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RESENHA  1

Da guerra à pobreza à guerra ao com “menos Estado econômico e social”, no mo-


mento em que o Estado americano (europeu, ou
crime: para além do Estado Penal mesmo o caso brasileiro citado por Wacquant) tor-
na-se incapaz de conter a decomposição do traba-
The war on poverty to the war on lho assalariado e a hipermobilidade do capital.
crime: beyond the Penal State Para Elizabeth, esse processo, cujo ápice ocor-
reu nos anos de 1980 e 1990, com a Guerra às Dro-
HINTON, Elizabeth. From the War on Poverty to gas, já havia começado nos anos de 1960, quando
the War on Crime: the making of mass incarceration da Guerra contra a Pobreza, que andou pari pas-
in America. Cambridge, Massachusetts, Harvard
su com a aprovação da expansão dos direitos civis
University Press, 2016. 464 páginas.
(Civil Right Act), especialmente a expansão dos
Marcelo da Silveira Campos direitos de voto (Voting Rights Act) aos afro-ame-
 http://orcid.org/0000-0002-5242-7095 ricanos, que passaram a participar do pleito eleito-
ral em condições iguais de cidadania.1 Em 1965, o
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),
Presidente Johnson declara que aquele seria o ano
Dourados – MS, Brasil, e Instituto Nacional de Estudos
Comparados em Administração de Conflitos (INCT-
“em que este país começou uma guerra inteligente
InEAC). E-mail: marcelocampos@ufgd.edu.br e eficaz contra o crime”. Agora, políticos republica-
DOI: 10.1590/3410102/2019
nos e democratas se unem para combater o crime,
que, mais adiante, se tornaria a mais longa guerra
Este livro de Elizabeth Hinton combina tex- contra o crime, encabeçada pelo Presidente Ronald
to e contexto, ao mesmo tempo que desloca a (já Reagan: a Guerra às Drogas. É essa suposta “guerra
antiga) discussão sobre a ascensão do Estado penal inteligente e eficaz contra o crime” que acabaria por
americano como decorrência do enfraquecimento produzir a atrocidade contemporânea do encarcera-
do Estado de bem-estar social nos Estados Unidos. mento em massa. A pedra angular de Johnson foi o
A tese da autora é provocativa: a “Guerra contra a Safe Streets Act, de 1968, que investiu inicialmen-
Pobreza”, um dos pilares do Welfare State daquele te 400 milhões de dólares no combate ao crime.
país, gerou uma “guerra contra o crime”, na gestão Nesse contexto, a Law Enforcement Assistance
do Presidente Lyndon Johnson, a partir de 1966, Administration (LEAA) tornou-se a agência federal
levando ao encarceramento massivo de jovens ne- com mais rápido crescimento nos anos de 1970: o
gros nas décadas seguintes, 1970 e 1980, superlo- Congresso havia alocado 10 milhões de dólares, em
tando os presídios americanos. 1965, para a guerra contra o crime; em 1973, o
A hipótese sustentada empiricamente pela au- montante salta para cerca de 850 milhões de dóla-
tora é clara e direta: prisões, detenções e as institui- res. Quando a LEAA foi finalmente dissolvida em
ções da justiça criminal norte-americana operaram 1981, durante o primeiro ano do governo Reagan,
como uma engrenagem central na desigualdade, e, o aproximadamente 10 bilhões de dólares tinham
mais importante, essa “campanha punitiva” foi ini- sido destinados a cerca de 80 mil projetos voltados
ciada no apogeu da reforma liberal e da revolução ao controle do crime.
