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A morte do livro?

Notas sobre a história


da leitura na era da dispersão
La muerte del libro? Notas sobre la historia de la lectura en la era de la dispersión
The death of the book? Notes on Reading History in the era of dispersion

Joaci Pereira FURTADO

Departamento de Ciência da Informação, Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense,
Rua Lara Vilela, 126 - São Domingos - 24210-590 Niterói RJ - Brasil, joacifurtado@id.uff.br

Resumen Abstract
¿Cómo se puede escribir la historia de esta práctica — What is the point of reading in the contemporary world?
la lectura— que, hasta el final del siglo XX, se entre- How does one write the history of this practice, reading,
laza con las formas materiales que la definían, como that, until the end of the twentieth century, was inter-
el libro, los periódicos o las revistas? En la era de los twined with the very material forms that defined it, such
medios digitales y lectores virtuales, ¿cuáles son los as the book, newspaper and magazine? In the age of
vestigios que quedarán como testimonio de la lectura? digital media and virtual readership, what are the ves-
Lejos de responder a estas preguntas, en estas notas tiges of reading that will be left as its testimony? Far
se relatan algunas de las preocupaciones del autor so- from answering these questions, these notes bring to-
bre el tema y se apuntan algunas hipótesis metodoló- gether some concerns and point to some methodolog-
gicas. ical hypotheses.
Palabras clave: Lectura. Hipercomunicación. Lecto- Keywords: Reading. Hyper-communication. Virtual
res digitales. Crisis. readership. Crisis.

A Eduardo Murguia (1954-2015), Foi necessária certa realidade para que essa
porque talvez a morte seja incompreensível. ficção, configurada na linguagem e na sensibili-
dade estética que a caracterizam, se produzisse.
I Ou alguém consegue imaginar o conto “Felici-
O horror daquela mãe ao descobrir a filha que dade clandestina” escrito com semelhante en-
tinha: tendo prometido emprestar as Reinações redo na Idade Média francesa – ou mesmo no Oi-
de Narizinho a uma colega, ela obrigava a tocentos brasileiro? À medida que avança o sé-
coitada vir diariamente à sua porta, durante se- culo XXI ele certamente deve soar cada vez mais
manas ou meses a fio, para fazê-la ouvir que vol- estranho – ainda que, do ponto de vista histórico,
tasse no dia seguinte, pois o livro estava com ou- a obra seja bastante recente. Como uma pré-
tra pessoa. O volume, porém, jamais saíra de adolescente, em plenos anos 2000, poderia se
casa e sua perversa proprietária nunca o lera. O mobilizar a tal ponto por folhas de papel dobra-
prazer da garota estava em testar os limites da das e juntadas, com letras impressas nas quatro
obstinação da colega – ou a capacidade desta de faces, formando cadernos costurados que, por
suportar o sofrimento que gratuitamente lhe era sua vez, são recobertos por uma capa igual-
impingido. Ao estarrecimento, porém, segue-se a mente de papel e com letras e, na maioria dos
redenção. Não da filha, provavelmente, mas tal- casos, imagens também impressas? Como al-
vez da mãe e, com certeza, da protagonista, que guém pode sofrer tanto apenas porque deseja
narra a história: a intervenção providencial da ler... um livro? Um livro ao qual agora é preciso
boa senhora lhe concedeu o empréstimo da obra acrescentar o adjetivo “impresso”, condição para
“‘por quanto tempo quiser’. Entendem? Valia o estranhamento que vai se configurando nestes
mais do que me dar o livro: ‘pelo tempo que eu tempos. É bem possível que ainda haja garotas
quisesse’ é tudo o que uma pessoa, grande ou com especial predileção pelo formato codex,
pequena, pode ter a ousadia de querer”. A histó- essa invenção latina do século I d. C. fadada a
ria termina com o livro aberto no colo da narra- conviver com os suportes eletrônicos de leitura –
dora, que languidamente se estende na rede sem quando não a ser superada por eles. Mas se o
tocá-lo: “Não era mais uma menina com um livro: conto de Clarice Lispector fosse reescrito por
era uma mulher com o seu amante” (Lispector, um(a) jovem ficcionista de 2016, é bastante plau-
1998, p. 11-2). sível que apenas o fetiche de bibliófila justificasse

