Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
Ficha Técnica:
Comissários
Violante Florêncio e António Torrado 7
Palavras de Abertura
Prof. Eduardo Marçal Grilo 16
Intervenção de
Sua Excelência o Secretário de Estado da Educação
Dr. Diogo Feyo 19
Conferência de Abertura
Miguel Sousa Tavares 28
Inevitáveis Clássicos
Maria João Seixas 43
José Pedro Serra 46
Mário Avelar 52
Viajantes Intranquilos:
Homenagem a Hans Christian Andersen
Marta Martins 88
Diogo Dória 89
Leonor Riscado 97
Rui Marques Veloso 108
Modernos Nautas
António Torrado 120
Luísa Ducla Soares 123
Pedro Rosa Mendes 133
Francisco Pacheco 140
Clássicos: Inevitáveis?
Debate: 151
Paula Moura Pinheiro
Ana Maria Magalhães
Marta Martins
Olga Pombo
José Pedro Serra
Miguel Che
Ondjaki
Sessão de Encerramento
Isabel Marques da Costa 186
Ana Sousa Dias 190
Prof. Eduardo Marçal Grilo 194
Ilustrarte 200
6
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Violante Florêncio
António Torrado
Percursos de um Encontro
Quem conta vai um passo à frente de quem lê. Guiado por quem detém a
rota do percurso, cada leitor sabe que o itinerário não consente derivações
nem atalhos. E a viagem prossegue.
7
XVI Encontro de Literatura para Crianças
8
XVI Encontro de Literatura para Crianças
9
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Henrique Cayatte, Maria Cabral Pacheco de Miranda, Diogo Feyo, Eduardo Mar-
çal Grilo e Manuel Carmelo Rosa
10
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Entrega do Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens:
Henrique Cayatte, Maria Cabral Pacheco de Miranda, Jorge Araújo, André Letria,
António Mota, Diogo Feyo, Eduardo Marçal Grilo e Manuel Carmelo Rosa
Conferência de Abertura:
Miguel Sousa Tavares
12
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Exposição de Homenagem a Hans Christian Andersen no hall da zona dos Con-
gressos: Diogo Feyo e Eduardo Marçal Grilo
13
XVI Encontro de Literatura para Crianças
14
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Público infantil durante a Sessão para Crianças
15
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Palavras de Abertura
A Escola tem, aqui, como não podia deixar de ser, uma responsabilidade
acrescida. Em contexto de aprendizagem, os alunos lêem para aprender. É
também necessário incentivar neles o prazer de ler.
19
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Por isso mesmo, nós teremos em relação a esta matéria uma visão prag-
mática, em que seja possível oferecer à classe docente um vasto leque de
possibilidades, pedagógicas e didácticas, de exploração de textos, com
criatividade e com base em diversas estratégias. São essas mesmas estra-
tégias que contamos, até ao final do presente ano lectivo, poder apresentar
e pôr à discussão na sociedade.
É preciso que se entenda, de uma forma muito clara que o Portugal desen-
volvido terá de ter na sua génese a educação e a formação dos seus ci-
dadãos, e que é necessário, em relação a essa educação, fazer um aposta
em opções que sejam um investimento muito claro no plano familiar e es-
colar.
Terminaria, agradecendo mais uma vez o convite que me foi feito, dizendo
que a presença do Ministério da Educação demonstra o empenho que te-
mos em relação a estas matérias.
Muito obrigado.
20
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Henrique Cayatte
Deve ser uma graça terem-me pedido para vir falar sobre um livro que se
chama Se eu fosse muito magrinho!
Estive neste júri, fruto de uma organização bem montada, que, quando nos
dá o prémio leva-nos ao júri daí a dois anos e, depois, a este papel que
estou agora aqui a desempenhar. Portanto, André, prepara-te! Tens dois
anos!
É-me muito difícil e muito fácil falar do André. Difícil porque estou demasia-
damente próximo; e fácil porque a qualidade do trabalho do André é invul-
gar, aqui ou em qualquer sítio do mundo, como, de resto, já foi notado nos
Estados Unidos num prémio que ele recebeu por uma ilustração para uma
capa do Mil Folhas.
O David Hockney dizia que um artista quando executa o seu trabalho tem
muito pouco a explicar e eu tenho uma enorme dificuldade em explicar,
não só o meu trabalho, como os trabalhos dos meus colegas, sobretudo
daqueles que eu admiro muito.
Devo dizer-vos que aquilo que se passou em Portugal nos últimos anos, no
que à ilustração diz respeito, é apaixonante! É apaixonante ver o nascimento
de um conjunto de ilustradores de enorme talento e de enorme qualidade,
que sobrevivem num panorama editorial complexo, com índices de leitura
baixíssimos, e sobrevivem continuando a não misturar as dificuldades que
têm no exercício da sua profissão, com o momento em que têm de executar
21
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Lembro-me de, há vinte e cinco anos, uma pessoa, que está aqui na sala
e de quem eu gosto muito, chamada António Torrado, ter dito, numa carta
que me escreveu (nós não nos conhecíamos): Henrique, quando chegar
a Portugal (eu não estava em Portugal nessa altura) venha falar comigo!
Mostre-me o seu trabalho. Quero desde já dizer-lhe que ninguém vive da
ilustração em Portugal.
Sob esse ponto de vista, o André, enquanto ilustrador tem o seu trabalho
mais próximo, a maneira como ele o executa está mais próxima da maneira
como as crianças o vão ver.
Há uns meses na Ilustrarte no Barreiro, (para quem não sabe é a mais fan-
tástica realização de ilustração que este país tem, a par das iniciativas da
Bedeteca, onde de resto, o André também colabora), havia uma exposição
de ilustrações do André que contavam uma história sem texto. Eram ima-
gens panorâmicas, que, até pela sua escala de concepção, nos levavam
a viajar dentro das próprias imagens; portanto, se eu fosse magrinho se
calhar talvez conseguisse entrar numa das tuas ilustrações!
Parabéns!
23
XVI Encontro de Literatura para Crianças
24
XVI Encontro de Literatura para Crianças
O dia-a-dia de Hussi é semelhante ao de outras crianças africanas da sua
idade e decorre pacificamente entre as idas à escola e à catequese, a par-
ticipação nas tarefas domésticas, os treinos para os grandes desafios do
Batuque Futebol Clube e, acima de tudo, os passeios na companhia da sua
fiel bicicleta, uma bicicleta decrépita e mágica com a qual trava infindáveis
diálogos.
Por outro lado, também são desmontados aos olhos do jovem leitor, (feliz-
mente muito afastado deste tipo de regimes políticos), alguns dos mecanis-
mos da tirania, embora de uma forma simplificada e até caricatural. Nas
várias cenas em que assistimos aos caprichos de um ditador que decide
da paz e da guerra, da vida e da morte dos súbditos, como uma criança
prepotente e cruel, a própria violência é temperada por uma aguda ironia e
25
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Por exemplo: “O professor Bambara era uma criatura minúscula, roliça, ócu-
los de lentes espessas que nem fundo de garrafa, colar de conchas à volta
do pescoço, barba de três dias, o corpo forrado por uma densa floresta de
pêlos por desbravar. Parecia uma almôndega peluda que rolava pelo soalho
ao sabor das ordens do comandante Trovão”.
Também, como nos velhos contos, esta novela acaba com a vitória dos
bons e a aniquilação dos maus, o reconhecimento da coragem de Hussi,
que é promovido a “Comandante” e o seu regresso à vida normal.
26
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Regresso tão mais desejado quanto é uma recuperação de tudo o que,
durante este intervalo, parecia definitivamente perdido: o pai, a mãe, os
irmãos, os amigos e até, nas páginas finais, a sua velha e mágica bicicleta.
Esta história tão séria mas, ao mesmo tempo, divertida, mostra-nos que
vale a pena ser corajoso, que vale a pena lutar pela justiça, que vale a pena
acreditar, com muita força, nos nossos sonhos.
Não queria terminar sem uma palavra para as pequenas aguarelas de Pedro
Sousa Pereira. Embora a ilustração não esteja aqui em foco, estes simples
esquissos contribuem para ir “desdramatizando” os lados mais escuros da
narrativa, acentuando o humor e o optimismo subjacentes a este magnífico
texto.
27
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A Viagem
Uma viagem é sempre, assim e antes de mais nada, uma questão connosco
próprios. Podemos viajar em solitário, a dois, a quatro, até em pequeno gru-
po. Mas as únicas viagens que contam, que marcam e que vivem connos-
co para sempre, são aquelas para as quais nos preparámos mentalmente,
aquelas que começam por ser interiores, antes de serem exteriores.
Dou um exemplo: uma das melhores recordações de viagem que tenho foi
28
XVI Encontro de Literatura para Crianças
uma noite passada no Sahara marroquino, quando eu e um amigo meu, que
é um companheiro de viagem exemplar, nos tivemos de recolher de uma
tempestade de areia, num abrigo de ocasião – uma espécie de acampa-
mento berbere permanente, onde os viajantes de passagem são servidos
do que houver na panela, dormem em tendas colectivas e, se tiverem sorte,
até podem tomar um duche frio. Como, nesse fim de dia, a tempestade
crescia descontrolada, tivemos de passar sem o duche, comemos rapidam-
ente uma tagine de borrego – pobre de carne, mas maravilhosa de sabor – e
recolhemos a uma tenda com uns doze colchões dispostos na areia e onde
éramos os únicos hóspedes. Avisadamente, esse meu amigo foi-se deitar
num dos colchões do fundo, longe da abertura da tenda, por onde a areia
já começava a entrar em golfadas sucessivas. Uma tempestade de areia é
um espectáculo cósmico que me fascina e me aterroriza, ao mesmo tempo.
E, nessa ocasião, des-prezando os sensatos conselhos do meu compa-
nheiro de viagem, tendo triunfado o fascínio sobre o terror, fui-me deitar
exactamente junto à entrada da tenda, no primeiro colchão. Durante cerca
de uma hora, até ser vencido pelo sono e pelo cansaço, fiquei ali, petrificado
de espanto, a ouvir aquele ruído ensurdecedor, a assistir àquela tremenda
batalha entre o céu, a noite e o vento, e obviamente submerso debaixo de
nuvens de areia. Por incrível que possa parecer, adormeci assim, embalado
por aquele caos apocalíptico e acordei, como seria de esperar, coberto de
areia, entranhado de areia em tudo o que era centímetro quadrado de rou-
pa, de orifício ou de pele. Mas foi inesquecível; foi uma das melhores noites
da minha vida. Tão inesquecível e tão importante que ainda hoje, às vezes,
quando deitado no conforto do meu colchão ortopédico, a cabeça em al-
mofadas de penas e um silêncio adequado, apesar de tudo não consigo
adormecer, acontece-me pensar que estou nessa tenda no deserto de Mar-
rocos, debaixo da tempestade de areia e, então, adormeço em paz: assim
concluí que a insónia é um luxo urbano-depressivo.
são estranhas, mas porque isso faz parte do contrato ético entre o viajante
e os seus hospedeiros. O mundo seria infinitamente melhor – não tenho
dúvidas – se fosse governado por antigos viajantes ou, ao menos, por diri-
gentes que tivessem viajado. O mundo seria infinitamente mais seguro se,
por exemplo, quando chegou ao poder, Bush conhecesse mais qualquer
coisa para além do México, do Texas e de Paris. Porque o viajante não tem
leis, nem credos universais. Ele sabe que o mundo é demasiado vasto para
a nossa capacidade de compreensão, que o mundo é demasiado diferente
e complexo para ser reduzido a verdades pretensamente universais. Por
isso, o verdadeiro viajante não parte com ideias-feitas nem sai de casa com
o catálogo dos locais a visitar nem a programação detalhada da viagem.
Como eu gosto de dizer, quando se viaja, não se procura, encontra-se. Ou,
dito por outras palavras que já usei algures, não se encontra o que se pro-
cura, mas o que se encontra.
Nos tempos que correm ( e vocês que me estão a ouvir devem estar a
pensar nisso mesmo), é difícil, todavia, distinguir um viajante de um turista.
Durante dez anos, à frente da Revista “Grande Reportagem”, que inaugurou
em Portugal uma secção editorial de viagem, eu tentei – subtilmente umas
vezes, irritadamente outras – explicar aos leitores a diferença entre uma
e outra coisa. Porque, na altura, eu sempre vi o turismo de massas como
a morte da viagem, a antítese da viagem. No meu conceito romântico e,
talvez elitista, de viagem ela deve conter necessariamente uma dose q.b.
de solidão, de desconforto e de desnorte. Exactamente, o oposto do tu-
rismo organizado, que é mais fácil, mais seguro, mais barato e onde, acima
de tudo, o que valoriza a viagem é o “convívio” e não a solidão. Hoje, sei
que esta é uma causa perdida. O turismo de massas tem aspectos sociais
que não são neglicenciáveis. As excursões de grupo, fazendo baixar os
preços, abriram um horizonte novo a milhões de pessoas que, de outra
forma, nunca teriam viajado. De acordo com a regra democrática essencial,
o direito da maioria triunfa sobre o da minoria. E não há nada a dizer, não há
razão para protestos. Apenas um leve reparo: acho que os programas das
agências de viagens deviam deixar mais tempo livre para os seus clientes
descobrirem os países por si próprios, em lugar de terem a papinha toda
feita e programada ao minuto: pequeno-almoço no hotel às 9:00h, saída
em autopulmann para visita às Pirâmides de Gizé, às 10:00h, com pos-
sibilidade de passeio a cavalo à roda das pirâmides, partida para Luxor às
12:00h, com paragem para almoço no Oásis de Nefrit, no Hotel 4 estrelas
Ramsés II, chegada a Luxor às 17:00h e visita ao templo de Hatshepsut e
ao túmulo de Tutankhamon, alojamento no navio-cruzeiro Song of Nile, 4
estrelas, com jantar a bordo e espectáculo de danças tradicionais com par-
30
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ticipação dos hóspedes, possibilidade de fotografias com escravo núbio,
rainha egípcia, sacerdote de Thebos, Pharaó e serpente, etc., etc. obrigado
por ter viajado connosco... E também acho que as agências deviam dei-
xar de fora dos seus programas as chamadas “visitas obrigatórias” e que
quantidade dos seus clientes dispensariam de bom grado, com vantagem
para eles e para os outros – os visitantes que o são por vontade própria e
não por compra prévia de um programa.
Apesar de tudo, apesar de conceder que não é possível lutar contra a inevi-
tabilidade das coisas e que, portanto o turismo de massas vai, aos poucos,
matando a liberdade dos viajantes – quanto mais não seja porque, bem
vistas as coisas, o mundo também não é assim tão vasto que nele caibam,
simultaneamente, a multidão e a solidão – há outra forma, mesmo assim,
outra filosofia, outra atitude e, sobretudo, uma memória de viagem que de-
vemos preservar e incentivar.
alheia – há quatro livros, pelo menos, cuja leitura eu imporia, nem que fosse
a chicote, aos meus alunos:
- A Ilha do Tesouro
- As Viagens de Gulliver
- Robinson Crusoe
- Moby Dick.
Poderia não lhes ensinar mais nada, mas na idade da reforma, ninguém
seria capaz de dizer que eu não teria tentado. Que não teria tentado abrir
um horizonte hoje tão fechado. Abri-lo à ideia fascinante da viagem. E, para
quem, porventura, entendesse – como eu entendo – que a literatura de
viagens é, não apenas uma maneira de viajar em espírito, mas também, e
talvez, a mais completa, a mais humana e a mais pedagógica das literatu-
ras, não faltam, felizmente livros e autores de referência – daqueles sobre os
quais poderíamos dizer que ninguém deveria morrer sem os ter lido.
Nas Américas, temos o nosso Pedro Teixeira, que fez o relato da descida do
rio Amazonas para o Rei Português; o alemão Alexander de Humbold, que
esteve, em 1800, a viajar pela amazónia e pela América Central e do Sul; o
inglês naturalista Charles Watterton, que viajou pela Guiana no princípio do
século XIX e, já nossos contemporâneos, Chatwin e Luís Sepúlveda, que
viajaram pela Patagónia.
E eis uma lista que, por muito que vos possa ter parecido aborrecida, eu
fiz questão de citar – porque eles são, verdadeiramente, os indispensáveis
–ao falar de viagens e de literatura de viagens, são autêntico Património da
Humanidade. Ao ler os seus livros ou relatos de viagem, um leitor desco-
nhecedor ou desatento poderá ser levado a pensar que eles viveram coisas
extraordinárias, num mundo deslumbrante, que hoje já não existe. E, em
parte é verdade. Só que a outra parte, que muitas vezes não é evidente
por si, é o tremendo esforço físico e psíquico, os sacrifícios inenarráveis
que penaram, a obstinação, a coragem e a loucura de que tiveram de dar
mostras para levar a cabo as suas viagens. Quando, por exemplo, lemos
na escrita depurada, quase humilde, de Wilfred Thesiger, a sua descrição
da travessia das Areias Ocidentais do Deserto Arábico, não conseguimos
imaginar o que significa andar 16 dias sem encontrar água, sabendo que
a vida está suspensa de dois acontecimentos: encontrar o próximo poço
naquela imensidão vazia e que o poço não esteja seco. E, todavia, nesses
dias em que se jogava a sua própria vida, Thesiger foi capaz de escrever
páginas exaltantes sobre a grandiosidade do que via e sentia e de tirar
34
XVI Encontro de Literatura para Crianças
fotografias de uma beleza quase irreal. Também essa obstinação, esse es-
forço até ao limite dos nossos próprios limites, essa extrema capacidade de
sobrevivência e de lucidez simultaneamente, essa vontade de chegar lá ao
fundo, voltar e dar testemunho, são um exemplo, um paradigma de com-
portamento, nas sociedades confortáveis em que hoje vivemos e em que
a população de uma aldeia que passe um dia sem água aparece à noite,
revoltada no telejornal.
Esta é, foi sempre uma das minhas frases-guia, ao longo das incomparavel-
mente menores viagens que tive a sorte de viver.
Deixar em viagem o que nos resta de juventude é a maneira mais certa de
continuar a viajar para sempre – em espírito, se já não fisicamente. Deixar
em viagem o que nos resta de presunção é sinal claro de que não des-
perdiçámos o privilégio de viajar, de que não falhámos o encontro.
Quem verdadeiramente viaja, procura-se. Encontra-se. Vive e está vivo. Até
à última das viagens, até à viagem final, a única que não depende da nossa
vontade, todas as outras fazem de nós pessoas livres e mais ricas.
escrever qualquer coisa como este excerto final do livro de João Teixeira
de Vasconcelos, de Amarante, irmão do poeta Teixeira de Pascoaes, que
foi o maior caçador de elefantes de África. O livro chama-se: África vivida
– Memórias de um caçador de elefantes. João Teixeira de Vasconcelos par-
tiu com 20 e poucos anos, em 1914, para Angola; daí andou pelo Zaire e
pelo norte de Angola, ao longo de mais de 20 anos, tendo morto mais de
100 elefantes. Isto dito hoje, parece politicamente incorrecto, mas quem ler
o livro vai ver que não havia aqui nada de fácil. Cito:
Hoje, a meio caminho da vida, com meio mundo andado, desde a Holanda
aos confins do continente africano; tendo destruído tanta caça, experimen-
tado todos os climas, gozado todas as paisagens; não me palpitando mais
novidades pela terra e não podendo ter nas mãos a Lua que, de longe,
vejo rolar no espaço, o meu maior desejo seria ver-me novamente naquela
idade, naquela força em que fracas eram as feras e pequenina a África para
o poder extraordinário dum sonho, em tenros anos. Doutro modo, o que
resulta da minha vida é apenas um homem vincado, pilado pelo sol tropical,
quase palha pela força de tanto a trilhar nas calorentas planícies, arrumado
ao canto duma lareira nortenha, martirizando-se no impossível de viver.
