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O duplo como manifestação do recalcado, o caso

particular de A Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro:


um diálogo entre o fantástico e a psicanálise
Valeria Cristina da Silva

RES UMO

As peculiaridades que são inerentes ao gênero Fantástico despertam interesse ímpar na crít ica especializada. Em
um dos mais importantes estudos sobre o tema , Introdução a Literatura Fantástica de 1971, Tzvetan Todorov,
mais do que apresentar um painel co m as principais características do fantástico, faz reflexões acerca dos limites
desse gênero. Entre os destaques feito por Todorov encontra-se a Psicanálise que, para o crítico, "substituiu" e,
por isso mesmo, "tornou inútil" a literatura fantástica. Tendo como base alguns conceitos chaves da Psicanálise
freudiana, co mo o conceito de requalque, o presente trabalho pretende fazer u ma apro ximação entre psicanálise
e fantástico através da novela de Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio de 1914. Mais do que uma
tentativa de aproximação dos conceitos, nossa análise apresenta algumas das artimanhas narrativas da novela de
Sá-Carneiro. Demonstrando, em grande medida, a excelência da co mposição também em prosa do autor
português que, por mu itos, foi considerado sempre e somente u m grande poeta.

Palavras chaves: Fantástico. Psicanálise. Sá-Carneiro. Teoria Literária. Literatura Portuguesa

ABSTRACT

The peculiarities inherent to the Fantastic genre has been interested the specialized crit icis m for a long time. In
one of the most important studies on the subject, The Fantastic: A Structural Approach to a Literary Genre
(1971), Tzvetan Todorov, rather than just presenting a panel with the main features of the fantastic, has reflected
about the limits of this genre. One of the most important points emphasized by Todorov is the Psychoanalysis.
According to the critic, the Psychoanalysis has "replaced" and , therefore, has "made useless" the fantastic
literature. Based on some key concepts of Freudian Psychoanalysis, as the concept of repression, this paper aim
is to bring closer the two concepts, Psychoanalysis and Fantastic, trough the analysis of Mário de Sá-Carneiro's
novel: Lucio's Confession (1914). Rather than just attempting to approximate concepts, our analysis shows some
of the Sá-Carneiro's novel narrat ive strategies. Demonstrating the excellence of the co mposition, also in prose, of
the Portuguese author who, for a long time, has been considered only a great poet.

Keywords: Fantastic. Psychoanalysis. Sá-Carneiro. Literary Theory. Portuguese Literature


Eu não sou eu nem sou outro, sou qualquer coisa de
intermédio, pilar da ponte de tédio, que vai de mim para o
outro

(Mário de Sá-Carneiro)

O termo fantástico sempre esteve diretamente atrelado a vocábulos como fantasia e


imaginação; no âmbito da literatura também se refere, nas palavras de Selma Calasans
Rodrigues, “ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o
fabuloso”. Tudo isso pensado dentro de um universo que é “ficcional por excelência”, mas
que, por outro lado, possui suas próprias regras. (Rodrigues, 1988, p.9)

Dessa forma, o fantástico está diretamente ligado a uma subversão de caracteres


empíricos de uma realidade já conhecida; ele se realiza em literatura a partir de uma
desconstrução daquilo que temos de mais comum; é como se a vida ordinária fosse invadida
pelo inconcebível, o impensável. Os primeiros estudos dedicados ao gênero fantástico
centravam-se principalmente em questões temáticas. Esse tipo de narrativa era assim definida
pela presença do sobrenatural, e, sobretudo, por sua relação com o medo. Em 1971 Tzvetan
Todorov publicou um dos principais estudos dedicados a esse tema. Em seu clássico livro
Introdução à literatura fantástica, o crítico nos apresenta um painel com as principais
características, temas e limitações do gênero. Naquela ocasião, além de mudar o foco da
teoria, que se centrava no medo e agora estaria na hesitação 1 , também nos apresentou um dos
grandes perigos que culminava na falência do fantástico tradicional: a psicanálise. Segundo
Todorov:

a Psicanálise substituiu (e por isso mesmo tornou inútil ) a literatura fantás tica. Não
se tem necessidade hoje de recorrer ao diabo para falar de u m desejo sexual
excessivo pelos cadáveres: a Psicanálise, e a literatura que, direta ou indiretamente,
nela se inspira, tratam d isto tudo em termos indisfarçados.” (TODOROV, 2004,
p.169)

É a partir dessa questão, levantada por Todorov, que esse trabalho se constitui. Através
de uma aproximação da obra A confissão de Lúcio (1914), do escritor português Mário de Sá-

1
Para o crítico, esse gênero era definido por u ma poética da incerteza. Nesse sentido, o fantástico se construiria a
partir da possibilidade de hesitação entre duas exp licações para u m fenô meno insólito: “Há u m fenômeno
estranho que se pode explicar de duas maneiras, por meio de causas de tipo natural e sobrenatural. A
possibilidade de hesitar entre os dois criou o fantástico.” (TODOROV, 2004, p. 31).

