Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
ícabo de citar
5, os aspectos
s sistemas so-
o exame atu-
► divergentes!
nas cuja opo-
ilo XIII a so-
ima gradação
Talvez a per
ante — ainda
pois através
esperança de
íza.
\Revue de synthèse historique, t. XLVI, 1928, p. 15-50. Tradução ingl. «En-
treprise and Secular Change», Readings on Economic History, Frederic Lane e
Jelle C. Riemersma, 1953, Richard D. Irwing, Inc., Homewood, Illinois. Mélan-
ges historiques, t. I, p. 16-40]
o desta nota, de
■ação e Método
I
Permitam-me que, logo às primeiras palavras, previna um equívoco e me
poupe ao ridículo. Não venho até vós como «descobridor» de umapanaceia nova.
O método comparativo pode muito; considero a sua generalização e o seu aper
feiçoamento uma das necessidades mais prementes que hoje se impõem aos es
tudos históricos. Mas não pode tudo: em ciência, não há talismãs. E não se in-
119
II
120
HISTORIA E HISTORIADORES
fenômenos que parecem, à primeira vista, apresentar certas analogias entre si,
descrever as curvas da sua evolução, encontrar as semelhanças e as diferenças
e. na medida do possível, explicar umas e outras. São portanto necessárias duas
condições para que haja, historicamente falando, comparação: uma certa seme
lhança entre os factos observados — o que é evidente — e uma certa disseme-
Ihança entre os meios onde tiveram lugar. Por exemplo, se estudar o regime se-
nhorial do Eimousin, serei etemamente levado a pôr lado a lado informações
tiradas deste ou daquele senhorio; no sentido vulgar da palavra, comparo-os. Não
terei porém a impressão de fazer o que, em linguagem técnica, se chama história
comparada pois irei buscar os diversos objectos do meu estudo a fracçÕes de uma
mesma sociedade que apresenta, no seu conjunto, uma grande unidade. Na prá
tica, criou-se o hábito de reservar quase exclusivamente a expressão história
comparada para o confronto de fenômenos que se desenrolaram dos dois lados
da fronteira de um Estado ou nação. Entre todos estes contrastes sociais, com
efeito, as oposições políticas ou nacionais são as que mais de imediato impres
sionam o espírito. Mas, como veremos, trata-se aí de uma simplificação um pou
co grosseira. Atenhamo-nos à noção, ao mesmo tempo mais maleável e mais
exacta. das diferenças de meio.
0 processo de comparação assim entendido é comum a todos os aspectos do
método, mas, conforme o campo de estudo considerado, é susceptível de duas
aplicações totalmente diferentes pelos seus princípios e resultados.
Primeiro caso: escolhemos sociedades separadas no tempo e no espaço por
distâncias tais que as analogias observadas de um lado e do outro, entre este ou
aquele fenômeno, não possam, com toda a evidência, explicar-se por influências
mútuas ou por alguma comunidade de origens. Por exemplo (desde a época lon
gínqua em que o Pe. Lafitau, da Companhia de Jesus, convidava os seus leitores
a comparar os «costumes dos selvagens americanos» com os «dos primeiros tem-
A
pos»^ é o tipo mais difundido deste gênero de comparação), pomos em evidência
as civilizações mediterrânicas, helénica ou romana, as sociedades ditas «primi
tivas» e os nossos contemporâneos. Nos primeiros tempos do Império Romano,
a dois passos de Roma, nas margens encantadoras do lago de Nemi, um rito, pela
sua cruel estranheza, destaca-se no meio dos costumes de um mundo relativa
mente organizado: quem quer ser sacerdote do pequeno templo de Diana pode
sê-lo com uma condição, e só uma — matar o prestante que se encontrar no lugar.
121
MARC BLOCH
122
HISTÓRIA E HISTORIADORES
III
123
MARC BLOCH
por causa do estado da nossa documentação, seja devido a uma constituição so
cial e política diferente, a sua acção é aí menos imediatamente perceptível. Não,
que tenha sido menos grave. Mas operou-se em profundidade: como essas obs
curas afecções do organismo que, não se traduzindo instantaneamente por sinto
mas bem definidos, se mantêm indetectadas durante anos e quando os seus/efei-'
tos por fim aparecem continuam quase impossíveis de reconhecer! porque o
observador não pode ligar os efeitos visíveis a uma causa original demasiado an
tiga. Hipótese teórica, tudo isso? Para demonstrar que não o é sou forçado a ir
buscar um exemplo às minhas próprias investigações. Lamento ter que entrar em
cena; mas os trabalhadores, habitualmente, não se cansam a contar os seus tac-
teios, a literatura não me fornece nenhum caso que possa substituir a minha ex
periência pessoal9. -. . f
Se há, na história agrária da Europa, uma transformação que surge com gran
de relevo, é essa de que foi palco a maior parte da Inglaterra, mais ou menos des
de o início do século XVI atévaos primeiros anos do século XIX — esse vasto
.movimento das enclosures que, sob a sua dupla forma (delimitação do terreno
comunal, delimitação das lavras) pode definir-se, no essencial: desaparecimento
das servidões colectivas, individualização da exploração agrícola. Consideremos
aqui apenas a delimitação das lavras. Como ponto de partida, temos um regime
segundo o qual a terra arável, assim que despojada das suas colheitas, se tomava,
pèlo pasto,;objecto de exploração comum e, ainda semeada ou coberta de searas
obedecia já, no ritmo do. seu cultivo, a regulamentos destinados a proteger os in
teresses da colectividade; como ponto de chegada, um estado de rigorosa apro
priação pessoal. Tudo, nesta grande metamorfose, .atrai e retém o nosso olhar: as
polêmicas que suscitou durante todo o decurso da história; o acesso relativamente
fácil .à maior parte dos. documentos (actas do Parlamento, fiscalizações oficiais)
que sobre ela nos informam; as suas ligações com a história política pois, favo
recida pelos progressos do Parlamento, onde mandavam os grandes proprietários,
contribuiu, por ricochete, para assentar mais solidamente o poder da gentry; as
suas possíveis relações com os dois factos mais imediatamente salientes da his
tória econômica inglesa, a saber, a expansão colonial e a revolução industrial, que
ela terá talvez facilitado (há quem duvide, mas para nós basta que o assunto se
discuta); enfim, o privilégio que lhe coube de estender os seus efeitos, não apenas
aos fenômenos sociais, sempre tão delicados de detectar, mas também às carac
HISTÓRIA E HISTORIADORES
terísticas mais salientes da paisagem, fazendo erguer-se por toda a parte, nos
campos ingleses, outrora a perdei de vista, as barreiras e as sebes. Portanto, nâo
há história de Inglaterra, por mais elementar que seja, que não mencione as en-
closures.
