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mas as verda- Para uma história comparada


efeitos. Seria
ntativas feitas das sociedades europeias
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ante — ainda
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íza.
\Revue de synthèse historique, t. XLVI, 1928, p. 15-50. Tradução ingl. «En-
treprise and Secular Change», Readings on Economic History, Frederic Lane e
Jelle C. Riemersma, 1953, Richard D. Irwing, Inc., Homewood, Illinois. Mélan-
ges historiques, t. I, p. 16-40]
o desta nota, de
■ação e Método
I
Permitam-me que, logo às primeiras palavras, previna um equívoco e me
poupe ao ridículo. Não venho até vós como «descobridor» de umapanaceia nova.
O método comparativo pode muito; considero a sua generalização e o seu aper­
feiçoamento uma das necessidades mais prementes que hoje se impõem aos es­
tudos históricos. Mas não pode tudo: em ciência, não há talismãs. E não se in-

119

(2)L0CH; V\ . Çaia chvrct hisWov comprada. Ja5 ccaecUchs n : ____...


i-bôion q a iado^S< . p, /ISO.
MARC BLOCH

\em a. Já deu as suas provas em várias c:éaic:as 3. A sua aplicação à


história das instituições políticas, econômicas, undicas foi muitas vezes reco-
mendada". E visível, porém, que a maior pane dos historiadores, no fundo, não
se converteram; dizem educadamente que sim e retomam o serviço sem nada mu­
darem nos seus hábitos. Porquê? Talvez porque os deixaram'acreditar com de­
masiada facilidade que a «história comparada • era um capítulo da filosofia da
história ou da sociologia geral, disciplinas que. segundo esta disposição de espí­
rito, o trabalhador ora venera, ora acolhe com um sorriso céptico mas habitual­
mente se escusa a praticar; o que ele quer de um método é que seja um instru­
mento técnico de uso corrente, maleável e susceptível de resultados positivos. O
método comparativo é isso mesmo, mas eu não tenho a certeza de que até agora
tal tenha sido suficientemente demonstrado. Pode, deve penetrar nas pesquisas
de pormenor. O seu futuro, o futuro, talvez, da ciência tem este preço. Gostaria
de precisar aqui perante vós, com a vossa ajuda, a própria natureza e as possibi­
lidades, de' aplicação desta boa ferramenta, indicar, por meio de alguns exemplos,
os principais serviços que temos o direito de esperar dele, enfim, sugerir alguns
meios práticos de facilitar o seu emprego.
Ao falar aqui perante um público de medievalistas irei buscar os meus exem­
plos, de preferência, ao período a que, correcta ou incorrectamente, se costuma
chamar Idade Média. Mas é evidente que — muiatis mutandis — as observações
que vão seguir-se poderíam também aplicar-se às sociedades europeias da época
moderna. Por isso, não conto coibir-me de aludir a estas últimas.

II

A expressão «história comparada», que hoje é corrente, teve o destino de qua­


se todas as expressões habituais: os desvios de sentido. Deixemos de lado certos
empregos abusivos. Rejeitados estes erros, subsiste ainda um equívoco: em ciên­
cias humanas, estamos sempre a reunir sob a expressão método comparado dois
processos intelectuais diferentes. Apenas os linguistas parecem preocupados em
os distinguir com cuidado . Procuremos por nossa vez o rigor, do ponto de vista
próprio aos historiadores.
Antes do mais, no nosso domínio, o que é comparar? Incontestavelmente, é
o seguinte: escolher, em um ou vários meios sociais diferentes, dois ou vários

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HISTORIA E HISTORIADORES

fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si,
descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças
e. na medida do possível, explicar umas e outras. São portanto necessárias duas
condições para que haja, historicamente falando, comparação: uma certa seme­
lhança entre os factos observados — o que é evidente — e uma certa disseme-
Ihança entre os meios onde tiveram lugar. Por exemplo, se estudar o regime se-
nhorial do Eimousin, serei etemamente levado a pôr lado a lado informações
tiradas deste ou daquele senhorio; no sentido vulgar da palavra, comparo-os. Não
terei porém a impressão de fazer o que, em linguagem técnica, se chama história
comparada pois irei buscar os diversos objectos do meu estudo a fracçÕes de uma
mesma sociedade que apresenta, no seu conjunto, uma grande unidade. Na prá­
tica, criou-se o hábito de reservar quase exclusivamente a expressão história
comparada para o confronto de fenômenos que se desenrolaram dos dois lados
da fronteira de um Estado ou nação. Entre todos estes contrastes sociais, com
efeito, as oposições políticas ou nacionais são as que mais de imediato impres­
sionam o espírito. Mas, como veremos, trata-se aí de uma simplificação um pou­
co grosseira. Atenhamo-nos à noção, ao mesmo tempo mais maleável e mais
exacta. das diferenças de meio.
0 processo de comparação assim entendido é comum a todos os aspectos do
método, mas, conforme o campo de estudo considerado, é susceptível de duas
aplicações totalmente diferentes pelos seus princípios e resultados.
Primeiro caso: escolhemos sociedades separadas no tempo e no espaço por
distâncias tais que as analogias observadas de um lado e do outro, entre este ou
aquele fenômeno, não possam, com toda a evidência, explicar-se por influências
mútuas ou por alguma comunidade de origens. Por exemplo (desde a época lon­
gínqua em que o Pe. Lafitau, da Companhia de Jesus, convidava os seus leitores
a comparar os «costumes dos selvagens americanos» com os «dos primeiros tem-
A
pos»^ é o tipo mais difundido deste gênero de comparação), pomos em evidência
as civilizações mediterrânicas, helénica ou romana, as sociedades ditas «primi­
tivas» e os nossos contemporâneos. Nos primeiros tempos do Império Romano,
a dois passos de Roma, nas margens encantadoras do lago de Nemi, um rito, pela
sua cruel estranheza, destaca-se no meio dos costumes de um mundo relativa­
mente organizado: quem quer ser sacerdote do pequeno templo de Diana pode
sê-lo com uma condição, e só uma — matar o prestante que se encontrar no lugar.

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MARC BLOCH

«Se pudermos demonstrar que um costume bárbaro, semelhante ao de Nemi,


existiu noutro lugar; se pudermos discernir os motivos que o trouxeram para a
instituição, provar que os seus motivos exerceram largamente a sua acção, talvez
num âmbito universal, no seio de sociedades humanas, produzindo em circuns­
tâncias várias um grande número de instituições especifícamente diferentes, m$s
genericamente semelhantes; se pudermos, enfim, seguir as marcas da sua acção
até à antiguidade clássica... então poderemos com legitimidade induzir que esses
mesmos motivos, numa era distante, deram origem ao sacerdócio de Nemi5.»Tal
foi o ponto de partida do imenso trabalho de investigação do Ramo de Ouro,
exemplo entre todos ilustre e instrutivo de uma pesquisa inteiramente baseada
em reunir testemunhos tirados dos quatro cantos do globo. O estudo comparativo
assim entendido prestou já serviços imensos e de toda a espécie. Primeiro, e mais
particularmente, no que toca à antiguidade mediterrânica: a educação humanista
tinha.-nos habituado a imaginar Roma e a Grécia muito semelhantes a nós; a com-
parãção/nas mãos dos etnógrafos, restitui-nos, por uma espécie de choque men­
tal, essa sensação de diferença, de exotismo que é a condição indispensável de
um entendimento são do passado. Outros benefícios são de ordem mais geral:
possibilidade de preencher, por meio de hipóteses baseadas na analogia, certas
lacunas de documentação; abertura de novas direcções para a investigação, su­
geridas pela comparação; sobretudo, explicação de muitas sobrevivências, até aí
incompreensíveis. Entendo por tal costumes que, tendo-se mantido e cristalizado
depois do desaparecimento do meio psicológico original em que tinham nascido,
pareceríam de uma irredutível bizarria se o exame de casos semelhantes, no seio
de outras civilizações, não permitisse reconstituir precisamente o meio desapa­
recido: por exemplo, o assassínio ritual de Nemi6. Para tudo dizer numa palavra,
este método comparativo de longo alcance é essencialmente um processo de in-
terpolação das curvas. O seu postulado, ao mesmo tempo que a conclusão a que
sempre volta, é uma unidade fundamental do espírito humano ou, se se preferir,
a monotonia, a espantosa pobreza dos recursos intelectuais de que a humanidade
dispôs ao longo da história, particularmente a humanidade primitiva no tempo
em que, para falar ainda como Sir James Frazer, «elaborava, na sua grosseria pri­
mordial, a sua filosofia da vida.»
Mas há uma outra aplicação do processo de comparação: estudar paralela­
mente sociedades a um tempo vizinhas e contemporâneas, incessantemente in­

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HISTÓRIA E HISTORIADORES

fluenciadas umas pelas outras, ciro desenvolvimento está submetido, precisa­


mente por causa da sua proximidade e do seu sincronismo, à acção das mesmas
grandes causas e que remontam, pelo menos em parte, a uma origem comum. E,
em história propriamente dita, o equivalente da linguística histórica (por exem­
plo, da linguística indo-europeia). ao passo que a história comparada em sentido
lato correspondería mais ou menos à linguística geral. Ora, quer se trate de his­
tória ou de linguagem, bem me parece que, dos dois tipos do método compara­
tivo, o mais limitado no seu horizonte é também o mais rico cientificamente.
Mais capaz de classificar com rigor e de criticar as comparações, pode aspirar a
chegar a conclusões de facto muito menos hipotéticas e muito mais precisas .
Pelo menos é isto que me esforçarei por salientar pois, como bem se entenderá,
é a esta forma metodológica que pertence a comparação, que vos proponho ins­
tituir, entre as diversas sociedades europeias — sobretudo da Europa ocidental
e central — , sociedades síncronas, próximas umas das outras no espaço e saídas,
quando não de uma, pelo menos de várias fontes comuns.

