte ser atestada. A partir deste momento, a
família pode ser consultada sobre a possibilidade da doação de órgãos (Verheijde, Rady &
McGregor, 2009).

Recentemente, atendi um casal que perdeu o filho único, de um ano e nove meses.
Um câncer cerebral avançou rapidamente e matou a criança, dois meses após o diagnóstico.
A questão principal que os trouxe à psicoterapia foi a dificuldade de marcar a missa de um
ano de falecimento da criança. O pai queria seguir a data do atestado de óbito (digamos, dia
12), mas a mãe sentiu que seu filho morrera dois dias antes (dia 10), quando ficou
inconsciente. A avó materna achava que deviam considerar o dia anterior ao do atestado de
óbito, quando o primeiro EEG foi realizado e não havia mais atividade cerebral (dia 11).
Questões individuais, familiares, religiosas e culturais entraram em cena. Toda a realidade do
nosso tempo e da nossa sociedade, em relação à morte, se encerrava nestas questões: quando
morreu esta criança? O que e quem o define? Por que buscaram a mim, uma profissional de
saúde mental? A família entregou seu filho único, morrendo, aos médicos; seu corpo, à
funerária; e seu luto, a mim. Diante da morte, desprovida, desnorteada, confusa e em
sofrimento, entregou-se à técnica, à ciência e aos profissionais.

Nas regiões da morte nova e moderna, procura-se reduzir, ao mínimo “decente”, as


operações destinadas a fazer desaparecer o corpo. Antes de tudo, é importante que a
sociedade, a vizinhança, os amigos, os colegas e as crianças se apercebam, o mínimo
possível, que a morte ocorreu. Se algumas formalidades são mantidas e se uma cerimônia
ainda marca a partida, devem permanecer discretas e evitar todo pretexto para uma emoção
qualquer: assim, as condolências à família são, agora, suprimidas no final dos serviços do
enterro. As manifestações aparentes de luto são condenadas e, quase, desapareceram. Não se
usam mais roupas escuras e não se assume mais uma aparência diferente da dos outros dias.

Uma causalidade imediata aparece prontamente: a necessidade da felicidade, o dever


moral e a obrigação social de contribuir para a felicidade coletiva, evitando toda causa de
tristeza e mantendo um ar de estar sempre feliz, mesmo estando nas profundezas do pesar.
Demonstrando algum sinal de tristeza, peca-se contra a felicidade, que é posta em questão, e
a sociedade arrisca-se a perder sua razão de ser.

Sobre a relação com a morte, no Brasil, DaMatta (1984/2011) pontua que falar dos
mortos é negar a própria morte, pois, na sociedade brasileira, o morto continua existindo,
voltando, sistematicamente, para pedir ajuda e dar lições de humildade cristã; enfim,
35

permanece em lugar privilegiado, em sua comunidade e família: “no Brasil, a morte mata,
mas os mortos não morrem” (p. 71). Esta relação de proximidade com o mundo dos mortos
também se alterou, em nosso país, tendo em vista o processo de medicalização e de
secularização.

Assim como observamos o movimento de medicalização (institucionalização) da


morte, também percebemos tal processo em relação às manifestações de luto. Como
trataremos adiante, certo tipo de pesar não é apenas vergonhoso, ou sinal de fraqueza: é
doença; como tal, torna-se objeto dos especialistas e deve ser prevenido, diagnosticado e
tratado. A morte é pornográfica (Gorer, 1955). O luto não é apenas mórbido: é comórbido.

4.2. MORTE, LUTO E CULTURA

Não em tempos imemoriais, mas, hoje, no Brasil, os wari’5 comem seus mortos
(Vilaça, 1998). Um complexo ritual oferece aos indivíduos um papel determinado. Quando
alguém cai doente, juntam-se os mais próximos, num canto fúnebre. A partir do momento da
morte, que ocorre por meio da constatação rudimentar da cessação dos batimentos cardíacos e
da respiração, a família é convocada, estando, muitas vezes, em tribos vizinhas. O tempo
necessário para a chegada dos familiares permite ao cadáver entrar em putrefação (em geral,
três dias) e, apenas depois de podre, é lavado, esquartejado e colocado sobre o moquém
(grelha feita de paus para assar carne). A cabeça vai, primeiro, ao moquém e, das vísceras,
são comidos o coração e o fígado, assados em embrulhos de folha. Os genitais e outros
órgãos são atirados, diretamente, ao fogo. Apenas os não-parentes podem esquartejar e assar
o cadáver. Os não-parentes, também, são os que comem a carne, mas não convém que o
façam com muita avidez, pois pode ser considerado ofensivo para a família. Em geral, os
miolos são reservados às crianças. Os ossos são queimados junto com o que sobrou de carne,
e as cinzas, misturadas em mel, que deve ser consumido aos poucos. Ao término desta fase,
acontece o “varrer”, realizado por parentes, quando todos os vestígios da cerimônia são
removidos, assim como os pertences do falecido. Tudo é, novamente, queimado. Segue-se o
período de luto, variando de alguns meses a um ou mais anos, dependendo do grau de

5 Povo indígena, falante da língua da família txapakura. Vivem no oeste de Rondônia e somam
cerca de 1800 pessoas.
36

parentesco com o defunto. Diferentes grupos de parentes realizam o ritual que marca o fim do
luto, em momentos distintos. O rito que sinaliza o fim do período de luto é feito com uma
caça (em geral, um macaco), dentro de um cesto, tratada como o falecido, mas que, ao final, é
assada e comida, também, pelos parentes. Este intrincado ritual trata de passar o indivíduo a
um status de coisa (a caça) e assimilá-lo. Ainda sobre o canibalismo, Rodrigues (1983)
descreve:

os Dayak, de Bornéu, promovem a comunhão com os mortos


misturando com arroz os líquidos que provêm da decomposição do
cadáver, fazendo com que os parentes próximos se alimentem desse
prato, obrigatoriamente durante todo o período fúnebre. Os Surara e
os Pakidaf moem os ossos e os misturam a uma bebida festiva,
cerveja ou sopa de bananas. No Paraguai, os Guayaki misturam o pó
dos ossos a um guisado de palmitos; os Sanemayanoama, da
Venezuela, misturam o pó dos ossos com sopas. Entre os Tupinambá,
as mulheres consumiam os órgãos geniais, os adolescentes o cérebro e
a língua e os convidados as pontas dos dedos e a gordura do fígado.
Os Arunta do Sul, na Austrála, abriam o cadáver e consumiam a
gordura dos rins para adquirir a força e a coragem necessárias para
vingar o morto, enquanto os Dieri reservavam essa gordura aos
parentes maternos. Os Narrinyeri comiam a carne dos mortos por
“acidente” e enterravam as vísceras. Entre os Marind-Anim, os
líquidos produzidos pelo cadáver eram consumidos pelos indivíduos
que quisessem se tornar feiticeiros (p. 59).

Como, diante de tais fenômenos, podemos biologizar, naturalizar e universalizar o processo


de luto? Uma vez que formos capazes de compreender a importância da história na formação
da concepção de morte numa sociedade, não temos dúvidas de assinalar que é por meio da
cultura que as ideologias em relação à morte e ao luto se constituem como um campo de
possíveis. Numa ótica sartreana, os símbolos e as significações de cada cultura emolduram o
projeto-de-ser de cada homem. Nem mesmo as emoções, enquanto fenômenos humanos,
podem ser encerradas em si mesmas como fatos. Nossa liberdade (nossas escolhas) se destaca
sobre um fundo, que é a materialidade. Deste modo, observemos como, no mesmo tempo
histórico, duas culturas podem produzir representações tão discrepantes acerca da morte e do
luto.

O Estado do Ceará dista cerca de 2.800 quilômetros de Rondônia, terra dos wari’.
Em nossa capital, Fortaleza, a ideia de assar e comer entes queridos falecidos é absolutamente
horripilante, comportamento associado a tramas de terror e de serial killers. Que este ponto
fique claro: não se pode falar do luto no Brasil. Sendo um país multicultural e de dimensões
37

continentais, testemunhamos, no mesmo tempo histórico, variadas manifestações culturais


relativas à morte e ao luto.

No ano de 2005, como parte de outro estudo (Carneiro, 2006), participamos de um


“funeral de anjinho6”, na cidade de Boa Viagem, no sertão central do Ceará. A casa podia ser
avistada de longe, pois, na porta, havia um letreiro luminoso (fornecido pela funerária), com
os dizeres: “FAMÍLIA EM LUTO”. Homens bebiam cachaça, do lado de fora. As pessoas
entravam e saíam, livremente: parentes, desconhecidos, crianças correndo, mulheres
chorando e curiosos. Havia conversa, expressões ternas e choro alto. A criança morta, pálida
e com olheiras profundas, apesar de ter morrido no hospital da cidade, jazia, na própria cama,
banhada e vestida pela mãe e por outras mulheres da família. Ali, se servia chá, café, bolo de
milho, broa, tapioca e caldo de carne. Muito ouvi “Deus dá, Deus tira”. Pela manhã, os pais
colocaram a criança num pequeno caixão azul celeste, ornamentado pela funerária, com
margaridas brancas. O cortejo seguiu pelas ruas da cidade até o cemitério. Pelo caminho,
mais pessoas iam se juntando. Entoavam cânticos da igreja católica e foi o padre quem
presidiu o curto enterro. Ao final, algumas mulheres voltaram à casa dos pais da criança para
ajudá-los nas tarefas domésticas dos dias seguintes. Em pleno século XXI, pudemos observar
marcas de todos os períodos históricos citados por Ariès (1975/2003) e, claro, com toque
nordestino. Como na “morte domada”, tratava-se de uma cerimônia familiar, pública,
acessível à comunidade e às crianças. Do período da “morte de si mesmo”, destacamos a
preocupação com a salvação da alma e a individualização das sepulturas. Da “morte do
outro” e do romantismo, observamos o cuidado com o corpo morto: ali, a própria família
realizou a toalete funerária. Do período contemporâneo da “morte interdita”, houve a
terceirização (ainda que parcial) da morte, com as firulas da empresa funerária e a morte no
hospital, tudo isto regado a comidas típicas do Nordeste do Brasil e o costume particular de
“beber o morto” com cachaça. No entanto, ao presenciar outro enterro, na mesma cidade, dez
anos depois (2015), ficou nítido o processo de mercantilização da morte, com a multiplicação
das empresas funerárias, a venda de planos funerários junto com assistência médica e a
pompa com que a cerimônia foi conduzida: não uma pompa ritualística, mas mercantil.

Vailati (2012) descreveu, também, um “funeral de anjinho” no Brasil, mas ocorrido


em 1840, tomando como fonte a literatura de viagem. A partir de 1816, os caixões já se

6 Chama-se “anjinho” à criança que morre, inocente, sem pecado, que não passou da primeira
infância.
38

apresentavam como obras-primas de marcenaria, se transformando em “monstruosidades”,


com dourados e prateados excessivos e grosseiras imitações de mármore, sob a influência
barroca. O interior dos esquifes era revestido de cetim rosa, azul ou carmim. Com pompa real
e grande dispêndio de dinheiro, as crianças mortas eram vestidas de frades, freiras, santos ou
anjos. A maquiagem tratava de dar aspecto vivo: bochechas e lábios rosados e grandes
quantidades de pó, no rosto e nos cabelos. Assim, concluímos que outro aspecto
extremamente importante na análise dos ritos fúnebres, além do contexto histórico-cultural, é
a consideração da classe sócio-econômica a que pertence (ou pretende pertencer) a família do
falecido.

4.3. O LUCRO DO LUTO

Segundo a Associação Brasileira de Empresas e Diretores Funerários (ABREDIF),


com sede na Avenida Paulista, em São Paulo, o mercado funerário movimenta, no país, cerca
de R$ 2 bilhões por ano. A ABREDIF contabiliza 5.500 empresas brasileiras, com 98% delas
pertencentes à iniciativa privada. A associação credita o crescimento de 15% no volume de
negócios nos últimos 10 anos, não ao aumento do número de mortes (que tem caído com o
aumento da expectativa de vida do brasileiro), mas à “criatividade” do setor: “a moderna
empresa funerária faz funerais, portanto consome urnas, véus, velas, etc., mas atende o
usuário em vida, oferecendo planos de saúde, seguro de vida, empréstimo de material de
convalescença, produtos e materiais medicinais” (SEFEC, s.d.). Em Fortaleza, o mercado
funerário está em franca expansão, tendo sido fundado, em 2004, o Sindicato das Empresas
Funerárias do Estado do Ceará (SEFEC), à época, contabilizando 200 empresas, no Estado, e
60, na capital. Em seu histórico, a SEFEC justifica sua criação:

procurando-se um método menos desgastantes para todos e


principalmente preservar o cliente, que já estava sendo bastante em
decorrência dos muitos agravos oriundos da disputa destes na prática
dos serviços e sobre tudo da venda onde se refletia e em maior
evidência a disputa acirrada, agora embora de maneira ainda um
pouco tímida estava começando uma nova cultura, claro que não que
era o ideal porém notava-se a necessidade de fortalecimento da classe
e a maioria concluir que era necessário haver esse união e alguns
teriam que revelar e outros com certeza teriam que portar-se de
maneira mais humilde para assim no futuro todos colherem bons
resultados, é claro que em todos os campos sempre haverá oposição e
não diferente em ser tratado do setor que agora estamos falando,
mudanças geralmente vem acompanhada de resistência e até hoje
alguns resistem em manter-se no passado vez por outra ressuscitando
39

práticas antigas causando embaraço aos demais companheiros do


ramo, como tenho dito não é salutar citar nomes pois este é o trabalho
independente que não visa outras coisas senão trazer benefícios ao
nosso setor (s.d., para. 1).

De fato, a criatividade do setor justifica sua lucratividade. O rito se transformou em


cerimônia, certamente com a presença de um cerimonialista contratado. Thomas (1993/1996)
chamava a atenção para o fato de que o termo “cerimonial” tem, como conotação, um aspecto
protocolar exterior, vazio de significação ou muito distanciado dela. Na mais cara funerária
de Fortaleza, estão disponíveis urnas, velas e flores, mas, também:

 Cerimonialista;
 Violonista, coral e músicos;
 Fotógrafo, com fotos reveladas em álbuns ou em formato digital;
 Cinegrafista;
 Revoada de balões;
 Chuva de pétalas de rosas, atiradas de helicóptero;
 Efeitos especiais (luzes, fumaça de gelo seco e equipamento de som); e, ainda,
 “Velório online”, por meio do qual a cerimônia é transmitida, em tempo real,
pela “internet”, para todo o mundo.

Figura 1 – Site de Empresa Funerária em Fortaleza, com destaque para o Velório Virtual

A preparação do corpo, antes realizada por membros das famílias, é, agora, dominada pela
técnica e pela estética. A tanatopraxia é realizada em clínicas especializadas, nas quais a
40

entrada da família é proibida (authorized personel only). O procedimento consiste em lavar e


desinfetar o corpo e substituir o sangue por um fluído de conservação (à base de formol),
usando uma bomba de injeção. Saem, em média, 6 litros de sangue, e a mesma quantidade de
produto é injetada. Este processo dura duas horas, em caso de morte natural, podendo chegar
a quatro horas, nos casos de acidente, e promete retardar a decomposição do corpo e evitar
contaminações e vazamentos de líquidos e gases durante o velório. Somente após esta fase,
ocorrem os procedimentos estéticos: fechamento da boca, cabelo, maquiagem e unhas. Para
se tornar um bom tanatopraxista, o profissional precisa ter curso de tanatopraxia, maquiagem
e reconstrução facial. Em Fortaleza, a maior clínica de tanatopraxia recebe cerca de 300
corpos por mês e mantém 12 funcionários. O procedimento custa entre R$600,00 e
R$1.400,00. O que se percebe é que não se trata apenas de apagar os sinais da morte, fazendo
com que o cadáver pareça vivo, mas que ele esteja mais belo do que jamais foi.
41

Figura 2 – propaganda de curso de “reconstituição facial” no site da ABREDIF.

Em algumas cidades americanas, já se observam os velórios drive thru. A empresa


Adams Funeral Homes, fundada em 1947 e sediada em Chicago, foi pioneira no serviço,
quando, na década de 1980, “percebeu” o quanto era penoso para seus clientes comparecerem
a cerimônias fúnebres. Semelhante aos serviços de fast food, forma-se uma fila de carros que
passam pelo caixão aberto, protegido por uma vitrine. As pessoas podem parar o carro e
descer, mas apenas por alguns minutos. Há opções ainda mais rápidas e práticas: a fila de
carros se depara com uma tela de computador, o enlutado digita suas condolências e vai
embora, sem nenhum contato com o morto. A empresa tem, como público alvo,
prioritariamente, famílias afro-americanas de baixa renda, que não poderiam arcar com os
custos de um velório espetacular. A palavra “express” tem, aqui, o duplo sentido de
“expressar-se” e de fazê-lo “rápido”.
42

Figura 3 – Empresa americana oferece “velório drive thru”. Fonte:


http://blogs.reuters.com/photographers-blog/2012/02/17/drive-thru-funeral-parlor/

Figura 4 – Esposa presta ao marido falecido sua última homenagem. Fonte:


http://blogs.reuters.com/photographers-blog/2012/02/17/drive-thru-funeral-parlor/
43

No entanto, como tratamos anteriormente, para as classes abastadas brasileiras, o


funeral tornou-se um espetáculo de grandes proporções e orçamento. Em um trabalho
magistral sobre a mercantilização da morte, do morrer e do luto, Veras (2015) escreveu:

assim, a competitividade atual cria mais e mais “novidades” no


mercado funerário. Antes a tradição dos costumes dava a sensação de
que sabíamos o que fazer, hoje nos perdemos diante das vitrines de
desejos implantados e, sempre, insatisfeitos. O morto passa a se
chamar cliente primário e seu velório e enterro se passa de maneira
parecida com seus outros rituais como casamento, formatura e parto,
nos quais seus movimentos e sentimentos são encenados, sob a
direção de uma equipe especialista em cada caso. O poder é
concedido à técnica: eles sabem o que fazer, nós, não mais. Somos
dirigidos, temos o direito de escolher sim, mas somente entre as
possibilidades que o mercado nos oferece. Quem sabe apenas depois,
sozinhos, possamos ver o DVD do velório de alguém querido - ou do
casamento, formatura, parto (p.114).
A importância dos ritos fúnebres como uma forma de reorganização psicológica e social é
inegável. Thomas (1993/1996) analisou o papel tranquilizador dos ritos fúnebres, a partir de
três aspectos: 1) Resgate simbólico: são tratados os sentimentos de culpa; 2) Função
comunial: mobilização da comunidade e exaltação da vida; e 3) Esperança: promessa de
sobrevivência sob nova forma. Para Imber-Black (1991/1998), as funções dos rituais de
morte incluem:

 Apontar e ratificar a vida do membro da comunidade que faleceu;


 Facilitar a expressão do sofrimento de forma consistente com os valores da
cultura;
 Representar simbolicamente a vida e a morte;
 Conferir sentido à perda; e
 Possibilitar a continuidade para os vivos.
Com os rituais fúnebres e o luto transformados em produtos e tratados sob a lógica do lucro,
esvaziam-se de suas funções simbólicas e jogam os indivíduos num vazio de significação.
Trata-se do luto individualizado (deste fato, derivando, também, as expressões “trabalho de
luto” e “tarefas do luto”), no qual o enlutado deve, ao tempo em que se esforça para se
encaixar num padrão de consumo e de manutenção de status, dar conta de sua dor de forma
“saudável”.
44

4.4. ESTILO DE VIDA, ESTILO DE MORTE, ESTILO DE LUTO

Morre-se como se vive. Pensar o estilo de vida contemporâneo e seus valores é


essencial para começar a responder a pergunta de Ariès (1975/2003): “como convém morrer
em nossa sociedade?” (p. 291). Como tratamos anteriormente, experimentamos um período
histórico e cultural no qual a morte é um tabu, objeto da técnica, da ciência e do mercado.
Falar, diretamente, sobre a morte é mórbido, pornográfico, a não ser do ponto de vista
científico e do consumo. O lugar inquestionável da morte é o hospital. O paciente e sua
família devem se submeter a regras, explícitas e veladas, de comportamento, neste ambiente
que, absolutamente, não controlam. Geralmente, o médico dirige o drama, no qual a equipe
de saúde, o doente e a família têm papéis bem estabelecidos, tendo como foco não perturbar a
ordem institucional. As regras são, dentre outras: não falar de morte, não questionar, não se
recusar ao tratamento (“adesão”) e não se mostrar deprimido. O moribundo deve estar, no
mínimo, controlado, mas o ideal é que esteja eutímico7 e cooperativo. No ambiente asséptico
do hospital e no vazio ritual, surge um style of dying, um acceptable style of living while
dying, um acceptable style of facing death8. O indivíduo deve morrer de forma a ser menos
agressivo para os vivos (p. 240).

Especialmente, dois pacientes e suas famílias nos ensinaram muito a esse respeito. Em
2004, na UTI pediátrica do Hospital das Clínicas da FMUSP, acompanhamos a morte de
Ângela9, 10 anos, conforme foi descrito em trabalho anterior (Carneiro, 2004). Ângela foi
diagnosticada com um quadro de mal convulsivo (epilepsias de ausência). O uso do
medicamento para controle das convulsões levou a um choque séptico, que ocasionou
falência múltipla de órgãos. Antes de desligar os aparelhos que mantinham Ângela viva, o
médico recorreu ao serviço de psicologia, com a seguinte demanda:

Pedido de consulta. Justificativa: Mãe, 31 anos, com história de


tratamento psiquiátrico (transtorno bipolar), toma medicação
neurolithium 2 pela manhã e 1 à noite, segundo prescrição médica.
Mãe refere sentir-se mal e decide tomar só à noite. Paciente encontra-

7 O termo médico se refere a humor normal (tranquilidade de espírito), mas, em geral, significa
“aquele paciente que não dá trabalho”.

8 “Estilo de morrer”, “estilo aceitável de viver enquanto se morre”, “estilo aceitável de encarar a
morte”.

9 Nome fictício.
45

se muito grave e mãe refere que não se afastará da UTI. Tem se


mostrado agitada, ora triste, ora alegre (p. 55).
A mãe de Ângela nos contou que sua relação com a equipe era ótima, mesmo com a filha já
inconsciente e em cuidados paliativos. Ocorreu que Ângela fazia aniversário: completou 10
anos na UTI. A mãe preparou-lhe uma festa com balões, chapéu de ponta e presente. Cantou,
sozinha, os parabéns para a filha, já desfigurada e à morte. Aquela cena pareceu, à equipe,
muito bizarra, mórbida e deslocada. Foi, então, que o médico insistiu para que a mãe de
Ângela “tomasse, pelo menos, um calmante”. A relação da mãe com a equipe era ótima e ela
depositara, neles, esperança e poder. Contudo, não cumpriu o contrato todo, tumultuou a UTI
e ameaçou a sanidade mental da equipe, embaralhando vida e morte. Seu “castigo”: a
sedação. Os aparelhos foram desligados e a neurologia veio, inúmeras vezes, checar a
atividade cerebral de Ângela, que teimou em não morrer, ainda por uma semana. Um dia
antes da sua morte, conversei com o residente responsável pelo caso dela:

- Hoje, vamos fazer novo EEG e, se der tudo certo, amanhã a gente já
decreta a morte cerebral.

- Se der tudo errado, né?

- (riso) Você entendeu o que eu quis dizer...

Para que tudo desse “certo”, era preciso que a morte de Ângela ocorresse no tempo e do
modo previstos e, para tranquilidade da equipe, a mãe, agora classificada como paciente
psiquiátrica, se comportasse bem na morte da filha, “sem escândalos, nenhuma surpresa”. A
anestesia psíquica, sob a forma de calmantes, é parte importante da etiqueta fúnebre, sendo
um dos primeiros recursos a serem oferecidos a quem acaba de sofrer uma perda, antes
mesmo do lenço. Nos velórios atuais, há sempre uma cartela de tranquilizantes, passando de
mão em mão. Num processo inverso do de compartilhar emoções, compartilha-se uma atitude
meio blasé ou meio “zumbi”, que aliena os sujeitos do seu sofrimento.

O segundo caso a que nos referimos é recente, de setembro de 2015, e aconteceu num
hospital de Fortaleza. De passagem pelos corredores da internação, uma movimentação maior
que o habitual em um dos quartos nos chamou a atenção. A porta estava aberta e vários
membros da equipe hospitalar entravam e saíam, de um por um. Perguntamos de quem era o
quarto e um auxiliar nos respondeu: “ué, a senhora ainda não conhece a D. Eliene10? É uma

10 Nome fictício.
46

lenda nesse hospital”. Não a conhecíamos, pois ninguém havia nos chamado para “avaliá-la”
(o que é comum com “pacientes difíceis”). Descobrimos, depois, que Eliene, de 77 anos,
tinha um câncer terminal e já estava em cuidados paliativos. No prontuário, constava que os
remédios para dor já estavam perdendo o efeito. Antes de entrar no quarto, imaginamos o
horror da dor de um câncer terminal. Seu quarto era iluminado, com portas e janelas abertas.
Havia flores e livros e a TV estava sempre ligada. Encontramo-la, sentada na poltrona. Nada,
nela ou no ambiente, fazia entrever o desfecho que se anunciava, cada vez mais próximo.
Mesmo pela manhã, Eliene estava maquiada, penteada e bem vestida. Notamos que usava
prótese dentária. Ela nos recebeu muito bem-humorada, nos abençoou e perguntou se Sarah
era casada e se tinha filhos. Depois, disse: “a partir de agora, você já está nas minhas
orações”. Elogiou muito nossa aparência e deu dicas de como engravidar mais rápido. Falou
pouco sobre o câncer, pois tinha certeza absoluta que ia ficar boa, já que confiava em Deus e
nos médicos. Nenhum membro da família chorava perto dela, e, também, nunca a vimos
chorar. Manteve-se assim até entrar em coma e morrer, um dia depois. A equipe lamentou
muito a sua partida, comparecendo, em peso, ao seu enterro, ao velório e à missa de 7º dia.
Ouvimos muitas vezes: “a gente entrava lá pra cuidar dela e ela cuidava da gente”, “nunca
ouvi d. Eliene reclamar” e “quero morrer assim, velhinha e feliz”. Eliene soube morrer com
estilo, na idade certa, do jeito certo, pois seguiu o protocolo do acceptable style of dying.

Freire Filho (2010), em suas pesquisas sobre a felicidade como um valor da sociedade
contemporânea e como tecnologia do governo neoliberal, trabalha com o termo homo felix. O
direito à felicidade tornou-se uma máxima e um horizonte a ser buscado, mas nunca
alcançado:

nas culturas ocidentais anteriores, as instituições orientavam a


conduta individual eram a família, a nação, ou a Igreja e o partido;
sua existência proporia aos indivíduos que renunciassem a seus
prazeres e suportassem o sofrimento como renúncia em nome de
algum bem comum. Numa cultura terapêutica, porém, o único “bem
comum” é a felicidade de cada indivíduo; desse modo, as instituições
relevantes são o teatro e o hospital, a busca de excitação e o cuidado
com o sofrimento (p. 136).
Quando a felicidade é um direito inalienável do indivíduo, a morte de um ente querido
apresenta-se como injustiça. A pergunta frequente, diante da morte, passa a ser “por que
comigo?”. A perda, exposta nos noticiários, diariamente, acontece com o outro e,
principalmente, com aquele que não se cuidou, que não seguiu a cartilha do autocuidado (não
fumar, não beber, não usar drogas, fazer consultas e exames de rotina, fazer dieta, exercício
47

físico, dormir bem, não ter estresse, viajar, tomar bastante água e evacuar uma vez ao dia,
assim por diante, infinitamente). Depois do “por que comigo?”, segue uma busca implacável
por uma causa e, frequentemente, o indivíduo sente-se traído pelo sistema (médico, jurídico
ou de valores). Questionar os valores em que vive uma sociedade pode significar um fardo
demasiadamente pesado para quem já tem que lidar com uma perda. Hodgkinson (1998)
propôs o conceito de mundo presumido, que é a noção que todos carregamos de que nossa
vida tem um sentido ou uma ordem e que segue uma lógica. Desta forma, vivemos como se
fôssemos invulneráveis (“essas coisas só acontecem com os outros”), dignos (“eu sou uma
pessoa boa, decente e não mereço que nada de mal me aconteça11”) e seguros (“o mundo é
um lugar seguro, previsível”). O oposto disto seria o caos da angústia pura: “qualquer coisa
pode me acontecer”; “eu sou fraco e devo ter merecido o que me aconteceu” e “o mundo é
perigoso, caótico e imprevisível”.

