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ESTUDO DA TRADIÇÃO PARA O

GRUPO DE ARTE MARCIAL

Título: Autoridade Espiritual e Poder temporal.

Autor: René Guénon.

PREFÁCIO

Em nossos trabalhos, não temos o costume de nos referir à atualidade imediata, pois
o que temos em vista constantemente são os princípios de uma atualidade permanente,
porque está fora do tempo; e mesmo se saímos do domínio da metafísica pura para encarar
certas aplicações, o fazemos sempre de tal maneira que estas aplicações conservam um
alcance totalmente geral.
É o que faremos novamente aqui. No entanto, devemos convir que as considerações
que vamos expor neste estudo oferecem, ainda por cima, um certo interesse mais particular
ao momento presente, devido às discussões em relevo sobre as questões das ligações entre
a religião e a política nesses últimos tempos, questões estas que não passam de uma forma
particular tomada em certa condição determinada pelas mesmas questões das ligações do
espírito e do temporal.
Isto é verdade, mas seria um erro acreditar que estas considerações nos foram mais
ou menos inspiradas pelos incidentes aos quais fazemos alusão, ou que entendemos ligá-los
diretamente, pois aí seria conceder uma importância muito exagerada às coisas que possuem
características puramente episódicas e que não caberiam influenciar concepções cuja
natureza e origem na realidade são de outra ordem.
Como nós esforçamos sempre de antemão de dissipar todos os mal-entendidos que
poderemos prever, insistimos em afastar, antes de tudo, tão nitidamente e tão explicitamente
quanto possível, estas falsas interpretações que alguns poderiam dar ao nosso pensamento,
seja por paixão política ou religiosa, ou em virtude de alguns ideais pré-concebidos, por
simples compreensão do ponto de vista onde nos situamos.
Tudo o que diremos aqui, teríamos dito também, e exatamente da mesma maneira,
se os fatos que hoje em dia chamam a atenção sobre a questão do espiritual e do temporal
não tivessem acontecido. As circunstâncias presentes apenas nos mostram ainda mais
claramente o que era necessário e oportuno dizer. Elas foram a ocasião que nos levou a
expor agora certas verdades com preferência sobre muitas outras que nós também propomos
formular se não nos faltar tempo, mas que não parecem ser susceptíveis de uma aplicação
tão imediata.
Nas discussões das quais se tratam, o que nos chocou sobremaneira é que, nem de
um lado nem de outro, não parecem se preocupar primeiro em situar a questão em seu
1
verdadeiro terreno, em distinguir entre o essencial e o acidental, entre os princípios
necessários e as circunstâncias contingentes. Para falar verdade isso não nos surpreende,
pois apenas vimos um novo exemplo, após muitos outros, da confusão que hoje em dia reina
em todos os domínios em que vemos como eminente característica do mundo moderno, pelas
razões que explicamos em obras anteriores. 1
Portanto, não podemos deixar de lamentar que esta confusão chega a afetar os
representantes de uma autoridade espiritual autêntica, que parecem perder de vista o que
deveria fazer sua verdadeira força, isto é, a transcendência da doutrina da qual estão
qualificados para falar.
Antes de tudo, teria sido necessário distinguir a questão de princípio e a questão de
oportunidade: sobre a primeira não há nada a discutir, pois trata-se de coisas que pertencem
a um domínio que não pode ser submetido aos procedimentos essencialmente “profanos” da
discussão; e, quanto à segunda, que aliás é apenas de ordem política e poderíamos dizer
diplomática, ela não deve contar mesmo rigorosamente aos olhos da questão de princípio; por
conseqüência, teria sido preferível nem dar ao adversário a possibilidade de levantá-la, nem
sobre simples aparência. Quanto a nós, acrescentaremos que ela não nos interessa de
nenhuma maneira.
De nossa parte, pretendemos situar exclusivamente no domínio dos princípios; é o
que nos permite ficar inteiramente fora de toda discussão, de toda polêmica, de toda briga de
escola ou partido, todas as coisas nas quais não queremos estar metidos nem de perto nem
de longe, sob nenhum título nem grau.
Estando absolutamente independente de tudo o que não é a verdade pura e
interessado e decidido a continuar assim, nós simplesmente propomos dizer as coisas como
elas são, sem a mínima preocupação de agradar ou não a quem quer que seja; não temos
nada a atingir nem a uns nem a outros, não contamos nem com a gratidão daqueles que
poderiam tirar vantagem das idéias que formulamos e de resto isto nos importa muito pouco.
Advertimos, mais uma vez, que não estamos dispostos a nos deixar prender em
nenhum quadro ordinário e possivelmente eles tentarão nos aplicar uma etiqueta qualquer,
porém entre aquelas que estão no mundo ocidental não existe nenhuma que nos convenha.
Certas insinuações, vindas simultaneamente dos lados mais opostos, nos mostraram
novamente que era bom renovar esta declaração, a fim de que as pessoas de boa fé saibam
em que se fixar e não fiquem induzidas a nos atribuir as intenções incompatíveis com nossa
verdadeira atitude e com ponto de vista puramente doutrinal que é o nosso.
Podemos encarar os fatos atuais de maneira completamente imparcial como se
tratassem de eventos pertencentes a um passado antigo, principalmente aqueles que fazem
parte da questão aqui tratada, das quais as teremos como exemplos históricos para
esclarecer nosso relatório, em virtude da própria natureza deste ponto de vista liberado de
todas as contingências.
Deve ficar bem claro que damos a este relatório, como dizíamos desde o início, um
alcance totalmente geral, ultrapassando todas as formas particulares que podem, segundo os
tempos e os lugares, revestir o poder temporal e mesmo a autoridade espiritual; e é preciso
especificar sem demora que esta última para nós não tem necessariamente a forma religiosa,
contrariamente ao que se imagina de maneira comum no Ocidente.

2
Deixamos a cada um o cuidado de fazer estas considerações a aplicação que se
julgar conveniente a respeito de casos particulares que nos abstemos de encarar diretamente;
para que esta aplicação possa ser legítima e válida, basta que ela seja feita em um espírito
conforme os princípios do qual tudo depende, espírito que chamamos de espírito tradicional
no verdadeiro sentido da palavra, e do qual infelizmente todas as tendências especificamente
modernas são a antítese ou a negação.
É precisamente um dos aspectos do desvio moderno que nós vamos novamente
encarar e, a respeito disso, o presente estudo completará o que já tivemos a ocasião de
explicar nas obras das quais nos referimos há pouco.
Ver-se-á, aliás, sobre a questão das relações entre o espiritual e o temporal, que os
erros que se desenvolveram no curso dos últimos séculos estão longe de serem novos; mas,
ao menos, suas manifestações interiores tiveram apenas efeitos bem limitados. Hoje, porém,
estes mesmo erros se tornaram da mesma maneira inerentes à mentalidade comum, fazendo
parte integrante de um estado de espírito que se generaliza cada vez mais.
É isto que tem particularidade de grave e inquietante e, a menos que uma correção
se opere a curto prazo, é de se prever que o mundo moderno será levado a alguma catástrofe
em direção da qual ele parece estar se dirigindo com uma rapidez que aumenta sem cessar.
Tendo exposto em outro lugar as considerações que podem justificar esta afirmação 2,
não insistiremos mais sobre isto e acrescentaremos o seguinte: se nas circunstâncias
presentes, se ainda existe alguma esperança de salvação para o mundo ocidental, parece
que esta esperança, ao menos em parte, deve residir na manutenção da única autoridade
tradicional que ainda subsiste; mas para isto é necessário que esta autoridade tenha plena
consciência de si mesma, a fim de que ela seja capaz de fornecer uma base efetiva para
esforços que, de outro modo, correm o risco de permanecerem dispersos e fora de
coordenação.
Ao menos, este é um dos meios mais imediatos que possam ser tomados em
consideração para uma restauração do espírito tradicional; sem dúvida existem outros se por
acaso este venha a faltar. Mas como esta restauração, único remédio para a desordem atual,
é a meta essencial que temos em vista sem cessar desde que, saído da metafísica,
chegamos a encarar as contingências, é fácil compreender que não negligenciamos nenhuma
das possibilidades que se oferecem para chegar a ela, mesmo se essas possibilidades no
momento parecem ter poucas chances de realização.
É nisto e nada mais que consistem nossas verdadeiras intenções, qualquer uma fora
dela inexiste; e se alguns chegassem a pretender que as reflexões nos foram inspiradas por
influências externas, de antemão nós os desmentimos formalmente.
Sendo isto dito, porque sabemos por experiência que tais preocupações não são
inúteis, pensamos que podemos nos dispensar de qualquer alusão direta com a atualidade, a
fim de tornar ainda mais sensível e mais incontestável a característica estritamente doutrinal
que queremos conservar em todos os nossos trabalhos.
As paixões políticas ou religiosas sem dúvida não encontram nenhum lucro aqui, mas
isto é uma coisa da qual só podemos nos felicitar, pois para nós não se trata de fornecer um
novo alimento para discussões que nos parecem muito vãs e que chegam a ser bem
miseráveis. Ao contrário, trata-se de relembrar os princípios cujo esquecimento no fundo é a
única verdadeira causa de todas as discussões.

3
Repetimos que é a nossa própria independência que nos permite fazer este ajuste de
contas com toda imparcialidade sem concessões nem compromisso de outra espécie. Ao
mesmo tempo, ela nos proíbe qualquer outro papel fora do que acabamos de definir, pois ela
só pode ser mantida na condição de ficar sempre no domínio puramente intelectual, domínio
que, aliás, é o mesmo dos princípios essenciais e imutáveis. Consequentemente, o resto
deriva mais ou menos diretamente e pelo qual deve forçosamente começar a correção da qual
falávamos agora pouco. Fora de uma ligação aos princípios, só podemos obter resultados
externos, instáveis e ilusórios; mas isto para falar a verdade não é outra coisa do que uma das
formas da própria afirmação da supremacia do espiritual sobre o temporal, que vai ser
precisamente o objeto deste estudo.
1
Oriente e Ocidente e A crise do mundo moderno.
2
A crise do mundo moderno.

4
CAPÍTULO PRIMEIRO

AUTORIDADE E HIERARQUIA

Em épocas diversas da história, e mesmo voltando bem antes do que ficou


conveniente chamar de tempos históricos, na medida em que nos é possível fazê-lo com a
ajuda de testemunhos que concordaram em nos fornecer as tradições orais e escritas de
todos os povos1, encontramos os índices de uma freqüente oposição entre os representantes
de dois poderes, um espiritual e o outro temporal, quaisquer que sejam as formas especiais
que um e outro destes dois poderes tenham revestido para se adaptar à diversidade de
circunstâncias, segundo as épocas e países.
No entanto, não quer dizer que esta oposição e as lutas que ela gera sejam “velhas
como o mundo”, segundo uma expressão da qual se abusa com muita freqüência; isto seria
uma manifestação exagerada, pois, para que elas viessem a se produzir, foi preciso, segundo
o ensino de todas as tradições, que a humanidade tivesse já chegado a uma fase muito
distanciada da pura espiritualidade primordial.
Aliás, em sua origem, os dois poderes dos quais se trata não devem ter existido no
estado das funções separadas, respectivamente exercidas por individualidades diferentes; ao
contrário, eles deviam estar contidos um no outro, princípio comum do qual todos os dois
procedem, e dos quais eles apenas representam dois aspectos indivisíveis, indissoluvelmente
ligados na unidade de uma síntese ao mesmo tempo anterior e é superior à sua distinção.
É o que a doutrina hindu expressa em especial quando ela ensina que, no princípio,
só havia uma única casta; o nome Hamsa, que é dado a esta casta primitiva única, indica um
grau espiritual muito elevado, hoje totalmente excepcional, mas que era comum a todos os
homens e que eles possuíam de alguma maneira espontaneamente 2 e este grau está acima
das quatro castas que se constituíram posteriormente, e entre as quais se repartiram em
diferentes funções sociais.
O princípio da instituição das castas, tão completamente incompreendido pelos
Ocidentais, não é outra coisa além da diferença de natureza que existe entre os indivíduos
humanos e que estabelece entre eles uma hierarquia da qual o desconhecimento só pode
trazer a desordem e a confusão.
É precisamente este desconhecimento que está implicado na teoria “igualdade” tão
querida no mundo moderno, teoria cuja função serve para os todos os bem estabelecidos, e
que é até desmentida pela simples observação corrente, já que, na realidade, a igualdade não
existe em nenhum lugar; mas aqui não é o lugar para nos estender neste ponto que já
tratamos em outro lugar 3.
Há palavras para definir a casta e na Índia não significam outra coisa além de
“natureza individual”. É preciso entender por aí o conjunto das características que se
acrescentam à natureza humana “específica” para diferenciar os indivíduos entre si. E convém
acrescentar que a hereditariedade só entra com uma parte na determinação desta
característica, sem a qual todos indivíduos de uma mesma família seriam semelhantes.

5
Porém não é estritamente hereditária, se bem que tenha podido tornar o mais frequentemente
em fato e na aplicação.
Além disso, já que não pode haver dois indivíduos idênticos ou iguais sob todos os
aspectos, forçosamente existem diferenças entre aqueles que pertencem a uma mesma
casta. Porém, da mesma maneira que existem mais características comuns entre os seres de
uma mesma espécie do que entre seres de espécie diferente, também há mais vantagens no
interior da espécie entre os indivíduos de uma mesma casta do que aqueles de casas
diferentes. Poderíamos então dizer que a distinção das castas constitui, na espécie humana,
uma verdadeira classificação natural à qual deve corresponder a repartição das funções
sociais.
Com efeito, devido a sua natureza própria, cada homem está apto a preencher
algumas funções definidas com a exclusão de outras e, em uma sociedade estabelecida
regularmente em bases tradicionais, estas aptidões devem ser determinadas seguindo regras
precisas, a fim de que, pela correspondência dos diversos gêneros de funções com a grande
divisão da classificação das “naturezas individuais” e, salvo exceções devidas a erros de
aplicação sempre possíveis, mas reduzidos de alguma maneira ao mínimo, cada um se
encontra no lugar que deve ocupar normalmente e que assim a ordem social traduz
exatamente as relações hierárquicas que resultam da natureza própria dos seres.
Assim é, resumindo em poucas palavras a razão fundamental da existência das
castas. E é preciso conhecer delas ao menos estas noções essenciais para compreender a
alusões que seremos obrigados a fazer a seguir, seja em sua constituição tal como ela existe
na Índia, seja nas instituições análogas que se encontram em outro lugar, pois é evidente que
os mesmo princípios, assim como modalidades de aplicações diversas, presidiram a
organização de todas as civilizações possuidoras de uma característica verdadeiramente
tradicional.
A distinção das castas, com a diferenciação das funções sociais às quais elas
correspondem, em resumo, resulta de uma ruptura da unidade primitiva. É então que
aparecem também, como separados um do outro, o poder espiritual e o poder temporal, que
constituem precisamente, em seu exercício distinto, as funções respectivas das duas
primeiras castas, a dos Brâhamnes e a dos Kshatryias.
Aliás, entre dois poderes, bem como entre todas as funções sociais atribuídas
doravante a grupo diferente de indivíduos, deveria existir, em sua origem, uma perfeita
harmonia pela qual a unidade primeira era mantida tanto quanto o permitiam as condições de
existência da humanidade em sua nova fase, pois, em resumo, a harmonia é apenas um
reflexo ou uma imagem da verdadeira unidade.
É apenas em outro estágio que a distinção se transforma em rivalidade, em que a
harmonia é destruída e dá lugar à luta dos dois poderes, enquanto que as funções inferiores,
por sua vez, pretendem a supremacia, para finalmente desembocar na mais completa
confusão na negação e na inversão de toda hierarquia.
A concepção que acabamos de esboçar de maneira geral está em conformidade com
a doutrina tradicional das quatro idades sucessivas nas quais se divide a história da
humanidade terrestre, doutrina que não se encontra somente na Índia, mas que era
igualmente conhecida pela antiguidade e especialmente os Gregos e os Latinos.

6
Estas quatro idades são as diferentes fases que atravessa a humanidade se
afastando do princípio, logo da unidade e da espiritualidade primordial. Elas são como as
etapas de uma espécie de materialização progressiva necessariamente inerente ao
desenvolvimento de todo o ciclo de manifestação, assim como nós o explicamos em outro
lugar4
É somente na última destas quatro idades, que a tradição Hindu chama de Kali-Yuga
ou idade sombria e que corresponde a nossa época atual, que a subversão da ordem natural
pode se produzir e que, primeiro, o poder temporal pode levá-la sobre o espiritual. Mas as
primeiras manifestações da revolta dos Kshatriyas contra a autoridade dos Brahamnes
podem, no entanto, vir muito anteriormente ao início desta idade5, início que é ele mesmo
muito anterior a tudo da história ordinária ou “profana”.
Esta oposição de dois poderes, esta rivalidade de seus respectivos representantes,
era representada no país celta pela imagem da luta do javali e do urso, seguindo um
simbolismo de origem hiperbórea, que se prende a uma das mais antigas tradições da
humanidade, ou até a primeira de todas, a verdadeira tradição primordial. Este simbolismo
poderia dar lugar a amplos desenvolvimentos, que não caberiam aqui, mas talvez teremos a
ocasião de expor algum dia6.
De qualquer modo, tudo que existe participa necessariamente dos princípios
universais, e sem a participação nesses princípios, que são as essências eternas e imutáveis
contidas na permanente atualidade do intelecto divino, consequentemente elas são
contingentes em si mesmas, traduzem ou representam os princípios à maneira delas e
segundo sua ordem de existência, pois, de outro modo, elas seriam o puro nada.
Assim, de uma ordem para outra, todas as coisas se encaixam e se correspondem
para concorrer com a harmonia universal e total, pois a harmonia, como indicávamos mais
acima, é o reflexo da unidade principal da multiplicidade do mundo manifestado; e é esta
correspondência que é o verdadeiro fundamento do simbolismo.
É porque as leis de um domínio inferior podem sempre ser tomadas para simbolizar
as realidades de uma ordem superior, onde elas têm sua razão profunda, que é ao mesmo
tempo ser princípio e seu fim; e podemos assinalar de passagem nesta ocasião o erro das
modernas interpretações “naturalistas” das antigas doutrinas tradicionais, interpretações que
derrubam pura e simplesmente a hierarquia das relações entre as diferentes ordens de
realidade.
Por exemplo, para considerar apenas uma das teorias mais espalhadas de nossos
dias, os símbolos ou os mitos nunca tiveram como papel representar o movimento dos astros,
mas o que é verdade é que se encontra com freqüência imagens inspiradas deste e
destinadas a expressar analogamente outra coisa, porque as leis deste movimento traduzem
fisicamente os princípios metafísicos dos quais elas dependem; e é nisto que repousava a
verdadeira astrologia dos antigos.
O inferior pode simbolizar o superior, mas o inverso é impossível. Aliás, se o
simbolismo fosse mais distanciado da ordem sensível do que ele representa ao invés de ser
mais aproximado, como poderia ele preencher a função a qual é destinado, que é de tomar a
verdade mais acessível ao homem fornecendo um “suporte” à sua concepção?
Por outro lado, é bem evidente que o emprego de um simbolismo astronômico, para
retomar o mesmo exemplo, não impede de maneira alguma os fenômenos astronômicos de

7
existir e de ter, em sua ordem própria, toda a realidade da qual eles são susceptíveis; é
exatamente a mesma coisa para os fatos históricos, pois estes, como todos os outros
expressam, segundo seu modo, as verdades superiores e se conformam a esta lei de
correspondência que acabamos de indicar.
Estes fatos, também, existem realmente como tais, mas, ao mesmo tempo, eles são
igualmente símbolos; e do nosso ponto de vista, eles são muito mais dignos de interesse
como símbolos do que como fatos; não podem ser de outra forma, desde que
compreendamos que tudo se prende aos princípios e é precisamente aí, como explicamos em
outro lugar7, o que distingue essencialmente a “ciência sagrada” da “ciência Profana”.
Se insistirmos um pouco é para que não produza nenhuma confusão sobre isto: é
preciso saber colocar cada coisa no lugar que lhe convém normalmente; é a condição de ser
encarada como convém. A história, como todo o resto, tem seu lugar no conhecimento
integral, mas ela não tem o valor sob este aspecto, ainda mais que ele permite achar, nas
próprias contingências que são seu objeto imediato, um ponto de apoio para se elevar acima
destas contingências.
Quanto ao ponto e vista da história profana, o qual se prende exclusivamente aos
fatos e não os ultrapassa, a nossos olhos, ele é sem interesse, assim como tudo o que é no
domínio da simples erudição; então é o que nos permite de não termos nenhuma
consideração com certos prejulgados “críticos” particularmente caros para nossa época.
Por outro lado, parece que o emprego exclusivo de certos métodos tenha sido a
razão de os modernos estarem impedidos de ver claramente questões nas quais não era para
se mexer, pela simples razão que teriam podido levá-los a conclusões contrárias às
tendências “materialistas” que o ensino “oficial” tinha por missão de fazer prevalecer; vai de si
que, de nossa parte, não nos sentimos na obrigação de ter a mesma reserva.
Dito isto, pensamos, então, poder abordar diretamente o assunto de nosso estudo,
sem nos ater a estas observações preliminares, que tem como meta definir mais nitidamente
possível o espírito no qual o escrevemos, e que convém igualmente ler se quiserem realmente
compreender o sentido.