Abramos agora uma historia de França, nem que seja uma história econômi
ca... Não encontraremos aí a mínima alusão a movimentos desta ordem. E no en
tanto. houve-os. Hoje. sobretudo graças aos trabalho de M. Henri Sée, começa
mos a distingui-los; contudo, estamos ainda longe de ter tomado uma consciência
suficientemente nítida das diferenças que neste ponto apresentam as evoluções,
ao mesmo tempo semelhantes e divergentes, das sociedades francesa e inglesa.
Mas deixemos por momentos esta última consideração; a percepção dos contras
tes, segundo o bom método comparativo, vem apenas em segundo lugar; por ago
ra, andamos somente a descobrir. Ora, é notável que, até aqui, o desaparecimento
das servidões colectivas, em França, só tenha sido observado nas épocas e nos
lugares onde, como em Inglaterra, o fenômeno encontrou a sua expressão nos
textos oficiais e, por conseguinte, fáceis de conhecer: os «editos de delimitação»
do século XVIII e os inquéritos que os prepararam ou se lhes seguiram. A mesma
transformação, porém, teve lugar numa outra região francesa onde, que eu saiba,
nunca foi assinalada: a Provença — e isso numa época relativamente recuada:
os séculos XV, XVI e XVII. Aí foi. segundo todas as probabilidades, muito mais
profunda e muito mais eficaz do que na maior parte das zonas mais setentrionais
onde os mesmos factos foram várias vezes estudados; mas como teve a pouca
sorte de se desenrolar num tempo em que a vida econômica, sobretudo a vida
rural, não preocupava os cronistas nem os administradores e em que, ainda por
cima, não acarretou nenhuma modificação visível da paisagem (o desapareci
mento das servidões colectivas nâo implicou a construção de cercas), escapou aos
olhares.
Terão sido as repercussões na Provença as mesmas de Inglaterra? Para já, ig
noro-o. Por outro lado, estou muito longe de pensar que todas as características
do movimento inglês se vão encontrar nos litorais mediterrânicos; pelo contrário,
estou impressionado com o aspecto muito particular conferido aos factos meri
dionais por uma constituição dos territórios agrícolas muito diferente da do Norte
(por conseguinte, não houve, como em Inglaterra, redistribuição das parcelas,
«reconstituição»), práticas econômicas especiais (nomeadamente, a «transumân-
125
M ARC BLOCH
cia») e, como consequência destas práticas, condições sociais sem par nos cam
pos ingleses (penso sobretudo no antagonismo entre os grandes criadores de
gado, os «nourriguiers», e as outras classes da população). Nem por isso deixa
de ser interessante verificar a presença, com características próprias, numa zona
mediterrânica, de um fenômeno que, até então, parecia ter podido difundir-se so
bretudo em latitudes mais elevadas. Além disso, não é difícil de observar na Pro-
vença pois, olhando com atenção, textos assaz numerosos permitem seguir-lhe
o rasto: estatuto condal, deliberações das comunidades, processos cuja duração
e peripécias dizem eloquentemente da gravidade dos interesses em jogo. Mas es
tes textos, há que pensar em procurá-los e em compará-los uns com os outros.
Se eu pude fazê-lo, por certo não foi por me serem familiares os documentos lo
cais; longe disso, conheço-os e hei-de sempre conhecê-los menos bem do que os
eruditos que fizeram da história provençal o campo preferido dos seus estudos.
Só esses investigadores poderão verdadeiramente explorar a veia que eu deveria
limitar-mê‘á indicar. A única vantagem que tenho sobre eles é muito modesta e
totalmente impessoal. Li-obras relativas às enclosures inglesas ou às revoluções
rurais análogas que se deram noutros países europeus e tentei inspirar-me nelas.
Numa palavra, usei uma varinha mágica, de todas a mais eficaz: o método com
parativo. *' * fe i. i. .
>-1 í ü i, '■‘■A- '■ ' ?■! •
;. * t - , -V.d" . IV V : * ■•
. ' j ..:»V 4i._*/,?■---r.'. •' •• J
: - Passemos à interpretação. - • ’ . .. / -v.
f O mais evidente de todos os serviços a esperar de uma comparação atenta
instituída entre factos tirados de sociedades diferentes e vizinhas é permitir-nos
discernir as influências exercidas por estes grupos uns sobre os outros. Indaga
ções prudentemente realizadas revelariam talvez correntes de transição de ele
mentos entre as sociedades medievais até agora imperfeitamente reveladas. Eis
um exemplo, proposto apenas a título de hipótese de trabalho.
A monarquia carolíngia apresenta-se, relativamente à dos Merovíngios que
a precedeu imediatamente no tempo, com características absolutamente origi
nais. Os Merovíngios nunca tinham passado, aos olhos da Igreja, de simples lai
cos. Pepino e os seus descendentes, pelo contrário, recebem desde a chegada ao
trono, por unção com óleos bentos, a marca sagrada. Crentes como todos os ho
126
HISTÓRIA E HISTORIADORES
127
MARC BLOCH
causas idênticas que actuam dos dois lados no mesmo sentido e cuja natureza,
nesse caso, está por definir? Ou será que — sendo os factos visigodos, entenda-
-se, nitidamente anteriores aos factos francos — devemos pensar que uma certa
concepção da monarquia e do seu papel, certas idéias concernentes à constituição
da sociedade vassálica e à sua utilização pelo Estado, surgidas primeiramente em,
Espanha, e que aí tiveram tradução em textos legislativos, foram retomadas cons
cientemente pelos conselheiros dos reis francos e pelos próprios monarcas? Para
termos o direito de responder a esta pergunta convém, evidentemente, proceder
a uma investigação pormenorizada, que não posso abordar aqui. O seu principal
objectivo deverá ser procurar por que canais a influência visigótica penetrou na
Gália. Certos factos, universalmente conhecidos, parecem de natureza a tomar
assaz provável a hipótese de uma influência. Houve incontestavelmente, no reino
franco, durante o século que se seguiu à conquista árabe, uma diáspora espanhola.