Outra possibilidade é a de recuar diante do abismo que pode significar o


questionamento do mundo presumido e culpar-se a si mesmo ou ao falecido: o sistema não
tem falhas, “talvez, tenhamos deixado de fazer algo ou feito algo errado”, numa reedição
contemporânea da missa de confissão: “mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa”. O que
resta é o retorno aos valores anteriores, no menor tempo possível, por meio de um “luto
saudável”, ao estilo contemporâneo.

Diante da impossibilidade de tratarmos de todas as formas de expressão de luto e pelo


fato de fazer referência ao caso clínico ilustrativo que passaremos a tratar no capítulo 9, nos
ateremos ao estilo de luto das classes média e alta das grandes cidades brasileiras, fortemente
influenciado pelo modelo americano. Assim como a morte e o morrer, convém que o luto se
enquadre nos valores do secularismo, do cientificismo, do materialismo, do individualismo,
do autocontrole, da rapidez, da produção e do consumo. Na superfície, defende-se que cada
luto é único, mas o fato é que ele deve seguir um roteiro rígido. Espera-se do enlutado que,
depois de um período cada vez mais curto (chegando a uma semana após o enterro12), seja
racional, não demonstre seu luto em público e, principalmente, que volte ao trabalho o mais
rápido possível (considerado, por muitos, como “o melhor remédio”). A sociedade exige do

11 Vale a leitura do “best-seller” de Kushner, de 1981, When Bad Things Happens to Good
People.

12 No Brasil, o período de dispensa do trabalho por ocasião da morte de familiar pode chegar a
até 7 dias, dependendo do grau de parentesco com o falecido.
48

enlutado um autocontrole correspondente à decência, à discrição, à boa educação e à


dignidade. “o infeliz sobrevivente deve esconder seu sofrimento e renunciar a recolher-se
numa solidão que o trairia, continuando sem descanso sua vida de relações sociais, de
trabalho e de lazeres” (Ariès, 1975/2003, p. 260).

O enlutado deve demonstrar serenidade e equilíbrio emocional (como o moribundo


eutímico e cooperativo), não perturbando as pessoas com pensamentos e sentimentos
mórbidos. Os outros não saberiam como agir, o que dizer e, hoje, o suporte social se restringe
às redes sociais. Nem o enlutado nem aquele que dele está próximo sabem o que fazer.

O site americano www.legacy.com oferece cursos de “etiqueta fúnebre”, dando


parâmetros sobre: o que (não) vestir num funeral? O que (não) dizer quando alguém morre?
O que (não) escrever em mensagens de condolências? Qual o significado das flores e quais
enviar? Quando se pode tirar fotos em um funeral? Além das dúvidas sobre etiqueta, o
enlutado tem à disposição, online, os “grief recovery experts” (especialistas em superação do
luto). Ali, os “especialistas” também promovem seus livros sobre o assunto, direcionando o
“internauta” para o site de compras www.amazon.com.

Figura 5 – “Grief Recovery Experts”. Fonte: www.tributes.com

A secularização e a institucionalização da morte esvaziaram-nos de nossos papéis e de


nossos rituais. O enlutado encontra-se, então, sozinho na multidão, parado num tempo que
49

não pára (“tempo é dinheiro”). Assim, mais uma vez, ele recorre à ciência. Primeiro, ao
médico, o clínico geral, para uma bateria de exames que devem encontrar algo físico, que
justifique tanto mal-estar ou que afaste a sombra do contágio da morte. Diante do nada no
corpo, vai aos profissionais de saúde mental. Desviar-se do roteiro previsto para o luto é cair
nas malhas da saúde mental. O luto não-saudável, patológico, complicado ou não-resolvido é
problema da psiquiatria e da psicologia. Caso o enlutado não conheça algum profissional a
quem recorrer, a própria empresa funerária o encaminha para atendimento, em suas próprias
instalações, o que se caracteriza como um grande diferencial competitivo.

Figura 6 – Propaganda de empresa funerária de Fortaleza


50

5. O LUTO COMO CATEGORIA DIAGNÓSTICA

Como destacamos anteriormente, as manifestações psicológicas e sociais em torno da


morte e do luto não ocorrem no vácuo. O desenvolvimento científico sedimenta e valida o
caminho que dirige o luto à doença. Atribui-se ao filósofo, físico e matemático René
Descartes (1637/2007) a tradição de opor mente e corpo na busca da explicação de
fenômenos humanos. No século XV, o dualismo cartesiano postulava que mente e matéria
são constituídas de diferentes substâncias e que caberia à glândula pineal (glândula
endócrina, localizada entre os dois hemisférios cerebrais) a interface entre elas. Dentre muitos
outros desdobramentos dos achados cartesianos, destacava-se, em especial, a dessacralização
do corpo. Com a morte, a alma livre deixa o corpo, tornando-o um objeto para a ciência. À
observação naturalista do comportamento de homens e de animais, aliou-se o estudo do
cadáver, em busca de correlatos biológicos para explicar fenômenos humanos mais
complexos. Nesta tradição, outro grande nome se destacou, especialmente no que tange à
observação de enlutados. Em seu tratado de 1872, A Expressão da Emoção no Homem e nos
Animais, o naturalista britânico Charles Darwin descreveu expressões e gestos involuntários
usados pelo homem e pelos animais inferiores, dando preferência aos últimos, “já que menos
propensos a enganar” (p. 11). Para Darwin, a emoção humana é expressa por meio de uma
trilha de força nervosa transmitida por canais habituais, “produzindo seu efeito em todos os
pontos onde a vontade ainda não consiga interferir pela força do hábito” (p. 13). Assim, a
forma como demonstramos nossas emoções seria hereditária, reforçada pela sua utilidade,
tendo um caráter universal, proveniente da espécie. Darwin se deteve na questão específica
do luto e retratou os enlutados numa descrição cuidadosa:

pessoas sofrendo de luto excessivo geralmente buscam alívio através


de movimentos frenéticos, (...) mas quando o sofrimento é
prolongado, elas não buscam movimento, permanecem paradas e
passivas, podendo ocasionalmente embalar-se para frente e para trás.
A circulação se torna lânguida; as faces pálidas; as pálpebras caídas; a
cabeça pousada sobre o peito contraído; os lábios, as bochechas e o
queixo caem com o próprio peso (p. 179).
51

O pai da teoria da seleção natural chegou a identificar um grupo de músculos responsáveis


pelas reações de luto, ao tempo em que reafirmava seu caráter universal: “a expressão do
luto, em decorrência da contração dos músculos-do-luto, não é restrita aos europeus, mas
parece comum a todas as raças de humanos” (p. 180). Conceber o processo de luto como um
fenômeno físico e universal é um passo fundamental para concebê-lo como doença, uma vez
que, para a identificação do desvio é essencial delimitar o parâmetro. Se defendemos que a
expressão do luto se manifesta hereditariamente, sendo determinado pela espécie e com
estritos correlatos fisiológicos, eliminamos todo o caráter individual, histórico e cultural das
perdas. Um brasileiro do século XXI se enlutaria, exatamente, da mesma forma que um
aborígene australiano. Qualquer fuga de tal padrão seria indicativa de um desvio genético ou
funcional.

Atribui-se à obra de Freud, Luto e Melancolia (1917/2010), um caráter seminal no


tocante à introdução do luto como tema de estudo em saúde mental. Freud, do ponto de vista
da psicanálise, trata em termos de desinvestimento e de reinvestimento libidinais e preocupa-
se, particularmente, em distinguir o luto da melancolia. Para Freud, a melancolia distingue-se
do “luto normal” por advir de uma relação de ambivalência com o objeto perdido, levando a
um empobrecimento do ego e a uma queda da auto-estima. A distinção entre luto e
melancolia pode ter disseminado em leitores superficiais da obra freudiana que há um “luto
normal”, saudável, e outro que segue os caminhos da patologia. Mas foi em 1944, que o
psiquiatra Erich Lindemann, em seu artigo A sintomatologia e o manejo do luto agudo13,
definitivamente, descreveu o luto nos moldes de uma doença, usando expressões como
“síndrome”, “sintomatologia”, “reações mórbidas” e “prognóstico”. Já no início do artigo,
Lindemann (1944) apresentou os pressupostos do seu trabalho:

1) O luto agudo é uma síndrome definida, com sintomatologia física e psicológica;

2) Esta síndrome pode aparecer logo após uma crise; pode ser adiada; pode ser
exagerada ou ficar aparentemente ausente;

3) No lugar da síndrome típica, podem aparecer quadros distorcidos, cada um


representando um aspecto em especial da síndrome do luto; e

13 Tradução livre de “The symptomatology and management of acute grief” (LINDEMANN,


1944).
52

4) Com técnicas apropriadas, tais quadros distorcidos podem ser transformados com
sucesso em reações normais de luto com resolução.

O artigo de Lindemann foi publicado no prestigiado American Journal of Psychiatry, mas o


autor não propôs o uso de medicamentos. Um psiquiatra contemporâneo, Myerson, também
em 1944, foi além e propôs o uso de eletro-choque no tratamento de enlutados no artigo O
Uso da Terapia de Eletro-choque em Reações Prolongadas de Luto, publicado no New
England Journal of Medicine. Myerson (1944) argumentava que nos casos tratados com
sucesso por ele, parecia não haver um fundo psicológico, mas alterações fisiológicas que se
reorganizavam mediante o eletro-choque: as bases para um entendimento do luto como
perturbação fisiológica estavam lançadas.

Na década de 1960, o psiquiatra e etologista14 John Bowlby lançou sua teoria do


apego, que defende que o comportamento de apego tem valor de sobrevivência para todas as
espécies e que o comportamento exibido na perda é genético e tem como objetivo recuperar o
vínculo com a figura perdida. Bowlby (1973/1998) propôs a divisão do luto em fases:

1) Entorpecimento: o enlutado vive o choque e tem dificuldades em compreender a


ausência;

2) Anseio e busca: o enlutado exibe comportamentos de busca na esperança do


restabelecimento do vínculo e sofre crises e raiva quando percebe que isso é impossível;

3) Desorganização e Desespero: dando-se conta da impossibilidade de reaver o


vínculo, o enlutado se desorganiza e se desespera; e

4) Reorganização: o enlutado passa por um grau maior ou menor de adaptação à vida


sem a pessoa perdida.

Tal tendência da divisão do luto em fases marcou profundamente o campo de estudo do luto
em saúde mental. O psiquiatra britânico Colin M. Parkes, que trabalhou com Bowlby por
algumas décadas, teve e continua tendo grande expressão na área da pesquisa do luto. Em
1972, Parkes publicou seu livro Luto: Perdas na Vida Adulta. Parkes (1972/1998) também
trabalhava com as fases propostas por Bowlby e, a partir de um vasto trabalho com viúvas,

14 A etologia é a disciplina que estuda o comportamento animal.


53

sugeriu que, no luto patológico, a pessoa se fixa em determinada etapa do processo de luto e
“não consegue” completá-lo. Sugeriu a seguinte classificação para o luto patológico:

1) Luto crônico: prolongamento indefinido do luto, com predomínio de ansiedade, tensão,


inquietação e insônia;

2) Luto adiado: no processo de adiamento, a pessoa pode apresentar comportamento normal


ou alguns dos sintomas distorcidos de luto, como hiperatividade, sintomas da doença do
morto e isolamento;

3) Luto inibido: sintomas do luto normal estão ausentes.

Um dos achados mais importantes de Parkes é o que se refere à interferência do luto no


sistema imunológico, tornando o indivíduo mais suscetível a doenças, a transtornos
psiquiátricos e à morte. Em 1991, o professor de psicologia da Harvard Medical School, J.
Worden lançou seu livro Terapia do Luto: um Manual para o Profissional de Saúde Mental,
onde propõe tarefas ao enlutado, ao invés de estágios, assegurando ao indivíduo um papel
mais ativo em seu processo de luto. As quatro tarefas do luto propostas por Worden
(1991/1998) eram:

1) Aceitar a realidade da perda;

2) Elaborar a dor da perda;

3) Ajustar-se a um ambiente em que está faltando a pessoa que faleceu; e

4) Reposicionar em termos emocionais a pessoa que faleceu e continuar a vida.

Também propôs uma terapia do luto para resolver o “luto patológico”, dividindo-o em três
principais categorias:

a) Luto prolongado;

b) Luto mascarado com sintomas somáticos ou de conduta; e

c) Luto exagerado.

Recentemente, um debate acalorado em torno do lançamento do DSM-V (Diagnostic


and Statistical Manual of Mental Disorders), a chamada “bíblia” da psiquiatria, tomou conta
do meio científico. Discutiu-se a retirada do luto como critério de exclusão para o diagnóstico
54

de depressão e a inclusão do “luto complicado” como uma nova categoria diagnóstica. Neste
ponto, no sentido de oferecer maior contextualização, julgamos de suma importância
apresentar um breve histórico do surgimento e do desenvolvimento do DSM como literatura
de referência diagnóstica. Por ocasião da Segunda Guerra Mundial, as forças armadas dos
EUA criaram e expandiram uma classificação das doenças mentais. O DSM-I (publicado em
1952) e o DSM-II (publicado em 1968) foram, ambos, revisados pela “Administração dos
Veteranos” e pela Associação Americana de Psiquiatria. Os dois manuais não foram
amplamente lidos, usados ou considerados importantes. Até 1980, os DSM eram pequenos
livros obscuros, que poucos demonstravam interesse de ler. O DSM-III mudou radicalmente a
cena, um livro conciso que, rapidamente, se tornou um ícone cultural, um best-seller perene,
finalmente, se transformando na “bíblia” da psiquiatria (Frances, 2013). Uma vez que o
DSM-III postulava os limites cruciais entre a normalidade e a doença mental, ele se tornou
extremamente significativo para a sociedade e passou a servir de guia para toda uma gama de
importantes decisões, com enorme impacto na vida das pessoas, como: quem era considerado
normal e quem era doente; qual tratamento deveria ser oferecido; quem pagava pelo
tratamento; quem tinha direito a benefícios previdenciários; quem era elegível para serviços
exclusivos de reabilitação para doentes mentais; quem seria contratado para um emprego;
poderia ou não adotar uma criança; pilotar um avião; quem seria considerado um assassino ou
um doente mental; quais seriam as consequências em ações judiciais; e muito, muito mais. É
fato que os critérios diagnósticos do DSM-III estavam baseados na superfície dos sintomas e
não diziam nada sobre as causas e o tratamento. Porém, sintomas superficiais se encaixavam
nos modelos biológico e médico dos transtornos mentais e os promoveram enormemente.

A inflação diagnóstica foi a pior consequência do DSM-III, especialmente pela


influência das companhias farmacêuticas. O DSM-IIIR e o Prozac® foram, ambos,
introduzidos em 1987. As vendas de Prozac dispararam, em parte, porque o diagnóstico de
Transtorno Depressivo Maior era muito vago. Os transtornos mentais, incluídos no DSM-IV,
não ganharam seu status oficial por meio de um processo racional de eliminação. Eles foram
incluídos e sobreviveram por uma necessidade prática, por acidente histórico, por acreditação
gradual e por existência de precedentes e inércia, não porque eles cumpriam uma série
independente de critérios de definição abstratos e universais (Frances, 2013).

Segundo Frances (2013), psiquiatra e chefe da força tarefa que desenvolveu o DSM
IV, o DSM-V cometeu grandes erros, em parte, porque foi gestado como um processo secreto
e fechado, sem abertura para consultores externos. Segundo o autor, “a psiquiatria sensível
55

tornou-se um checklist de sintomas, homogeneizando diferenças individuais e tratamentos


personalizados” (p. 64). Na esteira deste processo de patologização da existência humana,
Shear, Simon, Zisook, Neimeyer, Duan, Reynolds, Lebowitz, Sung, Ghesquire, Gorscak,
Clayton, Ito, Nakajima, Konishi, Melhem, Meert, Schiff, O’Connor, First, Sareen, Bolton,
Skritskaya, Mancini e Keshaviah (2011) advogam uma da mudança no DSM-V, afirmando
que o Luto Complicado (LC) cumpre os critérios propostos para a criação de um transtorno,
quais sejam:

1) É uma síndrome psicológica ou física que acomete o indivíduo;

2) Não é meramente uma resposta esperada a um estressor comum;

3) Reflete uma disfunção psicobiológica de base;

4) Não é resultado de desvio social ou conflito com a sociedade;

5) Possui validadores diagnósticos, como prognóstico, psicobiologia e resposta ao tratamento;

6) Tem utilidade clínica, assegurando melhor avaliação e tratamento aos pacientes;

7) É diferente de transtornos correlatos; e

8) Os potenciais benefícios superam os riscos em potencial.

Shear et al (2011) apresentam um quadro com os critérios propostos para Luto Complicado
(LC):

A. A pessoa tem estado enlutada (por exemplo, passou pela morte de um ente querido), por
pelo menos 6 meses

B. Pelo menos um dos seguintes sintomas de intenso luto agudo estiver presente por um
período maior que o esperado por outros de seu círculo social e cultural

1. Anseio ou espera intensa e persistente pela pessoa que morreu;


2. Sentimento frequente e intenso de solidão ou de que a vida é vazia ou sem sentido
sem a pessoa que morreu;
3. Pensamentos recorrentes de que é injusto, sem sentido ou insuportável ter que viver
56

sem a pessoa que morreu, ou um desejo recorrente de morrer para se reunir com o
falecido;
4. Pensamentos frequentes e preocupantes sobre a pessoa que morreu, por exemplo,
pensamentos ou imagens intrusivas sobre a pessoa que faleceu, interferindo em
atividades e no funcionamento normal do enlutado;

C. Pelo menos 2 dos seguintes sintomas estão presentes por pelo menos 1 mês:

1. Ruminação excessiva e problemática sobre as circunstâncias ou as consequências da


morte, por exemplo, preocupações sobre como e por que a pessoa morreu, ou sobre
não ser capaz de gerenciar a própria vida sem o ente querido, pensamentos sobre ter
decepcionado o falecido, etc.;
2. Sentimento recorrente de descrença ou incapacidade de aceitar a morte, por exemplo,
a pessoa não consegue acreditar ou aceitar que seu ente querido realmente se foi;
3. Sentimento persistente de estar em choque, assombrado, atordoado ou
emocionalmente entorpecido desde a morte;
4. Sentimentos recorrentes de raiva ou ressentimento relacionados com a morte;
5. Dificuldade persistente de confiar ou se preocupar com outras pessoas ou sentimento
intenso de inveja de outros que não tenham experimentado perda semelhante;
6. Dor ou outros sintomas frequentes que o falecido apresentava, ou ouvir a voz ou ver a
pessoa falecida;
7. Experiência de reação emocional ou psicológica intenso a memórias da pessoa que
morreu ou lembranças da morte;
8. Mudança de comportamento decorrente de evitação ou busca de proximidade
excessiva, por exemplo, evitar ir a lugares, fazer coisas ou ter contato com coisas que
lembram a perda, ou sentir-se atraído por lembranças da pessoa, como querer ver,
tocar, ouvir ou cheirar coisas relacionadas ao falecido (Nota: algumas pessoas
experimentam ambos destes sintomas contraditórios).

D. A duração dos sintomas e o prejuízo é de pelo menos 1 mês

E. Os sintomas causam sofrimento clínico significativo ou prejuízo social, ocupacional ou em


outras áreas de funcionamento, quando este prejuízo não é mais bem explicado por respostas
culturais apropriadas
Quadro 1 – Critérios propostos para Luto Complicado (LC) (fonte: Shear et al [2011]).
57

Forte, também, foi o movimento contra a mudança no DSM-IV, pela manutenção do


luto como critério de exclusão para diagnóstico de depressão e contra a designação do luto
complicado como um novo transtorno mental. Horwitz e Wakefield (2011) questionam
algumas mudanças propostas para o DSM-V, dentre elas, a inclusão do luto complicado (LC)
como categoria clínica. Argumentam que retirar o luto como critério de exclusão para
depressão leva, em última instância, à fusão do luto com a depressão e apresentam uma série
de desvantagens de tal processo, dentre elas:

1) A patologização de uma condição normal leva os enlutados ao engano de se crerem


doentes e a procurar tratamento, muitas vezes desnecessário;

2) Perda do apoio social, que se mostra diferente para a depressão (eliciando hostilidade
estigma e rejeição) e para o luto (apoio social e simpatia);

3) Com um tratamento desnecessário (mormente antidepressivos), pode ocorrer a


exacerbação dos sintomas do luto; e

4) Superlotação de serviços de saúde mental.

Frances (2013) adverte:

a promoção de determinada doença não ocorre num vácuo – ela


requer que a indústria farmacêutica engaje ativamente os médicos que
prescrevem medicações, os pacientes que as solicitam, os
pesquisadores que inventam novos transtornos mentais, os grupos de
consumidores que defendem mais tratamento e a mídia,
principalmente a internet, que espalha o termo. Uma campanha de
esclarecimento persistente, convincente e bem financiada sobre a
doença é criada. A psiquiatria é especialmente vulnerável à
manipulação dos limites entre o normal e o patológico porque não
dispõe de testes biológicos e se baseia fortemente nos julgamentos
subjetivos, que podem ser facilmente influenciáveis por um marketing
hábil (p. 29).
Na intenção de melhor compreender os meandros do processo de tal mudança ao
longo das edições do DSM no sentido de patologizar o luto, precisamos nos deter, mais
minuciosamente, em cada edição e em como a suavidade da transição de um manual para
outro naturalizou tal conversão. É a esta tarefa que se propõe o próximo capítulo.
58

6. O CONCEITO DE LUTO AO LONGO DAS EDIÇÕES DO DSM –

DA EXPERIÊNCIA À DOENÇA

Abandonei as palavras cruzadas (a

impaciência veio rápido) e no dia

seguinte fui olhar a resposta. A resposta

correta para a 6 na vertical era ’louca´.

Louca? Às vezes me sinto como uma

louca? A que distância eu estava do

mundo das reações normais?

(Didion, 2005/2006, p. 58)

As manifestações psicológicas e sociais em torno da morte e do luto não ocorrem no


vácuo, mas estão contextualizados histórica e culturalmente. A ciência, como produto e
produtor deste contexto, também vai validando seu saber e sedimentando suas práticas,
consolidando e legitimando o caminho que traz o luto à doença. Recentemente, um debate
acalorado em torno do lançamento do DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders) tomou conta do meio científico. Discutiu-se a retirada do luto como critério de
exclusão para o diagnóstico de depressão e a inclusão do “luto complicado” como uma nova
categoria diagnóstica. Julgamos de suma importância apresentar um resgate histórico da
relação, nem sempre tensa, entre o luto e o DSM. Para tanto, propomos uma análise de todas
as edições do referido manual, no que tange à abordagem do fenômeno do luto, apresentando
59

uma reflexão crítica do movimento de patologização da experiência humana da perda, sob o


pano de fundo da fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre. Na intenção de melhor
compreender os meandros do processo de mudança ao longo das edições do DSM no sentido
de patologizar o luto, optamos por nos deter mais minuciosamente em cada edição e em
como, a suavidade da transição de um manual para outro, vai naturalizando esta conversão.

O DSM nem sempre foi conhecido como a “bíblia da psiquiatria”. Sua primeira
edição nasceu de uma necessidade norte-americana de gerar dados estatísticos para o censo
demográfico, tendo sido, para tanto, necessária uma classificação dos transtornos mentais. No
recenseamento de 1840, uma única categoria foi contabilizada: idiotice/ loucura. Na pesquisa
de 1880, o censo abordou sete categorias: mania, melancolia, monomania (um tipo de
paranoia, no qual o paciente é obcecado por um único tipo de ideia), paresia (perda parcial da
motricidade), demência, dipsomania (alcoolismo) e epilepsia (American Psychiatric
Association, 2015).

Por ocaisão da Segunda Guerra Mundial, o exército norte-americano se deparou com


as mais variadas manifestações psicopatológicas de seus soldados. Os horrores da guerra
haviam cobrado alto preço ao efetivo e as forças armadas precisavam dar uma resposta à
sociedade americana. Foi, assim, criada uma classificação própria dos transtonos mentais
pelo exército norte-americano, por meio da USVA (United States Veteran Administration). À
época, a Classificação Internacional de Doenças (CID) contava sua sexta edição, com três
grandes grupos de doenças mentais, num total de 36 categorias diagnósticas: a) psicoses; b)
transtornos psiconeuróticos; e, c) desordens de caráter, comportamento e inteligência (WHO,
2015). A CID 6 teve grande impacto na formulação das categorias diagnósticas do DSM.
Foi no contexto dos censos americanos, da classificação de doenças mentais advinda
da Segunda Grande Guerra e da sexta edição da CID que a primeira versão do DSM foi
engendrada. A necessidade de uma classificaçao de transtornos mentais tem sido uma
constante na história da medicina, mas, até a criação do DSM, havia pouco consenso em
relação à nomenclatura, ao método ideal de organização das categorias e aos aspectos mais
relevantes de cada quadro (American Psychiatric Association, 1994). Assim sendo, o manual
não respondia tão somente a uma demanda de saúde mental, mas muito mais a uma
necessidade de responder aos produtos da guerra e à burocracia.
60

6.1.DSM – PRIMEIRA EDIÇÃO


O manual que, atualmente, se apresenta como modelo hegemônico de diagnóstico de
transtornos mentais, teve sua primeira edição em 1952 e contava com pouco mais de 100
categorias diagnósticas (Frances, 2013). Presidido pelo psiquiatra da marinha americana,
George Raines, o primeiro DSM dividiu os diagnósticos em dois grandes grupos: os de
origem cerebral ou orgânica e os que resultavam de dificuldades adaptativas dos indivíduos.
Foram, assim, classificados em onze grupos (American Psychiatric Association, 1952):
I) Síndromes cerebrais agudas;
II) Síndromes cerebrais crônicas com reações psicóticas;
III) Síndromes cerebrais crônicas com reações neuróticas;
IV) Síndromes cerebrais crônicas com reações de comportamento;
V) Síndrome cerebral crônica sem qualificador;
VI) Transtornos psicóticos;
VII) Transtornos psicofisiológicos autonômicos e viscerais;
VIII) Transtornos psiconeuróticos;
IX) Transtornos de personalidade;
X) Transtornos de personalidade situacional transitório; e
XI) Deficiência mental.
Apesar de ter um foco claramente estatístico, a publicação tinha forte influência do
paradigma psicobiológico de Adolf Meyer (1866/1950), para quem os transtornos mentais
representavam reações da personalidade a fatores psicológicos, sociais e biológicos. Meyer
(idem) utilizava o método biográfico para compreender os transtornos mentais de seus
pacientes e se opunha, fortemente, à ideia de que a doença tivesse uma trajetória
predeterminada, comum a todos (American Psychiatric Association, 2015). Meyer, que era
neurologista e psiquiatra, exerceu grande influência no desenvolvimento da psiquiatria como
especialidade médica, na primeira metade do século XX, a partir de sua cadeira no
prestigiado Johns Hopkins Hospital. Havia grande apelo ao fato de um neurologista creditar
os transtornos mentais mais à personalidade em contexto do que aos aspectos neurológicos. A
partir de uma abordagem eclética dos pacientes, ele era obcecado por reunir a maior
quantidade de dados possíveis sobre cada um, sistematizando a técnica de gravar os áudios de
suas consultas (Scull & Schulkin, 2009). Ainda que o produto das biografias de Meyer
(1866/1950) e as de Sartre (1943/2011) seja distinto, notam-se similaridades nas concepções
de base, em especial na rejeição do determinismo e na premissa de que o homem apenas pode
ser compreendido levando-se em conta seu contexto, ou, como propunha Sartre, sua situação.
61

Tais noções se manifestaram já no primeiro DSM, no qual se observava a falta de critérios


diagnósticos explícitos e uma curta descrição das categorias. Também não estavam presentes
parâmetros de tempo para a inclusão nos diagnósticos. Tomemos, como exemplo, a Reação
Depressiva (000-0x6):
nesta reação, a ansiedade é reprimida e, portanto, parcialmente
aliviada pela depressão e pela auto-depreciação. A reação é
precipitada por uma situação atual, frequentemente por algum dano
sofrido pelo paciente e é frequentemente associada a um sentimento
de culpa por falhas ou ações passadas. O grau da reação em tais casos
depende da instensidade do sentimento ambivalente do paciente em
relação a sua perda (o amor , a posse), bem como das condições
realísticas da perda (American Psychiatric Association, 1952, p. 31).

Apesar de o termo luto não estar presente de forma alguma na primeira edição do
DSM, a relação entre depressão e perda era inequívoca, tomando boa parte desta pequena
descrição clínica supracitada e apontada na gênese e na manutenção da reação depressiva.
Assim, a ansiedade decorrente da perda seria aliviada pela reação depressiva, como um
mecanismo de defesa do paciente. Na descrição do transtorno, não havia referência à
genética, à biologia, ao funcionamento cerebral ou a qualquer “defeito” ou mau
funcionamento inerente ao paciente. O que havia era uma apreciação, ainda que superficial,
da forma como o indivíduo reagia diante do que lhe aconteceu, uma concepção muito
próxima da fenomenologia existencial de Sartre. Como veremos, este enfoque vai sendo
perdendo espaço ao longo da próxima edição e é praticamente extinto a partir do DSM-III.