1
No princípio, estas tradições sempre foram orais; algumas vezes, como os celtas, elas nunca foram escritas.
Sua concordância, ao mesmo tempo, prova a comunidade de origem, logo, a conexão com uma tradição
primordial e rigorosa fidelidade da transmissão oral, cuja observação é, neste caso, uma das principais
funções da autoridade espiritual.
2
A mesma indicação também se encontra nitidamente formulada na tradição extremo-oriental, como mostra
em especial esta passagem de Lao-Tsé: “Os Antigos mestres possuíam a Lógica, a Clarividência e a Intuição;
esta força da alma ficava inconsciente. Esta inconsciência de sua força interior transmitia para sua aparência
a majestade. Em nossos dias, quem poderia, com sua majestosa clareza, clarear as trevas anteriores? Em
nossos dias quem poderia, com sua vida majestosa, fazer reviver a morte inferior? Eles traziam a Via (Tao)
em sua alma e foram indivíduos autônomos: como tais, eles viam as perfeições de suas fraquezas” (Tao-Te-
King, cap. XV, tradução de Fernando Ular; cf. T Chouang-Tseu, cap. VI, que é o comentário desta
passagem). A inconsciência da qual aqui é falada, relaciona-se com a espontaneidade deste estado, que não
era então o resultado de nenhum esforço. E a expressão “Indivíduos Autônomos” deve ser compreendida no
sentido do termo sânscrito swêchchhâchârî, que quer dizer “aquele que segue sua própria vontade”, ou,
segundo uma expressão equivalente que se encontra no esoterismo islâmico “aquele que é para sim mesmo
sua própria lei.

8
3
A Crise do Mundo Moderno, cap. IV. Em outro lugar sobre o princípio das instituições das castas, ver
Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindu III, parte III, cap. VI.
4
A Crise do Mundo Moderno, cap. I.
5
Encontramos uma indicação sobre isto na história de Parashu-Ráma, que, conforme dizem, destrui os
Kshatriyas revoltados, numa época onde os ancestrais dos Hindus ainda habitavam numa região setentrional.
6
É preciso dizer, portanto, que os dois símbolos do javali e do urso não aparecem sempre forçosamente em
luta ou oposição, mas podem também representar, às vezes, os dois poderes, espiritual e temporal, ou as duas
castas dos Druidas e dos Cavaleiros, em suas relações normais e harmônicas, como se vê em especial na
lenda de Merlin e Arthur que, com efeito, também são do javali e do urso, assim como o explicaremos em
outro estudo se as circunstâncias permitirem.
7
A crise do Mundo Moderno, cap IV.

9
CAPÍTULO SEGUNDO

FUNÇÕES DO SACERDÓCIO E DA NATUREZA

A oposição dos dois poderes, o espiritual e temporal, sob uma ou outra forma, é
encontrada em quase todos os povos, o que não é de surpreender, já que ela corresponde a
uma lei da história humana, prendendo-se a todo o conjunto destas “leis cíclicas”, as quais,
em quase todas as nossas obras, nos referimos com frequência.
No momento, reteremos aqui, principalmente, dois exemplos históricos, um do
Oriente e outro do Ocidente: na Índia o antagonismo do qual se trata encontra-se sob a forma
da rivalidade dos Bhrámanes e dos Kshatriyas, a respeito dos quais traçaremos dois
episódios. Na Europa da idade média, ela aparece sobre tudo como o que chamamos de
discussão do sacerdócio e do império, se bem que ela também teve outros aspectos mais
particulares, mas não menos característicos como se verá a seguir 1.
Seria fácil demais constatar que a mesma luta continua ainda em nossos dias, se
bem que, pelo fato da desordem moderna e da “mistura das castas”, ela se complica com
elementos heterogêneos que podem dissimulá-la, às vezes, aos olhos de um observador
superficial.
Não que tenhamos contestado, geralmente ao menos, e fora de certos casos, que
este dois poderes, que podemos chamar de poder sacerdotal e poder real (pois são suas
verdadeiras denominações tradicionais), tenham um e outro sua razão de ser em seu domínio
próprio.
Em suma, o debate habitual é sobre a questão das relações hierárquicas que deve
existir entre eles. É uma luta de supremacia, e esta luta ocorre invariavelmente da mesma
maneira: vemos os guerreiros detentores do poder temporal, após terem sido primeiramente
submetidos à autoridade espiritual, se revoltarem contra ela, declararem independentes de
todo poder superior ou mesmo tentam subordinar esta autoridade, a qual, a princípio, eles
tinham reconhecido seu poder, e a fazer dela um instrumento a serviço de sua própria
dominação.

10
Isto já é suficiente para mostrar que deve haver, em uma tal revolta, uma inversão
das relações normais, mas nós a vemos ainda mais claramente considerando essas relações
como sendo e não simplesmente a de duas funções sociais mais ou menos nitidamente
definidas, as quais cada uma pode ter a tendência muito natural de invadir a outra. Mas
aquelas nos dois domínios nos quais se exercem respectivamente estas funções são, com
efeito, relações destes dois domínios que devem logicamente determinar as dos poderes
correspondentes.
No entanto, antes de abordar diretamente estas considerações, devemos ainda
formular algumas observações que facilitarão sua compreensão, colocando com precisão o
sentido de alguns termos dos quais nos serviremos constantemente. E isto é muito
necessário, posto que estes termos ganharam um significado muito vago no uso corrente e,
às vezes, muito afastado de sua primeira acepção.
Primeiramente, se falamos de dois poderes, e se podemos fazê-lo nos casos onde há
lugar, por razões diversas, inclusive para guardar entre eles uma espécie de simetria externa,
preferimos, portanto, para marcar a distinção, empregar, para a ordem espiritual, a palavra
“autoridade” em vez de “poder”, que é então reservada para a ordem temporal, a qual ela
convém mais propriamente quando queremos compreendê-la em seu sentido estrito.
Com efeito, esta palavra “poder” invoca quase que inevitavelmente a idéia de poder
ou de força e, sobretudo, de uma força material2, de um poder que se manifesta visivelmente
de fora e se afirma pelo emprego de meios externos; e tal é, por definição mesma, o poder
temporal3.
Ao contrário, a autoridade espiritual, interior por essência, só se afirma por si mesma,
independentemente de todo apoio sensível e se exerce de alguma maneira invisível. Se
pudermos falar aqui ainda de poder ou de força, é apenas por transposição analógica. E ao
menos no caso de uma autoridade espiritual em estados puros, se pudermos dizer assim, é
preciso entender que se trata então de um poder todo intelectual, cujo nome é “sabedoria”, e
da única força de verdade4.
O que também deve ser explicado, e até um pouco mais longamente, são as
expressões que empregamos há pouco, de poder espiritual e de poder real. O que se deve
entender aqui exatamente por sacerdócio e por realeza?
11
Começando por esta última, diremos que a função real compreende na ordem social
tudo o que constitui o “governo” propriamente dito, e isto quando este governo não tivesse a
forma monárquica. Esta função, com efeito, é a que pertence como própria de toda a casta
dos Kshatriyas e o rei é apenas o primeiro entre estes.
A função da qual se trata de alguma maneira é dupla: administrativa e judiciária de
um lado, militar do outro, pois ela deve assegurar a manutenção da ordem ao mesmo tempo
dentro, como função reguladora e equilibrante, e fora como função protetora da organização
social. Estes dois elementos constitutivos do poder real, em diversas tradições, são
simbolizados respectivamente pela balança e a espada.
Por aí vemos que poder real é realmente sinônimo de poder temporal, mesmo
tomando este último em toda extensão da qual ele é suscetível. Contudo, a idéia muito restrita
que o Ocidente Moderno tem da realeza pode impedir que esta equivalência apareça
imediatamente, e é porque era necessária formular esta definição, que nunca deverá ser
perdida de vista a seguir.
Quanto ao sacerdócio, sua função essencial é a conservação e a transmissão da
doutrina tradicional. Em toda organização social regular, encontra seus princípios
fundamentais. Esta função é, evidentemente, independente de todas as formas especiais que
pode revestir a doutrina para se adaptar, em sua expressão, às condições particulares de tal
povo ou época, e que não afeta em nada o fundo desta doutrina, a qual se mantém em todo
lugar e sempre idêntica e imutável, desde que se trate de tradições autenticamente ortodoxas.
É fácil compreender que a função do sacerdócio não é a mesma que as concepções
ocidentais, principalmente hoje em dia, atribuídas ao “clero” ou aos “padres”. Realmente, o
que possui a característica “sagrada” é a doutrina tradicional e o que se relaciona com ela
diretamente, e esta doutrina não toma necessariamente a forma religiosa5. “Sagrado” e
“religioso” não se equivalem de maneira alguma e o primeiro destes dois termos é muito mais
extenso que o segundo. Se a religião faz parte do domínio do “sagrado”, este compreende
elementos e modalidades que não tem absolutamente nada de religioso; e o sacerdócio,
como seu nome o indica, relaciona-se, sem nenhuma restrição, a tudo o que pode realmente
ser dito “sagrado”.

12
A verdadeira função do sacerdócio é, então, antes de tudo, uma função de
conhecimento e de ensino6, e já que, como dizíamos acima, seu atributo próprio é a
sabedoria, seguramente certas outras funções mais externas como o cumprimento do rito lhe
pertence igualmente, pois elas requerem o conhecimento da doutrina, ao menos em princípio,
e participam da característica “sagrada” que é inerente a esta. Mas estas são apenas funções
secundárias, contingentes e de alguma maneira acidentais 7.
Se, no mundo moderno ocidental, o acessório parece ter se tornado a função
principal, se não até única, é que a real natureza do sacerdócio ficou quase que
completamente esquecida. É este um dos efeitos do desvio moderno que nega a
intelectualidade 8, e que não pode fazer desaparecer todo o ensino doutrinal. Ao menos ele o
“minimizou” e rejeitou para o último plano.
A palavra “clero” prova que não foi sempre assim, pois, em sua origem, clero
significava “sábio” 9, e ela se opõe à palavra “leigo”, que designa o “homem do povo”, isto é do
“vulgar”, assimilado ao ignorante ou ao “profano”, a quem só podemos pedir que creia o que
ele não é capaz de compreender, porque este é o único modo de fazê-lo participar da tradição
na medida de suas possibilidades 10.
É até curioso de se notar como as pessoas, em nossa época, se vangloriam de se
dizerem “leigas”, tanto quanto aqueles que se comprazem em se intitular “agnósticos” (aliás,
com frequência são as mesmas) e, agindo dessa forma, contam vantagens de sua própria
ignorância. E, para que elas não se apercebam que tal é o sentido dos títulos com os quais
elas se enfeitam, é preciso que esta ignorância seja, com efeito, muito grande e realmente
irremediável.
Se, em sua essência, o sacerdócio é o portador do conhecimento tradicional, isto não
quer dizer que ele tenha o monopólio, já que sua missão é conservá-lo integralmente e,
também, comunicá-lo a todos aqueles que estão aptos para recebê-los, e distribuí-los, de
alguma maneira, hierarquicamente, segundo a capacidade intelectual de cada um.
Todo conhecimento desta ordem tem, então, sua fonte no ensino sacerdotal que é o
órgão de sua transmissão regular. E o que aparece como particularmente reservado ao
sacerdócio, devido a sua característica de pura intelectualidade, é a parte superior da
doutrina, isto é, o conhecimento dos próprios princípios, enquanto que o desenvolvimento de
13
algumas aplicações convém melhor às aptidões de outros homens, os quais suas funções
põem em contato direto e constante com o mundo manifestado, ou seja, com o domínio com o
qual estas aplicações se relacionam.
É por isto que, na Índia, por exemplo, vemos que certas ramificações secundárias da
doutrina foram especialmente estudadas pelos Kshatriyas, enquanto que os Brâhmanes dão
uma importância muito relativa a elas, estando suas atenções fixadas, sem cessar, na ordem
dos princípios transcendentes e imutáveis, a qual todo o resto são apenas consequências
acidentais ou, se vemos as coisas em sentido inverso, sobre a meta suprema em relação a
qual todo o resto não passa de meios contingentes e subordinados. 11
Existem até livros tradicionais que são destinados ao uso dos Kshatriyas, porque eles
apresentam aspectos doutrinais adaptados a sua própria natureza 12; existem “ciências
tradicionais” que convém principalmente aos Kshatriyas, enquanto que a metafísica pura é
atributo dos Brâhmanes. 13
Não há nada de mais legítimo nisto, pois estas aplicações ou adaptações também
fazem parte do conhecimento sagrado encarado em sua íntegra, se bem que a casta
sacerdotal não se interesse diretamente a ele para si mesma. No entanto, eles são sua obra,
já que ela é a única a controlar sua perfeita conformidade com os princípios.
Mas pode acontecer com os Kshatriyas, quando se revoltam contra a autoridade
espiritual, de eles desconhecerem a característica relativa e subordinada de seus
conhecimentos, enquanto, ao mesmo tempo, eles o consideram como seu próprio bem e
negam tê-las recebido dos Brâhmanes que, finalmente, eles chegam até a querer aquelas que
são a posse exclusiva destes últimos.
O que resulta disto, nas concepções dos Kshatriyas revoltados, é a inversão das
relações normais entre os princípios e suas aplicações, ou até mesmo, nos casos mais
extremos, a negação pura e simples de todo princípio transcendente. É, então, em todos os
casos, a substituição da “física” pela “metafísica”, compreendendo estas palavras em seus
sentidos rigorosamente etimológicos, ou, em outros termos, o que podemos chamar de
“naturalismo”, assim como o veremos novamente a seguir. 14
No conhecimento sagrado ou tradicional desta distinção de duas ordens, de maneira
geral, podemos designar como o conhecimento dos princípios e o das aplicações ou, ainda,
14
segundo o que acabamos de dizer, como a ordem “metafísica” e a ordem “física”, nos
mistérios antigos, no Ocidente assim como no oriente, era derivado da distinção do que
chamávamos de “grandes mistérios” e “pequenos mistérios”, este relacionando-se
essencialmente com o conhecimento da natureza e o segundo com o conhecimento daquilo
que está além da natureza 15.
Esta mesma distinção correspondia precisamente à da “tradição sacerdotal” e à da
“iniciação real”. Isto quer dizer que os conhecimentos que eram ensinados nestas duas
espécies de mistérios eram aqueles que eram vistos como necessários ao exercício das
respectivas funções dos Brâhmanes e dos Kshatriyas, ou do que equivalia a estas duas
castas nas instituições de diversos povos. 16Mas é o sacerdócio que, em virtude de sua
função de ensino, conferia igualmente as duas iniciações e que assegurava, assim, a
legitimidade efetiva, não somente de seus próprios membros, mas também daquele da casta
a qual pertencia o poder temporal e, como veremos, é daí que procede o “direito divino” dos
reis 17.
Se é assim, é que a posse dos “grandes mistérios” implica a fortiori e como “por
acréscimo na dos “pequenos mistérios”. Como toda conseqüência e toda aplicação está
contida no princípio do qual ela procede, a função superior comporta “eminentemente” as
possibilidades das funções inferiores 18; necessariamente é assim em toda hierarquia
autêntica, quer dizer fundada na própria natureza dos seres.
Há, ainda, um ponto que devemos assinalar aqui, ao menos sumariamente: ao lado
das expressões de “iniciação sacerdotal” e de “iniciação real”, paralelamente, encontramos
também “arte sacerdotal” e “arte real”, que designam colocar em ato os conhecimentos
ensinados nas iniciações correspondentes com todos os conjuntos das “técnicas” revelando
seus domínios respectivos 19.
Estas designações foram conservadas muito tempo nas antigas corporações e a
segunda, a da “arte real”, até teve um destino bem estranho, pois ela foi transmitida até a
maçonaria moderna, na qual, nem é preciso dizer, não subsiste mais, assim como muitos
termos e símbolos que só deixaram um vestígio não compreendido do passado.
Quanto à designação de “arte sacerdotal”, ela desapareceu inteiramente. No entanto,
evidentemente, ela convinha à arte dos construtores dos templos da antiguidade, mas deve
15
ter produzido, em seguida, uma confusão nos dois domínios devido a uma perda, ao menos
parcial, da tradição, consequência ela mesma das invasões do temporal sobre o espiritual. E é
assim que se perdeu até o nome da “arte sacerdotal”, sem dúvida lá pela época da
renascença, que, com efeito, marca sob todos os pontos de vista, a consumação da ruptura
do mundo ocidental com suas próprias doutrinas tradicionais. 20

1
Poderíamos, sem dificuldade, encontrar muitos outros exemplos, em especial no oriente: na China, as lutas
que se produziram em certas épocas entre os Taoístas e os Confucionistas, entre os quais as respectivas
doutrinas se relacionam aos domínios dos dois poderes, como explicaremos mais adiante; no Tibet, a
hostilidade testemunhada primeiramente pelos reis contra o Lamaismo, que acaba não somente triunfando,
mas absorvendo completamente o poder temporal na organização (teocrática) que ainda existe atualmente.
2
Poderíamos, também, colocar nesta noção a força de vontade, que não é “material” no sentido estrito da
palavra, mas que, para nós, ainda é da mesma ordem, posto que ela é essencialmente orientada pela ação.
3
O nome da casta dos Kshatriyas é derivado de kshatra, que significa “força”.
4
Em Hebreu, a distinção que indicamos aqui é marcada pelo emprego de raízes que se correspondem, mas
que diferem pela presença das letras Kaph e qoph, as quais, por sua interpretação hieroglífica, são
respectivamente os sinais da força espiritual e da força material, de onde, posse, dominação: tais são as raízes
de hak e haq, e qan, as primeiras formas designando as atribuições do poder sacerdotal e as segundas as do
poder real (ver O rei do Mundo, cap VI).
5
Veremos mais adiante porque a forma religiosa propriamente dita no ocidente é particular.
6
É, em razão desta função de ensino, que no Purusha-sukta, do Rig-Véda, os Bráhmanes são representados
como correspondendo a boca de Purusha, encarado como o “homem universal”, enquanto que os Kshatriyas
correspondem a seus braços, porque suas funções se relacionam essencialmente à ação.
7
Em alguns casos, o exercício das funções intelectuais de um lado e rituais de outro lado, no próprio
sacerdócio, originou duas divisões. Encontramos um exemplo bem nítido no Tibet.: A primeira das duas
grandes divisões compreende aquelas que preconizam a observação dos preceitos dos morais e das regras
como meio de salvação; a segunda engloba todos aqueles que preferem um método puramente intelectual
(chamado de “via direita”), libertando aquele que o segue de todas as leis, quaisquer que sejam. É preciso
que uma divisão perfeitamente estanque separe os aderentes destes dois sistemas. Bem raros são os religiosos
presos ao primeiro, os quais não reconhecem que a vida virtuosa e a disciplina das observâncias monásticas,
todas excelentes e, em muitos casos, indispensáveis, constituem-se, portanto, apenas numa simples
preparação para a via superior. Quanto aos partidários do segundo sistema, todos, sem exceção, acreditam
plenamente nos efeitos benéficos de uma estrita fidelidade às leis morais e aquelas que são especialmente
editadas para os membros do Shangha (comunidade budista). Muitos são unânimes ao declarar que, entre os
dois métodos, o primeiro é o mais recomendável para a maioria dos indivíduos (Alexandra David-Neel, O
Tibet Místico, na revista de Paris, 15 de fevereiro de 1928).
Quisemos reproduzir textualmente esta passagem, bem como algumas das expressões que nela são
empregadas apesar de atrair algumas restrições. Deste modo, não existem dois sistemas que forçosamente se
excluíram, mas o papel de meios contingentes que é o dos ritos e da observância de todas espécies e sua
subordinação em relação à via puramente intelectual são definidas nela muito nitidamente e de uma maneira
que, por outro lado, é exatamente aos conformes e ensinamentos da doutrina Hindu sobre o mesmo assunto.
8
Pensamos que é quase supérfluo lembrar que usamos sempre esta palavra no sentido onde ela se relaciona
com a inteligência pura e com o conhecimento supra-racional.

