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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


GRUPO DE ESTUDOS EM FILOSOFIA E LITERATURA

ANAIS
II COLÓQUIO FILOSOFIA E LITERATURA: fronteiras
(ISBN: 978-85-7822-164-5)

(M. C. Escher)

Em homenagem a Benedito Nunes

De 18 a 21 de outubro de 2010
Anfiteatro da Didática V
Campus S. Cristóvão
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

REITOR
Josué Modesto dos Passos Subrinho
VICE-REITOR
Ângelo Roberto Antoniolli
DIRETOR DO CECH
Jonatas Silva Meneses

COMISSÃO ORGANIZADORA
Cícero Cunha Bezerra (DFL/UFS)
Jacqueline Ramos (DLI/UFS)
Maria Roseneide Santana (DLEV/UFS)

COMITÊ CIENTÍFICO:
Prof. M.Sc. Celso Cruz
Prof. Dr. Cícero Bezerra
Prof. Dr. Dominique Marie Philippe G. Boxus
Prof. M.Sc. Fabian Jorge Pineyero
Profa. Dra. Jacqueline Ramos
Prof. Dr. Oliver Tolle
Prof. Dr. Romero Venâncio
Profa. MSc. Roseneide Santana

REALIZAÇÃO:

GeFeLit
Grupo de Estudos em Filosofia e Literatura

PATROCÍNIO:

APOIO:

DLI/UFS
DLE/UFS
DFL/UFS

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

FICHA CATALOGRÁFICA

Colóquio Filosofia e Literatura (2. : 2010 : São Cristóvão, SE).

Anais do 2º Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras, 18 a 21 de outubro,


2010 / organizado por Jacqueline Ramos. – São Cristóvão, SE : UFS , 2011.
234 p.; 29,7 cm.

Evento realizado pelo Grupo de Estudos de Filosofia e Literatura (GeFeLit) da


Universidade Federal de Sergipe com patrocínio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES

ISBN 978-85-7822-164-5

1. Filosofia. 2. Literatura. 3. Crítica Literária. 4. Crítica Filosófica. I. Grupo de


Estudos de Filosofia e Literatura. II. Título.

CDU - 1:82.09

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Sumário

Apresentação ................................................................................... 5

Programação .................................................................................... 7

Palestras (resumo expandido) ...................................................................... 9


A memória como fundamento crítico de leitura do texto literário............................ 10
Prof. Dr. Carlos Japiassu – DLE/UFS

Das epopéias homéricas à República platônica: o lugar do thymós.......................... 13


Profa. Dra. Luciene Lages UFBA

Romantismo e estética do sublime no jovem Benjamin ........................................... 15


Profa. Dra. Sílvia Faustino de Assis Saes – UFBA

Filosofia e arte no Idealismo Alemão ....................................................................... 18


Prof. Dr. Oliver Tolle – DLF/UFS

Mística e poesia: do dito ao inaudito ....................................................................... 20


Prof. dr. Cícero Bezerra – DFL/UFS

Instituições da coisa bélica ...................................................................................... 23


Prof. Dr. Ricardo Martins Valle – UESB

C. S. Pierce e os detetives ........................................................................................ 25


Prof. Dr. Eduardo Menna – DLF/UFS

Discurso e interdiscurso: a tradução da filosofia na literatura e nas artes ............... 28


Prof. Dr. Dominique M. P. G. Boxus – DLE/UFS

Discussões sobre uma “pós-modernidade” em sua relação com o Iluminismo ........ 31


Profa. Dra. Maria Aparecida Antunes de Macedo

Borges: ensaio e conto ............................................................................................. 34


Prof. M.Sc. Fabian Pineyro – DL/UFS

O boné do bufão: comicidade e conhecimento ....................................................... 37


Profa. Dra. Jacqueline Ramos DLI/UFS

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Comunicações (texto completo) ................................................................ 39


Zumbi como personagem conceitual e a favela como heterotopia: fronteiras entre a
literatura de Agualusa e as filosofias de Foucault e .................................................. 40
Prof. Dr. Renato Nogueira dos Santos Junior (UFRRJ)

O conto de Sergio Faraco e o “entre-lugar” do ......................................................... 49


Profa. M.Sc. Andrea Cristiane Kahmann (UFPB)

A diferença e a repetição numa "Viagem ao México ................................................ 67


M. Sc. Angela Mascarenhas Santos (UFBA)

O conceito de devir a partir da filosofia da diferença ............................................... 82


Maicon Barbosa Silva (UFS)
Um jovem retirante na cidade moderna: uma aproximação entre Angústia, de
Graciliano Ramos e o episódio do canto das sereias ..............................................100
M. Sc. Isabela Gonçalves de Menezes (UFS)

Bakhtin e o gênero dialógico em Platão ................................................................ 111


Ana Mércia Barbosa (UFS)

A reconstrução do mito de Medéia em O Anticristo ..............................................118


Carlos André Araújo Menezes (UFS)
Huxley com Marcuse: Admirável Mundo Novo como paisagem fictícia da
emergência do controle político dos indivíduos a partir do uso de substâncias
químicas ..................................................................................................................128
Leomir Cardoso Hilário (UFS)

A mímese nos contos sergipanos ............................................................................143


Fabiana Lisboa Ramos Menezes (UFS)

Os estudos literário-filosóficos e suas possibilidades .............................................152


M.Sc. Leinimar Alves Pires (PUC-Rio)
Impessoalidade e transgressão da intimidade: a condição do homem moderno na obra
O Processo de Fanz Kafka ......................................................................................166
Dr. João Claudio da Conceição & Sueny Silva Lima (PUST)

Cruz e Sousa à luz de Schopenhauer ......................................................................177


José Rafael Santana Valadão (UFS)

O cômico na literatura brasileira .............................................................................190


Profa. Dra. Jacqueline Ramos (UFS)

O cômico moralizante em O juiz de paz da roça de Martins Pena .........................198


Ana Paula Rocha (UFS)

A representação tragicômica na obra Recordações do escrivão Isaías Caminha....210


Cíntia Santana Pimentel (UFS)
“Perdi o jeito de sofrer. Quero alegria! Me dá alegria”: o cômico na poesia de Manuel
Bandeira ..................................................................................................................222
Alberon Machado Menezes

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Apresentação

Fronteira, além de delimitação, se refere também à abertura, ao espaço


indistinto, não é lá nem cá: perspectiva análoga aos que se ocupam das
avizinhadas áreas da Literatura e Filosofia. Ao eleger esse tema para nosso II
Colóquio pretendemos abarcar as variadas abordagens que esse encontro
interdisciplinar possibilita, seja marcando as fronteiras (quando a literatura é
discutida pela filosofia, ou, inversamente, quando o texto literário se propõe a
discutir filosofia; quando a filosofia oferece instrumental teórico para a crítica
literária etc.), seja adentrando-se naquela zona de confluência em que a
distinção das áreas não se sustenta (quando a linguagem literária é convocada
pela filosofia, quando a literatura é filosofia).
É esse o centro de interesse de nosso Grupo de Estudos em Filosofia e
Literatura (GeFeLit), que almeja em seus colóquios promover o espaço de
encontro, de exposição, de debate e de intercâmbio de trabalhos acadêmicos
voltados para essa interface filosofia e literatura. Com esse intuito, abrimos
nesta segunda edição do colóquio inscrições para comunicações que se
enquadrassem na especificidade de nossa linha de atuação. A ampliação do
evento nesta segunda edição foi possível graças ao apoio da Capes que
viabilizou, entre outras coisas, a participação de convidados e de nosso
conferencista.
Neste II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras, rendemos
homenagem ao Prof. Dr. Benedito Nunes, reponsável no Brasil por uma
tradição crítica que privilegia o diálogo entre literatura e filosofia, apontando

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

caminhos metodológicos. Nossa programação contou, então, com uma noite de


trabalhos voltados para a obra do Prof. Benedito Nunes que, impossibilitado de
comparecer ao colóquio, nos honrou com seu texto “Literatura e filosofia: uma
transa”, lido no evento. A mesa em homenagem a Benedito Nunes pôde contar
com dois especialistas na obra do emérito professor: Victor Sales Pinheiro,
responsável pela organização e reedição da obra de Nunes, e Jucimara
Tarricone, que pesquisou em seu doutorado na USP a abordagem crítica de
Nunes.
Momento alto do evento, a conferência de abertura do Prof. Dr. Roberto
Machado (UFRJ), “Deleuze e a Literatura”, trouxe valiosas conclusões de sua
pesquisa, finalista do prêmio Jabuti, confirmando a pertinência e indicando
outras vias de reflexão. As palestras dos convidados e integrantes do GeFeLit
apresentaram uma variedade de trabalhos que revelam a extensa gama de
possibilidades investigativas oriundas das relações entre filosofia e literatura,
confirmando o campo fértil desse encontro interdisciplinar.
Em conformidade com as orientações da comissão científica, estes Anais
pretendem registrar o evento através da edição do resumo expandido das
palestras e do texto completo das comunicações. Para a publicação dos artigos
completos das comunicações seguiu-se a ordem em que foram apresentadas no
evento. Procurando dar maior visibilidade às pesquisas apresentadas pelos
convidados e integrantes do GeFeLit, considerando que tais estudos integrarão
o programa de disciplinas de nossa especialização, optou-se pela publicação na
íntegra das palestras no n. 3 da revista A Palo Seco (www.gefelit.net). Enfim, o
total de 34 trabalhos apresentados entre comunicações, palestras e conferência
conseguiu reunir cerca de 150 interessados entre pesquisadores, profissionais,
estudantes de graduação e pós-graduação de diversas localidades e
universidades.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Programação

Dia 18/10/10 (segunda)

16:00h – Credenciamento
19:00h Abertura do evento
19:15h AGONIA E GOZO: POEMAS DE HILDA HILST
Grupo Atualona
Atores: Paula Auday, Euler Lopes, Sabrina Bavaresco
20:00h DELEUZE E A LITERATURA
Conferência de Abertura
Prof. Dr. Roberto Machado
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
21:30h Coquetel

Dia 19/10/10 (terça)

14:30h Sessão de Comunicações


Coordenador: Prof. Dr. Ricardo Martins Valle (UESB)
19:00h Benedito Nunes, filósofo da literatura
Prof. M.Sc. Victor Sales Pinheiro UERJ
O perfil da linguagem crítica de Benedito Nunes
Profa. Dra. Jucimara Tarricone USP
21:00h “Literatura e Filosofia: uma transa”
Texto de Benedito Nunes
Leitura: Profa. Dra. Silvia Faustino de Assis Saes UFBA

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Dia 20/10/10 (quarta)

14:30h – Sessão de Comunicações


Coordenação: Profa. Dra. Luciene Lages (UFBA)
19:00h Palestras
• A memória como fundamento crítico de leitura do texto literário
Prof. Dr. Carlos Japiassu – DLE/UFS
• Das epopéias homéricas à República platônica: o lugar do thymós
Profa. Dra. Luciene Lages UFBA
• Romantismo e estética do sublime no jovem Benjamin
Profa. Dra. Sílvia Faustino de Assis Saes – UFBA
• Filosofia e arte no Idealismo Alemão
Prof. Dr. Oliver Tolle – DLF/UFS
• Mística e poesia: do dito ao inaudito
Prof. dr. Cícero Bezerra – DFL/UFS

Dia 21/10/10 (quinta)

14:30h – Sessão de Comunicações


Coordenação: Profa. Dra. Jacqueline Ramos (UFS)
19:00h – Palestras
• Instituições da coisa bélica
Prof. Dr. Ricardo Martins Valle – UFVC
• C. S. Pierce e os detetives
Prof. Dr. Eduardo Menna – DLF/UFS
• Discurso e interdiscurso: a tradução da filosofia na literatura e nas artes
Prof. Dr. Dominique M. P. G. Boxus – DLE/UFS
• A escrita de Hilda Hilst: entre o obsceno e o sagrado
Prof. Dr. Romero Venâncio DFL/UFS
• Borges: ensaio e conto
Prof. M.Sc. Fabian Pineyro – DL/UFS

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Palestras
(resumo expandido)

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

A memória como fundamento crítico de leitura


do texto literário

Prof. Dr. Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz∗

Iniciaremos este trabalho com uma assertiva axiomática: se há algo que na


existência do homem pode ser contemplado com a qualidade da permanência,
esse algo é a faculdade da memória. Porém, uma permanência não do que é, e
sim do que passa, do que fica e do que resta na passagem do tempo.

Portanto, atribuiríamos à memória o princípio da unidade e continuidade


do ser, base da personalidade individual (assim como a tradição pode ser
considerada a base da personalidade coletiva), ou seja, o princípio integrador
através do qual o indivíduo se esforçaria em perseverar em seu ser.

A história passada e antepassada de cada um comportar-se-ia como lar-


abrigo, refúgio do ser nos momentos em que o princípio inerentemente oposto
ao do in(divíduo), o da fragmentação do ser, aparece teimosamente com sua
vocação dissociativa.

Não consideramos excessivo frisar que não apontamos para uma


subjetividade inteiriça e transparente, fincada num sujeito idêntico a si mesmo,
pois, como aposta Merleau-Ponty “a subjetividade arrasta seu corpo atrás de
si”. Desta maneira, pretendemos pensar a indivisibilidade do sujeito como
princípio intrinsecamente identitário, mas sempre desfeito e refeito no curso do


Professor Adjunto do Departamento de Letra da Universidade Federal de Sergipe (UFS)

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

tempo. Dito isto, observaríamos que a primeira e talvez mais importante


expressão concernente à memória seja a sensação de proximidade que as
lembranças passadas trazem ao ser. Queremos nos referir ao vital estado íntimo
provido pelo sentimento de pertença a uma história e de contigüidade a um
território.

O filósofo Paul Ricoeur constitui o leitor como sujeito estético (afetivo–


afetado) cujas expectativas catalisadas pelo ato da leitura o levam a um estado
dinâmico de autoconsciência. Dinamismo este que se configuraria na
modificação do horizonte de expectativas do leitor ensejado pela “viagem ao
longo do texto”, no decorrer do qual, segundo Ricoeur, o leitor deve “deixar
soçobrar na memória” as expectativas modificadas. Apresenta-se, assim, a
característica que se poderia dizer intrínseca ao signo ficcional-literário, a saber,
que este, em vez de se esforçar para permanecer “o mesmo significado” dentro
de um contrato semântico, no momento mesmo em que toma vida no
imaginário do sujeito-leitor já se torna outro, flutuando pela corrente das
significações disseminadas. Entendemos, pois, que na recepção literária o
contato com a memória, assim como a percepção presente do que nos rodeia,
faz-se já no primeiro momento da leitura. Não podemos constatar na
repercussão dinâmica do imaginário do leitor, despertado pela “duração do
texto”, uma produção desvinculada de sua imersão memorial. Ou seja, as
concreções figurativas possibilitadas pela abertura do signo narrativo ficcional
serão feitas a partir do repertório das imagens, as quais, por nos pertencerem, já
pertencem ao nosso passado, no momento “demasiadamente humano” do
encontro entre o sujeito-leitor e sua subjetividade.

