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POLÍTICA E HISTÓRIA EM

CAIO PRADO JÚNIOR


2ª Edição, revisada e aumentada.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO


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Governadora

Washington Luiz
Vice-Governador

SECRETARIA DE ESTADO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, ENSINO


SUPERIOR E DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO
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Pró-Reitora de Graduação
Claudinei Magno Magre Mendes

POLÍTICA E HISTÓRIA EM
CAIO PRADO JÚNIOR
2ª Edição, revisada e aumentada.

São Luís

2013
© copyright 2013 by UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Todos
os direitos desta edição reservados à EDITORA UEMA.

Política e História em Caio Prado Júnior

EDITOR RESPONSÁVEL
Iran de Jesus Rodrigues dos Passos

CONSELHO EDITORIAL
Porfirio Candanedo Guerra - PRESIDENTE
Iran de Jesus Rodrigues dos Passos – EDUEMA
Joel Manuel Alves Filho - CCT/UEMA
José Bello Salgado Neto - CCT/UEMA
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Lincoln Sales Serejo - CECEN/UEMA
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Zafira Silva de Almeida - CECEN/UEMA

REVISÃO DE REDAÇÃO: Silvina Rosa


DIAGRAMAÇÃO/PROJETO GRÁFICO: Hugo Alex da Silva
CAPA E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Hugo Alex da Silva
FICHA CATALOGRÁFICA: Carmen Torresan – CRB9-nº 629
IMPRESSÃO: Gráfica e Editora Massoni

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Mendes, Claudinei Magno Magre.
M538p Política e história em Caio Prado Júnior /
Claudinei Magno Magre Mendes. 2 ed. Ver. Aum. – São
Luís : UEMA, 2013.
220 p.

ISBN: 978-85-8227-021-9

1. Pensamento - Filosofia. 2. Prado Júnior, Caio,


1907-1990. 3. Historiografia. 4. Brasil - História.
I. Título.

CDD 21. Ed. : 128.2


981

O conteúdo da obra é de inteira responsabilidade do autor.


SUMÁRIO

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO ............................................................ 7

INTRODUÇÃO............................................................................................. 13

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO


POLÍTICO DE CAIO PRADO JR. .............................................................. 21

CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL. A colonização


como produção para o mercado externo. ........................................................ 51

REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE


CAIO PRADO JR. ......................................................................................... 79

RESENHA: RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a nacionalização do


marxismo no Brasil. São Paulo: Departamento de Ciência Política da
Universidade de São Paulo; FAPESP; Ed. 34, 2000................................ 141

PALESTRA: CAIO PRADO E A REVOLUÇÃO RUSSA. ..................... 145

CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO ................ 157


O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA .......................... 169

A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM DEBATE


POLÍTICO .................................................................................................... 191

REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO. A PROPÓSITO DAS


COMEMORAÇÕES DOS CENTO E CINQUENTA ANOS DO
MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA. ........................................... 205

6
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

Publicamos aqui a segunda edição, revista e aumentada, do


livro Política e História em Caio Prado, lançado em 2008. Acrescentamos
três textos ao livro original. Dois deles foram apresentados,
primeiramente, em congressos de história. O primeiro, que tem por
título “Caio Prado Júnior: a construção de um mito”, foi exposto no IV
Congresso Internacional de História da Universidade Estadual de
Maringá em 2009. O segundo, “O ensaísmo na historiografia
brasileira”, foi apresentado no V Congresso Internacional de História,
em 2011. Posteriormente, com modificações, foi publicado na revista
Acta Scientiarum, da Universidade Estadual de Maringá em 2012. O
terceiro texto, “A questão feudalismo no Brasil: um debate político”, foi
originalmente publicado em 2013, na revista Notandum. Todos os
textos, mesmo os antigos, receberam pequenas modificações de ordem
formal, procurando-se melhorar a exposição. Vale igualmente ressaltar
que nesses três novos textos expusemos resultados de nossa pesquisa
sobre o pensamento político de Caio Prado Júnior que estamos
desenvolvendo pelo menos desde 1998.
Examinamos, no primeiro texto, “Caio Prado Júnior: a
construção de um mito”, a historiografia relativa a Caio Prado,
enfocando, especialmente, mas não unicamente, os estudos sobre este
autor publicados após a sua morte, ocorrida em 1990. Comparando-se
este período com o anterior a 1990, nota-se que, após esta data,
avolumaram-se os trabalhos sobre este autor, em contraste com os
poucos estudos realizados anteriores a ela. Poder-se-ia supor que esse
grande número de estudos elaborados a partir de 1990 possa ser
explicado pelo seu falecimento, ocorrido nesse ano. Todavia, chama-
nos a atenção não apenas o grande número de estudos feitos após seu
falecimento, mas o fato de sua caracterização nessas obras ser bastante
homogênea.
Pode-se mesmo afirmar que existe uma espécie roteiro nessas
análises. De um modo sintético, eis esse roteiro. Nascido em uma
família paulista da alta aristocracia do café, Caio Prado teve uma
educação esmerada, estudando, inicialmente, em casa, com preceptores
contratados; depois, estudou em um colégio da elite paulistana, o São
Luis; em seguida, passou dois anos estudando na Inglaterra; por fim,
seguiu o caminho dos filhos dessa classe, formando-se em Direito pela
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Apoiou o candidato à


presidência pela Aliança Liberal, Getúlio Vargas, tendo sido preso por
ter dado vivas a ele em um comício do candidato do governo, Julio
Prestes. Desencantando-se da Revolução de 1930, da qual participou
ativamente, rompeu com sua classe, tornando-se membro do Partido
Comunista Brasileiro e aderindo ao marxismo. A partir de então, este
historiador revolucionário elaborou uma obra de cunho marxista. Em
suma, seus livros, começando com Evolução política do Brasil, de 1933,
são obras de um autor marxista, comunista e revolucionário. Ainda que
tivesse divergências com o Partido Comunista, manteve-se como
membro dele, naquilo que seus estudiosos costumam denominar de
membro disciplinado.
É verdade que antes dessa época, textos de Iglesias e Novais já o
caracterizavam como um autor marxista e revolucionário. Mas, a nosso
ver, a insistência e o grande número de estudos que reafirmam essa
caracterização têm muito a ver com a nova época histórica que se abre
com a década de 1990.
A rigor, em linhas gerais, pode-se dizer que existem dois
momentos distintos relativos aos textos que tratam de Caio Prado. No
primeiro momento, encontramos textos que polemizam com ele.
Autores como Rui Facó, Calvino Filho, entre outros, criticaram suas
formulações políticas. As críticas se avolumam a partir da publicação
de A Revolução Brasileira, de 1996. Durante este período, com exceção de
resenhas a seus livros e de um estudo sobre a cultura brasileira, de
Carlos Guilherme Mota, no qual é incluído, não encontramos análises
sobre Caio Prado. Na década de 1980, mas, principalmente após sua
morte, os estudos sobre este autor aumentam em quantidade. Artigos,
dissertações, teses e livros, cujos temas são suas trajetórias política e
intelectual, aparecem em grande número. Nesses estudos,
invariavelmente, Caio Prado é caracterizado como um autor
revolucionário e, principalmente, há certa concordância ou
identificação entre esses estudiosos e suas formulações. Pode-se afirmar
que, de um modo geral, são autores caiopradianos, o que significa que
permanecem no interior de suas formulações.
Em função disso, procuramos, nesse texto, explicar as razões da
insistência nesse enfoque, relacionando-o com o que entendemos como
uma nova etapa histórica que se inaugura a partir da derrocada do
socialismo.
No segundo texto, “O ensaísmo na historiografia brasileira”,
diante das críticas feitas ao caráter ensaístico da obra de Caio Prado,
procuramos entender as razões que o levaram a adotar o ensaio como

8
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

maneira de expor sua interpretação da história do Brasil. Também,


procuramos indicar o que poderia caracterizar Formação como um
ensaio. Assim, ao invés de criticá-lo por valer-se desse gênero literário,
contrapondo-lhe uma história fundada na pesquisa em arquivos e
documentos, optamos por buscar entender as razões históricas e
políticas do uso desse gênero. Sob este aspecto, discutimos no texto as
razões por que, ao contrário do que comumente faz a historiografia,
entendemos que Evolução política do Brasil é um livro de história, ainda
que seu próprio autor o defina como um ensaio, ao passo que Formação
do Brasil contemporâneo possui características ensaísticas. Fundamos
nossa afirmação no fato de que, motivado por determinado
posicionamento político, Caio Prado, em Formação, defende uma tese
que constitui a espinha dorsal desse livro.
Por fim, reavaliamos, em “A questão feudalismo no Brasil: um
debate político”, o debate que Caio Prado travou com o Partido
Comunista Brasileiro em torno da questão do feudalismo no Brasil. O
ponto central desse texto é chamar a atenção para o fato de que, ainda
que tenha discordado, explicitamente, da posição do Partido em torno
da presença de relações feudais no Brasil, em 1947, por exemplo, com o
texto “Fundamentos econômicos da revolução brasileira”, foi somente
com os artigos publicados na Revista Brasiliense, a partir de 1960, que
Caio Prado criticou a reforma agrária de caráter distributivista. Em
textos da década de 1930 e 1940, por exemplo, explicitamente, este
autor defendeu esse tipo de reforma agrária. Somente a partir de 1960
e, principalmente, com seu livro de 1966, A revolução brasileira, é que
Caio Prado, modificando sua posição anterior, passou a criticar a
proposta de reforma agrária que tinha como fundamento a afirmação
pela existência de relações de natureza feudal no Brasil.
Cabe, por fim, um último comentário sobre os novos textos que
aparecem na segunda edição. Mantivemos neles o mesmo modo de
compreender historicamente Caio Prado e sua interpretação da história
do Brasil que havíamos exposto na primeira edição desse livro, em
2008. Ainda que continuemos estudá-lo, nada vimos que nos levasse a
modificar nossa opinião.
Em função disso, a seguir, apontaremos alguns aspectos que,
talvez, não estejam suficientemente explicados nos textos aqui
publicados e que julgamos necessário desenvolver para uma melhor
compreensão da maneira como concebemos a obra e a trajetória política
de Caio Prado.
*

9
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Em nosso livro, procuramos chamar a atenção para uma


questão que consideramos fundamental para a compreensão do seu
pensamento político e, por conseguinte, da sua obra.1
Ela diz respeito à sua interpretação da história do Brasil. Em
Formação do Brasil contemporâneo, ainda que tenha por subtítulo
“Colônia”, encontra-se exposta aquilo que Caio Prado denomina linha
mestra da história do Brasil, que não é outra coisa do que uma
interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Expondo-a
sinteticamente, ela se consubstancia na afirmação de que a história
brasileira define-se pela transição ou transformação de uma economia
colonial em uma economia nacional. A nosso ver, fundamenta essa
interpretação a afirmação que o processo histórico brasileiro diferia
radicalmente do verificado na Europa Ocidental e nos Estados Unidos.
Apesar de concordarmos com isso, negando que as diferentes
nações atravessariam determinadas etapas, como defendia o Partido
Comunista, o fato é que Caio Prado, a partir dessa observação, ainda
que não tenha se detido nessa questão, defendeu a tese de que as
categorias que deveriam ser utilizadas para se compreender a história
brasileira eram as de economia colonial e economia nacional.
O corolário disso, também não debatido, é a afirmação de que,
por esse fato, o processo histórico brasileiro não colocava a questão do
socialismo. É verdade que Caio Prado afirmou que o socialismo era, em
linhas gerais, um objetivo a ser alcançado. Mas, este era postergado
para um futuro remoto. Assim, em última análise, sua interpretação da
história do Brasil, exposta no livro Formação, fundamentava a tese de
que o Brasil não caminhava em direção ao socialismo, motivo pelo qual
ele não deveria entrar no horizonte político dos brasileiros. A tarefa
política, ao contrário, era justamente o estabelecimento do que
denominava economia nacional. Não sem razão, insistiu que, no século
XX, o Brasil se definia como um “organismo em franca transformação”.
Segundo suas palavras, o novo processo histórico inaugurado nos
primórdios do século XIX se dilatava e se arrastava até hoje [1942].
Acrescenta que esse processo não havia chegado ao seu termo.2

1 Cabe aqui uma explicação ou advertência. Examinamos a obra deste autor


considerando seus livros sobre a história do Brasil e seus textos de intervenção política.
Não nos aventuramos, por exemplo, no estudo da sua obra filosófica por não termos
conhecimentos suficientes para semelhante empreitada.
2 “Entramos então em nova fase. Aquilo que a colonização realizara, aquele ‘organismo

social completo e distinto’ constituido no período anterior, começa a se transformar,


seja por força própria, seja pela intervenção de novos fatores estranhos. É então o

10
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

É verdade que dessa formulação Caio Prado faz derivar que o


Brasil também não caminhava no sentido de constituir-se como uma
nação capitalista. Para ele, a proposta de uma solução capitalista era
extemporânea, já que as condições existentes no século XX eram
distintas daquelas vividas pelas nações da Europa ocidental e os
Estados Unidos quando se desenvolveram em termos capitalistas. Mas,
a rigor, a segunda formulação deriva da primeira. Com efeito, foi sua
oposição ao socialismo que o levou à afirmação de que não existiam
mais as condições históricas que pudessem permitir o desenvolvimento
do capitalismo no Brasil.
Esta questão necessita de esclarecimentos pelo fato de alguns
estudiosos interpretarem as considerações de Caio Prado sobre a
economia nacional como uma preocupação com a constituição da nação.
Entretanto, economia nacional e nação não se identificam ou se
confundem em Caio Prado. Como indicamos, entendia economia colonial
e economia nacional como formas de organização econômica e social. Ao
insistir, em várias oportunidades, que o processo histórico brasileiro
não se assemelhava àquele que se verificara na Europa ocidental e nos
Estados Unidos, deixou claro que entendia economia colonial e economia
nacional como formas de organização da produção. O objetivo da
economia colonial era atender necessidades alheias. Era uma produção
voltada para o mercado externo. Por outro lado, definia a economia
nacional — da sua perspectiva a antítese e a forma social e econômica
que superaria o caráter colonial da economia brasileira — como uma
organização da produção voltada para atender as necessidades da
população nela engajada. Tratava-se, portanto, de uma produção
destinada ao atendimento do mercado interno.
É verdade que Caio Prado tomou como adversário político o
Partido Comunista Brasileiro e sua tese acerca existência, no Brasil, de
relações de natureza feudal que precisavam ser destruídas por meio de
uma revolução democrático-burguesa. Retirar-se-iam, com esta
revolução, os entraves ao pleno desenvolvimento do capitalismo
brasileiro. Somente após esta fase é que se poderia colocar a questão da
revolução socialista. Entretanto, ainda que seu adversário imediato e

presente que se prepara, nosso presente dos dias que correm. Mas esse novo processo
histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a seu termo. É por isso que
para compreender o Brasil contemporâneo precisamos ir tão longe; e subindo até lá, o
leitor não estará se ocupando-se apenas com devaneios históricos, mas colhendo dados,
e dados indispensaveis para interpretar e compreender o meio que o cerca na
atualidade” (PRADO JR., 1942, p. 6).

11
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

visível seja o Partido Comunista — e muitos dos seus estudiosos


insistem em analisá-lo em contraposição a esse partido — o fato é que,
combatendo a interpretação dos comunistas, este autor expôs uma
interpretação que retirava do horizonte político brasileiro a questão do
socialismo. O alvo principal não era, pois, o Partido Comunista, mas a
proposta socialista em geral.
A primeira e principal motivação que levou Caio Prado a
elaborar uma interpretação da história do Brasil foi, por conseguinte,
política. Por isso, acreditamos que a forma de superá-lo não é
criticando pelo seu entendimento da colônia e do processo colonial,
nem apontando supostos equívocos ou limites em sua análise, mas
compreendendo-o historicamente.

12
INTRODUÇÃO

Caio Prado Jr., não sem razão, é considerado pela grande


maioria dos estudiosos o mais importante dos historiadores brasileiros.
Suas obras são arroladas entre as mais significativas para a
compreensão da história brasileira. Dentre elas, Formação do Brasil
contemporâneo é tida como a que causou maior impacto nos estudos
históricos brasileiros, ou seja, seria a obra decisiva sobre a história do
Brasil. Além disso, a interpretação da história do Brasil presente nesse
livro manteve-se hegemônica durante décadas. Mesmo nas novas
maneiras de se conceber a história brasileira surgidas recentemente,
encontramos determinadas formulações básicas de sua autoria. Talvez
a maior prova do seu sucesso esteja no fato de que basta enunciar
aquela que é considerada a sua contribuição mais importante para os
estudos sobre a época colonial – o “sentido da colonização” – para que
todos o identifiquem como seu autor. Com efeito, não existe maior
consagração para um escritor do que ser reconhecido pela simples
menção à expressão que melhor caracteriza sua obra.
Este lugar de destaque alcançado por Caio Prado na
historiografia brasileira tem sido a justificativa de muitos estudiosos
que examinam sua obra sob múltiplos aspectos: político, econômico,
social, filosófico, ideológico, etc. O lugar que ele alcançou parece ser a
razão maior para ter se tornado um dos autores mais estudados nas
duas últimas décadas.
Quanto a nós, diferentemente dos estudiosos que justificam seu
estudo pela importância por ele adquirida, estamos mais interessados,
justamente, em compreender os motivos que o levaram a semelhante
consagração e a alcançar essa grande notoriedade no cenário intelectual
e político brasileiro. Evidentemente, reconhecemos que se trata de um
personagem com múltiplas qualidades, tanto no plano pessoal como no
intelectual, mas as descartamos como elementos explicativos de
semelhante fenômeno. De nosso ponto de vista, a explicação para o
respeito e a consideração que, com toda razão, se lhe tributa encontra-
se na junção autor-sociedade. Mais do que isso: como Caio Prado se
destacou justamente como um pensador da política brasileira, é na
relação política entre ele e a sociedade de sua época que julgamos
encontrar os motivos que o levaram a obter tal sucesso e a percorrer
semelhante trajetória intelectual.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Acreditamos, com efeito, que Caio Prado soube, melhor do que


qualquer outro autor, responder às exigências da sua época, fazendo-se
uma espécie de intérprete das tendências dominantes na sociedade. No
entanto, sua obra historiográfica não faz dele apenas um grande
historiador. Considerá-lo apenas por este viés redunda em uma visão
parcial de sua trajetória intelectual e política. Mais do que um
historiador, ele foi um homem político, que atuou principalmente por
meio de sua função de historiador. Podemos dizer que foi um autor
que fez da história um instrumento de luta política. Sob este aspecto,
como já salientado, seu sucesso não encontra similar no Brasil.
Em razão disso, acreditamos que, para se entender o papel de
destaque que teve na historiografia brasileira, o caminho mais acertado
é o estudo de seu pensamento político, que se encontra estribado em
dois grandes pilares: sua interpretação da história do Brasil e a
proposta política que, em consonância com essa interpretação, fez à
sociedade brasileira.
Para realizar esse estudo, centramos nossa análise justamente
nos seus livros de história e nos seus textos de intervenção política.
Acreditamos que é neles, mais do que nos demais, que Caio Prado
explicita o seu pensamento político, possibilitando a sua apreensão.
Nosso procedimento se justifica por ter sido nos seus livros de história
que ele exerceu sua ação política de forma mais eficaz. Foi como
historiador que se tornou conhecido e foi por meio dos seus livros de
história que exerceu uma influência extraordinária.
Ao longo de nossas pesquisas, percebemos que, para analisar o
seu pensamento político, era necessário fazer uma leitura de seus textos
em ordem cronológica, de forma a apreender o significado de cada um
deles no conjunto da sua produção intelectual. Pudemos, com isso,
verificar quais foram suas novas formulações e as que ele abandonou
ao longo do processo de constituição do seu pensamento político.
Dentre as constatações a que chegamos e que julgamos
essenciais para a compreensão do seu pensamento político, encontra-se
a percepção de que houve uma ruptura radical entre Evolução política do
Brasil, de 1933, e Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1942.
Trata-se de uma questão importante, não percebida, ainda que algumas
vezes intuída, pelos seus estudiosos. Evolução é, a rigor, seu único livro
marxista e, em Formação, Caio Prado modifica claramente a sua
concepção de história.
É verdade que já se chamou a atenção para a existência de uma
diferença entre eles. Todavia, esta é atribuída a uma compreensão mais
heterodoxa do marxismo em Formação e, principalmente, à sua

14
INTRODUÇÃO

aproximação com a Geografia. No entanto, não se trata, no primeiro


caso, de uma questão simplesmente quantitativa ou de grau. Como
procuraremos mostrar, Caio Prado abandona os princípios marxistas
na sua segunda obra. Também é evidente que essa aproximação com a
Geografia foi importante em sua trajetória intelectual, mas ela não
explica a mudança. Caio Prado aproximou-se da Geografia justamente
para buscar elementos que lhe permitissem romper com o marxismo e
abandonar a luta de classes como fator explicativo da história
brasileira, presente em Evolução. Em suma, a mudança em seu
posicionamento político ocorreu por meio de uma aproximação com a
Geografia. Embora faces da mesma moeda, a mudança do seu
posicionamento político que estava em curso o levou, em última
instância, a se aproximar da Geografia.
A leitura cronológica e comparativa das obras de Caio Prado
permite-nos identificar, em sua participação na Aliança Nacional
Libertadora, em 1935, o momento de ruptura com a concepção de
história fundada na luta de classes. Em Evolução, que escreve movido
pela sua recente adesão ao Partido Comunista Brasileiro e ao marxismo
e, muito provavelmente, sob o impulso de um grande otimismo quanto
às transformações sociais, a luta de classes constitui o fio condutor da
explicação da história. Entretanto, pouco tempo depois, envolve-se nas
atividades da Aliança Nacional Libertadora, uma frente política que
dizia lutar pela libertação nacional. Desse modo, buscava a união e não
o confronto entre amplos setores da sociedade. Não se tratava da
libertação de uma classe, mas de toda a nação, frente à dominação
estrangeira. A partir de então, o posicionamento político de Caio Prado
se modifica radicalmente. Ele se consubstancia em Formação do Brasil
contemporâneo, obra em que a luta de classes como linha mestra
desaparece. Uma comparação entre os artigos que publicou em 1935
acerca do programa da Aliança Nacional e o livro Formação permite-nos
afirmar que a interpretação da história do Brasil presente neste último
já se encontra em gérmen naqueles textos.
Com base nessa constatação, pudemos interpretar a obra de
Caio Prado sob outra luz e perceber o imenso papel desempenhado
pelo conceito de “sentido da colonização” na sua interpretação da
história do Brasil e, por extensão, nas suas formulações políticas.
Menos do que uma explicação do processo colonial, este conceito tinha
como objetivo articular os dois pólos ou as duas formas sociais
extremas entre as quais, segundo sua maneira de conceber, transitaria o
processo histórico brasileiro. Com efeito, para ele, o processo histórico
brasileiro caracterizar-se-ia justamente pela passagem de uma

15
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

economia colonial para uma economia nacional. De seu ponto de vista,


as características da economia colonial haviam sido dadas pelo sentido
da colonização, isto é, produzir para atender as necessidades do
mercado externo. O estabelecimento da economia nacional, cuja
produção seria organizada para o atendimento das necessidades da
população brasileira, constituía a maneira de superar as características
coloniais da economia brasileira.
Ao afirmar que a história do Brasil se definia justamente por
esta transformação, Caio Prado pretendia ir muito além de uma
interpretação alternativa da história brasileira. Sua intenção era romper
com a interpretação baseada na seqüência feudalismo-capitalismo-
socialismo. Em última análise, defendia a tese de que, diferentemente
da Europa, a história do Brasil possuía outras características. Advirta-se
aqui que ele não estava criticando apenas o marxismo esquemático e
mecanicista do Partido Comunista, como querem muitos dos seus
estudiosos. Ainda que seu interlocutor fosse o Partido Comunista, a
verdade é que seu alvo encontrava-se além das formulações desse
partido. Com efeito, Caio Prado afirma que, pelas condições existentes
no Brasil, sua evolução histórica caracterizava-se pela transformação da
economia colonial em economia nacional.
Desse modo, para este autor, a economia nacional era uma
forma de estruturação da sociedade, fato que seus estudiosos não
perceberam. Ao contrário, interpretaram esta proposição como se
estivesse tratando da constituição da Nação, da organização da
economia brasileira (nacional) e assim por diante. Por economia
nacional, Caio Prado entendia uma forma específica de organização da
economia: aquela fundada na produção voltada para o atendimento
das necessidades da população brasileira.
Por conseguinte, segundo a maneira de Caio Prado
compreender a história brasileira, o Brasil havia conhecido, ou estava
conhecendo, basicamente, duas formas de estruturação ou organização
da sua economia ou sociedade. A primeira, a colonial, que havia sido
estabelecida por meio da colonização e que, ainda à época da
publicação do livro Formação, era a dominante. A segunda, a nacional,
que estava em vias de se constituir, mediante a superação da forma
colonial.
Por isso, Formação do Brasil contemporâneo é um marco decisivo
na trajetória política e intelectual de Caio Prado. Neste livro de ruptura,
encontramos todos os elementos e motivos que o levaram a alcançar
um grande sucesso e a exercer uma imensa influência sobre os estudos
históricos: uma nova concepção de história, que substituía a luta de

16
INTRODUÇÃO

classes por uma política de conciliação entre amplos setores sociais; a


concepção de que a libertação almejada era a da nação, ao invés de uma
classe; a concepção de que o foco e o estímulo da transformação era o
mercado interno; por fim, a concepção de que a transformação social
decorreria da ação do Estado.
Estas considerações preliminares expressam o fio condutor dos
textos que compõem o livro e que resultam do estudo que, ao menos
desde 1996, estamos realizando, de modo sistemático, sobre o
pensamento político de Caio Prado Jr. Três deles já foram publicados,
mas temos pelo menos dois motivos para incluí-los neste volume. O
primeiro é que, com exceção da resenha, tiveram uma circulação
restrita. O segundo, e o mais importante, é que, de certa maneira, eles
deixam mais claros os textos que elaboramos posteriormente.
O primeiro texto para o qual queremos chamar a atenção é
“Caio Prado Jr. e a história do Brasil. A colonização como produção para
o mercado externo”. Ainda que elaborado alguns anos atrás — foi
redigido em 1996, como parte de um capítulo da nossa tese de
doutorado, e publicado separadamente em 1997 —, esse texto é
fundamental para a compreensão das questões tratadas nos demais,
uma vez que, nele, assinalamos a estreita ligação entre a interpretação
da história do Brasil contida em Formação e a proposta política do autor.
Basicamente, essa proposta consiste na afirmação de que a superação
das características coloniais da economia brasileira se faria por meio do
estabelecimento da economia nacional. A nosso ver, essa ligação é
essencial para a compreensão do pensamento político de Caio Prado.
Outro texto que consideramos fundamental para a compreensão
das questões tratadas neste livro diz respeito ao marxismo e foi escrito
por ocasião das comemorações dos cento e cinqüenta anos de
publicação de O Manifesto do Partido Comunista, em 1998. Embora não
seja específico sobre Caio Prado, ele contém reflexões que orientaram
nossos estudos sobre seu pensamento político, especialmente o papel,
decisivo do nosso ponto de vista, desempenhado por partidos e
intelectuais que, no seio da esquerda e, freqüentemente, no interior do
próprio marxismo, combateram tanto a proposta de socialismo como a
própria doutrina marxista. Destacamos também nossa concepção de
que, atualmente, menos do que fazer uma crítica, é fundamental
realizar uma avaliação histórica do papel desempenhado pelos
partidos e intelectuais de esquerda em todo esse processo.
É exatamente isso que procuramos fazer com relação a Caio
Prado. Não estamos interessados em realizar uma crítica dos seus
textos ou mesmo da sua atuação política. Sua produção e sua atuação

17
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

fazem parte de um processo que pertence ao passado e, por isso, já não


cabe criticá-lo. Inclusive, vem a propósito uma passagem de Spinoza,
que orienta nosso estudo: “Não rir, não lamentar, não odiar.
Compreender.” Entretanto, apesar de parte de um processo que
pertence a uma época histórica distinta, suas formulações têm enorme
repercussão na atualidade. Portanto, o interesse em compreender
historicamente este autor implica entender também a razão pela qual,
ainda hoje, suas formulações continuam a usufruir de enorme prestígio
entre os historiadores. Por isso, no conjunto das questões abordadas,
colocamos para o debate nossas reflexões não apenas sobre o papel
histórico desempenhado por ele, mas também sobre a abrangência de
sua trajetória política e intelectual.
Quanto aos textos que estamos publicando pela primeira vez,
queremos destacar que, em “Considerações sobre o estudo do
pensamento político de Caio Prado Jr.”, procuramos fazer, a um só
tempo, uma crítica da historiografia relativa a ele e uma reflexão sobre
as questões metodológicas que envolvem o estudo do seu pensamento
político. Com efeito, nas considerações acerca de qualquer
historiografia e, no caso específico, sobre os estudos relativos a Caio
Prado, é preciso investigar seus aspectos metodológicos, de forma a
compreender o ponto de partida dos estudiosos. Ao mesmo tempo, ao
examinar essa historiografia, com especial atenção para o seu ponto de
partida metodológico, é pertinente uma reflexão acerca do caminho
mais adequado para o seu entendimento. Por conseguinte, as
considerações feitas são resultantes tanto da análise que fizemos de sua
obra com o objetivo de apreender o seu pensamento político como do
confronto com a forma como os demais autores o abordaram.
No texto “Reflexões sobre a Independência do Brasil na obra de
Caio Prado Jr.” abordamos várias questões que têm se colocado para
nós no estudo do seu pensamento político.
A primeira delas, e para nós a mais importante, diz respeito à
mudança verificada na concepção de história de Caio Prado quando
comparamos os livros Evolução política do Brasil e Formação do Brasil
contemporâneo. Ou seja, diz respeito à inflexão radical no
posicionamento político de Caio Prado, expressa no seu modo de
conceber a história e, consequentemente, na sua maneira de interpretar
a história do Brasil.
Poder-se-ia abordar esta questão de várias maneiras. Optamos
por examinar como a Independência do Brasil aparece nas duas obras,
sem nos limitarmos a uma simples comparação. De uma forma mais
abrangente, centramos a análise dessa mudança no fato de que a

18
INTRODUÇÃO

Independência desempenha um papel estratégico na interpretação da


história do Brasil tanto em Evolução e como em Formação. Nosso
objetivo foi examinar a posição estratégica que esse acontecimento
ocupa em cada uma das duas obras. Esse exame confirma a existência
de duas maneiras distintas de se conceber a história, com todas as suas
implicações. A maneira diferenciada com que o autor aborda a
Independência decorre da própria avaliação que ele fez desse fato nas
duas obras, ou seja, de sua atitude para com a Independência nos livros
Evolução e Formação. Na origem dessa diferença, encontramos
precisamente a mudança de posicionamento político de Caio Prado.
A segunda questão abordada nesse texto, também decisiva a
nosso ver, relaciona-se ao fato de que, com Formação, Caio Prado
estabelece um padrão no modo de conceber a história e que se
expressa, por exemplo, na maneira como compreende a Independência.
Essa maneira, por seu turno, determinou o enfoque dado a esse tema
por grande parte da historiografia brasileira. Mas, mais interessante
ainda é que esse modo de conceber a Independência foi compartilhado
por historiadores das mais diferentes tendências, o que, para nós, põe
em evidência, mais uma vez, a grande preponderância exercida – e que
ainda exerce - por Caio Prado nos estudos históricos brasileiros.
Ressalte-se, todavia, que nem sempre é uma influência direta e
imediata. Muitas vezes ela é mediata. Trata-se antes de uma adesão à
sua maneira de conceber a história do Brasil.
Quanto à resenha e à palestra, embora menores no que diz
respeito à sua dimensão, acreditamos que são importantes para
figurarem no livro. Neles procuramos estabelecer o confronto entre
nossa maneira de abordar o pensamento político de Caio Prado e a de
outros estudiosos. No texto “Caio Prado e a Revolução Russa”, ainda
que rapidamente, abordamos também a relação entre autor e
sociedade, tal como a entendemos. Evidentemente, o estudo da
produção intelectual de qualquer autor coloca sempre essa questão,
mas a análise levou-nos à conclusão de que, no caso de Caio Prado, a
relação se coloca de uma maneira bastante intensa e, porque não dizer,
sintomática. A nosso ver, ao considerarmos a questão por este ângulo
estamos dando um peso também àqueles aos quais o autor se dirigia.
Sob este aspecto, o estudo de Caio Prado significa, igualmente,
desvendar os homens de sua época. Afinal, como justificar o êxito
desse autor senão pelo fato de que parcela significativa dos seus
contemporâneos tenha se identificado com suas formulações?

19
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Ao final, julgamos necessário precisar melhor algumas das


constatações que se tornaram o fio condutor da nossa análise do
pensamento político de Caio Prado.
A primeira delas diz respeito à diferença fundamental entre
Evolução política, primeiro livro de Caio Prado, e os escritos
subseqüentes no que diz respeito à concepção da história, à
interpretação da história do Brasil e ao seu posicionamento político.
Embora estejamos tratando aqui de uma única mudança, entendemos
que ela se expressa nesses três aspectos, dos quais o último é o
determinante. Trata-se de uma questão fundamental, por isso nunca é
demais reiterá-la. Por meio da comparação entre Evolução e Formação
poderemos compreender melhor em que consiste o pensamento
político de Caio Prado e seu papel histórico.
A segunda constatação é que foi nos artigos de 1935 acerca do
programa da Aliança Nacional Libertadora, mas, principalmente, no
livro Formação, que Caio Prado elaborou a maneira própria de
interpretar a história do Brasil que o caracterizou e o levou ao
reconhecimento público. Note-se, além disso, que esse autor não
modificou, ao longo da sua trajetória política e intelectual, na sua
essência, esse modo de interpretar a história do Brasil. A rigor, a única
modificação substancial que se verifica em suas formulações ao longo
desse período, mas que não alterou, de maneira alguma, as linhas
mestras de sua interpretação, diz respeito à questão agrária. Com
efeito, de 1935, pelo menos, quando trata explicitamente dessa questão,
até 1960, Caio Prado foi partidário da reforma agrária, isto é, do
parcelamento e posterior distribuição da terra. É apenas nos textos
publicados entre 1960 e 1962, na Revista Brasiliense, que ele critica a
reforma agrária. Em 1966, com A Revolução Brasileira, ele aprofunda
essa crítica. Evidentemente, esta mudança no enfoque da reforma
agrária deve ser considerada em um estudo sobre seu pensamento
político, já que traz consigo conseqüências importantes. Entretanto,
deixamo-la para outra oportunidade, pois, como chamamos a atenção,
não implica uma alteração nas linhas gerais da sua interpretação da
história do Brasil e nem da sua proposta política.
Queremos frisar, ainda, que os textos ora publicados foram
elaborados ao longo de nossa pesquisa sobre o pensamento político de
Caio Prado. Além de trazerem para o debate algumas de nossas
conclusões, eles testemunham nosso esforço para compreender o
significado histórico desse autor, ou seja, o papel que desempenhou na
cultura e na política brasileiras.

20
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO
PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

O estudo do pensamento político de Caio Prado foi feito com


base em seus livros de história e em seus textos de intervenção política,
já que ele soube, talvez melhor do que qualquer outro autor, utilizar a
interpretação da história do Brasil para fundamentar suas formulações
políticas. Com efeito, em seus textos, história e política se entrelaçam
de tal forma que tornam impossível ao pesquisador compreender uma
sem levar em conta a outra3. Mais do que isso esses dois aspectos
encontram-se mesclados de uma maneira que, à primeira vista, suas
proposições políticas parecem derivar da sua interpretação da história
do Brasil. No entanto, a correlação não ocorre nessa ordem: sua
interpretação da história do Brasil constitui o resultado de seu modo
particular de compreender a história que, por seu turno, encontra-se
condicionado por sua posição política. Ou seja, ainda que se encontrem
entrelaçados, é a posição do autor diante das questões de sua época que
explica sua interpretação, e não o contrário.
A historiografia, de modo geral, aborda esta relação de maneira
completamente distinta: costuma partir do fato de que Caio Prado é um
autor marxista e comunista, julgando ser este o caminho apropriado
para se apreender e explicar seu pensamento político.
Entretanto, para nós, ele elaborou sua interpretação da história
do Brasil com a finalidade de fundamentar a proposta política pela

3 Poder-se-ia contestar essa afirmação com a lembrança da atuação de Caio Prado,

extremamente rica, diga-se de passagem, no campo da Geografia, publicando,


inclusive, muitos estudos nessa área. Evidentemente, para uma compreensão do
pensamento político de Caio Prado deve-se levar em conta sua aproximação com a
Geografia, o que Iumatti (2007) fez muito bem. Entretanto, sua aproximação com a
Geografia é um indício de que estava em curso uma mudança na sua maneira de
conceber a história. Na verdade, Caio Prado buscou na Geografia os elementos que lhe
permitiram elaborar uma nova maneira de conceber a história. Justamente por isso se
torna difícil separar seus textos de Geografia e de História. Em seu artigo sobre a
distribuição da propriedade no Estado de São Paulo, por exemplo, ele recorre à
colonização, ou seja, à História, para explicar o predomínio da grande propriedade
nesse estado, ou seja, um fato geográfico (PRADO JR., 1935b). Em História econômica do
Brasil (1945), por seu turno, há, inicialmente, uma descrição geográfica do Brasil,
aspecto que não aparece, por exemplo, no livro Evolução. Pode-se afirmar que a partir
desse contato sua História é geográfica e sua Geografia é histórica.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

qual sempre se bateu. É preciso, portanto, não apenas examinar estas


duas questões, a interpretação da história do Brasil e a sua proposta
política, para se compreender o seu pensamento político, mas também,
e principalmente, levar em conta que foi o seu posicionamento político
diante das questões do seu tempo que o levou a interpretar a história
do Brasil da maneira que o fez. Entendemos, assim, que é nas suas
obras de história, em primeiro lugar, e, secundariamente, nos seus
textos de intervenção política, de estudos geográficos e de política
econômica que encontramos os elementos que nos permitem
compreender o seu pensamento político. Essas leituras nos levaram a
duas constatações que precisam ser destacadas.
A primeira é a existência de uma mudança importante em sua
trajetória. Entre Evolução política do Brasil, publicado em 1933, e os
artigos sobre o programa da Aliança Nacional Libertadora, de 1935
(PRADO JR., 1987), cujas teses reaparecem mais elaboradas em um
livro de história, Formação do Brasil contemporâneo, de 1942, verificamos
uma ruptura na maneira de Caio Prado conceber a história, a qual se
explica, evidentemente, pela sua atitude em relação às questões
políticas da época.
A segunda é que a nova interpretação formulada nos artigos
sobre o programa da ANL e em Formação foi mantida por Caio Prado
até seus últimos escritos. Ele modificou sua maneira de conceber a
história no texto de 1935, consolidou essa nova concepção no livro de
1942 e manteve, desde então, as linhas mestras de sua interpretação do
processo histórico brasileiro e, por conseguinte, de seu pensamento
político. Sob esse aspecto, cabe ressaltar a persistência teórica de Caio
Prado. Tendo feito certas formulações em um dado momento da sua
trajetória política e intelectual, nunca as abandonou: retomou-as ao
longo da sua vida, produzindo, assim, uma obra extremamente
coerente e uniforme.
Entretanto, se, ao longo do período abarcado pelos anos de 1935
e 1972, data da publicação do livro História e desenvolvimento, escrito em
1968, Caio Prado não alterou fundamentalmente sua interpretação da
história do Brasil, modificou sua posição diante da reforma agrária. De
partidário explícito da reforma agrária, pelo menos em seus artigos
sobre a ANL, converteu-se, a partir de 1960, em um dos seus mais
severos críticos. É no seu famoso livro A Revolução brasileira, de 1966,
que essa crítica se encontra formulada de maneira mais desenvolvida.
A bem da verdade, porém, mesmo sua mudança de posição quanto à

22
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

reforma agrária não implicou uma alteração substancial na sua maneira


de interpretar a história do Brasil4.
Em face dessas constatações, consideramos que, para se
entender seu pensamento político, é preciso enveredar por um caminho
diferente do costumeiramente trilhado pela historiografia. Com efeito,
de um modo geral, as análises da historiografia partem do fato de que
Caio Prado teria, em um dado momento da sua vida, abraçado a
doutrina marxista e se tornado militante comunista, o que explicaria a
sua obra e a sua prática política. Essa maneira de encará-lo, ainda que
não explicitada teoricamente, constitui o procedimento metodológico
mais freqüente entre os seus estudiosos. A grande maioria deles
caracteriza seu pensamento político como um pensamento marxista e
comunista, heterodoxo, é verdade, por ter adaptado essa doutrina às
circunstâncias históricas brasileiras. Sua obra seria, assim, o resultado
da aplicação dessa doutrina ao estudo da história do Brasil, podendo,
por conseguinte, ser analisada por esse viés. Novais (2005, p. 284), por
exemplo, afirma que: “A partir de 1933, com Evolução política do Brasil,
vem Caio Prado Jr. construindo uma obra de reconstituição e análise da
história da formação social no Brasil, a partir do esquema conceitual e
metodológico marxista.” Em coerência com essa observação, propõe a
analisá-lo justamente como um autor partidário da doutrina marxista e
do comunismo.
Em conseqüência dessa postura metodológica, seus estudiosos
consideram que seu pensamento político foi homogêneo, resultado
dessa adesão ao marxismo e ao comunismo. De certa maneira, essa
postura se encontra na origem dos equívocos cometidos pelos mesmos.
Podemos inclusive afirmar que se trata de um equívoco que se
encontra na base dos demais praticados pelos seus estudiosos.

4 Com efeito, Caio Prado abandonou a proposta de reforma agrária e passou a

defender, como solução para a questão agrária, a extensão para o campo das legislações
social e trabalhista. Manteve, no entanto, sua idéia central de que o processo histórico
brasileiro caracterizar-se-ia pela passagem ou transformação da economia colonial em
economia nacional. Mas se modificou seu posicionamento diante da reforma agrária,
não alterou, substancialmente, em última instância, sua posição quanto ao papel que
sua nova proposta desempenharia no processo de transformação da economia colonial
em economia nacional. Tanto na proposta de reforma agrária como na da extensão da
legislação social e trabalhista para o campo, entendia que haveria uma elevação do
nível de vida da população beneficiada por esta proposta, criando-se um mercado
interno suficientemente sólido para possibilitar que a produção voltasse para o mesmo,
ao invés de atender às necessidades do mercado externo.

23
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Evidentemente, existem aqueles que questionam o marxismo de


Caio Prado e, por conseguinte, chamam a atenção para determinadas
formulações suas que não estariam de acordo com tal doutrina. No
entanto, neste caso, o procedimento é o mesmo, embora com o sinal
trocado. Apesar do questionamento, o fato é que o enfoque é idêntico
ao dos que concordam com os termos de sua adesão ao marxismo, já
que é a partir da doutrina marxista e do fato de ele, pretensamente, ser
considerado um autor marxista que os estudiosos o examinam. São
poucos, no entanto, os que se enveredam pelo caminho da crítica do
seu modo de conceber a doutrina marxista. Em sua grande maioria, a
historiografia o examina como um autor partidário dela. Todavia, tanto
em um caso como em outro, o fato é que essas análises não captam as
transformações ocorridas na sua maneira de conceber a história ao
longo da sua trajetória intelectual e política.
Acreditamos que alguns exemplos são suficientes para indicar o
equívoco cometido pelos estudiosos que examinam Caio Prado dessa
perspectiva. Uma comparação entre Evolução e Formação revela-nos que
são obras distintas em muitos aspectos, sobretudo quanto à concepção
de história que as preside. Para melhor precisar isso, podemos utilizar
o conceito de classes como elemento explicativo do processo histórico.
Sob esse aspecto, geralmente, a historiografia segue a apreciação de
Carlos Guilherme Mota, para quem, “com as interpretações de Caio Prado
Júnior, as classes sociais emergem pela primeira vez nos horizontes de
explicação da realidade social brasileira - enquanto categoria analítica”
(1977, p. 28. Grifos do autor). No entanto, se, evidentemente com
algumas ressalvas, a afirmação pode ser aceita quanto ao primeiro
livro, o mesmo não acontece com relação ao segundo. Neste, as
categorias classe social e, principalmente, luta de classe são abandonadas.
Ainda que sejam feitas referências às classes sociais, as classes e suas
lutas não constituem o núcleo ou o fio condutor da sua análise, como
ocorre no primeiro livro. Para a historiografia, no entanto, as duas
obras resultam da aplicação do marxismo no estudo da história do
Brasil e, por isso, os historiadores não captam essa diferença essencial.
Para eles, em suma, tendo abraçado a doutrina marxista e utilizado o
conceito de classes e luta de classes para analisar a história do Brasil em
sua primeira obra, Caio Prado teria se mantido fiel a essa doutrina e
procedido da mesma forma ao longo de sua vida. Desse modo, teria
examinado a história do Brasil sempre da perspectiva da luta de classes
e, com isso, produzido uma obra uniforme.
Em conseqüência, ao levarmos em conta essa diferença essencial
quanto ao enfoque da história nesses dois livros, chegamos à conclusão

24
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

de que não podemos explicar suas obras e seu pensamento político por
meio da doutrina marxista.
A principal conseqüência de se analisar a obra de Caio Prado
como um conjunto homogêneo, sem soluções de continuidade, é
atribuir ao conjunto de seu pensamento político formulações que
pertencem somente a um dado momento de sua trajetória. Esse
equívoco pode ocorrer de dois modos distintos.
O primeiro é atribuir à sua fase inicial formulações que
pertencem apenas ao seu período de maturidade intelectual. Com
efeito, parte do que se costuma atribuir como próprio do seu
pensamento político, se não no início da sua trajetória intelectual, ao
menos em grande parte dela, na verdade, verifica-se somente em
momento avançado da mesma.
É o que ocorre com relação ao seu livro A Revolução Brasileira.
Seus estudiosos o abordam como se constituísse uma espécie de síntese
do pensamento político de Caio Prado e, assim, apresentam as
formulações contidas nessa obra como se expressassem o conjunto do
seu pensamento. Em síntese, esses estudiosos acreditam que o exame
dessa única obra seria suficiente para dar conta do seu pensamento
político. Todavia, como assinalamos, sua trajetória intelectual sofreu ao
menos uma importante alteração. Por conseguinte, A Revolução é, de
fato, a expressão final de uma trajetória, mas, de maneira alguma,
expressa o seu conjunto. É somente dessa perspectiva que podemos
considerá-la como uma espécie de síntese do seu pensamento político.
Mas, ressalte-se, síntese de uma construção, ponto culminante de um
processo, cujo estudo isolado não é suficiente para se conhecer o
conjunto, especialmente as transformações verificadas no seu
pensamento político.
Para explicar melhor, tomemos duas formulações que fazem
parte do pensamento político de Caio Prado e que seus estudiosos
costumam apresentar como se estivessem vinculadas desde o início da
sua trajetória intelectual: a negação da existência de relações feudais ou
semifeudais no Brasil e a crítica à proposta de reforma agrária de
natureza distributivista. Em seu primeiro livro, encontramos a
afirmação de que no Brasil não tinham existido relações feudais, ou
melhor, de que o ensaio de feudalismo na colônia fracassara e, a partir
do estabelecimento do Governo Geral, não se poderia mais falar desse
tipo de relações. No entanto, em seu texto sobre o programa da Aliança
Nacional Libertadora, encontramos a defesa enfática do parcelamento e
distribuição da propriedade fundiária, revelando que, nessa época,
para Caio Prado, não existia nenhuma contradição entre a crítica da

25
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

tese feudal e a proposta da reforma agrária. Somente nos textos da


década de 60 é que encontramos estabelecido um vínculo entre essas
duas formulações: a negação da existência do feudalismo no Brasil
passa a ser relacionada à crítica à reforma agrária. No entanto, para
grande parte dos seus estudiosos, essas duas questões estariam
entrelaçadas desde os primórdios da sua trajetória.
Um dos poucos autores que pelo menos parece ter intuído que
esse vínculo não existe é Raimundo Santos (2000, p. 54), para quem a
questão agrária não se encontra presente no início da obra de Caio
Prado: “(...) o destino da teorização agrária de Caio Prado Jr. no interior
do PCB ainda constitui ponto pouco trabalhado”. Segundo ele, para o
período anterior a 1947, “(...) não se pode ainda localizar
adequadamente a dissidência caiopradiana a partir do seu agrarismo
de grande empresa.” No entanto, apesar de constatar que a dissidência
com o Partido Comunista somente é visível em 1947, afirma que a
questão agrária já se faz presente em 1933 e, mais, que é explicitada na
obra de 1942 (o que, para nós, não é algo claro), tornando-se ao longo
do tempo um argumento cada vez mais incisivo.
Ricupero (2000, p. 27), por seu turno, afirma que, no interior da
esquerda e do próprio Partido Comunista, Caio Prado teria feito a “(...)
crítica mais devastadora à teoria e à prática dominantes no campo
socialista.” Acrescenta que essa crítica, que já se manifestava desde a
década de quarenta, culminou com a publicação de A Revolução.
O segundo equívoco é considerar que, no conjunto da trajetória
de Caio Prado, existem formulações que, de fato, pertencem
unicamente ao seu início. Neste caso, tudo se passa como se ele tivesse
expressado embrionariamente seu pensamento político no primeiro
livro, Evolução, e sua trajetória intelectual nada mais fosse do que o
desenvolvimento dessa manifestação inicial. Segundo essa maneira de
ver, ao aplicar pela primeira vez o método marxista na análise da
história do Brasil, esse autor teria feito determinadas formulações que o
acompanharam ao longo da sua vida. Um dos exemplos mais
marcantes desse equívoco já foi tratado anteriormente: é entender que,
no conjunto da sua obra, Caio Prado considerou a história da
perspectiva da luta de classes. Isso, no entanto, verifica-se apenas em
Evolução.
A conseqüência maior desses dois equívocos é, de um lado,
acreditar que Evolução possa explicar A Revolução e, de outro, o
contrário, que A Revolução poderia explicar Evolução.
A constatação da existência de uma mudança significativa no
modo de Caio Prado conceber a história nos coloca como necessários

26
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

dois procedimentos no estudo do seu pensamento político. Em


primeiro lugar, acompanhar o processo de elaboração do seu
pensamento político por meio da análise dos seus textos em ordem
cronológica. Isso permite apreender os momentos de mudança a
respeito do seu próprio conteúdo. Em segundo, estudar o conjunto das
obras que compõem diretamente o processo de constituição do seu
pensamento político. Não basta, portanto, como se costuma fazer,
examinar apenas um livro ou um conjunto restrito de livros, mesmo os
considerados fundamentais, e tomá-los em bloco. A nosso ver, em
virtude das razões apontadas, o percurso cronológico parece constituir
o caminho mais fecundo para o entendimento do seu pensamento
político.
Em suma, o caminho mais eficaz para se compreender o
pensamento político de Caio Prado é aquele que permite acompanhar
seu processo de constituição ou de formação. Este procedimento tem o
mérito de possibilitar o exame do seu processo de construção, de forma
a caracterizar cada um dos seus momentos significativos e evitar que o
conjunto da sua obra seja tratado como um todo constantemente
homogêneo. Ou seja, a melhor maneira de se estudar o pensamento
político de Caio Prado é acompanhá-lo como uma formulação cujas
partes foram se agregando ou se separando no decorrer do processo em
virtude das lutas políticas e das exigências do seu próprio
posicionamento político. Ao descartar o próprio processo de
construção, o procedimento oposto ignora a própria história.
Foi entre os anos de 1935 e 1942 que Caio Prado formulou o
núcleo do seu pensamento político que o tornou conhecido. De nosso
ponto de vista, este núcleo é composto, em última análise, por sua
interpretação da história do Brasil e por sua proposta política, as quais,
como já mencionamos, encontram-se expostas de maneira articulada,
pela primeira vez, em um livro de história, em Formação.
Entretanto, é importante frisar, sua interpretação da história e
sua proposta política se encontram mescladas, o que torna difícil a
percepção da própria articulação5. Segundo Caio Prado, a história
brasileira se caracterizaria pelo processo de transformação da economia
colonial em economia nacional. Esse seria o sentido da evolução ou da
história do Brasil. Por outro lado, o estabelecimento da economia

5 Evidentemente, se isso dificulta a percepção, no entanto, não explica a postura da


historiografia. Sua dificuldade para perceber que, na obra de Caio Prado, interpretação
e proposta política se interpenetram deve-se, antes, à sua postura política e,
consequentemente, à sua maneira de analisá-lo.

27
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

nacional constitui a sua proposta para resolver os problemas


econômicos, sociais e políticos do Brasil. Assim, em sua formulação, a
constituição da economia nacional é, ao mesmo tempo, ponto para o
qual tenderia a evolução histórica do Brasil e solução para os impasses
vividos pela sociedade brasileira. Caio Prado resolve essa questão
subordinando sua proposta à sua interpretação, fazendo com que a
constituição de uma economia nacional não apareça como proposta
política, mas, antes, como a tendência da história do Brasil. Essa
duplicidade quanto à economia nacional se patenteia nos seus artigos
sobre a Aliança Nacional Libertadora, nos quais a economia nacional
aparece apenas como solução para os problemas brasileiros. É somente
nos textos seguintes que ela é concebida como tendência da história do
Brasil6.
A historiografia não atentou para esse aspecto do pensamento
político de Caio Prado. Freqüentemente, os historiadores consideraram
apenas sua interpretação da história, desvinculando-a de sua proposta
política7, e, mesmo quando as relacionaram, procederam como se a
última não dependesse necessariamente da primeira, como se tivesse
com ela uma relação externa. Consequentemente, fizeram críticas e
reparos às suas conclusões, afirmando freqüentemente que Caio Prado
teria se equivocado ao se posicionar a respeito da tendência da história
do Brasil, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, aceitavam e
até mesmo elogiavam sua interpretação da história do Brasil,
especialmente sua análise da colonização. No entanto, como
destacamos, sua interpretação da história conduz, necessariamente, à
conclusão de que a ruptura com o caráter colonial da economia
brasileira se faria justamente por meio da constituição da economia
nacional.
Além da interpretação da história do Brasil e da proposta
política formuladas por Caio Prado, sua crítica à reforma agrária

6Ainda que considere que a tendência da história do Brasil seja o estabelecimento de


uma economia nacional, Caio Prado não acredita que esse processo seja automático. Ao
contrário, deixa patente a necessidade da intervenção do Estado para superar os
entraves que ele relaciona, por um lado, às próprias características da economia
colonial e, por outro, ao imperialismo.
7 No segundo texto deste livro, “Caio Prado Jr. e a história do Brasil”, chamamos

também a atenção para o fato de os estudiosos separarem a maneira de Caio Prado


conceber a colonização do conjunto da sua interpretação e mesmo da sua proposta
política. Tratam-no, nesse caso, como um historiador do nosso passado colonial e não
como um autor que, fundado em uma interpretação da história brasileira, formulou
uma proposta política.

28
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

também faz parte do núcleo do seu pensamento político. Essa crítica,


que ele incorpora tardiamente em seu pensamento político, faz-se
presente no livro A Revolução, mas está ausente, por exemplo, em textos
como Formação e História econômica do Brasil, de 1945. Com efeito, é
somente nos artigos publicados entre 1960 e 1962 que sua nova
concepção da questão agrária aparece. Até então, ele foi um defensor
da reforma agrária de caráter distributivista, como se pode verificar,
por exemplo, em seu livro de 1954, Diretrizes para uma política econômica
brasileira. Desse modo, a interpretação da história do Brasil, a proposta
política e a crítica à reforma agrária, enquanto parcelamento e
distribuição do solo, somente constituem o núcleo de seu pensamento
político a partir de 1960, recebendo, no livro de 1966, sua versão mais
articulada e definida. Desde então, esse conjunto acabou sendo
entendido por seus estudiosos como se formasse a expressão do
pensamento político de Caio Prado desde o início da sua trajetória
política e intelectual. Dito de outro modo, seus estudiosos ignoram esse
processo de constituição e tomam o produto final como se existisse
desde sempre. É por isso que não podemos aceitar que o pensamento
político de Caio Prado seja analisado unicamente por meio do livro A
Revolução.
Ao longo do período compreendido entre os anos de 1935 e
1966, Caio Prado escreveu uma série de livros, como Formação do Brasil
contemporâneo, História econômica do Brasil e A Revolução Brasileira, que se
tornaram clássicos na historiografia brasileira, influenciando de modo
decisivo a produção historiográfica do Brasil. Escreveu também livros
que podem ser arrolados nas áreas de política econômica e de teoria
econômica, como Diretrizes para uma política econômica brasileira e Esboço
dos fundamentos da teoria econômica, de 1957, além de vários outros textos
significativos, dentre os quais se destacam:

• “O programa da Aliança Nacional Libertadora”, composto de


uma série de oito artigos publicados em 1935 (1935a).
• “O latifúndio” (1935b),
• “Distribuição da propriedade fundiária rural no Estado de São
Paulo” (1935c);
• “Problemas de povoamento e a divisão da propriedade rural”,
de 1946 (1966);
• “A imigração brasileira no passado e no futuro”, também de
1946 (1966);
• “Os fundamentos econômicos da revolução brasileira” (1947);

29
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

• “As teses e a revolução brasileira” (1960);


• Artigos publicados na Revista Brasiliense, entre 1953-1964; os
relativos à reforma agrária foram posteriormente republicados,
sob a forma de livro, com o título A questão agrária no Brasil
(1979).

