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CRÍTICA DE NIETZSCHE AO
ESTADO MODERNO
ADRIANA DELBÓ
RESUMO
Neste texto examina-se o entrelaçamento, que percebe-se em Nietzsche, entre as
críticas à moral e à política a partir da questão do livre-arbítrio. Uma severa
contestação de Nietzsche à sua época deve-se ao fato de diagnosticar nela ideais
cristãos responsáveis pelo deplorável caráter da civilização moderna. A seus olhos,
a moral cristã moldou um tipo humano fragilizado, dotado de livre-arbítrio e
eternamente culpado e, ele percebe, a política democrática moderna dependente
desse “homem de rebanho”. Assim, Nietzsche em suas obras mais tardias continua
a expor a vulnerabilidade que identifica no Estado moderno, como já fazia desde
seus primeiros escritos juvenis. Ao contar a sua versão da história sobre a formação
do homem responsável, Nietzsche acredita estar deflagrando o processo necessário
para que um Estado anti-absolutista, com discurso anti-autoritário, pudesse contar
com um determinado caráter humano. Esta é a condição para esta instituição conseguir
cumprir sua promessa: a manutenção da paz, a promoção do bem estar, tudo,
denuncia Nietzsche, em nome do acúmulo de riquezas – a única missão que ele
identifica no Estado moderno.
PALAVRAS-CHAVE: livre-arbítrio; homem de rebanho; crítica
ABSTRACT
In this text it is examined the relation, noticed in Nietzsche, between the criticism
to the moral and politics brought by the free will subject. Nietzsche contest severely
his time due to the fact of judging Christian ideals responsible for the deplorable
character of the civilization of modern times. According with his view, Christian
moral created a fragile human being at the same time having free will and feeling
endlessly guilty. He notices that the democratic politics depends on this kind of
“flock man”. Therefore, Nietzsche, in his latest books, keeps on exposing the
vulnerability that he points out on the Modern State, as he used to do on his first
texts. By telling his own version of the history of the formation of the responsible
man, Nietzsche believes he has denounced the necessary process for an anti-
absolutist State – with an anti-authoritarian speech – could count on a determined
human character. This is the condition to the Modern State accomplish its promise:
the maintenance of peace; the rise of welfare, everything, denounces Nietzsche, for
accumulating wealth – the only mission that he identifies in the Modern State.
KEY-WORDS: free will; flok man; criticism
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ETHICA RIO DE JANEIRO, V.11, N.1 E 2, P.199-219, 2004
1
- F. Nietzsche, Além de bem e mal, cap. V, aforismo 202, p. 101-102 (trad.
bras.), KSA 3, p. 124 -125 .
2
Id., Genealogia da Moral, segunda dissertação, 23, p. 82 -83 (trad. bras.),
KSA 5, p. 333-335.
3
- Ibid., segunda dissertação, 2, p. 48 (trad. bras.), KSA 5, p. 293.
4
- Id., Aurora, livro primeiro, aforismo 9, p. 17-19 (trad. bras.), KSA 3, p. 21 24..
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num período, que comparando a seu tempo, era totalmente moral. Todas
as ações humanas estavam de acordo com os hábitos até então aceitos.
Para que a ação fosse além dessa rotina era necessário ser legislador
ou guerreiro, era necessário a perigosa tarefa de criar outros costumes.
O critério para avaliar o mais moral dos homens nesta época demasiada
longínqua, seria, então, o quanto se sacrifica aos costumes. Em relação
a este período, Nietzsche acredita que sua época seria considerada
imoral porque os costumes já não diz muito a seus contemporâneas; a
força da moralidade foi enfraquecida. É como se à medida que o homem
foi se tornando livre, se tornasse imoral, por querer depender
absolutamente de si mesmo e não mais de uma tradição.
De acordo com o período primitivo da moral, o homem “livre”,
“individual”, o “arbitrário” e “imprevisível” corresponderia ao ‘mau’,
já que não obedeceria à tradição simplesmente por seu caráter
imperativo. Para aquele período “toda ação individual, toda a maneira
de ver individual provoca o horror”. Em Aurora5, Nietzsche lembra que
quando Sócrates começou a defender a virtude, porque acreditar ser
mais feliz aquele que é virtuoso, os gregos, a princípio, não deram
muita credibilidade a tal dizer. Já os moralistas, que segundo Nietzsche
seguem os passos de Sócrates, defendem um tipo de moral que visa o
“domínio de si” – não o tipo de domínio que teria de si o homem
superior, mas o que se origina do conhecimento interior e da restrição
de todos os impulsos considerados por Nietzsche mais fundamentais–
, vêem seus próprios interesses e as formas para encontrarem a
felicidade. Diante de toda coação da “moralidade dos costumes”, a
formação de novos pensamentos, novos juízos de valores não se
separariam da demência, afinal “os homens de outrora tendiam a crer
que onde houver a loucura, haverá também um grão de gênio e de
sabedoria, – algo ‘divino’...6. Sócrates, está neste contexto, como o
estopim da oposição radical a determinados instintos humanos em
nome de um homem que precisa se conhecer pela via racional, que
precisa ser virtuoso para ser feliz.