dos direitos civis (civil rights revolution), ou seja, nos
anos de 1960, quando a nação estadunidense parecia
pronta para abraçar políticas que realizariam plena- Demandas por direitos e processos
mente seus valores fundadores igualitários. criminalizadores: war on poverty
Como contraste empírico-analítico à análise and war on drugs
empreendida por Hinton, retomamos a tese clássi-
ca de Loïc Wacquant (2001) sobre a chamada “pe- O argumento de Hinton, portanto, estabelece
nalidade neoliberal”, que apresenta o paradoxo de uma conexão ímpar no bojo da complexa relação en-
remediar um Estado “mais policial e penitenciário” tre demandas de grupos minoritários por ampliação
de direitos – o surgimento de grupos ativistas negros
RBCS Vol. 34 n° 101/2019: e3410102
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e latinos, que pediam a autodefesa, como os Panteras firmemente estabelecidas. E, certamente, este é um
Negras – e o aumento do poder repressivo e crimi- dos pontos fortes do livro, porque existiu, inclu-
nalizador do Estado. Ou seja, houve uma espécie de sive, um consenso bipartidário dos formuladores
resposta para a expansão da polícia, com o aumento de políticas nacionais nas duas décadas anteriores à
da vigilância, especialmente em comunidades urba- Guerra às Drogas, de Reagan, na década de 1980.
nas de baixa renda após 1965. Nesse contexto, esses O ponto central da autora é: a expansão do Esta-
grupos minoritários recorreram a uma longa tradi- do carcerário deve ser entendida como a resposta
ção de mobilização de ação direta contra a brutalida- do governo federal à transformação demográfica da
de policial e a aplicação da lei, que assumiria aborda- nação em meados do século XX, e, especialmen-
gens diferentes ao longo dos anos de 1970, fato esse te, aos ganhos dos movimentos dos direitos civis
que, evidentemente, continua até hoje. afro-americanos e a ameaça de rebelião urbana. A
Segundo a autora, esse processo acentua-se nos tese da autora mostra forte relação com o filme Bla-
anos de 1980, quando os centros de atendimen- cKkKlansman (Infiltrado na Klan, 2018), coescrito
to social, estabelecidos durante a Guerra contra a e dirigido por Spike Lee. Baseado no livro autobio-
Pobreza, não foram mais encontrados em nenhum gráfico Black Klansman, de Ron Stallworth (2018),
dos bairros mais vulneráveis e isolados das cidades conta a história de um detetive negro, inicialmen-
norte-americanas. Moradores não tinham mais, te chamado para investigar o próprio movimento
portanto, ninguém para chamar, mas a polícia con- negro pelos direitos civis nos Estados Unidos. No
tinuava lá presente, nos bairros que careciam de rea- filme, Angela Davis é o alvo de suas investigações,
bilitação abrangente ou programas de bem-estar so- primeiro para que ele ganhasse legitimidade dentro
cial. Foi assim que as instituições de aplicação da lei da polícia de Colorado. Só então é que o detetive
e justiça criminal tornaram-se as últimas agências consegue seu objetivo: infiltrar-se na Ku Klux Klan.
públicas em pé. Os policiais serviram como a pri- Um segundo ponto importante na tese da auto-
meira linha de contato entre os cidadãos e o sistema ra: grande parte dos afro-americanos foram excluí-
judiciário, o que facilitou a entrada dos cidadãos dos de programas como a Ajuda às Crianças Depen-
nas prisões e o encarceramento em massa de negros dentes (Aid to Dependent Children) e de muitos
e latinos. Dito em poucas palavras: essa parciali- outros programas de assistência social associados ao
dade estatal ocultou a dimensão racista do Estado New Deal. O “combate” da administração Kennedy
carcerário. É nesse sentido que a Guerra às Drogas à delinquência foi uma das primeiras respostas do
deve ser considerada um componente num conjun- governo federal ao impacto da Grande Migração nas
to muito maior de políticas domésticas denomi- cidades americanas. Das cinzas do “motim” de Watts
nadas pelo governo estadunidense de “anticrime”, em agosto de 1965, houve crescente consenso en-
mas que acabaram por focalizar principalmente a tre políticos, administradores federais, funcionários
juventude negra e suas famílias. responsáveis pela aplicação da lei e jornalistas, que
Antes dos anos de 1980, os programas natio- passaram a entender o crime como algo específico da
nal law enforcement introduziram várias formas de juventude urbana negra, a exemplo das rebeliões de
vigilância nos programas de bem-estar social: rotu- Newark e Detroit, em julho de 1967. A administra-
laram grupos inteiros de americanos como prová- ção Johnson acreditava que os homens afro-ameri-
veis criminosos, realizando operações que criaram canos abaixo de trinta anos, e influenciados por ati-
economias subterrâneas e “combateram” gangues vistas de direitos civis que advogavam cada vez mais
com forças policiais militarizadas em conjunto, autodeterminação e controle da comunidade, foram
com severas diretrizes de condenação nas sentenças. os principais responsáveis pelo “desassossego” nas
Em conjunto, essas práticas ajudaram a alimentar o comunidades de baixa renda. Por conseguinte, esse
fenômeno do encarceramento em massa, e a levar grupo rapidamente emergiu como principal alvo dos
a nação para uma encruzilhada fiscal e moral. Co- formuladores de políticas federais.