Fora desse período, temos seu livro de estréia, Evolução política


do Brasil. Todos esses textos são de leitura imprescindível para o
entendimento do pensamento político de Caio Prado.
Ainda que para a compreensão do seu pensamento político seja
importante levar em conta que este se constituiu ao longo do tempo,
julgamos que isso não é ainda suficiente para o seu entendimento. É
necessário também examinar sua trajetória intelectual no interior dos
embates políticos de que participou. Evidentemente, não estamos
afirmando que a descrição do contexto histórico constitua o caminho
eficaz para explicar o pensamento político de um autor. Não
concordamos com a idéia de que é o contexto que explica o autor. Sob
certos aspectos, é o autor que explica o contexto, pois, à medida que dá
respostas às questões formuladas pela história e identifica os seus
interlocutores explicita também o contexto em que está atuando.
Assim, de certa forma, é na própria obra de Caio Prado que
encontramos os elementos explicativos do seu pensamento político.
A consideração de que, para se compreender o pensamento
político de Caio Prado, é necessário levar em conta as lutas políticas da
época, nos instiga ao debate com a historiografia. Conforme Ricupero
(2000, p. 31), a melhor forma de compreender as posições defendidas
por esse autor ao longo da sua vida é “(...) confrontando-as com os
ambientes intelectuais e políticos em que atuou.” Todavia, se, em tese,
podemos concordar com essa afirmação, permanece em aberto a
definição do ambiente intelectual e político, ou melhor, a definição de
com quem e com o que confrontar as formulações de Caio Prado. Seus
estudiosos, por exemplo, não hesitam em analisá-lo sob um duplo
confronto: o primeiro, com a historiografia tradicional e, o segundo,
com o marxismo ortodoxo e a interpretação do Partido Comunista do
Brasil e da III Internacional. Essa última contraposição constitui,
inclusive, a tônica dos seus estudiosos, podendo-se mesmo afirmar que
se trata de uma das principais características da historiografia relativa a
ele, se não a principal. Com efeito, dificilmente encontraremos um
estudo a seu respeito que não o compare e contraponha à concepção, à
interpretação da história do Brasil e, por conseguinte, à política do

30
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

Partido Comunista do Brasil. Vejamos alguns exemplos dessa maneira


de enfocá-lo.

Em oposição ao modelo interpretativo dominante na


Terceira Internacional e no Partido Comunista Brasileiro
(pelo menos a partir de 1930), ele insiste em que nosso país
não é e jamais foi feudal ou semifeudal e, por isso, não
careceu nem carece de uma “revolução agrária e
antiimperialista” para se tornar moderno e capitalista
(COUTINHO, 1989, p. 115-116).

Passemos agora a situar nosso autor no interior do


pensamento marxista brasileiro. Sua posição em relação à
ortodoxia marxista nascida depois da ascensão de Stálin ao
poder e da influência da III Internacional é bastante
conhecida (LEÃO, 1994, p. 4-5).

Aqui, Caio Prado Jr., em oposição ao modelo interpretativo


dominante na Terceira Internacional e no Partido
Comunista Brasileiro, insiste em que o Brasil não é e jamais
foi feudal ou semifeudal e, por isso, não careceu nem
carece de uma revolução agrária e antifeudal para se tornar
moderno e capitalista. Essa crítica ao paradigma terceiro-
mundista gerou um dos debates mais contundentes dentro
e fora do marxismo brasileiro (DIEHL, 1998, p. 211-212).

Encontramos idêntico procedimento de análise em Reis (1999, p.


179) e Ricupero. De acordo com o último, dentre os motivos para se
continuar lendo e estudando Caio Prado estaria justamente a “(...)
penetrante crítica que faz à linha dominante de uma influente
perspectiva intelectual e política do Brasil, aquela que brotou do
Partido Comunista Brasileiro (PCB)” (RICUPERO, 2000, p. 25).
Em síntese, como podemos verificar pelas passagens citadas, a
contraposição entre Caio Prado e o Partido Comunista constitui,
provavelmente, o mais importante dos recursos utilizados por seus
estudiosos para realizar sua análise. Podemos afirmar inclusive que, do
ponto de vista da historiografia, esse seria o melhor recurso
metodológico para compreendê-lo.
Ressalte-se que, nessa comparação, ao contrário do Partido
Comunista e de seus intelectuais e porta-vozes, Caio Prado é, na maior
parte das vezes, considerado sob uma luz favorável. É visto como um
autor que soube utilizar o marxismo de maneira criativa, não
esquemática e não dogmática, ou seja, que produziu uma interpretação

31
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

original da história do Brasil justamente por não ter cedido ao


mecanicismo e ao esquematismo do Partido. Konder (1989, p. 138), por
exemplo, observa que em sua interpretação não se notam as marcas
mais evidentes do stalinismo sobre o marxismo-leninismo, marcas que
teriam transformado essa doutrina em um esquema empobrecedor das
análises.
Para nós, entretanto, não é no confronto com o Partido
Comunista que Caio Prado será compreendido, até porque a oposição
que ele faz não é tão radical e absoluta como pretende a historiografia.
Sem nos estendermos na questão, basta, com efeito, lembrar que tanto o
Partido Comunista como Caio Prado advogavam uma posição etapista,
que intermediasse o presente e o socialismo. Para o Partido, seria
preciso realizar uma revolução democrático-burguesa e desenvolver o
capitalismo antes de passar à luta pelo socialismo. Caio Prado, por seu
turno, defendia o estabelecimento de uma economia nacional para, em
seguida, desencadear a luta pelo socialismo. Além disso, o
esquematismo e o mecanicismo do Partido Comunista, explicados pela
historiografia como uma sujeição à III Internacional, são, eles próprios,
uma questão que merece um estudo e não um dado do qual se pode
partir e sobre o qual não há mais nada a dizer. Assim, não basta
explicar a adoção de uma determinada interpretação pela influência da
III Internacional. É necessário buscar a explicação nas condições
históricas brasileiras, nas lutas políticas então travadas, o que
possibilitaria compreender, inclusive, a própria “influência”.
Sintetizando, é preciso verificar o que levou o Partido Comunista a se
identificar e aderir às formulações da III Internacional. O elemento
explicativo necessita, portanto, ele próprio ser explicado.
A análise da obra e do pensamento político de Caio Prado por
meio do confronto com as posições do Partido Comunista traz consigo
um grande problema, que impede, a nosso ver, sua compreensão
histórica. Inicialmente, como vimos, ao se estabelecer uma falsa
dicotomia, desvia-se a atenção do que é fundamental em sua obra. Com
efeito, de acordo com esse procedimento, de um lado estaria o Partido
Comunista, com tudo que existe de criticável em sua interpretação da
história do Brasil. De outro, um autor que soube compreender e utilizar
o marxismo como método de análise da história brasileira. Assim, por
meio desse confronto, a figura de Caio Prado ganha destaque, o que
parece ser suficiente para explicá-lo ou elogiá-lo. Mas, como foi
assinalado, suas formulações não são suficientemente distintas das do
Partido Comunista, ao menos quanto às conclusões práticas, para que
ele possa ser colocado em campo diametralmente oposto. Com efeito,

32
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

este procedimento impede a percepção de que, apesar do conflito de


interpretações e das mútuas críticas, encontram-se vários pontos em
comum que não são nem simples nem meramente circunstanciais.
Além do confronto entre Caio Prado e o Partido Comunista,
outros procedimentos são adotados por seus estudiosos. Ainda que em
escala menor, existem aqueles que o contrapõem à historiografia
caracterizada como conservadora e ressaltam sua ruptura com ela.
Dentre esses estudiosos, talvez tenha sido Carlos Guilherme Mota o
primeiro a expressar melhor essa maneira de enfocar Caio Prado.
Situando-o no primeiro momento significativo da historiografia
brasileira, principiado em 1930, que denomina de “redescobrimento do
Brasil”, Mota (1975, p. 7. Ver, também, MOTA, 1977, p. 28) assinala:

(...) a historiografia da elite oligárquica, empenhada na


valorização dos heróis da raça branca, e representada pelo
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em
1838), vai ser contestada de maneira radical por um
conjunto de autores que representarão os pontos de partida
para o estabelecimento de novos parâmetros no
conhecimento do Brasil e de seu passado.

A obra que, a seu ver, representaria o início dessa fase seria


Evolução política do Brasil, na qual uma “(...) crítica vigorosa à
historiografia oficial [estaria] estabelecida de maneira sistemática e
fundamentada (...)” (MOTA, 1975, p. 7-8. Ver, também, MOTA, 1977, p.
28). Assim, “(...) a preocupação em explicar as relações sociais a partir
das bases materiais apontando a historicidade do fato social e do fato
econômico, colocava em xeque a visão mitológica que impregnava a
explicação histórica dominante” (MOTA, 1975, p. 8. Ver, também,
MOTA, 1977, p. 28).
Nilo Odália, atribuindo a José Honório Rodrigues a primazia de
descoberta dessa ruptura com a historiografia conservadora, dá-lhe
uma dimensão ainda mais ampla. Estende-a ao conjunto da obra
historiográfica de Caio Prado e, contrariando, inclusive, a tendência
dominante da historiografia, valoriza mais a ruptura com a
historiografia do que o fato de Caio Prado ser um autor marxista:

(...) um dos elementos que diferenciam a obra de Caio


Prado das de seus antecessores reside menos na novidade
de uma interpretação marxista, já tentada por outros
autores, entre eles Gilberto Freyre, no capítulo sobre a
escravidão negra do seu Casa-Grande & Senzala, do que na

33
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

sua ruptura com a tradição historiográfica brasileira de


procurar apenas em nosso passado colonial os
fundamentos de nossa nacionalidade (1989, p. 112).

Entretanto, o confronto com a historiografia também não é


suficiente para apreender a dimensão política de Caio Prado,
justamente aquela que possibilita a compreensão da sua obra e, por
conseqüência, do seu pensamento político. Com efeito, confrontando-o
apenas com a historiografia e, portanto, examinando-o de maneira
parcial, seus estudiosos consideram apenas uma de suas facetas, aquela
que, a nosso ver, não é a mais significativa. Com efeito, essa
contraposição não pode elucidar o pensamento político de Caio Prado
pelo fato de sua crítica à historiografia ser explicada por sua posição
política. Dito de outro modo: trata-se de uma faceta que se encontra
subordinada à sua posição política. Assim, ao situá-lo no interior da
historiografia brasileira, em oposição à historiografia tradicional, seus
estudiosos o dissociam dos embates de sua época, os quais constituem
o elemento essencial para explicar suas formulações políticas. Em
outras palavras, é na condição de militante que faz da história seu
instrumento de luta política que o devemos compreender e não na
condição de historiador, mesmo que o consideremos um historiador
com militância política. Em resumo, o historiador encontra-se
subordinado ao político, se é que podemos fazer essa distinção.
Cabe, por fim, destacar que as duas contraposições - Caio Prado
versus Partido Comunista e Caio Prado versus historiografia
conservadora – não se excluem, embora, de um modo geral, com amplo
predomínio da primeira, os estudiosos acentuem uma delas ou o
analisem no interior dessas duas contraposições. O fato é: qualquer que
seja o procedimento, esses confrontos não são suficientes para a
compreensão do seu pensamento político justamente porque sua obra
não se esgota neles. Falta, com efeito, seu objetivo maior, que é seu
objetivo político.
Tuck (1992, p. 275), mencionando Skinner, afirma que a melhor
maneira para se conhecer um autor é considerar o objetivo da sua obra.
Não discordamos, em princípio, dessa afirmação. Falta, no entanto,
acrescentar que existem algumas dificuldades para realizar esse
intento. Em primeiro lugar, o objetivo do autor nem sempre é evidente,
já que ele nem sempre explicita sua finalidade. Em segundo lugar, é
preciso ficar atento para o fato de que a intenção última de um autor
nem sempre é criticar os opositores com os quais dialoga. É o caso de
Caio Prado e sua crítica ao Partido. Evidentemente, encontramos em

34
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

sua obra objeções bastante severas ao Partido Comunista, mas seu


objetivo encontra-se explicitado apenas de maneira indireta e de forma
alguma se confunde com o que critica de modo imediato e diretamente.
Dito de outro modo: ainda que critique a historiografia conservadora e
o Partido Comunista, sua intenção última não se resume a isso,
principalmente no que diz respeito ao Partido Comunista. A nosso ver,
sua crítica ao Partido Comunista é apenas um aspecto do objetivo
último da sua obra, que é oferecer uma alternativa à proposta radical
de socialismo sem uma etapa intermediária.
Além disso, é preciso destacar, suas contraposições à
historiografia tradicional e ao Partido Comunista não são formuladas
nem na mesma obra e nem no mesmo momento de sua trajetória
intelectual. A crítica à historiografia está presente no seu primeiro livro,
Evolução, mas não aparece formulada de maneira explícita nos
posteriores, à exceção de História e desenvolvimento. Nestes,
especialmente nos textos de intervenção política, é a contraposição ao
Partido Comunista que assume o primeiro plano8. Retomaremos este
assunto mais adiante. Por ora, necessitamos desenvolver outras
questões.
Chamamos a atenção para o fato de que a grande maioria dos
estudiosos da obra de Caio Prado baseia sua análise no fato de ele ser
um autor marxista e comunista. Este ângulo de análise, ou seja, o da
sua opção política e doutrinária, conduz diretamente ao estudo da sua
biografia. De fato, com este procedimento de análise, tudo se passaria
como se o autor, frustrado e desencantado com os rumos tomados pela
Revolução de 1930 e com o processo de radicalização política que se lhe
seguiu, tivesse abraçado a causa revolucionária. Dessa perspectiva, a
questão central é a ruptura com a sua classe de origem quando se torna
marxista e membro do Partido Comunista. Não são poucos aqueles que
iniciam o exame do seu pensamento político precisamente chamando a
atenção para essa ruptura. Reis, por exemplo, afirma: “Sua vida é
marcada pela ruptura de classe” (1999, p. 173).
Desse modo, o destaque dado pela historiografia à ruptura de
classe constitui, de fato, uma opção metodológica, segundo a qual a

8 A crítica ao Partido Comunista aparece, de maneira explícita, no seu texto de 1947,

“Fundamentos econômicos da revolução brasileira”. Evidentemente, poder-se-ia


considerar Formação como esse marco, já que nessa obra formula sua interpretação da
história do Brasil que é distinta da do Partido Comunista. Entretanto, nesse livro, em
momento algum faz referência, ainda que implícita, à sua discordância do Partido
Comunista.

35
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

explicação do pensamento político de Caio Prado e de sua obra seria


dada justamente por sua biografia, especialmente por sua adesão ao
marxismo. É verdade que essa questão metodológica é subjacente, não
é explicitada pelos autores, que, em decorrência, não tiveram que
afirmar com todas as letras que estavam analisando a obra por meio da
sua biografia. Porém, se nem todos o fizeram, Novais (2005), discípulo
de Caio Prado e um dos seus maiores estudiosos, chega a afirmar,
referindo-se especialmente a ele, que “(...) a vida de um autor é um
dado radical para se compreender as criações do espírito” (2005, p. 277)
e que “certas características do discurso parecem expressar mais
diretamente o percurso da vida, estabelecendo a ponte entre o autor e a
obra. A ruptura de classe, vimos, domina a trajetória, e talvez na base
da coerência que atravessa toda a produção intelectual” (2005, p. 283).
Reis também envereda por esse caminho: “A trajetória da sua vida [de
Caio Prado] dominará a sua obra” (1999, p. 173).
Entretanto, a biografia de Caio Prado, ainda que indispensável
para o conhecimento do seu pensamento político, também não fornece
os elementos necessários à sua compreensão. Suas escolhas políticas
foram feitas em um contexto pleno de potencialidades, que precisa ser
desvendado. Trata-se de uma escolha pessoal, é verdade, mas os
caminhos já se apresentavam diante dele. Com isso, para compreender
suas escolhas é preciso desvendar seu real interlocutor e, como já foi
dito, apreender o objetivo maior da sua obra. Somente assim
poderemos entender a sua participação nas lutas políticas da sua época,
ou seja, seu posicionamento político. Desse modo, é por meio das
questões que o levaram a escrever seus livros que poderemos explicar
sua obra e compreender suas escolhas. Em resumo, o caminho para se
alcançar esse objetivo é precisamente descobrir na própria obra seu
elemento determinante.
Vemos, portanto, que a biografia e o contexto histórico não são
suficientes para a compreensão do pensamento político deste autor.
Com efeito, as análises de um autor por meio do seu contexto ou pela
sua biografia têm como fundamento o fato de que esse contexto é algo
que independe da própria ação humana ou que o indivíduo teria
autonomia para a ação em sociedade. No primeiro caso, o contexto
seria uma entidade que envolveria os homens e os determinaria. Aqui,
pode-se dizer que o contexto é tudo e os homens nada. Neste caso, falta
o entendimento de que ele é constituído pelos próprios homens e suas
relações sociais. No segundo caso, sob certos aspectos, o contexto é
ignorado e os homens parecem poder decidir fora das suas
determinações sociais. Evidentemente, seria um exagero dizer que,

36
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

nesse caso, os indivíduos são tudo e o contexto nada. Mas, sob certos
aspectos, é o que acontece, pois o contexto funciona como uma simples
moldura para a ação dos indivíduos.
De certa maneira, a história é um feixe de potencialidades que
somente se tornam realidade se os indivíduos, por meio das suas ações,
incluindo-se aqui as suas obras, as concretizam. Assim, os homens não
partem do nada. Antes, são agentes ativos na constituição daquilo que
se convencionou denominar contexto histórico. Todavia, isso não
significa que fazem história de acordo com seus desejos. Ao contrário,
existem condicionantes, que estamos denominando potencialidades,
das quais não podem fugir.
Também cabe assinalar que não podemos aqui fazer
generalizações, já que nem todas as obras se prestam a esse
entendimento. Geralmente, os grandes autores, aqueles que marcam
uma época, são os que explicitam determinadas potencialidades e dão
aos homens os elementos para pensar e explicar suas ações. Dito de
outro modo: podemos afirmar que as obras desses grandes autores,
que, justamente por isso, são grandes, tornam consciente aquilo que,
até então, era apenas potencialidade. Assim, as obras que expressam as
tendências ou as potencialidades de uma maneira mais contundente ou
explícita são, muito provavelmente, as que adquirem grande projeção.
Em virtude disso, sobressaem-se em face das demais e permanecem
para além da sua época.
Acreditamos residir nesse ponto a grande virtude de Caio
Prado. Esse seria o motivo pelo qual ele se destacou entre os demais
autores da sua época, mantendo-se, até os nossos dias, como uma
referência, com a qual uma parcela significativa dos historiadores e
leitores se identifica. Para se certificar disso basta considerar que, ainda
que os estudiosos arrolem junto com Caio Prado autores como Gilberto
Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, o fato é que nenhum dos últimos
criou uma escola, influenciou decisivamente a historiografia e teve
discípulos. Assim, já que eles são celebrados como os grandes
intérpretes do Brasil, é preciso indagar o motivo pelo qual apenas Caio
Prado teve grande repercussão e influência. Sob certos aspectos, ao uni-
los sob um mesmo denominador, ignora-se o que os diferencia. Na
verdade, juntá-los sob denominações como “intérpretes do Brasil” ou
“explicadores do Brasil” pouco contribui para a compreensão do
pensamento político de Caio Prado.
Ainda que para se entender as formulações de Caio Prado fosse
suficiente situá-lo no interior dos embates políticos verificados em sua
época, a análise da historiografia, referente tanto a ele como às questões

37
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

coloniais, também constitui um indicativo fundamental para se


alcançar tal objetivo. Não cabe, neste caso, apenas um confronto de
interpretações. O papel desempenhado pela historiografia não pode se
restringir a um contraponto, já que sua própria atitude para com Caio
Prado é elucidativa para a compreensão do seu pensamento político.
Constata-se, nessa atitude, uma identificação política com o autor. De
fato, pela maneira como o interpretam e pelos comentários que fazem a
seu respeito, seus estudiosos revelam uma grande compreensão do seu
significado histórico, ainda que isso não seja completamente
explicitado. Com efeito, ainda que a historiografia exalte Caio Prado
pelo seu marxismo, há a percepção de que o mesmo sempre combateu
as posições radicais relativas ao socialismo. Assim, podemos dizer que
a historiografia revela mais sobre Caio Prado por sua atitude para com
ele do que pelo que afirma acerca dele. Com efeito, ao considerá-lo
como um dos mais importantes, se não o mais importante, dos
historiadores brasileiros, ao destacar determinados aspectos da sua
obra, ao inseri-lo no cenário político brasileiro de uma dada maneira,
enfim, ao se colocar diante dele de determinada maneira, a
historiografia revela o papel político por ele desempenhado na história
política do Brasil. Desse modo, a própria atitude da historiografia
torna-se, igualmente, um meio seguro para o estudo do seu
pensamento político. Assim, ainda que se possam debater as
formulações que ela faz sobre esse autor, o fato é que, justamente pela
forma como o encara, elas são fundamentais para elucidar seu
pensamento político. Um exemplo de como a historiografia o interpreta
e o valoriza pode ser encontrado na obra de Ricupero:

A nosso ver, porém, boa parte do interesse da obra de Caio


provém precisamente de sua associação com o marxismo.
Isso principalmente em razão de o historiador paulista ter
sabido utilizar como poucos em nosso país o método
marxista no estudo de um objeto particular, a experiência
histórico-social brasileira. Conseguiu, dessa forma, ser
original ao analisar essa experiência. Condição que acaba
mesmo por afastá-lo da maior parte de nossos marxistas,
incapazes que foram, quase todos, de compreender as
particularidades das quais é feita nossa formação
econômico-social (2000, p. 66-67).

Ricupero valoriza Caio Prado precisamente por sua associação


com o marxismo e por sua maneira, que caracteriza como original, de
utilizar essa doutrina, modo com o qual, evidentemente, ele concorda.

38
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

Ele comunga também a interpretação da história do Brasil com Caio


Prado, ou seja, esse é o ponto comum entre o estudioso e o autor
estudado. Podemos generalizar e afirmar que, sob certos aspectos, é a
“leitura” caiopradiana do marxismo que constitui a questão central das
análises dos seus estudiosos e que os leva a se identificar com o ela.
Sintetizando, a historiografia exalta Caio Prado por sua heterodoxia,
exatamente porque ela assume, em face do marxismo ortodoxo, uma
posição pelo menos próxima à dele.
Com base nessas considerações, pode-se deduzir que o estudo
do pensamento político de Caio Prado constitui um empreendimento
bastante difícil, cuja explicação não se encontra, como se pode perceber,
em seus textos e formulações. Ao contrário, uns e outras são bastante
claros e, por conseguinte, sua compreensão não oferece maiores
problemas. Tal dificuldade reside tanto na trajetória política que se
encontra exposta em suas obras, como no papel por ele representado na
atualidade para a historiografia e demais estudiosos da sua produção
intelectual. Dito de outro modo, deriva justamente do lugar que ele
ocupou e, de certa forma, ainda ocupa no cenário político brasileiro,
fato que se encontra expresso na historiografia a seu respeito.
Resumindo, o debate com a historiografia não gira, primordialmente,
em torno da interpretação do seu pensamento.
Justamente pelo fato de a interpretação do pensamento político
de Caio Prado não se encontrar, fundamentalmente, no centro do
debate com a historiografia, mas em sua atitude para com esse autor,
ele adquire caráter político bastante atual. Isso pelo fato de se tratar de
um debate no qual a questão política encontra-se profundamente
presente. Evidentemente, poder-se-ia objetar que a dimensão política
encontra-se sempre presente nos debates em torno de toda
interpretação historiográfica. Todavia, a posição de Caio Prado nas
lutas políticas no Brasil é bastante singular e especial. Em virtude disto,
o debate em torno da postura que a historiografia, especialmente
aquela que é uma espécie de sua herdeira política, adotou diante desse
autor e, consequentemente, da sua interpretação do seu pensamento
político, adquire feições políticas também bastante particulares. Reis
percebeu esta questão ao chamar a atenção para um fato bastante
importante, constatando que:

(...) para os historiadores brasileiros, sua importância [de


Caio Prado] tornou-se tão considerável que há em torno
dele algo mais do que respeito intelectual, mas alguma
idolatria, alguma paixão, que talvez ele próprio recusasse.

39
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

(...) É como se ele fosse meio intocável, protegido de uma


análise mais contundente (1999, p. 175).

Acreditamos, por conseguinte, que não é sem motivo que Caio


Prado seja considerado por muitos como o mais importante historiador
do Brasil. Segundo Mota (1975, p. 3), possivelmente, ele seja “(...) o
historiador mais significativo do Brasil.” Novais (1986, p. 9), por sua
vez, afirma que se trata de “(...) um dos maiores nomes da
historiografia brasileira” e que suas obras “(...) marcaram
profundamente nossa vida intelectual a partir de então.” Cândido
(1989, p. 23-24) não lhe poupa elogios, chamando-o de “grande” e
“notável” historiador. Ianni (1989, p. 64) considera-o como o “(...) autor
de uma interpretação original e influente (...)”, tendo inaugurado uma
“(...) interpretação marxista da formação social brasileira, estabelecendo
um horizonte intelectual novo, sem o qual não foi mais possível pensar
a história e o pensamento no Brasil.” Ainda segundo esse autor, ele
teria fundado “(...) uma interpretação clássica da história da sociedade
brasileira.” Na opinião de Leão (1994, p. IV), foi “(...) um dos criadores
mais lúcidos no Brasil (...)” do pensamento marxista, cuja obra “(...)
forja-se com um aparato analítico e ideológico verdadeiramente
pioneiro” (LEÃO, 1994, p. 4). De acordo com Reis (1999, p. 173), Caio
Prado teria se tornado, após 1930, “(...) o mais influente historiador
brasileiro”.
Depreende-se do que foi dito até agora que também
consideramos Caio Prado o mais importante dos historiadores
brasileiros e, por isso mesmo, sua obra merece ser estudada. No
entanto, as razões pelas quais o consideramos importante não são
idênticas às da historiografia. De nosso ponto de vista, existem duas
razões fundamentais para que ele seja considerado importante e, em
conseqüência, seu pensamento político mereça um estudo.
A primeira delas é a permanência, em linhas gerais, da sua
interpretação da história do Brasil. Com efeito, Caio Prado elaborou
uma interpretação que, a rigor, ainda não foi questionada em seus
fundamentos, especialmente no que diz respeito ao estudo da
colonização. Não custa lembrar que sua maneira de conceber a
colonização constitui o fundamento da sua interpretação da história do
Brasil9. Ele é considerado por praticamente todos os estudiosos como

9Acreditamos que, enquanto a concepção de colônia de Caio Prado não for superada,
sua hegemonia se manterá. Entretanto, é importante destacar que a maneira de superar
sua concepção de colônia não é apenas formulando outra que se lhe contraponha, mas
mostrando o vínculo da sua concepção com suas propostas políticas. Afirmamos isso

40
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

aquele que lançou as bases definitivas para a compreensão da época


colonial. Os conceitos de que este autor se vale — como latifúndio,
monocultura, trabalho escravo, grande produção, colônia de
povoamento e de exploração, produção voltada para o mercado interno
e produção voltada para o mercado externo, além, é claro, do mais
conhecido de todos, o “sentido da colonização” — são considerados
indispensáveis e definitivos para o estudo dessa época. É verdade que
Caio Prado não teve a primazia na utilização de todos esses conceitos,
mas foi o pioneiro em utilizá-los em uma interpretação totalizante. Em
razão disso, boa parte deles encontra-se, atualmente, associada ao seu
nome.
Além disso, o entendimento de colônia como produção para o
mercado externo – que, se não o inaugurou, Caio Prado fez dele o
fundamento da análise do período colonial e, por conseguinte, de toda
a história brasileira - não foi ainda questionado, mesmo por seus mais
severos críticos (MENDES, 1997, p. 40). Essa afirmação poderia ser
contestada com o argumento de que Novais teria superado esse
entendimento ao chamar a atenção para o fato de que a produção para
o mercado externo seria apenas a face externa, a aparência, de um
processo mais profundo, a acumulação primitiva do capital. No
entanto, como destacou o próprio Novais (2005, p. 289), sua
interpretação não é uma negação, mas um aprofundamento desse
entendimento.
A segunda razão, e essa é, em nossa opinião, a mais importante
para se fazer um estudo de Caio Prado, é que os historiadores e
estudiosos da sua obra mantêm para com ele uma atitude que antes
contribui para a sua preservação do que para a compreensão histórica
do seu pensamento político. Isso pode ser verificado, principalmente,
mas não unicamente, nos estudos realizados nas duas últimas décadas,
os quais constituem verdadeiras reafirmações das suas formulações,
revelando uma grande identificação entre a historiografia e elas.
É verdade que alguns estudiosos criticaram Caio Prado,
parecendo, à primeira vista, não ser correta a afirmação de que a
historiografia brasileira o preserva em suas análises. Essa preservação
precisa, no entanto, ser entendida de uma forma mais ampla. De fato,
de um lado, encontramos estudiosos que se identificam direta e

pelo fato de que, em algumas oportunidades, tentou-se criticar sua concepção de


colônia. Entretanto, fez-se uma separação entre suas formulações relativas à época
colonial e sua proposta política, o que tornou parciais as considerações sobre sua
concepção de colônia.

41
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

imediatamente com ele e, em última instância, encaminham suas


análises no sentido de reafirmar suas formulações. Essa parece ser a
tônica da maior parte das análises de sua obra. De outro lado, porém,
existem também estudiosos que não se identificam com ele, mas, de
forma indireta, acabam por preservá-lo. Apesar de criticá-lo e de se
esforçar por superar sua análise, principalmente, mas não unicamente,
no que diz respeito à colonização, eles não atingem o cerne da sua
questão, porque, em última instância, permanecem no interior do seu
universo interpretativo.
Poderíamos citar como exemplo as críticas à sua concepção de
colônia. Com efeito, estas não questionam seus fundamentos,
precisamente pelo fato de, a rigor, aceitarem sua caracterização de
colônia. Em suma, aceitam a idéia de que colônia se identifica com
produção para o mercado externo. Com isso, mesmo não concordando
com outras formulações de Caio Prado, seus estudiosos, críticos ou não,
entendem ser essa, senão a única, ao menos a maneira correta de se
definir a colônia.
Entretanto, essa caracterização não constitui a descrição real da
colônia. Antes, é um modo específico de compreender colônia e está
intimamente vinculada com o posicionamento político e a proposta
política de Caio Prado. Aliás, ressalte-se, esse modo de conceber a
colônia encontra-se na base da sua interpretação da história do Brasil.
Em conseqüência, ao aceitarem essa concepção, seus críticos acabam
por aceitar, inevitavelmente, não apenas a sua interpretação da época
colonial, mas, igualmente, sua interpretação da história do Brasil e, por
conseguinte, sua atitude para com a história (MENDES, 1997, p. 44 e
segs.).
Um fato que merece ser destacado no estudo de Caio Prado é o
enorme interesse, nos dias de hoje, pela sua obra e pelo seu
pensamento político. Trata-se de um fenômeno que chama a atenção já
que, tendo como momento significativo da sua trajetória intelectual a
publicação, em 1933, de Evolução política do Brasil e tendo escrito muitos
livros desde então, ele não foi objeto de estudo ao longo das décadas
seguintes, apesar da sua grande aceitação e da enorme influência que
exerceu sobre a historiografia. É somente nos anos oitenta que o
interesse pelo estudo da sua obra se manifesta, seja com a publicação
de uma antologia de textos de Caio Prado organizada por Iglesias
(1982) e precedida por um estudo introdutório10, seja com a tese de

10 A rigor, pode-se questionar a inclusão de Iglesias nessa relação. Com efeito, seu
estudo sobre Caio Prado foi publicado como parte de um projeto maior, uma coleção

42
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

doutorado de Melo (1987a), seja com a realização de um simpósio, em


Marília, em 1988. Além desses estudiosos, outros se ocuparam de Caio
Prado durante esse período e o fato de não se dedicarem
especificamente a ele e o examinarem dentro de um quadro mais
amplo não descaracteriza o interesse crescente por sua obra. Dentre
esses estudos, podemos destacar o trabalho de Mota (1977) e o de
Mantega (1984). Ainda na década de 1980, além da publicação de dois
artigos daquele que, sendo considerado o sucessor de Caio Prado, teria
aprofundado sua análise da colonização, Novais (1983; 1986),
encontramos outros dois de Melo (1985; 1987b). Além desses, merece
destaque ainda o livro de Dante Moreira Leite (1969), O caráter nacional
brasileiro, tese de doutorado defendida em 1954 e reescrita em 1968 para
publicação. Ainda que o coloque em posição de destaque porque teria
marcado o fim da ideologia na análise da história do Brasil, o autor não
se dedica especificamente a Caio Prado.
Antes dessa época, ou seja, até a década de 80, tivemos,
basicamente, escritos que polemizaram com os textos e as idéias de
Caio Prado ou resenharam seus livros. No primeiro tipo de texto, a
grande incidência verifica-se na polêmica que surgiu com a publicação
do livro A Revolução Brasileira11. Quanto ao segundo tipo, as resenhas
de Fernand Braudel (1948; 1999) e José Honório Rodrigues (1951) são os
exemplos mais marcantes.
Destaque-se, no entanto, que, se a década de 1980 marca o início
do interesse por Caio Prado, é somente a partir da década de 1990,
fundamentalmente nos meios acadêmicos, que assistimos a uma
espécie de boom nos estudos da sua obra, principalmente, mas não
unicamente, da sua parte historiográfica. Poderíamos mesmo nos
arriscar a afirmar que somente a partir de então surgiu um verdadeiro
interesse por estudar esse autor, estendendo-se esse interesse ao grande
público. Teses e dissertações foram defendidas, livros e artigos foram
publicados, textos e diário seus foram editados ou reeditados, uma
grande quantidade de material foi disponibilizada na Internet, além
dos eventos de natureza científica que foram organizados. Muito

de grandes cientistas sociais. Assim, a motivação da publicação é menos um interesse


particular pelo autor e mais um interesse editorial.
11As principais críticas surgidas por ocasião da publicação de A Revolução Brasileira são:
Cavalcanti (s/d), Fausto (1967), Malta (1966), Silveira (1966) e Tavares (1966-1967). Seu
texto “Fundamentos econômicos da revolução brasileira”, de 1947, também provocou
polêmica. Ver Rui Facó (1947).

43
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

provavelmente, Caio Prado tornou-se um dos autores brasileiros mais


estudados nas duas últimas décadas12.
O crescimento do interesse pela obra de Caio Prado durante
esse período pode ser creditado à sua morte, ocorrida em 1989. De fato,
pelo menos em parte, isso poderia explicar o fenômeno. Entretanto,
além do crescente interesse, o que mais chama a atenção é a tônica
desses estudos. Nota-se que seus estudiosos comungam com suas
idéias e, por isso, o resultado final é a reafirmação das suas formulações
e de uma determinada atitude para com a história do Brasil. A
identificação, nesse caso, impede uma postura que disponha o
pesquisador para uma compreensão histórica do seu pensamento
político.
Quando realizadas, as criticas aparecem geralmente nas
entrelinhas, sendo mais aludidas do que formuladas explicitamente.
Um bom exemplo são as de Raimundo Santos, feitas aqui e ali, mas
sem um aprofundamento. Mesmo assim, constituem uma exceção.
De uma maneira geral, impera a defesa e a preservação de Caio
Prado. Um bom exemplo, neste caso, é o trabalho de Ricupero,
sintomaticamente intitulado A nacionalização do marxismo. O título já é
uma resposta aos críticos de Caio Prado que chamaram a atenção para
o nacionalismo presente em sua obra. Conferindo outro significado ao
conceito de nacionalismo, Ricupero afirma que, ao contrário de outros
autores marxistas, Caio Prado soube adaptar o marxismo às
circunstâncias brasileiras – teria, assim, nacionalizado o marxismo. Em
conseqüência, o nacionalismo desse autor, que é encarado por alguns
estudiosos ao menos com certa reserva, em Ricupero, transmuta-se em
algo positivo. De seu ponto de vista, ao evitar o esquematismo e o

12Em linhas gerais, podemos dividir os textos acerca de Caio Prado em quatro tipos.
Adotando-se, de forma não rigorosa, o critério cronológico, podemos dizer que o
primeiro tipo de texto é formado por autores que fizeram resenhas dos seus livros por
ocasião da sua publicação. No segundo tipo, estão os textos cujos autores polemizaram
com ele em questões de natureza política. Além das críticas produzidas por ocasião da
publicação de A Revolução Brasileira, poderíamos citar os artigos de Calvino Filho
(1957a; 1957b). O terceiro tipo é formado por historiadores que polemizaram com Caio
Prado na questão da interpretação da colonização. São os textos de Lapa (1980),
Cardoso (1985; 1987; 1988) e Gorender (1978), entre outros. Por fim, o quarto tipo é
composto por análises que tomam a obra de Caio Prado em seu conjunto ou apenas
uma parte ou aspecto dela. A nosso ver, são estes últimos textos, o dos estudiosos da
obra de Caio Prado, que merecem atenção especial, pois nos conduzem ao papel
político atribuído a Caio Prado e que nos dias de hoje se encontra sintetizado em temas
como “a atualidade de Caio Prado” e “o que está vivo e o que está morto em Caio
Prado”.

44
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTUDO DO PENSAMENTO POLÍTICO DE CAIO PRADO JR.

mecanicismo então dominantes, Caio Prado teria sido o único a adaptar


criativamente a doutrina marxista às condições particulares da história
do Brasil. Cabe, finalmente, assinalar que nem sempre o nacionalismo
presente na obra caiopradiana foi considerado de uma perspectiva
crítica. Antes, encontramos autores que vêem nisso uma das grandes
virtudes da sua obra.
A constatação de que, durante cerca de 50 anos, desde a
publicação do seu primeiro livro (ou 40 anos, desde a publicação da
sua obra reputada como a mais significativa), Caio Prado praticamente
não foi objeto de estudo é bastante surpreendente. A surpresa é ainda
maior se considerarmos que ele influenciou de maneira decisiva os
estudos históricos no Brasil, especialmente, mas não unicamente, os
relativos à colonização. Seria justo supor que, diante dessas
circunstâncias, tivesse despertado um interesse pelo estudo da sua
obra.
Acreditamos que a explicação desse fato esteja, em primeiro
lugar, no caráter político da sua obra, com o qual os historiadores e
demais estudiosos concordavam. Essa concordância - podemos
acrescentar: essa identificação – não deu margem ao surgimento de
nenhuma questão que pudesse levar os estudiosos a se interessarem
pelo exame dos seus pressupostos teóricos e metodológicos. Aceitavam
sua interpretação da história, sua filiação marxista e militância
comunista e isto parecia suficiente para as questões historiográficas.
Assim, enquanto a obra de Caio Prado teve sua eficácia política, não
surgiu nenhum interesse pelo seu estudo. Esse interesse surge apenas
quando, com as transformações que ocorreram na sociedade brasileira,
ela começa a perder sua oportunidade política. Neste caso, começa a
ocorrer uma espécie de atualização de sua obra, de reafirmação de sua
importância. Dito de outro modo, antes, esta importância era
naturalmente reconhecida e, por isso, sua obra dispensava estudos.
Agora, em virtude das circunstâncias históricas distintas, é preciso uma
ação política que restabeleça esta importância. Este parece ser o papel
da historiografia relativa a Caio Prado. Mas, em contrapartida, reside
nessa questão, o principal motivo para se efetuar um estudo do
pensamento político de Caio Prado e do papel que desempenhou na
história do Brasil.

45
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

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49
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL. A
colonização como produção para o mercado
externo13.

INTRODUÇÃO

Nos estudos históricos relativos à colonização do Brasil tem-se


definido colônia com base no que se considera o caráter fundamental
da economia brasileira desse período, qual seja, o da produção voltada
para o mercado externo. Essa maneira de caracterizar a colônia, se não
teve início com Caio Prado Júnior, pelo menos tem nele seu
representante mais expressivo e que lhe deu maior sistematicidade. Foi
no livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942, que Caio
Prado, afirmando que havíamos nos constituído com o objetivo de
fornecer alguns gêneros para o comércio europeu, expôs pela primeira
vez essa concepção de colônia.
Este modo de conceber nosso passado colonial exerceu uma
influência tão decisiva sobre os estudos históricos que a obra de Caio
Prado tornou-se referência obrigatória para todo aquele que deseja
estudar a história do Brasil, especialmente a do período colonial. Aliás,
teve tamanha difusão e foi aceito com tanta naturalidade que, como
bem observou Febrot, tornou-se senso comum a ponto de se ignorar
seu mentor.
O estudioso que examina a historiografia brasileira,
particularmente a relativa ao período colonial, ao considerar Caio
Prado, tem sua atenção despertada por três questões.
A primeira é que, a partir de Formação do Brasil Contemporâneo,
muito pouco do que se publicou no Brasil acerca da colonização ficou
fora das linhas mestras da sua interpretação. Até mesmo estudos que
abordaram épocas posteriores ao período colonial foram buscar nele os
fundamentos da análise.
A segunda questão é a longevidade dessa interpretação. Com
efeito, surpreende que essa caracterização de colônia tenha se mantido

13Este texto, com modificações, foi publicado inicialmente em ALVES, Paulo (org.)
Estudos historiográficos. Assis/SP: Autores Associados, 1997. O texto é uma parte do
primeiro capítulo da nossa tese de doutorado, Construindo um mundo novo. Os escritos
coloniais do Brasil nos séculos XVI e XVII, defendida na USP, em 1996.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

durante tanto tempo e, em suas linhas gerais, seja considerada válida


ainda em nossos dias, apesar das transformações sofridas pelo Brasil
desde os anos 40 e do grande desenvolvimento verificado nos estudos
históricos, inclusive com a emergência de novos objetos, novas
abordagens e novos problemas.
Por fim, a terceira questão que merece destaque é que essa
interpretação não somente vigora até o presente como também se
mantém hegemônica. Efetivamente, desde sua formulação, não surgiu
outra que a ela se contrapusesse e ameaçasse seu predomínio.
É verdade que, ao longo destes anos, surgiram várias críticas à
maneira de Caio Prado conceber nosso passado colonial. Todavia, seus
autores não contestaram sua viga mestra, isto é, a caracterização de
colônia como produção para o mercado externo. Em conseqüência,
movendo-se no interior das formulações que ele deixou, contribuíram
para que, em sua essência, sua interpretação se mantivesse incólume.

I. A CRÍTICA DA HISTORIOGRAFIA A CAIO PRADO JÚNIOR.

A crítica de maior peso e sistematicidade feita a Caio Prado


surgiu na década de 70, quando despontou uma tendência
historiográfica cujo alvo foi o destaque que, ao estudar a época colonial,
esse autor deu ao mercado externo. De acordo com essa tendência, o
fato de as colônias serem encaradas como se produzissem em função
da economia européia, a qual lhes conferia sentido, prejudicava
visivelmente a análise das suas estruturas sociais.
O primeiro historiador a fazer essa crítica foi Ciro Flamarion S.
Cardoso14. Outros autores, como Antônio Barros de Castro (1980), José
Roberto do Amaral Lapa (1980), Jacob Gorender (1978), Maria Yedda
Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva (1990), apenas para citar
alguns, de uma forma ou de outra, ainda que tenham guardado
diferenças entre si, seguiram seus passos. Em linhas gerais, Cardoso
criticou as análises da escravidão colonial que tinham Caio Prado como
matriz pelo fato de reduzirem a sociedade colonial à lógica ditada por

14Nos comentários acerca da polêmica travada nos anos 70 e 80, a partir das críticas de
Cardoso às análises da escravidão colonial, fica patente que este autor pretendia
formular uma interpretação alternativa à de Caio Prado Júnior. Vejamos o que nos diz
Linhares: “Nos anos 70, a discussão sobre os fundamentos desta sociedade foi
enriquecida com novas contribuições: de Ciro F. S. Cardoso e Jacob Gorender, que
desenvolveram o conceito de modo de produção escravista colonial em substituição ao
dependentismo implícito no esquema de Caio Prado Júnior e seus seguidores; (...).”
(Linhares, 1990, p. 9-10)

52
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

sua ligação com o mercado mundial em formação e com as metrópoles


européias. Chegou a afirmar que estes estudos reduziam as sociedades
coloniais a um quintal da Europa, deixavam de lado as estruturas
internas formadas com a colonização e subestimavam sua capacidade
de reação às injunções externas.
Em resposta à concepção de Caio Prado, que qualificou de “(...)
obcecada pela plantation monocultora e exportadora”, Cardoso ressaltou a
consistência interna e a relativa autonomia estrutural das sociedades
coloniais. Afirmando que Caio Prado minimizava, de forma decisiva, a
presença e a importância de outras relações de produção que não a
escravista, Cardoso chamou a atenção para a existência de uma
atividade que escapava ao sistema escravista e mercantilista, a qual
denominou de brecha camponesa. Essa discussão sobre a brecha surgiu,
portanto, em meio à tentativa de revisão das análises que se
fundamentavam em Caio Prado. É interessante observar, neste sentido,
embora não seja essa a questão principal, que os críticos dessa tese não
levaram em conta as circunstâncias em que ela foi defendida.
Ao definir as atividades econômicas autônomas dos escravos
que escapavam do sistema de plantation como brecha camponesa,
Cardoso pretendeu valorizar o que denominou de variáveis internas.
Sua intenção foi mostrar que, na colônia, existiam atividades
produtivas que, escapando às injunções externas, davam à sociedade
colonial uma estrutura que não era explicada somente por sua ligação
com o mercado mundial. Chegou a considerar a brecha como uma
atividade universal no escravismo americano, portanto, um fato
estrutural da escravidão colonial.
Todavia, embora tivesse dado destaque à dinâmica interna da
colônia, o próprio Cardoso esclareceu que, com a questão da brecha, não
pretendia estabelecer uma nova unilateralidade. Não se tratava de
negar os vínculos externos da produção colonial, mas apenas nuançar o
que considerava uma visão excessivamente monolítica do sistema
escravista. Pretendia somente mostrar “(...) as colônias afro-americanas
como sedes de verdadeiras sociedades, ativas, dinâmicas e
contraditórias (...)” (1987, p. 89-90).
Assim, por mais incisivas que tenham sido as críticas de
Cardoso, o fato é que, em última instância, elas não constituem uma
completa negação da interpretação de colônia de Caio Prado. Ao
contrário, ele se baseou em suas linhas gerais. Matizou-a, é verdade,
mas não a desconsiderou nem a negou, ou seja, não formulou uma
nova interpretação do sistema colonial que se contrapusesse
radicalmente à de Caio Prado. Para comprovarmos isso, basta verificar

53
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

duas de suas obras, O trabalho na América Latina Colonial (1985) e Escravo


ou camponês? (1987).
Na primeira, após ter tratado da colonização da América como
um processo que ocorreu no bojo da expansão marítima e comercial
européia, inclusive citando Caio Prado, Cardoso define as economias
coloniais fundamentalmente como zonas periféricas e dependentes,
voltadas para o mercado mundial (1985, p. 19, 22 e 52).
Na segunda, caracteriza as colônias como “(...) bem integradas
ao mercado mundial como exportadoras de produtos primários” (1987,
p. 59). Nessa maneira de ver está mantido o fundamento da
interpretação de Caio Prado, qual seja, a afirmação de que a colônia se
define como uma unidade cuja produção estava voltada para o
mercado externo.
O ponto de partida de Caio Prado permaneceu, portanto,
intocado, pois, sem desprezar a ligação de colônia com o mercado
externo, Cardoso apenas entendeu que a análise de Caio Prado era
insuficiente. Na verdade, a seu ver, a proposta de análise das estruturas
internas completaria o quadro traçado por este autor: “Sem analisar as
estruturas internas das colônias em si mesmas, na sua maneira de
funcionar, o quadro fica incompleto, insatisfatório, por não poderem
ser explicadas algumas das questões mais essenciais (...)” (LAPA, 1980,
p. 109-110). Limitou-se, assim, a chamar a atenção para o fato de essas
estruturas possuírem uma complexidade maior do que Caio Prado,
com sua obsessão plantacionista, teria percebido. Em razão disso, apenas
integrou novos elementos à interpretação caiopradiana.
Dessa maneira, ainda que à primeira vista pudéssemos supor
que ele tivesse feito uma crítica radical à interpretação de Caio Prado,
assentando sua análise sobre bases novas, o fato é que, apesar de
dispensar atenção às estruturas internas da colônia, Cardoso definiu as
economias coloniais como zonas periféricas e dependentes. Isso
significa que o arcabouço da concepção de Caio Prado permaneceu
intacto. Ou seja, Cardoso manteve-se no interior das linhas gerais da
interpretação que ele tanto criticou.
A novidade de sua análise está, pois, menos em ter formulado
uma interpretação alternativa à de Caio Prado do que em lhe ter
acrescentado aspectos que julgava decisivos para a plena compreensão
da época colonial. Aceitando a formulação de que a colônia havia sido
criada para produzir para o mercado externo, acrescentou que os
colonos não ficaram passivos diante das injunções externas, mas a elas
teriam reagido de diferentes maneiras, promovendo a consolidação da
produção colonial como estrutura com interesses próprios. Conclui

54
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

ressaltando que o estudo dessas reações permitiria captar a diversidade


existente entre os países americanos que se constituíram como colônias.
Ao criticar Caio Prado, sem negar totalmente seu ponto de
partida, Cardoso foi levado a produzir formulações de caráter
oscilante. Após ter-se distanciado da concepção que vinculava a colônia
ao mercado externo, viu-se obrigado a retroceder e a reconhecer o peso
que a interpretação caiopradiana teria na definição de colônia.
Percebeu que o destaque dado às estruturas internas não dava conta
das relações mais amplas da colônia com o mercado mundial. Tentou,
então, encontrar um ponto de equilíbrio entre a concepção de
valorização do mercado externo, que atribuiu a Caio Prado, e as suas
formulações de valorização das estruturas internas.
Esse retrocesso fica claro quando, ao fazer um balanço da
produção historiográfica de então, Cardoso aponta para um perigo que
vislumbrou nas análises que seguiam sua orientação, extremando-a.
Segundo ele, ao se contrapor à ênfase unilateral que Caio Prado teria
concedido ao mercado externo, corria-se o risco de cair no extremo
oposto e, com sinal trocado, cometer o mesmo equívoco. Por isso, ele
alerta para a possibilidade de um esquecimento exagerado do que
denominou dependência colonial e neocolonial. Neste caso, a ênfase
exagerada recairia sobre os mecanismos internos da colônia
(CARDOSO, 1988, p. 58).
Também nos comentários e notícias acerca do debate em torno
da análise da colonização, que foi travado a partir da crítica de Cardoso
a Caio Prado, fica evidente tanto a dificuldade para se encontrar uma
linha divisória entre as duas concepções como a preocupação em não
adotar uma postura de exclusão. É o que ocorre com os comentários de
Boris Fausto (1995) e Laura de Mello e Souza (1989). Ambos
reconhecem a importância das observações críticas de Cardoso,
procurando conciliá-las com as formulações de Caio Prado.
Não deixa, portanto, de ser interessante notar que a crítica de
Cardoso tenha incidido sobre o vínculo entre a economia colonial e o
mercado externo, justamente o aspecto fundamental da interpretação
de Caio Prado e, contraditoriamente, que ele tenha considerado este
vínculo como o elemento decisivo para a caracterização da economia
colonial.
Mantendo-se circunscrito às formulações de Caio Prado,
Cardoso procura antes corrigi-las do que, de fato, construir uma
perspectiva alternativa, ainda que acredite ter feito isso. Mas, a crítica a
Caio Prado, como, aliás, a crítica a qualquer historiador, não deve
recair sobre o que poderíamos considerar suas deficiências e equívocos.

55
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

A rigor, não existem deficiências ou equívocos na análise feita por um


historiador, principalmente em se tratando de um que soube captar o
espírito da sua época, como é o caso de Caio Prado. O privilégio que teria
dado ao mercado externo não constitui uma deficiência ou equívoco
seu, mas faz parte da sua interpretação.
A crítica deve compreender a interpretação no âmbito da
própria história, tomando-a como expressão de uma determinada
posição política, como uma dada postura diante da história. Assim, se
Caio Prado não deu a devida importância às estruturas e contradições
internas das sociedades coloniais e se, em sua análise, estiveram
ausentes conceitos como forças produtivas e luta de classes, isto não se
deve a uma distorção ou deficiência dos procedimentos adotados. Nas
circunstâncias em que elaborou sua interpretação, ele não tinha por que
as considerar. Para se efetuar uma análise de Caio Prado devemos
vinculá-lo à história do seu tempo, ao invés de confrontá-lo com uma
suposta realidade, exigindo-se dele uma formulação que pertence antes
ao crítico. Da mesma forma, quando Cardoso formula o conceito de
brecha camponesa, o faz segundo as necessidades de suas próprias
posições.
Em suma, se Caio Prado não tomou o mercado interno como
objeto central da sua análise nem considerou os sistemas produtivos, isto
deriva do objetivo de sua interpretação da história do Brasil, que era
precisamente apontar para o processo de formação deste mercado, cujo
crescimento, a seu ver, estava sendo obstaculizado pelas características
exportadoras - coloniais - da economia. Em sua opinião, somente com a
liquidação deste caráter exportador é que os sistemas produtivos se
fortaleceriam, o mercado interno se constituiria e a sociedade se
organizaria15. Assim, não poderíamos exigir que Caio Prado tratasse de
questões que não apenas não estavam no seu horizonte teórico, como
se encontravam em contradição com a sua interpretação.
Mas, para os nossos propósitos, o que importa assinalar é que
Cardoso não contestou, em última análise, o entendimento de colônia
como produção para o mercado externo, fundamento da interpretação
de Caio Prado.

15 A crítica a Caio Prado, por este ter afirmado que na colônia não existia uma
sociedade propriamente dita deriva de uma incompreensão das suas formulações e
proposta políticas. Para Caio Prado, uma verdadeira sociedade somente poderia existir
quando sua economia estivesse voltada para atender às necessidades da nação. Dessa
maneira, somente poderia existir uma sociedade a partir do momento em que existisse
uma nação.

56
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

Jacob Gorender, que também questionou a interpretação de


Caio Prado, vinculou-se, de certa forma, à corrente inaugurada por
Cardoso, o que não significa absoluta concordância entre ambos. Em
sua análise da historiografia brasileira relativa à colonização, este autor
reconheceu a contribuição de Caio Prado para o desenvolvimento dos
estudos históricos, especialmente porque teria superado a interpretação
baseada na teoria dos ciclos, nos quais teria descoberto “(...)
manifestações seqüenciais de algo mais profundo, de uma realidade
permanente e imanente - a estrutura exportadora da economia
colonial”. Deste modo, teria ultrapassado a história comercial,
avançando em direção ao conhecimento do arcabouço econômico-
social. Todavia, ainda segundo esse autor, este avanço encontrou logo
seu limite, pois Caio Prado analisava a história da perspectiva do
comércio exterior. Para Caio Prado, este comércio imporia “(...) à
colonização e à evolução brasileira o fim, o ‘sentido’ (...)”, com o que
não concorda Gorender (1980, p. 17).
Para romper com essa maneira de analisar a história do Brasil,
que, por se prender à circulação, ao invés de se ligar à produção,
denominou circulacionista, Gorender tomou o escravo como categoria
explicativa central. De acordo com Fragoso, ao afirmar a existência de
um modo de produção colonial regido por leis próprias de
funcionamento, este autor teria levado a formulação de Cardoso às
últimas conseqüências (1988, p. 22).
Não acompanharemos o empenho de Gorender na formulação
do modo de produção escravista colonial, mas importa aqui ressaltar
que, apesar de pretender ter rompido com a interpretação de Caio
Prado, ele permaneceu no seu interior, tal como Cardoso. Podemos
comprovar isto nas características que ele atribuiu ao que denominou
plantagem escravista. Em primeiro lugar, ele destacou o fato de a
plantagem ser uma produção voltada para o mercado mundial, ser uma
“(...) produção de gêneros comerciais destinados ao mercado mundial”
(1980, p. 89). Ainda nessa obra, ao conceituar colonial do ponto de
vista econômico, Gorender lhe atribui a característica de uma “(...)
economia voltada principalmente para o mercado exterior,
dependendo deste o estímulo originário ao crescimento das forças
produtivas” (1980, p. 170). Como podemos verificar, assim como Caio
Prado, também ele definiu a economia colonial como produção para o
mercado externo. E, ainda que sob certos aspectos sua interpretação
possa divergir da de Caio Prado, está fundamentada sobre a mesma
base. Também se manteve, na essência, no interior das formulações de
Caio Prado.

57
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Se estes dois historiadores, que consciente e deliberadamente


buscaram superar Caio Prado, não conseguiram romper com a linha
mestra da sua interpretação, uma vez que aceitaram sua caracterização
de economia colonial, o que podemos esperar de outros estudiosos que
se colocaram como seguidores do autor de Formação e se limitaram a
fazer alguns acréscimos à sua interpretação? Também estes não
questionaram seu ponto central. Dessa maneira, apesar das críticas e
dos acréscimos, o fato é que a historiografia se manteve no interior da
interpretação de Caio Prado, ficando circunscrita aos seus limites.
Mesmo que alguns historiadores tenham chamado a atenção
para a importância crucial do vínculo da produção colonial com o
mercado externo na interpretação de Caio Prado, por ser o eixo central
da sua análise, nenhum deles compreendeu que a este vínculo era
inerente a caracterização da produção colonial própria da interpretação
de Caio Prado. Antes, tomaram-no como um aspecto do processo real.
Por conseguinte, nenhum deles conseguiu - ou pretendeu - fazer-lhe
uma crítica de fundo.

II. A CONCEPÇÃO DE COLÔNIA DE CAIO PRADO JÚNIOR

A caracterização de colônia e a interpretação da história do


Brasil de Caio Prado não apenas se encontram vinculadas como são
inseparáveis: formam um todo. Na verdade, uma é conseqüência da
outra. Em decorrência, os historiadores que fizeram dessa
caracterização seu ponto de partida para criticar o peso excessivo dado
por ele ao mercado externo - acrescentando que, ao reagir aos impulsos
externos, a sociedade colonial constituiu um mercado interno de
grandes proporções, formando interesses distintos dos constituídos em
torno no mercado externo - não conseguiram romper com a essência da
sua formulação. Portanto, mais a reafirmaram do que a questionaram.
Não é surpreendente, pois, que a essência dessa interpretação tenha se
mantido inalterada durante todas essas décadas. Aliás, há que se
ressaltar que a força da interpretação de Caio Prado e a sua influência
sobre os historiadores podem ser avaliadas pelo fato de que colonial
tornou-se, entre eles, sinônimo de produção para o mercado externo.
A conseqüência de os historiadores permanecerem no interior
dessa interpretação é que, quando tentaram definir suas relações com
Caio Prado, colocaram-se de modo peculiar. Ao mesmo tempo em que
pretendiam, se não ter rompido com sua interpretação, ao menos ter
inovado alguns dos seus aspectos, consideraram-no como o historiador
que teria promovido uma verdadeira revolução no campo da ciência da

58
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

história no Brasil. Assim, independentemente do fato de serem seus


críticos ou seguidores, definiram-se como aqueles que herdaram suas
formulações e as aprofundaram.
Todavia, mais importante do que constatar que essas críticas
ficaram circunscritas à formulação central de Caio Prado é observar
que nelas tudo ocorre como se a questão fosse uma melhor
compreensão das relações coloniais. Entretanto, não era isto que estava
em jogo para ele. O fundamental da sua interpretação de colônia é o
papel que desempenhou no que poderíamos denominar de teoria da
história do Brasil ou interpretação do Brasil, e, principalmente, verificar as
conseqüências políticas que Caio Prado dela extraiu.
Desse modo, ainda que sua interpretação pareça condizente
com o processo histórico e por isso mesmo tenha ganhado força, a
ponto de vigorar até nossos dias, é preciso lembrar que ela é produto
da história. Sua origem deita raízes nas questões colocadas nas décadas
de 30 e 40 do século XX. Faz parte, pois, das lutas políticas então
travadas. Sob esse aspecto, podemos afirmar, é no posicionamento de
Caio Prado diante desses embates e na sua proposta política que
devemos encontrar os fundamentos que o levaram a interpretar o
passado de tal maneira.
É verdade que o oposto parece ser o correto, isto é, que a
proposta de formação da economia nacional decorre da condição
colonial da economia brasileira. O próprio autor reforça essa impressão
ao afirmar que foi buscar no passado colonial os fundamentos que
explicavam o Brasil contemporâneo. Temos, então, a impressão de que
Caio Prado buscou no passado a chave para interpretar o presente e
propor soluções para o futuro: “É por isso que para compreender o
Brasil contemporâneo precisamos ir tão longe; e subindo até lá, o leitor
não estará se ocupando apenas com devaneios históricos, mas colhendo
dados, e dados indispensáveis para interpretar e compreender o meio
que o cerca na atualidade” (PRADO JR., 1981, p.10). Em conseqüência,
ficamos com a impressão também de que sua proposta política
constitui uma decorrência lógica do fato de o Brasil possuir uma
economia dependente do comércio internacional.
Entretanto, não é a sua interpretação do passado que o leva a
essa conclusão. Ao contrário, a chave para entendermos a
caracterização de colônia de Caio Prado reside na sua proposta política,
expressa na convicção de que a solução para os problemas do Brasil
estaria na constituição do que denomina de economia nacional. Em
outras palavras, é seu posicionamento diante do presente que o leva a
interpretar o passado daquela maneira.