6.2. DSM-II
Com críticas à CID 6 e à sua forte influência sobre a primeira edição do DSM , o
DSM-II foi lançado em 1968. Seu presidente seguiu sendo um militar, o capitão Ernest
Gruenberg, veterano da II Guerra Mundial e diretor executivo do Comitê de Saúde Mental de
Nova Iorque. Ainda na introdução, tal Comitê argumentava que o livro se baseava na
crescente premissa de que “todas as nações vivem num único mundo” e que a “rápida
integração da psiquiatria à medicina” (American Psychiatric Association, 1968, p. 7) criara a
necessidade de um sistema de classificação integrado às outras áreas médicas, o que exigia,
portanto, uma codificação dos fenômenos mentais (psicológicos ou comportamentais) em
sintomas, síndromes e transtornos. Para se encaixar e ser aceita pelo modelo médico, a
psiquiatria se baseou na superfície dos sintomas e pouco tratou sobre as causas ou o
tratamento dos transtornos mentais. De todo modo, esta abordagem superficial acabou se
62

mostrando, pela sua simplificação, mais facilmente absorvida pelo público leigo. A premissa
de que todas as nações vivem num mesmo mundo salta aos olhos, uma vez que tal mundo,
certamente, se tratava, tão somente, de um recorte da sociedade norte-americana. Tal viés
diagnóstico e a expectativa globalizante de um único código de normalidade/patologia
acompanharam toda a história e o desenvolvimento do DSM, como trataremos adiante.

Assim como em sua versão anterior, o DSM-II dividiu os diagnósticos em onze


categorias (American Psychiatric Association, 1968):

I) Retardamento Mental15;

II) Síndromes Cerebrais Orgânicas;

III) Psicoses Não Atribuídas a Condições Físicas Prévias;

IV) Neuroses;

V) Transtornos de Personalidade e Outros Transtornos Mentais Não-psicóticos;

VI) Transtornos Psicofisiológicos;

VII) Sintomas Especiais;

VIII) Transtornos Situacionais Transitórios;

IX) Transtornos de Comportamento na Infância e Adolescência;

X) Condições Sem Distúrbio Psiquiátrico Manifesto e Condições Inespecíficas; e

XI) Termos Não Diagnósticos para Uso Administrativo.

Apesar de apresentar descrições um pouco mais longas do que as da primeira edição,


ainda não se observavam, no DSM-II, critérios diagnósticos explícitos ou parâmetros de
tempo, mas já se constatavam orientações sobre diagnósticos diferenciais. O termo reação foi
eliminado, como verificamos no exemplo da Neurose Depressiva (300.4), antes, Reação
Depressiva:

esta desordem é manifestada por uma reação excessiva de depressão


devida a um conflito interno ou a um evento identificável, como a

15 Optamos por grafar os nomes de transtornos em maiúsculas para evitar confusão com o texto
cursivo.
63

perda de um objeto de amor ou posse. É para ser distinguido de


Melancolia involutiva e doença maníaco-depressiva. Depressões
reativas ou reações depressivas classificam-se aqui (American
Psychiatric Association, 1968, p. 40).
A relação entre a Neurose Depressiva e a perda se manteve, com a última funcionando como
fator desencadeante da sintomatologia da primeira. O termo luto é citado uma única vez, no
DSM-II, exemplificando a Reação de Ajustamento na Primeira Infância (307.0): “uma reação
de luto associada à separação da mãe do paciente, manifestada por perda de apetite, choro e
retraimento social” (p. 49). Tal diagnóstico, situado na categoria Transtornos Situacionais
Transitórios, foi definido como uma reação aguda a um evento estressor externo que
sobrecarrega o indivíduo, desde que não apresentasse qualquer transtorno mental de base.
Uma vez que o DSM fora criado, manifestadamente, para uso estatístico, o DSM-II,
ainda que com poucas alterações de conteúdo, buscou assumir um intuito clínico, numa
postura mais hegemônica, em termos de pretender ser um guia para “todas as nações” (p. 7).
Entretanto, segundo Frances (2013), ambos os manuais foram pouco lidos, usados ou
considerados importantes, uma vez que eram muito descritivos e não determinavam um
limite claro entre sanidade e doença mental.

6.3. DSM-III
A terceira edição do DSM foi um marco em muitos aspectos. Resultado de uma força-
tarefa que durou cinco anos e publicado em 1980, o DSM-III consistia em um manual com
mais de 500 páginas, em contraste com as 140 de sua edição anterior. Seu presidente foi o
psiquiatra Robert Spitzer, professor de psiquiatria da Universidade de Columbia e a quem se
atribui a arquitetura moderna dos diagnósticos psiquiátricos. Segundo Frances (2013), até
1980, os DSM eram livros obscuros e pouco lidos. O DSM-III mudou, radicalmente, a cena,
uma vez que era um livro que distinguia, de modo conciso, a loucura da sanidade, tornando-
se, rapidamente, um ícone cultural, um best-seller e, finalmente, se transformando na “bíblia”
da psiquiatria. O manual impactou, fortemente, o cotidiano das pessoas comuns por meio de
políticas públicas e privadas, pois oferecia diretrizes sobre quem era normal ou doente, que
tipo de tratamento receberia, quem financiaria seu tratamento, quem poderia receber
aposentadoria por invalidez, ou, ainda, quem estava apto para um emprego, para adotar uma
criança, pilotar um avião ou dirigir um carro, quem poderia ser condenado criminalmente,
dentre muitas outras regulamentações. Da mesma forma que a justiça distingue, na forma de
leis, o crime do que é legal, a psiquiatria passou a fornecer limites claros para o
comportamento humano normal ou patológico. Restaram instituídos, não apenas os valores
64

médico e cultural do DSM, mas um imprescindível valor burocrático. De fato, o DSM III
introduziu mudanças significativas, principalmente uma descrição mais longa e detalhada dos
diagnósticos, critérios explícitos, um sistema de avaliação diagnóstica multiaxial e um foco
descritivo (não mais na etiologia) dos transtornos mentais. Robert Spitzer, presidente da
força-tarefa que desenvolveu o manual, expressamente, o considerava “ateorético” (American
Psychiatric Association, 1980, p. 20). O objetivo principal do DSM-III foi proporcionar a
definição exata dos transtornos mentais para uso clínico e, secundariamente, voltando seu uso
à pesquisa e à administração. Suas categorias diagnósticas foram divididas em:

I) Transtornos Usualmente Evidentes na Primeira Infância, Infância ou Adolescência;


II) Transtornos Mentais Orgânicos;
III) Transtornos de Abuso de Substâncias;
IV) Transtornos Paranóides;
V) Transtornos Psicóticos sem Classificação;
VI) Transtornos Afetivos;
VII) Transtornos de Ansiedade;
VIII) Transtornos Somatoformes;
IX) Transtornos Dissociativos;
X) Transtornos Psicossexuais;
XI) Transtornos Factícios;
XII) Transtornos de Controle do Impulso sem Classificação;
XIII) Transtornos de Ajustamento;
XIV) Fatores Psicossociais que Afetam Condições Físicas; e
XV) Transtornos de Personalidade.
Outra novidade importante em relação às edições anteriores foi a inclusão da categoria
“Códigos V” ou “Condições Não Atribuíveis a Transtornos Mentais que São Foco de
Atenção Clínica”, influenciada pela CID-9. A inclusão de tal categoria se baseou no princípio
de que tais condições são, frequentemente, seguidas por um transtorno psiquiátrico. Nos
“Códigos V”, pela primeira vez, o luto foi incluído como catergoria diagnóstica, em V62.82,
Luto não complicado:
esta categoria pode ser utilizada quando uma reação normal à morte
de um ente querido (luto) for o foco de atenção ou do tratamento.
Uma síndrome depressiva completa frequentemente é uma reação
normal à perda, com sentimentos de depressão e sintomas associados,
como perda de apetite, perda de peso e insônia. Entretanto,
preocupações mórbidas prolongadas com prejuízo funcional e retardo
65

psicomotor são incomuns e sugerem que o luto é complicado pelo


desenvolvimento de Depressão Maior. No luto não-complicado, a
culpa está presente e, frequentemente, está associada a coisas feitas ou
não pelo sobrevivente à época da morte; pensamentos sobre morte
estão limitados a crenças de que o sobrevivente estaria melhor se
estivesse morto ou que deveria ter morrido junto com o falecido. O
indivíduo com luto não-complicado acredita que o humor deprimido é
normal, ainda que possa procurar ajuda profissional para mitigação
dos sintomas associados como insônia e anorexia. A reação à perda
pode não ser imediata, mas raramente ocorre após os primeiros dois
ou três meses. A duração do luto “normal” varia consideravelmente
em diferentes grupos culturais (American Psychiatric Association,
1980, p. 346).
De forma pioneira, o DSM-III admite o luto como foco de um tratamento e o associa a
manifestações somáticas, como perda de apetite, perda de peso, retardo psicomotor e insônia.
Nada da história do indivído foi considerada e a caracterização da entidade patológica é
elaborada a partir do pinçamento de sintomas médicos e da cegueira proposital à narrativa
dos pacientes, à sua história de vida e ao contexto no qual se localiza a perda. Observava-se,
também, a utilização de terminologia ambígua: qual a definição da expressão “preocupações
mórbidas prolongadas” ou “prejuízo funcional”? Em seu livro, Para um Esboço da Teoria
das Emoções, Sartre (1939/2006) fez duras críticas a tal tipo de manobra científica. Ele
argumentava que um amontoado de fatos agrupados sob o olhar supostamente neutro do
cientista, isolados e, pretensamente, universais, descontextualizados, não é ciência: “os
psicólogos não se dão conta de que, com efeito, é tão impossível atingir a essência
amontoando os acidentes quanto chegar à unidade acrescentando indefinidamente algarismos
à direita de 0,99” (p.16-17). Os fenômenos humanos não se manifestam de nenhuma forma
“pura”, pois não se tratam do espelhamento de uma essência ou natureza humana universal,
mas são frutos do homem em situação, do homem reagindo, em sua liberdade, ao e no
mundo. Para compreender os fatos psíquicos ou os fenômenos humanos, não cumpre isolá-los
e analisá-los, mas situá-los no tempo, no espaço e no projeto-de-ser do indivíduo.

A associação direta entre luto “normal” e depressão foi amenizada com a introdução
do luto como critério de exclusão para o diagnóstico de Episódio Depressivo Maior, ainda
que o manual afirmasse, categoricamente, que, no caso de luto severo ou prolongado
(complicado), o diagnóstico de Depressão Maior deveria ser confirmado:

o luto não-complicado é distinto do episódio depressivo maior e não é


considerado um transtorno mental, ainda que esteja associado a uma
síndrome depressiva completa. Entretanto, se o luto é
demasiadamente severo ou prolongado, o diagnóstico deve ser
66

modificado para Depressão Maior (American Psychiatric Association,


1980, p. 226).
Ao longo do DSM-III, encontramos o luto, ora como fator desencadeante, ora como
fator agravante, ou temporalmente anterior a um distúrbio psiquiátrico. Na demência, o luto é
citado como um agravante em potencial para o déficit intelectual. No Transtorno de estresse
pós-traumático, em sua fase aguda, o luto “normal” também está presente como critério de
exclusão. Na CID-9, classificação correlata ao DSM-III, o diagnóstico de Psicose não
orgânica do tipo depressivo (298.0) previa delírios no contexto do luto, podendo evoluir com
sérios distúrbios de comportamento, como, por exemplo, a tentativa de suicídio. O
diagnóstico de Reação de Ajustamento (309.0) estava correlacionado ao luto (não apenas
relativo à perda por morte, mas considerando, também, a migração e as separações), em
termos de tempo e de conteúdo. Nesta edição do manual, aspectos culturais ainda eram
considerados no sentido de impedir a determinação de um tempo para o luto, mas, como
trataremos adiante, esta ressalva foi, aos poucos, sendo abandonada e dando lugar a
parâmetros muito rígidos para a duração temporal das reações ante à perda.

A esta altura, os benzodiazepínicos, descobertos na década de 1960, estavam entre os


medicamentos mais utlizados nos EUA, formando parte do American way of life, e
conquistando mercados no mundo inteiro (Calcaterra & Barrow, 2014). No enterro de Jean-
Paul Sartre, em 1980, Simone de Beauvoir relata ter feito uso de valium® e uísque, para
suportar o vazio que sentiu então. Atualmente, o uso de benzodiazepínicos não está reduzido
a pessoas enlutadas, ainda que seja extremamente comum em velórios (passando, quase
ritualisticamente, de mão em mão), sendo o rivotril®, em levantamento de 2009, o segundo
remédio mais vendido no Brasil. Uma pesquisa do Ministério da Saúde aponta um aumento
exponencial do uso de benzodiazepínicos no País, sendo possível determinar miligramas/per
capita por Estado (Brasil, 2011).
67

Tabela 1 - Uso de medicamento com retenção de receita no Ceará. Fonte: Brasil (2011).

A ação dos tranquilizantes é, basicamente, lentificar a atividade cerebral, resultando em


relaxamento e entorpecimento. Sua utilização em um evento tão significativo quanto um
velório, frequentemente, leva a uma sensação de desrealização, a vazios de memória e à
sonolência. Não raro, familiares não conseguem se despedir dos seus entes queridos, pois
estão “dopados” demais para comparecer às exéquias.

6.4. DSM-III-R
O DSM-III-R é uma revisão da edição anterior e foi lançado em 1987. Com o
psiquiatra Robert Spitzer ainda como presidente da força-tarefa, foram identificadas, no
DSM-III, “inconsistências no sistema e casos em que os critérios de diagnóstico não eram
totalmente claros ou eram mesmo contraditórios” (American Psychiatric Association, 1987,
p. XVII). Desta feita, a American Psychiatric Association nomeou um grupo de trabalho para
rever o DSM- III, que desenvolveu as revisões e correções que levaram à publicação do DSM
-III-R, em 1987. As principais categorias do DSM-III-R eram:

I) Transtornos Usualmente Evidentes na Primeira Infância, Infância ou


Adolescência;
II) Transtornos e Síndromes Mentais Orgânicos;
III) Transtornos de Abuso de Substâncias Psicoativas;
IV) Esquizofrenia;
V) Transtornos Delirantes;
VI) Transtornos Psicóticos sem Classificação;
VII) Transtornos Afetivos;
VIII) Transtornos de Ansiedade;
68

IX) Transtonos Somatoformes;


X) Transtornos Dissociativos;
XI) Transtornos Sexuais;
XII) Transtornos do Sono;
XIII) Transtornos Factícios;
XIV) Transtornos de Controle do Impulso sem
Classificação;
XV) Transtornos de Ajustamento;
XVI) Fatores Psicológicos que Afetam Condições
Físicas;
XVII) Transtornos de Personalidade; e
XVIII) Códigos V.
Pela primeira vez, na história do manual, foi incluída uma subseção do item
“Cuidados no Uso do DSM-IIIR”, dedicada a diferenças culturais: “o uso do DSM-III-R em
diferentes culturas”. Com a tradução do DSM para o chinês, o dinamarquês, o alemão, o
finlandês, o francês, o grego, o italiano, o japonês, o norueguês, o espanhol, o sueco e o
português, ficou claro que, ainda que engendrado pela sociedade norte americana, o manual
estava disseminado pelo mundo. Em pouco mais de um parágrafo, o clínico era advertido e
chamado a ser sensível para as possíveis diferenças culturais, especialmente entre as culturas
ocidentais e orientais. Um dos exemplos citados para ilustrar os potenciais equívocos em
diagnósticos referentes a diferenças culturais tratava do luto:

quando uma experiência ou comportamento é inteiramente normal em


uma cultura específica - como, por exemplo, a experiência
alucinatória de ouvir a voz do falecido nas primeiras semanas de luto
pelos vários grupos indígenas norte-americanos, ou a experiência de
transe e estados de possessão que ocorrem no contexto de rituais
culturalmente aprovados em grande parte do mundo não-ocidental –
não devem ser considerados patológicos (American Psychiatric
Association, 1987, p. XXVI).

Um fato significativo do contexto da época foi o lançamento concomitante do DSM-


III-R e do Prozac® (hidrocloridato de fluoxetina). Em 1988, após dezessete anos do início
dos estudos com a droga, a companhia farmacêutica Eli Lilly conseguiu sua aprovação como
antidepressivo pelo FDA (Food and Drug Administration), agência americana reguladora de
alimentos, cosméticos e medicamentos. A partir de então, a hipótese de que a depressão seria
causada pela deficiência do neurotransmissor serotonina foi consagrada (Wong, Perry, &
69

Bymaster, 2005). A então denominada pílula da felicidade foi apresentada como panaceia
para todo sofrimento psíquico, com indicações de uso que iam da Depressão Maior ao
Transtorno Obsessivo Compulsivo. Ainda que, nos dias atuais, haja muita produção científica
séria que desminta a hipótese da causa serotoninérgica da depressão (Rajkowska, 2003;
Horwitz & Wakefield, 2012; Frances, 2013; Shorter, 2013; Mann, 2013; Albert &
Benkelfat16, 2013), a associação do neurotransmissor com a depressão se manifesta quase
como um fenômeno cultural, uma moda que vem ao encontro do anseio, de toda uma época,
pela felicidade instantânea e permanente e pelo humor “mais que bom” da psiquiatria
cosmética. Se o indivíduo está deprimido, falta-lhe serotonina, “o motivo provoca o ato como
a causa física o efeito; tudo é real, tudo está cheio” (Sartre, 1943/2011, p. 496). Em tal
processo determinista de tentar tomar causas e efeitos como coisas, não há lugar para a
subjetividade e para a liberdade. Onde tudo é concreto, as significações que o sujeito daria a
seus estados, seus pensamentos e seus sintomas não têm relevância, pois estamos no campo
da má-fé, no caminho desperdiçado de aplacar a angústia. Ainda que em vão, o processo de
patologização da conduta humana, como restará claro adiante, seguiu como um fio condutor
das demais edições do DSM.

6.5. DSM-IV

Tendo trabalhado nas revisões do DSM III e do DSM-IIIR, o psiquiatra americano


Allen Frances foi convidado a presidir a força-tarefa que culminou no DSM-IV. Com 400
páginas a mais do que sua edição anterior, o manual foi lançado em 1994 e, como os demais,
manteve forte correlação com a CID, então em sua 10ª edição. Além dos usos clínico e para a
pesquisa, o DSM-IV foi definido, expressamente, como uma ferramenta para o ensino de
psicopatologia. Causa estranhamento que um manual criado com o intuito precípuo de colher
dados estatísticos e que não se propunha a discutir a etiologia, a dinâmica psicológica ou o
contexto social de seus diagnósticos pudesse ser utilizado como material de base para o

16 A dupla de pesquisadores canadenses, um neurocientista da Universidade de Otawa, e outro


psiquiatra da Universidade McGill, de Montreal, afirmava na introdução de seu estudo: “a
hipótese serotoninérgica da depressão tem postulado que uma redução do nível de serotonina leva
a um aumento da predisposição à depressão. De fato, tornou-se evidente, a partir de estratégias
terapêuticas, que afetar a atividade da serotonina pode não só predispor à depressão, como
também a um comportamento agressivo, impulsivo, obsessivo, compulsivo e suicida” (p. 1).
70

ensino de psicopatologia. De toda forma, o reconhecimento do uso do manual, em diferentes


contextos e por diversas especialidades e profissões, foi indiscutível:
uma nomenclatura oficial deve ser aplicável em uma ampla
diversidade de contextos. DSM-IV é usado por psiquiatras, outros
médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, profissionais e
terapeutas de reabilitação, conselheiros e outros profissionais de
saúde e saúde mental (American Psychiatric Association, 1994, p.
XVI).

O contato dos estudantes da área de saúde mental com o DSM é precoce em sua formação
profissional, num momento em que a grande maioria ainda não tem contato com a prática
clínica e, portanto, possui, em tese, uma capacidade crítica limitada neste aspecto. A
superficialidade com que o conteúdo é apresentado, na forma de uma check-list de sintomas e
diagnósticos, pode levar o profissional recém-formado a uma falsa ideia de domínio da
grande complexidade das apresentações clínicas psicológicas e/ou psiquiátricas. Apoiados
num manual científico, internacionalmente reconhecido e trabalhando em condições precárias
(em termos de tempo, de manejo clínico e de condições ambientais), muitos profissionais
acabaram se tornando identificadores de transtornos, muito mais do que compreendendo,
psicodinamicamente, o paciente, ou sendo capaz de situar o sintoma em sua história de vida.
No DSM-IV, os transtornos mentais foram agrupados em 16 classes principais de
diagnóstico e, em uma seção adicional, “Outras Condições que Podem Ser Foco de Atenção
Clínica”, os “Códigos V” dos manuais anteriores:
I) Transtornos Usualmente Evidentes na Primeira infância, Infância ou Adolescência;
II) Deliruim, Demência, Transtornos Amnésicos e outros Transtornos Cognitivos;
III) Transtornos Mentais devidos à Condição Clínica Geral;
IV) Transtornos Relacionados a Substâncias;
V) Esquizofrenia e outros Transtornos Psicóticos;
VI) Transtornos de Humor;
VII) Transtornos de Ansiedade;
VIII) Transtornos Somatoformes;
IX) Transtornos Factícios;
X) Transtornos Dissociativos;
XI) Transtornos de Identidade Sexual e de Gênero;
XII) Transtonos Alimentares;
XIII) Transtonos do Sono;
71

XIV) Transtorno de Controle dos Impulsos sem Classificação;


XV) Transtornos de Ajustamento;
XVI) Transtonos de Personalidade; e
XVII) Códigos V .

Por sua vez, as diferenças culturais foram levadas em conta em sete páginas do
manual (contra pouco mais de um parágrafo, na edição anterior), constando do Apêndice I -
“Considerações Culturais e Étnicas”. Ainda na introdução do DSM-IV, foi feita uma ressalva
sobre a questão cultural, citando, como exemplo, a morte de um ente querido:
essa síndrome ou padrão não deve ser meramente uma resposta
culturalmente esperada e sancionada a um determinado evento, como
por exemplo, a morte de um ente querido. Qualquer que seja sua
causa original, deve ser considerada como uma manifestação de uma
disfunção comportamental, psicológica ou biológica. Também não
são transtornos mentais os comportamentos desviantes (por exemplo,
político, religioso ou sexual), nem os conflitos, que são
principalmente entre o indvíduo e a sociedade, salvo se o desvio ou
conflito é um sintoma de uma disfunção do indivíduo (American
Psychiatric Association, 1994, p. XXII).

Com um total de 25 diagnósticos ligados à cultura, o Apêndice I, “Considerações Culturais e


Étnicas”, destina-se a fazer face às dificuldades encontradas na aplicação dos critérios
diagnósticos do DSM-IV em um ambiente multicultural, estando mais voltado à situação dos
imigrantes que viviam nos EUA do que às populações de outros países nos quais o manual foi
aplicado. Assim, como exemplos, encontramos:
Ghost sicknsess: preocupação com a morte e com o falecido (por
vezes associada com a feitiçaria), frequentemente observada em tribos
indígenas americanas. Vários sintomas podem ser atribuídos à
“doença fantasma”, incluindo pesadelos, fraqueza, sensação de
perigo, perda de apetite, desmaios, tonturas, medo, ansiedade,
alucinações, perda da consciência, confusão, sentimentos de
inutilidade e sensação de sufocamento. (...) Spell: um estado de transe
em que indivíduos se “comunicam” com parentes falecidos ou com
espíritos. Às vezes, este estado é associado como breves períodos de
mudança de personalidade. Esta síndrome ligada à cultura é vista
entre afro-americanos e americanos europeus do sul dos Estados
Unidos. Magias não são consideradas eventos médicos na tradição
popular, mas podem ser interpretados como episódios psicóticos em
ambientes clínicos (p. 846-848).
72

Nos dois diagnósticos, a descrição do contato do indivíduo com o morto era considerada
numa perspectiva cultural, ainda que não descartasse seu enquadramento como doença, se
outras características se fizessem presentes (tentativa de suicídio, por exemplo).
Como pudemos constatar, as manifestações de luto estão relacionadas com questões
culturais em todas as edições do DSM, mas nunca antes foram tão frequentes quanto no
DSM-IV. Além das inserções ligadas à cultura, o luto seguiu relacionado à etiologia do
Transtorno de Ansiedade de Separação, à intensificação dos sintomas na Demência e como
critério de exclusão para os Transtornos de Ajustamento e Episódio Depressivo Maior, desde
que não ultrapassado o período de dois meses:
Episódio Depressivo Maior. O DSM-IV inclui o critério E que
clarifica a relação com o Luto – que é, o Episódio Depressivo Maior
deve ser diagnosticado se os sintomas perdurarem mais de dois meses
após a perda do ente querido (American Psychiatric Association,
1994, p. 780).

No diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, o primeiro critério (A) é a


ocorrência de um evento traumático, que pode ser “ser testemunha de um evento envolvendo
morte, dano ou ameaça à integridade física de alguém; ser informado de uma morte
inesperada e violenta, de dano sério ou ameaça de morte a membro da família ou outro
conhecido próximo” (p. 424). De acordo com o manual e, em consonância com a tendência
da sociedade contemporânea, testemunhar, presenciar ou saber de morte passou a ser
considerado um evento traumático.
No Transtorno de Estresse Agudo, os critérios diagnósticos eram extremamente
semelhantes aos observados no luto:
no momento ou logo após o evento traumático, o indivíduo apresenta,
pelo menos, três dos seguintes sintomas: sintomas dissociativos –
sentimento subjetivo de anestesia, distanciamento ou ausência de
capacidade de resposta emocional, redução da consciência espacial,
desrealização, despersonalização ou amnésia dissociativa (Critério B).
O acontecimento traumático é persistentemente revivido (Critério C)
e o indivíduo evita estímulos que podem despertar lembranças do
trauma (Critério D), apresentando sintomas de ansiedade e excitação
(Critério E). Os sintomas devem causar sofrimento clinicamente
significativo, interferir no funcionamento normal ou prejudicar a
capacidade do indivíduo de realizar tarefas (Critério F). A perturbação
deve durar pelo menos dois dias e não persistir além de quatro
semanas após o evento traumático (Critério G) (American Psychiatric
Association, 1994, p. 429).
73

O luto também se encontrava associado, na forma de condição concomitante, a outro


quadro envolvendo sintomas dissociativos, o de Fuga Dissociativa (descrito nas edições
anteriores como Fuga Psicogênica), no qual o indivíduo apresenta episódios de fuga de casa
ou de outro ambiente familiar, com crises de amnésia.
No DSM-IV, o luto seguiu inserido nos Códigos V, mas, então, sem a especificação
“não-complicado”, conforme ocorria na versão anterior. O manual justificou a mudança na
nomenclatura para V. 62.82 Luto, devida à quantidade de complicações e de prejuízos que
poderia advir de uma perda, ainda que “não-complicada”. Num prazo de dois meses, o
diagnóstico de luto deveria se sobrepor ao de Depressão, a não ser que estivessem presentes:
1) culpa ligada a coisas que foram feitas ou não pelo sobrevivente no
momento da morte; 2) pensamento de morte, onde o indivíduo
acredita que estaria melhor se estivesse morto ou que deveria ter
morrido junto com a pessoa falecida; 3) preocupação mórbida com o
senso de inutilidade; 4) marcado retardo psicomotor; 5) marcado e
prolongado comprometimento funcional; 6) experiências alucinatórias
que não sejam ouvir a voz do falecido ou vê-lo, de modo transitório
(American Psychiatric Association, 1994, p. 684-685).

Apesar do cuidado explicitado, textualmente, no manual, de não confundir luto com


depressão, as barreiras permaneceram confusas, tornando possível sua distinção apenas ao
clínico mais experiente e com melhores condições de trabalho.

6.6. DSM IV-TR

Como uma revisão de texto da edição anterior, o DSM-IV-TR foi lançado em 2000,
seguindo com Allen Frances à frente da força-tarefa. Os objetivos da revisão foram,
principalmente, atualizar o texto do DSM-IV, de acordo com pesquisas mais recentes e fazer
alterações que aumentassem o uso educacional do manual. A maior parte das modificações se
deveu a atualizações de revisão de literatura e de códigos, no sentido de uma
compatibilização com a CID-10. As classes diagnósticas seguiram inalteradas em relação à
edição anterior. Ao diagnóstico de Transtorno Depressivo Maior, foram acrescentados dados
de exames laboratoriais e de neuroimagem, com ênfase em alterações neurobiológicas e
hormonais. Apresentava-se mais clara a tendência da busca de uma explicação
neurobiológica para a depressão. No que tange ao luto, a única alteração em relação ao DSM-
IV foi um trecho, acrescentado ao diagnóstico de Transtorno de Ajustamento, no qual
figurava como critério de exclusão, desde que não fosse excessivo ou prolongado:
74

quando a reação é uma resposta previsível à morte de um ente


querido, o Luto deve ser diagnosticado em vez de Transtorno de
Ajustamento. O diagnóstico de Transtorno de Ajustamento pode ser
apropriado quando a reação é excessiva ou prolongada, em relação ao
que seria esperado (American Psychiatric Association, 2000, p. 682).