2
Carneiro 2 , com a psicanálise freudiana, mais especificadamente com o conce ito de recalque,
pretendemos demonstrar, no caso especifico de Sá-Carneiro, que, longe de findar o fantástico,
a interpretação psicanalítica amplia seus sentidos. Para isso, percorreremos algumas
definições que nos levem a refletir sobre a questão do duplo na literatura e sobre o recalque na
psicanálise freudiana. Partindo dessas definições construiremos uma análise da narrativa de
Sá-Carneiro, observando as estruturas nela presentes que de alguma maneira respondem à
problemática apresentada.

A questão do duplo é muito recorrente na literatura, Nájila Assy, em seu artigo O duplo
na literatura: reflexão psicanalítica, aponta-nos uma série de obras literárias que fazem uso
desse tema, destacando, dentre elas, O retrato de Dorian Gray (1890) de Oscar Wilde. No
livro de Wilde, como amplamente sabido, encontramos a história do jovem Dorian Gray, belo
e rico, retratado pelo pintor Basil Hallward em uma tela. O desejo de permanecer sempre
jovem é alcançado por Gray por meio do retrato que, de maneira insólita, passa a envelhecer
em seu lugar, assim como passa a refletir a sua alma corrompida. O quadro funciona como
uma espécie de consciência de Dorian: suas maldades e seus sentimentos vis – inclusive o
assassinato de seu amigo pintor - veem-se refletidos na obra de arte através do horror da
imagem. Por tal razão, ao observá-la, era como se observasse a sua própria consciência e tudo
que de mal havia feito. Na cena final, catártica, Dorian destrói o quadro com a mesma faca
que assassinara seu amigo Basil; os criados, ao adentrarem o cômodo, encontram na parede o
magnífico retrato, e, no chão, o corpo de Dorian Gray que jazia com a faca cravada no peito,
totalmente desfigurado.

O tema do duplo tem uma ligação direta com a questão do insólito e, por conseguinte,
com a literatura fantástica. Medo e espanto perante o duplo sempre são sentimentos
frequentes. Definindo os temas recorrentes na produção fantástica, Todorov aponta, em sua
primeira rede de temas – que ele intitula de “temas do eu”3 – o tema da multiplicação da
personalidade. Para o crítico, a multiplicação de personalidade seria a consequência imediata

2
Mário de Sá -Carneiro (1890-1916) foi ficcionista e poeta português e um dos expoentes da geração Orpheu,
juntamente com Fernando Pessoa. Sua obra é reconhecida pela originalidade, pelas características
decadentistas e pelos traços autobiográficos sempre presentes.
3
O pandeterminis mo, a mu lt iplicação de personalidade, a ruptura do limite sujeito e objeto, são elementos da
primeira rede de temas do fantástico, os “temas do Eu”. Recebe esse nome em razão de esses temas tratarem
da relação do sujeito com o mundo. (TODOROV, 2004, p.125)

3
da passagem possível entre matéria e espírito (Todorov, 2004, p. 124). Em outras palavras,
para Todorov, essa multiplicação seria a materialização do que há de oculto na mente.

Essa mesma questão apresentada por Todorov dialoga diretamente com o texto de
Freud de 1919: Das Unhemliche 4 ; na tradução espanhola, “Lo siniestro”. Nesse texto Freud
trata de um sentimento peculiar – extremamente importante para o texto literário, sobretudo o
fantástico – que se aproxima muito do que é angustiante, espantoso, mas que nasce
exatamente daquilo que temos de mais familiar: “lo siniestro sería aquella suerte de espantoso
5
que afecta las cosas conocidas y familiares desde tiempos atrás.” (Freud, 1919/1981. p.
2484). Nesse sentido “lo siniestro” seria então a elevação de “todo lo que debía haber
quedado oculto, secreto, pero que se há manifestado”. 6 (Freud, 1919/1981,p. 2487). Em outras
palavras, o sobrenatural.

A aproximação do “siniestro” literário com a literatura do gênero fantástico se dá,


ademais dos temas, pelo fato de se provocar no leitor o sentimento de dúvida:

Uno de los procedimientos más seguros para evocar fácilmente lo siniestro


med iante las narraciones”, escribe Jentsch, “consiste en dejar que el lector dude de si
determinada figura que se le presenta es una persona o un autómata. Esto debe
hacerse de manera tal que la incertidu mbre no se convierta en el punto central de la
atención, porque es preciso que el lector no llegue a examinar y a verificar
in mediatamente el asunto, cosa que, según dijimos, disiparía fácilmente su estado
emotivo especial. 7 (FREUD, 1919/ 1981, p.2488)