Os fugitivos de partibus Hispanice, estabelecidos para Carlos Magno e Luís, o
Piedoso, na Septimânia. eram, em grande parte, gente humilde; mas contavam-se
também nas suas fileiras pessoas pertencentes às classes altas {majores etpoten-
tiores) e padres, isto é, pessoas ao corrente dos hábitos políticos e religiosos do
país que acabavam de abandonar14 Alguns espanhóis refugiados na Gália fize
ram carreiras brilhantes na Igreja: Cláudio de Turim, Agobardo de Lyon, após
tolo, para a terra franca, da unidade de legislação que tinha podido realizar na
sua pátria de origem, sobretudo Teodulfo de Orleães, o primeiro a chegar e talvez
o mais influente de todos.. Enfim, colecções conciliares espanholas exerceram so
bre o direito canônico da época carolíngia uma acção cuja amplitude está ainda
por definir, mas que é inegável. Mais uma vez, não pretendo decidir nada. Re
conhecerão, espero, que o problema merece ser colocado. E de modo algum é o
umco da sua especie .
128
HISTÓRIA li HISTORIADORES
129
MARC BLOCH
pequenos factos locais, a que seremos levados a atribuir um valor que sem dúvida
nunca tiveram; e o essencial, inevitavelmente, passar-nos-á ao lado. Com efeito,
um fenômeno geral só pode ter causas gerais; e se há fenômeno de amplitude
europeia é bem aquele a que, conservando o nome francês, chamei formação dos
Estados. Em vários momentos, mas afinal muito pouco afastados no tempo,(ve
mos por toda a parte surgir em França os Etats. mas na Alemanha também, nos
«territórios», os Stànde (as duas palavras têm sentidos curiosamente vizinhos),
em Espanha as Cortes, em Itália os Parliamenti. Não o Parlamento inglês, nas
cido num meio político infinitamente diferente, cujo desenvolvimento não obe
deceu a movimentos de idéias e a necessidades muitas vezes análogos aos que
presidiram à formação do que os alemães chamaram o Stândestaat. Mas, por fa
vor, não me entendam mal. Reconheço plenamente a imensa utilidade das mo
nografias locais e não vou pedir aos seus autores que ultrapassem o quadro pró
prio dos seus estudos para se porem à procura, de vez em quando, da solução
para o grande problema europeu que acabo de enunciar. Bem pelo contrário, su
plicamos-lhes que tomem consciência de que não podem, sozinhos, cada qual de
seu lado, resolvê-lo. O principal serviço que podem prestar-nos é separar os di
ferentes fenômenos políticos e sociais que precederam ou acompanharam, na sua
província, o aparecimento dos Estados ou dos Stànde e parecem por isso ser de
natureza a classificar-se provisoriamente entre as causas possíveis dessa emer
gência. Nesta pesquisa, o exame dos resultados obtidos já noutras regiões, um
pouco de história comparada, numa palavra, será com utilidade um guia da nossa
atenção. A comparação de conjunto não poderá deixar de vir a seguir; sem as
investigações locais preliminares, seria vã; mas só ela poderá, no seio das causas
imagináveis, reter as que tiveram uma acção geral, as únicas reais.
Não seria muito difícil, bem se vê, dar outros exemplos. Parece-me evidente,
entre outras coisas, que os historiadores alemães, quando estudam a formação
dos «territórios» (os pequenos Estados que se constituíram nos séculos XII e XIII
no interior do Império e foram pouco a pouco apoiando, em proveito próprio, a
maior parte do poder público), permitem-se com demasiada frequência conside
rar este fenômeno especificamente germânico; mas como separá-lo da consoli
dação, em França, dos principados feudais? Outra ilustração ainda da prudência
que o método comparado deve inspirar aos historiadores demasiado propensos a
procurar nas transformações sociais causas exclusivamente locais: a evolução do
130
HISTÓRIA E HISTORIADORES
senhorio nos últimos séculos da Idade Média e início dos tempos modernos. Os
senhores, com os seus rendimentos ameaçados pela diminuição, em valor real,
das rendas monetárias, tomaram então e pela primeira vez uma consciência per-
feitamenie clara do empobrecimento que. gota a gota, há muito vinha pondo em
risco a sua fortuna ; preocuparam-se, em todos os países, em obviar a este pe
rigo. Para faí deitaram mão, conforme os lugares, de meios muito diversos e mais
ou menos eficazes: aumento de certos produtos casuais, cujo montante o costume
não tinha fixado com rigor (as fines inglesas ): substituição, sempre que juridica
mente possível, da renda em dinheiro pelo aluguer em espécie, proporcional à
colheita (donde, em França, a grande extensão das meações); despojamento bru
tal dos rendeiros, obtido, aliás, aqui e além. por processos de natureza muito di
ferente (Inglaterra, Alemanha de Leste). O esforço, no seu princípio, foi geral; o
seu ponto de aplicação e mais ainda o seu sucesso variaram em extremo. Aqui,
portanto, a comparação convida-nos a verificar, de um meio nacional para outro,
divergências fortemente marcadas — veremos em breve que é um dos seus prin
cipais interesses: mas obriga-nos, ao mesmo tempo, a ver no impulso primeiro
que deu origem a uma tal variedade de resultados um fenômeno europeu, a julgar
apenas por causas europeias. Esforçarmo-nos por explicar a formação da Gut-
herrschaft mecklemburguesa ou pomerana, o açambarcamento das terras pelo
squire inglês unicamente com a ajuda de factos constatados em Mecklemburgo,
na Pomerânia, em Inglaterra e que não encontramos noutros sítios seria perder
tempo num jogo intelectual assaz vazio .
VI
131
MARC BLOCH
132
HISTORIA E HISTORIADORES
133
MARC BLOCH
134
HISTÓRIA E HISTORIADORES
servo francês do século XIV, o villain ou servo inglês da mesma época? São duas
classes nitidamente dissemelhantes. Valerá a pena compará-las? Certamente,
mas. desta vez, marcar os seus contrastes, através dos quais se exprime uma opo-
sição impressionante entre o desenvolvimento das duas nações .