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a obsessão da narradora pelo codex de um livro Babel imaginada por Jorge Luis Borges (1999, p.
cujo conteúdo está disponível para compra em 516-23).
formato digital – ou gratuitamente num site, pira-
Todo um universo de gestos, posturas corporais,
teado. No enredo original da narrativa, a única via
comportamentos, valores e usos acumulados ou
de acesso à obra de Monteiro Lobato era o for-
perdidos ao longo de quase seiscentos anos de
mato impresso, tal como inventado na Europa do
convívio com o livro impresso certamente não fa-
século XV. Para uma pré-adolescente de família
rão o menor sentido numa eventual hegemonia
modesta, no Recife do século XX, as únicas al-
do e-book. A iconografia em que figura o ma-
ternativas honestas para ter o livro nas mãos
nuseio do codex testemunha a longa história
eram a biblioteca pública ou o empréstimo. Se,
dessa cultura mesmo antes do progressivo bara-
pois, a leitura é uma prática social, como seria,
teamento – e, portanto, da paulatina “populari-
na sociedade contemporânea, a relação com o
zação” – do objeto propiciado pelo surgimento da
livro e, mais especificamente, com os modos de
indústria editorial do livro, na metade do século
ler?
XV europeu. O célebre fragmento restante do re-
Não há evidências, por enquanto, de que o livro tábulo Sacra conversação, por exemplo, em que
impresso esteja irrecorrivelmente sentenciado ao aparece Maria Madalena lendo, pintado por
desaparecimento, embora seja pertinente supor Rogier van der Weyden entre 1435 e 1438, en-
que, cada vez mais (até que ponto, porém, não cena elementos dessa cultura na compenetração
se sabe, a não ser em exercícios estúpidos de da leitora, reverentemente curvada sobre o vo-
futurologia), ele conviverá com suas versões em lume aberto encima de um suporte forrado que
suportes digitais. Seja como for, é ilusório negar repousa sobre seu colo.
que estes e a internet causaram, ao menos
Leitura silenciosa – algo raro, ainda naqueles
desde os anos 1990, “uma revolução nas estru-
tempos – mas não íntima, pois feita na presença
turas do suporte material do escrito assim como
ostensiva e provavelmente censória ou no mí-
nas maneiras de ler” (Chartier, 1998, p. 13).
nimo sempre dissuasória de outros olhos (Fis-
Anunciada, negada ou analisada por uma biblio-
cher, 2006, p. 213-4), no contexto de uma “con-
grafia proporcionalmente considerável (1), se le-
versação”. A leitura na privacidade do lar, silen-
varmos em conta o estado tenro da questão, a
ciosa, mas não vigiada, será uma invenção bur-
“morte do livro” inscreve-se numa tópica bastante
guesa a se disseminar pelo mundo, até chegar a
conhecida – em que brilha, ao menos no âmbito
certa rede de dormir imaginada no Recife. Mada-
do que interessa aqui, o célebre ensaio de Ro-
lena lê silenciosamente em público, mas não se
land Barthes, “A morte do autor” (Barthes, 1987).
dispersa, como se vê. A dispersão da leitura e o
Os termos da questão, entretanto, me parecem
leitor disperso, se não são invenções recentes,
equivocados. Ou carentes de certa modulação,
foram infinitamente potencializados e multiplica-
pois agora a palavra “livro” nomeia também um
dos pelos suportes digitais, neste começo do sé-
conteúdo e não apenas uma forma – enquanto
culo XXI.
“biblioteca” designa cada vez mais uma função,
e não somente um espaço. Se cabe falar em Dessa secular cultura do livro impresso, o que
“morte” ou “fim”, estes dois termos se aplicam resta das práticas de sua leitura na paisagem da
muito mais à hegemonia do codex, tecnologia privacidade e do espaço público contem-
que, com ajustes e refinamentos, permaneceu porâneos? É possível elencar alguns signos,
basicamente a mesma durante dois mil anos. O usos e posturas ainda bastante vigorosos. Ele
livro, como sinônimo de um conteúdo escrito, caracteriza – embora cada vez menos – o estu-
continua vigoroso, mas agora disperso em outras dante e o professor, é inseparável do hare
formas que determinam ou reconfiguram sua krishna e do fiel evangélico, é carregado solene-
leitura. Com a fotocópia, o e-book, o PDF e a in- mente em rituais católicos, pesa na mesa do juiz
ternet, chamamos de “livro” as partes ou a ínte- e do gramático. A ele são dedicados espaços pú-
gra de textos digitalizados que lemos em telas ou blicos próprios, às vezes monumentais, às vezes
em folhas avulsas. Mas especialmente os supor- modernizados – neste caso, tentando se ressig-
tes eletrônicos conferiram uma ubiquidade inau- nificar num contexto em que o paradigma alexan-
dita à palavra escrita e estenderam a autonomia drino parece definitivamente superado (Baratin,
do leitor a limites antes inimagináveis, ao ponto 2000, p. 227-33) e em que o acesso à informação
de ele poder ser também coautor do que lê (Fis- pode se dar vitualmente de qualquer ponto do
cher, 2006, p. 295-5). Mais que isso, agora o livro planeta. Comercializado, para ele são desenvol-
é pensável numa interação multimídia imprová- vidas lojas sofisticadas, que chegam a emular o
vel até bem pouco tempo, não só mobilizando si- ambiente da leitura em casa. Mas o livro im-
multaneamente som e imagem em movimento presso também pode ser doado, presenteado,
(Chartier, 1998, p. 72-3), mas realizando na tela, emprestado – e nunca devolvido –, esquecido,
por meio de hiperlinks, a labiríntica biblioteca de

