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Dentro do cartório
O local de trabalho
O material ignorado
A sensação de justiça
Minha filha de três anos tem usado a seguinte expressão ultimamente: “Isso não
é justo!”. Usa a frase quando uma situação não lhe é favorável no seu entender. Sempre
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A primeira vez que mandei o manual para meus pares, via e-mail, na mensagem convidei-os a participar
da elaboração do manual, indicando temas que eles poderiam escrever ou que pudéssemos escrever
juntos, bem como salientei que dúvidas, sugestões e críticas poderiam ser enviadas a mim por mensagem
eletrônica também. Acreditei que se a escrita do material fosse coletiva, a chance dele ser usado seria
aumentada. A primeira versão do manual foi uma iniciativa para tentar incentivar o grupo a também
escrever sobre o trabalho que realizamos. Não obtive resposta alguma. Optei por enviar o material por e-
mail, pois assim cada um o abriria em sua máquina (enviei a versão do Word), salvando o documento, e o
consultaria na versão digital mesmo, como faço.
a indaguei sobre o que seria justo então. Nunca respondeu até ontem, quando ao colocá -
la para dormir, ela pronunciou a famigerada sentença e, logo em seguida, sem mesmo
ouvir minha pergunta, ela finalizou: “Justo é comer sobremesa!”. Fantástica a definição!
Ela realmente compreendia a justiça em senso comum, dentro de seu egocentrismo: algo
que desfavorece alguém é injusto e o que favorece, justo, independentemente das
circunstâncias; algo que satisfaz sua necessidade mais grosseira, como o paladar e a
predileção por alimentos doces, é justo, em detrimento daquilo que lhe seria mais
conveniente e mais saudável, mas mais difícil de compreender e gostar.
Mesmo adultos continuamos a ver justiça desta mesma forma: se me favorece,
houve justiça, senão, injustiça. Hoje uma colega trouxe uma portaria, expedida por um
juiz há muitos anos, nomeando-a como escrevente de sala, mesmo que para isso não se
exigisse tanto rigor, pois ‘escrevente de sala’ não é um cargo e, sim, um afazer do
mesmo nível que qualquer outro do ramo. Ela se sentia orgulhosa pela deferência, mas
magoada, pois nunca tomou posse de seu pseudocargo: mudou o juiz e o novo escolheu
outro escrevente para o serviço. Ela tinha estudado, tinha feito tudo o que o juiz antigo
lhe pedia, mas sofreu a “injustiça”. Fico pensando se houve ou não justiça no caso. Ela
realmente estuda muito, mas parece que nunca aprende, é muito insegura, pensa muito
pela cabeça dos outros, é muito ansiosa e atrapalhada. É bem competente na arte de
puxar o saco também. Talvez essas características tenham sido notadas pelo novo juiz
ou apenas que ele tenha ido mais com a cara de outro escrevente, escolhendo-o para
ajudá-lo nas audiências sem maiores valorações e julgamentos.
A colega nunca analisou a situação desta forma e reiteradas vezes comenta sobre
a injustiça sofrida, estas e outras mais, nunca vi pessoa tão injustiçada como ela. Tenho
dó deste ser e medo de eu também agir com injustiça em diversas ocasiões ou de me
vitimizar quando algo não me é favorável, perdendo a percepção de minhas próprias
fraquezas e a capacidade de analisar mais friamente as situações. Somos levados, pela
cultura do sucesso raso e da alegria sem fim, a acharmo-nos perfeitos, justos, dignos das
melhores coisas, entretanto, a filosofia clássica nos ensina que temos aquilo que
merecemos, que tudo nos é dado para crescermos enquanto seres humanos, enquanto
almas imortais.
Já li que o justo não serve nem para reinar nem para ser vítima, justo é sempre o
caminho do meio. Tento exercer este preceito diariamente, mas não é fácil, o senso
comum domina e a infantilidade em alma adulta é quase regra.
O diretor e a subordinada
Ela não tinha nome. Era chamada de esposa, minha esposa, quando era lembrada
por ele em alguma conversa comezinha sobre banalidades domésticas. Ela era do lar e
dele, uma posse, um objeto e, como tal, não tinha nome próprio perante os
subordinados. Sabia-se que ela gostava de animais, talvez esta característica
determinasse o sucesso do casamento duradouro. Ele também nunca falava dos filhos.
Sabia-se que eram dois, com 10 anos de diferença, talvez o segundo fosse fruto de uma
gravidez “indesejada”, pelo menos por ele, mas que servia, a ela, para reavivar sua
função na vida familiar. O fato era que, assim como a esposa, os filhos recebiam bem
pouca consideração do pai, que nunca tirava férias, nunca faltava ao serviço para
acompanhar alguém no hospital ou ir a alguma apresentação bobinha de escola, ele
nunca faltava ao serviço por nada, nada. Era o trabalhador exemplar, assim como havia
de considerar a si como chefe de família e cidadão – o típico cidadão de bem. Quanto
aos “seus” subordinados, estes eram chamados de funcionários, meus funcionários,
mesmo que os servidores fossem do povo, pela condição de públicos. Gostava de
pronomes possessivos.
Ele era “superior” pela canetada de outrem, havia prestado o mesmo reles
concurso público que os demais do local, mas como tinha puxado bastante o saco,
lambido bastante as botas de quem, por concurso, mandava mais, adquiriu postos.