16
9
Não é que seja legítimo estender o significado da palavra “clero” como fez o Sr. Julien Benda em seu livro
A traição dos Cléricos, pois esta extensão implica no desconhecimento de uma distinção fundamental, a do
“conhecimento sagrado” e do “saber profano”. A espiritualidade e a intelectualidade, certamente, não têm o
mesmo sentido para o Sr. Benda como têm para nós e ele faz entrar no domínio que qualifica de espiritual
muitas coisas que, a nossos olhos, são de ordem puramente temporal e humana, o que não deve nos impedir
de reconhecer que, em seu livro, existem considerações muito interessantes e justas de muitas coisas.

10
A distinção feita no catolicismo entre “Igreja docente” e “igreja discente” deveria ser precisamente uma
distinção “entre aqueles que “sabem” e “aqueles que crêem”. A princípio ela é isto, mas, no estado atual das
coisas, será ela ainda em fato?
Nós nos limitamos em fazer a pergunta, pois não pertence a nós resolvê-la e nem os meios para isso. Com
efeito, se muitos indícios nos fazem temer que a resposta não deva ser negativa, não pretendemos, portanto,
ter um conhecimento completo da organização atual da Igreja Católica e só podemos expressar o desejo de
que exista, internamente nela, um centro onde se conserve integralmente, não somente a escrita, mas o
“espírito” da doutrina tradicional.

11
Já tivemos a ocasião, em outro lugar, de assinalar um caso no qual se aplica o que dizemos aqui: enquanto
que os Brâhmanes sempre se ligaram quase que exclusivamente, ao menos para seu uso pessoal, à realização
imediata da “libertação” final, os Kshatriyas preferiram desenvolver o estudo dos casos condicionados e
transitórios que correspondem aos diversos estágios das duas “vias do mundo manifestado”, chamadas deva-
yâna e pitri-yâna (O homem e seu devir segundo o Vedânta, cap XXI).

12
Tal é na Índia o caso dos Itihâsas e dos Purânas, enquanto que o estudo do Vêda diz respeito
propriamente aos Brâhmanes. Esta aí o princípio de todo conhecimento sagrado. Veremos, mais além, que a
distinção dos objetos de estudo que convém às duas castas correspondem, de uma maneira geral, àquela das
duas partes da tradição, que na doutrina Hindu são chamadas Shruti e Smriti.

13
Sempre falamos dos Brâhmanes e dos Kshatriyas vistos de seu conjunto. Se existem exceções individuais,
elas não atingem o próprio princípio das castas e elas provam apenas que a aplicação deste princípio só pode
ser aproximada, sobretudo, nas condições do Kali-Yuga.

14
Se bem que falamos, aqui, dos Bráhmanes e Kshatriyas, porque o emprego destas palavras facilita
grandemente a expressão das coisas das quais se trata. Deve-se compreender que tudo que dizemos aqui não
se aplica apenas na Índia. E a mesma observação será válida todas as vezes que aplicarmos aqui estes
mesmos termos sem nos referirmos expressamente à forma tradicional Hindu. Explicaremo-nos em outro
lugar mais completamente sobre isto.
15
De um ponto de vista um pouco diferente, mas não menos estreitamente ligado a ele, pode-se, também,
dizer que os “pequenos mistérios” dizem respeito apenas às possibilidades do estado humano enquanto que
“os grandes mistérios” dizem respeito aos estados supra-humanos. Pela realização destas possibilidades ou
de seus estados, eles conduzem respectivamente ao “Paraíso terrestre” e ao “Paraíso Celeste”, assim como
diz Dante em um texto do De Monarquia que citaremos mais além. E não se deve esquecer de que, como o
mesmo Dante indica bem claramente em sua Divina Comédia, e como teremos ainda a ocasião de dizê-lo
novamente na continuação, o “paraíso terrestre”, na realidade, deve ser considerado apenas como uma etapa
na via que leva ao “Paraíso Celeste”.
16
No antigo Egito, cuja constituição era nitidamente “teocrática”, parece que o rei foi considerado como
assimilado com a casta sacerdotal pelo fato de sua iniciação aos mistérios e que até tenha vezes feito parte do
membro desta casta. Ao menos é o que afirma Plutarque: “Os reis eram escolhidos entre os padres ou entre

17
os guerreiros, porque estas duas classes, uma devida a sua coragem, outra em virtude de sua sabedoria,
gozavam de uma estima e de uma consideração particulares.
17
É preciso acrescentar que, na Índia, a terceira casta, a dos Vaishyas, cujas funções próprias são de ordem
econômica, é, também, admitida uma iniciação, dando-lhe direito às qualificações, as quais são em comum
com as duas primeiras, a de árya (ou nobre), ou de dwija (ou “duas vezes nascido”). Os conhecimentos que
lhe convém especialmente representam, ao menos a princípio, apenas a uma porção restrita aos “pequenos
mistérios”, tais como acabamos de defini-los. Mas não temos que insistir neste ponto, já que o assunto deste
estudo comporta propriamente apenas a consideração das relações das duas primeiras castas.

18
Podemos, então, dizer que o poder espiritual pertence “formalmente” à casta sacerdotal, enquanto que o
poder temporal pertence “eminentemente” a esta mesma casta sacerdotal e “formalmente” à casta real. É
assim que, segundo Aristóteles, as “formas” superiores contêm “eminentemente” as “formas” inferiores.
19
Sobre isto é preciso notar que, no país dos romanos, Janus, que era o deus da iniciação aos mistérios, era,
ao mesmo tempo, o deus do Collegia fabrorum; esta aproximação é particularmente significativa no ponto
de vista da correspondência que indicamos aqui. Sobre a transposição pela qual toda arte, assim como toda
ciência, pode receber um valor propriamente iniciático, ver “O esoterismo de Dante”, pág 12.

20
Algumas fixam, com precisão, o meio do século XV como a data desta perda da antiga tradição, a qual
ocasionou, em 1459, a reorganização das confrarias de construtores em uma nova base, doravante
incompleta. Nota-se que é a partir desta época que as igrejas deixaram de ser orientadas regularmente. E este
fato do qual se trata tem uma importância muito mais considerável do que se poderia pensar à primeira vista
(cf O Rei do Mundo, pág 96 e 123).

18
CAPÍTULO TERCEIRO

CONHECIMENTO E AÇÃO

Dissemos, há pouco, que as relações dos dois poderes, o espiritual e o temporal


devem ser determinadas pelas relações de seus domínios respectivos. Trazida assim para o
seu princípio, a questão nos parece simples, pois, no fundo, ela é apenas a questão das
relações do conhecimento e da ação.
Poderíamos objetar, depois do que acabamos de expor, que os detentores do poder
temporal devem também possuir, normalmente, um certo conhecimento. Mas, além de eles
não o possuírem por si mesmos e de eles o receberem da autoridade espiritual, este
conhecimento só abrange as aplicações da doutrina e não os princípios dela. Então,
propriamente dito, é apenas um conhecimento sem participação.
O conhecimento por excelência, o único que merece realmente este nome na
plenitude de seu sentido, é o conhecimento dos princípios, independente de toda aplicação
contingente, e é este que pertence exclusivamente àqueles que possuem a autoridade
espiritual, pois nele não há nada que venha da ordem temporal, mesmo compreendido em
sua mais geral concepção.
Por outro lado, quando passamos para as aplicações, referimo-nos a esta ordem
temporal, porque o conhecimento não é mais encarado, então, unicamente nele mesmo e
para ele mesmo, mas na medida em que lhe dá para a ação sua lei. E é nesta medida que ele
é necessário para aqueles cuja função própria é essencialmente do domínio da ação.
É evidente que o poder temporal, sob suas diversas formas (militar, judiciária,
administrativa) é inteiramente engajado na ação. É, então, por suas próprias atribuições,
preso nos mesmos limites que elas, isto é, nos limites do mundo que podemos chamar
propriamente “humano”, compreendendo neste termo as possibilidades muito mais extensas
do que aquelas que encaramos mais habitualmente.

19
Ao contrário, a autoridade espiritual se fundamenta inteiramente sobre o
conhecimento, já que, como já vimos, sua função essencial é a conservação e o ensino da
doutrina e seu domínio é ilimitado como a própria verdade 1. O que lhe é reservado pela
própria natureza das coisas, o que ela não pode comunicar aos homens cujas funções são
de outra ordem, e isto porque suas possibilidades não comportam, é o conhecimento
transcendente e “supremo” 2, aquele que ultrapassa o domínio “humano” e até, em geral, o
mundo manifestado, aquele que não é mais “físico” mas “metafísico”, no sentido etimológico
da palavra.
Deve-se compreender que não se trata de uma vontade da casta sacerdotal guardar
para si mesma o conhecimento da verdade, mas de uma necessidade que resulta diretamente
das diferenças de natureza existentes entre os seres, diferenças estas que, como já
dissemos, são as razões de ser e o fundamento das distinções das castas.
Os homens que são feitos para a ação não são feitos para o puro conhecimento e,
em uma sociedade constituída em bases realmente tradicionais, cada um deve preencher a
função para a qual ele está realmente “qualificado”. De outra forma, tudo não passa de
confusão e desordem, nenhuma função é preenchida como deveria ser, e é precisamente o
que se produz na época atual.
Sabemos que, devido a esta própria confusão, as considerações que estamos
expondo aqui só podem parecer estranhas demais no mundo ocidental moderno, onde o que
chamamos de “espiritual” tem, frequentemente, apenas uma relação muito distante com o
ponto de vista estritamente doutrinal e com o conhecimento livre de todas as contingências.
Sobre este assunto podemos até fazer uma observação bem curiosa: hoje em dia,
não se contentam mais em se distinguir o espiritual e o temporal como é legítimo e até
necessário de se fazer, mas tem-se a intenção de separá-los radicalmente. Acontece,
justamente, que as duas ordens nunca foram misturadas como são no presente e que,
sobretudo, as preocupações temporais nunca foram afetadas, o que deveria ser
absolutamente independente. Sem dúvida, é inevitável que seja assim devido às próprias
condições que são as de nossa época, as quais já descrevemos em outro lugar.

20
Assim, para evitar toda falsa interpretação, também devemos declarar nitidamente
que o que dizemos aqui só diz respeito ao que chamávamos mais acima de autoridade
espiritual em seu estado puro e que seria importante não procurar exemplos à nossa volta.
Se quiséssemos, poderíamos até pensar que aqui se trata apenas de um tipo teórico
e de uma maneira “ideal”, se bem que, para falar a verdade, mesmo que esta maneira de
encarar as coisas não seja inteiramente a nossa, reconhecemos bem que em relação aos
fatos, nas aplicações históricas, é preciso sempre, em certa medida, levar em consideração
as contingências. No entanto, tomamos a civilização do Ocidente Moderno pelo que ela é, isto
é, um desvio e uma anomalia que se explicam pelas suas relações com a última fase do Kali-
Yuga.
Mas voltemos às relações do conhecimento e da ação. Já tivemos a ocasião de
cuidar desta questão e de desenvolvê-la 3 e, consequentemente, não repetiremos aqui tudo
que já dissemos. No entanto, é indispensável recordar, ao menos, os pontos mais essenciais.
Considerando a antítese do Oriente e do Ocidente, no estado atual das coisas,
podemos chegar, em resumo, ao seguinte: o Oriente mantém a superioridade do
conhecimento em relação à ação, enquanto que o Ocidente moderno, ao contrário, afirma a
superioridade da ação em relação ao conhecimento, quando, na verdade, ele chega quase à
negação completa deste. Falamos, aqui, apenas do Ocidente “moderno”, visto que ele foi de
outro modo na antiguidade e na idade média.
Todas as doutrinas tradicionais, que sejam orientais ou ocidentais, são unânimes em
afirmar a superioridade e até a transcendência do conhecimento em relação à ação. E, em
relação a esta última, de alguma maneira, o conhecimento tem o papel de “motor imóvel”
conforme Aristóteles, o que, para deixar claro, não quer dizer que a ação não tenha mais seu
lugar legítimo e sua importância em sua ordem, mas esta ordem é apenas a das
contingências humanas.
A mudança seria impossível sem um princípio do qual ela procede e que, princípio
este que é “imóvel”, sendo o centro da “roda das coisas” 4. Da mesma maneira, a ação
pertence ao mundo da mudança e não pode ter seu princípio em si mesma. Toda a realidade
da qual ela é suscetível, ela tira de um princípio que está além de seu domínio e que só pode
se encontrar no conhecimento.
21
Este só permite, com efeito, sair do mundo da mudança ou do “devir” e das limitações
que lhe são inerentes, e, quando ele atinge o imutável, que é o caso do conhecimento
principial ou metafísico5 , ele possui ele mesmo a imutabilidade, pois todo conhecimento
verdadeiro é essencialmente identificação com seu objetivo.
A autoridade espiritual por aí mesmo implica este conhecimento e também possui em
si mesma a imutabilidade. O poder temporal, ao contrário, está submetido a todas as
vicissitudes do contingente e do transitório, a menos que um princípio superior lhe comunique,
na medida compatível com sua natureza e sua característica, a estabilidade que ele não pode
ter por seus próprios meios.
Este princípio só pode ser aquele que é representado pela autoridade espiritual. Para
subsistir, então, o poder temporal precisa de uma consagração que lhe venha dela. É esta
consagração que o torna legítimo, quer dizer sua conformidade na ordem mesma das coisas.
Tal era a razão de ser da “iniciação real”, que a definimos no capítulo anterior. E é
nisso que consiste propriamente o “direito divino” dos reis, ou o que a tradição extremo-oriente
chama de “mandato do Céu”: é o exercício do poder temporal em virtude de uma delegação
da autoridade espiritual, a qual este poder pertence “eminentemente”, assim como estávamos
explicando. 6
Em toda ação que não procede do conhecimento, falta princípio e não passa de uma
vã agitação. Da mesma maneira, todo poder temporal que desconhece sua subordinação em
relação à autoridade espiritual é igualmente vão e ilusório. Separado de seu princípio, ele só
poderá ser exercido de maneira desordenada e fatalmente consumará sua perda.
Já que acabamos de falar do “mandato do Céu”, não será fora de propósito relacionar
aqui, segundo o próprio Confúcio, como este mandato deveria ser cumprido:
“Para fazer brilhar as virtudes naturais nos corações de todos os homens, os antigos
príncipes se aplicavam em bem governar cada um o seu domínio.
Para bem governar os seus domínios, antes eles colocavam a ordem em suas
famílias.
Para por ordem em suas famílias, antes eles trabalhavam aperfeiçoando-se a si
mesmos.

22
Para aperfeiçoarem a si mesmo, antes eles regravam os movimentos de seus
corações. Antes de tudo, eles tornavam sua vontade perfeita.
Para tornar sua vontade perfeita, eles desenvolviam ao máximo seus conhecimentos.
Desenvolvem-se seus conhecimentos pesquisando-se a natureza das coisas.
Uma vez pesquisada a natureza das coisas, os conhecimentos atingem seu mais alto
grau.
Chagando ao seu mais alto grau nos conhecimentos, a vontade se torna perfeita.
A vontade estando perfeita, os movimentos do coração ficam regrados.
Estando regrados os movimentos do coração, todo homem fica isento de defeitos.
Depois de ter corrigido a si mesmo, estabelecemos a ordem na família.
Reinando a ordem na família, o domínio fica bem governado.
Estando bem governado o domínio, logo todo o império goza a paz” 7
Deveremos reconhecer que há aí uma concepção do papel soberano que difere
singularmente da ideia que se pode ter no Ocidente moderno e que o torna, de outra maneira,
difícil a preencher, mas lhe dá também um outro alcance. E observaremos, particularmente,
que o conhecimento é expressamente indicado como sendo a condição primeira para o
estabelecimento da ordem, mesmo no domínio temporal.
É fácil compreender agora que a inversão das relações do conhecimento e da ação
em uma civilização é uma conseqüência da usurpação da supremacia pelo poder temporal.
Com efeito, ele deve pretender que não haja nenhum domínio que seja superior ao seu, o
qual é precisamente o domínio da ação.
No entanto, se as coisas ficam por aí, elas não chegam ao ponto onde as vemos
atualmente e onde todo o valor é negado ao conhecimento. Para que seja assim, é preciso
que os próprios Kshatriyas tenham sido despojados de seu poder pelas castas inferiores. 8
Como indicamos anteriormente, mesmo revoltados, os Kshatriyas têm a tendência de
afirmar uma doutrina truncada, falseada pela ignorância ou negação de tudo o que ultrapassa
a ordem “física”, mas na qual subsistem certos conhecimento reais, mesmo que inferiores.
Eles podem até ter a pretensão de fazer passar esta doutrina incompleta e irregular pela
expressão da verdadeira tradição.

23
Existe aí uma atitude que, se bem que seja condenável aos olhos da verdade, ainda
não é desprovida de uma certa grandeza 9. Aliás, termos como “nobreza”, “heroísmo”, “honra”,
em suas acepções originais, não são a definição das qualidades que são essencialmente
inerentes à natureza dos Kshatriyas?
Por outro lado, quando os termos correspondentes às funções sociais de uma ordem
inferior chegam, por sua vez, a dominar toda doutrina tradicional, mesmo mutilada ou
alterada, desaparecem inteiramente. Não subsiste nem o mínimo vestígio da “ciência
sagrada” e é o reino dos “saberes profanos”, isto é, da ignorância que se toma por ciência e
se compraz no nada.
Tudo isso poderia se resumir nestas poucas palavras: a supremacia dos Brâhmanes
mantém a ortodoxia doutrinal. A revolta dos Kshatriyas traz a heterodoxia. Contudo, com a
dominação das castas inferiores, é a noite intelectual, e é assim que hoje em dia está o
ocidente, que ameaça espalhar suas trevas no mundo inteiro.
Talvez haja a reprovação por falarmos como se houvessem castas em tudo e
estendermos indevidamente para toda organização social as denominações que são
convenientes propriamente apenas para a Índia. No entanto, já que estas denominações, em
suma, designam funções que se encontram necessariamente em toda a sociedade, não
pensamos que esta extensão seja abusiva.
É verdade que a casta não é somente uma função e que ela é, também, antes de
tudo, o que, na natureza dos indivíduos humanos, os torna aptos a exercer esta função de
preferência a qualquer outra. Mas esta diferença de natureza e de aptidões também existe em
todo lugar onde existam homens.
A diferença entre uma sociedade onde existem castas, no verdadeiro sentido da
palavra, e outra onde elas não existem é que, na primeira, existe uma correspondência normal
entre a natureza dos indivíduos e as funções que eles exercem, sob a única reserva dos erros
de aplicações que, em todo caso, não passam de exceções; enquanto que, na segunda, esta
correspondência não existe ou, ao menos, só existe acidentalmente. E este último caso é
aquele que se produz quando a organização social tem falta de base tradicional 10.
Nos casos normais, sempre existe alguma coisa comparável à instituição das castas,
com as modificações adquiridas pelas próprias condições de tal povo, mas a organização que
24
encontramos na Índia é a que representa o tipo mais completo, tanto quanto à aplicação da
doutrina metafísica quanto à ordem humana. Esta única razão seria suficiente para justificar a
linguagem que adotamos de preferência a qualquer outra que teríamos podido emprestar de
instituições, tendo por sua forma mais especializada um campo de aplicação muito mais
limitado e, por consequência, não podendo fornecer as mesmas possibilidades para a
expressão de certas verdades de ordem totalmente geral 11.
Existe ainda uma outra razão que, para ser mais contingente, não é de ser
negligenciada e que é a seguinte: é notável que a organização social da idade média
ocidental tenha sido formada exatamente na divisão das castas, o clero correspondendo aos
Brâhmanes, a nobreza aos Kshatriyas, ou a terça parte aos Vaishyas e os servos aos
Shúdras. Não eram castas em toda acepção da palavra, mas esta coincidência que,
certamente, não tem nada de acidental, permite efetuar muito facilmente uma transposição de
termos para passar de uma ao outro destes dois casos. E esta observação encontrará sua
aplicação nos exemplos históricos que teremos a seguir.