59
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Em geral, a interpretação do passado e a proposta política para


o presente e futuro formam uma unidade. O posicionamento de um
autor diante da história faz com que sua interpretação do passado e sua
atitude política formem um todo. Fizemos essa distinção apenas
porque nosso intento é ressaltar que a interpretação histórica de Caio
Prado a respeito do passado colonial brasileiro está estreitamente
vinculada à idéia de existir no Brasil uma tendência para a constituição
de uma economia nacional. A luta política a ser travada seria então
entre os setores ligados à forma colonial e os partidários da formação
de uma economia nacional16.
Por conseguinte, sob pena de se abandonar a história, a crítica a
esse autor não pode incidir sobre sua interpretação da época colonial
mediante a contraposição de outra interpretação dessa época. A
questão não reside em ele ter priorizado os vínculos com o mercado
externo para explicar a sociedade colonial. Essa prioridade já é
conseqüência da alternativa que ele colocava para o Brasil no presente.
O ponto central da crítica não deve residir na sua interpretação da
nossa história colonial, mas nos motivos que o levaram a ela, ou seja,
compreendê-lo em sua historicidade.
Para fazer-lhe a crítica é necessário indicar a conexão entre sua
afirmação de que a solução para os nossos problemas estaria na
constituição da economia brasileira como economia nacional e sua
interpretação da história do Brasil, em particular sua caracterização da
economia colonial como produção para o mercado externo.
Não podemos, também, transformar Caio Prado em um
historiador do nosso passado colonial, retendo o que julgamos válido
da sua análise da colonização e ampliando-a com novos elementos.
Este tem sido o procedimento dos historiadores que, aceitando sua
interpretação quanto às suas linhas gerais, consideram-na insuficiente.
Ao assim procederem não apenas desvincularam a interpretação do
passado colonial de Caio Prado das suas propostas políticas,
descaracterizando suas formulações, como acabaram por fazer com que
essas últimas viessem a passar de contrabando, uma vez que não a
explicitaram. A aceitação da caracterização de colônia como produção
para o mercado externo implica, de certa maneira, a aceitação dos
parâmetros estabelecidos por Caio Prado para se pensar a história do

16Caio Prado define economia nacional em contraposição a economia colonial. Por esta
última compreende uma produção voltada para o mercado externo. Por nacional,
entende uma produção destinada à satisfação das necessidades da população
brasileira. Por conseguinte, voltada para o mercado interno.

60
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

Brasil e as soluções para o que se costuma designar como seus


problemas. Assim, ao se aceitar essa caracterização, igualmente se
admite suas conseqüências. Dessa maneira, ainda que não se aceite que
a solução para os problemas do Brasil esteja na constituição de uma
economia nacional, autônoma e independente, como pretendia Caio
Prado, deve-se considerar que, com sua caracterização de colônia, ele
estabeleceu um modo de se pensar o Brasil e a sua história. Em suma,
aceitar sua caracterização de colônia implica aceitar seu modo de
pensar o Brasil e a sua história.
Há, pois, uma íntima conexão entre a afirmação de que os
problemas do Brasil seriam solucionados por meio da sua estruturação
nacional e a concepção de colônia como formação social dependente,
que nesse caso é definida em oposição à nação. Dito de outra maneira,
a colônia é a não-nação para Caio Prado e, por nação, ele entende uma
sociedade baseada na economia nacional.
Essa maneira de apresentar o vínculo entre a concepção de
colonização de Caio Prado e a sua formulação de que caminhávamos
para a constituição de uma economia nacional distingue-se, a nosso
ver, das que até então foram feitas. Com efeito, é verdade que, em
diversas oportunidades, alguns autores chamaram a atenção para este
vínculo. No entanto, eles o fizeram a partir da interpretação de Caio
Prado, ou seja, antes como uma adesão a essa formulação do que como
ponto de partida para uma análise dessa interpretação. Em decorrência,
entenderam que a constituição da economia nacional era conseqüência
do fato de o Brasil ter sido uma colônia e ainda possuir uma economia
colonial. Em suma, eles não a entenderam como sua proposta política.
Poder-se-ia argumentar que Caio Prado era um autor marxista.
Por conseguinte, sua interpretação decorreria da aplicação deste
método. Esta é, com efeito, a maneira como Caio Prado costuma ser
considerado. Todavia, ainda que seja comum proceder-se assim, o fato
é que, para este autor, o futuro próximo do Brasil era a organização da
economia nacional. Ele não era partidário nem do capitalismo
ortodoxo, nem do socialismo. Em sua opinião, à época em que publicou
seu livro Formação, o Brasil se encontrava no processo de constituição
de uma economia independente do comércio internacional. Em obras
como Esboço dos fundamentos da teoria econômica e História e
desenvolvimento encontramos afirmações tanto acerca da
impossibilidade de um desenvolvimento capitalista nos moldes do
século XIX como, embora com menos freqüência, afirmações de que o
socialismo era prematuro entre nós. No Esboço dos fundamentos da teoria
econômica, Caio Prado (1957, p. 222) afirma claramente que a etapa de

61
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

desenvolvimento do Brasil era a da economia nacional e não a do


socialismo: “A socialização dos meios de produção, premissa dessa
transformação [a libertação do trabalho e a melhor repartição dos
benefícios econômicos], é certamente prematura nos países
subdesenvolvidos com seu baixo nível industrial e a larga
fragmentação e dispersão das atividades econômicas”.
Desse modo, não se pode identificar as razões de sua forma de
interpretação de nossa história à sua adesão a uma determinada
corrente filosófica. Antes, foi o modo como analisou o Brasil
contemporâneo e como se colocou politicamente diante das suas
questões que o levou não apenas a entender de tal maneira a nossa
história, como ter do marxismo uma compreensão bastante particular.
Para Caio Prado, o Brasil contemporâneo caracterizava-se por uma
economia dependente do mercado externo. Deriva daí sua afirmação
de que o Brasil, na sua essência, continuava um país com estrutura
econômica colonial. Do seu ponto de vista, portanto, a luta política
deveria girar em torno da formação de uma economia nacional e do
rompimento com seu caráter colonial.
Evidentemente, a produção que se estabeleceu no Brasil na
época colonial, por estar fundada no comércio mundial, era uma
produção que pode ser caracterizada como voltada para a exportação,
para o mercado externo, o que não significa que devamos fazer desse
aspecto o eixo da interpretação da história do Brasil. Não vamos tratar
aqui dessa questão para não nos desviarmos de nosso assunto, mas
baseando-nos nos textos e documentos da época da colonização,
podemos inferir que os portugueses vieram para a colônia com o
objetivo de produzir proveito, como então se falava, e não para
abastecer o mercado europeu. Dito de outro modo, produzir
mercadorias com vistas ao mercado europeu era a maneira de alcançar
o objetivo da produção, a obtenção do proveito. Além disso, as noções
de interno e externo, da forma como foram utilizadas por Caio Prado,
estão associadas à idéia de nação, não decorrendo daí que devamos
caracterizar o Brasil contemporâneo (isto é, o Brasil entre os anos 1942 e
1972, período de publicação dos seus livros) como uma economia
dependente. Foi por ter interpretado o Brasil contemporâneo como
uma economia periférica, dependente, que Caio Prado considerou a
produção para o mercado externo como a característica fundamental da
economia colonial. Em resumo, de sua perspectiva, havíamos nos
constituído com determinadas características e, na época
contemporânea, elas continuavam a prevalecer.

62
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

Essa formulação levou alguns historiadores a atribuir


equivocadamente a Caio Prado uma afirmação que não fez, ou seja,
caracterizar a economia colonial como capitalista. Este equívoco deu
ensejo a uma crítica bastante superficial que, paradoxalmente, atribuiu
essa superficialidade a ele. Referimo-nos à afirmação de que a
interpretação da produção colonial como capitalista decorre do
argumento de que ela se encontrava inserida no mercado mundial e
produzia para atender às suas exigências. Assim, o simples fato de a
economia colonial estar inserida no mercado mundial constitui o
argumento daqueles que a interpretaram como uma produção de
natureza capitalista.
Entretanto, ao caracterizar a colônia como produção para o
mercado externo, afirmando que nossa evolução histórica se define
pela constituição da economia nacional, Caio Prado passa ao largo da
idéia de caracterizar a colônia como capitalista. Essa formulação sequer
pertence ao espírito da sua interpretação, ao menos no seu livro
Formação do Brasil Contemporâneo. Os critérios adotados por Caio Prado
encontram-se distantes de qualquer tentativa de classificar a colônia
nesse sentido.
Encontramos, também, aqueles autores que fazem críticas a
Caio Prado por ter valorizado unicamente a relação externa em seu
estudo da colônia, ignorando o papel do mercado interno. A maior
objeção que se pode fazer a esses autores que, desde fins da década de
1970, criticaram Caio Prado é o fato de terem cometido o equívoco que
Adam Smith atribui aos fisiocratas: envergaram a vara em direção
oposta à que ela se encontrava no intuito de restabelecer o equilíbrio.
Assim, diante da afirmação de que o mercado externo ditava a vida da
colônia, os críticos de Caio Prado opuseram a idéia de que essa
estrutura social reagiu diante dos impulsos externos. Assim, como
mostramos, embora considerassem outros aspectos explicativos,
mantiveram a caracterização da produção colonial como produção para
o mercado externo. Não levaram em conta que esta interpretação
pertencia a um conjunto maior: à proposta política de Caio Prado. Não
consideraram que o entendimento de colônia como produção para o
mercado externo tinha o objetivo de alicerçar a afirmação de que o
caminho a ser trilhado pelo Brasil, a fim de solucionar seus problemas
e, portanto, desenvolver-se, era o da constituição da economia nacional.
Assim, a pedra de toque da interpretação de Caio Prado da história do
Brasil é sua concepção de colonização, o sentido da colonização. Tudo
mais deriva dessa formulação inicial.

63
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Os historiadores que criticaram Caio Prado pelo privilégio


conferido ao mercado externo poderiam ser questionados sobre a
conseqüência política da interpretação que deram ao passado colonial.
Ou seja, poderíamos indagá-los sobre o desdobramento político da sua
compreensão da economia colonial não como função do mercado
externo, mas como uma estrutura que tinha vida e interesses próprios.
Sob este aspecto e por estar articulada a uma visão de conjunto
da história do Brasil, consideramos a interpretação de Caio Prado
superior à dos que o sucederam. Isto se deve ao fato de sua história do
Brasil ser antes uma reflexão acerca dessa história do que uma tentativa
de sua reconstituição. Nele, o passado não é analisado em razão do
próprio passado, do desejo por melhor conhecê-lo, mas em razão das
lutas do presente.
É por isso que procuramos mostrar que os historiadores, ao
fazerem uma crítica a Caio Prado e, ao mesmo tempo, aceitarem sua
caracterização de colônia, permaneceram no interior da interpretação
da história caiopradiana. Além do mais, entendemos que não é
produzindo outra interpretação da época colonial que se consegue
romper com a de Caio Prado. Isto somente pode ser alcançado caso se
discuta seu próprio ponto de partida, ou seja, caso se considere que sua
proposta política para o Brasil e o modo como interpretou seu passado
formam uma unidade.
Ao afirmar que a evolução histórica brasileira se caracterizava
pela transição da economia colonial para a nacional, Caio Prado não
estava mostrando o processo histórico real, mas expressando sua
postura política. Foi a formulação ou proposição política de que os
problemas do Brasil encontrariam solução na sua constituição como
nação - tal como ele a entendia - que o levou a afirmar que nossa
evolução caminhava no sentido de a economia deixar de ser colonial
para se tornar nacional. Essa formulação é, e isto deve ser frisado, uma
proposta política, não uma descrição do processo real.
Assim, como podemos verificar, a caracterização da produção
que se estabelece no período colonial como produção voltada para o
mercado externo, fruto do posicionamento do autor, possibilita
desdobramentos políticos. Não podemos desvincular a análise que
Caio Prado faz do passado colonial e a afirmação de que o processo
histórico do Brasil é o da constituição da economia nacional. Dessa
maneira, o estudo do período colonial tem sua razão de ser e ganha
sentido na obra de Caio Prado única e exclusivamente se
considerarmos que concebeu a formação da economia nacional como
resultante da evolução histórica.

64
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

Sob este aspecto, podemos afirmar que, a rigor, Caio Prado não
é um historiador do nosso passado colonial. Se ele analisa a época
colonial, é unicamente para buscar elementos que lhe permitam fazer
uma reflexão sobre o conjunto da nossa história e oferecer uma direção
para o desenvolvimento do Brasil.
Foi por discordar das propostas existentes e dos caminhos que a
história estava tomando que Caio Prado buscou alternativas. Caio
Prado discordava dos que acreditavam que o Brasil poderia se
desenvolver nos moldes clássicos do capitalismo e, em conseqüência,
seguiam os princípios da Economia Política Clássica. Discordava
também dos que propunham a luta direta pelo socialismo. Por
conseguinte, transformá-lo em historiador da Colônia significa amputá-
lo; implica retirar sua substância, qual seja, a de um autor preocupado
com os destinos do país.
Como a interpretação da história do Brasil de Caio Prado é
extremamente expressiva e exerce grande influência sobre os
historiadores, seus estudiosos geralmente se esquecem de que sua
interpretação tem como ponto de partida o modo como se posicionou
frente às questões de sua época. Militante político, autor que refletia
acerca dos destinos do Brasil, interessado em encontrar soluções para
seus problemas, concordemos ou não com ele, o fato é que ele fez da
sua interpretação do passado colonial não apenas um instrumento de
crítica, mas também a diretriz da luta política.
Como salientamos, os estudos sobre sua obra ou não
estabeleceram uma conexão entre sua interpretação da história e sua
proposta política ou o fizeram no interior da própria formulação de
Caio Prado. Como, geralmente, predomina nestes estudos a ligação
entre sua análise e o marxismo, costuma-se explicar a compreensão que
Caio Prado teve de nossa realidade colonial pela sua utilização do método
marxista - apressando-se todos, é verdade, em ressaltar que ele o fez de
maneira criativa, sem ceder a possíveis esquematismos e
mecanicismos17. Notamos anteriormente que Caio Prado
17 Estudiosos que comentaram a obra de Caio Prado costumam lembrar que o livro

Formação do Brasil contemporâneo foi o primeiro de uma tríade que o autor pretendia
escrever sobre a história do Brasil. Ele escreveu apenas o volume dedicado à Colônia.
Os demais volumes seriam dedicados ao Império e à República. Costuma-se mesmo
lamentar que ele não tivesse levado adiante seu projeto. Todavia, uma leitura atenta de
Formação nos leva à conclusão de que Caio Prado não escreveu os dois outros livros
pelo fato de que, além dos problemas de ordem pessoal, eles não eram necessários do
ponto de vista político. A questão que pretendeu colocar já se encontrava exposta em
Formação. Com efeito, apesar de o subtítulo ser “Colônia”, a obra tem como eixo o
encaminhamento das questões políticas da sua época. Aliás, sob esse aspecto, o título

65
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

caracteriza a produção colonial como produção para o mercado externo


precisamente porque defende a idéia de que a solução para os
problemas se encontrava na formação da nação/economia nacional.
Não é, pois, nosso passado colonial - com tudo o que Caio Prado lhe
atribui - que nos impõe a constituição da nação/economia nacional.
Antes, é a proposta de constituição da nação/economia colonial que o
leva a tal concepção de produção colonial. Sua ênfase no vínculo da
produção com o mercado externo somente faz sentido como suporte da
sua proposta política. A afirmação de que nossa evolução histórica se
expressava na constituição do Brasil como nação/economia nacional
faz parte de sua proposta política. Com efeito, Caio Prado atribuiu à
idéia de nação determinadas características que estão em consonância
com sua interpretação de colônia que, por conseguinte, também está
em conformidade com sua concepção de história. Assim, em coerência
com sua caracterização de colônia como produção que atendia a
necessidades que lhe eram estranhas, nação é definida como uma
economia voltada para atender às necessidades da população
brasileira. Em História e desenvolvimento, Caio Prado define os termos
do novo sistema que se estabeleceria por meio da ruptura com o
passado colonial e da conseqüente organização da economia nacional:
“Novo sistema este que tem por base e natureza a produção para o
mercado interno e precipuamente para a satisfação das necessidades
econômicas do país e de sua população” (1972, p. 81).
Nessa obra, contrapondo esse novo sistema à economia colonial,
Caio Prado afirma que, ao se voltar para o mercado exterior, esta
deixava sua população desatendida quanto às suas necessidades: “E
assim o que deveria normalmente constituir o essencial de uma
economia, que é prover ao sustento alimentar dos indivíduos nela
engajados, isto sempre foi no Brasil não apenas subestimado, mas até
mesmo, freqüentemente, quase por inteiro desatendido” (1972, p. 45-
46).

do livro é bastante expressivo. Tratando da formação do Brasil contemporâneo, Caio


Prado buscou, na época colonial, as origens dos problemas que vigoravam em sua
época e que, em sua opinião, somente seriam resolvidos com a constituição da
economia nacional. Essa formulação não apenas se encontra expressa como está
fundamentada no livro. Em suma, um estudo que tratasse do Império e da República
apenas reafirmaria a questão central, ou seja, que o processo histórico tinha como fio
condutor a transformação da economia colonial em economia nacional. Sob esse
aspecto, ainda que trate aparentemente apenas da época colonial, o livro Formação é um
ensaio que abarca o conjunto da história do Brasil.

66
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

Observamos que, ao afirmar que a solução dos problemas do


Brasil viria com a organização da sua economia em bases nacionais,
Caio Prado se opunha a duas propostas para o nosso futuro: a que
entendia que a solução estava no desenvolvimento capitalista e a que
defendia a revolução socialista. Isto fica claro em Esboço dos fundamentos
da teoria econômica onde Caio Prado procurou formular uma nova teoria
econômica, segundo a qual se deveria romper com a teoria econômica
ortodoxa, própria dos países capitalistas desenvolvidos, e levar em
conta as circunstâncias específicas das economias subdesenvolvidas.
Ele julgava imprescindível uma teoria que contemplasse a situação dos
países dependentes, subdesenvolvidos, uma vez que as condições
históricas contemporâneas – economia trustificada - eram distintas das
que haviam possibilitado a países como a Inglaterra e os EUA se
desenvolverem. A seu ver, o rompimento com a dependência do
sistema mundial tornaria possível ao país desenvolver-se
harmonicamente. Dispôs-se, portanto, a fazer um esboço dos
fundamentos sobre os quais a análise econômica deveria se assentar, de
forma a articular melhor a teoria com a prática: “Isso é condição
essencial para a elaboração da teoria econômica, particularmente em
países como o Brasil onde se é obrigado a partir de modelos teóricos
largamente distanciados, em muitos casos, da experiência real e da
ação própria daqueles países” (1957, p. 9).
Sua crítica não se dirigia apenas à Economia Política Clássica
(portanto, ao liberalismo), mas também às propostas fundadas no
marxismo que pretendiam uma luta direta pelo socialismo. No seu
entender, a formação de uma economia nacional afastava-se tanto da
primeira proposta, o capitalismo, quanto da segunda, o socialismo.
Defendendo a idéia de um desenvolvimento nacional, autônomo, ele
divergia dos que pretendiam alcançar o desenvolvimento por meio de
uma maior inserção do país no mercado mundial e, ao mesmo tempo,
dos que propunham uma ruptura revolucionária da ordem
estabelecida.
Nos trabalhos que publicou ao longo da sua trajetória, Caio
Prado formulou e insistiu na idéia de que os problemas brasileiros
provinham da sua origem colonial e que sua solução estava na
superação desse caráter colonial da economia, com a conseqüente
constituição do Brasil como economia nacional. Ressalte-se sua
coerência teórica: nunca abandonou esse núcleo da sua interpretação,
mantendo-o como base para suas considerações acerca de questões
políticas e econômicas. Com efeito, como salientamos, desde a primeira
exposição dessa idéia, em Formação do Brasil Contemporâneo, até seus

67
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

últimos escritos mais significativos, como A revolução brasileira, de 1966,


e História e desenvolvimento, escrita em 1968 e publicada em 1972, essa
formulação foi preservada, com apenas algumas ampliações e
contornos mais definidos.
Devemos ressalvar que, no livro Formação, esse programa não se
encontra explicitado nem formulado de modo sistemático como nas
obras seguintes, mas ele se encontra presente, embora de forma difusa.
Constatamos isto de dois modos. Primeiro, de forma indireta: podemos
inferir da sua leitura que a tarefa política consistia na luta pela
transformação do Brasil em uma nação/economia nacional, com a
conseqüente liquidação do passado colonial. Segundo, de forma direta,
em sua reiterada afirmação de que a evolução brasileira se
caracterizava pela constituição de uma economia nacional.
Já em A revolução brasileira, essa idéia está expressa de modo
explícito, articulado e detalhado. Caio Prado critica os que
caracterizavam a revolução brasileira por meio de esquemas teóricos
preestabelecidos ou importavam modelos para as tarefas políticas a
serem realizadas no Brasil. Em sua opinião, dever-se-ia buscar na
própria história do Brasil sua dinâmica para se encaminhar as
propostas políticas. Essa dinâmica não seria outra que a já descrita em
Formação, ou seja, a passagem da economia colonial para a nacional.
Sob certos aspectos, A revolução é uma espécie de desdobramento e
atualização de Formação.
Ressalte-se, no entanto, que, se Caio Prado entendeu que a
manutenção das estruturas coloniais como a fonte dos nossos
problemas e, por conseguinte, a liquidação dessas estruturas por meio
da concomitante constituição da nação como sua solução, nem por isso
encarou a colonização de uma perspectiva negativa. Em Formação,
analisou o papel decisivo desempenhado pela colonização,
especialmente na constituição dos fundamentos da nacionalidade. Por
meio dela, povoara-se um território semideserto, organizara-se uma
vida humana diferente da que aqui já existia e, em escala menor, da de
Portugal. Enfim, havia-se criado algo de novo no plano das realizações
humanas.
No entender de Caio Prado, justamente por ser nos trópicos,
cujas circunstâncias se lhe impunham, a colonização não poderia ter
assumido outra forma, não havia escolha. Tais circunstâncias,
especialmente a expansão marítima e comercial, não tinham sido,
segundo ele, consideradas pelos historiadores. Assim, quando
comparou a colonização dos trópicos com a da zona temperada, foi
tanto para destacar o que considerava as distinções fundamentais entre

68
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

elas como para mostrar que a diversidade das condições naturais


determinou a atração de colonos com interesses completamente
distintos. Deste modo, as próprias condições naturais teriam feito a
seleção.
Se, em Formação, Caio Prado considerou a colonização de uma
perspectiva positiva, já que havia criado as condições para a
constituição da nação; se entendeu que a colonização, pelas
circunstâncias que a envolveram, tinha necessariamente que se
constituir como produção para o mercado externo, nem por isso
concluiu que essa circunstância a justificava eternamente. Ao contrário,
afirmou que o sistema colonial havia cumprido seu papel e as novas
circunstâncias tornavam sua estrutura insuficiente para atender às
exigências recém-criadas.
Essa interpretação sofreu uma mudança em História e
desenvolvimento, cujo capítulo IV, que trata da colonização do Brasil e,
portanto, dos primórdios e fundamentos da nossa história, é iniciado
com a afirmação de que o açúcar foi, no Brasil, uma mercadoria: “O
açúcar é no Brasil, antes de tudo e mesmo com exclusividade,
mercadoria, objeto de comércio” (1972, p. 38). Nele, Caio Prado
explicou o que entendia por mercadoria: “Produz-se não para consumo
dos produtores, mas para vender (e mesmo vender para fora do país,
para exportar), a fim de apurar na transação um lucro monetário”
(1972, p. 38). Ao explicar uma coisa pelo que deveria ser, ao invés de
defini-la pelo que era, Caio Prado colocou o existente sob uma luz
negativa porque entendia que a produção brasileira deveria estar
voltada para atender às necessidades da população. Sua definição é
mais uma crítica moralista do existente do que uma tentativa de
compreensão da produção colonial.
Em seu modo de ver, o caráter mercantil da produção colonial
foi prematuro. Por isso, condenou o fato de a colonização ter se
baseado em uma agricultura puramente comercial, quando, nos demais
países, era virtualmente desconhecida (1972, p. 38). Quanto a isso, duas
questões merecem ser consideradas.
A primeira é que Caio Prado percebeu que a colônia foi
estabelecida com base em uma forma de produção - a agricultura
comercial - que praticamente inexistia na Europa. Era então um fato
recente, moderno, conforme expressão sua. Além disso, o que é mais
importante, afirmou que, na Europa, ao contrário da colônia, a
agricultura mercantil somente surgiu por meio de sua inserção em uma
economia preexistente. Mas, ao invés de encarar este fato como a
comprovação do avanço histórico representado pela colonização, que

69
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

teria dado início a uma forma da existência humana vinculada


diretamente à troca e à obtenção do proveito, considerou-o de uma
perspectiva negativa, julgando-o prematuro.
A segunda questão é que a produção comercial, principalmente
a que visava o mercado externo, por produzir para o comércio e não
para a subsistência, é tratada como uma atividade externa aos homens.
(1972, p. 38-39).
Com efeito, de tal maneira Caio Prado identificou o que
denomina economia nacional como uma forma que, por atender aos
verdadeiros interesses da população, corresponderia à natureza
humana, que não considerou a produção mercantil, a produção voltada
para o lucro, como uma forma de existência dos homens. Antes,
entendeu-a como contrária à essa mesma existência humana. Não é
casual que tenha afirmado que “(...) a colônia não teve nunca uma
organização econômica que mereça este nome (...)”, constituindo um
organismo meramente produtor (1981, p. 128-129). No seu modo de
ver, a forma de existência dos homens era a fundada na produção
direta da sua subsistência. Ressalte-se, em seus comentários sobre a
experiência das nações européias que desenvolveram relações
capitalistas durante o século XIX, a idéia de que, nestas, a produção, em
última instância, destinava-se a atender às necessidades da sua
população (1972, p. 79).
Deste modo, na sua visão, as relações estabelecidas na colônia,
por visarem o mercado externo, atendiam a necessidades alheias, não
nacionais, nada tinham a ver com os indivíduos que habitavam o
Brasil. Antes, seriam os interesses de classe, de uma minoria, que tinha
imposto uma estrutura social que, em suas palavras, não provia o
sustento alimentar dos indivíduos engajados na produção (1972, p. 48-
49).
A produção mercantil era, pois, uma atividade na qual apenas
uma parcela diminuta da sociedade estava interessada (porque se
enriquecia), enquanto a grande maioria permanecia à margem. Não era
uma forma social por meio da qual os homens produziam sua vida,
mas um negócio: “E assim o que deveria normalmente constituir o
essencial de uma economia, que é prover ao sustento alimentar dos
indivíduos nela engajados, isto sempre foi no Brasil não apenas
subestimado, mas até mesmo, freqüentemente, quase por inteiro
desatendido” (1972, p. 45-46).
Na produção voltada para a venda (e venda para o exterior, fato
que, no seu entender, agravava o problema), em razão das precárias
bases em que se assentou, estava a origem da falta de organicidade

70
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

econômica: “(...) falta de organicidade econômica a que as precárias


bases da colonização condenaram a nascente sociedade brasileira”
(1972, p. 39).
Essa prematura mercantilização das atividades econômicas
fundamentais da colônia teria trazido consigo algumas conseqüências,
quais sejam:

São elas em especial a organização e estrutura específicas


da agricultura brasileira que trarão a marca iniludível do
objetivo essencialmente comercial a que esta agricultura se
destina. Isto desde a determinação da produção escolhida -
que será de um gênero de grande expressão comercial na
conjuntura internacional da época, como foi o caso do
açúcar de cana, sem atenção a nenhuma outra
consideração, - até o tipo e as dimensões das unidades
produtoras, bem como as relações de produção e trabalho
que nelas se estabelecem. Estas unidades serão a
exploração em larga escala, de iniciativa do empresário que
realiza um negócio e objetiva o lucro, nela invertendo os
recursos financeiros (capital) de que dispõe; e na qual, sob
a direção do mesmo empresário que comanda sem
contraste e dispõe tudo em função única do seu objetivo
comercial, conjugam-se grande propriedade fundiária
monocultural e a numerosa força de trabalho servil (1972,
p. 39).

Assim, se, para alguns autores, o problema do Brasil estava no


atraso decorrente do seu capitalismo tardio, para Caio Prado, estava na
precocidade da mercantilização das atividades produtivas.
A própria concepção de mercado externo de Caio Prado é
bastante peculiar e integrada ao seu modo de interpretar a história do
Brasil. Conceito largamente utilizado pelos economistas do século
XVIII, quando estes lhe atribuíam um conteúdo crítico, o mercado
externo não diferia na essência do interno. De fato, quando os
fisiocratas reivindicaram a liberdade de produção e comércio para a
agricultura na França, isto é, reivindicaram liberdade para exportar os
produtos agrícolas, não trataram o mercado externo como algo distinto
do interno. O intuito dos fisiocratas era eliminar os obstáculos à
expansão da agricultura capitalista. Ao reivindicar a liberdade de
exportação, sua intenção ia além do mero desejo de alargar o mercado
interno. Reivindicavam a liberdade de comércio, sobretudo porque a
proibição da exportação era parte inseparável de um conjunto de

71
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

medidas que restringia a aplicação de capital no campo. As restrições e


proibições à produção e ao comércio agrícolas impediam o pleno
funcionamento das leis da produção burguesa: a oferta de produtos
excedia à procura; resultando na superprodução e na conseqüente
queda dos preços. Com isso, o valor não cobria os custos de produção.
Abrir o mercado externo significava, desse modo, ampliar o comércio,
condição vital para a agricultura. Assim, para os fisiocratas, mercado
externo e mercado interno não se opunham. Antes, ambos diziam
respeito à vida dos homens.
Não é o que acontece com a interpretação de Caio Prado, na
qual o mercado externo é entendido como sinônimo de estranho, alheio,
como se não dissesse respeito à vida dos indivíduos que habitavam a
Colônia. Ele concebe a produção colonial como alienada, por produzir
para atender a necessidades estranhas às da população que habitava e
produzia na Colônia.
É somente no interior dessa concepção que Caio Prado pode
fazer a oposição produção colonial (mercado externo) e produção
nacional (mercado interno).
A proposta para solução dos problemas do Brasil por meio da
organização da economia nacional não surge com Caio Prado, mas
data, no Brasil, pelo menos dos fins do século XIX e início do XX. Ainda
que possamos recuar mais, basta lembrar um autor da virada do
século: Inocêncio Serzedelo Correia (1980), um dos teóricos mais
conseqüentes da formação da economia nacional. Partidário do
protecionismo para a indústria nacional, autor de O problema econômico
no Brasil, publicado em 1903, Serzedelo interpretou nosso passado
colonial de maneira a justificar a intervenção do Estado na economia
para criar as condições para o desenvolvimento da indústria nacional.
Para se ter uma idéia da ausência dessas condições na situação de
liberdade de produção e comércio, basta lembrar que, segundo este
autor, importavam-se até mesmo fósforos. A defasagem do Brasil
diante das nações industrializadas tinha chegado a tal grau e as
condições reinantes eram tão adversas à indústria nacional que
somente uma decidida intervenção do Estado poderia garantir a
existência de indústrias.
A interpretação da história do Brasil de Caio Prado está, a nosso
ver, intimamente associada às tendências históricas que se desenhavam
desde fins do século XIX e ganharam corpo no XX. Poderíamos
englobar essas tendências sob uma única denominação: a luta pela
indústria nacional ou, o que significa a mesma coisa, pelo
protecionismo. Em face desses autores, a novidade de Caio Prado

72
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

parece residir no fato de ele ser um autor de esquerda, declaradamente


marxista, que adotou uma formulação até então predominantemente
burguesa.
Assim como é possível rastrear nos autores anteriores a Caio
Prado formulações que nos permitem, em alguns aspectos, aproximá-lo
dos críticos do sistema liberal, o mesmo pode ser feito em relação aos
partidários do protecionismo que lhe eram contemporâneos, como, por
exemplo, Roberto C. Simonsen (1969). A semelhança entre as
formulações desses autores mostra-nos que isto não é destituído de
propósito, em que pese eles se terem colocado em campos ideológicos
distintos.
Tendo publicado grande parte dos seus escritos nas décadas de
30 e 40, mesma época em que Caio Prado formulou sua interpretação
da história do Brasil, Simonsen, de modo semelhante, viu em nosso
passado colonial não apenas a origem dos problemas brasileiros como
sua perpetuação: “É fruto também desse sistema econômico, a adoção
pelos grandes Estados, de definidas políticas coloniais, cuja
interferência sofremos no passado e que ainda hoje atuam de modo
inequívoco em nossa evolução, devido, principalmente, à natureza
tropical da maioria de nossas produções” (SIMONSEN, 1969, p. 31).
Evidentemente, faz parte dessa formulação afirmar que era necessário
romper com essa situação herdada do passado.
A própria caracterização de economia colonial de Simonsen é
fundamentada no protecionismo e no nacionalismo. Segundo ele, as
principais atividades econômicas na Colônia estavam entregues aos
elementos alienígenas. A produção, por sua vez, visava mais os
interesses metropolitanos do que os nacionais.

São característicos da economia colonial: a direção das


principais atividades econômicas nas mãos dos elementos
alienígenas; a posse, por estes elementos, dos principais
capitais aplicados na produção local; a orientação dessa
produção, visando mais aos interesses da Metrópole do
que ao bem estar dos colonos; subordinação, quanto à
legislação, administração, transporte e distribuição, a
elementos estranhos aos que se entregam diretamente ao
trabalho produtivo local (SIMONSEN, 1969, p. 390).

Como podemos observar, o fato de esse autor considerar que a


produção da colônia está voltada mais para atender aos interesses da
Metrópole do que o bem-estar dos colonos, um dos aspectos mais

73
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

importantes de sua definição de economia colonial, aproxima-a


bastante da caracterização de colônia de Caio Prado, que a definiu
como produção voltada para atender a necessidades alheias à sua
população.
Podemos, então, afirmar mais uma vez que o estudioso do
pensamento de Caio Prado, mais do que relacioná-lo ao marxismo,
deve buscar os vínculos entre suas formulações e as dos partidários do
protecionismo. Ressalte-se, todavia, que, ao apontar a proximidade
entre as formulações de Caio Prado e as dos protecionistas, não
estamos simplesmente traçando um sinal de igualdade entre elas.
Evidentemente, um estudo aprofundado de Caio Prado implica
compreender o que singulariza este autor no panorama historiográfico
e político nacional. No entanto, para os nossos propósitos, é
fundamental apontar os possíveis nexos entre Caio Prado e os
partidários do nacionalismo e do protecionismo no Brasil.
Por fim, uma observação a ser feita. Ainda que Caio Prado
tenha assinalado os primórdios do século XIX como marco decisivo das
transformações que deram origem ao processo de organização nacional
da economia, não verificamos nessa época a existência de autores que
defendessem a organização nacional da economia e o fortalecimento do
mercado interno como condição do desenvolvimento. Antes, o que
prevalecia era a defesa da integração completa da economia brasileira
ao mercado mundial, de forma que a liberdade de produção e de
comércio apresentava-se como condição para o progresso e
enriquecimento da nação. A integração, sem restrições de qualquer
natureza, e não a ruptura dos laços comerciais com o exterior, é que era
apresentada como o caminho para o desenvolvimento do país. Nesse
momento, portanto, os autores combateram o sistema colonial e o
sistema mercantil, mas não defenderam a constituição de uma
economia nacional18.
Na verdade, eles contrapunham ao sistema colonial, que tolhia a
liberdade de produção e comércio, não um sistema baseado no
intervencionismo, que colocava obstáculos ao comércio mundial, mas
um sistema completamente oposto, fundado no livre comércio.
Combateram, assim, as propostas de intervenção do Estado, no caso, da

18Um dos poucos autores de que temos notícia que, nos primórdios do século XIX,
postulava a adoção de medidas protecionistas para a indústria era João Severiano
Maciel da Costa, que afirmava que a prosperidade e grandeza do Brasil somente
poderiam ser alcançadas por meio do desenvolvimento da indústria nacional.
Analisamos esse autor na nossa tese de doutorado (MENDES, 1996).

74
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

Coroa portuguesa, segundo as quais, para proteger a indústria


nacional, seriam concedidos monopólios e privilégios aos que
estabelecessem fábricas no Brasil. Dentre estes se destacam João
Rodrigues de Brito e José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu.
Somente a partir dos anos 40 do século XIX é que verificamos o
surgimento de uma ideologia de caráter protecionista que estabelecia
uma relação necessária entre autonomia política e autonomia
econômica e que identificava essa última com a industrialização,
conforme observou Wanderley Guilherme dos Santos (1978). Foi
somente mais tarde, entre os partidários do protecionismo, como
Serzedelo, que ganhou força a tese de que havíamos errado por não
termos estabelecido medidas protecionistas por ocasião da ruptura dos
laços que nos atavam à nação portuguesa.

CONCLUSÃO

Centramos este estudo de Caio Prado na sua caracterização de


economia colonial como produção para o mercado externo por
entendermos ser ela a pedra de toque da sua interpretação da história do
Brasil e, conseqüentemente, da sua proposta política. Tal escolha não
foi, por conseguinte, arbitrária. Essa caracterização de colônia é
fundamental na obra de Caio Prado por causa da sua contrapartida, a
formulação de que a ruptura da condição colonial do Brasil somente
poderia ocorrer por meio do estabelecimento de uma economia de
caráter nacional. Dessa maneira, o modo como Caio Prado concebeu a
colonização somente pode ser compreendido se associado à afirmação
de que a solução para os problemas do Brasil residia na organização
nacional da economia.
Como, a seu ver, a evolução da história do Brasil tinha como fio
condutor a transformação da economia colonial em nacional, o sentido da
colonização somente ganha significado se complementado com tal
formulação.
A maneira como apresentamos o vínculo entre a concepção de
colonização de Caio Prado e sua formulação de que caminhávamos
para a constituição de uma economia nacional nunca tinha sido feita
até então. É verdade que, em várias oportunidades, estudiosos
chamaram a atenção para este vínculo. Todavia, fizeram-no no interior
da concepção de Caio Prado, isto é, como adesão às linhas gerais de sua
interpretação, sem a base de uma análise crítica. Em virtude disto,
entenderam que a constituição da economia nacional era conseqüência
lógica e natural do fato de o Brasil ter sido uma colônia. Dessa maneira,

75
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

mais reforçaram este vínculo do que tentaram compreender a


interpretação de Caio Prado em sua dimensão histórica.
Assim, o sentido da colonização - formulação que somente pode
ser compreendida se considerada com base na proposta de Caio Prado
de constituição da economia nacional - acabou assumindo foros de
verdade, ou seja, uma interpretação da colonização motivada por uma
proposta política acabou erigida em descrição do processo real.
Além disso, é importante salientar que na historiografia
posterior a Caio Prado este nexo entre sentido da colonização e proposta
política, sempre presente em sua obra, desaparece. Disso resulta que
essa historiografia tornou-se, implicitamente, partidária de uma
formulação que tem suas raízes nas lutas políticas dos anos 30 e 40 do
nosso século. Assim, julgando estar tratando do passado, essa
historiografia cuida, na verdade, do presente.

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76
CAIO PRADO JÚNIOR E A HISTÓRIA DO BRASIL

FRAGOSO, José Luiz R. Modelos explicativos da economia escravista


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SOUZA, Laura de Mello e. O escravismo brasileiro nas redes do poder:
comentário de quatro trabalhos recentes sobre a escravidão. In: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro: v. 2, n. 3, 1989.

77
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

INTRODUÇÃO

A Independência desempenha papel fundamental na


interpretação da história do Brasil de Caio Prado Jr. É verdade que ele
não manteve a mesma interpretação ao longo da sua trajetória
intelectual e política. Ao contrário, modificou-a de tal maneira que se
podem identificar duas interpretações distintas. Essa modificação, no
entanto, não se restringiu à interpretação da Independência, mas
abrangeu, primordialmente, a própria concepção de história de Caio
Prado.
Suas duas maneiras de interpretar a Independência foram
expostas em dois dos seus principais livros: Evolução política do Brasil,
de 1933, sua obra de estréia, e Formação do Brasil contemporâneo, de 1942,
considerado pela grande maioria dos historiadores o seu livro mais
importante. Em ambos, mas de maneira distinta em cada um, a
Independência constitui um momento fundamental, poderíamos
mesmo afirmar, estratégico, para a compreensão da história do Brasil.
Assim, a posição ocupada pela Independência na sua interpretação não
deriva do que esse acontecimento possa representar no processo
histórico brasileiro, mas do papel que o autor lhe atribui para a
compreensão da história brasileira.19
É fato que ele abordou esse tema nos demais livros. É o caso de
História econômica do Brasil, cuja primeira edição em português data de
1945; de A Revolução Brasileira, seu polêmico livro de 1966; e História e
desenvolvimento, escrito em 1968, como tese de livre-docência, e

19 Já havíamos escrito isso quando tomamos conhecimento que Faoro apontara


anteriormente para uma diferença importante entre Evolução e Formação, observando
que se notava “(...) um desvio da tese da colonização burguesa, expandindo-se nas
classes sociais. As classes, agora, já não ocupam o primeiro lugar: sobre elas paira, na
exploração colonial, o rei e sua corte.” Adiante, observa: “Essa mudança de perspectiva
passou despercebida. O antagonismo social, decorrente de uma empresa do rei, não
será necessariamente uma luta de classes.” (1993, p. 23). Ainda que não estejamos
tratando da mesma questão e nossas conclusões sejam completamente diferentes, vale a
pena destacar que Faoro chamou a atenção para a existência de uma diferença entre as
duas obras.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

publicado em 1972. Entretanto, em nenhum deles a Independência


desempenha papel estratégico, como nos dois primeiros. Com efeito,
em seu livro de estréia, Caio Prado apresentou uma nova maneira de
interpretar a história do Brasil, na qual a Independência ocupa lugar
central. No livro seguinte, formulou uma nova maneira de conceber o
processo histórico brasileiro. Neste, igualmente, se bem que de modo
distinto, a Independência desempenha papel decisivo na interpretação
da história do Brasil.
A Independência ocupa papel estratégico nos seus dois
primeiros livros porque neles é que o autor formulou, pela primeira
vez, suas interpretações da história do Brasil. Em conseqüência, viu-se
compelido a fazer uma reflexão sobre os seus fundamentos, o que o
levou, inclusive, a dar a esses textos a forma de ensaio. Seus livros
seguintes, embora mantenham as linhas gerais da interpretação exposta
no texto Formação, não tiveram e não precisavam ter, necessariamente,
esse caráter. São, antes, aplicações práticas das formulações gerais
contidas no livro Formação, particularmente em História econômica e
História e desenvolvimento. Para constatarmos isso, é suficiente retomar o
conceito de “sentido da colonização”. Amplamente discutido em
Formação, assumindo, inclusive, caráter teórico, por ser considerado
elemento explicativo da história do Brasil, este conceito praticamente
não foi utilizado em sua História econômica, ainda que esteja presente
como linha diretriz. É que, tendo discutido esse conceito em Formação,
Caio Prado passou a aplicá-lo, sem maiores considerações a seu
respeito. Assim, embora a interpretação da Independência em História
econômica não difira, sob certos aspectos, daquela de Formação, ela
perde em força política e metodológica20. Por essa razão, não nos
ocuparemos dos livros posteriores, a não ser circunstancialmente, à
medida que nos auxiliem a melhor compreender a maneira como Caio
Prado concebeu a Independência no livro Formação.

20 A rigor, as novidades mais salientes no modo como Caio Prado analisa a


Independência no seu livro História econômica são duas. Uma, a incorporação do que
denomina de forças exteriores e gerais, ou seja, a Revolução Industrial, na explicação
da Independência. Entretanto, mesmo assim, ele se detém mais nas forças interiores do
processo. A outra, a utilização de algumas formulações acerca do processo de
emancipação que já havia feito no seu livro Evolução.

80
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

1. A COMPARAÇÃO ENTRE EVOLUÇÃO POLÍTICA DO BRASIL E


FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Para se compreender as diferentes maneiras de Caio Prado


interpretar a Independência em Evolução e Formação é preciso levar em
consideração que, na origem dessa modificação, encontra-se uma
alteração na própria concepção de história. Não estamos, por
conseguinte, diante de uma simples mudança de interpretação no
interior de uma concepção da história do Brasil, mas de uma modificação
significativa no próprio modo de conceber a história, que provocou uma
alteração tanto na maneira de interpretar a Independência como na posição
desse acontecimento no interior da interpretação. Em conseqüência, para
examinar essas duas interpretações da Independência, não podemos
isolar o tema, destacando-o do modo como seu autor compreende a
própria história do Brasil21.
Reside nesse ponto o principal problema da análise comparativa
que Costa (2005, p. 76) faz sobre a Independência nos livros Evolução e
Formação. Em verdade, ela tem o mérito de chamar a atenção para a
possibilidade das diferentes leituras da Independência nas duas obras.
Entretanto, não aprofunda o exame em virtude de pressupor que se
trata de obras com idêntica concepção de história22. Ou seja, parte da
premissa de que se trata de um autor marxista, cuja produção
historiográfica é homogênea, sem soluções de continuidade. Por essa
razão, não percebe que as diferenças entre as duas obras têm origem
nas suas distintas concepções de história. Ressalte-se que nisso a autora
não está sozinha: este é o modo característico de a historiografia
examiná-lo.
Assinala a autora que Caio Prado buscava uma compreensão
integradora das dimensões políticas e econômicas do passado histórico
mediante uma incorporação criativa do pensamento marxista –
observação que também não a distingue dos demais estudiosos da sua

21 Alguns estudiosos da obra de Caio Prado chamaram a atenção para a existência de

diferenças significativas entre Evolução e Formação. Com efeito, caminhando em direção


oposta à maioria dos estudiosos, Martinez (1998) Iumatti (2007) e Hanna (2003)
constataram a existência de diferenças substanciais entre os dois livros, atribuindo-as,
fundamentalmente, ao seu contato com a historiografia francesa após a publicação de
Evolução. Por meio desse contato, o marxismo de Caio Prado teria se mesclado com as
idéias advindas do grupo dos Annales. Igualmente, Hanna (2003) fez um estudo
comparativo entre Evolução e Formação.
22 Evidentemente, por trás dessa alteração, há uma mudança na posição política de

Caio Prado. Entretanto, aqui não é o momento de tratar dessa questão.

81
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

obra. Afirma ainda que, apesar de terem uma mesma matriz teórica, os
dois livros apresentam interpretações distintas do processo de
emancipação do Brasil, fato observável até mesmo nos títulos
(evolução/formação). Prossegue: “Essa diferença é matriz de leituras
variadas que, partindo das matrizes caiopradianas, oferecem
interpretações divergentes para o processo de emancipação política”
(COSTA, 2005, p. 76).
Para Costa, em Evolução, Caio Prado enfatizou a idéia de
descontinuidade: a Independência é caracterizada como uma Revolução.
De seu ponto de vista, a idéia de descontinuidade advém da “(...) sua
visão de conjunto da economia colonial e de seus traços definidores”
(2005, p. 76). Já em Formação, “(...) sua obra mais significativa e
influente (...)”, Caio Prado destaca, “(...) muito mais do que no livro
anterior, [n]a idéia de continuidade entre a Colônia e o Brasil
Independente e, até mesmo, o Brasil seu contemporâneo” (2005, p. 79).
Ainda de acordo com a autora, no primeiro livro, Caio Prado
ressaltou a ruptura, precisamente por atribuir à luta de classes um
caráter de centralidade. Assim, sem ignorar outros conflitos, ele
colocou no centro do processo a oposição de interesses entre os
proprietários de terra, de um lado, e a Coroa e os comerciantes, de
outro. Em razão disso, a Independência foi caracterizada como uma
revolução, que se desdobrou em um longo processo, abarcando o
período compreendido entre 1808 e 1831 e, em algumas passagens, até
mesmo 1850, data que marca o momento em que as forças
conservadoras consolidam seu poder, derrotando as rebeliões
populares. Para a autora, ao ir além de 1822, Caio Prado, ao lado do
conflito principal, chamou a atenção para a existência das lutas
populares e para o caráter conservador da revolução da Independência.
Em Formação, ainda acompanhando Costa, Caio Prado assinalou
a continuidade entre Colônia e o Brasil independente. A idéia que
percorre a interpretação é a presentificação do passado, ou seja, “(...) na
Colônia se encontra a formação do Brasil contemporâneo, o estudo do
período colonial sendo a chave para a sua compreensão” (2005, p. 79).
Ela acrescenta que, se bem que em Formação a análise se encerre antes
da emancipação, Caio Prado deixou, em cores fortes, nos dois capítulos
finais, o esboço de outra visão da Independência. Segundo a autora,
“(...) depois de analisar a economia e a administração da sociedade
colonial, ele disseca aquela formação social, revelando seu caráter
invertebrado, sua incapacidade de geração de um pensamento
genuinamente transformador e de uma ação política orgânica” (2005, p.
79).

82
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

Todavia, ainda que tenha chamado a atenção para a existência


de duas interpretações distintas, Costa afirma que a idéia de construção
política, já presente na primeira obra, foi aprofundada na segunda.
Traça, dessa forma, uma linha de continuidade entre Evolução e
Formação que é retomada na conclusão do tópico, onde afirma que uma
interpretação complementa a outra. Retira da primeira a idéia de que,
no plano político, houve uma descontinuidade, ao passo que da
segunda, a idéia de que, no “(...) plano das estruturas profundas (...)”,
ocorreu uma continuidade (2005, p. 81).
Entretanto, para se compreender as diferentes maneiras de Caio
Prado interpretar a Independência do Brasil é preciso examinar
separadamente o modo como a concebeu em cada uma das duas obras
e sem pressupor que, por se tratar de um mesmo autor, elas nascem de
uma única concepção histórica, procurar vinculá-la à forma como
apresentou a própria história do Brasil. Somente após ter feito este
estudo em separado é que se pode fazer uma comparação entre as
maneiras como concebeu a Independência e verificar que estamos
diante de duas leituras distintas da Independência. Consideremos, por
conseguinte, o modo como Caio Prado interpretou a Independência em
cada um dos livros e o papel que lhe destinou em cada uma dessas
interpretações, tendo em vista sua interpretação da história do Brasil.

2. A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL EM EVOLUÇÃO POLÍTICA DO


BRASIL.

Na introdução, Caio Prado (1933, p. 7) destaca que Evolução é


um ensaio e não uma história do Brasil, cuja intenção era somente
fornecer uma síntese da evolução política brasileira. Em virtude disso,
procurou dar somente a linha mestra em torno da qual se agrupariam
os fatos da história brasileira, excluindo o que não fosse absolutamente
necessário para a sua compreensão. Explica que, por ser um ensaio,
organizou o material de modo a oferecer, do seu ponto de vista, a
melhor maneira para se compreender o processo histórico brasileiro.
Concedeu à Independência papel de grande destaque porque ela
constitui uma espécie de ponto de convergência dos processos da
época colonial e, ao mesmo tempo, ponto de difusão de processos que
se manifestaram ao longo do período imperial, particularmente até
meados do século XIX. Em última análise, a Independência é o ponto
para o qual confluem as lutas políticas da época colonial, e,
simultaneamente, ponto de partida dos embates políticos do período
imperial, inicialmente entre os grandes proprietários de terra e os

83
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

setores populares da sociedade e, posteriormente, no interior da


própria classe dominante.
Nessa obra, Caio Prado analisa o processo histórico brasileiro
desde o início da colonização até o fim do Império, detendo-se na
proclamação da República. Apesar de abarcar um período bastante
extenso, escreveu uma pequena obra, já que o considerou somente em
suas linhas gerais. A rigor, pode-se dizer que Caio Prado dividiu a
história do Brasil em dois grandes núcleos, cada um dos quais com dois
momentos distintos.
No primeiro núcleo, analisou o processo de constituição da
sociedade colonial no seu aspecto econômico, social e político, inclusive
nessa ordem, indo até a Independência. Quanto ao primeiro momento,
que abarca desde o início da colonização até a expulsão dos holandeses,
assinala que, nos primórdios da colonização, existia uma concordância
de interesses entre os proprietários de terra e a Coroa portuguesa. Após
a expulsão dos holandeses, que delimita o início do segundo momento,
em virtude de uma série de transformações, esses interesses se
distinguiram e se tornaram opostos, originando um conflito que
culminou com a Independência.
O segundo núcleo é composto pelos desdobramentos políticos
da Independência, abrangendo sua eclosão até a proclamação da
República. O primeiro momento, que compreende os anos da
emancipação até meados do século XIX, é o mais significativo. Nessa
parte, basicamente, Caio Prado analisou as lutas políticas que
eclodiram depois da Independência, em virtude, justamente, da
maneira como ela se processou. O resultado dessas lutas foi a vitória
dos grandes proprietários de terra em meados do século. Foi nesse
momento de consolidação do poder dos proprietários rurais, que esta
classe, nas palavras de Caio Prado, entrou no usufruto de um poder
incontestado até a abolição da escravatura e a proclamação da
República.
O segundo momento, que compreende os meados do século até
o ano da proclamação da República, é composto pelos processos que
levaram à desagregação do Império. De acordo com Caio Prado, na
segunda metade do século XIX, o Brasil passou a integrar cada vez
mais uma forma produtiva superior, a capitalista, fato que, por seu
turno, colocou em questão as instituições imperiais, culminando com a
proclamação da República e ao mesmo tempo com o início da
derrocada dos grandes proprietários rurais. Durante esse período, as
lutas políticas ocorreram, principalmente, no seio da classe dominante.

84
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

Percebe-se, pois, que Caio Prado, em Evolução, acompanhou a


trajetória da classe dos grandes proprietários de terra, desde a sua
formação, com a colonização, passando pelas alterações do seu status
durante a época colonial e pela sua ascensão ao poder até a época em
que seu mundo começou a se desagregar. A história do Brasil foi
examinada, portanto, em correlação com a trajetória dessa classe e com
as lutas políticas em que esteve envolvida. No interior desse processo, a
Independência constituiu um marco decisivo. Além disso, a forma
como se processou explicaria seus desdobramentos sociais e políticos.
Examinemos, pois, de maneira mais detalhada, o livro Evolução,
iniciando pelo modo como Caio Prado explicou o nascimento da classe
dos proprietários rurais por meio da colonização e acompanhando o
processo histórico até a Independência.

2.1. A COLONIZAÇÃO DO BRASIL

Ao estudar a colonização do Brasil, Caio Prado analisou como a


classe dos grandes proprietários rurais se constituiu por meio da
distribuição das sesmarias, exercendo um domínio social e político até
meados do século XVII. Deixaremos de lado suas considerações acerca
dos motivos que levaram à colonização, bem como sobre os
mecanismos por meio dos quais ela se realizou, ou seja, as capitanias
hereditárias. É suficiente observar que ele iniciou o exame do processo
de colonização pela constituição da propriedade fundiária e chegou até
as formas políticas da colônia, passando pela economia e a sociedade.
Fica patente, assim, que seu estudo foi guiado pelo método marxista, o
que o levou a buscar nas bases materiais a explicação da sociedade e da
política coloniais.
Em virtude disso, Caio Prado observou que o caráter mais
profundo da colonização reside justamente na forma como a terra foi
distribuída. Os colonos que receberam terras pertenciam à categoria
dos que dispunham de recursos próprios. Isso porque a simples
propriedade da terra, independente dos meios de aproveitá-las, nada
significava. Decorre disso a necessidade de recursos. Criticou os
historiadores que se dedicaram à catalogação da extensão da
propriedade, porque isso nada dizia acerca do caráter da economia
colonial. Segundo a sua maneira de ver, esta se caracterizava pela
grande exploração agrícola. As características da propriedade na
colônia seriam, assim, a grande propriedade e a grande exploração
rural.