Justiça seja feita: era um bom técnico e ponto final. Achava-se melhor que os outros, a
arrogância na fala e a péssima escolha de palavras revelavam sua consideração a si
mesmo em detrimento dos demais. Um dia, ao ter suas explicações questionadas por
uma subordinada, afirmou que fazia de tal forma para que eles, os subordinados,
pudessem um dia chegar a seu nível, ou seja, considerava-se no topo da sapiência e do
desenvolvimento profissional, sem considerar que suas explicações não eram
enigmáticas, sábias, mas confusas mesmo e que não ajudavam em nada: tinha fala bem
rudimentar, expressava pensamentos caóticos, por meio de frases grosseiras, usava os
mesmos blocos de palavras para enrolar e ter tempo de pensar alguma coisa para dizer,
mas nunca era totalmente feliz em seu mofino desenvolvimento discursivo.
Não sabia comandar, pois não sabia conversar. Nunca ouvia a opinião alheia,
não queria ouvir nada que não fosse sua própria fala, restringindo ainda mais seu
horizonte já limitado. Achava que tratando as pessoas como educava os filhos – faça
isso e calado! – era um bom modo de atuação profissional.
Sabia gritar, principalmente com mulheres, nunca se ouviu gritos com homens.
Em subordinada grávida e com duas semanas de serviço chegou a arremessar uma bola
de papel, que quase acertou seu rosto, para evidenciar a inépcia na busca de uma
informação. Sobre a mesma avançou um dia, pronto para dar-lhe um tapa por um
insignificante erro que ela cometera na execução de um serviço. Este episódio causou
espanto até de um funcionário antigo, que jamais questionou seus superiores em seus 33
anos de serviço na mesma instituição. Foi a última vez que se excedeu, pois recebeu de
volta uma fala firme, imperativa, que fez recuar, também se seguiram a esta fala
movimentos para ela deixar o local de trabalho, movimentos estes que ele deveria
explicar ao superior maior e, como não teve coragem para dar tal explicação, tudo ficou
em seu lugar, mas os maus tratos explícitos cessaram pelo menos. Ela não tinha medo
dele. Ele tinha medo dela, muito medo.
Talvez, no conflituoso relacionamento, estivesse velada uma situação mais
delicada, mais passional. Como era infantil, ele não dominava seus sentimentos e
pensamentos. Ao ver-se tratado friamente, esperneava como uma criança contrariada.
Queria chamar à atenção de alguma forma. Queria ser olhado novamente. Queria causar
algum sentimento, mesmo que fosse de ódio, porém todos os esforços eram em vão.
Tudo começou quando, cansada de ouvir gracejos inconvenientes, ela, a mesma
subordinada que questionava e que um dia esteve grávida, resolveu revidar as
abordagens pouco profissionais, de forma mais sutil, mais perturbadora, que servisse
para “exemplar”.
Todos os dias, ouvia gracinhas sobre seus sapatos, suas roupas, seus cabelos. Ela
era notada como fêmea e ele fazia questão de evidenciar tal fato. Certa vez, ao se
esbarrem à entrada do local onde trabalhavam, ela ouviu dele a seguinte frase: “pare de
rebolar, senão vou contar para seu marido!”. Aquilo foi demais. Ela sentiu-se
envergonhada, afinal de contas até seu modo de andar e sua parte traseira tinham sido
notados e explicitados. Em termos legais, todas estas abordagens configurar-se-iam um
quadro de assédio barato. Pois bem, sentar-se em banco de vítima não era sua postura,
brigar não era seu estilo, apelar para terceiros resolverem seu problema tampouco,
começou a encará-lo daí por diante. O jogo estava iniciado.
Em todas as oportunidades, ela media-lhe dos pés à cabeça. Sem dizer uma
palavra, dominava-o só com o olhar penetrante, que perscrutava sua alma. Ele gostava
da situação, sentia-se desejado. O caçador tornou-se caça. A audácia dele foi substituída
por sua timidez. Ela o fazia corar, engasgar, calar, fazia-o contente, todavia. O grande
problema é que este tipo de brincadeira criou mais complicação do que solucionou um
caso. Ela começou a pensar nele como um personagem de história erótica e começou a
escrever sobre isso. Talvez tenha passado a transmitir o que pensava e escrevia sobre ele
pelo olhar, e ele percebeu.
Certa vez, a escritora deu uma carona a seu personagem. Ele adorou, mas usou
de forma errada suas pífias palavras, deixando transparecer que ele acreditava que ela
estava agindo como agia por interesse no que ele representava: “superioridade” em
relação a ela. Ele era diretor dela e, em sua visão míope, ela queria aproveitar-se de seu
status. Isso realmente não era intenção dela e deixou bem claro: escreveu, sob forma de
narrativa, o episódio da carona e o descontentamento dela em relação ao comentário
infeliz, e mandou-lhe por e-mail. Ele ficou mudo por uns três dias, mas respondeu que
tinha de voltar “às origens” para entender os sentimentos dela e usou outras expressões
toscas ininteligíveis. Aproveitando a ocasião para revelar a trama e encerrá-la, ela
mandou-lhe algumas outras histórias que tinha escrito durante meses, as quais
expressavam o caso de uma paixão proibida em que ele pudesse se descobrir
personagem. Ele, por sua vez, escreveu-lhe dizendo que continuasse a escrever, pois
gostava muito de ler: óbvio, sua riqueza vocabular revelava tal fato sem sombra de
dúvida. Em resposta, ela disse que não escreveria mais histórias com aquele teor e que
se dedicaria a contos infantis, dando um basta na situação, colocando fim à história
fictícia.