A regularidade dos povos primitivos em agir conforme os
costumes com o mero objetivo de seguí-los, é um ponto necessário na
visão de Nietzsche para o processo civilizatório da humanidade. Tal
regularidade foi “a grande norma com que tem início a civilização:
5
Ibid., livro terceiro, p. 143 (trad. bras.), KSA 3, p. 174.
6
- Ibid., livro primeiro, aforismo 14, p. 21-22 (trad. bras.), KSA 3, p. 27.
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7
- Ibid., livro primeiro, aforismo 16, p. 23 (trad. bras.), KSA 3, p. 29.
8
Ibid., livro primeiro, aforismo 19, p. 26 (trad. bras.), KSA 3, p. 32.
9
- Ibid., prefácio, aforismo 3, p. 10-12 (trad. bras.), KSA 3, p. 12-15.
10
- Ibid., livro primeiro, aforismo 9, p. 18, (trad. bras.), KSA 3, p. 22.
11
- Id., Genealogia da Moral, segunda dissertação, 2, p. 49 (trad. bras.), KSA 5,
p. 293.
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está no fato de ter posse de sua vontade. Ele avalia os outros tendo a
si mesmo como referência; honra outros homens à medida que forem
seus iguais, que forem também confiáveis. Esse homem acredita ser
forte o suficiente para manter sua palavra contra todas as adversidades
e até mesmo “contra o destino”. Esse homem se orgulha de sua
responsabilidade, de ter consciência “dessa rara liberdade”. Tal “poder
sobre si mesmo e sobre o destino” tornou-se seu “instinto dominante”
cujo nome é consciência.
Percebe-se em Nietzsche uma chamada de atenção para o tanto
de tempo e de derramamento de sangue que foram necessários para se
chegar ao conceito de consciência, para o alcance da possibilidade de
“dizer Sim a si mesmo”12. Para tanto foi necessário fazer uma memória
no homem e na memória só permanece “o que não cessa de causar
dor”. Sempre que o homem sentiu necessidade de criar em si, uma
memória, houve para isso “sangue, martírio e sofrimento”. E o ascetismo,
segundo Nietzsche, contribuiu em muito para que algumas idéias se
tornassem “onipresentes, inesquecíveis, fixas” e, ainda mais, para que
nenhuma outra idéia entrasse em concorrência com essas. A crueldade
das leis penais, para Nietzsche, exemplifica um pouco do esforço
necessário para evitar o esquecimento e para fazer presentes as regras
mais elementares do convívio social.
O aforismo 199 em Além de Bem e Mal Nietzsche também mostra
esse processo de como a obediência aos costumes preparou terreno
para se chegar ao “indivíduo soberano”, autônomo, que acredita romper
tradições. Ele explica a obediência como uma das mais antigas práticas
humanas: os rebanhos de homens (na forma de clãs, comunidades, tribos,
Estados, Igrejas) são tão antigos quanto a existência do homem, de
forma que a capacidade de obedecer, pelo tempo em que se manifesta,
parece até ter se tornada inata. Contudo, Nietzsche considera que em
seu tempo, na Europa, a espécie de homem que mais existe, mais é
cultivado, é o “homem de rebanho”, o dotado de virtude – “o manso,
tratável e útil ao rebanho” – e que se orgulha destas características. Isto,
no entanto, não significa uma contradição. Afinal, ao começar a contar
sobre a origem da responsabilidade no homem, Nietzsche distinguiu o
homem que obedecia a tradição de forma inquestionável e o “homem
autônomo” que quer criar suas próprias regras. Acontece que Nietzsche
12
- Ibid., segunda dissertação, 3, p. 50 (trad. bras.), KSA 5, p. 294-295.
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13
- Id., Além de Bem e Mal, cap. V, aforismo 199, p. 97-98 (trad. bras.), KSA 5,
p. 119-220.
14
- Id. Genealogia da Moral, segunda dissertação, 4, p. 53 (trad. bras.), KSA 5,
p. 298.
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15
- Ibid., segunda dissertação, 6, p. 55 (trad. bras.), KSA 5, p. 300 .