Levemos mais longe ainda os pormenores da comparação. Nem sempre foi
fácil, nos manoirs ingleses dos séculos XIII e XIV, diagnosticar com segurança,
entre os direitos reais, cujas modalidades não tinham fim, os que se deviam agru
par sob a designação de tenure em villainage e assim separar cuidadosamente
da massa, igualmente variegada, aqueles a que cabia o epíteto livre. Contudo,
houve que assentar em alguns critérios mais ou menos fixos, pois foi necessário
poder determinar quais eram as terras e, por conseguinte, pelo menos à origem,
os rendeiros que a justiça do rei, apagando-se perante a justiça senhorial, renun
ciava a proteger. Preocupados em distinguir as características, os juristas julga
ram por vezes encontrá-las na natureza dos serviços que oneravam a terra. Cons-
truíram uma noção de «serviços vilãos» . Unanimemente considerou-se
sintomática a corveia agrícola quando comportava a prestação de um grande nú
mero de dias de trabalho e. sobretudo, uma certa indeterminação, quer no próprio
número de dias fornecidos, quer. pelo menos, no seu emprego, ambas as coisas
entregues ao critério arbitrário do senhor: e foi admitido na generalidade que a
obrigação de desempenhar as funções de chefe da aldeia (o reeve, bastante se
melhante ao staroste com que nos familiarizaram os romances russos) devia
igualmente ser considerado uma limitação à liberdade daqueles que, em função
da sua terra, eram forçados a aceitar, quisessem ou não, este pesado encargo. Ao
estabelecer estas normas, teóricos e juizes ingleses não estavam a inventar nada.
Limitaram-se a ir beber a uma nascente de representações colectivas, mais ou
menos confusamente elaboradas desde há muito tempo pelas sociedades medie
vais, as do continente mas também a da ilha. A ideia de que o trabalho agrícola
tem em si algo de incompatível com a liberdade corresponde a velhos pendores
da alma humana; exprimiam-se, na época bárbara, pelas palavras opera ser\nlia,
frequentemente usadas para designar este tipo de trabalhos. A ideia de que o ser-
vus difere do rendeiro livre pelo carácter indeterminado das corveias a que está
submetido, nascida do contraste original entre a escravatura e o colonato, tinha
muita força na Gália e na Itália carolíngias. Nunca desapareceu por completo.
Veja-se que, na França capetíngia, é frequente chamar-se «franchises» aos pri
135
MARC BLOCH
136
HISTÓRIA E HISTORIADORES
sociedades, discordâncias profundas, tão profundas, a bem dizer, que são para
n6s quase inexplicáveis e que temos que nos limitar a indicar, pelo menos por
agora.
Siiuemo-nos, para começar, na Europa ocidental e central por altura dos sé
culos X e XI. A ideia de que o nascimento traz incalculáveis diferenças entre os
homens, comum a quase todas as épocas, não estava então ausente das consciên
cias. Em 987, para justificar a exclusão pronunciada contra Carlos da Lorena,
candidato ao trono de França e legítimo herdeiro dos Carolíngios, o arcebispo
Auberon — ou. se preferirmos, o historiador Richer, colocando o nome do pre
lado a subscrever um discurso talvez completamente inventado, mas por certo
conforme às idéias da época — invocou o casamento que o pretendente contraíra
abaixo da sua qualidade, na classe dos vassalos . Qual o filho de cavaleiro que
aceitaria ter por igual o filho de um servo ou mesmo de um vilão? Não nos ilu
damos: a hereditariedade, como criadora de direito, tinha neste tempo muito pou
ca força. A sociedade não era constituída por um escalonamento de castas, com
distinção de sangue, mas por um feixe, assaz entretecido, de grupos com base
nas relações de dependência; estas relações de protecção e de obediência eram
concebidas como as mais fones que se podia imaginar. Neste mesmo caso de
Carlos da Lorena, atentemos bem no pendor que o argumento de Auberon assu
me como que espontaneamente. Talvez o bispo comece por reprovar ao príncipe
carolíngio uma má aliança propriamente dita: «desposou na ordem dos vassalos
uma mulher que não era sua igual». Mas imediatamente, lembrando-se de que o
pai desta pessoa tinha servido os duques de França, acrescenta: «Como poderia
esse grande duque [Hugo Capeto] tolerar ter por rainha uma mulher vinda dos
seus próprios vassalos?» Eis a questão imediatamente transposta para o plano
pessoal. Apenas a condição servil era tida por estritamente hereditária, mas não
era, na prática, de todo incompatível com a cavalaria. Quanto ao direito dos ho
mens livres, sendo bem verdade que oferecia, na prática infinitos matizes, estes
relacionavam-se com as diferenças de lugar, com as variantes nas relações con
tratuais, com o nível social do indivíduo enquanto tal, não com o nascimento.
Chegam os séculos XII e XIII. Surge então nas idéias e no direito uma surda,
mas decisiva modificação. Dilui-se a força dos vínculos pessoais; a homenagem
tende a transformar-se, ainda que muito lentamente, numa solenidade assaz va
zia; o servo, o «homem de hoste» francês passou a ser concebido muito mais
137
MARC BLOCH
como o «homem» do seu senhor do que como membro de uma classe desprezada.
Por toda a parte formam-se classes com base na hereditariedade, cada qual com
as suas regras jurídicas próprias. Mas que grandes são as diferenças na riqueza
desta evolução" ! Em Inglaterra, o villainage constitui-se solidamente, mas é
quase a única classe verdadeira. Entre os homens livres, não há diferenças(jurí-’
dicas. Em França, na base da escada figura a servidão, cujos membros já não po
dem aceder à cavalaria; no topo, a nobreza, que pouco a pouco se vai distinguindo
do resto da população por uma série de particularidades (que são por vezes sim
ples sobrevivências de costumes antigos) relativas ao direito civil, direito crimi
nal, direito fiscal. Na Alemanha, enfim, a partir do século XIII a ideia hierárquica
manifesta-se com incomparável fecundidade. Os servos cavaleiros, que a própria
consolidação do sentimento de classe tinha feito desaparecer em França, tomam-
-se aqui o próprio núcleo de uma ou mesmo, no Sul, de duas categorias sociais
bem definidas. De um lado, a nobreza, a massa servil do outro fraccionam-se
numa série de secções sobrepostas; nem todos os nobres são ebenbürtig entre si,
nem todos têm o connubium. E os juristas, inspirados pela prática, constroem,
para regulamentar a classificação das partes superiores da sociedade, a célebre
teoria do Heerschild: imaginam uma espécie de escada em que cada grupo tem
o seu lugar fixado num dos degraus; quem pertencer a um destes grupos não
pode, sem descer, aceitar um feudo de um homem colocado abaixo.