Como trataremos a seguir, foi no DSM-5 que a conexão ente luto e doença mental se
concretizou, em termos da proposição de um diagnóstico em separado: o do Transtorno do
Luto Complexo e Persistente.

6.7. DSM-5
Após presidirem as forças-tarefa dos DSM anteriores, Robert Spitzer (III e III-R) e
Allen Frances (IV e IV-TR) foram substituídos pelo psiquiatra David J. Kupfer, no DSM-5.
David J Kupfer trabalhou no DSM-IV, sendo internacionalmente reconhecido por suas
pesquisas nas áreas de transtornos de humor e de sono. É membro da Society of Biological
Psychiatry, da American College of Neuro-psychopharmacology e Collegium Internationale
Neuro-psychopharmacologicum17. Sob a presidência Kupfer, a força-tarefa responsável pelo
desenvolvimento do DSM-5 trabalhou desde os anos 2000 para, somente em 2013, lançar seu
produto final. Os autores do DSM-5 alegavam estar calcados no progresso real e duradouro
da neurociência cognitiva, da neuroimagem, da epidemiologia e da genética, e se propunham
a melhor satisfazer clínicos, pacientes, famílias e pesquisadores (American Psychiatric
Association, 2013).

A participação de outras classes profissionais, de grupos de familiares de pacientes e


de outras entidades da sociedade civil foi notório nesta edição. O que, inicialmente, se
apresentava como uma vantagem e uma democratização do processo decisório, deixou
entrever o fato de que as decisões nosológicas não se faziam, unicamente, com base em
pesquisa científica, mas sofriam pressões de diversos setores:

muitos grupos da área da saúde, tanto profissionais quanto de ensino,


estiveram envolvidos no desenvolvimento e nos testes do DSM-5,
incluindo médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros,
consultores, epidemiologistas, estatísticos, neurocientistas e
neuropsicólogos. Por fim, pacientes, famílias, advogados,

17 Numa tradução livre: Sociedade de Psiquiatria Biológica, Escola Americana de


Neuropsicofarmacologia e Escola Internacional de Neuropsicofarmacologia.
75

organizações de consumidores e grupos de defesa participaram da


revisão do Manual ao fornecer feedback sobre os transtornos mentais
descritos nesta obra (American Psychiatric Association, 2013, p. 6).

Em 2010, os critérios diagnósticos e as propostas de alteração ficaram disponíveis em um


website para revisão pública e profissional, resultando em oito mil contribuições,
posteriormente analisadas pelos grupos de trabalho. As classes diagnósticas sofreram
alterações significativas, tendo sido rearranjadas, ora a partir de um critério de fator
desencadeante, ora pela natureza dos sintomas. Com grande enfoque nos achados científicos,
da genética e da neuroimagem, foram definidos conforme segue (American Psychiatric
Association, 2013):

I) Transtornos do Neurodesenvolvimento;
II) Espectro da Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos;
III) Transtorno Bipolar e transtornos relacionados;
IV) Transtornos Depressivos;
V) Transtornos de Ansiedade;
VI) Transtorno Obsessivo compulsivo e transtornos relacionados;
VII) Transtornos relacionados a traumas e estressores;
VIII) Transtornos Dissociativos;
IX) Transtornos de sintomas somáticos e transtornos relacionados;
X) Transtornos Alimentares;
XI) Transtornos de Eliminação;
XII) Transtornos de Sono-vigília;
XIII) Disfunções Sexuais;
XIV) Disforia de Gênero;
XV) Transtornos Disruptivos, de controle de impulso e de conduta;
XVI) Transtornos relacionados a substâncias e transtornos aditivos;
XVII) Transtornos Neurocognitivos;
XVIII) Transtornos de Personalidade;
XIX) Transtornos Parafílicos;
XX) Outros transtornos mentais;
XXI) Transtornos do movimento induzidos por medicamentos e outros efeitos
adversos de medicamentos;
XXII) Outras condições que podem ser foco de atenção clínica (Códigos V).
76

A introdução de um novo capítulo acerca dos Transtornos do Movimento Induzidos


por Medicamentos e por Outros Efeitos Adversos de Medicamentos é bastante significativo e
pode indicar uma preocupação com os efeitos dos medicamentos psiquiátricos no longo
prazo, mas o que percebemos é um texto curto, que, em si mesmo, é dúbio, ao postular que
costuma ser difícil estabelecer a relação causal entre a exposição ao medicamento e o
desenvolvimento do transtorno do movimento, que pode ocorrer na ausência de tal exposição.

A questão cultural dos transtornos mentais é abordada num capítulo intitulado


“Formulação Cultural”, que parte do fundamento de que a compreensão cultural da vivência
da doença é essencial para a avaliação diagnóstica e para o efetivo manejo clínico, seguindo
com definições de cultura, raça e etnia. A reflexão fundamental que se apresenta não é o
contexto cultural na produção da doença mental, mas a concepção da identidade cultural
como um fator capaz de proteger ou de pôr em risco o sujeito em relação ao adoecimento:

identidades cultural, étnica e racial podem ser fontes de força e apoio


grupal que melhoram a resiliência, mas também podem levar a
conflitos psicológicos interpessoais e intergeracionais ou a
dificuldades na adaptação que requerem avaliação diagnóstica
(American Psychiatric Association, 2013, p. 749).

O instrumento proposto pelo manual para identificar a formulação cultural dos transtornos
mentais foi a Entrevista de Formulação Cultural (EFC), um questionário composto de 16
perguntas, cujo objetivo é abordar:

a) valores, orientações e práticas que indivíduos obtêm da afiliação a grupos sociais


diversos;

b) aspectos dos antecedentes do indivíduo, experiências desenvolvimentais e


contextos sociais atuais que podem afetar sua perspectiva, tais como sua origem
geográfica, migração, língua, religião, orientação sexual ou raça/etnia; e

c) influência da família, dos amigos e de outros membros da comunidade na


experiência de doença do indivíduo, sumarizada no quadro a seguir:

ENTREVISTA DE FORMULAÇÃO CULTURAL


77

DEFINIÇÃO CULTURAL DO PROBLEMA

1. O que o traz aqui hoje?

2. Às vezes, as pessoas têm diferentes formas de


descrever seu problema para sua família, amigos ou conhecidos. Como você descreveria seu problema para
eles?

3. O que mais te preocupa em relação ao seu problema?

PERCEPÇÕES CULTURAIS ACERCA DAS CAUSAS, CONTEXTO E SUPORTE

4. Por que você acha que isso está acontecendo com


você? Quais você acha que são as causas do seu [problema]?

5. O que seus familiares, amigos e conhecidos acham que


está causando seu [problema]?

ESTRESSORES E SUPORTE

6. Existe algum tipo de suporte (como família, amigos ou


outros) que faça seu [problema] melhorar?

7. Existe algum tipo de estressor (como dificuldades


financeiras ou problemas familiares) que faça seu [problema] piorar?

PAPEL DA IDENTIDADE CULTURAL


78

8. Para você, quais são os aspectos mais importantes da


sua experiência de vida ou identidade?

9. Existe algum aspecto da sua experiência de vida ou da


sua identidade que interferem no seu [problema]?

10. Existe algum aspecto da sua experiência de vida ou da


sua identidade que lhe causa outras dificuldades?

FATORES CULTURAIS QUE AFETAM O ENFRENTAMENTO E BUSCA DE AJUDA

11. Às vezes, as pessoas lidam com seus problemas de


formas diferentes. O que você já fez por conta própria para lidar com seu [problema]?

12. Com freqüências, as pessoas buscam ajuda de


diferentes fontes, incluindo outros médicos, ajudantes ou curandeiros. No passado, que tipo de tratamento,
ajuda, conselho ou cura você buscou para seu [problema]?

13. Algo o impediu de conseguir a ajuda que você


precisava?

FATORES CULTURAIS QUE AFETAM A BUSCA ATUAL POR AJUDA

14. Que tipo de ajuda você acredita que lhe será mais útil
agora para seu [problema]?

15. Existem outros tipos de ajuda que sua família, amigos


ou outros te sugeriram?
79

16. Você tem se preocupado com isso e há algo que


possamos fazer para fornecer o cuidado que precisa?

Quadro 2 – EFC (Fonte: American Psychiatric Association, 2013, p. 749).

Entendemos que a EFC é um instrumento abrangente e com enorme potencial de obtenção de


dados sobre a história de vida do paciente, sobre seu entorno, sobre os fatores protetivos e de
risco, sobre o suporte social e sobre a acessibilidade dos serviços de saúde. No entanto,
algumas questões de ordem prática nos ocorrem: quanto tempo demandaria a realização da
entrevista? Os profissionais dos serviços de saúde pública (e mesmo os da iniciativa privada)
dispõem de tal tempo? O que o profissional fará com a multiplicidade de dados que podem
advir de questões tão vastas? A existência da EFC é um alento passageiro, uma vez que,
apesar de extremamente bem elaborada, não é factível, tanto em termos de tempo quanto de
uso dos dados obtidos. Em pesquisa realizada no município de Ribeirão Preto, Arroyo (2007)
concluiu que o tempo médio de atendimento da consulta médica é de dezessete minutos. É
preciso considerar, ainda, que Ribeirão Preto tem a maior concentração estadual de médicos,
com um médico para cada 122 habitantes e, segundo o Conselho Regional de Medicina do
Estado do Ceará (2016), a cidade de Fortaleza tem um médico para cada 283 habitantes. O
que é possível fazer neste tempo não passa de uma abordagem superficial dos sintomas
(checklist) e sua categorização precária em forma de um diagnóstico provisório. Em
dezembro de 2011, a revista ISTOÉ veiculou reportagem intitulada “A Praga das Consultas a
Jato”, ponderando que tal problema pode não ser apenas devido à incompetência ou à falta de
ética, mas proveniente, também, da regulação da produtividade e das condições de trabalho
dos profissionais médicos, levados a cometer erros e a prescrever medicamentos em excesso
para se ajustar ao funcionamento do sistema de saúde vigente. Diagnósticos realizados em
consultas que mais parecem “drive-thru de lanchonetes” (Oliveira & Gomes, 2011, para. 1)
têm potencial de mudar profunda e definitivamente a vida dos pacientes.

Seguindo a tradição das edições anteriores do DSM, o luto, ainda que de forma
sucinta, é utilizado para exemplificar os conceitos culturais de sofrimento:

conceitos culturais podem se aplicar a uma ampla faixa de gravidade,


incluindo apresentações que não satisfazem os critérios do DSM para
um transtorno mental. Por exemplo, um indivíduo com luto agudo ou
um situação social difícil pode usar a mesma expressão idiomática de
sofrimento ou exibir a mesma síndrome cultural que outra pessoa com
80

psicopatologia mais grave (American Psychiatric Association, 2013,


p. 758).

Como tratamos acima, na primeira edição do DSM, em 1952, o termo “luto” não é citado
uma única vez, ao passo que, no DSM-5, de 2013, há mais de 130 referências ao termo. Em
pouco mais de 60 anos, a abordagem do luto, pelo DSM, mudou radicalmente: de uma
experiência humana à patologia.

Mesmo antes do lançamento da quinta edição, a possibilidade da retirada do critério


de exclusão do luto para o diagnóstico dos transtornos depressivos foi causa de um amplo
debate acadêmico e social. Allen Frances (2013), já referido aqui como presidente da força-
tarefa do DSM-IV, assim se expressa a respeito:

o DSM-V facilitou o diagnóstico de Transtorno Depressivo Maior


(TDM) entre os enlutados, ainda que nas primeiras semanas após a
perda. Esta foi uma decisão mal orientada e teimosa, em face da
oposição universal de clínicos, de associações profissionais, de
revistas científicas, da mídia e de centenas de milhares de enlutados
ao redor do mundo (p. 187).

Uma decisão de tão ampla repercussão, como a retirada do critério de exclusão do luto para o
diagnóstico de episódio depressivo maior, é, simplesmente, no DSM-V, justificada em uma
nota de rodapé:

Nota: Respostas a uma perda significativa (p. ex., luto, ruína


financeira, perdas por desastre natural, doença médica grave ou
incapacidade) podem incluir sentimentos de tristeza intensos,
ruminação acerca da perda, insônia, falta de apetite e perda de peso
observados no Critério A, que possam ser entendidos ou considerados
apropriados à perda, a presença de um episódio depressivo maior,
além da resposta normal a uma perda significativa, deve também
cuidadosamente considerada. Essa decisão exige inevitavelmente
exercício do juízo clínico baseado na história do indivíduo e nas
normas culturais para a expressão de sofrimento no contexto da perda
(American Psychiatric Association, 2013, p. 125).

Na medida em que baseia a distinção entre luto e depressão no “juízo clínico” e, dado que o
luto não é propriamente discutido no manual, o que temos são profissionais que “conhecem”
a depressão, mas não o luto, e que têm, de fato, apenas alguns minutos para tomar a decisão
de diagnosticar e, consequentemente, de tratar ou não o paciente com medicamento. Em
2009, a Organização Mundial de Saúde conduziu uma pesquisa mundial sobre saúde mental e
o Brasil foi o país com a maior prevalência de depressão, com 10,4% da população
81

diagnosticada, nos últimos doze meses, o que corresponde a mais de 20 milhões de pessoas
(Viana, Teixeira, Beraldi, Bassani, & Andrade, 2009). Acreditamos que a amplitude
crescente do conceito de depressão, abarcando, cada vez mais, experiências ordinárias do
indivíduo comum, esteja levando a um uso desenfreado e sem controle de medicamentos
psiquiátricos, além de todo o pacote burocrático que advém do rótulo do diagnóstico.
Quantos enlutados estão sendo diagnosticados e medicados? No capítulo sobre Transtornos
Depressivos, encontramos um argumento ostensivo, defendendo as benesses de medicar um
enlutado, desde que apresente, como comorbidade, algo tão vasto quanto a depressão:

o diagnóstico baseado em um único episódio é possível, embora o


transtorno seja recorrente na maioria dos casos. Atenção especial é
dada à diferenciação da tristeza e do luto normais em relação a um
episódio depressivo maior. O luto pode induzir grande sofrimento,
mas não costuma provocar um episódio de transtorno depressivo
maior. Quando ocorrem em conjunto, os sintomas depressivos e o
prejuízo funcional tendem a ser mais graves, e o prognóstico é pior
comparado com o luto que não é acompanhado de transtorno
depressivo maior. A depressão relacionada ao luto tende a ocorrer em
pessoas com outras vulnerabilidades a transtornos depressivos, e a
recuperação pode ser facilitada pelo tratamento com antidepressivos
(American Psychiatric Association, 2013, p. 155).

De mais a mais, o luto segue incluído nos “Códigos V”, na categoria Outros Problemas
Relacionados ao Grupo de Apoio Primário, e ganha a especificação “sem complicações”, o
que indica que há tipos complicados de luto. É, ainda, encontrado como diagnóstico
diferencial do Transtorno de Ansiedade de Separação e do Transtorno do Pesadelo; como
ressalva, no Transtorno de Estresse Pós-traumático, quando a morte for violenta: “o luto
complicado pode estar presente” (p. 276); como fator relevante ligado à etiologia e ao
tratamento das Disfunções Sexuais, especialmente, a Disfunção Erétil e a Ejaculação Precoce
(prematura). O luto aparece, ainda, relacionado ao Transtorno do Estresse Agudo e como
critério de exclusão para o Transtorno de Adaptação, com uma curiosa ressalva, que cita um
transtorno que, segundo o próprio manual, ainda necessita de pesquisas para ser referendado:
o transtorno de luto complexo persistente, até este ponto, ainda não apresentado no manual:

transtornos de adaptação podem ser diagnosticados após a morte de


um ente querido quando a intensidade, a qualidade e a persistência
das reações de luto excedem o que se esperaria normalmente, quando
82

normas culturais, religiosas e apropriadas à idade são consideradas.


Um conjunto mais específico de sintomas relacionados ao luto foi
designado como transtorno de luto complexo persistente (p. 287,
grifo nosso).

Como um diagnóstico ainda não referendado, que figura numa seção cujo título adverte
quanto à necessidade de mais pesquisas, aparece como diagnóstico diferencial de categorias
diagnósticas já ratificadas? No diagnóstico de Outro Transtorno Relacionado a Trauma e a
Estressores Especificado (309.89), o transtorno do luto complexo e persistente aparece como
especificador:

Exemplos de apresentações que podem ser especificadas usando a designação “outro


Transtorno Relacionado a Trauma e a Estressores Especificado” incluem os seguintes:
1. Transtornos similares ao de adaptação com início tardio de
sintomas ocorrendo mais de três meses depois do estressor.
2. Transtornos similares ao de adaptação com duração acima de seis
meses sem duração prolongada do estressor.
3. Ataque de nervios: Ver “Glossário de Conceitos Culturais de
Sofrimento”, no Apêndice.
4. Outras síndromes culturais: Ver “Glossário de Conceitos Culturais
de Sofrimento”, no Apêndice.
5. Transtorno de luto complexo persistente: Este transtorno é
caracterizado por reações de luto e pesar persistentes (ver capítulo
“Condições para Estudos Posteriores”) (p. 290, grifo nosso).
Deste modo, ainda que o transtorno do luto complexo e persistente esteja numa categoria que
requer pesquisas futuras, há referências a ele ao longo de todo o manual como se já fosse, de
fato, um diagnóstico de consenso.

Na culminação do processo de patologização e de medicalização do luto,


encontramos, na Seção III, Condições para Estudos Posteriores - juntamente com a síndrome
da psicose atenuada, episódios depressivos com hipomania de curta duração, transtorno por
uso de cafeína, transtorno do jogo pela “internet”, transtorno neurocomportamental associado
à exposição pré-natal ao álcool, transtorno do comportamento suicida e à autolesão não
suicida -, o transtorno do luto complexo e persistente. O transtorno é apresentado em termos
de critérios diagnósticos, prevalência, curso, fatores de risco, diagnóstico diferencial,
comorbidades e prognóstico, incluindo, ainda, um especificador, “luto traumático”, como
sumarizado no quadro:

TRANSTORNO DO LUTO COMPLEXO E PERSISTENTE

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS
83

A. O indivíduo experimentou a morte de alguém com

quem tinha relacionamento próximo.

B. Desde a morte, ao menos um dos seguintes sintomas

é experimentado em um grau clinicamente significativo na maioria dos dias e persistiu por pelos 12

meses após a morte no caso de adultos enlutados e 6 meses no caso de crianças enlutadas:

1. Saudade persistente do falecido. Em crianças

pequenas, a saudade pode ser expressa em brincadeiras e no comportamento incluindo comportamentos

que refletem ser separado e também voltar a unir-se a um cuidador ou outra figura de apego.

2. Intenso pesar e dor emocional em resposta à morte.

3. Preocupação com o falecido.

4. Preocupação com as circunstâncias da morte. Em

crianças, essa preocupação com o falecido pode ser expressa por meio de temas e brincadeiras e

comportamento e pode se estender à preocupação com a possível morte de outras pessoas próximas a

elas.

C. Desde a morte, ao menos 6 dos seguintes sintomas

são experimentados em um grau clinicamente significativo na maioria dos dias e persistiram por pelo

menos 12 meses após a morte, no caso de adultos enlutados, e 6 meses no caso de crianças enlutadas:

Sofrimento reativo à morte

1. Marcada dificuldade em aceitar a morte. Em

crianças, isso depende de sua capacidade de compreender o significado e a continuidade da morte.

2. Experimentar incredulidade ou entorpecimento

emocional quanto à perda.

3. Dificuldades com memórias positivas a respeito do

falecido.

4. Amargura ou raiva relacionada à perda.

5. Avaliações desadaptativas sobre si mesmo em

relação ao falecido ou à morte (p. ex. autoacusação)


84

6. Evitação excessiva de lembranças da perda (p. ex.

evitação de indivíduos, lugares ou situações associados ao falecido, em crianças isso pode incluir a

evitação de pensamentos e sentimentos relacionados ao falecido).

Perturbação social/da identidade

7. Desejo de morrer a fim de estar com o falecido.

8. Dificuldade de confiar em outros indivíduos desde a

morte.

9. Sentir-se sozinho ou isolado dos outros indivíduos

desde a morte.

10. Sentir que a vida não tem sentido ou é vazia sem o

falecido ou a crença de que o indivíduo não consegue funcionar sem o falecido.

11. Confusão quanto ao próprio papel na vida e o senso

diminuído quanto à própria identidade (p. ex. sentir que parte de si morreu com o falecido).

12. Dificuldade ou relutância em buscar interesses

desde a perda ou em planejar o futuro (p. ex. amizades, atividades).

D. A perturbação causa sofrimento clinicamente

significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional e em áreas importantes da vida do

indivíduo.

E. A reação de luto é desproporcional ou inconsistente

com as normas culturais, religiosas ou apropriadas à idade.

Especificar se:

Com luto traumático: luto devido a homicídio ou suicídio com preocupações angustiantes

persistentes referentes à natureza traumática da morte (frequentemente em respeito a lembranças da

perda), incluído os últimos momentos do falecido, grau de sofrimento e lesão mutiladora ou a natureza

maldosa ou intencional da morte.

Quadro 3- Transtorno do luto complexo e persistente (Fonte: American Psychiatric Association, 2013).
85

Ainda que um dos propósitos deste trabalho seja apontar as falhas deste modelo, que ignora a
história, a cultura, o indivíduo e seu mundo, decidimos nos deter em cada um de tais critérios
diagnósticos, com o objetivo de tornar mais óbvia a incoerência:

A) O critério A exclui todos os outros tipos de perda, por vezes, muito mais significativas,
para um sujeito determinado, do que a própria morte de alguém próximo, como separações,
perda de dinheiro e bens, imigração, limitações físicas, doenças, perda de um sonho, dentre
muitos outros. Exclui, ainda, o, já mencionado, relacionamento com animais de estimação,
atualmente considerados membros da família, com seus próprios jazigos e exéquias18. A
expressão “com quem tinha relacionamento próximo” é absolutamente inadequada, pois uma
relação distante não implica, de forma alguma, ausência de amor ou de outro tipo de afeto
capaz de desencadear profundas reações de pesar;

B) O critério B contém o disparate de delimitar o tempo para o luto normal: 12 meses para
adultos e 6 meses para crianças. Os “sintomas” a que se refere são absolutamente corriqueiros
na clínica, e são próprios de muitos processos de enlutamento: 1) Saudade persistente do
falecido; 2) Intenso pesar e dor emocional em resposta à morte; 3) Preocupação com o
falecido: certa feita, atendi uma paciente que não gostava quando chovia porque imaginava
que a decomposição do corpo da mãe aconteceria mais rápido; outros inúmeros pacientes
relatam preocupações sobre onde e como estará seu ente querido (em outro plano); 4)
Preocupação com as circunstâncias da morte: um dos pensamentos mais recorrentes e
duradouros em enlutados é a dúvida: será que sofreu? Será que sentiu dor? Será que percebeu
que estava morrendo?;

C) Este critério divide dois tipos de “sintomas”. Sofrimento relativo à morte: 1) Marcada
dificuldade de aceitar a morte: principalmente no caso de pais, a aceitação da morte é um
processo que pode durar muitos anos ou a vida toda; 2) Experimentar incredulidade ou
entorpecimento emocional quanto à perda: no processo de aceitação da morte, muitas vezes,

18 Em 2015, foi inaugurado na cidade de Fortaleza o primeiro cemitério para animais de


estimação, nos mesmos moldes dos usados para humanos. Os serviços oferecidos incluem
remoção, opção de cremação ou inumação, urnas especiais, cerimônia, e, como não poderia
deixar de ser: acompanhamento psicológico para os donos. No site do empreendimento, há ainda
uma galeria denominada “Estrelinhas”, com fotos dos animais que utilizaram o serviço, seus
nomes e mensagens dos donos para eles: “Nosso Junior Segundo (Juninho) foi morar no céu dos
gatinhos no dia 26/07/2016. Nosso filho, muito amado.. Mamãe e papai te amam eternamente!
Estamos com Saudades! ♥♥♥.”
86

o pensamento de que o falecido vai voltar ou que está numa longa viagem pode ser muito
reconfortante para o indivíduo, não necessariamente indicando qualquer patologia; 3)
Dificuldade com memórias positivas a respeito do falecido: fato muito presente em relações
ambivalentes e/ou violentas; 4) Amargura ou raiva relacionada à perda: a raiva é um dos
sentimentos mais comuns quando se perde alguém que se ama; 5) Avaliações desadaptativas
em relação a si mesmo, em relação ao falecido ou à morte: estaria o DSM se referindo à
culpa? Muitos enlutados mantêm a crença mágica de que poderiam ter feito algo para salvar
seu ente querido e permanecem no jogo do “e se?” como uma forma de recuperar o controle
de uma situação absurda ou de buscar sentido para a perda; 6) Evitação excessiva de
lembranças da perda: não há um roteiro para viver a dor da perda. Há pessoas que se agarram
a memórias e a objetos, mantendo verdadeiros santuários dos que se foram; por outro lado, há
os que não se sentem preparados para entrar em contato com “estas coisas”. Perturbação
social/da identidade: 7) Desejo de morrer a fim de estar com o falecido: o desejo de morrer é
muito distinto da ideação suicida. Por vezes, a saudade é tamanha que o indivíduo deseja, de
modo transitório, reunir-se com o morto. Em nossa cultura, este aspecto é muito enfatizado
nas religiões católica, evangélica e espírita, pois todas pregam, ainda que de formas
diferentes, a reunião, na morte, com os que morreram antes de nós; 8) Dificuldade de confiar
em outros indivíduos desde a morte: é frequente que enlutados se isolem de pessoas que
tentam consolá-los, que lhes dão conselhos, que não entendem sua dor, que querem que a
pessoa volte a ser quem era, ou, ainda, que acham que eles estão ficando loucos; 9) Sentir-se
sozinho ou isolado de outros indivíduos desde a morte, como dissemos no item anterior, é
comum que a dor do luto seja vivida de modo muito particular e solitário, e que, em alguns
momentos, após ter se afastado da convivência de outros, o enlutado possa se sentir só; 10)
Sentir que a vida não tem sentido ou é vazia sem o falecido ou a crença de que o indivíduo
não consegue funcionar sem ele: há relações que justificam plenamente esta reação; o que
dizer de um casal que vive junto há 60 anos? Viveram juntos uma vida inteira, são
complementares e, não raro, observamos a morte do sobrevivente, pouco tempo após o
falecimento do cônjuge; 11) Confusão sobre o próprio papel na vida e senso diminuído
quanto à própria identidade: na mesma linha do item 10, pode ser muito difícil e doloroso
(querer ou aprender) a assumir funções que a morte impõe. Quando se perde alguém, não é
apenas o ser que se perde, mas tudo o que ele representava na vida prática do enlutado (um
amigo, um conselheiro, um analista financeiro, um motorista, um cuidador e, assim,
infinitamente, como são os tipos de relações; e 12) Dificuldade ou relutância de buscar
interesses desde a perda ou de planejar o futuro. O projeto-de-ser, está e deve estar conectado
87

com outros futuros, especialmente o daqueles que amamos. Sem tais pessoas, é necessário um
reposicionamento de futuro: quantos pais vivem sem planejar seus futuros por se encontrarem
sem seus filhos? Todo presente se conecta a um futuro e é este último que dá, ao primeiro,
seu sentido.

D) A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento


social profissional e em áreas importantes da vida do indivíduo: quem decide o que é
“clinicamente significativo”? Em seu artigo clássico e perturbador, na década de 1970, o
psicólogo americano David Rosenhan (1973) questiona: “as características proeminentes que
levam ao diagnóstico residem nos próprios pacientes ou no ambientes em que os
observadores os encontram? (p. 250)”. Estabelecer um diagnóstico em psiquiatria é,
sobretudo, fazer um julgamento de valor, que parte do especialista e se lança sobre o paciente
como uma rede, no qual características consideradas socialmente indesejáveis são
denominadas de sintomas.

E) A reação de luto é desproporcional ou inconsistente com as normas culturais, religiosas,


ou apropriadas à idade: de forma similar, ainda que o âmago deste critério pareça um alento,
quem valorará a proporcionalidade, a inconsistência ou a apropriação das reações de luto
senão o próprio psiquiatra, a partir de suas próprias convicções?