locando nesses termos, a autora bem aponta que as A doutrina liberal da década de 1960 enfatizou,
raízes do encarceramento em massa já haviam sido consistentemente, os danos do preconceito na socie-
RESENHA  3

dade americana. O ataque de Kennedy à delinquên- e o trabalho policial. O caráter discricionário desses
cia e a Guerra contra a Pobreza, de Johnson, foram fundos orçamentários para melhorar a segurança
vistos pelos formuladores de políticas federais como em projetos de habitação pública acabou criando
tentativas de abordar, finalmente, a desigualdade novas ligações entre todo o espectro das agências
racial que manchava a história americana. E, assim, executivas responsáveis pelos programas sociais do-
deviam promover oportunidades para os cidadãos mésticos. Todas essas medidas asseguraram que os
que foram sistematicamente excluídos da vida cívica. programas da guerra contra o crime permaneces-
Ao mesmo tempo, é durante a década de 1970 que sem focados em comunidades de baixa renda.
a diferenciação das técnicas de controle do crime e Embora os membros do amplo consenso polí-
do criminoso na vida cotidiana dos afro-americanos tico que mobilizou a guerra contra o crime e, mais
de baixa renda intensificam-se conjuntamente aos tarde, a Guerra às Drogas tenham se diferenciado
programas sociais urbanos, cada vez mais integrados nos contornos da vigilância governamental e das li-
nas burocracias, instituições e indústrias, no cora- berdades civis em geral, sua determinação era poli-
ção do Estado carcerário. A imposição contínua de ciar cidadãos urbanos pobres. Isso provou ser uma
sobreposição entre diferentes métodos de vigilância força unificadora e bastante poderosa. Nesse sentido,
foi um processo que estimulou o historiador Hea- tanto os liberais quanto os conservadores temiam
ther Ann Thompson (2010) a descrever esse cenário que a violência urbana coletiva se tornasse uma ca-
sociopolítico como “criminalização do espaço”, que racterística permanente na vida norte-americana. E,
desenhava e traçava dispositivos de controle e segu- o mais importante, é que Hinton nos mostra que
rança na vida cotidiana dos americanos urbanos de esse “consenso” político não poderia compreender
baixa renda. Como Nixon agiu para enfraquecer os estratégias de prevenção e de controle do crime fora
programas da Guerra contra a Pobreza, sua adminis- da criação de um papel mais central da aplicação da
tração conduziu o Congresso a revisar as fórmulas lei em bairros vulneráveis. Até mesmo o procurador-
de subvenções e a financiar incentivos para refletir -geral de Johnson, Ramsey Clark, considerado um
e redefinir suas próprias prioridades, dentre as quais dos funcionários federais mais liberais de sua época,
a construção de novas prisões. Embora os estados foi responsável pela articulação do objetivo principal
tivessem autonomia relativa em como gastariam o desse consenso político em seu depoimento durante
dinheiro designado para fins de controle do crime, as audiências da Câmara sobre delinquência juvenil
houve incentivo para concessões em bloco, visando em 1967. Para Clark, liberais e conservadores esta-
expandir o encarceramento no início dos anos de vam aliados no Congresso para a fusão do bem-estar
1970. As prioridades punitivas do consenso bipar- social com programas punitivos, com foco na ju-
tidário incluíam a vigilância extensiva, desencadeada ventude negra, em programas urbanos domésticos.
por agentes do FBI e da polícia local, contra militan- Essa política parecia “a melhor maneira de proteger
tes negros e organizações civis mais à esquerda. a sociedade, porque, para melhor ou para pior, essas
Com efeito, a mobilização de leis para recursos pessoas estarão conosco, e é melhor que os endireite-
orçamentários de execução, o crescimento do sis- mos” (Hinton, p.18).