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abandonado, herdado, roubado, revendido, com- junto com os do observador, piedosamente con-
partilhado, copiado à mão ou mecanicamente. vergem, é dele que seu corpo se constitui como
Na intimidade, acalenta o sono e o imaginário de suporte do suporte – ou como altar, trono, mesa
crianças, preenche o ócio de idosos, convales- ou até mesmo leito. Semelhante configuração,
centes e presidiários, jaz decorativamente sobre retoricamente regrada e decodificável pelos con-
o tampo de coffee tables ou displicentemente so- temporâneos da obra, faz sentido numa socie-
bre criados-mudos (ou sob a cama), abarrota es- dade fundamentada no primado da tradição (pre-
tantes, acumula-se em pilhas empoeiradas pelos sente em vários signos, desde o pote de un-
cantos da casa, envelhece e mofa sobre guarda- guento ou relicário no canto inferior direito, se-
roupas ou em porões e caixas, é riscado e ano- lando o caráter cristão da pintura, até a cor da
tado pelo pesquisador ou pelo leitor apaixonado túnica da personagem: o verde da esperança,
pelo poema, guarda cartões postais, bilhetes, uma das três virtudes teologais) e da crença no
dinheiro, recortes de jornal, bula de remédio, o Incriado, cuja presença, sob os influxos da luz
título de eleitor, a marca de uma lágrima. Com inata da Graça evidenciando a Revelação, es-
dimensões, pesos, cores, texturas, materiais e pera apenas ser lida em suas perenes manifes-
cheiros diferentes, é universalmente identificável. tações no mundo, exatamente como um livro –
No imaginário coletivo, é tido como fonte ou signo ou como “o” livro: a Bíblia. O leitor do século XXI,
de saber – quando não de sabedoria – e está in- herdeiro da dessacralização do codex que princi-
separavelmente associado a certa noção de “cul- piou no XVI (sem minimizar aqui inúmeras nuan-
tura”, mesmo entre aqueles que, apesar de alfa- ces e aclimatações ao longo desse tempo) e da
betizados, não lhe reservam sequer algumas ho- emancipação intelectual iluminista irradiada pela
ras por mês ou pela vida toda (2). Revolução Francesa, é laico, confiante na ino-
vação e, na prática, materialista, mesmo quando
Os suportes eletrônicos, porém, sempre multifun-
se diz crente ou se porta como fanático. Não há
cionais, aboliram a máxima de Marshall McLuhan
como esperar dele aquela entrega absoluta à
de que “o meio é a mensagem”, prestando-se à
leitura representada na Sacra conversação, ou a
uma infinidade de usos inclusive simultâneos que
qualquer outra prática cultural, se “as nossas
eliminam a maioria (se não todas) das situações
ideias, a nossa imaginação e os nossos sonhos
ou significações arroladas acima. Junto com o
cotidianos estão cada vez menos no mesmo lu-