Sabemos que a marca teórica donde parte a estética da recepção, e que,


segundo Ricoeur, foi Roman Ingarden o primeiro a ressaltar, é a do aspecto
inacabado do texto literário. Este apresentaria “lugares de indeterminação”,
lacunas de significado de “personagens e acontecimentos” os quais, nas
palavras de Ricoeur, o leitor “empenharia em se figurar”. Note-se que ainda nos
encontramos na seara de uma hermenêutica do sentido, na qual o texto literário,
mesmo essencialmente susceptível à completude pelo leitor, mantém o

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

constrangimento de uma persuasão retórica. Obviamente, há diversas


literaturas, e diríamos a respeito de algumas que de tão propositadamente
herméticas o leitor se contentará em concentrar sua energia na decifração dos
jogos textuais de significância simbólica. Porém, em narrativas de apreensão
mais lineares – sem deixar de serem densas –, cujas imagens cunhadas nos
traços escritos são espontaneamente configuradas pela imaginação do leitor,
predispõe-se um segundo momento compreensivo, uma espécie de segunda
leitura, na qual o leitor afetado-modificado distancia-se do constrangimento do
texto em direção a uma interpretação de sua própria textualidade existencial. É
neste segundo momento que se encerraria a leitura fenomenológica proposta;
não uma fenomenologia do ato da leitura, como se este se fizesse de um modo
genérico e impessoal numa coletividade de leitores, mas a fenomenologia da
leitura de uma obra específica, realizada por um particular sujeito-leitor.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Das Epopéias homéricas à República Platônica:

o lugar do thýmos

Profa. Dra. Luciene Lages∗

O thymós é um dos termos que compõem o intrincado universo anímico


do homem homérico. Paralelamente a ele, outros aparecem: psyche, nóos, menos,
hêtor, ker, kradie, prapídes, phrén. Tais vocábulos estão relacionados às
capacidades físicas, intelectuais e psicológicas do homem homérico, mas a
distinção e os limites entre eles não são tão claros. Alguns são categorizados
como partes concretas do corpo humano, outros são incorpóreos. Com relação
à etimologia, thýmos foi relacionado a um grupo de palavras derivadas do
verbo thýo, se lançar com furor, que nos remetem ao sentido de fumée, ‘fumaça’,
‘vapor’, sentido freqüentemente associado ao termo latino fumus, e ao sânscrito
dhumá. Essa relação etimológica foi apontada também por Onians, que
identificou o thýmos como algo que é sempre vaporoso e como um termo usado,
freqüentemente, por Homero para descrever a emoção. Para os gregos
homéricos, thýmos está relacionado ao ‘princípio vital’, ‘a respiração que é a
consciência variável, dinâmica’, que muda conforme mudam os sentimentos e
o pensamento, visto que tanto o sentimento quanto o pensamento afetam a
respiração. Assim, o thýmos, sede da vida afetiva, das paixões, desejos e


Professora Adjunto do Departamento de Letras Clássicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

inclinações, não é um órgão, é uma substância que enche um órgão: os phrénes


(identificados com os pulmões), um órgão físico, relacionado ao intelecto, mas
não ao intelecto dinâmico e emocional representado pelo nóos.
A discussão em torno do tema também se pauta na investigação do
thýmos na República, que aparece como uma das três partes que compõem a
alma, psyche, e é o intermediário entre a razão, nóos, e o desejo, epithýmia. O
thýmos representa a função da alma que é o ânimo ardente, com atribuições
específicas: corajoso, combativo, voluntarioso, colérico. No livro IX, 580d, da
República, Sócrates modela uma imagem, eikos da alma, psyché, que assim como
a cidade, pólis, é composta de três partes: uma parte racional, representada pelo
nóos, relacionada ao filósofo; uma parte apetitiva, representada pela epithýmia,
relacionada ao comerciante; uma parte irracional, representada pela thýmos,
relacionada ao guardião; O thýmos é o intermediário entre a razão e o desejo e,
tanto no que diz respeito à alma, psyché, quanto à cidade, é o guardião, phýlax,
da ordem, a virtude que o corresponde é a coragem, a andréia. A parte do corpo
correspondente ao thúmos é kardía, que representa ‘o posto de sentinela face à
cidadela’, akrópolis, que é a razão. A parte irascível da alma, thýmos, deve se
submeter à racional, nóos, e deve ser uma aliada, a fim de conter a parte
concupiscente ou apetitiva, epithýmia. Na alma platônica, o thýmos deve ser
educado para funcionar como um elemento regulador entre o racional e o
concupiscente, assim como o guardião da cidade deve ser ao mesmo tempo
dócil com os seus e corajoso e combativo para com os estranhos à cidade.
Se retomarmos o fragmento 85 do pré-socrático Heráclito de Éfeso,
percebe-se a advertência: “é difícil lutar (combater) contra o thýmos, o que ele
quer pode custar o preço da alma, psyché”.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

O romantismo: a origem filosófica dos conceitos e

suas expressões literárias

Profa. Dra. Silvia Faustino de Assis Saes∗

Por volta de 1800, formou-se a chamada “Escola Romântica”. Por obra


dos irmãos August e Friedrich Schlegel, a revista Athenäum foi um importante
veículo de expressão do espírito filosófico de Fichte e de Schelling, da saudade
do passado e do senso do fantástico manifestos nos contos de Tieck e
Wackenroder, e da tendência para a noite e para o misticismo poético presentes
nos escritos de Novalis. Em torno desses elementos gravita o primeiro
romantismo, o “romantismo de Iena”, que será o objeto privilegiado de nossas
investigações. Nosso interesse consiste em elucidar as origens e as motivações
filosóficas de certos conceitos centrais ao movimento, conceitos estes que
atuaram como idéias reguladoras da produção literária e filosófica dos
primeiros românticos alemães. Trataremos dos seguintes conceitos: o de
mímesis (recusado, pelos românticos, como princípio poético), o de ironia, o de
engenho (Witz), o de gênio e o de imaginação criadora.

Nos bons dicionários de filosofia, o romantismo aparece ligado a certas


características bastante gerais: a recusa de modelos clássicos construído


Professora Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

segundo regras de proporções e medidas; a predileção pelo incomensurável e


pelo infinito; a aspiração à identificação de contrários e ao rompimento de
limites; a rejeição quanto ao modo de conhecer próprio das ciências naturais e
ao método mecânico-matemático; a valorização da natureza estritamente
concebida segundo as “ciências do espírito”; a substituição do mecânico pelo
orgânico, do atomizado e parcial pelo estrutural e total e da análise pela síntese;
o interesse pela história, em especial, pelos períodos históricos da Idade Média;
o apreço pelo que é velado, misterioso e sugestivo, isto é, pelo está no fundo das
superfícies; a presença do elemento religioso etc.

Muitas dessas características gerais podem ser abordadas no estudo dos


conceitos acima mencionados. A idéia diretriz consiste em identificar as
concepções filosóficas que operam na lapidação daqueles conceitos, pois eles se
encontram bastante interligados. É inevitável que a elucidação de um nos
remeta necessariamente ao esclarecimento do outro, de modo que, nesse
entrelaçamento conceitual, podemos ver se formar uma verdadeira estética
romântica. Por trás da recusa da mímesis, encontramos a valorização da ironia,
do engenho e da imaginação criadora. E, por trás da elucidação da ironia
romântica, reencontramos a figura conceitual do engenho (Witz) e da
imaginação criadora que, por seu turno, nos remete, de novo, às razões da
recusa da mímesis como princípio poético.

Para os românticos, a arte produz verdade e possibilita a abertura para


um conhecimento superior do mundo. Ora, a concepção de que a arte produz
verdade e conhecimento é incompatível com aquela que valoriza a imitação fiel
de uma natureza dada. Nessa medida, o alegado conhecimento superior não
pode se basear numa doação positiva, pronta e acabada de objetos para o
conhecimento científico. Se a arte e a beleza são concebidas como acessos para o
real, esse acesso é de outra natureza e não pressupõe, como estágio, um suposto
acesso científico que estaria em sua origem. O real que se apresenta à
experiência estética do belo e do sublime é distinto daquele real que serve de
pano de fundo à ciência. E na raiz dessa diferença está a função da imaginação

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

concebida como uma faculdade absolutamente produtiva e como uma força


criadora em movimento incessante.

A concepção romântica da imaginação criadora se liga a um problema


herdado da obra de Kant, e cuja solução marcou certas estratégias do primeiro
romantismo: a cisão entre o mundo da natureza e o mundo da liberdade, isto é,
a separação entre a legislação do mundo segundo as operações cognitivas do
intelecto e a legislação da ação humana, segundo os princípios da razão prática.
Kant considerou essa separação como um problema para seu próprio sistema,
tanto que, em certos passos de sua terceira crítica, a Crítica do Juízo, ele sugere
que a experiência estética seria aquela capaz de fazer a mediação entre o mundo
da natureza e o mundo da liberdade. A experiência estética viria, nesse sentido,
reconciliar o dualismo e superar o abismo entre a legalidade da natureza e a
legalidade da liberdade. Os românticos buscam realizar a expectativa kantiana
quanto a esse poder conferido à experiência estética.

De Fichte, os românticos herdam o conceito de intuição intelectual,


entendida como um conhecimento imediato por meio do qual o eu tem
consciência de si mesmo como ser pensante. Trata-se de um saber reflexivo que
é também um agir, um ato que também é fato, uma ação puramente intuitiva.
Combinando essa concepção fichteana de intuição intelectual com a noção
kantiana de imaginação transcendental, os românticos tomam a intuição
intelectual como uma faculdade eminentemente estética, ligada à imaginação
produtiva e criadora. Ora, Kant considerava que os humanos são capazes
somente de uma intuição sensível, embora tivesse falado num livre jogo da
imaginação com as demais faculdades subjetivas. Compreender a maneira
inusitada com que os românticos combinaram certas teses do idealismo alemão
nos conduz a um melhor entendimento dos conceitos que animaram a sua
estética, e nos auxiliam nas análises e interpretações de suas obras poéticas.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Filosofia e arte no Idealismo Alemão

Prof. Dr. Oliver Tolle∗

O propósito do presente trabalho é mostrar, a título de apresentação à


disciplina do curso de especialização em Filosofia e Literatura da UFS, como
estão articuladas a filosofia e a literatura em dois autores: o jovem Herder e o
Hegel da maturidade. De certo modo, eles são dois extremos na história da
filosofia da arte alemã do assim chamado Idealismo Alemão. 1. Para o primeiro,
a arte é a expressão mais elevada do conhecimento humano; para o segundo, a
arte é apenas o primeiro estágio do desenvolvimento do espírito. Contudo,
esses dois autores, nos momentos mencionados de suas vidas, têm em comum a
adesão ao que hoje se chama comumente de autonomia da obra de arte. Ou seja,
eles consideram que a arte, quando cumpre adequadamente com a sua função,
produz um conhecimento claro a partir de um suporte material ou sensível. A
obra de arte fala diretamente ao espírito humano por meio dos seus órgãos dos
sentidos. Para eles, a arte portanto não é o lugar da especulação racional, mas
da experiência sensível direta da concretude do mundo e da efetividade. 2.
Duas obras literárias de Goethe, o romance Os sofrimentos do jovem Werther e o
drama Fausto, servirão de apóio para a nossa investigação. Exemplar do
movimento Tempestade e Ímpeto, o Werther é um exemplo da exigência do
retorno à sensibilidade que caracteriza o pensamento do jovem Herder. O
Fausto, ao contrário, pode ser lido como o embate entre uma razão que fracassa
em sua tentativa de domínio sobre a realidade. 3. Por fim, será feita menção a


Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

alguns momentos da recepção da filosofia da arte do Idealismo Alemão,


particularmente na obra de Dilthey e Croce.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Mística e poesia: do dito ao inaudito

Prof. Dr. Cicero Cunha Bezerra∗

Falar sobre mística não é tarefa fácil. Sobre poesia, menos ainda. Não
porque não se possa falar sobre mística, ou poesia, mas exatamente porque se
fala muito sobre ambas. De modo que esta minha intervenção já começa
marcada por um desconforto, a saber, evitar cair no falatório vazio onde tudo
cabe, assim como, no radicalismo filológico que inviabiliza determinadas
formas comuns de “experiências” mediante a distinção terminológica ou
conceitual empregada por aqueles que as descrevem. Um caminho que me
parece viável diante destes dois riscos consiste em demarcar nosso objeto de
análise o que, para mim, significa manter-se em uma “tradição”, isto é,
restringir-se a um modo específico de pensar, tanto na forma quanto no
conteúdo, em uma vivência classificada como “experiencial”, em que a filosofia
e a literatura, compartilham de uma mesma tarefa, a saber: revelar, mediante
metáforas e alegorias, a existência de uma ordem do mundo que não se deixa
abarcar, precisamente, por nenhuma inteligibilidade. Neste sentido, teríamos
que repensar inclusive a idéia mesma de “ordem”. Tarefa que, ao contrário de
conduzir a uma distinção dicotômica entre os âmbitos da natureza (imanência)
e da sua totalidade (transcendência), permite uma compreensão em que o
místico, mais que mistério, é a constatação de que os fatos do mundo não são tudo.


Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Na verdade, isto é uma característica marcante na tradição neoplatônica:


a poesia ganhar estatuto de representação daquilo que supera toda
representação. Contra a crítica platônica à mimesis e ao poeta, como imitador de
“sombras”, Plotino, e depois Proclo, reabilitaram a literatura e o papel do poeta.
Para ambos o poeta deveria ser compreendido como entheatikós (inspirado). O
poeta, não só ganha um novo valor, mas, para Proclo, o próprio Platão depende
dele. Na ótica neoplatônica o texto literário, em sua forma e conteúdo, expõe a
tarefa tanto do poeta, quanto do filósofo, qual seja: expressar a unidade que se
faz diversa em suas múltiplas manifestações.

As imagens, as cenas, as falas, os personagens, tudo faz parte de um só


propósito: conduzir o homem a uma experiência transcendente-imanente “da”
e “na” própria linguagem. O que isto que dizer? Quando digo que mística
implica em uma transcendência-imanente “da” linguagem, quero apontar para
o fato de que, para a tradição neoplatônica, no seio do dizer reside uma negação
que é constitutiva do ato de nomeação das coisas, no entanto, é precisamente na
negação que a linguagem ganha sentido.