tema prisional e as altas concentrações de homens O consenso se reforçava em novas formas de
de baixa renda atrás das grades podem ser medidos compreender e responder ao crime urbano; formas
com mais clareza no uso de discricionariedade pe- essas emergidas nas décadas de 1960 e 1970 e ba-
las autoridades e seus financiamentos. Durante os seadas em pesquisas sobre o crime urbano, muitas
governos de Nixon e Ford, alocações discricionárias delas apoiadas por financiamento federal e funda-
ofertaram à Casa Branca um meio de instituir ini- mentadas em interpretações culturais de igualdade
ciativas de aplicação da lei de sua própria escolha, racial. Alertando, consistentemente, a urgência de
apoiadas no extenso desdobramento de unidades se atentar para a questão do crime, os novos da-
policiais especiais militarizadas, no uso de vigilância dos e as novas políticas se tornariam uma força
eletrônica e em estratégias secretas, que muitas ve- de autoperpetuação, que moldou profundamente
zes obscureciam a distinção entre o aprisionamento as políticas domésticas e encorajou o fluxo contí-
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nuo de recursos de aplicação da lei em comunida- por quem quer que sejam cometidos, são cometidos
des afro-americanas de baixa renda. A pesquisa do nas cidades” (Hinton, p.21). Os formuladores de po-
período pós-Guerra Civil prolongou uma longa líticas federais tinham um local específico (centros
tradição racial de entendimentos preconceituo- urbanos) e um grupo específico (homens jovens se
sos sobre o crime e o criminoso. Nas décadas se- aproximando da idade adulta) para aplicação da lei
guintes à emancipação, estudiosos, formuladores americana. Moynihan juntou-se aos cientistas cien-
de políticas e reformadores da previdência social tíficos conservadores Edward Banfield e James Q.
analisaram as taxas díspares de encarceramento Wilson na defesa do desinvestimento de programas
negro como “prova” empírica da “natureza crimi- de ação comunitária e outras iniciativas de bem-es-
nosa” dos afro-americanos. O censo de 1890 e as tar social.2 À medida que as taxas de criminalidade
estatísticas de prisão constituíam-se em bases para reportada aumentavam, juntamente com o investi-
discussões populares e acadêmicas sobre os negros mento do governo federal em forças policiais e pro-
americanos como uma “população perigosa”. Vinte gramas de pesquisa, os três passaram a ver a pobre-
e cinco anos após a Guerra Civil e a primeira gera- za em comunidades negras como um fato da vida
ção removida da escravidão, os números do censo e do crime nos Estados Unidos, ou seja, como algo
indicavam que os afro-americanos representavam inato aos afro-americanos. Em vez de constituir um
12% da população do país, mas 30% de seus pri- aspecto de um programa mais amplo de reforma e
sioneiros. As altas taxas de detenção e encarcera- elevação social, a guerra contra o crime, de Nixon,
mento dessa população serviram para criar o que buscava oferecer, por si só, um meio de resolver (ou
o historiador Khalil Gibran Muhammad (2010) pelo menos administrar) os sintomas da pobreza his-
chamou de “discurso estatístico” sobre o crime ne- tórica e da pobreza da população negra.
gro na imaginação popular e política. Esses dados Nos anos de 1970, a prisão deliberada e encar-
informaram profundamente os debates nacionais ceramento de homens jovens e afro-americanos se
em curso sobre diferenças raciais. Como secretá- tornou uma estratégia para prevenir futuros crimes.
rio assistente de trabalho durante o governo John- Ao mesmo tempo, surgiam “novas abordagens teó-
son, Daniel Patrick Moynihan também promoveu ricas e científicas” para a compreensão do crime e
a ideia de que a pobreza poderia ser aliviada com do criminoso, como a de James Wilson, que atri-
intervenções estratégicas em comunidades negras. buiu o aumento do crime violento na década de
Em março de 1965, pouco depois de Johnson ini- 1960 ao fenômeno da crescente população jovem
ciar a guerra contra o crime, Moynihan fez circular da nação americana. Wilson pediu aos decisores
o memorando Família Negra. Conhecido como políticos que desenvolvessem programas de contro-
Relatório Moynihan, o documento argumentava le do crime baseados em realidades demográficas.