Sociedades limítrofes e contemporâneas: de ambos os lados, uma evolução
com o mesmo sentido que põe o acento na hierarquização e na hereditariedade;
mas no percurso e nos resultados desta evolução, diferenças de grau tais que equi
valem quase a diferentes naturezas e revelam, aliás, nos meios em causa, antíte
ses características: é o que acaba de demonstrar o exemplo que, muito brevemen
te, indiquei. Outras oposições, mais simples de entender, quando não de explicar,
resultaram de uma outra forma de divergência: numa dada sociedade, a perma
nência, numa sociedade vizinha, o apagamento de instituições que, originalmen
te, tinham sido comuns às duas. Na época carolíngia, no futuro território da Fran
ça, tal como no que viria a ser a Alemanha, em cada senhorio, a maior parte da
porção reservada aos rendeiros estava dividida em manses (assim se lhes chama
va quase sempre na zona românica) ou Hufen (era este o termo germânico cor
rentemente traduzido em Latim por mansus). Era muito frequente ver-se diversas
famílias de agricultores instaladas no mesmo manse. Este, aos olhos do senhor,
138
HISTÓRIA E HISTORIADORES
já não era uma unidade; sobre o manse, no seu todo. não por fracções, na orla
das tenras ou nas construções de que se compunha, pesavam contribuições e ser
viços: em princípio, nunca estas pequenas células agrárias deviam ter-se frag
mentado. Passemos à França das imediações de 1200. Já quase não se fala de
manse em sítio nenhum no sentido de unidade cadastral (onde a palavra subsiste,
sob as formas romances meix ou mas, é com o significado muito diferente de
casa. de centro da exploração rural) . Os redactores de documentos já não ava
liam a vastidão dos senhorios contando o número de manses que contêm. Os cen
sos. ou listas de contribuições recebidas pelo senhor, já não se contentam, como
outrora. em enumerar os manses; procedem, é certo, com grande pormenor, um
bocado de terra de cada vez ou pelo menos um indivíduo de cada vez. É que já
não há terras de conteúdo fixo. Campo, vinha, redil podem existir inde
pendentemente uns dos outros, divididos por diferentes herdeiros e aquisitores.
Na Alemanha, pelo contrário, a Hufe, que é proibido fragmentar, continua a cons
tituir. na maior parte dos senhorios, a base para a cobrança de rendas ou serviços.
É certo que também acabará por desaparecer, mas lentamente, e muitas vezes
mais de nome do que de facto pois no fim do regime senhorial os senhores ale
mães procurarão manter, por diversos meios, o princípio da indivisibilidade das
terras; esforço, ao que parece, praticamente desconhecido dos seus confrades
franceses. O contraste parece na realidade extremamente antigo, uma vez que o
esboroamento do manse, na parte ocidental do antigo Império franco, está ates-
tado desde o reinado de Carlos, o Calvo . Nem sequer tentarei, aqui, perscru-
tar-lhe as razões mas é de admitir, penso eu, que toda a história rural francesa
ou alemã que passe ao largo da questão despreza um aspecto essencial da sua
missão. Olhando para um apenas dos dois países, a morte do manse aqui, além
a sobrevivência, corre-se o risco de o confundir com um desses fenômenos in
teiramente naturais que nem precisam de explicação. Só a comparação mostra
que há problema. Excelente contributo! Pois nada há de mais perigoso, em cada
ordem de ciências, do que a tentação de achar tudo «natural».
VII
A linguística comparada bem pode hoje propor como uma das suas tarefas
essenciais a distinção dos caracteres originais das diferentes línguas. Nem por
139
MARC BLOCH
isso é menos verdade que o seu esforço primordial começou por se voltar para
um lado muito diferente: para a determinação dos parentescos e das filiações en
tre as línguas, para a busca das línguas mães. A delimitação do grupo indo-eu-
ropeu original, a reconstituição, hipotética, sem dúvida, mas assente em conjec
turas bem estabelecidas, do «indo-europeu» original, nos seus ,traçós
fundamentais, eis alguns dos mais gritantes triunfos de um método inteiramente
baseado na comparação. A história da organização social encontra-se, neste as
pecto, numa situação infinitamente menos favorável. E que uma língua apresenta
uma armadura muito mais una e mais fácil de definir do que qualquer outro sis
tema de instituições, donde a simplicidade do problema das filiações linguísticas.
«Não se encontrou até agora», escreve M. Meillet, «um caso em que tenhamos
sido levados a- pensar que o sistema morfológico de uma determinada língua re
sulta de uma mistura de morfologias de duas línguas distintas. Em todos os casos
-até agora observados, há uma tradição contínua de uma língua», quer esta tradi-
jção seja do «tipo corrente: transmissão da língua dos anciãos para os jovens»,
quer resulte de «uma mudança de língua». Mas suponhamos que, em determina
do momento, se descobrem exemplos deste fenômeno hoje desconhecido: «mis
turas verdadeiras» entre línguas. Nesse dia — continuo a citar M. Meilllet — «a
linguística terá que elaborar métodos novos» . Ora esta temível hipótese da
«mistura» que, a vir a verificar-se em matéria de línguas, traria grande perturba
ção à ciência humana mais justificadamente segura de si, a todo o momento a
história das sociedades a vê impor-se pelos factos. Pouco importa que o Francês
tenha sofrido muito profundamente a influência, no seu vocabulário e talvez tam
bém na sua fonética, das línguas germânicas; nem por isso deixa de resultar da
transformação, involuntária e muitas vezes inconsciente, nos falantes, do Latim
da Gália romana; os descendentes dos Germanos que adoptaram os dialectos ro
mances passaram verdadeiramente de uma língua para outra. Mas à sociedade
francesa da Idade Média, quem ousará considerá-la uma transformação pura e
simples da sociedade galo-romana? A história comparada é capaz de nos revelar
interacções anteriormente desconhecidas entre as sociedades humanas; quanto a
esperar dela que, posta em presença de sociedades até aqui consideradas despro
vidas de laços de parentesco, nos leve a descobrir, nestes grupos, fracções que,
numa data recuada, se separaram de uma sociedade mãe, antes insuspeitada, seria
alimentar uma esperança destinada a sair quase sempre frustrada.