jornal, a revista e a carta, agora o livro pode ser
gar que o nosso corpo” (Gumbrecht, 2015, p.
lido na mesma tela do aparelho em que vemos
124).
filmes, ouvimos música, fotografamos, filmamos,
escrevemos e falamos – numa fragmentação da Os novos dispositivos eletrônicos de comuni-
atenção também sem precedentes, que ao cação, escreve Gumbrecht, inovam não por emu-
mesmo tempo sacia e gera leitores ansiosa- lar ou exceder “a performance possível de um hu-
mente divididos, prorrogando ou espelhando nas mano”, mas pela ubiquidade da informação – e,
práticas de leitura a descorporificação da ex- portanto, da leitura, podemos acrescentar. A con-
periência humana, no âmbito daquilo que enten- trapartida desse admirável mundo novo prome-
demos por “cultura” em sentido amplo, e, em sen- tido ou na perene iminência de realizar-se plena-
tido estrito, a constituição do leitor sobretudo mente pela hipercomunicação está na “disponibi-
como consumidor disperso, ubíquo e insone. lidade infinita”: “queiramos ou não, é verdade que
nós, isto é, os que usam os caixas eletrônicos e
as telas digitais, se tornam mais acessíveis”
II
(Gumbrecht, 2015, p. 115). O leitor contem-
Se não há mundo da leitura sem leitura do mundo porâneo pode acessar virtualmente “tudo” – ou a
(Lajolo, 1993, p. 7), ou, em outras palavras, se ilusão dessa totalidade. Mas pode ser igualmente
“A leitura não é uma atividade isolada: ela encon- acessado. Não apenas por um onipresente pan-
tra – ou deixa de encontrar – o seu lugar em um óptico orwelliano, capaz de investigar hábitos de
conjunto de atividades dotadas de sentido” (Petit, consumo e estilos de vida, apropriando-se des-
2013, p. 104), ao fazer uma história dessa prática ses dados para oferecer ou induzir o internauta –
no século XXI talvez seja pertinente pensar as re- com menor ou maior sutileza – à compra de pro-
lações entre o ato de ler e a “descorporificação dutos e serviços (Crary, 2014, p. 57), mas princi-
da experiência humana”, de que fala Hans Ulrich palmente por estímulos permanentes de vária
Gumbrecht em Nosso amplo presente (2015, p. natureza, quase sempre de recorrente apelo nar-
121-2). No retrato pintado por Van der Weyden, císico e consumista, dispersando ou fragmen-
a leitora está integralmente entregue ao livro – de tando sua atenção – ou, numa perspectiva bem
corpo e alma, como se diz, e creio que aqui mui menos otimista, submetendo-a “à diminuição das
apropriadamente. Não há, em sua postura, uma capacidades mentais e perceptivas em vez de
atenção cindida: o volume ocupa o centro da sua expansão e modulação” (Crary, 2014, p. 43)
cena, e é para ele que os olhos de Madalena, – em duas ou mais personas simultâneas até