III

Antes da interpretação dos fenômenos vem a sua descoberta. É neste esforço


primordial que primeiro nos surge a utilidade do método comparado. Mas, dirão
talvez, será preciso ter tanto trabalho para «descobrir» os factos históricos? Só
são nossos conhecidos ou cognoscíveis através de documentos; para os ver em
plena luz, diante dos nossos olhos, não bastará ler textos ou monumentos? Claro,
mas é preciso saber ler. Um documento é uma testemunha; como a maior parte
das testemunhas, só fala se interrogado . O difícil é elaborar o questionário. E aí
que a comparação proporciona a esse perpétuo juiz de instrução que é o histo­
riador um precioso auxílio.
Com efeito, vejamos o que muitas vezes se passa. Numa dada sociedade, ma­
nifestou-se um fenômeno com tanta amplitude e, sobretudo, teve tantas conse­
quências e tão visíveis — nomeadamente no domínio político, sendo os prolon­
gamentos desta natureza habitualmente mais fáceis de captar nas nossas fontes
— que, a menos que sofra de cegueira, o historiador não pode deixar de o captar
em cheio no olhar. Tomemos agora a sociedade vizinha. Talvez se tenham dado
aí factos análogos e com uma força e uma extensão quase paralelas; mas, seja

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MARC BLOCH

por causa do estado da nossa documentação, seja devido a uma constituição so­
cial e política diferente, a sua acção é aí menos imediatamente perceptível. Não,
que tenha sido menos grave. Mas operou-se em profundidade: como essas obs­
curas afecções do organismo que, não se traduzindo instantaneamente por sinto­
mas bem definidos, se mantêm indetectadas durante anos e quando os seus/efei-'
tos por fim aparecem continuam quase impossíveis de reconhecer! porque o
observador não pode ligar os efeitos visíveis a uma causa original demasiado an­
tiga. Hipótese teórica, tudo isso? Para demonstrar que não o é sou forçado a ir
buscar um exemplo às minhas próprias investigações. Lamento ter que entrar em
cena; mas os trabalhadores, habitualmente, não se cansam a contar os seus tac-
teios, a literatura não me fornece nenhum caso que possa substituir a minha ex­
periência pessoal9. -. . f
Se há, na história agrária da Europa, uma transformação que surge com gran­
de relevo, é essa de que foi palco a maior parte da Inglaterra, mais ou menos des­
de o início do século XVI atévaos primeiros anos do século XIX — esse vasto
.movimento das enclosures que, sob a sua dupla forma (delimitação do terreno
comunal, delimitação das lavras) pode definir-se, no essencial: desaparecimento
das servidões colectivas, individualização da exploração agrícola. Consideremos
aqui apenas a delimitação das lavras. Como ponto de partida, temos um regime
segundo o qual a terra arável, assim que despojada das suas colheitas, se tomava,
pèlo pasto,;objecto de exploração comum e, ainda semeada ou coberta de searas
obedecia já, no ritmo do. seu cultivo, a regulamentos destinados a proteger os in­
teresses da colectividade; como ponto de chegada, um estado de rigorosa apro­
priação pessoal. Tudo, nesta grande metamorfose, .atrai e retém o nosso olhar: as
polêmicas que suscitou durante todo o decurso da história; o acesso relativamente
fácil .à maior parte dos. documentos (actas do Parlamento, fiscalizações oficiais)
que sobre ela nos informam; as suas ligações com a história política pois, favo­
recida pelos progressos do Parlamento, onde mandavam os grandes proprietários,
contribuiu, por ricochete, para assentar mais solidamente o poder da gentry; as
suas possíveis relações com os dois factos mais imediatamente salientes da his­
tória econômica inglesa, a saber, a expansão colonial e a revolução industrial, que
ela terá talvez facilitado (há quem duvide, mas para nós basta que o assunto se
discuta); enfim, o privilégio que lhe coube de estender os seus efeitos, não apenas
aos fenômenos sociais, sempre tão delicados de detectar, mas também às carac­
HISTÓRIA E HISTORIADORES

terísticas mais salientes da paisagem, fazendo erguer-se por toda a parte, nos
campos ingleses, outrora a perdei de vista, as barreiras e as sebes. Portanto, nâo
há história de Inglaterra, por mais elementar que seja, que não mencione as en-
closures.
Abramos agora uma historia de França, nem que seja uma história econômi­
ca... Não encontraremos aí a mínima alusão a movimentos desta ordem. E no en­
tanto. houve-os. Hoje. sobretudo graças aos trabalho de M. Henri Sée, começa­
mos a distingui-los; contudo, estamos ainda longe de ter tomado uma consciência
suficientemente nítida das diferenças que neste ponto apresentam as evoluções,
ao mesmo tempo semelhantes e divergentes, das sociedades francesa e inglesa.
Mas deixemos por momentos esta última consideração; a percepção dos contras­
tes, segundo o bom método comparativo, vem apenas em segundo lugar; por ago­
ra, andamos somente a descobrir. Ora, é notável que, até aqui, o desaparecimento
das servidões colectivas, em França, só tenha sido observado nas épocas e nos
lugares onde, como em Inglaterra, o fenômeno encontrou a sua expressão nos
textos oficiais e, por conseguinte, fáceis de conhecer: os «editos de delimitação»
do século XVIII e os inquéritos que os prepararam ou se lhes seguiram. A mesma
transformação, porém, teve lugar numa outra região francesa onde, que eu saiba,
nunca foi assinalada: a Provença — e isso numa época relativamente recuada:
os séculos XV, XVI e XVII. Aí foi. segundo todas as probabilidades, muito mais
profunda e muito mais eficaz do que na maior parte das zonas mais setentrionais
onde os mesmos factos foram várias vezes estudados; mas como teve a pouca
sorte de se desenrolar num tempo em que a vida econômica, sobretudo a vida
rural, não preocupava os cronistas nem os administradores e em que, ainda por
cima, não acarretou nenhuma modificação visível da paisagem (o desapareci­
mento das servidões colectivas nâo implicou a construção de cercas), escapou aos
olhares.
Terão sido as repercussões na Provença as mesmas de Inglaterra? Para já, ig­
noro-o. Por outro lado, estou muito longe de pensar que todas as características
do movimento inglês se vão encontrar nos litorais mediterrânicos; pelo contrário,
estou impressionado com o aspecto muito particular conferido aos factos meri­
dionais por uma constituição dos territórios agrícolas muito diferente da do Norte
(por conseguinte, não houve, como em Inglaterra, redistribuição das parcelas,
«reconstituição»), práticas econômicas especiais (nomeadamente, a «transumân-

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M ARC BLOCH

cia») e, como consequência destas práticas, condições sociais sem par nos cam­
pos ingleses (penso sobretudo no antagonismo entre os grandes criadores de
gado, os «nourriguiers», e as outras classes da população). Nem por isso deixa
de ser interessante verificar a presença, com características próprias, numa zona
mediterrânica, de um fenômeno que, até então, parecia ter podido difundir-se so­
bretudo em latitudes mais elevadas. Além disso, não é difícil de observar na Pro-
vença pois, olhando com atenção, textos assaz numerosos permitem seguir-lhe
o rasto: estatuto condal, deliberações das comunidades, processos cuja duração
e peripécias dizem eloquentemente da gravidade dos interesses em jogo. Mas es­
tes textos, há que pensar em procurá-los e em compará-los uns com os outros.
Se eu pude fazê-lo, por certo não foi por me serem familiares os documentos lo­
cais; longe disso, conheço-os e hei-de sempre conhecê-los menos bem do que os
eruditos que fizeram da história provençal o campo preferido dos seus estudos.
Só esses investigadores poderão verdadeiramente explorar a veia que eu deveria
limitar-mê‘á indicar. A única vantagem que tenho sobre eles é muito modesta e
totalmente impessoal. Li-obras relativas às enclosures inglesas ou às revoluções
rurais análogas que se deram noutros países europeus e tentei inspirar-me nelas.
Numa palavra, usei uma varinha mágica, de todas a mais eficaz: o método com­
parativo. *' * fe i. i. .
>-1 í ü i, '■‘■A- '■ ' ?■! •
;. * t - , -V.d" . IV V : * ■•
. ' j ..:»V 4i._*/,?■---r.'. •' •• J
: - Passemos à interpretação. - • ’ . .. / -v.
f O mais evidente de todos os serviços a esperar de uma comparação atenta
instituída entre factos tirados de sociedades diferentes e vizinhas é permitir-nos
discernir as influências exercidas por estes grupos uns sobre os outros. Indaga­
ções prudentemente realizadas revelariam talvez correntes de transição de ele­
mentos entre as sociedades medievais até agora imperfeitamente reveladas. Eis
um exemplo, proposto apenas a título de hipótese de trabalho.
A monarquia carolíngia apresenta-se, relativamente à dos Merovíngios que
a precedeu imediatamente no tempo, com características absolutamente origi­
nais. Os Merovíngios nunca tinham passado, aos olhos da Igreja, de simples lai­
cos. Pepino e os seus descendentes, pelo contrário, recebem desde a chegada ao
trono, por unção com óleos bentos, a marca sagrada. Crentes como todos os ho­

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HISTÓRIA E HISTORIADORES

mens do seu tempo, os Merovíngios foram, a pouco e pouco, dominando, enri­


quecendo e explorando a Igreja; nunca se tinham preocupado muito em pôr ao
serviço dos seus preceitos a força pública. Com os Carolíngios, as coisas são mui­
to diferentes. Sem se privarem, no tempo'do seu poder, de reger o clero e de em­
pregar os seus bens em benefício da sua política, considerarn-se visivelmente en­
carregados de fazer reinar na terra a lei de Deus. A sua legislação é essen­
cialmente religiosa e moralizadora; ao ler, há algum tempo, num jornal, um de­
creto emitido pelo emir uabita de Nedjed, senti-me impressionado pelas seme­
lhanças com a literatura pietista dos capitulares. As grandes cortes convocadas
em tomo do rei ou do imperador mal se distinguem de concílios. Enfim, com os
Merovíngios, as relações de protecção, que ocupavam já tão grande lugar na so­
ciedade, permaneciam à margem das leis que, tradicionalmente, os ignoravam.
Os Carolíngios, pelo contrário, reconhecem estes vínculos, sancionam-nos, fi­
xam e limitam os casos em que o recomendado pode abandonar o seu senhor;
procuram empregar estas relações pessoais na consolidação da paz pública, ob-
jecto, entre todos caro e entre todos fugitivo, da sua tenaz ambição: «Que cada
chefe exerça uma acção coerciva sobre os seus inferiores a fím de que estes, cada
vez melhor, obedeçam e consintam nos mandamentos e preceitos imperiais»10,
esta frase de um capitular de 810 resume, numa súmula expressiva, a política so­
cial do Império. Talvez que, procurando bem, possamos encontrar, na Gália me-
rovíngia, os germes de uma ou outra destas características. Contudo, não é menos
verdade que, olhando só para a Gália, o Estado carolíngio nos parece quase uma
criação ex nihilo. Mas vamos para além dos Pirinéus. Vemos na Europa bárbara,
a partir do século VII, reis que recebem, como diz um deles, Erviges, a «sacros­
santa unção» 11: eram os reis visigodos — uma monarquia toda religiosa, preo­
cupada em fazer triunfar, pela acção do Estado, as ordens da Igreja: a monarquia
visigótica; concílios que se confundiam com as assembléias políticas: os de Es­
panha; leis que já desde há muito tempo tinham dado lugar, para as regulamentar,
às relações do senhor e do recomendado " e tendiam a basear nestes vínculos de
homem para homem a organização militar : as leis dos soberanos visigodos. Na­
turalmente, a par destas analogias não é difícil descobrir as diferenças. A prin­
cipal é que os primeiros Carolíngios governavam a Igreja, em vez de serem,
como os príncipes godos do século VII, governados por ela. As semelhanças con­
tinuam a ser extremamente flagrantes. Deveremos ver nelas apenas o produto de