Ela resolveu o caso inicial de certa maneira. Nunca mais ouviu gracinhas a seu
respeito, mas a fúria dele veio de muitas formas: gritos pelo menor erro que ela cometia,
exposição vexatória perante usuários do serviço que prestavam e até um quase tapa. Ela
solucionou um problema, porém criou outros, inclusive consigo mesma. Como
escritora, deixou-se dominar por sentimentos vis, inferiores, por pensamentos sórdidos,
luxuriosos, que contrariavam sua conduta ética, criou uma história e entrou nela e,
apesar de agir apenas com olhares, pensamentos e palavras escritas, não se sentiu bem.
O personagem também foi prejudicado, pois não soube lidar com a situação, certamente
sentiu-se rejeitado, com expectativas frustradas, contrariado na alma por não exercer,
como queria, poder sobre uma mulher subordinada.
A escritora fez um ano de terapia, leu muitas coisas e escreveu outras para
entender sua situação/ação, chegou a conversar com o marido alguma coisa, propondo
separação pela vergonha que sentia. O divórcio não foi aceito e ela só conseguiu
amenizar o imbróglio no entanto: de sua parte, passou a agir com frieza em relação ao
personagem, da parte deste, só raiva, ciúme, medo e intolerância passaram a ser
evidenciados.
Sem conversa entre as partes para amenizar o conflito – como já posto, ele não
sabia conversar e ela só tinha palavras para oferecer ou a total ausência delas – este só
se arrastou ao longo dos longos dias de trabalho.
Uma coisa é certa, a imersão em fantasias é viciosa e cria desejos nunca antes
imaginados que, quando alimentados, avolumam-se em proporções assustadoras,
fazendo do sapo, príncipe, da comédia, tragédia; afastar a fantasia é tarefa árdua e gera
conflitos, conflitos estes que devem servir para tornar hábil um escritor que em seu
trabalho precisa edificar-se, nunca se identificando com a destruição, com os
sentimentos rastejantes, com seus personagens de caráter mal formado.
O funcionário padrão
- Pessoal! Sexta o diretor vai trazer bolo salgado e ficou pra gente comprar os
refrigerantes e um bolo doce pra comemorar os aniversários do mês de agosto. Vai ficar
oito reais pra cada um.
- Não quero participar, obrigada!
- Mas por quê?
- Estou de luto nesta semana!
- Ah...para de graça, por que isso agora?
- Porque meu pai morreu ontem.
A exclamação foi geral. Em uníssono foram perguntando o que estava fazendo
no cartório, que ela tinha direito à licença-nojo, etc.
- Estou aqui, ué! Não quero ficar em casa.
Mas como explicar que mesmo uma filha que não tinha em seu registro o nome
do pai – frisemos: aborto paterno sempre foi e sempre será permitido – também tinha
pai e que um dia ele morria. Não provava filiação, mas tinha sido feita por um homem e
uma mulher que transaram um dia e que agora o homem tinha deixado esta vida e ela
tinha sentimentos. Era muito para a cabeça daquele povo, tão acostumado à burocracia
cartorária, oriundo de famílias tradicionais do interior de um estado qualquer.
Ela estava triste demais e não gostava de se explicar. Estava cansada de falar
com pessoas que investigavam a vida alheia para ficarem tecendo comentários pelas
costas, na verdade, faziam isso sem qualquer investigação mesmo.
- Ah, mas se você não participar vai ficar mais caro pros outros!
Meu Deus, quanta nobreza de espírito! Uns cinquenta centavos mais caro para
cada um estavam sendo colocados em questão, apesar do luto de uma pessoa. De fato,
aquilo não valeria uma discussão, então acrescentou:
- Ok, participo.
E foi logo dando sua parte do bolo para não correr o risco de esquecer-se se
deixasse para mais tarde. Cairia na boca do povo, mais do que já estava.
Ela era uma criatura muita esquisita naquele meio. Não participava das rodinhas
de fofocas, almoçava sempre sozinha, aliás, almoçava com pessoas de fora do cartório,
preferia ler a estabelecer qualquer conversa fiada. Não reclamava do serviço, fazia-o
sem alardes, sem valorizações, não puxava o saco de seus superiores, ou seja, vivia num
mundo particular, muito curioso a olhos alheios.
Na sexta festiva, mandou uma mensagem de texto para sua chefe, dizendo que
abonaria naquele dia. Era a licença que precisava. Acordou e, como de costume, levou a
filha à escola e nadou; depois voltou para casa, assistiu a um filme do Truffaut, almoçou
em um delicioso restaurante japonês, comprou uma garrafa de vinho e visitou um
amigo, já aposentado, com quem discutia assuntos literários. Na volta para casa, ouviu
Nelson Freire tocando Chopin, revigorando, assim, a audição, os músculos, a mente, o
paladar, a alma.