Laing e Cooper (1964), proeminentes pensadores do movimento antipsiquiátrico,


escreveram o livro Razão e Violência: Uma Década do Pensamento Sartreano, cujo prefácio
foi feito pelo próprio Sartre. Nele, o filósofo se mostra claramente alinhado com as ideias dos
autores, descrevendo a doença mental como uma forma de viver o que é impossível de ser
vivido, e denominando-as de um enfoque existencial dos doentes mentais. Se a doença e o
sintoma são saídas do organismo livre não podem ser compreendidos apenas em termos de
categorias diagnósticas ou do determinismo biológico, cerebral, social ou de qualquer outra
ordem, já que “cada pessoa é o centro de seu próprio mundo, cada ponto de vista é um
absoluto e ao mesmo tempo absolutamente relativo” (p. 13). Um “sintoma” apenas pode ser
compreendido em relação à vida concreta de quem o experimenta, considerando não apenas o
sujeito, mas sua situação.

Por fim, o que o quadro 2 apresenta, nas entrelinhas (no seu negativo) é a maneira
adequada de se enlutar, do ponto de vista do saber médico, com todas as suas contradições e
interesses entrecruzados. A tentativa de fazer valer o diagnóstico de transtorno do luto
88

complexo e persistente ou outro que o valha equivale a somar o luto ao rol das experiências
com roteiro fixado pela “saúde mental”, à inflação diagnóstica, a diagnosticar e a medicar
pessoas sadias e em sofrimento, a criar uma identidade de má-fé, a “pasteurizar” culturas e
modos de vida e equivale à tentativa, sempre frustrada, de quitar do sujeito sua condição de
ser livre.

O luto não é um simples estado, não é um mero sentimento, senão uma complexa rede
de significações, situadas na história de cada pessoa, no seu tempo, no seu espaço, na sua
cultura. Há um quê de universal no luto, mas apenas na medida em que o universal oferece ao
sujeito as opções de resposta diante da morte.

7. A NEUROBIOLOGIA DO LUTO

Não fui eu, foi minha amígdala.


(Satel & Lilienfeld, 2013, p. 97)
89

A tradição de buscar compreender as expressões do luto com base na fisiologia tem


raízes profundas no pensamento ocidental. Como tratamos anteriormente, o longo caminho
desde o dualismo cartesiano, passando pelo estudo dos cadáveres até a observação
naturalística forjou a base para uma ciência positiva, que busca causas e efeitos, na forma de
leis universais. Neste capítulo, defenderemos que este processo ocorreu e ainda está em curso
em relação ao luto, tornando-o um tema médico e aprisionando-o nas teias do determinismo.
Este paradigma continua atualíssimo. Há um campo crescente de produção científica, com o
objetivo de atribuir a resposta humana à separação ao funcionamento biológico,
especificamente à regulação neurológica.

Em 2013, o National Institute of Mental Health (NIMH), agência do governo


americano para pesquisa em saúde mental, anunciou seu rompimento com o DSM, do qual,
um dia, foi o principal apoiador, lançando um projeto de uma década: o RDoC. O diretor do
Instituto, Thomas Insel (2013) argumenta que o DSM está longe de ser a “bíblia da
psiquiatria”, não passando de um dicionário de doenças mentais, que cria rótulos e os
descreve. E acrescenta:

os pacientes com transtornos mentais merecem mais do que isso [o


DSM]. O NIMH lançou o Research Domain Criteria (RDoC), um
projeto que vai transformar o diagnóstico por meio da incorporação
da genética, imagem, ciência cognitiva e outros níveis de informação,
fundando um novo sistema classificatório (s.d., para. 5).
Se a abordagem do luto pelo DSM já era preocupante pelo fato de tomá-lo como um
transtorno, propondo critérios universais e rígidos de normalidade e de tratamento, o RDoC
se apresenta como um desafio ainda maior para profissionais de saúde mental e para a
comunidade em geral, uma vez que se assenta em “ciência de ponta” (genética e
neuroimagem) e busca “provas” da origem biológica dos transtornos mentais. O que se
desenrola sob nosso olhar é um projeto que visa transformar o luto (e outras manifestações
humanas) em um mero produto de circuitos cerebrais. Sob a denominação de “medicina de
precisão”, encontramos o neurodeterminismo como a próxima grande narrativa da aventura
humana.

No capítulo 5, acompanhamos Charles Darwin (1872) e sua observação naturalística


dos enlutados e como o caráter universal da expressão de pesar foi “provado” por meio da
descoberta dos músculos-do-luto, não sendo restritos aos europeus, mas comuns a toda a raça
humana. Porém, destacamos que em sua análise do fenômeno do choro, Darwin usa um
90

argumento de extrema importância: que o choro pode ser causado por tosse, espirro, bocejo,
reflexo de vômito, inflamação, exposição direta dos olhos à luz forte, vários tipos de emoções
ou nenhuma em particular. Assim, fatores variados podem produzir o mesmo resultado
fisiológico, sendo o choro um “resultado incidental” do sofrimento (p. 163). Considerando o
choro como incidental ao sofrimento, podendo ser provocado não apenas por reações
fisiológicas, mas por estados internos tão díspares, como tristeza e alegria, não se corrói o
argumento dos músculos-do-luto e do caráter universal de quaisquer emoções humanas? Em
seu Esboço Para uma Teoria das Emoções, Sartre (1939/2006) já questionava algo
semelhante e, no bojo mesmo da indagação, dava pistas da reflexão que deve ser, aqui,
desenvolvida: “como admitir que reações orgânicas banais possam justificar estados
psíquicos qualificados? (p. 31). Antes de tudo, cabe ressaltar que, de forma alguma, o luto se
presta a uma análise (na medida exata do termo, como estudo de cada parte de um todo para
melhor conhecê-lo). O luto não é um simples estado, não é um mero sentimento, senão uma
complexa rede de significações, situadas na história de cada pessoa, no seu tempo, no seu
espaço e na sua cultura. Há um quê de universal no luto, mas apenas na medida em que o
universal oferece ao sujeito as opções de resposta diante da morte.

Figura 7 – Expressões de luto (Darwin, 1872, p. 180).


91

Outra contribuição fundamental ao estudo do luto e de seus correlatos fisiológicos


veio da etologia. John Bowlby, psiquiatra e etologista, em 1998, formulou sua teoria do
apego, defendendo que o comportamento de apego e a consequente reação de luto são
programados geneticamente e que têm importância fundamental na sobrevivência individual
e na manutenção das espécies. A teoria do apego postula que bebês humanos (assim como de
alguns animais) emitem comportamentos que fazem com que seus cuidadores se mantenham
por perto, não somente pela necessidade de alimentação, mas, também de proteção e de
contato. Bolwby (1998) definiu o comportamento de apego como: “qualquer forma de
comportamento que resulta em uma pessoa alcançar e manter proximidade com algum outro
indivíduo, considerado mais apto para lidar com o mundo” (p. 38). Deste modo, a ausência
ou o afastamento do cuidador principal produziria, instintivamente, um sentimento de aflição
no bebê, seguido pelo comportamento de busca. É desta forma que a teoria do apego, de
forma simplificada, entende o luto: um conjunto de comportamentos instintivos que têm por
objetivo a reunião com a pessoa perdida (cuidador primário), traduzido, sobretudo, numa
estratégia de sobrevivência. As observações naturalísticas de Bowlby levaram-no a concluir
que o comportamento de apego e a resposta à separação de bebês humanos e de primatas não-
humanos são similares e que qualquer explicação sobre o comportamento humano que se
assente sobre processos cognitivos é questionável. Assim, percebemos uma linha direta
unindo o pensamento de Darwin (1872), o de Bowlby (1998), ainda que mais de cem anos
separem suas pesquisas, e a produção científica recente (Insel, 2013): a tendência clara de
determinar um roteiro universal, pré-definido, evolutivo e genético para o luto.

A “universalidade” do luto é o que Sartre denomina de situação. A definição de um


fenômeno é um processo complexo, produto e produtor de uma realidade. A situação nos
apresenta a moldura, a técnica e os fins em relação aos quais, no processo de luto, a perda de
um ser amado se constitui, por fim, como um limite. Assim, não podemos compreender a
mudança na concepção de luto como um fenômeno meramente mental, ou seja, como uma
mudança no funcionamento psicológico ou cerebral, mas podemos lançar as bases para uma
análise de tal situação: “o que denominamos situação é, precisamente, o conjunto de
condições materiais e psicanalíticas, inclusive, que, em determinada época, dão uma
definição precisa de um conjunto”, afirmava Sartre (1943/2011, p. 638). A sociedade
contemporânea produziu tais conceitos e não se podem compreender as escolhas de um
indivíduo enlutado sem examinar suas condições de possibilidade. Portanto, perguntamos:
como convém enlutar-se em nossa sociedade? Dito de outra forma: as condições de
92

possibilidade oferecidas pelo mundo ao indivíduo estão longe de serem universais, mas se
encontram mergulhadas no tempo histórico, na cultura, no passado e no corpo de cada
indivíduo. As condições de possibilidade de viver a perda de um ser amado para um índio
wari’19, que come seus mortos, não de qualquer modo, mas de forma ritualizada, são
claramente distintas do roteiro de luto que tende a seguir um norte-americano branco e
católico. À forma como o mundo de apresenta ao indivíduo Sartre (1946/2011) denomina
facticidade. A partir da facticidade, ou seja, da apresentação do mundo ao sujeito, ele escolhe.
A liberdade, para Sartre, não é o condão de fazer o que deseja, mas a condição da qual
nenhum homem pode fugir: a de que deve escolher-se diante da situação. A singularidade de
cada luto é a forma escolhida por cada um para fazer frente à morte, a partir das condições de
possibilidade que seu mundo lhe oferece. Defender que o luto é produto de mudanças
fisiológicas é o mesmo que dizer “uma mãe está triste porque ela chora” (Sartre, 1939/2006,
p. 19, grifo nosso), reduzindo a conduta humana apenas às circunstâncias e retirando, do
homem, sua liberdade. Ora, o que pretende o RDoC (Insel, 2013), cuja sigla remete,
inequivocamente, ao saber médico (doctor), não está muito distante disto. A maioria das
pesquisas recentes busca ligar o luto à neurociência por meio dos exames de imagem,
determinando a quais estruturas cerebrais estão associadas as reações de pesar: está enlutado,
sua amígdala se ativou e isto está provado pela ressonância magnética.

Numa linha etológica, um estudo sobre a reação à separação em ratos silvestres foi
publicado na Behavioral Brain Research (Sun, Smith, Lei, Liu & Wang, 2014). Os autores
desracam o efeito danoso da perda na saúde física e mental dos animais. Após permanecer
junto às fêmeas por 24 horas, um grupo de machos foi separado delas pelo período de apenas
quatro semanas e comparado com um grupo-controle. Os pesquisadores concluíram que a
separação provocou comportamentos depressivos e/ou ansiosos, menor tendência a um
comportamento agressivo, ganho de peso e aumento do nível plasmático de corticosteróides,
fornecendo um modelo para uma melhor compreensão do comportamento, da patologia e da
neurobiologia subjacentes ao luto em seres humanos. “Felizmente”, os pesquisadores
cumpriram o seu dever ético, ao “induzir o luto” em ratos, não em seres humanos para a
realização de seu estudo, isto é, supondo que ratos experimentem luto. A questão essencial a
ser respondida na utilização de um modelo animal é: a similaridade dos processos patológicos
e de comportamento do modelo animal são teoricamente aceitáveis? (Fagundes & Taha,

19 O ritual fúnebre dos wari’ foi descrito, anteriormente, no item 4.2, Morte, Luto e Cultura.
93

2004). Ainda assim, entendemos que o uso do modelo animal no estudo de um fenômeno tão
complexo como o luto humano é muito temerário. Não há qualquer embasamento teórico que
justifique a comparação da experiência vivida por um ser humano com a reação apresentada
por ratos ao afastamento de uma fêmea, com quem estiveram pelo período de apenas 24h. O
que percebemos é uma extrapolação desmesurada dos resultados, mesmo quando
consideramos a tradição da etologia.

Por sua vez, enfatizando o componente genético, Segal e Blozis (2002) publicaram
um artigo na Twin Research and Human Genetics que trata de um estudo sobre a forma de
lidar com a perda em dois grupos: gêmeos monozigóticos e dizigóticos. Os pesquisadores
concluíram que há uma correlação positiva entre a proximidade genética e a forma de lidar
com a perda, incluindo, aí, a manifestação de sintomas somáticos. Os autores trazem à luz
determinantes genéticos de como as pessoas experimentam a perda de um ser amado, sem, no
entanto, sequer mencionar aspectos ambientais (família, cultura e história pessoal) na
construção e na expressão de tais “determinantes genéticos”.

A partir do estudo profícuo de Lindemann, de 1945, Symptomatology and


Management of Acute Grief, que apresentava a colite ulcerativa como comorbidade do luto,
podemos perceber o crescimento, em termos de número e de escopo, das pesquisas que
buscam associar o luto a doenças. Klerman e Izen (1977) confirmaram os resultados de
Lindemann e acrescentaram, por meio de revisão de literatura: risco aumentado de glaucoma,
câncer, distúrbios cardiovasculares, doença de Cushing, lúpus, pneumonia e tuberculose.
Outras pesquisas reforçavam o risco aumentado para problemas cardíacos no período de luto
(Young, 1963; Cottington, 1980; & Osterweis, Solomon & Green, 1984). Em 1983, foi
publicado, no Journal of the American Medical Association, um artigo que conclui que o luto
está ligado à supressão de linfócitos, reduzindo a capacidade do organismo de reagir a
infecções, aumentando a morbidade e a mortalidade em enlutados (Schleifer, Keller,
Camerino, Thornton & Stein, 1983). Neste sentido, outro estudo com viúvas concluiu que no
período de luto, o nível plasmático de cortisol (hormônio do estresse) estava aumentado em
comparação com o grupo controle e que havia diminuição da atividade das células de defesa,
as natural killer cell (Irwin & Weiner, 1988). Ainda sobre o cortisol, pesquisas mais recentes
(O’Connor, Wellisch, Stanton, Olmstead & Irwin, 2008; Holland, Rozalski, Thompson,
Tioqson, Schatzberg, O’Hara & Gallagher-Thompson, 2014) confirmaram os achados de que
o nível de cortisol aparece mais alto e mais estável em indivíduos enlutados. O’Connor et al.
(2012) fazem uma referência direta à contribuição que a sua pesquisa proporciona à inclusão
94

do Luto Complicado como categoria diagnóstica do DSM-5. O que permanecia subentendido


em outras pesquisas é explicitado pela equipe de O’Connor (2012): as pesquisas que
relacionam o luto a doenças e a um risco aumentado de morte impulsionam, alimentam,
embasam e dão suporte aos processos de medicalização e de patologização do luto,
provocando a criação de novas categorias diagnósticas, como o transtorno do luto complexo e
persistente, presente no DSM-520. Em consonância com o paradigma do neurocentrismo, tais
pesquisas não abordam (ou mesmo consideram) o impacto econômico, social ou cultural da
viuvez. Ao atribuir o aumento da mortalidade e a maior incidência de doenças à perda em si
mesma, partem do pressuposto de que a morte do cônjuge é um fenômeno universal,
desgarrado do tempo, do espaço e da história de cada indivíduo. Não raro, a morte do
companheiro gera, ao sobrevivente, dificuldades financeiras e o desafio de exercer novos
papéis. Ser o único mantenedor da casa, cuidar de filhos, resolver pendências legais e dar
conta da própria dor são desafios próprios da viuvez na nossa cultura, podendo levar a uma
menor preocupação consigo mesmo e com a saúde. A dor do luto também pode levar a uma
diminuição da motivação para fazer tarefas cotidianas, se alimentar adequadamente, realizar
exercícios físicos ou comparecer a consultas médicas de rotina. Nas grandes cidades, o
suporte social percebido pode ser ainda menor do que em comunidades menores, acarretando
mais sobrecarga e solidão ao enlutado. Assim, de forma alguma a correlação entre doença,
morte e luto pode prescindir de uma compreensão da situação, em termos biológicos, sociais,
históricos, culturais e individuais. A fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre, ao tempo
em que considerava a complexidade do vivido, propôs o método progressivo-regressivo como
um movimento dialético que explora a relação do indivíduo com o mundo, com as coisas,
com outras pessoas e com o tempo. Sem abrir mão da materialidade (do mundo e do corpo),
proporciona aprofundamento e abrangência, ao tratar do que aconteceu tanto quanto do que o
indivíduo livre fez em face disto.

Sobre se o luto pode produzir câncer, Biondi, Costantini e Parisi (1996), a partir de
um único estudo de caso de uma mulher de 45 anos que perdeu o filho, não encontraram
resultados conclusivos, mas defenderam que o processo de luto, especialmente na sua fase
aguda, é capaz de desencadear uma neoplasia latente. Note-se, ainda, que, com base no
mesmo argumento, os pesquisadores admitiram que outros eventos estressores têm o mesmo

20 Conforme discutido em profundidade no capítulo 6, “O conceito de luto ao longo das edições


do DSM: da experiência à doença”.
95

poder sobre as células. Apesar de pesquisas que argumentam em contrário, muitos enlutados
permanecem saudáveis. O que explica tal fenômeno? Um grupo de pesquisadores americanos
e alemães publicou um artigo com um título bastante sugestivo, When grief makes you sick
[Quando o Luto Te Deixa Doente], argumentando que a variabilidade genética em interação
com estressores ambientais (como, por exemplo, o isolamento social ou o longo processo de
doença de um ente querido) levam a um aumento de marcadores inflamatórios, chegando à
hipótese de que o mesmo processo explica o fato de enlutados estarem mais suscetíveis a
doenças. Os pesquisadores (Schultze-Florey, Martinez-Maza, Magpantay, Breen, Irwin,
Gündel, & O’Connor, 2012) colheram e analisaram o DNA de 64 pessoas, das quais 36
haviam perdido seus cônjuges num período de até dois anos, em média. Separaram, ainda, um
subgrupo de 13 indivíduos com luto complicado, identificados a partir de um questionário.
Não foi encontrada diferença significativa entre os enlutados e os identificados como luto
complicado. Os resultados apontam para uma maior suscetibilidade a doenças, a partir da
elevação dos marcadores inflamatórios, não por conta do luto, mas justificada por um
determinado perfil de genes, recursivamente voltando à explicação genética: “a variabilidade
genética na expressão de marcadores de reposta inflamatória em resposta ao estresse é a
chave” (p. 1066). A decisão dos pesquisadores de montar uma amostra de enlutados com uma
variabilidade de tempo tão grande em relação à perda chama a atenção. Na verdade, a média
de tempo é de dois anos, mas a sua variação real foi de 2 meses a 5 anos, desde a perda do
cônjuge. Como diagnosticar um luto complicado em pessoas em fase aguda de luto? Mesmo
a literatura mais conservadora aponta o período de um ano para o luto normal. Apesar do alto
grau de tecnologia envolvido na pesquisa, este simples fator compromete seus resultados.

O que observamos no desenho de tais pesquisas é que, em nenhum momento, são


levadas em conta questões individuais, culturais ou político-econômicas. Todos os sujeitos
componentes das amostras, quando não são comparados a ratos silvestres, são tomados como
uma massa uniforme, violando a experiência individual, negligenciando os pormenores
constrangedores que constituem as escolhas humanas e simplificando, grosseiramente, os
dados em prol de uma teoria (Sartre, 1960/1966). O tamanho reduzido das amostras também
chama muita atenção, ainda mais quando as pesquisas se voltam apenas ao método
quantitativo. As conclusões extrapolam, em muito, os resultados: a ligação do luto com o
adoecimento e com a morte é inequívoca, justificando e, mesmo recomendando a intervenção
médica, sob o pretexto de que, quanto mais tempo durar a “sintomatologia” do luto, mais
risco corre o enlutado de adoecer ou de morrer. A morbidade e a mortalidade figuram como
96

um risco do sofrimento e do luto, indo ao encontro do imperativo da felicidade. Nada como


argumentos científicos para dar suporte a uma ideologia. A existência do luto complicado já
é, também, uma premissa em tais estudos. A maioria parte do pressuposto da existência de
processos normais e anormais de luto, muitas vezes, baseada na sua duração. O luto
patológico figura como passível de ser diagnosticado pela via única de questionários, em sua
maioria, elaborados a partir de pesquisas norte-americanas, como, por exemplo, o Inventory
of Complicated Grief (ICG), de Priegerson, Maciejewski, Reynolds, Bierhals, Newsom,
Fasiczka, Frank, Domam e Miller (1995).

Além da etologia e da pesquisa genética, como já destacamos, há o campo das


neurociências, em rápido crescimento, tanto em termos de financiamento quanto de
credibilidade da comunidade científica. A década de 1990 foi eleita, pelo governo americano,
como a “década do cérebro”, e muitos pesquisadores consideram o século XXI como o
“século do cérebro”, estando seus esforços dirigidos à compreensão das funções neurais
humanas com o objetivo de esclarecer os mecanismos das doenças neurológicas e mentais
por meio do estudo do sistema nervoso normal e patológico (Ventura, 2010). No caso
específico do luto, as pesquisas mais recentes buscam no cérebro as causas dos “sintomas”
observados em enlutados e a correlação de alterações cerebrais com uma maior
vulnerabilidade deste indivíduo a doenças (ditas físicas ou mentais) e à morte.

O uso dos exames de neuroimagem, especialmente a ressonância magnética funcional


(fMRI21, em inglês), impulsionou fortemente as teorias que atribuem correspondência direta
entre o suprimento sanguíneo em determinadas áreas do cérebro, seu funcionamento e os seus
correlativos psicológicos e comportamentais. A fMRI é capaz de gerar imagens de qualquer
parte do corpo humano em tempo real, tendo sido introduzida, como ferramenta da
neurologia, em 1993. O produto da fMRI se traduz em belas manchas, com cores vivas e
brilhantes, de áreas cerebrais que estão trabalhando mais intensamente, “ao vivo”, inferência
gerada a partir do consumo de oxigênio. É essencial que tenhamos em mente que, ainda que a
tecnologia nos permita fazer inferências, não tem a capacidade de ler pensamentos e
compreender sentimentos e, menos ainda, de depreender, daí, que as reações em tela estão
fora do controle do indivíduo ou que não estão submetidas a mediações do ambiente, como
por exemplo, da cultura:

21 Functional magnetic resonance imaging. Neste trabalho, optamos pelo uso da sigla em inglês
para facilitar o entendimento da literatura científica.
97

se raízes biológicas podem ser identificadas – e, melhor ainda,


capturadas em uma varredura cerebral na forma de lindas manchas
coloridas – é muito fácil para não especialistas assumir que o
comportamento observado deve ser “biológico” e, portanto,
“automático”, involuntário ou incontrolável (Satel & Lilienfeld, 2013,
p. XV).
É nesta concepção que reside a base do neurodeterminismo: a crença de que a atividade
cerebral, medida por meio de exames de imagem, é a maneira mais precisa e científica de
compreender o comportamento humano. Neste sentido, um fenômeno tão complexo como o
luto é traduzido, exclusivamente, em termos de atividade neural.

O primeiro estudo sobre a neuroanatomia do luto a partir de uma fMRI é de 2003.


Gündel, O’Connor, Litrell, Fort e Lane publicaram um artigo no prestigiado American
Journal of Psychiatry, intitulado Functional Neuroanatomy of Grief: an FMRI Study, cujo
objetivo foi identificar as áreas cerebrais ativadas nas reações de luto. Os pesquisadores
“mapearam” o cérebro de oito mulheres, enquanto exibiam fotos de entes queridos falecidos,
intercaladas com fotos de estranhos. Os resultados mostraram maior ativação do córtex
cingulado posterior, do giro frontal superior e médio e do cerebelo, chegando à conclusão de
que o luto é mediado por uma complexa rede neural, afetando inúmeras funções mentais,
como o processamento de imagens e de memórias e a regulação autonômica: “esta rede
neural pode ser a responsável pela qualidade única e subjetiva do luto e fornecer novas pistas
para a compreensão das conseqüências do luto para a saúde e para a neurobiologia do apego”
(p. 1953).

Najib, Loberbaum, Kose, Bohning e George (2004) conduziram uma pesquisa sobre a
atividade cerebral em pessoas do sexo feminino que passaram por um rompimento de relação
amorosa. Nove mulheres foram orientadas a alternar pensamentos sobre o luto e sobre algo
“neutro”, envolvendo outra pessoa que não o ex-parceiro, enquanto eram submetidas a uma
fMRI. O estudo concluiu que, durante o luto agudo, houve mudanças no funcionamento
cerebral, com decréscimo da atividade na ínsula, nos córtex temporal e pré-frontal e no giro
cingulado anterior. Os pesquisadores ressaltaram a necessidade de mais estudos de imagem
cerebral para “desvendar” as conexões existentes entre tristeza normal, luto e depressão.

Em 2009, Freed, Yanagihara, Hirsch e Mann publicaram no British Journal of


Psychology, um estudo intitulado Neural Mechanisms of Grief Regulation. O trabalho
consistiu na avaliação de vinte enlutados por conta da perda de seus animais de estimação,
em um período máximo de três meses. Os pesquisadores apresentaram estímulos alternados,
98

palavras ligadas ao luto e palavras “neutras” aos sujeitos, enquanto realizavam uma fMRI. Os
autores da investigação partiram das seguintes premissas:

a) o luto por um animal de estimação é semelhante ao luto pela perda de um ente querido;

b) a incapacidade de amortecer os sintomas do luto em um período de um ano e meio é


considerado luto complicado; e

c) que a prevalência de luto complicado na população mundial gira em torno de 7 a 22%,


afetando 200 milhões de pessoas ao redor do mundo.

A pesquisa concluiu que a amígdala, região cerebral associada à ansiedade de separação em


primatas, contribui para as reações similares em seres humanos na fase aguda do luto e que
uma falha no controle da amígdala por parte da região pré-frontal do cérebro pode ser a
responsável pela sintomatologia do luto complicado.

Figura 8 – Mecanismos neurais de regulação do luto (Freed et al., 2009, p. 14).

Sobre as três premissas que embasam o estudo, questionamos:

1. A clínica psicológica, também, dá suporte à hipótese de que o luto em relação a um animal


de estimação seja semelhante ao luto pela perda de uma pessoa querida. Cada vez mais,
estreitamos laços com as mais variadas espécies de animais, que, com frequência, são
considerados os melhores amigos e importantes membros da família. O vínculo com animais
pode ser, ainda, a única relação significativa de um indivíduo. A presença constante e estável,
99

o cuidado recíproco, as brincadeiras, as interações cotidianas e os rituais compartilhados por


animais e seres humanos são algumas características desta relação tão peculiar. A perda de
um animal de estimação, para além de si mesma, pode levar à re-experiência de perdas
anteriores. No início de ano de 2015, atendi, em psicoterapia, uma mulher de 27 anos, após a
morte do marido, por suicídio. O casal não tinha filhos, mas tratava uma calopsita como um
bebê, diziam, aos amigos, que ela era sua filha e que, em breve, teria irmãos humanos. Ocorre
que sete meses após o suicídio, o pássaro adoeceu e, mesmo com todo suporte de medicina
veterinária, morreu. O período de doença do animal mobilizou fortemente reações de luto na
paciente, ainda mais intensas do que as experimentadas quando da morte do marido. Ela não
tinha mais nada dele; o único laço vivo da união – a “filha” calopsita – tinha morrido, com
um agravante: desta vez, ela não tinha apoio de amigos, do chefe no trabalho ou da família,
pois sua reação era incompreensível para eles e não havia rituais de despedida previstos
culturalmente. Ela acabou por fazer o enterro do animal, num cemitério específico, fora da
cidade. Diferentemente do marido, ela e a medicina tinham feito pelo pássaro tudo o que
podiam e o período de doença deu-lhe a chance de se despedir;

2. A incapacidade de amortecer os sintomas de luto depois de um ano e meio seria


considerada luto complicado. Esta simples asserção combina uma série de falácias. A
primeira delas é supor a existência de um luto normal e de um luto complicado22, sem, ao
menos fazer, qualquer referência à cultura. A segunda é a definição universal de um prazo
para viver o luto. Após a morte do príncipe Albert, em 1861, a rainha Vitória, sua esposa,
permaneceu de luto fechado pelos 40 anos seguintes. Nunca abandonou o preto ou contraiu
novo matrimônio. A rainha manteve a rotina da casa como se o príncipe estivesse vivo, com
seu lugar na mesa de refeições e suas roupas prontas para uso. Na era vitoriana, o luto era de
bom tom e a roupa preta um sinal de elegância (Cassel, Salinas & Winn, 2005). Definir um
prazo para o luto é desconsiderar que uma perda não acontece no vácuo, mas está imersa num
tempo histórico e numa cultura e que se trata da ruptura de uma relação particular,
experimentada por um indivíduo único. O fenomenologia existencial de Sartre oferece uma
alternativa a este impasse por meio do processo de totalização, proporcionado pelo método
dialético de compreensão, que se movimenta do universal para o particular e vice-versa,

22 Note-se que já não se usa o termo patológico, mas complicado. Ainda que soe melhor, ao não
fazer referência direta à patologia, os efeitos de padronização, de patologização e de
medicalização do sofrimento persistem.
100

entendendo que “cada pessoa é o centro de seu próprio mundo, cada ponto de vista é um
absoluto e ao mesmo tempo absolutamente relativo” (Laing & Cooper, 1964, p. 13); e

3. A partir de uma amostra de 20 enlutados devido à perda de seu animal de estimação, a


prevalência do luto complicado, por conta de uma falha no funcionamento da amígdala,
afetaria de 7 a 22% da população mundial, acometendo 200 milhões de pessoas ao redor do
mundo. Tomando como base a população brasileira, segundo pesquisa nacional de amostra
por domicílio (PNAD) de 2003, ainda que considerando o menor índice, de 7%, a prevalência
de luto complicado superaria doenças como cirrose, tuberculose, câncer, insuficiência renal,
diabetes, asma e, mesmo, depressão (Barros, César, Carandina & Torre, 2006).