Dito de outro modo, a linguagem, para os místicos, é uma ferramenta,


um exercício em que o limite do dizer implica, necessariamente, na sua
transgressão. Nesta perspectiva, a poesia, mais que expressão de certo
sentimentalismo, é revelação da ordem constitutiva das coisas. Uma revelação
que embora comprometida com a verdade, não se reduz ao objetivismo próprio
da ciência ou da filosofia que buscam dizer a realidade em sua essência. O
poeta, enquanto mistagógico é responsável pelo dizer, mas também, pela
criação ou recriação de sentidos.

Longe de uma tradição reducionista do papel do poeta ou do filósofo, o


neoplatonismo assume o pensamento como uma experiência viva em que a
tradição, mais que autoridade, é o solo propício para a manifestação do ser em
seu constante devir. Sendo assim, dialogar com Platão ou Aristóteles é buscar
encontrar aquilo que os fazem interpretes comuns do real. Na longa história
que demarca o Neoplatonismo (pagão e cristão), muitas são as vertentes e

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

variedades interpretativas sobre os critérios ou os meios próprios para pensar o


real, mas o que está aqui em jogo é a possibilidade de, pese as distinções
conceituais empregadas ao longo da história, expor uma concepção comum que
tem sua origem na análise interpretativa que Plotino realiza dos diálogos de
Platão e que se radicalizou com a estrutura hierárquica do universo inteligível e
sensível realizada por Proclo culminando na tradição cristã medieval sob o
signo da teologia negativa.

Dionísio o Pseudo Areopagita foi, inegavelmente, o arauto cristão mais


neoplatônico que o Ocidente tomou contato. Através da sua Teologia mística e o
caráter negativo da linguagem, o Medievo e o Renascimento mantiveram sob
novas perspectivas, a filosofia e a poesia como “guardiãs” do Ser. O objetivo,
portanto, deste trabalho é estabelecer um espaço comum entre a filosofia e a
poesia dentro da tradição neoplatônica discutindo, à luz do pensamento
procleano, a separação entre sensível e inteligível e buscando fundamentar, na e
pela poesia, uma nova forma de pensar o conhecimento e vida sob a ótica da
criação filosófico-poética.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Instituições da coisa bélica

Prof. Dr. Ricardo Martins Valle∗

Proponho falar das "Instituições da coisa bélica" a partir da leitura de


alguns gêneros de poesia integrados em práticas letradas constituídas nos três
séculos de colonização. Especificamente, trato dos gêneros poéticos que tiveram
como matéria as res gestae virorum illustrorum, isto é, os feitos famosos dos
homens ilustres.

Esta fala supõe entender que poesia e outros gêneros de discurso feitos
nos séculos da expansão marítima da Cristandade da Europa ocidental
integraram formas de representação institucional de Estados cristãos na
conquista bélica dos diversos Novos e Velhos Mundos. Conforme tem pensado
João Adolfo Hansen, as práticas de representação que estão supostas nos usos da
poesia, da história, da oratória sacra, da epistolografia, dos livros de doutrina
de toda espécie, fazem dessas formas discursivas elas mesmas também práticas
de representação institucional, como num teatro corporativista que encena os
lugares do poder, os decoros de cada estado segundo sua natureza e
merecimento, e assim por diante. As instituições da coisa bélica, conforme
pensadas aqui, fixam, assim, práticas isto é, usos, costumes, mores, ethé ,
segundo ordens, condições, estamentos, disciplinas que produzem distinções,
as quais hierarquizam os postos do Estado segundo os modelos militares das
Cavalarias. Antigos direitos, recopilados em novos códigos, formalizavam
práticas políticas diversas conforme as diversidades entre os usos das nações da
Cristandade. A implantação de rituais de convívio que se constituíram nos


Professor Adjunto do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

domínios de Portugal e Espanha, por exemplo, supunha signos que ostentavam


direitos alegados e fundamentados em traditiones jurisprudenciais de Estados
que subordinavam uns aos outros os círculos exclusivos de sociedades de corte,
como chamou Norbert Elias as formas de sociabilidade, as escalas de valor, as
práticas de representação, que foram características dos Estados cristãos
durante a assim chamada Idade Moderna, antes de eclodirem as Revoluções
Americana e Francesa, e seus desdobramentos políticos em todo o mundo.

A metafísica teológica de doutrinadores católicos reformados pelo


Concílio de Trento, a lógica aristotélica da escolástica jesuítica em atividade
escolar por todo o mundo, a jurisprudência civil e canônica que dispõem as leis
dos reinos cristãos constituíram as articulações de doutrina que legitimavam
aquela "arquitetura do poder", ou melhor, aquelas "redes de força", articulando
centros de exercício exclusivo de poder a outros e outros centros similares por
meio de representações institucionais regradas e que se perfaziam na cena
institucional passada em papel para alegar méritos e legar direitos.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Peirce e o método dos detetives

Prof. Dr. Sergio Hugo Menna∗

O objetivo deste trabalho é expor as principais características da


metodologia da indagação de Peirce, e destacar sua importância nos estudos
sobre a criatividade em geral e sobre a estrutura do romance policial em
particular.
Acho que o tema deste trabalho – Peirce e o método dos detetives– é um
bom exemplo de relação entre filosofia e literatura. Antes de começar a falar
desta relação, gostaria de apresentar as pessoas (e personagens) sobre as quais
falarei: Peirce e os detetives.
Charles Sanders Peirce (1839-1914) foi um pensador da segunda metade
do século XIX. Foi cientista, lingüista, filósofo e escritor, e detetive em suas
horas vagas.
Deixou uma obra enorme que ainda está sendo descoberta. Não foi
muito conhecido por seus contemporâneos, mas nas últimas décadas vem
sendo reconhecido como um dos grandes filósofos do século XIX.
A relação de Peirce com as letras se baseia em dois pontos centrais: por
um lado, em suas contribuições à semiótica – ele é considerado o fundador da
teoria moderna dos signos. Por outro, em seu método de indagação,
denominado ‘abdutivo’, ‘retrodutivo’ ou ‘explicativo’. Este método, no contexto
dos estudos literários, pode ser utilizado para analisar as estratégias dos
detetives, e avaliar se essas estratégias são boas ou não.


Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Os detetives aos que se refere o título são alguns dos grandes nomes da
literatura policial: Zadig, o personagem do romance Zadig, escrita por Voltaire
em 1747; Auguste Dupin, o detetive amador de Edgard Allan Poe; o Padre
Brown, o sacerdote pesquisador de Chesterton; Isidro Parodi, “o sentenciado da
cela 273” de Bustos Domecq (J. L. Borges e A. Bioy Casares) que resolve seus
casos de dentro da prisão; Ghillerme de Baskerville, o detetive medieval de
Umberto Eco, e tantos outros. E, é claro, Sherlock Holmes, o imortal detetive de
Sir Artur Conan Doyle.

Peirce e a abdução
O que é o método abdutivo de Peirce? Basicamente, um procedimento
que possibilita avaliar as respostas iniciais ou as primeiras soluções que temos
para um problema.
Quando temos um problema –científico, filosófico, no dia-a-dia–
geralmente pensamos em algumas tentativas de solução. O que fez Peirce foi
identificar critérios não empíricos – por exemplo, simplicidade, coerência,
precisão, analogia etc. –, e articulá-los num esquema que permite avaliar qual
destas tentativas de solução tem mais possibilidades de sucesso.
Pense na seguinte situação, que é freqüente na vida universitária: você
tem que escrever um artigo ou uma Tese. Esse é de fato, no contexto acadêmico,
um grande problema. Diante dessa situação, você tenta pensar em algum tema
ou idéia sobre o qual trabalhar. A dificuldade é que você só saberá se essa idéia
era efetivamente boa depois de um tempo considerável de trabalho; isto é,
depois de desenvolver a pesquisa. Nestes casos, o que faz a abdução (AD) é
tentar identificar, antes de desenvolver a pesquisa, se a idéia pode ser boa.
Atenção: a AD não garante que essa resposta será verdadeira ou –
melhor – se ela terá sucesso: você só terá essa informação quando aplicá-la na
prática. A AD indica com que resposta é conveniente começar a trabalhar.
O que a AD faz, em termos técnicos, é indicar se uma idéia é “plausível”.
Quando os cientistas chegam a um consenso a respeito de que uma hipótese é
‘prometedora’, ou quando os integrantes da comissão avaliadora de uma

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

entidade de apoio à pesquisa decidem outorgar um subsídio a um projeto que


consideram ‘viável’, o que estão fazendo, consciente ou inconscientemente, é
aplicando critérios abdutivos.

A abdução e os detetives
O motivo de toda esta explicação é que os detetives, assim como os
cientistas, os filósofos e todos nós quando resolvemos problemas, também
pensam abdutivamente.
Sim, você leu bem: o raciocínio dos detetives – diferentemente do que
acreditávamos – não é dedutivo, mas abdutivo. Sherlock Holmes, como todo
sabemos, em suas obras repete sistematicamente que seu trabalho é “simples
dedução”. Mas, em sentido estrito, seu trabalho é exatamente o oposto:
“simples abdução”.
O sentido da dedução é do geral ao particular, da causa ao efeito. Se eu
sei que todas as bolas de uma caixa são amarelas, posso deduzir que se tirar uma
bola dela, essa bola será amarela.
A abdução segue o caminho oposto do da dedução. Vai do efeito à causa.
(De fato, outro nome da abdução é ‘retro-dução’, que quer dizer ‘dedução
inversa’). A abdução procura, por exemplo, conjeturar de que caixa provém
uma bola amarela, sem saber qual a cor das bolas das caixas disponíveis.
É exatamente o que acontece na situação clássica dos relatos policiais. Há
um assassinato e o detetive tem que procurar o assassino. Mas para isso só
conta com indícios. Ele não conhece a causa – o assassino –; só conhece alguns
efeitos: ‘sangue’, ‘pegadas’, ‘impressões digitais’, ‘motivações’. Quando
Sherlock Holmes infere que o mordomo é o assassino, faz isso porque entende
que a hipótese “o mordomo é o assassino” é a que melhor explica a presença de
sangue nas mãos do mordomo, as impressões digitais do mordomo no punhal
que está no peito da pessoa assassinada etc.

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Discurso e interdiscurso: a tradução da filosofia

na literatura e nas artes.

Prof. Dr. Dominique M. P. G. Boxus (DLE/UFS)∗

Meus estudos focam fenômenos de migração/tradução, especificamente


na literatura e no cinema. A leitura de ensaios sobre tradução (George Steiner;
Antoine Berman; Pascale Casanova; Inês Oseki-Dépré) me leva a entender a
existência de uma filosofia da tradução, ou seja, de uma reflexão teórica
totalizante, uma tradutologia no sentido amplo, situada além do sentido de
passar um texto de uma língua-mãe para uma língua-alvo: tradução
envolvendo mitos e saberes legados pela tradição. Essa visão ampliada da
tradução evidencia diversos tipos de transferência semântica e formal no
âmbito tanto verbal (palavras) quanto semiótico (imagens): o mito de Orfeu foi
assim traduzido pelo francês Jean Cocteau (através do teatro e de uma trilogia
cinematográfica) e pelo brasileiro Vinícius de Moraes (com a peça Orfeu da
Conceição e o filme Orfeu Negro). Da leitura desses ensaios de tradutologia,
destaco os tópicos que mais remetem às minhas pesquisas. 1. O fato de que cada
língua, literatura e cultura humana erige do mundo um mapa diferente. 2. A
importância da tradução para as coletividades nacionais confinadas, as culturas
dominadas que importam mais as literaturas e culturas estrangeiras, seus mitos
e símbolos, do que exportam os seus: eis aqui uma estratégia típica das
coletividades nacionais minoritárias. 3. Nossa época está mergulhada no


Professor Adjunto do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

mundo da tradução, em um mundo que é a tradução de outros mundos. Mais


do que nunca se vive na intercultura. 4. As linguagens simbólicas, quer dizer, a
literatura e as artes, teriam um poder de tradução multiplicado. Por prova,
pensemos na importância da Grécia e da civilização hebraica para a
tradição/tradução ocidental. 5. A História é tradução e exerce um papel
fundamental para a existência das culturas; o passado histórico é a organização
narrativa das lembranças e cada cultura tem seu modo específico de estilizar
sua paisagem-passagem histórica.
O brasileiro Haroldo de Campos (1982) viabiliza a idéia (e a realidade) de
uma tradução-transcriação-transluciferação, associada à de um tradutor-
usurpador-translucífero: entenda-se aqui o apagamento do texto original, que
serve a tradução; esta vem a ocupar o lugar de destaque. No mesmo espírito, o
lingüista e historiador da literatura Dominique Maingueneau, ao descrever os
fenômenos da intertextualidade, parte do postulado de que “o interdiscurso
precede o discurso”: práticas tradutórias precedem e geram a criação.
Portanto, no que diz respeito à tradução da filosofia na literatura e nas
artes, evidencio a perspectiva do trans (presente na etimologia da palavra
traduzir), quer dizer, de uma transformação, re-criação e criação no sentido
pleno, o fazer do tradutor ocupando o primeiro plano. A literatura e as artes
filosofam de modo genuíno, no âmbito da teoria como da criação. É oportuno
lembrar “A aula” (1977) de Roland Barthes, na qual ele apresenta a literatura
como um contra-poder, uma força transgressiva. O uso comum da língua é
sinônimo de moralismo, servilismo e dominação: expressão de autoridades e
grupos hegemônicos, ele é arrogância de quem toma a palavra, e submissão ou
alienação de quem a recebe. Todo uso comum da língua é fascismo. Onde está a
liberdade, então? Na literatura, cujo uso da língua opera desvios e oferece
possibilidades de esquiva: a língua literária encontra meios para combater o
fascismo da língua comum. Barthes acrescenta: a literatura é mímesis, quer
dizer, categoricamente realista; todas as ciências são convocadas pelo
monumento literário: no romance “Robinson Crusoé”, muitos saberes se
entrecruzam, histórico, geográfico, antropológico, técnico, botânico, político,

