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Regina Johas
DEART-UFRN
Resumo Abstract
Partindo das questões tratadas no Projeto Rotas Starting from the issues addressed in the Project
Esquecidas, o artigo trata a relação entre arte e “Rotas Esquecidas”, this paper deals with the
natureza nesta nova era geológica, denominada relationship between art and nature in this new
Antropoceno. Determinado por destrutivas geological age, called Anthropocene. Determined
transformações ambientais, o Antropoceno figura by destructive environmental transformations,
no centro das discussões políticas e ecológicas the Anthropocene is at the center of political and
que procuram entender como evitar ou como se ecological discussions that seek to understand
adaptar aos seus impactos. Esta nova terminologia, how to avoid or how to adapt to its impacts.
assimilada em outras áreas do conhecimento, passou This new terminology, assimilated in other areas
a fazer parte do discurso das humanidades e das of knowledge, became part of the discourse
artes, aparecendo em práticas culturais, na produção of the humanities and the arts, appearing in
de artistas, em exposições e em publicações cultural practices, in the production of artists,
específicas sobre o assunto. Trata-se de avaliar aqui in exhibitions and in specific publications on the
as implicações ideológicas deste termo e de como ele subject. It is a question of evaluating here the
vem sendo tratado no meio artístico. ideological implications of this term and how it has
been treated in the artistic world.
Palavras-chave: Keywords:
Rotas Esquecidas é um projeto que parte do Reverenciando o arista alemão Beuys, é sempre
mapeamento da antiga rota da cana de açúcar bom acreditar que todos os indivíduos são
na região de Ceará-Mirim (RN), no Rio Grande autônomos e operantes na sua potencialidade
do Norte. Testemunhando a decadência dos de pensar, criar e transformar.
antigos engenhos que foram construídos nesta
A produção açucareira provoca, como se sabe,
região em meados do século XIX e se mantiveram
grandes impactos sobre o meio ambiente. O
prósperos até 1920 – Ceará-Mirim se destacou
desmatamento e a implantação da monocultura
na época como a principal produtora de açúcar
alteram a paisagem, reduzem a biodiversidade e
do estado – os trabalhos que compõem este
contaminam as águas superficiais e subterrâneas
projeto endereçam algumas questões da relação
do solo, devido ao excesso de adubos químicos,
arte-natureza hoje.
corretivos minerais, herbicidas e defensivos
A intenção primeira aqui é lançar um olhar para agrícolas. Ao longo dos séculos, diversas outras
o estado de abandono e descaso com nosso fases de exploração das fontes naturais e de
entorno e com a natureza. Reconhecer as cultivo evoluíram continuamente contra a cadeia
realidades econômicas e políticas e as formas natural da vida, causando as transformações
pelas quais este contexto tão humano produz ecológicas que nos afetam atualmente. Ceará-
espaço é precisamente o que permite que a Mirim é um pequeno capítulo desta história.
arte compartilhe significado e transforme Ali sobram poucos vestígios dos engenhos:
valores. A arte pode ser aqui uma direção uma parede aqui e uma torre ali disputam com
possível e concreta na trilha da transformação. os coqueiros e o mato, o horizonte do interior
potiguar, deixando entrever fragilmente o que de relação entre o homem e a natureza é dada
foi a rota do açúcar na região, assim como suas pela técnica, Santos conclui que “as técnicas são
marcas sobre a natureza ao redor. um conjunto de meios instrumentais e sociais,
com os quais o homem realiza sua vida, produz e,
A reflexão sobre as relações entre natureza e arte se
ao mesmo tempo, cria espaço”. Santos reconhece
impõe aqui, portanto, a partir do estágio avançado
aqui as categorias analíticas internas do espaço,
de destruição ambiental do planeta. As mudanças
a saber, “a paisagem, a configuração territorial,
climáticas e seu impacto sobre o meio ambiente
a divisão territorial do trabalho, o espaço
são parte de uma agenda urgente, e acreditamos
produzido ou produtivo”. O conceito de natureza
que a arte, como instrumento de transformação da
como uma entidade externa e independente da
sensibilidade, tenha o poder de interferir no curso
ação humana não se aplica neste contexto. A
dos acontecimentos. Ao percorrer as rotas dos
natureza é vista aqui como uma “configuração
engenhos desta região do Nordeste, e ao pensar
territorial que é cada vez mais o resultado
na condição caótica do clima, impossível não nos
de uma produção histórica e tende a uma
depararmos com a urgência de endereçamentos
negação da natureza natural, substituindo-a
que esta agenda reclama.
por uma natureza inteiramente humanizada”
A noção de natureza implícita nesta discussão (SANTOS, 1999). Cabe perguntarmos como esta
nos vem do conceito de espaço de Milton Santos, configuração poderia se dar sem a destruição
“definido como um conjunto indissociável de ambiental do planeta.
sistemas de objetos e de sistemas de ações”. Ao
Nossa época é tida como uma nova era
partir da pressuposição de que a principal forma
geológica, chamada de Antropoceno. Foi assim
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Figura 2 - Rotas esquecidas II – as trilhas do Barão, 2017
imagem digital
denominada no ano 2000 pelo químico Paul procuram entender como evitar ou se adaptar
Crutzen e pelo biólogo Eugene Stoermer1. aos seus impactos. Este termo foi assimilado em
Substituindo a era anterior, chamada Holoceno, outras áreas do conhecimento além da Geologia, e
teria como característica principal a intensa passou a fazer parte do discurso das humanidades
atividade humana sobre o meio-ambiente. No e das artes, aparecendo em práticas culturais,
site Globaïa, dedicado a este assunto, pode- na produção de artistas, em exposições e em
se ouvir o seguinte texto extraído do vídeo publicações específicas sobre o assunto.