36
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Paulo Lages
Peregrinação
37
XVI Encontro de Literatura para Crianças
38
XVI Encontro de Literatura para Crianças
39
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Alice Vieira, Glória Bastos, Violante Florêncio e José Carlos Seabra Pereira
40
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Diogo Dória, Rui Marques Veloso, Marta Martins e Leonor Riscado
Francisco Pacheco, Pedro Rosa Mendes, António Torrado e Luísa Ducla Soares
41
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Público na Sala 1
42
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Maria João Seixas
Presidente da mesa
Obrigada pela vossa presença e, maior coragem que vir ouvir os clássicos e
a inevitabilidade dos clássicos, é virem ouvir-me a mim como moderadora,
que normalmente não dou muito tempo para falar a quem foi convidado
para falar. Mas eu prometi aos meus queridos amigos da Gulbenkian por-
tar-me bem, e vou resistir porque me apetecia imenso dizer muitas mais
coisas, mas a seu tempo ...
Saúdo a Fundação Gulbenkian pelo título dado a esta manhã por ser na afir-
mativa. Muitas vezes interrogo-me: serão os clássicos inevitáveis? Gostei
muito deste lado assumidamente afirmativo de que o são. Professor, antes
de me alongar mais como gostaria, agradeço a sua presença. O Professor
Mário Avelar lá terá de esperar que a hora da contemporaneidade chegue,
mas vamos ouvir o Professor José Pedro Serra e, de seguida, ouviremos o
Prof. Mário Avelar.
43
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Eu era muito impaciente em miúda e, um dia, o meu pai - era sempre ele
- chamou-me e com um ar muito sério disse-me assim: - Vou ler para ti uma
página de um autor português, criador de artes plásticas e literárias, que se
chama Almada Negreiros. Não sabia de todo quem era!
44
XVI Encontro de Literatura para Crianças
E o meu pai terminava, de resto como o Almada: - grande sabedoria teve o
monge superior deste mosteiro por ter a paciência amorosa de dar tempo
ao pintor que, por seu lado, grande sabedoria mostrou por não se precipitar
sobre a invenção de um motivo, respeitar, justamente, a qualidade da enco-
menda e fazê-la habitar com a sua experiência mais amorosa.
E o encontro do meu pai comigo nesse dia terminou assim: - E tu, o é que
querias ser nesta história? - O pintor ou algum dos monges?
Até hoje trago comigo esta questão! Não lhe sei dar resposta.
45
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Inevitáveis Clássicos
Dar a ver, dar a ouvir, dar a amar. Mas qual o propósito último desta dádiva?
Que finalidade é essa que nos convoca, que norteia o gesto e modela a pala-
vra? Que fim é esse que pelo desejo que desperta vai orientando a viagem?
O que está em causa é uma primordial ideia acerca do homem, do que lhe
é próprio, do que lhe convém. Sei bem que o estatuto da criança enquanto
criança possui uma dignidade e exige um respeito inquestionáveis, facto
aliás proclamado nos “Direitos da Criança”, mas em última análise está a
grandeza possível do homem que na criança se anuncia, promessa que
poderá ser prematuramente mutilada, ou atentamente cuidada. No sorriso
da criança está a alvorada do sorriso do homem maduro, no gesto infantil
está, embora envolta nas misteriosas vestes do tempo, a semente de um
agir futuro. Como na enigmática pergunta da Esfinge, o que está em causa
é sempre o homem, quem ele é no perfil que para ele desejamos; o que
está em causa é sempre a promessa de nós próprios que mais à frente por
nós espera. Por isso é a educação obra de cultura. Termo de origem latina,
a cultura remete-nos para o verbo colo, colis, colere, colui, cultum, que
significa “habitar”, “estar em”. Se seguirmos o trilho sugerido pela etimolo-
47
XVI Encontro de Literatura para Crianças
gia, a cultura designa o trabalho daquele que, habitando uma terra, a torna
ubérrima. A cultura supõe, então, como condição do seu próprio aparecer,
uma terra potencialmente fértil e os cuidados necessários à transformação
da aridez em fertilidade. No espírito, como no campo, a cultura designa o
processo transfigurador, a mudança qualitativa, metamorfose daquele que,
pelo exercício do cultivo, aspira a uma compreensão mais profunda, mais
larga, mais plena da realidade. E a infância é um vasto campo de promes-
sas várias, de férteis e imensas possibilidades; a inteligência do agricultor
está na sábia adequação às estações e na mestria do cultivo cujo objectivo
é actualizar essa potência, tornar ubérrimo o campo potencialmente fértil.
A causa final da cultura é o homem e o desenho que dele queremos traçar.
Educar é, pois, construir, formar, mas de acordo com uma forma, isto é, com
um princípio, com uma ideia que regula e orienta o processo. O contrário é
comprometer a liberdade e submergir sob a avalanche das circunstâncias.
São muitos os riscos de nos afastarmos dos clássicos, mas, para mim, o
maior risco é perdermos a incandescência da nossa histórica demanda,
consagrado louvor à nossa imperfeição. É por isso que o desprezo pelos
clássicos representa uma amnésia mutiladora, um empobrecimento dos
sentidos, um depauperamento da linguagem. E se o tema deste colóquio
é a viagem, aprendamos com os clássicos a alegria e a aventura do viajar,
metafórica prefiguração dessa outra aventura que exige, como os gregos
a imaginavam, saída armada da cabeça de Zeus, uma inteligência forte e
heróica, como forte e heróico deve ser o modo como se pensa e se vive.
51
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Mário Avelar
Os inevitáveis clássicos...
nossos contemporâneos
Num brevíssimo parêntesis, chamo a vossa atenção para uma forma de ex-
pressão artística que se consagrou a partir dos anos oitenta do século XX, e
que pode e deve ser explorada pedagogicamente, o video-clip. Lembro que
algumas das sátiras mais demolidoras a um certo tipo de media sensaciona-
listas, prenunciados e denunciados no século XIX por Oscar Wilde em “The
Soul of Man Under Socialism” surgem no video-clip de Peter Gabriel, The
Barry Williams Show (a pornografia dos reality shows) e no video-clip dos
REM, A Bad Day (neste caso, a logorreia da informação nos noticiários).
Outro aspecto deve ser mencionado: quando, em 1981, estudei pela primei-
ra vez a poesia de Melville, não foi apenas a Antiguidade Clássica que ali
se insinuou, já que esta poesia iluminava caminhos onde se antecipavam
os cenários dramáticos do poeta de Alexandria Constantino Kavafys e do
nosso Jorge de Sena. Recorde-se que Sena transpôs essa tradição para
54
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Portugal através desses momentos maiores da nossa poesia do século XX
que são Metamorfoses e Arte da Música, não deixan- do de a recordar no
posfácio a eles destinado, e no seu livro A Literatura Inglesa. A geração
que lhe sucedeu, João Miguel Fernandes Jorge, António Franco Alexandre,
Joaquim Manuel Magalhães, prolongá-la-ia em novas direcções. Importa,
no entanto, acentuar que esse diálogo não se limita a uma reprodução do
objecto artístico pela linguagem poética. Como referi através do exemplo
da assimilação da música minimal por Ashbery, esse diálogo pode significar
uma reformulação do próprio conceito de leitura. Em muitos dos exemplos
acima mencionados, o poema descreve obras de arte presentes ou imagi-
nadas, de acordo com as diferentes estratégias ekphrásticas que têm como
momento fundador o chamado episódio do “escudo de Aquiles”, narrado
por Homero na Ilíada. Surgem, todavia, interiorizações mais subtis como
aquela que William Carlos Williams leva a cabo em vários poemas que ante-
cedem a sua, já referida, abordagem sistemática de Brueghel; por exemplo,
a pluralidade de perspectivas consagrada pelo cubismo é transposta para a
poesia, por Williams, através de um jogo sintáctico com a quebra de verso
que permite a coexistência semântica de uma pluralidade de sentidos, ou
.... de perspectivas.
no retorno, permitir que o discurso poético seja por eles contaminado. Veja-
-se, no caso português, os ensaios sobre pintura de João Miguel Fernandes
Jorge que poderão permitir desvendar, obliquamente, linhas de leitura para
a sua poesia.
Além disso, quando falo, por exemplo, de Sena, Williams ou Ted Hughes, es-
tou, afinal, a falar de clássicos meus contemporâneos, isto é, falo daqueles
cujas identidades se destacam das que os antecederam, e, por isso mes-
mo, superaram já a efemeridade e resistirão à erosão do tempo; daqueles
que, de acordo com a expressão de Sena, “especularam emocionalmente
em verso”, e me transmitiram algo que me permite reflectir esteticamente.
Saber distinguir o trigo do joio, percepcionar onde a novidade se insinua,
onde a inovação se distingue da reprodução, é, portanto, o desafio que se
me coloca enquanto investigador e docente de literatura contemporânea.
Mas, porque sou também professor, qual será o testemunho que trans-
mito aos meus alunos? Creio que este testemunho é, fundamentalmente,
intelectual e ético.
60
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Violante Florêncio
Presidente da Mesa
Começo pela Professora Doutora Glória Bastos. É para mim um prazer es-
pecial apresentar a Glória, de quem fui colega, já lá vão uns aninhos. A
Glória trabalha na Universidade Aberta e já na altura do seu mestrado em
Cultura e Literatura Portuguesas trabalhou na obra de Virgínia de Castro
Almeida, uma das autoras que se irá abordar nesta sessão. Além disso,
penso que é com particular prazer e quase orgulho meu, os colegas têm
sempre estas manias de ter algum orgulho no que os seus amigos fazem,
que informo que a Glória fez uma tese de doutoramento sobre literatura
dramática, cujo título é “A construção do social e do individual na literatura
dramática para crianças em Portugal”. Desenvolve também muitas activi-
dades relacionadas com a leitura, com a divulgação e dinamização do livro
e tem muito trabalho de formação efectuado nessa área.
têm o seu Carroll com a sua Alice, nós temos a nossa Alice, ponto final. Te-
nho que lembrar que a nossa Alice, para além de ser a nossa Alice, também
é jornalista e penso que é meritório dizê-lo. A obra de Alice Vieira é conhe-
cida de todos os presentes. É uma obra feita com um cuidado especial para
um público mais pequeno e para um público maiorzinho. Muita gente, nesta
sala, terá acompanhado já não a Alice, mas as Alices da Alice, as Rosas,
as Paulinas, a Ana Marta; além disso, recordo sempre um trabalho, que, a
mim, me agrada particularmente, que são as suas recriações para o público
infantil, nomeadamente, os recontos dos contos tradicionais portugueses.
Ora os autores que aqui vão ser abordados, sempre na perspectiva de se-
rem, por um lado, clássicos, que escreveram livros que já são um suporte
de toda a nossa literatura para a infância, mas também porque contêm nar-
rativas de viagens vão ser, e por esta ordem, Virgínia de Castro e Almeida
e Raul Brandão, Ana de Castro Osório e, finalmente, Adolfo Simões Müller,
que a Alice apresentará.
Mesmo que não nos recordemos de todos os livros que lemos, o mais im-
portante é irmo-nos educando sucessivamente a seleccionar estética e eti-
camente aquilo que vamos lendo. É por isso que julgo tão importante que,
mesmo que um livro pareça menos apetecível do ponto de vista do que se
passa hoje, que quem tem a responsabilidade de educar, ou seja peneirar,
seleccionar, hierarquizar, tem mesmo de separar o que não tem uma lingua-
gem que valha a pena. Quantas mais propostas vierem, melhor, e foi isso
que tentámos fazer aqui: trazer algumas dessas propostas, a hierarquiza-
ção agora é vossa!
62
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Glória Bastos
Os comentários que vou fazer centram-se em dois textos escritos por per-
sonalidades bastante distintas, e publicados nos princípios do século XX,
mas em tempos históricos marcados igualmente por diferentes vivências.
São esses livros, por ordem de publicação, Céu aberto, de Virgínia de Cas-
tro e Almeida, publicado em 1907 (tenho aqui a 7.ª edição, de 1958) e Por-
tugal pequenino, de Maria Angelina e Raul Brandão, publicado em 1930.
Em relação a estas duas obras esclareço, desde já, que a viagem actua a
dois níveis, que correm em paralelo. Por um lado, a deslocação subjacente
à viagem é pretexto para a transmissão de informações, sendo um motor
de conhecimento e aprendizagem sobre o mundo. A erudição constitui um
dos motores centrais da narrativa – sobretudo em Céu aberto –, mesmo
se aqui e ali é atenuada por situações mais consentâneas com o universo
infantil, no qual o lúdico desempenha um papel assinalável. Mas a viagem
será, sobretudo, um movimento essencial de indagação e de construção da
identidade das personagens infantis que protagonizam estas histórias.
Mas o que, de forma evidente, sobressai neste texto é a sua dimensão pro-
fundamente reflexiva, que vai estabelecer uma aliança forte com o percurso
de maturação da personagem central – o Ruço de Má Pêlo. Se em Céu
aberto, como se apontou, tínhamos o domínio do diálogo, revelando uma
estrutura textual mais constante, aqui o diálogo é menos marcante, alter-
nando com o registo narrativo e reflexivo, apontando para uma escrita frag-
mentada, característica, aliás, de outras obras em prosa de Raul Brandão.
O que essencialmente se verifica neste texto, por contraste com Céu aberto,
em que a realidade é objecto de uma leitura fundamentada num registo de
inscrição pragmática, é que o processo contemplativo/reflexivo ocupa um
lugar determinante – e que encontrará alguma similitude na personagem do
primo Jeremias, o excêntrico contemplativo da outra obra. Podemos neste
sentido afirmar que, enquanto no livro Céu aberto predomina um discurso
de tipo didáctico-magistral, em Portugal pequenino salienta-se a matriz
descritiva-reflexiva.
70
XVI Encontro de Literatura para Crianças
José Carlos Seabra Pereira
Ana de Castro Osório ultimamente tem sido recordada porque foi possível
chegar a documentos epistolográficos e outros que vieram confirmar ter
havido uma ligação afectiva muito forte de Camilo Pessanha a Ana de Cas-
tro Osório, digamos mesmo um anseio amoroso que teria desejado con-
sumar-se em ligação conjugal, não fora a decisão moral de Ana de Castro
Osório a ter inviabilizado. Esse malogro de uma relação amorosa conjugal
com Ana de Castro Osório foi um dos factores determinantes, para, não só
71
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Ana de Castro Osório veio viver cedo para Setúbal e fez uma trajectória
muito diversa, mesmo do ponto de vista literário, do seu irmão Alberto
Osório de Castro. Primeiro, opta por escrever sempre em prosa, em nar-
rativa, o que levanta, por vezes, alguns problemas em relação à fronteira
de ficcionalidade e à narrativa não ficcional. Sobretudo torna-se uma figura
muito interessante do ponto de vista cívico-cultural, porque tem uma inter-
venção cívica muito importante mas que reveste sempre uma feição cul-
tural, e tem uma feição cultural que nunca abdica da sua valência interven-
tiva. Começa com essa intervenção cívico-cultural ainda no final do século
XIX e, já no final da sua vida, já nos anos 30 do século XX, mantém uma
actividade bastante intensa, mais notória por partir de uma mulher. Essa
intervenção tem, pelo menos, uma tripla feição: uma claramnete política,
através da imprensa, do livro, da palestra, de teor emancipalista, uma luta
pela emancipação, quer da emancipação de classes desfavorecidas, não
apenas economicamente, mas sócio-culturalmente, quer da emancipação,
em particular, da mulher. A intervenção de teor emancipalista não abdica
naturalmente da sua componente crítica, que conduz a uma finalidade mais
pedagógica do que subversiva, e o estilo, a forma de conteúdo dos seus
textos nunca é panfletária Ela evita a ênfase declamatória, os estereótipos
estilísticos de grande eloquência.
Como criadora literária, há uma faceta que desabrocha com mais força na
obra de Ana de Castro Osório, que é a criação de ficção narrativa para
adultos e não para a infância. Cultiva o conto, a novela, o romance podendo
ser incluída num tipo de escritor que abunda nessa viragem do século XIX
para o século XX, que assimila a técnica realista do romance de espaço,
do romance de costumes, mas cuja mundividência, em termos da sua
expressão literária, parece já claramente impregnada de uma tonalidade
neo-romântica. Um neo-romantismo progressista, no caso dela e de outros
escritores, e isso transparece menos no primeiro livro, que é um livro de
contos, chamado Infelizes, mas muito fortemente nos romances seguintes,
sobretudo no romance Ambições, depois Quatro Novelas, e finalmente no
romance cujo título exprime, de forma emblemática, a componente utópica
desta literatura, O Mundo Novo.
Qualquer passo do romance Ambições, por exemplo, mostra como ela pro-
jecta, nesse caso, num contexto da Beira Alta, tão tradicional, essa con-
cepção de um mundo de nova harmonia social, de nova justiça económica,
etc., promovida através da educação e da cultura. Claro que, por vezes,
com algumas tintas de humanitarismo que hoje nos pode parecer demasia-
do datado, mas sem nunca descambar para neo-compromissos demasiado
fáceis com o chamado neo-franciscanismo dessa altura.
73
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Estou convencido que Ana de Castro Osório, no início do século XX, ainda
acreditava que ia ser uma escritora de ficção para adultos, embora, mais
tarde, a imagem que se foi fixando no campo literário português foi mais de
uma escritora, por um lado, emancipalista, e, por outro lado, de literatura
infantil. O seu trabalho em prol da literatura para a infância começa por volta
de 1897, de forma mais notória em termos de efeito no espaço público.
E, desde esse momento, há um título, que ela vai buscar a João de Deus,
simbólico de todo um património que ela quer fazer-se, ao mesmo tempo,
herdeira e mediadora – é Para as Crianças. Para as Crianças vai aparecer
como título de colecções, de folhetos ou de livros, como título de empreen-
dimentos editoriais, mas também como subtítulo dos seus textos, dos seus
livros, etc. Ela vai trabalhar em vários planos: traduzindo, seleccionando
e adaptando textos de grandes clássicos estrangeiros, Andersen, Grimm,
etc...
Outro plano, que é até agora o único que mereceu um estudo condigno,
(é uma excelente tese de mestrado aqui da Universidade Nova, de Fátima
Oliveira de Medeiros), é a compilação de contos tradicionais portugueses,
através de informantes vivos, que ela chamava “os narradores das lindas
histórias”, e que a levou a contactar com Leite de Vasconcelos, e a escrever,
versões adaptadas ou, pelo menos, largamente inspiradas nesses contos
tradicionais portugueses. Ela faz uma espécie de reconto, seleccionando
aqueles que lhe pareciam melhores para serem, eu agora retomo o título,
Histórias Maravilhosas da Tradição Popular Portuguesa.
Mas é efectivamente na ficção narrativa que ela nos deixa um legado mais
forte. Os desígnios programáticos enquanto criadora de ficção narrativa
para crianças são simples, são clássicos, e pretendem nas palavras dela,
instruir, divertindo ou educar alegrando as crianças. Muitas vezes, indirecta-
mente, ao pronunciar-se de uma forma empática sobre outro escritor, trans-
mite o que é o seu pensamento sobre os objectivos e a axiologia estética
da literatura para a infância. Os seus textos de ficção narrativa têm a sua in-
tertextualidade propiciatória: os contos tradicionais portugueses, com essa
exigência, esse vector ideológico muito presente na cultura do seu tempo
que era a preocupação com a identidade nacional. Essa identidade nacio-
nal estaria, digamos assim, adulterada na cultura ou na incultura de certos
meios urbanos, mas estaria ainda preservada nas fontes da cultura popu-
lar. Mas é nítido para quem lê esses textos que essa matriz se cruza com
outra, que é a matriz da modernidade iluminista e os contos de fadas, por
exemplo do iluminismo francês, transparecem muito no substrato da ficção
narrativa de Ana de Castro Osório.