Viveu o dia!
Quando chegou em casa, vomitou até não sobrar mais nada no estômago. Não
era nem a comida nem a bebida que ingerira que lhe tinham feito mal, mas a lembrança
da festa no cartório: falas e risadas altas, bajulações, bocas vorazes comendo “bolo”
salgado (pão de forma com maionese, frango desfiado, ervilha, batata-palha, sim, pão
com batata), tomando refrigerante e arrematando com bolo de verdade (dulcíssimo).
Quanto gosto pelo mau gosto!
A doutora estagiária
Estou bem de saco cheio de conviver com pessoas maniqueístas, que julgam a
tudo e a todos, colocando cada coisa numa caixinha própria, perdendo a gradação, as
tonalidades, a complexidade, principalmente das pessoas. Para este tipo, ou você é bom
ou você é ruim. Sou sempre ruim para elas, pois mesmo sofrendo alguns contratempos,
não me sento em cadeira de vítima e revido, me havendo diretamente com aquele que
me provocou. Consenso geral: sou uma pessoa ruim.
Como me cansa este tipo de julgamento. Desde pequena me colocam na caixa
das pessoas ruins. Minha mãe já fazia isso. A Lena é ruim. Por quê? Porque eu a
respondia quando não concordava com alguma coisa. Sempre fui boa na escola, sempre
trabalhei dentro de casa, não dei sequer um dissabor para minha mãe até sair de casa
com 23 anos. Continuei não criando problemas para ninguém depois disso. Tenho 34,
só tive dois empregos nesta minha vida, saí de um para entrar em outro que julguei
melhor, não por outro motivo. Nunca fiquei desempregada. Peguei dinheiro emprestado
duas vezes (uma para comprar uma casa melhor para minha mãe e outra para conseguir
passar o mês até receber meu primeiro salário) e paguei tudo dentro do prazo com seus
encargos. Na verdade, pago tudo o que tiver de ser pago. Retribuo tudo que me dão,
para o bem ou para o mal.
No trabalho, meu serviço está sempre em dia. Não costumo fazer fofocas,
tampouco intrigas. Não atrapalho ninguém a trabalhar com conversas desnecessárias,
mas sou considerada uma pessoa ruim. Tive de ouvir isso esses dias. Por quê? Porque
sequer olhei na cara de uma ex-estagiária quando, sem ocupação na vida, veio nos fazer
uma visita de 4 horas durante o expediente e não parou de falar 1 minuto sequer.
Prolonguei meu café da tarde neste dia, tomei um chá ao invés de café, mas minha
angústia pela sua presença ficou evidente. Realmente não gosto de tal ser, não de graça:
quando iniciei neste trabalho, ela já era estagiária por aqui (ela ficou 7 anos como
estagiária!, ou seja, uma estagiária com quase doutorado em estágio!), então ela se
ocupava em todos os dias se aproximar de minha mesa e falar com a colega ao lado a
frase: “Não gosto dessa menina...”. Ora, nunca tinha a visto na vida antes de trabalhar
ali. Como ela poderia não gostar de mim tão de graça assim? Será que minha cara já
evidenciava minha maldade? Todos os dias ela fazia isso.
Nunca lhe indaguei o porquê, estava grávida na época e não tinha disposição
para questionar ninguém. Certa feita, ao sair do prédio onde trabalhávamos, cruzei com
ela numa quina da construção. Levei um susto, pois ela estava de moto em lugar
inapropriado e eu não estava esperando encontrar alguém motorizado naquele ponto.
Minha barriga ficou até dura por algum tempo. Pensei que minha filha tivesse morrido,
pois nunca tinha sentido aquilo e nunca estive grávida antes. Senti muito desconforto.
Ao ver-me assustada, a criatura desatou a rir, uma risada muito alta, muito humilhante:
risada para comemorar o susto numa grávida! Bem... coisas de pessoas boas, acredito
eu. Nunca mais olhei na cara da referida. Não contei para ninguém, mas minha reação
só foi interpretada como se eu tivesse birra gratuita da pessoa. Coisa de mulherzinha.
Pessoa cheia de hormônios, coisa para louca mesmo, ou melhor, coisa de gente ruim.
Realmente, não sei o que é ser boa... nem sei se quero aprender...
Por que as pessoas que fazem pouco querem sempre fazer menos? Se o volume
de trabalho aumenta um pouquinho, prontamente querem delegar para outra pessoa sua
obrigação e, se não tudo, pelo menos parte. Caçam aquele que, segundo elas, está
“sossegadinho” para repartir o que tem de fazer, dividindo a esmola para dois. Não
enxergam que a pessoa que está “sossegadinha” talvez tenha trabalhado com mais
afinco e concentração para poder estar tranquila, enquanto o “assoberbado” enrolou,
distraiu-se com mil e uma coisas alheias ao seu dever, ou simplesmente teve o azar de
naquele momento estar com algum trabalho a mais - nada que precise ser objeto de
operação coletiva, nada que envide vários esforços. Este tipo de pessoa não enxerga que
a “sossegadinha” resolve problemas sem a dependência de outra, por saber pensar, por
escrever ou ter internalizado os conhecimentos necessários para cumprir suas
obrigações, o que ajuda na fluidez do serviço; que se concentra enquanto trabalha,
evitando o retrabalho; que não deixa nada para depois, resolve o que tem de resolver
prontamente; que organiza seu tempo, seu espaço físico, suas ferramentas de trabalho e
isso aumenta a agilidade de sua ação; que organiza seus pensamentos, assim como sua
rotina. Estar tranquilo exige esforço, mas muitos não enxergam isso.