1
Segundo a doutrina Hindu, os dois termos “Verdade, conhecimento, Ymâni” são identificados dentro do
Princípio supremo: é o sentido da fórmula Satyam Jnânam Anantam Brahma.
2
Na Índia, o conhecimento (vidyâ), segundo seu objetivo ou seu domínio, é distinguida em “suprema”
(parâ) e “não-suprema” (aparâ).
3
A crise no mundo moderno, cap. III.
4
O centro imóvel é a imagem do princípio imutável, sendo o movimento tomado aqui para simbolizar a
mudança em geral, da qual ele é apenas uma espécie particular.
5
Por outro lado, o conhecimento “físico” é apenas o conhecimento das leis das mudanças, leis estas que são
apenas os reflexos dos princípios transcendentes da natureza, a qual não é, por sua vez, nada além de o
domínio da mudança. Aliás, a palavra do latim natura e sua correspondente em grego expressam a mesma
ideia de “devir”.
6
É por isso que a palavra melek “rei”, em hebreu e em árabe, tem, ao mesmo tempo, o sentido de “enviado”.
7
Ta-hio, primeira parte, tradução do P. Couvreur.
8
Particularmente, o fato de conceber uma importância preponderante às considerações de ordem econômica,
que é uma característica muito evidente de nossa época, pode ser visto como um sinal de dominação dos
Vaishyas, cujo equivalente próximo é a representação do mundo ocidental pela burguesia. E é ela mesma,
com efeito, que domina desde a revolução.

25
9
Esta atitude dos Kshatriyas revoltados poderia ser caracterizada exatamente pela designação de
“luciferianismo”, que não deve ser confundida com “satanismo”, mesmo que haja, sem duvidas, uma certa
relação entre as palavras. O “luciferianismo” é a recusa do reconhecimento de uma autoridade superior, o
“satanismo” é a inversão das relações normais e da ordem hierárquica; e esta é uma consequência daquela,
assim como Lúcifer se tornou Satã após sua queda.
10
Basta observar que as “classes”, tais como nós as entendemos no ocidente, não têm nada em comum com
as verdadeiras castas e são apenas uma falsificação sem valor nem alcance, não sendo fundada na diferença
das possibilidades implicadas na natureza dos indivíduos.
11
A razão pela qual é assim é que, entre as doutrinas tradicionais, a doutrina Hindu, tendo subsistido até
nossos dias, é a que parece derivar mais diretamente da tradição primordial, mas não vamos insistir nisto
aqui.

26
CAPÍTULO QUARTO

NATUREZA RESPECTIVA DOS BRÂHMANES E DOS KSHATRIYAS

Sabedoria e força, estes são os atributos respectivos dos Brâhmanes e dos


Kshatriyas ou, se preferirmos, da autoridade espiritual e do poder temporal. E é interessante
notar que, no país dos antigos egípcios, o símbolo do Sphainx, em um de seus significados,
reunia precisamente estes dois atributos encarados segundo suas relações normais.
Com efeito, a cabeça humana pode ser considerada como simbolizando a sabedoria
e o corpo do leão a força. A cabeça é a autoridade espiritual que dirige e o corpo é o poder
temporal que age.
Observamos que o Sphainx é sempre ilustrado em repouso. O poder temporal é
tomado, neste caso, no estado de “não agir” em seu princípio espiritual onde está contido
“eminentemente”, logo somente como possibilidade de ação, ou melhor ainda, no princípio
divino que unifica o espiritual e o temporal.
Em outro lugar, encontramos um símbolo verbal que, por causa de sua constituição
hieroglífica, é um equivalente exato daquele: é o nome dos Druidas, que se lê dru-vid, onde a
primeira raiz significa a força e a segunda a sabedoria1. A união destes dois atributos deste
nome, igualmente àqueles dois elementos do Sphainx em um único mesmo ser, além de
marcar que a realeza está implicitamente contida no sacerdócio, é, sem dúvida, uma
lembrança da longínqua época em que os dois poderes ainda estavam unidos, no estado de
indistinção primordial, em seu princípio comum e extremo2.
Já consagramos um estudo especial para este princípio supremo dos dois poderes 3.
Indicamos, então, como de visível ele era a princípio ele se tornou invisível e escondido,
retirando-se do “mundo externo,” na medida em que este se afastava de seu estado
primordial, o que devia necessariamente trazer a divisão aparente dos dois poderes.
Também já mostramos como este princípio se encontra designado sob nome e
símbolos diversos em todas as tradições e como ele aparece, em especial, na tradição
judaico-cristã através das imagens de Melquisedeque e dos reis magos.

27
Relembramos somente que, no cristianismo, o reconhecimento deste princípio único
subsiste sempre ao menos teoricamente, que é afirmado pela consideração das duas
funções, a sacerdotal e a real, como sendo inseparáveis uma da outra na própria pessoa do
Cristo.
De um certo ponto de vista, estas duas funções, embutidas assim em seu princípio,
podem ser encaradas como sendo de alguma maneira complementares e, se a primeira tem
seu princípio imediato na segunda, existe entre elas, em sua própria distinção, uma espécie
de correlação.
Em outros termos, já que o sacerdócio não comporta de maneira habitual o exercício
efetivo da realeza, é preciso que os representantes respectivos do sacerdócio e da realeza
ganhem seu poder de uma fonte comum, que está “além das castas”. A diferença hierárquica
que existe entre eles consiste em que o sacerdócio recebe seu poder diretamente desta fonte
com a qual ele está em contato imediato pela sua própria natureza. Já a realeza, devido a sua
característica extrema e propriamente terrestre de sua função, só pode receber seu poder por
intermédio do sacerdócio.
Este, com efeito, tem realmente o papel de “mediador” entre o Céu e a Terra. E não é
sem motivos que, nas tradições ocidentais, a plenitude do sacerdócio recebeu o nome
simbólico de “pontificado” e, como diz São Bernardo, “O pontífice, como a etimologia de seu
nome indica, é uma espécie de ponte entre Deus e o homem.” 4
Logo, se quisermos voltar à origem primeira dos dois poderes sacerdotal e real, é no
“mundo celeste” que é preciso procurá-la. Isto pode ser compreendido real e simbolicamente
ao mesmo tempo5. No entanto, esta questão é do tipo cujo desenvolvimento sairia do quadro
do presente estudo. Faremos algumas alusões a esta fonte comum dos dois poderes.
Para voltar ao ponto de partida deste incidente, é evidente que os atributos de
sabedoria e de força se relacionem respectivamente com o conhecimento e com a ação. Por
outro lado, na Índia, ainda se diz, em conexão com o mesmo ponto de vista, que Brâhmane é
um tipo de seres estáveis e que o Kshatriya é um tipo de seres mutáveis 6.
Em outros termos, na ordem social, que aliás está em perfeita correspondência com a
ordem cósmica, o primeiro representa o elemento imutável, o segundo o elemento móvel.
Aqui, novamente, a imutabilidade é a do conhecimento, que está representada sensivelmente
28
pela postura imóvel do homem meditando. Por outro lado, a mobilidade é aquela que é
inerente à ação, devido à característica transitória e momentânea desta.
Finalmente, a própria natureza do Brâhmane e a do Kshatriya se distingue
fundamentalmente pela predominância de um guna diferente. Como já explicamos antes 7, a
doutrina hindu encara três gunas, sendo estas qualidades constitutivas dos seres em todos
seus estados de manifestação: sattwa, a conformidade como a pura essência do Ser
universal, tendência ascendente; rajas, a impulsão expansiva segundo a qual o ser se
desenvolve num certo estado e de alguma maneira num nível determinado da existência;
finalmente, tamas, a obscuridade, assimilada pela ignorância e representada como uma
tendência descendente.
Os gunas estão em perfeito equilíbrio na indiferença primordial e toda manifestação
representa uma ruptura deste equilíbrio. Estes três elementos estão em todos os seres, mas
em proporções diversas, as quais determinam as tendências respectivas destes seres. Na
natureza do Brâhmane é sattwa que predomina, orientando-os para os estados supra-
humanos. Na natureza do Kshatriya, é rajas que tende á realização das possibilidades
compreendidas no estado humano8.
A predominância de sattwa é a da intelectualidade e a predominância de rajas, por
falta de um termo melhor, é o que podemos chamar de sentimentalidade. Aqui está
novamente uma justificativa do que dizíamos mais acima que o Kshatriya não é feito para o
puro conhecimento. A via que lhe convém é a que podemos chamar de devocional (se for
permitido usar tal palavra para significar imperfeitamente o termo sânscrito de bhakti, que
significa a via que usa como ponto de partida um elemento de ordem emotiva). Porém, esta
via pode ser encontrada também fora das formas propriamente religiosas. O papel do emotivo
em nenhum outro lugar é desenvolvido quanto nas formas religiosas onde ele imprime com
uma pintura especial a expressão da doutrina inteira.
Esta última observação permite dar conta da verdadeira razão de ser destas formas
religiosas. Elas convêm particularmente às raças cujas aptidões, de maneira geral, são
dirigidas principalmente para o lado da ação, isto é, para aquelas que, encaradas
coletivamente, têm em si uma preponderância do elemento “rajásico”, que caracteriza a
natureza dos Kshatriyas.
29
Este é o caso do mundo ocidental. Por isso, como já assinalamos em outro lugar9,
dizemos na Índia que, se o Ocidente voltasse a um estado normal e possuísse uma
organização social regular, encontraríamos nele muitos Kshatriyas, mas poucos Brâhmanes.
Por essa razão, também, que a religião, compreendida em seu sentido mais estrito, é uma
coisa propriamente ocidental.
Isso também pode explicar o motivo por que, no ocidente, não há autoridade
espiritual pura, o que pelo menos não há nada que se afirme externamente como tal. A
adaptação religiosa, como a constituição de qualquer outra forma tradicional, é, no entanto, o
fato de uma verdadeira autoridade espiritual, no sentido mais completo desta palavra. E esta
autoridade, que aparece por fora como religiosa, também pode ao mesmo tempo continuar
sendo outra coisa nela mesma por ter tanto em seu seio verdadeiros Brâhmanes. Nisto
entendemos ser uma elite intelectual que guarda a consciência do que está além de todas as
formas particulares, isto é, da essência profunda da tradição.
Para uma tal elite, a forma só pode fazer o papel de “suporte” e, de outro lado, ela
fornece um meio de fazer participar da tradição aqueles que não têm acesso à pura
intelectualidade. Mas estes últimos, naturalmente, não vêem nada além da forma, pois suas
próprias formas individuais não lhes permitem ir mais além e, consequentemente, a
autoridade espiritual só pode se mostrar a eles sob um aspecto que corresponde à natureza
deles10, se bem que seu ensinamento, mesmo externamente, seja inspirado pelo espírito da
doutrina superior11.
Apenas pode acontecer, também, que, uma vez realizada a adaptação, aqueles que
são os depositários desta forma tradicional se encontram eles mesmos fechados para o que
se segue, tendo perdido a consciência efetiva do que está além. Isto pode ser devido a
circunstâncias diversas e, principalmente, à “mistura das castas”, em razão da qual pode
acontecer de se encontrar entre eles homens que na realidade são, na maioria das vezes,
Kshatriyas. É fácil entender, pelo que acabamos de dizer, que este caso seja possível
principalmente no ocidente, ainda mais que a forma religiosa pode ser prestada a isto.
Com efeito, a combinação de elementos intelectuais e sentimentais que caracteriza
esta forma cria uma espécie de domínio misto, onde o conhecimento é encarado muito menos
em si mesmo do que sua implicação na ação. Se a distinção entre a “iniciação sacerdotal” e
30
“iniciação real” não é mais mantida de uma maneira bem nítida e rigorosa, temos então um
terreno intermediário onde se pode produzir toda espécie de confusões, sem falar de certos
conflitos que não seriam nem concebíveis se o poder temporal tivesse diante de si uma
autoridade espiritual pura12. Não temos que procurar, aqui, das duas possibilidades que
acabamos de indicar, qual é aquela com a qual corresponde atualmente o estado religioso do
mundo ocidental e a razão é fácil de ser compreendida: uma autoridade religiosa não pode ter
aparência do que chamamos de autoridade espiritual pura, mesmo se no seu interior ela a
possui. Certamente houve um tempo em que ela possuiu esta intelectualidade pura. Será que
ela a possui ainda13?
Seria ainda mais difícil de dizer que, quando a intelectualidade verdadeira se perde
tão completamente quanto na época moderna, é natural que a parte superior e “interior” da
tradição se torne cada vez mais escondida e inacessível, já que aqueles que são capazes de
compreendê-la são uma ínfima minoria. Até prova em contrário, queremos que possa ser
assim e que a consciência da tradição integral, com tudo que ela implica, subsista ainda
efetivamente em alguns, poucos que sejam.
Aliás, mesmo que esta consciência tivesse inteiramente desaparecido, ainda restaria
toda forma tradicional regularmente constituída pela única conservação da escrita, ao abrigo
de qualquer alteração, mantendo sempre a possibilidade de sua alteração que seria feita se
em algum dia encontrassem, entre os representantes desta forma tradicional, homens
possuindo aptidões intelectuais necessárias.
Em todo caso, se mesmo por qualquer motivo tivéssemos a respeito disso dados
mais precisos, não os exporíamos publicamente, a menos que fôssemos levados a isto por
circunstâncias excepcionais e eis o porquê: uma autoridade que é apenas religiosa é, no
entanto, mais desfavorável, uma autoridade espiritual relativa. Queremos dizer que, sem ser
uma autoridade espiritual plenamente efetiva, ela traz em si a virtualidade, trazida de sua
origem e por aí ela pode sempre preencher sua função externamente 14. Em relação ao poder
temporal, ela tem legítimo poder e deve ser realmente considerada como tal.
Aqueles que terão compreendido nosso ponto de vista, sem dificuldades, poderão dar
conta que, em caso de conflito entre uma autoridade espiritual, qualquer que seja, mesmo
relativa, e um poder puramente temporal, devemos sempre nos situar, a princípio, do lado da
31
autoridade espiritual. Dizemos a princípio porque deve ficar bem claro que não temos a
mínima intenção de intervir ativamente em tais conflitos nem de tomar partido de nenhuma
das discussões do mundo ocidental, o que, aliás, não seria o nosso papel.
Nos exemplos que teremos que encarar a seguir, não faremos distinção entre
aqueles que se tratam de uma autoridade pura e aqueles que se tratam apenas de uma
autoridade espiritual relativa. Em todos os casos, consideraremos como autoridade espiritual
aquela que preenche socialmente esta função e as semelhanças evidentes que apresentam
todos estes casos, mesmo muito afastadas que possam estar umas das outras na história,
justificarão suficientemente esta assimilação.
Só teríamos distinção a fazer caso ocorresse a questão da posse efetiva da pura
intelectualidade, o que não ocorre aqui. Mesmo para uma autoridade ligada exclusivamente a
uma certa forma tradicional, não teríamos de nos preocupar em demarcar exatamente suas
fronteiras (se pudermos nos expressar deste modo), a menos nos casos em que ela
pretendesse ultrapassá-las, e não temos casos assim aqui.
A respeito disso, relembraremos o que dizíamos mais acima. O superior contém
eminentemente o inferior. Este, competente em certos limites, definindo seu próprio domínio,
o é também a fortiori para tudo que está aquém destes mesmos limites, enquanto que, por
outro lado, não é competente para definir o que está além deles. Se esta regra muito simples,
ao menos para quem tem uma justa noção de hierarquia, fosse observada e aplicada como
convém, nenhuma confusão de domínios e nenhum erro de “jurisdição” jamais aconteceria.
Nas distinções e reservas que acabamos de formular, alguns, sem dúvida,
acreditarão que estas precauções são exageradas, e outros se verão tentados em distribuir a
elas um valor puramente teórico. Mas pensamos que outros compreenderão que, na
realidade, elas são outra coisa e convidamos a estes para uma reflexão bem particular sobre
elas.

1
Este nome tem um duplo sentido, que se refere ainda a um outro simbolismo: dru ou deru, como em latim
robur, designa, ao mesmo tempo, a força e o carvalho (em grego opus). Por outro lado, vid significa, como
em sânscrito, a sabedoria ou o conhecimento, assimilados com a visão, e também significa o visgo que era
considerado planta sagrada pelos gauleses. Assim dru-vid é o visgo do carvalho, que era, com efeito, um dos
principais símbolos do Druidismo e ele é, ao mesmo tempo, o homem em que reside a sabedoria apoiada na
força. Além disso, a raiz dru, como se vê pelas formas sânscritas e equivalentes dhru e dhri, comporta
ainda a ideia de estabilidade, que é um dos sentidos do símbolo da árvore em geral e do carvalho em
particular. E este sentido de estabilidade corresponde exatamente aqui com a atitude da esfinge em repouso.
32
2
No Egito, a incorporação do rei ao sacerdócio, que já citamos segundo Plutarque, era como um vestígio
deste antigo estado de coisas.
3
O rei do mundo.
4
Tractatus de Moribus et Officio episcorum, III, 9. A respeito disso, e em relação com o que já indicamos
a respeito do Sphainx, observamos que esta representa Harmakhis ou Hormakhouti, o “senhor dos dois
horizontes”, isto é, o princípio que une os dois mundos, o sensível e supra-sensível o terrestre e celeste. E é
uma das razões pelas quais, no Egito, nos primeiros tempos do cristianismo, ela foi vista como um símbolo
do Cristo. Uma outra razão deste fato é que a esfinge é como o grifo do qual fala Dante, o “animal com duas
naturezas”, representando, sob este título, a união das naturezas divina e humana no Cristo. E podemos,
ainda, encontrar uma terceira no aspecto sob o qual ela se apresenta. Como já dissemos, a união dos dois
poderes se tornou sensível aos homens, o sacerdócio representa também externamente o mundo celeste.
5
Trata-se, aqui, da concepção tradicional dos “três mundos”, que já explicamos antes diversas vezes. Neste
ponto de vista, a realeza corresponde ao “mundo terrestre”, o sacerdotal ao “mundo intermediário” e seu
princípio comum ao “mundo celeste”. Mas convém acrescentar que, desde o momento em que este princípio
se tornou invisível aos homens, o sacerdócio representa externamente o mundo celeste.
6
Divididos em estáveis e mutáveis, o conjunto de todos os seres é designado em Sânscrito, pelo termo
composto sthâvara-jangama. Assim, segundo sua natureza, todos estão principalmente em relação, seja
com Brâhmane, seja com Kshatriya.
7
O homem e seu devir segundo o Vedanta, cap. IV.
8
Cores simbólicas correspondem aos três gunas: o branco corresponde a sattwa, o vermelho a rajas e o
negro a tamas. Da relação que indicamos aqui, as duas primeiras cores também simbolizam respectivamente
a autoridade espiritual e o poder temporal. É interessante notarmos, sobre isto, que o estandarte dos reis da
França era vermelho. A posterior substituição do branco em vermelho como cor real, de alguma maneira,
marca a usurpação de um dos atributos da autoridade espiritual.
9
A crise do mundo moderno, pág 45 (2ª edição).
10
Dizemos simbolicamente que, quando eles aparecem aos homens, os deuses revestem sempre formas que
estão relacionadas com a própria natureza daqueles a quem eles se manifestam.
11
Trata-se novamente aqui da distinção que já indicamos mais acima entre “aqueles que sabem” e “aqueles
que não crêem”.
12
Estando esquecido o conhecimento “supremo”, só sobrevive um conhecimento “não-supremo”, não mais
igual a uma revolta dos Kshatriyas como no caso que encaramos anteriormente, mas por uma espécie de
degenerescência intelectual do elemento que corresponde aos Brâhmanes por sua função ou por sua natureza.
Neste último caso, a tradição não fica alterada como no outro, mas apenas diminuída em sua parte superior.
O ultimo grau desta degenerescência é aquele em que não há mais nenhum conhecimento efetivo, é aquele
em que apenas a virtualidade deste conhecimento subsiste graças à “escrita” e onde não há mais do que a
simples crença em todos indistintamente.
13
Esta questão corresponde, de forma diferente, a aquela que fazíamos mais acima a respeito da “Igreja
discente” e da “Igreja docente”.
14
É preciso observar que aqueles que preenchem, assim, a função externa dos Brâhmanes sem ter realmente
as qualificações não são por causa disso usurpadores, como seriam os Kshatriyas revoltados que tivessem
tomado lugar dos Brâhmanes para instaurar uma tradição desviada. Trata-se, com efeito, apenas de uma
situação devida às condições desfavoráveis de um certo meio e que, aliás, assegura a manutenção da doutrina
em toda a medida compatível com suas condições. Poderíamos sempre, mesmo na hipótese mais estranha,

33
aplicar aqui esta palavra do evangelho: “Os escribas e os fariseus estão sentados na cadeira de Moisés;
observe-os então e fazeis tudo o que dizem” (São Mateus, XXIII, 2-3).