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bem pouco tempo (ao menos na maioria das no século XXI? Uma resposta recente está sendo
combinações) incompatíveis ou excludentes num tentada, creio, na Biblioteca de São Paulo, inicia-
mesmo indivíduo: leitor, ouvinte, espectador, re- tiva do governo estadual. Localizada no Parque
dator, editor, cliente, torcedor, fiel, cidadão, fotó- da Juventude, na zona norte paulistana, em te-
grafo, videomaker, repórter, DJ, militante, mão de rreno onde funcionava a demolida penitenciária
obra, voyeur… O homem solitário com quem cru- do Carandiru e que agora abriga também qua-
zamos no espaço público, e que à primeira vista dras de esportes, espaços para shows e áreas
parece falar sozinho enquanto caminha, pode es- verdes, seu acervo prioriza o público infantil e ju-
tar aludindo com a amante, por meio de discreto venil, incluindo best-sellers. O que talvez seja
dispositivo de comunicação, “a momentos de in- mais significativo, porém, é o propósito explícito
tensidade erótica que recordam da noite anterior inscrito em seu projeto arquitetônico, resumido
e que anseiam no futuro”, compartilhando uma nestas palavras pelo então secretário estadual
“bolha de privacidade estática” em meio ao am- da Cultura, João Sayad: “A ideia é que ela pareça
biente formal e austero das relações de negócio uma megastore pública. [...] Ela deve ter tudo
que se dão em público (Gumbrechet, 2015, p. aquilo que essas lojas oferecem, mas estará
121). Ou pode ser que ele apenas discute a lista aberta para atender a todos” (Revista da Folha,
de compras do supermercado com a esposa. 2010). Sobretudo no design dos móveis e em sua
Essa simultaneidade – cujas combinatórias ten- arquitetura interior, evidencia-se, nessa biblio-
dem ao infinito –, ao mesmo tempo causa e efeito teca, a emulação do ambiente intimista que as li-
da potencialização de múltiplos estímulos, é a vrarias procuram proporcionar – por sua vez, pro-
condição para a gênese do Homo vigiliis – o ho- piciando um clima de intimidade doméstica. Ou
mem que nunca dorme – no terceiro milênio, co- seja, e salvo engano, trata-se de tornar o espaço
lonizando o vazio cada vez mais largo de sua público parecido com o privado – ou, antes, de
insônia – ou de sua angústia existencial? – com fundir em um a natureza de três: a biblioteca pú-
“necessidades ininterruptas, sempre encoraja- blica, a megaloja de livros e o lar –.
das e nunca aplacadas” (Crary, 2014, p. 19).
Essa (con)fusão entre público e privado, agora
Vinte quatro horas por dia, sete dias por semana,
arquitetonicamente “naturalizada”, que efeitos
o Homo vigiliis se expõe a “solicitações e
poderia ter sobre a leitura? O ensino ou o estí-
atrações” que incapacitam “a visão, por meio de
mulo institucionalizado do ato de ler se dará,
processos de homogeneização, redundância e
daqui para frente, apenas em dispersivos es-
aceleração” (Crary, 2014, p. 43). Se para a leitura
paços públicos multifuncionais que ao mesmo
– ou certa leitura “crítica”, filha do iluminismo –,
tempo pareçam biblioteca, livraria e lar? Ou
que é um modo de ver, antes demandava-se al-
ainda, que concepção de leitor e leitura se mate-
teridade, espanto e lentidão, o que há de ser do
rializa nessa arquitetura? Para que corpo ela foi
ato de ler no contexto obnubilado, reiterativo e
pensada? Para que gestos? Em nome de que va-
ansioso da hipercomunicação de agora? Como
lores?
compreendê-lo, capturá-lo, percebê-lo em suas
radicais dispersão e volatilidade? Que sentido, A materialidade da edificação, do acervo e do
enfim, terá hoje a memória da leitura, se as “mí- mobiliário com certeza pode oferecer algumas
dias digitais realizam o projeto moderno de pro- respostas. Os usuários também, que em sua prá-
duzir a simultaneidade instantânea, aqui e agora, tica efetivam, contradizem, superam, negam, re-
ao mesmo tempo ausente, de todas as tempora- fratam, multiplicam, reinventam essa arquitetura.
lidades do tempo” (Hansen, 2013, p. 21)? Como intérpretes do que leem, porém, onde dei-
xam seus registros? Há sempre o recurso da en-
trevista qualitativa, se não estamos preocupados
III
com quantidade, ou dos indícios estatísticos para
A história das práticas de leitura em nossa con- análise de tendências gerais (frequência, faixa
temporaneidade impõe, pois, questões metodo- etária, escolaridade, sexo, renda etc.).
lógicas que seria pretencioso exaurir aqui, até
Mas erguendo a vista para além de um caso es-
porque não parece que estejam claras – ao me-
pecífico, quais os registros das práticas de leitura
nos para mim (e expor semelhante incerteza é o
na era digital que o historiador poderia buscar?
principal objetivo destas notas, na esperança de
Os próprios dispositivos de leitura do e-book per-
buscar a sempre enriquecedora interlocução).
mitem que o fornecedor da obra rastreie até que
Mas é possível apontar algumas hipóteses de re-
página o livro foi “aberto” pelo consumidor: a rede
flexão a respeito. A começar pela biblioteca. Se
de lojas Kobo, a pedido da colunista Raquel Co-
ela – com longa história de descaso no Brasil,
zer, do jornal Folha de S. Paulo, verificou que, em
onde nunca chegou, de fato, a ser “popular”, e
2014, 49,1% dos fãs brasileiros de A culpa é das
provavelmente nunca o será – esvaziou-se como
estrelas, de John Green, não concluiu a leitura do
lugar preferencial do livro, qual será sua função
livro em sua versão eletrônica. Esse percentual