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MARC BLOCH

causas idênticas que actuam dos dois lados no mesmo sentido e cuja natureza,
nesse caso, está por definir? Ou será que — sendo os factos visigodos, entenda-
-se, nitidamente anteriores aos factos francos — devemos pensar que uma certa
concepção da monarquia e do seu papel, certas idéias concernentes à constituição
da sociedade vassálica e à sua utilização pelo Estado, surgidas primeiramente em,
Espanha, e que aí tiveram tradução em textos legislativos, foram retomadas cons­
cientemente pelos conselheiros dos reis francos e pelos próprios monarcas? Para
termos o direito de responder a esta pergunta convém, evidentemente, proceder
a uma investigação pormenorizada, que não posso abordar aqui. O seu principal
objectivo deverá ser procurar por que canais a influência visigótica penetrou na
Gália. Certos factos, universalmente conhecidos, parecem de natureza a tomar
assaz provável a hipótese de uma influência. Houve incontestavelmente, no reino
franco, durante o século que se seguiu à conquista árabe, uma diáspora espanhola.
Os fugitivos de partibus Hispanice, estabelecidos para Carlos Magno e Luís, o
Piedoso, na Septimânia. eram, em grande parte, gente humilde; mas contavam-se
também nas suas fileiras pessoas pertencentes às classes altas {majores etpoten-
tiores) e padres, isto é, pessoas ao corrente dos hábitos políticos e religiosos do
país que acabavam de abandonar14 Alguns espanhóis refugiados na Gália fize­
ram carreiras brilhantes na Igreja: Cláudio de Turim, Agobardo de Lyon, após­
tolo, para a terra franca, da unidade de legislação que tinha podido realizar na
sua pátria de origem, sobretudo Teodulfo de Orleães, o primeiro a chegar e talvez
o mais influente de todos.. Enfim, colecções conciliares espanholas exerceram so­
bre o direito canônico da época carolíngia uma acção cuja amplitude está ainda
por definir, mas que é inegável. Mais uma vez, não pretendo decidir nada. Re­
conhecerão, espero, que o problema merece ser colocado. E de modo algum é o
umco da sua especie .

«As semelhanças em história», disse Renan a propósito de Jesus e dos Essé-


nios, «não implicam sempre aproximações». Certo. Muitas semelhanças, ao exa­
miná-las de perto, parecer-nos-âo irredutíveis à imitação. Apraz-me afirmar que
essas são mais interessantes de observar, pois permitem-nos dar um passo em
frente na busca apaixonante das causas. E aqui que o método comparativo parece

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HISTÓRIA li HISTORIADORES

capaz de prestar aos historiadores os mais assinaláveis serviços, apontando-lhes


o caminho que pode conduzir às causas verdadeiras e também, talvez sobretudo,
para começar por um benefício mais modesto, mas necessário, desviando-os de
cenas pistas que não passam de becos sem saída.
Todos sabem o que são, na França do século XIV e do século XV, os cha­
mados Estados gerais ou provinciais (emprego estes epítetos no seu sentido ha­
bitual aproximado, que é cômodo, sem ignorar, entenda-se, que a Estados gerais
e Estados provinciais se associava toda uma série de gradações, que Estados ver­
dadeiramente «gerais» quase nunca reuniram, enfim, que o cenário provincial,
durante muito tempo, nada teve de fixo.) Sobre os Estados provinciais, particu­
larmente os dos grandes principados feudais, foram escritas, ao longo dos últimos
anos, monografias assaz numerosas . Testemunham um esforço de erudição tan­
to mais meritório quanto a documentação, pelo menos para os primeiros tempos,
é, quase em toda a parte, terrivelmente pobre e ingrata; trouxeram, para muitos
pontos importantes, precisões de grande interesse. Mas quase todos os autores
depararam, logo à partida, com uma dificuldade que não tinham meios de resol­
ver e cuja natureza, sequer, conseguiram sempre apreender bem: o problema das
«origens». Emprego de propósito esta expressão de que se servem, habitualmen­
te, os historiadores; é corrente, mas é ambígua. Tende a confundir duas operações
intelectuais de essências diferentes e âmbito desigual; por um lado, procuram-se
as instituições mais antigas (cortes ducais ou condais, por exemplo) cujos Esta­
dos muitas vezes surgem apenas como o desenvolvimento — e esta pesquisa é
perfeitamente legítima e necessária; mas resta depois — é a segunda tarefa —
discernir as razoes capazes de explicar a extensão e o significado novos assumi­
dos, a dado momento, por estes organismos tradicionais, a sua transformação em
Estados, isto é, em assembléias dotadas de um papel político e sobretudo finan­
ceiro, conscientes de, face ao soberano e ao seu conselho, deterem um poder, su­
bordinado, talvez, mas nitidamente distinto, enfim, representativo, conforme mo­
dalidades infmitamente variáveis, das diversas forças sociais do país. Mostrar o
germe não é discernir as causas da germinação. Ora podemos nós ter a esperança
de descobrir estas causas se, por exemplo, morarmos no Artois (no caso dos Es­
tados artesianos), na Bretanha (se se traiar de Estados bretões) ou mesmo se nos
contentarmos em passar os olhos pelo reino de França? Por certo que não. Se as­
sim procedermos, só conseguiremos perder-nos no dédalo de uma multidão de

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pequenos factos locais, a que seremos levados a atribuir um valor que sem dúvida
nunca tiveram; e o essencial, inevitavelmente, passar-nos-á ao lado. Com efeito,
um fenômeno geral só pode ter causas gerais; e se há fenômeno de amplitude
europeia é bem aquele a que, conservando o nome francês, chamei formação dos
Estados. Em vários momentos, mas afinal muito pouco afastados no tempo,(ve­
mos por toda a parte surgir em França os Etats. mas na Alemanha também, nos
«territórios», os Stànde (as duas palavras têm sentidos curiosamente vizinhos),
em Espanha as Cortes, em Itália os Parliamenti. Não o Parlamento inglês, nas­
cido num meio político infinitamente diferente, cujo desenvolvimento não obe­
deceu a movimentos de idéias e a necessidades muitas vezes análogos aos que
presidiram à formação do que os alemães chamaram o Stândestaat. Mas, por fa­
vor, não me entendam mal. Reconheço plenamente a imensa utilidade das mo­
nografias locais e não vou pedir aos seus autores que ultrapassem o quadro pró­
prio dos seus estudos para se porem à procura, de vez em quando, da solução
para o grande problema europeu que acabo de enunciar. Bem pelo contrário, su­
plicamos-lhes que tomem consciência de que não podem, sozinhos, cada qual de
seu lado, resolvê-lo. O principal serviço que podem prestar-nos é separar os di­
ferentes fenômenos políticos e sociais que precederam ou acompanharam, na sua
província, o aparecimento dos Estados ou dos Stànde e parecem por isso ser de
natureza a classificar-se provisoriamente entre as causas possíveis dessa emer­
gência. Nesta pesquisa, o exame dos resultados obtidos já noutras regiões, um
pouco de história comparada, numa palavra, será com utilidade um guia da nossa
atenção. A comparação de conjunto não poderá deixar de vir a seguir; sem as
investigações locais preliminares, seria vã; mas só ela poderá, no seio das causas
imagináveis, reter as que tiveram uma acção geral, as únicas reais.
Não seria muito difícil, bem se vê, dar outros exemplos. Parece-me evidente,
entre outras coisas, que os historiadores alemães, quando estudam a formação
dos «territórios» (os pequenos Estados que se constituíram nos séculos XII e XIII
no interior do Império e foram pouco a pouco apoiando, em proveito próprio, a
maior parte do poder público), permitem-se com demasiada frequência conside­
rar este fenômeno especificamente germânico; mas como separá-lo da consoli­
dação, em França, dos principados feudais? Outra ilustração ainda da prudência
que o método comparado deve inspirar aos historiadores demasiado propensos a
procurar nas transformações sociais causas exclusivamente locais: a evolução do

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HISTÓRIA E HISTORIADORES

senhorio nos últimos séculos da Idade Média e início dos tempos modernos. Os
senhores, com os seus rendimentos ameaçados pela diminuição, em valor real,
das rendas monetárias, tomaram então e pela primeira vez uma consciência per-
feitamenie clara do empobrecimento que. gota a gota, há muito vinha pondo em
risco a sua fortuna ; preocuparam-se, em todos os países, em obviar a este pe­
rigo. Para faí deitaram mão, conforme os lugares, de meios muito diversos e mais
ou menos eficazes: aumento de certos produtos casuais, cujo montante o costume
não tinha fixado com rigor (as fines inglesas ): substituição, sempre que juridica­
mente possível, da renda em dinheiro pelo aluguer em espécie, proporcional à
colheita (donde, em França, a grande extensão das meações); despojamento bru­
tal dos rendeiros, obtido, aliás, aqui e além. por processos de natureza muito di­
ferente (Inglaterra, Alemanha de Leste). O esforço, no seu princípio, foi geral; o
seu ponto de aplicação e mais ainda o seu sucesso variaram em extremo. Aqui,
portanto, a comparação convida-nos a verificar, de um meio nacional para outro,
divergências fortemente marcadas — veremos em breve que é um dos seus prin­
cipais interesses: mas obriga-nos, ao mesmo tempo, a ver no impulso primeiro
que deu origem a uma tal variedade de resultados um fenômeno europeu, a julgar
apenas por causas europeias. Esforçarmo-nos por explicar a formação da Gut-
herrschaft mecklemburguesa ou pomerana, o açambarcamento das terras pelo
squire inglês unicamente com a ajuda de factos constatados em Mecklemburgo,
na Pomerânia, em Inglaterra e que não encontramos noutros sítios seria perder
tempo num jogo intelectual assaz vazio .