34
CAPÍTULO QUINTO
DEPENDÊNCIA DA REALEZA EM RELAÇÃO AO SACERDÓCIO

Voltemos agora às relações dos Brâhmanes e dos Kshatriyas dentro da organização


social da Índia. Aos Kshatriyas pertence normalmente todo poder exterior, já que o domínio da
ação, que é o que lhes interessa diretamente, é o mundo exterior e sensível. Mas este poder
não é nada sem um princípio interior, puramente intelectual, que encara a autoridade dos
Brâhmanes na qual ele encontra sua única garantia.
Vemos aqui que a relação dos dois poderes poderia ser representada como aquela
do “interior” e aquela do “exterior”, relação que realmente simboliza o poder do conhecimento
e o da ação ou, se preferirmos, do “motor” e do “móvel”, para tornar a tomar a ideia que
havíamos exposto mais acima, tomando como referência o resto da teoria Aristotélica assim
como a doutrina Hindu1.
É da harmonia entre esse “interior” e esse “exterior”, harmonia que não deve ser
concebida como um tipo de paralelismo, que resulta a vida normal do que nós podemos
chamar de entidade social, sem querer sugerir pelo emprego de tal expressão uma
assimilação qualquer da coletividade para um ser vivo, ainda mais que, nos dias de hoje,
certas pessoas estranhamente abusam desta assimilação usando erroneamente como
identidade verdadeira, o que não passa de analogia e correspondência.
Em troca da segurança que dá a seu poder a autoridade espiritual, os Kshatriyas
devem, com a ajuda da força da qual eles dispõem, garantir aos Brâhmanes que se termine
em paz ao abrigo da desordem e da agitação sua própria função de conhecimento e de
ensinamento. É o que o simbolismo do Hindu representa com a imagem de Skanda, o senhor
da guerra, protegendo a meditação de Ganêsha, o senhor da sabedoria2.
Notamos que a mesma coisa era ensinada, mesmo no exterior, na idade média
ocidental. Com efeito, São Tomas de Aquino declara expressamente que todas as funções
humanas são subordinadas à contemplação como a um fim, sendo isto os dois filhos de
Shiva. Aqui está mais uma maneira de expressar que os dois poderes espiritual e temporal
procedem de um único princípio superior, de modo que, considerando-os corretamente, todos

35
parecem a serviço dos que contemplam a verdade e que, no fundo, o governo inteiro da vida
civil tem como verdadeira razão de ser garantir a paz necessária para esta contemplação.
Vemos o quanto isto está longe do ponto de vista moderno e vemos, também, que o
predomínio da tendência à ação, tal como existe incontestavelmente entre os povos
ocidentais, não leva necessariamente à depreciação da contemplação, isto é, do
conhecimento. Os povos dos quais falamos possuem uma civilização com características
tradicionais independente da forma que reveste a tradição. Aqui no ocidente há uma forma
religiosa, de onde a matiz teológica, segundo a concepção de São Tomas, está sempre ligada
à contemplação, enquanto que, no Oriente, esta é encarada na ordem da metafísica pura.
Por outro lado, na doutrina Hindu podemos encontrar uma organização social
evoluída e que possui características que não são encontradas em nenhum outro lugar. Há
um destaque dado ao lugar ocupado pelos Kshatriyas de modo que este não seja
negligenciado.
Porém, como já mencionamos em outra ocasião3, aqueles que, sob influências de
interpretações falsas em moda no ocidente, duvidassem desta importância muito real
concedida á ação pela doutrina hindu, assim como por todas as outras doutrinas tradicionais,
para se convencerem, só precisariam conferir com Bhagavad-Gîtâ, livro que não podemos
esquecer se quisermos compreender bem o sentido. É um destes livros que são
especialmente destinados ao uso dos kshatriyas. Fizemos algumas alusões dele mais acima4.
Os Brâmanes só precisam exercer uma autoridade de alguma maneira invisível que,
como tal, pode ser ignorada pelo vulgar, mas que não deixa de ser o princípio imediato de
todo poder visível. Esta autoridade é como o pivô ao redor do qual giram todas as coisas
contingentes, o eixo fixo ao redor do qual o mundo cumpre sua revolução, o pólo ou o centro
imutável que dirige e regula o movimento cósmico sem dele participar 5.
A dependência do poder temporal em relação à autoridade espiritual tem seu sinal
visível na sagração dos reis. Estes são realmente “legitimados” apenas quando eles recebem
do sacerdócio a investidura e a consagração, implicando na transmissão de uma “influência
espiritual” necessária ao exercício regular de suas funções 6. Esta influência às vezes se
manifesta fora, através de efeitos nitidamente sensíveis, e citaremos como exemplo o poder
de curados reis da França que estavam ligados à sagração.
36
Isto mostra que esta influência não pertence propriamente ao rei, mas que lhe era
conferida por uma espécie de delegação da autoridade espiritual, a qual, como já o
indicávamos mais acima, consiste propriamente no “direito divino”. O rei é apenas o
depositário e, pela sequência, ele pode perdê-la em certos casos. É por isto que na
“cristandade” da idade média o papa podia liberar os súditos de seu juramento de fidelidade
para com seu soberano7.
Na tradição católica, São Pedro é representado segurando em suas mãos não
somente a chave de ouro de poder real. Para os antigos romanos, estas duas chaves eram
um dos atributos de Janus e eram então as chaves dos “grandes mistérios” e dos “pequenos
mistérios”, que, como já explicamos, também correspondem respectivamente à “iniciação
sacerdotal” e a “iniciação real”8.
É preciso observar sobre isto que São Pedro é propriamente a encarnação do poder
sacerdotal, ao qual duas chaves são assim transferidas porque é por seu intermédio que é
transmitido o poder real, enquanto que ele mesmo é recebido diretamente da fonte9.
O que acaba de ser dito define as relações normais da autoridade espiritual e do
poder temporal. E, se estas relações fossem sempre em todo lugar observadas, nenhum
conflito poderia jamais aparecer entre um e outro, cada um ocupando assim o lugar que lhe é
devido em virtude da hierarquia das funções e dos seres. Hierarquia esta que, ainda
insistimos, é estritamente conforme à própria natureza das coisas.
Infelizmente está longe de ser assim. E estas relações normais com muita frequência
foram desconsideradas e até invertidas. Sobre isto, primeiro, é importante notar que já é um
grave erro considerar simplesmente o espiritual e o temporal como sendo dois termos
correlativos ou complementares, sem se dar conta de que este tem seu princípio naquele.
Este erro pode ser cometido ainda mais facilmente, pois, como já indicamos, esta
consideração do complementarismo também tem sua razão de ser por um certo ponto de
vista, pelo menos no estado de divisão dos dois poderes, onde um não tem no outro seu
princípio supremo e último, mas somente seu princípio imediato e ainda relativo.
No que concerne ao conhecimento e à ação, assim como já observamos em outro
lugar10, este complementarismo não é falso, mas apenas insuficiente, porque ele só
corresponde a um ponto de vista que ainda é externo como é a própria divisão dos dois
37
poderes, necessitada por um estado do mundo no qual o poder único e supremo não está
mais ao alcance da humanidade ordinária.
Poderíamos dizer que, quando eles se diferenciam, os dois poderes se apresentam
primeiramente na sua relação normal de subordinação e que sua concepção como
correlativas só pode aparecer numa fase ulterior da marcha descendente do ciclo histórico. À
esta nova fase, referem-se mais particularmente certas expressões simbólicas que põem em
evidência sobre tudo o aspecto do complementarismo, se bem que uma interpretação correta
possa fazer reconhecer ainda uma indicação da relação de subordinação.
Tal é, em especial, o ponto bem conhecido mas pouco compreendido no ocidente do
cego e do paralítico, que representa, em um de seus significados, as relações da vida ativa e
da vida contemplativa: a ação entregue a si mesma é cega e a imutabilidade essencial do
conhecimento se traduz exteriormente por uma estabilidade comparável à do paralítico.
O ponto de vista do complementarismo é representado pela ajuda entre os dois
homens, os quais complementam com suas próprias faculdades o que falta ao outro. E se a
origem deste conto, ou ao menos a consideração mais especial da aplicação que dele é
feita11, deve ser reportada ao confucionismo. É fácil compreender que, com efeito, este deve
se limitar a este ponto de vista, no qual ele fica exclusivamente na ordem humana e social.
A respeito disto, observem que na China a distinção do Taoísmo, doutrina puramente
metafísica, e do confucionismo, doutrina social, procedendo ambas de uma tradição integral
que representa seu princípio comum, corresponde exatamente à distinção do espiritual e do
temporal12. E é preciso acrescentar que a importância do “não agir” do ponto de vista do
Taoísmo justifica especialmente para quem encara do exterior 13 o simbolismo empregado no
ponto em questão.
No entanto é preciso tomar cuidado, pois, na associação dos dois homens, é o
paralítico que tem o papel diretor e que sua própria posição, montado sobre os ombros do
cego, simboliza superioridade da contemplação sobre a ação, superioridade esta que o
próprio Confucius estava longe de contestar em princípio, como testemunha o relatório de sua
entrevista com Lao-Tse, tal qual foi conservado pelo historiador Sse-ma-tsien. E ele
acrescentava que ele não era “nascido no conhecimento”, isto é, que ele não tinha atingido o
conhecimento por excelência, o qual é aquele da ordem metafísica pura e que, como já
38
dissemos anteriormente, por sua própria natureza, pertence exclusivamente aos detentores
da verdadeira autoridade espiritual 14.
Se é um erro encarar o espiritual e o temporal como simplesmente correlativos, um
erro mais grave ainda consiste em pretender subordinar o espiritual ao temporal, quer dizer
em suma o conhecimento à ação. Este erro, que inverte completamente as relações normais,
corresponde à tendência que de uma maneira geral é a do ocidente moderno e ela só pode se
produzir num período de decadência intelectual muito avançado.
Atualmente, alguns vão mais longe nesse sentido e até há a negação do valor próprio
do conhecimento como tal e, assim, por consequência lógica, pois as duas coisas são
estreitamente solidárias, até a negação pura e simples de toda autoridade espiritual. Este
último grau de degenerescência que implica na dominação das castas mais inferiores é um
dos sinais característicos da fase final do kali-yuga.
Se considerarmos em particular a religião, já que esta é a forma especial que tem o
espiritual no mundo ocidental, a inversão das relações pode ser expressa da maneira
seguinte: ao invés de toda a forma social como sendo derivada da religião, como estando
suspensa de alguma maneira nela e tendo nela seu princípio, assim como era na
“cristandade” da idade média e assim como é no Islã, não queremos ver hoje em dia na
religião mais do que um dos elementos da ordem social, um elemento entre os outros e com
mesmo título que eles. E a submissão do espiritual ao temporal, ou mesmo a absorção deste
naquele, faz com que haja uma negação completa do espiritual, o que é uma consequência
inevitável.
Com efeito, encarar as coisas desta maneira acaba forçosamente “humanizando” a
questão, isto é, é a mesma coisa que tratá-la como um fato puramente humano de ordem
social ou sociológica para uns e de ordem psicológica para outros. Então, para falar verdade,
não é mais a religião, pois esta comporta essencialmente alguma coisa de “supra-humana” e,
faltando isso, não estamos mais no domínio espiritual, sendo na realidade o temporal e o
humano idênticos, seguindo o que já explicamos anteriormente. Esta aí uma verdadeira
negação implícita da religião e do espiritual, independente do que possam ser as aparências,
de tal maneira que a negação explicita e evidenciada será mais o reconhecimento de um fato
cumprido do que a instauração de um novo estado de coisas.
39
Assim, a inversão das relações prepara diretamente a supressão do termo superior e
da mesma maneira, ele implica, ao menos virtualmente, da mesma maneira que a revolta dos
Kshatriyas contra a autoridade dos Brâhmanes. Como iremos ver, prepara e chama, por
assim dizer, a exaltação das castas superiores. Aqueles que tiverem seguido nosso
enunciado até aqui compreenderão sem dificuldades que existe nesta aproximação alguma
coisa além de uma simples comparação.

1
Poderíamos também aplicar aqui, como fazíamos neste caso, a imagem do centro e da circunferência da
“roda das coisas”.
2
O serviço tem nele mesmo seu princípio de unidade superior à multiplicidade dos elementos que entram na
sua constituição. Não há nada como tal na coletividade que não seja exatamente outra coisa que a soma que a
compõe. A seguir, uma palavra como “organização”, quando aplicada em um ou outro, não pode ser a todo
rigor usada no mesmo sentido. Entretanto, podemos dizer que a presença de uma autoridade espiritual
introduz na sociedade um princípio superior aos indivíduos, já que esta autoridade, por sua natureza e
origem, é ela mesma “supra individual”. Mas isto supõe que a sociedade não é encarada somente sob seu
aspecto temporal e essa consideração, a única que possa fazer algo mais do que uma simples coletividade, no
sentido do que acabamos de mencionar, é precisamente daquelas que escapam por completo aos sociólogos
contemporâneos que pretendem identificar a sociedade para um ser vivo.
3
Ganêsha e Skanda são representados como irmãos, sendo os dois filhos de Shiva. É aí mais uma maneira de
expressar que os dois poderes, espiritual e temporal, procedem de um único princípio.
4
A Bhagavad-Gitâ é apenas um episódio do Mahâbhârata, que é um dos dois Itihâsas, o outro sendo o
Râmâyana. Esta característica do Bhagabad-Gitâ explica o uso feito de um simbolismo guerreiro,
comparável de certo ponto de vista à “guerra santa” no país dos mulçumanos. Tem, porém, uma maneira
“interior” de ler este livro dando-lhe seu sentido profundo. E ele toma então o nome de Atmâ-Gitâ.
5
O eixo e o pólo são, antes de tudo, símbolos do princípio único dos dois poderes, como explicamos em
nosso estudo sobre O rei do mundo. Mas estes símbolos também podem ser aplicados à autoridade
espiritual em relação ao poder temporal como fazemos aqui, pois, devido a seu atributo essencial de
conhecimento, efetivamente esta autoridade tem parte com a imutabilidade do princípio supremo, que é o
que estes símbolos expressam fundamentalmente e também, como dizíamos antes, ela representa diretamente
este princípio em relação ao mundo exterior.
6
Traduzimos como “influência espiritual” a palavra do Hebreu e Árabe barakha. O rito da “imposição das
mãos” é um dos modos mais habituais de transmissão da barakha e também da produção de certos efeitos de
cura.
7
A tradição mulçumana também ensina que a barakha pode ser perder. Por outro lado, na tradição extremo
oriente, igualmente o “mandato do céu” é revogável quando o soberano não preenche regularmente suas
funções com harmonia com a ordem cósmica.
8
Novamente, segundo um outro simbolismo, são as chaves das portas do “paraíso celeste” e do “paraíso
terrestre” como veremos através do texto de Dante que citaremos mais adiante. Mas pelo menos no momento
talvez não fosse oportuno dar certas precisões de alguma forma técnica sobre o “poder das chaves” nem
explicar diversas outras coisas que se relacionam mais ou menos diretamente com elas. Se aqui fazemos esta

40
alusão, é unicamente para que aqueles que têm algum conhecimento destas coisas vejam bem que aí se trata,
de nossa parte, de uma reserva voluntária a qual não é presa a nada.
9
No entanto, no que diz respeito à transmissão do poder real, existem alguns casos excepcionais em que, por
razões especiais, ela é conferida diretamente pólos representantes do poder supremo, fonte dos dois outros. É
assim que os reis Saulo e David foram consagrados pelo profeta Samuel e não pelo Grande Sacerdote. Isto
nos prova o que dissemos em outro lugar (O rei do Mundo, cap,4) a respeito da tripla característica do Cristo
como profeta sacerdote e rei, em relação com as funções respectivas dos três reis magos correspondendo elas
mesmas com a divisão dos “três mundos” da qual recordávamos em uma nota anterior. A função “profética”
corresponde propriamente ao “mundo celeste”, já que ela implica na inspiração direta.
10
A crise do mundo moderno, pág,44, segunda edição.
11
Há uma outra aplicação do mesmo conto, não mais social, mas cosmológico, que é encontrado nas
doutrinas da Índia onde ela pertence propriamente ao Sânkhya. Lá o paralítico é Purusha, como imutável e
“não agindo”, e o cego é Prakriti, cuja potência indiferenciada se identifica às trevas do caos. Efetivamente
são dois princípios complementares, como pólos da manifestação universal, e eles procedem de um princípio
superior único, que é o Ser puro, isto é, Ishwara, cuja designação ultrapassa o ponto de vista especial do
Sânkhya. Para se ligar esta interpretação a aquela que acabamos de indicar, é preciso observar que se pode
estabelecer uma correspondência analógica da contemplação ou do conhecimento com Purusha e da ação
com Prakriti. Naturalmente não podemos entrar aqui na explicação destes dois princípios e nós devemos
nos contentar em transferi-la ao que expusemos no Homem e seu devir segundo o Vedanta.
12
Esta divisão da tradição extremo-oriental em dois ramos distintos foi cumprida no séc.VI antes da era
cristã, época da qual já assinalamos a característica especial (A crise do Mundo Moderno, pags. 18-21) e
que encontraremos a seguir.
13
Dizemos do exterior porque, do ponto de vista interior, o “não agir” na realidade é a atividade suprema em
toda sua plenitude. Mas precisamente, devido a sua característica total e absoluta, esta atividade não se
mostra fora das atividades particulares determinadas e relativas.
14
Por aí vemos que não há nenhuma oposição de princípio entre o Taoísmo e o Confucionismo, que não são
e nem podem ser escolas rivais, já que cada uma tem seu domínio próprio e nitidamente distinto. Se, no
entanto, existirem lutas, às vezes violentas, como já assinalamos anteriormente, elas aconteceram devido à
incompreensão e ao exclusivismo dos Confucionistas, esquecidos do exemplo que o seu próprio mestre lhes
tinha dado.

41
CAPÍTULO SEXTO
A REVOLTA DOS KSHATRIYAS

Em quase todos os povos, em épocas diversas, e cada vez mais frequentemente, os


detentores do poder temporal, à medida que se aproximavam de nossa época, tentaram,
como já dissemos, tornar-se independentes de toda autoridade superior, pretendendo manter
seu próprio poder por si mesmos e separando completamente o espiritual do temporal, isto
quando não tentaram submeter aquele por este.
Nesta “insubordinação”, no sentido etimológico da palavra, existem graus diferentes,
entre os quais os mais acentuados são também os mais recentes, como já indicamos no
capítulo anterior. As coisas nunca foram tão longe neste sentido como na época moderna e,
sobretudo, não parece que anteriormente as concepções que a elas se correspondem sob
diversas analogias tenham sido alguma vez incorporadas à mentalidade geral como
aconteceu durante os últimos séculos.
A respeito disso, poderíamos retomar o que já dissemos antes sobre o
“individualismo”, considerado como característica do mundo moderno1: a função da
autoridade espiritual é a única que se relaciona a um domínio supra-individual desde que esta
autoridade é ignorada. É lógico que o individualismo aparece em seguida, ao menos como
tendência, se não como afirmação bem definida2, já que todas as outras funções sociais,
começando pela função “governamental”, que é a do poder temporal, são de ordem
puramente humana e que o individualismo é precisamente a redução da civilização inteira aos
únicos elementos humanos.
O mesmo acontece para o “naturalismo”, como indicávamos mais acima. Estando
ligada ao conhecimento metafísico e transcendente, a autoridade espiritual, somente ela, tem
uma característica verdadeiramente “sobrenatural”. Todo o resto é de ordem natural ou
“física”, assim como chamávamos atenção no que diz respeito ao gênero de conhecimento
que é principalmente numa civilização tradicional o atributo dos Kshatriyas.
Aliás, o individualismo e o naturalismo são estreitamente solidários, pois, no fundo,
eles são apenas dois aspectos que tomam uma única e mesma coisa, segundo como

