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Resumo
Abstract
São Paulo é uma cidade que vive, como poucos lugares no mundo, em um
conflito constante entre o resgate de sua história e a busca pelo moderno, pelo futuro.
No meio desse processo sempre alternante de preservação e renovação, muito dessa
história, e das histórias da capital, se perde para sempre. Pode-se, porém, encontrar
partes dessa história que muitos julgavam perdidas, e nos lugares mais improváveis
da cidade.
A história da cidade está escrita nas suas avenidas, nos prédios e grandes
construções. Mas há uma parcela curiosa e pouco comentada que se encontra
guardada em lugares simples, sem grandes pompas, mas com muito o que contar.
Entre esses lugares desimportantes, eternos personagens do cotidiano da cidade, o
botequim, ou boteco, é, sem dúvida, um dos mais interessantes. Parte do dia-a-dia de
São Paulo desde seus tempos de vila, ele já teve papel de destaque na vida cultural
da cidade, já foi relegado e desprezado como reduto marginal e recentemente voltou
ao destaque na vida noturna paulistana, repaginado e adaptado aos novos tempos.
1. Referencial teórico
O boteco não era, então, famoso por ser um espaço que reunisse as várias
camadas sociais da cidade. De fato, nas classes mais altas era malvista a freqüência
nesse tipo de estabelecimento, considerado pelos jornais um espaço prejudicial ao
desenvolvimento da cidade, e seus freqüentadores eram rotulados como “desordeiros,
vagabundos, vadios, pés-rapados”, que “envergonhavam a cidade que se civilizava”
(CHALLUOB, 2001, p. 258). É marcante a ausência, nessa época, de referências ao
botequim na mídia, já que em periódicos de destaque como a Revista da Semana e O
Estado de São Paulo eram freqüentes os anúncios de bebidas (alcoólicos ou não),
mas raras vezes se fazia referência aos locais de seu consumo (LUCARELLI, B.,
MORGAN, X., REZENDE, A., 2004, p. 38), demonstrando que estes não faziam parte
dos hábitos do público aos quais se destinavam essas publicações, as classes média
e alta, então freqüentadoras de espaços mais sofisticados, a exemplo do Ponto Chic,
no Largo do Paissandu, descrito por Frederico Branco:
O papo em que nos empenhamos em torno da mesa, alimentado pelo bom uísque,
varia muito e nos entretém ao longo da noite e da vã filosofia. À saída, se a fome bate,
vamos em busca de algo para manducar no bar da Branca, no grotão da 9 de Julho, ou
no porão do Instituto dos arquitetos, o Clubinho, onde a esticada final é musicada pelo
Polera ao piano. E assim vamos, de mesa em mesa de bar. (GAMA, 1998, p. 258)
(...) a boêmia não tem dono? São os sujeitos do mundo. Por moda, insatisfação,
espírito de conquista ou de agregação, quem sabe? São os andarilhos e exploradores
da dinâmica da cidade moderna, carregando em seus copos, além da bebida da moda,
lábios ansiosos – afoitos mesmo – por destilar e reproduzir uma necessidade primordial
e constante: trocar idéias, contar histórias, brincar com o verbo, elevando ou destruindo
concepções, mas implantando e divulgando polêmicas. (GAMA, 1998, p. 170)
A multidão que vai para o trabalho ou que volta para casa arrasta-nos em seu turbilhão
a qualquer hora do dia, só há na rua homens apressados que nos impõem cadência de
seus passos. Os que não têm o que fazer (também existem aqui desocupados, como
em toda parte) refugiam-se nas confeitarias ou fazem fila diante dos cinemas. Os bares
estão sempre cheios, mas de homens em pé que bebem de um só gole o seu
cafezinho, entre dois negócios. A diferença dos dois ritmos, o de um possível
vagabundear e o da pressa, indica diferença de atitudes para com a vida em geral e
também com a história. (BASTIDE apud GAMA, 1998, p. 298)
Nos anos 80 a expansão dos limites do centro para além do Anhangabaú até a
Avenida Paulista e a mudança do eixo comercial da cidade marcam, em primeiro lugar,
o fim do papel do centro velho na vida noturna e, em segundo, da diversificação de
opções de lazer para outras regiões da capital. Começam a ganhar atenção as regiões
de Moema e Itaim, futuros bairros de alta classe, e a Vila Madalena, já notório reduto
de estudantes, intelectuais e artistas graças à sua proximidade do campus da
Universidade de São Paulo. É nesse momento de expansão que diluem-se grandes
costumes, como as épicas discussões de botequim e as rondas de bar em bar, agora
retratos de uma cidade passada. O desenvolvimento intelectual encontra novos
espaços, mais restritos, limitado a museus, bibliotecas, galerias e faculdades. “O olhar
crítico sobre a cidade e os elementos que levam ao seu desenvolvimento vão se
extinguindo.” (LUCARELLI, B., MORGAN, X., REZENDE, A., 2004, p. 50).