que o impacto combinado de uma longa história “A única maneira segura que sabemos de comba-
de discriminação racial e “privação cultural” produ- ter o crime é o controle da natalidade” (Hinton,
ziu um “emaranhado de patologias” em famílias e p.22), concluiu. Poderíamos lembrar ainda, no
comunidades urbanas negras, evidenciado por altas mesmo período, do economista Gary Becker, com
taxas de analfabetismo. A administração Johnson a sua Teoria Econômica do Crime (TER). Becker
aceitou a visão de Moynihan da patologia como a (1968), ao estudar o crime, empregou o raciocínio
causa básica da pobreza enquanto reconhecia a po- econômico no clássico artigo “Crime and punish-
breza como a causa raiz do crime. ment: an economic approach”, que marca o início
Em suma, os crimes, as vítimas e os infratores dos trabalhos de uma corrente denominada “teoria
são encontrados com mais frequência nas áreas mais econômica do crime”. A ideia central do autor é
pobres, deterioradas e socialmente desordenadas das que os indivíduos contrastam os custos e benefí-
cidades. Os dados do FBI apoiaram a percepção do cios esperados de suas ações quando decidem pelas
governo Johnson de que “a maioria dos crimes, onde condutas conformes ou contrárias à lei, ao compa-
quer que sejam cometidos, são cometidos por me- rá-las com os resultados do seu tempo de trabalho
ninos e homens jovens, e que a maioria dos crimes, no mercado legal, considerando a probabilidade de
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apreensão, condenação, a severidade da punição e contemporâneo, levando em conta que a primeira


maior ou menor propensão do indivíduo ao “ris- fase da era Lula-Dilma, entre 2004 e 2011, foram
co” de cometer um ato ilegal. A decisão de cometer os anos de maior desenvolvimento econômico de
um crime resultaria, portanto, da maximização da nossa história mais recente, com taxa média anual
utilidade esperada, em que o indivíduo calcula os de crescimento real do PIB de 4,3%, segundo o
futuros ganhos da ação criminosa, o valor da pu- IBGE, e taxa de desemprego decrescente de 12,4%
nição e as probabilidades de detenção e de aprisio- da PEA em 2003 para 4,8% em 2014, segundo a
namento; e, por outro lado, o custo de oportuni- PME/IBGE. Ainda, da perspectiva social, os avan-
dade de cometer um crime através do salário no ços foram igualmente significativos: 2003 a 2012,
mercado de trabalho legal. A formulação de Becker o índice de Gini reduziu-se 17,8% (1,8% ao ano,
sobre a Teoria Econômica do Crime é citada por em média), enquanto a taxa de pobreza diminuiu
Foucault (2008), em Nascimento da biopolítica, ao 61,8% (5,5% ao ano, em média) (Carleial, 2015).
tratar da formulação teórica da racionalidade neo- Também seria impossível não assinalar que, justa-
liberal. Embora Hinton não se remeta exatamen- mente nesses anos, o encarceramento massivo no
te a Becker, mas sim ao seu parceiro Wilson, esse Brasil funcionou de modo crescente e expansivo.
período certamente marca, nos Estados Unidos, o Com vertiginoso crescimento da população
nascimento de abordagens teóricas e científicas que carcerária desde os anos de 1990, é nos anos de
fundamentavam as escolhas dos legisladores pelo 2000 que esse aumento se torna ainda mais expo-
encarceramento massivo. nencial: em 2005, havia 254.601 pessoas presas no
Brasil; em 2015, esse número absoluto passou a
607.731 pessoas presas.4 O crescimento da popu-
Pobreza, crime e seletividade racial-penal: lação carcerária no país foi de 161% entre 2000 e
possibilidades analíticas 2015, ao passo que o crescimento demográfico foi
de 20% no mesmo período. Entre 2005 e 2013,
O encarceramento massivo de negros e latinos a população carcerária de delitos relacionados às
no sistema prisional americano é um fenômeno drogas aumentou 345%, saltando de 32.880 para
importante da história contemporânea dos Esta- 146.276 presos e presas por esse tipo de infração,
dos Unidos. O livro de Elizabeth Hinton matiza sendo, igualmente, a grande maioria formada por
a variável sócio-histórica com as variáveis políticas, jovens negros, com baixa escolaridade e com ocu-
que fizeram com que a Guerra contra a Pobreza se pações relacionadas ao mercado informal de traba-
transformasse em um dos mecanismos centrais de lho e/ou desempregados (Campos, 2015).