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sobe para 58,3% quando se trata de Cinquenta produzem um público espantosamente maior, in-
tons de cinza, de E. L. James (Cozer, 2015). São contável, ao mesmo tempo anônimo, disperso e
números eloquentes sobre o comportamento do fragmentado, que agora pode ter acesso a milhões
leitor contemporâneo em relação a best-sellers de textos digitalizados e, quem sabe, lê-los. Mas
como são lidos? E o que se faz com eles? (Hansen,
vinculados a outra indústria, a do cinema, abrindo
2013, p. 21-2).
vasto campo de reflexão sobre as inseparáveis
interações mercadológicas entre as mídias (livro, Por isso talvez essa história careça de uma me-
cinema, televisão, internet), dentro daquilo que todologia mais atenta às suas especificidades
chamamos de “indústria cultural”. para não incorrer em anacronismos ou im-
pressões equivocadas. Não há dúvida de que a
Outro meio de perscrutarmos o leitor do século leitura e o livro, tal qual idealizados no referido
XXI são os comentários que ele posta em sites retrato de Madalena lendo, e até algumas déca-
de livrarias ou dos jornais e revistas – ainda que das atrás não de todo estranhos a nós, estão de-
muitos possam ser fraudulentos, decorrendo de finitivamente mortos. Resta compreender, afinal,
ações estratégicas de marketing editorial. Pela o que nasceu em seu lugar.
internet grassam blogs e vlogs dedicados a livros
– alguns bastante influentes –, e talvez eles se-
jam as fontes mais parecidas com o leitor de
Notas
hoje, em sua maioria ostentando textos e vídeos (1) O exemplo mais célebre talvez seja Não contem com o
entrecortados, dispersos, superficiais, vertigino- fim do livro, de Umberto Eco e Jean-Claude Carrière. Vale
lembrar também o ensaio Achados e perdidos no ciberes-
samente agitados e pateticamente infantilizados
paço, em A questão dos livros: passado, presente e fu-
sobre obras de grande vendagem ou mesmo turo, de Robert Darnton (2010).
canônicas.
(2) Partes deste parágrafo e dos dois anteriores derivam de
Enquanto nas redes sociais organizam-se comu- outro artigo meu (Furtado, 2016).
nidades de leitores diversos em torno de títulos,
autores ou temas, com fóruns de debate, ques- Referências
tões legais de privacidade dificultam o acesso à Baratin, Marc (2000). Da biblioteca à gramática: o paradigma
troca de e-mails entre editoras, autores e leitores da acumulação. // Baratin, Mark & Jacob, Christian (dir.).
– mas essa correspondência seria preciosíssima O poder das bibliotecas: a memória dos livros no
para uma história da leitura em nossa contempo- Ocidente. Trad. Marcela Mortara. Rio de Janeiro: Editora
da UFRJ, 2000. 227-33.
raneidade, assim como os dados de vendas das
próprias casas publicadoras (alguns, gerais, Barthes, Roland (1987). La muerte del autor. // El susurro del
lenguaje: más allá de la palabra y la escritura. Trad. C. F.
estão disponíveis virtualmente por meio de rela- Medrano. Barcelona: Paidós, 1987. 65-71.
tórios anuais de sindicatos de editores). Borges, Jorge Luis (1999). A biblioteca de Babel. // Obras
completas. Trad. Carlos Nejar. 3ª reimp. São Paulo:
Os dispositivos de leitura dos e-books permitem Globo, 1999, v. 1, 516-23.
intervenções do leitor, incluindo anotações – num
Chartier, Roger (1998). A aventura do livro do leitor ao