85
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Passando para a análise da sociedade colonial brasileira, Caio


Prado observou que ela era o reflexo fiel da sua base material, a
economia agrária, ou seja, da grande propriedade e da grande
exploração rural. Assim como a grande exploração absorvia a terra, o
senhor rural monopolizava a riqueza e, com ela, seus atributos
naturais, o prestígio e o domínio. Examinou, então, a composição e as
condições das classes sociais, considerando a estrutura da sociedade
colonial. Deteve-se, então, em cada uma das classes que compunham a
sociedade: grandes proprietários, escravos, africanos ou indígenas,
pequenos proprietários e agregados.
Chamou a atenção para o fato de a estrutura social da colônia,
no seu primeiro século e meio de existência, ser extremamente simples,
reduzindo-se, fundamentalmente, a duas classes: de um lado, os
grandes proprietários rurais, a classe abastada dos senhores de
engenho e fazendas; de outro, a massa da população espúria dos
trabalhadores do campo, escravos e semilivres. A simplicidade da
infra-estrutura econômica, em que a terra, a única força produtiva, era
absorvida pela grande exploração agrícola, condicionava, por
conseguinte, a estrutura social: de um lado, a classe dos proprietários;
de outro, a grande massa explorada e oprimida, que trabalha e produz.
Fundada nessas condições econômicas e sociais, a ordem
política não poderia deixar de ser, necessariamente, outra coisa senão o
domínio dos grandes proprietários rurais. Esse poder era superior, na
prática, ao da própria Coroa portuguesa, mas, na medida em que seus
interesses coincidiam perfeitamente com os das classes dominantes da
colônia, a metrópole aceitava essa situação (1933, p. 50). Assim, eram os
grandes proprietários que detinham o poder político, o qual era
exercido por meio das Câmaras municipais. Até meados do século
XVII, o estado colonial era um instrumento de classe dos proprietários.
O poder político da colônia era o dos grandes proprietários rurais.
A primeira etapa da colonização, de conquista do território e
organização dos primeiros estabelecimentos, atividades que o Brasil
poderia comportar enquanto permanecesse na condição de colônia, se
encerrou quando os interesses começaram a se diferenciar por força da
sua própria e natural evolução. Essa diferenciação se afirmou com toda
a nitidez na segunda metade do séc. XVII (1933, p. 57), quando se
verificaram duas mudanças significativas que explicariam a
Independência do Brasil.
A primeira foi o desenvolvimento econômico alcançado pelo
Brasil e que encontrava no regime de colônia um obstáculo. Como
assinalou Caio Prado, o progresso econômico do Brasil deparou-se com

86
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

o embargo da opressão colonial: “Revela-se então a contradição


fundamental que minava o regimen: interesses nacionaes e portugueses
dispares.” Essa oposição de interesses era acentuada por circunstâncias
especiais, como a profunda decadência do Reino, recém-saído do jugo
espanhol (1933, p. 58). Com efeito, tendo perdido o comércio com as
Índias e estando o comércio com a África bastante reduzido, restou a
Portugal o Brasil, cuja importância crescia de maneira desmedida.
Constituindo a única base colonial para a atividade mercantil do Reino,
o Brasil passou receber o peso de todo o ônus do parasitismo
português. Como observou o autor, ao mesmo tempo em que “(...) o
Brasil atinge um grau de evolução económica que começava a fazer-lhe
sentir a estreiteza do regimen de colonia em que vivia, a metrópole
torna taes condições ainda mais pesadas.” Para melhor enquadrar a
colônia, Portugal ampliou as restrições comerciais (1933, p. 60).
Essas restrições não constituíam nenhuma novidade, observa o
autor. Elas vinham de longe e faziam mesmo parte do estatuto de
colônia, sendo pouco sentidas, seja pelo pequeno desenvolvimento da
colônia, seja porque não eram, de fato, excessivamente rigorosas.
Todavia, a partir da segunda metade do século XVII, os rigores da
política restritiva se acentuaram de maneira sensível, assumindo o seu
pleno caráter de parasitismo colonial (1933, p. 61). Todo o comércio da
colônia passou a ser feito pela metrópole, por meio do sistema de
companhias privilegiadas. Entretanto, as medidas da metrópole para
proteger seus interesses à custa do Brasil não pararam aí: “O circulo de
ferro da opressão colonial vae-se apertando em todo o correr do séc.
XVII, e não passava um ano em que se não invente uma nova forma de
sugar a colonia, tolhendo-lhe por todos os meios o livre
desenvolvimento” (1933, p. 64-65).
Paralelamente a esse processo de agravamento das condições do
Brasil e de aumento do ônus da opressão colonial, a estrutura social
brasileira se transformou. De acordo com Caio Prado, nesse processo
de transformação encontrar-se-iam as demais contradições internas que
minaram o regime e que paulatinamente o conduziram à dissolução
final (1933, p. 66).
Com o desenvolvimento da colônia, a estrutura social brasileira
se tornou mais complexa, emergindo novas formas econômicas e
sociais. Ao lado da economia agrícola, até então dominante,
desenvolveu-se a economia mobiliária: o comércio e o crédito. Em
decorrência, surgiu uma rica burguesia de negociantes, que passou a
disputar o poder com a nobreza dos proprietários rurais, até então a única
classe abastada e, portanto, com prestígio na colônia (1933, p. 67).

87
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Essa burguesia era composta quase toda por naturais do Reino,


que, após a expulsão dos holandeses e em virtude da depressão
econômica da metrópole, tinham afluído à colônia em grande número.
Essa classe tomou conta do comércio da colônia, situação que teria
perdurado mesmo durante o Império. Esses comerciantes passaram a
mover uma guerra sem tréguas aos brasileiros, excluindo-os dessas
atividades e tornando impossível o seu progresso (1933, p. 69).
Pelos seus interesses, essa classe ligava-se estreitamente ao
regime de colônia do Brasil, prosperando à sombra da opressiva política
comercial da metrópole. Constituía, por isso, uma adversária das demais
classes da colônia. Em decorrência, a situação dos grandes
proprietários agravava-se cada vez mais. Foram se alinhando, frente a
frente, diferenciados pela evolução econômica e social da colônia, de
um lado, os brasileiros, especialmente os grandes proprietários rurais,
que sofriam de forma mais direta o ônus da opressão colonial, e, de
outro, a metrópole e os comerciantes portugueses a ela ligados (1933, p.
72).
Essas alterações na economia fizeram-se acompanhar por
mudanças no sistema político da colônia. Não sem lutas, a autoridade
política se deslocou, saindo das mãos dos proprietários rurais para as
da burguesia comercial. De início, essa burguesia disputou os cargos da
administração municipal dos quais, até então, os proprietários rurais
tinham o monopólio. Ao mesmo tempo, a autoridade das câmaras
declinou com o cerceamento das suas atribuições e com a proeminência
que os governadores e demais funcionários reais adquiriram. O poder
das câmaras foi substituído pelo da metrópole (1933, p. 74).
A partir de então, com o desenvolvimento econômico da colônia
e a conseqüente emergência da classe dos comerciantes, alterou-se
radicalmente a situação dos grandes proprietários rurais que, aos
poucos, foram desalojados da condição de classe econômica, social e
politicamente dominante pelos comerciantes e pela Coroa. Em
conseqüência disso, surgiram dois conflitos: um, interno, entre essas
classes, e, outro, externo, entre os proprietários rurais e a Coroa. Ambos
abriram caminho para o processo de emancipação da colônia.
Caio Prado, ao resumir esse processo, salientou que foi na
oposição dos interesses entre os grandes proprietários de terra e a
metrópole, bem como entre aqueles e a burguesia comercial que residia
a explicação da emancipação do Brasil. Assinale-se que, mantendo-se
no interior de uma análise marxista, Caio Prado faz derivar das
mudanças operadas na economia as transformações verificadas na

88
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

estrutura social e política e, por conseguinte, nas relações entre as


classes sociais23.
Mais adiante, retomando a questão da emancipação do Brasil,
Caio Prado expôs a concepção de história que o norteou e explicitou
que a emancipação resultaria do desenvolvimento econômico do país, o
qual, sendo incompatível com o regime de colônia que o peava, o
pressionaria até o que o último cedesse. Sintetizando o que havia dito,
observa:

Em outras palavras, é a superestrutura politica do Brasil


colonia que, já não correspondendo ao estado das forças
produtivas e á infra-estrutura económica do paiz, se
rompe, para dar lugar a outras formas mais adequadas ás
novas condições económicas e capazes de conter a sua
evolução. A repercussão desse fato no terreno político – a
revolução da independencia – não é mais que o termo final
do processo de diferenciação de interesses nacionaes,
ligados ao desenvolvimento económico do paiz, e por isso
mesmo distintos dos da metrópole e contrarios a eles (1933,
p. 96).

É perceptível, portanto, que, em sua busca por compreender o


processo de emancipação do Brasil, Caio Prado levou em conta os dois
aspectos considerados fundamentais pela doutrina que abraçou e que

23 O trecho é bastante sugestivo para deixar de citá-lo: “A nossa evolução politica segue

portanto passo a passo a transformação económica que se opéra a partir de meiados do


séc. XVII. Esta transformação, que se define pela maior penetração económica da
metrópole, repercute no terreno político pelo desaparecimento gradual da nossa
autonomia local do primeiro seculo e meio da colonização. Desloca-se a autoridade das
mãos dos proprietarios territoriaes, a antiga classe dominante, para as da Coroa
portuguesa. E é nesta que ela se vae consolidar. Despojam-se as Camaras
sucessivamente, como vimos, de todas as suas prerrogativas, e a elas se substitue a
onipotencia dos governadores. No correr do séc. XVIII só existe na colonia uma
autoridade: a da metrópole portuguesa.
Mas rompera-se o equilibrio politico do regime colonial. Minando-lhe surdamente a
base, e manifestando-se por vezes na superficie em atritos e choques violentos,
trabalhavam forças contrarias, que dia a dia mais lhe comprometiam a estabilidade. O
choque destas forças, interesses nacionaes e lusitanos, no terreno económico;
autonomia local, representada pela auto-administração dos colonos, e sujeição
administrativa, representada pelo poder soberano da Coroa portuguesa, no terreno
politico; o choque destas forças contrarias assinala a contradição fundamental entre o
desenvolvimento do paiz e o acanhado quadro do regimen de colonia. Dele vae
resultar a nossa emancipação” (PRADO JR., 1933, p. 77).

89
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

procurou aplicar no estudo da história brasileira: que as


transformações se verificam por meio de mudanças em sua base
material e que as mesmas ocorrem por meio da luta de classes. Com
base no primeiro, ele mostrou que a emancipação do Brasil foi o
resultado de seu desenvolvimento econômico, que havia se tornado
incompatível com as estruturas que mantinham o Brasil na condição de
colônia. Com base no segundo, ele afirmou que as transformações
verificadas no conjunto do império português tinham criado um
conflito de interesses entre os proprietários de terra no Brasil e a Coroa
portuguesa e as demais classes a ela associadas, fundamentalmente a
classe dos comerciantes, considerando, assim, que o desenvolvimento
histórico se processou por meio do conflito de classes.
Não é difícil constatar que o Prefácio à Contribuição à crítica da
economia política, texto clássico no qual Marx expõe de maneira sintética
sua concepção de história, constitui o fio condutor da análise de Caio
Prado. Com efeito, ele utilizou todos os procedimentos metodológicos
indicados nesse texto: partiu da estrutura econômica, fazendo derivar
dela, primeiro, as relações sociais e, em seguida, as políticas. De acordo
com essa concepção, as transformações verificadas na sociedade
decorrem das transformações econômicas, que alteram as condições de
existência, fazendo emergir novas classes. Estas, por seu turno, colocam
em xeque tanto as classes até então dominantes como as antigas
condições de existência. Abre-se com isso um período de intensa luta
de classes que somente se resolve com a derrota de uma delas.
Não nos interessa discutir a validade do método marxista na
análise da história do Brasil, nem se o mesmo foi corretamente aplicado
pelo autor. Interessa por ora a constatação de que Caio Prado se valeu
do método marxista em sua forma clássica, como se encontra exposto
no texto de Marx que acabamos de mencionar.
Após explicar o processo da Independência em seu aspecto
geral, Caio Prado buscou ainda abordá-lo em suas especificidades.
Estas, em seu entendimento, além de possibilitar uma compreensão
melhor da história do Brasil, explicariam a natureza dos
desdobramentos políticos que se lhe sucederam. Consideremos, agora,
a sua análise das especificidades da emancipação brasileira.

2.2. AS PECULIARIDADES DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL EM


EVOLUÇÃO POLÍTICA DO BRASIL.

Para analisar as peculiaridades da Independência do Brasil,


Caio Prado comparou-a à das demais colônias latino-americanas. De

90
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

seu ponto de vista, a transferência da Corte portuguesa, em 1808, deu à


emancipação brasileira uma característica que a singularizou no
processo de independência das colônias ibero-americanas. Enquanto a
primeira foi paradoxalmente realizada pelo próprio governo
metropolitano, que, premido por circunstâncias ocasionais, lançou as
bases da autonomia brasileira, a das demais colônias latino-americanas
teve um caráter violento e se resolveu nos campos de batalha (1933, p.
81). Desta forma, em sua opinião, a data da Independência do Brasil
deveria ser 1808, ao invés de 1822. É verdade que ele entendeu que a
emancipação ocorreria de qualquer forma, mesmo sem a presença do
Regente. Entretanto, a condição de sede provisória da monarquia
constituiu a causa última e imediata da Independência do Brasil (Idem,
p. 84). Assim, o fato de Caio Prado assinalar 1808 como a data mais
significativa no processo da emancipação brasileira teve conseqüências
interpretativas e políticas.
Ao contrário da historiografia brasileira denominada
tradicional, Caio Prado não considerou de maneira positiva o fato de a
Independência brasileira ter sido alcançada sem lutas. Contrapondo-se
aos historiadores que exaltavam o caráter pacífico da história brasileira,
observou que, se as circunstâncias que singularizaram a emancipação
do Brasil o pouparam de uma luta de proporções consideráveis, não o
livraram, porém, de sérias dificuldades de outra natureza. Segundo ele,
a vinda da família real substituiu, talvez sem vantagem alguma, o processo
final da luta armada que foi o das demais colônias americanas.
Entre as dificuldades, estaria a reação do chamado “partido
português”, ligado aos interesses do regime de colônia. Na medida em
que não havia sido completamente derrotado – já que a Independência
tinha sido feita sem a participação popular, assumindo, pelo contrário,
a forma de uma transação -, esse partido tentou reconquistar o poder,
acobertado pelo monarca brasileiro. Este fato teria marcado o período
compreendido entre a Independência e a abdicação, em 1831.
Além disso, o caráter de “arranjo político” permitiu que a
Independência se fizesse por meio de uma simples transferência
pacífica de poderes da Metrópole para o novo governo. Em
conseqüência, a luta política foi travada nos bastidores, em um trabalho
intenso para afastar o monarca da influência das cortes portuguesas e
aproximá-lo dos autonomistas. A emancipação, por conseguinte, não
contou com a participação direta dos movimentos populares, de forma
que o poder foi absorvido completamente pelas classes superiores da
ex-colônia. Como destacou Caio Prado, “(...) a independencia brasileira
é fruto mais de uma classe do que da nação tomada em conjunto”

91
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

(1933, p. 45). Em suma, o caráter pacífico da Independência, simples


arranjo político, com a exclusão da participação popular, parece ser a
característica que Caio Prado procurou mais destacar, porque, no seu
entender, conferiu à emancipação um caráter peculiar e nefasto.
Não acompanharemos sua análise do processo de emancipação
do Brasil, nem a de seus desdobramentos políticos. Saliente-se apenas
que, na análise de todas as etapas do processo histórico da primeira
metade do século XIX, Caio Prado procurou entender a história por
meio do conflito entre as classes. Assim, após analisar as medidas
tomadas pelo Príncipe regente por ocasião da sua chegada ao Brasil, ele
examinou também as repercussões da Revolução liberal do Porto na
colônia. Afirmou, então, que, sem levar em conta a situação criada
pelas liberdades concedidas ao Brasil pelo soberano português, não
seria possível compreender a revolução do Porto e sua repercussão no
Brasil.
De acordo com Caio Prado, tendo chegado à colônia a notícia da
revolução liberal, duas correntes se formaram, cada uma interpretando
o movimento segundo os seus interesses. “De um lado, o comércio
português e outros elementos interessados no regimen de colonia
enxergaram logo seu verdadeiro conteúdo, caracteristicamente
reacionario e antibrasileiro”. De outro lado, compuseram-se “(...) os
nacionaes, [que] viram nele apenas a roupagem externa, e o
interpretaram como um passo adeante na realização do fim ultimo que
almejavam: a consolidação das condições vigentes pela entrega
definitiva do paiz a ele proprio” (1933, p. 88). Assim, enquanto o
primeiro grupo havia compreendido o real significado da revolução
liberal, o segundo ficou preso à sua aparência. No entanto, segundo
Caio Prado, não faltou quem, a exemplo do Conselheiro Vasconcelos
Drumond, tivesse visto as coisas como eram de fato.
Iludidos pelas aparências da revolução, “(...) que se enfeitava
toda de constitucionalismos e liberalismos (...)”, os brasileiros
prestaram “(...) em geral mão forte aos portugueses na sua política de
aproximação das Côrtes de Lisboa (...)”, o que, em última instância,
significava uma “(...) marcha para a recolonização.” Assim, numa
curiosa inversão de papéis, “(...) era o soberano absoluto, ao contrário
das Côrtes constitucionaes, quem encarnava o liberalismo brasileiro”
(1933, p. 88-89).
Para Caio Prado, a agitação que se alastrou no Brasil em
conseqüência da revolução portuguesa tomou uma feição francamente
reacionária. Sustentaram-na, colocando-se na linha de frente, os reinóis,
começando pelo comércio português, “(...) sua verdadeira alma.” O

92
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

caráter genuinamente lusitano da agitação constitucional de 1821 foi-se


revelando nos menores detalhes. As Juntas Governativas, que saíam
destes movimentos e substituíam os antigos governadores, eram, em
sua maioria, compostas por portugueses. Seu primeiro gesto foi romper
com o governo do Rio, transformando-se em dóceis instrumentos das
Cortes, que logo deram início à política de recolonização do Brasil.
Esse episódio serviu para Caio Prado fazer observações de
ordem geral:

Custou caro aos brasileiros esta ingenua colaboração


prestada á obra reacionaria da revolução portuguesa. Da
Baía e do Pará que entregaram póde-se dizer, de mãos
atadas aos portugueses, só meses depois de proclamada a
independencia e apóz lutas renhidas, foi possivel desaloja-
los. É a taes conseqüencias que póde levar a pouca visão
dos que se guiam unicamente pela aparencia ideologica
dos fatos, sem lhes procurarem o sentido real (1933, p. 90).

Afirmou Caio Prado que a análise não poderia, por conseguinte,


ficar circunscrita aos aspectos ideológicos dos fatos24, mas deveria
buscar seu sentido real, ou seja, buscar esse sentido no próprio
processo histórico, na economia e na organização social e política, tal
como ele fizera em Evolução.
Em virtude desse equívoco, a revolução da Independência teve,
de acordo com Caio Prado, “(...) que lutar contra circunstancias por ela
mesma creadas. Errando seu alvo, entregou grande parte do paiz ao
seu natural adversário: as Côrtes de Lisboa.” (1933, p. 90) Livrou o
Brasil desse impasse, de onde somente saiu após longas lutas, de um
lado, a própria debilidade das Cortes, incapazes de levar adiante a
reação que apenas haviam delineado nas leis, e, de outro, a intervenção
oportuna daqueles que, “(...) divisando no principe herdeiro D. Pedro
um habil instrumento de suas reivindicações, souberam dele se utilizar,
atirando-o, talvez sem que ele mesmo a principio o sentisse, na luta da
independência” (1933, p. 90).
No tópico 13, “A trajetória reacionária de 1837 a 1849”, Caio
Prado explicitou uma e, talvez, a mais importante de suas intenções ao
analisar o período compreendido entre a Independência e 1849. Este,
aliás, parece ser um dos principais propósitos de seu livro: assinalar a

24Tratar-se-ia de uma referência àqueles que estavam iludidos com a Revolução de


1930?

93
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

trajetória conservadora da nossa história. Parece ter sido esse o


propósito principal que o motivou a escolher a forma do ensaio, ao
invés da história, para elaborar o livro25. Com efeito, no ensaio, o autor
desenvolve uma tese e destaca somente os elementos que possam
comprová-la26. Caio Prado caracterizou esse período da seguinte forma:

De 1837 a 1849 percorre a politica brasileira a mais


caracterizada trajetória reacionaria da sua história. O
periodo anterior fora de hesitações, de reagrupamento de
forças dispersas pela abertura do novo ciclo histórico que
assinala a abdicação do primeiro Imperador: a
consolidação definitiva da independencia nacional. Depois
disto, parece que a reação toma consciencia de seu papel, e
abandonando as hesitações do passado, entra
definitivamente no rumo natural de sua evolução (1933, p.
156).

Ele afirmou que, apesar da concentração reacionária ocorrida no


ano de 1836, a intranqüilidade do Império ainda persistia, observando-
se a explosão de agitações por todo o país. Na busca da estabilidade
política, a reação propôs a Maioridade. Com a deposição dos Farrapos,
em 1845, e a derrota de Pernambuco, em 1848, o Império finalmente se
estabilizou com a Monarquia burguesa. Comenta Caio Prado:
“Esmagada a revolução, subjugada a onda democrática, a grande
burguesia nacional entra no gozo indisputado do paiz” (1933, p. 158). A
partir desse momento, a história brasileira, segundo ele, entrou em
uma nova etapa, a segunda metade do século XIX, assim caracterizada:

25 Como já notamos, o próprio Caio Prado caracteriza seu livro Evolução como um

ensaio, observando não ter tempo nem material suficientes para empreender uma
história. Entretanto, para além desses obstáculos, acreditamos que Caio Prado valeu-se
da forma ensaística por motivos práticos. Em princípio, por meio da história, seu autor
propõe-se descrever determinado período da história, abarcando todos os processos
que possibilitam sua explicação. No ensaio, o autor tem mais liberdade, ressaltando
apenas os processos que lhe permitam provar uma tese. Assim, partindo de uma tese, o
autor do ensaio dedica-se apenas a comprová-la por meio da história, selecionando
apenas aquilo que contribui para o esclarecimento do que pretende provar.
26 Acreditamos que a intenção de Caio Prado com Evolução é destacar três aspectos da

história do Brasil que se encontram intimamente entrelaçados: a história como luta de


classes, a exclusão da participação popular em um momento decisivo da evolução
histórica brasileira e, em decorrência disso, o caráter conservador do processo histórico
brasileiro.

94
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

As massas populares, mantidas numa sujeição completa


por leis e instituições opressivas, passam para um segundo
plano, substituindo pela passividade sua intensa vida
politica dos anos anteriores. Pôde assim a grande
burguesia indigena entregar-se ao plácido usufruto de toda
a nação. Daí por deante as lutas são no seu seio. É dentro
dela que vamos encontrar os germens da discordia, e será a
luta destas tendencias opostas de grupos burgueses que
constituirá a história politica da segunda metade do seculo
passado (1933, p. 159-160).

Segundo Caio Prado, em meio às vicissitudes da Independência,


a classe dos grandes proprietários rurais, que ele denominou de grande
burguesia indígena, alcançou o poder. A partir de então, sua análise
encaminhou-se para o processo que conduziu à desagregação do
Império e, com isso, das instituições herdadas da Colônia, no caso, a
monarquia e o trabalho escravo.
Marcaram o início da desagregação a abolição do tráfico
negreiro e a sua conseqüência imediata, a liberação dos capitais
aplicados nessa atividade. Com isso, no começo da segunda metade do
século XIX, os primeiros passos foram dados no sentido da
modernização do país. A estrutura colonial, desimpedida dos
obstáculos que se antepunham ao seu progresso, iniciou sua completa
remodelação (1933, p. 169-170). Advertiu o autor que, se a abolição não
foi o elemento decisivo (lembrou o fato de que o Brasil, participando do
sistema capitalista, inevitavelmente teria que se adequar às novas
circunstâncias), ao menos foi o passo inicial e indispensável para o
surto de progresso do país. Abriu-se, então, um período de franca
prosperidade que se refletiu de forma distinta nos principais setores da
sociedade brasileira.
Para os promotores diretos desse progresso, essa foi a
oportunidade de rápida ascensão. Constituída pelas classes ligadas ao
comércio e às finanças, ou seja, pelos detentores do capital móvel, a ala
progressista da burguesia nacional, ávida de reformas, desenvolveu-se
com as transformações do país. No entanto, para a maior parte da
riqueza territorial, para os grandes proprietários rurais, cuja economia
assentava no trabalho servil, abalada que foi pela supressão do tráfico,
o período foi de decadência. Abriu-se uma época de luta entre os dois
setores, na qual a questão servil encontrava-se no centro. Aos poucos, o
elemento progressista se desenvolveu durante o Império, com a
conseqüente desagregação do elemento conservador. De acordo com

95
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Caio Prado: “A história do segundo reinado nos fornece em toda sua


evolução as mais evidentes provas de que as instituições imperiais
representavam um passado incompatível com o progresso do paiz, e
porisso tinham de ser, mais dia, menos dia, por ele varridas” (1933, p.
181). Assim, fundado justamente em instituições que emperravam a
marcha do progresso, o Império desagregou-se aos poucos até que, nas
palavras de Caio Prado, uma simples parada militar foi o suficiente
para lhe arrancar o último suspiro.
Verificamos, desse modo, que Caio Prado concedeu um caráter
central à Independência em sua interpretação da história do Brasil. De
um lado, ela constitui o ponto para o qual tendiam os conflitos
ocorridos durante a época colonial, especialmente a partir da segunda
metade do século XVII. De outro, em virtude da maneira como ela se
processou, as camadas populares emergiram no cenário político, mas
depois foram afastadas. Isto imprimiria um caráter conservador ao
Império. Aliás, o caráter conservador do processo histórico brasileiro, a
partir de então, seria explicado justamente pela maneira como ocorreu
a Independência. Assim, além de um papel central, ela constitui um
momento chave para o entendimento da história brasileira.
Além de considerá-la um acontecimento central, Caio Prado
também possui uma visão da Independência que poderíamos
classificar como positiva. Ele a valoriza como um momento
significativo no processo de desenvolvimento do Brasil, quando se
resolve o conflito entre sua expansão econômica e o regime de colônia,
que tolhia o seu progresso. Considerando-a como o momento de
ruptura com a condição colonial, não sem razão a caracteriza como
uma revolução. Assinale-se que Caio Prado caracteriza a
Independência como uma revolução não apenas por extinguir o regime
colonial, mas também por ensejar a ascensão de uma nova classe ao
poder, ou seja, os grandes proprietários de terra.

2.3. UMA SUGESTIVA MUDANÇA NA SEGUNDA EDIÇÃO DE


EVOLUÇÃO.

Não são poucos os estudiosos que destacaram Caio Prado como


o primeiro autor a examinar a história do Brasil por meio da luta de
classes. Sob esse aspecto, de um modo geral, a historiografia segue a
apreciação de Carlos Guilherme Mota (1977, p. 28), para quem, “(...)
com a interpretação de Caio Prado Júnior, as classes sociais emergem
pela primeira vez nos horizontes de explicação da realidade social
brasileira - enquanto categoria analítica”.

96
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

Entretanto, se, quanto ao seu primeiro livro, Evolução,


evidentemente com ressalvas, essa afirmação pode ser considerada
correta, o mesmo não ocorre em relação ao segundo, Formação. Neste,
as categorias classe social e, principalmente, luta de classe foram
abandonadas. Mesmo que ele tenha mencionado o termo classes
sociais, isso não significa que ele o tenha utilizado como núcleo ou fio
condutor da sua análise, como no primeiro livro.
Quanto às ressalvas a respeito do aparecimento desta questão
no livro Evolução, nossas observações são as seguintes. Quando Caio
Prado explica a história do Brasil por meio da luta de classes, considera
como tal apenas a travada entre os homens livres. Assim, num primeiro
momento, na época de constituição da economia colonial, a luta teria
ocorrido somente entre os grandes e os pequenos proprietários.
Posteriormente, com as transformações ocorridas na economia colonial,
a luta teria se verificado apenas entre os grandes proprietários de terra
e os comerciantes portugueses vinculados ao regime colonial. Vencidos
estes, com a Independência e seus desdobramentos políticos até 1831,
abrir-se-ia a época do conflito entre os grandes proprietários rurais e as
camadas populares em torno do caráter da sociedade que deveria
nascer da emancipação. Derrotados os setores radicais das camadas
populares, consolidado o poder dos grandes proprietários rurais, a luta
que cobriria a segunda metade do século XIX transcorreria,
fundamentalmente, no próprio seio da camada dominante. Os escravos
não aparecem nessa história a não ser em poucas menções, e, mesmo
assim, em plano secundário. Mais: os escravos e suas lutas
praticamente não formam sequer o pano de fundo das lutas entre os
homens livres. De fato, com exceção da Balaiada, que merece a
observação de que os balaios poderiam ligar seu movimento ao dos
escravos (PRADO JR., 1933, p. 143-144), estes não aparecem.
Entretanto, levando-se em conta essas ressalvas, o fato é que
Caio Prado elaborou uma interpretação da história do Brasil, cujo
fulcro é o conflito entre as classes sociais, o qual, porém, como
assinalamos, foi abandonado pelo autor nos seus livros posteriores.
Podemos, inclusive, ao comparar as duas primeiras edições do livro
Evolução, a de 1933 e de 1947, ter uma idéia da mudança em sua
perspectiva histórica. As diferenças entre as duas edições são poucas, é
verdade, mas bastante expressivas. Evidentemente, não era possível
fazer modificações de vulto, já que isso implicaria escrever uma nova
obra, mas vale lembrar que, em 1947, Caio Prado já havia elaborado
sua nova interpretação da colonização, valendo-se do conceito de
sentido da colonização já existente na publicação de Formação, em 1942.

97
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Assim, em 1947, na segunda edição de Evolução, mesmo mantendo


praticamente o mesmo texto da primeira, as poucas modificações
verificadas já revelam sua nova maneira de interpretar a história do
Brasil e, por conseguinte, possibilitam, por meio da comparação, captar
a novidade introduzida em Formação.
Entre a primeira e a segunda edição, foram feitas, basicamente,
duas modificações que merecem consideração. A primeira, pequena,
mas expressiva, foi feita no subtítulo. Caio Prado substituiu a
caracterização de sua concepção da história: de materialista, ela passou a
dialética. Consideramo-la expressiva porque o conceito materialista
vincula-se a uma visão ortodoxa, ao passo que dialética a ameniza,
tornando-a mais flexível. Nas edições posteriores, Caio Prado retirou
de vez o subtítulo, sendo aplaudido, por exemplo, por Iglesias (1982, p.
22), para quem Caio Prado “fez bem em tirar o rótulo”.
A segunda mudança é ainda mais significativa. Ela ocorreu nos
parágrafos finais do sétimo tópico, intitulado “D. João VI no Brasil”.
Fundamentalmente, Caio Prado suprimiu quatro parágrafos da
primeira edição, acrescentando outros seis.
Na edição de 1933, os parágrafos suprimidos tratavam da
situação criada no Brasil pela política de D. João VI, ao decretar,
praticamente, o fim do regime colonial, e da repercussão da revolução
do Porto na colônia.
Comparando-se o texto de 1933 com o de 1947, nota-se o
abandono da divisão da sociedade entre reinóis, que pretendiam a
recolonização, e os brasileiros, que almejavam a libertação do país. Caio
Prado afirmou que, para se compreender a revolução constitucional e
sua repercussão no Brasil, era preciso considerar outro aspecto. Com o
desencadeamento da insurreição, contradições econômicas e sociais da
sociedade colonial vieram à tona e explodiram em grandes agitações.
Dentre as contradições, em primeiro lugar, estariam “(...) as profundas
diferenças sociais que separavam entre si as classes e setores sociais,
relegando a massa da população para um ínfimo padrão de vida
material e desprezível estatuto moral” (PRADO JR., 1947, p. 91). A
última parte da frase, grifada por nós, é uma expressão que Caio Prado
passou a utilizar após a publicação de Formação. Em sua nova maneira
de conceber a sociedade, a nação assumiu o primeiro plano e os
diferentes setores da sociedade, de maneira indistinta, foram
considerados sob uma mesma rubrica. A rigor, a divisão da sociedade
em classes claramente definidas desapareceu de sua análise e, em seu
lugar, ele arrolou outras contradições, nas quais reverbera o abandono

98
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

da linha mestra que presidiu a interpretação da história do Brasil em


Evolução.
Em sua análise anterior, havia apenas a contradição entre os
brasileiros, isto é, os colonos, e a Coroa portuguesa e seus aliados
naturais, os comerciantes. Além disso, dividia a história colonial em
dois momentos. No primeiro, haveria uma concordância de interesses
entre os colonos e a Coroa portuguesa. A partir da segunda metade do
século XVII, com a expulsão dos holandeses e com as transformações
ocorridas na colônia e no reino, os interesses dos colonos e da Coroa se
separaram. Depois disso, os colonos, desalojados da sua condição de
classe social e politicamente dominante pelos comerciantes reinóis,
entraram em conflito com a Coroa portuguesa, desencadeando o
processo que culminou na independência do Brasil.
Abandonando a linha mestra definida por um conflito e
arrolando outras contradições, Caio Prado, na verdade, renunciou à
idéia de uma linha mestra explicativa do processo histórico.
Substituindo-a por um conjunto de contradições, diluiu a idéia de um
fio condutor. Uma das contradições seria de natureza étnica,
abrangendo os negros e os índios. “É a grande maioria da população
que é aí atingida, e que se ergue contra uma organização social que
além do efeito moral, resulta para ela na exclusão de quase tudo quanto
de melhor oferece a existência na colônia” (1947, p. 91). Outra
contradição derivava da condição em que os escravos se encontravam.
Salientou que a normal e aparente quietação dos escravos não deveria
ser entendida como conformismo total. “É uma revolta constante que
lavra surdamente entre eles, e que não se manifesta mais porque a
comprime todo o pêso e força organizada da ordem estabelecida”
(1947, p. 91).
A massa popular tomou, então, assento na história:

São tôdas estas contradições e oposições que deflagram


quando a colônia é abalada pela revolução constitucional.
O país entra em ebulição, e são grandes movimentos de
massa que provocam ou acompanham a derrubada dos
gôvernos locais das diferentes capitanias, a sua substituição
por Juntas eleitas e a implantação do regime constitucional
no Brasil (1947, p. 92).

Também a interpretação da recepção da revolução


constitucionalista se modificou na segunda edição. Enquanto na
primeira apareceram apenas dois segmentos, na segunda eram três.

99
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Inicialmente, ele observou que, em conseqüência da revolução


portuguesa, alastrou-se pelo Brasil uma agitação que, em virtude da
heterogeneidade de interesses e reivindicações que se manifestavam,
assumiu uma feição complexa e, em muitos casos, contraditória. Eis
como arrolou as forças presentes no processo:

Encontramos nela, como vimos, fôrças reacionárias que não


pensam senão no retôrno do país ao seu passado colonial e
de segregamento econômico e comercial. Ao lado destas
fôrças alinham-se paradoxalmente outras, em particular as
classes superiores da colônia que esperavam pelo contrário
consolidar, com a revolução e o estabelecimento de um
regime constitucional, as vantagens, liberdades e
autonomia adquiridas pelo Brasil nos anteriores anos de
govêrno quasi próprio e que tanto os favorecera.
Encontramos finalmente as referidas fôrças populares, as
camadas oprimidas da população brasileira que
enxergavam na Constituição que lhes era oferecida
perspectivas de libertação econômica e social (1947, p. 92-
93).

Prosseguindo, Caio Prado salientou ser do entrechoque das


forças presentes na colônia, cada uma delas procurando fazer
prevalecer as suas reivindicações, que resultaram os diferentes fatos
que constituíram o agitado período que se estendeu posteriormente a
1821. Sem entrar em pormenores, apresentou apenas a resultante geral
deste entrechoque. Assinalou, então, que, no desenvolvimento da
revolução constitucional no Brasil, o que ganhou a supremacia foi o
segundo grupo de forças, o então chamado “partido brasileiro”, que
representava as classes superiores da colônia, os grandes proprietários
rurais e seus aliados. As demais forças não se encontravam em
condições de fazer prevalecer os seus interesses.
No que diz respeito à reação colonizadora, o seu tempo já havia
passado. Com efeito, embora contando com o apoio da Metrópole e das
Cortes portuguesas, ela foi vencida. Explicou: “(...) não era mais
possível deter o curso dos acontecimentos e fazer o Brasil retrogradar
na marcha da história.” Apontou, então, a razão disso: “A isto se
opunha o conjunto do país cuja própria subsistência, como vimos no
capítulo anterior, se tornára incompatível com os estreitos quadros do
antigo e já superado regime de colônia” (1947, p. 93-94).
Quanto às camadas populares, o seu tempo não havia chegado.
Segundo Caio Prado, “(...) elas não se encontravam polìticamente

100
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

maduras para fazerem prevalecer suas reivindicações; nem as


condições objetivas do Brasil eram ainda favoráveis para sua libertação
econômica e social” (Idem, p. 94). Disto resultavam as características
que o movimento popular tinha assumido:

Daí aliás a descontinuidade e falta de rumo seguro nos


seus movimentos, que apesar da amplitude que por vêzes
atingem, não chegam nunca a propor reformas e soluções
compatíveis com as condições do país. As relações de
classe existentes e contra que se insurgiam ainda se
encontravam sòlidamente alicerçadas na estrutura
econômica fundamental do Brasil, que descrevemos nos
primeiros capítulos dêste livro e que não sòmente não se
alterara, como prosperava; as relações de classe dela
derivadas não se podiam porisso modificar sensìvelmente.
E assim a luta popular contra elas desencadeada não as
atingirá, e a revolução não irá além daquilo para que o
Brasil estava preparado, isto é, a libertação do jugo colonial
e a emancipação política (1947, p. 94-95).

Seu comentário quanto à luta popular é bastante sugestivo:


“Reformas mais profundas teriam ainda que esperar outros tempos e
outro momento mais favorável e avançado da evolução histórica do
país” (1947, p. 95).
Neste trecho, analisando a participação popular na época da
Independência, Caio Prado parece projetar seu comentário para um
outro momento da história. Evidentemente, como ele é sucinto, dá
margem a uma série de interpretações. Não temos, efetivamente, como
saber o que o autor pretendia com essa passagem nem como foi
interpretada pelos leitores por ocasião da sua publicação. Entretanto,
levando em conta o conjunto da obra de Caio Prado, julgamos ser
possível assinalar alguns dos aspectos nela presentes.
Em primeiro lugar, podemos supor que Caio Prado,
comparando os dois momentos históricos, o da Independência e o
contemporâneo, esteja sugerindo que, quando escreveu a obra, as
camadas populares estariam em condições apenas de alcançar o que
denomina de libertação econômica e social. Com efeito, nos livros
Formação e História econômica, especialmente no segundo, fica claro que,
para o autor, a libertação da nação somente poderia ser alcançada por
meio da constituição da economia nacional. Talvez por isso observe
que as reformas mais profundas buscadas por ocasião da
independência pelas camadas populares teriam que esperar outros

101
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

tempos e outro momento mais favorável e avançado da evolução


histórica. Assim, talvez esteja sugerindo que sua época fosse a da
libertação econômica e social.
Em segundo, é possível que ele esteja destacando a existência de
condicionantes na história, motivo pelo qual consideraria que
determinadas reivindicações ou aspirações seriam prematuras. Neste
caso, ele estaria pretendendo assinalar que, do mesmo modo que, à
época da Independência, esbarrando nas condições adversas de então,
as camadas populares haviam fracassado na tentativa de fazer
prevalecer seus interesses, também por ocasião da publicação de suas
obras, a reivindicação do socialismo era prematura, por conseguinte,
igualmente fadada ao fracasso. Assim como a revolução da
independência teria alcançado apenas aquilo para o qual o Brasil
estaria preparado, ou seja, sua libertação do jugo colonial e sua
emancipação política, as condições históricas na época contemporânea
somente propiciavam a constituição da economia nacional. Nos seus
textos, principalmente nos posteriores à década de 40, Caio Prado não
apenas afirmou de maneira explícita que a proposta de socialismo no
Brasil era prematura como defendeu a idéia de que era necessário,
antes, atravessar a etapa da economia nacional. Ou seja, nas condições
reinantes, somente se poderia alcançar e, portanto, almejar, a
constituição de uma economia voltada para o mercado interno.
De acordo com Caio Prado, precisamente pelo fato de as
condições históricas existentes na primeira metade do século XIX não
terem favorecido as aspirações das camadas populares, a agitação
popular foi dominada, serenando aos poucos. A organização social
vigente permaneceu intacta e a revolução constitucional evoluiu
simplesmente no sentido da independência. A direção deste processo
coube ao “partido brasileiro” que, como salientou o autor, “(...)
naturalmente indicado para isto, pois seus interesses e objetivos se
confundiam no momento com a marcha dos acontecimentos” (1947, p.
95). Não deixa de ser interessante observar que em sua análise da
história do Brasil, particularmente a do momento da Independência,
quando as camadas populares tiveram uma participação maior no
processo histórico, Caio Prado chamou a atenção para as
condicionantes que limitavam suas ações, assinalando, assim, que a
história somente alcança o ponto para o qual está preparada.
A comparação entre as duas edições de Evolução, embora não
seja suficiente, é importante para a análise das mudanças verificadas na
concepção de história de Caio Prado e, por extensão, no seu modo de
interpretar a Independência. Evidentemente, sua nova maneira de

102
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

conceber a história e, por conseguinte, de interpretar a Independência,


somente pode ser compreendida em toda a sua dimensão com o estudo
da obra onde elas - concepção e interpretação - aparecem pela primeira
vez, ou seja, Formação. Comparando-se Evolução e Formação poderemos,
então, aferir em que consistem, efetivamente, essas mudanças.
Entretanto, assim como a comparação entre as duas edições de
Evolução lança alguma luz sobre a questão, também o exame de outros
textos menores nos auxilia nessa empreitada. Por isso, antes de
analisarmos Formação, examinaremos um texto posterior à sua
publicação, no qual o autor abordou também questões relativas ao
processo da Independência.

2.4. UMA NOVA MANEIRA DE INTERPRETAR A


INDEPENDÊNCIA.

Também na introdução feita por Caio Prado (1966, p. 175) à


edição fac-similar do jornal Tamoio, de 1944, ele apresentou sua nova
maneira de interpretar a Independência do Brasil, exposta
primeiramente em 1942. Como assinalamos, Caio Prado não se dedicou
fundamentalmente à análise da Independência por não ser esse o seu
tema. A rigor, foi na introdução ao Tamoio que o fez pela primeira vez.
Dessa maneira, o estudo desse texto nos auxilia no aprofundamento da
análise da mudança verificada em sua trajetória.
Na parte diretamente relacionada ao tema, Caio Prado criticou o
que denominou versão oficial e clássica da Independência e afirmou que,
ao tratar da questão com base apenas nos dois termos da oposição:
Brasil-Colônia e Portugal-Metrópole (1966, p. 176), ela seria demais
simplista e esquemática. Combateu, assim, aqueles que costumavam
examinar no movimento da emancipação do Brasil o contraste entre
estes dois pólos, não levando em conta o sem-número de ações e reações
que se processavam no seio e interior de cada qual.

Noutras palavras, esquecendo-se o que houve de luta social


dentro de ambos. No entanto, no que se refere ao Brasil (...)
a Independência se apresenta efetivamente como resultante
de um conflito intenso e prolongado de classes e grupos
sociais; e já muito antes de se propor claramente a questão
da emancipação, outras divergências opunham aqueles
partidos. A Independência não será mais que um dos
aspectos que tomarão aquelas divergências; ou antes,
preferivelmente representará um terreno comum em que

103
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

momentaneamente elas se acordam; para romperem de


novo, logo depois, com redobrada violência (1966, p. 176).

Confirma-se, nesta citação, o que havíamos destacado anteriormente,


ou seja, que, na grande mudança no modo de Caio Prado compreender
a Independência, existem dois aspectos. Em primeiro lugar,
diferentemente de Evolução, o autor introduziu novos conflitos na
sociedade colonial. No livro de 1933, estão identificados apenas dois
conflitos, ambos polarizados em torno de duas classes. No primeiro
dos conflitos, a luta é travada entre os grandes e pequenos
proprietários. No segundo, ela se verifica entre os grandes
proprietários e os comerciantes, apoiados pela Coroa. Em troca, a partir
de Formação, Caio Prado ressaltou a existência de uma multiplicidade
de conflitos, abandonando, inclusive, fato também já salientado, a linha
mestra do processo histórico. Esse é o segundo aspecto da mudança
feita por Caio Prado e que aparece na passagem acima da introdução,
ao mencionar outras divergências. Cabe destacar, inclusive, que os
conflitos deixam de ser apenas sociais para se tornar igualmente raciais.
Prosseguindo, Caio Prado observou que a revolução
constitucionalista do Porto, repercutindo no Brasil, polarizou as forças
políticas. Dentre essas, apenas as classes médias e baixas da população
(excetuando-se os escravos, cuja atitude teria sido passiva) sustentaram
ativamente o movimento constitucionalista no Brasil. A reação ao
movimento agrupou tendências diversas. Na luta contra a revolução,
uniram-se os elementos extremos: os que defendiam
intransigentemente as prerrogativas reais; outros, mais complacentes,
que queriam jogar com a revolução em proveito próprio e aceitavam
reformas, desde que limitassem o poder monárquico em seu benefício;
e, ainda, o partido considerado menos definido e mais hesitante em
suas atitudes, formado por aqueles que haviam sido favorecidos mais
direta e largamente pela permanência da Corte no Rio de Janeiro.
Agrupando-se sob os interesses criados com essa permanência, o
último era designado como partido brasileiro. Reunia ele,
particularmente no Rio de Janeiro, o que havia de mais representativo
na colônia em termos sociais e econômicos (1966, p. 177).
Analisando o partido brasileiro, Caio Prado destacou sua
satisfação com a situação decorrente da vinda da Corte para o Brasil,
não encarando com bons olhos a revolução constitucionalista. Nada
tinha a reivindicar além do que a Coroa já lhe havia dado, a não ser
consolidar a posição alcançada, o que, por sua vez, dependia da
ocasional e, por isso mesmo, incerta permanência da Corte no Rio de

104
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

Janeiro. O autor observou que a estrutura política da monarquia não se


alterara apesar de o Brasil ter sido elevado nominalmente a reino.
Continuava ainda como uma colônia. Em virtude dessa situação
precária e da incerteza e insegurança quanto ao futuro, o partido
brasileiro considerava com simpatia os projetos de reforma que
viessem completar as realizadas até então, sobretudo os que lhe
permitissem consolidar sua situação (1966, p. 178).
Mas não era isso que a revolução portuguesa oferecia. Ao
contrário, havia o que temer diante dos seus avançados projetos
democráticos. Estes atemorizavam justamente pelas profundas
contradições sociais existentes no Brasil, cuja população era composta
de grandes massas escravas. Acrescentou o autor: “(...) tudo
complicado por consideráveis diferenças raciais” (1966, p. 178).
Em decorrência, o partido brasileiro se aliou à reação e lutou
contra a revolução constitucionalista. Todavia, após o retorno do rei
para Portugal, o partido brasileiro, só e isolado no campo da reação,
livre dos aliados que o mantinham ligado e subordinado à política
interna da metrópole, mudou de opinião. Somente então, diante das
novas circunstâncias, ele se inclinou para a Independência. Comentou
Caio Prado: “Era esta no momento a única solução normal do seu
problema político, o único meio de impedir o contágio revolucionário e
o progresso da democracia no Brasil” (1966, p. 178). Mais: a atitude das
Cortes, em sua opinião inábil, fez a balança pender em favor da reação.
Começavam a predominar nelas os elementos inclinados a retirar do
Brasil as franquias adquiridas durante a permanência do soberano na
colônia. A reação tinha, a partir de então, uma arma poderosa para
manejar, ou seja, os interesses nacionais brasileiros, ameaçados pelos
constituintes portugueses. A idéia de separação ganhou terreno mesmo
entre os próprios democratas, arrastados em bloco finalmente por
ocasião dos acontecimentos do Fico. “Realiza-se então a unificação das
forças políticas brasileiras na base de um programa de emancipação do
país” (1966, p. 179).
Abriu-se a luta franca contra Lisboa e as Cortes. De acordo com
Caio Prado, no Sul, a unificação das forças políticas em torno do
programa da Independência não significou a resolução final de todas as
contradições anteriores entre os partidos. As divergências logo
reapareceram, então no terreno da Independência. Dividiram-se os
partidos quanto às questões relativas à sua organização, os democratas
e os conservadores voltaram a se defrontar quanto aos princípios que
se encontravam havia tempos em jogo (1966, p. 180).

105
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Assim, após a Independência, apoiando-se em um setor que


havia se desinteressado por ela, coube a José Bonifácio a difícil tarefa
da consolidação. Salientou Caio Prado que, cada vez mais, a
Independência ficava no campo da oposição democrática. Seus
partidários cindiram-se em dois grupos. Embora tivesse se
desvencilhado dos adversários mais perigosos, José Bonifácio tinha
diante de si uma tarefa bastante difícil, que se revelaria contraditória:
defender e consolidar a Independência recentemente adquirida e que
se encontrava distante de estar completa e assegurada. Para tanto, teve
que tomar muitas medidas que atingiam os interesses do partido no
qual se apoiava e que o levara ao poder.
Mas, destacou Caio Prado, a maior parte do partido brasileiro
não estava interessada diretamente na Independência. Aceitara-a mais
para enfrentar as Cortes democráticas de Lisboa e a situação
revolucionária do Reino. Por isso, começava a se desinteressar por uma
situação que já ameaçara - e ainda ameaçava - reproduzir no Brasil
cenas semelhantes às do Portugal revolucionário.
Apesar de os democratas estarem dispersos e esmagados no Rio
de Janeiro, ainda eram muito fortes nas províncias. Poderiam voltar à
ofensiva a qualquer momento, inclusive na capital. Além disso, a
guerra da Independência mudava de caráter, situando-se cada vez
mais no terreno da oposição aos privilégios econômicos e sociais dos
nativos do reino europeu que formavam, efetivamente, a classe mais
abastada e socialmente representativa do país. Particularmente no Rio
de Janeiro, constituíam o núcleo central dos conservadores, em torno
do qual, atados por toda sorte de laços econômicos e sociais, giravam
os naturais do Brasil. José Bonifácio, no olho do furacão, não poderia
deixar de ferir, de maneira direta ou indireta, os interesses da própria
classe que representava no governo (1966, p. 182-183).
Segundo Caio Prado, a tarefa de Bonifácio era impossível, pois
se tratava de consolidar a Independência com o apoio daqueles
mesmos que começavam a encará-la com pouca simpatia e muita
desconfiança. Por outro lado, com sua formação e ideologia, não
poderia se aliar aos democratas, os únicos que, no seu entender, eram
partidários conseqüentes da Independência. Com efeito, os democratas
se insurgiam contra os privilégios que o regime colonial havia
acumulado nas mãos dos portugueses. Lutavam, pois, contra as mais
sólidas bases da soberania lusitana no Brasil. Ao fazerem isso, no
entanto, lutavam igualmente contra o sistema social e econômico que se
organizara a partir daqueles privilégios. Conservador por excelência,

106
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

José Bonifácio não poderia admitir isso. Terminou isolado, lutando em


duas frentes que acabaram por esmagá-lo.
Concluindo sua apreciação, Caio Prado lamentou que o ódio de
Bonifácio à democracia e ao liberalismo, que também se manifestava no
Tamoio, o tivesse impedido de ser inteiramente conseqüente em sua
atitude, ou seja, de se ligar àqueles que lutavam com mais coerência
contra os privilégios portugueses e, por extensão, contra a soberania da
ex-metrópole. No seu modo de ver, os democratas eram os únicos que
estavam efetivamente empenhados em liquidar a herança colonial e
cimentar a obra da Independência nacional sobre uma larga e sólida
base democrática. José Bonifácio, por seu turno, como demonstrariam
os seus escritos, era, dentre os seus contemporâneos, aquele que tinha
uma intuição mais clara dos principais aspectos econômicos e sociais
da democracia brasileira (1966, p. 184).
No modo de ver de Caio Prado, pela maneira como ocorreu a
Independência, a evolução brasileira tomou um sentido diferente do da
democracia social e econômica, perpetuando, no Império
independente, os traços fundamentais, econômicos e sociais, do regime
colonial. Além disso, ele afirmou que, mesmo que não se possa culpar
José Bonifácio e o Tamoio, eles tiveram ao menos uma pequena parcela
de responsabilidade nisso (1966, p. 184).
A comparação entre o modo como Caio Prado concebeu a
Independência do Brasil no livro Evolução e em alguns de seus textos
produzidos posteriormente, particularmente na introdução ao Tamoio,
revela-nos, assim, ao menos em parte, a mudança verificada em seu
modo de conceber a história. Na mencionada introdução, Caio Prado
ressaltou basicamente o fato de a Independência não ter rompido com
os traços fundamentais do regime colonial. Esta questão não apenas
não o preocupava no livro Evolução como não fazia parte dos temas que
abordou. Em Evolução, de certa maneira, ele tratou a Independência
como se ela, de fato, tivesse ocorrido. Dito de outro modo: não
estabeleceu uma dualidade, tratando a independência nos planos
político e econômico. Na introdução ao Tamoio, aventou a possibilidade
de que ela poderia ter sido diferente, caso fosse outra a posição tomada
por Bonifácio, pelo Tamoio e, de certa maneira, por aqueles que
representavam. Colocou, assim, a possibilidade de que a
Independência poderia ter sido tanto política como econômica. Agora,
passaremos ao exame do modo como Caio Prado considerou a
Independência em seu livro Formação. Poderemos, então, avaliar, por
meio da comparação, as mudanças verificadas entre as duas obras.

107
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

3. A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL EM FORMAÇÃO DO BRASIL


CONTEMPORÂNEO.

Como já foi reiterado, no livro Formação do Brasil contemporâneo,


Caio Prado modificou sua interpretação da Independência do Brasil. A
questão não reside, no entanto, apenas na formulação de um novo
modo de interpretá-la. Diz respeito, antes, ao papel que ele lhe atribuiu
no processo histórico e que é distinto daquele que lhe havia conferido
em Evolução. Neste último, já o vimos, a Independência aparece, ao
mesmo tempo, como o desdobramento das lutas sociais verificadas
durante a época colonial, especialmente a partir da segunda metade do
século XVIII, e ponto de partida das novas lutas travadas ao longo do
século XIX, particularmente na sua primeira metade. Além disso, como
já salientamos, ele considerava a Independência necessária e inevitável,
dada a contradição entre a infra-estrutura e a superestrutura. No livro
Formação, por sua vez, a Independência perde esse caráter de
centralidade. Seu espaço passa a ser ocupado pelo período
compreendido entre o final do século XVIII e o início do XIX. O motivo
dessa escolha deve-se ao fato de Caio Prado entender que este constitui
um momento-chave para a compreensão da história brasileira,
inclusive do Brasil contemporâneo. Sob este ponto de vista, possuiria
um grande valor metodológico.
Sua importância não deriva, no entanto, de que nesse período
ocorreram os acontecimentos que conduziram à Independência e à
própria ruptura com a metrópole. Aliás, diga-se de passagem, Caio
Prado iniciou a obra precisamente observando que o início do século
XIX não se destacava unicamente por acontecimentos relevantes, como
a transferência da sede da monarquia para o Brasil e os atos
preparatórios da emancipação. Criticou, inclusive, os historiadores que
ficaram presos a esse estudo justamente porque a Independência se
sobressaía do conjunto das transformações ocorridas no início do
século XIX, constituindo um dos seus resultados mais visíveis, senão o
mais visível. Prendendo-se, por isso, aos aspectos exteriores do
processo histórico, eles ignoraram outros, mais complexos, que
residiam abaixo da superfície dos acontecimentos. Em decorrência,
ignorando outras transformações, preocuparam-se em buscar as
manifestações que pudessem explicá-la e, desta forma, simplificaram o
processo histórico, restringiram consideravelmente o objeto da
pesquisa e o desviaram do seu verdadeiro sentido.
Ao contrário desses historiadores, Caio Prado considerou que o
período era importante por duas outras circunstâncias.

108
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

De um lado, fornecia, em balanço final, a obra realizada por três


séculos de colonização, apresentando-nos, então, o que existiria de
mais característico e fundamental nessa obra. Como síntese desses três
séculos, marcava o encerramento da obra colonizadora dos
portugueses. Assim, para Caio Prado, em fins do século XVIII e início
do XIX, a economia brasileira, apesar das transformações, continuava
com as mesmas características do início da colonização. Sua análise da
colonização teve, portanto, justamente o intuito de buscar as
circunstâncias que a presidiram e que caracterizaram a economia
brasileira. Mostrou que a colonização possuía um sentido, que
determinou o conjunto da economia e da sociedade coloniais, tornando
o Brasil uma colônia cuja produção estava voltada para o atendimento
das necessidades do mercado externo. Este aspecto explicaria as demais
características da economia colonial, como a grande propriedade e a
produção em larga escala, a monocultura e o trabalho escravo.
De outro lado, nos finais do século XVIII e primórdios do XIX, o
Brasil dava os seus primeiros passos nas transformações que, ressaltou
o próprio Caio Prado, ainda não haviam chegado ao seu término por
ocasião da publicação de Formação. Sob este aspecto, esse período
constituía uma chave – preciosa e insubstituível, nas suas palavras -
para se acompanhar e interpretar o processo histórico posterior, bem
como a sua resultante, que é o Brasil contemporâneo, ou seja, o Brasil
da década de 40 do século XX. Como sintetizou Caio Prado (1981, p.
10): “O Brasil contemporâneo se define assim: o passado colonial que se
balanceia e encerra com o século XVIII, mais as transformações que se
sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual”. Aliás, o
próprio título da obra é uma explicitação do seu objetivo: explicar como
havia se formado o Brasil contemporâneo.
Tratava-se, por conseguinte, de um momento decisivo. Um
momento que comportava, ao mesmo tempo, o passado que constituiu
o Brasil (quando os elementos constitutivos da nacionalidade brasileira,
organizados e acumulados desde o início da colonização,
desabrocharam e se completaram) e a época em que o Brasil entrava na
sua fase propriamente contemporânea, erigida sobre a base criada pela
colonização.
Para Caio Prado, nessa ocasião a obra da metrópole havia
chegado ao fim e nada mais poderia ser feito. Não era apenas o regime
de subordinação colonial que estava em jogo: era o sistema colonial
como um todo que se apresentava prenhe de transformações
profundas. O sistema colonial precisava se transformar, mas, para que isso
ocorresse, não bastava se separar da metrópole. Quando muito, este era um

109
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

passo preliminar, embora necessário. Adverte: “O processo de


transformação devia ser mais profundo. E de fato o foi” (1981, p. 10).
Assim, por debaixo do sistema colonial em decomposição, palpitava
uma outra vida, ou seja, esboçava-se uma transformação (1981, p. 357).
Na opinião de Caio Prado, portanto, o início do século XIX conteria
processos que iam muito além da Independência. Mais do que isso, eles
eram mais significativos do que a própria Independência.
Assim, como se pode perceber, a Independência foi colocada em
plano secundário. Passou a ser compreendida no interior de um
processo mais amplo que, para Caio Prado, era mais importante, pois
formava o Brasil contemporâneo:

O Brasil começa a se renovar, e o momento que constitui o


nosso ponto de partida neste trabalho que o leitor terá
talvez a paciência de acompanhar, é também o daquela
renovação. Mas ponto de partida apenas, início de um
longo processo histórico que se prolonga até os nossos dias
e que ainda não está terminado (1981, p. 10).