Mas, a viagem pode aparecer, tal como para outros escritores, dum ponto
de vista, estrutural em textos que parecem não estar focados para a viagem.
É precisamente o que a Dr.ª Fátima Ribeiro de Medeiros conclui depois do
seu estudo de um corpus seleccionado de setenta das suas Histórias Mara-
vilhosas da Tradição Popular Portuguesa, que estão organizados como se,
ao mesmo tempo, fossem um mapa e uma espécie de roteiro e esse roteiro
é um roteiro por formas, por espaços, por lugares, mas, mais do que isso, é
um roteiro por condições de vida, formas de visão do mundo, modelos de
75
XVI Encontro de Literatura para Crianças
O caso mais típico, e que geralmente até vem omitido nas suas tábuas
bibliográficas, é o livrinho de noventa e nove páginas - “Como Portugal foi
chamado à guerra: história para crianças” - que ela escreveu para crianças
entre os oito e os dez anos quando Portugal entrou na Primeira Grande
Guerra. Isto mostra bem que ela achava que as questões, também cívicas,
que faziam parte do devir histórico da nação, deviam ser também transmi-
tidas, de forma especificamente ade-quada, à imaginação e à inteligência
sensível das crianças.
76
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Mais engraçado é que estes livros trazem, a abrir, uma espécie de parecer
do relator da comissão e nota-se logo que o relator da comissão, e porven-
tura a comissão, viu nisto apenas o capital informativo, mas não o contrato
informativo sob forma de narrativa ficcional para crianças. Efectivamente há
aqui dados de aprendizagem de geografia física e, sobretudo, de geografia
humana, mas não é isso o mais importante; há o papel formativo de de-
senvolvimento da sensibilidade ou da inteligência sensível, a partir de uma
crença muito forte no papel da ciência, das luzes, da razão, mas também de
numa educação da afectividade, que se tornasse fonte de energias.
Sem aquele génio encantatório do verbo de Raul Brandão acho que Ana de
Castro Osório sabia muito bem levar a água ao seu moinho!
79
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Alice Vieira
Boa tarde.
Por razões várias já não estou nestes Encontros há uns dois ou três anos e
também me é muito agradável voltar a esta casa. De qualquer modo é-me
ainda um bocadinho difícil estar aqui na Gulbenkian e nestes Encontros e
não encontrar a Natércia Rocha, ali sentada, ela zangava-se connosco, ela
rezingava, mas ela era, realmente, a alma destes Encontros e esteve na
sua organização desde o início. Neste momento deve estar aborrecida por
qualquer coisa que a gente já disse aqui! O pior é que agora, infelizmente,
não pode replicar!
Depois, queria dizer que fiquei muito contente por ter ficado para último
lugar porque assim já tiveram oportunidade de ouvir duas excelentes con-
ferências, já ganharam a tarde, e já não esperam que eu diga grandes coi-
sas.
Adolfo Simões Müller, que é de todos estes clássicos que nós estamos a
falar aqui esta tarde, o único que alguns de nós, conheceram vivo, é um bo-
cadinho diferente dos outros. E, no meu caso, eu tive realmente o privilégio
de ser amiga dele, de ter contactado muito com ele, sobretudo na última
década da sua vida. Vá se lá saber porquê ele adoptou-me, e passei coisas
muito divertidas com ele, entre as quais uma ida a um programa de tele-
visão, em directo, em que o apresentador passou todo o programa a fazer-
-lhe perguntas pensando que estava a entrevistar um bailarino reformado.
Só realmente uma pessoa com grande capacidade de mudar o texto, de
mudar as respostas como o Adolfo Simões Müller, é que aguentaria aquele
tempo todo sem se rir. Foram realmente umas coisas divertidas.
80
XVI Encontro de Literatura para Crianças
informação aqui da Gulbenkian, esclarecendo que este Encontro tinha a ver
com a viagem. Eu pensei: Bom, como é que eu vou enfiar o Adolfo Simões
Müller na viagem? Depois pensei que a viagem é um assunto muito amplo.
Está ali a Maria Augusta Seabra Dinis que, em 1984, fez aqui uma brilhante
dissertação sobre um rol imenso de viagens, possíveis e imaginárias. Como
Adolfo Simões Müller escreveu muito e escreveu sobre tantos assuntos,
escreveu também, evidentemente, sobre viagens.
Tenho muita pena que a obra do Adolfo Simões Müller esteja praticamente
esgotada, ou não esteja nas livrarias, ou ninguém conheça, ou ninguém
saiba onde é que ela está.
Quando eu digo que é muito importante é porque uma das falhas que eu
encontro na literatura que as nossas crianças e os nossos jovens lêem é
exactamente essa: não há biografias, eles não sabem das vidas, não sabem
das histórias, não sabem o que aconteceu. E as pessoas depois espantam-
-se muito quando há feriados, comemorações importantes, e vão para a
rua, de microfone em punho, perguntar às crianças sobre o que é que se
está a comemorar. Claro que eles não sabem! Como é que hão-de saber!
Ninguém nasce ensinado! Nós já não estamos nos anos 40, e teria de ser
feita de outra maneira, mas acho que faz muita falta uma colecção que fale
de histórias que tenham a ver com a nossa história.
81
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Outra viagem possível, através da memória, que ele também fez muito – e já
hoje se falou de outros autores que o fizeram – é a viagem ao mundo fasci-
nante das histórias tradicionais, do maravilhoso, das lendas, das histórias
populares. Nesse caso, ele tem muitas recolhas de lendas, de fábulas, de
histórias e tem um livro que se chama O Príncipe Imaginário e outros Con-
tos Tradicionais Portugueses, onde começa por dizer que não se destina
só a um público infantil, mas tanto quanto possível, a toda a gente. Nós
sabemos que a literatura popular não era exclusivamente para um público
infantil. Daí que estas histórias, sejam, muitas vezes, intercaladas por no-
tas, explicações, que não são já aquele tipo de intervenções muitas vezes
pedagógicas, que ele dava nos textos que escreveu. Estas explicações são
dirigidas a um público adulto e por isso não se fazem dentro do próprio
texto, mas em rodapé.
Eu levei a minha infância toda sem saber o que eram timbales e charame-
las que vinham atrás dos reis, mas não havia história nenhuma, que fosse
história a sério se não tivesse timbales e charamelas. Era fatal! E, pelo meio,
chegavam os bufarinheiros! Também não sabia o que eram os bufarinheiros
mas que tinham de entrar em todas as histórias, isso tinham!
tudo, a escola ensinava pouco. Se calhar, havia muito menos tempo de au-
las, e era preciso que os livros dessem alguma cultura às crianças, dessem
mais sabedoria para as crianças serem cidadãos de corpo inteiro, cidadãos
que pudessem depois trabalhar.
Para além disto, e não tendo já muito a ver com o tema da viagem, o
Adolfo Simões Müller também adaptou muitas obras clássicas. Era também
uma altura em que se adaptava muito as obras clássicas. Havia adaptações
84
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que tornavam os livros quase autónomos do original, quase livros diferen-
tes como, por exemplo, toda a série das Mulherzinhas, da Louise Alcott,
transformados pela Maria Paula de Azevedo. Eu só muito mais tarde é que
percebi que aquilo que eu tinha lido, O Colégio da Ameixoeira, Os Rapazes
da Maria João, que aquilo era as Mulherzinhas e todos os outros livros da
Louise Alcott.
Mas, para lá disto tudo, uma das grandes viagens que podemos fazer com
Adolfo Simões Müller é através da imprensa, e aí ele é muito importante
também. O Adolfo Simões Müller foi extremamente importante através dos
jornais que criou. Em 1935, fundou o jornal O Papagaio e é responsável pelo
jornal até 1941, quando sai para ir fundar O Diabrete, sem interrupção. Em
1952, nasce O Cavaleiro Andante, que deve ter marcado toda uma geração,
que tem hoje a minha idade. Custava em 1952 dezoito tostões; não era
barato! Tinha uma periodicidade semanal e aguentou-se dez anos. Também
em todos estes jornais houve sempre uma grande preocupação dele (que
já se notava também, evidentemente, na ilustração dos livros) de chamar
grandes nomes das artes plásticas, grandes nomes da ilustração para os
jornais, para as revistas e também para a ilustração dos livros. Das artes
plásticas, colaboraram, por exemplo, e também evidentemente no caso
dos jornais, Reinaldo Ferreira, a Maria Archer, Virgínia de Lopes Mendonça,
a Etelvina Lopes de Almeida, a Esther de Lemos, a Maria Lamas o Fernando
Bento, o Stuart Carvalhais, o José Rui, o Vítor Péon, o José Garcês. Acho
que todos os nomes, e eu apenas referi alguns, que tinham peso naquela
época estão representados n’ O Cavaleiro Andante e já estavam n’ O Papa-
gaio.
Hoje nós reparamos que se há coisa que falte no nosso quotidiano para
crianças e para jovens é um jornal, é uma revista. Os adultos também já
não lêem jornais mas se, realmente, houvesse alguma coisa que levasse
as crianças a habituarem-se a ler uma revista, a habituarem-se a ter o seu
85
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Não sei como é que aquilo foi parar ao Pagem! Se me lembro deste episó-
dio é porque o Adolfo Simões Müller uma vez me ofereceu esse Pagem, e
disse-me: está a ver isto? Estava lá eu realmente e até lá estava a fotogra-
fia!
86
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Ora bem, eu acho que o fundamental, como dizia Alexandre Herculano, a
melhor homenagem que se pode fazer a um escritor é ler os seus livros.
Neste caso, seria poder fazer com que estes clássicos estivessem aces-
síveis, que as crianças e os jovens tivessem a possibilidade de ler, não
digo todos, evidentemente; mas esta série de biografias porque são um
tipo de biografias que não se limitam a contar a história; Müller junta sempre
qualquer coisa de inventado, de criativo, de insólito.
Lembro-me, por exemplo, n’A Pedra Mágica e n’A Princesinha Doente, que
é a história da Madame Curie, que uma das coisas que me ficou sempre
daquela história não foi a invenção da Madame Curie, mas, para a crian-
ça que eu era, o mais importante daquilo tudo eram duas imagens que ele
dava extremamente fortes: uma era a Madame Curie, que, quando foi estu-
dar era tão pobrezinha e tinha tanto frio que, para se aquecer, punha uma
cadeira em cima da cama e em cima dela. Nunca percebi como é que uma
cadeira podia fazer calor! E fartava-me de ler aquilo! Outra é Madame Cu-
rie, já tão importante, com aquelas descobertas todas, no dia que coincidiu
com a grande descoberta do rádio, estava muito preocupada porque a filha,
pequenina, tinha-lhe caído o primeiro dente e chorava muito! Essas coi-
sas a mim tocavam-me muito porque como nunca ninguém ligava à minha
queda de dentes, eu achava que uma mãe, que tinha descober-to uma
coisa tão importante, e ainda se preocupava com a filha que lhe tinha caído
um dente, que estava cheia de dores, devia ser uma mãe extraordinária!
Do livro da Madame Curie, do Adolfo Simões Müller, são essas coisas que
eu me lembro! Claro, pelo meio deve estar a história toda, penso eu! Mas,
aquilo que fica é outra coisa, e em todos os livros dele desta co-lecção há
sempre outra coisa! No caso do Trinca Fortes, por exemplo, a história com
a Dinamene é a coisa mais importante do livro, como é evidente! Muito mais
importante do que Os Lusíadas!
Marta Martins
Moderadora
Muito bom dia. Chamo-me Marta Martins. Sou a moderadora desta mesa. À
minha direita estão o actor Diogo Dória e o Professor Rui Veloso, da Escola
Superior de Educação de Coimbra, e, à minha esquerda, está a professora
Leonor Riscado, também da Escola Superior de Educação de Coimbra.
Vamos ter duas intervenções sobre Andersen. A primeira vai ser da Dr.ª
Leonor Riscado, a seguir haverá a leitura de um texto pelo actor Diogo
Dória, faremos um intervalo e depois será a altura da intervenção do Dr. Rui
Veloso. Seguidamente haverá um debate sobre a intervenção da primeira
parte, conjuntamente com a intervenção da segunda parte.
88
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A Sombra
de Hans Christian Andersen
Nos países tropicais o sol queima de uma forma terrível. Aí, as pessoas
põem-se trigueiras como o cajueiro e, nos países mais quentes, escuras como os
negros. Vindo do seu país frio, chegara um sábio a uma destas regiões quentes,
que julgava poder ali passear como na sua terra; mas cedo se persuadiu do con-
trário. Viu-se obrigado, como qualquer pessoa razoável, a fechar-se, durante o dia,
em casa; parecia adormecida ou abandonada. De manhã à noite, o sol brilhava por
entre as casas altas, ao longo da pequena rua onde ele morava. Na verdade, era
insuportável.
O sábio dos países frios, que era ainda jovem, julgava-se uma fornalha ar-
dente; emagrecia cada vez mais; a sua sombra estreitava-se consideravelmente. O
sol prejudicava-o. Na verdade, ele só se reanimava depois do poente.
Que prazer, então! Assim que, no quarto, se acendia uma vela, a Sombra
estendia-se por toda a parede e até no tecto se estirava o mais possível, para recu-
perar as forças.
O sábio, por seu lado, ia até à varanda, para lá se deitar e, à medida que as
estrelas apareciam no céu admirável, sentia-se reviver, a pouco e pouco. Em breve
surgia gente em todas as varandas da rua, pois até as pessoas da cor do cajueiro
precisam de ar! Como tudo se animava então! Os sapateiros, os alfaiates, todos se
espalhavam pela rua. Viam-se ali mesas, cadeiras e milhares de luzes. Um falava,
outro cantava; passeava-se; rodavam as carruagens; passavam burros fazendo soar
as campainhas; era deitado à terra um morto, ao som de cantos sacros; os garotos
atiravam petardos; os sinos das igrejas repicavam; numa palavra, a rua estava bas-
tante animada.
Só uma casa, aquela que estava situada em frente da do sábio, é que não
dava sinal de vida. Todavia, morava lá alguém, pois, na varanda, desabrochavam
flores admiráveis, o que necessariamente indicava que alguém as regava. À noite,
também se abria a porta, mas, lá dentro, de onde saía uma música suave, estava
escuro. O sábio achava aquela música incomparável, mas isso talvez fosse produto
da sua imaginação, pois ele, com satisfação considerava tudo incomparável nos
países quentes, se o sol não brilhasse ali sempre. O proprietário da casa em que
morava disse-lhe que ignorava em absoluto o nome e a condição do locatário
daquela casa, e, quanto à música, declarou-a horrivelmente enfadonha.
«É alguém que estuda continuamente o mesmo trecho sem o conseguir
aprender - disse ele. - Que perseverança!»
Uma noite, o sábio despertou e julgou ver um clarão estranho na varanda
da casa vizinha; todas as fIores brilhavam como chamas e, no meio delas, estava
de pé uma rapariga alta, esbelta e encantadora, que brilhava tanto como as flores.
Esta luz intensa feriu os olhos do nosso homem, que se levantou de chofre e foi
afastar a cortina da janela, para observar a casa em frente; mas tudo desaparecera.
Apenas estava entreaberta a porta que dava para a varanda, continuando a ouvir-
89
XVI Encontro de Literatura para Crianças
-se a música. Forçosamente havia bruxedo ali dentro. Quem habitava ali? Por onde
seria a entrada? O rés-da-chão era todo constituído por lojas; em nenhuma parte se
via corredor nem escada que conduzisse aos andares superiores.
Uma noite, estava o sábio sentado na varanda e, por detrás dele, no quarto,
brilhava uma vela; era, pois, muito natural que a sua sombra se desenhasse na
parede do vizinho. Ela destacava-se entre as fIores e repetia todos os movimentos
do sábio.
«Creio que a única coisa que ali vive, em frente, é a minha sombra: como
ela se instala elegantemente entre as flores, junto à porta entreaberta! Devia ser
bastante fina para entrar, ver o que se passa e vir-mo contar.»
- Vamos! - gritou ele, por gracejo. - Ao menos, mostra que serves para al-
guma coisa. Entra!
E fez com a cabeça um sinal à Sombra, e a Sombra repetiu o sinal.
- Vai! Mas não fiques lá muito tempo.
A estas palavras o sábio levantou-se e a Sombra fez o mesmo que ele.
Voltou-se e a Sombra voltou-se igualmente. Mas alguém que tivesse prestado aten-
ção teria visto que a Sombra entrava, pela porta entreaberta, em casa do vizinho, no
momento em que o sábio, por sua vez, entrava no seu quarto, correndo atrás de si
o cortinado.
No dia seguinte, quando saiu, para ir tomar o seu café e ler os jornais, es-
tando ao sol, exclamou, de repente:
- Que é isto? Onde está a minha sombra? Terá ela, realmente, partido on-
tem à noite e ainda não terá vindo? É excessivamente aborrecido!
Grande era a sua contrariedade, não por a Sombra ter desaparecido, mas
porque ele conhecia, como toda a gente nos países frios, a história de um homem
sem sombra, e, se um dia, quando regressasse, contasse a sua própria história,
acusá-lo-iam de plagiário, acusação que de nenhum modo merecia. Resolveu, pois,
não falar nisso a ninguém. E fez bem.
À noite, voltou à varanda, depois de ter colocado a luz bem por detrás dele,
com o fim de fazer voltar a sua sombra; mas foi em vão que se estendeu, se enco-
lheu e repetiu a mesma palavra: «Vem! vem!» A sombra não apareceu.
Esta separação atormentou-o muito; mas, nos países quentes, tudo cresce
depressa, e, ao fim de oito dias, notou, com grande prazer, que das suas pernas,
enquanto passeava ao sol, saía uma nova sombra. Provavelmente ficara lá a raiz da
antiga. Ao fim de três semanas, tinha uma sombra decente, que, em viagem para
os países do Norte, cresceu de tal forma, que o nosso sábio até se contentaria com
metade.
De regresso ao seu país, escreveu vários livros sobre o que o mundo tem
de verdadeiro, de belo e de bom, e, assim, muitos anos se passaram.
Um dia, estava ele sentado no seu quarto, quando alguém bateu à porta.
- Entre! - disse.
Mas ninguém entrou. Foi abrir e viu um homem muito alto e muito magro,
correctamente vestido e com ar distinto.
90
XVI Encontro de Literatura para Crianças
- A quem tenho a honra de falar? - perguntou o sábio.
- Já calculava que o senhor não me reconheceria - respondeu o homem,
delicadamente. - Vê? É que eu fiz-me corpo; tenho carne e uso fato. Não reconhece
a sua antiga sombra? O senhor julgou que eu nunca mais voltasse. Tive muita sorte,
depois que o deixei; estou rico e tenho, por conseguinte, meios para me resgatar.
E fez tilintar um molho de berloques ligados à pesada corrente de ouro do
relógio, enquanto os seus dedos, cobertos de brilhantes, lançavam mil chispas.
- Ainda não estou em mim! - disse o sábio. – Que significa isto?
- Realmente, é extraordinário, mas o senhor mesmo não é também um
homem extraordinário? E eu, sabe-o muito bem, segui, desde a infância, os seus
exemplos. Achando-me amadurecido para fazer sozinho o meu caminho na vida, o
senhor lançou-me nela, e eu colhi perfeito êxito. Senti desejo de o ver antes da sua
morte e, ao mesmo tempo, visitar a minha pátria. O senhor bem sabe, ama-se sem-
pre a pátria. Como sei que o senhor tem outra sombra, cumpre-me perguntar-lhe
agora se devo alguma coisa a ela ou ao senhor. Faça favor de dizer.
- És então tu, realmente! - respondeu o sábio. É extraordinário! Nunca pen-
sei que a minha antiga sombra me voltasse sob a forma de um homem.