Dessa forma, considerando a questão da hesitação, tão importante para o gênero


fantástico, tal qual postula Todorov, que se constrói a partir da ambiguidade e da dúvida,
torna-se perceptível a relação do siniestro com o fantástico. Através de uma análise, por um
viés psicanalítico, do conto fantástico Der Sandman(1916), de Hoffmann, Freud apresenta o
4
Segundo o Dicionário virtual Michaelis, Unheimlich corresponde em língua portuguesa a termos como:
medonho, pavoroso, terrível, inquietante, estranho, misterioso. Diferente de seu par Hei mlich,que estaria
atrelado ao que é familiar, caseiro, nativo, local. (Disponível em
http://michaelis.uol.co m.br/escolar/alemao/index.php. Consultado em 20 de dezembro de 2012 )
5
O sinistro seria aquele tipo de espanto que afeta as coisas conhecidas e familiares a partir de tempos
antigos.(tradução nossa)
6
tudo aquilo que deveria ter sido ocultado, posto em segredo, mas que se manifestou. (tradução nossa)
7
Um dos procedimentos mais seguros para provocar, com facilidade, o sinistro nas narrativas, escreve Jentsch,
consiste em deixar que o leitor duvide se determinada personagem é u ma pessoa ou um autô mato. Isso deve ser
feito de maneira que a incerteza não possa se converter no ponto central da narração, po is é preciso que o leitor
não chegue a examinar e a verificar imed iatamente tal questão, já que isso, como dissemos, dissiparia
facilmente seu estado emotivo especial. (tradução nossa)

4
duplo como uma temática muito importante para a construção do “sinistro” literário. O
psicanalista caracteriza o duplo como um desdobramento do 'Eu', com um constante retorno
ao semelhante, com a repetição de características faciais, comportamentos e destinos. (Freud,
1919/1981, p.2493). Também aponta a relação de sua criação com a questão da autocrítica ou
da consciência:

Pero la idea del <<doble>> no desaparece necesariamente con el protonarcisismo


original, pues es posible que adquiera nuevos contenidos en las fases ulteriores de la
evolución del yo. En este se desarrolla paulat inamente una instancia particular que se
opone al resto del yo, que sirve a la autobservaci ón y a la autocrítica, que cump le
la función de censura psí quica, y que nuestra consciencia conoce como conciencia 8 .
(FREUD, 1919/1981, p. 2494. gri fos nossos)

Percebemos que esse processo de censura psíquica é exatamente o que ocorre com a
narrativa de Oscar Wilde; é através do retrato feito por Basil que a função crítica e a
autobservação de Dorian Gray se concretiza. Freud também aponta a ligação do duplo com
aquilo que de alguma maneira não pôde ser concluído ou executado pelo “Yo” por alguma
razão:

[…] no sólo este contenido ofensivo para la crítica yoica puede ser incorpo rado al
<<doble>>, sino también todas las posi bilidades de nuestra existencia que no han
hallado realización y que la i maginación no se resigne a abandonar, todas las
aspiraciones del yo que no pudieron cumplirse a causa de adversas circunstancias
exteriores, así co mo todas las decisiones volitivas coartadas que han producido la
ilusión del albedrio. 9 (FREUD, 1919/ 1981, p. 2494. grifos nossos)

Se pensarmos a construção do duplo em A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-


Carneiro, veremos que ela tem uma forte ligação com esse conceito de “não realização”
exposto por Freud. Por meio de uma narrativa que chega a lembrar os clássicos contos de
mistério de Edgard Alan Poe, onde loucura e realidade parecem misturar-se, somos brindados
com a história do escritor Lúcio Vaz, personagem central e narrador da história. Deslocado
dez anos no tempo, logo após deixar a prisão, Lúcio narra, através de sua "confissão", os fatos

8
Mas a ideia do "duplo" não desaparece necessariamente com o protonarcisismo original, pois é possível que
adquira novos conteúdos em fases posteriores da evolução do ego. Nele se desenvolve paulatinamente u ma
instancia particular que se opõe ao resto do ego, que serve à auto-observação e à autocrítica, que cumpre a
função de censura psíquica, a qual conhecemos co mo consciência.(tradução nossa)
9
[…] não somente esse conteúdo, ofensivo para a crít ica do ego, pode ser incorporado ao "duplo", mas também
todas as possibilidades de nossa existência que não tenham encontrado realização e que a imaginação não se
negue a abandonar, todas as aspirações do ego que não puderam ser cu mpridas, em razão das diversas
circunstancias exteriores, assim co mo todas as decisões que tenham produzido o efeito de liv re-arb ítrio.
(tradução nossa)

5
que o levaram ao cárcere. Parte de um triângulo amoroso, Lúcio se vê envolto a uma situação
misteriosa com o desfecho trágico dessa relação. Poderíamos estar no campo da narrativa
policial, se não fosse a construção ambígua e insólita de uma arquitetura labiríntica que nos
remete diretamente à esfera do fantástico.