Em virtude disso, Caio Prado propôs que se fizesse uma


abstração do que se passaria no futuro, concentrando-se apenas na
investigação das forças que estavam renovando a economia brasileira.
Ou seja, que fossem examinadas apenas as forças que eram o motor
dessa transformação. Observou que se tratava de uma transformação
cujo sentido e direção embora não pudessem ser conhecidos nos
primórdios do século XIX, trabalhavam contra o sistema colonial.
Ressaltou que não tomava o sistema colonial em seu sentido restrito, de
subordinação política e administrativa à metrópole. Caso o fizesse, a
questão se esgotaria com a Independência. Antes, ele o tomava no
sentido do conjunto dos caracteres e elementos econômicos, sociais e
políticos que constituíam a obra realizada pela colonização e cujo
resultado era o Brasil. Em síntese, tomava o sistema colonial no sentido
da criação de uma produção destinada ao abastecimento do mercado
externo com suas implicações.
Para ele, o fio condutor da pesquisa, cujo intuito era descobrir a
origem das forças de renovação, era a infra-estrutura econômica
colonial. Mas, neste caso, ele não definiu essa infra-estrutura pelas
relações de produção e de classes. Ao contrário, caracterizou-a como
uma produção destinada ao atendimento das necessidades do mercado
europeu e que, com o desenvolvimento da população e de outros
fatores, tornou-se restrita e incapaz de sustentar a estrutura que ela

110
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

própria havia criado. Assim, suficiente no início e ainda capaz de


prover os fins precípuos da colonização, esta base econômica tornou-se
insuficiente para manter a estrutura social existente.
Dentre os aspectos que revelariam a insuficiência da estrutura
econômica criada pela colonização, Caio Prado destacou a proporção
considerável de pessoas que, com o tempo, iam ficando à margem da
atividade produtiva normal da colonização. Como explicou o autor, o
círculo da atividade econômica se encerrava quase exclusivamente nos
dois pontos fundamentais da organização econômica e social da
colônia, senhores e escravos. Enquanto, em seu início, a colônia era
constituída apenas por estas duas classes, tudo transcorria sem
problemas. Nesse momento, todos os povoadores do território
brasileiro tinham seu lugar próprio na estrutura social da colônia,
podendo, assim, desenvolver normalmente suas atividades. Mas, à
medida que se formaram novas categorias sociais, que não estavam
enquadradas no sistema, o desequilíbrio era fatal.

O que em suma se verifica, é que o sistema de colonização


adotado no Brasil, o nosso “sistema colonial”, depois de ter
produzido durante três séculos frutos apreciáveis que
contrabalançavam o negativo da sua feição, tocara o
extremo de sua evolução, pelo menos em alguns e
principais de seus aspectos; e a curva que desenhara na
História começava a infletir decididamente para baixo,
para sua consumação. Esgotara suas possibilidades, e seria
necessariamente substituído por outro (1981, p. 360).

Diante da ruína que então se abatia sobre o sistema colonial, a


Coroa portuguesa tentava reformá-lo. Quanto a isso, Caio Prado
observou que o sistema colonial não era uma criação arbitrária, que
poderia ser reformada ao talante da Coroa. Não havia como reformar a
colônia senão pela separação da metrópole, mas esta era apenas a
primeira providência para a reforma que se impunha. Ainda que
necessária, a Independência era apenas uma parte das transformações
que deveriam atingir a economia brasileira.
É verdade que, em Formação, Caio Prado não se propôs fazer um
estudo da Independência, mas apenas examinar a situação em que se
encontrava a colônia às suas vésperas. Entretanto, como temos
reiterado, deixou de fazê-lo não por uma escolha pessoal, mas porque
entendia que tal estudo não era suficiente para explicar as
transformações ocorridas naquele momento. Com efeito, seu interesse

111
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

residia justamente em assinalar o momento em que tinha início a


transformação que, modificando o caráter colonial da economia
brasileira, ela se transformava em uma economia nacional, ou seja, uma
produção voltada para o atendimento das necessidades da população
brasileira. Tratava-se, como temos insistido, de uma transformação que
era apenas uma tendência. Considerou a Independência, por isso, no
interior dessa questão maior, que era a que realmente lhe interessava.
Como se pode depreender, estamos diante de uma posição
completamente oposta àquela de Evolução, onde Caio Prado expressou
seu entendimento de que o estudo da Independência era capaz de
explicar tanto os acontecimentos que a antecederam como os que a
sucederam.
Cabe ainda fazer outra ressalva. Como foi assinalado, é
importante lembrar que a intenção de Caio Prado não era fazer um
estudo da Independência, seja em Evolução, seja em Formação. Em
ambos os casos, ele estava interessado, sobretudo, em interpretar a
história do Brasil em seu conjunto. É apenas dessa perspectiva que a
Independência se enquadra na sua obra.
Sob este aspecto, equivocam-se os estudiosos que entendem que
somente o livro de 1933 constitui um ensaio, ao passo que o de 1942
seria uma história do Brasil. Na verdade, Formação também é um
ensaio. Caracterizamo-lo assim pelo fato de seu autor não pretender
fazer uma história do Brasil, mas apenas assinalar o fio condutor que a
explicaria, isto é, destacar aquilo que, a seu ver, teria de essencial. Um
ensaio centra, por isso, a atenção no que, para seu autor, é fundamental
para o entendimento do processo histórico. Além disso, em um ensaio,
o autor pretende desenvolver uma tese.
No caso de Formação, Caio Prado tem como fio condutor
explicar como o Brasil contemporâneo se formou por meio da
colonização e como manteve as características coloniais, especialmente
a economia, que continuou voltada, fundamentalmente, para o
mercado externo. Por isso, ele analisou a maneira como se processou a
colonização (o sentido da colonização); como ela deu à economia
brasileira as características fundamentais que a mantiveram
(particularmente seu caráter colonial) apesar da Independência; as
transformações ocorridas posteriormente e que explicariam o que
estava acontecendo por ocasião da publicação de seu livro.
Ele colocou em evidência, portanto, que o processo histórico
brasileiro possui uma linha mestra, cujo entendimento nos mostraria
que havíamos nos formado como economia colonial e que as
transformações ocorridas (e que continuavam ocorrendo)

112
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

encaminhavam o Brasil contemporâneo na direção da constituição de


uma economia nacional. Em última análise, inferir que a superação das
características coloniais da economia somente poderia ocorrer por meio
do estabelecimento de uma economia voltada para o mercado interno.
Esta seria a tese do seu ensaio. É isso que pretendeu demonstrar em
Formação.
Foi no interior desse processo maior de transformação da
economia brasileira – de colonial para nacional - que Caio Prado,
insistimos, considerou a Independência. Assim, diferentemente do
livro Evolução, onde lhe concedeu um papel central, justamente por
entender que ela constituía a chave para explicar o caráter conservador
da política brasileira, no livro Formação, a Independência não foi
apresentada como um acontecimento decisivo. Ao contrário, ela foi
minimizada, ocupando plano secundário, o que se explica pelo fato de,
no entender do autor, a Independência não ter alterado o caráter
colonial da economia brasileira. Como se prolongou para além dela,
este caráter constituiria a principal característica da economia brasileira
até a data da publicação de Formação. Por conseguinte, nada mais
coerente, para ele, do que o caráter colonial da economia brasileira e
seu processo de transformação assumirem o primeiro plano, em lugar
da emancipação.
Consideremos essa questão com mais vagar. Para Caio Prado, a
principal característica do Brasil foi ter-se constituído como fornecedor
de produtos tropicais para o mercado europeu. Assim, existia
unicamente para fornecer ao comércio europeu alguns produtos
tropicais, sendo essa a política praticada pelo Reino desde o início da
colonização. No entanto, o fato de o Brasil ter-se mantido nessa
condição não poderia ser atribuído apenas a essa política. Em sua
formulação, o resultado da política portuguesa tinha se identificado a
tal ponto com a forma de vida da colônia, que esta já não aparecia
unicamente como subordinação colonial, já não parecia derivar
somente da administração do Reino (1981, p. 126). Orientada desde o
início da colonização, determinada por fatores mais profundos do que
simplesmente a política deliberada do Reino, a economia brasileira
havia se organizado para atender às exigências do mercado externo. No
fim da era colonial, apesar das transformações verificadas, essa
característica da economia havia se tornado a natureza íntima da sua
estrutura (1981, p. 126-127). Em suma, a situação em que se encontrava
o Brasil em fins do século XVIII e início do XIX não era artificial, ditada
pela política metropolitana, mas constituía a sua própria natureza.

113
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Como a característica básica da economia colonial não decorria


da política metropolitana, cuja responsabilidade era, então, apenas “(...)
contribuir com sua ação soberana para manter uma situação que se
tornara, mesmo apesar dela, efetiva” (1981, p. 127), quando o regime de
colônia foi abolido, ela se manteve. Assim, ao entender que a principal
característica da economia colonial era a produção para o mercado
europeu, Caio Prado estabeleceu uma linha contínua que não foi
interrompida pela Independência, motivo que o levou a minimizá-la.
Assim, também aqui a posição ocupada pela Independência não foi
resultado de uma escolha arbitrária do autor, mas derivou do modo
como interpretou o processo histórico brasileiro e, em última análise,
encarou o Brasil à sua época.

O Brasil não sairia tão cedo, embora nação soberana, de seu


estatuto colonial a outros respeitos, e em que o “sete-de-
setembro” não tocou. A situação de fato, sob o regime
colonial, correspondia efetivamente à de direito. E isto se
compreende: chegamos ao cabo de nossa história colonial
constituindo ainda, como desde o princípio, aquele
agregado heterogêneo de uma pequena minoria de colonos
brancos ou quase brancos, verdadeiros empresários, de
parceria com a metrópole, da colonização do país; senhores
da terra e de toda sua riqueza; e doutro lado, a grande
massa da população, a sua substância, escrava ou pouco
mais que isto: máquina de trabalho apenas, e sem outro
papel no sistema. Pela própria natureza de uma tal
estrutura, não podíamos ser outra coisa mais que o que
fôramos até então: uma feitoria da Europa, um simples
fornecedor de produtos tropicais para seu comércio (1981,
p. 127).

Como se pode observar, Caio Prado não somente minimizou a


Independência, como a tratou de modo pejorativo, chamando-a de
“sete-de-setembro”. Isso constitui uma mudança significativa em
relação ao modo como a tratou em sua primeira obra. Com efeito, como
vimos em Evolução, esse autor fez derivar da maneira como a
Independência se processou no Brasil não apenas as lutas políticas da
primeira metade do século XIX como o próprio caráter da política do
Império, dominada integralmente pelos grandes proprietários de terra,
justamente a classe que chegou ao poder no transcorrer desse processo.
Em Formação, ao contrário, a Independência perdeu destaque não
apenas pelo fato de não representar uma ruptura com o caráter colonial

114
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

da economia, mas também por que, junto ao processo da


Independência, tinha tido início outro processo de transformação. Seria
esse novo processo que, segundo ele, deveria culminar na superação
definitiva da economia colonial. Com isso, embora Caio Prado tenha
dedicado a esse assunto poucas páginas e, na maioria das vezes, ele
seja mais aludido do que explicitado, esse processo adquiriu
importância maior do que a Independência e, por conseguinte, assumiu
o primeiro plano.
Entretanto, mesmo ocupando um plano secundário no livro
Formação, a Independência não deixa de desempenhar, de certa
maneira, papel estratégico na interpretação da história do Brasil. Nesse
caso, diferentemente do primeiro livro, ela cumpre esse papel não em
sua positividade, por aquilo que realizou no processo, mas de uma
perspectiva negativa, pelo que deixou de realizar. Dito de outro modo,
ela se destaca neste caso porque não implicou uma ruptura, ou seja,
permitiu a manutenção das características coloniais na economia
brasileira. Assim, ainda que pareça um paradoxo – e, aparentemente
contrariando o que afirmamos anteriormente -, a Independência
também tem um significado decisivo na interpretação da história do
Brasil exposta no livro Formação.
Para Caio Prado, a modificação que então se verificava decorria
do processo de formação ou ampliação do mercado interno. Dito de
outro modo, o impulso da transformação era dado justamente pelo
mercado interno. Assim, coerentemente, Caio Prado valorizou antes o
processo que estava em curso, a seu ver, levando ao crescimento do
mercado interno e transformando a economia colonial em economia
nacional, do que os acontecimentos que conduziram à Independência.
Esta é uma mudança substantiva em comparação com Evolução, na qual
ele se preocupou justamente com o processo que conduziu à
Independência.
Saliente-se, inclusive, que o mercado interno constitui uma
questão central da historiografia brasileira de esquerda, fato que
merece um estudo aprofundado. Com efeito, os diferentes
posicionamentos da esquerda no Brasil até data bem recente são de que
a constituição do mercado interno é o elemento básico para uma
transformação da economia brasileira. Valendo-se de um termo
utilizado na época, o mercado interno é, para a historiografia, o motor
da transformação da economia brasileira. Assim, além de Caio Prado, o
Partido Comunista Brasileiro e seus teóricos concebem a formação do
mercado interno como condição para o processo de industrialização do
país. Para alcançá-la, defendem a reforma agrária, cujo resultado seria

115
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

justamente a formação de um mercado interno para a indústria


nacional.
É compreensível que a constituição do mercado interno assuma
um papel importante e central na interpretação de Caio Prado. De fato,
para ele, o mercado interno era o elemento propulsor das
transformações na economia brasileira justamente por estimular uma
produção destinada ao atendimento das necessidades da população
brasileira, em oposição à produção dominante, voltada para o mercado
externo. Por isso, observou que, em fins do século XVIII e início do XIX,
com o surgimento de elementos novos ou de tendências que alteraram
a simplicidade inicial de uma colônia produtora de alguns gêneros
destinados ao comércio da metrópole, o sistema colonial se tornou mais
complexo.

O fato elementar do crescimento da população já constitui


por si só um fator de transformação, porque determina a
constituição e desenvolvimento do mercado interno, e com
ele, de um setor econômico propriamente nacional, isto é,
orientado já não exclusivamente para a exportação, mas
para as necessidades do país. Este setor vai ganhando em
importância, e tende a se tornar, de um elemento
subsidiário de expressão mínima e desprezível no conjunto
da economia brasileira, numa parte ponderável dela, e que
por si só, sem a dependência de um outro setor que lhe dê
vida e o impulsione, exprima alguma coisa (1981, p. 125).

Entretanto, salientou Caio Prado, três séculos depois do início


da colonização, mesmo com esse início de transformação, o Brasil
continuava, em suas linhas gerais e nos caracteres fundamentais de sua
organização econômica, aquela mesma colônia visceralmente ligada à
economia européia. Ele alertou, neste caso, que não estava se referindo
à sua subordinação política e administrativa, mas ao fato de não passar,
segundo caracterização sua, de simples fornecedora de mercadorias para o
mercado europeu.
Até o momento consideramos, de maneira comparativa, o modo
como Caio Prado considerou a Independência. Chamamos, então, a
atenção para o fato de que, em decorrência da forma como a história do
Brasil foi interpretada no livro Formação, esse processo foi minimizado.
Entretanto, essa mudança na maneira de interpretar a história do Brasil
expressa, fundamentalmente, uma alteração na sua própria concepção
de história. Com efeito, a grande diferença entre Evolução e Formação
consiste na substituição da luta de classes como elemento condutor do

116
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

processo histórico pela luta pela libertação nacional27. Trata-se agora de


uma luta entre o passado, representado pelo caráter colonial da
economia, e o presente, representado pelo caráter nacional da
economia. A partir de então, o processo histórico tem como fio
condutor a transformação da economia colonial em economia nacional.
A luta de classes não é o motor desse processo.
Resta, por fim, destacar os motivos que levaram Caio Prado a
abandonar os princípios básicos de seu livro Evolução. Trata-se de uma
modificação no seu posicionamento político, que se expressou com a
formulação de uma proposta política. Esta proposta, que afirmava que
o processo histórico brasileiro se caracterizava pela transformação da
economia colonial em economia nacional, encontra-se ausente na sua
primeira obra, Evolução. Aliás, diga-se de passagem, a elaboração de
uma nova maneira de conceber a história do Brasil, que vem
acompanhada da formulação de uma proposta política, encontra-se
associada à elaboração da idéia de sentido da colonização. Em última
instância, o conceito de sentido da colonização não pode ser dissociado
da afirmação de que a evolução histórica do Brasil se caracterizava
precisamente pela constituição de uma economia nacional. Para
responder à questão acima, das motivações que levaram esse autor a
abandonar suas antigas formulações, precisamos analisar o modo como
os industrialistas do Brasil conceberam a Independência.

3.1. UM BREVE PARÊNTESE: OS PROTECIONISTAS E A


“VERDADEIRA” OU “REAL” INDEPENDÊNCIA DO BRASIL.

Ainda que tenha sido o autor a fundamentar a idéia-força


baseada na distinção entre independência política e independência
econômica, Caio Prado não foi, entretanto, o primeiro a formulá-la.
Desde o final do século XIX, pelo menos, encontramos autores
brasileiros para os quais, tendo alcançado sua independência política,
faltava ao Brasil conquistar sua independência econômica Essa
constatação é bastante importante para buscar as linhagens do
pensamento político de Caio Prado.
Foram autores que postularam a intervenção do Estado a fim de
promover a industrialização brasileira que afirmavam que o Brasil

27Ainda que nem sempre tenham explicitado isso, alguns estudiosos de Caio Prado
pressentem a diferença entre as duas obras, mostrando uma indisfarçável preferência
por Formação. Alguns chegam mesmo a afirmar que Evolução ainda possui traços do
marxismo ortodoxo, assinalando tratar-se de uma obra marcada pelo esquematismo.

117
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

ainda tinha como tarefa alcançar sua independência econômica. Com


efeito, como eles identificavam a verdadeira ou real independência com
a industrialização, nada mais natural que fizessem a distinção entre a
independência política e a independência econômica. Vejamos alguns
desses textos a título de exemplo.
No manifesto de fundação da Associação Industrial, datado de
1881, cujo presidente era Antonio Felício dos Santos, encontramos a
idéia de que pouco adiantara nossa independência política já que não
havíamos obtido também a econômica. Desse ponto de vista, apesar da
emancipação de 1822, continuávamos em um regime colonial:

Debalde se offerece á nossa imitação o quadro brilhante da


prosperidade americana. O Brazil não perde de vista a
platéa da Europa. D'ahi a politica anti-americana aqui
trilhada em todas as relações exteriores, o systema
economico que arruinou a nossa marinha mercante e
paralysa a industria nacional, prolongando-se o regimen
colonial apezar da vã solução de continuidade de 1822.
Com effeito, para um paiz exclusivamente agricola e
productor de materias primas, que revertem-lhe
manufacturadas pelo duplo de seu valor de exportação,
recebendo da industria estrangeira todos os seus artigos de
consumo, não é uma illusão a independencia política? Não
é o Brazil uma simples feitoria commercial e colonial
explorada pelos traficantes europeus que com raras
excepções nem se fixam em seu solo, nem se identificam
com seus interesses? (Manifesto da Associação Industrial, p.
96).

Em outro texto do mesmo ano, encontramos a afirmação de que


um país que exportava produtos agrícolas ainda permanecia uma
feitoria colonial. É o que podemos observar no artigo publicado no
jornal O Industrial, do Rio de Janeiro, de 21 de Maio de 1881, citado por
Luz (1959, p. 47): “Um paiz que se projecta em enorme extensão do
nosso planeta, contendo os mais variados climas e solos, todas as
grandezas e opulências naturaes, podendo produzir tudo, assimilar
todas as raças e dar emprego vantajoso a todas as aptidões, não pode
continuar a ser uma feitoria colonial”.
Idêntica concepção aparece em discursos no Congresso, como é
o caso do que Aristides Queiroz pronunciou em 1895, na Câmara dos
Deputados:

118
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

Pergunto agora: de onde provem, ou qual a origem desse


deficit chronico?
Por que razão tem crescido em uma progressão tamanha a
nossa importação, quer de productos, quer de serviços de
capital, sem augmento correspondente na producção?
Attribuo simplesmente á politica econômica-financeira dos
governos da monarchia; politica que ainda a Republica não
tratou de emendar ou de corrigir e que eu pretendo
justamente combater ...
Entendo que a Republica, a geração actual está no dever,
tem obrigação de iniciar uma reacção contra este estado de
cousas, inaugurando o período de uma politica financeira
francamente proteccionista. É preciso proteger agora e
principalmente a industria superior; e eu chamo industria
superior a industria manufactureira ...
Os nossos productos são exclusivamente coloniaes, por isto
mesmo que somos um paiz exclusivamente agricola. E um
paiz exclusivamente agricola, que apresenta no mercado
internacional somente productos coloniaes, não passa das
condições de inferioridade economica de uma Colônia
(Apud LUZ, 1959, p. 53).

Todavia, é na virada do século XIX que encontramos essa


concepção de uma forma mais elaborada. Trata-se do texto de um dos
mais conseqüentes teóricos da industrialização do Brasil por meio da
intervenção estatal e do protecionismo, Inocêncio Serzedelo Correia
(1980). Autor do livro O problema econômico no Brasil, de 1903, em que
reuniu artigos publicados em periódicos, Serzedelo interpretou o nosso
passado colonial de maneira a justificar a necessidade de o Estado
intervir na economia com o objetivo de criar as condições para o
desenvolvimento da indústria nacional. Em sua opinião, o Brasil, em
fins do século XIX e início do XX, ainda se encontrava sujeito à
condição colonial. Sua preocupação era encontrar os meios que
permitissem à nação alcançar o que denominava emancipação econômica:
“(...) para conseguirmos a emancipação econômica de nossa Pátria,
ainda hoje sujeita à situação de colônia no ponto de vista dos elevados
interesses materiais e econômicos” (1980, p. 17). Percebe-se, pela
passagem citada, que entendia por colonial a situação de uma nação
que participava da divisão internacional do trabalho, do mercado

119
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

mundial, produzindo matérias-primas e produtos agrícolas para o


mercado externo e recebendo em troca produtos manufaturados28.
Em oposição à colonial e como contrapartida dessa condição,
teríamos a emancipação econômica, isto é, a não dependência do mercado
externo. Para Serzedelo, era essa situação de dependência que impedia
o engrandecimento da pátria, o qual somente poderia ser alcançado com a
independência econômica. Clamou, então, por uma política sábia e
profundamente nacional, ou seja, por providências que promovessem
uma ruptura com a condição colonial (1980, p. 24).
Como se pode concluir, do seu ponto de vista, a contrapartida
de colônia é a nação. Ainda segundo ele, uma nação bem organizada e
independente teria todos os ramos da produção desenvolvidos (aliás,
destaque-se, harmonicamente desenvolvidos): “(...) a agricultura, a
indústria manufatureira, o comércio e a navegação, harmonicamente
desenvolvidos” (1980, p. 19). Por isso, a transformação da economia
colonial em uma economia emancipada constituía a tarefa da
República, que tinha herdado este problema do Império: “O Império
legou à República a solução do problema de nossa emancipação
econômica. Somos, com efeito, um povo livre e independente
politicamente falando, mas, na ordem dos interesses econômicos
somos, ainda hoje, uma colônia” (1980, p. 19).
Por fim, já no século XX, encontramos formulação idêntica
naquele que, muito provavelmente, é o maior representante do
protecionismo no Brasil, Roberto Simonsen, contemporâneo, de certa
maneira, de Caio Prado. Simonsen publicou sua História econômica do
Brasil em 1937, antes, portanto, da História econômica de Caio Prado.
Além disso, a cruzada de Simonsen pelo protecionismo abarcou,
fundamentalmente, as décadas de 30 e 40. Essas duas décadas, nas
quais publicou a maior parte das suas obras decisivas, são, também, as
de formação do pensamento político de Caio Prado.
Retomemos, pois, as formulações de Simonsen. Após enumerar
uma série de circunstâncias que teriam favorecido o desenvolvimento
econômico da América do Norte, ele afirmou:

28O estreito vínculo entre o nacionalismo e os setores de esquerda no Brasil, ao longo


da sua história, pode ser aferido no comentário que Sodré (1964, p. 215-223) faz acerca
da luta de Serzedelo Correia em favor do intervencionismo e da industrialização do
país. Claramente, nos comentários, a nação e a luta pela libertação nacional assomam o
primeiro plano.

120
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

(...) enquanto todas essas circunstâncias, auxiliadas ainda


por forte política protecionista, facilitaram, em fins do
século XIX, a constituição da maior potência industrial do
mundo, o Brasil havia sido reduzido, nessa mesma época, à
posição de simples produtor de artigos agrícolas, de caráter
nitidamente tropical (...) (SIMONSEN, 1973, p. 8).

Teria contribuído para essa situação o regime de livre-câmbio,


no qual, até 1844, o Brasil teria sido obrigado a permanecer por força de
pressões externas: “Em obediência a motivos de origem política
internacional, o Brasil independente foi forçado a estender os mesmos
favores [que concede à Inglaterra] às nações mais adiantadas da
Europa, de maneira que até 1844 viveu francamente em regime livre-
cambista” (1973, p. 14).
No entender de Simonsen, para que a independência
econômica, o prestígio e atuação política de uma grande nação
pudessem ser levados em conta, era preciso que o país possuísse um
parque industrial eficiente, à altura do seu desenvolvimento agrícola.
Acrescentou que a independência econômica e, por conseguinte, a
perfeita independência política, somente poderia existir quando a
agricultura e a indústria estivessem conjugadas em estreita harmonia e
íntima interdependência (1973, p. 55). Um pouco mais adiante, retoma
essa idéia: “A independência política de uma nação só é efetiva em
todos os seus aspectos, se ela baseia-se numa situação econômica forte,
numa independência relativa, sem a qual não existe de fato a
independência política” (1973, p. 62).
É na obra História Econômica do Brasil que Simonsen estabeleceu
uma relação entre a interpretação do processo de emancipação do
Brasil e a luta pelo estabelecimento de uma política protecionista,
deixando claro que a concepção intervencionista constituía o viés com
que analisava aquele episódio. De seu ponto de vista, com o
capitalismo e graças a uma acentuada diferenciação e divisão de
trabalho, teriam se formado os grandes países capitalistas. Este sistema
econômico teria dado origem, também, a “(...) definidas políticas
econômicas, cuja interferência sofremos no passado e que ainda hoje
atuam de modo inequívoco em nossa evolução, devido,
principalmente, à natureza tropical da maioria de nossas produções”
(SIMONSEN, 1962, p. 31).
Comentando a política comercial adotada por D. João VI, a
política liberal, que tivera prosseguimento ao longo do Império,
Simonsen observou que não era essa a política que convinha “(...) a um

121
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

país como o nosso, que apenas iniciara a sua economia independente”


(1962, p. 405). Concluiu observando que deveríamos ter adotado uma
política semelhante à dos EUA no período da sua formação. Não sem
ironia, Simonsen notou que, de produtores de artigos coloniais, em face
de um mundo fechado pelas políticas econômicas coloniais, havíamos
nos tornado os campeões do liberalismo econômico na América. Assim,
analisando as exportações brasileiras no início do século XIX, observou
que “(...) a supressão do atrasado ‘sistema colonial’ e a adoção do
avançado ‘sistema econômico liberal’ (...) não deram, portanto, os
resultados que se anunciavam e eram esperados” (1962, p. 435).
Como podemos perceber, talvez tenham sido os autores
identificados com as reivindicações protecionistas os que, pela primeira
vez, fizeram a distinção entre independência política e independência
econômica. O motivo principal dessa distinção, como fica claro nos
textos citados, é a idéia de que o Brasil somente alcançaria sua
verdadeira independência, tornar-se-ia de fato uma nação
independente, quando adotasse medidas protecionistas tendentes à
industrialização. Até lá, ainda que independente politicamente,
continuaria uma colônia das grandes nações. Trata-se, por conseguinte,
de argumentação utilizada pelos protecionistas na defesa de suas
reivindicações.

4. UMA CONCLUSÃO PARCIAL

Em nossa análise das duas maneiras de Caio Prado considerar a


Independência do Brasil, seja de uma perspectiva que poderíamos
denominar de metodológica, seja do papel que ele atribuiu a esse
episódio no conjunto da história do Brasil, chamamos a atenção para o
fato de, em Evolução, o autor caracterizar a Independência como uma
revolução. Isso tem sua razão de ser porque ele procurou ressaltar que
a classe dos grandes proprietários de terra e escravos alcançou a
condição de classe dominante, social e politicamente, justamente por
meio da Independência. Assim, para Caio Prado, sequer do ponto de
vista social e político haveria uma continuidade, pois a classe dos
proprietários não se encontrava no poder antes da Independência. Ela
significou, de fato, do seu ponto de vista, uma ruptura com o passado.
Sob esse aspecto, a Independência constituiu um marco decisivo, não
apenas pela ruptura com Portugal, mas, principalmente, pelo fato de,
por meio desse processo, a classe dos proprietários de terra e escravos

122
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

ter alcançado o poder político29. Em Evolução, portanto, ele atribuiu


papel estratégico à Independência para a compreensão da história e da
política brasileiras.
Por um ângulo, ele a apresentou como o resultado de um longo
processo de lutas que colocava, frente a frente, a classe dos grandes
proprietários rurais, de um lado, e, de outro, a Coroa e seus aliados, os
comerciantes. O fato de a Independência ter-se processado sob o peso
da vinda da família real e com a completa exclusão das classes
populares teria, de acordo com Caio Prado, determinado o caráter dos
acontecimentos posteriores a ela. Após a Independência, verificaram-se
as lutas entre as camadas populares e a classe dos grandes
proprietários rurais. A vitória dos últimos definiu o caráter da política
na segunda metade do século XIX, a qual foi marcada pelo amplo e
completo domínio dos grandes proprietários rurais, contestado
somente no século XX, com a Revolução de 1930.
Por outro lado, não deixa de ser curioso que a historiografia não
tenha atentado para aquilo que Caio Prado se propôs fazer no seu livro
Evolução, ou seja, para sua intenção de fazer, como assinalou na
Introdução, uma história que não fosse a glorificação das classes dirigentes.
Isso não implica que ele tenha colocado em seu lugar as classes
populares ou dominadas, como muitas vezes supõe a historiografia.
Caio Prado, ao contrário, acompanhou o processo de constituição da
classe dos grandes proprietários rurais, com a colonização; sua chegada
ao poder como classe verdadeiramente dominante, com a
Independência; e, por fim, seu processo de decadência, do qual um
marco decisivo foi a proclamação da República. Dito de outro modo,
Caio Prado encarou o processo de uma maneira distinta daquela que
vinha sendo feita pela denominada historiografia tradicional, mas não
deixou de considerar a classe dominante como o centro das atenções.
Tanto assim que, como assinalamos, quando analisou as lutas sociais
verificadas ao longo da época colonial, o autor incluiu nelas apenas os
homens livres, ou seja, primeiramente, os grandes contra os pequenos
proprietários e, posteriormente, os grandes proprietários contra os
comerciantes. Apenas quando abordou o período posterior à
Independência e analisou as rebeliões da época regencial é que ele
focalizou as lutas verificadas entre os grandes proprietários e as

29 Ao invés de buscar entender o que leva Caio Prado a caracterizar como uma

revolução o processo da Independência, Sodré critica os que assim o fazem por


entender que revolução implicaria uma mudança na estrutura econômica da sociedade.

123
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

camadas populares. Mas, também nesse caso, fundamentalmente,


focalizou a luta entre homens livres.
Quanto ao livro Formação, uma simples comparação entre sua
estrutura e a de Evolução patenteia a mudança na maneira de Caio
Prado conceber a história. Ele começa seu primeiro livro pelas
condições econômicas, passando para o aspecto social e, finalmente,
para o político. Já Formação tem início com uma reflexão sobre um
conceito geral, o de sentido, passando para sua aplicação particular à
história do Brasil, ou seja, como sentido da colonização. O sentido da
colonização explicaria o caráter da colonização, ou seja, a forma da
propriedade e da produção (grande propriedade e grande produção), a
monocultura e o trabalho escravo. No entanto, alertou para o fato de
que o próprio sentido da colonização era determinado, de um lado,
pela época em que se processou a ocupação e o povoamento das novas
terras, ou seja, a revolução comercial lhe conferiu o caráter mercantil, e,
de outro, pelo fato de as terras se encontrarem localizadas nos trópicos.
Isto possibilitou uma divisão do trabalho em que as novas regiões
passaram a integrar o comércio europeu fornecendo-lhe os produtos
tropicais de que necessitava e não tinha condições de produzir. Assim,
Caio Prado passou das condições históricas para as geográficas.
Por fim, resta tratar dos motivos que levaram Caio Prado a
abandonar a concepção de história que esposara em Evolução. A nosso
ver, e esta formulação é recorrente nos textos aqui publicados, esse
autor modificou sua maneira de conceber a história por motivos
políticos. Com efeito, em Formação, Caio Prado formulou uma
interpretação da história do Brasil, cujo fio condutor não era a luta de
classes, e procedeu como se o socialismo não estivesse na linha direta
do processo histórico. Dito de outro modo, formulou uma interpretação
que não tinha como fundamento a seqüência capitalismo-socialismo.
Chamamos a atenção para o fato de Caio Prado ser um autor
que, dentre suas características, teve uma maneira de conceber a
história do Brasil que definiu, em linhas gerais, o modo de uma parcela
significativa da historiografia brasileira compreender a história. É o que
verificaremos agora, examinando tanto a historiografia a ele filiada
como aquela que diverge desse historiador.

5. A HISTORIOGRAFIA ORIUNDA DE FORMAÇÃO.

A mudança na maneira de Caio Prado conceber a


Independência teve desdobramentos e fez escola. Com efeito, sua
atitude para com a Independência, expressa no livro Formação,

124
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

estabeleceu um novo padrão para os estudos subseqüentes sobre esse


tema, imprimindo um novo modo de se conceber a Independência do
Brasil, “influenciando” a maior parte dos estudos a ela referentes.
Ainda que essa atitude tenha se desdobrado e os historiadores
assumido vários caminhos, percebe-se em seus estudos um ponto
comum: a Independência é tratada não como uma ruptura, mas como
um processo que não rompeu com determinadas características
coloniais e que, para alguns deles, ainda permaneceriam na atualidade.
Assim, o destaque, nesses trabalhos, é a continuidade. Não é casual,
inclusive, que tenha se firmado entre os historiadores o procedimento
de chamar a Independência de “emancipação política”, “autonomia
política” ou “independência política”, querendo, com isso, dizer que,
em 1822, havíamos conseguido apenas a ruptura política, mas não a
econômica. Em virtude disso, também para esses autores, a
Independência deixa de ser um processo significativo. Não são poucos
os que lembram o fato de que, em 1822, o Brasil havia se tornado uma
nação independente, mas com uma economia dependente. Teria, assim,
saído da órbita de uma metrópole para entrar na de outra. Em suma,
retomando a idéia mestra dessa maneira de conceber a emancipação, o
Brasil havia alcançado sua independência política, mas não a
econômica.
Além da concepção de que a economia brasileira continuava
voltada para o mercado externo, a idéia de continuidade aparece
também na análise de outros aspectos relacionados ao caráter colonial
da economia brasileira. Aliás, é nesses novos aspectos que, de um
modo geral, os seguidores de Caio Prado se distinguem dele. É
freqüente encontrarmos nesses estudos a observação de que a
Independência não tocara nos interesses fundiários e nem promovera a
abolição da escravidão. Neste caso, a intenção desses estudos é
justamente chamar a atenção para o fato de que a Independência, por
ter sido realizada sob o comando dos grandes proprietários rurais,
manteve inalteradas algumas instituições e práticas herdadas da época
colonial. De certa maneira, estes autores estão menos preocupados em
analisar o processo histórico do modo como transcorreu e mais
interessados em destacar aquilo que deixou de se concretizar com a
Independência. Evidentemente, a questão é compreender o que
entendem por Independência e, mais ainda, o que ela deveria implicar.
Entretanto, não é nosso objetivo fazer aqui um estudo da
historiografia relativa à independência do Brasil. Nosso propósito é
apenas assinalar que a atitude de Caio Prado para com a
Independência, como foi exposta em seu livro Formação, deu origem a

125
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

uma historiografia que se caracteriza precisamente pela minimização


da Independência, tendo em vista outras transformações que, em sua
opinião, deveriam acompanhar o processo de emancipação. Em última
instância, Caio Prado instituiu um paradigma para o estudo da
Independência do Brasil. Vejamos alguns desses autores.
Ainda que não possa ser arrolado entre os seguidores de Caio
Prado, José Honório Rodrigues aproxima-se dele por seu nacionalismo.
Daí a razão de o considerarmos aqui. Afirma Rodrigues que o Brasil,
após a sua emancipação, manteve-se dependente, agora da Inglaterra.
E credita este fato à adoção do liberalismo econômico:

Veremos, mais adiante, como a ideologia liberal, atendendo


em parte a esta influência [dos grandes proprietários
agrícolas], desserviu aos interesses da economia nacional, e
acabou enquadrando o Brasil, logo no começo, como uma
dependência informal do imperialismo britânico. O Brasil
independente é inteiramente agrícola, como o era antes, (...)
(RODRIGUES, 1975, p. 44).

Igualmente, Emília Viotti da Costa, na conclusão do seu artigo


sobre o estudo da Independência, defende a idéia de que a
emancipação do Brasil foi apenas política, preservando-se a ordem
econômica e o vínculo colonial, agora com a Inglaterra:

A emancipação realizada pelas categorias dominantes


interessadas em assegurar a preservação da ordem
estabelecida, cujo único objetivo era romper o sistema
colonial no que ele significava de restrição à liberdade de
comércio e à autonomia administrativa, não ultrapassaria
seus próprios limites. A ordem econômica seria
preservada, a escravidão mantida. A nação independente
continuaria subordinada à economia colonial, passando do
domínio português à tutela britânica. A fachada liberal
construída pela elite europeizada ocultava a miséria e
escravidão da maioria dos habitantes do país. Conquistar a
emancipação definitiva da nação, ampliar o significado dos
princípios constitucionais seria tarefa relegada aos pósteros
(COSTA, 1977, p. 125).

Ainda de acordo com a autora, como se pode verificar no trecho


citado, a busca da completa independência do país – a emancipação
definitiva da nação – era uma tarefa a ser realizada.

126
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

Outra autora que compartilha o modo de Caio Prado encarar a


Independência é Maria Odila da Silva Dias. Ainda que de uma
perspectiva distinta da nossa, essa autora confirma o que estamos
procurando salientar, ou seja, que Caio Prado estabeleceu um
paradigma na análise da Independência e que a historiografia o aplica
em seus estudos. Com efeito, observa que “(...) as diretrizes
fundamentais da atual historiografia da emancipação política do Brasil
foram lançadas na obra de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil
Contemporâneo (...)” (1972, p. 161). Na mesma frase, destaca que as
contradições e conflitos sociais internos não tiveram condições de gerar
forças autônomas capazes de criar uma consciência nacional e um
desenvolvimento revolucionário apto a reorganizar a sociedade e
constituí-la como uma nação30.
Analisando os estudos relativos à Independência, ela salienta
que certas balizas, que diziam respeito a determinados traços
específicos e peculiares do processo histórico brasileiro da primeira
metade do século XIX, já estavam bem fundamentadas pelos
historiadores. Ou seja, observa que determinadas formulações de Caio
Prado já haviam sido incorporadas pela historiografia e que haviam se
tornado senso comum e, por conseguinte, não havia disputas em torno
delas. Dentre esses traços, destaca, em primeiro lugar, a continuidade
do processo de transição da colônia para o império. Aliás, de passagem,
ressalte-se que a autora, quando escreve Independência, que sempre
caracteriza como separação política da metrópole, o faz entre aspas.
Pretende, com isso, questionar a caracterização do processo de 1822
como independência (DIAS, 1972, p. 160).
A diferença entre o modo como Dias entende a questão e a
maneira como a compreendemos reside no fato de que, para a autora,
Caio Prado estaria abordando o estabelecimento de certos traços que
fariam parte do processo histórico real, ou seja, tratar-se-ia da descrição
do processo histórico tal como, efetivamente, ocorreu. Do nosso ponto
vista, estamos diante de uma interpretação do processo histórico que,
convém assinalar, diz respeito mais à época em que a Independência
foi interpretada do que ao período histórico em que ela ocorreu
propriamente. De fato, o que vimos tentando destacar é que o modo

30 Aqui, mais uma vez, assinale-se nossa discordância com a historiografia. Apenas
podemos concordar com o entendimento desta autora de que Caio Prado estava
preocupado em tornar o Brasil uma nação se fizermos a ressalva de que, para ele, a
base da nação seria uma economia nacional, cuja produção estaria voltada para o
atendimento das necessidades da população brasileira.

127
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

como a Independência foi interpretada no século XX, sob a inspiração


do livro Formação, diz respeito mais às questões do presente do que ao
processo verificado nos primórdios do século XIX.
Prosseguindo em suas considerações sobre a historiografia, Dias
afirma que também Sérgio Buarque, em seu texto “A herança colonial –
sua desagregação”, “(...) onde analisa as transações e os compromissos
com a estrutura colonial na formação do império americano” teria
apontado a continuidade da transição no plano das instituições e da
estrutura social e econômica. Ainda segundo Dias, também Emília
Viotti, em seu trabalho “Introdução ao estudo da emancipação política”
teria retomado algumas das diretrizes de Caio Prado (1972, p. 162).
Mas talvez seja A independência política do Brasil, de Novais e
Mota (1996), o livro mais interessante para se analisar o amplo domínio
de Caio Prado no estudo da Independência. Com efeito, esses autores,
percebendo que a tônica da historiografia era a continuidade da
condição colonial na economia brasileira, uma vez que se valorizava o
aspecto econômico em detrimento do político, tentam resgatar a
dimensão política da Independência. Fazem-no, no entanto, de uma
forma tímida, sem questionar a valorização da continuidade e tentam
um equilíbrio entre os aspectos político e econômico.
No entanto, para realizar este resgate, não basta realçar a
dimensão política, sem questionar a interpretação que deu origem à
sua minimização. Com efeito, seria necessário, antes de tudo, buscar as
origens dessa minimização, desse modo de conceber a Independência.
Por isso, apesar de sua observação inicial, esses autores mantêm-se no
interior da concepção de Caio Prado sobre a Independência.
Na Introdução, Novais e Mota salientam que uma das
principais características da historiografia relativa à Independência é o
estabelecimento de uma linha de continuidade entre o período anterior
e o posterior a ela. Com efeito, ao considerarem os estudos mais
recentes, que teriam ampliado a cena histórica luso-brasileira,
constatam “(...) a continuidade da aceleração histórica que projetou o
Brasil do Antigo Sistema Colonial para os quadros do imperialismo da
potência mais industrializada da época, a Inglaterra (...)” (1996, p. 11).
Colocam, então, uma questão importante: a emancipação do Brasil teria
sido uma independência relativa? Segundo eles, esta é uma das
questões mais freqüentemente levantadas quando se focaliza a história
do período. Entretanto, julgam que, se o Brasil continuou
economicamente dependente dos centros externos e se isto perdurou
como uma das suas mais marcantes características históricas, não é
lícito sonegar a importância, nos limites daquela época, dos processos

128
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

políticos e ideológicos em que avultaram o pensamento e a ação do


estadista José Bonifácio e do revolucionário Frei Caneca, duas das
personalidades maiores da história latino-americana (1996, p. 12).
Pretendem, portanto, realçar o aspecto político da Independência sem
colocar em questão a valorização do aspecto econômico, que
justamente realça a permanência do caráter colonial da economia.
Não nos estenderemos no exame desta interpretação de Novais
e Mota por não ser este o nosso objetivo. Nosso intuito é apenas
salientar o fato de que, tendo levantado uma questão fundamental
sobre a interpretação do processo de emancipação política do Brasil,
ainda assim não rompem com a forma de Caio Prado interpretar a
Independência. Ressaltam, por isso, que ela teve caráter ambíguo e
contraditório. Por um lado, foi uma revolução, por ter rompido com a
dominação colonial, alterando a estrutura do poder político. Mas, por
outro, foi uma revolução que conduziu o Brasil do Antigo Sistema
Colonial português para um novo Sistema Mundial de Dependências,
ou seja, manteve seu caráter colonial (1996, p. 83).
Assim, como pudemos verificar, com Formação, Caio Prado
estabeleceu um paradigma para os estudos acerca da Independência.
Entretanto, este paradigma não foi seguido apenas pelos autores que,
de uma maneira ou de outra, compartilham suas formulações gerais.
Ele se disseminou, também, entre os autores que possuem
interpretações que divergem da de Caio Prado. É o que examinaremos
a seguir.

6. A INDEPENDÊNCIA ENTRE OS CRÍTICOS DE CAIO PRADO.

Também não pretendemos aqui fazer um estudo minucioso e


exaustivo da historiografia que, de uma maneira ou de outra, opõe-se à
interpretação da história do Brasil de Caio Prado. Pretendemos apenas
assinalar o amplo domínio que ele exerce sobre a historiografia
brasileira em geral, se não na interpretação da história do Brasil, ao
menos na que diz respeito aos aspectos gerais da Independência. A
constatação de que o domínio de Caio Prado extrapola o campo
daqueles que concordam com suas formulações, estendendo-se até aos
seus críticos, é bastante importante. Comprova que Caio Prado
estabeleceu um modo de considerar a história do Brasil que, em suas
linhas mais gerais, tornou-se praticamente hegemônica. Já tivemos a
oportunidade de chamar a atenção para este fato em outro texto,
observando, no caso, que a concepção de colônia como produção para

129
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

o mercado externo, fundamento da sua interpretação da história do


Brasil, é aceita mesmo pelos seus maiores críticos31.
No que diz respeito à Independência, podemos abordar a
hegemonia de Caio Prado sobre a historiografia por meio de três
autores: Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes e Jacob
Gorender32. Evidentemente, trata-se de uma escolha mais ou menos
arbitrária, embora tenham papel de destaque na historiografia
brasileira. Selecionamos autores de esquerda que, de uma forma ou de
outra, implícita ou explicitamente, fazem críticas a Caio Prado e
possuem uma interpretação da história do Brasil divergente da sua.
Também cabe assinalar que o fato de termos nos apoiado em
apenas três autores para fazer essa afirmação não significa que
estejamos nos movimentando em um universo restrito. Como
chamamos a atenção, são bastante expressivos e marcam presença na
historiografia brasileira.
Poder-se-ia argumentar que esses autores teriam uma mesma
concepção geral da Independência, incluindo-se nesse grupo o próprio
Caio Prado, já que todos seriam autores de esquerda. Em conseqüência,
não seriam autores por ele “influenciados”, mas compartilhariam de
uma mesma concepção. De certa maneira, isso é verdade. Esses
autores, por entenderem que a sociedade brasileira necessitava, ao
menos, de reformas, localizam na Independência um dos momentos
em que as mudanças foram parciais. Em razão disso, entendem ser
necessário superar as heranças coloniais. Entretanto, como foi Caio
Prado o primeiro a elaborar, no campo da história, esta maneira de
conceber a Independência, somos levados a supor que acabou por se
tornar uma espécie de referência para os estudos posteriores.
Consideremos, pois, estes três autores.

6.1. NELSON WERNECK SODRÉ

Deixaremos de lado aquilo que pode diferenciar Caio Prado de


Nelson Werneck Sodré, questão irrelevante, sob certos aspectos, para

31 Vide o artigo Caio Prado Júnior e a história do Brasil. A colonização como produção

para o mercado externo.


32Evidentemente, esses autores têm uma interpretação da história do Brasil distinta da
de Caio Prado. O que estamos assinalando é que Caio Prado estabeleceu os parâmetros
gerais da interpretação da história do Brasil, com os quais estes autores não romperam.
Em um artigo que estamos elaborando pretendemos discutir mais detidamente essa
questão.

130
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

os nossos propósitos. Basta apenas lembrar que eles formularam


interpretações bastante distintas da história do Brasil. Neste texto,
centraremos nossa atenção no que ambos têm em comum, o que, a
nosso ver, é um aspecto fundamental para nossa discussão. Desta
forma, pretendemos apenas assinalar que, assim como Caio Prado,
Sodré analisa a Independência menos pelo que ela realizou e mais pelo
que, supostamente, deixou de realizar.
Na introdução ao seu livro As razões da Independência (1965),
Sodré afirma que, em seu livro anterior, Formação histórica do Brasil
(1962), procurou, entre outras coisas, analisar o papel da Grã-Bretanha
em todo o processo da Independência, destacando como esta nação
substituiu as antigas metrópoles no domínio das antigas colônias,
levando-as a se subordinar aos seus interesses (1965, p. 11). Segundo
esse autor, a base do desenvolvimento histórico brasileiro teria sido a
“(...) aliança entre o latifúndio, de um lado, e a expansão pré-
imperialista e, depois, imperialista, de outro lado, (...).” (1965, p. 12).
Em outras palavras, de modo semelhante ao da maior parte da
historiografia relativa à Independência, ele salienta o fato de que, com a
emancipação, mantendo-se na condição de uma economia colonial, o
Brasil rompeu com uma metrópole para cair em outra forma de
dependência.
Analisando o período regencial, Sodré afirma que essa fase
corresponde à finalização do processo de Independência, já que se
definiram o campo e as forças políticas que o ocupariam e se deu
fisionomia ao Estado no Brasil. No entanto, ele salienta que, com a
consolidação da classe senhorial no poder, as características fundamentais
do que havia de essencial no sistema colonial persistiram atuando. Em razão
disso, passávamos da dependência política de metrópole decadente para a
dependência econômica e financeira de metrópole próspera. Assim, apesar do
avanço que representou, a Independência ficou no meio do caminho.
Sodré conclui: “Teríamos ainda muito de experiência a acumular para
que, no fim do século, ultimássemos a escolha de regime mais
adequado e, posteriormente, encetássemos os esforços no sentido de
concretizar a independência capaz de permitir ao país o
desenvolvimento que o seu povo merece” (1965, p. 261).
Assim, em sua análise, Sodré destaca que, pelo fato de a
Independência ter sido feita pela classe dominante colonial, ou seja, os
grandes proprietários rurais, o caráter colonial da economia foi
mantido:

131
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Em linhas gerais, a orientação da classe dominante


colonial, que empresara a independência, consistia em
aceitar todo o passado, menos a volta à subordinação à
metrópole; [...] sistema [colonial] que dera continuidade a
uma estrutura de produção incompatível com a situação de
autonomia plena. A dependência do exterior continuaria,
pois, embora assumisse novas condições.
Continuaria porque a estrutura de produção persistia
colonial e impunha, assim, o laço de subordinação ao
exterior. (1965, p. 205)

Como se pode perceber, ainda que Sodré interprete a história do


Brasil de maneira distinta da de Caio Prado, fundando-a na seqüência
dos diferentes estágios de sociedade, ele participa da idéia de que na
Independência se localizaria o ponto de inflexão que tornou o país uma
nação incompleta, restando-lhe ainda superar o caráter colonial. Sob
este aspecto, em 1822, o Brasil teria alcançado sua emancipação política,
mas, em decorrência da ação da classe colonial dominante, ainda estava
por se alcançar sua autonomia plena.
Em outras obras suas encontramos a mesma formulação. Por
exemplo, em seu livro História da Burguesia Brasileira, cuja primeira
edição é de 1964, ao tratar da Independência, que denomina
autonomia, ele destaca, mais uma vez, que esse acontecimento não
implicou mudanças profundas:

A autonomia, em essência, resumira-se na derrocada do


regime de monopólio comercial. Não importava em
alterações profundas. Não alterara a estrutura de
produção, a propriedade da terra, a propriedade servil.
Mantivera as relações de produção coloniais, eliminando a
intermediação portuguesa, a que estava reduzida,
finalmente, a subordinação do Brasil à metrópole. Caberia,
agora, à classe senhorial gerir o Estado, ampliando o
aparelho antigo, após as alterações do período joanino.
Empresara a autonomia em aliança com a Grã-Bretanha, à
base do interesse comum de liquidação do monopólio
comercial. Inseria-se, assim, o Brasil no amplo quadro da
revolução burguesa, mas com uma economia colonial
intacta. (1964, p. 61)

Outro exemplo encontra-se em seu livro Formação da sociedade


brasileira, publicado pela primeira vez em 1944. Neles Sodré já insiste
no fato de que a Independência havia se realizado apenas no plano

132
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

político, mantendo-se o caráter colonial da economia, assim como a


subordinação do Brasil à Inglaterra:

Esses vínculos [de natureza econômica] estavam


transferidos à Inglaterra (...) (p. 259)
No Brasil, muito ao contrário [do que ocorrera nos EUA], a
independência frustrou as tendências políticas que viviam
em estado potencial, e que já haviam repontado nas
insurreições do passado e fundamentou a continuação de
um primarismo econômico, de um colonialismo e de uma
subordinação que acabaram relegando o processo de
autonomia apenas ao plano político, sem graves e maiores
repercussões no organismo nacional, cuja existência
permaneceu sob os mesmos índices negativos (SODRÉ,
1944, p. 260).

Como se pode verificar, da mesma maneira que Caio Prado,


Sodré não apenas chama a atenção para o fato de que a Independência
não propiciou a completa emancipação da nação, como afirma que, no
seu tempo, a tarefa consistia justamente em obter a autonomia que não
havia sido alcançada no início do século XIX.

6.2. FLORESTAN FERNANDES

Florestan Fernandes é um dos autores que melhor caracteriza os


pressupostos que se encontram subjacentes no estudo da
Independência. Primeiro, por formular a idéia de que a Independência
deveria ser acompanhada de transformações econômicas. Por
conseguinte, a Independência do Brasil - caracterizada como uma
simples ruptura política - é praticamente desconsiderada em seu livro.
No livro Sociedade de classes e subdesenvolvimento (1972), ele observa que
a formação do Estado nacional independente desenrolou-se sem que
ocorressem alterações anteriores ou concomitantes na organização da
economia e da sociedade. Destaca também que a inclusão da economia
brasileira no mercado mundial representou um simples episódio do ciclo de
modificações dos laços coloniais, no quadro histórico pela elevação da
Inglaterra à condição de grande potência colonial. Assim, “Os laços
coloniais apenas mudaram de caráter e sofreram uma transferência:
deixaram de ser jurídico-políticos, para se secularizarem e se tornarem
puramente econômicos; passaram da antiga Metrópole lusitana para o
principal centro de poder do imperialismo econômico nascente” (1972,
p. 10).

133
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Salienta Florestan que esse processo histórico-social, que


vinculou o destino do Brasil ao neocolonialismo, teve enormes
conseqüências para a estruturação e a evolução do capitalismo dentro
do país. Dessa forma, ele reproduz a idéia-matriz inaugurada por Caio
Prado nos livros de história e que predominou na historiografia
brasileira a partir de então:

Em um nível, como revolução política, ele culminou na


eliminação das formas preexistentes de expropriação
colonial, de fundamento “legal”; na reorganização do fluxo
interno do excedente econômico, o qual deixou de ser
estritamente regulado a partir de fora; e na transferência do
poder político institucionalizado para as elites nativas (ou
seja, as elites dos estamentos senhoriais). No nível
econômico, ele não teve o mesmo sentido revolucionário.
As estruturas sociais e econômicas do mundo colonial
ficaram intactas, como condição mesma, seja para o
controle do poder pelas elites senhoriais nativas, seja por
causa das necessidades do mercado mundial, em relação ao
qual a economia tropical preenchia uma função
especializada, de natureza heteronômica (1972, p. 10-11).

Assim, para Florestan, a Independência foi, ao mesmo tempo,


revolucionária e conservadora. Revolucionária em seu aspecto político,
ao romper com o regime colonial; e conservadora, ao manter o caráter
colonial da economia. Ele observa ainda que a Independência,
“malgrado seu significado ambíguo no plano econômico, inaugura a
Idade Moderna do Brasil” (1972, p. 11). Florestan nota também que o
“(...) encadeamento entre os dois tipos de colonialismo explica por que
a sociedade nacional emergente não era uma Nação independente, do
ponto de vista econômico” (1972, p. 11). Um pouco mais adiante, faz
menção às nações politicamente ‘livres’, mas economicamente
‘dependentes’:

Em primeiro lugar, as Nações politicamente ‘livres’, mas


economicamente ‘dependentes’ que surgiram como
produtos históricos da ‘expansão do mundo ocidental
moderno’, não evoluíram para o capitalismo por causa das
estruturas econômicas e sociais vinculadas à economia
exportadora das plantações (1972, p. 12).

134
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

Florestan conclui que teria havido apenas uma “metamorfose


dos laços de dependência colonial” (1972, p. 13).

6.3. JACOB GORENDER

Jacob Gorender tenciona que seu livro O Escravismo colonial


(1978) constitua, entre outras coisas, uma crítica à interpretação de Caio
Prado. Ao longo do livro, percebemos que esse autor é sua primeira
referência, já que discute, passo a passo, suas principais linhas de
interpretação. Sua importância reside no fato de que, apesar de propor
uma interpretação oposta à de Caio Prado, deixa entrever o domínio
que este último exerce sobre o conjunto dos historiadores brasileiros,
independentemente das diferentes linhas teóricas ou interpretativas
que eles assumem.
Ao caracterizar o escravismo colonial, Gorender pontua sua
relação com um mercado interno estreito, quase inelástico, inadequado
aos fins da produção mercantil, cuja tendência seria a especialização.
Entretanto, este problema estaria de antemão resolvido, “(...) pois sua
solução constituía uma das premissas da criação da plantagem
colonial.” Assim, “A produção desta última se escoaria no mercado
externo já existente e em ampliação, com uma demanda crescente de
gêneros tropicais – o mercado da Europa” (1978, p. 169).
Gorender identifica colonial com uma produção dependente do
mercado metropolitano. No texto a seguir, fica ainda mais evidente o
que entende por colonial:

A esta altura, devo precisar que o conceito de colonial é aqui


puramente econômico. Por isso, tanto pode referir-se a um
país colonial também sob o aspecto político, como a um
país organizado em Estado independente. O significado
econômico de colonial, próprio à era iniciada com o
mercantilismo, explicita-se, ao meu ver, nos seguintes
traços principais: 1º. – economia voltada principalmente
para o mercado exterior, dependendo deste o estímulo
originário ao crescimento das forças produtivas; 2º. – troca
de gêneros agropecuários e/ou matérias-primas minerais
por produtos manufaturados estrangeiros, com uma forte
participação de bens de consumo na pauta de importações;
3º. – fraco ou nenhum controle sobre a comercialização no
mercado externo.
Deste ponto de vista, a periodização historiográfica
corrente em Brasil-colônia e Brasil-império não tem

135
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

relevância. A conquista da independência política não


suprimiu o escravismo e este permaneceu tão colonial
quanto o era ao tempo da subordinação estatal à metrópole
portuguesa. Precisamente o Brasil imperial proporcionou o
exemplo de um Estado independente com um modo de
produção escravista colonial (1978, p. 170).