Onde trabalho, todos têm pouco trabalho real. Há os que dramatizam, super-
valorizando suas ações; alguns não compreendem bem seus afazeres; a maioria não
possui boa organização propositalmente; poucos fazem o que têm de fazer sem alardes,
ordenadamente, sem delegar nada a ninguém. Estes últimos têm perfil destoante e são
chamados de “sossegadinhos”, mas considerados pelos “assoberbados” uns folgados,
mesmo que estes tenham mais serviço que eles. O fato de os “sossegadinhos” não se
mostrarem assoberbados faz crer que possuem menos serviço, nunca que trabalham
melhor e, portanto, podem colher frutos de suas ações, tal como a tranquilidade. Os
“assoberbados” não se importam que os “sossegadinhos” trabalhem sempre mais e
mais, mas estes não são burros e, não raro, ficam em estado de inação diante de algum
pequeno caos que venha a se instalar na rotina; agem apenas se requisitados por seus
superiores, que também não enxergam a diferença entre “assoberbados” e
“sossegadinhos”.
Tenho o perfil de “sossegadinha”, quem sabe também considerada “folgadinha”,
“preguiçosinha”, “protegidinha”, “a-que-tem-o-serviço-mais-fácil” ou sei mais lá o que
que fervilha na mente de meus colegas. Já ouvi reclamação, pela via hierárquica, de que
eu não atendia a balcão com frequência. Ora, se o grosso do serviço está em andamento
processual, se há 10 finais de processo, 4 escreventes, se fico com 4 finais, outro
escrevente com 3 e mais processos físicos (escassos e todos em via de extinção), outro
com os 3 restantes e a remessa da lauda de publicação para o diário (serviço de alguns
cliques), fica outro só para fazer alguns procedimentos administrativos; este último não
poderia atender mais balcão? Os que têm 3 finais atender mais que aquele que tem 4?
Pareceria óbvio, mas não é. Como assumo a postura da justiça, recebo olhares e
comentários de “sossegadinha”, “folgadinha”. Não consigo entender isso: ou quem me
julga é mau caráter ou simplesmente lhe falta compreensão para analisar as próprias
ações e as de outrem. Prefiro acreditar na ignorância, embora tal situação esteja me
cansando.
Gostaria de trabalhar em um lugar com mais serviço para ocupar-me mais, não
trabalhar mais que outros, pois isso não é justo se recebo o mesmo salário. Na verdade,
sou bem ocupada, mas com coisas alheias ao serviço, visto que este está rigorosamente
em ordem. Mas o fato de não estar o tempo todo trabalhando em coisas afetas à minha
obrigação (pelos motivos expostos) e de não me mover para trabalhar bem mais que os
demais tem-me feito alvo de más considerações. A minha tranquilidade é mal vista,
como se me proporcionassem isso, não que seja algo que eu mesma conquisto. Tais
reações causam-me maus pensamentos: acabo sentindo raiva dos “assoberbados”; penso
em também fazer sempre menos para me igualar aos demais; acabo acreditando que
eficiência, eficácia e efetividade são coisas ruins, anti-producentes no sistema em que
me insiro. É claro que, no fundo, sei que tudo isso é bobagem; que tais reações não
devem me afetar; que tenho de fazer meu trabalho como acredito e ficar bem comigo
mesma; que não devo me contaminar. Entretanto, não é fácil nadar contra a corrente.
Olhando-me no espelho?
Não entendo pessoas que gostam de falar da vida de outras pessoas que não
conhecem de verdade. Acho que não entendo pessoa alguma, visto que tal prática é tão
corriqueira. No âmbito forense, escreventes amam falar acerca de alguma intimidade ou
mesmo algo público que tenha acontecido com juízes, advogados, diretores, chefes ou
sei mais lá quem. Sabem da vida alheia pelo Diário Oficial: há quem leia o diário todos
os dias com esta finalidade. A pessoa nem busca informações usando apenas seu nome
– pois vai que haja alguma publicação inesperada – a pessoa LÊ o diário de cabo-a-
rabo! Parece coisa de outro mundo, mas não é. Tudo bem que a Justiça e toda sua
parafernália acabam se distanciando da população, criando-se um minimundo entre as
grades de um Fórum, mas não precisava tanta esquisitice: não sei por que a vida de um
“superior” é tão interessante a ponto de tomar tempo de leitura e de conversa. Deve
haver explicação psiquiátrica para tanto, eu é que não conheço, caso contrário, não
haveria tantas revistas de fofoca sobre celebridades, tantos realities shows e mais tantos
outros passatempos esquisitos por aí. Talvez a pessoa que comente a vida da outra sinta -
se com determinado poder sobre a mesma do tipo: olha, eu sei da sua vida. No fundo,
acho que gostariam de possuir o lugar da outra, mas como não conseguiram, tecer
comentários, por vezes maledicentes, seja uma forma de ocupar tal lugar. Ou a vida
levada é tão insignificante que qualquer outra vida mostra-se mais atraente.