Frequentador, mais por obrigação do que por prazer, dos clãs artísticos de Paris, Lúcio
conhece, em um espetáculo, o poeta Ricardo Loureiro, com quem começa um forte laço de
amizade. O escritor reconhece no poeta aquele capaz de penetrar os recôncavos mais
profundos de sua alma. Sob uma atmosfera homoerótica vemos essa amizade se estreitar cada
vez mais. Mas Ricardo faz uma confissão que deixa Lúcio atordoado : não pode ser seu amigo.
O motivo de tal impossibilidade seria o fato de essa relação ser irrealizável, pelo menos nos
termos que desejava Ricardo:

Deteve-se um instante, e de súbito, em outro to m:


 É isto só: – disse – não posso ser amigo de ninguém… Não proteste… Eu
não sou seu amigo. Nunca soube ter afetos (já lhe contei), apenas ternuras. A
amizade máxima, para mim, tradu zir-se-ia unicamente pela maior ternura. E u ma
ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: u m desejo de beijar… de
estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (v isto que em mim a
ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou
homem ou mu lher. Mas u ma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo,
eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu
mudássemos de sexo. (SÁ-CARNEIRO, 1973, p. 71)

Pouco tempo após essa confissão, Ricardo retorna a Portugal, os amigos ficam
separados por um ano, praticamente incomunicáveis, até que Lúcio também resolve regressar
a terra natal. Na chegada à estação, em que Ricardo o aguarda, Lúcio encontra o amigo um
pouco mudado:

As suas feições bruscas haviam-se amen izado, acetinado - feminilizado, eis a


verdade - e, detalhe que mais me impressionou, a cor dos seus cabelos esbatera-se
também. Era mes mo talvez desta última alteração que provinha, fundamentalmente,
a diferença que eu notava na fisionomia do meu amigo - fisionomia que se tinha
difundido . Sim, porque fora essa a minha imp ressão total: os traços fisionômicos
haviam-se dispersado eram hoje menores. (SÁ-CA RNEIRO, 1973, p.76)

Essa passagem já de certa forma começa a introduzir a questão do dup lo, assim como
do insólito na obra. Através da descrição sugestiva de Ricardo por Lúcio, somos levados a
imaginar que algo mudara em Ricardo. Essa impressão torna-se ainda mais forte quando surge
na história a figura de Marta, esposa de Ricardo:

Eu sabia já, é claro, que o poeta se casara há pouco, durante minha ausência. Ele
escrevera-mo na sua primeira carta; mas sem juntar pormenores, muito
6
brumosamente - como se se tratasse de uma irrealidade. Pelo meu lado, respondera
com vagos cumprimentos, sem pedir detalhes, sem estranhar mu ito o facto - também
como se se tratasse de uma irrealidade, de qualquer coisa que eu já soubesse, que
fosse um desenlace." (SÁ-CARNEIRO, 1973, p. 76)

Lúcio, narrador, constrói a imagem de Marta revestida de um espectro misterioso,


destacando pontos chaves tanto para o efeito insólito como para o duplo. Ao qualificar Marta,
o narrador sublinha a capacidade de ela misturar-se às discussões dele e de Ricardo,
evidenciando sua cultura e inteligência. Mas o destaque, para Lúcio, está na maneira como
Marta se posicionava frente aos temas discutidos: “Curioso que sua maneira de pensar nunca
divergia da do poeta. Ao contrário: integrava-se sempre com a dele reforçando aumentando
em pequenos detalhes as suas teorias e opiniões.” (Sá-Carneiro, 1973, p. 79)

O fascínio do escritor pela esposa de seu amigo cresce e junto com ele nasce o
romance, que não parecia incomodar Ricardo. A Lúcio incomodava o fato de estar com a
esposa de seu amigo, mas incomodava ainda mais o fato de pouco saber sobre essa mulher.
Nasce em Lúcio a obsessão em descobrir quem era Marta, de onde viria ela. Pistas são
introduzidas sutilmente e em seguida de maneira mais exacerbada, como, por exemplo, na
cena em que, em visita ao casal, Marta pede a Lúcio que se aproxime de Ricardo para que ele
o ensine a beijar. Para Lúcio, não há dúvidas, o beijo de Ricardo era idêntico ao beijo da
mulher. A certeza de que Marta seria o duplo de Ricardo se dá com a revelação do poeta, ao
ser confrontado por Lúcio, sobre os casos extraconjugais de Marta:

<< Sim! Sim! Triunfei encontrando-a! ...Po is não te lembras já, Lúcio, do mart írio
da minha vida? Esqueceste-o? … Eu não podia ser amigo de n inguém... não podia
experimentar afectos... Tudo em mim ecoava em ternura... eu só adivinhava
ternuras... E, em face de quem as pressentia, só me v inham desejos e carícias,
desejos de posse – para satisfazer os meus enternecimentos, sintetizar minhas
amizades...
[...] Uma noite, porém, finalmente, u ma noite fantástica de branca, triunfei! Achei-
A... sim, criei-A!...Ela é só minha – entendes? - é só minha!....
[...] Mas, estreitando-te ela, era eu próprio que te estreitava... [...] fo i co mo se a
minha alma, sendo sexualizada, se tivesse materializado. E só com o espírito te
possuí, materialmente! Eis o meu triunfo... Triunfo inigualável! Grandioso
segredo!... (SÁ-CA RNEIRO, 1973, p. 153-154)