VI

Mas cuidemos de não alimentar um mal-entendido de que o método compa­


rado não sofre. Muitas vezes pensa-se, ou afecta-se pensar que o método não tem
outro objectivo que a caça às semelhanças; gosta-se de o acusar de se contentar
com analogias forçadas, até mesmo, por vezes, de as inventar postulando arbi­
trariamente não sei que paralelismo necessário entre as diversas evoluções. Inútil
ir ver se estes reparos terão parecido por vezes justificados; é bem certo que o
método, assim praticado, não passaria de uma maldosa caricatura. Pelo contrário,
concebido com correcção traz um interesse especialmente marcado à percepção
das diferenças, sejam elas originais ou resultem de caminhos divergentes, toma­

131
MARC BLOCH

dos de um mesmo ponto de partida. À cabeça de uma obra destinada a «marcar


o que o desenvolvimento das línguas germânicas tem de particular entre todas
as línguas indo-europeias», M. Meillet propôs um dia à linguística comparada,
como uma das suas tarefas essenciais, um esforço permanente para «pôr em evi­
dência a originalidade das diferentes línguas»19. Também a história compaçada
tem o dever de distinguir a «originalidade» das diferentes sociedades. Será su­
pérfluo observar que não há trabalho mais delicado do que esse, nem que neces­
site mais imperiosamente de uma comparação metódica? Determinar, não apenas
por alto, que dois objectos não são semelhantes, e, além disso — labor infinita­
mente mais difícil, mas também muito mais interessante — quais as caracterís­
ticas exactas que os distinguem pressupõe, evidentemente, como primeiro gesto,
contemplá-los altemadamente.
Antes do mais, há que desembaraçar o terreno das falsas semelhanças, que
muitas vezes mais não são que homonimias. E há-as insidiosas.
.-Quantas vezes não foram tratados como equivalentes o villainage inglês dos
séculos XIII, XIV e XV e a servidão francesa! É certo que um olhar um pouco
apressado de uma para a outra instituição facilmente crê encontrar pontos de se­
melhança. Servo e vilão, ambos são considerados, tanto pelos juristas como pela
opinião comum, privados de «liberdade», qualificados, por isso, em certos textos
latinos, como servi (os autores ingleses, quando se exprimem em Francês, não
hesitam empregar se rf como sinônimo de villain), enfim, precisamente em vir­
tude desta ausência de «liberdade» e deste nome servil, as pessoas cultas gostam
de os assimilar aos escravos romanos. Analogia superficial: o conceito de não-
-liberdade tem variado muito no seu conteúdo, conforme os meios e os tempos.
De facto, a instituição do villainage é especificamente inglesa. Como Vinogra-
doff demonstrou, numa obra hoje clássica" , vai buscar as suas características
originais ao desenvolvimento, muito especial, do meio político onde nasceu.
Na segunda metade do século XII, por conseguinte muito mais cedo do que
os seus vizinhos de França, os reis ingleses fizeram reconhecer em todo o país
a autoridade dos seus tribunais. Mas esta precocidade teve o seu preço. O estado
da sociedade tal como ela era então constituída impôs aos juizes reais o respeito
por uma fronteira que não iriam transpor antes do extremo fím da Idade Média:
tiveram como regra nunca intervir entre os senhores e os homens que deles ti­
nham terras em villainage, isto é, oneradas por contribuições e sobretuto por cor-

132
HISTORIA E HISTORIADORES

veias, « E im e outras fixadas pelo costume do manoir (assim se chamava em In­


glaterra senhorio). Os rendeiros eram de origem, de condições muito diferentes:
uns — : propriamente ditos — passavam por livres pois só dependiam do
senboff por causa da sua terra, de pertencerem à villcr, os outros — servi, nativi
esta. jm ligados ao senhor por um vínculo pessoal e hereditário em que nesse
tempo >e via uma marca de servidão. Mas todos, fosse qual fosse o seu estatuto
tradicional, foram mantidos à parte pelas jurisdições reais; nas suas relações com
os senhores i aliás, apenas nestas relações), escaparam por completo à acção dos
tribunais do Estado, a Common Law do reino. O resultado foi que, ao longo do
século XIII, por causa desta incapacidade comum, a mais aparente e mais pre­
judicial que se possa imaginar, amalgamaram-se, a despeito das diferenças an­
teriores. numa classe única. Não foi sem dificuldade que os juristas conseguiram
definir este grupo novo, constituído por elementos tão diversos. Mas depressa se
puseram de acordo e com eles a linguagem corrente, quanto a reservar o nome
de livres apenas para aqueles súbditos do rei que os seus tribunais protegiam con-
tra tudo e contra todos. Foi uma nova noção de liberdade . O villain de outrora,
isto é. o rendeiro puro. se assim posso dizer, deixou de estar alinhado entre os
liberi homines e foi confundido com o sen-as hereditário, o nativas, porque es­
tava. como eíe. privado de recursos perante a justiça real. As duas palavras, ser-
vus e villain, foram tratadas como sinônimos. É coisa praticamente consumada
no ano 1300. Do mesmo passo, certos encargos de carácter essencialmente servil
— nomeadamente, direitos sobre o casamento — que, em princípio, deveríam
pesar apenas sobre a posteridade dos antigos senn, foram-se estendendo pouco
a pouco, pelo menos em muitos manoirs, a todos os villain, no sentido novo da
palavra. Esta espécie de contágio, tão frequente nas sociedades medievais, ope­
rou-se aqui com particular facilidade: a assimilação foi talvez abusiva; mas como
poderíam as suas vítimas protestar eficazmente uma vez que, por definição, só
se podia apresentar queixa perante a justiça senhorial. isto é, perante o próprio
beneficiário do abuso? E bem depressa se admitiu que o villain age, tal como a
antiga servidão, se transmitia pelo sangue. Este movimento no sentido da here­
ditariedade era conforme às tendências gerais da época. Aqui foi ainda precipi­
tado por uma circunstância especial. De tempos a tempos, acontecia uma pessoa
de situação elevada adquirir uma terra em villainage. Claro que a terra, nestas
novas mãos, ficava submetida a todos os encargos e todas as incapacidades que

133
MARC BLOCH

anteriormente a oneravam e que o aquisitor não pudera ignorar, nomeadamente,


privada de qualquer protecção possessória relativamente aos senhores, pelos tri­
bunais régios. Mas o detentor — talvez um dos grandes deste mundo — esse,
ninguém ia pensar em o remeter bruscamente para a companhia dos nâo-livres!
Foi necessário reintroduzir uma distinção entre a condição da terra e a do homem
e convencionar que apenas os descendentes —- mas todos os descendentes — dos
terratenentes primitivos seriam villains. Estava criada uma casta nova, uma casta
humilde. Definia-se essencialmente por uma característica de direito público a
que os teóricos gostavam de se referir como: vilão, servo ou escravo (.servus) re-
lativamente ao senhor; entenda-se: entre o senhor e ele, ninguém se interpõe, nem
mesmo o rei.
Em França, nada de semelhante. Os progressos da justiça real foram aí muito
mais tardios e operaram-se de maneira muito diferente. Não houve grandes or­
denações legislativas, como as de Henrique II de Inglaterra. Nao houve classifi­
cação rigorosa dos meios oferecidos aos litigantes pelos tribunais régios (os writs
ingleses). Foi por uma série de intrusões, muitas vezes mal premeditadas, que as
gentes do rei, aqui mais cedo, além muitos anos mais tarde, chamando a si ora
um caso, ora outro, foram assegurando passo a passo o seu domínio no país. Mas
as suas conquistas, por causa da própria lentidão e porque, pelo menos a princí­
pio, nenhum plano teórico as guiava, penetraram mais fundo. A jurisdição senho-
rial, amálgama de poderes de origens muito diversas, estendia-se, em França
como em Inglaterra, por grupos de dependentes muitíssimo diferentes: vassalos
militares, burgueses, rendeiros livres, servos. Mas a monarquia francesa tratou-a
como um todo. Os tribunais régios deixavam ou retiravam a este ou àquele senhor
o julgamento deste ou daquele tipo de processos; insistiam ou não no reconhe­
cimento do direito de apelação; mas isso sem fazer qualquer distinção de prin­
cípio entre os súbditos do senhorio. De modo que o juiz do rei foi a pouco e pouco
tomando assento entre o senhor e o seu rendeiro. Por conseguinte, não se apre­
sentou qualquer razão para assimilar o servo ao rendeiro que também em França
se chamava vilain. Estas duas categorias de homens subsistirão até ao fim, lado
a lado. O servo francês do início do século XII, o servus, ncitivus ou theow inglês
da mesma época, tinham pertencido a condições jurídicas muito vizinhas que é
inteiramente legítimo tratar como dois aspectos de uma mesma instituição. A In­
glaterra chega então à formação do villainage. Cessam todos os paralelismos. O

134
HISTÓRIA E HISTORIADORES

servo francês do século XIV, o villain ou servo inglês da mesma época? São duas
classes nitidamente dissemelhantes. Valerá a pena compará-las? Certamente,
mas. desta vez, marcar os seus contrastes, através dos quais se exprime uma opo-
sição impressionante entre o desenvolvimento das duas nações .
Levemos mais longe ainda os pormenores da comparação. Nem sempre foi
fácil, nos manoirs ingleses dos séculos XIII e XIV, diagnosticar com segurança,
entre os direitos reais, cujas modalidades não tinham fim, os que se deviam agru­
par sob a designação de tenure em villainage e assim separar cuidadosamente
da massa, igualmente variegada, aqueles a que cabia o epíteto livre. Contudo,
houve que assentar em alguns critérios mais ou menos fixos, pois foi necessário
poder determinar quais eram as terras e, por conseguinte, pelo menos à origem,
os rendeiros que a justiça do rei, apagando-se perante a justiça senhorial, renun­
ciava a proteger. Preocupados em distinguir as características, os juristas julga­
ram por vezes encontrá-las na natureza dos serviços que oneravam a terra. Cons-
truíram uma noção de «serviços vilãos» . Unanimemente considerou-se
sintomática a corveia agrícola quando comportava a prestação de um grande nú­
mero de dias de trabalho e. sobretudo, uma certa indeterminação, quer no próprio
número de dias fornecidos, quer. pelo menos, no seu emprego, ambas as coisas
entregues ao critério arbitrário do senhor: e foi admitido na generalidade que a
obrigação de desempenhar as funções de chefe da aldeia (o reeve, bastante se­
melhante ao staroste com que nos familiarizaram os romances russos) devia
igualmente ser considerado uma limitação à liberdade daqueles que, em função
da sua terra, eram forçados a aceitar, quisessem ou não, este pesado encargo. Ao
estabelecer estas normas, teóricos e juizes ingleses não estavam a inventar nada.
Limitaram-se a ir beber a uma nascente de representações colectivas, mais ou
menos confusamente elaboradas desde há muito tempo pelas sociedades medie­
vais, as do continente mas também a da ilha. A ideia de que o trabalho agrícola
tem em si algo de incompatível com a liberdade corresponde a velhos pendores
da alma humana; exprimiam-se, na época bárbara, pelas palavras opera ser\nlia,
frequentemente usadas para designar este tipo de trabalhos. A ideia de que o ser-
vus difere do rendeiro livre pelo carácter indeterminado das corveias a que está
submetido, nascida do contraste original entre a escravatura e o colonato, tinha
muita força na Gália e na Itália carolíngias. Nunca desapareceu por completo.
Veja-se que, na França capetíngia, é frequente chamar-se «franchises» aos pri­