Outra característica deste ambiente que não entendo é a subserviência. Muitos se
regozijam quando conseguem trocar algumas palavrinhas com um juiz, mesmo que
vazias, oriundas de um não assunto, só pelo prazer de puxar-o-saco. Há quem resolva
problemas pessoais de juízes ou de qualquer que esteja acima da pessoa na hierarquia,
enfrentando até filas em banco para pagar as contas domésticas do superior. As pessoas
que assim agem devem sentir-se melhores que as outras, já que foram dignas de
“confiança” de um superior; não se sentem “escravinhas”, “capachos”, ilegais – já que
elas devem servir à população, à instituição exclusivamente, não a uma pessoa da
hierarquia em particular –, sentem-se privilegiadas até, já que o serviço que deveria ser
feito é deixado de lado para fazer coisas alheias à sua função: o trabalho obrigatório
pode parecer sempre mais árduo que qualquer outro.
Doutor é um pronome de tratamento neste lugar, não uma titulação acadêmica,
basta a graduação na faculdade de Direito que qualquer sujeito torna-se doutor! Ele mal
consegue redigir uma petição inicial e já possui o título daquele que fez graduação,
mestrado E doutorado, defendendo TESE. Além do pronome, o tratamento também é
diferenciado se comparado com o restante dos usuários da Justiça (usuários, termo
comumente usado para designar aqueles que fazem uso de drogas...). Os serventuários
esquecem-se de que todos ajudam a pagar seus salários por meio de seus impostos,
sejam nóias, advogados, traficantes, juízes, promotores, os próprios serventuários, etc.,
todos deveriam ser tratados com a mesma deferência.
Neste minimundo, também é prática a fofoca, considerando ser esta sempre para
prejudicar a imagem do outro. Até assunto de processo cai na roda de fofoca,
contrariando toda a ética que deveria ser perseguida pela pessoa que tem acesso à
informação para dar andamento a seu trabalho. Todos julgam. Bastam poucos indícios e
a pessoa já recebe sentença condenatória. Não é preciso audiência, instrução nem
debates, aliás, debates só por aqueles que fazem parte da rodinha e de forma bem
superficial, nada reflexiva.
Outra peculiaridade deste mundo é a demência que acomete parte daqueles que
conhecem e lidam diariamente com os trâmites processuais: quando diante de
procedimentos que envolvam políticos, tecem os mesmos comentários daqueles que não
conhecem os trâmites! Exemplo: é aberta uma investigação sobre a conduta do político
X, ele é chamado para depor, o comentário ouvido é – “Fulano tem que sair preso da
delegacia!”. Isso se o político for de esquerda, porque se de direita, todo e qualquer
engavetamento é legítimo. Meu Deus, quanta burrice!
Talvez eu, neste texto, não esteja sendo tão diferente daqueles que critico; talvez
eu, pela convivência, já não saiba ver a beleza nos seres com os quais trabalho, beleza
em suas atitudes, não consiga relevar as coisas; talvez não consiga perceber que o
cotidiano é alienante e o homem, fraco; talvez minha formação seja um pouco diferente
e veja um copo d’água pela metade, meio vazio; talvez em outros ambientes na mesma
instituição as coisas sejam diferentes; talvez um dia as coisas melhorem ou melhore
meu jeito de enxergá-las; talvez, talvez...
Fora do cartório
No Fórum, trabalham muitas pessoas singulares, com as quais alivio meu tédio.
Hoje, quando voltava do banheiro, parei para conversar um pouco com um colega do
trabalho. Falamos muito sobre tudo e nada como sempre. Desta vez, no entanto, ele
resolveu ler as linhas de minha mão – não me condenem, o serviço é pouco e as horas,
muitas – e saí da conversa com uma sensação de felicidade ou sei lá o que poderia
definir o riso na alma, porém não atravessei rua alguma, contive a felicidade e sentei-me
para escrever esta história.
No começo, não levava este colega muito a sério, mas com a convivência passei
a observar sua beleza e virtudes: é alto, forte, possui voz retumbante, cabelos e olhos
que fazem lembrar uma águia; é imponente; conhece as histórias que escorrem pela
construção e outras que chegam da capital; presta atenção às coisas do mundo
manifestado e do não manifestado; conversa sobre assuntos da patuleia e da alta
filosofia. É um homem inefável.
Minhas linhas diziam que eu era uma pessoa bem sentimental. O que não se
contesta. Sinto muito as coisas. Não as evidencio em ações, não sangro para ninguém,
mas em meu íntimo sinto deveras. Também indicavam que eu era uma pessoa com
muita capacidade intelectual. Muitos dizem isso, talvez eu tenha que produzir mais para
me convencer realmente desta capacidade. Que as coisas na minha vida vinham com
certa facilidade. De fato, nunca tive muitas dificuldades em conquistar o que desejei,
embora eu deseje pouco, deseje coisas que só dependam do meu desenvolvimento
interior. É claro que tive muitos reveses, mas sempre acreditei que não era para ser e
segui em frente. Nada demais. Também as linhas mostravam que eu teria uma situação
financeira muito positiva por volta dos 42, 45 anos. Não sei, faltam uns dez anos para
isso acontecer, mas fiquei feliz com esta “premonição”, todo mundo quer ter uma
situação financeira favorável, pois isso pode evitar algumas complicações de ordem
prática, além de podermos beneficiar pessoas amadas. Entretanto, resta dúvida, pois não
faço nada para ganhar dinheiro, não persigo a conquista em dinheiro e como todos
sabem: nada cai do céu. Outra visão foi a de que também ficaria muito apaixonada por
alguém que não meu cônjuge. Como podemos mudar nossos destinos com nossa ação,
talvez meu destino seja sempre apaixonar-me, nunca viver paixão alguma, além da que
tenho por meu marido. Com ele tenho projetos de envelhecer ao lado, na tranquilidade
de um amor pacífico, na segurança de companheiro leal, sensato, honesto, justo.