Welcome to the Anthropocene:
Entretanto, grande parte dos artistas,
Num espaço de tempo bastante curto nos pensadores e ativistas não se identifica com o
transformamos numa enorme força global.
termo Antropoceno, uma vez que este contém
Nós movemos anualmente mais terra do que
qualquer outro processo erosivo [e] manejamos a noção, expressa em sua constituição a partir
três quartos de toda a área fora das geleiras. do radical “antropo”, de que as causas da
Os altos níveis do efeito estufa não haviam mudança climática são universais, ou seja, a
ainda sido registrados em milhões de anos.
A temperatura está aumentando [e] estamos raça humana como um todo seria responsável
perdendo biodiversidade [...]. O nível do mar pelas catástrofes climáticas.
está subindo. A acidificação dos oceanos é uma
ameaça real [...]. Entramos no Antropoceno, uma Sabemos que as atividades que levaram ao atual
nova era geológica dominada pela humanidade. 2 cenário crítico se deve primordialmente à ação
de grandes corporações industriais, aspecto
O Antropoceno é determinado por destrutivas
que não aparece no discurso, tampouco na
transformações ambientais, figurando no
visualização que sustenta as proposições do
centro das discussões políticas e ecológicas que
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Figura 3 - Rotas esquecidas III – as trilhas do Barão, 2017
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por convocar termos alternativos, que venham a um economia de baixo carbono, no qual a
fazer jus aos aspectos politicamente significantes culpabilidade pelo ecocídio seja assumida por
para as discussões sobre o desenvolvimento aqueles que o causaram, Haraway propõe um
ambiental. Donna Haraway propõe o termo outro termo – Ctuluceno – que é igualmente
Capitaloceno para substituir Antropoceno, contrário à tese do Antropoceno. Inspirada no
apontando diretamente para um “sistema monstro Ctulu, de Howard Phillips Lovecraft,
econômico político voraz que não conhece limites, uma entidade cósmica com a forma de um
um sistema em que a vida humana, a vida de outras monstro híbrido, a proposição de Haraway
criaturas, a beleza e a riqueza da própria terra parte da ficção científica para lançar a
são tidos como meros recursos e externalidades” noção de uma época marcada por interações
(DAVIS; TURPIN, 2015, p. 7). múltiplas entre espécies. O neologismo pós-
antropocêntrico de Haraway é derivado de uma
A tese do Capitaloceno propõe que
mitologia densa, referenciando-se nas diversas
a crise das mudanças climáticas não se deve forças globais tentaculares e em nomes como
simplesmente a uma substância como o petróleo Naga, Gaia, Tangaroa, Terra, Pachamama etc.
ou o carvão, ou a um elemento químico como o
carbono – e certamente não à espécie humana –
Ctuluceno sugere “infinitas temporalidades e
mas às complexas operações socioeconômicas, espacialidades e uma miríade de entidades-em-
políticas e materiais envolvendo classes assemblage, incluindo o humano-mais-que-o-
e commodities, imperialismos e impérios, humano, o outro-que-humano e o humano-
biotecnologia e militarismo. (DEMOS: 2017, p. 86).
como-humus” (HARAWAY apud DEMOS: 2017,
Perseguindo uma transição mais efetiva para p. 87). Desse modo, o conceito de Haraway
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Figura 4 - Rotas esquecidas IV – as trilhas do Barão, 2017
imagem digital
Vale do Ribeira, onde as comunidades caiçaras, No catálogo da 32a. Bienal de São Paulo, Raphael
quilombolas e indígenas resistem à construção Fonseca explica que
de barragens há anos. (ZUKER, 2016, p. 116)
Em 2012, o povo Sarayaku, de nacionalidade
Forest Law – Selva Jurídica (2014), é um projeto quíchua, venceu a causa na Justiça contra o
de Paulo Tavares, arquiteto brasileiro, e Ursula governo do Equador, que colocara em risco a vida
da aldeia ao permitir que a indústria petroleira
Biemann, artista suíça. O trabalho
explorasse seu território, dentro da Floresta
se baseia em pesquisas realizadas nas fronteiras Amazônica.[...] O que está em disputa é a relação
da floresta tropical equatoriana, na transição viva dos habitantes com o espaço que, mais
entre as várzeas do Amazonas e a cordilheira dos que moradia, é o ambiente de suas memórias
Andes. Essa zona fronteiriça é uma das regiões comunitárias e de uma concepção de tempo que
de maior biodiversidade e mais ricas em recursos se dá por meio da sobreposição do passado,
do planeta, e atualmente se encontra sob pressão presente e futuro. (FONSECA, 2016, p. 364)
da drástica expansão das atividades de extração
mineral e petrolífera em grande escala. Guiando Estes são apenas dois exemplos da arte recente
a obra, há uma série de casos jurídicos históricos que refletem as preocupações de nosso tempo
que trazem a floresta e seus líderes indígenas, com relação à natureza. Herdeiras das ideias de
advogados e cientistas ao tribunal, incluindo
um de tais processos paradigmáticos, no qual Joseph Beuys, estas obras desdobram o conceito
recentemente teve ganho de causa o povo de de Escultura Social do artista alemão, que já na
Sarayaku, cujo caso argumentou pela centralidade década de 80 dizia: “A Escultura Social pode ser
da “Floresta Viva” na cosmologia, no modo de ser
definida em como nós moldamos e damos forma
e na sobrevivência ecológica de sua comunidade.
Nesses conflitos, a natureza aparece já não como ao mundo em que vivemos. É a escultura vista
cenário de disputas políticas, e sim como sujeito como um processo evolucionário onde todo ser
dotado de direito em seus próprios termos5 humano é um artista” (BORER, 2002).
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