Tabela 2 - Prevalência de problemas de saúde – PNAD (Barros et al., 2006, p. 916).

No Brasil, uma equipe de pesquisadores do Laboratório de pânico e respiração da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (Silva, Schier, Arriás-Carión, Paes, Nardi, Machado
& Pessoa, 2014) publicou um estudo sobre os aspectos neurológicos do luto. O grupo se
baseou na revisão de cinco artigos científicos e concluiu que todos mostraram uma ativação
das mesmas áreas cerebrais no luto: córtex cingulado anterior, córtex cingulado posterior,
córtex pré-frontal, ínsula e amígdala. Neste sentido, consideram o suporte aos enlutados
essencial como forma de prevenir distúrbios mais incapacitantes e corroboram a ideia de que
há um substrato cerebral para a experiência do luto. A morte e a perda são fatos absolutos,
mas a vivência do luto está longe de ser uma experiência universal. Ainda que aceitemos que
haja um correlato fisiológico para o luto, tais manifestações só adquirem significado em de
um contexto social e individual.
101

Ainda na esteira das manchas coloridas e brilhantes produzidas pela fMRI, O’Connor,
Wellisch, Stanton, Eisenberger, Irwin, e Lieberman, (2008) equipararam os sintomas
prolongados do luto às manifestações comportamentais e cerebrais de viciados em drogas,
defendendo, basicamente, que a manutenção dos sintomas de luto por períodos prolongados
ativa áreas de recompensa do cérebro, especificamente, o núcleo accumbens (NA). O’Connor
et al (2008) partem da premissa da existência da síndrome do luto complicado (Complicated
Grief, CG) e defendem sua inclusão no DSM-5. A pesquisa contou com uma amostra de 23
mulheres enlutadas, divididas em dois grupos: 12 com luto normal e 11 com luto complicado.
A distinção entre o luto normal e o luto complicado foi estabelecida a partir das respostas das
mulheres a uma entrevista clínica, não especificada no artigo, fato bastante comprometedor
dos resultados da pesquisa. Como adotado em pesquisas semelhantes, o método seguiu o
esquema de alternância de estímulos neutros (fotos de pessoas estranhas) e estímulos ligados
ao luto (fotos do ente querido falecido). Os pesquisadores concluíram que nas mulheres
previamente diagnosticadas com “luto complicado”, lembranças do falecido funcionavam
como eliciadores de respostas de craving, as mesmas observadas em indivíduos em
abstinência de drogas, dificultando a adaptação à realidade da perda.

Mudanças estruturais no cérebro de indivíduos com luto complicado e seus


desempenhos em testes cognitivos foram o foco da pesquisa de Pérez, Ikram, Direk,
Priegerson, Freak-Poli, Verhaaren, Hofman, Vernooij e Tiemeier (2015). Os pesquisadores
dividiram uma amostra impressionante de 5501 pessoas em três grupos: controle (n= 4731),
com luto normal (n= 615) e com luto complicado (n= 155). O critério utilizado para
diagnosticar o luto complicado foi a resposta dos sujeitos ao Inventory of Complicated Grief
(ICG). Toda a amostra foi submetida a testes cognitivos diversos e à ressonância magnética.
Pérez et al (2015) concluíram que pessoas com luto complicado apresentavam menor volume
cerebral e pior desempenho em testes cognitivos, inferindo que há um correlato neurológico
para o luto complicado, mas não para o luto normal. De modo a impressionar, uma pesquisa
tão complexa, do ponto de vista tecnológico e de envergadura da amostra, ignorou uma
questão muito simples: que motivação possuem os enlutados para realizar testes cognitivos?

Partindo do fato de que qualquer comportamento produz mudanças no funcionamento


cerebral e de que outros eventos são capazes de desencadear reações similares, Sartre
(1939/2006) apontava, como exemplo, correlatos físicos semelhantes da cólera e da alegria,
mas negava que tal semelhanças fosse suficiente para agrupá-los numa mesma categoria, do
ponto de vista da experiência vivida pelos seres humanos.
102

As modificações fisiológicas que correspondem à cólera diferem senão pela


intensidade das que correspondem à alegria (ritmo respiratório um pouco acelerado, ligeiro
aumento do tônus muscular, crescimento de trocas bioquímicas, da tensão arterial, etc.): no
entanto a cólera não é uma alegria mais intensa, é outra coisa, pelo menos na medida em que
se oferece à consciência (Sartre, 1943/2006, p. 31).

A neurobiologização ou o neurocentrismo aplicado ao luto é, sobretudo, um fenômeno


da má-fé, pois tal concepção compreende o fenômeno do luto a partir de um substrato
meramente fisiológico, ainda que proveniente da mais avançada tecnologia de fMRI. Estamos
diante do fenômeno da má-fé, que, para Sartre (1943/2012), representa as tentativas do
homem de escapar da sua angústia, buscando, fora de si mesmo, algo que o fundamente e que
o justifique, num movimento similar ao de mentir para si mesmo: “na má-fé, não há mentira
cínica, nem sábio preparo de conceitos enganadores. O ato primeiro de má-fé é fugir do que
não se pode fugir, fugir do que se é” (p. 118). A má-fé é um projeto de fracasso, já que não há
como o homem fugir da própria condição do seu ser, da sua liberdade. Deste modo, a
neurobiologização e a patologização do luto, bem como sua consequente medicalização, são
empreendimentos fracassados. Assim, a transformação do luto em uma questão de saúde
mental se revela uma estratégia de má-fé, procurando retirar do sujeito, ainda que nunca o
possa fazer, sua própria liberdade. Inequivocamente, todo tipo de determinismo é
tranquilizador, é um ardil para conter o sofrimento e a angústia, já que aquele que supõe
conhecer as causas de um fenômeno se julga também capaz de alterá-las (Sartre, 1947/1968).

Toda esta argumentação, para Sartre (1960/2004), é evidente, pois o ponto inicial de
qualquer investigação deve ocorrer por meio da compreensão do concreto absoluto do
homem, de suas condições de possibilidade, de sua realidade objetiva, de sua materialidade:
“ademais, precisamos entender que não há algo como o homem; há pessoas, definidas por sua
sociedade e pelo movimento histórico que as carrega” (p. 36). A patologização das reações de
luto significa negar ao homem sua situação. Reduzir tais reações a suas manifestações
neurobiológicas é desconsiderar toda a complexa rede de fatores na qual o luto está imerso,
seu tempo histórico, sua cultura, sua família. Supor que todos os seres humanos devem
experimentar o luto a partir de critérios diagnósticos é, para usar uma expressão cara a Sartre,
dar-lhes um “banho de ácido sulfúrico”, no sentido de retirar deles todo resquício de
individualidade e liberdade. Quando a saúde mental, apoiada nas neurociências, determina
um rígido parâmetro de normalidade, ela retira do homem a responsabilidade pela sua
conduta. O luto “complicado” deixa de ser seu luto: passa a ser considerado doença, pois
103

seria determinado pelo mau funcionamento de sistemas cerebrais e neurológicos que


deveriam ter cumprido determinadas fases, realizado determinadas tarefas, feito o chamado
“trabalho de luto”. De todo modo, na sociedade contemporânea, a retirada da
responsabilidade do homem e sua “incapacidade” de escolha têm um papel fundamental na
tentativa de diminuição da angústia: já que não há mais escolha, restaria ao homem se
entregar, de bom grado, às mãos dos especialistas e se lançar, cegamente, rumo a um
tratamento. Mas ainda assim, se trataria de uma escolha: a escolha de se entregar ou de fingir
para si mesmo que não pode escolher.

Como destacamos anteriormente, a morte é um tema adjacente à obra de Sartre. Isto


torna ainda mais espinhosa a tarefa de abordar o luto à luz da fenomenologia existencial
sartreana, mas não convém que evitemos a questão da morte. Senão, tratemos como ela se
articula com os conceitos centrais já apresentados, e como, daí, advém uma nova
compreensão do fenômeno do luto.
104

8. MORTE E LUTO NA FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL


SARTREANA

Na perspectiva sartreana, a morte é um puro fato, uma contingência radical, um


absurdo, pois não há lugar para ela na subjetividade humana. Ela é apenas um dado, o último
dado da existência; é facticidade. Como o último acorde de uma música faz parte da melodia,
também a morte integra a vida, mas sem maior peso do que qualquer outra nota ou do que o
silêncio entre os sons: “antes de tudo, devemos sublinhar o caráter absurdo da morte. Neste
sentido, deve ser rigorosamente afastada toda tentação de considerá-la um acorde de
resolução, no termo de uma melodia” (Sartre, 1943/2011, p. 654).
O filósofo, igualmente, renunciava a toda teoria que fizesse recair sobre a morte o
sentido da vida, uma vez que nada de fora pode sustentar a existência humana. Neste sentido,
cabe considerar as divergências entre Sartre e Heidegger (1889-1976), no sentido de clarificar
sua perspectiva, salientando que o aprofundamento na filosofia existencial deste último
pensador foge ao escopo do nosso trabalho.
Para Heidegger (1927/2005), o fato de o homem se saber mortal acarreta angústia.
Entretanto, é sua posição fundamental como ser-para-a-morte que o torna capaz de qualificar
sua existência como autêntica ou inautêntica. Entender-se finito propicia um sentido para a
vida, um projeto-de-existência para a morte. O ser que aceita sua própria morte está apto a ter
uma vida plena. Como tratamos anteriormente, para Sartre (1943/2011), nada, nem a morte,
pode dar significação à existência humana. A morte não pode ser a essência da existência:
“assim, a morte jamais é aquilo que dá à vida seu sentido; pelo contrário, é aquilo que, por
princípio, suprime da vida toda significação” (p. 661). Para Sartre, a morte é a extinção de
todas as minhas possibilidades; portanto, ela está fora do campo dos meus possíveis. Trata-se
105

de uma concepção que vai ao encontro do epicurismo, pois defende a inutilidade de temer a
morte, uma vez que, quando ela chega, o homem já não está.
Todavia, há dois aspectos da morte que atingem a existência em cheio: o morrer e a
morte do outro, que, de modo algum, limitam a liberdade do homem, mas, em alguns casos,
tornam-na mais óbvia. O morrer e a morte do outro exigem, de minha liberdade, que eu me
posicione. Assim, mesmo em face da doença, da limitação e da morte, sou livre para fazer
escolhas. Minha posição diante da situação revela meu projeto-de-ser. O próprio Sartre viveu
uma década de gradativa agonia: arterite, desmaios, cegueira, dores, problemas dentários e de
equilíbrio, dificuldade de respirar e de caminhar e, finalmente, o edema pulmonar que o
matou. Como tratamos anteriormente, as escolhas que Sartre fez, frente à sua própria morte,
foram, minuciosamente descritas (e interpretadas) por Simone de Beauvoir (1981/1984), em
sua obra esclarecedora e comovente sobre a doença dele, seu declínio e sua morte. Segundo
Simone, Sartre, em plena consciência, sofreu cada perda, progressivamente, como aspectos
mortos de si mesmo: não podia mais fumar, beber, viajar, falar em público, caminhar sem
auxílio e, principalmente, não podia mais ler e escrever, pois já não enxergava: “tenho que
dar adeus a sessenta anos de minha vida!” (p. 45). Como defesa contra a ansiedade, Sartre
tinha episódios de confusão mental, sono excessivo e um marcado desinteresse pelo mundo.
Após um episódio em que descreveu a Simone sua estranha sensação de ser invisível e de
estar em perigo em meio a outras pessoas, preocupando-se, sobremaneira, com a
possibilidade de que, estando à morte, tivesse as pernas amputadas, ela escreveu:
“obviamente, ele estava sofrendo de ansiedade generalizada, relacionada ao seu corpo, a sua
idade e à morte” (p. 45). No livro, ela conta que, na maior parte do tempo, ele inventava
maneiras de esconder a ansiedade, principalmente, ligada à cegueira. Estar cego e não poder
ler ou escrever, era a negação do que constituía o cerne da existência de Sartre, era
equivalente à morte. Em seu livro autobiográfico, o filósofo confessou que “ao escrever,
escapava dos adultos, mas só existia para escrever. E se dizia ‘eu’, isso significava ‘eu que
escrevo’” (Sartre, 1964/2000, p. 103).
A célebre ocasião em que Sartre se negou a receber o prêmio Nobel está, diretamente,
ligada à morte. Depois de ser consagrado, de ser capturado pelo sistema burguês, de ser-um-
Nobel, que haveria de escrever?
Uma coisa me impressiona nesse relato mil vezes repetido: a partir do
dia que vejo meu nome no jornal uma mola se quebra, estou
liquidado; gozo tristemente do meu renome23, porém não escrevo

23 Grifos nossos
106

mais. Os dois desfechos constituem um único; quer eu morra a fim


de nascer para a glória, quer a glória venha primeiro e me mate,
o desejo de escrever envolve uma recusa de viver (1964, 2000, p.
138).

Encontramos aqui, indubitavelmente, o projeto-de-ser de Sartre: a escrita;


encontramos, também, sua negação, ainda em vida: a cegueira. Certo é que, como liberdade,
ele poderia ter escolhido ditar seus escritos ou fazer outra adaptação qualquer, mas,
confrontado com a impossibilidade de escrever como sempre escreveu, escolheu se recolher.
Sobre ter escrito obras como A Náusea e Entre Quatro Paredes, já em 1945, ele afirmava:

àquele ponto, eu era imortal e eu estava convencido de minha


imortalidade. Isso significava que eu já não precisava pensar nisso [na
morte] (...) Eu ainda seria lido após minha morte e por pessoas a
quem minha mensagem não está direcionada, pessoas que não eram
meu objetivo acharão meu trabalho válido (Beauvoir, 1981/1984, p.
215).

Todavia, com o agravamento de seu quadro clínico, o filósofo chegou a considerar


quanto à literatura: “no presente, estou liquidado. Já estou do outro lado da porta” (p. 215).
No ano de 1974, ou seja, seis anos antes de seu falecimento, durante uma visita de Sylvie,
Sartre a questionou: “veio ver a casa de um homem morto? (...) sou um cadáver ambulante”
(p. 73-74).

A concepção filosófica de morte, para Sartre, resta clara: a morte é nada. Entretanto,
no que tange ao processo de morrer, encontramos indefinições e contradições, dignas de um
pensamento, constantemente, em construção, não apenas em seu próprio processo de morrer,
descrito por Simone, mas, também, em escritos anteriores. Diante dos horrores da Segunda
Guerra Mundial, em seu A República do Silêncio (Sartre, 1949/1960), aproximando-se muito
do conceito heideggeriano de ser-para-a-morte, ele escreveu:

as circunstâncias muitas vezes atrozes de nosso combate nos tornaram


capazes de viver enfim, sem disfarces e sem véus essa situação
dilacerada, insuportável que se chama a condição humana. O exílio, o
cativeiro e, acima de tudo, a morte que mascaramos habilmente nas
épocas felizes, eram os motivos perpétuos de nossas preocupações,
percebíamos que não são acidentes evitáveis, nem mesmo ameaças
constantes, mas exteriores: era preciso reconhecer nelas nosso
quinhão, nosso destino, a fonte profunda de nossa realidade de
homem; a cada segundo vivíamos em sua plenitude o sentido desta
pequena frase banal: “Todos os homens são mortais”. E a escolha
que cada um fazia de si mesmo era autêntica porque era feita na
107

presença da morte24, porque poderia sempre se expressar como


“Melhor morrer do que...” (p. 11).

Entretanto, ainda que Sartre fizesse, aqui, clara menção ao pensamento de Heidegger,
ele não tratava de uma existência autêntica, mas de uma escolha autêntica de si mesmo, indo
ao encontro do que, antes, destacamos: o morrer e o luto provocam a liberdade de forma
inescapável. No início da mesma obra, o filósofo defendera, contra o senso comum, que a
França nunca havia sido tão livre quanto sob ocupação alemã. A ameaça nazista tornava cada
cochicho um ato de resistência, cada pensamento uma conquista, cada palavra uma
declaração de princípios: “porque o segredo de um homem não é o complexo de Édipo ou de
inferioridade, é o limite mesmo da sua liberdade, é seu poder de resistência aos suplícios e à
morte” (p. 12). Frente ao risco, ao tormento, à tortura e à possibilidade de cessar de existir, a
liberdade humana está exposta, exigida, precisa se posicionar, decidir e escolher, ainda que
para recorrer aos antigos artifícios da má-fé.

Ao morrer, o defunto passa a ser propriedade dos vivos, por meio de sua memória e
da significação e da ressignificação que podem fazer de sua existência, sem que o morto, para
nada, concorra. A desaparição do outro, como centro a que remetem minhas significações,
impregna minha existência. A inexistência torna-se presença e o mundo é infestado pela
presença, sob o fundo da ausência: “Pedro ausente infesta este bar e é condição de sua
organização nadificadora como fundo” (Sartre, 1943/2011, p. 51). O falecido encontra algum
estado de sobrevivência porquanto haja uma liberdade que o sustente, que seja por ele
responsável: “a vida morta tampouco cessa de mudar por ser morta, mas não se faz: é feita.
Significa que, para ela, os dados estão lançados” (p. 665). Os mortos são transcendências-
transcendidas, ou seja, nada mais pode lhes ocorrer pelo lado de dentro e nada pode ser feito
para penetrá-los. No entanto, cabe, aqui, destacar que a existência do morto da qual sou
guardião não se faz apenas na minha consciência, sob a forma de memórias ou de
representações, mas que meu ser-para-outro é um ser real, incluindo rastros concretos de sua
vida:

é esta, evidentemente, a explicação da importância das relíquias; e


não compreenderemos com isso somente as relíquias religiosas, mas
também e, sobretudo, o conjunto de propriedades de um homem
ilustre (museus, objetos); nas quais tentamos reencontrá-lo; as

24 O grifo é nosso.
108

“lembranças” de um morto querido que parecem perpetuar sua


memória (p. 718).
Assim, a morte aliena o ser de seus possíveis, tornando-o coisa entre coisas, ao tempo
em que entrega sua vida ao outro. Não se torna uma existência, uma vida de possibilidade,
um fazer-se (para-si), mas um já feito (em-si): “estar morto é ser presa dos vivos” (Sartre,
1943/2011, p. 666). O que caracteriza uma vida morta é que o outro dela se faz guardião; esta
vida lhe pertence:
um velho defunto está morto por constituição, está igual, nem mais
nem menos, no batismo e na extrema-unção, sua vida nos pertence,
podemos entrar nela por uma ponta ou por outra, ou pelo meio,
avançamos ou retrocedemos seu curso como à vontade (Sartre,
1964/2000, p. 134).

Aos mortos esquecidos, não ilustres, não amados, resta o aniquilamento absoluto.
Este argumento é essencial para o que, aqui, desejamos propor: o apego ao luto, entendido
pela saúde mental como patológico, é uma escolha livre do sujeito para manter existente o
querido ausente, sempre considerando sua situação. É o modo eleito por ele para a superação
de uma falta e não pode ser compreendido senão por meio de uma liberdade que escolhe ante
a facticidade. Se a morte é um dado concreto, o luto é o caminho escolhido pela liberdade
para superar o dado: “liberdade é originariamente relação com o dado” (Sartre, 1943/2011, p.
599). Determinar um roteiro rígido para responder ao dado é negar ao homem seu caráter
livre; é negar que a situação apenas pode ser compreendida em relação ao para-si. Qualquer
tentativa de parametrização do enlutamento é, portanto, uma empresa de má-fé. Atualmente,
o que percebemos são, como já discutimos em capítulos anteriores, três versões de má-fé no
que se refere ao luto:

1) a mercantilização do sofrimento, com seus rituais “prêt-à-porter”, esvaziados de


sentido;

2) a patologização do luto, com sua consequente medicalização; e

3) a explicação “pasteurizada” das bases neurobiológicas do luto, atribuindo,


inteiramente, à programação genética e aos circuitos cerebrais a resposta à perda.

Para o enlutado, a morte de um ser querido, como uma situação concreta, se inscreve
a partir de:

1) seu lugar;
109

2) seu corpo;

3) seu passado;

4) seus arredores;

5) seu próximo; e, ainda que, em tese,

5) sua morte.

Qualquer tentativa de compreender as reações de luto como determinadas de fora é


mero determinismo. Não há essência, natureza, Deus, destino ou marcadores biológicos
capazes de determinar o luto. O enlutado, também, está condenado a ser livre. Seu luto lhe
pertence, é vivido à sua imagem, e ele o merece:

assim, não há acidentes em uma vida; uma ocorrência comum que


irrompe subitamente e me carrega não provém de fora; se sou
mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra, é feita à
minha imagem e eu a mereço (Sartre, 1943/2011, p. 678).
Optamos, pois, como é característico do método biográfico sartreano, por, tendo
nos ocupado das condições de possibilidade do luto na contemporaneidade – materialidade
histórica, cultura, mercantilização e patologização -, voltar à experiência mesma do enlutado,
para, neste vai-e-vem entre o singular e o universal, buscar uma totalização parcial, a lógica
da liberdade de um indivíduo em particular; dito de outro modo, discutir como seu luto lhe
pertence e como a perda se insere em seu projeto-de-ser. É a tal propósito que dedicamos o
próximo capítulo.
110

9. “QUANDO O AMOR É LEAL, O LUTO NÃO TEM FIM”

Somente os tolos tentam consolar

Eles não sabem as palavras de

Consolo são ofensas à dor da pessoa.

(Rubem Alves, 2008)

Filomena25 chegou ao meu26 consultório quatro meses após a morte do seu pai. Eu já
vinha atendendo, em psicoterapia, outros membros da família – a mãe, o irmão mais velho e a
sobrinha -, a partir de demandas diversas. Assim, foi por meio de sua mãe que,
primeiramente, tomei contato com Filomena. Durante suas sessões, a mãe dedicava bastante
tempo para falar da vida dos filhos: “meu propósito de vida é cuidar”. Sobre Filomena, dizia
que era a caçula mimada, a “do contra”, muito questionadora, mas a “filhinha do papai”: “só
ele mesmo pra conseguir as coisas com ela, os dois vivem um grude que é até bonito de ver”.

25 Nome fictício.

26 Neste capítulo, optamos pela escrita em 1ª. pessoa, no sentido de dar maior coerência ao relato.
111

Numa viagem com a mãe de Filomena, para participar de um congresso médico, o pai
sentiu, durante uma refeição, um desconforto no estômago, mas não deu a ele maior
importância. Ao chegar ao hotel, o mal-estar voltou mais forte: estava tendo um ataque
cardíaco. Ainda foi socorrido ao hospital, mas não resistiu. Uma vez que a morte aconteceu
em outro Estado, às providências funerárias, somou-se o traslado aéreo do corpo, tudo
organizado pela mãe de Filomena, sua única companheira de viagem. O corpo teve que
passar por todos os procedimentos da moderna tanatopraxia e de embalsamamento, pois a
viagem seria longa. O caixão foi meticulosamente lacrado, como é praxe nas companhias
aéreas, e encerrado numa grande caixa de metal, que foi despachada no compartimento de
carga da aeronave. Ele tinha 69 anos, viajou na cabine com a esposa para um congresso
médico e seu cadáver voltou ao Estado natal, como carga.

Além de lidar com o luto do marido e, mesmo como parte de tal processo, as
preocupações da mãe de Filomena com a filha se intensificaram de tal modo que este assunto
era quase o único em suas sessões:

ela não quer mais trabalhar; pegou enjoo do marido; vive no escuro;
só dorme; fala em morrer e tem também muito medo que eu morra;
importuna as pessoas, todo tempo, com esse assunto; tenho medo que
ela venha a fazer uma besteira. Todo dia, me perturba para ir ao
cemitério: só quer viver lá.
Havia uma disparidade patente na forma como cada familiar expressava seu pesar: o
luto vivido por Filomena incomodava e não convinha à família, pois era muito intenso e
questionador. Muitas vezes, no luto familiar, o “paciente identificado”, aquele que
“necessita” intervenção de especialistas, não esconde sua dor, exibindo-a durante um tempo
maior do que os que estão à sua volta acham adequado. Este indivíduo impede ou dificulta
que os demais familiares se adaptem ao que a sociedade espera deles: que superem, voltem a
trabalhar, fiquem “bem” ou, mesmo, encontrem felicidade. Tal diferença fez com a mãe de
Filomena a levasse a um psicólogo, “especialista em luto”, que a diagnosticou com “luto
patológico”. Logo, o saber do profissional de saúde mental foi incorporado pela família e
utilizado como justificava para o comportamento de Filomena: ela estava doente, os
especialistas a estavam tratando e ela voltaria ao normal.

Por indicação do psicólogo (e, obviamente, pelo desejo da família), foi marcada a
primeira consulta com o psiquiatra, que concordando com o diagnóstico do psicólogo,
prescreveu a Filomena: 30 mg. de mirtazapina (antidepressivo tricíclico, indicado, também,
112

para síndromes depressivas, depressão reativa, doença maníaco-depressiva bipolar, depressão


associada com ansiedade e melancolia), 225 mg. de venlafaxina (antidepressivo heterocíclico,
da classe dos inibidores seletivos de recaptação de serotonina e de noradrenalina), duas vezes
ao dia, e 0,25 mg. de clonazepam (tranquilizante do grupo dos benzodiazepínicos, com
indicações que vão desde transtornos de ansiedade até síndromes psicóticas27), ao deitar.

Como se recusara a retornar ao psicólogo anterior, por intermédio de sua mãe, veio
“conversar” comigo. Nossas sessões eram semanais e duraram por volta de quatro meses.
Quando chegou à primeira sessão, falou das consultas com os profissionais anteriores com
um misto de raiva e de dúvida quanto à sua sanidade mental:

eu peguei muita rejeição de psiquiatra, de médico. Pra cá, eu vim por


curiosidade, para saber se eu sou normal. Meu psicólogo anterior
disse que eu tenho luto patológico e que eu sou muito egoísta por não
querer deixar meu pai ir embora. Quem ele pensa que é pra me
chamar de egoísta? Nunca mais voltei lá.
O determinismo do diagnóstico era reconfortante para Filomena, mas, por ser “do contra”, se
impedia de aderir, completamente, ao saber médico ou ao que era dito a seu respeito: “só eu
sei o que eu sinto”. Gradativamente, nossa relação foi adquirindo um grau de confiança
suficiente para que ela desejasse me contar sua história, o que só ela sentia.

A família se formou e se consolidou numa cidade do interior do Ceará e, ali,


conseguiu prestígio e excelente condição financeira. Como muitas cidades do interior do
Estado, tinha pouco mais de 50.000 habitantes, sendo o catolicismo e o patriarcado muito
presentes em sua cultura. A principal atividade econômica do município ainda é a agricultura.