Resolvi escrever este ocorrido para eu relê-lo quando completar 45 anos. Será
que estarei numa situação financeira muito boa? Talvez, se comparado à maioria das
pessoas de meu país, sim, mas nada demais, nada que ultrapasse as comodidades
comedidas de uma classe média baixa. Será que minha capacidade intelectual será
evidenciada a ponto de eu ser convencida da mesma? Talvez não, porque o
conhecimento, alimento do intelecto, é como uma ilha, quanto maior sua porção de
terra, maior seus limites para o desconhecido. Sem cometer o sacrilégio de comparar-me
a Sócrates, mas reconhecer que nada sabemos é algo muito bom para nos
impulsionarmos para a busca de conhecimento. Será que me apaixonarei a ponto de
revisar meus projetos? Dominar as paixões é algo que busco para não ser títere na mão
do destino. Ou será que não serei eu mais uma Macabéa da vida?
Olhares distintos
O almoço
Lenah Aldhiram
Ele era leve. Levíssimo como uma folha ao vento. E como uma folha ao vento
ele estava no mundo. Ele era muito intrigante, principalmente para ela que era pesada.
Que era da terra.
Ela gostava de vê-lo, de senti-lo, do seu jeito de ser; às vezes, queria saber mais
sobre quando ele tocava na terra, queria saber seu endereço, o que comia, o que fazia,
estas coisas que todos da terra têm, comem, fazem. Ele não morava, não comia, não
fazia, além do que ela pudesse perceber por si só. Ele era reticente quanto a estas
perguntas da terra, voava rapidamente da situação. Ela ficava apenas com resquícios de
seu cheiro, de seu modo de viver e de muitas histórias sobre outras pessoas que ele
conhecia. Ele adorava contar histórias e elas serviam também como um meio de não
responder a uma pergunta inconveniente.
Como afinar a convivência entre ambos? Queria muito saber. Mas até aquele
momento não sabia. Ela apenas observava o que acontecia. Ela queria-o perto de si, ele
voava para longe, voltava, ficava longe, se aproximava... Ela tinha uma rotina certinha
demais, tudo em ordem, tudo em seu lugar. Ela precisava disso. Era de seu ser. Com ele
era o oposto. Por vezes, ela sentia medo dele, medo porque não era formatado para que
se pudesse analisar, mas quando vinha tal medo, ela sempre se lembrava de uma história
belíssima lida há muito tempo: ele era uma andorinha, ela, um gato, ambos se gostavam
e pronto.
Bastavam o gostar, o sentimento, as trocas de carinho. Todo o resto das
exigências sociais era resto, não valia a pena dar atenção. Ainda, sim, ela queria ler o
que havia na folha rodopiante: ora lia uma letra, outra, palavra, frase e quase um
parágrafo, ele não deixava lê-lo por inteiro. Seria mecânico demais, técnico demais,
talvez doloroso demais.
Então, ela imaginava a fim de completar a interpretação que fazia dele. Não raro,
histórias macabras invadiam sua mente: ele poderia morar com uma esposa que
estivesse de cama, em estado vegetativo, da qual cuidava quando não estava voando por
aí. Ele se dizia livre, mas este pensamento não a largava. Ou poderia morar com uma
mulher normal, ter uma família normal e ser apenas o marido ocupado demais, para o
qual a resignada esposa só dizia sim. Ou ter várias mulheres e dormir cada dia na casa
de uma. Ou poderia morar num armazém de coisas que eram vendidas na barganha, uma
casa velha com coisas velhas entulhando todas as partes por onde os olhos poderiam
percorrer...
Pensamentos são pensamentos. Uns são excelentes, outros nem tanto assim, uns
vem e vão rapidamente, outros ficam martelando por horas. O que ocorria era que
nenhum pensamento que tinha sobre ele combinava com sua leveza. Nenhum
combinava com o que ele dizia. Assim, se deixava por ele ser levada até onde ele
quisesse que ela fosse. Sem travas, sem amarras, apenas deixando-se conduzir por seu
corpo, seu jeito de ser, suas histórias e risadas. Vivendo o hoje só.
Era uma casa velha, num bairro velho de uma cidade velha. Ao chegarem, ele
abriu o portão e ela deveria estacionar de ré. Na garagem, o único objeto que faltava era
o carro dela, que se encaixou perfeitamente, acomodando-se junto aos demais objetos,
que entulhavam a garagem desde o chão até o teto.