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“ ‘cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago’- o mais velho e
ingênuo cânon moral da justiça, o começo de toda ‘bondade’, toda
‘eqüidade’, toda ‘boa vontade’, toda ‘objetividade’ que existe na
terra. Nesse primeiro estágio, justiça é a boa vontade, entre homens
de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de
‘entender-se’ mediante um compromisso – e, com relação aos de
menor poder, forçá-los a um compromisso entre si” 18.
16
- Id., Aurora, livro primeiro, aforismo 18, p. 24 (trad. bras.), KSA 3, p. 30.
17
- Id., Genealogia da Moral, segunda dissertação, 8, p. 59-60 (trad. bras.), KSA
5, p. 306..
18
- Ibid., segunda dissertação, 8, p. 60 (trad. bras.), KSA 5, p. 306-307..
206
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19
- Ibid., segunda dissertação, 9, p. 60-61 (trad. bras.), KSA 5, p. 307-308.
20
- Ibid., segunda dissertação, 10, p. 62 (trad. bras.), KSA 5, p. 308.
21
- Ibid., segunda dissertação, 11, p. 62 (trad. bras.), KSA 5, p. 309-310.
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22
- Ibid., segunda dissertação, 11, p. 64 (trad. bras.), KSA 5, p. 312.
23
- Ibid, segunda dissertação, 12, p. 66 (trad. bras.), KSA 5, p. 314.
24
- Ibid., segunda dissertação, 13, p. 68 (trad. bras.), KSA 5, p. 317.
208
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25
- Ibid., segunda dissertação, 16, p. 72 (trad. bras.), KSA 5, p. 321-322.
26
- Ibid., segunda dissertação, 16, p. 73 (trad. bras.), KSA 5, p. 322-323.
27
- Id, Cinco prefácios para cinco livros não escritos, prefácio 3: “O Estado
grego”, p. 55 (trad. bras.), KSA 1, p. 772 e KSA 7, p 344. .
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28
- Ibid., segunda dissertação, 17, p. 74-75 (trad. bras.), KSA 5, p. 324.
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29
- Ibid., segunda dissertação, 19, p. 77 (trad. bras.), KSA 5, 327.
30
- Ibid., segunda dissertação, 20, p. 79 (trad. bras.), KSA 5, p. 329.
31
- Ibid., segunda dissertação, 21, p. 80 (trad. bras.), KSA 5, p. 331.
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32
Ibid., segunda dissertação, 22, p. 81(trad. bras.), KSA 5, p. 332.
33
- Ibid., segunda dissertação, 22, p. 81 (trad. bras.), KSA 5, p. 332.
34
- Id., Aurora, livro primeiro, 72, p. 57-58 (trad. bras.), KSA 5, p. 70-71.
35
- Id., Genealogia da Moral, segunda dissertação, 23, p. 82 (trad. bras.), KSA
5, p. 333.
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36
- Id., Além de Bem e Mal, cap. III, aforismo 46, p. 52 (trad. bras.), KSA 5, p.
66.
37
- Ibid., cap. III, aforismo 55, p. 58-59 (trad. bras.), KSA 5, p. 74.
38
- Id., Aurora, livro primeiro, 78, p. 62-63 (trad. bras.), KSA 3, p. 76-77.
39
- Id., Genealogia da Moral, terceira dissertação, 20, p. 130 (trad. bras.), KSA
5, p. 389.
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40
- Id, Aurora, livro quarto, 236, p. 166 (trad. bras.), KSA 3, p. 199.
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- Id., Além do Bem e do Mal, cap. I, aforismo 19, p. 24 (trad. bras.), KSA 5,
41
p. 32.
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42
- Id., Aurora, segundo livro, aforismo 112, p. 82 – 83 (trad. bras.), KSA 3, p. 100
- 102.
43
- Id, Além do Bem e do Mal, cap. I, aforismo 19, p. 25 (trad. bras.), KSA 5, p. 34.
44
- Id. Crepúsculo dos Ídolos, “Incursões de um extemporâneo”, 38, p. 114 (trad.
bras.), KSA 6, p. 139-140.
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45
Id. Cinco prefácios para cinco livros não escritos, Prefácio 3, “O Estado
grego”, p. 56 (trad. bras.), KSA 1, p. 774 e KSA 7, p. 346.
46
Id. Cinco prefácios para cinco livros não escritos, Prefácio 3, “O Estado
grego”, p. 54 (trad. bras.), KSA 1, p. 771 e KSA 7, p. 344.
47
Id. Cinco prefácios para cinco livros não escritos, Prefácio 3, “O Estado
grego”, p. 54 (trad. bras.), KSA 1, p. 772 e KSA 7, p. 344.
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