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

colonial, social e filosófico. Nesse esplendor de uma revolução permanente da


língua, aí estão a originalidade e a liberdade da literatura. E nessa capacidade
de atravessar ou romper fronteiras pelo uso livre da linguagem, ao traduzir
outros saberes, mitos ou figuras, incluo as artes em geral.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Discussões sobre uma “pós-modernidade” em

sua relação com o Iluminismo

Profa. Dra. Maria Aparecida Antunes de Macedo∗

Devido ao debate da comunidade acadêmica e artística quanto à


pertinência e ao emprego do termo pós-modernidade, acreditamos vir a
propósito uma explanação sobre o dissenso aí instalado e que confirma seu
traço mais característico, que é sua natureza “dissensual”. Isto porque, sejam
aqueles que a defendem, ou então os que se posicionam contrários ao seu termo
e mesmo à sua existência, esbarram na ausência de uma teoria unificadora, que
consiga englobar, a partir de visões múltiplas e divergentes, sua pluralidade
centrífuga de aspectos e manifestações – ausência, como já dissemos, inerente à
pós-modernidade.
Os críticos, amparados por visões próprias da modernidade, irão
questionar a sua pertinência (se essa pós-modernidade existiria ou não
realmente), a sua extensão, a sua marcação como um novo período histórico, ou
tão somente constatando uma configuração de um estilo artístico – a pura
estilização efetuada pela cultura oriunda do capitalismo tardio – ou ainda
deflagrando-a como um novo modo de cultura e organização social. De
maneira geral, tais indagações têm em seu centro uma discussão sobre o prefixo
“pós” relacionando-o constantemente com a idéia propulsora da modernidade
– a noção da ruptura. Os críticos, prosseguindo esta, colocam a questão sobre a


Professora Adjunto do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

existência ou não, entre a modernidade e uma pós-modernidade, de uma


ruptura, ou tão somente uma vontade de afastamento desse período. Outros,
menos preocupados com essa noção, levantam a questão de essa pós-
modernidade ser ou não uma modernidade levada ao seu extremo, ou sua
ramificação, prolongamento ou intensificação, ou então sua revisão crítica –
revisão já com o distanciamento necessário dos pressupostos da modernidade.
De qualquer forma, a relação com a modernidade estará norteando os
estudiosos, seja na defesa, na crítica ou na simples constatação da existência de
uma pós-modernidade.
Nossa intenção é, antes, abordar algumas posições críticas sobre a pós-
modernidade em seu aspecto relacional com a modernidade para, em seguida,
ilustrar posições distintas de dois pensadores, que são Jürgen Habermas e Jean-
François Lyotard. Detemo-nos nestes críticos em razão tanto das constantes
referências em torno deles, por grande parte dos estudiosos da pós-
modernidade, como também pela representatividade de duas posturas
antagônicas em relação ao próprio Iluminismo – movimento filosófico-literário
iniciador da modernidade – e em seu prolongamento, ou final, no século XX. De
acordo com o pensador alemão, em períodos obscuros do século XX, como a II
Guerra Mundial, não teria havia senão uma interrupção, suspensão dos ideais
iluministas. Já segundo Lyotard, esse mesmo período traumático da história
balizou o final desses mesmos ideais, implodindo-os, devido a sua
instrumentalização para fins irracionais, contrários às Luzes.
Quanto ao ponto convergente entre ambos, no âmbito ainda da herança
iluminista, os dois críticos dirigem-se ao conceito de razão instalado no
Iluminismo e à crítica que ele passa a ser alvo, apontando Friedrich Nietzsche,
em sua desconstrução, que se inicia na primeira metade do século XX, com
prolongamento até o final deste mesmo século e cujos traços críticos podem se
reunir sob a égide da pós-modernidade.
Assim, pretendemos repensar a crítica da pós-modernidade em uma
visão implicada com o Iluminismo, ora apontando-o em seu aspecto libertário e
esclarecedor, ora repensando-o em termos de universalidade dirigida ao

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

totalitarismo e hegemonia de razões fabricadas pelo poder instalado. Uma visão


sobre o Iluminismo, preocupada em ressaltá-lo como conhecimento a serviço da
emancipação dos homens, resulta na defesa de um prolongamento da
modernidade, mas com as necessárias revisões. Críticos que destacam esse
aspecto são contrários a uma mudança ou ruptura capaz de instalar uma pós-
modernidade. Este é o caso de Jürgen Habermas. Outros pensadores que
acentuam, no projeto de Iluminismo, o conhecimento como instrumento de
domínio dos homens, são geralmente favoráveis a uma crítica mais aguda do
legado iluminista e demandam a instalação da pós-modernidade para este fim.
É o caso de Gianni Vattimo.
Porém, o que se observa nesta crítica à herança iluminista é geralmente a
simples constatação de formas negativas de existência, que vai desde a
constatação de uma condição pós-moderna até uma pós-modernidade somente
como reescrita da modernidade. De maneira geral, são teóricos que tentam se
afastar de possíveis parcialidades da crítica, e cuidam em apagar de seus
escritos qualquer traço de “manifesto” iniciador de movimentos, de escolas
artísticas. Nesta linhagem podemos citar Lyotard, entrevista na sequência dos
textos que vai desde A condição pós-moderna até Reécrire la modernité.
Assim, mais do que uma periodização histórica, ao se penetrar no
movimento centrífugo da pós-modernidade, deparamos com visões e tomadas
de posição sobre o legado iluminista: seja na defesa de seu prolongamento,
negando um período para além da modernidade, seja na sua crítica, afastando-
se da modernidade, e dirigindo-se a uma pós-modernidade.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Realidade e ficção e ensaio e conto

Prof. M.Sc. Fabian Piñeyro∗

Borges viola as regras do ensaio, valendo-se de dados falsos, sem


referências reais, e discute em seus contos argumentos metafísicos. Oferece
ficção onde deveríamos esperar ciência e envia árduas questões metafísicas
donde normalmente vêm peripécias e fantasia.
Nesse cruzamento de gêneros, além de questionar as formas de uma
tradição que tem um lugar estabelecido para o científico e outro para a ficção,
ele contrabandeia a seguinte tese: as intuições da metafísica e a fruição estética
não podem traduzir-se para a linguagem objetiva, científica, racional-ocidental,
devido a que nossa forma de objetivar deve tanto à memória, campo de
funcionamento da razão, quanto ao esquecimento.
Este artigo aborda a maneira como Borges estabelece o cruzamento entre
o conto e o ensaio e acompanha a tese antes mencionada ao longo de três textos.
Desta forma, mostra que a idéia da estética e da metafísica como disciplinas que
se encontram além da razão, sem ser por isso inatingíveis, pode levar
logicamente ao experimento formal de filosofar desde o conto ou ficcionalizar
desde o ensaio. Sendo assim, forma e conteúdo chegariam a uma fusão muito
satisfatória devido a que ambas participariam de uma crítica da razão ocidental.


Professor assistente substituto do Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal de
Sergipe (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Em “Examen de la Obra de Herbert Quain” (BORGES, Ficciones, 1974),


escrito na forma de ensaio, tudo parece verdadeiro, aparecem críticos, aparecem
Freud e Wilde, mas Herbert Quain é falso; ou seja, o ensaio pode ser conto.
A ficção “Funes, el memorioso” (BORGES, Ficciones, 1974), entretanto,
contem a seguinte reflexão: se para formar a idéia de cachorro preciso esquecer
um monte de detalhes que diferenciam exemplares de raça diferente, e se esta é
uma lei da formação das idéias, que podemos esperar da razão quando se
aventura em terrenos mais árduos que o da simples intuição, como são a
estética e a metafísica?
A resposta a esta questão está em “La Muralla y los Libros e Historia de
la Eternidad” (BORGES, Ficciones, 1974) onde Borges apresenta a fruição estética
e as idéias metafísicas como intuições que não podem expressar-se com
palavras.
No primeiro dos trabalhos, ele afirma que a experiência estética é, tal vez,
uma mensagem que pode partir de um campo que excede o das artes, pois pode
ter como fonte um crepúsculo ou uma cara “trabajada por el tiempo”, e que essa
mensagem nunca é captada por completo; inclusive, pode até ser que ela nem
seja emitida pela fonte da qual parece provir, com o qual poderia também partir
de dentro de nós.
A estética seria, portanto, uma experiência almejada pelas artes, mas que
se manifesta além destas, e que requer para sua apreensão de muitas mais
ferramentas das que nos oferece a racionalidade típica, sendo, portanto,
irredutível à palavra.
No segundo trabalho, onde se respeitam as leis do ensaio, vemos que
outro tanto acontece com idéias da metafísica: notadamente, a Eternidade. Para
compreender a Eternidade devemos decidir a questão de tempo, que é nossa
única perspectiva. Como reduzir a imutável Eternidade a um modo de pensar
que se subordina a um tempo que escapa é a questão. A única possibilidade de
entender a Eternidade, para Borges, é a intuição extática. Intuição que, como a
estética, não pode ser fielmente transladada para uma língua.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Temos então que se a linguagem com que objetivamos o mundo permite


expressar idéias que são tributárias do esquecimento, essas ferramentas da
razão seriam insuficientes para a abordagem de questões que envolvem não já o
conceito de cachorro ou triângulo senão idéias tão fantasmais quanto a fruição
estética ou o além da dimensão temporal, deixando às claras os limites do
conhecimento a partir da razão ocidental.
Coerentemente, no nosso entender, propõe, para expressar estas idéias
escorregadias, trabalhar numa região onde a forma canônica da ciência e a
forma canônica da ficção se confundam.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

O boné do bufão: comicidade e conhecimento

Profa. Dra. Jacqueline Ramos∗

Em sua última obra publicada em vida, Tutaméia (1967), Guimarães Rosa


dedica todo o primeiro prefácio, “Aletria e Hermeneutica”, ao debate e à defesa
do conhecimento proporcionado pelo cômico. Para os leitores de Rosa isso
causa certo estranhamento, já que ele não havia prefaciado nenhuma de suas
obras anteriores e tampouco é consagrado no gênero cômico. Aliás, esse é
apenas um dos inúmeros estranhamentos da obra. Título e subtítulo já se
apresentam como enigmas; igualmente a presença de dois índices, um na
abertura da obra, outro ao final (repropondo a leitura em nova montagem),
ambos encabeçados por epígrafes de Schopenhaeur que discorrem acerca da
leitura; há quatro prefácios, dispostos de forma transgressora, aparecem
intercalados em meio às estórias; há, ainda, listas de frases, glossários, um
inesperado jogo de epígrafes, notas etc. Esse acúmulo de estranhamentos talvez
explique certo silêncio da crítica em relação a essa obra.

É também bastante peculiar o recorte do cômico que Rosa propõe em


“Aletria e Hermenêutica” onde discorre sobre a natureza da anedota,
posicionando-se em relação à tradição ao reclamar uma nova função para o
cômico: o de dar acesso a “novos sistemas de pensamento”. Para tanto, propõe
um cômico desvinculado do riso, justamente o efeito da comicidade à qual
Bergson, em seu Ensaio sobre a significação do cômico, atribui função repressora.


Professora Adjunto do Departamento de Letras de Itabaiana (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Ao neutralizar o efeito repressor do riso, abre-se caminho para outros


usos, outras funções da comicidade. Assim, a estrutura da anedota,
desvinculada de sua função de causar o riso e de exercer censura, é proposta
como ingrediente para o descondicionamento do modo de ver e pensar a
realidade, cujo efeito seria o da revelação. Aproxima-se, assim, das
considerações de Freud, para quem o cômico proporcionaria um “desconcerto e
esclarecimento”, além de dar acesso a conteúdos reprimidos.

Um cômico destituído do riso e que pode levar ao “leite que a vaca não
prometeu”, por isso “não é o chiste rasa coisa ordinária”. Ao enfatizar o valor do
cômico, Rosa está se contrapondo às concepções que o caracterizam como “não
sério”. Os estudos historiográficos mostram que, a partir da Idade Média, o
cômico passa a sofrer todo um processo de marginalização: foi considerado
gênero menor, ligado ao prosaico; acusado de imoral; associado ao obsceno, ao
pecaminoso, à brincadeira, ao vulgar. Ao reclamar o cômico como modo de
acessar o transcendente, a “realidade superior”, Rosa coloca-se radicalmente
contra essa concepção negativa do cômico. Visão negativa que perdura ainda em
Kant, para quem o riso seria resposta corporal à impossibilidade do pensamento
e que surgiria da “repentina transformação de uma expectativa em nada”. Esse
processo que leva ao nada, e que marca a desconsideração do filósofo em relação
ao cômico, é uma das funções mais valorizadas e perseguidas por Rosa no uso
da comicidade. Dentre as várias anedotas estudadas no prefácio de abertura,
destacam-se três procedimentos cômicos com vistas ao nada: “fórmula à Kafka”,
“niilificação” e “definição por extração”. Procedimentos esses incorporados na
arquitetura das estórias e que podem ser ilustrados respectivamente pelos
enredos de “Barra da vaca”, “A estória dos três homens e do boi que os três
homens inventaram” e “Azo de almirante”, respectivamente.
Enfim, Guimarães Rosa nesse primeiro prefácio de Tutaméia faz uma
revisão crítica acerca das teorias do cômico, dialogando com a tradição e
destacando as funções e procedimentos da comicidade que lhe interessam e que
orientam a construção das estórias e do próprio livro.

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Comunicações
(texto completo)

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Zumbi como personagem conceitural e a favela como


heterotopia: fronteiras entre a literatura de Agualusa e as
filosofias de Foucault e Deleuze

Prof. Dr. Renato Nogueira Jr.∗

Introdução
Entre os objetivos deste texto pode-se listar: pensar interseções, fronteiras
e as potências criativas e limítrofes e, em certa medida, “híbridas” entre a
literatura de Agualusa e as filosofias de Foucault e Deleuze. Não se trata
simplesmente de uma interpelação filosófica da literatura. O romance O Ano em
que Zumbi tomou o Rio indica, tal como todo tipo de arte, um modo de expressão
do pensamento que consiste num plano de composição ocupado por figuras
estéticas que fazem emergir sensações. O Ano em que Zumbi tomou o Rio tem,
num registro mais geral, duas figuras estéticas antagonistas: Zumbi e Jorge
Velho. Mas, numa “entrevista” deleuzeana do romance, Zumbi pode ser
pensado simultaneamente como uma figura estética e como personagem
conceitual. Vale destacar alguns conceitos que emergem desse personagem,
especialmente, um conceito foucaultiano que abertamente se contrapõe à
utopia: heterotopia. Ou seja, vamos lidar com um território literário de
Agualusa que faz fronteira com os pensamentos de Foucault e de Deleuze.
O alvo deste trabalho está no trânsito entre fronteiras que tornem
possível que um personagem conceitual deleuzeano seja criador de um conceito
que emerge na filosofia de Foucault – a heterotopia – apontando para territórios
do plano de composição de Agualusa. Por um lado, um personagem conceitual
é constituído pelas mesmas forças que compõem uma figura estética; porém,


Filosofia IM/DES/UFRRJ

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não podemos considerá-los sinônimos. Cabe uma cartografia que repensa a


favela em suas potências criativas, situando o Morro da Barriga, um dos
principais cenários de Agualusa, como fronteira de múltiplas linhas de fuga.
Com efeito, pensar a partir de Foucault como a heterotopia pode ser uma forma
de resistência aos processos hegemônicos de assujeitamento. O que está em jogo
é pensar a partir de Deleuze, situando o Comando Negro – facção do tráfico de
drogas fluminense na obra de Agualusa – como uma máquina de guerra que
“institui” uma heterotopia. O que cria as condições para que as filosofias de
Foucault e Deleuze se remetam mutuamente dentro do plano de composição da
literatura angolana. Um esforço de pensamento em prol de desterritorializações
e linhas de fuga que se “reterritorializam” na heterotopia, num jogo de
contraposição entre Zumbi (personagem conceitual simpático) e Jorge Velho
(personagem conceitual antipático).
Com efeito, a comunicação Zumbi como personagem conceitual e a favela
como heterotopia: fronteiras entre a literatura de Agualusa e as filosofias de Foucault e
Deleuze pretende apresentar conceitos e sensações (perceptos e afectos),
desrespeitando as fronteiras entre literatura e filosofia para respeitar o que é
mais interessante em qualquer forma de pensamento, a saber: a vocação para
criar. Criar conceitos quando se trata de filosofia, imprimir sensações, perceptos
e afectos, quando se trata de literatura. Neste caso, se trata de uma literatura em
favor da máquina de guerra, das linhas de fuga e, especialmente, da heterotopia
que o Morro da Barriga encarna enquanto metonímia das favelas cariocas. E, se
trata de uma filosofia a favor de Zumbi como personagem conceitual de uma
experimentação estética da existência.