- Diga o que devo - redarguiu a Sombra. - Não gosto de dívidas.
- De que dívidas falas tu? Crê que me sinto feliz com a tua sorte. Senta-te,
velho amigo, e conta-me tudo o que se passou. Que vias tu em casa do vizinho, no
país quente?
- Contar-Iho-ei, mas com uma condição: é que jamais dirá a ninguém, daqui
da cidade, que eu fui a sua sombra. Tenciono casar-me; os meus meios permitem-
-me sustentar família e até mais do que isso.
- Fica tranquilo! Não direi a ninguém quem tu és. Aqui tens a minha mão,
prometo-te. Um homem é um homem e uma palavra…
- E uma palavra é uma sombra.
Ditas estas palavras, a sombra sentou-se e, ou fosse por orgulho ou para
aprender, colocou os pés calçados de botas de verniz sobre o braço da nova som-
bra, que repousava aos pés do dono como um cão de água. Esta conservava-se
muito quieta para ouvir, tão impaciente estava por saber como poderia libertar-se e
tornar-se senhora de si própria.
- Veja se adivinha quem morava no quarto do vizinho! começou a primeira
Sombra. - Era um ente encantador, era a Poesia. Permaneci lá três semanas, e este
tempo valeu para mim três mil anos. Li todos os poemas possíveis, conheço-os
perfeitamente. Através deles vi tudo e tudo sei.
- A Poesia! - exclamou o sábio. - Sim, é verdade; não era, mais que um
eremita no meio das grandes cidades. Vi-a por um instante, mas o sono pesava-me
sobre os olhos. Brilhava na varanda como uma aurora boreal. Vamos! Continua.
Uma vez passada a porta entreaberta...
- Encontrei-me na antecâmara; estava um pouco escuro, mas distingui na
minha frente uma fila imensa de quartos, cujas portas se encontravam abertas de
par em par. Fazia-se luz a pouco e pouco e, sem as precauções que tomei, teria sido
91
XVI Encontro de Literatura para Crianças
92
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Exactamente um ano depois, voltou a Sombra.
- Como está? - perguntou ela.
- Escrevi acerca da verdade, da beleza e da bondade, mas ninguém deu
atenção a tudo isso. Estou desesperado.
- Faz mal; olhe para mim; eu engordo, e é o que é preciso. O senhor não
conhece o mundo. Aconselho-o a fazer uma viagem; e, melhor ainda, como ten-
ciono fazer uma este Verão, dar-me-á muito prazer se me quiser acompanhar, na
qualidade de sombra. E eu pago a viagem.
- O senhor vai longe de mais.
- Isso é conforme. Pode estar certo de que a viagem lhe fará bem. Seja a
minha sombra, não tem nenhuma despesa a fazer.
- É de mais! - disse o sábio.
- O mundo é assim e será sempre assim - redarguiu a Sombra, indo-se
embora.
O sábio sentia-se cada vez pior, à força de aborrecimentos e desgostos.
O que ele dizia da verdade, da beleza e da bondade, produzia na maior parte dos
homens o mesmo efeito que as rosas numa vaca.
- Você parece uma sombra - disseram-lhe uma vez, e isso fê-lo estreme-
cer.
- O senhor precisa de tomar banhos - aconselhou-lhe a Sombra, que o
tinha voltado a ver -, é o único remédio. Irei consigo, pois a minha barba não cresce
convenientemente, e isto é doença. É preciso ter barba. Eu pago a viagem; o senhor
fará a descrição e isso entreter-me-á pelo caminho. Seja razoável. Aceite a minha.
oferta, viajaremos como antigos camaradas.
Puseram-se a caminho. A Sombra tornara-se o amo, e o amo convertera-
se na sombra. Por toda a parte eles se seguiam um ao outro, sempre em contacto,
pela frente ou por trás, conforme a posição do Sol. A Sombra sabia sempre ocupar
o conveniente lugar do amo, e o sábio não se formalizava com isso. Estava com boa
disposição e um dia disse à Sombra:
- Visto que somos companheiros de viagem e que temos crescido juntos,
tratemo-nos por tu, é mais íntimo.
- O senhor fala com franqueza - disse a Sombra, ou, antes, o verdadeiro
amo -, eu também lhe vou falar com franqueza. Na qualidade de sábio, o senhor
deve saber quão estranha é a Natureza. Há pessoas que não podem tocar um bo-
cado de papel pardo sem se sentirem mal; outras tremem quando ouvem esfregar
um prego numa vidraça; quanto a mim, sinto a mesma sensação quando ouço
tratarem-me por tu: afigura-se-me que isso me deita por terra, como no tempo em
que eu era a sua sombra. Bem vê que isto em mim não é orgulho, mas sentimento.
Não posso deixar-me tratar por tu, mas tratá-Io-ei a si: será metade do que deseja.
A partir desse momento, a Sombra tratou por tu o seu antigo amo.
«Esta é forte! - pensou este. - Eu trato-o por senhor e ele trata-me por tu.»
Não obstante, resignou-se.
Chegados aos banhos, encontraram uma grande quantidade de es-
93
XVI Encontro de Literatura para Crianças
trangeiros; entre outros, uma formosa princesa. que, afectada de um sinal inquieta-
dor, via claro de mais.
Com esta qualidade, distinguiu a Sombra entre todas as outras pessoas.
«Ele veio aqui para fazer crescer a barba, segundo dizem; mas a verdadeira causa
da sua viagem é que não tem sombra nenhuma.»
Cheia de curiosidade, estabeleceu, durante um passeio, conversação com aquele
estrangeiro. Na sua qualidade de princesa, não necessitava de fazer muitos rodeios
e, por isso, lhe disse:
- A sua doença é não produzir sombra.
- Vossa Alteza Real acha-se felizmente muito melhor - respondeu a Sombra.
- Sofria de ver demasiado claro, mas agora está curada, pois não vê que tenho uma
sombra, e até uma sombra extraordinária? Vê a pessoa que me segue continua-
mente? Não é uma sombra vulgar. Do mesmo modo que, às vezes, se dá por libré
aos criados um tecido mais fino que aquele próprio que se usa, assim eu adornei a
minha sombra como um homem. Até lhe dei uma sombra. Por muito caro que isso
me custe, eu gosto de ter coisas que os outros não têm.
«O quê! - pensou a princesa. - Estarei realmente curada? É verdade que a
água, na época em que vivemos, possui uma virtude singular, e estes banhos têm
grande reputação. No entanto, não os deixarei ainda; divirto-me aqui muito e este
rapaz agrada-me. Oxalá que a barba lhe não cresça, porque, então, vai-se em-
bora!»
À noite, a princesa dançou com a Sombra no grande salão de baile. Ela era
muito ágil, mas o seu cavalheiro ainda o era mais; nunca encontrara um como ele.
Disse-lhe o nome do seu país, que ele conhecia muito bem, pois tinha olhado para
ele através das janelas do comboio. Ele contou mesmo à princesa certas coisas,
que a surpreenderam bastante. Decerto, era o homem mais instruído do mundo!
Ela testemunhou-lhe, pouco a pouco, toda a sua estima e, quando mais uma vez
dançaram, traiu o seu amor por olhares que pareciam atravessá-lo. Não obstante,
como erá rapariga sensata, disse para consigo: «Ele é instruído, está bem; dança
perfeitamente, ainda está bem; mas possui acaso conhecimentos profundos? É
isso que há de mais importante; vou examiná-lo um pouco a este respeito.»
E começou a interrogá-lo sobre coisas de tal modo difíceis, que ela própria não
seria capaz de responder. A sombra fez uma careta.
- Então, não sabe responder? - interrogou a princesa.
- Eu sabia tudo isso na minha infância - respondeu a Sombra - e estou
certo de que a minha sombra, que vedes ali, em frente da porta, lhe responderia
facilmente.
- A sua sombra! Seria muito de admirar.
- Não estou bem certo disso, mas julgo que sim, visto que ela me seguiu e
escutou durante tantos anos. Somente, Vossa Alteza Real permitir-me-á que chame
a sua atenção para um facto muito particular: esta sombra está de tal forma or-
gulhosa de permanecer junto a um homem, que para a encontrar de bom humor,
condição necessária para responder bem, é preciso tratá-la absolutamente como
94
XVI Encontro de Literatura para Crianças
se fosse uma pessoa.
- Estou de acordo - disse a princesa.
E aproximou-se do sábio para lhe falar do Sol, da Lua, do homem sob todos
os aspectos. Ele respondia-lhe convenientemente e com muito espírito.
«Que homem tão distinto - pensou ela - para ter uma sombra tão sábia!
Seria uma benção para o meu povo, se eu o escolhesse para esposo.»
E a princesa e a Sombra depressa ajustaram o casamento; mas ninguém o
devia saber antes de a princesa ter regressado ao seu reino.
- Ninguém! Nem mesmo a minha sombra - disse a Sombra, que tinha razões
para isso.
Logo que eles chegaram ao país da princesa, a Sombra disse ao sábio:
- Escuta, meu amigo: sou feliz e poderoso até ao máximo, e vou agora dar-
-te uma prova particular da minha benevolência. Habitarás o meu palácio, tomarás
lugar a meu lado na carruagem real e receberás cem mil escudos por ano. No
entanto, ponho uma condição para isso: é que te deixes qualificar de sombra por
toda a gente. Nunca dirás que foste um homem, e, uma vez por ano, quando eu me
mostrar ao povo na varanda iluminada pelo sol, deitar-te-ás a meus pés como uma
sombra. Está assente que eu despose a princesa e a boda efectua-se esta noite.
- Não, é de mais! - exclamou o sábio. Nunca consentirei nisso; vou desen-
ganar a princesa e todo o país. Quero dizer a verdade: sou um homem, e tu, tu não
és mais do que uma sombra vestida.
- Ninguém te acreditará: sê razoável, ou chamo a guarda.
- Vou já ter com a princesa.
- Mas eu chegarei em primeiro lugar e mandar-te-ei prender.
E a Sombra chamou a guarda, que já obedecia ao noivo da princesa, e o
sábio foi levado.
- Tu estás a tremer! - disse a princesa, quando voltou a ver a Sombra. - Que
há? Tem cuidado, não adoeças no dia da tua boda.
- Acabo de assistir a uma cena cruel: a minha sombra enlouqueceu. Ima-
gina que se lhe meteu na cabeça que é um homem, e que eu sou a sua sombra.
- É horrível! Espero que a tenham fechado.
- Sem dúvida; receio que nunca mais se restabeleça.
- Pobre sombra! - disse a princesa. - É bem infeliz. Talvez fosse um bene-
fício tirar-lhe o pouco de vida que lhe resta. Sim, pensando bem, julgo necessário
acabar com ela em segredo.
- É uma resolução medonha – respondeu a Sombra, fingindo que suspirava.
– Perco um servidor fiel.
“Que nobre carácter!” – pensou a princesa.
À noite, toda a cidade esteve iluminada, e dispararam-se salvas de arti-
lharia; por toda a parte se ouvia músicas e cantares. A princesa e a Sombra mostra-
ram-se à varanda, e o povo, ébrio de alegria, aclamou-os três vezes.
O sábio não viu nada, não ouviu nada, porque o tinham matado.
95
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Ora, um grande obrigada ao Professor Rui Veloso por nos ter trazido, aqui,
a pretexto da obra de Andersen, tantas outras vozes de autores, que nós,
gostosamente, homenageamos.
Creio que quem está sentado lá atrás, não tem visibilidade suficiente para
perceber que muitas das referências que foram feitas se situam em escri-
tores do nosso tempo que, felizmente, se encontram entre nós, aqui nesta
sala, na fila da frente.
96
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Leonor Riscado
são, veja-se o esclarecedor Prefácio de Marc Auchet a Andersen, Contes, (Préface, Notes et Traduction
Nouvelle par Marc Auchet), Paris, Classiques de Poche, 2003.
3 Estes e outros receios de Andersen aparecem referidos por Naomi Lewis, na sua Introdução a Hans
Andersen’s Fairy Tales – a Selection, (Translated from the Danish by L. W. Kingsland and an Introdu-
ction by Naomi Lewis), Oxford-New York, Oxford University Press, 1998, p. X.
4 Idem, Ibidem, p. X.
97
XVI Encontro de Literatura para Crianças
– em 1805, o pai de Andersen tem apenas vinte e dois anos – é tanta que
a cama foi improvisada com a madeira do catafalco da igreja onde estivera
exposto o ataúde de um nobre5 o que levou, algum tempo depois, a criança
a interrogar-se sobre o que seriam uns pedaços de pano preto que pendiam
do leito6. E numa descrição do ambiente e da casa da infância, recorda An-
dersen, mais tarde - No algeroz, entre a nossa casa e a do vizinho, tinham
posto uma calha cheia de terra, onde cresciam magnificamente cebolinhas
e salsa: e a isto se reduzia a horta da minha mãe7. A própria infância da mãe
lhe causa dor, quando sabe que, obrigada pelos pais a pedir esmola, ela
chorava e se escondia debaixo da ponte, sem ousar voltar para casa – Com
a minha imaginação de criança conseguia ver tão bem esta cena que só de
pensar nela as lágrimas corriam-me8. As carências materiais eram de tal or-
dem que o facto de, no dia da Confirmação, ter tido o primeiro par de botas
novas feitas pelo pai lhe provocou tamanha alegria que quase lhe desviou a
atenção da cerimónia religiosa e isso provoca-lhe um remorso que o leva a
confessar: A minha devoção foi perturbada. Dava-me conta disso e estava
torturado porque os meus pensamentos iam tanto para os meus sapatos
como para o bom Deus9 ; para complicar mais a situação, vinham-lhe tam-
bém, provavelmente, à memória uns sapatos de baile, vermelhos, com os
quais esse mesmo pai falhara a prova de admissão no castelo vizinho que
buscava um sapateiro10 e, entre a realidade presente e a experiência pas-
sada, o seu espírito devoto entretinha-se a deambular, sempre, por outras
paragens. Com o pai terá aprendido a imaginar e talvez esta sua tendência
para a imaginação e o inconformismo lhe tenha salvo a infância e o futuro
porque, a par dela, terá recebido como carga genética paterna a tendên-
cia para a melancolia, a hipersensibilidade e a instabilidade emocional. Em
contrapartida, a mãe ter-lhe-á incutido, lado a lado com uma enorme dose
de superstição e uma religiosidade ingénua, a capacidade de sobreviver
através das agruras da vida11. A partir desta polifacetada herança, Hans
Christian Andersen vai criar, para si próprio e transmitir aos outros, a ideia
jamais desmentida de que a sua vida foi um “belo conto”12 e de que o bom
Deus dispõe tudo pelo melhor. Assim, também a Providência protege os
eleitos mas, para isso, eles devem demonstrar merecê-lo13. A impressão
5 Estas e outras informações sobre a vida de Andersen e as suas memórias da infância surgem em Car-
men Bravo-Villasante, na sua História da Literatura Infantil Universal, vol. I, Lisboa, Vega, 1977.
6 Adolfo Simões Muller, op. cit., p.23.
7 Carmen Bravo-Villasante, op. cit., p.54.
8 Idem, Ibidem, p.55.
9 A citação é extraída do Prefácio de Alain Faudemay a Andersen – Contes choisis, Paris, Gallimard,
2001, p. 25.
10 Esta é a hipótese avançada por Adolfo Simões Muller, op. cit., pp. 30-32.
11 Alguns destes aspectos são referidos na Introdução já citada de Naomi Lewis, a pp. X e XI.
12 O texto consultado encontra-se em Project Gutenberg’s The True Story of My Life, by Hans Christian
Madame Schall diante de quem H. C. Andersen cantou e dançou de tal forma empolgado que ela o
julgou louco. A este propósito e, também, a propósito da sua difícil escalada para a fama, veja-se Silva
Duarte, op. cit., “Uma Biografia”.
99
XVI Encontro de Literatura para Crianças
O’ Neill, filhos do Cônsul de Portugal na Dinamarca, travaram conhecimento com Andersen, em casa
do Almirante Wulff, em Copenhaga, nos tempos de juventude. A edição portuguesa mais recente desta
obra é traduzida directamente do dinamarquês, tem prefácio e notas de Silva Duarte, e foi publicada
pela Gailivro, em 2003.
18 Cf. Silva Duarte, Andersen e a sua Obra, p. 15.
19 Idem, ibidem.
20 Marc Soriano, op. cit., p.43.
21 Veja-se The Hans Christian Andersen Center www.andersen.sdu.dk onde surge a listagem dos títulos
referido por Alain Faudemay em Andersen – Contes choisis. Face às reacções sisudas da assistência,
o autor teve a estranha impressão que eles não compreenderam a história.
25 Em Portugal, existem traduções directas do dinamarquês, por Silva Duarte; consultaram-se Contos
de Andersen, Lisboa, Portugália, 3ªed., 1970; Hans Christian Andersen - Contos para Adultos, Bar-
celos, Civilização, 1979; Os cisnes selvagens e outros contos, Lisboa, Estampa, 2ª ed., 2003; Contos,
Lisboa, Estampa, 3ª ed., 2001. Para além destes, foi também possível aceder à tradução do dinamar-
quês, já indicada, de Ana de Castro Osório e Lisa Tilberg, A princesa e a ervilha e outros contos,
Lisboa, Vega, 1993.
26 Cf. Silva Duarte, Andersen e a sua Obra.
101
XVI Encontro de Literatura para Crianças
tendimento superior das coisas permaneceu sempre nele mas toda a sua
existência foi marcada pela errância e pela solidão, pela procura de um lar
que nunca teve, e nunca conseguiu ou não quis construir; oriundo de uma
sociedade que extremava as classes sociais, marcou-o sempre o estigma
das suas origens e, mesmo quando reconhecido e admirado entre os ricos
e poderosos do Mundo do seu tempo, apesar de uma satisfação evidente,
certo desconforto permanecia nesse espírito hipersensível e orgulhoso.
107
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Trilhos Andersenianos na
Literatura Infantil Portuguesa
Creio ser um facto constatado por todos a clara influência que Hans Chris-
tian Andersen exerceu e continua a exercer na criação literária para crian-
ças. Num outro plano, verificamos que ao longo de várias gerações os seus
contos preencheram o imaginário infantil, constituindo suporte de momen-
tos únicos que são os das histórias contadas pelos pais ou avós aos peque-
nos seres ávidos da descoberta do mundo e dos segredos que ele encerra.
Quem é que nunca se sentiu patinho feio, recusado e agredido pelos outros,
até descobrir um lugar ao sol? Quem é que nunca encontrou, no percurso
apressado para o local de trabalho ou para o espaço de lazer, meninas de
fósforos a pedirem-nos que compremos o pouco que têm para vender a fim
de fugirem à agressão quotidiana e prometida? Quem é que nunca reparou,
ao folhear as revistas da chamada vida social, que há certas princesas com
tamanha sensibilidade que encontram ervilhas incómodas onde se deveria
degustar a seda pura e os veludos mais caros? Quem é que nunca sentiu
asco pela estupidez e vaidade imperiais daqueles que, na sua prepotência,
se julgam, narcisicamente, os mais belos e os mais inteligentes?
109
XVI Encontro de Literatura para Crianças
calizar a nossa análise num corpus restrito. Matilde Rosa Araújo, Sophia de
Mello Breyner Andresen, Ricardo Alberty e António Torrado são escritores
galardoados com o Grande Prémio da Fundação Calouste Gulbenkian pelo
conjunto da sua obra; outros houve na lista deste Prémio onde também
poderíamos encontrar pontos de contacto com Andersen. Creio que a in-
fluência deste escritor é de tal maneira vasta que será lícito afirmar que os
bons escritores para crianças, em Portugal e no mundo, têm um quinhão,
grande ou pequeno, de dívida para com ele. Algumas das coordenadas que
nortearam o nosso trabalho de reflexão e pesquisa aplicar-se-ão a outros
escritores contemporâneos ou de um passado mais ou menos longínquo
– de Virgínia de Castro e Almeida a Luísa Dacosta há matéria para estabe-
lecer pontes entre o escritor dinamarquês e a literatura portuguesa.