140
' HISTÓRIA E HISTORIADORES
141
MARC BLOCH
142
HISTORIA E HISTORIADORES
Idade Média, por altura do renascimento urbano, é confundir numa mesma visào
dois objectos heterogêneos em quase tudo, salvo o nome: as velhas cidades me-
diterrânicas, centros tradicionais da vida das planícies, oppida habitados perma
nentemente pelos poderosos senhores e «cavaleiros»; as cidades do resto da Fran
ça. povoadas sobretudo por mercadores e recriadas por eles. Em compensação,
este último tipo urbano, com que golpe de tesoura, em tudo arbitrário, poderemos
separá-lo dos tipos análogos da Alemanha renana? O senhorio na França medie
val: o historiador que começou a estudar o norte do Loire, quando folheia textos
do Languedoc, não se sente muitas vezes muito mais perdido do que quando os
seus olhos se voltam para documentos do Hainaut ou mesmo do Mosela?
Em cada aspecto da vida social europeia, nos seus diferentes momentos, te
mos que. se quisermos finalmente sair do artificial, encontrar o quadro geográfico
próprio, determinado, não de fora, mas de dentro. Busca incômoda que exigirá
muita prudência e infinitos tacteios. Recusar ver isso seria confessar a nossa pre-
guiça.
VIII
143
MARC BLOCH
dos fazem, a propósito da sua própria região, não apenas, ainda como quase todos
fazem, a propósito das regiões imediatamente vizinhas, mas também, o que mui
tas vezes é esquecido, no caso de sociedades mais distantes, separadas daquelas
que estudam pelas condições políticas ou pela nacionalidade. Ousarei acrescen
tar: não apenas manuais generalistas mas também, se possível, monografias por
menorizadas, de natureza semelhante às que pretendem elaborar: por via de re
gra, são singularmente mais vivas e mais ricas do que os grandes manuais. Nestas
leituras encontrarão eles os elementos do seu questionário e talvez hipóteses
orientadoras, próprias para conduzir a pesquisa até ao momento em que os pro
gressos do trabalho aconselharem, pelo caminho fora, a rectificaçâo ou o aban
dono. Aprenderão a não ligar uma importância excessiva às pseudo-causas lo
cais; ao mesmo tempo, adquirem uma sensibilidade às diferenças específicas.
Aliás, convidar os eruditos para esta pesquisa preliminar através dos livros
não é propor-lhes um caminho unitário. Não quero ocupar-me em pormenor dos
incômodos materiais. No entanto, não deixemos de recordar que são de monta.
As informações bibliográficas são difíceis de reunir; as próprias obras, de acesso
ainda mais penoso. Uma boa organização do fornecimento internacional pelas bi
bliotecas que fosse mais rápida e extensiva a certos grandes países que até agora
têm guardado ciosamente as suas riquezas faria mais pelo futuro da história com
parada do que muitos conselhos sábios. Mas o principal obstáculo é de ordem
intelectual: vem dos hábitos de trabalho, que sem dúvida não é impossível refor
mar.
O linguista que, entregue especialmente ao estudo de uma língua, sente a ne
cessidade de recolher algumas informações sobre as características gerais de ou
tra língua não encontra, em geral, grandes dificuldades. A gramática que consul
tar apresenta-lhe os factos agrupados segundo uma classificação que não anda
longe da que ele próprio emprega e expõe-nos com a ajuda de fórmulas quase
iguais àquelas de que tem a chave. Mas o historiador tem muito menos sorte!
Bem familiarizado, por exemplo, com a sociedade francesa e desejoso de con
frontar este ou aquele aspecto com o que uma sociedade vizinha, digamos, a so
ciedade alemã, pode oferecer de análogo, folheia algumas obras consagradas a
esta última — nem que seja os manuais mais elementares — e bruscamente crê
penetrar às apalpadelas num mundo novo.
Diferença de língua? Não precisamente, pois nada impede, em princípio, que,
144
HISTÓRIA E HISTORIADORES
de unia língua para a outra, dois vocabulários científicos correspondam quase por
completo. As ciências da natureza dão-nos muitos exemplos dessas concordân
cias. O que é grave é que, da obra alemã para a obra francesa as palavras quase
nunca coincidam. Com traduzir para Francês o Hõrige alemão? Para Alemão o
lenancier francês? Entrevemos diversas traduções possíveis, mas são perífrases
tos dependentes do senhorio para Hõrigen) ou aproximações (Zinleute vale ape
nas para os tenanciers constantes do censo, caso particular de uma noção mais
geral'D e são também, muitas vezes — como acontece com a equivalência que
propus para Hõrigen expressões pouco usuais que os livros não empregam.
Ainda se esta ausência de paralelismo se explicasse por uma fidelidade dema
siado obstinada, guardada por ambos os lados para o emprego das línguas vul
gares medievais, cujas divergências são um facto histórico que temos que acei
tar... Mas longe disso! A maior parte destes termos dissonantes foram os
historiadores que os forjaram ou pelo menos foram eles que definiram e alarga
ram o seu sentido. Elaborámos, com ou sem razão, mais ou menos inconscien
temente. vocabulários técnicos. Cada escola nacional construiu o seu sem se
preocupar com a vizinha. A história europeia tomou-se assim uma verdadeira tor
re de Babei. Daí resultam, para os investigadores inexperientes — e qual o in
vestigador. afinal, que. saindo do seu domínio nacional, não merece este epíteto?
— os mais temíveis perigos. Ao contactar com um trabalhador que estudava, num
país de passado germânico, um terreno comunal explorado por várias aldeias reu
nidas, ou seja, o que as obras alemãs, pelo menos de uma certa data, chamam
QC .
uma Mark , tive grande dificuldade em persuadi-lo de que existiram práticas
análogas e por vezes existem ainda fora da Alemanha, em inúmeros países, no
meadamente em França; com efeito, para esta espécie de terreno, os livros fran
ceses não têm uma palavra específica.