Filosofia afroperspectivista e a intercessão com o romance de Agualusa


Os autores franceses Deleuze e Guattari (1992) não deixam dúvidas, a
filosofia sempre precisa de um plano de imanência, personagens conceituais,
problemas e conceitos que lhe dizem respeito. “A filosofia apresenta três
elementos” (1992: 101), o plano de imanência, as personagens conceituais e os
conceitos. O que caracteriza a filosofia é traçar um plano de imanência, inventar

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personagens conceituais e criar conceitos. “Traçar, inventar, criar, está é a


trindade filosófica” (DELEUZE; GUATTARI, 1992: 101). É importante sublinhar que
a “filosofia consiste sempre em inventar conceitos” (DELEUZE, 1996: 170) e,
simultaneamente, os conceitos só existem em função de problemas específicos.
Ou seja, os conceitos só podem ser avaliados “em função dos problemas aos
quais eles respondem e do plano sobre o qual eles ocorrem” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992: 40). O alvo deste trabalho é apresentar conceitos que fazem
parte da filosofia afroperspectivista, se detendo num conceito muito importante
para o pensamento negro: denegrir. Adiante este conceito será explorado
devidamente. Pois bem, Deleuze e Guattari enfatizaram que a “grandeza de
uma filosofia avalia-se pela natureza dos acontecimentos aos quais seus
conceitos nos convocam, ou que ela nos tornam capazes de depurar em
conceitos” (1992: 47). Em linhas gerais, a filosofia afroperspectivista nos
convoca para acontecimentos negros, acontecimentos femininos,
acontecimentos infantis, acontecimentos animais; ela só pode ser entrevistada a
partir desses acontecimentos e outros do mesmo “gênero” e de clivagens
próximas. Portanto, cabe uma ressalva para quem lê este texto
afroperspectivista, não é adequado pensar os conceitos que aqui serão
apresentados fora do seu plano de imanência, de suas personagens conceituais
e de seus problemas. No caso da filosofia afroperspectivista: traçar o plano de
imanência da afroperspectividade, inventar personagens conceituais
melanodérmicas, retintas e criar conceitos afroperspectivistas. Em certa medida,
a filosofia afroperspectivista é denominada deste modo por conta do seu plano
de imanência, a afroperspectividade. No que consiste a afroperspectividade? A
afroperspetividade é o plano de imanência da filosofia afroperspectivista. Todo
plano de imanência pode ser tido como “um corte do caos e age como um
crivo” (DELEUZE; GUATTARI, 1992: 59). A consistência do plano de imanência
está intimamente ligada à imagem do pensamento e aos elementos pré-
filosóficos. “Deleuze o definira, previamente, ao mesmo tempo como horizonte e
como solo” (PRADO JR., 2000: 308). Para fins de enegrecimento, o plano de
imanência como solo da produção filosófica deve ser considerado como pré-

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filosófico. Enquanto horizonte, o plano de imanência deve ser tomado como


imagem do pensamento. Todo plano de imanência tem natureza pré-filosófica e
mantém uma relação inseparável com a não-filosofia, isto é, todo plano de
imanência é uma imagem do pensamento. A afroperspectividade é uma
imagem do pensamento, uma maneira de estabelecer o “que significa pensar”
(DELEUZE; GUATTARI, 1992: 53) e como tal, um modo de reivindicar e selecionar
o mais característico do pensamento: criar. Enquanto plano de imanência a
afroperspectividade é “o movimento infinito ou o movimento do infinito”
(Ibidem), movimento infinito de africanidades, movimento de incontáveis
desterritorializações e reterritorializações africanas. A afroperspectividade
consiste no solo pré-filosófico, a terra, a desterritorialização, a fundação, os
elementos sobre o quais os conceitos afroperspectivistas são assentados. O corte
do caos de um plano de imanência significa dar “consistência sem nada perder do
infinito” (Ibidem). A consistência do plano de imanência “ou planômeno é uma
mesa, uma bandeja, uma taça” (SCHÖPKE, 2004: 140). No caso da
afroperspectividade se trata de um terreiro, uma roda, uma roça. Ou seja, o
planômeno afroperspectivista é o terreiro, a roça, a roda, um lugar feito para
dançar, para consagrações imanentes, um plano onde as entidades emergem,
baixam e os movimentos d’angola1 se encontram. O planômeno
afroperspectivista se assemelha mais à roda do que à bandeja, sua peculiaridade
está assentada em ritmos que emanam de territorializações,
desterritorializações e reterritorializações de consistências africanas,
africanizantes e africanizadas.
Na criação de conceitos o “essencial são os intercessores. A criação são os
intercessores” (DELEUZE, 1988: 156). Conforme Deleuze, só é possível pensar se
nos deslocamos da passividade, do marasmo, se abandonamos a imobilidade.
Os intercessores são responsáveis por colocar o pensamento em movimento.
“Pensar é romper com a passividade, é sofrer a ação de forças externas”
(VASCONCELLOS, 2005: 1220) que mobilizem o pensamento. A nossa intercessão

1
Movimentos d’ angola dizem respeito, tanto ao jogo da capoeira angola, do candomblé angola e da
galinha d’ angola – animal símbolo da filosofia afroperspectivista.

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é a literatura, Deleuze e Guattari explicitam que a arte se assenta num plano de


composição, ocupado por figuras estéticas e povoado por perceptos e afectos. A
filosofia afroperspectivista tem muitos intercessores, a literatura de Agualusa,
especialmente, o romance O dia que Zumbi tomou o Rio de Janeiro é uma bela
interseção.

Não se trata de buscar a estrutura do romance em foco; mas, podemos


abordá-lo de um modo afroperspectivista, buscando suas potências negras, as
forças pretas capazes de denegrir a vida, isto é, amplificar a potência e os
valores de matrizes africanas. O personagem conceitual e, ao mesmo tempo,
figura estética Francisco Palmares é muito adequado para fazer circular
conceitos afroperspectivistas. No romance de Agualusa, leitoras e leitores
encontram uma rica trama, o cenário é o Rio de Janeiro, o protagonista foi
Ministro da Segurança de Estado de Angola e agora prepara uma invasão aos
barros da elite carioca. Jorge Velho é seu antônimo, seu rival, Secretário de
Segurança do Rio de Janeiro que no decorrer do romance vai se modificando e
começa a incorporar os ideais de Zumbi (Francisco Palmares).

Numa leitura filosófica afroperspectivista, Zumbi é um personagem


conceitual melanodérmico. Um personagem conceitual que aponta para
conceitos que articulam potências negras. Vale dizer que denegrir é um conceito
filosófico afroperspectivista que significa enegrecer, assumir versões e
perspectivas que não são hegemônicas, considerar a relevância das matrizes
africanas para o pensamento filosófico, investigar em bases epistêmicas negro-
africanas, dialogar, apresentar e comentar trabalhos filosóficos africanos,
abordar filosoficamente temáticas como: relações étnico-raciais, epistemicídio
dos saberes de matriz negro-africana, racismo antinegro, branquitude e
hegemonia dos parâmetros ocidentais no âmbito político, religioso, estético etc.
Francisco palmares não é herói, menos, ainda anti-herói; mas, é uma
personagem conceitual que trás movimentos e inspira acontecimentos. Se
pudermos considerá-lo herói, tal como Zumbi dos Palmares – personagem
histórico – é dentro de um registro completamente distinto dos que circulam

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

hegemonicamente. O lugar comum registra que todo Heroísmo está ligado a


sujeitos que são dotados de algum atributo excepcional e diante de problemas,
resolvem esses problemas de modo extraordinário. Zumbi não quer ser herói,
ele é uma linha de fuga dentro dos jogos de forças que fizeram das favelas
cariocas territórios periféricos. No romance, o morro da Barriga é um sentido do
território afroperspectivista. Um sentido afroperspectivista porque reinventa e
agrega outros significados e sentidos aos territórios negros e marginalizados,
periféricos que produziram as favelas. O morro da Barriga emerge no romance,
na esteira de Foucault como uma heterotopia. No lugar de pensar uma linha
reta que levaria ao progresso, ao desenvolvimento que faça dos horizontes
utópicos as propostas para os movimentos e acontecimentos. Nada mais
afroperspectivista do que a negação da utopia. No lugar da utopia. Nos termos
de Foucault:

Existem igualmente, e provavelmente em qualquer cultura, em


qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos [...] e que são
espécies de contra-lugares, espécies de utopias efetivamente realizadas
nas quais os lugares reais, todos os outros lugares reais que se podem
encontrar no seio da cultura são ao mesmo tempo representados,
contestados e inversos, espécies de lugares que são fora de todos os
lugares embora eles, no entanto, sejam localizáveis. Estes lugares [...]
eu os chamo, em oposição às utopias, de heterotopias (1984: 46-9).

O morro da Barriga é um contra-lugar na cidade partida. Zuenir Ventura


nos fala de uma cidade partida, dividida entre a elite, a classe média e os
pobres; entre os negros e os brancos. Os negros e brancos pobres que moram na
favela colocados e fixados por sentidos que transformam suas cidadanias em
cidadanias de terceira classe. Dentro desses jogos de força, Francisco Palmares
trás uma possibilidade, lidera um movimento onde o contra-lugar é alforriado e
se torna horizonte. A luta é pela liberdade, pela independência, contra os
processos modernos de escravização. A luta se insere na cidade partida, uma
luta quilombola; os favelados e as faveladas são os quilombolas
contemporâneos. Francisco Palmares é seu líder.
O contra-lugar existe, não se trata de uma possibilidade e miríade de
sonhos e devaneios, mas, de uma imanência. Conforme Foucault, a heterotopia

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é o desaparecimento do sentido ordinário de um território concreto. Pensar a


favela, o morro da Barriga como heterotopia é uma possibilidade de leitura
filosófico-literária afroperspectivista favorável à assunção da cidade partida.
Mas, assumi-la no seu desconforto, nos seus esvaziamentos em prol de uma
reivindicação imanente pela afirmação das experiências, da revitalização dos
espaços. Os projetos hegemônicos de representação da realidade a partir do
legado do iluminismo se cruzam e constituem o problema em jogo. Dito em
poucas palavras, o problema são as idéias que um tipo de filosofia “ajudou a
engendrar e que permitiram inventar o ser negro como negatividade” (SANTOS,
2002: 167). A heterotopia é justamente a refavelização dos espaços, a experiência
negra. Experiência negra aqui significa uma experiência privilegiada, positiva,
propositiva e capaz de afirmar o presente, escapando das imagens utópicas e
das experiências seletivas e acachapantes da manutenção do status quo.

Considerações finais
Este texto é uma abertura, uma entrada, uma afroperspectiva e, portanto,
uma maneira de abrir possibilidades dentro dos caminhos sinuosos do
pensamento. Zumbi como personagem histórico encontra ecos no personagem
ficcional de Agualusa, principalmente porque são espelhamentos; não uma
representação. Mas, uma linha de fuga que compartilha as mesmas potências
negras e forças pretas, um devir afroperspectivista.
O que um personagem conceitual pode propor? Por exemplo, na filosofia
afroperspectivista, especificamente dentro da roda da afroperspectividade
circula o personagem conceitual: cavalo de santo. Esta personagem conceitual
recebe uma entidade, é rodante, fala sempre por meios que, em certo registro,
não lhe pertencem. Não se trata, simplesmente, de uma intermediação; porém,
de uma desfiguração, um “não-eu” que se manifesta através do que é, sem
cristalização, ou qualquer tipo de individualização. Mas, sobretudo, através de
uma contínua reinvenção de si a partir de outrem que não deixa de ser ele
mesmo. O cavalo de santo tem traços páticos, porque é um personagem
conceitual que faz muitos agenciamentos, alianças e conexões contínuas por

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redes múltiplas. O cavalo de santo de Zé Pilintra transita bem nas ruas, conhece
os escaninhos da madrugada, sabe viver na boemia, sabe beber, fumar, cortejar,
seduzir e amar uma mulher. Zé Pilintra sabe e gosta de jogar; mas, as suas
apostas não dizem respeito aos jogos de azar, nem têm como alvo ganhar
alguma coisa que não se tem, o desejo é permanecer em jogo, jogando dados,
porrinha ou bilhar. O cavalo de santo de Pomba Gira sabe se defender e circular
nas ruas, ela defende o que pode ser nomeado como um devir mulher, reinventa
gêneros fora do sexismo, revitaliza a sexualidade em eixos que não dizem
respeito às vontades masculinas cristalizadas e marcadas por cifras
pornográficas. Nesse caso, o traço pático afroperspectivista tem um aspecto
muito interessante, a personagem conceitual não recorda o que disse. Não
porque tenha esquecido; mas, porque estava em si e sem apego ao “eu” deixa
de falar, apenas, por si mesma. Não se trata de uma experiência inconsciente;
mas, de um autêntico transe que multiplica as consciências. Ou ainda, “aquilo
de que ele se distingue não se distingue dele. O relâmpago, por exemplo,
distingue-se do céu negro, mas deve acompanhá-lo, como se ele se distinguisse
daquilo que não se distingue” (DELEUZE, 2006: 55). O cavalo de santo de Zé
Pilintra não se distingue da entidade Zé Pilintra, ainda que não sejam os
mesmos.
Os traços relacionais remetem às personagens conceituais como o:
“eles(as) são unha e carne”, uma dupla em que um se diz pelo outro, tal como o
tipo psicossocial; mas, sem se confundir com ela, cada uma pode escolher um
par de sapatos para a outra, um relógio, um batom ou um sanduíche. A tiazinha
– uma linda mulher, negra, 1,60m, 80 kg, 50 anos – diz: “Fulana e Sicrana são
unha e carne e se conhecem muito bem, elas têm o mesmo gosto”. O conceito de
gosto aqui não tem uma relação necessária com a crítica kantiana, talvez, tenha
sentidos transversais. O gosto não passa pela discussão, nem pela opinião;
porém, pela relação que se estabelece consigo. Ou ainda, se denomina “gosto
esta faculdade de co-adaptação, e que regra a criação de conceitos” (DELEUZE;
GUATTARI, 1992: 101).