111
XVI Encontro de Literatura para Crianças
7 Matilde Rosa Araújo, O Livro da Tila, Coimbra, Atlântida Editora, 1976, pág. 11
8 Idem, O Cantar da Tila, Coimbra, Atlântida Editora, 1973, pág. 29
9 Idem, O Sol Livro, Lisboa, Livros Horizonte, 1976, págs. 64-65
10 Marc Soriano, Guide de littérature pour la jeunesse, Paris, Flammarion, 1975, pág. 45
112
XVI Encontro de Literatura para Crianças
com o rigor cromático e dinâmico de um pintor deslumbrado perante a
magia do que vê e do que lhe é permitido imaginar. Afirmou Sophia, no seu
testemunho inserido na antologia De que são feitos os sonhos, que Pro-
curei a memória daquilo que tinha fascinado a minha própria infância. (...)
Aliás, nas minhas histórias para crianças quase tudo é escrito a partir dos
lugares da minha infância11. É esta presença de elementos recuperados
dos anos de ouro da infância que se manifesta na descrição da Natureza
como companheira das brincadeiras; as árvores constituem espaço privi-
legiado de um maravilhoso que envolve a criança protagonista e que lhe
oferece a passagem para as aventuras vividas. A autora cria vida, traduzida
em linguagem e sentimentos, nos elementos vegetais e nos animais, ali-
mentando interacções múltiplas com o leitor, o que acentua o protagonismo
das crianças. Florinda, Isabel, a Menina do Mar e o rapaz, seu companheiro,
integram-se na Natureza e dão coerência a toda a construção da narrativa.
113
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Ricardo Alberty pertence a uma geração de ouro que nos anos 60 marcou
a literatura para a infância em termos de qualidade e exigência, recusando
o moralismo fácil e a alienação precoce. Tal como Matilde Rosa Araújo e
Sophia de Mello Breyner Andresen, figuras tutelares desta geração de es-
critores, este autor construiu histórias na percepção de que o destinatário-
-criança merece um profundo respeito na escrita que lhe é destinada, já que
há a noção clara de que tudo o que ela recebe é absorvido e assimilado e,
assim, conto a conto, se vai alimentando a sua imaginação com elemen-
tos potencializadores da criatividade e da liberdade. Embora constate um
14 Marta Martins, Ler Sophia, Porto, Porto Editora, 1995, pág. 86
15 Sophia de Mello Breyner Andresen, O Cavaleiro da Dinamarca, Porto, Figueirinhas, 1964
114
XVI Encontro de Literatura para Crianças
injusto esquecimento dos seus livros, creio que eles não estão datados e a
recepção que poderão ter justificaria novas edições.
115
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Em Alberty são raros os contos dominados pela tristeza; tal facto deve-se a
uma certa forma de ver o mundo, valorizando a esperança e a felicidade que
as crianças nos dão. A metáfora de um reino, ilocalizável no mapa, com-
posto só por crianças, onde domina uma permanente alegria, concretizou-a
no conto O país dos sorrisos22 – reside aqui uma das ideias-chave da sua
obra para a infância: a percepção de que os valores que poderão purificar
a sociedade estão de forma embrionária na criança e, por isso, ela terá de
ser o motor da mudança. Como? Alimentando-lhe o espírito e a imaginação
com a beleza, com o humor, com a liberdade e com a fraternidade. Uma
forte crença na capacidade de regeneração e na possibilidade de sermos
felizes pela mão das crianças afasta-o da melancolia que perpassa em nu-
merosos contos de Andersen.
116
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que H.C.Andersen, se vivesse hoje, não desdenharia, estou certo, ele que
sempre sonhou com prolongar a sua obra muito para lá da sua morte, pela
garantia de perenidade que a tecnologia oferece. Parece-me ser este um
dos trilhos andersenianos mais estimulantes que o autor da “História do
dia” percorreu.
25 António Torrado, Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo, Porto, Civilização, 2002
26 Idem, Ibidem, págs.17-28
27 Hans Christian Andersen, A Polegarzinha, Porto, Civilização, 1992
117
XVI Encontro de Literatura para Crianças
-nos o narrador que aquela gota, que tinha sede de matar a sede a al-
guém,
para elas (as crianças) carreiremos o que de melhor guardámos para nós
próprios. Afastamos do caminho decepções, tédios, malquerenças, feias
osgas e lobos uivando o sentido trágico da vida. O que, incorrupto e lumi-
noso, sobrar, em embalagens de fantasia, eis a nossa dádiva para o presépio
da vida.29
Estando nós a falar das pontes que podemos descortinar entre estes dois
autores, seria inaceitável não trazer para aqui um título – O pajem não se
cala30 - que tem a particularidade de dar continuação a uma das histórias
de Andersen onde o cómico de situação impera – O fato novo do impera-
dor31. O seu final, aparentemente aberto, permite a António Torrado encon-
trar matéria para lhe dar continuidade, não no sentido de acabar algo que
está incompleto – o conto de Andersen é perfeito – mas de aproveitar como
28 www.historiadodia.pt, 22 de Agosto
29 Inquérito in Discursos, nº8, Outubro 1994, pág. 176
30 António Torrado, O pajem não se cala, Porto, Civilização, 1992
31 O fato Novo do Imperador in Os mais belos contos de Andersen, Porto, Civilização,1992, p. 51-62
118
XVI Encontro de Literatura para Crianças
elemento despoletador o futuro imediato daquela criança que, na sua pure-
za, afirmou que o rei ia nu. Ao escolher como narratário deste novo conto
uma criança que se tinha sentado ao seu lado no jardim, o autor explora sa-
biamente o tom coloquial com que o narrador nos relata os acontecimentos
e constrói um final estruturado no diálogo entre o contador da história e a
criança/ouvinte que manifesta uma opção clara e radical para o desenlace
dos acontecimentos. Todos os mecanismos de cativar a audiência estão
aqui de forma paradigmática, ou seja, estamos perante um bom exemplo
do que é um escritor acumular o talento de bom contador.
Embora considere ser esta arte de contar a dimensão mais flagrante no tri-
lho anderseniano percorrido por António Torrado, a questão temática deve
igualmente ser equacionada já que a imaginação do autor é uma fonte ines-
gotável de histórias construídas a partir do mundo real captado por um olhar
de sensibilidade muito especial; nelas encontramos animais, pequenos ou
grandes, as pessoas, com especial atenção para as crianças, objectos e
até elementos inesperados como sinais de pontuação. Pode-se afirmar, em
síntese, que o nosso autor cria mundos imaginários que nos falam da vida
real. A concisão de grande parte dos seus contos mostra bem o que é ser
simples – burilar a peça, retirando-lhe tudo o que é acessório, aperfeiçoá-la
até chegar a um estádio que possamos considerá-la perfeita; com efeito,
em Torrado a legibilidade nunca foi perturbada por essa filtragem a que
sujeita os seus textos.
119
XVI Encontro de Literatura para Crianças
António Torrado
Modernos Nautas
Nesta área em que a viagem é sempre uma travessia passando por nós,
em que toda a viagem é um tempo de conhecimento e de crescimento, ela
pode tomar várias configurações.
Vou começar por apresentar a Luísa Ducla Soares, o que, para mim, é muito
difícil porque não tenho distanciamento suficiente para falar da Luísa, já
que fomos colegas, amigos de escola, de universidade, temos a memória
comum dos tempos de luta e luto do período da vida associativa e das suas
vicissitudes.
120
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A partir daí, sempre acompanhei o percurso da Luísa Ducla Soares, admi-
rando a sua obra e deliciando-me, muito particularmente, com o seu humor,
porque, com este aspecto muito sereno, a Luísa tem um toque muito es-
pecial, uma certa perversidade, no bom sentido, que impregna toda a sua
escrita.
Bem, mas nada melhor do que ouvir a Luísa falar nos novos nautas.
Ela está muito mais avançada em relação a mim, porque eu fiquei no século
XX, na primeira metade, e daqui a bocadinho, quando falar sobre o Francis-
co Pacheco, eu revelarei que continuo a utilizar o suporte antigo de correio,
provavelmente até pombos correio ou garrafas atiradas às ondas!
Tenho aqui, diante de vós, o Pedro Rosa Mendes e vamos ouvir a sua in-
tervenção.
121
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que eu for criança, eu quero ter um tio como o Pedro Rosa Mendes!
Há pouco estava a perguntar a mim próprio, mas como é que eu vim parar
a esta mesa? Sendo eu, provavelmente, dos poucos autores portugueses
que ainda escreve à mão: escreve, reescreve, emenda, sempre a partir do
manuscrito.
Mas, de facto, uma das razões, senão a principal, porque eu aqui estarei é,
por um lado, gostar de estar entre amigos e, por outro, porque também vou
apresentar o Francisco Pacheco, que é o responsável, ele sim o respon-
sável, daquele sítio chamado www.historiadodia.pt .
E, agora, gostava que se estabelecesse o diálogo aqui nesta sala, que fizes-
sem perguntas à mesa, porque senão começo a fazer perguntas à sala!
122
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Luísa Ducla Soares
Os Novos Nautas
Ah, como é fantástico carregar num botão mágico que nos leva a viajar
no novo tapete voador! Tendo por companheiro um rato, posso partir a
qualquer hora, para qualquer destino. Num abrir e fechar de olhos dou a
volta ao mundo, aterro na Austrália, nos Estados Unidos, no Iraque, na sel-
va amazónica. Haverá maior magia?
À nossa volta vão ruindo as paredes tradicionais que nos separam dos
outros, as contingências da distância, do estatuto social, da idade, das dis-
ponibilidades económicas, da timidez. Parece que tudo se torna possível,
que somos finalmente cidadãos da mesma aldeia global.
Os jovens e a internet
A pesquisa
O correio electrónico
Se os e-mails são, apesar de tudo, pouco mais que correio super expresso,
o IRC ou chat, como desejarmos chamar-lhe é, de facto, uma conversa, por
escrito, em tempo real, com número indeterminado de participantes. Pode
associar imagem, recorrendo a uma câmara.
Há numerosos canais de chats dirigidos aos jovens, alguns sem temáti-
ca específica, outros orientados de acordo com os interesses dos partici-
pantes: sobre desportos, música, ambiente, animais, amizade, etc.
Tendo entrado em diversos, concluí que em geral se limitam a típicas con-
versas entre conhecidos ou pessoas que pela primeira vez se encontram.
O facto de os intervenientes utilizarem nomes fantasiosos fomenta a de-
sejável desinibição dos menos afoitos mas permite, em contrapartida, que
indivíduos suspeitos se intrometam para fins pouco recomendáveis, ligados
por, exemplo, à pedofilia.
Exigindo um rápido dedilhar no teclado, conduzem a algo que se aproxima
da estenografia, com a utilização sistemática de abreviaturas, símbolos,
que, para um não iniciado, podem constituir uma linguagem cifrada.
Já existe inclusivamente em português um dicionário da internet e do
telemóvel de autoria de Jovana Benedito.
http://www.centroatl.pt/titulos/solucoes/dicionario-net-telemovel.php3
http://bvi.clix.pt/aprender/icons_emocao.html
Blogs
O estudo
Jogos
Ler na internet
131
XVI Encontro de Literatura para Crianças
132
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Pedro Rosa Mendes
Modernos Nautas
Obrigado e obrigado também à Luísa Ducla Soares pela sua riquíssima in-
tervenção.
133
XVI Encontro de Literatura para Crianças
literatura infantil e às viagens – tem uma ingenuidade, uma naiveté, que tem
a ver com uma abertura total, uma espécie de porosidade para apreender e
para ter uma insaciedade enorme em relação a tudo o que os rodeia.
Penso sempre que, em primeiro lugar, o que há de comum entre esta de-
manda da literatura de viagens e a literatura infantil (e, às vezes, as coi-
sas são coincidentes, os resultados são coincidentes), é, digamos, esta
abertura também total e uma postura quase obsessiva de curiosidade para
viajar. Pode não ser viajar literalmente, pode não ser estar no outro lado
do mundo, mas, em primeiro lugar, ter uma atitude intelectual de busca e
de pensar, pois o primeiro motor de busca nesta era da Internet é a nossa
própria inteligência, como diria o Mia Couto, é uma arma de construção
maciça, com que nós todos contamos.
Lembro-me de algumas discussões que tive com o meu editor, que tinha
muito receio de que esta viagem que estávamos a lançar em papel, (esta
viagem de Angola à contra costa, é esse o pretexto para levar o leitor para
uma multiplicação, para um harmónio de outras viagens), ao mesmo tempo
estivesse integralmente (quatrocentas páginas de texto) disponível na In-
ternet.
135
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Acabei por convencê-lo de que, em primeiro lugar, quem tem acesso, quem
tinha na altura – estávamos em 1999 - acesso a um computador e à Internet
não se dava ao trabalho de imprimir oitenta janelas diferentes, que corres-
pondem, grosso modo, aos capítulos do livro, com quatrocentas páginas
de texto para não pagar os doze ou treze euros do livro. Quero dizer, é um
não problema! E convenci-o também, questão mais importante, que a via-
gem virtual que era possível ao leitor fazer no site da Baía dos Tigres era
uma viagem, também paradoxalmente, muito mais autêntica, mais próxima
da viagem que eu tinha feito, uma viagem durante o Verão de 1997, de Ju-
nho a Setembro, que acabou, precisamente, duas semanas antes da minha
filha mais velha nascer e, pour cause, tinha de acabar, tinha esse timing.
Tentei que a Baía dos Tigres fosse constituída por uma espécie de fluidez,
um percurso, um rio de histórias de informação e que, a cada página, o
leitor pudesse acompanhar-me e pudesse sentir que estava, não a viajar
virtualmente, a viajar sem ter acesso a nada em termos de emoções, em
termos do que está em causa numa viagem, mas pudesse participar um
pouco nisso, pudesse angustiar-se, pudesse ter medo (a própria mecânica
do hipertexto possibilitava isso).
Para o bem e para o mal, o livro tem uma linearidade implícita, que é a
linearidade tipográfica. Começamos a ler na página um até à página cem,
duzentos, etc. No site, essa ordem não existe, pelo menos eu não quis dá-
-la assim, portanto, o site tem uma estrutura com oitenta fragmentos, e em
cada fragmento, o leitor tem três escolhas para evoluir na viagem, que re-
produzem as escolhas que eu tinha de fazer em cada momento da viagem
africana: ficar no mesmo sítio, e isso no site significa continuar a um nível
mais profundo, por exemplo, descer mais à intimidade de um determinado
personagem, saber mais sobre um episódio histórico, portanto, descer à
intimidade da história, ou ir para a frente, ou recuar. Nada mais do que es-
tas três hipóteses me eram dadas nessa viagem entre Angola e o norte de
Moçambique e eu quis que o leitor fosse confrontado com isso. Isso é pos-
sível, não no papel, em que, de facto, as pessoas têm uma linearidade que
as obriga a ler dessa maneira, mas há uma maior plasticidade, por absurdo
que pareça, no livro virtual. O livro virtual é mais real!
E é o livro virtual que também possibilita, por exemplo, que a viagem na In-
136
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ternet tenha crianças a cantar, tenha canções, tenha o relato de crianças do
Cuito sobre a sua própria guerra, tenha toda uma iconografia, tenha sons
de uma canoa a atravessar um rio; portanto, há palavras e há narrativas que
completam a própria narrativa que está no papel.
a toda a informação. Penso que estamos a perder uma noção táctil do que
é que nos constrói e de qual é a nossa posição, porque a identidade de
cada um de nós, como pessoa, como grupo, tem também a ver com uma
cartografia, um lugar no mundo em relação aos outros.
Isso é uma noção que, noutros sítios do planeta, as pessoas têm de uma
forma muito aguda.
Nós juntámo-nos para este projecto, para uma grande reportagem ilustrada
sobre Timor, e tivemos o privilégio de um dia sermos convidados para uma
cerimónia muito rara, apesar de este tipo de cerimónias acontecer agora
um pouco por todo o território, que foi a cerimónia de reconstrução de
uma casa ludic, que durante uma geração, quase duas gerações não pôde
acontecer.
Nós fomos convidados para ir à montanha, mais de dois mil metros de alti-
tude, já acima das nuvens, numa cerimónia que começou às seis da tarde e
quando nós saímos, ao meio-dia do dia seguinte, ainda continuava.
E é tudo.
139
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Francisco Pacheco
Modernos Nautas
Muito boa tarde a todos e a todas. É um prazer sempre grande estar aqui
nesta casa a apresentar uma viagem cuja primeira etapa terminou há dias.
Eu ando, de certa maneira, a viajar por estes mundos das tecnologias des-
de os idos anos 80 do século passado, quando acreditei, por estar em
Portalegre, que provavelmente as tecnologias poderiam ser e seguramente
são (está a ser demonstrado que são) um poderoso aliado das regiões mais
desfavorecidas.
Eu dei particular atenção à utilização da Internet em contexto educativo du-
rante os anos 90, principalmente, com o surgimento de alguns dos projec-
tos que a Dr.ª Luísa Ducla Soares já abordou, ligado a uma rede telemática
educativa, na altura com dezasseis escolas e jardins-de-infância do mundo
rural. Que loucura!
Precisamente quando as escolas do 1º ciclo ainda nem telefone tinham.
Nós estendíamos os cabos de telefone, montávamos o computador e ligá-
vamos a Internet ao mesmo tempo; portanto foi um upgrade tecnológico
estonteante para escolas de um meio rural da região de Portalegre.
140
XVI Encontro de Literatura para Crianças
para as pessoas!
E sei que têm! porque neste mundo da comunicação virtual, neste mundo
dos conteúdos, se o meu filho falar Inglês como língua materna vê os sítios
que a NASA produz especialmente para crianças, vê os museus virtuais de
todo o mundo.
Nós, em Portugal, provavelmente por sermos demasiadamente formais,
criamos sítios na Internet a pensar nos adultos, honrosa excepção seja feita
ao contributo da Dr.ª Luísa Ducla Soares que transformou o sítio do Presi-
dente da República num sítio também para crianças.
Eu penso que devia ser uma medida política obrigar todos os serviços pú-
blicos, que têm páginas e presenças na Internet, a terem uma zona espe-
cialmente dedicada às crianças e não que mostrassem apenas os aspectos
formais do museu, o organigrama e, muitas das vezes, a cafetaria, o bar e
as coisas que se vendem. Digamos, portanto, que este foi o ponto de par-
tida que nos finais dos anos oitenta, marcou talvez o meu início de viagem
nesta aventura que foi a História do Dia.
141
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Eu tenho que fazer uma pequena viagem desta mesa para a outra mesa,
atendendo a que a História do Dia é um projecto na Internet, nós temos
acesso à Internet e eu prefiro falar com o sítio ao lado. Com licença.
Seguramente para a maioria dos presentes nesta sala não é nada de novo
o que vos estou a mostrar: o sítio “História do Dia”, todos os dias uma
história nova na Internet, escrita e contada por António Torrado e ilustrada
por Cristina Malaquias, dois elementos fundamentais de uma vasta equipa
sedeada, na maior parte dos casos, em Portalegre.
E aqui é também um aspecto que eu gosto sempre de destacar: este mun-
do das tecnologias permite-nos uma coisa muito importante – podemos
descentralizar.
A equipa que aqui está, na maior parte da sua componente tecnológica é
constituída por jovens recém-licenciados, na maior parte dos casos, que
encontraram, em Portalegre, neste e noutros projectos financiados (no caso
pelo Programa da Sociedade de Informação) a possibilidade de regressa-
rem à sua terra natal.