135
MARC BLOCH

vilégios que, sem suprimirem os encargos dos camponeses, os limitam e sobre­


tudo os fixam. Quanto à obrigação de aceitar do senhor, independentemente do
fardo geral das corveias, este ou aquele serviço especializado que lhe apraza de­
signar (obrigação restringida, em Inglaterra, à função de reeve), passava na Ale­
manha, em muitos lugares, por imposta às pessoas de condição não livre; em
França, esta noção, menos generalizada, deixou apesar disso, nomeadamente no
século XII, alguns vestígios nos textos" Mas em França (para me limitar a este
país) estas idéias, no seu conjunto, nunca forneceram os elementos para uma
construção jurídica rigorosa. Uma delas, isolada —- a que acentuava o caracter
degradante ligado às ocupações agrícolas — foi. é certo, empregada a partir do
século XIII para marcar, com uma linha mais definida do que no passado, uma
separação das classes. Mas não foi, como em Inglaterra, a fronteira entre os livres
e os não livres que ela serviu para fixar; utilizaram-na como uma das caracterís­
ticas que permitiam distinguir do nobre (que está proibido de «derrogar», sendo
-©•trabalho manual considerado uma forma de derrogação) a multidão dos não no­
bres que compreende sempre, e em número cada vez maior, pessoas a quem nin­
guém pensaria recusar a «liberdade». Então em França não houve também a ten­
tação de caracterizar o não livre pelas particularidades dos serviços a que estava
adstrito? E de crer que o sentimento popular não tenha sido completamente alheio
a representações deste tipo. Em Gonesse, perto de Paris, pelo início do século
XIII, vemos certos rendeiros tratados como servos pelos seus vizinhos por causa
de corveias especiais a que estavam submetidos, nomeadamente a obrigação de
escoltar os presos, que era tida por desonrosa. Mas facilmente fizeram reconhecer
pelo rei que, juridicamente falando, a sua liberdade não era contestável2:\ Nunca
um homem da lei, nunca um tribunal francês recorreram, para definir um servo,
a um critério tirado dos serviços. Eis-nos pois face a um dos aspectos mais su­
gestivos que as divergências verificadas entre duas sociedades aparentadas po­
dem apresentar: dos dois lados, tendências análogas; mas de um, permanecem
indistintas, amorfas e desprovidas de sanções oficiais, perdem-se nesta massa
confusa de idéias e de sentimentos que se chama opinião pública; do outro, ex­
pandem-se largamente e tomam fomia em instituições jurídicas de contornos ri­
gorosamente definidos.
Convém que nos detenhamos ainda um instante na história das classes nas
sociedades medievais. Não há estudo mais apropriado para distinguir, entre estas

136
HISTÓRIA E HISTORIADORES

sociedades, discordâncias profundas, tão profundas, a bem dizer, que são para
n6s quase inexplicáveis e que temos que nos limitar a indicar, pelo menos por
agora.
Siiuemo-nos, para começar, na Europa ocidental e central por altura dos sé­
culos X e XI. A ideia de que o nascimento traz incalculáveis diferenças entre os
homens, comum a quase todas as épocas, não estava então ausente das consciên­
cias. Em 987, para justificar a exclusão pronunciada contra Carlos da Lorena,
candidato ao trono de França e legítimo herdeiro dos Carolíngios, o arcebispo
Auberon — ou. se preferirmos, o historiador Richer, colocando o nome do pre­
lado a subscrever um discurso talvez completamente inventado, mas por certo
conforme às idéias da época — invocou o casamento que o pretendente contraíra
abaixo da sua qualidade, na classe dos vassalos . Qual o filho de cavaleiro que
aceitaria ter por igual o filho de um servo ou mesmo de um vilão? Não nos ilu­
damos: a hereditariedade, como criadora de direito, tinha neste tempo muito pou­
ca força. A sociedade não era constituída por um escalonamento de castas, com
distinção de sangue, mas por um feixe, assaz entretecido, de grupos com base
nas relações de dependência; estas relações de protecção e de obediência eram
concebidas como as mais fones que se podia imaginar. Neste mesmo caso de
Carlos da Lorena, atentemos bem no pendor que o argumento de Auberon assu­
me como que espontaneamente. Talvez o bispo comece por reprovar ao príncipe
carolíngio uma má aliança propriamente dita: «desposou na ordem dos vassalos
uma mulher que não era sua igual». Mas imediatamente, lembrando-se de que o
pai desta pessoa tinha servido os duques de França, acrescenta: «Como poderia
esse grande duque [Hugo Capeto] tolerar ter por rainha uma mulher vinda dos
seus próprios vassalos?» Eis a questão imediatamente transposta para o plano
pessoal. Apenas a condição servil era tida por estritamente hereditária, mas não
era, na prática, de todo incompatível com a cavalaria. Quanto ao direito dos ho­
mens livres, sendo bem verdade que oferecia, na prática infinitos matizes, estes
relacionavam-se com as diferenças de lugar, com as variantes nas relações con­
tratuais, com o nível social do indivíduo enquanto tal, não com o nascimento.
Chegam os séculos XII e XIII. Surge então nas idéias e no direito uma surda,
mas decisiva modificação. Dilui-se a força dos vínculos pessoais; a homenagem
tende a transformar-se, ainda que muito lentamente, numa solenidade assaz va­
zia; o servo, o «homem de hoste» francês passou a ser concebido muito mais

137
MARC BLOCH

como o «homem» do seu senhor do que como membro de uma classe desprezada.
Por toda a parte formam-se classes com base na hereditariedade, cada qual com
as suas regras jurídicas próprias. Mas que grandes são as diferenças na riqueza
desta evolução" ! Em Inglaterra, o villainage constitui-se solidamente, mas é
quase a única classe verdadeira. Entre os homens livres, não há diferenças(jurí-’
dicas. Em França, na base da escada figura a servidão, cujos membros já não po­
dem aceder à cavalaria; no topo, a nobreza, que pouco a pouco se vai distinguindo
do resto da população por uma série de particularidades (que são por vezes sim­
ples sobrevivências de costumes antigos) relativas ao direito civil, direito crimi­
nal, direito fiscal. Na Alemanha, enfim, a partir do século XIII a ideia hierárquica
manifesta-se com incomparável fecundidade. Os servos cavaleiros, que a própria
consolidação do sentimento de classe tinha feito desaparecer em França, tomam-
-se aqui o próprio núcleo de uma ou mesmo, no Sul, de duas categorias sociais
bem definidas. De um lado, a nobreza, a massa servil do outro fraccionam-se
numa série de secções sobrepostas; nem todos os nobres são ebenbürtig entre si,
nem todos têm o connubium. E os juristas, inspirados pela prática, constroem,
para regulamentar a classificação das partes superiores da sociedade, a célebre
teoria do Heerschild: imaginam uma espécie de escada em que cada grupo tem
o seu lugar fixado num dos degraus; quem pertencer a um destes grupos não
pode, sem descer, aceitar um feudo de um homem colocado abaixo.
Sociedades limítrofes e contemporâneas: de ambos os lados, uma evolução
com o mesmo sentido que põe o acento na hierarquização e na hereditariedade;
mas no percurso e nos resultados desta evolução, diferenças de grau tais que equi­
valem quase a diferentes naturezas e revelam, aliás, nos meios em causa, antíte­
ses características: é o que acaba de demonstrar o exemplo que, muito brevemen­
te, indiquei. Outras oposições, mais simples de entender, quando não de explicar,
resultaram de uma outra forma de divergência: numa dada sociedade, a perma­
nência, numa sociedade vizinha, o apagamento de instituições que, originalmen­
te, tinham sido comuns às duas. Na época carolíngia, no futuro território da Fran­
ça, tal como no que viria a ser a Alemanha, em cada senhorio, a maior parte da
porção reservada aos rendeiros estava dividida em manses (assim se lhes chama­
va quase sempre na zona românica) ou Hufen (era este o termo germânico cor­
rentemente traduzido em Latim por mansus). Era muito frequente ver-se diversas
famílias de agricultores instaladas no mesmo manse. Este, aos olhos do senhor,

138
HISTÓRIA E HISTORIADORES

já não era uma unidade; sobre o manse, no seu todo. não por fracções, na orla
das tenras ou nas construções de que se compunha, pesavam contribuições e ser­
viços: em princípio, nunca estas pequenas células agrárias deviam ter-se frag­
mentado. Passemos à França das imediações de 1200. Já quase não se fala de
manse em sítio nenhum no sentido de unidade cadastral (onde a palavra subsiste,
sob as formas romances meix ou mas, é com o significado muito diferente de
casa. de centro da exploração rural) . Os redactores de documentos já não ava­
liam a vastidão dos senhorios contando o número de manses que contêm. Os cen­
sos. ou listas de contribuições recebidas pelo senhor, já não se contentam, como
outrora. em enumerar os manses; procedem, é certo, com grande pormenor, um
bocado de terra de cada vez ou pelo menos um indivíduo de cada vez. É que já
não há terras de conteúdo fixo. Campo, vinha, redil podem existir inde­
pendentemente uns dos outros, divididos por diferentes herdeiros e aquisitores.
Na Alemanha, pelo contrário, a Hufe, que é proibido fragmentar, continua a cons­
tituir. na maior parte dos senhorios, a base para a cobrança de rendas ou serviços.
É certo que também acabará por desaparecer, mas lentamente, e muitas vezes
mais de nome do que de facto pois no fim do regime senhorial os senhores ale­
mães procurarão manter, por diversos meios, o princípio da indivisibilidade das
terras; esforço, ao que parece, praticamente desconhecido dos seus confrades
franceses. O contraste parece na realidade extremamente antigo, uma vez que o
esboroamento do manse, na parte ocidental do antigo Império franco, está ates-
tado desde o reinado de Carlos, o Calvo . Nem sequer tentarei, aqui, perscru-
tar-lhe as razões mas é de admitir, penso eu, que toda a história rural francesa
ou alemã que passe ao largo da questão despreza um aspecto essencial da sua
missão. Olhando para um apenas dos dois países, a morte do manse aqui, além
a sobrevivência, corre-se o risco de o confundir com um desses fenômenos in­
teiramente naturais que nem precisam de explicação. Só a comparação mostra
que há problema. Excelente contributo! Pois nada há de mais perigoso, em cada
ordem de ciências, do que a tentação de achar tudo «natural».

VII

A linguística comparada bem pode hoje propor como uma das suas tarefas
essenciais a distinção dos caracteres originais das diferentes línguas. Nem por

139
MARC BLOCH

isso é menos verdade que o seu esforço primordial começou por se voltar para
um lado muito diferente: para a determinação dos parentescos e das filiações en­
tre as línguas, para a busca das línguas mães. A delimitação do grupo indo-eu-
ropeu original, a reconstituição, hipotética, sem dúvida, mas assente em conjec­
turas bem estabelecidas, do «indo-europeu» original, nos seus ,traçós
fundamentais, eis alguns dos mais gritantes triunfos de um método inteiramente
baseado na comparação. A história da organização social encontra-se, neste as­
pecto, numa situação infinitamente menos favorável. E que uma língua apresenta
uma armadura muito mais una e mais fácil de definir do que qualquer outro sis­
tema de instituições, donde a simplicidade do problema das filiações linguísticas.
«Não se encontrou até agora», escreve M. Meillet, «um caso em que tenhamos
sido levados a- pensar que o sistema morfológico de uma determinada língua re­
sulta de uma mistura de morfologias de duas línguas distintas. Em todos os casos
-até agora observados, há uma tradição contínua de uma língua», quer esta tradi-
jção seja do «tipo corrente: transmissão da língua dos anciãos para os jovens»,
quer resulte de «uma mudança de língua». Mas suponhamos que, em determina­
do momento, se descobrem exemplos deste fenômeno hoje desconhecido: «mis­
turas verdadeiras» entre línguas. Nesse dia — continuo a citar M. Meilllet — «a
linguística terá que elaborar métodos novos» . Ora esta temível hipótese da
«mistura» que, a vir a verificar-se em matéria de línguas, traria grande perturba­
ção à ciência humana mais justificadamente segura de si, a todo o momento a
história das sociedades a vê impor-se pelos factos. Pouco importa que o Francês
tenha sofrido muito profundamente a influência, no seu vocabulário e talvez tam­
bém na sua fonética, das línguas germânicas; nem por isso deixa de resultar da
transformação, involuntária e muitas vezes inconsciente, nos falantes, do Latim
da Gália romana; os descendentes dos Germanos que adoptaram os dialectos ro­
mances passaram verdadeiramente de uma língua para outra. Mas à sociedade
francesa da Idade Média, quem ousará considerá-la uma transformação pura e
simples da sociedade galo-romana? A história comparada é capaz de nos revelar
interacções anteriormente desconhecidas entre as sociedades humanas; quanto a
esperar dela que, posta em presença de sociedades até aqui consideradas despro­
vidas de laços de parentesco, nos leve a descobrir, nestes grupos, fracções que,
numa data recuada, se separaram de uma sociedade mãe, antes insuspeitada, seria
alimentar uma esperança destinada a sair quase sempre frustrada.