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Zumbi é um personagem conceitual. Sua heterotopia é simples, fazer do


Morro da Barriga a pura imanência da vida que se afirma e coloca dentro de um
quadro que não precisa da permissão ou do consentimento da outra “cidade”,
nem precisa do outro para lhe dizer afirmar ou propor a liberdade. Porque a
liberdade está e permanece presente. A maior liberdade da heterotopia do
morro da Barriga e da personagem conceitual de Agualusa não é uma
essencialização ou uma reinvindicação pautada em ambivalências; mas, uma
linha de fuga assentada no terreiro próprio dos acontecimentos que a vida da
favela (quilombo) torna possível.

Referências bibliográficas

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Quixote, 2002.
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado
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SCHMIDT, Simone Pereira. “Navegando no Atlântico pardo ou a lusofonia
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VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1974.

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O conto de Sergio Faraco e o “entre-lugar” do gaúcho

Profa. M. Sc. Andrea Cristiane Kahmann∗

Resumo: Este trabalho analisa os contos de Sergio Faraco, sob a perspectiva da escrita “na”
fronteira (em oposição àquela “sobre” fronteira), ressaltando os influxos platinos, o
contrabando de idéias, o “entre-lugar” da cultura e a cultura do “entre-lugar”. A ruptura com o
binarismo (proximidade e estranhamento, afeição e repulsa ao Outro) deixa à mostra a crise da
centralidade e mesmo de nação, destacando-se as relações entre identidade e “diferência”, na
acepção de que lhe dá Jacques Derrida.

Palavras-chave: fronteira, alteridade, gauchidade

Preliminares
A proposição de um debate sobre fronteiras envolve mais do que um
arcabouço teórico para o enfoque literário que este trabalho propõe. O que, à
primeira vista, parece ser tão-somente mais uma pesquisa sobre os paradigmas
da literatura dos gaúchos pode, também, ser interpretado como um
questionamento sobre a (re)configuração do sujeito hodierno. Afinal, pôr a
fronteira em pauta é tarefa que vai para além dos limiares do Estado,
constituindo-se um tema de relevante conotação no sistema simbólico de
cultura referencial, dos indicadores identitários, das marcas de pertencimento,
da linguagem que separa e une e das narrativas que conformam os mosaicos da
complexidade do mundo contemporâneo. A proposição de um debate sobre
fronteiras implica, pois, a releitura do estar-se no “entre-lugar”, mote comum
dos estudos pós-coloniais e revigorado neste contexto de globalização.


Professora Assistente do Departamento de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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1. O pampa como espaço transfronteiriço


Para entender-se a fronteira, porém, antes é preciso analisar a formação
do “Estado-nação”, que, à estrutura jurídica do Estado Moderno (soberania e
território), agregou a construção cultural da nacionalidade. A nação é uma forma
particular de afiliação “mais complexa que “comunidade”, mais simbólica que
“sociedade”, mais conotativa que “país”, menos patriótica que patrie, mais
retórica que a razão de Estado” (BHABHA, 1998: 199). Ela surge no processo
histórico correspondente à emergência de novas formas sociais de produção em
que aparece prioritariamente uma comunidade étnica nova, com uma base
territorial comum, associada a elementos culturais e lingüísticos a se reforçarem
mutuamente (TORRES RIVAS, 1981: 89).
Seguindo essa linha, propõe-se a compreensão da nacionalidade como
uma estratégia de identificação cultural e de interpelação discursiva que os
Estados operam para legitimar sua atuação e inscrevê-la como fruto de uma
vontade coletiva. Não é casualidade que Bhabha tenha intitulado um de seus
mais célebres textos de Nation & Narration, já que a nação é, mais do que um
evento jurídico-social, um escopo de identificação cultural por meio de formas
discursivas que funcionam em nome dessa coletividade construída. Tampouco
é casualidade que o tema das fronteiras tenha recebido especial atenção dos
estudos de literatura. “Não é ocasional se o debate multicultural tem lugar nos
departamentos de literatura e estudos étnicos e não nos de sociologia ou
filosofia nos Estados Unidos. Porque a literatura sempre deixou dialogar a
contradição e tematizou os estereótipos” (CHIAPPINI, 2002: 49).
A nação é, portanto, uma forma de filiação textual, o produto de uma
narrativa que legitima arranjos políticos e orienta a consciência histórica. Nas
palavras de Habermas:

Para poder dar forma y servir de soporte a una identidad colectiva, el


plexo de la vida lingüístico-cultural ha de ser hecho presente en unos
términos capaces de fundar sentido. Y sólo la construcción narrativa de
un acontecer histórico dotado de un sentido cortado al talle del propio
colectivo puede suministrar perspectivas de futuro orientadoras de la

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acción y cubrir la necesidad de afirmación y autoconfirmación


(1998:91).

Assim, as diferenças regionais e étnicas foram gradualmente sendo


colocadas sob o “teto” do Estado-nação. Entretanto, o escopo nacionalizante,
tal como formulado por seus pregadores oficiais, não necessariamente
coincide com a real auto-identificação do povo em questão. O mundo que
sobreviveu à Segunda Guerra o soube bem: duas Alemanhas representavam
a nação separada, e uma Iugoslávia englobava uma variedade de identidades
nacionais, enquanto os israelitas, há séculos sem Estado, tentavam resgatar
uma língua e uma afinidade cultural perdidas. O mesmo ocorreu com o
gaúcho sul-rio-grandense durante o processo de formação do Estado
brasileiro.
Embora o homem simples da campanha tenha vivido irmanado num
pampa outrora sem alambrado (numa fronteira tão permeável quanto a
linguagem,1 vivendo da troca de mercadorias, gado e idéias), questões
políticas, acentuadas pela guerra da Cisplatina e reforçadas pelos dez anos
de levante Farroupilha, marcaram uma linha imaginária no meio do campo a
dizer àquela gente rústica: daqui para lá não passarás. E quem seria capaz de
dizer ao certo onde começavam ou acabavam aqueles países com os quais o
gaúcho, fosse castelhano ou brasileiro, não se sentia identificado? O
historiador Guilhermino César, a propósito, aponta:

Nenhuma das duas Coroas […] saberia dizer a seus vassalos por onde
passavam, no terreno, as respectivas linhas confrontantes. A posse das
coisas, portanto, não se dava num espaço nacional conhecido. O
possuidor, com a sua nacionalidade, é que delimitava, por assim dizer,
a soberania do seu Estado. Onde se achava um súdito espanhol, o
território era espanhol; e vice-versa com respeito ao português. Ambos
usufruíam, segundo seu alvedrio, a “terra-de-ninguém” (1978: 44).

1
Recorda-se, com Carlos Reverbel, que “a fronteira do Rio Grande com os países do Prata estende-se por
1.727 quilômetros, dos quais 724 com a Argentina e 1003 com o Uruguai. A fronteira com o Uruguai,
desde a barra do Chuí até a foz do Quaraí, é quase toda seca. Já a divisa com a Argentina, desde a foz do
Peperi-Guaçu até a confluência do rio Quaraí, corre ao longo do rio Uruguai. Nada, entretanto, impede o
livre trânsito entre o Rio Grande e os países platinos”. (REVERBEL, 1998: 89).

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E assim foi-se criando a identidade do gaúcho fronteiriço, último rincão


de uma terra mais que distante do centro decisório da nação brasileira, o
excluído dentre todos os excluídos, que se negava a reconhecer a autoridade
e o empecilho de cruzar o território sem barreiras2. Nessa linha, pode-se
afirmar que também o pampa se inseriu, conforme perspectiva sociológica
sugerida por Souza Martins3, numa situação de fronteira “como lugar social de
alteridade, confronto e conflito” (MARTINS, 1997: 36).
Os sucessivos episódios de guerra, intervenção e exploração econômica a
que o Brasil subjugou os vizinhos castelhanos faz retomar a afirmação de que
“certamente, o caso da frente de expansão brasileira, como provavelmente o
caso de outros países, não corresponde à idílica suposição de que a fronteira
é o lugar de concepções e práticas democráticas de auto-gestão e liberdade”
(MARTINS, 1997: 39). Sob essa égide, Souza Martins opõe-se a outros
sociólogos que encaram a fronteira como comemoração do diálogo e do
pluralismo: “É fora de dúvida que a fronteira é um lugar de morte”
(MARTINS, 1997: 37). Morte não só nas guerras pelo território, mas também
uma morte simbólica, cultural e social, promovida pela apropriação e
degradação do outro: “Nesse sentido, a fronteira tem um caráter litúrgico e
sacrificial, porque nela o outro é degradado para, desse modo, viabilizar a
existência de quem o domina, subjuga, explora” (MARTINS, 1997: 13).
Assim, enquanto no conserto das nações modernas o território assumia,
jurídica e politicamente, uma dimensão estratégica a remeter à centralidade
do poder, a formação das nações e o bailado das fronteiras eram decididos

2
E o gaúcho, efetivamente, não o fez. Quanto ao que se sabe da presença gaúcha no Uruguai, tão
expressiva ela era, que, conforme levantamento feito em 1863 pelo Almirante Carbajal, e citado por
Franco, “numa população de 180.000 habitantes haveria cerca de 40.000 brasileiros” e que eles
possuiriam no Uruguai “perto de 4.000 léguas, quase o equivalente à metade do território da República”
(FRANCO, 1992: 32-34). Especialmente nos departamentos do Norte e do Leste uruguaios, os brasileiros
eram dominantes. Dessa forma, já em 1888, Itaqui, Quarai e Uruguaiana estavam ligadas a Montevidéu e
Salto pela via férrea. Em contraste, só em 1907, os trilhos da ferrovia gaúcha estabeleceram conexão com
Porto Alegre. Esse “isolamento” da fronteira brasileira com relação ao próprio Brasil fez com que, até
meados de 1920, boa parte da produção do Oeste gaúcho fosse escoada através do porto de Montevidéu,
que, ademais da proximidade e boa infra-estrutura, cultivava um sistema de baixas tarifas de importação.
3
José de Souza Martins aborda, no estudo citado, a fronteira com o Outro indígena, no contexto da
Amazônia. No entanto, seu trabalho será aqui mencionado no que se aplicar, também, ao entorno
pampiano.

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por autoridades de outro mundo, indiferente ao amálgama da gauchidade.


Conforme Golin, a definição das fronteiras, combinada com “a conquista
militar, a expansão demográfica e o recorrente uti possidetis, […] significou
uma opção imaginária, arbitrária, pesada na balança limitativamente
possível da geopolítica” (2002: 13). A definição dos limites territoriais ocorreu
de forma independente (ou mesmo contrária) aos desejos e aspirações dos
habitantes da fronteira:

É preciso […] notar que, quando os Estados, Reinos ou Províncias


tratam de contratar, quer dizer, de fixar as fronteiras por tratados mais
que pelas armas, não intervêm em um território virgem. Práticas
ancestrais foram já estabelecidas entre as populações que se tocam,
constituíram-se modus vivendi que integram uma definição prática,
senão geográfica da fronteira, que pode então diferir
significativamente daquela dos topógrafos (LEENHARDT , 2002: 28).

A fronteira constituiu, enfim, menos uma linha que um espaço, menos


um marco físico ou natural que um sistema simbólico, e, embora a conceituação
jurídica acarretasse, por si só, os desdobramentos políticos, ela acabou por
encerrar em si um significado que operou para além dos aspectos territoriais,
definindo-se como marco de referência identitária. Essa é a razão para que
muitos estudiosos encarem o pampa como um espaço transfronteiriço a
irmanar três países (Brasil, Uruguai e Argentina) e dois idiomas (espanhol e
português) que praticamente se fundem a formar um terceiro (não o portunhol,
como afirmam muitos, mas um idioma peculiarmente fronteiriço). Eis a razão
para que Ángel Rama tenha definido a região como “comarca pampeana”, de
forma a permitir a referência ao espaço sem especificar o lado da linha
geopolítica.
E, por essa ótica de fronteiras culturais e tradições nacionalizantes
inventadas, não surpreende que a literatura sul-rio-grandense tenha sido
construída sob o signo do “entre-lugar”: uma literatura “na” fronteira (em
oposição à literatura “sobre” a fronteira).

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2. A literatura da fronteira e as fronteiras da literatura sul-rio-grandense


Foi sob o signo da fronteira, portanto, que se desenvolveu a produção
literária no Rio Grande do Sul. Em seus primórdios, o personagem ficcional
mais recorrente foi o gaúcho tal como o concebiam as vertentes literárias
argentina e uruguaia. A sucessão de guerras, porém, e a necessidade de se
“abrasileirar” o Rio Grande do Sul foram, paulatinamente, inserindo-se no
plano das letras e forjando uma narrativa mais afeita aos novos escopos
ideológicos. Não que os primeiros protagonistas das obras literárias tenham
sido fiéis representações daquele gaúcho sociológico, a habitar os campos de
fronteira aberta, campo aberto e gado solto4. Contudo, o próprio modelo de
“gaúcho”, tal como apresentado na literatura, na música e nas artes em geral,
foi sofrendo modificações e diferentes abordagens.
A Sociedade Partenon Literário, que deu consistência à prática regular da
literatura no Rio Grande do Sul, divulgou a imagem do “centauro dos pampas”,
do “monarca das coxilhas”, nas instâncias de 1860. Frente a um contexto
histórico em que os espoliados não têm outro “luxo” que as histórias de
valentia, reiteraram-se os esquemas narrativos como “modelos de resistência”,
enquanto se teciam os subterfúgios para ocultar o pária do pampa, expulso da
terra em função do cercamento dos campos (PESAVENTO, 1989: 57). Há que se
ressaltar que o Partenon era uma instituição engajada politicamente, tendo
orientado o pensamento de muitos líderes da época, especialmente os
promotores das idéias positivistas. As questões literárias, nesse contexto,
andaram lado a lado com a política.
O cercamento dos campos pampeanos deu-se como vaticinou Rousseau:
o primeiro que colocou uma cerca e disse “isto é meu” apropriou-se do gado
cimarrón que trotava por aquelas terras e expulsou o gaúcho errante do que
então passou a chamar-se “fazenda”. Apesar disso, o gaudério era necessário à

4
É mister destacar que não está em discussão o debate que, desde Platão, delineia as considerações dos
teóricos da literatura sobre a medida que aproxima/afasta o personagem de ficção daquele homem que
existiu concretamente. Expulso, já, da República, o gaúcho literário, na abordagem deste trabalho, não
tem a pretensão de provir do mundo real. Não obstante, algumas considerações são pertinentes em face do
objetivo de se proceder a uma análise sobre o construto das tradições no plano de ascensão dos ideais
nacionalistas.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Corte, interessada em estender sua hegemonia por terras espanholas.