Sei que isto era uma questão que assustava um pouco o António Torrado:
142
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ficar até quando, até sempre?
Eu tenho uma chamada cópia de segurança de tudo isto, portanto, o mun-
do digital, digamos, não é perecível.
Há discos que mantêm toda esta informação e, se calhar, no século XXVIII,
algures no espaço, no ciberespaço, poder-se-á ouvir o António Torrado a
contar, por exemplo, Os Caracóis Portugueses, ou outra qualquer história.
Penso que é sempre uma das coisas que nós, professores e educadores,
devemos ter mais presente do que na realidade temos.
Não me interessa aqui de forma alguma que as propostas vão por uma in-
terpretação da história, o que leva a uma conclusão, queremos que sejam
algo que possa expandir a curiosidade.
143
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Entretanto temos sempre duas, três, quatro propostas que ligam a criança
à Internet numa perspectiva de, a partir da história, poder encontrar fontes
de informação.
Nós temos miúdos que, todos os dias, nesta zona do sítio, que é o Comu-
nicar, deixavam mensagens a falar sobre a história.
Nós temos aqui cerca de vinte e tal mil mensagens!
Agora que isto daria uma belíssima tese de mestrado ou doutoramento so-
bre o erro das crianças dos seis ao catorze anos, ai garanto-vos que dava!
Eu também não sabia, aqui há uns meses atrás, que estava a falar com
um senhor em Nova Jersey, salvo erro, que escreveu: “ainda bem que há
uma história do dia! Eu já há muito tempo que não falava português, se-
guramente se o José Saramago me ouvisse falar não sei o que me faria e
agora, ouvindo o António Torrado todos os dias, lendo, eu estou a praticar
e a aprender muito mais português”.
E, seguramente vos garanto, este sítio foi pensado como um espaço de
literatura para crianças!
145
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Mas estava a falar-vos um pouco dos números, destes cerca de três mi-
lhões de amigos que nos visitaram ao longo do primeiro ano, o que dá, se
contarmos todos os dias e fizermos uma divisão simples por trezentos e
sessenta e seis, uma média de sete mil e oitocentas, sete e mil novecentas
visitas por dia.
Eu falo-vos dos números só pelo lado de lá, pelo gozo que me dá saber
que estas coisas estão a ser lidas, porque nós acreditamos na eficácia e na
qualidade do que aqui está; portanto, quando no mês de Agosto, nós temos
uma média de três, quatro mil visitas por dia, sabemos que não está a haver
uma mediação por parte da escola.
É extremamente interessante!
E eu deixo-vos estes números só para que pensemos todos em conjunto!
Temos público para a escrita em Língua Portuguesa!
Ele está lá à nossa espera!
Como por exemplo uma avozinha, aqui de Lisboa, que tinha o neto em casa
no fim-de-semana e, então, a prenda era ter as histórias impressas para lhe
poder ler, lá em casa, no domingo.
E é extremamente gratificante saber, e eu poder dizer aqui hoje, que ela foi
146
XVI Encontro de Literatura para Crianças
consumida em todos os países de língua oficial portuguesa, sabendo nós
todos que estamos nesta sala, as fragilidades do acesso à tecnologia e à
Internet dos países de língua oficial portuguesa.
Como nós tínhamos uma média superior a quatrocentas visitas por dia
disparou, como é normal que dispare, o serviço de controlo de visitas dos
servidores americanos e, portanto, nós fomos visitados pelo Pentágono
e, portanto, como em Portugal, isto não é nenhuma crítica, o que faz, às
vezes, notícia é o Pentágono visitar um sítio português e não o facto de
portugueses estarem a fazer um sítio em Portugal.
De facto, nessa altura foi bom porque nunca se falou tanto da História do
Dia, e eu, encarecidamente, daqui agradeço ao Pentágono, se me estiver a
ouvir, esta oportunidade de publicidade acrescida que nos deu.
Pouco mais vos posso adiantar sobre a História do Dia, a não ser garantir-
vos que ela vai ficar, continuar online.
Dizer-vos que isto nos criou a responsabilidade acrescida de pensar no que
fazer com esta espada!
Vamos ver!
Vamos continuar!
Vamos pensar num conjunto de projectos a partir da História do Dia!
Este é o ponto de partida!
147
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Digamos que está quase garantida a história com arte, ou seja, criar histórias
infanto-juvenis a partir das principais obras de arte dos museus portugue-
ses.
António Torrado vai-se “virar”, de certa maneira, por desafio pessoal, para
alimentar as crianças que, por natural crescimento, se interessarão por ou-
tros temas e por outras leituras.
Vou terminar com uma coisa muito simples: estou agora, por questões
meramente pessoais (o que me havia de dar com quarenta e tal anos) mais
ligado ao mundo agrícola, e vejo, todos os dias, um conjunto de sobreiros
lindíssimos, enormes – eu adoro sobreiros! – Há dias estava a passear por
debaixo daqueles sobreiros e pensei assim: eu agora estou a tomar conta
desta terrinha, mas estes sobreiros devem estar a rir-se de mim porque já
houve tanta gente antes de mim a tomar conta desta terra e, seguramente
(eles já estão a pensar) tanta gente que vai ainda passar por aqui a seguir
a ele.
148
149
XVI Encontro de Literatura para Crianças
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Miguel Che, Marta Martins, Olga Pombo, Paula Moura Pinheiro, Ana Maria Maga-
lhães, Ondjaki e José Pedro Serra
Isabel Marques da Costa, Ana Sousa Dias, Eduardo Marçal Grilo, Manuel Carmelo
Rosa e Maria Helena Melim Borges
150
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Debate:
Clássicos: inevitáveis?
151
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Marta Martins, aqui ao centro, à minha direita, autora do livro Ler Sofia,
os valores, os modelos e as estratégias discursivas, na obra de Sophia de
Mello Breyner Andersen para crianças. Marta Martins é licenciada em Filo-
logia Românica pela Universidade Clássica de Lisboa e prestou provas de
aptidão pedagógica e capacidade científica em Língua Portuguesa e Li-
teratura Infantil na Universidade do Minho, onde também leccionou. Marta
Martins é professora da Escola Superior de Educação Paula Frasinetti, no
Porto, onde lecciona Literatura para a Infância.
E agora os cavalheiros: José Pedro Serra, Doutor em Cultura Clássica,
é membro docente do Departamento de Estudos Clássicos da Faculdade
de Letras de Lisboa onde tem leccionado disciplinas na área do Grego, da
Literatura Grega e da Cultura Clássica. José Pedro Serra foi, em 2003, o
brilhante, peço desculpa pela subjectividade, mas penso que é uma sub-
jectividade que, no caso, encontrou muitos paralelos em muita gente, o
brilhante comentador da Oresteia de Ésquilo na primeira Edição dos Clás-
sicos na Gulbenkian.
Ondjaki, à minha esquerda ao centro, com 27 anos apenas e compreenderão
que no caso se justifica a menção, Ondjaki tem já seis títulos publicados
numa das mais prestigiadas editoras portuguesas e uma obra traduzida em
França. Mas para lá da poesia, do conto e do romance, Ondjaki estudou
teatro e cinema e realizou duas exposições individuais de pintura. Ondjaki,
que nasceu e viveu em Luanda até aos 17 anos, licenciou-se em Sociologia,
em Lisboa, no ISCTE.
Miguel Che Soares, à minha direita, licenciado em Biologia e Doutorado em
Imunologia pela Universidade de Lovaine, na Bélgica. Miguel Che Soares,
esteve dez anos na Universidade de Harvard, em Boston, onde abriu o seu
primeiro laboratório de investigação em Imunologia, está, há um ano, a viver
em Lisboa e a trabalhar como investigador no Instituto Gulbenkian Ciência,
sob a direcção de António Coutinho.
E, para quem esteve nos dias precedentes a este encontro, imagino que a
questão que agora vou colocar já tenha surgido, mas creio que é, por uma
questão de método, obrigatório começar por aqui. Para que saibamos pelo
menos, não digo que todos estamos a partir do mesmo patamar, ou que
os senhores, em presença, têm todos a mesma opinião, mas para quem
nos está a ouvir e para vós também fique claro do que é que cada um fala
quando fala de clássicos.
Começo pelo nosso Professor em Cultura Clássica e queria saber, José
Pedro Serra, como é que identifica, sinteticamente, um Clássico?
José Pedro Serra (JPS)
Antes de mais nada eu queria voltar a agradecer, aliás como já fiz ontem,
à Fundação Calouste Gulbenkian e especialmente ao Serviço de Educa-
152
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ção e Bolsas, mas, estendendo esse agradecimento, gostaria de saudar a
nossa moderadora, excessivamente amável nas suas palavras e dirigir um
cumprimento muito especial aos meus colegas de debate e também ao
público.
A pergunta que me põe não é, de modo nenhum, uma pergunta fácil e não
é ingénua. E eu, depois de ontem ter aqui tentado dar a ver a inevitabilidade
dos clássicos sinto-me um pouco como quem deu a moralidade e agora vai
contar a história.
Mas, retomemos a pergunta, de facto, acerca da inevitabilidade ou não dos
clássicos.
PMP
Desculpe José Pedro Serra, interrompê-lo.
A pergunta é: o que é um clássico?
A inevitabilidade já lá vem.
JPS
Compreendo que quem quer discutir essa questão tenha metodologica-
mente de começar por tentar estabelecer, ainda que indecisamente, o perfil
do que é um clássico.
Ora bem, eu julgo que há dois modos de responder à pergunta: num sen-
tido mais restrito e num sentido mais alargado.
Diz-se de um autor que é clássico quando está compreendido tradicional-
mente entre o período que vai desde os Poemas Homéricos até ao Século
V antes de Cristo.
A primeira vez que aparece a expressão scriptor classicus justamente, diz
respeito aos autores que pertenciam a este período histórico, mas eram
clássicos porque, de uma forma ou de outra, serviam de modelo e, subja-
cente a isso estava um juízo de valor, uma apreciação, segundo a qual, por
mérito, qualquer que ele seja, inerente, pelo seu especial significado, pelos
sentidos que acumulavam, dele se dizia que era um clássico.
Em sentido mais lato, clássico é o autor ou a obra que justamente por méri-
to inerente rasga o tempo e paralelamente à antiguidade greco-latina me
surge também como um ponto de referência inevitável de um processo ou
de uma demanda histórica que é a nossa. Nesse sentido, o clássico não é
já o elemento pertencente a um mundo restrito que pela história da cultura
foi particularmente valorizado num dado momento, particularmente no Re-
nascimento, mas diz respeito sim àquele que, de uma forma ou de outra, foi
arrancado à trituração do tempo, e isso parece-me importante.
Subjacentemente à admissão de um clássico estão duas coisas que servem
de critério e que eu gostaria de sublinhar.
Primeiro, trata-se de uma obra ou de um autor eleito e por isso intrinseca-
mente na apreciação ou no julgamento «isto é um clássico» há uma peneira,
uma distinção, uma separação entre o clássico e outros, que é inevitável.
153
XVI Encontro de Literatura para Crianças
154
XVI Encontro de Literatura para Crianças
ou é clássico ou não é. Porquê esta destrinça?
Até porque eu tenho presente, do Encontro de há dois anos, que alguém
levantou, pertinentemente a questão da Literatura para Infância ou para
Crianças padecer sempre, como o Tribunal de Menores, de uma espécie
de estatuto de menoridade e eu pergunto-me se a classificação, Clássicos
Infantis, não poderá arrastar esse ónus, esse risco. Porque não dizer só
clássicos?
MM
Pois, eu penso que é importante não confundir o estatuto de menoridade
com uma especificidade.
PMP
Não, mas eu não estou a dizer que isso seria o adequado. Eu digo é que há
esse risco, haverá?
MM
De facto, há referentes que pertencem a determinadas faixas etárias. O que
não quer dizer que não se prolonguem para a vida toda.
Provavelmente os clássicos da literatura para a infância são textos matri-
ciais que organizam o nosso imaginário para toda a vida.
PMP
Isso também se pode dizer do Homero para quem o leu.
MM
Sim, mas repare, isso depende. Depende se leu Homero no texto original,
se leu nas adaptações, se leu nas vulgatas dirigidas às crianças. Do que é
que nós estamos a falar quando falamos desse tipo de referências?
Eu penso que são textos que nos trouxeram temas e personagens que con-
vivem connosco ao longo da vida e que nos fazem sentir uma reconfortante
segurança numa comunidade cultural. Sentimos que temos elos de perten-
ça a uma determinada comunidade. São essas referências básicas que nos
permitem constituir uma identidade cultural, um sentido de pertença no es-
paço.
Hoje, que tanto se fala em Europa, é importante perceber que o nosso
imaginário, sobretudo na literatura para a infância, é comum, porque nós
importámos os grandes autores europeus quando a nossa literatura para
crianças ainda era muito incipiente e hoje, provavelmente, quando nós fa-
lamos em clássicos portugueses não nos apercebemos que os clássicos
alemães, os franceses e os ingleses, já andam misturados com os clássicos
portugueses, porque eles são tanto nossa pertença como são, obviamente,
de outros países.
PMP
Eis um argumento que os federalistas iam adorar ouvir. É um óptimo e
poderoso argumento sob o ponto de vista do comportamento das pessoas
e das mentalidades.
155
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Estamos sempre a dizer que isto é um saco de gatos inventado, esta co-
munhão é uma coisa inventada.
MM
Provavelmente. Não tenha dúvida.
PMP
Eis um dado que nunca me tinha ocorrido e que me parece muito impor-
tante.
Olga Pombo (OP)
Eu gostava de dizer três coisas.
Esqueci-me de fazer os agradecimentos, peço desculpa, mas como já
foram tão repetidos assumo-os inteiramente e faço minhas as palavras dos
colegas que falaram antes de mim.
Curiosamente as três coisas que eu tinha pensado dizer sobre essa questão,
que era inevitável, têm muito a ver com o que os colegas disseram.
A primeira tem a ver com a correspondência entre a chamada Antiguidade
Clássica e o Clássico que leva a uma tal concepção restrita, como disse o
José Pedro Serra, que faz com que se identifique, num primeiro momento,
o Clássico com o autor da Antiguidade Clássica, Grega e Romana. Daí se
poderia dizer que sai uma espécie de modelo.
Eu não poria tanto as coisas em termos de modelo, mas em termos de pen-
sar o seguinte: será que esta utilização, quase histórica ou fundacional de
que o Clássico é o autor da Antiguidade Clássica, poderia levar a concluir
que só esses é que seriam os Clássicos? Penso que não!
Acho eu que estaríamos todos de acordo de que pode haver um Clássico,
o Fernando Pessoa, por exemplo.
A questão pertinente é perguntar que sentido tem esse deslocamento, ou
seja, será que esta tendência para pensar que o Clássico é apenas o autor
da Cultura Clássica decorre de uma utilização dupla da palavra Clássico e
de uma espécie de um abuso da palavra Clássico?
Será que essa é a utilização restrita da palavra, como dizia José Pedro
Serra, ou será que haverá de facto alguma razão que leve a pensar de uma
forma mais constitutiva esta espécie de equívoco que leva muita gente a
pensar que o Clássico é apenas o autor da antiguidade clássica?
Parece-me, não tanto em termos de exemplo ou de modelo, que os grandes
temas da literatura posterior foram, em grande parte, dados pela Cultura
Clássica. Assim, por exemplo, o tema da viagem foi um tema tratado pelos
Gregos, e que nos leva imediatamente a pensar na Odisseia.
Quer dizer: não há, atrevo-me a dizer, obra que trate o tema da viagem, seja
infantil ou não, juvenil ou o que seja, que não tenha necessariamente o re-
gresso e a viagem de Ulisses como matriz; então se assim é, e se eu tenho
razão naquilo que estou a dizer, o que é profundamente discutível, então
156
XVI Encontro de Literatura para Crianças
haveria quase uma legitimidade original para pensar que o Clássico, mesmo
o Clássico contemporâneo, é aquele que, de alguma maneira, está inscrito
em qualquer coisa que se iniciou na Cultura Clássica Grega e Romana.
Portanto, não seria uma relação abusiva, mas seria uma relação constitu-
tiva.
Os temas das relações pais/filhos, das relações mães/filhos, o tema da rela-
ção do herói, o tema do regresso, da viagem, que posteriormente só vieram
a ser acrescentados, e isto é referido por alguns autores, os temas relativos
ao amor cortês, na Idade Média, e à paixão a partir, em grande parte, de
Shakespeare: a gente pensa em Othello e pensa na paixão e todas as mo-
dalidades da paixão e todos os romances posteriores sobre a paixão terão
a ver ou com Romeu e Julieta ou com Othello ou com as grandes peças de
Shakespeare.
PMP
Olga, desculpe interrompê-la.
Mesmo que, e é importante sublinhá-lo, as pessoas não tenham disso a
menor consciência, é importante sublinhar, não é?
É qualquer coisa que subjaz...
OP
Era aí que eu ia agora chegar.
E porque é que isto acontece? É porque aquilo que os Gregos produziram
não é qualquer coisa que eles poderiam ter produzido ou não. Aquilo que
eles produziram foi a passagem do fundo oral da cultura humana para a
cultura escrita. E este primeiro momento de passagem vai ao encontro de
qualquer coisa que é primordial a todas as culturas e que nós, obviamente,
só conhecemos através da cultura escrita, porque não temos acesso às
culturas orais antigas, senão em casos excepcionais já escritos, obvia-
mente, ou então que se conservam na memória popular, mas essa é outra
questão.
Agora a segunda coisa que eu queria dizer é que é muito importante para
mim a pergunta o que é?
Aí estou em total desacordo, inclusive com a minha ex-colega de facul-
dade.
PMP
Sim, porque a Ana Maria Magalhães também é de Filosofia, temos aqui uma
dominância de Filosofia.
OP
Descobrimos hoje que fomos colegas de faculdade. Eu reconheci-lhe a voz,
não pelo nome, não pela figura, mas pela voz.
E a segunda questão é essa, que eu acho, de facto, que é muito importante
a pergunta o que é? Para mim é a pergunta mais importante que há.
Para que serve?, por exemplo, é uma pergunta muito menos interessante.
157
XVI Encontro de Literatura para Crianças
O que é que eu faço com isto? é uma pergunta muito menos interessante.
A mais importante de todas é saber o que é? É também a mais difícil, claro,
porque se tivermos algumas luzes sobre esta pergunta o que é? depois vem
por arrastamento, para que serve, para quê isto para quê aquilo. É a própria
pessoa, na liberdade do seu conhecimento sobre o que é, que depois es-
colhe aquilo que tem a dizer.
Agora, em que é que isto se prende com a questão do Clássico?
É que não gosto de definir o Clássico como aquilo que resiste à passagem
do tempo, porque acho que é uma definição negativa: ele é aquele que não
é erodido pelo tempo, é aquele que não é efémero e eu não gosto desta
forma negativa de dizer o que é o Clássico.
Há duas maneiras fundamentais para dizer o que é. Os medievais ensina-
ram-nos, por exemplo, que dizer o que é Deus é impossível. A única coisa
que podemos fazer é dizer o que ele não é. Quem somos nós para dizer
agora o que é Deus? E há toda uma teologia negativa que parte justamente
desta impossibilidade, da consciência desta impossibilidade de definir o
que é. Então tenta-se circunscrever o que é dizendo o que é que Ele não
é, porque em relação a Deus, sobretudo na Idade Média, esta questão foi
muito debatida, é muito importante e é lindíssima.
Gostaria mais de dizer que Clássico é aquele que reenvia ao universal, é
aquele que nunca acaba e aqui entram as célebres definições que Calvino
dá naquele texto famoso, Porquê ler os Clássicos? Todas elas estão certas.