Como se pode verificar, encontramos aí todos os elementos que


caracterizam esse modo particular de analisar a Independência e a
própria história do Brasil, tais como: a compreensão da Independência
em seus dois aspectos, político e econômico; o fato de a independência
política não suprimir a dependência econômica; e a circunstância de
que em 1822 não foram suprimidas instituições coloniais como a
escravidão.
Ao transcrevermos algumas passagens de Nelson Werneck
Sodré, Florestan Fernandes e Jacob Gorender, tivemos apenas a
intenção de destacar que esses diferentes autores, apesar de
interpretarem a história do Brasil de distintas maneiras, possuem
pontos em comum.
O primeiro e mais importante desses pontos é o fato de se
colocarem como autores marxistas ou, ao menos, influenciados
decisivamente por essa doutrina. O segundo ponto é que,
independentemente de qualquer questão, compreendem a
Independência como um processo incompleto. Em última instância, por
meio de uma distinção entre independência política e independência
econômica, fazem dessa dicotomia a base para a análise da
emancipação no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto procuramos assinalar as diferenças existentes


entre o modo como Caio Prado interpreta a Independência do Brasil
nos seus livros Evolução e Formação. A intenção não era, pura e
simplesmente, destacar e analisar essas diferenças, mas, em primeiro
lugar, chamar a atenção para o fato de que elas indicam uma inflexão
em sua maneira de conceber a história e, por conseguinte, a própria
história do Brasil. Não estamos nos referindo simplesmente ao
abandono da luta de classes como categoria norteadora do estudo da
história, embora consideremos que isso é fundamental para nossas
reflexões. Outros aspectos das duas obras indicam essas diferenças. Um
exame das próprias estruturas de Evolução e Formação nos revelaria a

136
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

mudança que se operou na maneira de Caio Prado conceber a história.


Em última instância, a mudança no seu modo de conceber a história,
circunstância que o levou a modificar sua própria interpretação da
história do Brasil e, por conseqüência, sua atitude frente à
Independência, expressa uma alteração na sua própria posição política.
Trata-se, portanto, de uma questão mais abrangente que, como já foi
dito, não é apreendida quando se considera a obra de Caio Prado como
resultado das suas opções políticas e teóricas, ou seja, como um autor
comunista e marxista. Assim, é importante assinalar a necessidade de
uma nova maneira de analisar a obra de Caio Prado, levando em conta
as possíveis rupturas na sua trajetória política e intelectual.

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Senado Federal; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980.
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DIAS, Maria Odila da Silva. A Interiorização da Metrópole (1808-1853).
In: MOTA, Carlos Guilherme (org.) 1822: Dimensões. São Paulo:
Perspectiva, 1972.
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FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 2a
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1978.
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Júnior e Oliveira Vianna: uma discussão sobre os vínculos entre suas
Interpretações do Brasil e seus projetos políticos nacionalistas. Assis,
2003 (Dissertação de Mestrado) – Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista.

137
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

IGLÉSIAS, Francisco (org.) Caio Prado Júnior: história. São Paulo: Ática,
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São Paulo: Alfa-Omega, 1975.
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História) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de
São Paulo.
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edição. São Paulo: Brasiliense, 1966.
_______ Evolução política do Brasil. Ensaio de interpretação materialista
da história brasileira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933.
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história brasileira. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1947.
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RODRIGUES, José Honório. Independência: revolução e contra-revolução.
Rio de Janeiro: Francisco Alves,
SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil. (1500-1820). 4ª
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_______ Evolução industrial do Brasil e outros estudos. São Paulo: Editora
Nacional e USP, 1973.

138
REFLEXÕES SOBRE A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NA OBRA DE CAIO PRADO JR.

SODRÉ, Nelson Werneck. As razões da Independência. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1965.
_______ História da Burguesia Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1964.

139
RESENHA: RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a
nacionalização do marxismo no Brasil. São Paulo:
Departamento de Ciência Política da Universidade
de São Paulo; FAPESP; Ed. 34, 2000.

A publicação de um livro sobre a produção histórica de Caio


Prado Júnior deve, antes de tudo, ser saudada, pois coloca em foco a
obra daquele que é, sem sombra de dúvida, o mais importante
historiador do Brasil. Esta avaliação não diz respeito ao mérito da obra
de Caio Prado, mas, sim, à constatação de que sua interpretação da
história do Brasil, particularmente a que registrou em Formação do Brasil
Contemporâneo, tornou-se dominante na historiografia brasileira
praticamente desde a publicação deste livro, em 1942.
Com efeito, muito pouco do que se produziu desde então ficou
fora das linhas mestras de Caio Prado. Quando ficou, a nova
interpretação não teve a repercussão nem formou uma corrente como
veio a acontecer com a de Caio Prado Júnior. Tal constatação funda-se
em duas formulações centrais que estão presentes nos livros de história
de Caio Prado escritos depois de Formação. A primeira formulação é
seu entendimento de produção colonial como produção para o
mercado externo. Isto define, inclusive, do seu ponto de vista, o que
vem a ser uma colônia. A segunda formulação, decorrente, inclusive,
da primeira, é que nosso processo histórico caracteriza-se pela
passagem da economia colonial para a nacional, entendida esta como
produção voltada essencialmente para atender às necessidades da
população brasileira.
Essa introdução é necessária para discutirmos a análise que
Bernardo Ricupero faz da obra de Caio Prado Júnior. Com efeito, as
duas formulações de Caio Prado acima mencionadas não são
consideradas nos estudos a seu respeito e, quando o são, não lhes é
dada sua devida importância e nem se leva sua constatação às últimas
conseqüências. Acreditamos que somente uma análise que as considere
devidamente poderá apreender seu significado histórico.
O livro é, originalmente, a dissertação de mestrado de Ricupero,
defendida no Departamento de Ciência Política da USP e que recebeu
menção honrosa no Prêmio Lourival Gomes Machado para as melhores
teses defendidas em 1997.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

O propósito primeiro do autor é mostrar que a obra histórica de


Caio Prado representa a elaboração de um marxismo original, já que
conseguiu “(...) traduzir o modo de abordagem dessa teoria às
condições de uma experiência histórico-social específica, a do Brasil”
(p. 29). Ricupero denomina isto de “nacionalizar” o marxismo, daí o
título do seu livro. Evidentemente, o autor pretendeu também brincar
com os termos e, assim, provocativamente, em face das críticas
dirigidas a Caio Prado como um autor nacionalista, colocou a palavra
no título e, ao longo do trabalho, utilizou o conceito de nacionalização.
Assim, por nacionalização do marxismo entende não a introdução de
um viés nacionalista na doutrina que se caracteriza justamente pelo
internacionalismo, mas por ter Caio Prado sabido adaptá-lo às
condições brasileiras.
Isto o afastaria “(...) da maior parte dos nossos marxistas,
incapazes que foram, quase todos eles, de compreender as
particularidades das quais é feita nossa formação econômico-social” (p.
24). Em contraposição aos que procuram desvalorizar a obra de Caio
Prado por sua aproximação com o marxismo, Ricupero pretende
valorizá-lo precisamente por essa aproximação, ou seja, pelo fato de ter
sabido utilizar de forma original o marxismo. Para Ricupero, a obra de
Caio Prado representaria “(...) a elaboração de um marxismo original,
preocupado com as condições específicas de nossa experiência
histórico-social” (p. 32).
Ricupero comete aqui, no entanto, um equívoco também
praticado por outros autores que analisaram Caio Prado. Com efeito, é
freqüente nos estudos de sua obra contrapô-lo às teses e à interpretação
do Partido Comunista Brasileiro, principalmente no que diz respeito à
existência do feudalismo no Brasil. Neste confronto Caio Prado sai,
evidentemente, valorizado diante do esquematismo e da aplicação
dogmática das teses da III Internacional pelo PCB.
Ao adaptar o marxismo às condições brasileiras, ou melhor,
com o argumento de adaptá-lo a uma dada situação particular, também
Caio Prado não procedeu de maneira diferente da de outros autores.
Com a alegação de que se estaria considerando uma experiência
particular, estes autores retiraram do marxismo justamente seu caráter
revolucionário. Assim, se de um lado o confronto é com o PCB, de
outro, é preciso considerar que Caio Prado vinculava sua interpretação
do processo histórico brasileiro a uma proposta política, afirmando
que, para o Brasil, nem a alternativa do liberalismo, nem a alternativa
do socialismo, que considerava prematuro para as nossas condições,
seriam viáveis. Deste modo, a formulação de que nosso processo

142
RESENHA: RICUPERO, BERNARDO. CAIO PRADO JR. E A NACIONALIZAÇÃO DO MARXISMO NO BRASIL

histórico se caracteriza pela passagem da economia colonial para a


nacional constitui o fundamento da proposta política de Caio Prado,
segundo a qual a solução para os nossos problemas estaria na
constituição de uma produção voltada para atender às nossas
necessidades, que é o que, no seu entender, caracterizaria a economia
nacional.
Para mostrar que Caio Prado abriu “(...) caminho para a
aproximação da teoria marxista com a realidade brasileira” (p. 24),
Ricupero divide seu livro em três partes e sete capítulos. Propõe-se, ao
longo dos capítulos, privilegiar “as implicações políticas” das análises
de Caio Prado (p. 25). Na primeira parte, intitulada “Texto e contexto
em Caio Prado Jr.”, com dois capítulos, Ricupero discute o
procedimento que deveria ser adotado ao se analisar a obra de Caio
Prado. Basicamente, defende a idéia de que a melhor forma de
compreender as posições por ele defendidas ao longo da vida é
confrontando-as com os ambientes intelectuais e políticos em que
atuou (p. 31). Na segunda parte, que recebeu o título “O Contexto”,
com dois capítulos também, Ricupero procura situar a obra de Caio
Prado “(...) num certo horizonte intelectual e político, o marxismo do
Brasil, e comparar seus trabalhos com os de outros autores que se
identificaram no país com essa vertente intelectual e política” (p. 32).
Esclarece ainda que este ambiente, o marxismo no Brasil, no entanto, é
estudado dentro de um contexto maior, o marxismo na América Latina
que, alerta Ricupero, não passaria de uma derivação do marxismo
soviético, resultante das teses da III Internacional (p. 32). Finalmente,
na terceira parte, a mais importante, intitulada “O texto”, com três
capítulos, o autor se dedica “(...) mais diretamente ao estudo da obra de
Caio Prado Jr.” (p. 33).
Consideramos a terceira parte a mais importante do livro.
Começando a discussão por “(...) um problema específico, a questão
central que preocupa [Caio Prado] ao longo de sua obra e atividade
política: a relação entre Colônia e Nação e, a partir dela, a transição
entre essas duas situações” (p. 33), o autor põe em destaque o elemento
fulcral da interpretação caiopradiana da história do Brasil. A análise de
Ricupero constitui uma aceitação e uma incorporação das idéias
centrais de Caio Prado, particularmente da formulação de que nosso
processo histórico se caracteriza pela passagem da economia colonial
para a nacional.
Para comprovarmos isto, basta considerar o modo como resume
as principais formulações de Caio Prado sobre nosso passado colonial e
a transição para a economia nacional. Com efeito, quando se pretende

143
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

analisar e discutir um autor, faz-se um resumo, destacando-se os


pontos para os quais se julga necessário chamar a atenção do leitor,
para, em seguida, discuti-los. Ao resumir a interpretação da história do
Brasil de Caio Prado, Ricupero concorda com suas linhas mestras. Não
é casual que os três capítulos da terceira parte parafraseiem Caio Prado
e se intitulem “A Colônia”, “A transição entre Colônia e Nação” e “A
Nação”. É verdade que, na “Conclusão”, Ricupero observa que, se
fôssemos focalizar Caio Prado com lentes do presente, produziríamos o
retrato de “(...) um nacionalista embolorado (...)”, já que “(...) quase
mais ninguém acredita na possibilidade de uma organização
praticamente autárquica do país” (p. 229). Entretanto, é impossível
dissociar a proposta de formação de uma economia autárquica da
formulação de que a história do Brasil se caracterizaria pela passagem
da economia colonial para a nacional. Este parece ser o caminho para
uma avaliação histórica da obra de Caio Prado.

144
PALESTRA: CAIO PRADO E A REVOLUÇÃO RUSSA33.

Primeiramente, queremos dar os parabéns aos organizadores do


X Seminário de Pesquisa pela escolha do tema, “90 anos da Revolução
Russa”. Essa revolução constitui um marco significativo na história da
humanidade e, por isso mesmo, não pode ficar à margem da reflexão
do historiador. Nada pode ser compreendido depois do seu advento
sem que ela seja levada em consideração. Ela acarretou mudanças
significativas em todos os aspectos da vida humana. As artes, a
literatura, a filosofia, a política, a ética, as ciências humanas, enfim,
todos os campos do conhecimento ou da cultura têm nessa revolução
seu ponto de referência, a favor ou contra. Em virtude dela, a própria
história mudou seu curso, assim como a própria maneira de se
concebê-la. A escola dos Annales, por exemplo, que domina há muito a
academia, surgiu em conseqüência e em contraposição ao marxismo e,
por extensão, à própria revolução. É com base nessa formulação geral,
ou seja, de que nenhum acontecimento ou processo pode ser explicado
sem que a Revolução Russa seja levada em conta que desenvolveremos
nossa palestra acerca de Caio Prado Jr.
Foi-nos sugerido o tema “Caio Prado e a Revolução Russa”.
Trata-se de um tema por demais relevante. Não apenas pelo fato de,
neste ano, se comemorar, também, o centenário de nascimento de Caio
Prado. Este, por si só, seria um motivo por demais suficiente para lhe
dar destaque, já que Caio Prado, além de marxista e comunista, é
considerado por muitos o historiador mais importante do Brasil.
Acreditamos, no entanto, existir um motivo ainda maior para a
escolha do tema desta palestra. É bastante comum, quando se trata de
Caio Prado, mencioná-lo, juntamente com Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda, como integrante do grupo que se costuma
denominar “Intérpretes do Brasil”. Ao que parece, cabe a Antonio
Cândido a primazia de reunir estes três autores, observando que os
mesmos influenciaram toda uma geração. A partir de então, aqueles
que analisaram e comentaram a obra de Caio Prado sentiram como
uma espécie de obrigação fazer a menção a este trio. Infelizmente,

33 Palestra ministrada no X Seminário de História: Os 90 anos da Revolução Russa,

organizado pelo Departamento de História da Faculdade Estadual, Ciências e Letras de


Paranavaí/PR, em 25/06/2007.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

muitas vezes a obrigação impede a reflexão. Então, toma-se a reunião


destes três autores como um dado inquestionável.
Ainda que estes três autores tenham escrito seus livros de
estréia em datas próximas (Caio Prado, Evolução política do Brasil, em
1933; Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala, em 1933; Sérgio Buarque
de Holanda, Raízes do Brasil, em 1936) e pertençam à mesma geração
(Gilberto Freyre, 1900-1987; Sérgio Buarque, 1902-1982; Caio Prado,
1907-1990), o fato é que juntá-los sob a designação de “Intérpretes do
Brasil”, ou qualquer outra, não permite a percepção de uma diferença
essencial entre eles.
É verdade que parte dos autores que os consideraram sob essa
denominação buscou também estabelecer algumas diferenças entre
eles: ora de ordem política, ora de ordem teórica, ora de origem social,
ora derivadas de suas origens geo-econômicas. Entretanto, tais
diferenças são estabelecidas no interior de um conjunto maior. São
diferenças estabelecidas aceitando-se que pertencem ao conjunto dos
“intérpretes do Brasil”. Assim, primeiro se os reúne, buscando-se uma
identidade; em seguida, se estabelece uma distinção entre eles, que,
muitas vezes, se aproxima de uma espécie de divisão do trabalho, na
qual cada um contribuiria com um aspecto para a compreensão do
todo que seria a história do Brasil.
Cremos, entretanto, existir uma diferença que projeta Caio
Prado e o distingue dos demais: à exceção dele, nenhum dos demais
autores criou uma escola. Com efeito, principalmente após a publicação
de Formação do Brasil contemporâneo, em 1942, Caio Prado exerceu de
forma sempre crescente uma influência na produção historiográfica
brasileira, fato que não se verificou nem com Freyre, nem com Sérgio
Buarque.
Também é surpreendente a longevidade da interpretação da
história do Brasil de Caio Prado. É verdade que ela recebeu um sopro
de vitalidade após Fernando Novais formular sua concepção de
colonização em fins da década de 60 e início da de 70. Chamando a
atenção para os limites da análise de Caio Prado, mas ressaltando, por
outro lado, que se fundamentava neste autor, incorporando e
ampliando suas formulações, Novais acabou fazendo com que, a partir
de então, eles caminhassem juntos. Não é o lugar aqui para questionar
essa formulação de Novais, até porque isto fugiria do nosso tema. Mas,
apenas para registro, ainda que Novais tenha incorporado as análises,
formulações e mesmo determinadas expressões e termos utilizados por
Caio Prado, o fato é que não pode ser considerado como um autor que

146
PALESTRA: CAIO PRADO E A REVOLUÇÃO RUSSA

ampliou e aprofundou a interpretação caiopradiana. Trata-se aqui da


visão e da versão de Novais acerca dessa questão.
As formulações de Caio Prado mantêm-se, pois, ainda hoje,
atuantes e aceitas nos meios acadêmicos. Mas mais importante ainda é
que Caio Prado formulou uma maneira de conceber a história do Brasil
que se impôs a ponto de nos tornar, desde que nascemos, seus
partidários. Com efeito, certas formulações suas foram incorporadas de
tal maneira ao senso comum que as aceitamos sem maiores
questionamentos. Muitas vezes chegamos mesmo a ignorar sua autoria.
Além disso, desde pelo menos a década de 80, nos livros
didáticos e nas apostilas utilizadas no ensino médio e fundamental, a
parte referente à colonização é baseada em Caio Prado e Fernando
Novais. Deste modo, a concepção de história e a interpretação de
colonização que formam os nossos estudantes é a destes autores.
Assim, os estudantes tomam contato com uma dada maneira de
interpretar a história do Brasil como se fosse a única. Creio ser este o
motivo mais importante para fazermos uma reflexão sobre a obra de
Caio Prado.
O tema “Caio Prado Jr. e a Revolução Russa” pode ser abordado
de duas maneiras.
A primeira delas incide sobre a posição de Caio Prado em face
da Revolução Russa, se bem que teríamos dificuldades para semelhante
empreitada já que ele não a abordou de forma específica. Aquilo que
mais se aproxima de uma análise deste acontecimento são seus dois
livros de viagem. Com efeito, temos URSS, um novo mundo, de 1934,
livro sobre sua viagem à União Soviética, e O mundo do socialismo, de
1960, escrito com base em uma viagem a diversos países socialistas.
Entretanto, Caio Prado não tratou diretamente do tema Revolução
Russa, à exceção de uma observação ou outra, insuficientes para
semelhante empreitada. Assim, além de não dispormos de material
direto para um estudo dessa natureza, o que temos, quando muito nos
permitiria comprovar sua simpatia para com essa revolução.
A outra maneira, que julgamos mais produtiva e eficiente, é
examinar como a obra de Caio Prado se relaciona com a revolução
socialista, dentro do espírito acima mencionado. Com efeito, chamamos
a atenção para o fato de que, após a eclosão dessa revolução, nada
poderia ser compreendido em qualquer setor da vida humana sem que
ela fosse levada em conta. É o que faremos aqui: examinaremos o
pensamento político de Caio Prado em conexão com a nova era
inaugurada pelos acontecimentos revolucionários da Rússia.

147
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Antes, porém, gostaríamos de expor algumas premissas que


norteiam nosso exame.
Não entendemos que uma obra constitui uma espécie de reflexo
da sociedade nem que um autor produz sua obra a partir dele próprio
ou das idéias então presentes na sociedade. Colocando a questão de
outra maneira, não comungamos com a postura de que as idéias
constituiriam uma espécie de reflexo das condições materiais, nem
defendemos que as idéias possuam um movimento próprio e
autônomo e que, portanto, possam ser estudadas apenas no plano do
que se costuma denominar de história das idéias.
No nosso modo de entender, um autor, ao mesmo tempo em
que expressa aquilo que está ocorrendo na sociedade, explicita o que
ainda não está suficientemente consciente e, vamos assim dizer,
maduro para a sociedade. Fazendo uma espécie de brincadeira, um
autor é, muitas vezes (portanto, nem todos eles, diga-se de passagem),
uma espécie de psicanalista social, que retira da profundeza da alma
social aquilo que a sociedade está secretando, mas ainda não tomou a
devida consciência. Neste caso, ele consegue expressar esse movimento
ainda informe e afirma, com todas as letras: este é o caminho, essas são
as questões que nos dizem respeito e este é o modo de tratá-las.
Observamos que nem todos os autores conseguem isto porque,
evidentemente, nem todos são capazes de apreender aquilo que se
passa na alma social. Isso retira qualquer possibilidade de se entender a
consciência como simples reflexo e concede à ela um caráter ativo.
Caio Prado foi um dos que o conseguiu e nisto reside a razão da
ótima recepção e da longevidade de sua obra. Caio Prado, ao contrário
de Freyre e Holanda, soube captar o que amplos setores da sociedade
estavam à procura. Freyre e Holanda, no máximo, expressaram o que
se passava no íntimo de um ou outro setor da sociedade. Mas não
acertaram a mão. Caio Prado acertou e, por isso, tornou-se, usando a
expressão da propaganda de uma marca de cerveja, preferência
nacional. De certa maneira, ele deu um rosto a amplos setores sociais
do Brasil e estes se identificaram com esse rosto, reconhecendo o autor
como o intérprete do Brasil. Assim, refletir sobre Caio Prado é refletir
sobre as tendências predominantes no Brasil. Podemos aqui citar
Horácio que, em sua primeira sátira, afirma “a fábula fala de ti”.
Retomemos o que tratamos anteriormente, ou seja, que, para
abordar o tema proposto, poderíamos escolher entre dois caminhos.
Pelo primeiro, buscaríamos em sua obra passagens que tratam e
comentam a Revolução na Rússia ou a revolução socialista. Este
poderia ser um bom caminho se não fosse o fato de que existe pouco

148
PALESTRA: CAIO PRADO E A REVOLUÇÃO RUSSA

material para isso. Além do que, caso existisse, poderíamos chegar ao


mesmo resultado do segundo caminho. Devemos sempre lembrar que
uma coisa é o que um autor afirma em geral, no caso, o que Caio Prado
pudesse afirmar sobre a revolução russa. A outra é o que de fato
propõe e, ainda nesse caso, verificar, de fato, a prática desse autor com
relação à revolução russa.
Caio Prado sempre se colocou como um autor comunista e
marxista e entendia ser dessa perspectiva que se inseria nos debates
políticos dos quais participou, pode-se dizer, desde o início da década
de 30 até o fim da sua vida. Entretanto, em um de seus livros, A
Revolução Brasileira, de 1966, o mais decisivo e polêmico, ao condenar o
Partido Comunista e aqueles que pretendiam definir o caráter da
revolução no Brasil, se era democrático-burguesa ou outra qualquer,
ele afirma que não se deveria buscar uma definição ou “natureza” de
revolução, mas, sim, acompanhar o processo de transformação, já que,
somente após a sua conclusão, seria possível caracterizar a revolução
realizada. Para defender essa proposta, Caio Prado exalta não a
Revolução Russa, mas a Cubana. Evidentemente, esclarece o motivo da
sua escolha. Na Rússia, Lênin e seu partido sempre reiteraram o caráter
socialista da revolução. Em Cuba, em contrapartida, Caio Prado
procura destacar que, ao iniciarem sua luta contra Batista, Fidel e seus
companheiros sequer eram socialistas. Foi no curso da luta que o
movimento cubano adquiriu caráter socialista. A outra maneira de
abordar o tema é examinando o pensamento político de Caio Prado, de
forma a estabelecer um vínculo com a revolução socialista e, em
particular, a Revolução Russa. Dentro dessa perspectiva, o que se deve
levar em consideração são suas propostas políticas, práticas.
Poderemos, então, verificar de que maneira ele se relacionava com a
questão da revolução socialista e, dessa perspectiva, como encarava, na
prática, a revolução ocorrida na Rússia. Este é o caminho que
tomaremos e, embora a escolha já esteja feita, falta ainda esclarecer qual
é a melhor maneira de trilhá-lo.
Pensamos, primeiramente, em examinar a sua interpretação da
história do Brasil e a proposta que a acompanha para, então, abordar o
modo como Caio Prado se relacionava com a revolução socialista, em
geral, e, em particular, com a Revolução Russa. Acreditamos ser essa a
forma mais correta, mas o caminho para chegar à questão central da
palestra seria muito longo. Resolvemos, então, tomar um caminho
oposto e, como em muitos filmes e romances de suspense, adiantar
logo de início quem é o assassino. É o mordomo. Tendo revelado quem
é o criminoso, o novo desafio é manter o interesse na trama.

149
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

São poucas as ocasiões em que Caio Prado tratou explicitamente


da revolução socialista no Brasil. Isto pode parecer estranho em um
autor que se declarava comunista e marxista, mas é um fato. É evidente
que toda sua obra trata do socialismo, como veremos posteriormente,
mas seu posicionamento diante dele nem sempre está explicitado.
Nas poucas passagens em que abordou de maneira aberta essa
questão, Caio Prado deixou clara sua posição de que considerava esse
regime prematuro entre nós, ou seja, que era necessário atravessarmos
algumas etapas e resolvermos algumas questões antes de propormos
uma luta pelo socialismo.
Pode-se supor que essa formulação de Caio Prado decorria da
sua análise da história do Brasil. Entretanto, é o oposto que ocorre. Sua
obra, por conseguinte, sua interpretação da história do Brasil e a
proposta que defendia para, como costumava afirmar, solucionar os
seus problemas tinham no seu posicionamento político o elemento
diretor. Expressando-nos de outra maneira, era sua posição política
contrária à revolução socialista, postergando-a para um futuro incerto,
que orientava seu modo de interpretar a história do Brasil.
Sob este aspecto, a posição de Caio Prado pouco diferia da do
Partido Comunista, que ele tanto criticava e combatia. O Partido
Comunista, baseando-se em uma interpretação da história do Brasil
fundada na existência de relações feudais, defendia a proposta de uma
revolução democrático-burguesa, contra o imperialismo e o latifúndio,
com o intuito de varrer os resquícios feudais e abrir caminho para o
desenvolvimento do capitalismo. Somente após cumprir essa etapa é
que, de seu ponto de vista, se poderia falar em revolução socialista.
Tal como o Partido Comunista, Caio Prado era partidário de um
processo etapista, ou seja, era preciso cumprir algumas etapas antes de
se propor uma revolução socialista. De seu ponto de vista, uma etapa
seria o que denominava economia nacional, ou seja, aquela em que a
produção estaria voltada essencialmente para o mercado interno e
destinada à satisfação da população brasileira. Como afirmamos
anteriormente, a interpretação de Caio Prado encontra-se subordinada
à sua posição política. Com efeito, é a sua posição política que
determina a sua interpretação. Não se trata aqui, como querem muitos
dos seus estudiosos e comentadores, de um autor marxista e comunista
que se debruça sobre a história do Brasil. Antes, trata-se de um autor
que rejeita o socialismo, não de forma direta, mas de maneira indireta,
por meio da afirmação de que o socialismo era prematuro entre nós.
Daí propor uma etapa intermediária entre as condições presentes e o
futuro socialismo. Essa etapa era a economia nacional. Assim, a

150
PALESTRA: CAIO PRADO E A REVOLUÇÃO RUSSA

constituição de uma economia nacional não era uma tendência da


história do Brasil, como ele afirmava, mas a solução, no seu modo de
entender, dos problemas brasileiros. Enfim, era a sua proposta política.
Como destacamos anteriormente, a interpretação de Caio Prado
encontra-se subordinada à sua posição política. Pode-se caracterizar
como sua posição política ser contrário tanto ao capitalismo, liberal ou
não, como ao socialismo. Do seu ponto de vista, a solução para os
problemas da sociedade seria a própria tendência da história do Brasil,
ou seja, a economia nacional. Para tanto, deveria haver uma
intervenção do Estado no sentido de tolher aqueles aspectos do
capitalismo que ele considerava “negativos”, “corrigi-los” mesmo para
que a produção se voltasse para o atendimento das necessidades da
população brasileira. É com essa postura que Caio Prado examina a
história do Brasil.
Como fica claro no título do seu principal livro, Formação do
Brasil contemporâneo, Caio Prado busca a explicação do Brasil
contemporâneo ou como se forma o Brasil contemporâneo, o Brasil da
década de 40. Caracteriza, então, a economia colonial como uma
economia oposta à economia nacional, ou seja, uma produção voltada
para o atendimento de necessidades estranhas, do mercado europeu.
Caio Prado divide as colônias em dois tipos: as de povoamento
e as de exploração. As de povoamento, colônias inglesas da América do
Norte, uma espécie de embrião da economia nacional, alcançaram um
alto grau de desenvolvimento. As colônias de exploração, ao contrário,
justamente por estarem voltadas para o mercado externo, não se
desenvolveram e, em razão disso, constituiriam as economias
dependentes do século XX.
Ele considera também que, nas colônias de exploração, existiam
dois setores, um voltado para a exportação e outro, subsidiário, voltado
para o mercado interno. Seria este setor que, com o aumento da
população e o desenvolvimento da colônia e depois da nação,
possibilitaria à produção para o mercado interno sobrepujar a do
atendimento às necessidades do mercado externo e, assim, constituiria
o ponto de partida para a constituição da economia nacional. Caio
Prado afirma, por fim, que a evolução da história do Brasil se
caracterizaria pela passagem da economia colonial para a nacional.
Segundo ele, alguns momentos foram decisivos neste processo, como a
Independência, a abolição do tráfico e da escravatura e a imigração
européia.
Assim, como podemos perceber, em Caio Prado, confundem-se
sua proposta política e sua interpretação da história do Brasil.

151
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Explicando melhor. Ao mesmo tempo em que afirma que a tendência


da história do Brasil é a constituição da economia nacional, para ele, a
constituição da economia nacional é uma proposta política. Como
dissemos anteriormente, ele propõe que se estruture o Brasil com base
em uma economia nacional em contraposição ao capitalismo
propriamente dito e ao socialismo. Dissemos capitalismo propriamente
dito porque, em última instância, ele pensa a economia nacional como
uma espécie de capitalismo reformado.
Evidentemente, não existe nem é possível, historicamente
falando, uma economia nacional nos moldes tratados pelo autor. Às
vezes, parece que Caio Prado acredita que os países desenvolvidos,
com os EUA à frente, seriam exemplos de economia nacional, já que a
maior parte da sua produção estaria voltada para o mercado interno.
Mas, independentemente disso, o fato é que, por meio da economia
nacional, Caio Prado quer se contrapor à proposta de “socialismo já”,
deixando-a para um futuro incerto, para quando o Brasil se encontrasse
preparado para essa forma de sociedade. Destaque-se, ainda, o fato de
que, em algumas passagens, Caio Prado deixa entrever que essa
transição seria gradual e pacífica.
Façamos uma interrupção e nos lembremos de algo para o qual
chamamos a atenção anteriormente. Caio Prado é o único autor bem
sucedido, em comparação com Freyre e Sérgio Buarque. Com efeito, é o
único que encontrou leitores que com ele se identificaram a ponto de
não apenas tornar sua interpretação hegemônica, mas também, ao
longo dessas décadas, fazer com que não surgisse nenhuma
contestação significativa à sua interpretação. Afirmamos, ainda, que
Caio Prado atingiu os corações e as mentes dos brasileiros, extraindo
do fundo da sua alma aquilo que estava difuso e não suficientemente
claro. Em outras palavras, amplos setores da sociedade disseram, por
meio de Caio Prado, que não queriam uma revolução socialista.
Assinalamos também que não se poderia reunir em um mesmo
conjunto Caio Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque. Queremos
agora retomar a questão, mas em outro nível. Sob certos aspectos eles
podem ser considerados como expressão de uma mesma perspectiva.
Gilberto Freyre buscou, com sua obra, mostrar que a escravidão no
Brasil foi mais amena do que a dos EUA e que, portanto, as relações
entre senhor e escravo ocorreram sob o signo da conciliação. Em razão
disso, as lutas raciais e sociais, justificáveis no caso dos EUA, não
encontrariam guarida no Brasil. Segundo Freyre, ao contrário dos
outros povos, como os EUA, onde os conflitos sociais e raciais eram
justificáveis, nós não resolvíamos nossas diferenças por meio do

152
PALESTRA: CAIO PRADO E A REVOLUÇÃO RUSSA

conflito e da luta. Por conseguinte, o socialismo, uma proposta radical,


era algo estranho e extravagante no Brasil. De um outro modo, também
Gilberto Freyre combate o socialismo. Ao contrário de Caio Prado,
Freyre nada propõe em seu lugar. Em outras palavras, não busca uma
terceira via, entre o socialismo e o capitalismo.
No livro Raízes do Brasil, da mesma forma que Caio Prado,
Sérgio Buarque apresenta uma interpretação da trajetória do Brasil.
Sumariando, ele mostra que, por meio da colonização, os portugueses
transplantaram para o Brasil as instituições e práticas ibéricas. A
ruptura com o iberismo, que se confunde com o agrarismo, constituiria
a revolução em curso no Brasil e não o socialismo. A grande revolução
brasileira, de acordo com este autor, seria um processo demorado.
Tratava-se, em última instância, de um movimento em que o centro de
gravidade estava se deslocando dos domínios rurais para os centros
urbanos. Um dos marcos decisivos deste processo seria justamente a
Abolição. Vê-se, deste modo, que a revolução, para Sérgio Buarque,
não se assemelhava em nada ao socialismo. Em conseqüência, em sua
interpretação, ele substitui a afirmação de que o processo histórico
tenderia para formas socialistas de sociedade por outra, a de que a
modernidade estaria na constituição dos centros urbanos.
Evidentemente, existem diferenças, algumas gritantes, entre
estes autores. Enquanto Freyre apoiou o regime de 64, Caio Prado o
combateu e foi por ele perseguido. Com o que foi dito anteriormente,
queremos apenas destacar que, de um modo ou de outro, eles eram
autores que se opuseram à proposta de uma revolução socialista nos
moldes da que havia ocorrido na Rússia, apesar de Caio Prado
manifestar simpatias e lhe prestar apoio em alguns de seus livros. É o
caso, por exemplo, do que traz um sugestivo título: URSS, um mundo
novo.
Cabe aqui um esclarecimento e um alerta. Não estamos
“cobrando” de Caio Prado uma posição diferente da que tomou. Muito
menos estamos querendo discutir se ele era ou não comunista ou
marxista. Também não é nosso intuito criticar Caio Prado. Esperamos
não ter dado nenhuma dessas impressões. Nosso intuito é tão somente
entendê-lo historicamente e mostrar em que consiste o seu pensamento
político e a sua interpretação da história do Brasil.
Também não queremos jogar qualquer responsabilidade
exclusivamente sobre Caio Prado. Afinal, como destacamos, sua obra
não “influenciou” seus leitores, como se eles fossem uma página em
branco na qual ele poderia deixar as marcas do seu pensamento. Sua
obra encontrou receptividade precisamente porque ofereceu o que

153
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

determinados setores sociais procuravam. Assim, escreveu algo que, se


não toda a sociedade, uma grande parte dela queria dizer. Em outros
termos, amplos setores da sociedade brasileira disseram, por meio de
Caio Prado, que não queriam o socialismo. Talvez tenham dito também
que não queriam o capitalismo na sua forma liberal, sem um controle
por parte do Estado. Mas esta é uma outra história.
Caio Prado, justamente porque se opunha ao socialismo, ao
menos à revolução socialista, afirmava desejar, quando muito, um
socialismo por meio de um processo de reformas. Mas, a verdade é que
a luta pelo socialismo encontrava-se fora do horizonte de Caio Prado,
qualquer que fosse o seu matiz.
Caio Prado, assim como outros autores e políticos, cada um à
sua maneira, conjurou a revolução socialista no Brasil. Não podemos
dizer se existia ou não possibilidade de uma revolução. De qualquer
modo, independentemente disso, o que se buscou debelar foram
algumas condições que poderiam conduzir certos setores a uma
solução radical. A primeira metade do século XX, principalmente as
décadas de 30 e 40, foi decisiva sob este aspecto. A revolução de 30, a
legislação trabalhista e a social, a reorganização do Estado e da
economia, com a conseqüente industrialização do país, e o
nacionalismo constituem aspectos de um processo em que o centro da
questão era amortecer os conflitos sociais e conjurar o perigo de uma
revolução. Evidentemente, não parecia existir perigo imediato, mas, em
face do conhecimento do que ocorria em outros países, seria necessário
tomar medidas que antecipassem possíveis problemas.
Caio Prado insere-se, portanto, na tendência de retirar o
socialismo do horizonte político e oferecer uma alternativa, real ou não,
para a sociedade. Alguns autores chegam a denominar de utopia aquilo
que ele pretendia, mas se equivocam ao não se dar conta de que ele
pretendia mesmo era um substituto para a luta pelo socialismo. Creio
que se pode verificar isto na própria obra de Caio Prado. Há uma
diferença significativa entre o seu primeiro livro, Evolução política do
Brasil, e seu livro seguinte, Formação do Brasil contemporâneo. No
primeiro, Caio Prado, em seu impulso juvenil e muito provavelmente
motivado pela efervescência do momento histórico, entusiasmado com
sua entrada no Partido Comunista, elaborou uma interpretação da
história do Brasil em que a luta de classes constitui o elemento diretor.
Trata-se de uma obra bastante simples, bem articulada, na qual
encontramos intuições e formulações muito interessantes.
No entanto, no livro seguinte, a concepção de história de Caio
Prado muda radicalmente. É verdade que os elementos principais do

154
PALESTRA: CAIO PRADO E A REVOLUÇÃO RUSSA

livro Formação já se encontram presentes em um texto de 1935, o que


significa que Caio Prado, entre os anos de 1933 e 1935, quando
participou da Aliança Nacional Libertadora, mudou muito
rapidamente seu modo de ver a história. Como livro de história, essa
nova concepção só aparece em 1942, com Formação, no qual a luta de
classes é substituída pela luta da nação pela sua libertação. O fio
condutor da análise não são as classes em oposição e conflito. O
conflito, então, se verifica entre o caráter colonial da produção, que se
caracteriza pela produção voltada para o mercado externo e que se
mantém apesar da Independência, e o caráter nacional da produção, a
ser atingido pelo processo de reestruturação da sociedade em bases
nacionais, cuja produção estaria voltada para o mercado interno e para
o atendimento das necessidades da população brasileira. A partir desse
momento, os demais textos de Caio Prado se baseiam nessa
interpretação. Caio Prado continua se definindo como comunista e
marxista, mas sua obra passa a ser uma espécie de negação de Evolução.
Não têm razão os autores que comentaram e analisaram a obra
de Caio Prado e trataram Evolução como um livro no qual estariam
formuladas, de maneira embrionária, as questões e a interpretação que
apareceram de forma madura e mais desenvolvida nos livros seguintes.
É apenas em Formação que Caio Prado formula o conceito de sentido da
colonização, pedra angular da sua interpretação da história do Brasil e
condizente com sua nova etapa, reformista e contrária à proposta de
uma revolução de natureza socialista.
Como assinalamos, não foi nosso objetivo condenar Caio Prado,
nem torná-lo o único responsável pelos caminhos que a história tomou
no Brasil, ainda que tivesse participado decisivamente nesse processo.
Como observado, tudo o que Caio Prado expôs estava “no ar”,
traduzindo na forma de livros e artigos aquilo que uma parte talvez
significativa da sociedade desejasse ouvir. Nosso objetivo foi apenas
buscar compreender historicamente Caio Prado e sua obra,
considerando-a em relação à questão da revolução socialista. Mas o que
foi dito anteriormente não pode desmerecer Caio Prado e negar-lhe um
papel ativo na construção do seu pensamento político.
Ainda que a questão não seja condenar ou criticar Caio Prado,
nem por isso se deve desconsiderar o significado e as implicações de
mantermos atuantes sua concepção de história e sua interpretação da
história do Brasil. Afinal, como procuramos chamar a atenção, elas
foram elaboradas em condições históricas específicas e com propósitos
bastante determinados. Essas condições não existem mais e a finalidade
para a qual foram elaboradas perdeu sua razão de ser. É preciso,

155
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

portanto, refletir sobre o novo papel que a obra de Caio Prado


desempenha neste novo contexto histórico. Independentemente disso, é
bom lembrar que, para a verdadeira solução das novas questões, são
necessárias uma nova atitude e uma nova ferramenta intelectual.
Precisamos nos libertar do passado se desejamos, de fato, construir um
novo futuro.

156
CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM
MITO34

INTRODUÇÃO

Criou-se um mito em torno de Caio Prado Júnior. Os anos 80


podem ser assinalados como o início desse processo, embora seus
contornos definitivos tenham surgido apenas na década de 90, quando
o autor passou a ser caracterizado, de maneira hegemônica, como
revolucionário. É interessante observar que, até então, ele não havia
sido objeto de estudos e que, quando foi caracterizado, isso se verificou
nas polêmicas travadas, principalmente, no interior do Partido
Comunista. Foi somente a partir da década de 80 e, particularmente, da
seguinte que ele tornou objeto de estudo, vindo a predominar sua
caracterização como autor revolucionário. Antes disso, temos notícia de
apenas dois autores que o analisaram com mais vagar, mesmo ele não
sendo o tema central dos estudos: Dante Moreira Leite, em O caráter
nacional brasileiro, tese defendida em 1954 e publicada, com
modificações, em 1969, e Carlos Guilherme Mota, em Ideologia da
cultura brasileira (1977).
É verdade que sua biografia presta-se bastante a esse propósito.
Membro de tradicional família de São Paulo ligada à cafeicultura e com
grande participação na vida política brasileira, teve uma educação em
tudo parecida com a dos membros de sua classe. Estudou em casa com
professores particulares, depois, no Colégio São Luís e, em 1923, foi à
Inglaterra, onde, em Londres, frequentou o Chelmsford College de
Eastborn. Formou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco (1924-1928), desenvolvendo no período uma grande
atividade política. Ingressou no Partido Democrático em 1928. Ainda
como membro desse partido, apoiou a candidatura de Getúlio Vargas:
foi preso por lhe dar vivas em uma recepção ao candidato oficial, Júlio
Prestes. Desiludiu-se, todavia, com os rumos tomados pela Revolução
Liberal e, em uma atitude que é considerada como sua grande travessia
ou ruptura radical, rompeu com sua classe, abraçando a causa

34Este texto foi apresentado, em uma primeira versão, no IV Congresso Internacional


de História, promovido pelo Departamento de História e pelo Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, em 2009.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

revolucionária (FERNANDES, 1991; REIS, 1999, p. 173-174). Filiou-se,


em 1931, ao Partido Comunista Brasileiro e se tornou marxista. Em
1933, com 26 anos, fez uma viagem à União Soviética, experiência que
resultou na obra URSS, um novo mundo, publicada no ano seguinte.
Ainda em 1933, publicou Evolução Política do Brasil, livro considerado
um marco na historiografia brasileira pelo fato de, pela primeira vez,
introduzir as classes sociais e seus conflitos em uma interpretação da
história do Brasil (MOTA, 1977, p. 28). Tornou-se, de acordo com a
historiografia, um intelectual orgânico da classe operária, valendo-se
do instrumental teórico marxista de maneira criativa, isto é, adaptando-
o às condições particulares do Brasil (RICUPERO, 2000, p. 58) Foi um
dos fundadores da Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), em
1934 (SEABRA, 2008, p. 18). No ano seguinte, participou da Aliança
Nacional Libertadora (ANL), como vice-presidente da secção de São
Paulo (IUMATTI, 2007, p. 31). Produziu uma vasta obra, transitando
por vários campos do conhecimento (história, economia, filosofia) e
lançando as bases, na opinião dos estudiosos, para a compreensão da
história do Brasil com o livro Formação do Brasil contemporâneo,
publicado em 1942. Foi preso diversas vezes e viveu no exílio. Eleito
deputado estadual pelo Partido Comunista, em 1947, foi cassado no
ano seguinte. Fundou uma editora, a Brasiliense, em 1943, e uma
revista, a Revista Brasiliense, em 1955. Em 1966, publicou o livro A
revolução brasileira, no qual critica a interpretação da história do Brasil
do Partido Comunista Brasileiro que dava fundamentação à sua
proposta de revolução democrático-burguesa. Neste livro desenvolveu
idéias que havia exposto em artigos publicados na Revista Brasiliense,
nos quais criticou a proposta de reforma agrária do Partido Comunista.
Além disso, ao longo da sua trajetória política, foi um crítico do Partido
Comunista Brasileiro e da sua interpretação da história do Brasil.
Apesar disso, não rompeu com o partido, nele permanecendo como
militante disciplinado.
Como se pode verificar, sua biografia tem os componentes
necessários para, além de se tornar nome de destaque no cenário
intelectual e político do Brasil, ser caracterizado como autor
revolucionário. Entretanto, ainda que sua história de vida forneça
elementos para tal, não pode, evidentemente, explicá-la. Isso
constituiria uma simplificação, já que a explicação não se encontra no
autor, mas, na historiografia que assim o caracterizou. Por conseguinte,
o foco não deve incidir sobre ele, mas, fundamentalmente, sobre as
condições históricas e políticas que deram origem a esse modo de

158
CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO

concebê-lo. Em outras palavras, a atenção deve estar voltada para a


historiografia e para as questões políticas que lhe dizem respeito.
Para explicar esse processo de mitificação dividimos nossa
análise em duas partes. Na primeira parte, examinamos e procuramos
apreender o ponto de partida da sua obra, isto é, o móvel de sua
elaboração. Pretendemos destacar as razões que o levaram a fazer
semelhante interpretação da história do Brasil. Na segunda, centrada
nas questões políticas da atualidade, nosso propósito é assinalar os
motivos que conduziram a historiografia a caracterizá-lo como um
autor revolucionário. Em outras palavras, consideramos o uso político
dessa caracterização.

1. CAIO PRADO E O SENTIDO DA HISTÓRIA DO BRASIL

Em Formação do Brasil contemporâneo, como o próprio título


indica, Caio Prado preocupou-se em explicar o Brasil do século XX,
mostrando como ele havia se constituído.
Analisou, inicialmente, a colonização, observando que ela foi
marcada pela organização de uma produção que atendesse às
necessidades do mercado externo ou europeu. A esse tipo de
organização denominou colônia de exploração, em oposição às colônias
de povoamento, voltadas, essencialmente, para o mercado interno. Em
razão de sua finalidade, a economia brasileira foi estruturada por meio
da grande propriedade, da produção em larga escala, da monocultura e
do trabalho escravo. De seu ponto de vista, uma economia se definia
como colonial quando produzia para o mercado externo, para a
satisfação de necessidades alheias.
Essa situação começou a se modificar em fins do século XVIII e
início do XIX, quando o setor da economia destinado ao abastecimento
do mercado interno, que denominou de agricultura de subsistência,
passou a se desenvolver em decorrência, fundamentalmente, do
crescimento da população e do fato de a sociedade se tornar cada vez
mais complexa.
Por esse motivo, o autor escolheu esse período como momento
estratégico para analisar a história brasileira. Era o momento em que a
obra colonizadora dos portugueses havia esgotado suas possibilidades
e o Brasil começava a se renovar (PRADO JR., 1981, p. 9-10). Seu
propósito era chamar a atenção para o sentido da história do Brasil,
assinalando que a linha mestra de seu desenvolvimento, conforme
expressão sua, era a transição da economia colonial para a economia
nacional (PRADO JR., 1977, p. 83). Portanto, retratou o Brasil

159
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

contemporâneo como um organismo em transição, definido pelo “(...)


passado colonial que se balanceia (...) mais as transformações que se
sucederam no decorrer do centênio anterior a este e no atual” (1981, p.
10). Mais adiante completou: “Mas este novo processo histórico se
dilata, se arrasta até hoje. E ainda não chegou a seu termo” (1981, p. 10).
A historiografia explicou sua interpretação como resultante da
aplicação criativa do marxismo à análise da história brasileira. Em
virtude disso, costuma destacar que Caio Prado foi um crítico da tese
feudal do Partido Comunista, considerando que o confronto entre ele e
o partido constitui a melhor maneira para se compreender sua obra.
Nesse confronto, contrapõe seu marxismo ao marxismo mecanicista e
esquemático dos comunistas.
No entanto, consideramos que isso não basta para explicar o
modo como o autor interpretou a história brasileira. É preciso examinar
essa interpretação, sobretudo, de uma perspectiva política.
É verdade que, em algumas oportunidades, Caio Prado
apresentou sua interpretação por meio da crítica ao Partido Comunista.
Tem-se, com isso, a impressão de que o móvel da sua elaboração foi a
oposição à interpretação do Partido a respeito da história do Brasil.
Assim, afirmando que a interpretação do Partido era um decalque da
experiência europeia, colocou como necessário buscar a especificidade
do Brasil. Recusou-se, por isso, a se valer de conceitos como feudalismo
para caracterizar as relações sociais no Brasil. Ao se recusar a isso, no
entanto, desconsiderou, também, outros conceitos, nunca destacados
pela historiografia, como os de capitalismo e socialismo. Não podemos,
infelizmente, desenvolver esta questão com a profundidade que
merece. Mas, ainda que brevemente, faremos algumas considerações.
Opondo-se à interpretação do Partido Comunista, Caio Prado
formulou, na verdade, outra linha de desenvolvimento para a história
brasileira, a qual teria dois momentos básicos, a economia colonial e a
economia nacional. Fundamentalmente, de seu ponto de vista, a
história brasileira era o processo de transição de uma para outra; seu
sentido era, por conseguinte, a constituição de uma economia nacional.
Desse modo, lançava os pilares da tese que o Brasil contemporâneo era
ainda uma economia com características coloniais que, no entanto,
caminhava para a estruturação de uma economia voltada para o
mercado interno e para o atendimento das necessidades da população
brasileira, uma economia nacional.
A historiografia brasileira não compreendeu essa formulação de
Caio Prado. Não considerou, com efeito, que, por economia colonial e
economia nacional, esse autor considerava duas formas de organização

160
CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO

social, social, da mesma maneira que o eram o feudalismo, capitalismo


e socialismo. De sua perspectiva, esses dois conceitos correspondiam às
formas de organização social próprias da história de países como o
Brasil, assim, substituindo aquelas que eram próprias dos países
europeus. A historiografia, por seu turno, entendeu que esse autor
tratava da “(...) passagem da colônia para a nação, da estrutura colonial
para a estrutura nacional” (NOVAES, 1986, p. 17), “(...) da transição
entre a situação colonial e a situação nacional” (RICUPERO, 2000, p.
161).
Por meio da formulação de que a história do Brasil se
caracterizava pela passagem da economia colonial para a economia
nacional, Caio Prado chegou a duas conclusões acerca da tarefa política
dos brasileiros. Primeiro, que a solução não estava na revolução
democrático-burguesa, como pretendia o Partido Comunista,
promovendo o desenvolvimento das relações capitalistas. Este aspecto
é sempre destacado pela historiografia. Segundo, que a luta política
não era em torno da revolução socialista, aspecto nunca assinalado
pelos seus estudiosos. Para ele, o Brasil não era um país capitalista, mas
uma economia com características coloniais. Sua superação, em razão
disso, dar-se-ia pelo seu oposto ou contrário, a economia nacional.
Entretanto, não são poucos os autores que concluíram que Caio Prado
supunha que o Brasil poderia se desenvolver em moldes capitalistas
antes de encetar uma luta contra o socialismo (SANTOS, 2001, p. 123).
Diga-se de passagem, também está longe dos propósitos desse autor
caracterizar a colonização do Brasil como capitalista.
À primeira vista, poder-se-ia supor a afirmação de que o Brasil
tendia para o estabelecimento da economia nacional e não do
socialismo decorreu da sua interpretação da história do Brasil. No
entanto, é o inverso que se verifica. Foi sua posição política contrária ao
socialismo e às soluções radicais que o levou a interpretar a história do
Brasil dessa maneira. Foi sua oposição ao socialismo e a conseqüente
busca de uma alternativa a ele que constitui o elemento gerador da sua
obra, seu impulso vital, sua razão de ser. Assim, ao elaborar sua
interpretação Caio Prado não teve em conta simplesmente se contrapor
à interpretação do Partido Comunista. Seu propósito ia além: oferecer
uma resposta à proposta de socialismo (Ver MENDES, 2008).
É importante ressaltar também que Caio Prado não se opôs ao
socialismo de maneira direta e explícita. Sua oposição se fez de modo
indireto e oblíquo, por meio da afirmação, retomada em várias
oportunidades, que a proposta de socialismo era prematura nas
condições existentes no Brasil. Não negou, portanto, em tese, a luta

161
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

pelo socialismo. Apenas postergou-a para um futuro incerto, posterior


ao estabelecimento da economia nacional. Acrescente-se não se tratar
de uma opinião conjuntural, mas da formulação que norteou a
elaboração da sua obra.
Essas observações não têm por intenção criticar ou polemizar
com Caio Prado. De nosso ponto de vista, a maneira de superar sua
interpretação não é confrontando-a com outra, mas considerando-a
historicamente. Isso significa assinalar que sua interpretação foi
formulada no interior de um contexto histórico e com uma motivação
política clara. Sua atuação política, lastreada por essa interpretação, faz
parte do passado e, dessa perspectiva, a crítica e a polêmica não têm
sentido. Vivemos, de fato, um momento histórico distinto, quando o
socialismo não constitui uma alternativa histórica, graças, inclusive, à
sua obra e à de outros autores que conjuraram a ameaça do socialismo.
Sob esse aspecto, Caio Prado foi vitorioso.
Se, dessa perspectiva, sua atuação política e sua obra fazem
parte do passado, no entanto, sua interpretação da história do Brasil,
em suas linhas gerais, permanece dominante, especialmente seu
fundamento: a caracterização de colônia como produção voltada para o
mercado externo. Entretanto, as razões da sua permanência não são as
mesmas que lhe deram origem. Ao contrário, são circunstâncias
históricas novas que prolongam sua existência. Atualmente, a questão
não se refere ao socialismo. Agora, trata-se de examinar a historiografia
e buscar entender as razões que a levaram a caracterizá-lo como um
autor revolucionário. O destaque é, então, o uso político de Caio Prado.
Ou seja, não estamos diante de uma interpretação equivocada da sua
obra, mas de uma caracterização que está em consonância com as
questões do nosso tempo.

2. A HISTORIOGRAFIA SOBRE CAIO PRADO

Chamamos a atenção para o fato de que, ao longo da trajetória


política e intelectual de Caio Prado, o socialismo constituiu uma
questão real, que ele enfrentou, fundamentalmente, por meio dos seus
escritos. Neles combateu o socialismo, colocando, em seu lugar, o que
denominou economia nacional. Diversos autores interpretaram essa
formulação afirmando que pretendia a estruturação da nação. Todavia,
acreditamos ter ficado claro que, para ele, economia nacional constituía
uma forma de organização econômica e social. Também não cabe
debater se o Brasil se encontrava ou não preparado para o socialismo
no período compreendido entre as décadas de 30 a 60, quando grande

162
CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO

parte da sua obra foi produzida. Independentemente disso, o


socialismo era uma questão da sua época e que impunha uma resposta,
que o apoiasse ou se lhe opusesse. Também destacamos que,
atualmente, o socialismo não constitui mais uma perspectiva histórica.
Sob este aspecto, a obra de Caio Prado perdeu sua razão de ser.
Entretanto, curiosamente, precisamente quando isso ocorreu, verificou-
se um grande interesse por sua obra. Ao mesmo tempo, sua
caracterização como autor revolucionário adquiriu contornos
definitivos, tornando-se hegemônica. Mais do que hegemônica, única.
Evidentemente, Caio Prado sempre foi considerado um autor
marxista e comunista. Entretanto, sua figura como autor revolucionário
nem sempre sobressaiu nas análises anteriores à década de 90. É fato
que essa caracterização apareceu em 1982 (IGLÉSIAS), aliás, título do
seu texto: “Um historiador revolucionário”. Mas, de um modo geral,
predominou a figura do historiador (NOVAIS, 1986).
Duas questões devem ser observadas. A primeira: ao longo da
sua trajetória política, a obra de Caio Prado não foi analisada. A nosso
ver, isso se explica pelo fato de que o papel que então desempenhava
nas lutas políticas era o ponto principal, tornando-se, nesse momento,
irrelevante o seu estudo. A segunda: a partir de um dado momento,
surgiu um grande interesse por seus escritos. Sem dúvida alguma, em
grande parte, sua morte despertou esse interesse, mas ela é insuficiente
para explicar sua caracterização como autor revolucionário.
Esse crescente interesse diz respeito às novas circunstâncias
históricas do final da década de 80 e início da seguinte. Com efeito,
com a derrocada do socialismo, uma nova questão se colocou: enfrentar
o capitalismo, única forma social então vigente. Liberto das ameaças do
socialismo, o capitalismo entrara em uma nova etapa. Teve início uma
ruptura dos controles criados pela intervenção do Estado e o capital
passou a buscar as preocupações que haviam limitado sua ação desde,
ao menos, a crise de 29, a construção do Estado do Bem-Estar e a guerra
fria. Nesse momento, a crítica ao capitalismo adquiriu uma nova feição,
agora em função de uma nova circunstância: sem a possibilidade de
sua transformação revolucionária. A crítica resume-se, em última
instância, à proposição de instrumentos que limitassem a ação do
capital. Decorre disso o fato de a crítica ao capitalismo ter assumido a
forma de crítica ao neoliberalismo e à globalização, que passaram a
encarnar as novas tendências do capitalismo. Surgiu, então, uma reação
a esse impulso do capital e, por isso, não é casual que, a partir dessa
época, tenha se acentuado na sociedade uma posição que se poderia
definir como “de esquerda”. Pode-se mesmo afirmar que a sociedade,

163
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

como um todo, inclinou-se “para a esquerda”. Esta constitui sua


característica mais recente. Assim, fica patente que a sociedade
brasileira, se não desejava o socialismo, também não queria o
capitalismo, ao menos em sua forma liberal.
Foi precisamente nesse momento que ganhou corpo a
caracterização de Caio Prado como um autor revolucionário. Tendo
cumprido seu papel no combate ao socialismo, ele passou a ser
destacado como um crítico do capitalismo. Tratava-se de atualizá-lo,
transformá-lo em um autor revolucionário, cuja vida esteve dedica à
transformação da sociedade. Este foi o papel desempenhado pela
historiografia: adequar esse autor às novas demandas políticas. O
historiador que havia lançado as bases para a compreensão da
colonização, por exemplo, foi suplantado pelo revolucionário. Desse
modo, o combate ao capitalismo em sua forma liberal foi levado
adiante pela historiografia por meio da construção de uma imagem de
Caio Prado adequada aos novos tempos. A partir de então, não é sua
interpretação da história do Brasil que desempenhou um papel político,
mas a imagem que dele se criou. Com isso, sua obra se converteu em
objeto de estudos e ele se tornou um dos autores mais analisados nas
duas últimas décadas.
Todavia, ainda que a imagem que se criou de Caio Prado esteja
em completa oposição ao papel que desempenhou ao longo da sua
trajetória, sua obra possui um componente que a torna atual e, sob
certos aspectos, faz com que não se encontre em desacordo com seu uso
político atualmente, por paradoxal que possa parecer. Existe, com
efeito, uma faceta em sua obra, bastante descurada por seus estudiosos:
sua oposição ao capitalismo. Não se trata, ressalte-se, de um autor que,
crítico do capitalismo, fosse partidário do socialismo. Sua crítica ao
capitalismo decorria da sua posição contrária ao socialismo, mas, como
adversário do socialismo, não necessariamente defendia o capitalismo.
Ele foi, assim, adversário, ao mesmo tempo, do socialismo e do
capitalismo. Poder-se-ia caracterizar sua posição como uma oposição
ao socialismo vinda da esquerda. Talvez seu texto de 1947,
“Fundamentos econômicos da revolução brasileira”, seja aquele que
melhor ilustra esse ponto de vista.