Dessa forma, temos em Marta a materialização do desejo de Ricardo, apresentado na


confissão feita a Lúcio. A impossibilidade da realização da relação nos termos de Ricardo, ou
seja, pelo meio carnal, concretiza-se através da criação insólita da figura de Marta. É por isso
que Marta repete os comportamentos e opiniões de Ricardo, é por isso que a fisionomia de

7
Ricardo está dissipada e por isso que seu beijo é idêntico ao da esposa. Marta é o duplo de
Ricardo e, mais do que isso, é a concretização de um desejo reprimido.

O conceito de repressão ou recalque é extremamente importante para a psicanálise,


segundo o que nos apresenta Freud (1915/1996) esse conceito é a pedra angular sobre a qual
repousa toda a estrutura da teoria psicanalítica. Para Schoffen e Honda (s/d), é a partir desse
mecanismo que Freud concebe o inconsciente como sistema psíquico, daí , portanto, advém a
importância de tal conceito.

Para Freud (1915/1996), a repressão está conectada ao impulso instintual, o


psicanalista nos aponta que esse impulso pode encontrar resistências que o tornam inoperante,
é nesse ponto que o impulso instintual passa a ser reprimido. Para o pai da psicanálise, a
repressão seria o entremeio entre a fuga e a condenação. O sujeito não repele totalmente
aquilo que o incomoda, pelo contrário, até porque é exatamente aí que esse indivíduo pode
encontrar gozo. É por tal razão que Freud afirma que:

[…] a satisfação de um instinto que se acha sob repressão seria bastante possível, e,
além disso, que tal satisfação seria invariavelmente agradável em si mes ma, embora
irreconciliável co m outras revindicações e intenções. Ela causaria, por conseguinte,
prazer num lugar e desprazer no outro. (FREUD, 1915/ 1996, p. 152)

Nesse sentido, a repressão, como um mecanismo defensivo, ocorre a partir de uma


cisão entre a atividade mental consciente e inconsciente, e sua essência consiste em afastar
determinada coisa do consciente, mantendo-a a distância. Dessa forma, torna-se pertinente a
afirmação de Freud de que “[...] a essência do processo de repressão não está em pôr fim, em
destruir a ideia que representa um instinto, mas em evitar que se torne consciente.”(Freud,
1915/1996, p. 152).

Poderíamos dizer então que, no que se refere a Ricardo, seu impulso instintual seria o
de possuir carnalmente o outro a que se tem ternura, esse impulso é traduzido na ideia de
possuir Lúcio e está diretamente conectado à infância, em uma espécie de construção
edipiana: “Quantas vezes não retraí uma ânsia de beijar os lábios de minha mãe...” (Sá-
Carneiro, 1973, p.72)  mas que não se tem realização graças à barreira do gênero. Freud
em O Mal-estar na Civilização (1929/1996b) defende que há um sacrifício do indivíduo, de
sua satisfação pulsional, em função da organização social. Dessa forma, Ricardo renega o
sentimento, “não posso ser amigo de ninguém”, “Em certos momentos chego a ter nojo de

8
mim” (Sá-Carneiro, 1973, 9.153). A propósito, como afirma Freud, essa “fuga não tem
qualquer valia, pois o ego não pode escapar de si próprio” (Freud, 1915/1996, p. 151). E ainda
a “existência da repressão não impede que o representante instintual continue a existir no
inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações” (Freud,
1915/1996, p. 153). Nesse sentido é que o reprimido retorna e, no caso particular da
narrativa, esse retorno se dá através de Marta.

Interessante é perceber que toda essa realização se dá através de uma narrativa plena
de mecanismos pertencentes ao gênero fantástico. Sabemos que é inerente à narrativa
fantástica uma construção que se ampare no signo da ambiguidade, a narrativa de Sá-Carneiro
desde o primeiro instante se coloca a serviço desse signo:

Mas ainda que uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a
verdade. Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade – mesmo quando ela
é inverossímil.” (SÁ-CARNEIRO, 1973, p. 19)

Essa “verdade inverossímil”, mais do que demonstrar o grau de ambiguidade presente


na narrativa, oferece já pistas de que algo sobrenatural, e por tal razão, inacreditável,
inverossímil, está por vir. Após o confronto com Ricardo e a revelação da criação de Marta
por ele, o desfecho se dá através de um evento sobrenatural, semelhantemente ao da narrativa
de Oscar Wilde. Tomado pela ira, Ricardo decide destruir Marta, sua criação, saca um
revólver e atira contra a moça. No entanto, quem cai morto aos pés de Lúcio é o próprio
Ricardo, enquanto Marta desaparece.