27 Os dados a respeito das drogas utilizadas por Filomena foram coletados de suas respectivas
bulas. No caso do clonazepam, as indicações de uso eram tão vastas, que vão referidas aqui:
“Distúrbio epiléptico: clonazepam está indicado isoladamente ou como adjuvante no tratamento
das crises epilépticas mioclônicas, acinéticas, ausências típicas (petit mal), ausências atípicas
(síndrome de Lennox-Gastaut). Clonazepam está indicado como medicação de segunda linha em
espasmos infantis (Síndrome de West). Em crises epilépticas clônicas (grande mal), parciais
simples, parciais complexas e tônico-clônico generalizadas secundárias, clonazepam está
indicado como tratamento de terceira linha. Transtornos de Ansiedade: como ansiolítico em geral:
Distúrbio do pânico com ou sem agorafobia; Fobia social. Transtornos do Humor: Transtorno
afetivo bipolar; tratamento da mania; Depressão maior: como adjuvante de antidepressivos
(depressão ansiosa e na fase inicial de tratamento). Emprego em síndromes psicóticas:
Tratamento da acatisia. Tratamento da síndrome das pernas inquietas. Tratamento da vertigem e
sintomas relacionados à perturbação do equilíbrio, como náuseas, vômitos, pré-síncopes ou
síncopes, quedas, zumbidos, hipoacusia, hipersensibilidade a sons, hiperacusia, plenitude aural,
distúrbio da atenção auditiva, diplacusia. Tratamento da síndrome da boca ardente.
113

Em um contexto de semi-árido e de pobreza, o pai de Filomena foi o primeiro médico da


cidade e sua mãe, a primeira dentista, gozando de grande notoriedade. O casal teve três filhos
e foi pelas mãos do próprio pai que Filomena veio ao mundo. Assim ela narra, numa rede
social28, dirigindo-se ao pai, já falecido, seu nascimento, em meados de 1985:

foi um dia de churrasco, cerveja e samba na minha casa, esticado


como o senhor gostava. Me esperavam para uma semana depois, mas
mamãe entrou em trabalho de parto. Quem ia fazer o parto? O senhor,
é claro! Mas nesse dia então, quem poderia fazer? O senhor, é claro.
Daí pediu à mamãe que só esperasse meia hora pra tomar um banho
com muita água na cabeça e tentar se recuperar... Não sei quem é o
mais doido, o senhor em fazer ou ela em deixar. Daí na cesárea, a
equipe médica disse que a barriga da mamãe transbordava em
lágrimas suas... E eu nasci... Então eu não poderia ser diferente do que
sou!
Em diversos momentos da psicoterapia, Filomena fez alusão à falta de referência que
a morte do pai lhe causou: “eu muito mais acatava os pontos de vista dele: casar, escolher
este marido, os concursos que fiz, não, a vida toda... Pequenas e grandes escolhas. Não tenho
mais em quem basear minhas decisões”. Relatou um episódio de depressão, aos 17 anos,
quando não conseguiu passar para a faculdade de medicina, carreira do pai e dos seus dois
irmãos; teve que cursar odontologia, como a mãe. Na mesma época, decidiu terminar um
namoro que o pai não aprovava. Na ocasião, levada ao psiquiatra, ele lhe receitou 20 mg. de
cloridrato de fluoxetina (antidepressivo da classe dos inibidores seletivos de recaptação de
serotonina, indicado, também, para tratamento de bulimia nervosa, de transtorno obsessivo-
compulsivo e de transtorno disfórico menstrual), que tomou, de bom grado, por um ano,
tendo sido iniciada no processo de medicalização do sofrimento humano.

Filomena havia chegado próximo aos 30 anos, sem ter sofrido uma experiência
significativa de luto. Sobre a absurdidade da morte, ela disse:

meu conceito de morte é velhice, nunca tinha perdido ninguém. Não


acho normal, nem justo. Já tinha perdido meus avós de velhice, com
85 e 87 anos de idade. Sinto saudade, morreram em casa, sem dor,
com a família, foi bem diferente. Aos 8, 9 anos de idade acompanhei

28 Dadas a sua riqueza, a sua publicação anterior pela própria Filomena, a sua distribuição em ordem
cronológica e com a permissão de Filomena, decidimos utilizar as postagens dela, quando relacionadas ao seu
luto e provenientes de suas redes sociais.
114

tudo. O velório deles foi em casa, lembro de muita dor, mas de


conformação, não de desespero.
A morte, associada à velhice, como discutimos em capítulos anteriores, é uma realidade
recente. Há pouco mais de 50 anos, a mortalidade infantil era altíssima e raros eram os casos
em que um velho, no interior do Ceará, passasse dos 80 anos. O pai de Filomena tinha 69
anos e uma condição de saúde sensível, mas, para ela, não era velho o suficiente para morrer.
Ela se sentia muito injustiçada com a perda dele.

Outra questão marcante, em seu discurso, era a comparação que fazia entre os ritos
mortuários atuais e os de seu tempo de infância. Vinte anos foram suficientes para modificar,
significativamente, os rituais funerários nas cidades do interior do Ceará. Atualmente, as
empresas funerárias tomaram para si mesmas a tarefa de dirigir os ritos de morte e os planos
funerários são grandes sucessos de venda. A família de Filomena também possuía um plano
funerário, feito pelo pai, a contragosto dela: “para que pensar nisso agora? Quando acontecer,
a gente vai lá e resolve”. No entanto, quando a morte de seu pai aconteceu, ela expressou
gratidão por não ter tido que lidar “com esse tipo de coisa”: “o pessoal da funerária é muito
preparado. Eles me ajudaram a entrar em contato com o cemitério, pouparam esse sofrimento.
Escolheram basicamente tudo”. O que realmente a incomodou foi a tanatopraxia. Ela
comparava o corpo morto do pai aos corpos dos avós: “Eles estavam normais, aquilo não me
assustou. Eu até peguei muito neles. Me impressionou muito porque o papai tava como um
boneco de cera igual a ele. Me agarrei tanto com ele que o formol me deu alergia; o olho
ardia, foi do embalsamamento”. O pai tinha se tornado um boneco de cera: era coisa, um em-
si, um embuste cheirando a formol.

O fato de ter ido ao terminal de cargas do aeroporto, buscar o corpo do pai, gerou
intenso sofrimento para todos os familiares, especialmente para Filomena: “a morte é muito
desumana, ele veio como carga. Desembarcou do avião nos carrinhos de carga, mas veio bem
camuflado. O pessoal que pesa, que transporta, é muito insensível”. De fato, para os
profissionais, o pai de Filomena, anteriormente um passageiro, havia deslizado,
integralmente, para o passado, para o mundo das coisas. Filomena, então, ainda que não
tivesse se dado conta, estava familiarizada com a profissionalização da morte e com sua
mercantilização.

Sobre o velório e o enterro de seu pai, Filomena contou que a grande quantidade de
pessoas presentes a fez se sentir acolhida, mas, também, oprimida. Uma tia lhe ofereceu um
115

“lexotanzinho”, que muitos familiares tomaram, mas a que ela se negou, achando que, se
tomasse, poderia não entender o que se passava, acreditando que tinha que sentir sua dor.
Filomena disse que, em nenhum momento, duvidou do que estava acontecendo, pois sabia
que o pai estava morto, mas, ao mesmo tempo, queixou-se: “o pior momento foi o de fechar a
tampa do caixão: eu virei de costas, não olhei. É muito cruel porque tira o ar dele, é muito
cruel”. Frequentemente, pessoas enlutadas se referem ao fechamento do caixão como o pior
momento do velório. É um choque de realidade no pensamento mágico de que, a qualquer
momento, o falecido pode voltar à vida, de que tudo não passou de um pesadelo. A jornalista
americana Joan Didion (2005/2006) narra, num livro, as mortes do marido e da filha, no
espaço de um ano. O título é significativo: O Ano do Pensamento Mágico: A Vida Muda
Rápido/ A Vida Muda num Instante/ Você Senta pra Jantar e a Vida que Você Conhecia/
Acaba de Repente. A narrativa gira em torno de todo o esforço que ela teve de fazer para
abrir mão do pensamento ilusório e onipotente de que ambos poderiam voltar. Ao tratar dos
obituários dos jornais, ela afirma:

o New York Times sabia. O Los Angeles Times sabia. Entretanto, eu


mesma não estava preparada para aceitar esta notícia como definitiva.
Em algum nível, eu acreditava que o que tinha ocorrido continuava
podendo ser revertido. (...) Trazê-lo de volta tinha sido, durante
aqueles meses todos, o meu objetivo secreto, o meu truque mágico (p.
24).
Outra estratégia utilizada por Didion (2005/2006), por muitos outros enlutados e por
Filomena é a de crer que o falecido pressentiu sua morte, de algum modo. Assim, escreveu
Filomena em sua rede social: “no seu último aniversário entre nós... E nós questionávamos pq
não esperar os 70... E o senhor respondeu que não sabia se nos 70 estaria aqui... Que
pressentimento!” Seu pai havia decidido, contra todas as opiniões da família, fazer uma
enorme festa em comemoração aos seus 69 anos. Toda a família esteve presente, mesmo os
que moravam em outras cidades. Foi uma festa memorável. É possível que uma pessoa possa
sentir o declínio de sua saúde ou, numa doença fora de possibilidade terapêutica, sentir a
proximidade do fim. No entanto, também encontramos tal fenômeno em casos de mortes
súbitas, de acidentes ou de desastres. Ao atribuir ao falecido poderes sobrenaturais de prever
sua própria morte ou, a posteriori, de interpretar comentários, atitudes ou comportamentos do
morto como presságios, é como se o enlutado buscasse reassumir o controle e encontrar
sentido no vazio da morte, como se ela não fosse arbitrária e absurda, mas passível de ser
antecipada.
116

A raiva, o ódio e o desprezo marcaram, sobremaneira, o luto de Filomena, levando-a,


muitas vezes, ao isolamento ou ao confronto. Como uma reação típica na vida dela, sua raiva
lhe pertencia e ela a utilizou para perseguir um sentido e uma justificativa para a morte do
pai. Seu luto era à sua imagem e semelhança, uma vez que, segundo Sartre (1943/2011), o
que é terrível não é morrer, mas morrer em vão. Inicialmente, a raiva esteve dirigida à equipe
médica que atendeu o pai: após pesquisar sobre sua doença e a respeito de todos os
procedimentos de tratamento possíveis para ele, teve certeza de que a conduta não tinha sido
adequada e de que ele poderia ter sido salvo. Visitou médicos, amigos do pai, para questioná-
los sobre algum procedimento que pudesse ter levado a outro desfecho. Decidiu processar a
equipe médica, mas, não encontrando apoio na família, não levou à frente a ideia. Culpar ou
questionar profissionais de saúde é um comportamento extremamente comum em enlutados.
Ao entregar um familiar ao saber técnico, nada mais se pode esperar senão a cura. Ela
mesma, como profissional da saúde, lançou mão do seu conhecimento técnico (pesquisas e
contatos), na busca de obter, sobre a rebeldia da morte, algum controle. Posteriormente, o
alvo de seu ódio era a equipe que a acompanhava, o psiquiatra e o psicólogo: eles não a
entendiam, julgavam-na louca. “Será que nunca haviam perdido o pai? Meu psicólogo
anterior me deu um livro sobre luto, ciclos, fases do luto, até espiritismo. Me chamou de
egoísta. Depois, eu descobri que ele cobrava preços diferenciados: de mim cobrava mais
porque sabia que eu podia pagar”. Abandonou, por conta própria, toda a medicação
psiquiátrica e, também, não mais voltou ao psiquiatra. Entretanto, em alguns momentos,
comigo, ela se permitia duvidar de sua saúde mental e concordar com a conduta do
psiquiatra:

às vezes, eu chego a pensar que estou mesmo à beira da loucura, não


controlo meus pensamentos, meus sentimentos. Talvez eu deva
reconhecer que preciso de remédio. O remédio me ensinou a não me
expor tanto. As pessoas não merecem ouvir o que eu digo. Eu recebo
muita crítica: você precisa de um tratamento. Desde que parei o
remédio, estou mais irritada.
Numa situação de dor extrema, é consolador que o enlutado pense que é doente e que há algo,
um tratamento ou um remédio, que possa fazer a dor passar. Filomena “flertava” com a
possibilidade de assumir o papel de doente mental, de ser classificada, medicada e
anestesiada, mas ela era “do contra”, teimosa, a “filhinha do papai”, e acabava por escolher
dirigir sua raiva aos outros. Filomena odiava “ser digna de pena” ou que as pessoas tentassem
consolá-la. Passou a evitar amigos e alguns familiares. Deixou de frequentar a igreja católica:
“tenho ódio daquele padre: desde o dia do enterro, ele ficou, lá, falando como se fosse
117

normal”. Durante um tempo, buscou guarida na doutrina espírita, assim como a irmã mais
velha. O espiritismo acolhia todas as suas experiências de estar na presença do pai, de sentir
seu cheiro, de ouvir sua voz e de ter certeza de que ele estava por perto, mas isto não foi
suficiente para mudar de religião: “acho que, aos poucos, a alma vai perdendo autorização
para fazer contato. Há coisas no espiritismo que eu acredito, que me confortam. Outras me
incomodam, minha irmã me disse que, no plano espiritual, ele pode ter outras famílias, outros
filhos, de outras encarnações”. Ela estava imersa no catolicismo: sua cidade era católica; seus
pais eram católicos; havia sido batizada; estudou a vida inteira em escola católica; fez
primeira comunhão, crisma e casou na igreja católica.

Enraivecer-se com pessoas era relativamente fácil, até terapêutico, mas a relação de
Filomena com Deus mostrou-se bastante ambivalente. Ora, o odiava: “tenho muita raiva de
Deus: eu não merecia isso. Ele tirou de mim o direito de conviver com ele, de ver ele como
avô dos meus filhos, de tudo o que eu não vou poder...”; ora, se sentia culpada e temia ser
castigada: “acho que a morte é um castigo. Minha família está sendo castigada por algo que
eu não sei o que é. Não aceito, não dá pra entender”. Em sua rede social, escreveu: “que
Maria Santíssima possa interceder junto a Jesus pela nossa família. Eu tenho absoluta certeza
do seu merecido lugar... lindo e confortável. Livre de todas as dores e acompanhando nossa
caminhada até nosso breve reencontro”. Por fim, reconciliou-se com Deus e com a igreja
católica, assim como com o trabalho. Atribuía, com frequência, sua força a estes dois fatores.
No entanto, uma experiência, em particular, revelou-se um ponto de virada no processo de
luto de Filomena. Em meio a toda a sua raiva, ela “se encontrou” com o pai. O que a
psiquiatria denomina de “delírio” ou de “alucinação visual”, ela descreveu, simplesmente,
como um “encontro” com o pai:

a campainha tocou, de madrugada, duas vezes. Meu marido nem se


mexeu. Eu mesma fui ver: ele estava de azul bebê, com uma luz
muito branca em volta; tava tranquilo, mas triste. Ele disse: ‘Olha, a
gente não tem escolha, só tem que se conformar’. Eu peguei nele,
coloquei minha cabeça no peito dele, senti o pelo do peito, o cheiro.
‘Eu sempre vou estar por perto, eu já aceitei, não queria, mas você
tem que aceitar e seguir’. Eu não tava sonhando: eu tava acordada, fui
me deitar e dormi bem melhor.
Depois, ela passou a sonhar, frequentemente, com o pai, sobre questões cotidianas,
ocasiões em que ele a assegurava de que estava bem e lhe dava conselhos. O que o saber
médico classifica como “manifestação psicótica”, foi, para ela, uma experiência apaziguadora
em relação ao seu luto, que cabia nele e que, para ela, fazia todo sentido: permitiu integrar a
118

ausência física do pai em seu projeto-de-ser-para-ele. Ele estaria sempre presente, de alguma
forma e, nos sonhos dela, seguiria sendo sua referência para pequenas e grandes decisões.

A internet foi outra ferramenta amplamente utilizada por Filomena para “se
comunicar” ou “se dirigir” ao pai morto, assim como o fez Beauvoir (1981/1984), com
Sartre, por meio da literatura, não exatamente como um artifício retórico, mas como um
alento mágico: a continuidade da relação, a crença de que o falecido se encontra em algum
lugar e de que ele a ouvia:

semana muito difícil... Da dor que não tem remédio. Faz um ano,
mas parece que foi ontem. Pai, você curou todas as minhas dores, as
grandes e as pequenas, mas essa não há quem cure, não há cura!
Seguimos seus passos todos os dias, torna o fardo mais leve, o
caminho do bem. Já vi que não temos escolha, se não seguir... E sei,
também, que ir, agora, tão cedo, não foi escolha sua, nem poderia:
jamais deixaria sua família sofrer. Por isso, estamos tentando superar
isso, para nos ver sofrer menos.
Como guardiã do pai morto, Filomena também decidiu mantê-lo vivo socialmente,
assegurando-se de que seus contemporâneos não o esqueceriam. Também por meio das suas
redes sociais, ela escreveu:

saber o quanto nosso pai é querido nos faz ter um orgulho ainda maior
de sermos filhos dele. Saber de suas benfeitorias, suas caridades e
caráter sabemos sim, e tudo isso hj29 está aos olhos e julgamento de
Deus. Mas em ouvirmos o povo, os amigos nos faz ter a certeza que
Deus precisa dos bons.
Garantir ao pai um legado “vivo”, divulgado por meio da internet, não apenas um punhado de
memórias e de feitos compartilhados por alguns amigos e familiares, era uma forma de
protegê-lo da “verdadeira” morte: o aniquilamento absoluto. O uso das redes sociais como
mecanismo de experimentar o luto é um fenômeno notável. Novas pesquisas poderão nos
oferecer uma compreensão mais profunda do que significa manter o perfil de um morto,
comunicar-se com ele e fazer, daquele espaço virtual, um ponto de encontro de amigos,
familiares e até desconhecidos. Por ora, e neste caso, especificamente, entendemos o uso das
redes sociais como uma forma de manter a relação com o morto, de se comunicar com ele, de
impedir que sua história caia no esquecimento (legado) e de publicizar sua dor, não
necessariamente para obter apoio social.

29 Decidimos manter o formato da comunicação da internet.


119

Assim, Filomena elegeu a si mesma para aderir seu ser, aderido ao desejo do pai,
escolhendo a má-fé de ser quem o pai desejava, fazendo com que ela vivesse numa espécie
particular de liberdade tutelada, numa ilusão de não ter que escolher, senão “acatando-a”. Na
biografia de Baudelaire, Sartre (1947/1968) assim se expressou sobre tal fenômeno,
atrelando-o, particularmente, à infância e à relação com a mãe:

o caráter sagrado desta união não podia ser melhor expressado: a mãe
é um ídolo, o filho está consagrado pelo afeto que ela professa: longe
de se sentir uma existência errante, vaga e supérflua, se pensa como
filho de direito divino. Está sempre vivo nela: isto significa que se
abrigou em um santuário; não é, não quer ser senão uma emanação da
divindade, um pequeno pensamento constante de sua alma. E
precisamente porque se absorve inteiro em um ser que parece existir
por necessidade e direito, está protegido contra toda inquietação, se
funde com o absoluto, está justificado (p. 16).
A relação de Filomena com o pai era absoluta, pois ele a justificara: ela veio ao mundo por
suas mãos e ele se mantém nela por meio de seu desejo, o que se manifesta de forma ainda
mais significativa, uma vez que tal situação se mantém até a idade adulta. O que se poderia
esperar da ruptura de uma relação como esta? Toda sua existência, todos os seus
comportamentos e todas as suas escolhas perderam sentido, já que não havia mais a
referência de seu pai. Ela manifestou tal falta de sentido, textualmente:

não consigo mais fazer planos, não projeto nada, não tenho
perspectiva de vida, vou vivendo um dia após o outro, faço as coisas
porque é o jeito. Sempre tive muita vontade de ter filhos, mas depois
que papai morreu, minha vontade é zero. Eu entendi que eu planejava
isso com papai, ele tinha que estar perto na hora do parto.
A má-fé nunca é um projeto de sucesso, e Filomena, no decorrer do processo
psicoterapêutico, foi capaz de entrevê-lo. Ela se colocou numa bifurcação: precisava escolher
entre manter a relação com o pai morto, a qualquer custo, ou ser jogada, irremediavelmente e
de uma só vez, na dor, na angústia, no nada, ou seja, na liberdade. O mundo já não lhe
oferecia as mesmas condições de existência, como antes: ela lançou mão da comédia (termo
caro à Sartre, como veremos, a seguir), que se tornou seu luto, adotando comportamentos que
visavam à manutenção da relação com seu pai. De vários modos, a partir de sua conduta,
conferiu, magicamente, ao mundo, a presença do pai:

todos esses gestos, essas palavras, essa conduta, não são percebidos
por eles mesmos. Trata-se de uma pequena comédia que represento
debaixo do cacho para conferir às uvas a característica de “muito
verdes”. Confiro magicamente à uva a qualidade que desejo. Aqui a
120

comédia só em parte é sincera. Mas, se a situação é mais urgente e a


conduta encantatória for efetuada com seriedade, eis a emoção
(Sartre, 1939/2006, p. 66, grifo nosso).
Quanto maiores a dor e a sua expressão, o luto, mais séria a comédia. O luto e suas
manifestações são, muitas vezes, as únicas evidências da existência daquele que se foi: são
provas do que foi vivido, experimentado junto; são o único elo entre o enlutado e aquele que
partiu para sempre. Nas palavras de Filomena: “quando o amor é leal, o luto não tem fim”.
Acreditamos que tal escolha se deve, em parte, a seu apego ao próprio luto e à sua dificuldade
de “superá-lo”, nos moldes exigidos pela sociedade contemporânea. Longe de ser um luto
patológico, considerando que tal forma de pesar exista, o luto de Filomena nada mais é do
que a lógica de sua liberdade frente à morte: ela o merece.

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É próprio de uma pesquisa ser


indefinida. Nomeá-la e defini-la é fechar
o ciclo: que resta?

(Sartre, 1954/1966, p. 05)

Há mais de quinze anos, estivemos debruçados sobre o fenômeno do luto, em diversos


contextos: sua transformação, ao longo da história; as condições de possibilidade de
enfrentamento que as diversas culturas produzem, por meio de seus rituais fúnebres e perdas
e separações nos âmbitos: organizacional, educacional, hospitalar, clínico e em situações de
emergências e desastres. Inquestionavelmente, uma jornada marcada por grandes desafios,
mas nenhum maior do que buscar uma compreensão da fenomenologia existencial sartreana
para o luto na contemporaneidade. Nosso intento foi, incontáveis vezes, desestimulado por
profissionais que já tinham maior familiaridade com a obra de Sartre, em sua maioria,
121

filósofos, sob a argumentação de que Sartre não chegou a desenvolver um método próprio
para a pesquisa em psicologia e que o luto é um tema absolutamente periférico em sua
filosofia. Ambas as alegações se mostraram verdadeiras, o que acabou por tornar o processo
de pesquisa ainda mais moroso e laborioso, mas, também, mais empolgante e original. Como
um filósofo compulsivo pela escrita, a densidade e a vastidão são características da obra de
Sartre.

Com o objetivo principal de propor compreender o luto na contemporaneidade a partir


da fenomenologia existencial de Sartre, iniciamos um longo e extraordinário mergulho em
sua filosofia: precisávamos extrair, daí, os principais conceitos para, apenas, posteriormente,
pensar o luto nestes termos. Encontramos em Sartre muito mais que isto. Em seu prodigioso
conceito de situação, encontramos as bases para sustentar nossas principais premissas em
relação ao luto na contemporaneidade:

1) a mercantilização do sofrimento, com rituais prêt-à-porter, esvaziados de sentido;

2) a patologização do luto e sua consequente medicalização e;

3) a explicação “pasteurizada” das bases neurobiológicas do luto, atribuindo,


inteiramente, o luto à programação genética e aos circuitos cerebrais.

Estas são as condições de possibilidade de enlutamento na nossa sociedade: são estratégias de


má-fé. A etiqueta fúnebre é outra versão da etiqueta cotidiana: o choro e a tristeza não
convêm; é importante que a perda seja sentida o mínimo possível e que a comunidade se
aperceba dela de modo muito superficial e rápido:

1) o cadáver deve ser um simulacro aprimorado do corpo vivo e, ante a sua desaparição,
prontamente se apresentam o dever moral e a obrigação social de evitar a dor em
público;

2) a retomada de uma vida produtiva, funcional e; enfim,

3) o compromisso de parecer feliz o mais rápido possível.

Coube às empresas funerárias cumprir a missão de transformar os rituais de morte em


produto, esvaziando-os de suas funções simbólicas e cabendo, ao enlutado, o papel de
consumidor e de espectador da trama que se desenrola: um espectador com o autocontrole
122

que corresponde à decência, à discrição, à boa educação e à dignidade. Torna-se


imprescindível que o luto seja, sobretudo, vivido de forma saudável.

O processo que deslocou o luto do terreno da experiência humana universal para o


campo do saber médico ainda está em curso. Charles Darwin (1872) e sua “descoberta” dos
músculos-do-luto, Lindemann (1943) e sua categorização clínica da resposta à perda,
Myerson e seu tratamento com eletrochoques, lançaram as bases que permitiram que
pesquisadores mais atuais pudessem partir da premissa de que existe uma forma saudável
(certa) de viver o luto, que pode ser desvirtuada para uma configuração patológica: luto
patológico; luto complicado; luto adiado; luto prolongado; luto traumático; melancolia; e, até,
o atualíssimo transtorno do luto complexo e persistente, proposto pelo DSM-5.

O advento do DSM, principalmente a partir de sua terceira edição, foi uma ferramenta
decisiva na patologização do luto. Discutimos como, ao longo da história do manual,
mundialmente reconhecido como a “bíblia da psiquiatria”, o luto foi incorporado como
diagnóstico diferencial, critério de exclusão, agravante e/ou fator desencadeante de
transtornos mentais e foco de atenção clínica, até satisfazer as condições para alçar “voo
solo”. Numa culminação de todo este processo de patologização e de medicalização do luto,
está descrito na Seção III do DSM-5, Condições para Estudos Posteriores, como transtorno
do luto complexo e persistente. O transtorno é apresentado com critérios diagnósticos,
prevalência, curso, fatores de risco, diagnóstico diferencial, comorbidades e prognóstico,
incluindo, ainda, um especificador “luto traumático”.

Já consternados com a abordagem do luto pelo DSM, nos encontramos ainda mais
apreensivos ao deparar com o projeto do NIMH (National Institute of Mental Health), o
RDoC, que está assentado em “ciência de ponta” (genética e neuroimagem) e busca “provas”
da origem biológica dos transtornos mentais, dentre eles, o luto, já assim categorizado pelo
DSM. O que se desenrola sob nosso olhar é um projeto que visa a transformar o luto (e outras
manifestações humanas) em mero produto de circuitos cerebrais. Sob a denominação de
“medicina de precisão”, encontramos o neurodeterminismo: a crença de que a atividade
cerebral, medida por meio de exames de imagem, é a maneira mais precisa e científica de
compreender o comportamento humano. Neste sentido, um fenômeno tão complexo como o
luto é traduzido, exclusivamente, em termos de atividade neural.

No entanto, uma definição do roteiro da experiência da perda (ou de qualquer outra


experiência humana) não se sustenta. Caso fosse possível, como explicar as variações das
123

expressões de pesar ao longo da história, através das culturas e, mesmo, de pessoa para
pessoa? Como vimos, a compreensão do luto de Filomena não se inicia no capítulo 9, mas no
4, no qual discutimos em quais termos é o mundo se oferece, contemporaneamente, aos
enlutados. Da mesma forma, não se encerra no relato dela, mas se produz, exatamente, na
dialética liberdade/situação, ou de modo mais simplório, no que ela fez do que lhe fizeram. O
trabalho em psicoterapia com Filomena ocorreu nos moldes do método progressivo-
regressivo de Sartre, no vai-e-vem de sua situação (de suas condições de possibilidade, do
que a realidade lhe oferecia) e de sua liberdade (das escolhas que ela fez diante disso).
Pudemos compreender que não há algo como um luto patológico, mas que cada luto se insere
no projeto-de-ser de cada enlutado, em uma dada cultura e num tempo histórico específico. O
que a contemporaneidade oferece é a mercantilização dos ritos, a negação do sofrimento e a
medicalização do luto, que não siga suas rígidas regras de etiqueta e de saúde. Escolher-se
doente é um caminho de má-fé possível e, cada vez mais, eleito, uma vez que traduz a
expectativa da coletividade e reproduz o saber médico. Filomena foi do “contra”, rejeitando o
diagnóstico, a medicação, viveu (e ainda vive) seu luto à sua maneira.

Temos clareza da nossa contribuição para o campo da pesquisa do luto, mas, da


mesma forma, restam claras as limitações de nossa pesquisa, principalmente no que concerne
à falta de um método sartreano para a pesquisa psicológica e à ausência de aprofundamento
teórico nas conexões entre as obras de Sartre, Marx, Husserl e Heidegger. De todo modo,
certamente, abrimos uma possibilidade de promover pesquisas futuras sobre a fenomenologia
existencial sartreana e a psicopatologia, sobre a relação do luto contemporâneo com a
internet, sobre os efeitos do uso de drogas psicotrópicas no longo prazo em enlutados e sobre
os desdobramentos do luto nas próximas edições do DSM e no desenvolvimento do RDoC.

À guisa de conclusão, defendemos, fortemente, que o luto não é doença, não deve ser
patologizado ou medicalizado, nem mesmo sofrer o policiamento do dever moral da
felicidade. Não é nas reentrâncias cerebrais, nem nas imagens coloridas dos exames de
imagem que devemos buscar compreender o luto, mas no mundo como se apresenta a cada
indivíduo e nas escolhas que ele faz diante de seu projeto-de-ser livre. O luto não é mais que
a outra face do amor. Somente aquele que ama é capaz de sofrer a dor da perda. O luto exige
ser vivido e nenhuma teoria pode dar conta da experiência individual. Cada um resolve (ou
não) seu luto à sua maneira, se reinventa como pode. O luto é o preço do amor.
124

REFERÊNCIAS

Albert, P. & Benkelfat, C. (2013). The neurobiology of depression—revisiting the serotonin


hypothesis. Biological Sciences, 368 (1615). Disponível em
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3638388/

Alves, R. (2008). A morte e o silêncio. Folha de São Paulo. Disponível em


http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0912200806.htm. Acesso em dezembro
de 2017.