sucedâneo eletrônico das antigas marginálias navegador. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes.
que faziam a alegria dos historiadores da leitura, São Paulo: Editora Unesp, 1998.
ávidos por sondar como esta se efetivava aos o- Cozer, Raquel (2015). No meio do caminho. // Folha de S.
lhos até ou sobretudo do leitor mais anônimo. Paulo, São Paulo, 13. mar. 2015, Ilustrada.
Se-ria possível resgatar essas anotações http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/211745-no-
meio-do-caminho.shtml.
eletrôni-cas?
Crary, Jonathan (2014). 24/7: capitalismo tardio e os fins do
A era digital gera, numa proporção infinitamente sono. Trad. Joaquim Toledo Jr. São Paulo: Cosac Naify,
2014.
superior, sua própria documentação para a histó-
ria da leitura. Mas são documentos de outra na- Darnton, Robert (2010). Achados e perdidos no ciberespaço.
// A questão dos livros: passado, presente e futuro. Trad.
tureza, bastante diversa daquela escrita sobre o Daniel Pellizzari. São Paulo: Companhia das Letras,
papel, fruto de relação também diferente com a 2010, 76-82.
escrita – e, portanto, com a leitura. Mais que di- Eco, Umberto; Carrière, Jean-Claude (2010). Não contem
ferente, radicalmente outra: com o fim do livro. Trad. André Telles. Rio de Janeiro:
Record, 2010.
Não sei se os meios digitais permitem hierarquizar Fischer, Steven Roger (2006). História da leitura. Trad. Clau-
o valor da informação, como ainda fazemos opondo dia Freire. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.
literatura séria a literatura kitsch, ou se a própria li-
Funrtado, Joaci Pereira (2016). A morte da biblioteca? O lu-
teratura deles implica justamente a equalização de gar do livro e do leitor na era da dispersão. // Visuali-
todos os valores. [...] De todo modo, as mídias digi- dades. 13:2. ISSN 2317-6784. doi:http://dx.doi.org/10.
tais também alteram as condições da crítica, princi- 5216/vis.v13i2.40735.
palmente porque põem em crise a noção burguesa Gumbrecht, Hans Ulrich (2015). Disponibilidade infinita: da
e romântica do autor como individualidade que tem hipercomunicação (e da terceira idade). // Nosso amplo
a posse e a propriedade do texto original que pro- presente: o tempo e a cultura contemporânea. Trad. Ana
duz; desierarquizam o valor estético dos textos e Isabel Soares. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 113-29.

Furtado, Joaci Pereira. A morte do livro? Notas sobre a história da leitura


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Hansen, João Adolfo (2013). O que é um livro?. São Paulo: Revista da Folha (2010). Pavilhão das letras. São Paulo, 31
Sesc São Paulo, 2013. jan. 2010. http://www1.folha.uol.com.br/revista/rf31012
Lajolo, Marisa (1993). Da leitura do mundo para ao mundo da 01005.htm.
leitura. São Paulo: Ática, 1993.
Lispector, Clarice (1998). Felicidade clandestina. // Felicidade Enviado: 2016-02-19. Segunda versión: 2016-05-14.
clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 9-12. Aceptado: 2016-06-09.
Petit, Michèle (2013). Os jovens e a leitura: uma nova per-
spectiva. Trad. Celina Olga de Souza. 2. ed. São Paulo:
Editora 34, 2013.

Furtado, Joaci Pereira. A morte do livro? Notas sobre a história da leitura


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