42
encaramos em relação ao homem ou em relação ao mundo. E de uma maneira muito geral,
poderíamos constatar que a aparição de doutrinas “naturalistas” ou anti-metafísica se produz
quando o elemento que representa o poder temporal toma, em uma civilização, a
predominância sobre aquele que representa a autoridade espiritual3.
É o que aconteceu na Índia quando os Kshatriyas, não se contentando mais em
ocupar o segundo lugar em hierarquia das funções sociais, mesmo que este segundo lugar
comportasse o exercício de toda potência externa e visível, se revoltaram contra a autoridade
do Brâhmanes e quiserem se libertar de toda dependência em relação a eles.
Aqui, a história traz uma incontestável confirmação do que dizíamos acima de que o
poder temporal se arruína não reconhecendo sua subordinação à autoridade espiritual,
porque, como tudo o que pertence ao mundo da mudança, ele não pode se bastar a si mesmo
sendo a mudança inconcebível e contraditória sem um princípio imutável.
Toda concepção que nega o imutável, colocando o ser interino no “devir”, insere em
si mesma um elemento de contradição. Uma tal concepção é eminentemente anti-metafísica,
já que o domínio metafísico é precisamente aquele do imutável, do que está além da natureza
ou do “devir”. E ela também poderia ser chamada de “atemporal”, para indicar por ai que o
seu ponto de vista é exclusivamente o da sucessão. É preciso observar que o próprio
emprego desta palavra “temporal”, quando se aplica ao poder assim designado, tem por razão
de ser significar que este poder não se estende além do que está engajado na sucessão do
que está submetido à mudança.
As modernas teorias “evolucionistas”, sob suas diversas formas, não são os únicos
exemplos deste erro que consiste em colocar toda a realidade no “devir”, mesmo que elas
tenham trazido uma nuance especial com a introdução da recente ideia de “progresso”.
Teorias deste gênero existiram desde a antiguidade, especialmente na Grécia. Esse foi o caso
também de certas formas do budismo4, as quais devemos considerar como sendo formas
degeneradas ou desviadas, mesmo que aqui no Ocidente eles tenham o costume de
considerá-las como representando o “Budismo Original”.
Na realidade, quanto mais estudamos de perto o que é possível saber a respeito
deste, mais ele parece ser diferente da ideia que fazem dele geralmente os orientalistas. Em
especial, parece bem estabelecido que de maneira alguma ele comportava a negação do
43
Atmâ ou do “si mesmo”, isto no princípio permanente e imutável do ser, que é precisamente o
que temos em vista aqui.
Que esta negação tenha sido introduzida posteriormente em certas escolas do
Budismo Indiano pelos Kshatriyas revoltados ou com sua inspiração ou que eles tenham
apenas desejado utilizá-la para seus fins próprios, não procuraremos decidir, pois isso pouco
importa e as consequências são as mesmas em todos os casos 5. Pelo que expusemos,
podemos ver o laço direto que existe entre a negação de todo princípio imutável e a negação
da autoridade espiritual, entre a redução de toda realidade ao “devir” e a afirmação da
supremacia dos Kshatriyas. E ainda preciso acrescentar que, submetendo o ser inteiro à
mudança, reduzimo-lo ao indivíduo, pois o que permite ultrapassar a individualidade, o que é
transcendente em relação a ela, só pode ser o princípio imutável do ser. Vemos, então,
nitidamente esta solidariedade do naturalismo e do individualismo que apontávamos há
pouco6.
Mas a revolta ultrapassou sua meta e os Kshatriyas não conseguiram pará-la no
ponto preciso em que eles poderiam ter tirado vantagem dela e foram as castas inferiores
que, na realidade, aproveitaram. Isto se compreende facilmente, pois, uma vez que se engaja
num tal declive, é impossível não descer até o fim.
A negação do Atmâ não foi a única que introduziram no Budismo desviado. Também
havia a negação da distinção das castas, base de toda ordem tradicional e esta negação,
primeiro dirigida contra os Brâhmanes, não tardou a se voltar contra os próprios Kshatriyas 7.
Com efeito, desde quando a hierarquia é negada em seu próprio princípio, não se vê
como uma casta qualquer poderia manter sua supremacia sobre as outras nem em nome do
que ela pretenderia impô-la. Nestas condições, não importa o que pode avaliar que tenha
tantos direitos ao poder quanto qualquer outro por pouco que ela disponha materialmente da
força necessária para tomar posse e exercê-lo de fato. Essa é apenas uma simples questão
de força material. Não é manifestado que esta deve se encontrar no mais alto grau nos
elementos que são ao mesmo tempo mais numerosos e, por suas funções, os mais afastados
de toda preocupação tocando mesmo indiretamente a espiritualidade?
Pela negação das castas, a porta ficou aberta a todas as usurpações. Assim, os
homens da última casta, os shúdras, podiam também se prevalecer disto. Com efeito, via-se
44
que, alguns entre eles, se apoderarem da realeza e, por uma espécie de “choque de retorno”,
que estava na lógica dos acontecimentos, despossuirem os Kshatriyas do poder que lhes
tinha pertencido no início legitimamente, mas do qual eles próprios tinham destruído a
legitimidade8.

1
A crise do mundo moderno, cap. 5.
2
Esta afirmação, independente da forma que ela tenha , é apenas uma negação mais ou menos dissimulada, a
negação de todo princípio superior à individualidade.
3
Um outro fato curioso, que não podemos deixar de apontar de passagem, é o papel importante que, com
frequência, tem um elemento feminino, ou representando simbolicamente como tal, nas doutrinas dos
Kshatriyas, as quais são doutrinas constituídas regularmente por seu uso ou concepções heterodoxas que eles
mesmos fazem prevalecer. Chama até atenção sobre isto que a existência de um sacerdócio feminino em
alguns povos aparece como que ligado ao domínio da casta guerreira. Este fato pode se explicar, de um lado,
pela preponderância de um elemento “rajásico” e emotivo nos Kshatriyas e, sobre tudo, de outro lado, pela
preponderância do feminino na ordem cósmica, com Prakriti ou a “Natureza primordial”, princípio do
“devir” e da mutação temporal.
4
É por isso que os budistas destas escolas receberam o epíteto de sarva-vâinashikas, isto é, “aqueles
sustentam a dissolubilidade de todas as coisas”. Em suma, esta dissolubilidade equivale ao “escoamento
universal” ensinado por certos filósofos físicos da Grécia.
5
Contra o que dissemos aqui sobre o Budismo original e um desvio anterior, pode-se invocar o fato de que
Shâkya-Muni ele mesmo por nascimento pertencia à casta dos Kshatriyas, pois este fato pode ser explicado
pelas condições especiais de uma certa época, condições resultantes das leis cíclicas. Podemos também
observar, a respeito disso, que Cristo também descendia da tribo real de Judá e não da tribo sacerdotal de
Levi.
6
Poderíamos notar ainda que as teorias do “devir” tem tendência natural para um certo “fenomenismo”, se
bem que no sentido estrito da palavra ele seja apenas uma coisa moderna.
7
Não podemos dizer que o próprio Buda tenha negado a distinção das castas, mas apenas que ele não fez
conta delas, pois o que ele tinha realmente em vista era a constituição de uma ordem monástica, no interior
da qual esta distinção não se aplicava. Quando pretenderam estender esta ausência para a sociedade externa
aí apenas ela se transformou em uma verdadeira negação.
8
Um governo no qual homens de casta inferior atribuem a si mesmos o título e funções da realeza é o que os
antigos gregos chamavam de “tirania”. O sentido primitivo desta palavra, como se vê, é bem distanciado
daquele tomado pelos modernos que o empregavam mais como um sinônimo de “despotismo”.

45
CAPÍTULO SÉTIMO
AS USURPAÇÕES DA REALEZA E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Às vezes dizemos que a história se repete, o que é falso, pois não pode haver no
universo dois seres nem dois elementos que sejam rigorosamente semelhantes entre si sob
todos os aspectos. Se eles o fossem eles não seriam mais dois, mas, coincidindo em tudo,
eles se confundiriam pura e simplesmente de maneira que só seria um e mesmo ser ou um e
mesmo acontecimento1.
A repetição de possibilidades idênticas implica numa suposição contraditória, a de
uma limitação da possibilidade universal e total, como já explicamos antes, com todos os
desenvolvimentos necessários 2. É isto que permite recusar teorias como as da
“reencarnação” e do “retorno eterno”.
Mas uma outra opinião também falsa é aquela que no extremo oposto desta consiste
em pretender que os fatos históricos são inteiramente diferentes, que não há nada em comum
entre eles. A verdade é que existem sempre, ao mesmo tempo, diferenças sob certos
aspectos e semelhanças sob outros aspectos e, como existem tipos de seres na natureza,
igualmente existem neste domínio como em todos os outros tipos de fatos. Em outros termos,
em situações diversas, existem fatos que são manifestações ou expressões de uma mesma
lei.
É por isto que, às vezes, encontramos situações comparáveis e que, se
negligenciamos as diferenças para manter apenas os pontos de semelhança, podem dar a
ilusão de repetição. Na realidade, não existe nunca identidade entre períodos diferentes da
história, mas existem correspondência e analogias como entre os ciclos cósmicos ou entre os
estados múltiplos de um ser; e como diferentes seres podem passar por fases comparáveis,
sob a reserva das modalidades próprias da natureza de cada um deles, o mesmo acontece
para os povos e para as civilizações.
Assim como já apontávamos acima, apesar das grandes diferenças, existe uma
analogia incontestável e que talvez nunca observamos direito entre a organização da Índia e a
da idade média ocidental. Entre as castas de uma e as classes de outra há apenas uma

46
correspondência, não uma identidade. Contudo esta correspondência não é menos
importante, porque pode servir para mostrar com nitidez que todas as instituições,
apresentando uma característica verdadeiramente tradicional, repousam nos mesmos
fundamentos naturais e, em suma, se diferenciam por uma adaptação necessária às
circunstâncias diversas de tempo e de lugar.
É preciso observar que não pretendemos sugerir com isto a ideia de que desta época
a Europa tivesse feito o empréstimo direto da Índia, o que seria pouco provável. Dizemos
apenas que existem aí duas aplicações de um mesmo princípio e, no fundo, apenas importa
pelo menos no ponto de vista que situamos no presente.
Então reservamos a questão de origem comum, que certamente não poderíamos
encontrar sem procurar muito longe no passado. Esta questão estaria ligada à questão da
filiação das diferentes formas tradicionais a partir da grande tradição primordial e podemos
compreender sem dificuldade que isto aí é uma coisa extremamente complexa.
No entanto, se apontamos esta possibilidade é porque não pensamos que
semelhanças tão precisas possam ser explicadas de uma maneira inteiramente satisfatória
fora de uma transmissão regular e efetiva e, também, porque encontramos na idade média
muitos outros índices concordantes, que mostram claramente que ainda havia no Ocidente
um laço consciente, pelo menos para alguns, com o verdadeiro “centro do mundo”, única fonte
de todas as tradições ortodoxas, enquanto que por outro lado, não vemos mais nada assim na
época moderna.
Na Europa, também, encontramos desde a idade média o análogo da revolta dos
Kshatriyas. Nós o encontramos particularmente na França, onde, a partir de Felipe, o belo,
que deve ser considerado como um dos principais autores do desvio característico da época
moderna, a realeza trabalhou quase que constantemente para se tornarem independente da
autoridade espiritual, ao mesmo tempo em que conservava, por um estranho ilogismo, a
marca externa de sua dependência original. Os “legistas” de Felipe o belo, muito antes dos
“humanistas” da renascença, são os verdadeiros precursores do “laicismo” atual. E é nesta
época, isto é, no início do século XIV, que na realidade se deu a ruptura do mundo ocidental
com sua própria tradição.

47
Por razões que seriam longas para expor aqui e que já indicamos em outros
estudos3, pensamos que o ponto de partida desta ruptura foi nitidamente marcado pela
destruição da Ordem dos Templários. Apenas relembraremos que ela constituía como que um
laço entre o Oriente e o Ocidente e que, por sua dupla característica religiosa e guerreira, no
ocidente ela era uma espécie de traço da união entre o espiritual e o temporal, mesmo se esta
dupla característica tiver de ser interpretada como sinal de uma relação mais direta com a
fonte comum dos dois poderes 4.
Talvez seremos tentados a objetar que, se esta destruição foi desejada pelo rei da
França, ao menos ela foi realizada com o acordo do Papa. A verdade é que ela foi imposta a
ele, o que é totalmente diferente. E é assim que, invertendo os relacionamentos normais,
desde então o poder temporal começou a utilizar a autoridade espiritual para seus fins de
dominação política.
Sem dúvida, poderão ainda dizer que o fato de esta autoridade ter se deixado assim
subjugar prova que ela já não era mais o que deveria ter sido e que seus representantes já
não tinham mais plena consciência de sua característica transcendente. Isto é verdade e é o
que explica e justifica, nesta mesma época, as invectivas, às vezes violenta de Dante, contra
ela. Porém, apesar de tudo, em relação ao poder temporal, ela era a autoridade espiritual e
era por ela que ele detinha sua legitimidade.
Os representantes do poder temporal, como tal, não eram qualificados para
reconhecerem se a autoridade espiritual correspondente à forma tradicional que eles
censuram possui ou não a plenitude de sua realidade efetiva. Para isto, eles são até
incapazes por definição, já que sua competência é limitada a um domínio inferior. Qualquer
que seja esta autoridade, se eles não reconhecem sua subordinação a ela, por aí mesmo,
eles já comprometem sua legitimidade.
É preciso, então, tomar o devido cuidado de distinguir a questão do que pode ser uma
autoridade espiritual em si mesma, a um outro momento de sua existência, e a de suas
relações com o poder temporal. A segunda é independente da primeira, que só interessa
àqueles que exercem funções de ordem sacerdotal ou que seriam normalmente qualificados
para exercê-las. E mesmo se esta autoridade, por falha de seus representantes, tivesse
perdido inteiramente o “espírito” de sua doutrina, a única conservação do depósito da “escrita”
48
e das formas externas nas quais essa doutrina está contida de alguma maneira ainda
continuariam a lhe assegurar o poder necessário e suficiente para exercer validamente sua
supremacia sobre o temporal 5, pois esta supremacia está ligada à própria essência da
autoridade espiritual e lhe pertence enquanto ela subsistir regularmente tão diminuída quanto
possa estar em si mesma. A mínima parcela de espiritualidade ainda é incomparavelmente
superior a tudo o que a autoridade temporal possa censurar.
Disto resulta que, enquanto a autoridade pode e deve sempre controlar o poder
temporal, ela mesma não pode ser controlada por outra coisa, ao menos exteriormente6. Tão
chocante quanto tal afirmação possa parecer aos olhos da maioria de nossos
contemporâneos, não hesitamos em declarar que ela é a expressão de uma verdade
inegável7.
Mas voltemos a Felipe o belo, que nos fornece um exemplo particularmente típico
para o que nos propomos explicar aqui. Observa-se que Dante atribui como móvel de suas
ações a “cupidez”8, que é um vício, não de Kshatriyas, mas de Vaishya. Poderíamos dizer
que, desde que se põem em estado de revolta, os Kshatriyas decaem de alguma maneira e
perdem sua característica própria para tomarem a de uma casta inferior.
Poderíamos até acrescentar que esta decadência inevitavelmente acompanha a
perda de legitimidade. Se, por sua culpa, os Kshatriyas estão destituídos de seu direito normal
no exercício do poder temporal, é porque eles não são Kshatriyas verdadeiros, queremos
dizer que sua natureza não os torna mais aptos a preencherem o que era sua própria função.
Se o rei não se contenta mais em ser o primeiro dos Kshatriyas, isto é, o chefe da
nobreza, e de ter o papel “regulador” que a este título lhe pertence, ele perde o que faz a sua
razão de ser essencial e, ao mesmo tempo, ele se põe em oposição a esta nobreza, da qual
ele não era mais do que a emanação e expressão mais completa.
É assim que vemos a realeza, para “centralizar” e absorver em si os poderes que
pertenciam coletivamente à nobreza inteira, lutar contra ela e trabalhar tenazmente para a
destruição do feudo de onde, no entanto, ela surgiu. Ela só podia fazê-lo apoiando-se na terça
parte do estado, que corresponde aos Vaishyas. E é por isto que precisamente a partir de
Felipe, o belo, vemos os reis da França quase que constantemente rodeados de burgueses,
principalmente aqueles que, como Luis XI e Luis XIV, levaram mais adiante o trabalho de
49
“centralização” do qual a burguesia deveria recolher a seguir o benefício quando ela se
apoderou do poder pela revolução.
A “centralização” temporal geralmente é a marca de uma oposição em relação à
autoridade espiritual a qual os governos se esforçam para neutralizar a sua influência para
substituí-la. E é por isto que a forma feudal, que é aquela em que os Kshatriyas podem
exercer mais completamente suas funções normais, ao mesmo tempo, é aquela que parece
ser mais conveniente para a organização regular das civilizações tradicionais como era a da
idade média.
Do ponto de vista político, a época moderna, que é a época de ruptura com a
tradição, poderia ser caracterizada pela substituição do sistema feudal pelo nacional. E é no
século XIV que as “nacionalidades” começaram a se constituir através deste trabalho de
“centralização” do qual falamos.
Temos razão em dizer que a formação da “nação francesa”, em particular, foi a obra
dos reis, mas estes, sem o saber, preparavam com ela sua própria ruína9 e se a França foi o
primeiro país da Europa onde a realeza foi abolida é porque é nela que se deu o início da
“nacionalização”.
Basta lembrarmos o quanto a Revolução foi cruelmente “nacionalista” e
“centralizadora” e, também, qual uso revolucionário foi feito durante o século XIX do chamado
“princípio das nacionalidades”10. Há então uma estranha contradição no “nacionalismo” que
hoje em dia pregam certos adversários declarados da revolução e de sua obra.
Mas, no momento, o ponto mais interessante para nós é o seguinte: a formação das
“nacionalidades” é essencialmente um dos episódios da luta do temporal contra o espiritual e,
se quisermos ir ao fundo no assunto, podemos dizer que é precisamente por isto que ela foi
fatal para a realeza, que, enquanto parecia realizar todas as suas ambições, estava
provocando sua perda11.
Existe uma espécie de unificação política, logo, totalmente externa que implica no
desconhecimento ou na negação dos princípios espirituais, os único que podem fazer a
unidade verdadeira e profunda de uma civilização e as “nacionalidades” são um exemplo
disto. Na idade média, para todo o Ocidente, havia uma unidade real, fundada em bases de
ordem propriamente tradicional, que era a da “cristandade”. Quando foram formadas estas
50
unidades secundárias de ordem puramente política, isto é, temporal e não mais espiritual, que
são as nações, esta grande unidade do Ocidente foi irremediavelmente partida e a existência
efetiva da “cristandade” chegou ao fim.
As nações, que são apenas os fragmentos dispersos da antiga “cristandade”, as
falsas unidades que substituíram a unidade verdadeira pela vontade do domínio do poder
temporal, pelas próprias condições de sua constituição, só podiam sobreviver opondo-se
umas às outras, lutando sem cessar entre si, em todos os planos 12. O espírito é a unidade, a
matéria é multiplicidade e divisão e, quanto mais nos afastamos da espiritualidade, mais os
antagonismos se acentuam e se amplificam.
Ninguém poderá contestar que as guerras feudais, estreitamente localizadas e
submetidas a um regulamento restrito emanado da autoridade espiritual, não eram nada em
comparação com as guerras nacionais, que, com a Revolução e o Império, tiveram como
conseqüência as “nações armadas”13 e que, hoje em dia, vemos tomar novos
desenvolvimentos pouco tranqüilizadores para o futuro.
Por outro lado, a constituição das “nacionalidades” tornou possíveis verdadeiras
tentativas de sujeição do espiritual ao temporal, implicando numa inversão completa das
relações hierárquicas entre os dois poderes. Esta sujeição encontrou sua expressão mais
definida na ideia de uma igreja “nacional”, isto é, subordinada ao Estado e encerrada nos
limites deste. E o próprio termo de “religião do Estado”, sob sua aparência voluntariamente
equivocada, no fundo não significa mais do que isto: é a religião cujo governo temporal usa
como um meio de assegurar seu domínio. É a religião reduzida a ser apenas um simples fator
de ordem social 14.
Esta ideia de igreja “nacional” apareceu nos países protestantes, ou melhor dizendo,
talvez seja para melhor realizá-la que o protestantismo foi provocado, pois parece que,
politicamente, Lutero tenha sido apenas um instrumento das ambições de certos príncipes e é
muito provável que, sem isto, mesmo se sua revolta contra Roma tivesse acontecido, as
consequências teriam sido tão negligenciáveis quanto muitas outras divergências individuais
que só foram incidentes sem consequência alguma.
A reforma é o sintoma mais aparente da ruptura da unidade espiritual da
“Cristandade”, mas não foi ela que, segundo a expressão de José de Maistre, começou a
51
“rasgar o vestido sem costura”. Esta ruptura já era um fato acontecido havia muito tempo.
Como dissemos, seu início se deu dois séculos antes e poderíamos fazer uma observação
análoga a respeito da renascença, que, por uma coincidência nada acidental, ocorreu quase
que ao mesmo tempo em que a Reforma e apenas quando os conhecimentos tradicionais da
idade média estavam quase inteiramente perdidos.
O protestantismo foi uma consequência ao invés de ser um ponto de partida. Mas se
ele foi principalmente obra de príncipes e de soberanos que o utilizaram para fins políticos
inicialmente, suas tendências individualistas não deviam demorar a se voltarem contra eles
mesmos, pois elas preparavam diretamente a via para as concepções democráticas e
igualitárias características da época atual15.
Para voltarmos ao assunto da sujeição da religião ao estado na forma que acabamos
de indicar, seria um erro acreditar que não encontraríamos outros exemplos fora do
protestantismo16. Se o desacordo anglicano de Henrique VIII é o mais completo êxito na
constituição de uma igreja “nacional”, o próprio galicanismo, tal como Luis XIV pôde conceber,
não era outra coisa. Se esta tentativa tivesse dado certo, a ligação com Roma teria, sem
dúvidas, subsistido em teoria, mas praticamente seus efeitos teriam sido completamente
anulados pela intervenção do poder político e a situação não teria sido sensivelmente
diferente na França do que poderia ser na Inglaterra se as tendências da fração “ritualista” da
igreja anglicana chegassem a prevalecer definitivamente17.
Sob suas diferentes formas, o protestantismo levou as coisas ao extremo. Mas não foi
apenas nos países onde se estabeleceu que a realeza destruiu seu próprio “direito divino”,
quer dizer, o único fundamento real de sua legitimidade e ao mesmo tempo a única garantia
de sua estabilidade. Segundo o que foi exposto, sem chegar a uma ruptura tão evidente com
a autoridade espiritual e com mais rodeios, a realeza francesa agiu exatamente da mesma
maneira e até parece que ela foi a primeira a se engajar nesta via. Os seus adeptos, aqueles
que lhe dão as glórias, não parecem dar conta das consequências que esta atitude teve e que
não poderiam ser evitadas.
A verdade é que, por aí, é a realeza que, inconscientemente, abriu o caminho para a
revolução e que esta, ao destruí-la, só foi mais além no sentido da desordem onde ela mesma
se engajou.
52
De fato, no mundo ocidental, em todo lugar, a burguesia chegou a se apoderar do
poder, do qual a realeza tinha permitido participar indevidamente no início. Pouco importa,
aliás, que ela tenha então abolido a realeza como na França ou que ela a tivesse deixado
subsistir nominalmente como na Inglaterra ou em outro lugar. O resultado é o mesmo em
todos os casos e é o triunfo da “economia”, sua supremacia proclamada abertamente.
Mas, à medida que nos afundamos no materialismo, a instabilidade aumenta, as
mudanças acontecem cada vez mais rapidamente. Assim, o reino da burguesia só poderá ter
uma curta duração, em comparação com a do regime ao qual ela sucedeu. E como a
usurpação atrai usurpação, após os Vaishyas, agora são os Shûdras que, por sua vez,
aspiram ao domínio. É exatamente isto o significado do bolchevismo.
Sobre isto, não queremos formular nenhuma previsão, mas não seria difícil, segundo
o que precede, prever certas consequências para o futuro. Se os elementos sociais mais
inferiores chegarem ao poder, de uma maneira ou de outra, seu reino será certamente o mais
breve de todos e ele marcará a última fase de um certo ciclo histórico, já que não será
possível descer ainda mais. Se até tal evento não tiver um alcance mais geral, será de supor
que, ao menos para o ocidente, ele será o fim do período moderno.
Se algum historiador se apoiar nos dados que indicamos, sem dúvida, ele poderá
desenvolver estas considerações quase indefinidamente, procurando fatos mais particulares
que fariam sobressair ainda mais e de uma maneira precisa o que quisemos mostrar
principalmente aqui18: esta responsabilidade pouco conhecida do poder real na origem de
toda a desordem moderna, este último desvio nas relações do espiritual e do temporal que
inevitavelmente deveria desencadear todos os outros.
Quanto a nós, este não pode ser nosso papel. Quisemos apenas dar uns exemplos
destinados a esclarecer um relatório sintético. Devemos então nos ater às linhas gerais da
história e nos limitar às indicações essenciais que se desprendem da própria sequência dos
acontecimentos.