Estaríamos no campo do maravilhoso se não fosse um pequeno detalhe: Lúcio. Isso


porque é Lúcio quem nos conta a história, deslocado dez anos no tempo. Sabemos que esse
recurso de recuo também é importante para a narrativa fantástica e, somado a eles, temos o
fato de que o leitor está condicionado à perspectiva do narrador e aos lapsos de sua
memória.

E são certamente esses lapsos e a maneira como são estruturados, somados às ênfases
do narrador em determinados trechos, que nos leva a pensar a função do narrador-personagem
na narrativa. Afinal, como o próprio título – tão ambíguo quanto a narrativa – já diz trata-se
da "confissão" de Lúcio. E não há interpretação possível se não remontarmos a essa figura.

Ao tratar de algumas características da ficção realista e modernista, Terry Eagleton


chama atenção para o fato de que enquanto no primeiro tipo de narrativa nossa atenção é
9
levada para o enunciado, em outras palavras, para o que é dito, na ficção modernista nos
importa o ato da enunciação, ou seja, o modo como alguma coisa é dita. Para Eagleton,
muitas das obras literárias modernistas fazem do ato da enunciação o processo de sua própria
produção, parte de seu “conteúdo” concreto.

Elas não tentam se fazer passar por inquestionáveis, pelo signo “natural” de Barthes,
mas, co mo diriam os formalistas, “desnudam o processo” de sua própria
composição. E o fazem para que não sejam to madas como verdades absolutas;
fazem-no para que o leitor seja estimu lado a refletir criticamente sobre as maneiras
parciais, part iculares, pelas quais elas construíram a realidade, desta forma
reconhecendo que tudo aquilo poderia ter acontecido de maneira diferente.
(EA GLETON, 1997, p. 235)

Essa afirmação do crítico vai diretamente ao encontro da narrativa de Sá-Carneiro. Se


pensarmos no lugar de Lúcio na narrativa, vemos que toda ela é condicionada a seu ponto de
vista. Através do que conta e de suas vacilações somos levados a subentender uma segunda
história, tão – ou mais – importante quanto a do triângulo insólito. Para essa reconstrução
vale considerar o que afirma Ricardo Piglia sobre o conto. De acordo com o autor, o conto
narra, por excelência, sempre duas histórias e, nesse sentido, a arte do contista consiste em
cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. (Piglia, 2004. p. 89). Ao discorrer sobre uma
questão semelhante, mas ampliando do conto para todo texto literário, afirma Eagleton:

Toda obra literária encerra u m ou mais destes subtextos, e há um sentido no qual se


pode falar deles como “inconsciente” da própria obra. As in trovisões da obra, como
ocorre co m todos os escritos, estão profundamente relacionadas com sua cegueira:
aquilo que ela não diz, e co mo não o diz, pode ser tão importante quanto o que se
diz; e o que parece estar ausente, ser marg inal ou ambivalente a resp eito dela, pode
constituir u ma chave mestra para as suas significações. (EA GLETON, 1997, p. 246)

Ao narrar os fatos que o levaram ao cárcere, pouco, ou quase nada, diz Lúcio sobre a
sua própria figura. Ainda assim, através de algumas passagens, é possíve l juntar as poucas
peças desse quebra-cabeças que é Lúcio. É já no início da narrativa, antes mesmo do
surgimento de Ricardo, quando fala de sua vida social em Paris junto a outros artistas, em
especial seu amigo Gervásio Villa Nova, que damos início à construção de Lúcio:

Ah! Co mo Gervásio tinha razão, co mo eu no fundo abominava essa gente – os


artistas. Isto é, os falsos artistas cuja obra se encerra nas suas atitudes; que falam
petulantemente, que se mostram comp licados de sentidos e apetites, artificia is,
irritantes, intoleráveis. En fim, que são explo radores da arte apenas no que ela tem de
falso e de exterior.
Mas, na minha incoerência de espírito, logo me vinha outra ideia: - Ora , se os
odiava, era só afinal por os invejar e não poder nem saber ser co mo eles... (SÁ-
CARNEIRO, 1973, p. 32)

10
Nessa passagem, vemos através da negação, expressa em “não poder nem saber ser
como eles”, uma afirmação: o desejo de querer ser como essas pessoas que descreve.
Considerando-se o modo como o narrador apresenta esses artistas na narrativa - como
libertinos -, vemos na figura de Lúcio alguém que está na contramão, que se retrai e que
sofre por isso. A libertação desses sentimentos retraídos se dá através da figura de Ricardo.

