“Preliminarmente, convém distinguir os dois usos fundamentais desse termo: 1) o uso
predicativo, em virtude do qual dizemos "Sócrates é homem", ou "a rosa é vermelha"; 2) o uso existencial, em virtude do qual dizemos "Sócrates é" (= existe) ou "a rosa é" (= existe). (...) Em Parmênides, Platão dá destaque à diferença entre a hipótese "o um é um" e a hipótese "o um é"; nesta última "é" significa "participação no Ser." (...) Na diferença entre Ser predicativo e Ser existencial baseia-se ainda a distinção aristotélica entre tese e hipótese, como premissas do silogismo: a primeira não assume a existência do objeto a que se refere; a segunda, sim. A diferença entre esses dois significados de Ser permanece constante na tradição filosófica posterior a Aristóteles. São Tomás afirma: "Ser tem dois significados: num modo significa o ato de Ser; no outro significa a composição da proposição que o homem encontra ao juntar o predicado ao sujeito" (Suma Theológica, 1, q. 3, a. 4; cf. De ente, 1). (...) Kant estabeleceu a distinção entre a posição predicativa ou relativa, expressa pela cópula de um juízo, e a posição absoluta ou existencial, com que se põe a existência da coisa (Der einzig móglíche Beweisgrund ztt einer Demonstration des Daseins Gottes, 1763. § 2). (...) 1. Significado predicativo [de ´Ser´]: Nas interpretações do significado predicativo é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) inerência; B) identidade (ou suposição); C) relação. A) Segundo a doutrina da inerência, Ser, na relação predicativa, significa pertencer ou inerir. "Sócrates é homem" significa que a Sócrates inere a essência homem; "a rosa é vermelha" significa que à rosa pertence a qualidade vermelho, e assim por diante. O fundamento dessa doutrina é a teoria aristotélica da substância. De fato. as relações de inerência que podem ser expressas pelo verbo Ser são esclarecidas e distinguidas por Aristóteles com base nas relações entre a substância e sua essência necessária, ou entre a substância e suas outras determinações categoriais ou acidentais. Aristóteles diz: "Inerir, inerir necessariamente e inerir possivelmente são coisas diferentes". Inerência necessária é a da essência necessária (expressa pela definição) à coisa da qual é essência; inerir ou inerir possivelmente é referir-se à coisa com uma qualidade, quantidade ou qualquer outra das determinações categoriais não incluídas na definição da coisa ou puramente acidentais. Este é o significado da distinção aristotélica entre Ser necessário (ou por si) e Ser acidental. (...) Ao contrário, a inerência necessária ou por si não tem caráter acidental, e, mesmo ao especificar- se segundo as categorias, seu principal fundamento é a substância. (...) Estas características são mantidas pela doutrina em exame ao longo de toda a sua história, que é longuíssima. A tradição lógica medieval até o séc. XIII (quando do ressurgimento das doutrinas dos estoicos através cia ria moderna) não conhece alternativa. As doutrinas modernas de caráter racionalista geralmente as compartilham. (...) Do mesmo modo, para Hegel, o significado predicativo de Ser é a identidade entre individual e universal, ou seja, aquela mesma relação entre substância e essência que para Aristóteles era o caso privilegiado de relação predicativa. Hegel diz: "A cópula é vem da natureza do conceito, que é de ser idêntico a si mesmo ao se tornar extrínseco: como momentos seus, o individual e o universal são determinações que não podem ser isoladas" (Encyklopãdie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, 2- ed., 1827; ed. Lasson, 1950, § 166). Segundo Hegel, o juízo tende a expressar de modo mediato ou reflexo a unidade entre predicado e sujeito, vale dizer, a unidade de um conceito único que, através do próprio juízo e, mais completamente, através do silogismo, articula-se em suas determinações necessárias (Wissenscbaft der Iogik, III, I, cap. 2; trad. it., pp. 77 ss.. B) A segunda interpretação fundamental de Ser predicativo é de identidade ou suposição: segundo ela, a cópula significa identidade do objeto ao qual o sujeito e o predicado da proposição se referem ou no lugar do qual estão (supponunt pro). simplesmente que o sujeito "Sócrates" e o predicado "branco" referem-se ao mesmo objeto existente, que. portanto, pode ser qualificado com um ou com o outro dos dois termos. A origem desta doutrina está provavelmente na lógica estoica, na qual é fundamental a referência de qualquer enunciado a uma situação de fato imediatamente presente. Mas é expressa claramente só na lógica do séc. XIII, em polêmica com a teoria da inerência. Ockham diz: "Proposições como 'Sócrates é um homem' ou 'Sócrates é um animal' não significam que Sócrates tem humanidade ou animalidade. Tampouco significam que a humanidade ou a animalidade está em Sócrates, nem que o homem ou o animal é uma parte da substância ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou cia substância de Sócrates. Significam que Sócrates é na realidade um homem e é na realidade um animal: não no sentido de Sócrates ser esse predicado 'homem' ou esse predicado 'animal', mas no sentido de que existe alguma coisa em lugar da qual esses dois predicados estão; como quando acontece que esses predicados estão no lugar cie Sócrates" (Summa logicae, livro II, pt. 2, 1323; Quodlibeta Septem., III, 5, 1327). Essa doutrina é expressa quase nos mesmos termos por Hobbes: "A proposição é um discurso que consta de dois nomes conjuntos: quem fala pretende dizer que, para ele, o segundo nome é um nome da mesma coisa cujo nome é o primeiro, ou — o que dá no mesmo — o primeiro nome está contido no segundo. Por ex., o discurso 'O homem é animal', em que os dois nomes estão reunidos pelo verbo é, é uma proposição