1
É isto que Leibniz chamou de “princípio dos indiscerníveis”. Como já tivemos oportunidade de indicar,
contrariamente aos filósofos modernos, Leibniz possuía alguns dados tradicionais, aliás, fragmentários e
insuficientes para permitirem superar certas limitações.
2
O erro espírita, 2ª parte, capítulo VI.

53
3
Ver, em especial, o Esoterismo de Dante.
4
Sobre este assunto, ver nosso estudo sobre São Bernardo. Nele assinalamos que as duas características do
monge e do cavaleiro se encontravam reunidas em São Bernardo, autor da regra da Ordem do Templo,
qualificada por ele de “milícia de Deus”. Aqui fica explicado o papel que ele teve de ter constantemente de
conciliador e de árbitro entre o poder religioso e o poder político.

5
Este caso é comparável ao de um homem que teria recebido como herança uma caixinha contendo um
tesouro e que, não podendo abri-la, ignoraria a verdadeira natureza desta. Nem por isto este homem deixaria
de ser o autêntico possuidor do tesouro. A perda da chave não lhe tiraria o poder da propriedade e, se certas
prerrogativas externas fossem ligadas a esta propriedade, ele conservaria sempre o direito de exercê-las.
Porém, por outro lado, é evidente que, nestas condições, ele não poderia aproveitar de seu tesouro.
6
Esta restrição diz respeito ao princípio supremo do espiritual e do temporal, que está além de todas as
formas particulares e das quais os representantes diretos evidentemente têm o direito de controle em um e
outro domínio. Mas a ação deste princípio supremo, no estado atual do mundo, não exerce visivelmente de
maneira que podemos dizer que toda autoridade espiritual aparece de fora como suprema, mesmo se ela é
somente o que chamamos mais acima de uma autoridade espiritual relativa e mesmo se, neste caso, ela
perdeu a chave da forma tradicional da qual está encarregada de assegurar a conservação.
7
O mesmo vale para a “infalibilidade pontifical”, cuja proclamação criou tantos protestos devido
simplesmente à incompreensão moderna, incompreensão esta que tornava sua afirmação explícita e solene
ainda mais indispensável. Um representante autêntico de uma doutrina é necessariamente infalível quando
ele fala em nome desta doutrina e é preciso se dar conta de que esta infalibilidade está assim presa, não à
individualidade, mas à função.
8
É por aí que não somente a destruição da Ordem do Templo se explica mas, também, mais visivelmente
ainda, o que chamamos de alteração das moedas. E estes dois fatos talvez estejam mais estreitamente ligados
do que poderíamos supor à primeira vista. Em todo caso, se os contemporâneos de Felipe, o belo, lhe fizeram
um crime com esta alteração, é preciso concluir disto que, mudando o título da moeda por sua própria
iniciativa, ele ultrapassa os direitos reconhecidos do poder real. Esta é uma indicação que deve ser lembrada,
pois esta questão da moeda tinha aspectos, na antiguidade e na idade média, totalmente ignorados pelas
pessoas modernas, as quais se prendem apenas ao simples ponto de vista “econômico”. É assim que, com os
Celtas, observamos que os símbolos representados nas moedas só podem ser explicados se os relacionamos
com conhecimentos doutrinais que eram próprios dos Druidas, o que implica uma intervenção direta deles
neste domínio. E este controle de autoridade espiritual deve ter se perpetuado até o final da idade média.
9
Na luta da realeza contra a nobreza feudal, podemos aplicar estritamente esta palavra do evangelho: “toda
casa dividida contra si mesma perecerá”.
10
Podemos observar, aqui, que este “princípio das nacionalidades” foi explorado principalmente contra o
Papado e contra a Áustria, que representavam o último resto da herança do Império-Santo.
11
Lá onde a realeza pôde se manter tornando-se “constitucional” ela não é mais que a sombra de si mesma e
só tem existência nominal e “representativa”, como expressa a fórmula conhecida segundo a qual “o rei reina
mas não governa”, o que não passa de uma caricatura do que foi a antiga realeza.

12
É por isto que a ideia de uma “sociedade das nações” só pode ser uma utopia sem alcance real. A forma
nacional repugna essencialmente o reconhecimento de uma unidade qualquer superior à sua. Aliás, nas
concepções que fazem atualmente, tratar-se-ia evidentemente apenas de uma unidade de ordem
exclusivamente temporal, logo, ainda mais ineficiente e que só poderia ser uma paródia da verdadeira
unidade.

54
13
Como já apontamos em outro lugar (A crise do Mundo Moderno, pags. 104-105) obrigando todos os
homens indistintamente a tomarem parte das guerras modernas, desconhecendo totalmente a distinção
essencial das funções sociais. É isto uma consequência lógica do sistema da “igualdade”.
14
Esta concepção pode, aliás, se realizar sob outras formas além das daquela de uma igreja “nacional”
propriamente dita. Temos um dos exemplos mais chocantes em um regime como o da “Concordata de
Napoleão”, transformando os padres em funcionários do Estado, o que é uma verdadeira monstruosidade.
15
Podemos notar que o Protestantismo suprime o clero e que, se ele pretende manter a autoridade da bíblia,
ele a arruína pelo “livre exame”.
16
Aqui não consideramos o caso da Rússia, que é um pouco especial e deveria dar lugar a distinções que
complicariam inutilmente nosso relatório. É verdade que aqui, também, encontramos a “religião do estado”
no sentido que definimos, mas as ordens monásticas puderam ao menos, numa certa medida, escapar à
subordinação do espiritual ao temporal, enquanto que, nos países protestantes, sua abolição tornou esta
subordinação tão completa quanto possível.
17
Observaremos que, entre as duas denominações de “anglicanismo” e de “galicanismo”, existe uma estreita
semelhança que corresponde à realidade.
18
Poderia ser interessante, por exemplo, estudar, especialmente neste ponto de vista, o papel de Richelieu,
que se esforçou em destruir os últimos vestígios dos feudos e que, combatendo os protestantes internamente,
aliou-se a eles externamente contra o que ainda poderia subsistir do Império-Santo, isto é, contra o que
sobrevivia da antiga Cristandade.

55
CAPÍTULO OITAVO
PARAÍSO TERRESTRE E PARAÍSO CELESTE

A constituição política da “Cristandade” medieval, como já dissemos, era


essencialmente feudal. Ela tinha sua coroação verdadeiramente suprema na ordem temporal
que era do imperador. Este devendo ser, em relação aos reis, o que eles, por sua vez, eram
em relação aos seus vassalos.
É preciso dizer que esta concepção do Império-Santo ficou um pouco teórica e nunca
foi plenamente realizada, sem dúvida por culpa dos próprios imperadores que, perdidos diante
da extensão do poder conferido a eles, foram os primeiros a contestar sua subordinação em
relação à autoridade espiritual, da qual, no entanto, eles recebiam seu poder, assim como os
outros soberanos (até mais diretamente ainda) 1.
Foi o que ficou inconveniente chamar de discussão entre o Sacerdócio e o Império,
cujas vicissitudes diversas são bem conhecidas e não precisam ser recordadas aqui, ainda
mais que o detalhe destes fatos importa pouco para o que propomos. O que é mais
interessante é compreender o que deve ter sido realmente o imperador e, também, o que
pode ter iniciado o erro que lhe fez tomar sua supremacia relativa por uma supremacia
absoluta. A distinção do Papado e do Império, de alguma maneira, vinha de uma divisão dos
poderes que, na antiga Roma, estavam reunidos numa só pessoa, já que então o Imperador
era, ao mesmo tempo, Pontifex Maximus2. Não temos que tentar explicar, neste caso
especial, esta reunião do espiritual e do temporal e correríamos o risco de nos engajarmos em
considerações muito complexas 3.
Seja o que for, o Papa e o Imperador não eram precisamente “as duas metades de
Deus” como escreveu Victor Hugo, mas, mais exatamente, as duas metades deste Cristo-
Janus, que algumas imagens nos mostram tendo numa mão uma chave e na outra um cetro,
emblemas respectivos dos dois poderes sacerdotal e real unidos nele como em seu princípio
comum4.
Esta assimilação simbólica do Cristo a Janus como princípio supremo dos dois
poderes é a marca muito nítida de uma certa continuidade tradicional, frequentemente

56
ignorada ou negada de partido tomado entre a Roma antiga e a Roma cristã e não devemos
nos esquecer que, na idade média, o Império era “romano” assim como o Papado.
Mas esta mesma imagem também nos dá a razão do erro que acabamos de apontar
e que deveria ser fatal ao império. Em resumo, este erro consiste em ver como equivalentes
as duas metades de Janus que o são em aparência, mas que, quando representa o espiritual
e o temporal, na realidade não o são. Em outros termos, é novamente o erro que consiste em
tomar a relação dos dois poderes por uma relação de coordenação, enquanto, na verdade, é
uma relação de subordinação, porque, desde que eles são separados, enquanto que um
procede diretamente do princípio supremo, o outro só procede dele indiretamente.
No final de seu tratado De Monarchia, Dante define de uma maneira nítida as
atribuições respectivas do Papa e do Imperador; eis esta passagem importante: “A inefável
providência de Deus propôs ao homem dois fins: a beatitude desta vida, que consiste num
exercício da própria virtude e que é representada pelo paraíso terrestre, e a beatitude da vida
eterna, que consiste em gozar da vista de Deus, à qual a virtude humana não pode se erguer
se não for ajudada pela luz divina e que é representada pelo paraíso celeste.
A estas duas beatitudes, como para conclusões diversas, é preciso chegar por meios
diferentes, pois, para a primeira, chegamos através dos ensinamentos filosóficos se os
seguirmos agindo segundo as virtudes morais e intelectuais; à segunda, chegamos pelos
ensinamentos espirituais, que ultrapassam a razão humana se os seguirmos agindo segundo
as virtudes teologais, a Fé, a Esperança e a Caridade.
Estas conclusões e meios (se bem que nos sejam ensinados uns pela razão humana
que nos é ensinada por completo pelos filósofos, as outras pelo Espírito-Santo que nos
revelou a verdade sobrenatural necessária para nós pelos profetas e escrivães sagrados, pelo
Filho de Deus Jesus Cristo, o eterno espírito, e por seus discípulos) a cobiça humana os
fariam abandonar se os homens semelhantes a cavalos, que vagabundam em sua
bestialidade, não fossem retidos pelo freio em sua estrada.
É por isto que o homem precisou de uma dupla direção segundo sua dupla finalidade,
isto é, do Soberano Pontífice que, segundo a revelação, conduziria o gênero humano à vida
eterna e do Imperador, que, segundo os ensinamentos filosóficos, o conduziria à felicidade
temporal. E como a este porto ninguém poderia chegar ou chegariam pouquíssimas pessoas
57
e ao preço das piores dificuldades, se o gênero humano não pudesse repousar livremente na
tranqüilidade da paz, após terem sidos acalmadas as ondas insinuantes da cobiça, é a esta
meta que deve se dirigir principalmente aquele que rege a terra, o príncipe romano: que nesta
pequena habitação dos mortais vivamos livremente em paz 5.
Para ser perfeitamente compreendido, este texto precisa de algumas explicações,
pois não nos devemos deixar enganar. Sob uma linguagem de aparência puramente
teológica, ele guarda verdades de uma ordem muito mais profunda, o que é conforme os
costumes de seu autor e das organizações iniciáticas às quais ele é ligado6. Por outro lado, é
espantoso que aquele que escreveu estas linhas tenha sido apresentado algumas vezes
como um inimigo do Papado. Como dizíamos mais acima, sem dúvida ele denunciou o que
ele tinha constatado de insuficiente e imperfeito no estado do Papado de sua época e, em
particular, como uma de suas consequências, o recurso muito freqüente de meios
propriamente temporais, logo pouco convenientes à ação de uma autoridade espiritual. Mas
ele soube evitar culpar a própria instituição pelos defeitos dos homens que a representavam
passageiramente, o que nem sempre o individualismo moderno sabe fazer 7.
Se voltarmos ao que já explicamos, veremos sem dificuldades que a distinção que
Dante faz entre as duas finalidades do homem corresponde exatamente à dos “pequenos
mistérios” e dos “grandes mistérios” e, também, consequentemente, à distinção da “iniciação
real” e da “iniciação sacerdotal”. O Imperador preside os “pequenos mistérios”, os quais
tratam do “Paraíso Terrestre”, isto é, a realização da perfeição do estado humano8. O
Soberano Pontífice preside os “grandes mistérios”, que tratam do “Paraíso celeste”, que quer
dizer a realização dos estados supra-humanos, assim ligados ao estado humano pela função
“pontifical”, compreendida no seu sentido estritamente etimológico9.
O homem, por si próprio, evidentemente, só pode atingir a primeira destas duas
finalidades, que pode ser chamada de “natural”, enquanto que a segunda é propriamente
sobrenatural, já que ela está além de mundo manifestado. Esta distinção é então a de ordem
“física” e de ordem “metafísica”.
Aqui aparece tão claramente quanto possível a concordância de todas as tradições
sejam elas do Oriente ou do Ocidente, definindo como fizemos as respectivas atribuições dos
Kshatriyas e dos Brâhmanes. Estávamos bem determinados a ver não apenas alguma coisa
58
aplicável a uma certa forma de civilização como a da Índia, já que encontramos, de uma
maneira rigorosamente idêntica no que foi, antes do desvio moderno, a civilização tradicional
no mundo ocidental.
Dante aponta, então, como funções do Imperador e do Papa, conduzir a humanidade
respectivamente ao “Paraíso terrestre” e ao “Paraíso celeste”. A primeira destas duas funções
se cumpre “segundo a filosofia” e a segunda “segundo a revelação”. Mas estes termos são do
tipo que precisa ser explicado cuidadosamente.
Com efeito, a “filosofia” não poderia ser compreendida aqui em seu sentido ordinário
e “profano”, pois se assim fosse ela seria manifestamente incapaz de exercer o papel que lhe
é destinado. Para compreender do que se trata realmente, é preciso restituir à palavra
“filosofia” seu significado primitivo ou o mesmo que ele tinha para os Pitagóricos que foram os
primeiros a usá-lo.
Como já indicamos em outro lugar10, esta palavra, significando etimologicamente
“amor pela sabedoria”, primeiro designa uma disposição necessária para se chegar a ela e
também pode designar, por uma extensão natural, a procura que, nascendo desta própria
disposição, deve conduzir ao verdadeiro conhecimento para a sabedoria, como o “Paraíso
Terrestre” é uma etapa na via que leva ao “Paraíso celeste”.
Esta “filosofia”, assim compreendida, é o que poderíamos chamar se quiséssemos de
“sabedoria humana”, porque ela abrange o conjunto de todos os conhecimentos que podem
ser atingidos pelas únicas faculdades do indivíduo humano, faculdades que Dante reúne por
síntese, a razão porque é através desta que se define propriamente o homem como tal. Mas
esta “sabedoria humana”, precisamente por ser apenas humana, não é a verdadeira
sabedoria, a qual se identifica com o conhecimento metafísico.
Este último é essencialmente supra-racional, logo, também, supra-humano. É da
mesma maneira que a partir do “Paraíso terrestre” a via do “Paraíso celeste” deixa a terra
para “salire alle stelle”, como diz Dante11. Isto é, para se elevar aos estados superiores, os
quais representam as esferas planetárias e estelares na linguagem da astrologia e as
hierarquias angélicas na linguagem da teologia, e o mesmo para o conhecimento de tudo que
ultrapassa o estado humano, as faculdades individuais se tornam impotentes e há a
necessidade de outros meios. É aqui que intervém “A revelação” que é uma comunicação
59
direta dos estados superiores, comunicação que, como indicávamos há pouco, é efetivamente
estabelecida pelo “pontificado”.
A possibilidade desta “Revelação” repousa na existência de faculdades
transcendentes em relação ao indivíduo. Qualquer que for o nome que lhe dermos, que
falemos, por exemplo, de “intuição intelectual” ou de “inspiração”, no fundo é sempre a mesma
coisa. O primeiro destes dois termos poderá sugerir um sentido dos estados “angélicos” que,
com efeito, são idênticos aos estados supra-individuais do ser e o segundo evocara
principalmente esta ação do Espírito Santo, à qual Dante faz expressamente alusão12.
Poderemos dizer também que o que é “inspiração” interiormente para aquele que a recebe
diretamente, se torna “Revelação” exteriormente para a coletividade humana para a qual ela é
transmitida, na medida em que uma tal transmissão é possível, isto é, na medida do que é
possível de ser expresso.
Naturalmente resumimos muito sumariamente e de maneira muito simplificada um
conjunto de considerações que, se quiséssemos desenvolvê-las mais completamente, seriam
muito complexas e se afastariam demais de nosso assunto. O que acabamos de dizer, em
todo caso, é suficiente para a meta que nos propusemos a alcançar.
Nesta acepção, a “Revelação” e a “Filosofia” correspondem respectivamente às duas
partes que, na doutrina Hindu, são designadas pelo nome de Shruti e de Smriti13. Deve-se
observar que aí dizemos que existe correspondência e não identidade, a diferença das formas
tradicionais implicando numa diferença real no ponto de vista nos quais as coisas são
encaradas.
A Shruti, que compreende todos os textos védicos, é o fruto da inspiração direta e a
Smriti é o conjunto das consequências e das aplicações diversas que são extraídas dela por
reflexão. De certo ponto de vista, sua relação é a do conhecimento intuitivo e do
conhecimento discursivo e, com efeito, destes dois modos de conhecimento, o primeiro é
supra-humano, enquanto que o segundo é propriamente humano. Da mesma maneira que o
domínio da “Revelação” é atribuído ao Papado e o da filosofia ao império, a Shruti diz respeito
mais diretamente aos Brâhmanes, cujo estudo do Veda é a principal ocupação e a Smriti, que
abrange o Dharma-Shâstra ou “Livro da Lei”14. Logo, a aplicação social da doutrina diz