operacionalização do Welfare State daquele país; ao Em 2018, chegamos aos 800 mil presos no
mesmo tempo, a Guerra contra a Pobreza foi um país. E a previsão é de 1 milhão de homens e mu-
dos principais mecanismos para o governo estadu- lheres presas até 2022. É evidente, portanto, que,
nidense operacionalizar, no interior das comuni- mesmo em períodos substantivos de crescimento
dades afro-americanas, a guerra contra o crime, le- econômico e desenvolvimento social, tanto nos
vando ao encarceramento massivo de jovens negros Estados Unidos como no Brasil, tais épocas coe-
nos anos de 1970 e 1980, superlotando os presídios xistiram/coexistem com o fenômeno do encarcera-
americanos até a atual taxa de, aproximadamente, mento massivo. Assim, o grande mérito analítico
670 presos por 100 mil habitantes.3 do livro é observar que uma sociedade que declara
O livro, portanto, traz uma profícua e fina guerra contra a pobreza desenvolve diferentes dis-
análise da história social americana e da luta dos positivos de estigmatização, criminalização, segu-
movimentos sociais negros pela expansão dos di- rança e controle em bairros periféricos, dispositivos
reitos civis, e, especialmente, da criminalização esses que, quando acionados por uma racionalidade
da pobreza, mesmo no período do Welfare State. governamental, são fundamentais na estigmatiza-
Nessa linha, seria inegável não correlacionar com ção e criminalização, numa espécie de continuum
o fenômeno do encarceramento massivo no Brasil para grande parcela da população negra das comu-
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nidades periféricas dos Estados Unidos. E, claro, <http://www.anpocs.org.br/portal/publica-


também no Brasil. Isso porque, em matéria de polí- coes/rbcs_00_22/rbcs22_03.htm>.
tica criminal, o novo nem sempre vem. STALLWORTH, R. (2018), Black Klansman: a
memoir. New York, Flatiron Books.
THOMPSON, H. A. (2010), “Why mass incarce-
Notas ration matters: rethinking crisis, decline, and
transformation in postwar American history”.
1 Sobre esse contexto, é imprescindível citar o texto Journal of American History, 97 (3): 703-758,
clássico de Parsons ([1965] 1993): “Cidadania plena 705.
para um americano negro”. WACQUANT, L. (2001), As prisões da miséria.
2 Wilson foi expoente de várias teorias neoconserva- Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
doras sobre a criminalidade nos Estados Unidos. Ver, WILSON, J. Q. (ed.). (1983), Crime and publicy
especialmente, Wilson (1983) e Wilson e Kelling policy. San Francisco, California, Institute for
(2001).
Contemporary Studies.
3 Fonte: <https://sentencingproject.org/wp-content/uplo WILSON, J. Q. & KELLING, G. (2001), “Ven-
ads/2016/01/Trends-in-US-Corrections.pdf>.
tanas rotas: la policía y la seguridad en los bar-
4 Fonte: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/ rios”. Delito y Sociedad – Revista de Ciencias
infopen>. Sociales, 15/16: 67-79.

BIBLIOGRAFIA

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implicações da nova Lei de Drogas no sistema de
justiça criminal em São Paulo. Tese de doutora-
do em Sociologia. São Paulo, USP.
CARLEIAL, L. M. F. (2015), “Política econômica,
mercado de trabalho e democracia: o segundo
governo Dilma Rousseff”. Estudos Avançados,
29 (85): 201-214.
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MUHAMMAD, K. G. (2010), The condemnation
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PARSONS, T. ([1965] 1993), “Cidadania plena
para um americano negro”. Disponível em:

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