Todas estas definições, pela positiva, reenviam a qualquer coisa que eu
diria que é uma décima quinta definição. Ele deu catorze, e eu quero ser
atrevida, e vou sintetizar estas catorze numa décima quinta que seria dizer
assim: Clássico é aquele que serve para compreendermos quem somos
e aonde chegámos, nós, como alguém que pertence a alguma coisa que
vem de muito longe e, de facto, nós pertencemos a isso. Portanto, uma
definição pela positiva e não pela negativa.
E a terceira questão que gostava de pôr é a seguinte e também tem a ver
com a positiva. É que um Clássico reenvia – e isto tem a ver com a questão
da literatura para crianças – sempre a uma nostalgia face ao primordial.
Nós quando estamos a ler um grande texto sentimos que há nele qualquer
coisa que nos aproxima do começo, do inaugural, em alguns casos, da in-
fância. Quando estamos a ler, por exemplo, um Clássico Grego, para falar
restrito, sentimos muito isso, estamos na infância, mas numa infância de
uma exuberância, uma infância rica, plena de potencialidades.
E o que um Clássico muitas vezes nós dá, quando nós lemos um texto
desses, é exactamente as potencialidades, a riqueza de estar perante uma
criança. Quanto mais velhos somos menos possibilidades temos, não é?
Quando somos jovens temos todas as possibilidades abertas e a leitura de
um Clássico promove uma experiência do primordial, uma experiência do
158
XVI Encontro de Literatura para Crianças
inicial, uma experiência do inaugural e, portanto, num certo sentido, uma
experiência da infância com toda a abertura de possibilidades que uma
qualquer criança tem. Ela ainda pode vir a ser tudo, nós já não podemos vir
a ser grande coisa.
PMP
Já volto a passar-lhe a palavra.
Uma aliciante exposição, como, aliás todas até agora e sobretudo porque
se completam e acrescentam.
Miguel Che Soares (nós combinámos antes do início deste encontro que
nos iríamos tratar por tu, por isso não estranhem), quais são os teus Clás-
sicos?
Talvez não seja irrelevante dizer, para quem acabou de chegar, que o Miguel
é um investigador na área da Imunologia e isso é interessante, porque, para
pôr a coisa pela negativa, pela exclusão, não é de Filosofia, quando três das
quatro pessoas que já falaram são.
Miguel Che Soares (MCS)
Só reiterar os agradecimentos em dois segundos, não vou perder mais tem-
po: os meus agradecimentos.
Quais são os meus Clássicos, pessoalmente?
Eu acho que o interesse não é tanto o pessoalmente; eu presumo que a per-
gunta é mais para um pobre cientista que passa a vida a olhar para genes
e células a mexerem.
Eu acho que as definições que acabam de ser expostas são quase univer-
sais.
Primeiro, acho que tenho os mesmos Clássicos que todas as outras pes-
soas.
No campo da ciência, penso que exactamente os mesmos critérios podem
ser aplicados, tirando o facto de não termos a definição mais académica e
estrutural de tempo e espaço: não são os gregos não são os romanos, mas
esta definição de universalidade.
Eu não estava muito de acordo com o que estava a dizer a Olga Pombo,
pois, um Clássico, na minha percepção, não tem uma fronteira cultural.
Um verdadeiro Clássico pode ser africano, chinês, europeu e, no fundo,
toca com qualquer coisa que nós é universal.
São pessoas que conseguem, através da escrita ou do cinema ou de outra
forma de expressão, transmitir-nos algo que nós nem sabemos porque o
sentimos como universal; se calhar é por isso que os Clássicos são gregos
e romanos: por terem sido os primeiros a ter a oportunidade de expor temas
universais.
No caso da ciência, nós temos coisas que são absolutamente clássicas;
por exemplo, os investigadores que descobriram a estrutura genética do
ADN, o que faz os nossos genes, o que nós temos todos em comum e, no
159
XVI Encontro de Literatura para Crianças
160
XVI Encontro de Literatura para Crianças
MCS
Era mais isto: «nós perdemos imenso tempo, mas agora damos este pre-
sente à humanidade». É quase dar uma prenda à humanidade.
Agora não sei se todas as pessoas que fazem um Clássico têm a noção de
dar…
PMP
Eu acho que a novidade, nesse caso, é precisamente a consciência disso.
Eu diria quase o desplante.
MCS
Penso que Shakespeare tinha essa noção. Não sei há outros autores, não
só na literatura, mas noutras formas artísticas, que tenham a perfeita noção;
pelo menos têm a aspiração. Depois pode não passar o teste do tempo.
(Não sei se saí muito da pergunta e isso é um conflito que eu tenho)
A noção de Clássico é uma coisa que não muda, é um padrão que vai ficar
para sempre, mas talvez eu não tenha razão e isto seja um argumento sen-
timental.
Eu acho que os Clássicos, muitas vezes, vêm por ruptura. Uma pessoa que
consegue estabelecer um Clássico não vem propriamente no seguimento
de tudo o que foi feito. Muitas vezes vêm por ruptura; por exemplo, neste
caso da descoberta do ADN, ninguém a podia prever e aquilo era uma rup-
tura com tudo o que estava para trás.
PMP
É engraçado que isto, de alguma forma, seja o contrário do que foi dito. É
a inscrição numa cadeia, é uma espécie de passagem de testemunho, não
é?
Estamos a falar da ciência, precisamente, mas também se inscreve numa
história.
Eu queria aferir com o Miguel isto: estamos a falar de ciência, não é? Mas
haverá assim uma diferença tão grande? Porque, de facto, para se ter chega-
do a essa página da (qual era a revista?) The Nature, para se ter chegado a
essa página sobre o ADN e a essa frase há toda uma história para trás.
Portanto, a pergunta que eu faço é (agora sim, vou usar uma expressão
completamente sentimental): que carinho é que os cientistas, os investiga-
dores têm pela história que os precede e que precede os seus trabalhos?
Interessam-se? Cultivam a consciência do lugar que ocupam numa cadeia
ou estão absolutamente tomados pela experiência imediata? É porque isto
remete para a ideia da consciência, da pertença a uma comunidade e eu
tinha curiosidade de espreitar para dentro de um laboratório, dos vossos
laboratórios e saber como é que vocês se colocam.
MCS
A resposta é sim.
Nós não nos podemos posicionar como um satélite que acabou de apa-
161
XVI Encontro de Literatura para Crianças
recer e que não entra no contexto do que foi feito. E temos uma maneira
muito formal de fazer isso. Transmitimos o que fazemos e o que descobri-
mos, eventualmente em debate e, às vezes, na televisão, mas o veículo é a
publicação científica, como por exemplo, essa publicação na Nature.
É feito de uma maneira muito formal que é: quando se insere uma nova
descoberta no conhecimento da humanidade - sendo que a descoberta é
pôr mais um tijolo no muro do conhecimento - tem que se definir qual é o
muro. Não se pode dizer: «eu vou pôr um tijolo mais ou menos aqui». Tem
de se dizer onde é que se está a pôr o tijolo e isso faz-se de uma forma
muito formal de referenciação. Por isso, por cada fase que nós fazemos,
temos de dizer quem é que a descobriu.
Agora, eu não acho que haja qualquer necessidade – e parece-me uma ati-
tude juvenil, apesar de tudo, salutar – de romper com os Clássicos. Mas, no
entanto, em ciência há a ideia de challenge, de dizer: «este é o muro, será
que este muro está bem feito?»
Se se provam coisas que consolidam o muro, muito bem, mas se se desco-
brem coisas que fazem com que o muro tome uma outra forma, e se as coi-
sas são muito importantes, essas coisas tornam-se Clássicos. Mas nunca
se perde a percepção de base desse muro. Não sei como é na literatura.
PMP
Acho que foste claríssimo.
OP
Morais Soares escreveu um livro que se chamava A Filosofia Do Não, refe-
rindo-se justamente aos cientistas. Os cientistas são aqueles que dizem
não. São aqueles que dizem: «não, não é assim, até aqui foi assim, mas
agora passa a ser de outra maneira». Portanto, é um conhecimento que
cresce.
PMP
E, portanto, sob esse ponto de vista há uma diferença fundamental relativa-
mente às humanidades.
Não vamos agora gastar aqui o nosso tempo todo, porque nos atrasámos
um bocadinho a começar, mas é tão interessante que é imperdível desen-
volver isto. O José Pedro também quer intervir.
MCS
Referimos a Capela Sistina e não é literatura. A minha pergunta é: a Capela
Sistina quase de certeza que surge como uma ruptura em relação ao que
se fazia antes e que se tornou depois num Clássico. Se calhar não é tão
diferente da ciência.
Havia uma base, uma maneira, uma percepção de transmitir pela forma da
pintura emoções e conhecimento e, de repente, aparece uma pessoa, que
tem uma forma, na altura, completamente nova, que entra em ruptura com
162
XVI Encontro de Literatura para Crianças
o que se faz. Mas, por ser uma mensagem tão universal, por ser tão resis-
tente ao tempo torna-se, ela própria, um Clássico.
PMP
José Pedro Serra, eu sei que queria intervir.
JPS
Queria por isto, sobretudo queria dirigir-me à Olga, estou e não estou de
acordo.
O que não é um bom começo para quem quer ser coerente.
Em primeiro lugar, queria salvaguardar o seguinte, quando eu disse que os
Clássicos, em sentido restrito, eram um objecto de imitação ou modelo, fa-
lava como um facto histórico, isto é, porque o foram numa época em que os
Clássicos Greco-Latinos eram fonte de inspiração e, sobretudo, de imita-
ção. É um facto histórico; não quer dizer que eu tome esse modelo ou esse
aspecto modelar, essa tentativa de imitação, que, de resto, é uma imitação
criativa, não é apenas a cópia. Justamente, o que me parece é que o andar
do tempo mostrou que a criatividade humana era maior do que essa estrita
imitação e, por isso, estou de acordo: é necessário fazer uma transferência
do tempo Clássico para algo que sucedeu a essa época histórica em que
se imitavam os autores greco-latinos.
No que não estou inteiramente de acordo consigo, que deu uma imagem
muito negativa a essa resistência ao tempo, é porque me parece que o que
está em causa é sempre, sempre, um reavivar de algo primordial, o que quer
que seja – podemos depois discutir – que se está reavivando, a que é que
se está regressando e quem é que o fez? São duas perguntas distintas.
PMP
Eu agradeço que se esclareçam para avançarmos.
Percebo que queira, como a Olga o interpelou, responder. Mas, é um ponto
de partida este tópico. Não é o nosso móbil.
JPS
Mas eu acho que se está a perder uma dimensão importante. É que jus-
tamente esse regresso a uma fonte primordial importa, não apenas como
regresso a um mesmo ponto, mas como histórias do regresso e isso reco-
loca-nos numa demanda que é histórica e que é ela própria semeada de
Clássicos. Por isso é que eu penso que a questão do tempo se transforma
na questão da história, e é importante.
PMP
Eu tinha esperança, independentemente de querer responder à Olga, que
quisesse fazer um comentário ao Miguel e à Olga quando ela sugeria que
o universo da ciência, não tem nada a ver com este universo das Humani-
dades, concretamente.
Não disse isso? Então como é que era?. Mas, disse: «mas é a ciência, é
163
XVI Encontro de Literatura para Crianças
165
XVI Encontro de Literatura para Crianças
167
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Uma amiga minha comentou comigo que um primo seu tinha uma pistola
em casa, e que o filho ia chegar à escola e dizer aos outros colegas: «ai! o
meu pai tem uma pistola em casa». Isso não é problemático?
Eu respondi: «não, porque todos os outros pais também têm uma pistola
em casa e todas as crianças já mexeram e já viram pistolas.»
A guerra está inculcada no nosso imaginário, mesmo quem não esteve lá,
sofreu os efeitos colaterais da guerra. Mas é curioso, como ocupa espaço
e cria um imaginário próprio.
As crianças contavam histórias de guerra, agrediam-se verbalmente com
histórias da guerra, «o meu tio é melhor que o teu, isto e aquilo».
Por outro lado, queria ler-vos só um pedacinho deste livro do Manuel Rui
Monteiro, Rio Seco, porque conta uma coisa curiosa, que é o encontro de
uma senhora mais velha, que veio do sul, da guerra, chega a Luanda, e re-
fugia-se numa ilha, que é a Ilha de Mossulo e está ali a tomar os primeiros
contactos com aquela realidade. Ela é do interior, não tem aquela coisa
do mar, da água salgada e há um miúdo, dos seus onze, doze anos, que
está a falar com ela e pede-lhe para contar uma história. Ela preferiu contar
na forma como bem sabia o bombardeamento aéreo, as casas cobertas
de capim a incendiar-se num fósforo repentino, os meninos que ficavam
sem os pais e as pessoas a fugirem atoamente, sem escolherem caminho
e a deambularem pelo mato fora sempre em desespero pelo imprevisto.
A fome, a sede e a solidariedade anónima. Por sorte, em cada sanzala se
encontrava um pouco de aconchego, um fogo para aquecer, mesmo pobre,
todavia cheio de amor. Mas eu não gosto de falar da guerra, disse a se-
nhora. E o miúdo – “então fale outra vez do jacaré.” Contei já no outro dia,
diz a senhora – “mas fala mais.”
Então lá está: ou a guerra ou o jacaré. Ou falo do presente, do real, do duro
ou vou remeter para a oralidade, para o belo, o bonito, que também contém
ensinamentos.
Portanto, eu só quis dar uma perspectiva de relatividade desta questão do
que é o Clássico.
PMP
Fez muito bem. Mas sublinho que isso é mais um dado do que tens para
partilhar connosco; não é a razão fundamental pela qual te convidámos.
Italo Calvino, no seu Porquê ler os Clássicos, a que Olga Pombo já aludiu
aqui, coloca, sem ironia, uma pergunta que seguramente está na cabeça de
muitas pessoas que estão aqui connosco.
Porquê ler os Clássicos? sobretudo depois de tudo o que já aqui foi dito.
De alguma forma, os Clássicos e os Clássicos Modernos, inscrevem-se
numa cadeia e, portanto, são subsidiários (pode-se dizer assim) de uma
espécie de filiação matricial, mesmo que quem os escreve não tenha disso
168
XVI Encontro de Literatura para Crianças
consciência de alguma forma, tudo isto faz parte do mesmo caldo e, por-
tanto, os Clássicos Modernos participam disto.
Porquê ler os Clássicos? em vez de nos concentrarmos em leituras que
nos façam compreender agora, aqui, o nosso tempo. Evidentemente que
ele está a referir-se aos textos mais complexos, mais difíceis, de mais difícil
acesso.
Esta é uma pergunta que Calvino coloca, sobretudo no pressuposto de que
todos os textos participam da tal matriz, pelo menos os melhores.
Ana Maria, porquê?
AMM
Eu aproveitava para dar uma pedrada no charco.
Na verdade, a esmagadora maioria da população não lê os Clássicos. Nós
estamos aqui, entre nós, partilhando o nível máximo de literacia, o patamar
sublime, superior da leitura, todos os que estamos aqui chegámos ao en-
sino superior, estão aqui professores da faculdade, um cientista, um escri-
tor que já escreveu, não foram seis, foram oito livros.
PMP
Mas então tens que acrescentar ao teu currículo, só lá estavam seis, contei-
-os.
AMM
Só tem vinte sete anos. Portanto as pessoas podem sair daqui arrebatadas
com esta sensação: «que maravilha, vou levar aos meus alunos os Clássi-
cos», quando, na realidade, a esmagadora maioria da população não os lê,
não chega lá. E, agora, no fim do século XX, princípio do século XXI, surgiu
um problema grave: já não chega lá só quem não teve acesso à instrução.
Posso referir-vos uma experiência imediata. Foi ontem à noite, estive a jan-
tar em casa de uns amigos, tinham muita gente convidada e vários jovens.
O filho do dono da casa é um jovem professor do ensino secundário, da
área de Artes, e estava a preparar uma aula com vídeo e, em conversa,
disse-me: «eu tenho que preparar tudo em vídeo, porque com os alunos
de Arte do secundário é escusado pensar: eles não lêem». Fiquei muito
admirada: «então eles não lêem nada? Então depois como é que se mani-
festam os conhecimentos por escrito?» «Muito mal, e se eu quero ter algum
sucesso uso o vídeo».
Depois, em conversa, estava também outra sobrinha dos donos da casa
que é estudante de arquitectura, daquelas conversas cruzadas, ao jantar,
eu disse, anteontem estava em casa sozinha, estava chateada e comecei a
fazer um zapping e vi uma coisa extraordinária, a Júlia Pinheiro a falar com
um burro e pensei, mas como é que alguém quer ver isto?
PMP
Nem faz ideia quanta gente.
AMM
169
XVI Encontro de Literatura para Crianças
175
XVI Encontro de Literatura para Crianças
PMP
Isso é um dado muito importante: só quem foi tocado é que pode tocar.
A questão é: quantos professores de português gostam realmente de ler e
têm uma paixão verdadeira pela leitura? Essa é a questão principal.
MCS
Eu gostaria de dar um exemplo de como é que eu fui tocado. Cada um tem
o seu veículo, e o meu chama-se António Alfredo, uma pessoa absoluta-
mente fantástica. Só para dar um exemplo, eu apresentava-lhe este exercí-
cio de física: uma bola cai, a que velocidade é que cai, com que força é que
bate e porque é que parte o vidro?
PMP
Eu adoro estes exemplos.
MCS
Ele era arquitecto, tinha enormes conhecimentos de física e quando não
tinha mentia, o que era uma coisa maravilhosa porque eu acreditava em
tudo.
Então eu chegava e dizia muito rapidamente, “olha António, tenho este de-
ver para a escola, ajuda-me lá. O que é esta coisa da força”. Ele dizia: “os
gregos…” E eu dizia: “não, não, espera aí, mas eu só quero saber...”. Ele
nunca me deixou fazer isso. Contava-me a história dos gregos, os amores
entre eles, e depois, lá no meio daquilo tudo, aparecia a bola e eu nunca
mais me esquecia e apaixonava-me por essas coisas. É um exemplo de
como é que se pode tocar na alma de uma criança. Ele utilizava esse veí-
culo, e era o mais maravilhoso mentiroso contador de histórias.
PMP
Olga, depois o José Pedro Serra e o Ondjaki.
OP
Esta questão é muito complicada e eu só vou dizer duas ou três coisas.
Induzir nos outros o amor por aquilo que nós amamos, é capaz de ser uma
boa possibilidade, uma boa forma de dizer o que é a escola. Ela foi, em
parte, inventada para isso. Depois da família ter já exercido todos os efeitos
sobre a criança, aos quatro, aos cinco, aos seis anos, cada vez mais cedo,
a criança sai de casa para ir a uma outra instituição que foi inventada há
dois mil e quinhentos anos, com uma porta, com um jardim, com um pátio,
com uma cabana, varia consoante o lugar, o espaço, o mapa em que nós
nos situamos. Mas é sempre uma escola e tem alguns elementos que a ca-
racterizam como tal. Um dos elementos fundamentais é que lá dentro dessa
escola haveria de estar alguém que amasse alguma coisa, e que achasse
que isso que ela tem deveria ser dado às crianças que vão entrar com uma
expectativa enorme de aprender.
Não se pode pensar na escola se não se acredita em duas coisas: na in-
teligência das crianças e no valor da cultura humana.
176
XVI Encontro de Literatura para Crianças
A escola serve para fazer passar às crianças aquilo que elas nunca apren-
deriam se não fossem à escola, por isso, é que as crianças não ficam em
casa. O que uma criança quer é aprender a descobrir, a crescer e a ser
adulto, e ela tem toda uma apetência para crescer, aprender e descobrir.
A escola é o lugar onde as crianças são introduzidas, na expectativa de que
lá esteja um professor (a própria palavra “professor” tem muito que se lhe
diga: é aquele que professa uma determinada profissão) que é alguém que
transmite (a palavra “transmite” significa o elo de continuidade do mundo
que já existia antes para o mundo que vai existir depois). Ele vai permitir
à criança aprender aquilo que ela nunca saberia se não fosse à escola. O
professor tem de amar aquilo que vai ensinar, aquilo que vai pôr em palavra,
é esse o gesto de ensinar.