Ao adentrarem a casa, o cenário continuava igual: objetos por toda a parte, indo
de bonecas velhas, roupas velhas até aparelhos que nem Deus sabia para que serviam. O
cheiro era o mesmo na casa inteira, pois toda ela, todos os cômodos possuíam a mesma
paisagem igual e diferente: os objetos eram velhos, mas eram variados.
Num quarto entulhado, havia uma cama de casal com sua cabeceira de palhinha.
Sobre o colchão, havia dois travesseiros, um lençol, um edredom e por cima de tudo
isso, um velho cobertor vermelho e sujo. Certamente aquele não era um ninho de amor
convencional. Ela estava um tanto incomodada com tal cenário, arrependendo-se de ter
falado mal de motéis. Não sabia o que pensar, o foco deveria ser apenas ele, mas sua
visão teimava em percorrer o local. Ele achava tudo aquilo natural, queria vê-la e aquele
era o único lugar em que podiam ficar a sós naquele momento. Ela tentava acostumar-
se, mas os anjinhos sobre um criado mudo, misturados a outras coisas não
identificáveis, e o quadro de fundo azul com um cavalheiro e uma dama, ambos
brancos, insistiam em chamar sua atenção ao pé da cama. O cavalheiro conduzia uma
dama contrariada, percebia-se isso pelo semblante de ambos. Parece que o quadro foi
posto estrategicamente naquele ponto do chão para representar o casal real. O
cavalheiro e a dama pareciam sustentar a pilha de objetos, assim como eles deviam
sustentar a imensa quantidade de informação ao redor.
Começaram a se beijar e o entorno desapareceu. Despiram-se e deitaram sobre o
cobertor imundo, que não mais chamava à atenção. Trocaram carícias, cheiros, líquidos.
Amaram-se sem reservas. Ela quis ir embora. Ele pediu para que ficasse com ele. Não
houve resistência, ele valia mais a pena e por ele, ela, que detestava objetos, bagunça de
toda a ordem e cheiro de guardado, sacrificou-se.
Ele chegou. Quanta felicidade poderia conter naquele momento? Lindo como
sempre, trazia uma torta de frango que poderia alimentar um batalhão. Ela não quis
comer. O que fazer com tanta comida? Naquele momento, somente guardar para depois
dar um fim adequado àquilo. O que importava era senti-lo todo. Conduziu-o ao sofá e
ficaram por muito tempo trocando carícias, enquanto ele falava sobre diversas coisas.
Ele falava, ela só ouvia. Este era o jeito de serem no mundo. Ele preferia as histórias
orais, ela, as escritas e assim iam se amando, dia após dia até que não se quisessem
mais.
Se ambos eram livres, por que eram amantes? Porque estavam se amando e
gostavam de ser um para o outro apenas. Não faziam nada escondido, porque não havia
o que esconder, mas se reservavam para não cair na boca do povo. Trabalhavam em um
lugar onde era costume o cuidar da vida alheia, onde tudo era história, tudo virava
fofoca maldosa. Tinham medo disso ou achavam que tinham. O certo é que não se
expunham muito. E a liberdade um com o outro aumentava enquanto as fofocas não
fervilhavam. Era difícil esconder o que não era escondido, evitavam o contato físico
quando se encontravam no trabalho, mas se abraçavam pelas ruas, se beijavam em
locais públicos, mas sempre com medo do que pudesse vir pela frente.
Mas ele tinha medo do amor. Sofria com medo de sofrer a falta que ela faria um
dia próximo ou distante. Tinha esta preocupação mesmo com um estilo de vida
libertário, focado no momento, no fluir do agora. Contraditório. É porque o amor faz
isso: une coisas divergentes. Isso era segredo sussurrado na cama, na hora em que o
sono chega e quase arrebata os amantes. Hora difícil para se expor algo, se discutir
logicamente um assunto. Aliás, nada daquilo era racional, era apenas a emoção colocada
para fora em momento crucial entre realidade e sonho.
Ela não entendia, também não tinha perguntas para aclarar a dúvida. Não
entendia também porque não tinha medo de sofrer, de amar. Tinha feito aquilo tantas
vezes. Era algo natural para ela. Sofrer era natural e não fugia disso. Não sabia o que
iria acontecer se ficasse afastada dele, pois mesmo tendo sofrido com outros amores,
todo novo amor é diferente. Pensava em seus relacionamentos antigos, talvez tivesse
vivido paixões ao invés de amores, um deles sabia exatamente que era amor, pois gerou
fruto amoroso, os demais, apenas suspiros maiores ou menores que poderiam lembrar
saudades, mas não chegavam a tanto. Aquele novo seria um amor ou uma paixão?
Amor, pois aceitava até ficar sem ele se assim ele desejasse por falta de coragem de se
amalgamar a alguém.
Ele lambeu sua boca na tentativa de acordá-la. Ela despertou um pouco, mas o
sono a puxava para si. Carícias em seu rosto era outro recurso. Nada. A vida lá fora a
chamava, aliás, chamavam-nos, e ela dormia. Queria mais tempo dormindo com o
amante. Impossível. Ela então acordou, pôs roupa para sair e saiu, após uns beijos com
hálito de manhã somados a abraços amarrotados. Como ele era bonito com cabelo
bagunçado e cara de recém-acordado. Foram fazer suas coisas.