porque quem a enuncia pretende dizer que, para ele, o segundo nome 'animal' é nome da mesma coisa cujo nome é 'homem'" (De corpore, 1, 3, § 2, 1655). (...) A referência à realidade imediatamente dada ou intuída é a primeira característica fundamental da doutrina em exame. Os lógicos do séc. XIV chegavam a considerar falsa até mesmo proposições tautológicas como "A quimera é quimera", quando nelas o sujeito representa um objeto inexistente (OCKHAM, Summa log. II, 14). (...) C) a terceira interpretação fundamental, a cópula é unia relação. Esta interpretação pode ser dividida em duas alternativas: a primeira (a) considera que a relação predicativa é subjetiva; a segunda (b) considera-a objetiva. a) A interpretação do Ser predicativo como relação que é ato ou operação do sujeito pensante tem como pressuposto óbvio o princípio cartesiano de que o objeto imediato do conhecimento humano é apenas a ideia. Desse ponto de vista, a proposição apresenta-se como juízo e começa a ter esse nome parque juízo é exatamente o ato com que o espírito escolhe ou decide. (...) Kant expressou esse mesmo conceito ao afirmar que o ato de juízo, atividade própria do intelecto, é a síntese: "Entendo por síntese, no sentido mais amplo dessa palavra, o ato de unir diversas representações e compreender a sua multiplicidade num só conhecimento" (Crít. R. Pura. § 10). (...) b) A doutrina da cópula como relação objetiva foi apresentada pela primeira vez por De Morgan (Formal Logic, 1847, cap. 3) e adotada pelo criador da lógica matemática, Boole. Para este, a lógica tem duas espécies de relações: entre coisas e entre fatos; estas últimas também podem ser chamadas de relações entre proposições. De acordo com essa teoria, a relação expressa pela cópula é a mesma em todas as formas proposicionais, não porque sua natureza esteja expressa na proposição, mas porque é estabelecida por convenção. A cópula pode então expressar uma relação qualquer. (...) 2) Significado existencial. O segundo significado fundamental de Ser, o existencial, deve ser dividido em dois significados subordinados: I, como existência em geral; II, como existência privilegiada. Em primeiro lugar, Ser. pode significar existência no 1º significado, geral e indeterminado, mas especificável ou definível de acordo com um critério qualquer. É nesse sentido que Aristóteles afirma que "o Ser. se diz de muitos modos" (Met., VI. 2, 1026 a 32) e que se pode até dizer que o não-Ser é (Ibid., VII, 4, 1030 a 23). Mas, tomado nesse sentido, o significado de S. coincide com o de existência (no Ia sentido), e seu estudo poderá ser encontrado no verbete EXISTÊNCIA. II. Em segundo lugar, Ser pode significar existência privilegiada ou primária, na sua modalidade primeira e fundamental, da qual dependem todas as suas manifestações determináveis. (...) O Ser se diz de muitos modos, mas apenas um é seu significado primário e fundamental. Esse é o ponto de vista de Aristóteles (Met, VII, 4, 1030 a 21). É justamente da relação entre os múltiplos significados que, à primeira vista, parecem caber ao Ser e o significado único e fundamental nos quais eles devem ser integrados, que nasce o chamado "problema do Ser". Trata-se do problema do significado primário, único e simples que se presume no Ser, mas que permanece mais ou menos oculto na multiplicidade dos seus aspectos aparentes. A investigação metafísica, na sua forma clássica, funda-se nesse problema. Trata-se de ver se existe um significado primário de Ser: em primeiro lugar, no sentido de expressar melhor que os outros a existencialidade do Ser; em segundo lugar, no sentido de possibilitar a integração dos outros significados, servindo-lhes de fundamento ou princípio. (...) A interpretação do Ser segundo a modalidade da necessidade prevalece na metafísica clássica. A famosa tese de Parmênides. "O Ser é e não pode não ser", estabelece que o significado fundamental do Ser é a necessidade, o não poder não ser: no que se refere ao tempo, é eternidade (simultaneidade, tutum siniuí); no que se refere a multiplicidade, é unidade: no que se refere ao devir (nascer e morrer), é imutabilidade. Aristóteles também dá prioridade à necessidade. Para ele, o princípio de contradição, que fundamenta a sua "filosofia primeira" (ciência do Ser enquanto Ser), é o princípio que postula a necessidade do Ser, que se realiza na substância. (...) Este ponto de vista aristotélico foi decisivo liara o desenvolvimento posterior do problema do Ser. Graças a ele, o significado primário e fundamental do Ser passou a ser (e continua sendo para grande parte da filosofia) a necessidade, com os atributos, que traz consigo, de imutabilidade, eternidade, unidade, etc. Mesmo quando esses atributos deixaram de referir- se à estrutura formal do Ser (o que ocorreu no neo-platonismo antigo e árabe e no aristotelismo medieval), e passaram a referir-se a um ente privilegiado (ou seja, não a todas as substâncias, mas à substância superior. Deus), considerou-se que as outras substâncias derivariam ou participariam desta, e que derivariam ou participariam de sua necessidade e de seus atributos. (...) No mundo moderno, o conceito de S. como necessidade foi reafirmado principalmente por Spinoza e Hegel. Spinoza viu o S. de Deus na necessidade, e o S. das coisas na necessidade com que derivam da substância divina (Et., I, 8, scol. II). Hegel expressou esse mesmo conceito com o famoso aforismo que serviu de base para toda a sua filosofia: "O que é racional é real; o que é real é racional." A racionalidade do real é a sua necessidade; em virtude dela, o real, em suas determinações fundamentais, só pode ser o que é. Por isso, Hegel diz que "a função da filosofia é entender o que é, pois o que é, é a razão" (Fil. do dir., Pref.).