American Psychiatric Association. (1952). Diagnostic and Statistical Manual: Mental


Disorders. Washington, DC: Author. Disponível em
http://www.turkpsikiyatri.org/arsiv/dsm-1952.pdf.
125

American Psychiatric Association. (1968). Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders (2nd ed). Washington, DC: Author. Disponível em
http://www.behaviorismandmentalhealth.com/wp-content/uploads/2015/08/DSM-
II.pdf.

American Psychiatric Association. (1980). Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders (3rd ed). Washington, DC: Author. Disponível em
https://pt.scribd.com/doc/286872192/DSM-III-pdf.

American Psychiatric Association. (1987). Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders (3rd ed rev). Washington, DC: Author.

American Psychiatric Association. (1994). Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders (4th ed). Washington, DC: Author.

American Psychiatric Association. (2000). Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders (4th ed rev). Washington, DC: Author.

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental


Disorders (5th ed). Washington, DC: Author.

American Psychological Association. (2016). The Road to Resilience. Disponível em


http://www.apa.org/helpcenter/road-resilience.aspx. Acesso em setembro de 2016.

Ariès, P. (2003). História da Morte no Ocidente (Priscila Siqueira, Trad.). Rio de Janeiro:
Ediouro (Original publicado em 1975).

Arroyo, C. (2007). Qualidade de Serviços de Assistência à Saúde: O Tempo de Atendimento


da Consulta Médica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto/SP.

Assaré, Patativa. (2008). Cante lá que eu canto cá: Filosofia de um Trovador Nordestino. Rio
de Janeiro: Vozes (Original publicado em 1986).

Assareh, A., Sharpley, C., McFarlane, J. & Sachdev, P. (2015). Biological Determinants of
Depression Following Bereavement. Neurosci Biobehav Rev, 49, 171-181.

Barros, M., César, C., Carandina, L. & Torre, G. (2006). Desigualdades Sociais na
Prevalência de Doenças Crônicas no Brasil, PNAD-2003. Ciência & Saúde Coletiva,
11(4), 911-926.
126

Beauvoir, S. de. (1985). A Very Easy Death (Patrick O’Brian, trad.). New York: Pantheon
Books (Original publicado em 1964).

Beauvoir, S. de. (1984). Adieux: a Farewell to Sartre (Patrick O’Brian, trad.). New York:
Pantheon Books (Original publicado em 1981).

Biondi, M., Costantini, A. & Parisi, A. (1996). Can Loss and Grief Activate Latent
Neoplasia? A clinical study of possible interaction between genetic risk and stress in
breast cancer. Psychoter Psychosom, 65(2), 102-105.

Bojanovsky, J. (1980). When is suicide a risk for widowed? Neurochirurgie and Psychiatrie,
127(1), 99-103.

Bowlby, J. (1998). Apego e Perda: Tristeza e Depressão (Valtensir Dutra, trad.). São Paulo:
Martins Fontes (Original publicado em 1973).

Brasil. Ministério da Saúde. (2011). Saúde Brasil 2011: uma análise da situação da mulher e
a vigilância da saúde da mulher. Disponível em
bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_brasil_2011.pdf
Calcaterra, N. & Barrow, J. (2014). Classics in chemical neuroscience: diazepan (valium).
ACS Chemical Neuroscicence, 16(4), 253-60.
Carneiro, S. V. (2004). A Demanda do Pediatra ao Serviço de Psicologia frente à Morte de
Pacientes (Monografia de Pós-graduação). Universidade de São Paulo, São Paulo/SP.

Carneiro, S. V. (2006). Lágrimas no Berço: Luto Familiar por Natimorto (Dissertação de


Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/SP.

Cassel, D., Salinas, C. & Winn, P. (2005). The Encyclopedia of Death and Dying. New York:
Facts on File.

Clonazepam. (2016). Miriam Onoda Fujisawa. Campinas/SP: Medley Indústria Farmacêutica


Ltda. Bula de remédio.

Cloridrato de Venlafaxina, (2016). Sônia Albano Badaró. São Paulo/SP: Eurofarma


Laboratórios S.A. Bula de remédio.

Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará. (2016). Estatísticas. Disponível em


www.cremec.com.br.
127

Cordeiro, M. (2014). Diálogos entre a neurociência e a psicologia, com foco no luto: um


estudo bibliográfico (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo/SP.

Cotington, E., Mathew, K., Tablott E. & Kuller, L. (1980). Enviromental events preceeding
sudden death in women. Psychossomatic Med 42(6), 567-574.

DaMatta, R. (2011). A Casa & a Rua: Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco (Original publicado em 1984).

Darwin, C. (1872). The Expression of the Emotions in Man and Animals. London: John
Murray. Disponível em https://archive.org/details/expressionofemot1872darw.

Descartes, R. (2007). Discurso sobre o método. (Original publicado em 1637). Disponível em


http://www.intratext.com/IXT/POR0305/.

Didion, J. (2006). O Ano do Pensamento Mágico (Paulo Andrade Ramos, trad.). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira (Original publicado em 2005).

Fagundes, D. & Taha, M. (2004). Modelo animal de doença: critérios de escolha e espécies
de animais de uso corrente. Acta Cirúrgica Brasileira, 19(1), 59-65.

Frances, A. (2013). Saving Normal: An Insider’s Revolt against Out-of-control Psychiatric


Diagnosis, DSM-5, Big Pharma and the Medicalization of Ordinary Life. New York:
HarperCollins Publishers.

Freed, P., Yanagihara, T., Hirsch, J. & Mann, J. (2009). Neural Mechanisms of Grief
Regulation. Biol Psychiatry, 66(1), 33-40.

Freire Filho, J. (2010). Ser feliz hoje: O Imperativo da Felicidade. Rio de Janeiro: Editora
FGV.

Freud, S. (2010). Luto e Melancolia. Em: Obras completas de Sigmund Freud, vol. XII. São
Paulo: Companhia das Letras (Original publicado em 1917).

Gorer, G. (1955). The Pornography of death. Encounter, 49-52. Disponível em


https://www.unz.org/Pub/Encounter-1955oct-00049.
128

Gündel, H., O’Connor, M., Littrell, L., Fort, C. & Lane, R. (2008). Functional neuroanatomy of
grief: an FMRI study. Am. J. Psychiatry, 160(11), 1946-1953.

Haque, A. S., Shamim, K., Siddiqui, N. H., Irfan, M. & Khan, J. A. (2013). Death certificate
completion skills of hospital physicians in a developing country. BMC Health Services
Research, 13, 205.

Heidegger, M. (2005). Ser e Tempo (Márcia Sá Cavalcante, trad.). Rio de Janeiro: Vozes
(Original publicado em 1927).

Heywood, C. (2004). Uma História da Infância (Roberto Cataldo, trad.). Porto Alegre:
Artmed (Original publicado em 2001).

Hodgkinson, P. (1998). Coping with Catastrophe. London: Routledge.

Holland, J., Rozalski, V., Thompson, K., Tioqson, R., Schatzberg, A., O’Hara, R. &
Gallager-Thompson, D. (2014). The unique impact of late-life bereavement and
prolongued grief on diurnal cortisol. J Gerontoc B Psychol Sci Soc, 69(1), 4-11.

Horwitz, A. & Wakefield, J. (2011). The Loss of Sadness: How Psychiatry Transformed
Normal Sorrow into Depressive Disorder. New York: Oxford University Press.

Husserl, E. (2006). Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia
Fenomenológica. São Paulo: Ideias e Letras (Original publicado em 1913).

Imber-Black, E. (1998). Os rituais e o processo de elaboração. In: Walsh, F. & McGoldrick,


M. Morte na Família: Sobrevivendo às Perdas (pp. 229-245). (Cláudia Dornelles, trad.).
Porto Alegre: Artmed (Original publicado em 1991).

Insel, Thomas. (2013). NIMH: Transforming Diagnosis. Disponível em


http://www.nimh.nih.gov/about/director/2013/transforming-diagnosis.shtml.

Irwin, M. & Weiner, H. (1987). Depressive symptoms e immune function during


bereavement. In Zisook (ed.), Biopsychosocial Aspects of Bereavement. Washington:
American Academy Press.

Klerman, G. & Izen, J. (1977). The effects of bereavement and grief on physical health and
general well-being. Adv Psychossom Med, 9, 63-104.
129

Kushner, H. (2004). When Bad Thinghs Happens to Good People. New York: Anchor
(Original publicado em 1981).

Laing, R. & Cooper, D. (1964). Razón y Violencia: Una Década del Pensamiento Sartriano.
Buenos Aires: Paidós.

Lindemann, E. (1944). The symptomatology and management of acute grief. American


Journal of Psychiatry, 101, 141-149. Disponível em
http://www.nyu.edu/classes/gmoran/LINDEMANN.pdf.

Mann, J. (2013). The serotonergic system in mood disorders and suicidal behavior. Phil.
Trans. R. Soc. B 368 (1615). Disponível em
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3638390/

Mirtazapina. (2016). Clarissa Larissa S. Montanhes. Cambé/PR: Sandoz do Brasil Indústria


Farmacêutica Ltda. Bula de remédio.

Myerson, A. (1944). The use of shock therapy in prolonged grief reactions. New England
Journal of Medicine, 23(9). Disponível em
http://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJM194403022300903.

Najib, A., Lorberbaum, J., Kose, S., Bohning, D. & George, M. (2004). Regional brain
activity in women grieving a romantic relationship breakup. Am. J. Psychiatry, 161(12),
2245-2256.

O’Connor, M. (2005). Bereavement and the brain: invitation to a conversation between


bereavement researchers and neuroscientists. Death Stud, 29(10), 905-922.

O’Connor, M., Wellisch, D., Stanton, A., Eisenberger, N., Irwin, M. & Lieberman, M.
(2008). Craving love? Enduring grief activates brain’s reward center. Neuroimage,
42((2), 969-972.

O’Connor, M. (2012). Immunological and neuroimaging biomarkers of complicated


grief. Dialogues in Clinical Neuroscience, 14(2), 141–148. Disponível em
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3384442/.

Oliveira, M. & Gomes, L. (2011). A Praga das Consultas a Jato. ISTOÉ, n. 2196. Disponível
em http://istoe.com.br/182300_A+PRAGA+DAS+CONSULTAS+A+JATO/. Acesso em
jul/2016.
130

Osterweis, M., Solomon, F. & Green, M. (1984). Bereavement: Reactions, Consequences and
Care. Washington: National Academy Press.

Parkes, C. (1998). Luto: Perdas na Vida Adulta (Maria Helena Franco Bromberg, trad.). São
Paulo: Summus (Original publicado em 1972).

Pérez, H., Ikram, M., Direk, N., Priegerson, H., Freak-Poli, R., Verhaaren, B., Hofman, A.,
Vernooij, M., Tiemeier, H. (2015). Cognition, structural brain changes and complicated
grief: a population-based study. Psychol. Med., 45(7), 1380-1399.

Priegerson, H., Maciejewski, C., Reynolds, C., Bierhals, A., Newsom, J., Fasiczka, A., Frank,
E., Domam, J. & Miller, M. (1995). Inventory of complicated grief: a scale to measure
maladaptive symptoms of loss. Psychiatry Research, 59, 65-79. Disponível em
https://www.researchgate.net/profile/Holly_Prigerson/publication/14432009_Inventory_
of_Complicated_Grief_a_scale_to_measure_maladaptive_symptoms_of_loss/links/0046
35298b4d78ea35000000.pdf.

Rapley, M., Moncrieff, J. & Dillon, J. (2011). De-Medicalizing Misery: Psychiatry,


Psychology and Human Condition. New York: Palgrave.

Rajkowska, G. (2003). Depression: what we can learn from postmortem studies.


Neuroscientist. 9, 273–284. Disponível em
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12934710. Acesso em fevereiro de 2016.

Rodrigues, J. (1983). Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Rosenblatt, P., Walsh, R. & Jackson, D. (1976). Grief and Mourning in Cross-Cultural
Perspective. New York: Human Relations Area Files Press.

Rosenblatt, P. (1993). A social constructionist perspective on cultural differences in grief. In


Stroebe. M. S., Stroebe, W. & Hanson, R. Handbook of Bereavement: theory, research
and intervention (pp. 285-300). Cambridge: Cambridge University Press.

Rosenhan, D. L. (1973). On being sane in insane places. Science, 179(70), 250-258.


Disponível em
http://isites.harvard.edu/fs/docs/icb.topic625827.files/On_Being_Sane_In_Insane_Places
-1.pdf.
131

Sartre, J-P. (2008). A Imaginação (Paulo Neves, trad.). Rio de Janeiro: LP&M (Original
publicado em 1936).

Sartre, J-P. (2005). A Náusea (R. Braga, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Original
publicado em 1938).

Sartre, J-P. (2006). Esboço para uma Teoria das Emoções (Paulo Neves, trad.). Rio de
Janeiro: LP&M (Original publicado em 1939).

Sartre, J-P. (1996). O Imaginário: Psicologia Fenomenológica da Imaginação (Duda


Machado, trad.). São Paulo: Ática (Original publicado em 1940).

Sartre, J-P. (2011). O Ser e o Nada: Ensaio de Fenomenologia Ontológica (P. Perdigão,
trad.). Rio de Janeiro: Vozes (Original publicado em 1943).

Sartre, J-P. (2008). Entre Quatro Paredes (Guilherme de Almeida, trad.). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira (Original publicado em 1944).

Sartre, J-P. (2012). O Existencialismo é um Humanismo (J. B. Kreuch, trad.). Rio de Janeiro:
Vozes (Original publicado em 1946).

Sartre, J-P. (1968). Baudelaire (Aurora Bernárdez, trad.). Buenos Aires: Editorial Losada
(Original publicado em 1947).

Sartre, J-P. (1960). La República del Silencio. (Alberto Bixio, trad.). Buenos Aires: Losada.
(Original publicado em 1949).

Sartre, J-P. (1966). Questão de Método, vol. 1 (B. Prado Jr., trad.). São Paulo: Nova Cultura
(Original publicado em 1960).

Sartre, J-P. (2004). Critique of Dialectical Reason: Theory of Practical Ensembles (Alan
Sheridan-Smith, trad.). New York: Verso (Original publicado em 1960).

Sartre, J-P. (1972). Situações IV (M. E. R. Colares & E. P. Coelho, trad.). Lisboa:
Publicações Europa-América (Original publicado em 1964).

Sartre, J-P. (1993). As Palavras (J. Guinsburg, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
(Original publicado em 1964).
132

Sartre, J-P. (1968). La Transcendencia Del Ego (Oscar Masotta, trad.). Buenos Aires: Calden
(Original publicado em 1965).

Satel, S. & Lilienfiel S. (2013). Brainwashed: The Seductive Appeal of Mindless


Neuroscience. Philadelphia: Basic Books.

Schleifer, S., Keller, S., Camerino, M., Thomton, J. & Stein, M. (1983). Suppression of
lymphocyte stimulation following bereavement. JAMA, 250(3), 374-377.

Schneider, D. (2008). O método biográfico em Sartre: contribuições do existencialismo para


a psicologia. Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia da UERJ, 8(2), 289-308.
Disponível em http://www.revispsi.uerj.br/v8n2/artigos/pdf/v8n2a13.pdf.

Schutze-Florey, C., Martinez, O., Magpantay, L., Breen, E., Irwin, M., Gündel, H. &
O’Connor, M. (2012). When grief makes you sick: bereavement induced systemic
inflammation is a question of genotype. Brain Behav. Immun., 26(7), 1066-1077.

Scull, A. & Schulkin, J. (2009). Psychobiology, Psychiatry and Psychoanalysis: the


instersecting carrers of Adolf Meyer, Phyllis Greenacre and Curt Richter. Medical
History, 53(1), 5-36.

SEFEC. História do SEFEC. (s.d.). Disponível em


http://www.sefec.com.br/historia_SEFEC.pdf.

Segal, N. & Blozis, S. (2002). Psychobiological and evolutionary perspectives on coping and
health characteristics following loss: a twin study. Twin Res, 5(3), 175-187.

Shear, M. K., Simon, N., Zisook, S., Neimeyer, R., Duan, N., Reynolds, C., Lebowitz, B.,
Sung, S., Ghesquire, A., Gorscak, B., Clayton, P., Ito, M., Nakajima, S., Konishi, T.,
Melhem, N., Meert, K., Schiff, M., O’Connor, M., First, M., Sareen, J., Bolton, J.,
Skritskaya, N., Mancini, A., Keshaviah, A. (2011). Complicated grief and related
bereavement issues for DSM-5. Depression and Anxiety, 28(2), 103-117. Disponível em
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21284063.

Shorter, E. (2013). How Everyone Became Depressed: The Rise and Fall of the Nervous
Breakdown. New York: Oxford University Press.
133

Silva, A., Ribeiro, N., Schier, A., Arrias-Carión, O., Paes, F., Nardi, A., Machado, S., Pessoa,
T. (2014). Neurological apects of grief. CNS Neurol Disord Drug Targets, 13(6), 930-
936.

Sun, P., Smith, A., Lei, K., Liu, Y. & Wang, Z. (2014). Breaking bonds in male prairie vole:
long-term effects on emotional and social behavior, physiology, and neurochemistry.
Behav Brain Res, 15(265), 22-31.

Szasz, T. (1960). The myth of mental illness. American Psychologist, 15(2), 113-118.
Disponível em
http://www.columbia.edu/cu/psychology/terrace/w1001/readings/szasz.pdf.

Thomas, L. (1996). Prefácio. In: Bayard, J. P., Sentido Oculto dos Ritos Mortuários: Morrer
é Morrer? (p. 07-29). (Benôni Lemos, trad.). São Paulo: Summus. (Original publicado
em 1993).

Vailati, L. (2012). Representações da morte infantil na Inglaterra Vitoriana e Brasil: um


estudo comparativo. São Paulo, Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, ANUPH.

Ventura, D. (2010). Um retrato da neurociência e comportamento no Brasil. Psicologia:


Teoria e Pesquisa, 26, 123-129.

Veras L. (2015). Aqui se Jaz, Aqui se Paga: A Mercantilização da Morte, do Morrer e do Luto.
Curitiba: Appris.

Verheijde, J. L., Rady, M. Y. & McGregor, J. L. (2009). Brain death, states of impaired
consciousness, and physician-assisted death for end-of-life organ donation and
transplantation. Medicine, Health Care and Philosophy, 12(4), 409–421.
http://doi.org/10.1007/s11019-009-9204-0

Viana, M., Teixeira, M., Beraldi, F., Bassani, I. & Andrade, L. (2009). Sao Paulo Megacity
Mental Health Survey - A population-based epidemiological study of psychiatric
morbidity in the Sao Paulo Metropolitan Area: aims, design and field implementation.
Revista Brasileira de Psiquiatria
, 31(4), 375-386.

Vilaça, A. (1998). Fazendo corpos: reflexões sobre a morte e o canibalismo entre os Wari’ à
luz do perspectivismo. Revista de Antropologia, 41(1), 09-67. Disponível em
http://scielo.br/scielo.php?pid=S0034-77011998000100002&script=sci_arttext.
134

WHO. (2015). History of the development of the ICD. Disponível em


http://www.who.int/classifications/icd/en/HistoryOfICD.pdf.

Wong, D., Perry, K. & Bymaster, F. (2005). The discovery of fluoxetine hydrocoloride
(Prozac). Nature Reviews Drug Discovery, 4, 764-774.

Worden, J. (1998). Terapia do luto: um manual para o profissional de saúde mental (Max
Brener, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas (Original publicado em 1991).

Young, M., Benjamin, B. & Wallis, C. (1963). Mortality of widowers. Lancet, 2, 454-546.

ANEXO I – Modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido


(TCLE)
FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
TÍTULO DA PESQUISA: Luto e Liberdade: contribuições da fenomenologia existencial de
Jean-Paul Sartre para a prática clínica com enlutados
NOME DO PESQUISADOR: Sarah Vieira Carneiro
ENDEREÇO: Rua Barbosa de Freitas, 2560/200, Dionísio Torres, Fortaleza-CE.
TELEFONE: (85) 3257-7393, (85) 99181-4254
Prezado(a) Participante,
Você está sendo convidado(a) a participar desta pesquisa, desenvolvida por Sarah Vieira
Carneiro – doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia –, que irá investigar a
forma como a sociedade atual encara o luto, bem como o processo de luto individual. Nós
estamos desenvolvendo esta pesquisa porque queremos saber quais as regras sociais para o
processo de luto e como elas impactam as pessoas enlutadas.
1. POR QUE VOCÊ ESTÁ SENDO CONVIDADO A PARTICIPAR?
O convite para a sua participação se deve ao processo de luto que você experimentou pela
perda de um ente querido e pelo fato de ter sido acompanhado em psicoterapia em
decorrência do luto.
135

2. COMO SERÁ A MINHA PARTICIPAÇÃO?


Ao participar desta pesquisa, você autorizará o uso dos dados constantes do seu prontuário de
atendimento psicológico, bem como de postagens realizadas em suas redes sociais, desde que
relacionadas ao luto. Lembramos que a sua participação é voluntária, isto é, ela não é
obrigatória, e você tem plena autonomia e liberdade para decidir se quer ou não participar.
Você pode desistir da sua participação a qualquer momento, mesmo após ter dado seu
consentimento sem nenhum prejuízo para você. Não haverá nenhuma penalização caso você
decida não consentir a sua participação, ou desistir dela. Contudo, ela é muito importante
para a execução da pesquisa. A qualquer momento, durante a pesquisa ou posteriormente,
você poderá solicitar do pesquisador informações sobre sua participação e/ou sobre a
pesquisa, o que poderá ser feito através dos meios de contato explicitados neste Termo.

3. QUEM SABERÁ SE EU DECIDIR PARTICIPAR?


Somente o pesquisador responsável e sua equipe saberão que você está participando desta
pesquisa. Ninguém mais saberá da sua participação. Entretanto, caso você deseje que o seu
nome / seu rosto / sua voz ou o nome da sua instituição conste do trabalho final, nós
respeitaremos sua decisão. Basta que você marque ao final deste termo a sua opção.

4. GARANTIA DA CONFIDENCIALIDADE E PRIVACIDADE.


Todos os dados e informações que você nos fornecer serão guardados de forma sigilosa.
Garantimos a confidencialidade e a privacidade dos seus dados e das suas informações. Tudo
que o(a) Sr.(a) nos fornecer ou que sejam conseguidas por meio de seu prontuário de
atendimento psicológico serão utilizadas(os) somente para esta pesquisa. O material da
pesquisa, com os seus dados e informações, será armazenado em local seguro e guardado em
arquivo por pelo menos 5 anos após o término da pesquisa.
Assinatura do pesquisador_______________________________________

Assinatura do participante_______________________________________
Qualquer dado que possa identificá-lo será omitido na divulgação dos resultados da pesquisa.
Caso você autorize que sua voz seja publicada, teremos o cuidado de anonimizá-la, ou seja,
sua voz ficará diferente e ninguém saberá que é sua. Caso você autorize que sua imagem seja
publicada, teremos o cuidado de anonimizá-la, ou seja, seu rosto ficará desfocado e/ou
colocaremos uma tarja preta na imagem dos seus olhos e ninguém saberá que é você.

5. EXISTE ALGUM RISCO SE EU PARTICIPAR?


O(s) procedimento(s) utilizado(s) na pesquisa, qual seja uso de dados do seu prontuário
psicológico, apresenta um risco mínimo, como, por exemplo, a quebra do sigilo e/ou a
emergência de questões ligadas ao luto a partir do nosso contato, que será reduzido pela
possibilidade de deixar a pesquisa a qualquer tempo, pela apresentação dos dados de modo a
impossibilitar sua identificação do participante e pela disponibilização de acompanhamento
psicológico até seu restabelecimento, se necessitar, sem qualquer ônus.

6. EXISTE ALGUM BENEFÍCIO SE EU PARTICIPAR?


Os benefícios esperados com a pesquisa são no sentido de evitar a rotulação do enlutado como
portador de transtorno mental (ou de condição equivalente), o que pode acarretar estigma, desrespeito
a sua condição cultural e história de vida e, principalmente, sua medicalização.

7. FORMAS DE ASSISTÊNCIA E RESSARCIMENTO DAS DESPESAS.


Se você necessitar de encaminhamento, esclarecimento, orientação e/ou acompanhamento
psicológico, como resultado encontrado nesta pesquisa, você será atendido pela pesquisadora,
136

Sarah Vieira Carneiro (85 99181-4254), ou encaminhado(a) para atendimento pelo psicólogo
Georges Daniel Janja Bloc Boris (85 99909-9262). Caso o(a) Sr.(a) aceite participar da
pesquisa, não receberá nenhuma compensação financeira. No caso de algum gasto resultante
da sua participação na pesquisa e dela decorrentes, você será ressarcido, ou seja, o
pesquisador responsável cobrirá todas as suas despesas e de seus acompanhantes, quando for
o caso, para a sua vinda até o centro de pesquisa.

8. ESCLARECIMENTOS
Se você tiver alguma dúvida a respeito da pesquisa e/ou dos métodos utilizados nela, pode
procurar a qualquer momento o pesquisador responsável.

Nome do pesquisador responsável: Sarah Vieira Carneiro


Endereço: Rua Antonele Bezerra, 173, Meireles, Fortaleza/CE
Telefone para contato: (85) 99181-4254
Horário de atendimento: segunda e quartas, de 8h-12h, terças, quintas e sextas, de 13h-18h

Se você desejar obter informações sobre os seus direitos e os aspectos éticos envolvidos na
pesquisa, poderá consultar o Comitê de Ética da Universidade de Fortaleza. O Comitê de
Ética tem como finalidade defender os interesses dos participantes da pesquisa em sua
integridade e dignidade, e tem o papel de avaliar e monitorar o andamento do projeto, de
modo que a pesquisa respeite os princípios éticos de proteção aos direitos humanos, da
dignidade, da autonomia, da não maleficência, da confidencialidade e da privacidade.
Assinatura do pesquisador_______________________

Assinatura do participante_______________________

Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade de Fortaleza –


COÉTICA
Av. Washington Soares, 1321, Bloco da Reitoria, Sala da Vice-Reitoria de Pesquisa e
Pós-Graduação, 1º andar.
Bairro Edson Queiroz, CEP 60811-341.
Horário de Funcionamento: 08:00hs às 12:00hs e 13:30hs às 18:00hs.
Telefone (85) 3477-3122, Fortaleza-CE.

9. CONCORDÂNCIA NA PARTICIPAÇÃO
Se o(a) Sr.(a) estiver de acordo em participar da pesquisa, deve preencher e assinar este
documento, que será elaborado em duas vias: uma via deste Termo ficará com o(a) Senhor(a)
e a outra ficará com o pesquisador. O participante de pesquisa ou seu representante legal,
quando for o caso, deve rubricar todas as folhas do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – TCLE, apondo a sua assinatura na última página do referido Termo. O
pesquisador responsável deve, da mesma forma, rubricar todas as folhas do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, apondo sua assinatura na última página do
referido Termo.

10. USO DE VOZ E/OU IMAGEM


Caso o(a) Senhor(a) deseje que seu nome, seu rosto, sua voz ou o nome da sua instituição
apareça nos resultados da pesquisa, sem serem anonimizados, marque um dos itens abaixo.
____ Eu desejo que o meu nome conste do trabalho final.
____ Eu desejo que o meu rosto/face conste do trabalho final.
____ Eu desejo que a minha voz conste do trabalho final.
137

____ Eu desejo que o nome da minha instituição conste do trabalho final.

11. CONSENTIMENTO
Pelo presente instrumento que atende às exigências legais, o(a) Sr.(a)
___________________________________, portador(a) da cédula de
identidade__________________________, declara que, após leitura minuciosa do TCLE,
teve oportunidade de fazer perguntas e esclarecer dúvidas que foram devidamente explicadas
pelos pesquisadores. Ciente dos serviços e procedimentos aos quais será submetido, e não
restando quaisquer dúvidas a respeito do lido e explicado, firma seu CONSENTIMENTO
LIVRE E ESCLARECIDO em participar voluntariamente desta pesquisa. E, por estar de
acordo, assina o presente termo.

Assinatura do pesquisador_______________________

Assinatura do participante_______________________

Fortaleza, _______ de ________________ de _____.

__________________________________________________
Assinatura do participante ou representante legal

___________________________________________________
Assinatura do pesquisador

__________________________________________________
Impressão dactiloscópica

ANEXO II – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA


138
139
140
141
142

Das könnte Ihnen auch gefallen