Mas a discordância de vocabulários mais não faz que exprimir uma falta de
harmonia mais profunda. De ambos os lados, quer se trate de estudos franceses,
alemães, italianos, ingleses, quase nunca se colocam as mesmas questões. Citei
atrás um exemplo deste perpétuo mal-entendido, a propósito das transformações
agrárias. Não seria muito difícil mostrar outros igualmente eloquentes: a respeito
da ministérialité, até há pouco tempo absolutamente ignorada, em França e em
Inglaterra, nas descrições da sociedade medieval; a respeito dos direitos de jus
tiça, presentes nos diversos países segundo classificações totalmente diferentes.
145
MARC BLOCH
i 146
HISTÓRIA E HISTORIADORES
Notas
I Este artigo reproduz uma comunicação feita no passado mês de Agosto em Oslo, perante o Con
gresso internacional das ciências históricas (secção história da Idade Média). Fico satisfeito por
poder restabelecer os desenvolvimentos que o tempo muito limitado de que 'dispus me obrigara
a cortar no último momento.
2. Sem ter, nem de longe, a pretensão dc elaborar uma bibliografia completa que aqui não viria a
propósito, citarei a alocução de M. Hcnri Pirenne ao Vo Congresso internacional de ciências
históricas (Compte rendu. p. 17-32), tanto mais significativa quanto nos dá o pensamento de um
historiador que ilustrou uma obra de história nacional, e na própria Revue de synthèse, para além
dos artigos de M. Davillé (t. XXVII, 1913), concebidos num estilo diferente do estudo que se
segue, o de M. Henri Sée (t. XXXVI, 1923; retomado no volume intitulado Science eiphilosophie
de 1’histoire, 10928), bem como as reflexões de M. Henri Berr (t. XXXV. 1923, p. 1 1). Como
tentativas positivas de história comparada, o notá\el artigo de M. Ch.-V. Langlois. «The com
parativo history of England and France during the Middle Ages», English Historical Reviexr,
1900, e, numa outra direcção, algumas páginas luminosas de Vides du Moyen Age, de M. Pirenne.
3. Ver sobretudo A. Meillet. La Mèthode comparative en linguistique historique, 1925, aonde fui
buscar a ideia geral do desenvolvimento sobre as duas formas do método.
4. Moevs des sauvages Américains comparées aux moers des premiers temps, Paris, 1724; sobre a
obra, cf. Giloert Chinard. L 'Amériaue et íe rêve exotique dans Ia littérature française aux XVT
et X V If siècles, 1913. p 315 ss.
5. J. Frazer, The Golden Bough. V ed.. s I. p. 10. O exemplo escolhido por M. Meillet no estudo
cíiado é diferente, é tirado das investigações sobre contos com animais.
6. Mas naturalmente a constatação da «sobrevivência» não basta. Mesmo assim, há que referi-la,
pois o facto interessante e que deve ser explicado é precisamente a permanência do rito ou da
instituição em aparente discordância com a situação nova.
7. O estudo das civilizações primitivas orienta-se hoje, visivelmente, para uma classificação mais
rigorosa das sociedades que compara; não há qualquer razão para que o segundo tipo de método
que tento aqui distinguir não se aplique a estas sociedades como a outras. Por outro lado. é evi
dente que certas vantagens da história comparada, de horizonte restrito, tais como adiante se ex
põem — sugestões de investigação, alertas contra as pseudo-causas locais — pertencem igual
mente a uma outra forma. Os dois aspectos do método têm características comuns; tal não impede
que não devam ser cuidadosamente distinguidos. O estudo da monarquia sacra europeia fornece
um exemplo bem nítido não só da incomparável utilidade como dos limites de etnografia com
parada; esta. a única capaz de nos pôr na via da explicação psicológica do fenômeno, revela-se.
pela experiência, absolutamente inapta para lhe esgotar a realidade; pelo menos, foi o que procurei
demonstrar em Les Rois thauniaturges, nomeadamente p. 53 e 59. *
(8.) A mesma ideia é retomada em Apologie pour Thistoire..., p. 109 e 248.
9. Antecipo no que se segue como farei ainda mais longe, a propósito das teorias de Meitzen
— o resultado de um trabalho sobre os sistemas agrários de que me ocupo há muito tempo e
cujas conclusões foram apresentadas numa outra secção do Congresso.
10. Cap., n° 64, c. 17 (ed. Boretius): «Ut unusquisque suos iuniores ditringat ut melius ac melius
oboediant et eoncentiant mandatis et praeceptis imperialibus.»
11. Décimo segundo concilio de Toledo (681), «a carta do rei Erviges»; Mansi, t. XI, col. 1025.
147
MARC BLOCH
12. Textos reunidos por Sanchcz-Albornoz, «Las behetrias», Anuário de historia dei derecho
espanol, t. 1, 1924, nas notas das páginas 183, 184 e 185. O estudo de M. Sanchez-Albornoz
' dá a mais segura e mais completa exposição do patrocinium visigodo. Note-se,-muito particu
larmente, a passagem do Codex Euricianus, CCCX, que se aplicava originalmente ao buc-
celarius (soldado privado) e reaparece na Lex Recessvindiana, V, 3, 1, com substituição da
palavra buccellario pela expressão mais comprida: ei quem in patrocionio habuerit.
13. Lei de Erviges (680-687) recolhida, Lex Visig. IX, 2, 9, ed. Zeumer, in-4p, p. 378, cf. Sanchez-
Albornoz, loc. cit., p. 194.
14. Maiores et potentiores: Cap. n° 133 (t. I, p. 263, I, 26), Padres; Diplomata Karolin, t. I, n° 217;
Hist. de Languedoc, t. II, pr. Col. 22. Ver E. Cauvet, Etude historique sur Vètablissement des
Espagnols duns la Sptimanie, 1898, e Imbart de La Tour, «Les colonies agricoles et Toccupation
des tcrrcs desertes à fépoque carolingienne», em Questions d 'histo ire sociale et religieuse,
1907.
15. Alimentada de elementos importados, a monarquia carolíngia foi por sua vez imitada. A sua
influência sobre as monarquias anglo-saxónicas parece não ter sido suficientemente estudada.
O útil ensaio de niiss Helen M. Cam, Local government in Francia and England. A comparison
o f the local administration and jurisdiction o f the carolingian Empire with that o f the west
saxon kingdom. 1912, está longe de esgotar o assunto.
16. -Cf. H. Prentout, «Les États provinciaux en France» em Bulletin o f the International Committee
'of histórical Sciences, Julho de 1928 (Scientific reports presented to the sixth international con-
gress o f histórica! Sciences).