140
' HISTÓRIA E HISTORIADORES

Em certos casos excepcionais, porém, a comparação poderá discernir rela­


ções exmemamente antigas entre sociedades historicamente muito diferentes, de
onde não podemos evidentemente concluir, sem uma absurda temeridade, por
uma filiação comum, mas que levam pelo menos a admitir a existência, numa
época muito recuada, de uma certa comunidade civilizacional. A ideia de utilizar
o estudo dos costumes agrários para reconstituir o mapa étnico da Europa ante-
rionnente aos testemunhos escritos, ocorreu há muito tempo a diversos investi­
gadores. Ninguém ignora o grande esforço de Meitzen. Estamos hoje de acordo
em reconhecer que se enganou. Sem querer analisar em pormenor as causas desse
fracasso, será legítimo indicar com brevidade os erros de método essenciais que
devem ser tidos por responsáveis: 1) Meitzen confundiu o estudo de diversas or­
dens de factos que, para usar bem o método, devia ter começado por desligar:
habitat e forma dos campos; 2) postulou o carácter «primitivo» de muitos fenô­
menos, observados na época histórica, muitas vezes bem perto de nós, esquecen­
do que podiam muito bem resultar de transformações relativamente recentes; 3)
agarrou-se. com demasiada exclusividade, ao exame dos factos de ordem mate­
rial. a expensas dos costumes sociais de que os factos não são. de certo modo,
mais que tradução sensível: 41 reteve apenas, como elementos étnicos, os grupos
historicamente atestados — Celtas. Germanos, Eslavos, etc — , todos acabados
de chegar ao seu habitat, recusando assim, de propósito, a acção à massa anônima
das populações anteriormente instaladas no solo — o «substrato», para falar
como os linguistas — as quais nada indica, porém, que tenham sido destruídas
pelas invasões nem que tenham tidc que abandonar totalmente os seus antigos
costumes. Há uma grande lição a tirar destes erros; não é altura de abandonar a
investigação, é a de prosseguir com um método mais seguro e um espírito crítico
mais avisado. Doravante impõem-se algumas constatações de facto. O terreno ru­
ral de exploração fragmentar, campos estreitos e alongados, sem divisórias, co­
briu extensões imensas da Europa: Inglaterra, norte e centro da França, a Ale­
manha quase toda, bem como uma grande parte da Polônia e da Rússia. Opõe-se
a formas agrárias muito diferentes: os campos quase quadrados do sul de França,
os cercados, nas regiões ocidentais da França e da Inglaterra. Em suma, o mapa
agrário da Europa está em completa discordância com o seu mapa político e lin­
guístico. Talvez lhes seja anterior. Pelo menos, é uma das conjecturas que pode­
mos fazer. De momento, estamos a reunir os factos, não a explicá-los. Para nos

141
MARC BLOCH

atermos à extensão tão impressionante, através de sociedades que tudo parecia


separar,- do primeiro tipo de terreno assinalado atrás (parcelas compridas e aber­
tas com possessões fragmentadas), é por demais evidente, a priori, que hipóteses
explicativas muito diversas deverão ser ensaiadas cada qual por sua vez: não ape­
nas comunidade primordial de civilização mas também os contributos, a irradia­
ção em torno de um centro primitivo, de certos processos técnicos. Apenas uma
coisa é certa. Jamais explicaremos o open field inglês, o Gewandorf alemão, os
«campos abertos» franceses olhando só, de cada vez, para a Inglaterra, para a
Alemanha ou para a França.
Por isso o ensinamento talvez mais claro e o mais imperioso que nos dá a
história comparada é que já é tempo, na verdade, de pensarmos em partir os com­
partimentos topográficos obsoletos em que pretendemos encerrar as realidades
sociais: não estão à medida do conteúdo que nos esforçarmos por empurrar lá
para dentro. Um erudito estimável escreveu uma vez um livro inteiro sobre os
Templãrios no Eure-et-Loir . Sorrimos francamente a tanta ingenuidade. Mas
teremos a certeza, todos nós, historiadores que somos, de não estar constante­
mente a cair no mesmo desvio? E certo que não se costuma transpor os depar­
tamentos para a Idade Média. Mas as fronteiras dos Estados actuais, quantas ve­
zes já não pensámos encontrar nelas um quadro cômodo para este ou aquele
estudo das instituições jurídicas ou econômicas do passado? Duplo erro. Anacro­
nismo, primeiro, dos mais evidentes: que fé cega numa espécie de vaga predes­
tinação histórica pôde levar-nos a atribuir a estes vestígios um significado qual­
quer, uma existência pré-natal, se assim ouso dizer, anterior ao momento exacto
em que o jogo complexo das guerras e dos tratados as fixou? Erro de fundo tam­
bém, e que subsiste no mesmo momento em que, por um método aparentemente
mais rigoroso, escolhemos divisões políticas, administrativas ou nacionais con­
temporâneas dos factos que constituem o objecto de pesquisa: onde é que já se
viu os fenômenos sociais, seja qual for a época, deterem unanimemente o seu de­
senvolvimento nos mesmos limites que seriam precisamente os das dominações
políticas ou das nacionalidades? Toda a gente sabe que a demarcação ou, se se
quiser, a zona marginal entre os falares da língua de oil e os da língua de oc, não
mais que a demarcação, para o lado germânico, da própria língua de oil, não cor­
respondem a qualquer fronteira de um Estado ou grande senhorio. O mesmo se
passa com muitos outros factos da civilização. Estudar as cidades francesas da

142
HISTORIA E HISTORIADORES

Idade Média, por altura do renascimento urbano, é confundir numa mesma visào
dois objectos heterogêneos em quase tudo, salvo o nome: as velhas cidades me-
diterrânicas, centros tradicionais da vida das planícies, oppida habitados perma­
nentemente pelos poderosos senhores e «cavaleiros»; as cidades do resto da Fran­
ça. povoadas sobretudo por mercadores e recriadas por eles. Em compensação,
este último tipo urbano, com que golpe de tesoura, em tudo arbitrário, poderemos
separá-lo dos tipos análogos da Alemanha renana? O senhorio na França medie­
val: o historiador que começou a estudar o norte do Loire, quando folheia textos
do Languedoc, não se sente muitas vezes muito mais perdido do que quando os
seus olhos se voltam para documentos do Hainaut ou mesmo do Mosela?
Em cada aspecto da vida social europeia, nos seus diferentes momentos, te­
mos que. se quisermos finalmente sair do artificial, encontrar o quadro geográfico
próprio, determinado, não de fora, mas de dentro. Busca incômoda que exigirá
muita prudência e infinitos tacteios. Recusar ver isso seria confessar a nossa pre-
guiça.

VIII

Na prática, como trabalhar?


É evidente que a comparação só terá valor se se apoiar em estudos de facto,
pormenorizados, críticos e solidamente documentados. Não é menos evidente
que a pouca firmeza das forças humanas impede pensar, para as investigações
em primeira mão, em quadros geográficos ou cronológicos demasiado vastos. Fa­
talmente, o trabalho comparativo propriamente dito estará sempre reservado a
uma pequena parte dos historiadores. Talvez já seja tempo, porém, de pensar em
organizar e, nomeadamente, dar-lhe um lugar no ensmo universitário . Mas não
vamos por isso dissimulá-lo: como os estudos particulares estão ainda, em muitos
domínios, muito pouco avançados, ele próprio irá progredir apenas muito lenta-
mente. E sempre a velha questão: anos de análise para um dia de síntese . Mas
cita-se esta máxima demasiadas vezes sem lhe acrescentar o necessário correc-
tivo: a «análise» só será utilizável para a «síntese» se desde o princípio a tiver
em mira e se preocupar em a servir.
Aos autores de monografias há que repetir que têm o dever de ler o que se
publicou antes deles sobre assuntos semelhantes aos seus, não apenas, como to­

143
MARC BLOCH

dos fazem, a propósito da sua própria região, não apenas, ainda como quase todos
fazem, a propósito das regiões imediatamente vizinhas, mas também, o que mui­
tas vezes é esquecido, no caso de sociedades mais distantes, separadas daquelas
que estudam pelas condições políticas ou pela nacionalidade. Ousarei acrescen­
tar: não apenas manuais generalistas mas também, se possível, monografias por­
menorizadas, de natureza semelhante às que pretendem elaborar: por via de re­
gra, são singularmente mais vivas e mais ricas do que os grandes manuais. Nestas
leituras encontrarão eles os elementos do seu questionário e talvez hipóteses
orientadoras, próprias para conduzir a pesquisa até ao momento em que os pro­
gressos do trabalho aconselharem, pelo caminho fora, a rectificaçâo ou o aban­
dono. Aprenderão a não ligar uma importância excessiva às pseudo-causas lo­
cais; ao mesmo tempo, adquirem uma sensibilidade às diferenças específicas.
Aliás, convidar os eruditos para esta pesquisa preliminar através dos livros
não é propor-lhes um caminho unitário. Não quero ocupar-me em pormenor dos
incômodos materiais. No entanto, não deixemos de recordar que são de monta.
As informações bibliográficas são difíceis de reunir; as próprias obras, de acesso
ainda mais penoso. Uma boa organização do fornecimento internacional pelas bi­
bliotecas que fosse mais rápida e extensiva a certos grandes países que até agora
têm guardado ciosamente as suas riquezas faria mais pelo futuro da história com­
parada do que muitos conselhos sábios. Mas o principal obstáculo é de ordem
intelectual: vem dos hábitos de trabalho, que sem dúvida não é impossível refor­
mar.
O linguista que, entregue especialmente ao estudo de uma língua, sente a ne­
cessidade de recolher algumas informações sobre as características gerais de ou­
tra língua não encontra, em geral, grandes dificuldades. A gramática que consul­
tar apresenta-lhe os factos agrupados segundo uma classificação que não anda
longe da que ele próprio emprega e expõe-nos com a ajuda de fórmulas quase
iguais àquelas de que tem a chave. Mas o historiador tem muito menos sorte!
Bem familiarizado, por exemplo, com a sociedade francesa e desejoso de con­
frontar este ou aquele aspecto com o que uma sociedade vizinha, digamos, a so­
ciedade alemã, pode oferecer de análogo, folheia algumas obras consagradas a
esta última — nem que seja os manuais mais elementares — e bruscamente crê
penetrar às apalpadelas num mundo novo.
Diferença de língua? Não precisamente, pois nada impede, em princípio, que,