Se se começa por perguntar às crianças o que é que elas gostam, do meu
ponto de vista está tudo estragado, porque elas não vão à escola para
aprender aquilo de que gostam, ou que já sabem ou que já faz parte do seu
mundo. Elas vão lá para aprender aquilo que nunca aprenderiam se lá não
fossem, e aprender o quê? Aquilo que vale a pena aprender. E o que é que
vale a pena aprender? A grande ciência, a grande arte, a grande literatura,
etc.
A Marta pôs, e muito bem, o caso da passagem da língua à literatura. No
caso do português é ainda mais importante, porque aprender português
não é apenas aprender português, é aprender a possibilidade de aprender
todas as outras coisas. Portanto, aprender a ler não é uma aprendizagem.
Eu posso aprender, ou não, a fazer uma construção, posso nunca aprender
na minha vida a fazer um copo, que isso não faz de mim menos pertencente
ao género humano. Agora, se eu não souber ler, sou de certeza grande-
mente prejudicada na minha humanidade.
Não quero com isto dizer que não haja pessoas que, embora analfabetas,
não tenham conseguido grande valor humano mediante a oralidade, porque
aí também é a palavra, é o ler e o ouvir, a palavra lida e a palavra falada e
escrita. De qualquer maneira tem de se ser introduzido no universo das
palavras.
Ser homem é também saber ler, escrever, é saber pensar, mas com os ins-
trumentos necessários. É o passaporte para tudo.
Portanto, há que ser extremamente rigoroso, no que diz respeito à litera-
tura.
Num livro recente, George Steiner escrevia com toda a frontalidade, que a
escola tem o dever de obrigar as crianças a gostarem daquilo que vale a
pena gostar e aquilo que vale a pena gostar também tem obviamente de ser
alguma coisa de que o professor gosta.
Há aqui um triângulo que é importante, pois eu não consigo tocar a alma
de uma criança com um texto medíocre do Big Brother. Agora se eu fizer
177
XVI Encontro de Literatura para Crianças
181
XVI Encontro de Literatura para Crianças
182
XVI Encontro de Literatura para Crianças
habilidade para depois poder tocar os outros quando quiser passar.
Como o vermelho devagarinho, o Manuel Rui disse que a história pode
circular.
PMP
Miguel, tu és imunologista e, portanto, a palavra contaminação é-te segura-
mente familiar e muito presente no teu quotidiano de laboratório.
Tudo isto de que estivemos a falar me remete para uma ideia de contami-
nação, esta passagem de testemunho, às vezes, mais facilitada pelo amor
que se tem ao testemunho do mestre, outras vezes mais dificultada, porque
o mestre não tem esse amor. Achas que pode haver uma analogia pos-
sível entre a passagem dos Clássicos de geração em geração e a ideia da
contaminação? Eu tenho curiosidade em ouvir-te a ti, um cientista, ainda
por cima desta área, dizer se esta ideia é um disparate ou se há, de facto,
analogias possíveis e como é que tu as estabeleces.
MCS
Contaminação é uma coisa que nós vemos todos como relativamente hor-
rível, porque são as doenças que nos matam, se somos contaminados, e
por isso tem um lado negativo. Na transmissão do testemunho do Homero,
por exemplo, o mestre que transmite não quer, de modo algum que o pro-
cesso de transmissão caia, se suje e que depois, se aparece uma pessoa
que fica com ele, já não é bem Homero, é um Homero que se sujou. Em
cinco séculos se ele estiver sempre a cair no chão já não é Homero.
O que eu pretendo dizer é que na transmissão desse texto, podemo-nos
sempre referir à base, está escrito, e que a função do professor ao transmitir
esse texto, não é transmitir uma adaptação, mas esse texto, é o testemu-
nho no seu original e sensibilizar as pessoas para essa mensagem. Nesse
sentido a contaminação é uma coisa negativa, se se mudar o texto e se se
deturpar o seu sentido.
É absolutamente necessário manter um testemunho exactamente como
ele é, mas não impedir que outras ideias que sejam completamente contra
essa mensagem, não apareçam.
O facto de preservar, não deve limitar os horizontes ao aparecimento de
coisas que vão ser outros testemunhos que vão ser passados.
JPS
Por mim, devo-lho dizer que vejo a sua contaminação com muita alegria.
MCS
Mas é engraçado, porque quando se fala, no sentido leigo, do mestre que
transmite os Clássicos, é de uma maneira caricatural…
JPS
Cuidado…
MCS
...de uma maneira caricatural no sentido de ser uma pessoa clássica. Quem
183
XVI Encontro de Literatura para Crianças
185
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Observadora Sala 1
Livros de Matilde Rosa Araújo, Sophia de Mello Breyner, Alice Vieira, Maria
Rosa Colaço, Maria Alberta Menéres, António Torrado, isto só para citar
alguns. São dezenas de livros que até há uma semana estavam religiosa-
mente guardados numa estante em casa da minha mãe, mas que agora
estão todos em minha casa. E quando digo todos, são TODOS... mesmo
aqueles que foram autografados e dedicados aos meus irmãos.
Agradeço, por isso, esta viagem ao passado... e também a viagem que foi
este Encontro. Três dias muito enriquecedores.
Mas uma criança frente a um computador pode fazer outras coisas que não
jogar. O computador pode, e já é seguramente, um objecto incontornável
do futuro.
189
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Observadora Auditório 2
O Miguel Sousa Tavares, na quarta-feira, disse que havia quatro livros que
todos devíamos obrigar as crianças a ler, nem que fosse a chicote: “A Ilha do
Tesouro”, o “Moby Dick”, “As Viagens de Gulliver” e o “Robinson Crusöe”.
O chicote é o lado MST da conversa - um homem, que escreveu “O Se-
gredo do Rio” e que ouviu em criança as histórias daquela mãe, não está a
falar a sério quando recomenda chicotes para pôr as crianças a ler - o gag
que levou o Henrique Cayatte a explicar que os chicotes estão à venda na
net, depois de um debate em que alguns – incluindo o Miguel – disseram
que os mais novos passam a vida agarrados aos jogos de computador. Este
momento e um outro – a Alice Vieira a contar que foi a um programa de tele-
visão em directo com o Adolfo Simões Müller que foi tratado pelo apresen-
tador como um bailarino reformado – poderiam exemplificar como questões
que à partida podem ser vistas como negativas acabam por mostrar que
não há nada melhor do que não nos levarmos demasiado a sério.
Vamos então começar pelo princípio, e no princípio, neste caso, era o Pré-
mio. Isto é, a nossa primeira manhã do XVI Encontro de Literatura para
Crianças foi a parte, digamos, institucional. A Isabel já deu a notícia do que
foi anunciado pelo secretário de Estado Diogo Feyo, portanto eu começo
mais tarde. Henrique Cayatte falou sobre o prémio atribuído ao André Letria
e ao António Mota pelo livro “Se eu Fosse Muito Magrinho” e realçou a im-
portância da nova geração de ilustradores que veio revigorar este campo da
literatura. Falou do André em especial, da forma como ocupa a mancha da
página e da capacidade de preservar o diálogo com o texto sem ofuscá-lo,
e esta é uma atitude que tem muito que se lhe diga. Sublinhou que o André
é também pintor, pai e cenógrafo, numa ordem aparentemente irrelevante.
José Pedro Serra fez uma intervenção sobre a presença dos clássicos na
cultura ocidental, e sobre o papel que o educador deve assumir. Este tema
foi depois retomado no debate final de quarta-feira, mas já aqui José Pedro
Serra, eloquente, se manifestou desconfiado das “certezas sem a borda-
dura das dúvidas”, contra os professores que “procuram a docilidade dos
alunos”. Foi um apelo à insubmissão e ao apelo a dar a amar as coisas
amáveis. O caminho que propôs aos docentes foi o de “peneirar, seleccio-
nar e hierarquizar” o conhecimento, para “dar a ver, dar a ouvir, dar a amar”.
Homem da Filosofia, defendeu que os clássicos – tema que foi central na
manhã de quarta-feira – são os que resistiram ao tempo e sempre tocaram
as mais subtis cordas da alma. E usando uma palavra com que depois Ma-
ria João Seixas o atormentou durante o almoço (e é verdade, como disse
ontem a Alice Vieira, que há coisas muito importantes que são ditas nos
intervalos das sessões) “o maior risco de ignorar os clássicos é perder a
incandescência da nossa demanda”. Exemplo máximo da incandescência,
o livro que José Pedro Serra afirma que o moldou – a “Ilíada”.
Para Alice Vieira, faz sobretudo falta um jornal ou revista de qualidade des-
tinado aos mais novos, e no fim de contas ela estava a falar de Adolfo
Simões Müller que criou o “Papagaio”, o “Diabrete” e o inesquecível “Cava-
leiro Andante”, com o seu suplemento “O Pajem”. Lembrou mais um autor,
Olavo d’Eça Leal, e o hilariante “Iratan e Iracema, os Meninos Mais Malcria-
dos do Mundo”.
A sessão da última manhã, a que provavelmente a maioria dos que aqui
estão assistiu, foi muito participada e foi certamente a que envolveu mais
polémica no debate. E tudo porque, mais uma vez, se falava de clássicos e
de como as obras fundadoras devem chegar às novas gerações. O debate
foi moderado por Paula Moura Pinheiro e juntou Ana Maria Magalhães, Olga
Pombo, Marta Martins, José Pedro Serra, Ondjaki e Miguel Che Soares. O
ponto de partida – “O que é um clássico?” – é naturalmente um ponto de
192
XVI Encontro de Literatura para Crianças
partida para mil e uma discussões. Em comum, todos os participantes têm
o mesmo amor pelos seus clássicos – a menina que fala de um “vermelho
devagarinho”, para Ondjaki, ou a “Ilíada” de José Pedro Serra ou o Sófocles
que veio da assistência, trazido por Isabel Alçada. Mais do que discutir,
convém explicar apenas que o que estava em causa era o percurso do
professor para levar o aluno a gostar dos clássicos, os diferentes passos.
Do chicote de Miguel Sousa Tavares passámos agora para a metáfora da
piscina – do banho fatal para quem não sabe nadar até ao indispensável
banho de cultura de que José Pedro Serra falou. Por onde começar, então?
Suponho que todos estão de acordo que é importantíssimo conhecer os
clássicos, mas cada um tem um caminho diferente para lá chegar. No fun-
do, cada um de nós percorreu um caminho muito próprio até aprender a
apreciar e a eleger os clássicos que nos moldaram a vida.
Sessão de Encerramento
Muito obrigada à Isabel e à Ana por estes magníficos resumos. Como lhes
foi pedido, transmitiram-nos as suas opiniões, e fizeram um trabalho no-
tável, de acompanhamento, de observação e de crítica ao Encontro.
Não tive ocasião de assistir a tudo, mas assisti a mais do que as pessoas
pensam, porque assiste-se ali de cima sem estar aqui na sala.
Quanto a haver recomendações ou haver conclusões, eu sou sensível à
crítica da Ana, relativamente a um maior pragmatismo.
Temos também que perceber que, infelizmente, as pessoas que vêm a estes
debates são os convertidos, as pessoas que aqui estão vêm aqui, porque
entendem que este tema é prioritário, é importante nas suas actividades,
gostam destes temas, sabem que esta matéria tem uma importância muito
grande nas suas vidas, enfim, nas suas actividades profissionais.
194
XVI Encontro de Literatura para Crianças
de filosofia e teoria de acordo com a crítica da Ana, que eu aceito.
O Miguel Sousa Tavares disse aqui, anteontem, uma coisa, que eu acho
que é muito importante reter, é que nós vamos passar a distinguirmo-nos
pelos que lêem e os que não lêem. E hoje isto já é muito claro, por exem-
plo, há pessoas que consomem imenso televisão e nota-se, porque as pes-
soas têm uma agenda na cabeça e uns conteúdos na cabeça que se per-
cebe que foram apanhados ali naquela coisinha rápida daqueles quinze
segundos. Os americanos agora treinam os políticos para debates de nove
segundos, em nove segundos, é preciso transmitir uma mensagem que as
pessoas apanhem.
Ora, eu julgo que num país que tem sessenta por cento da população com
o máximo de seis anos de escolaridade, a nossa grande preocupação, pelo
menos a minha, independentemente de clássicos ou não clássicos, é pôr
as pessoas a ler, é tentar que as pessoas leiam e percebam que a leitura
tem um efeito encantatório e fantástico, tão grande ou maior do que a tele-
visão.
Ora digo isto com uma enorme convicção! E acho que a esmagadora maio-
ria das pessoas que está aqui pensa desta forma.
195
XVI Encontro de Literatura para Crianças
Acho que esta é uma matéria a que temos de ser muito sensíveis: somos
um país em que ainda há muita coisa a fazer no sentido de atrair mais e
mais jovens para a área da leitura, e do livro.
E eu vou inventando umas histórias, tant bien que mal, a gente acaba por
ver muita coisa e acaba por ter capacidade de inventar e acabo por con-
seguir entretê-la durante meia hora ou vinte minutos. Mais de meia hora,
às vezes, é mais complicado. É preciso ter uma capacidade de imaginação
que, eu por vezes, ao fim do dia já não tenho. Os nautas e os cavalos com
asas, aquelas coisas todas que nós vamos inventando que atraem miúdos
enormemente. E atraem muito mais do que pela televisão, se “a hora do
conto” for um encontro pessoal.
Eu não me esqueço, confesso que já contei aqui isto uma vez, e não resisto
a contar novamente.
Eu tinha uma tia quando era miúdo, a tia Lucrécia, que era prima direita do
meu pai, era uma pessoa muito idosa e uma contadora de histórias, contava
histórias, tinha uma série de histórias na cabeça, que ela tinha decoradas,
sempre na mesma sequência.
Lembro-me, quando nós estávamos doentes – peço desculpa a quem já
ouviu – em Castelo Branco e não havia televisão. Isto passa-se no início dos
anos cinquenta, a minha tia era cega, no final da vida cegou eu já só a co-
nheci cega e ela era trazida para nossa casa, vivia sozinha, o carro ia buscá-
-la, ela vinha para o nosso quarto, sentava-se numa cadeira e desbobinava
aquelas histórias todas na mesma sequência e eu lembro-me, coitadinha
196
XVI Encontro de Literatura para Crianças
da senhora, que já lá está, mas eu utilizava-a como uma espécie de vídeo,
eu dizia-lhe: - Oh tia, agora esta, agora a outra. Ela andava para trás e para
diante e contava as histórias todas e tinha histórias fantásticas.
Lembro-me apenas de uma, muito recauchutada, porque eu não tenho
aquela memória, não fixei e que conto a uma das minhas netas e ela adora
e, de facto, é uma história cheia de movimento e cheia de animais e tudo
aquilo. Eu ganhei o gosto pelos livros com esta minha tia, confesso, porque
percebi que aquilo tinha que estar escrito num sítio qualquer, quer dizer
não havia tia Lucrécia toda a vida, coitadinha!, depois morreu em 1961 e,
obviamente, que fui atraído para um outro tipo de histórias, um outro tipo
de contos que acabou por me proporcionar momentos inesquecíveis, ainda
hoje falo nesta minha tia, eu e os meus irmãos, com alguma emoção.
Portanto, eu acho que o chicote tem de ser inventado. Temos que inventar
uma forma e cada um tem a sua forma de inventar.
Há um conceito que eu não aceito muito bem, que é dos livros obrigatórios.
É obrigatório ler este livro e isto diz-se a uma pessoa quando tem dez anos
e quinze e vinte e quando tem quarenta e, até eu que tenho sessenta e dois,
diz-se-lhe: - tens que ler este livro.
Não tenho nada que ler o livro!
Eu leio o livro que eu quiser!
Esta coisa de se dizer de uma matéria, tu agora interessaste-te muito por
isto, este livro é obrigatório. Quanto à ideia da obrigatoriedade do livro, que
me desculpem alguns pedagogos, eu sou contra. Acho que cada um faz na
sua cabeça a biblioteca que quiser e escreve na cabeça o livro dos livros
que quiser.
É essa a minha ideia, é por aí que eu acho que nós devemos ir. Isto é um
pressuposto, contém o pressuposto que a Ana aqui referiu, e que a Isabel
também o intuiu no que disse relativamente ao uso do computador e da
Internet. Contido na frase que, salvo erro, foi dita por Pedro Rosa Mendes
“é preciso que cada um tenha o seu próprio motor de busca”.
Eu acho que isto é muito verdade, o Umberto Eco, aqui há três semanas,
em Bolonha, numa conferência, terminou dizendo uma coisa fantástica: que
com isto da Internet, hoje em dia, aquilo que era o conceito de enciclopédia,
a partir do século XVIII, com o Diderot e d’Allambert, as enciclopédias são
essencialmente trabalhos colectivos de equipas imensas de especialistas
que as escrevem. Como Eco dizia, com o acesso à Internet, hoje, qualquer
um dos seis biliões de terrestres que tenha acesso à Internet pode fazer a
sua própria enciclopédia, desde que tenha capacidade para o fazer, isto é,
desde que tenha capacidade de escolha, que tenha o tal motor de busca,
197
XVI Encontro de Literatura para Crianças
que introduza os filtros que permitam retirar da Net aquilo que é a enciclo-
pédia de cada um, nas mais diversas áreas.
Ele, aliás, dizia uma coisa muito engraçada: que cada um poderá fazê-lo
inclusivamente na sua própria língua, o problema depois é que as enciclo-
pédias sejam lidas pelos outros cinco biliões, novecentos e noventa e nove,
novecentos e noventa e nove e ele dizia, com alguma graça, nem Bruxelas
tem intérpretes e tradutores para traduzirem os seis biliões das enciclopé-
dias que cada um fizer e isto mostra, que o mais importante, antes do motor
de busca, é a formação pessoal de cada um.
É a formação de base de cada um, é o domínio da língua materna, é o
domínio dos fundamentos da matemática, é o domínio dos conceitos es-
senciais, é o domínio da história, da geografia, de onde vimos, o que somos
e para onde vamos.
Eu acho que isto nos retorna e nos reporta àquilo que é a formação de base
sobretudo nos primeiros anos da escolaridade, e a importância enorme que
têm a parte do pré-escolar e dos quatro primeiros anos de escolaridade,
para não falar na escolaridade obrigatória dos nove anos ou dos doze,
como quiserem.
A sexta nota é sobre o debate da comunicação social, que aqui foi proposto
pelo Miguel e depois foi proposto e foi consolidado pelo Henrique e que a
Ana, agora, reforçou.
Nós, como tive a ocasião de dizer, na sessão de abertura, organizámos em
1993 ou 94, se a memória não me falha, um debate sobre comunicação so-
cial, exactamente aqui nesta sala, sob a égide do Professor Ferrer Correia,
que nessa altura era o Presidente da Fundação Gulbenkian. Foi a primeira
grande conferência organizada, da chamada série das Conferências do
Presidente, sobre o tema Comunicação Social e os Direitos da Personali-
dade, que era uma questão que nos preocupava muito e eu reconheço que
hoje, à velocidade a que tudo se alterou nos últimos dez anos, esse debate
necessitará, talvez, de ser actualizado.
Tentarei fazer por isso, proporcionar o debate, talvez até um pouco mais
alargado, estendendo-o aos professores, aos técnicos de educação, e aos
editores, em temas ligados à escrita e à literatura.
É uma sugestão, recomendação, que nós seguramente vamos ter em con-
ta.
E daqui por dois anos cá estaremos, se Deus quiser, para entregar prémios
e para os receber para o XVII Encontro.
199
XVI Encontro de Literatura para Crianças