Pela p rimeira vez eu encontrara efet iva mente alguém que sabia descer um pouco aos
recantos ignorados do meu espírito - os mais sensíveis, os mais dolorosos para mim.
E co m ele acontecera o mes mo - havia de mo contar mais tarde. (SÁ-CA RNEIRO,
1973, p.48)

Lúcio afirma ainda que o encontro com Ricardo marcou o princípio de sua vida, e é
após essas afirmações que se dá um longo diálogo, muito mais para monólogo, pois somente a
voz de Ricardo parece merecer destaque, em que Ricardo faz sua confissão. E antecipando a
confissão de Ricardo, que tanto o atormenta, Lúcio afirma que antes de o amigo falar sentiu
um calafrio, aquele que sempre o varava nas horas culminantes de sua vida. (Sá-Carneiro,
1973, p. 66). Poderíamos dizer que, através da revelação de Ricardo, há na verdade a
revelação de Lúcio. Pois, embora poucas frases sejam ditas por ele nesse dialogo, Lúcio fala
através de seu amigo. Ele era seu igual, como o próprio personagem afirmou, aquele capaz de
tocar em suas feridas mais profundas e doloridas. Mas quais feridas seriam essas? As mesmas
que tanto feriam Ricardo? A própria obsessão de Lúcio pela revelação do amigo é uma prova
dessa condição.

Essas incongruências e lapsos do narrador tornam-se cada vez mais perceptíveis,


sobretudo a partir da confissão de Ricardo e do surgimento de Marta. Um bom exemplo
dessas contradições está na passagem em que Lúcio afirma que Ricardo lhe havia narrado
uma experiência bastante interessante que lhe passara na tarde anterior: ao olhar-se no
espelho, não via no objeto o reflexo de sua imagem. No trecho se guinte afirma Lúcio:

Porém, refletindo melhor, descobri que em realidade o meu amigo me não dissera
nada disto. Apenas eu – numa remin iscência muito co mp licada e mu ito estranha –
me lembrava, não do que ele verdadeiramente mo tivesse dito, mas de que,
entretanto, mo devera ter dito. (SÁ-CARNEIRO, 1973. p. 100)

Durante todo o texto vemos o narrador dar destaque às s figuras masculinas, sempre
descritas como belas e atraentes. As personagens femininas, por outro lado, possuem pouca
evidência. Mesmo Marta, que é personagem chave, quase não possui falas. No entanto,
durante um espetáculo teatral, o narrador parece fazer questão de dar relevo a uma

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determinada personagem, que lhe chama a atenção não por sua feminilidade, mas pelo que
tem de andrógeno e, principalmente, masculino:

A segunda bailadeira t inha o t ipo característico da adolescente pervertida, Magra -


porém de seios bem visíveis - cabelos de um louro sujo, cara provocante, nariz
arrebitado. As suas pernas despertavam desejos brutais de as morder, escralavadas
de músculos, de durezas, masculinamente. (SÁ-CARNEIRO, 1973, p. 41)

Não são os seios da bailarina que despertam desejo em Lúcio, são as pernas
musculosas e masculinas. Dessa forma, fica evidente a presença de características
homoeróticas na narrativa, seja pelas revelações de Ricardo - que em grande medida também
são de Lúcio, haja vista que, como o próprio narrador afirma, ele é seu "igual"- seja pelas
ênfases dadas aos personagens e características masculinas. Nesse sentido, podemos afirmar
que, ainda que Marta seja o duplo de Ricardo, ela é também manifestação do desejo de Lúcio,
desejo também de possuir outro homem e também reprimido. Marta é para Lúcio, como
realização de seu desejo reprimido, fonte de prazer e desprazer; e, como vimos, Freud enfatiza
que o desejo reprimido gera essa condição. Ele a deseja de maneira brutal, da mesma forma
como descreveu a bailarina de pernas masculinas, mas sofre ao possuí- la, sente-se
incomodado. No entanto, essa realização nasce exatamente de uma obsessão, de uma
perturbação, e é de maneira quase delirante que é narrada.

Co m efeito, sabê-la possuída por outro amante – se me fazia sofrer na alma, só me


excitava, só me contorcia nos desejos ….
Sim! Sim! - laivos de ro xidão! - aquele corpo esplêndido, triunfal, dava-se a três
homens – três machos se estiraçavam sobre ele, a poluí-lo, a sugá-lo!... Três? Quem
sabia se uma mu ltidão? … E ao mes mo tempo que esta ideia me despedaçava,
vinha-me u m desejo perverso de que assim fosse...
Ao estrebuchá-la agora, em verdade, era co mo se, em beijos monstruosos, eu
possuísse também todos os corpos masculinos que resvalavam pelo seu. (SÁ-
CARNEIRO, 1973, p.123)

Ricardo faz um novo amigo, o russo Sérgio Warginsky, que incomoda muitíssimo a
Lúcio, causando- lhe ciúmes, logo em seguida esse amigo torna-se também amante de Marta.
Ao saber dessa relação, Lúcio se vê envolto em uma confusão de sentimentos de ódio e
admiração a Ricardo e revela ao leitor pistas de uma possível culpa no crime narrado ao final
da novela:

Entretanto, no meio disto, ainda havia qualquer co isa mais bizarra: era que nesta
revolta, neste asco, neste ódio – sim, neste ódio! - por Ricardo, misturava-se como
um vago despeito, um ciú me, u m verdadeiro ciú me dele próprio. Invejava -o!
Invejava-o por ela me haver pertencido …. a mim, ao conde russo, a todos mais!...