2.1. “FUNDAMENTOS ECONÔMICOS DA REVOLUÇÃO


BRASILEIRA”: o anticapitalismo via antisocialismo.

Em “Fundamentos”, Caio Prado afirmou que a revolução


brasileira não seria feita por meio do “fomento do capitalismo” ou por

164
CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO

intermédio de uma “revolução democrático-burguesa”. Para ele, a


situação em que o país se encontrava e o atraso da sua economia não
derivavam da debilidade do capitalismo brasileiro, mas de suas
características coloniais. A seu ver, a burguesia capitalista não tinha
interesse em livrar a economia brasileira de suas contingências
coloniais por se beneficiar dessa situação. Além disso, entendia que a
livre concorrência e a iniciativa privada, elementos fundamentais do
capitalismo, não eram “(...) de modo algum fatores capazes de dar
conta da tarefa de reestruturação da economia brasileira nos moldes em
que isto se faz necessário”, pois implicavam em uma perda
considerável de esforços e um desperdício de energias e convulsões
periódicas que o país estava longe de poder suportar. Acrescentou que
os tempos eram outros (PRADO JR., 1947, p. 6).
Não é nesse novo mundo da árdua luta inter-imperialista, em
que o Brasil já ficou tão para trás, que se repetirá aqui a epopéia do
capitalismo norte-americano com que tantas vezes nos acenam as
forças conservadoras desejosas de nos iludir com miragens tentadoras.
O mundo liberal do século XIX está definitivamente morto; e não será
no Brasil que ele ressuscitará. As molas propulsoras do capitalismo (o
enérgico individualismo e o forte estímulo da iniciativa privada) não
funcionam mais no mundo moderno; nem cabem mais nele. Não será
agora no Brasil, onde nunca existiram, que irão se constituir para
realizar a grande tarefa de reestruturação e transformação da face do
país (PRADO JR., 1947, p. 6).
Evitou, no entanto, cair no extremo oposto, alertando que não
estava afirmando que havia soado a última hora do capitalismo no
Brasil. Segundo ele, a iniciativa privada tinha ainda muito a realizar.
No entanto, destacou que não se poderia deixar a livre iniciativa ao seu
arbítrio. Antes, deveria ser “(...) estritamente regularizada e
encaminhada para aqueles setores da atividade onde a necessidade
dela se faça mais sentir frente aos interesses gerais do país. E
complementada e substituída sempre que convier e pela ação direta do
Estado ou de seus órgãos representativos dos interesses da
coletividade” (PRADO JR., 1947, p. 6). Concluiu: “Em suma, trata-se de
aproveitar o capitalismo naquilo que ele ainda oferece de positivo nas
condições atuais do Brasil; e contê-lo, e o suprimir mesmo no que possa
se opor às reformas que o país necessita. E ao mesmo tempo, ir
preparando os elementos necessários para a futura construção do
socialismo brasileiro” (PRADO JR., 1947, p. 6. Grifos nossos).
Como se pode perceber, Caio Prado não apenas afirmou que o
capitalismo era inviável nas condições históricas existentes como

165
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

também entendeu que a livre iniciativa deveria, no Brasil, ser


controlada, dirigida, no sentido de subordiná-la aos parâmetros
estabelecidos pela economia nacional. Assim, a iniciativa privada
continuaria existindo, mas seu móvel não seria o lucro e sim o
atendimento das necessidades da população brasileira. Em última
análise, pretendia uma sociedade baseada, ao menos parcialmente, na
iniciativa privada, mas funcionando como uma economia nacional.
Acreditamos residir nesse ponto o grande sucesso de Caio
Prado; essa parece ser a razão pela qual é considerado o mais
importante historiador brasileiro. No entanto, reside também aí o fato
de ele ter se tornado um autor bastante estudado recentemente e de ser
caracterizado, na maioria das vezes, como um autor revolucionário. Em
suma, seu sucesso deriva do fato de ele ter se oposto tanto ao
socialismo quanto ao capitalismo.

CONCLUSÃO

Ao longo do texto, chamamos a atenção para dois momentos


distintos da trajetória de Caio Prado. Quanto ao primeiro, representado
pela época em que ele elaborou sua obra e desenvolveu uma grande
atividade política, procuramos ressaltar que esta foi concebida
enquanto oposição ao socialismo e, portanto, sua interpretação da
história do Brasil tem nesse posicionamento sua razão de ser. Foi uma
luta foi vitoriosa, já que o socialismo tornou uma coisa do passado. É
então que tem início o segundo momento, aquele em que a
historiografia atualiza sua obra. A questão já não é a oposição ao
socialismo, com a qual, sem que isso ficasse explícito, amplos setores da
população se identificassem. Caso contrário, não se tornaria a maior
referência entre os historiadores e demais cientistas sociais. A partir
desse momento, sua biografia se torna o elemento central, e sua obra,
interpretada como revolucionária, assume a comprovação de sua
caracterização como autor revolucionário. Isso explica a necessidade de
se insistir em caracterizá-la como uma obra marxista, cujo autor estaria
interessado na transformação da sociedade.
No entanto, como procuramos salientar, Caio Prado talvez
tenha sido o autor que melhor expressou a sociedade brasileira. Sob
este aspecto, pode-se afirmar que o que se verifica atualmente com ele
não deixa de ser um desdobramento da sua posição política e da sua
obra. Justamente por isso, dos autores que tiveram uma atuação com
estes componentes, ninguém melhor do que ele soube expressar os
impasses de uma nação que, tendo chegado atrasada ao capitalismo na

166
CAIO PRADO JÚNIOR: A CONSTRUÇÃO DE UM MITO

sua forma industrial, considerou tanto o socialismo quanto o


capitalismo como ameaças.

REFERÊNCIAS

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de São Paulo, 07/09/1991.
IGLÉSIAS, F. Um historiador revolucionário. In: Caio Prado Júnior:
historiador. São Paulo: Ática, 1982.
IUMATTI, P. T. Caio Prado Jr. Uma trajetória intelectual. São Paulo:
Brasiliense, 2007.
LEITE, D. M. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1969.
MENDES, C. M. M. Política e história em Caio Prado Júnior. São Luís/MA:
UEMA, 2008.
MOTA, C. G. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo:
Ática, 1977.
NOVAES, F. A. Caio Prado Jr. na historiografia brasileira. In: MORAES,
R.; ANTUNES, R.; FERRANTE, V.B. (orgs.). Inteligência brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
PRADO JR., C. Formação do Brasil contemporâneo. 17ª edição. São Paulo:
Brasiliense, 1981.
_______ A Revolução Brasileira. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1977.
_______ Fundamentos econômicos da Revolução Brasileira. In: A Classe
Operária, 19/04/1947, p. 4 e 6.
_______ O Programa da Aliança Nacional Libertadora. In: Revista
Escrita/Ensaio, São Paulo, n. 10, 1987.
REIS, José Carlos. Anos 60: Caio Prado Jr. A reconstrução crítica do
sonho de emancipação e autonomia nacional. In: As identidades do Brasil:
de Varnhagen a FHC. 2ª edição. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
RICUPERO, B. Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil. São
Paulo: Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo;
FAPESP; Ed. 34, 2000.

167
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

SANTOS, R. Caio Prado Júnior na cultura política brasileira. Rio de Janeiro:


Mauad; FAPERJ, 2001.
SEABRA, M. Caio Prado Jr. e os primeiros anos da AGB. In: IUMATTI,
P.; SEABRA; M.; HEIDEMANN, H.D. (orgs.). Caio Prado Jr. e a
Associação dos Geógrafos Brasileiros. São Paulo: AGB; IEB; USP, FAPESP,
2008.

168
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

INTRODUÇÃO

Os estudiosos da historiografia brasileira costumam chamar a


atenção para o caráter ensaístico de grande parte da historiografia
brasileira do século XX, especialmente a da sua primeira metade. É
verdade que, ainda que se costume caracterizar essa produção como
ensaio, não existe uma preocupação com a definição dessa
característica ou mesmo esclarecer o que viria a ser um ensaio. De um
modo geral, essa definição encontra-se mais implícita do que
explícita.35
Atualmente, a lembrança do caráter ensaístico da historiografia
brasileira vem acompanhada, com certa frequência, pelo lamento de
que, nas últimas décadas, os historiadores abandonaram a preocupação
com uma apreensão mais global da história do Brasil. Segundo esses
lamentos, os historiadores contemporâneos estariam menos afeitos ao
ensaio macrointerpretativo, preferindo as monografias técnicas,
pontuais e específicas. Axt e Schüller (2004, p. 13), por exemplo,
sintetizam essa postura muito bem:

De fato, a tradição ensaística brasileira, tão vigorosa até o


final da primeira metade do século 20, tendeu a entrar em
declínio à medida que se profissionalizava o ofício do
historiador, na esteira da difusão dos cursos de pós-

35Moisés (2004, p. 146) procurou caracterizar o ensaio: “Ensaio. Lat. Exagium. Ação de
pesar. Fr. essai; it. saggio; ing. essay; esp. ensayo; al. Essay, Versuch.
O vocábulo ‘ensaio’, que significa ‘experiência’, ‘exame’, ‘prova’, ‘tentative’, designa
um espécime literário de contorno indefinível. Como o próprio rótulo evidencia, torna-
se praticamente impossível estabelecer com rigorosa precisão os limites do ensaio. Daí
que os estudiosos do assunto tendem a reunir sob idêntica denominação obras
contrastantes, enquanto certos autores empregam abusivamente a palavra “ensaio” no
título dos seus livros.
(...) Tomando por base as reflexões do moralista francês [Montaigne], pode-se assentar
que o ensaio se caracteriza pelo ‘alto exercício da razão que - por isso mesmo que repele
toda e qualquer autoridade externa – busca, dentro da disciplina interior da própria
razão legisladora, tornar inteligíveis as coisas’; portanto, regem o ensaio ‘três idéias
básicas: a) o auto exercício das faculdades; b) a liberdade pessoal; c) o esforço constante pelo
pensar original’”.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

graduação em nossas universidades. A historiografia


elaborada na contemporaneidade tende a produzir menos
esforços de síntese do processo histórico nacional,
pretendendo-se mais monográfica, mais atenta ao
tratamento das fontes e às questões de método. O nosso
formalismo acadêmico de hoje nos proporciona mais
confiança na cientificidade do nosso ofício, mas talvez
tenhamos perdido um pouco daquela irreverência criativa
que produziu interpretações do Brasil associadas a projetos
de nação.

Se o caráter ensaístico da historiografia brasileira foi visto como


algo positivo por uma parte de nossos historiadores, principalmente
por se encontrar associado aos projetos de nação, ele foi encarado por
outro segmento como uma fraqueza, justamente por se tratar de
estudos generalizantes que não teriam apreendido as especificidades
das diferentes partes e/ou épocas do Brasil. Para os historiadores que
se articulam em torno do grupo que se autodenomina “Antigo Regime
nos Trópicos” (ART), por exemplo, o caráter ensaístico da historiografia
brasileira constitui, se não uma deficiência, ao menos uma limitação.
Muito provavelmente, é esse grupo o principal crítico
atualmente do caráter ensaístico da historiografia brasileira. Esse grupo
iniciou sua trajetória pelas críticas feitas por Ciro Cardoso a Caio Prado
e Fernando Novais ainda na década de 70, vindo a se constituir uma
nova tendência dentro da historiografia brasileira relativa à
colonização.36 Após suas as observações aos dois historiadores nos anos
70 e 80, principalmente, apareceram, no decênio seguinte, seus
primeiros frutos, particularmente com a publicação dos livros de João
Fragoso (1998) e Manolo Florentino (1997), inicialmente teses de
doutorado, a primeira orientada pela profa. Maria Yedda Linhares e a
segunda pelo próprio Cardoso.37 Ainda nos anos 90, e, principalmente,
na seguinte, foram publicados diversos livros, geralmente obras
coletivas, onde se procurou colocar em prática novas propostas teóricas
e metodológicas para o estudo da época colonial.
É verdade que entre as primeiras críticas feitas por Cardoso e
suas propostas de análise da colonização e mesmo os primeiros livros

36Para um estudo mais detalhado desta questão, ver os seguintes textos: (CARDOSO,
1985; 1987; 1988; 1990).
37A tese de Fragoso foi defendida em finais de 1990; a de Florentino foi defendida em
1991. Além destes livros, vide FRAGOSO e FLORENTINO (2001).

170
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

de Fragoso e Florentino e a nova produção historiográfica há diferenças


significativas, nem sempre explicitadas. A distinção mais importante
refere-se ao campo em que as análises são feitas. Cardoso, para
contrapor-se àquilo que denominou de excessiva ênfase no comércio
externo, propôs igualmente o estudo das estruturas internas das
colônias americanas, única maneira, a seu ver, de explicar suas distintas
trajetórias. Atualmente, a nova tendência ampliou o campo de estudo,
valendo-se de dois conceitos que a caracterizam em particular, Império
Português e Antigo Regime. Uma breve menção ao fato de a nova
tendência historiográfica procurar superar Caio Prado e Cardoso
encontra-se na introdução do livro Na trama das redes. Tratando do livro
O Antigo Regime nos trópicos, seus autores observam:

Na época, tal trabalho surgiu com a pretensão de contribuir


para as pesquisas de ponta na área de conhecimento então
chamada de história colonial brasileira. Na verdade,
pretendia-se ultrapassar – sem negar a sua importância – o
debate historiográfico que trata da dependência externa
versus a excessiva ênfase no caráter único e singular da
sociedade colonial-escravista. Para tanto, buscou-se
entender a história da América lusa entre os séculos XVI e
XVIII, tendo como pano de fundo a dinâmica imperial
portuguesa (FRAGOSO e GOUVÊA, 2010, p. 13).

O primeiro conceito, Império português, constitui o novo contexto


em que se inserem as novas pesquisas. Rompe-se, com isso, com as
duas propostas anteriores. Em primeiro lugar, rompe com a
historiografia que considera as questões no interior da relação entre
metrópole e colônia. Também se verifica uma ruptura com a proposta
de, sem desconsiderar essa relação, fazer incidir a análise nas estruturas
internas da colônia, como havia proposto Cardoso. Desse modo, o
espaço imperial é o campo de estudo da nova historiografia brasileira.
Importante destacar que não se trata de uma ampliação do contexto da
análise, mas de um novo modo de conceber a história. Como salientam
os organizadores do livro O Antigo Regime nos trópicos, “(...) trata-se de
propor uma nova leitura historiográfica que não se limite a interpretar
o ‘Brasil-Colônia’ por meio de suas relações econômicas com a Europa
do mercantilismo (...)” (FRAGOSO, BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 21).
Também no prefácio de Nas Rotas do Império, assinado pelos
organizadores do livro, encontramos o que se pretende com a
utilização do conceito de Império português. Segundo estes autores,

171
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

este estudo viria em substituição à visão centrada na relação


metrópole-colônia.

A utilização sistemática do conceito de império, em


substituição a uma visão centrada unicamente na relação
metrópole-colônia, pode ser considerada uma das
principais transformações da historiografia brasileira nos
últimos anos. Não se trata, é claro, do simples
reconhecimento da existência de um império português,
mas sim de sua incorporação efetiva como um dos
mecanismos explicativos da realidade colonial.
O próprio conceito, porém, transformou-se. Longe de ser
visto como um todo homogêneo comandado por uma
poderosa metrópole, o Império português é hoje percebido
como um conjunto heterogêneo de possessões
ultramarinas, cuja relação com a metrópole variava não só
conforme as conjunturas, mas também de acordo com os
variados processos históricos que constituíram essas
mesmas possessões.
Tais transformações obrigam o pesquisador a uma
apreensão mais complexa do que foi esse “mundo
português” (FRAGOSO, FLORENTINO, JUCÁ e CAMPOS,
2006, p. 9. Grifos nossos).

O segundo conceito utilizado pela nova tendência


historiográfica, Antigo Regime, tem por objetivo afirmar que as relações
sociais que se travavam no interior do Império português não eram
diretamente econômicas. Antes, elas eram mediadas pela política.

Essas conexões comerciais eram, sem dúvida, atravessadas


pela política. Os negócios e mercados imperiais eram
submetidos às regras do Antigo Regime; leia-se, entre
outras coisas, ao complexo sistema de doações e de mercês
régias. A expansão e a conquista de novos territórios
permitiram à coroa portuguesa atribuir ofícios e cargos
civis e militares, conceder privilégios comerciais a
indivíduos e grupos, dispor de novos rendimentos com
base nos quais se distribuíam pensões. Tais concessões
eram o desdobramento de uma cadeia de poder e de redes
de hierarquia que se estendiam desde o reino, propiciando
a expansão dos interesses metropolitanos, estabelecendo
vínculos estratégicos com os colonos (FRAGOSO,
BICALHO e GOUVÊA, 2001, p. 23).

172
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Na introdução do livro Na trama das redes encontramos uma


explicitação maior do uso deste conceito: “Desde 2001, a importância
de uma dinâmica imperial – resultado da constante interação entre
todas as áreas que compunham o império português no período – na
formação da sociedade colonial da América portuguesa tem sido
enfatizada” (FRAGOSO e GOUVÊA, 2010, p. 15).
Foram os historiadores do ART que retomaram a questão do
ensaísmo da historiografia brasileira. Com efeito, uma das suas críticas
à historiografia então vigente diz respeito ao que denominam de
caráter ensaístico. Na entrevista de abertura do livro A economia colonial
brasileira (séculos XVI-XIX), por exemplo, seus autores afirmam que as
pesquisas de base, que se verificaram após a disseminação dos cursos
de pós-graduação, iniciada na década de 70, fato que teria levado à
efetiva profissionalização dos historiadores, tenderam “(...) a romper
com a tradição ensaística da historiografia nacional” (FRAGOSO,
FLORENTINO E FARIA, 1998, p. 2. Grifo nosso). Também na
introdução de Na trama das redes, seus organizadores observam que o
atual debate em torno do Brasil colonial, “(...) ao contrário de outros no
passado, não possui tão somente um caráter ensaísta” (FRAGOSO e
GOUVÊA, 2010, p. 17).
Em contraposição ao caráter ensaístico da historiografia
brasileira, esses historiadores assinalam que praticam uma história
baseada em uma farta documentação, recolhida em suas pesquisas
feitas em arquivos no Brasil e no exterior. Há mesmo, nos seus textos, a
insistência em afirmar que suas interpretações encontram-se
respaldadas em uma longa e minuciosa investigação arquivística,
documental. Por se tratar de pesquisas fundadas em extensa
documentação entendem que seus trabalhos não possuiriam caráter
generalizante. Na introdução já mencionada de Na trama das redes, na
sequência da passagem acima citada, encontramos a seguinte
afirmação: “A profissionalização do ofício de historiador fez com que
os argumentos e as teses interpretativas estejam mais fundamentados
em sólidas pesquisas, empreendidas em diversos arquivos e por meio
de diferentes fontes. Além disso, há tempos o historiador dispõe de
uma miríade de técnicas e métodos de pesquisa” (FRAGOSO e
GOUVÊA, 2010, p. 17).
Assinale-se que também não encontramos, entre os novos
historiadores, uma preocupação em definir ensaio ou caráter ensaístico
da historiografia brasileira. Todavia, é possível, por oposição, levando-
se em conta a caracterização que fazem da sua prática historiográfica,
isto é, os aspectos que definiriam a nova historiografia, obter uma

173
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

definição aproximada do que entendem por ensaio ou caráter


ensaístico.
A primeira característica, já tratada anteriormente, é o fato de a
nova prática historiográfica basear-se em uma ampla base documental,
fato que a historiografia até então vigente não teria feito. Segundo os
novos historiadores, a partir de uma documentação limitada, muitas
vezes sem pesquisa em arquivos, no Brasil e no exterior, eram feitas
ilações generalizantes.
A segunda característica, também tratada anteriormente, diz
respeito ao campo de estudo. A historiografia vigente considerava seu
objeto de análise no interior da relação metrópole-colônia, ao passo que
a nova historiografia concebe-o no interior do Império português.
Mercadorias e homens circularam por todo Império e, por conseguinte,
seria impossível compreender a América portuguesa no estreito
vínculo dela com a metrópole.
Assim, colocada a questão, o objetivo deste artigo é,
primeiramente, entender as razões do caráter ensaístico assumido pela
historiografia brasileira do século XX. A nosso ver, ele constitui um
tema importante para se compreender historicamente essa produção
historiográfica.
O segundo objetivo é examinar o conteúdo da crítica feita pela
nova historiografia. A razão disto deriva de que, para nós, a crítica feita
por uma nova proposta historiográfica constitui também um caminho
para se examinar esta última. Com efeito, o modo como uma nova
tendência se coloca diante da historiografia vigente diz respeito – e
muito - ao próprio modo como ela se pensa, se explica e concebe a
história.
Antes de entrarmos na análise do caráter ensaístico da
historiografia brasileira é importante assinalar ser ele mais visível nos
textos da primeira metade do século XX do que nos da segunda.
Entretanto, apesar de as obras da segunda metade, mais ou menos até a
década de sessenta, não possuírem todas as características da
historiografia da primeira época, elas mantêm alguns dos seus
principais traços. Consideremos, pois, o caráter ensaístico da
historiografia brasileira.38

38 Prado (2000, p. 443), apoiando-se em outros autores mais recentes, também


caracteriza os estudos históricos que se faziam por ocasião do lançamento de Visão do
Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, em 1959, como ensaísmo de timbre econômico-
social, geralmente de caráter marxista.

174
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

1. O ENSAISMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Desde as primeiras décadas do século XX e até, pelo menos, a


década de 60, de um modo geral, os estudos sobre a história brasileira,
particularmente a da época colonial, têm entre suas principais
características não limitar a análise a este período histórico. Antes,
caracterizam-se por serem estudos que buscam compreender o
processo histórico brasileiro em seu conjunto. Mais: são interpretações
cujo objetivo principal é explicar o Brasil da época dos seus autores.
Pressupunha-se que o presente era explicado pelo passado.
Por essa razão, era preciso fazer uma análise da época colonial
para se compreender o Brasil do presente. Alguns historiadores
consideraram mesmo se necessário ir além, abarcando a própria
história de Portugal. De seu ponto de vista, para se entender o Brasil
era preciso estudar as instituições portuguesas que haviam sido
transplantadas para o solo brasileiro por meio da colonização. Todavia,
independentemente disso, todos os historiadores concordam que era o
modo como havíamos nos constituído enquanto colônia que explicava
nosso presente.
É verdade que cada um deles tem um entendimento particular
de colônia e de colonização, interpretando o período colonial de
determinada maneira. Mas, para todos eles, encontrar-se-ia nesse
período a chave para explicar as vicissitudes do Brasil contemporâneo.
Não é casual, inclusive, que seus livros tenham no título, de um modo
geral, algo que indicasse isso, como Formação, Raízes, etc. É o caso de
Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior, Raízes do
Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), e Formação
econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado (1920-2004). Antes dessas
obras, em 1911, Oliveira Lima (1867-1928) já havia publicado Formação
histórica da nacionalidade brasileira. Nelson Werneck Sodré (1911-1999),
por sua vez, publicou, em 1944, Formação da sociedade brasileira e, em
1962, Formação histórica do Brasil.
Quando o vocábulo Formação não aparece no título, encontra-se,
ao menos, no subtítulo. É o caso de Casa-grande & senzala. Formação da
família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1933), de
Gilberto Freyre (1907-1987) e Os donos do poder. Formação do patronato
político brasileiro (1958), de Raymundo Faoro (1925-2003). Se ele não se
encontra no título ou subtítulo do livro, encontramo-lo nos títulos dos
capítulos. Como exemplo, podemos citar Populações Meridionais do
Brasil (1920), de Oliveira Vianna (1883-1951).

175
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Mas, mesmo quando o vocábulo não aparece em nenhum


desses lugares, o pressuposto dos autores é que a explicação para o
Brasil do presente residiria no seu passado colonial. Dentre essas obras
podemos citar História econômica do Brasil (1937), de Roberto Simonsen
(1889-1948).
Alguns autores já observaram o fato de o caráter ensaístico da
historiografia brasileira vir acompanhado do conceito de Formação. É o
caso de Arantes (1997). Caracterizando por Formação as linhas
evolutivas mais ou menos contínuas de um quadro social, Arantes
(1997, p. 11) observa que isso indica uma verdadeira obsessão nacional
“(...) a insistente recorrência do termo nos principais títulos da
ensaística de explicação do caso brasileiro (...)”. Como exemplo arrola
Formação do Brasil contemporâneo, Formação econômica do Brasil e Formação
do patronato político brasileiro, acrescentando, “(...) sem contar que a
mesma palavra emblemática designa igualmente o assunto real dos
clássicos que não a trazem enfatizada no título, como Casa-grande &
senzala e Raízes do Brasil”. Conclui o autor que

Tamanha proliferação de expressões, títulos e subtítulos


aparentados não se pode deixar de encarar como a cifra de
uma experiência intelectual básica, em linhas gerais mais o
menos a seguinte: na forma de grandes esquemas
interpretativos em que se registram tendências reais da
sociedade, tendências às voltas, não obstante, com uma
espécie de atrofia congênita que teima em abortá-las,
apanhava-se naquele corpus de ensaios sobretudo o
propósito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma
ossatura moderna que lhe sustentasse a evolução. Noção a
um tempo descritiva e normativa, compreende-se além do
mais que o horizonte descortinado pela idéia de formação
corresse na direção do ideal de civilização relativamente
integrada – ponto de fuga em todo espírito brasileiro bem
formado (ARANTES, 1997, p. 11-12).

Além dessa característica, há outra que geralmente singulariza


essas obras: é que menos do que histórias elas pretendem assinalar as
características peculiares da história do Brasil e suas tendências com
relação ao futuro. Para se compreender as características do ensaio,
como se praticou na historiografia brasileira, faremos um contraponto
entre ele e os livros de história.

176
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

DISTINÇÃO ENTRE ENSAIO E HISTÓRIA

Entre o ensaio e o livro de história39 existem diferenças


fundamentais, ainda que tenham por objeto o processo histórico. O
ensaio pretende explicar a história em seu conjunto, assinalando suas
características principais, não se detendo em seus aspectos particulares
ou nos seus diferentes momentos. No caso do ensaio relativo ao
processo histórico brasileiro, o pressuposto é que o passado colonial
constitui sua chave explicativa. É verdade que o passado é concebido
de diferentes maneiras pelos autores, fato que conduz cada um
interpretar a história do Brasil de modo distinto. Mas,
independentemente disso, para seus autores, o presente se explicaria
pelo passado - a época colonial explicaria o Brasil contemporâneo. Em
Formação, Caio Prado afirma que a “(...) interpretação do Brasil de hoje
(...)” era o que realmente interessava (PRADO JR., 1942, p. 9).
Muitas vezes, no entanto, o ensaio abarca não apenas o passado
e o presente, mas o próprio futuro. Nesses casos, com base na linha de
desenvolvimento do passado e do presente, seus autores procuram
apontar as tendências da história com relação ao futuro. Esse futuro
deve ser compreendido, no mais das vezes, como o processo que se
desenrolava no presente. Em Raízes do Brasil, por exemplo, Holanda
procura explicar a natureza da revolução que estaria em curso à época
em que publicou sua obra.
Ao contrário do ensaio, o livro de história propriamente dito
pretende narrar ou descrever um determinado processo histórico
verificado no passado. É verdade que, em alguns livros, a análise pode
chegar até o presente. No entanto, a história é apresentada de maneira
cronológica, acompanhando-se, passo a passo, o processo histórico.
Somente ao final do livro é que se tem uma visão abrangente da
história.
No ensaio, por seu turno, por meio de um golpe de vista,
procura-se assinalar as características gerais da história de determinado
país, oferecendo ao leitor uma visão de conjunto dela. Para tanto, o

39 Como livro de história estamos nos referindo a Varnhagen, ainda no século XIX, e os

autores que, no século XX, mantiveram as principais características do autor de


História geral do Brasil: Hélio Vianna, Rocha Pombo e Pedro Calmon, entre outros.
Capistrano de Abreu, por seu turno, elaborou uma história valorizando mais a
interpretação do que a exposição dos fatos. Pode ser considerado uma espécie de
intermediário entre a história e o ensaio.

177
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

ensaio está organizado em torno de uma tese que seu autor busca
demonstrar e que, geralmente, ela aparece no início do texto.
O livro de história fica preso aos fatos na medida em que
considera o processo histórico em sua cronologia. O ensaio, por sua
vez, é mais livre. É verdade que ambos se baseiam em documentos e
textos. Mas, o livro de história precisa citar os fatos e acontecimentos,
manter-se rente a eles, ao passo que no ensaio os mesmos são
mencionados em poucas oportunidades, apenas para comprovar
determinadas afirmações de caráter mais geral e teórico. Sob este
aspecto o ensaio comporta uma interpretação mais geral dos fatos, não
se detendo nas particularidades e nos episódios singulares.
Desse modo, podemos afirmar que, enquanto o livro de história
constitui uma interpretação do passado fundada nos fatos e
acontecimentos, o ensaio busca descrever as tendências gerais da
história. Como assinalam muitos dos autores de um ensaio, busca-se,
principalmente, expor nele a linha mestra ou o fio condutor do
processo histórico. Em suma, no ensaio se formula uma espécie de
filosofia da história.
Enquanto o livro de história se preocupa, geralmente, mais com
o passado, o ensaio, ainda que se ocupe dele, tem os olhos postos mais
no presente e no futuro. Na verdade, faz um enlace entre passado,
presente e futuro. Esse enlace constitui, inclusive, uma das principais
características da ensaística da primeira metade do século XX. São
obras que abarcam o conjunto da história do Brasil, formulando uma
interpretação geral dela. Em Formação da sociedade brasileira, Sodré deixa
patente sua intenção ao escrever um ensaio: “Escrevendo esta Formação
da Sociedade Brasileira não tive outra intenção que a de oferecer ao leitor
comum, dentro das possibilidades de um levantamento tão sumário,
uma visão de conjunto de como viveu nosso povo, até os dias que
precederam a crise de 1929” (SODRÉ, 1944, p. 5).
De um modo geral, o ensaio, nos moldes como foi praticado no
Brasil, divide-se em três partes. A primeira compreende o estudo
passado, no caso, a colonização do Brasil, momento em que teriam sido
lançados os fundamentos da história do Brasil. Como salientamos, a
maneira como se caracteriza a colonização constitui a base sobre a qual
se ergue a interpretação da história do Brasil em seu conjunto. Em
outras palavras, o passado é a pedra de toque dessa interpretação.
A segunda examina o presente, a época do autor, que é
explicado, fundamentalmente, pelo passado colonial. Os problemas do
presente e que deveriam ser então solucionados são considerados

178
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

heranças do passado, isto é, apesar das mudanças verificadas ao longo


da história, os problemas criados no passado ainda persistiriam.
Por fim, a terceira trata do futuro, que se desenha a partir da
solução dos problemas do presente. Muitas vezes, é verdade, esta parte
se encontra subentendida. Em Formação do Brasil contemporâneo, de Caio
Prado, percebe-se, pelo título, que seu objetivo era expor como o Brasil
contemporâneo, ou seja, o Brasil da sua época, havia se formado ou
constituído. Em função disso, o autor estudou a colonização e o que ela
produziu ao longo de três séculos.40
Assinalou, em seguida, que, durante o período compreendido
entre a Independência e a data da publicação do livro, o Brasil havia se
modificado, mas se tratava de um processo que se mantinha no
presente. Por isso, assim definiu o Brasil contemporâneo: “O Brasil
contemporâneo se define assim: o passado colonial que se balanceia e
encerra com o século XVIII, mais as transformações que se sucederam
no decorrer do centênio anterior a este e no atual” (PRADO JR., 1942, p.
6). Advertiu que se tratava de um processo não concluído. “Mas este
novo processo histórico se dilata, se arrasta até hoje. E ainda não
chegou a seu termo” (PRADO JR., 1942, p. 6).
Acreditamos que um dos autores mais expressivos para se
entender o caráter ensaístico da produção historiográfica brasileira seja
Caio Prado, motivo pelo qual examinaremos, de maneira comparativa,
duas das suas principais obras, Evolução política do Brasil e Formação do
Brasil contemporâneo.

A QUESTÃO DO ENSAIO EM CAIO PRADO JR.

Em 1942, Caio Prado Júnior publicou Formação do Brasil


contemporâneo, considerado por muitos historiadores e estudiosos seu
livro mais importante. Nele expôs, pela primeira vez, com todos os
seus elementos, a interpretação da história do Brasil que o consagrou e
que nunca alterou ou abandonou em seus fundamentos. Antes,

40Acreditamos, mesmo, que este tenha sido o principal motivo que levou Caio Prado a
abandonar o projeto, iniciado com Formação, de escrever outros livros, na sequência
deste, abarcando a época imperial e a republicana. De certa maneira, em Formação,
Caio Prado apresentou, em linhas gerais, a interpretação geral da história do Brasil.
Também é verdade que este autor realizou, mais ou menos, este projeto com História
econômica do Brasil. Neste livro, com base nas linhas gerais traçadas em Formação, ele
analisou a história do Brasil até a Revolução de 30. Posteriormente, publicou outras
edições em que acrescentou capítulos atualizando a obra, sempre mantendo a linha
geral da sua interpretação da história do Brasil.

179
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

reafirmou-a nos livros e textos seguintes, fazendo dela a perspectiva


com que examinou o processo histórico brasileiro em seus diferentes
momentos.41
Ainda que seja considerado um livro dedicado à época colonial,
Caio Prado não se restringiu a ela. É verdade que, em sua quase
totalidade, o livro diz respeito a esse período. Não é por casualidade
que tem por subtítulo “Colônia”. Mas, apesar disto, seu autor não
estava interessado direta e unicamente na época colonial. Analisou-a
tendo por pressuposto que ela se constituía a base da formação do
Brasil contemporâneo. Entendia que o período colonial era a chave
para se compreender o Brasil de sua época. Em decorrência, ainda que
em traços bastante rápidos, formulou uma espécie de teoria da história
do Brasil, isto é, elaborou uma interpretação do conjunto do processo
histórico brasileiro, que abrangia desde os inícios da colonização até a
época contemporânea. Esta teoria encontra-se expressa, como veremos
posteriormente em maiores detalhes, no postulado de que a história do
Brasil possuía uma linha mestra – portanto, que a explicava - que se
configurava na transição de uma economia colonial a uma economia
nacional.42
É importante observar que seus estudiosos não levaram isso em
conta (Vide, por exemplo: NOVAIS, 2005; REIS, 1999; RICUPERO,
2000; RÊGO, 2000; SANTOS, 2001). Restringiram-se, no mais das vezes,
à formulação de Caio Prado acerca da colonização, encarando-o como
uma espécie de historiador da época colonial. Com isso eles isolaram
seu modo de conceber a época colonial, não percebendo que ele faz
parte de uma questão maior, a própria interpretação da história do
Brasil em seu conjunto. Nada mais incorreto, assim, do que considerá-
lo uma espécie de historiador da colonização. A rigor, seu
entendimento de colonização somente ganha significado se
considerado como parte integrante da sua interpretação do conjunto da
história do Brasil.

41 Para um estudo da obra de Caio Prado, ver Mendes (2008).


42Ainda que Caio Prado tenha deixado claro o que entendia por economia colonial e
economia nacional, a historiografia deu-lhe ao segundo conceito um significado que
não se encontra nos textos deste autor. Por economia colonial, Caio Prado entendia
uma produção voltada para o mercado exterior, para o atendimento de necessidades
alheias; definia economia nacional como a produção voltada para o mercado interno,
para o atendimento das necessidades da população nela envolvida (PRADO JR., 1942,
p. 25-26; PRADO JR., 1954, p. 160-161). Para o entendimento de economia nacional
como nação, vide (RICUPERO, 2000, p. 160 e seguintes).

180
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Por conter uma teoria da história do Brasil, Formação deve ser


considerado um ensaio e não um livro de história. É verdade que
muitos estudiosos, baseando-se inclusive no próprio autor,
caracterizaram Formação como um livro de história, considerando
Evolução política do Brasil, obra de 1933, em contrapartida, um ensaio. É
verdade que o próprio autor deu ensejo a isso, ao definir, no prefácio,
Evolução como um “simples ensaio”, entendendo por isso uma “síntese
da evolução política do Brasil”. Para elaborá-la, como ele próprio
indicou, escolheu, dentre os inúmeros fatos que comporiam a história
do Brasil, a resultante média deles, “a linha mestra em torno de que se
agrupa[ria]m estes fatos”. Alertou mesmo para os inconvenientes desse
procedimento, destacando que os mesmos não existiriam caso “se
tratasse de uma história e não de uma síntese” (PRADO JR., 1933, p. 7).
Assim, Caio Prado caracterizou Evolução como uma síntese, na qual
procurou apresentar somente os elementos essenciais que permitiriam
ao leitor compreender o processo histórico brasileiro, desde a
colonização até a proclamação da República. A nosso ver, no entanto,
Evolução seria antes uma história do Brasil, dada em seus traços mais
gerais, uma espécie de sua síntese do que propriamente um ensaio.
A comparação entre Evolução e Formação deixa isso claro. Em
Evolução, Caio Prado analisa o processo histórico. Divide, por exemplo,
a época colonial em duas fases. Na primeira, que vai dos primórdios da
colonização até a segunda metade do século XVII, quando havia uma
concordância entre os interesses metropolitanos e os grandes
proprietários de terra, que dominavam na colônia econômica e
politicamente. A partir de então se verifica o início de um processo de
diferenciação de interesses, com a ascensão dos comerciantes, que se
tornam a classe dominante tanto econômica quanto politicamente. Em
Formação, por seu turno, mesmo sendo um livro dedicado inteiramente
à época colonial, ao contrário de Evolução, em cuja primeira edição
abarca a história até a proclamação da República, a economia e
sociedade são analisadas em seus aspectos gerais, sem considerar o
processo histórico em suas particularidades. Aliás, como destaca o
autor, a análise está centrada no período compreendido entre finais do
século XVIII e início do XIX. Trata-se, do seu ponto de vista, de um
momento privilegiado, pois, ao mesmo tempo, permite olhar para o
passado e ver o que foi a colonização, de um lado, e, de outro,
possibilita apreender o processo que se iniciara naquele momento e que
ainda se desenrolava no momento da publicação do livro.
Consideremos agora, pois, Formação, para entender as razões
pelas quais entendemos tratar-se de um ensaio.

181
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Para Caio Prado, a colonização se caracterizava por ser uma


produção voltada para o mercado externo. Segundo ele, esta
característica ainda predominava em sua época, estando na base dos
problemas que os brasileiros então enfrentavam. Eram problemas que
derivavam da maneira como a colonização do Brasil havia se
processado, cujos caracteres estavam presentes na economia brasileira
do século XX. Do seu ponto de vista, a grande questão política era
superar esse caráter colonial da economia brasileira por meio do
estabelecimento de uma economia nacional, processo que estaria em
andamento: “Numa palavra, não completamos ainda hoje a nossa
evolução da economia colonial para a nacional” (PRADO JR., 1942, p.
7). Ele próprio caracteriza este processo como “linha mestra” do
processo histórico.
O estabelecimento da economia nacional constituía, por
conseguinte, uma tendência que vinha se desenvolvendo desde o início
do século XIX, mas que somente em meados do XX se colocara como
uma questão passível de solução. Estávamos, em sua opinião, à época
da publicação de Formação, atravessando a última etapa da transição da
economia colonial para a economia nacional, processo que exigia uma
intervenção política para se completar.
Devemos, antes de tudo, atentar para um fato importante.
Podemos supor que a forma como a colonização é compreendida
determina uma explicação do presente. Entretanto, ainda que nos
ensaios a questão assim apareça, é o oposto que ocorre. Não é a
interpretação do passado que condiciona o modo de conceber o
presente. Antes, é o posicionamento político dos autores diante das
questões da sua época, portanto, do presente, que os leva a ter dada
percepção do passado, em nosso caso, da colonização. Com isso, é a
“solução” que os historiadores davam às questões do presente que os
levava a considerar o passado de dada maneira. Como bem observou o
historiador francês François Guizot (2008, p. 56), o passado muda com
o presente. Pretendia com isso assinalar que, de acordo com as
questões do presente, o passado é encarado de determinada maneira. É
o historiador, homem do seu tempo, com suas opções políticas, com
sua visão de mundo, que, munido de questões colocadas por em sua
época, que se volta para o passado e o analisa.
Duas constatações devem ser feitas. Primeiro: alterando-se as
questões do presente, surgindo novas, o modo de compreender o
passado também se altera. Segundo: cada autor, colocando-se diante
das questões do seu tempo de uma maneira determinada, considera,
necessariamente, o passado de um modo próprio, em consonância com

182
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

seu posicionamento político. Deriva disso o fato de, em uma mesma


época, podermos verificar várias concepções distintas do passado
colonial.
Entretanto, independentemente do modo como os autores se
posicionaram diante das questões de sua época e, por conseqüência,
interpretaram a época colonial de determinada maneira, eles possuem
algo em comum. É exatamente esse ponto em comum que os leva a
elaborarem seus livros na forma de ensaio.

O ENSAIO COMO POSICIONAMENTO POLÍTICO

Os autores do século XX até os anos 60, mais ou menos, com


ênfase nos da primeira metade dessa centúria, tinham em comum
enfrentar uma questão fundamental da sua época: o socialismo como
uma alternativa ao capitalismo e o marxismo como doutrina política.
Posicionaram-se contrários a eles, ainda que muitos se colocassem na
condição de socialistas, comunistas ou mesmo marxistas. Esta oposição
foi feita, como já ressaltamos antes, de forma implícita, indireta.
A oposição ao socialismo e ao marxismo fez-se por meio de
textos cuja questão central era combatê-los. Sob esse aspecto, o ensaio
constituiu a forma adequada para alcançar esse objetivo. Com efeito,
diante da formulação que apontava o socialismo como o futuro da
sociedade, isto é, como a forma histórica de superação do capitalismo,
como colocava o marxismo e os próprios acontecimentos,
principalmente depois da revolução russa, os autores precisavam
defender a tese de que a história brasileira não caminhava na direção
do socialismo. Fizeram-no de diferentes maneiras, é verdade. Mas,
qualquer que fossem elas, os autores tinham que elaborar uma
apreciação geral da história do Brasil - ou uma interpretação dela – que
abarcasse passado, presente e futuro, com o objetivo de negar a
tendência para o socialismo. Ou, ao menos, protelá-lo para um futuro
distante, insistindo na necessidade de se atravessar algumas etapas
intermediárias. Os teóricos do Partido Comunista e Caio Prado, por
exemplo, representam muito bem esta tendência. Para o Partido, era
necessário fazer uma revolução democrático-burguesa, liberar o
capitalismo dos entraves feudais ou semi-feudais por meio de uma
reforma agrária para, então, tendo o capitalismo se desenvolvido, lutar
pelo socialismo. Para Caio Prado, a tarefa política da atualidade era o
estabelecimento da economia nacional, completando a transformação
que, segundo sua interpretação, se desenrolava desde os primórdios do
século XIX.

183
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

O principal argumento desses autores para fundamentar sua


tese eram as particularidades da história brasileira. Dito de outra
maneira, eles afirmavam que as formulações do marxismo, que serviam
para a Europa, não eram adequadas ao Brasil justamente pelo fato
deste possuir uma história que se diferenciava completamente da
européia. De certa maneira, trata-se de argumento perfeitamente
válido. Com efeito, a história de cada país tem suas particularidades,
que a distingue dos demais. No entanto, em nosso caso, esse
argumento servia apenas para justificar uma interpretação da história
que, sob o pretexto de fundar-se nessas particularidades, introduzia
uma visão que se opunha frontalmente a qualquer proposta de
socialismo ou, no mais das vezes, fundamentava uma concepção
reformista ou etapista da história. No último caso não se nega o
diretamente socialismo, mas afirma-se que o mesmo era algo que
colocaria em um futuro não muito próximo. Antes, era preciso
percorrer algumas etapas ou proceder algumas reformas na sociedade.
O ensaio é, por conseguinte, o meio apropriado para esse
desígnio. A forma ensaística explica-se, assim, pelo posicionamento
político dos historiadores; ela é própria da posição política contrária ao
socialismo e ao marxismo. Sob este aspecto, trata-se de uma
interpretação da história que tem uma tese a defender. Vemos, então,
que a questão política tem precedência sobre as demais no que diz
respeito à elaboração dessas obras. Consideremos Caio Prado para
melhor ilustrar isto.
Caio Prado Jr. elaborou seu livro Formação na forma ensaio
justamente com o objetivo de oferecer uma interpretação da história
brasileira que se contrapusesse ao marxismo, que afirma ser o
socialismo a forma histórica de superação do capitalismo. Formulou,
então, uma interpretação da história do Brasil que postulava que o
traço distintivo do processo histórico brasileiro era a constituição de
uma economia nacional e não socialismo. Seu traço distintivo, que o
diferenciava, por exemplo, do Partido Comunista, era a tese de que o
capitalismo também não era possível no Brasil. Afirmou que, nas
condições em que o Brasil se encontrava, o socialismo era prematuro e
o capitalismo uma proposta extemporânea, formulação que apresentou
em Diretrizes para uma política econômica brasileira, obra de 1954.
Postulou que economia colonial/produção voltada para o mercado
externo e economia nacional/produção voltada para o mercado interno
eram os dois pólos entre os quais se moveria a história do Brasil. Como
destacou, a transformação da economia colonial em economia nacional

184
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

era o fio condutor ou a linha mestra da história do Brasil. Segundo este


autor:

Supor por exemplo que seja possível no Brasil e nas


circunstâncias atuais um regime socialista com a entrega a
órgãos estatais da responsabilidade pela direção e
manejamento total das forças produtivas do país, é se não
fantasia de visionário, certamente maneira disfarçada de
entravar as reformas que desde já se impõe e que não
precisam aguardar um socialismo ainda irrealizável
(PRADO JR., 1954, p. 235-236).

Um pouco mais adiante: “Essas forças não são ainda ou não são
sobretudo as do socialismo que começa apenas a esboçar-se entre nós e
precisará aguardar ainda, para amadurecer, um largo processo das
forças produtivas que não será possível sem a preliminar destruição do
sistema colonial” (PRADO JR., 1954, p. 236). Como podemos observar,
verificamos duas questões anteriormente assinaladas. Primeiro, a
oposição ao socialismo, considerada uma proposta prematura para as
condições do Brasil. Segundo, a oposição não é frontal, postergando-se
a proposta de socialismo para o futuro remoto. Antes, era preciso
superar certas etapas para, então, propor-se o socialismo.
Por fim, assinalamos anteriormente que o caráter ensaístico da
historiografia brasileira é mais visível na primeira metade do século
XX. Com efeito, aos poucos, este caráter ensaístico vai perdendo sua
força. Isto aparece claramente no livro Formação histórica do Brasil, de
Sodré, do início da década de 60. Sodré acompanha, em linhas gerais, o
processo histórico brasileiro, tratando dos seus temas maiores. No
entanto, ainda que essa obra se aproxime de uma história do Brasil, ela
guarda uma característica do ensaio propriamente dito. Defende o
autor, indicando as particularidades da história brasileira, que
existiriam etapas a serem transpostas antes de se colocar a questão do
socialismo (SODRÉ, 1967).

CONCLUSÃO

Ao longo do texto procuramos chamar a atenção para o fato de


os historiadores brasileiros do século XX, até, mais ou menos, a década
de 60, terem optado pelo ensaio, de um modo geral, em função do
objetivo político que haviam se proposto. Sob este aspecto, tinham uma

185
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

tese a defender e o ensaio - e não a história - foi a forma indicada para


se atingir esse propósito.
O ensaio pressupõe uma tese, em torno da qual se elabora uma
interpretação da história do Brasil. Menos do que fazer uma
interpretação da história do Brasil com base em documentos, os
historiadores defendiam a tese de que a história do Brasil não
caminhava na direção do socialismo ou que o socialismo não constituía
uma alternativa válida para as condições do país. Era preciso
demonstrar que nossa história possuía determinadas características que
a afastavam do modelo proposto por aqueles que defendiam a solução
socialista.
Iniciamos o texto indicando que ele havia sido motivado pela
crítica feita pelos historiadores do ART à vigente historiografia
brasileira. Chamamos a atenção, também, para o fato de que estava em
questão a superação desta historiografia. Os historiadores da nova
tendência propõem-se superar a historiografia vigente contrapondo-lhe
estudos fundados em uma ampla e farta documentação, assinalando
que, em função da organização da pós-graduação, teria se verificado a
profissionalização dos historiadores, com métodos e fundamentação
teórica que superaria o “amadorismo” até então dominante na prática
historiográfica. Os novos historiadores não afirmam explicitamente
isto, mas o fazem implicitamente ao destacarem a recente
profissionalização do historiador com a disseminação dos cursos de
pós-graduação.43
Ainda que esta crítica seja pertinente, acreditamos que não se
pode deixar de lado a dimensão política da historiografia relativa aos
estudos sobre o processo histórico brasileiro. Do nosso ponto de vista, a
completa superação da historiografia até então dominante somente
pode ser feita em decorrência da compreensão do papel político que
desempenhou ao longo do século XX.
Por fim, a lamentação de que a historiografia atual abriu mão do
caráter ensaístico, menos afeita, portanto, aos textos
macrointerpretativos, preferindo as monografias técnicas, pontuais e
específicas, apenas revela uma incompreensão do papel político
desempenhado pelos historiadores brasileiros em grande parte do
século XX. Com efeito, derrotado o socialismo, a historiografia
brasileira pode prescindir do seu caráter ensaístico.

43Em uma direção e com conclusões distintas das nossas, mas chamando a atenção
para as transformações verificadas nos intelectuais, vide Chasin (2001, p. 18).

186
O ENSAÍSMO NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

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189
A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM
DEBATE POLÍTICO44

INTRODUÇÃO

A historiografia brasileira relativa a Caio Prado Júnior tem,


entre os seus procedimentos de análise, fazer uma comparação entre
ele e o Partido Comunista Brasileiro, particularmente no que diz
respeito às suas interpretações da história do Brasil. Seus estudiosos
costumam destacar que, ainda que membro do Partido Comunista, este
autor divergiu do modo como o processo histórico brasileiro era
concebido pelos comunistas. É verdade que ele polemizou com o
Partido Comunista em diversas oportunidades, ora aberta, ora
veladamente, acerca dessa questão. Também é verdade que um estudo
sobre Caio Prado não poderia prescindir do exame das suas relações
com o Partido Comunista.45
A questão não reside, no entanto, no fato de a historiografia
brasileira considerar essas relações, mas no modo como a faz. Ela se
vale da divergência entre Caio Prado e o Partido Comunista para
colocá-los em posições diametralmente opostas. Com este
procedimento, o intelectual paulista é considerado de uma perspectiva
positiva, como um autor que concebeu o marxismo de forma criativa,
adaptando-o às condições brasileiras — fala-se mesmo em
“nacionalização do marxismo”.46 Ainda segundo a historiografia, isto
teria lhe permitido elaborar uma interpretação da história do Brasil
original, inovadora, estabelecendo mesmo os fundamentos para uma
compreensão do processo histórico brasileiro, especialmente no que diz
respeito à época colonial.
O Partido Comunista, por seu turno, colocado no extremo
oposto, é encarado de maneira negativa, já que teria aplicado
mecanicamente ao processo histórico brasileiro as teses da III

44 Este texto foi publicado na revista Notandum, ano XVI, n. 32, maio-ago 2013.
45 Para um estudo mais aprofundado da obra de Caio Prado vide nosso livro Política e

História em Caio Prado Júnior (2008).


46Segundo Ricupero (2000, p. 29 e p. 31), Caio Prado seria sido um caso bem sucedido
de nacionalização do marxismo. Refere-se, também, a uma notável e pouco comum
utilização da abordagem marxista na análise da história do Brasil.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Internacional para os países coloniais e semicoloniais.47 Assim, os


comunistas possuiriam uma concepção dogmática do marxismo, que
resultou na formulação de uma interpretação esquemática e
mecanicista da história do Brasil.
O debate entre Caio Prado e o Partido Comunista verificou-se,
em grande medida, em torno da questão da existência ou não de
relações feudais ou semifeudais no Brasil. De acordo com a
interpretação dos comunistas, todos os países atravessariam as cinco
etapas formuladas por Marx: comunidade primitiva, escravidão,
feudalismo, capitalismo e, por fim, o socialismo (SODRÉ, 1967, p. 4).
Ainda de acordo com essa formulação, o Brasil estaria na fase de
superação das relações de natureza feudal ou semifeudal que se
constituíam em verdadeiros entraves ao pleno desenvolvimento do
capitalismo.
Em diversas oportunidades, Caio Prado criticou essa
interpretação, questionando a existência de relações de natureza feudal
ou semifeudal em solo brasileiro. Propôs, em troca, uma interpretação
da história do Brasil que expôs em seu livro Formação do Brasil
contemporâneo e que manteve em toda a sua trajetória política e
intelectual.48
De um modo geral, à época do debate e, posteriormente, os
estudiosos examinaram-no, de um modo geral, pelo prisma dos
conceitos, procurando estabelecer as características do feudalismo
segundo a perspectiva marxista, para, então, afirmar pela existência ou
não de relações sociais desta natureza. Assim, basicamente, essas
análises giraram em torno de questões de natureza teórica. Em nosso
texto, procuraremos mostrar que o exame dessas interpretações da
história do Brasil e das suas conseqüências deve ser de natureza
política e não teórica.
Ressalte-se não ser nossa intenção retomar uma antiga
polêmica, até mesmo pelo fato dela ter perdido, há muito tempo, sua
razão de ser. Pretendemos aqui, analisando a historiografia, indicar que
seus procedimentos impedem a compreensão das razões que levaram
tanto o Partido Comunista como Caio Prado formular suas

47 Diga-se de passagem, esta era uma das críticas que Caio Prado fazia ao Partido
Comunista e que a historiografia assimilou acriticamente. Vide, por exemplo: Santos
(1996, p. 43)
48Ainda que a elaboração mais acabada apareça no livro de 1942, Caio Prado já havia
esboçado essa interpretação nos artigos que escreveu em 1935 para defender o
programa da ANL (PRADO JR., 1935).

192
A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM DEBATE POLÍTICO

interpretações. Também é nosso objetivo assinalar que essas


interpretações não derivam das suas concepções de marxismo, mas,
sim, do modo como esse partido e o intelectual paulista se colocaram
diante das questões então postas à sociedade. Inclusive, examinando-os
desta perspectiva, verifica-se que a contraposição entre eles não é tão
absoluta como pretende a historiografia. Com efeito, ainda que existam
diferenças entre ambos, há, sob certos aspectos, aproximações e
concordâncias nem sempre apreendidas pela historiografia.

1. QUESTÕES TEÓRICAS

Na base da comparação entre Caio Prado e o Partido Comunista


encontram-se algumas formulações de natureza teórica e metodológica
que precisam ser ressaltadas. Em primeiro lugar, temos o postulado de
que seria uma dada compreensão do marxismo que conduziria a uma
determinada maneira de conceber a história do Brasil. Assim, Caio
Prado teria uma concepção heterodoxa do marxismo, ao passo que
Partido Comunista possuiria uma visão ortodoxa dessa doutrina. Em
virtude disso, o historiador paulista formulou uma interpretação da
história do Brasil bastante sugestiva, ao passo que o Partido Comunista
nada fez senão aplicar um esquema interpretativo que havia sido
elaborado para explicar, basicamente, o processo histórico dos países
europeus. Alguns estudiosos observam que próprio Caio Prado não
esteve imune a uma perspectiva ortodoxa do marxismo. Ela se
manifestaria em no seu livro inaugural, Evolução política do Brasil, de
1933, mas teria sido corrigida na obra seguinte, Formação do Brasil
contemporâneo.49 Os estudiosos não se preocupam, no entanto, em
apontar as razões porque uns teriam uma concepção ortodoxa e outros
uma concepção heterodoxa da doutrina marxista. A nosso ver, a
própria concepção de marxismo é uma questão de natureza política.
Assim, a maneira como um autor se coloca diante das questões da sua
época leva-o a conceber determinada doutrina de dada maneira.
Em segundo lugar, ao contrário do que supõem autores como
Laclau (2005, p. 23), não é a interpretação da história do Brasil que

49 Alguns autores, em diversos graus simpáticos ao Partido Comunista, costumam

observar que o estoque de categorias marxistas utilizadas por Caio Prado era pequeno,
questionando-se, com isso, seu marxismo. Mas, segundo nosso ponto de vista, a
compreensão do marxismo não deriva de questões de natureza pessoal ou mesmo de
formação. Aliás, diga-se de passagem, aqueles que observam que o estoque de
categorias marxistas de Caio Prado era reduzido não se aventuram explicar as razões
disso.