Inventaram-se, pois, as tradições. Não obstante o convívio com a ilicitude
institucionalizada (a pilhagem e o contrabando eram práticas arraigadas tanto
de um quanto de outro lado da fronteira geopolítica) o gaúcho brasileiro (visto
com tanto receio pelo centro do país) acabou por ser alvo de um processo de
“desmarginalização” através de sua ressignificação. Palavra de origem
controvertida, “gaúcho” designava “caçador de gado selvagem, contrabandista,
teatino, andejo, coureador, desregrado, gaudério, changador; remascentes de
tribos guerreiras amestiçados com portugueses e espanhóis” (BOSSLE, 2003: 265).
De um lado e de outro da fronteira física, o gaúcho não se encaixava nem na
sociedade do europeu, nem da do índio. Estava, portanto, no “entre-lugar”.
Sobrevivia “da caça e da venda de gado alheio ou selvagem, além de exercer o
contrabando” (BEIRED, 1996: 18). Foi somente na segunda metade do século XIX,
em meio às guerras pela independência, e quando estava à beira da extinção,
que o gaúcho foi revalorizado em função de seu aproveitamento nas frentes de
batalha. A palavra revestiu-se, então, de “conteúdo nitidamente elogioso, de
homem digno, bravo e destemido” (BOSSLE, 2003:265).
Em processo inverso ao que teve lugar ante o termo “gaúcho” (a
conformar um Nós, desmarginalizado), o vocábulo “castelhano” foi acometido
de uma anemia significativa para atender à ideologia nacionalizante que
reclamava a caricaturização e depreciação do Outro. Assim, o Rio Grande do
Sul apropriou-se do termo “gaúcho” para designar seu gentílico, olvidando-se
que o “castelhano” era, tão-somente, o gaúcho “do lado de lá”. Ao “castelhano”,
porém, vocábulo que originalmente designava a língua e a pessoa originária da
região de Castela, em Espanha, restou o desígnio, de forma jocosa ou mesmo
ofensiva, do desregrado, do invasor de terras, do responsável pelo roubo, pela
pilhagem, pelo desrespeito às tradições, às mulheres, às famílias, às
propriedades.
O comprometimento ideológico da produção literária escrita no Rio
Grande do Sul, desde o Partenon, abarcando a geração de escritores da
República Velha, terminou por formar um gaúcho literário distanciado do

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

gaucho platino. Esse afastamento não foi, entretanto, fortuito: é possível


considerar que “a idade de ouro da gauchesca, na prosa, ocupou os três
primeiros decênios do século XX” (CÉSAR, 1994: 39), coincidindo com os
roupantes nacionalistas a acompanhar a I Guerra Mundial e seus desfechos. O
historiador observa que, já em 1898, tinha sido fundado, no Rio Grande, o
Grêmio Gaúcho, iniciativa de Cezimbra Jacques, oficial reformado do Exército,
com a finalidade de “resgatar” as tradições desses pagos. Porém:

[…] o simpático Major não admitia (e sirva o fato para documentar seu
nacionalismo) qualquer aproximação do gaúcho rio-grandense – a
personagem de ficção ou o tipo real – com o gaúcho platino, isto é,
conforme ele mesmo diz, com “o borracho que vive a retoçar [sic] as
polícias locais e a provocar desordens em a polpería e cometer crimes
como se o vê pintado em Martín Fierro e Juan Moreira56. (CÉSAR, 1994:
42)

Esse paradoxo só veio a ser reforçado com o advento do Movimento


Modernista. E, por uma dessas ironias da história, o soterramento do
sentimento regionalista que aproximava o gaúcho do pampa platino deu-se
justamente sob a mão de ferro de um profundo conhecedor desses pagos: um
gaúcho fronteiriço de São Borja chamado Getúlio Vargas. Em nome de uma
pretensa unidade, no Estado Novo foram proibidos o hino e a bandeira sul-
rio-grandense, bem como as demais manifestações de conotação regionalista.
No entanto, o abafar das vozes platinas e a negação dos influxos
literários confluíam na tendência da “eliminação do que não é nativo”
(SCHWARZ, 2001: 113), delineando o que Schwarz designou “nacional por
subtração”, sem tomar em conta o embuste que se promovia. Há que se
considerar que a literatura sul-rio-grandense, apesar de orientada por
princípios ideológicos de rechaço ao Prata, recebeu dele várias influências,
estabelecendo um interessante diálogo com esse Outro. E esse é o seu
diferencial, a raiz de sua composição. Com efeito, o influxo platino, visto com

5
César, aqui, cita JACQUES, Cezimbra. Assuntos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Of. Gráficas da
Escola de Engenharia, 1912. p. 52.

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maus olhos pela crítica tradicional, conferiu peculiaridade aos textos da


literatura fronteiriça, possibilitando uma visão múltipla das culturas latino-
americanas meridionais em diálogo.
Em face do exposto, é possível depreender, com Aguiar que:

Quando os românticos da região quiseram criar o romance local, seus


modelos iniciais foram Macedo, Alencar, e outros escritores sediados
na Corte, e não escritores do Prata. Mas tematicamente, e em termos de
paisagem cultural, as marcas de região eram mais próximas das
platinas do que da Baía da Guanabara. Isto fez que o Rio Grande do
Sul, seguindo a terminologia proposta pelo crítico uruguaio Ángel
Rama, integrasse o sistema brasileiro, mas fizesse parte (até hoje) de
uma “comarca pampeana”, que se desdobra em duas línguas
(espanhol e português) e três países, Uruguai, Argentina e o sul do
Brasil. Essa proximidade ao Prata foi deixando marcas indeléveis na
cultura gaúcha. Já na época da República, um escritor como Simões
Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos, de Lendas do Sul e também do
hilariante Causos do Romualdo, revela traços mais nítidos de contato
com um escritor argentino como José Hernández, autor do poema
Martín Fierro, que consolida a literatura argentina. (AGUIAR, 2003)

Trata-se, pois, de um regionalismo destoante da perspectiva romântica.


Não obstante, o conceito de “região” frente à teoria literária contemplou,
tradicionalmente, somente duas situações: a que considera o lugar da
enunciação literária (o lugar onde se escreve) e a que se ocupa do lugar como
referência do texto (o lugar como tema sobre o qual se escreve). Só mais
recentemente se deram a conhecer perspectivas como a de Kaliman, que analisa
o “regional” como o espaço pelo qual circula a literatura, ou seja, a comunidade
que, por uma ou outra razão, acolhe o texto. Seguindo essa esteira, numa região
definida pela prática de certos tipos de relatos orais, no curso da socialização,
os agentes podem ter seus papéis alterados, passando, por exemplo, do rol de
ouvintes ao de narradores (KALIMAN, 1994: 4). Ademais, o estudioso argentino
fez notar que, nessa região, poderia haver agentes que, mesmo socializados em
comunidades diferentes, viessem a estabelecer, de alguma maneira, relações de
contato. Essas últimas, de acordo com Cioranescu, “suponen la presencia de
una especie de ecuación, cuyos términos de comparación tienen por condición
la de pertenecer a dos [ou mais] literaturas nacionales” (1964: 74), e podem se
dar através de viagens, de leituras, por meio de intermediários (como

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

professores de língua estrangeira), trabalhos de pesquisa ou de traduções, ou


ainda pela imitação e pela influência.
Desse modo, é possível notar que o argentino José Hernández (tido como
fundador da gauchesca argentina) influencia não apenas Simões Lopes Neto
(considerado fundador da gauchesca sul-rio-grandense), mas uma vasta gama
de escritores gaúchos como Alcides Maya, Aureliano Figueiredo Pinto, Aparício
Silva Rillo, Darcy Azambuja, Luis Carlos Barbosa Lessa e Cyro Martins. De
fato, a trajetória e os conselhos de Martín Fierro fazem parte, também, do
imaginário do povo do Rio Grande do Sul. Conforme Pesavento, isso não é de
se estranhar:

Ora, existe sempre como que um mercado de idéias e imagens, que


viajam no tempo e no espaço, sendo a escrita sempre um palimpsesto,
em que é possível ler, em um autor, a presença das idéias do outro,
ainda mais quando são vivenciados, historicamente, problemas
comuns (2004: 111).

No caso do pampa, cenário por excelência da literatura gauchesca, e do


Rio Grande do Sul como locus de enunciação literária, deve-se agregar, então,
outra perspectiva, desvinculada da noção de fronteira política, para contemplar
as relações de contato com o Prata partindo de uma noção de região não como
espaço em si, mas como uma função sobre o espaço.

3. O “entre–lugar” toma assento: a literatura de Sergio Faraco e a celebração


da fronteira
Mencionar que o ambiente fronteiriço de Sergio Faraco alimenta-se da
“memória do Rio Uruguai e suas margens” (HOHLFELDT, 1981: 144) não parece
ser suficiente. Há que se considerar que toda sua narrativa está repleta de um
telurismo a realçar “a questão da fronteira como uma espécie de provação, com
seus ritos de passagem, ou condenação a um sofrimento sem fim” (MASINA,
2003: 49). Em seus contos, o personagem pode ser um jovem ou um forasteiro,
mas quase sempre a trama envolve alguém que está aprendendo a viver na
fronteira, com seu olhar de estranhamento ou de ingenuidade em frente às

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práticas do chibo (contrabando de pequeno porte), dos costumes e dos dramas


campeiros7. Privilegiando os tipos humanos numa perspectiva pós-nacionalista,
Faraco subverte a ótica tradicional do regionalismo:

[…] o regionalismo de Sergio Faraco distingue-se dos demais. Além de


representarem uma visão particularizada do homem, que não é
tipificado, mas apreendido no que tem de mais humano, os seus
sentimentos (medo, vergonha, desejo, amor, esperança), seus textos
revelam as origens platinas e eruditas e abrem-se também a outros
tipos de literatura “não canonizadas”, como a literatura popular, os
diários, as correspondências e mesmo àquilo que se convencionou
chamar “sub-literatura” (MASINA, 1994:73).

Escapando à idealização e à caricatura, Faraco retomou a figura do


gaúcho como homem, ou hombre, sem desprezar a posição privilegiada que lhe
conferiu o estar no “entre-lugar”: nem aqui, nem lá; nem de uma, nem de outra
nação; nem da cidade, nem do campo; nem civilização, nem barbárie – e, ao
mesmo tempo, tudo junto. Enfim, a narrativa de Faraco assumiu proporções de
êxito justamente por ele ser “um escritor na travessia de culturas” (MASINA,
1994: 71), o que explica o interesse por sua obra e a publicação em diversos
países, tais como: Alemanha, Argentina, Bulgária, Chile, Colômbia, Cuba,
Estados Unidos, Paraguai, Uruguai e Venezuela.
Chama atenção que Faraco tenha se decidido pelo conto como gênero
preferencial. Afinal, o conto surge com o mito; a Bíblia é um livro repleto de
contos. Distinguindo-se da saga, porém, o herói, desde o conto primitivo,
requeria ajudas humanas ou mágicas, freqüentemente pagãs ou sobrenaturais,
mas nunca divinas. E se os personagens não se aventuravam pelas missões
destinadas aos escolhidos dos deuses, talvez fosse porque as primeiras formas
do conto provieram, justamente, da necessidade do homem comum de
verbalizar seus feitos. Daí a tendência à oralidade que resistiu até a narrativa
contemporânea e que foi tão elogiada por Benjamin (1983: 57). Numa escolha

7
Gilda Bittencourt observa que Faraco é um escritor que centra boa parte de sua narrativa na infância. Se
considerados os contos dos anos 70, “praticamente metade das histórias relaciona-se com essa fase da
vida” (p. 117). Contudo, mesmo nos contos em que o narrador é adulto, a criança parece vir à tona,
resgatando o “eu” passado e narrando seus feitos com as limitações e as lacunas que competem ao olhar
ingênuo (p. 118). Cf. BITTENCOURT, 1999.

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que já delata o escopo de primar pela literatura mais afeita ao tom oral da
gauchesca, a preferência de Faraco concorreu com a valoração do narrador,
como se fizesse retomar o causo a correr de estância em estância pela peonada
para ser contado entre um mate e outro junto ao fogo de chão. Assim, não só a
escolha dos temas, mas também a do gênero marca o compromisso dele com a
revisão da narrativa pampiana.
Outro aspecto a ser notado é que o conto, antes de tudo, deve ser
articulado dentro de limites estabelecidos, aproximando-se da idéia da
fronteira. “O conto parte da noção de limite” (CORTÁZAR, 1993: 52), pois o
clímax se realiza quando alcança no leitor um efeito que só é possível em função
da pouca extensão. É o gênero que prima pelo ponto ótimo da “excitação”: na
construção condensada do conto repousa o segredo do bom escritor: na
capacidade de prender o leitor e isolá-lo do mundo, conquistando sua
cumplicidade a partir de imagens e acontecimentos que, não obstante limitados,
sejam capazes suscitar uma espécie de abertura que o guie para além do
narrado, para essa faixa nebulosa do texto em que algo é dito sem dizê-lo
(CORTÁZAR, 1993: 52). Sob essa égide, as idéias de limite/abertura,
fragmento/unidade, tensão/cumplicidade, e a possibilidade de pleitear o
reconhecimento do leitor por meio de mitos, de imagens, de símbolos, o escopo
de prender, de isolar e, paradoxalmente, de deixar à mostra a brecha e o
caminho para ir além aproximam o conto da noção de fronteira. Nessa trilha, e
retomando Miranda para quem “fazer uma nação e fazer literatura são
processos simultâneos” (1994: 33), a eleição do conto é uma forma de abrir
margem à fronteira e pôr em pauta a ambivalência e a negociação transcultural.
Ademais, por ser um flagrante e não se prestar a juízos de valores ou a
digressões morais, o conto se fixou como gênero capaz de apreender o contexto
social estilhaçado ética e ideologicamente, enfocando os afetos esmaecidos sem
o compromisso de explicá-los. Essa é uma característica indelével da obra de
Faraco, que narra situações limites, borderlines, fronteiriças sem, no entanto,
julgá-las. Para ilustrar essa tendência, passa-se à análise de dois contos: “Dois
Guaxos” e “Travessia”.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Em “Dois guaxos”, a narrativa é em terceira pessoa, sob a ótica de


Maninho, um guri de quem não se consegue definir a idade e cujo nome
tampouco importa. Ele é o “Maninho” exclusivamente por estar pendente da
irmã durante todo o relato, pois ela, ao iniciar a vida sexual com o índio que
joga cartas com o pai, é a fonte maior da mágoa do guri.
A fronteira como condenação ao sofrimento se constrói pela menção aos
maus-tratos e ao descaso paterno. A proximidade do pai com o índio Cacho, as
“charlas misteriosas”, a canha e o jogo de cartas agravavam a dor da morte da
mãe: “o velho nunca prestara e tinha piorado depois da morte da mulher,
embebedando-se até em dia de semana e maltratando os filhos por qualquer
nonada” (FARACO, 2004: 22). Desde o primeiro parágrafo, porém, nota-se que o
desalento de Maninho não decorre unicamente das agressões e bebedeiras do
pai. O menino foge, antes de tudo, da imagem do parreiral, com “o pelego
branco, Ana, e o bugre naquele assanho de cavalo” (FARACO, 2004: 22).
O destino da irmã não era bem uma surpresa, mas o ocorrido foi, para
Maninho, como “um mangaço ao pé do ouvido”, razão pela qual decidira partir:

Um tirão até Itaqui, e depois... quem saberia?