60
respeito mais aos Kshatriyas, aos quais é mais especialmente destinada a maioria dos livros
que usam esta expressão.
A Shruti é o princípio do qual deriva todo o resto da doutrina e seu conhecimento,
implicando aquele dos estados superiores, que constituem os “grandes mistérios”. O
conhecimento da Smriti, isto é, das aplicações ao “mundo do homem”, compreendendo aí o
estado humano integral considerado em toda extensão de suas possibilidades, constitui os
“pequenos mistérios”15.
A Shruti é a luz direta que, como a inteligência pura a qual aqui é, ao mesmo tempo,
a pura espiritualidade, corresponde ao sol e a Smriti é a luz refletida, que corresponde como
a memória da qual ela traz o nome e que é a faculdade temporal por definição,
correspondendo, portanto, à lua16. E é por isto que a chave dos “grandes mistérios” é de ouro
e a dos “pequenos mistérios” é de prata, pois na ordem alquímica são equivalentes exatos do
que são o sol e a lua na ordem astrológica. Estas duas chaves, que na Roma antiga eram as
de Janus, eram os atributos do Soberano Pontificado, ao qual a função de “hierofante” ou
“mestre dos mistérios” era essencialmente ligada. Com o próprio título de Pontifex Maximus,
elas permaneceram entre os principais emblemas do Papado e, aliás, as palavras evangélicas
relativas ao “poder das chaves”, assim como acontece igualmente em muitos outros pontos,
em suma, só fazem confirmar plenamente a tradição primordial.
Podemos agora compreender mais exatamente ainda, pelo que já explicamos
anteriormente, o porquê de estas duas chaves serem, ao mesmo tempo, as do poder
espiritual e a do poder temporal. Para expressar a relação destes dois poderes, poderíamos
dizer que o Papa deve guardar para si a chave de ouro do “Paraíso Celeste” e confiar ao
Imperador a chave de prata do “Paraíso Terrestre”. E vimos há pouco que no simbolismo esta
segunda chave, às vezes, era substituída pelo cetro, insígnia mais especial da realeza17.
No que precede, há um ponto que devemos chamar atenção para evitar até a
aparência de uma contradição. Por outro lado, dissemos que o conhecimento metafísico, que
é a verdadeira sabedoria, é o princípio do qual derivam todos os outros conhecimentos a título
de aplicação a ordens contingentes e, por outro lado, vimos que a “Filosofia”, no sentido
original onde ela designa o conjunto destes conhecimentos contingentes, deve ser
considerada como uma preparação à sabedoria. Como estas duas coisas podem se conciliar?
61
Em outro lugar, já explicamos sobre esta questão, a propósito do duplo papel das
“ciências tradicionais”18: Existem aqui dois pontos de vista, um descendente e outro
ascendente. O primeiro corresponde a um desenvolvimento do conhecimento partindo dos
princípios para chegar a aplicações cada vez mais distanciadas destes e o segundo a uma
aquisição gradual deste mesmo conhecimento procedendo do inferior ao superior ou, ainda,
se quisermos, do exterior ao interior.
Este segundo ponto de vista corresponde, então, à via segundo a qual os homens
podem ser conduzidos ao conhecimento de uma maneira gradual e proporcional a suas
capacidades intelectuais. E é assim que eles são conduzidos primeiramente ao “Paraíso
terrestre” e, em seguida, ao “Paraíso celeste”. Mas esta ordem de ensino ou de comunicação
da “ciência sagrada” é inversa de sua ordem de constituição hierárquica. Com efeito, todo
conhecimento que tem realmente a característica de “ciência sagrada”, de qualquer ordem
que for, só pode ser constituído com validade através daqueles que, antes de tudo, possuem
o conhecimento principial e que, por aí, são os únicos qualificados para realizar em
conformidade com a ortodoxia tradicional mais rigorosa todas as adaptações necessárias
pelas circunstâncias de tempo de lugar. É por isto que, quando são feitas regularmente, estas
adaptações são necessariamente obras do sacerdócio, ao qual, por definição, pertence o
conhecimento principial. E é por isso que apenas o sacerdócio pode transmitir legitimamente a
“iniciação real” pela comunicação dos conhecimentos que a constituem.
Através disso, podemos nos dar conta de que as duas chaves, consideradas como
sendo as do conhecimento da ordem “metafísica” e da ordem “física”, realmente pertencem
uma e outra à autoridade sacerdotal e que, apenas por delegação, é que a segunda é
confiada aos possuidores do poder real.
Quando o conhecimento “físico” é separado de seu princípio transcendente, ele perde
sua principal razão de ser e não demora para se tornar heterodoxo. Aí, então, é que
aparecem, como já explicamos, as doutrinas “naturalistas”, resultado da adulteração das
“ciências tradicionais” pelos Kshatriyas revoltados. Isso já é um encaminhamento para a
“ciência profana”, a qual será a obra própria das castas inferiores e o sinal de seu domínio na
ordem intelectual, se toda via em tal caso ainda podemos falar de intelectualidade.

62
Como na ordem política, a revolta dos Kshatriyas prepara então a via para a dos
Vaishyas e dos Shûdras. E é assim que, de etapa em etapa, chegamos no mais baixo
utilitarismo. É exatamente o que podemos constatar em nossa época, na qual o mundo
ocidental chegou quase ao último grau desta descida que, assim como a queda de corpos
pesados, vai se acelerando sem cessar.
Ainda resta, no texto do De Monarchia, um ponto que não elucidamos e que não
deixa de ser digno de observação: é a alusão à navegação que contém a última frase,
seguindo um simbolismo que Dante usa frequentemente19.
Entre os problemas que outrora foram de Janus, o Papado não conservou apenas as
chaves, mas também o barco, atribuído igualmente a São Pedro e tornado a imagem da
Igreja20: sua característica romana exigia esta transmissão de símbolos sem a qual ela teria
apenas representado um simples fato geográfico sem alcance real21.
Aqueles que veriam nisto apenas “empréstimos” e que sentiriam a tentação de acusar
o Catolicismo mostrariam nisto uma mentalidade totalmente “profana”. De nosso lado, ao
contrário, vemos nisto uma prova desta regularidade tradicional sem a qual nenhuma doutrina
tradicional poderia ser válida e que, voltando à origem, se aproxima até chegar à grande
tradição primordial. E temos certeza de que entre aqueles que compreendem o sentido
profundo destes símbolos, ninguém poderá contradizer.
A imagem da navegação, com frequência, foi empregada na antiguidade Greco-latina:
podemos citar, como exemplos, a expedição dos Argonautas à conquista da “Tosquia de
ouro”22, as viagens de Ulisses. Encontramo-la também em Virgílio e em Ovide.
Igualmente na Índia, esta imagem, às vezes, se encontra e já tivemos a ocasião de
citar, em outro lugar, uma frase que contém expressões estranhamente semelhantes às de
Dante: “O Yogi, diz Shankarâchârya, tendo atravessado o mar das paixões, está unido com a
tranqüilidade e possui o “si mesmo” na plenitude23.
O “Mar das paixões” evidentemente é a mesma coisa que as “vagas cobiças” e, nos
dois textos, existe igualmente a questão da “tranqüilidade”: o que representa a navegação
simbólica, com efeito, é a conquista da “grande paz”24. Esta pode ser compreendida de duas
maneiras: segundo o que ela diz respeito ao “paraíso terrestre” ou ao “paraíso celeste”. Neste
último, ela se identifica com a “luz de glória” e com a “visão beatificadora”25. Na outra, é a
63
“paz” propriamente dita, num sentido mais restrito, mas ainda muito diferente do sentido
“profano”. E nota-se que Dante aplica a mesma palavra de “beatificação” às duas finalidades
do homem.
A barca de São Pedro conduz os homens ao “Paraíso celeste”. Mas o papel do
“príncipe romano”, isto é, do Imperador é de conduzi-los ao “paraíso terrestre”. Há também
aqui uma navegação26 e é por isso que a “terra santa” das diversas tradições (que é este
“paraíso terrestre”) é frequentemente representada por uma ilha. A meta apontada por Dante
para “aquele que rege a terra” é a realização da paz 27. O porto para o qual ele deve dirigir o
gênero humano é a “ilha sagrada” que se mantém imutável no meio da agitação incessante
das ondas e que é a “montanha da salvação” o santuário da paz 28.
Após estes esclarecimentos, a compreensão deste simbolismo não deverá causar
mais dificuldades, ao menos na medida em que ela é necessária para a inteligência dos
papéis respectivos do Império e do Papado. Aliás, não poderíamos dizer mais sobre isto sem
entrar num domínio que não queremos entrar no momento29.
Esta passagem de De Monarchia, pelo nosso conhecimento, é o relatório mais nítido
e mais completo em sua voluntária concisão da constituição da “cristandade” e da maneira
pela qual as relações dos dois poderes deviam ser encaradas. Sem dúvida já se questionou o
porquê de uma tal concepção se tornar a exortação de um ideal que jamais devia ser
realizado. O que é estranho é que, no mesmo momento em que Dante a formulava, os
acontecimentos que ocorriam na Europa eram de maneira que deviam impedir para sempre a
sua realização.
A obra inteira de Dante, sob certos aspectos, é como um testamento do final da idade
média. Ele mostra o que teria sido o mundo ocidental se ele não tivesse rompido com sua
tradição. Mas se o desvio moderno pode se produzir, é porque realmente este mundo não
possuía nele mesmo tais possibilidades ou que, ao menos, elas eram apenas a condição de
uma elite fortemente restrita que, sem dúvida, lhes realizou por sua conta, mas sem que nada
pudesse ser passado para o exterior e sem se refletir na organização social.
Tínhamos então chegado a este momento da história em que deveria começar o
período mais sombrio da “idade sombria”30, caracterizada em todas as ordens pelo
desenvolvimento das possibilidades mais inferiores. E esse desenvolvimento, indo sempre
64
mais adiante no sentido da mudança e da multiplicidade, inevitavelmente deveria
desencadear o que constatamos hoje: no ponto de vista social, como em qualquer outro ponto
de vista, a instabilidade, de alguma maneira, está no seu máximo, a desordem e a confusão
estão em todo lugar. Com certeza, nunca a humanidade ficou tão afastada do “paraíso
terrestre” e da espiritualidade primordial.
Será que, então, deveremos concluir que este afastamento é definitivo, que nenhum
poder temporal estável e legítimo regerá novamente a terra, que toda a autoridade espiritual
desaparecerá deste mundo e que as trevas, estendendo-se do ocidente para o oriente,
esconderam dos homens para sempre a luz da verdade?
Se tal devesse ser nossa conclusão, certamente não teríamos escrito nestas páginas,
assim como também não teríamos escrito nenhuma de nossas obras, pois, nesta hipótese,
seria um trabalho inútil. Resta nos dizer por que não pensamos que possa ser assim.

1
O Império-Santo começou com Charle Magne, e sabe-se que foi o Papa que lhe conferiu a dignidade
Imperial. Seus sucessores não podiam ser legitimados de outra maneira que ele mesmo não tivesse sido ele
mesmo.
2
Chama a atenção que o Papa tenha sempre conservado o título de Pontifex Maximus, cuja origem é
evidentemente tão estranha ao Cristianismo e é muito anterior a ele. Este fato é daqueles que dão o que
pensar para aqueles que são capazes de refletir e ver que o chamado “paganismo”, na realidade, tinha uma
característica bem diferente daquela que ficou conveniente lhe atribuir.
3
O imperador romano, de alguma maneira, aparece como um Kshatriya exercendo, além de sua função, a
função de Brâhmane. Parece, então, que haja nisto uma anomalia e seria necessário verificar se a tradição
romana teria uma característica particular, permitindo considerar este fato de outra maneira do que como
uma simples usurpação. Por outro lado, podemos duvidar se os imperadores, em sua maioria, tenham sido
realmente “qualificados” do ponto de vista espiritual. Mas, às vezes, é preciso haver a distinção entre o
representante “oficial” da autoridade e seus usurpadores efetivos e basta que estes inspirem aquele mesmo
para que as coisas sejam o que devem ser.
4
Verificar um artigo de L. Charbonneau-Lassay, entitulado “Um Antigo Emblema do Mês de Janeiro”,
publicado na revista Regnabit (Março de 1925). A chave e o fantasma equivalem ao conjunto mais comum
das duas chaves de ouro e de prata. Esses dois símbolos são ligados diretamente ao Cristo por esta fórmula
litúrgica: “O Clavis David, et Sceptrum domus Israel...” (Breviário Romano, ofício de 20 de dezembro).
5
De Monarchia, III, 16.
6
Em especial sobre este assunto, verificar nosso estudo sobre o “O Esoterismo de Dante” e, também, a obra
de Luigi Valli, “II Linguaggio segreto di Dante e dei „Fideli d‟amore‟”. O autor infelizmente morreu sem ter
podido concluir suas pesquisas e no momento mesmo onde elas pareciam levá-lo a encarar as coisas num
espírito mais próximo do esoterismo tradicional.

65
7
Quando falamos do Catolicismo, deveríamos sempre ter o maior cuidado em distinguir o que concerne o
próprio Catolicismo e o que se relaciona somente com o estado atual da organização da Igreja Católica. Não
importa o que se possa pensar sobre esta última questão, a outra não seria de maneira alguma afetada. O que
falamos aqui sobre o Catolicismo, já que este exemplo se apresenta imediatamente a respeito de Dante,
poderia encontrar muitas outras aplicações. Mas poucos, hoje em dia, são aqueles que sabem quando é
preciso se desvencilhar das contingências históricas. Para continuar a tomar o mesmo exemplo, alguns
defensores do Catolicismo, assim como seus adversários, acreditam trazer tudo a uma simples questão de
“história”, o que é uma das formas da moderna “superstição do fato”.
8
Esta realização, com efeito, é a restauração do “estado primordial” que é questão em todas as tradições,
assim como já tivemos a ocasião de expor várias vezes.
9
No simbolismo da cruz, a primeira destas duas realizações é representada pelo desenvolvimento indefinido
da linha horizontal e a segunda pelo da linha vertical. Segundo a linguagem do esoterismo islâmico , os dois
sentidos de “amplo” e de “exaltação” têm seu desenvolvimento realizado no “Homem universal”, que é o
Cristo Místico, o segundo “Adão de São Paulo”.
10
A Crise do Mundo Moderno, pags. 21 e 22 (2ª edição).
11
Purgatório, XXXIII, 145: verificar O Esoterismo de Dante, pag. 60.
12
O intelecto puro, que é de natureza universal e não individual e que religa, entre eles, todos os estados de
ser, é o princípio que a doutrina Hindu chama de Buddhi, nome cuja raiz expressa essencialmente a ideia de
“sabedoria”.
13
Verificar “O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta”, cap. 1º.
14
Sobre este assunto, poderíamos, talvez, obter certas consequências do fato que, na tradição judaica, é fonte
e ponto de partida de tudo o que possa trazer o nome de “religião” no seu sentido mais preciso, já que o
Islamismo se prende aí também quanto o Cristianismo à designação de Tora ou “lei” que é aplicada a todos
os conjuntos de livros sagrados: nela vemos principalmente uma conexão com a conveniência especial da
forma religiosa aos povos em quem predomina a natureza dos Kshatriyas e, também, com a importância
particular que nesta forma toma o ponto de vista social, estas duas considerações tendo, entre elas, laços
bastante estreitos.
15
Deve ser bem compreendido que em tudo o que dizemos trata-se sempre de um conhecimento que não é
somente teórico, mas efetivo e que, por consequência, comporta essencialmente a relação correspondente.
16
A respeito disso, é preciso observar que o “Paraíso celeste” é essencialmente o Brahma-Loka, identificado
ao “Sol espiritual” ( O Homem e seu Devir Segundo o Vedanta) e que, por outro lado, o “Paraíso terrestre” é
descrito como tocando a “esfera da lua” (O Rei do Mundo, pag 55). O cume da montanha do Purgatório, no
simbolismo da Divina Comédia, é o limite do estado humano ou terrestre individual e o ponto de
comunicação com os estados celestes supra-individuais.
17
O cetro, assim como a chave, tem relações simbólicas com o “eixo do mundo”. Mas este é um ponto que
só podemos assinalar de passagem e preferimos desenvolvê-lo como convém em outros estudos.
18
A Crise do Mundo Moderno, pag 63 a 65 (2ª edição).
19
Verificar sobre isso Arturo Regine.
20
A barca simbólica de Janus era uma barca que podia ir para os dois lados, seja para a frente seja para trás, o
que corresponde aos dois rostos do próprio Janus.
21
Deveremos observar, aliás, que, se no Evangelho existem palavras e fatos que permitem atribuir
diretamente as chaves e a barca a São Pedro, é que, desde sua origem, o Papado estava predestinado a ser
“romano” devido à situação de Roma como capital no Ocidente.
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Numa da passagens da Divina Comédia, que é uma das mais características do que diz respeito ao
emprego deste simbolismo, Dante faz precisamente alusão a ela (Paradiso II, i-18). E não é sem motivo que
ele relembra esta alusão no último canto do poema (Paradiso XXXIII, 96). O significado hermético da
“tosquia de ouro” era bem conhecido na idade média.
23
Atmâ-Bodha. Rever O Homem e seu Devir Segundo o Vedânta, cap XXIII, e o Rei do Mundo, pag. 121.
24
É a mesma conquista que, às vezes, também é representada sob a imagem de uma guerra. Havíamos
apontado mais acima o emprego deste simbolismo na Bhagavad-Guitâ, assim como nos Mulçumanos, e
podemos acrescentar, também, que o simbolismo do mesmo gênero é encontrado nos romances de cavalaria
da idade média.
25
É o que indicam nitidamente os diferentes sentidos da palavra hebreia Shekinah. Aliás, os dois aspectos
que mencionamos aqui são aqueles que designam as palavras “Glória et Pax” na fórmula: Gloria in Excelsis
Deo, et in terra Pax hominibus bonoe voluntatis”, assim como já explicamos em nosso estudo sobre o Rei do
Mundo.
26
Isto se relaciona ao simbolismo dos dois oceanos, o das “águas superiores” e o das “águas inferiores”, que
é comum a todas as doutrinas tradicionais.
27
Sobre este assunto, podemos, também, fazer uma aproximação com o ensinamento de São Tomás de
Aquino, que vimos mais acima, assim como também com o texto que já citamos de Confucius.
28
Já dissemos em outro lugar que a “paz” é um dos atributos fundamentais do “Rei do Mundo”, do qual o
imperador reflete um dos aspectos. Um segundo aspecto tem sua correspondência no Papa, mas também
existe um terceiro, princípio dos dois outros, que não tem representação visível nesta organização da
“Cristandade” (sobre estes três aspectos, rever O Rei do Mundo, pag, 44). Por todas as considerações que
acabamos de expor, é fácil compreender que Roma, para o ocidente, é uma imagem do verdadeiro “centro do
mundo”, da misteriosa Salem de Melquisedec.
29
Este domínio é aquele do esoterismo Católico da idade média, encarado especialmente em suas relações
com o hermetismo. Sem os conhecimentos desta natureza, os poderes do Papa e do Imperador, tais como
acabam de ser definidos, não saberiam ter sua realização plenamente efetiva e são precisamente estes
conhecimentos que parecem ser mais completamente perdidos pelos homens modernos. Deixamos de lado
alguns pontos secundários, porque não importa muito a este estudo. Assim, a alusão que Dante faz às três
virtudes teologais, a fé, a esperança e a Caridade deveriam estar aproximadas do papel que lhes atribui na
Divina Comédia, rever o Esoterismo de Dante. Por outro lado, poderíamos também estabelecer uma
comparação entre os papéis respectivos dos três guias de Dante, Virgilio, Beatriz e São Bernardo, aqueles do
poder temporal, da autoridade espiritual e de seu princípio comum. No que concerne São Bernardo, este se
aproxima do que indicamos anteriormente.
30
Verificar A Crise no Mundo Moderno, cap. 1º.

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