193
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

conduz a determinado posicionamento político no presente e, por isso


mesmo, a dada proposta política ou encaminhamento de natureza
prática.50 Antes, é a maneira como um autor se coloca diante das
questões da sua época que faz com que conceba o passado de
determinada maneira. É verdade que, de um modo geral, os autores
têm a ilusão de que é a interpretação ou estudo do passado que os
conduz a dada proposta no presente. É o caso, por exemplo, de Caio
Prado e Sodré, que afirmam que foram ao passado com vistas a
iluminar o presente (PRADO JR., 1981, p. 12-13; SODRÉ, 1967, p. IX).
Os próprios estudiosos da historiografia compartilham dessa ilusão,
afirmando, por exemplo, que se vai ao passado para entender o
presente. Também é verdade que, após se ter formulado dada
interpretação da história do Brasil, faz-se derivar dela determinada
proposta política. Desse modo, as coisas se passam como se a proposta
derivasse da interpretação. A própria interpretação, no entanto, já
constitui a expressão de uma maneira particular de quem a elabora
colocar-se diante das questões da sua época.51
Do mesmo modo, por fim, não se pode supor que tenha sido
dada concepção do marxismo que levou os autores a conceberem o
passado de determinado modo. Por exemplo, o fato de o Partido
Comunista afirmar pela existência de relações de natureza feudal ou
semifeudal, o que conduzia à conclusão da necessidade de uma
revolução democrático-burguesa, fase anterior e necessária ao
estabelecimento do socialismo, não deriva da sua concepção
mecanicista do marxismo. Também não se explica por ser uma simples
aplicação das teses da III Internacional. Sob este aspecto, é elucidativa
uma passagem de Gunder Frank. Após citar um trecho de Sodré onde
este afirma: “Assim, pois, a conclusão a que chegamos pelo exame da
realidade é que o Brasil começou sua existência colonial sob o sistema
de produção escravista”, Gunder Frank observa: “O exame de outros

50 Esta concepção é compartilhada por muitos autores. Vide, por exemplo, Faleiros
(1989, p. 143): “As propostas — que continham diferentes vias para o desenvolvimento
e meios de ação — decorriam da diversidade nas interpretações sobre a natureza da
sociedade brasileira.”
51 De um modo geral, os estudiosos de dado autor resumem suas proposições sem
questioná-las. Assim, indicam que compartilham da visão do autor estudado: “No
prefácio do livro Formação histórica do Brasil, Sodré afirma que a motivação para o
estudo das raízes da nossa história era a compreensão do momento presente, buscar no
passado de nossa história elementos que lançassem uma luz sobre os dilemas
contemporâneos, já que sua sombra ainda se projetava sobre o presente” (SILVA, 2006,
p. 103).

194
A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM DEBATE POLÍTICO

trechos da exposição de Sodré sugere que, longe de ter tirado essa


conclusão do ‘exame de realidade’, chegou a ela, certamente, pela
aplicação mecânica ao Brasil da tese de Marx acerca do
desenvolvimento do capitalismo na Europa” (GUNDER FRANK, 2005,
p. 41).
Assim, pelo que foi exposto, o modo como a “realidade” é
concebido é dado pelo posicionamento político do autor. Não existe
uma realidade pura à qual um autor, munido de uma teoria, a aborde,
fazendo uma interpretação dela. A abordagem da denominada
“realidade” é sempre mediada pela política. Em suma, tanto a
concepção que o Partido Comunista tinha do marxismo como sua
interpretação da história do Brasil derivam, insistindo, do seu
posicionamento diante das questões do presente.52
Resta, pois, expor o que se entende por posicionamento diante das
questões do presente. No caso vertente, a grande questão que se colocava
à sociedade era a questão do socialismo. Todos, intelectuais e partidos,
para mencionar apenas os segmentos que estão sendo analisados,
tinham que dar uma resposta a esta questão. Assim, ao tratar das
interpretações da história do Brasil de Caio Prado e do Partido
Comunista e do modo como concebiam o marxismo é necessário
relacioná-los ao modo como se colocavam diante do socialismo.

2. O DEBATE ENTRE CAIO PRADO E O PARTIDO COMUNISTA


BRASILEIRO

O ponto alto do debate entre Caio Prado e o Partido Comunista


Brasileiro verificou-se na década de 1960, após o autor publicar na
Revista Brasiliense vários artigos sobre a questão agrária, culminando
com seu livro A revolução brasileira, de 1966.53 Antes dessa década,

52 Bresser (1997, p. 17) oferece uma teorização sobre a relação entre a produção
intelectual e o processo histórico: “A produção intelectual e o desenvolvimento da
formação social brasileira são naturalmente dois fenômenos profundamente
interligados. Os intelectuais tentam analisar (e orientar) a sociedade, interpretando-a,
mas nesse processo são condicionados por essa própria realidade, que reflete o estágio
de desenvolvimento do país, os interesses de classe envolvidos e a forma de inserção
do país na economia capitalista internacional, e influenciados pelas ideologias e teorias
econômicas vigentes no mundo desenvolvido.” Todavia, a formulação de que os
intelectuais seriam condicionados pela realidade em que vivem dá-lhes um aspecto de
passividade. Há, na verdade, um aspecto ativo nas suas formulações, já que
decorrentes do posicionamento destes diante das questões colocadas em sua época.
53Entre 1960 e 1962, Caio Prado publicou na Revista Brasiliense quatro artigos sobre a
questão agrária. No artigo de março/abril de 1960, “Contribuição para a análise da

195
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

verificaram-se algumas polêmicas entre este autor e o Partido. É


verdade que elas não se estenderam, desdobrando-se em réplicas e
tréplicas. Ao que parece, tanto por parte de um como de outro, houve
um cuidado em não se levar adiante as discussões. Exemplo disso é o
texto de Caio Prado, de 19/04/1947, intitulado “Fundamentos
econômicos da revolução brasileira”, publicado n’A Classe Operária
(PRADO JR., 1947).54 Nele, o autor critica as teses do IV Congresso do
PCB, que deveria ser realizado em 1948, mas que somente se verificou
em 1954 (RICUPERO, p. 214). O texto recebeu duas críticas, ambas
também publicadas n’A Classe Operária. A primeira, imediatamente
após a publicação do texto de Caio Prado, de Rui Facó, “Um falso
conceito da revolução brasileira”, publicada em 26/04/1947. A
segunda, de Ivan Pedro Martins, “Sobre um artigo do camarada Caio
Prado Jr.”, datada de 04/05/1947. Ao que parece, nenhum dos dois
artigos mereceu uma resposta de Caio Prado.
Também autores como Nelson Werneck Sodré (1962) e Alberto
Passos Guimarães (1963), cada um ao seu modo, escreveram obras no
sentido de reafirmar a interpretação do Partido Comunista da história
do Brasil. Ao que parece, são livros que tinham, entre outros objetivos,
defender o Partido das críticas que lhe eram feitas, especialmente por
parte Caio Prado.55 É verdade que Sodré era o responsável pelo Curso
de Formação Histórica do Brasil, ministrado no ISEB, desde a sua
criação, em 1956. Esse curso teria sido a base para a elaboração do livro.
Com isso, pode parecer que a publicação do livro não foi em função
das críticas que então eram feitas, principalmente nas páginas da
Revista Brasiliense. No entanto, pelo conteúdo das obras de Sodré e
Guimarães, acreditamos que a publicação desses livros decorreu das
críticas que então eram feitas ao Partido Comunista pelo intelectual
paulista.

questão agrária no Brasil”, Caio Prado contesta o caráter feudal da agricultura


brasileira. Em janeiro/fevereiro de 1964, Caio Prado publicou o artigo “Marcha da
questão agrária no Brasil”, no qual reafirma o significado e a importância da legislação
rural-trabalhista “(...) e sua efetiva aplicação para a solução do problema agrário e a
reforma de nossa economia rural” (PRADO JR., 1981, p. 161).
54 De acordo Santos (1996, p. 23), desde muito cedo Caio Prado afirmou suas
divergências com o PCB, reportando, ao menos, ao texto de 1947.
55 Intelectuais ligados ao PCB publicaram textos na década de 1960, nos quais
reafirmavam que o campo brasileiro possuía caráter feudal. Veja-se Facó (1980, p. 5),
que se vale do conceito “latifúndio feudal”;

196
A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM DEBATE POLÍTICO

No debate entre Caio Prado e o Partido Comunista procurou-se


estabelecer o entendimento de feudalismo, apoiando-se,
fundamentalmente, no marxismo. Assim, no seu texto “Fundamentos”,
ainda que de forma indireta, Caio Prado expõe seu entendimento de
feudalismo. Por feudalismo, este autor entende “(...) um tipo de
organização social (...)” que se diferenciava da economia brasileira no
que diz respeito ao seu caráter mercantil:

(...) a economia brasileira, desde seu início (isto é, desde


que se organizou a colonização do Brasil) foi
essencialmente mercantil, isto é, fundada na produção para
o mercado, o que é mais, para o mercado internacional. E é
este traço que precisamente caracteriza a economia colonial
brasileira. É o reverso portanto do que ocorre na economia
feudal, cuja decadência e desintegração começam
justamente quando nela se insinua o comércio, precursor
do futuro capitalismo (PRADO JR., 1947, p. 4).

Um pouco mais adiante, Caio Prado reafirma que a principal


característica do feudalismo era a não-mercantilização dos produtos do
trabalho, já que, em contraposição a ele, no Brasil, desde o início da sua
formação, se constituiu uma organização econômica destinada ao
abastecimento do comércio internacional. De acordo com este autor,
este seria o caráter inicial e geral da economia brasileira que se
perpetuou, com pequenas variantes, até a época em que escrevia seus
textos. Completa:

[O Brasil] Não é assim uma economia feudal, nem


“relações feudais de produção” que representam a
primeira etapa da evolução histórica brasileira. É uma
organização econômica que poderíamos designar por
‘colonial’, caracterizada pela produção de gêneros
alimentares e matérias primas destinados ao comércio
internacional e fundada (em seu setor agrícola que é o
principal) no sistema de plantação, isto é, num tipo de
exploração em larga escala que emprega o trabalho escravo
(PRADO JR., 1947, p. 4).56

56Comentando o texto de 1947, Santos (1996, p. 23) observa: “Assim, precocemente,


Caio Prado Jr. insiste em distinguir o ‘caráter geral da colonização brasileira’ da
enfeudação clássica baseada na sobreposição de uma classe a uma estrutura social”

197
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Posteriormente, em 1966, no livro A revolução brasileira, Caio


Prado caracteriza o feudalismo por outro ângulo, assinalando que, em
sua base, encontramos a exploração parcelaria do solo:

O que nesse particular [natureza das relações de trabalho e


produção] essencialmente caracteriza o feudalismo tal
como o encontramos na Europa medieval, e como nos seus
remanescentes ainda subsistia na Rússia tzrista de fins do
século passado e princípios do atual (...) o que caracteriza
esse feudalismo é a ocorrência na base do sistema
econômico-social, de uma economia camponesa, isto é, da
exploração parcelaria da terra pela massa trabalhadora
rural. Economia camponesa essa a que se sobrepõe uma
classe nitidamente diferenciada e privilegiada, de origem
aristocrática, ou substituindo-se a essa aristocracia. Essa
classe privilegiada e dominante explora a massa
camponesa e se apropria do sobreproduto do seu trabalho,
através dos privilégios que lhe são assegurados pelo
regime social e político vigente, e que se configuram e
realizam sob a forma de relações de dependência e
subordinação pessoal do camponês (PRADO JR., 1966, p.
43).57

Deve-se assinalar que tanto Sodré como Guimarães procuraram,


em seus livros, flexibilizar a interpretação do Partido Comunista,
destacando que o feudalismo no Brasil possuía características próprias
e, por conseguinte, não se poderia esperar encontrar aqui as mesmas
feições que ele possuía na Europa. Consideremos, por conseguinte,
suas concepções de feudalismo e o modo como as aplicaram na
situação brasileira.
Em Formação histórica do Brasil, Sodré formulou sua tese de
“regressão feudal”, que daria origem ao feudalismo brasileiro. Ela se
encontra no capítulo “Escravidão e Servidão”, onde Sodré expôs como
teria se processado o surgimento de relações de servidão ou semi-
servidão. Com a crise do escravismo, de acordo com este autor, diante
da grande disponibilidade de terras existente no Brasil, o processo

57Nas páginas seguintes, Caio Prado prossegue em sua comparação entre a sociedade e
a economia formadas por meio da colonização e a economia feudal, inclusive como se
apresentava na Rússia tzarista. Insiste o autor que o fundamental na caracterização do
feudalismo é a presença de uma economia camponesa e a “(...) exploração parcelária da
terra ocupada e trabalhada individualmente e tradicionalmente por camponeses, isso é,
pequenos produtores” (PRADO JR., 1966, p. 45).

198
A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM DEBATE POLÍTICO

histórico caminhou em duas direções: de um lado, a transição do


trabalho escravo para o livre, que caracteriza como avanço; de outro,
que define como atraso ou regressão, o trabalho escravo evoluiu para a
servidão. Como destaca, “(...) o modo escravista está sendo corroído
pelas duas extremidades” (SODRÉ, 1967, p. 248). Acerca deste último
processo, observa que, nos espaços vazios, verificou-se uma “(...)
invasão formigueira de pequenos lavradores ou de pequenos criadores
que estabelecem as suas roças de mera subsistência e que permanecem,
no conjunto, ausentes do mercado.” Conclui: “Trata-se de um quadro
feudal inequívoco” (SODRÉ, 1967, p. 248).58
Alberto Passos Guimarães, por seu turno, tem a preocupação,
em sua obra Quatro séculos de latifúndio, de caracterizar seu
entendimento de feudalismo ou regime feudal, conceitos empregados
por ele. É verdade que, em algumas passagens, deixa entrever que, no
seu modo de ver, o feudalismo era uma economia natural, que o
comércio ou a atividade mercantil teriam desagregado (GUIMARÃES,
1977, p. 25). Guimarães teve, no entanto, que adaptar a teoria clássica
do feudalismo à situação particular do Brasil. Assim, após descrever o
processo de constituição dos latifúndios que teriam ficado nas mãos
dos fidalgos (GUIMARÃES, 1977, p. 24), diante da presença de
escravos, ao invés do servo da gleba, este autor observa que o
monopólio feudal da terra teria imposto soluções específicas para os
problemas que enfrentou. Afirma, por isso, que, no Brasil, “(...) o
feudalismo colonial teve de regredir ao escravismo (...)” (GUIMARÃES,
1977, p. 29).
Assim, cada autor procurou expor, cada um a seu modo, seu
entendimento de feudalismo, insistindo que não estavam simplesmente
reproduzindo aquilo que se passara na Europa, mas buscando as
especificidades da história do Brasil. Assim, não se pode insistir nos
aspectos teóricos para examinar e comparar as diferentes interpretações
da história do Brasil. É necessário levar em conta seus aspectos
políticos. Pode-se, com isso, por em destaque o papel político por elas
desempenhado.

58Ainda no livro Formação, Sodré expõe, no início, seu entendimento de feudalismo.


Trata-se de uma concepção tradicional dentro do marxismo. Por ser longa sua
explicação da gênese e das principais características do feudalismo, deixaremos de
comentá-la (SODRÉ, 1967, p. 7 e segs.).

199
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

3. CAIO PRADO JÚNIOR E O PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO:


APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

Como foi assinalado, o procedimento da historiografia ao


estabelecer uma contraposição entre Caio Prado e o Partido Comunista
constitui um impeditivo para encontrar, entre outras coisas, os pontos
em comum entre as suas posições políticas. Com efeito, ao se colocar
Caio Prado e o Partido Comunista em posições diametralmente
opostas, parece não existir nenhum ponto de contato entre suas
formulações e propostas políticas. Todavia, ainda que as relações entre
eles fossem tensas, com críticas de ambas as partes, em última análise,
havia coincidências que não foram assinaladas e que merecem ser
consideradas.

3.1. APROXIMAÇÕES

Ao postular pela existência de relações de natureza feudal ou


semifeudal, o Partido Comunista colocava em prática uma política de
caráter reformista (Declaração, 1980, p. 5). A afirmação da existência de
relações dessa natureza levava à conclusão da necessidade de uma
etapa intermediária entre o presente e o futuro socialista. Assim, em
decorrência dessa formulação, postulava-se a necessidade de uma
revolução democrático-burguesa para remover os obstáculos que
impediam o desenvolvimento do capitalismo para, aí sim, num futuro
mais ou menos remoto, propor a revolução socialista. Na Declaração de
março de 1958, afirma-se que a sociedade brasileira encerrava a
contradição entre o proletariado e a burguesia. Esta se expressava nas
várias formas da luta de classes entre operários e capitalistas. O
documento, no entanto, acrescenta: “Mas esta contradição não exige
uma solução radical na etapa atual. Nas condições presentes de nosso
país, o desenvolvimento capitalista corresponde aos interesses do
proletariado e de todo o povo” (Declaração, 1980, p. 13). Em seguida,
conclui-se que a revolução no Brasil não era ainda socialista, mas
antiimperialista e antifeudal, nacional e democrática (Declaração, 1980,
p. 13).59

59 Ainda que Pinto (2011, p. 153) defenda a tese de que o modelo explicativo de Sodré

advenha da sua experiência no ISEB, não se tratando, portanto, de um endosso das


teses importadas da III Internacional, isso não modifica o fato de, com sua
interpretação da história do Brasil, ter defendido uma política reformista que afastava o
socialismo do horizonte político.

200
A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM DEBATE POLÍTICO

Também Caio Prado, ao postular que a superação do caráter


colonial da economia brasileira dar-se-ia pelo estabelecimento de uma
economia nacional, colocava em prática uma política reformista, que se
consubstanciava na idéia de que era preciso, antes de se propor o
socialismo, cumprir uma etapa intermediária. Segundo este autor,
dever-se-ia lutar pelo estabelecimento de uma forma de organização
econômica, a economia nacional.
Assim, Caio Prado elabora uma interpretação da história do
Brasil que tinha como objetivo, consciente ou não, retirar a luta pelo
socialismo do horizonte político brasileiro. Faz isso afirmando que a
linha mestra do processo histórico do Brasil era a transição da
economia colonial para a economia nacional. Muitos autores afirmaram
que a luta deste autor era no sentido de constituição da nação. Todavia,
ele deixa claro o que entendia por economia nacional: em oposição à
economia colonial, caracterizada pela produção voltada para o
mercado externo, com o objetivo de atender necessidades alheias, a
economia nacional consistia em uma produção voltada para o
atendimento das necessidades da população nela envolvida. Em
diversas ocasiões, este autor caracteriza-a como produção para o
mercado interno. Assim, nem Caio Prado era um autor revolucionário,
como pretende, de um modo geral, a historiografia, nem escreveu seus
textos com intenções revolucionárias (SANTOS, 2007, p. 17;
ANTUNES, 1987).60
Ainda que Caio Prado e o Partido Comunista possuíssem, na
prática, posições políticas muito próximos, ambos buscando formular
interpretações da história do Brasil que postulassem a necessidade de
postergar para um futuro mais ou menos remoto a luta pelo socialismo,
existem diferenças entre eles que precisam ser assinaladas.

3.2. DISTANCIAMENTO

Apesar de Caio Prado e o Partido Comunista compartilharem,


em última análise, a mesma posição política ao elaborarem
interpretações da história do Brasil que fundamentavam suas posições
60Convém assinalar que, em nenhum momento, estudiosos e críticos que se ocuparam
deste autor e do partido estabeleceram uma relação entre o posicionamento político
diante do socialismo e a interpretação da história do Brasil. Santos (1996, p. 22) explica
a tese da feudalidade em Sodré como decorrência dele autor ter se referenciado pelo
paradigma clássico do marxismo. Caio Prado, por seu turno, seria um autor
revolucionário, motivo pelo qual teria feito uma interpretação voltada para a revolução
brasileira.

201
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

reformistas, ambos divergiam em aspectos fundamentais. Daí as


relações tensas entre eles e as críticas que um endereçava ao outro.
A diferença que parece fundamental, ao que tudo indica, reside
na maneira como ambos encaravam o capitalismo. O Partido
Comunista considerava o capitalismo uma etapa necessária para o
desenvolvimento das forças produtivas e, por isso mesmo,
considerava-o de uma perspectiva positiva.
Caio Prado é partidário de uma tendência que se divisava na
Europa desde a segunda metade do século XIX quando o marxismo e o
movimento socialista estavam em ascensão. Não bastava simplesmente
combatê-los. Era preciso, antes de tudo, de eliminar as condições da
sua força, ou seja, era necessário reformar o capitalismo e, com isso,
impedir ou atenuar os conflitos para que não descambassem para a luta
de classes e para a radicalização, o que beneficiariam apenas os setores
revolucionários do movimento operário. Desse modo, por conta da
oposição ao socialismo nasce uma posição política anticapitalista.
Caio Prado insistia que o socialismo era uma proposta
prematura diante das condições existentes no Brasil. Além dessa
formulação constituir o ponto de partida das suas considerações, é dito
explicitamente no livro de 1954 Diretrizes para uma política econômica
brasileira. Nessa obra também afirmou que o capitalismo era uma
proposta extemporânea nas condições em que se encontrava a
economia capitalista desde finais do século XIX. A seu ver, o caráter
trustificado da economia mundial constituía um impeditivo de o Brasil
tornar-se um país capitalista. Depreende-se disso que se equivocam
tanto os autores que afirmam que, para Caio Prado, a colonização
possuía natureza capitalista, quanto aqueles que postulam que este
autor defendia uma espécie de capitalismo nacional (MANTEGA, 2002,
p. 152-153).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À primeira vista, uma retomada do debate entre Caio Prado e o


Partido Comunista Brasileiro parece ser extemporânea, dado que se
trata de uma polêmica datada. Todavia, nosso intuito não foi analisar
este debate, mas, antes de tudo, procurar compreender o papel
desempenhado por Caio Prado e sua interpretação da história do Brasil
na política nacional. Comumente, a historiografia relativa a ele
caracteriza-o como um autor que abraçou o marxismo, tornou-se
comunista e, por isso mesmo, desempenhou um papel revolucionário

202
A QUESTÃO DO FEUDALISMO NO BRASIL: UM DEBATE POLÍTICO

em nossa história. De um modo geral, ele é caracterizado como um


autor revolucionário.
Para valorizar o papel de Caio Prado, a historiografia o
contrapõe com as teses do Partido Comunista Brasileiro acerca do
Brasil, especialmente na questão acerca da existência de relações de
natureza feudal ou semifeudal no Brasil. A historiografia vale-se das
teses do Partido Comunista da existência dessas relações para
comprovar seu caráter esquemático, mecanicista e dogmático. Todavia,
caso não se recorrer de antemão à dicotomia entre o autor e o partido
pode-se verificar que, sob certos aspectos, havia pontos em comum
entre ambos.
O ponto em comum que os aproxima é o fato de combaterem o
socialismo, cada um com uma interpretação distinta, mas, cujo objetivo
era postergar a questão da revolução para um futuro distante e incerto.
A historiografia acabou por esconder essa questão ao centrar sua
análise no debate em torno da existência de relações de natureza feudal
ou semifeudal no Brasil ao tratá-la como uma questão teórica ou
metodológica e não política.

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203
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

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1967.

204
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO. A PROPÓSITO
DAS COMEMORAÇÕES DOS CENTO E CINQUENTA
ANOS DO MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA61.

Durante o ano de 1998, a propósito dos cento e cinqüenta anos


da publicação do Manifesto do Partido Comunista, foram publicados
trabalhos, cujo foco, de uma maneira geral, era a questão da atualidade
dessa obra e, por extensão, do próprio marxismo. É verdade que
muitos deles, ao invés de recorrerem à história para aferir a vitalidade e
a permanência do Manifesto, preferiram o caminho da quase apologia,
ressaltando o caráter científico do marxismo. Retiraram o Manifesto da
história, contrariando, inclusive, a maior de todas as lições de Marx,
qual seja, a formulação de que tudo o que é humano é histórico. Mesmo
aqueles autores que recorreram à história, fizeram-no de tal forma que,
baseando-se fundamentalmente na idéia de que, enquanto existir
capitalismo, o marxismo e o socialismo terão sua validade62, tornaram
essa obra e, por conseqüência, o próprio marxismo, uma doutrina
acima da própria história. No entanto, a história sofreu mudanças
suficientemente profundas para colocar em causa a própria eficácia do
marxismo. Este constitui o tema desse artigo.
Não se deve ignorar que o debate em torno do Manifesto do
Partido Comunista e, por conseguinte, do marxismo, é extremamente
importante nos dias de hoje. Não se trata apenas de refletir acerca de
uma doutrina que mudou, verdadeiramente, a face do mundo, mas
também de fazer uma reflexão sobre os rumos que a história está
tomando atualmente. Nosso futuro depende, em grande medida, do
modo como olhamos o passado e encaramos o presente. Isso inclui,
indubitavelmente, a maneira como consideramos o próprio marxismo.
Atualmente, novas questões estão sendo colocadas, precisando
ser consideradas de um ângulo novo, distinto daquele freqüentemente
utilizado, como é o caso do desemprego tecnológico, que, à primeira

Texto publicado, pela primeira vez, em Akrópolis. Revista de Ciências Humanas da


61

UNIPAR, Umuarama/PR, v. 9, nº. 1, jan/mar., 2001.


62 Não iremos polemizar com estes autores. Na bibliografia, arrolaremos algumas
publicações de brasileiros que escreveram sobre o tema. Dentre os textos publicados,
merece destaque especial, pela sua grande sensibilidade histórica, o de Rubens
Ricupero (1988), intitulado “Marx, o profeta da globalização”.
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

vista, parece ser um problema antigo. Com efeito, em princípios do


século XIX, com Sismondi (1971) e Ricardo (1985), por exemplo, a
Economia Política já nos havia alertado para o fato de a maquinaria
tornar o homem dispensável do processo de produção. Ela criava,
como observou Ricardo, uma população redundante. Este problema foi
atenuado por duas circunstâncias.
A primeira, que predominou no século XIX, especialmente na
sua segunda metade, e no início do XX, foi a emigração. O
deslocamento de imensos contingentes populacionais dos países velhos
para os novos países desafogou a Europa e atenuou o problema do
desemprego (QUEIROZ, 1979). Essa forma de solução se esgotou a
partir do momento em que as novas regiões foram ocupadas e os novos
países também se industrializaram.
A segunda circunstância foi o advento do socialismo, que
culminou com a Guerra Fria. Durante este período, os governos se
empenharam em atenuar o problema do desemprego por meio de
medidas sociais e mesmo da criação artificial de empregos.
Entretanto, atualmente, o problema do desemprego adquiriu
nova feição, já que as condições históricas são outras. De fato, com o
fim do socialismo e da Guerra Fria, com o fim da ameaça de uma
revolução e, principalmente, com o uso intensivo da tecnologia, a
sociedade está sendo obrigada a encarar a questão do desemprego de
uma maneira completamente distinta.
Na verdade, fala-se em desemprego, mas é preciso estabelecer
uma diferença entre o desemprego propriamente dito e a nova situação
que está sendo criada.
Por desemprego poderíamos entender uma situação passageira,
temporária, fruto de uma crise econômica. Quando o crescimento
econômico é retomado, aqueles empregos que haviam desaparecido
são novamente criados.
O que estamos verificando nos dias de hoje é, a par desse
fenômeno, outro completamente distinto, o da liquidação do emprego.
Empregos desaparecem com o uso de novas tecnologias. São empregos
que jamais voltarão, mesmo com um grande crescimento econômico.
Aliás, já se cunhou uma expressão para definir esse novo fenômeno:
“crescimento sem emprego”. A respeito do número de trabalhadores
ocupados no processo produtivo, na agricultura e na indústria, uma
comparação entre os dados de 100 ou 200 anos atrás com os de hoje
mostra o quanto diminuiu a quantidade de trabalhadores, a
porcentagem de trabalhadores ocupados na produção. Essa

206
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO

comparação mostra quanto os homens estão sendo expulsos do setor


produtivo, sendo substituídos pela máquina.
Pensava-se, até certo tempo atrás, que isto não representava um
grande problema porque o setor de serviços absorveria este
contingente expulso da produção. No entanto, verificamos hoje que
mesmo este setor está sendo invadido por novas tecnologias,
ocupando, cada vez mais, uma quantidade menor de pessoas. É o que
observa, por exemplo, Rifkin (1995).
Não são poucos os que se debruçaram sobre essa questão,
propondo soluções. Diminuir a jornada de trabalho para ocupar dois
trabalhadores onde se ocupa apenas um é uma delas (AZNAR, 1995).
Não vamos discutir aqui essas diferentes propostas, mas
queremos ressaltar que há algo em comum entre a maioria dos autores
que as fizeram: é que quase todos trabalham com a idéia de que os
empregos jamais voltarão, que o retorno a uma situação próxima do
pleno emprego é algo inviável. Os governos trabalham hoje com um
cenário com um alto índice de desemprego.
Este parece ser o grande desafio que se apresenta para o futuro.
Saber se nos encontramos em condições de enfrentar essa questão
constitui um dos aspectos desta exposição. A ele se relaciona a
importância do debate em torno do Manifesto do Partido Comunista, uma
obra que influenciou decisivamente a história ao longo dos últimos
cento e cinqüenta anos, influência que muitos ainda teimam em
preservar.
A publicação dessa pequena grande obra provocou uma imensa
revolução na história. Pode-se mesmo dizer que há uma história
anterior ao Manifesto e outra que lhe é posterior. Na verdade, ele foi um
divisor de águas. Depois dele, a história nunca mais foi a mesma.
Publicado no mesmo momento em que o proletariado aparece
no cenário político como classe independente, não a reboque de outras
classes, mas com reivindicações próprias, o Manifesto nasce
indissoluvelmente vinculado ao movimento operário e à exigência de
uma transformação radical da sociedade burguesa. Deste modo, o
marxismo - já que falar do Manifesto é falar do marxismo - surge em
decorrência de determinadas contingências históricas e é por elas
explicado.
Por essa razão, as vicissitudes por que passa o marxismo dizem
respeito ao próprio processo histórico, ao movimento operário, à ação
dos partidos operários, às formulações dos intelectuais de esquerda e,
por que não dizer, à própria luta de classes que, a partir de Marx,
adquire, cada vez mais, uma nova configuração.

207
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

Para Marx e Engels, as condições históricas que conduziriam à


superação da sociedade burguesa tinham sido produzidas por essa
mesma sociedade. Aliás, as relações burguesas teriam dois momentos.
O primeiro é quando, partindo das condições herdadas do mundo
feudal, essas relações teriam impulsionado as forças produtivas a um
grau jamais visto. O segundo, quando essas relações começavam a
travar o desenvolvimento das forças produtivas. De condição para o
progresso histórico, as relações capitalistas haviam se tornado um
entrave.
Assim, o capitalismo teria seus dias contados não por causa da
miséria que havia provocado na classe operária, mas,
contraditoriamente, pela imensa riqueza que criara, riqueza essa que as
relações burguesas comportavam com muito custo. Pela primeira vez
na história, as crises decorriam não devido à carência, mas à
abundância. As crises eram de superprodução. Produzia-se mais do
que se podia consumir.
Após ter analisado a revolta das forças produtivas contra as
relações burguesas de produção, Marx e Engels tratam da classe que
dirigiria essa revolta, o proletariado:

As armas que a burguesia utilizou para abater o


feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia.
A burguesia, porém, não forjou somente as armas que lhe
darão morte; produziu também os homens que manejarão
essas armas - os operários modernos, os proletários (1977, p.
26).

A ação do proletariado, ainda que impulsionada pela


exploração a que ele estava submetido, não tinha, segundo Marx e
Engels, a finalidade de instaurar o reino da justiça. A revolução
socialista não seria a redenção da humanidade, mas a forma de liberar
as forças produtivas dos entraves em que haviam se convertido as
relações burguesas. Em conseqüência, a sociedade socialista seria
condição do progresso social.
No entanto, ao formular sua doutrina, Marx adiciona um novo
ingrediente à luta de classes: o objetivo a ser alcançado ou a ser evitado.
Ao anunciar que a transformação social constituía um momento do
processo histórico, Marx torna a história consciente.
Consideremos duas épocas históricas, dois exemplos, para
tentar deixar isso claro.

208
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO

Conta-se que, no limiar da Revolução francesa, os aristocratas


abraçavam a fisiocracia acreditando que essa doutrina era uma
apologia do proprietário de terras, uma defesa da forma feudal. Não se
davam conta de que nela estava inscrita a verdadeira natureza da
Revolução, de que indicava o que deveria ser feito, enfim, de que era o
programa da revolução, como observou mais tarde Tocqueville (1979,
p. 146). Os iluministas, por seu turno, eram recebidos nos salões
aristocratas onde expunham suas idéias e conseguiam novos adeptos.
Era a filosofia da moda, reis e príncipes abriam suas portas aos
filósofos sem se aperceberem de que por elas entravam os teóricos da
revolução que iria destruir palácios e castelos. Os aristocratas iam ao
teatro e divertiam-se com as peripécias do barbeiro, personagem de
Beaumarchais, que atacava a nobreza contrapondo o talento à condição
de nascimento, ao título, ao sangue. Os aristocratas caminhavam
inconscientes para o cadafalso.
Com o marxismo tudo se passa de forma distinta. Quando Marx
afirmou que os homens faziam a história, mas não sabiam a história
que estavam fazendo, quis dizer que a partir das suas formulações os
homens teriam consciência da história que estavam fazendo.
Muitos julgaram que a doutrina marxista estava equivocada
porque Marx errara em suas previsões. Evidentemente, Marx não
pretendia prever nada. Concluiu pela tendência para o socialismo em
razão das lutas sociais que eram travadas em sua época e de sua análise
da sociedade burguesa. Marx não se equivocou. Antes, acertou. Seu
acerto foi, no entanto, seu calcanhar de Aquiles, o calcanhar de Aquiles
do marxismo. Justamente por ter desvendado o mecanismo de
funcionamento da sociedade burguesa, justamente porque a doutrina
de Marx constitui uma compreensão da sociedade burguesa,
justamente por ter desvendado o segredo da história, dando à luta de
classes uma dimensão histórica nunca vista, justamente por tudo isto
impôs à burguesia uma atitude defensiva e, contraditoriamente, uma
atitude ofensiva. Em uma carta, Engels graceja com Marx dizendo que
este havia mostrado à burguesia que a economia política era perigosa,
revolucionária. Disse uma grande verdade. Também em carta de 14 de
outubro de 1868, Engels relata a Marx que, em Gladbach, os fabricantes
de tecidos de algodão haviam compreendido que a jornada de trabalho
era demasiadamente longa; por isso, tinham criado uma associação
para reduzi-la de 13 para 12 horas. E, observando que isso era para
começar, comenta: “Como podes ver, teu livro [O Capital] já está agindo
efetivamente até na burguesia” (MARX e ENGELS, 1974, p. 185).

209
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

A partir de então, e cada vez mais, a luta de classes adquire uma


nova configuração. Não se trata mais de um conflito de classes em que
estas desconhecem o rumo que a história poderia tomar ou sequer
intuem para onde a luta as levará. Não é casual, por exemplo, que um
dos autores a colocar as questões de sua época de forma clara tenha
sido Tocqueville. Em seu estudo sobre a Revolução Francesa, ao
mostrar que o processo revolucionário estava em curso, mas ninguém
se dava conta, ele faz o seguinte comentário: “Admiramo-nos muitas
vezes ao ver a estranha cegueira com a qual as altas classes do antigo
regime ajudaram a própria ruína” (1979, p. 137). Tocqueville pode fazer
esse comentário porque se defronta com duas épocas distintas, a da
própria Revolução Francesa, quando os homens não sabiam a história
que faziam, e a sua, quando observa que se estava caminhando para o
abismo da revolução (1977, p. 587).
Com o Manifesto, não apenas a guerra entre capital e trabalho foi
declarada - uma guerra aberta, clara -, como também colocou os
contendores em outro patamar. A burguesia passou a conhecer os
perigos que corria. São muitos, inclusive, os autores que observaram
que as condições sociais e políticas haviam-se alterado o suficiente para
exigir uma nova política por parte de todos.
Como em uma guerra, os contendores movimentam-se de
acordo com os movimentos do inimigo. Por isso, após um primeiro
momento de recusa e de ignorância (no sentido de desconhecer o
alcance do problema), a burguesia teve a necessidade de responder aos
ataques do proletariado. Isto modificou o curso da história63.
A burguesia, porque a revolução constituía uma ameaça
concreta, não descurou da luta de classes. A perspectiva ou ameaça do
socialismo obrigou-a, diante da pressão do movimento operário, a fazer
concessões, a fim de evitar a convulsão social. É verdade que a
burguesia teve uma atitude pendular diante do movimento operário e
revolucionário, ora fazendo concessões, ora valendo-se da repressão,
da violência, quando não das duas ao mesmo tempo. Talvez
Tocqueville seja um autor importante também nessa questão. Para ele,
a tendência à igualdade era um processo inevitável. Ao invés de se
lutar contra ela ou então ignorá-la, dever-se-ia tentar dirigir este
processo para que não caísse em mãos erradas, evitando uma direção

63 Não são poucos os autores que observaram esse fato. Thurow é um deles: “Os ricos
eram mais espertos do que Marx pensava. Eles compreenderam que sua própria
sobrevivência prolongada dependia da eliminação de condições revolucionárias – e o
fizeram” (1997, p. 17).

210
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO

perigosa. Na introdução de A democracia na América, observa que o


movimento que impelia os povos cristãos em direção à igualdade era já
demasiado rápido para ser contido, mas não o bastante para que se
perdessem as esperanças de ser dirigido (TOCQUEVILLE, 1977, p. 14).
No entanto, a reação burguesa não é suficiente para explicar os
desdobramentos históricos, o curso que a história tomou. Pode-se dizer
que a burguesia fez o que deveria ter feito e se esperava que fizesse. A
questão está no outro campo. É preciso destacar que o próprio
movimento operário e sindical, os próprios partidos de esquerda, os
próprios intelectuais contribuíram para a sustentação da sociedade
burguesa. Aqueles que supostamente deveriam estar empenhados na
revolução têm sua responsabilidade na manutenção dessa sociedade.
Marx, Engels e Lênin, apenas para nomear os grandes nomes da
revolução proletária, travaram uma luta tenaz, no seio do próprio
movimento operário e da esquerda, contra as tendências que estavam
mais empenhadas na conciliação e nas reformas do que na revolução
socialista. Textos como Crítica ao Programa de Gotha, Que fazer?, O
Imperialismo, para citar apenas alguns, são suficientemente conhecidos
para se concluir que nem todos os que se colocavam ao lado do
proletariado estavam dispostos a fazer uma revolução. O renegado
Kautsky e o revisionista Bernstein e outros são epítetos que marcaram
para sempre a atuação reformista, contra-revolucionária, de alguns
líderes do movimento operário. Cabe observar aqui a mudança que se
verificou no debate político entre a época de Marx e Engels e a de
Lenin. Se os primeiros combateram autores que apresentavam
propostas oriundas do seio da pequena burguesia para o movimento
operário, como era o caso de Proudhon e During, Lênin travou uma
luta no próprio seio do marxismo, contra aqueles que pretendiam
revisá-lo.
Marx e Engels também não pouparam críticas ao movimento
operário. A correspondência entre ambos, além de outros escritos
publicados, está repleta de opiniões desfavoráveis acerca da classe
operária. Em carta de 7 de outubro de 1858, endereçada a Marx, Engels
observa que o proletariado inglês aburguesava-se cada dia mais. De
acordo com ele, a mais burguesa de todas as nações aspirava ter, ao
lado da burguesia, uma aristocracia burguesa e um proletariado
burguês. Também em cartas dirigidas a outros líderes do movimento
operário, Engels criticou o movimento proletário. Em carta a Kautsky,
datada de 12 de setembro de 1882, Engels afirma que os trabalhadores
ingleses pensavam da política colonial o mesmo que pensavam da
política em geral, qual seja, pensavam exatamente o que pensavam os

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POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

burgueses. Acrescenta que na Inglaterra não existia mais partido


operário, mas conservadores e radicais liberais (MARX e ENGELS,
1974, p. 243). Isto mostra que, para ambos, a classe operária pertencia à
sociedade burguesa. Por conseguinte, era uma classe capaz de ter
atitudes e posições burguesas ou pequeno-burguesas.
Consequentemente, não a encaravam como uma classe naturalmente
revolucionária. Lênin, em sua obra sobre o imperialismo, observava
que a camada de operários aburguesados, ou como os denominava,
“aristocracia operária”, era o principal apoio social da burguesia (1960,
p. 815).
O fato de a revolução ter ocorrido em um país atrasado, como a
Rússia, já é um elemento fundamental para atestar que a história havia
adquirido uma nova direção após o surgimento do marxismo. Com
efeito, Marx, coerente com suas formulações, acreditava que a
revolução ocorreria nos países capitalistas mais avançados,
principalmente Inglaterra e França. Afinal, era nestes países que o
capitalismo estava mais desenvolvido, que a riqueza havia atingido um
alto grau de concentração. A circunstância de a revolução rebentar em
um país pouco desenvolvido comparativamente à Europa ocidental,
como era o caso da Rússia, levou muitos autores a afirmar que a teoria
marxista estava equivocada. Os defensores do marxismo e da
revolução procuraram, no entanto, explicar a revolução socialista na
Rússia à luz da doutrina de Marx. A teoria do elo mais fraco (LÊNIN,
1960) e a do desenvolvimento combinado (TROTSKY, 1967) pretendem
explicá-la validando o marxismo.
Entretanto, mais do que confirmar a validade do marxismo, esse
acontecimento mostra-nos, de fato, que a história tinha adquirido uma
direção nova. Desse acontecimento podemos tirar duas conclusões.
A primeira, perfeitamente compreensível, é que a Revolução
Russa serviu como uma espécie de alerta à burguesia. Se até então a
revolução era apenas uma ameaça teórica, digamos assim, naquele
momento ela passou a ser uma ameaça concreta. Revelou que se
tratava de uma ameaça perfeitamente factível. Isto impôs à burguesia
um cuidado ainda maior nas questões políticas.
A segunda conclusão é que ela deveria ter sido uma espécie de
aviso ao movimento operário, um alerta de que a história havia
mudado seu curso. Com efeito, Marx acreditava que o cenário da
revolução seria a Europa ocidental. Mas foi justamente porque estava
correto em sua apreciação que ela não ocorreu aí. Nestes países, a luta
de classes conduziu a história para outros caminhos. A burguesia fez
concessões. Cooptou parcela do movimento operário, dos partidos de

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REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO

esquerda e dos próprios intelectuais, que lhe emprestaram seu apoio


político. Formou-se o que Lênin chamou de aristocracia operária. No
plano teórico, esta conciliação de classes deu origem às revisões do
marxismo. Mas, porque a revolução foi conjurada nos países mais
desenvolvidos, a crise fez com que a corrente se rompesse no elo mais
fraco e não no mais maduro.
Por outro lado, a formulação da necessidade de uma revolução
social não implica que esta venha, de fato, a ocorrer. Não existe
automaticidade na história. Afinal de contas, são os homens os
responsáveis por seus atos. Como observou Locke, “A felicidade e a
desgraça do homem são, em grande parte, sua própria obra” (1986, p.
31). Para que algo aconteça é indispensável a ação política dos homens.
Mas a ação política, no caso em questão, tanto poderia levar à
derrocada da sociedade burguesa quanto à sua conservação. A história
revelou que, no caso dos países desenvolvidos do Ocidente, o
proletariado agiu no sentido de se conservar como classe - é certo que
arrancando concessões e impondo condições à burguesia - e, com isto,
contribuiu para a sustentação da sociedade burguesa. Ao recusar a
morte, o proletariado deu nova vida à sociedade capitalista.
A própria situação do proletariado explica a conciliação. Para
Marx, o operariado não era intrinsecamente uma classe revolucionária.
Ele possuía uma dupla face. De um lado, como produto e parte da
sociedade burguesa, os operários compunham uma classe que vendia
uma mercadoria, mercadoria especial, é verdade, mas uma mercadoria.
Sob este aspecto, era uma classe que, na luta econômica, não contestava
as relações capitalistas. Antes, reforçava-a, pois sua luta não estava
dirigida contra a sociedade burguesa, cuja base era a venda da força de
trabalho. Era uma luta que se travava no seu interior, em torno do
valor dessa força de trabalho. Protestava-se não contra a venda de
trabalho, mas contra o valor dessa venda. Era na condição de
compradores e vendedores da força de trabalho que capitalistas e
operários se defrontavam. Deve-se ressaltar que este conflito já estava
inscrito como um dos elementos componentes da sociedade burguesa.
Para confirmar isto, basta considerar as obras de Adam Smith e David
Ricardo quando tratam de definir o que é salário e o que é lucro. Em
sua análise, Ricardo (1985, p. 39) parte não apenas da existência das
classes na sociedade como também do fato de existir entre as mesmas
um conflito de interesses. Smith (1985, p. 91), por seu turno, no capítulo
dedicado aos salários do trabalho, mostra que capital e trabalho
encontram-se em campos opostos e que a organização da classe
operária é fundamental para a própria existência da sociedade

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POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

burguesa. O conflito entre capital e trabalho em torno do valor da força


de trabalho é, pois, inerente à sociedade burguesa e lhe dá sustentação.
Mas, como observou Marx, a burguesia só pode existir com a
condição de revolucionar incessantemente a produção. A concorrência
obriga-a a isso e, por essa razão, durante esse período, a produção
burguesa desenvolveu-se prodigiosamente.
Amparada pelo apoio político concedido pelo próprio
movimento proletário ao longo destes 150 anos, a sociedade capitalista
atingiu, hoje, uma situação distinta daquela que Marx descreveu e da
qual esperava por uma revolução. As forças produtivas alcançaram um
grau de desenvolvimento tão grande no interior da sociedade
capitalista que não apenas mudaram a configuração das classes como
provocaram uma curiosa inversão. Para Marx, o socialismo seria a
forma social capaz de herdar a riqueza criada pela sociedade burguesa
e mesmo desenvolvê-la. Com a derrocada do socialismo, verificamos a
adoção de relações baseadas na propriedade privada para promover o
desenvolvimento das forças produtivas que estavam contidas pelo
socialismo. É o caso de grande parte das indústrias da Alemanha
Oriental, que foram abandonadas justamente porque o custo da sua
modernização era superior ao seu completo abandono.
Atualmente e cada vez mais, o trabalho, os empregos
desaparecem. A máquina, a robótica, a informatização expulsam cada
vez mais os homens da produção. Aliás, o aspecto trágico disso tudo é
que é preciso expulsar os homens da produção para aumentar a
produtividade do trabalho. O proletariado torna-se uma classe cada
vez menor. Em troca, graças à grande produtividade do trabalho, uma
parcela cada vez menor de trabalhadores consegue produzir para uma
parcela cada vez maior que se encontra fora da produção. O peso
específico da classe operária na sociedade diminui incessantemente.
Há uma corrente historiográfica bastante conhecida que trata da
luta de determinados segmentos sociais contra a maquinaria durante a
Revolução Industrial. Essa historiografia, inglesa em sua maior parte,
mostra-nos quão difícil foi fazer com que fossem aceitas as novas
relações de trabalho, as novas condições de existência fundadas na
maquinaria, enfim, as relações burguesas. Com efeito, a formação de
novos hábitos de trabalho constituiu uma imensa dificuldade. Como
observa Thompson, “(...) a transição para uma sociedade industrial
desenvolvida exigiu uma severa reestruturação dos hábitos de trabalho
- novas disciplinas, novos incentivos, e uma nova natureza humana”
(1987, p. 109). Esse autor nos mostra, além disso, que aqueles que se
opunham à mecanização da produção consideravam-na contrária à

214
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO

natureza humana. Freqüentemente essa historiografia tomou partido


destes movimentos de resistência. Não deixa de ser curioso que
vivamos hoje uma situação completamente oposta. Este mundo, que foi
tão difícil de ser implantado e que hoje se encontra ameaçado de
desaparecer, é-nos apresentado como se fosse a essência do homem,
como se fizesse parte da nossa natureza sermos trabalhadores64.
Esquecemo-nos de que esta condição, contra a qual lutamos no
passado, é produto da história e, como tal, tende a desaparecer. Antes,
resistia-se à criação de um mundo de trabalhadores industriais, hoje
também se resiste, mas exatamente com o intuito de manter este
mundo de trabalhadores. Antes, não se admitia um mundo de
trabalhadores industriais, hoje, não se admite um mundo sem
trabalhadores industriais. Antes, a máquina era um fator de alienação,
hoje é considerada condição de existência. Antes, a relação era de
exploração, hoje é emprego. A exigência de um mundo composto de
trabalhadores torna-se, assim, obsoleta. A História é, realmente, uma
deusa irônica e implacável.
A história tem seu lado irônico. Há pouco menos de duzentos
anos, os homens lutaram contra a tendência de se transformarem em
trabalhadores, em empregados. Lutaram contra a máquina que
destruía o artesanato e contra a fábrica que criava o proletariado. A
historiografia ocupou-se bastante deste tema. Ainda há pouco fazia a
apologia dessa resistência. Exaltou os movimentos que combatiam a
tendência a transformar os homens em trabalhadores, tratando a
fábrica como anti-natural, como algo imposto. Mas hoje essa
historiografia também faz parte da história. Ela não pode mais fazer a
apologia da luta contra a constituição do trabalhador porque, nos dias
de hoje, a reivindicação é justamente pela manutenção do homem como
trabalhador.
O fato é que a sociedade burguesa ganhou fôlego, conseguindo
dar às condições econômicas tal desenvolvimento que chegou a ponto
de promover, tendencialmente falando, a eliminação do trabalhador,
sua substituição pela máquina. Assim, não só tornou a classe operária
diminuta como também lhe deu acesso aos bens materiais, nos países

64 Observa Bridges que “(...) o emprego moderno foi uma nova idéia assustadora – para

muitas pessoas, uma idéia desagradável e até mesmo socialmente perigosa. Seus
críticos afirmavam que era um modo antinatural e até desumano de se trabalhar.
Previam que a maioria das pessoas não seria capaz de conviver com suas exigências”
(1995, p. XIV-XV).

215
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

mais desenvolvidos, em grande escala, e, nos menos desenvolvidos, em


uma escala menor. A constatação desses fatos impõe uma reflexão.
O cenário descrito por Marx no Manifesto como propício à
revolução não existe mais, foi superado. Com efeito, para Marx, a
tendência da sociedade capitalista era a divisão em duas grandes
classes. Uma, sempre decrescente, a dos que detinham a propriedade.
Outra, a dos que nada possuíam, sempre em aumento, acrescida,
inclusive, por elementos que, possuindo conhecimentos, eram
arruinados pela concorrência. O resultado seria a formação de uma
grande classe que nada possuísse e que se encontrasse em posição de
negação de uma sociedade de cuja afluência não participava. Formar-
se-ia uma classe que nada tinha a perder com a revolução, mas tudo a
ganhar. Poderíamos subscrever isto hoje?
O Manifesto não é atual sequer para os movimentos populares e
de esquerda. Que agrupamento político ou partido defende, de fato, os
princípios do marxismo? Vejamos. Marx destacou e celebrou o
processo de socialização promovido pela sociedade burguesa, processo
que nunca havia sido visto na história. Pode-se dizer que Marx foi um
verdadeiro apologista da grande indústria, da grande propriedade, do
trabalho coletivizado, bases de uma nova sociedade. Marx via na
máquina, portanto, na grande indústria, não apenas o ponto de partida
da libertação do operário da exploração capitalista, mas da própria
liberação do homem do trabalho. Marx, portanto, não subscreveria
qualquer proposta de reforma agrária. Seu mundo era o da grande
propriedade mecanizada.
Marx sempre ressaltou o caráter cosmopolita que a burguesia
imprimiu e continuava a imprimir à sociedade, caráter que, diga-se de
passagem, ele encarou positivamente. Assim, diante das exigências não
apenas de parcela do movimento operário, sindical, mas também dos
partidos de esquerda que reivindicam um Estado protetor da indústria
nacional, como não chegar à conclusão de que o Manifesto perdeu sua
atualidade?
Vejamos, pois, dois trechos dessa obra que mostram a tendência
ao cosmopolitismo do capitalismo. O primeiro:

Pela exploração do mercado mundial a burguesia imprime


um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos
os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à
indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais
foram destruídas e continuam a sê-lo diariamente. São
suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna

216
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO

uma questão vital para as nações civilizadas, indústrias que


não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim
matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos
produtos se consomem não somente no próprio país mas
em todas as partes do globo. Em lugar das antigas
necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem
novas necessidades, que reclamam para sua satisfação os
produtos das regiões mais longínquas e dos climas mais
diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões e
nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um
intercâmbio universal, uma universal interdependência das
nações. E isto se refere tanto a produção material como à
produção intelectual. As criações intelectuais de uma nação
tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o
exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais
impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais,
nasce uma literatura universal (1977, p. 24-25).

O segundo:

As demarcações e os antagonismos nacionais entre os


povos desaparecem cada vez mais com o desenvolvimento
da burguesia, com a liberdade de comércio e o mercado
mundial, com a uniformidade da produção industrial e as
condições de existência que lhes correspondem (1977, p.
35).

Marx não exaltou somente o papel revolucionário da burguesia


no passado, quando ela destruiu os complexos e variados laços que
prendiam o homem feudal aos seus “superiores naturais”, simplificando
as relações sociais. Ele exaltou também o que ela desempenhou em sua
época. Não teve pruridos em considerar com bons olhos a ação do
capital contra formas atrasadas de existência. Tudo, é claro, tendo em
vista a revolução. Dois exemplos são bastante conhecidos.
Na disputa entre protecionistas e livre-cambistas, Marx, em
1848, escreveu um rascunho preparatório de um discurso, onde consta
o seguinte:

Pero los proteccionistas dirán: “Por lo menos, nosotros


mantenemos el estado actual de la sociedad. Bien o mal,
aseguramos al obrero ocupación para sus brazos e
impedimos que la competencia del extranjero le arroje a la
calle.”

217
POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

No pretendo refutar esta afirmación. La acepto, sin más.


Así, pues, el mejor resultado a que llegarían los
proteccionistas sería el mantenimiento, la conservación del
actual estado de cosas. Está bien, pero lo que a la clase
obrera le interesa no es mantener el estado de cosas actual,
sino transformarlo en lo contrario de lo que es (MARX e
ENGELS, 1966, p. 322).

Já no discurso, pronunciado na Associação Democrática de


Bruxelas, Marx não deixa dúvidas quanto à sua opinião sobre o
protecionismo. Afirma ser o protecionismo conservador e a livre-troca
destruidora, revolucionária. Ela desintegraria as antigas nacionalidades
e levaria às últimas conseqüências o antagonismo entre burguesia e
proletariado. O sistema de liberdade de comércio aceleraria a revolução
social. Por isso, Marx colocava-se a favor da liberdade de comércio
(1966, p. 324-325).
Na questão da Índia, em artigos de 1853, sabe-se muito bem,
Marx colocou-se abertamente do lado da indústria britânica que
destruiu a base econômica de uma existência milenar. Encarava o
vapor inglês e a liberdade de comércio inglesa uma maneira dolorosa
de realizar uma revolução no estado social da Índia, fazendo-a adentrar
o mercado mundial. Marx não lamentou a destruição de um mundo
imutável. Ao contrário, afirmou que, por mais penoso que fosse para os
nossos sentimentos pessoais o espetáculo de um velho mundo que se
esboroava, a questão do ponto de vista histórico era outra. Concluiu o
artigo com uma citação de Goethe:

Quem lamenta os estragos


se os frutos são prazeres?
Tamarleão em seu reinado
não esmagou milhares de seres? (MARX e ENGELS, 1966,
p. 291).

Em outro artigo sobre a Índia, também do mesmo ano, Marx


escreveu:

Os devastadores efeitos da indústria inglesa na Índia [...]


são evidentes e aterradores. Mas não devemos esquecer
que esses efeitos não passam do resultado orgânico de todo
o atual sistema de produção. Essa produção repousa no
domínio supremo do capital. A centralização do capital é
indispensável à existência do capital como poder

218
REFLEXÕES ACERCA DO MARXISMO

independente. Os efeitos destruidores dessa centralização


sobre os mercados do mundo não fazem senão demonstrar
em proporções gigantescas as leis orgânicas imanentes da
economia política, vigentes na atualidade para qualquer
cidade civilizada. O período burguês da história está
chamado a assentar as bases materiais de um novo mundo:
a desenvolver, de um lado, o intercâmbio universal,
baseado na dependência mútua do gênero humano, e os
meios para realizar esse intercâmbio; e, de outro,
desenvolver as forças produtivas do homem e transformar
a produção material num domínio científico sobre as forças
da natureza. A indústria e o comércio burgueses vão
criando essas condições materiais de um novo mundo (...)
(MARX e ENGELS, 1966, p. 297).

Podemos afirmar, sem receio de parecer temerários, que as


idéias gerais norteadoras do pensamento de Marx se encontram hoje
mais próximas das dos defensores da concorrência mundial do que dos
que reivindicam o estabelecimento de fronteiras econômicas e,
propugnando o parcelamento da propriedade da terra, inviabilizam o
uso industrial do solo e a conservação dos empregos, mesmo que à
custa do progresso.
Hoje a revolução socialista tornou-se coisa do passado. Por
conseguinte, o Manifesto, que surgiu para esclarecer o proletariado na
sua luta contra o capital, também se tornou coisa do passado. Como se
pode ver, em nossa análise do marxismo, procuramos situá-lo na
história, como um produto seu. Não se trata, pois, de “(...) desvaliar o
patrimônio político e intelectual marxiano” (CHASIN, 1987, p. 16), mas
de avaliar o marxismo em sua historicidade.
Podemos, portanto, concluir que está superada a época em que
se colocava aos homens a questão do socialismo como perspectiva
histórica. Hoje não existe alternativa se não lutar para romper com os
entraves que obstaculizam o desenvolvimento da sociedade: os
interesses corporativos, as formas atrasadas do capital que necessitam
da proteção do Estado, aqueles que se opõem à modernização da
economia e assim por diante. Temos que lutar contra as forças presas
ao passado sem saber como será o futuro. Mais do que nunca, nos dias
de hoje, é bastante atual um antigo ditado espanhol: Caminhante, não
existe caminho; o caminho se faz ao andar.

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POLÍTICA E HISTÓRIA EM CAIO PRADO JÚNIOR

REFERÊNCIAS

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