144
HISTÓRIA E HISTORIADORES

de unia língua para a outra, dois vocabulários científicos correspondam quase por
completo. As ciências da natureza dão-nos muitos exemplos dessas concordân­
cias. O que é grave é que, da obra alemã para a obra francesa as palavras quase
nunca coincidam. Com traduzir para Francês o Hõrige alemão? Para Alemão o
lenancier francês? Entrevemos diversas traduções possíveis, mas são perífrases
tos dependentes do senhorio para Hõrigen) ou aproximações (Zinleute vale ape­
nas para os tenanciers constantes do censo, caso particular de uma noção mais
geral'D e são também, muitas vezes — como acontece com a equivalência que
propus para Hõrigen expressões pouco usuais que os livros não empregam.
Ainda se esta ausência de paralelismo se explicasse por uma fidelidade dema­
siado obstinada, guardada por ambos os lados para o emprego das línguas vul­
gares medievais, cujas divergências são um facto histórico que temos que acei­
tar... Mas longe disso! A maior parte destes termos dissonantes foram os
historiadores que os forjaram ou pelo menos foram eles que definiram e alarga­
ram o seu sentido. Elaborámos, com ou sem razão, mais ou menos inconscien­
temente. vocabulários técnicos. Cada escola nacional construiu o seu sem se
preocupar com a vizinha. A história europeia tomou-se assim uma verdadeira tor­
re de Babei. Daí resultam, para os investigadores inexperientes — e qual o in­
vestigador. afinal, que. saindo do seu domínio nacional, não merece este epíteto?
— os mais temíveis perigos. Ao contactar com um trabalhador que estudava, num
país de passado germânico, um terreno comunal explorado por várias aldeias reu­
nidas, ou seja, o que as obras alemãs, pelo menos de uma certa data, chamam
QC .
uma Mark , tive grande dificuldade em persuadi-lo de que existiram práticas
análogas e por vezes existem ainda fora da Alemanha, em inúmeros países, no­
meadamente em França; com efeito, para esta espécie de terreno, os livros fran­
ceses não têm uma palavra específica.
Mas a discordância de vocabulários mais não faz que exprimir uma falta de
harmonia mais profunda. De ambos os lados, quer se trate de estudos franceses,
alemães, italianos, ingleses, quase nunca se colocam as mesmas questões. Citei
atrás um exemplo deste perpétuo mal-entendido, a propósito das transformações
agrárias. Não seria muito difícil mostrar outros igualmente eloquentes: a respeito
da ministérialité, até há pouco tempo absolutamente ignorada, em França e em
Inglaterra, nas descrições da sociedade medieval; a respeito dos direitos de jus­
tiça, presentes nos diversos países segundo classificações totalmente diferentes.

145
MARC BLOCH

Será um historiador levado a perguntar-se se tal instituição ou tal facto do seu


passado nacional se encontra noutro lugar, e com que modificações, com que
atrasos de desenvolvimento ou com que expansão? Quase sempre, é-lhe impos­
sível satisfazer esta legítima curiosidade, pois quando não descobre nada a este
respeito nas obras que consulta, poderá sempre desconfiar que o silêncio dos li­
vros se explica pelo próprio silêncio das coisas ou pelo esquecimento de que terá
sido vítima um grande problema.
Neste Congresso, creio, falar-se-á muito da reconciliação dos povos pela his­
tória. Não temais: não vou tratar aqui de improviso este tema entre todos delica­
do. A história comparada tal como a concebo é uma disciplina inteiramente cien­
tífica, voltada para o conhecimento, não para a prática. Mas que dirieis de uma
reconciliação das nossas terminologias, dos nossos questionários? Antes do mais,
dirigimo-nos aos autores de manuais gerais: o seu papel como informadores e
como guias é primordial. De momento, não lhes pedimos que abandonem o âm­
bito nacional em que habitualmente se encerram; é evidentemente artificial, mas
as necessidades práticas ainda o impõem. Só pouco a pouco a ciência chegará,
neste aspecto, a uma mais justa adaptação aos factos. Mas pedimos-lhes desde
já que não esqueçam que vão ser lidos fora das fronteiras. Suplicamos-lhes, como
já fizemos para os autores de monografias, que vão buscar inspiração, para o seu
plano, para a enunciação dos problemas que levantam, para os próprios termos
que empregam, aos ensinamentos fornecidos pelos trabalhos executados noutros
países. Assim, mediante uma boa vontade mútua, uma linguagem científica co­
mum — no sentido elevado da palavra, ao mesmo tempo colecção de signos e
ordem de classificação — ir-se-á progressivamente constituindo. A história com­
parada, uma vez que se tome mais fácil de conhecer e de usar, animará com o
seu espírito os estudos locais, sem os quais não pode fazer nada mas que sem
ela a nada conduzem. Numa palavra, deixemos, por favor, de conversar etema-
mente entre histórias nacionais sem nos compreendermos. Um diálogo de surdos
em que cada qual responde de través às perguntas do outro é um velho artifício
de comédia, bom para arrancar gargalhadas a um público bem disposto; mas não
é um exercício intelectual muito recomendável.

i 146
HISTÓRIA E HISTORIADORES

Notas
I Este artigo reproduz uma comunicação feita no passado mês de Agosto em Oslo, perante o Con­
gresso internacional das ciências históricas (secção história da Idade Média). Fico satisfeito por
poder restabelecer os desenvolvimentos que o tempo muito limitado de que 'dispus me obrigara
a cortar no último momento.
2. Sem ter, nem de longe, a pretensão dc elaborar uma bibliografia completa que aqui não viria a
propósito, citarei a alocução de M. Hcnri Pirenne ao Vo Congresso internacional de ciências
históricas (Compte rendu. p. 17-32), tanto mais significativa quanto nos dá o pensamento de um
historiador que ilustrou uma obra de história nacional, e na própria Revue de synthèse, para além
dos artigos de M. Davillé (t. XXVII, 1913), concebidos num estilo diferente do estudo que se
segue, o de M. Henri Sée (t. XXXVI, 1923; retomado no volume intitulado Science eiphilosophie
de 1’histoire, 10928), bem como as reflexões de M. Henri Berr (t. XXXV. 1923, p. 1 1). Como
tentativas positivas de história comparada, o notá\el artigo de M. Ch.-V. Langlois. «The com­
parativo history of England and France during the Middle Ages», English Historical Reviexr,
1900, e, numa outra direcção, algumas páginas luminosas de Vides du Moyen Age, de M. Pirenne.
3. Ver sobretudo A. Meillet. La Mèthode comparative en linguistique historique, 1925, aonde fui
buscar a ideia geral do desenvolvimento sobre as duas formas do método.
4. Moevs des sauvages Américains comparées aux moers des premiers temps, Paris, 1724; sobre a
obra, cf. Giloert Chinard. L 'Amériaue et íe rêve exotique dans Ia littérature française aux XVT
et X V If siècles, 1913. p 315 ss.
5. J. Frazer, The Golden Bough. V ed.. s I. p. 10. O exemplo escolhido por M. Meillet no estudo
cíiado é diferente, é tirado das investigações sobre contos com animais.
6. Mas naturalmente a constatação da «sobrevivência» não basta. Mesmo assim, há que referi-la,
pois o facto interessante e que deve ser explicado é precisamente a permanência do rito ou da
instituição em aparente discordância com a situação nova.
7. O estudo das civilizações primitivas orienta-se hoje, visivelmente, para uma classificação mais
rigorosa das sociedades que compara; não há qualquer razão para que o segundo tipo de método
que tento aqui distinguir não se aplique a estas sociedades como a outras. Por outro lado. é evi­
dente que certas vantagens da história comparada, de horizonte restrito, tais como adiante se ex­
põem — sugestões de investigação, alertas contra as pseudo-causas locais — pertencem igual­
mente a uma outra forma. Os dois aspectos do método têm características comuns; tal não impede
que não devam ser cuidadosamente distinguidos. O estudo da monarquia sacra europeia fornece
um exemplo bem nítido não só da incomparável utilidade como dos limites de etnografia com­
parada; esta. a única capaz de nos pôr na via da explicação psicológica do fenômeno, revela-se.
pela experiência, absolutamente inapta para lhe esgotar a realidade; pelo menos, foi o que procurei
demonstrar em Les Rois thauniaturges, nomeadamente p. 53 e 59. *
(8.) A mesma ideia é retomada em Apologie pour Thistoire..., p. 109 e 248.
9. Antecipo no que se segue como farei ainda mais longe, a propósito das teorias de Meitzen
— o resultado de um trabalho sobre os sistemas agrários de que me ocupo há muito tempo e
cujas conclusões foram apresentadas numa outra secção do Congresso.
10. Cap., n° 64, c. 17 (ed. Boretius): «Ut unusquisque suos iuniores ditringat ut melius ac melius
oboediant et eoncentiant mandatis et praeceptis imperialibus.»
11. Décimo segundo concilio de Toledo (681), «a carta do rei Erviges»; Mansi, t. XI, col. 1025.