O paulistano não se cansa de relembrar o tempo em que a vida boêmia era romântica,
em que nada valia mais que uma conversa de botequim. Prova disso é a “invasão” de
botecos na cidade. Todos com características semelhantes: balcão de mármore,
azulejo na parede, pé direito alto, cadeiras e mesas de madeira. E o principal: o chope
gelado. (RÉ, 2002).
Os azulejos vão até a metade da parede. A cadeira não tem estofado, é de madeira
escura, e o piso, de ladrilho hidráulico – ou seja, sempre meio manchado. A máquina
de chope tem lugar garantido no balcão, às vezes com uma cenográfica montanha de
gelo picado em cima. E os petiscos… ah, os petiscos: eles são totalmente
politicamente incorretos: têm fritura, carne de porco, maionese, calorias até dizer
chega. Reconheceu? Essa é a cara do boteco paulistano. Aliás, do novo boteco
paulistano. (RENATO, 2004)
Os novos botecos têm como público as classes média e alta, e isso, aliado aos
ambientes sofisticados e localização nobre valeu-lhes a denominação de “boteco
chique” por parte da mídia, como mostra essa reportagem de 2002 da Exame SP:
Não são apenas os estrangeiros que buscam inspiração na boemia para fazer negócios
modernos. Os bares Original, em Moema, Pirajá, em Pinheiros, e Astor, na Vila
Madalena, foram criados com base nessa mesma receita e tornaram-se os mais bem-
sucedidos exemplos de gestão dos novos negócios. (...) Inaugurado em agosto de
1996, o Original ganhou fama como o primeiro boteco chique do país (...) e serviu de
modelo para uma lista de novos bares voltados para a classe média, mas espelhados
nos botequins de periferia. (SALOMÃO, 2002, p. 13)
2. Metodologia
É importante frisar que a percepção desses detalhes teve forte influência sobre
os objetivos deste trabalho. A pesquisa, que começou restrita aos botecos da Vila
Madalena passou a abranger toda a capital, no mesmo momento em que optou-se por
abordar as características que definiam os aspectos visuais dos bares e refletiam essa
distinção entre épocas. Foram escolhidos então os três bares que compõem a linha de
análise, o Botequim do Hugo, o Original e o Veloso, traçando uma linha entre o boteco
clássico e o contemporâneo, passando pelo momento principal dessa mudança, que é
o Original.
Foram conduzidas, a partir daí, visitas aos três bares e posteriores entrevistas
com os donos do Botequim do Hugo e Veloso, e para a análise do Original e seu papel
no universo do botequim foi utilizado como principal material de referência o trabalho
Botequins Paulistanos e a década de 90, de Ana Rezende, Bruno Lucarelli e Xymena
Morgan, de 2004, que, na impossibilidade de uma entrevista com os sócios do bar,
revelou-se de valor imprescindível para a compreensão não só do Original, mas do
botequim paulistano como um todo, sua história e sua evolução até os dias de hoje.
3. Resultados
Este item traz uma descrição detalhada dos três bares cuja análise compõe
este trabalho. O Botequim do Hugo, de 1987, localizado no Itaim Bibi, o Original,
inaugurado em 1996 em Moema, e o Veloso, de 2005, na Vila Mariana. A descrição de
cada bar traz detalhes sobre sua história e também sobre suas estruturas
administrativas e operacionalização, com o objetivo de proporcionar uma melhor
compreensão do conceito e da evolução de cada bar e seus reflexos na configuração
do espaço. Os dados para esta descrição baseiam-se, no caso do Botequim do Hugo
e do Veloso, em entrevistas concedidas pelos proprietários, e no caso do Original, no
trabalho Botequins Paulistanos e a década de 90, de Ana Rezende, Bruno Lucarelli e
Xymena Morgan, de 2004, que traz uma análise de caso completa sobre o bar,
incluindo entrevista com um dos sócios.