17. Alain Chartier, no seu Quadriloge invectif composto em 1422, põe na boca do cavaleiro as
falas seguintes (ed. E. Droz em Les Classiques français du Moyen Âge, p. 30): «E vantagem
que têm os populares que a sua bolsa seja como a cisterna que recebe e recolhe as águas e
pingas de todas as riquezas deste reino... porque a fraqueza das moedas lhes diminuiu o pa
gamento dos deveres e das rendas que nos devem e o ultrajante orgulho que puseram no viver
e nas obras acrescentou-lhes o que todos os dias colhem e juntam.» Creio não ter encontrado
texto mais antigo onde esta constatação seja enunciada com maior clareza Mas valerá a pena
prosseguir a pesquisa. Com efeito — demasiadas vezes o esquecem — o que importa na moeda
não é tanto o momento em que o fenômeno começou a manifestar-se (para determinar este ponto
de partida seria necessário remontar singularmente mais atrás) como aquele em que começou a
ser sentido. Enquanto os senhores não compreenderam que as suas contribuições estavam a
diminuir, evidentemente não procuraram os meios de obviar a essa perda. Ora temos hoje al
gumas boas razões para saber que a desvalorização de uma moeda, cujo valor nominal per
manece estável, escapa facilmente, durante um tempo que pode ser assaz longo, à consciência
dos indivíduos interessados. Uma vez mais, parece que o problema econômico se resolve num
problema psicológico.
18. A necessidade dc estudos comparativos, os únicos capazes de dissipar a miragem das falsas
causas locais, foi excelentemente destacada por M. A. Brun no seu livro, notável a despeito a
algumas insuficiências, Recherches historiques sur Vintroduction du français dans les provinces
du Midi, 1923 (cf. L. Febvre em Revue de synthèse, t. XXXVIII. 1924, p. 37 ss). M. Brun, c
sabido, provou que o Francês só a partir dos meados do século XV começou a conquistar o sul.
Ouçamo-lo explicar as razões pelas quais, resignando-se de antemão a fazer dos documentos
apenas um exame incompleto, se decidiu a estender a sua pesquisa a todo o Midi, em vez dc.
como tantos eruditos o devem ter aconselhado, explorar apenas uma região, mas explorá-la a
148
HISTÓRIA E HISTORIADORES
fundo. «Talvez tivesse sido preferível restringir o problema a uma província e esgotar a massa
documental que ar se oferecesse. Segundo o método estrito, sim, mas na realidade fícávamos
expostos a graves erros de interpretação. Por exemplo, tendo escolhido a Provença e verificado
que o Francês foi ai uma inovação do século XVI, admitir-se-ia sem mais que se tratava de um
facto consecutivo ã união (1481-1486), o que não é incorrecto, mas teríamos percebido que a
causa profunda deste acontecimento foi, não a união em si, mas a circunstância especial de a
união se produzir no séeulo XV, numa viragem da nossa história/ e de a Provença participar
assim numa evolução comum e sincrónica a todos os países meridionais? Uma investigação
localizada terra apelado a uma explicação localizada e as características gerais — as únicas que
importam — do fenômeno teriam escapado» (p. XII). Melhor não se poderia dizer. O resultado
das investigações de M. Brun é. por si só, uma expressiva defesa a favor do método que aqui
defendo.
19. Caracteres génêraux des langu es germaniques, 1917, p. VII.
20. Vülainage m England, 1892. Naturalmente, a literatura é considerável. Na realidade, faltam os
trabalhos de conjunto, mesmo em Inglês (ver no entanto Pollock e Maitland, The History o f
Enghsh Law, 2J ed., t. I, p. 356 ss. V. E 412 ss.), quanto mais em Francês, o que valerá, espero,
de desculpa ao esquematismo necessário da minha exposição.
21. Nova... ou renovada. O escravo, no tempo em que havia escravatura propriamente dita, teve,
evidentemente, nas relações com o seu senhor, outro juiz que não ele próprio. O homem livre
dependia dos tribunais da tribo, do povo ou do rei. Os progressos da jurisdição senhorial —
aliás menos completos em Inglaterra do que no continente —, o desenvolvimento de uma forma
nova de vínculo pessoal e hereditário, qualificada de não livre, haviam esbatido a velha con
cepção e retirado o seu valor jurídico, sem provavelmente a apagar de todo nas consciências.
O renascimento da justiça do Estado fê-la reviver. O direito medieval, ao adaptar as suas con
struções à evolução dos factos, encontra-se assim, por várias vezes, alimentado por um velho
tesouro de representações populares, mais ou menos obscurecidas ao longo dos tempos. Vere
mos adiante (a propósito dos «serviços vis») um exemplo muito flagrante.
22. Há uma outra forma, mais subtil, de falsa semelhança; duas instituições, em duas sociedades
diferentes, parecem visar fins semelhantes; mas a análise mostra que esses fms são na realidade
muito opostos e que as instituições nasceram de necessidades absolutamente antinómicas. E o
que se passa com a herança medieval e o moderna, por um lado, a herança romana, por outro;
o primeiro, «conquista» do «individualismo» sobre o «velho comunismo familiar» — o segundo,
pelo contrário, destinado a favorecer o pater famílias todo-poderoso, saído, por conseguinte,
não de um «desmembramento» mas de uma prodigiosa concentração da família». Fui buscar
este exemplo a um relatório de Durkheim (Année sociologique, t. V, p. 375), um dos nacos de
método mais consumados saídos da sua mão.
23. Havia, aliás, certa ambiguidade nesta expressão: «servitium» era mais vezes tido na linguagem
jurídica inglesa — ou. melhor dizendo, na linguagem jurídica medieval em geral — como
equivalente da contribuição do que de serviço propriamente dito. Fico aqui pelo sentido restrito.
24. Citei alguns documentos, Revue historique du droit, 1928, p. 49-50.
25. Sobre este assunto, cf. o meu artigo em Mélanges d ’histoire du Moveu Age offerts à M. Ferdi-
nand Lot, 1925, p. 55 ss, onde aliás desprezei, erradamente, a aproximação aos factos ingleses.
26. L. IV, c. 11.
27. Cf. Marc Bloch, «Un problèine dTiistoire comparée; la ministérialité en France et en Alle-
magne», Revue historique du droit français et étranger, 1928, nomeadamente p. 86 ss e infra,
149
MARC BLOCH