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MARC BLOCH

12. Textos reunidos por Sanchcz-Albornoz, «Las behetrias», Anuário de historia dei derecho
espanol, t. 1, 1924, nas notas das páginas 183, 184 e 185. O estudo de M. Sanchez-Albornoz
' dá a mais segura e mais completa exposição do patrocinium visigodo. Note-se,-muito particu­
larmente, a passagem do Codex Euricianus, CCCX, que se aplicava originalmente ao buc-
celarius (soldado privado) e reaparece na Lex Recessvindiana, V, 3, 1, com substituição da
palavra buccellario pela expressão mais comprida: ei quem in patrocionio habuerit.
13. Lei de Erviges (680-687) recolhida, Lex Visig. IX, 2, 9, ed. Zeumer, in-4p, p. 378, cf. Sanchez-
Albornoz, loc. cit., p. 194.
14. Maiores et potentiores: Cap. n° 133 (t. I, p. 263, I, 26), Padres; Diplomata Karolin, t. I, n° 217;
Hist. de Languedoc, t. II, pr. Col. 22. Ver E. Cauvet, Etude historique sur Vètablissement des
Espagnols duns la Sptimanie, 1898, e Imbart de La Tour, «Les colonies agricoles et Toccupation
des tcrrcs desertes à fépoque carolingienne», em Questions d 'histo ire sociale et religieuse,
1907.
15. Alimentada de elementos importados, a monarquia carolíngia foi por sua vez imitada. A sua
influência sobre as monarquias anglo-saxónicas parece não ter sido suficientemente estudada.
O útil ensaio de niiss Helen M. Cam, Local government in Francia and England. A comparison
o f the local administration and jurisdiction o f the carolingian Empire with that o f the west
saxon kingdom. 1912, está longe de esgotar o assunto.
16. -Cf. H. Prentout, «Les États provinciaux en France» em Bulletin o f the International Committee
'of histórical Sciences, Julho de 1928 (Scientific reports presented to the sixth international con-
gress o f histórica! Sciences).
17. Alain Chartier, no seu Quadriloge invectif composto em 1422, põe na boca do cavaleiro as
falas seguintes (ed. E. Droz em Les Classiques français du Moyen Âge, p. 30): «E vantagem
que têm os populares que a sua bolsa seja como a cisterna que recebe e recolhe as águas e
pingas de todas as riquezas deste reino... porque a fraqueza das moedas lhes diminuiu o pa­
gamento dos deveres e das rendas que nos devem e o ultrajante orgulho que puseram no viver
e nas obras acrescentou-lhes o que todos os dias colhem e juntam.» Creio não ter encontrado
texto mais antigo onde esta constatação seja enunciada com maior clareza Mas valerá a pena
prosseguir a pesquisa. Com efeito — demasiadas vezes o esquecem — o que importa na moeda
não é tanto o momento em que o fenômeno começou a manifestar-se (para determinar este ponto
de partida seria necessário remontar singularmente mais atrás) como aquele em que começou a
ser sentido. Enquanto os senhores não compreenderam que as suas contribuições estavam a
diminuir, evidentemente não procuraram os meios de obviar a essa perda. Ora temos hoje al­
gumas boas razões para saber que a desvalorização de uma moeda, cujo valor nominal per­
manece estável, escapa facilmente, durante um tempo que pode ser assaz longo, à consciência
dos indivíduos interessados. Uma vez mais, parece que o problema econômico se resolve num
problema psicológico.
18. A necessidade dc estudos comparativos, os únicos capazes de dissipar a miragem das falsas
causas locais, foi excelentemente destacada por M. A. Brun no seu livro, notável a despeito a
algumas insuficiências, Recherches historiques sur Vintroduction du français dans les provinces
du Midi, 1923 (cf. L. Febvre em Revue de synthèse, t. XXXVIII. 1924, p. 37 ss). M. Brun, c
sabido, provou que o Francês só a partir dos meados do século XV começou a conquistar o sul.
Ouçamo-lo explicar as razões pelas quais, resignando-se de antemão a fazer dos documentos
apenas um exame incompleto, se decidiu a estender a sua pesquisa a todo o Midi, em vez dc.
como tantos eruditos o devem ter aconselhado, explorar apenas uma região, mas explorá-la a

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HISTÓRIA E HISTORIADORES

fundo. «Talvez tivesse sido preferível restringir o problema a uma província e esgotar a massa
documental que ar se oferecesse. Segundo o método estrito, sim, mas na realidade fícávamos
expostos a graves erros de interpretação. Por exemplo, tendo escolhido a Provença e verificado
que o Francês foi ai uma inovação do século XVI, admitir-se-ia sem mais que se tratava de um
facto consecutivo ã união (1481-1486), o que não é incorrecto, mas teríamos percebido que a
causa profunda deste acontecimento foi, não a união em si, mas a circunstância especial de a
união se produzir no séeulo XV, numa viragem da nossa história/ e de a Provença participar
assim numa evolução comum e sincrónica a todos os países meridionais? Uma investigação
localizada terra apelado a uma explicação localizada e as características gerais — as únicas que
importam — do fenômeno teriam escapado» (p. XII). Melhor não se poderia dizer. O resultado
das investigações de M. Brun é. por si só, uma expressiva defesa a favor do método que aqui
defendo.
19. Caracteres génêraux des langu es germaniques, 1917, p. VII.
20. Vülainage m England, 1892. Naturalmente, a literatura é considerável. Na realidade, faltam os
trabalhos de conjunto, mesmo em Inglês (ver no entanto Pollock e Maitland, The History o f
Enghsh Law, 2J ed., t. I, p. 356 ss. V. E 412 ss.), quanto mais em Francês, o que valerá, espero,
de desculpa ao esquematismo necessário da minha exposição.
21. Nova... ou renovada. O escravo, no tempo em que havia escravatura propriamente dita, teve,
evidentemente, nas relações com o seu senhor, outro juiz que não ele próprio. O homem livre
dependia dos tribunais da tribo, do povo ou do rei. Os progressos da jurisdição senhorial —
aliás menos completos em Inglaterra do que no continente —, o desenvolvimento de uma forma
nova de vínculo pessoal e hereditário, qualificada de não livre, haviam esbatido a velha con­
cepção e retirado o seu valor jurídico, sem provavelmente a apagar de todo nas consciências.
O renascimento da justiça do Estado fê-la reviver. O direito medieval, ao adaptar as suas con­
struções à evolução dos factos, encontra-se assim, por várias vezes, alimentado por um velho
tesouro de representações populares, mais ou menos obscurecidas ao longo dos tempos. Vere­
mos adiante (a propósito dos «serviços vis») um exemplo muito flagrante.
22. Há uma outra forma, mais subtil, de falsa semelhança; duas instituições, em duas sociedades
diferentes, parecem visar fins semelhantes; mas a análise mostra que esses fms são na realidade
muito opostos e que as instituições nasceram de necessidades absolutamente antinómicas. E o
que se passa com a herança medieval e o moderna, por um lado, a herança romana, por outro;
o primeiro, «conquista» do «individualismo» sobre o «velho comunismo familiar» — o segundo,
pelo contrário, destinado a favorecer o pater famílias todo-poderoso, saído, por conseguinte,
não de um «desmembramento» mas de uma prodigiosa concentração da família». Fui buscar
este exemplo a um relatório de Durkheim (Année sociologique, t. V, p. 375), um dos nacos de
método mais consumados saídos da sua mão.
23. Havia, aliás, certa ambiguidade nesta expressão: «servitium» era mais vezes tido na linguagem
jurídica inglesa — ou. melhor dizendo, na linguagem jurídica medieval em geral — como
equivalente da contribuição do que de serviço propriamente dito. Fico aqui pelo sentido restrito.
24. Citei alguns documentos, Revue historique du droit, 1928, p. 49-50.
25. Sobre este assunto, cf. o meu artigo em Mélanges d ’histoire du Moveu Age offerts à M. Ferdi-
nand Lot, 1925, p. 55 ss, onde aliás desprezei, erradamente, a aproximação aos factos ingleses.
26. L. IV, c. 11.
27. Cf. Marc Bloch, «Un problèine dTiistoire comparée; la ministérialité en France et en Alle-
magne», Revue historique du droit français et étranger, 1928, nomeadamente p. 86 ss e infra,

149
MARC BLOCH

p. 503-528, nomeadamente 525-526.


28. Era, de resto, o significado original (as relações entre mansus e numere são evidentes): a terra
tinha recebido o nome por causa da casa. «mãe do campo», como dizem os textos escandinavos.
O sentido derivado assumia um valor técnico; desapareceu com a instituição que designava; o
sentido inicial manteve-se ou reviveu. Naturalmente, podemos descobrir, aqui e além. algumas
sobrevivências do mansc na antiga acepção cadastral da palavra: testemunhos atrasados cuja
presença atesta o estado das coisas passadas e a revolução geral a que escaparam' apenas alguns
senhorios isolados.
29. Cap. n° 273, c. 30 (t. II, p. 323). Somos tentados a aproximar deste texto a informação já dada
por Gregório de Tours {Hisí. Franc. X, 7) sobre a fragmentação das possessiones, bases do
imposto fundiário romano-franco; mas não é aqui o lugar de examinar as relações do manse
franco com o caput romano, problema entre todos delicado.
30. La méthode comparative en linguistique historique, p. 82-83.
31. Ch. Metais, Les Templiers en Eure-et-Loir, 1896. Os exemplos deste anacronismo são menos
raros do que se crê. Cito, no mesmo departamento: Henry Lehr. La Reforme et les Églises réfor-
mées dans le département aetuel d 'Eure-et-Loir (1523-1912), 1912 Numa região vizinha,
abade Denis, Lectures sur 1'histoire de 1'agriculture dans le département de Seine-et-Marne.
1830 (a maior parte do volume incide no período anterior à Revolução).
32. Creio dever acrescentar uma consideração especial para as universidades francesas e que, por
esta razão, não teria sido adequado desenvolver em Oslo. O nosso ensino superior está garrotado
pelos programas de licenciatura e ainda mais estritamente, nas principais faculdades, pelos pro­
gramas para professor agregado, que este recebe já feito das mãos do júri. Nem uns nem outros
se limitam, é certo, à história de França; comportam quase sempre questões de história es­
trangeira; mas, por motivos de ordem prática que são perfeitamente legítimos, consideram nor­
malmente cada uma dessas questões num âmbito nacional. De modo que o professor pode bem
ser levado a dar aulas ou a dirigir trabalhos sobre as instituições inglesas ou alemãs, por exem­
plo, sob pena de ignorar os interesses, infínitamente respeitáveis, dos alunos que lhe estão con­
fiados, só excepcionalmente poderá reserv ar no seu ensino lugar para certos problemas que exi­
gem imperiosamente ser hoje tratados pelo método comparativo: por exemplo, o regime
senhorial e vassálico na Europa ocidental, o desenvolvimento das sociedades urbanas, a
revolução agrícola. Estando o ensino e o trabalho pessoal, pela própria natureza das coisas,
intimamente ligados e sendo de todo o interesse que se apoiem mutuamente, vê-se quanto esta
situação é prejudicial aos nossos estudos.
33. Exactamente: «Para um dia de síntese são precisos anos de análise» (Fustel de Coulanges, La
Gaule romaine, ed. C. Jullian, p. XIII, prefácio de 1875). Cf. As reflexões de M. M. Berr,
Bulletin du Centre International de synthèse, Junho de 1928, p. 28.
34. Naturalmente, também poderiamos dizer qualquer coisa como «Inhaber der Leihegüter»; mas
quem usa tais expressões? Hõrige, por outro lado, não dá inteiramente tenancier, o sentido é
mais geral. Em Espanhol, como pude verificar a propósito de uma tradução, não há literalmente
palavra que permita traduzir «tenure».
35. O que hoje já não oferece dúvidas é que a palavra nunca teve sentido rigorosamente especiali­
zado e deve ser tomada simplesmente, como Allemende. por equivalente de comunal; cf. G. von
Below, «Allemende und Markgenossenschaft», Vierteljahrschr. fiir Sozial-und Wirt-
schaftsgesch., 1903.

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