A principal idéia era presentear uma área nobre de São Paulo com um local onde as
pessoas pudessem ficar à vontade e não fosse necessário vestir-se de determinada
forma ou dirigir determinado carro, como acontecia em outros estabelecimentos; uma
alternativa para a superficialidade consumista característica de enorme parte dos
empreendimentos de entretenimento não somente gastronômicos, mas também de
outros tipos; um local onde eles sentissem prazer em receber os amigos e onde
classes média e alta pudessem e quisessem ir, sem medos, preconceitos ou
vergonhas. Um lugar onde qualquer pessoa, independente de cor, credo, opinião
política ou time de futebol pudesse sentar, tomar um chope e conversar. (Edgard Costa
in LUCARELLI, B., MORGAN, X., REZENDE, A., 2004, p. 56-57)
Instalado num imóvel de 200 m2 por onde 40 anos havia funcionado uma
mercearia, da qual foi mantida toda a estrutura, balcão, piso, prateleiras e cor das
paredes, o bar, já com os cinco sócios juntos, ainda passou por um plano de negócio
que incluía planejamento de investimento, fluxo de caixa, estimativa de faturamento,
contratação e treinamento de funcionários, estoque, cardápio, etc., antes da
finalização do projeto e inauguração.
3.3. Veloso
Os azulejos vão até a metade da parede. A cadeira não tem estofado, é de madeira
escura, e o piso, de ladrilho hidráulico – ou seja, sempre meio manchado. A máquina
de chope tem lugar garantido no balcão, às vezes com uma cenográfica montanha de
gelo picado em cima. (RENATO, 2004)
O Veloso une então, em 2005, características dos dois métodos para criar um
ambiente com traços próprios. Mais uma vez a busca pelo antigo e informal é ponto
principal do planejamento, com elementos presentes na estética estabelecida pelo
Original, como as fotos antigas, referências ao futebol e à música brasileira,
combinadas com objetos presentes em botecos mais simples e periféricos, exemplo
do quadro de preços, o balcão de fórmica e a parede com revestimento de madeira.
Esse conjunto tem como objetivo não só criar o apelo pelo antigo e tradicional, mas
também fugir da já cansada estética de “boteco chique” dominante nos bares da
capital. Com o tempo, novos itens foram adicionados ao espaço, trazidos por amigos e
clientes do bar ou pelo próprio dono, buscados em feiras de antiguidades ou mesmo
em sua própria casa, criando uma espontaneidade que é marca dos botequins antigos.
4. Considerações finais
Analisando a linha temporal que esses três bares traçam, com exatos nove
anos separando cada um, pode se notar dois momentos distintos do conceito de
botequim na cidade, não por acaso separados pelo Original. A tematização do
botequim iniciada pelo bar em 1996, resgatando elementos característicos dos
botecos existentes até então, foi abraçada e absorvida pela população, estabelecendo
um novo conceito de botequim que foi e ainda é explorado até hoje por centenas de
bares. Ocorre, então, que a partir do momento em que essa estética se massifica,
alguns desses novos bares passam propositadamente a evitá-la e explorar novas
possibilidades visuais que confiram a esses estabelecimentos uma personalidade
própria, sem sair, porém, do conceito de botequim.
5. Referências bibliográficas
BEIRÃO, Nirlando. Original – histórias de um bar comum. São Paulo: DBA, 2007.
BRANCO, Frederico. A bordo do Ponto Chic. In: Postais Paulistas, São Paulo: Senac,
2002.
BRANCO, Frederico. Salada Paulista. In: Postais Paulistas, São Paulo: Senac, 2002.
GAMA, Lúcia Helena. Nos Bares da Vida: Produção cultural e sociabilidade em São
Paulo – 1940-1950. São Paulo: Senac, 1998.
RÉ, Adriana Del. “Em Moema, bar descolado cai no gosto de boêmios”. O Estado de
S. Paulo, 26 de julho de 2002.
SALOMÃO, Alexa. “Balada Paulistana”. Exame SP. São Paulo: novembro, 2002.
TEIXEIRA, Adriana. Boemia Paulistana. In Botecos São Paulo. São Paulo: Empresa
das Artes, 2002.