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E esta sensação descera me tão forte, essa tarde, que num relâmpago me voou pelo
cérebro a ideia rubra de o assassinar – para satisfazer a minha inveja, o meu ciú me:
para me vingar dele!....(SÁ -CA RNEIRO, 1973. p. 142)

Freud nos fala que o esforço do sujeito em esquecer o fato que o desagradou, que o fez
sofrer, pode ser perigoso, levando-o a reagir de forma patológica. Segundo o psicanalista,

o eu rejeita a representação incompatível juntamente com s eu afeto e se comporta


como se a representação jamais lhe t ivesse ocorrido. Mas a partir do mo mento em
que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como
“confusão alucinatória”. (FREUD, 1894/ 1994, p. 64)

Desse modo, o conteúdo de uma psicose alucinatória desse tipo consiste precisamente
na acentuação da representação que era ameaçada pela causa precipitante do
desencadeamento da doença. Assim, podemos concluir que o indivíduo recusou a
representação incompatível através de uma fuga para a psicose.

O eu ro mpe co m a representação incompatível, esta, porém, fica inseparavelmente


ligada a um frag mento da realidade, de modo que, à medida que o eu obtém esse
resultado, também ele se desliga, total e parcialmente, da realidade. Em minha
opinião, este último evento é a condição sob a qual as rep resentações do sujeito
recebem a v ividez das alucinações; assim, quando a defesa consegue ser levada a
termo, ele se encontra num estado de confusão alucinatória. (FREUD, 1894/ 1994,
p.65)

Nesse sentido, se consideramos o que afirma Freud e a situação em que se coloca


Lúcio – preso por dez anos por crime que não cometeu, mas pelo qual não se defendeu – ,
poderíamos arriscar uma interpretação, a de que na verdade Lúcio cometera o crime, sendo
sua narrativa fruto de um estado alucinatório psicótico. Essa afirmação torna-se ainda mais
pertinente se considerarmos o trecho final, em que o narrador afirma que o juiz que o
interrogara se parecia muito a um médico que o tratara, anos atrás, de uma febre cerebral.
Estaria ele mesmo na prisão ou em um hospital? O próprio gênero confessional do texto
contribui para essa interpretação. Lúcio confessa-se através das entrelinhas, numa espécie
“talking cure”, cabendo ao leitor o papel de ouvinte atento.

No entanto, não podemos nos esquecer de que estamos no universo ficcional. Não
cabe aqui dar um diagnóstico ao personagem, entraríamos num campo extremamente perigoso
fazendo isso. Interessa-nos muito mais perceber como essa construção delirante de alguma
maneira pode nos dar outros meios de interpretação, ao mesmo tempo em que auxilia na
construção formal do fantástico. Isso porque ao considerarmos a segunda narrativa, a que se
dá através das entrelinhas e das artimanhas do narrador, estamos também oferecendo uma

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possível explicação para o evento insólito. Todavia, essa explicação não pode ser aceita por
completo, pois mais uma vez devemos lembrar de que quem narra é Lúcio, e somente temos a
sua perspectiva da história. Dessa forma a ambiguidade é mantida até o final da narrativa e,
por conseguinte, a hesitação fantástica. Seria um evento metaemp írico? Seria Lúcio um
assassino? Teria isso realmente ocorrido? Não há respostas para tais perguntas e não devem
mesmo haver.

Voltando à questão inicial de Todorov, sobre a psicanálise e o fantástico, podemos


afirmar, através da narrativa aqui apresentada, que o crítico tinha razão ao dizer que “não se
tem hoje necessidade de recorrer ao diabo para falar de um desejo sexual excessivo”, de fato
não se tem. Os temas, evidentemente, foram reposicionados, mas os medos e a ambiguidade
ainda continuam. O horror não está mais fora do sujeito, muito pelo contrário. Ao ler uma
narrativa como A Confissão de Lúcio, não é através de um vampiro, ou de um castelo gótico
que o mistério é instaurado na narrativa, mas ele está ali estruturado, presente, e causa tanto,
ou mais incomodo, que o monstro fantástico. Está também presente aquela que seria a força
motriz, segundo Todorov, da narrativa fantástica: a hesitação. No entanto, pensar a narrativa
tão somente como a história de um triângulo amoroso que termina de maneira insólita é
sublimar todo o poder de uma construção ficcional, extremamente elaborada, feita por Sá-
Carneiro, provando que o autor, além de grande poeta, era também um excelente prosador.
Observar a narrativa de Lúcio pela psicanálise amplia os sentidos dos mistérios ali
apresentados e em consequência do próprio fantástico que, longe de findar-se com a
psicanálise, renovou-se, e segue renovando-se ainda mais na contemporaneidade.

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