Depois ia cruzar o Rio Uruguai, ou não cruzar, ou ia para Uruguaiana,
Alegrete, ou para a Barra, Bella Unión, lugares dos quais ouvira um
dia alguém falar (FARACO, 2004: 25).

Cruzar ou não cruzar a fronteira pouco importa. Os personagens


compreendem que tanto dum como doutro lado da linha geopolítica as agruras
serão as mesmas: nenhuma autoridade os protege, ninguém pode livrá-los da
sina do entre-lugar. Maninho sabe que:

[…] não sendo o bugre, ia ser outro qualquer, algum bombachudo que
apeasse por ali e depois se fosse, deixando-a tristonha, solita... solita
como se queda uma novilha prenha. E depois, ah, isso já se sabia,
depois ia virar puta de rancho, puta de bolicho e no fim uma daquelas
reiúnas que vira algumas vezes na carreteira, abanando em desespero
para caminhão de gado (FARACO, 2004: 23).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Em “Dois guaxos”, como em geral o é toda a obra regionalista de Sergio


Faraco, a linguagem recria o registro campeiro com sua peculiar sintaxe, seus
silêncios e interjeições próprias. A condição de entre-lugar permeia não só a
reprodução das falas de gente simples por meio do registro letrado, mas se
expressa, ainda, no vocabulário imiscuído de castelhanismos próprios da
campanha: charlas, recuerdo, solita, emborrachava, más allá... Na mesma trilha, o
signo do “entre” é ponto a toda hora configurado: nem adultos, nem crianças;
nem abandonados, nem criados com zelo; nem proprietários, nem sem-nada;
nem analfabetos, nem educados; em algum lugar entre a civilização e a
barbárie, os irmãos desse conto estão de tal forma esmaecidos que, da última
vez que Maninho vê o pai, a chama do candeeiro “ia mermando, cedendo
espaço às sombras” (FARACO, 2004: 24), e, ao despedir-se de Aninha, a tênue
claridade “fazia do corpo dela um vulto acinzentado” (FARACO, 2004: 24), nem
invisível, nem nítido.
É notável a distância entre uma narrativa como essa e os casos de
gaúchos valorosos que permearam a conformação do sistema literário sul-rio-
grandense. Outrora, os afãs nacionalistas requeriam que os castelhanos fossem
os culpados pela degradação dos costumes e pelo desrespeito às mulheres, à
família e à pátria. Ainda em Érico Veríssimo, são os castelhanos que destroem o
rancho de Ana Terra, matam seus familiares, roubam os mantimentos e a
estupram. São também os castelhanos que tentam tirar vantagem do homem
simples em “Deve um queijo!...”, conto de João Simões Lopes Neto, o mesmo
autor dos versos: “Ó galego, pé de chumbo / Calcanhar de frigideira / Quem te
deu confiança / De casar com brasileira?”. Na narrativa de Faraco, ao contrário,
é do lado de cá da fronteira que a “a família ia bichando, ia ficando podre, ia
virando pó” (FARACO, 2004: 24).
O sofrimento acarretado pela vida na fronteira e a indiferença ante o
signo da autoridade é ainda mais visível no conto “Travessia”, que se passa a
analisar.
Se a imagem da travessia induz o leitor ocidental a lembrar de Caronte, o
barqueiro das almas, a cruzar o rio que separa a vida da morte, as chalanas de

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Faraco sugerem um ritual menos apocalíptico, embora não menos desgraçado.


Ir daqui para lá ou de lá para cá dá igual para quem sabe, de antemão, que
independentemente de pátria, governo ou autoridade, seguirá à margem. E é
por isso que, também para os chibeiros do conto “Travessia”, a definição do
Outro não se dá por critérios de nacionalidade.
“Travessia” está narrado em primeira pessoa, sob a perspectiva de um
menino que está sendo inserido por seu Tio Joca na prática do chibo. Fica claro
que entre Alvear e Itaqui há mais do que um rio: nota-se uma zona de
confluência a irmanar os homens sujeitos a esses fluxos de deslocamento para
ganhar a vida. E o inimigo, neste conto, é, como sempre foi, o representante da
autoridade de um Estado conformado em especulações longínquas e
indiferentes ao homem fronteiriço, um Estado do qual pressente não fazer
parte. Para além da crise que assola o elemento jurídico-político do Estado
como um todo, o indivíduo submetido ao entre-lugar da jurisdição sofre, ainda,
com a negação de seu rosto e de seu sustento nesses confins empobrecidos pelo
descaso dos tomadores de decisão. Para ganhar o pão, o menino sai com o tio a
aprender como funciona a vida na fronteira. Os castelhanos estão presentes na
narrativa, mas não como inimigos. Não há preocupação, aqui, com a fronteira a
ser guarnecida, com a questão política; o que prevalece é a questão humana. A
identificação desse personagem que sobrevive à fronteira (e da fronteira)
constitui um auto-reconhecimento precário e desvinculado das noções de pátria
ou nacionalidade.
Tomando vinho, no rancho de André Vicente, em Alvear, Tio Joca “como
sempre, contou velhas e belas histórias de lutas de chibeiros contra os fuzileiros
do Brasil” (FARACO, 2004: 33). O lanchão dos fuzileiros é apelidado de “bote dos
maricas” (FARACO, 2004: 34), o que indica a contradição entre defensores de um
ideal de “nação”, que são os afeminados, em oposição ao gaúcho/gaucho
valente, que tira seu sustento enfrentando as agruras do rio. Contudo, nem
mesmo esse gaúcho escapa à sina da fronteira. Ao serem abordados pelos
fuzileiros, não reagem: jogam a encomenda na água e disfarçam a razão de estar

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à deriva. A luta entre o homem simples e a autoridade nem sempre tem um


final feliz.
Não obstante, fica evidente, no conto, que até mesmo os representantes
da Nação brasileira não conseguem escapar às influências decorrentes do viver
no entre-lugar. Inseridos como estão numa zona de contato, os fuzileiros têm
sua linguagem imiscuída de castelhanismos locais. Ao surpreender a chalana à
deriva, diz o tenente: “Bueno, venham daí, eu puxo essa chalana rio acima”
(FARACO, 2004: 37). E, em seguida, passando a mão na cabeça do menino: “Tão
chico e já praticando, hein? Essa é a vida” (FARACO, 2004: 37). Os exemplos da
interferência entre os idiomas (grifadas, aqui, num itálico inexistente no texto
original), a ter lugar inclusive entre os representantes do Estado, são relevantes
ante a observação que Guilhermino César já tecia a propósito desses pagos em
que a marca da cidadania era feita pelo idioma, pois, no anonimato do entre-
lugar pampiano, “a fala materna fazia as vezes de certidão” (CÉSAR, 1978: 44).
Os temas literários perpetuados por Sergio Faraco, contudo, vão além
daqueles que ele propôs na sua senda de contista. Como tradutor de grandes
nomes latino-americanos, Faraco introduziu no sistema literário brasileiro os
temas e, enfim, a presença daquele outro platino, com suas confluências e suas
orientações estéticas tão semelhantes às do gaúcho brasileiro. Entre os tantos
outros que Faraco se propôs a assimilar, num paradoxal construto de
identidade/alteridade, convidando para o diálogo e para o respeito
incondicional, o uruguaio Mario Arregui talvez tenha sido o mais importante.
Conformando uma espécie de “espelho” da narração da fronteira e da memória,
a tradução que Sergio Faraco fez de Arregui veio a incidir sobre a tradição sul-
rio-grandense como a frincha entre o eu e o outro, caracterizado este último,
concomitantemente, como o “não-eu” e o formador do “eu”. Além de Arregui,
Faraco traduziu Eduardo Galeano, Mempo Giardinelli, Carlos Maggi, Eugenio
Montejo, Juan José Morosoli, Julián Murguía, Horacio Quiroga, Guido
Rodríguez Alcalá, Miguel de Unamuno, Roberto Arlt e outros grandes nomes
da literatura latino-americana. Simbolizando a integração em detrimento da

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

perspectiva que outrora significava ameaça, Faraco alimentou-se (e alimentou-


nos, ao sistema literário brasileiro) da narrativa dos correlatos platinos.

Considerações finais
Rompendo com a construção do gaúcho mitificado, a narrativa de Faraco
deixou à mostra duas importantes premissas: (1) a tradição sul-rio-grandense
continua em voga: a escrita imiscuída de castelhanismos, os temas próprios do
pampa e os personagens submetidos aos dramas da fronteira seguem
compondo narrativas ao gosto do leitor contemporâneo; (2) o regionalismo teve
de ser revisado para seguir atraente ao consumo de leitura da pós-
modernidade: o leitor ainda precisa da identificação com o lugar na literatura,
porém não busca a construção literária do Rio Grande do Sul como cosmos
perfeito e acabado. Em meio a tudo isso, essa nova literatura reformula o Eu em
frente às tradições e os pilares identitários, ao passo que a imagem do Outro
castelhano vai sofrendo um novo enfoque, mais afeita à queda de barreiras
culturais, políticas e econômicas. Um novo projeto político, pois, que Faraco
soube levar muito bem em sua obra de escritor, crítico e tradutor.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

A diferença e a repetição numa Viagem ao México

M. Sc. Angela Mascarenhas Santos∗

Resumo: O entrecruzamento dos discursos teórico-ficcional de Silviano Santiago permite uma


leitura do romance Viagem ao México mediada pelas teorias desconstrutora e de reversão do
platonismo. Este estudo, ao refletir sobre os parâmetros da cultura etnocêntrica usados na
narrativa e os modos dessa utilização, constata que o reconhecimento da inevitabilidade da
dependência cultural na narrativa dá-se de modo transgressor, associado à afirmação positiva
da “diferença” e num processo de “repetição”.
Palavras-chave: repetição, diferença, dependência cultural.

A formação plural e a diversidade das experiências profissionais


vivenciadas ao longo da carreira fizeram de Silviano Santiago um intelectual
múltiplo, incorporando um dos traços do intelectual contemporâneo. Ao atuar
como professor, orientador de pesquisa, crítico literário, teórico em literatura e
mediador cultural sem impor limites ou fronteiras fixas, elege um espaço
nômade de saber através dos frequentes deslizamentos, entrecruzamentos,
migrações e transmigrações entre as produções textuais e as várias atuações
(HOISEL, 2008). Esse entrecruzamento discursivo constitui um campo fecundo
de pesquisa e foi sobre ele que esse trabalho se debruçou.
A dependência cultural das nações latino-americanas configura como
um dos principais temas de reflexão da produção desse intelectual, ao qual ele
dedicou não apenas ensaios e artigos, mas também abordagens ficcionais,
como, por exemplo, o romance Viagem ao México (1995).


Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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Em face da dependência cultural, o escritor dedica especial atenção ao


que ele denomina de dilema do intelectual latino-americano, consistente em
submeter-se inteiramente ao modelo etnocêntrico ou de negá-lo em sua
totalidade e voltar-se para a ancestralidade autóctone. A esse dilema, Silviano
Santiago elege como alternativa a constituição de um lugar intermediário
“entre” os dois extremos, uma vez que, diante da introjeção dos elementos da
cultura dominante, não há meio de recusar-lhe as influências, além do que a
extinção de muitos elementos das culturas autóctones impede o seu resgate
integral. Esse “entrelugar” permite ao intelectual a observação, a análise e a
interpretação dos diversos elementos culturais responsáveis pela sua formação.
Como resultado de suas análises o escritor sustenta que a dependência
cultural dever ser assumida pelo intelectual latino-americano como inevitável,
só que tal assunção não se dá de modo pacífico e ordeiro, mas acompanhada de
uma postura crítica e transgressora. Para tanto, cabe ao intelectual selecionar
aquilo que, na tradição etnocêntrica, abre espaço para a transgressão, aquele
aspecto da tradição que, alcançando uma potência extrema, salta em direção ao
outro, num legítimo movimento de “repetição” em “diferença”.
Para promover esse processo de observação, análise, interpretação,
crítica e transgressão da cultura etnocêntrica, Silviano Santiago propõe que seja
adotada a noção de “diferença” cunhada a partir das propostas teóricas de
Jacques Derrida (1991; 1995; 2006) e Gilles Deleuze (2006a; 2006b), aliado a
outros aspectos da desconstrução e da reversão do platonismo. Todas essas
noções, então, são usadas como conceitos operacionais de leitura.
A escolha desse referencial teórico para pensar os textos produzidos sob
a égide da dependência cultural decorre do fato desse conjunto rejeitar os
conceitos previamente concebidos acerca do “outro” e considerar a “diferença”
como traço positivo.
Isto porque os trabalhos de Jacques Derrida (1991; 1995; 2006) e Gilles
Deleuze (2006a; 2006b) provocam uma ruptura no pensamento metafísico de
origem platônica. Este está relacionado à existência de um centro único, de uma
origem, onde reside a Ideia. A partir desse centro, uma série de oposições se

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

organiza numa escala de valores definidos em face da proximidade com o


centro: quanto mais próximo, mais positivo, quanto mais distante, negativo.
Nessa escala, então, a fala é a “voz da alma” e tem uma relação direta com o
centro; já a escritura é a representação da fala e tem um caráter secundário. Esse
fonocentrismo determina a formação do pensamento ocidental, o qual se
ordena privilegiando a identidade, a semelhança e o mesmo em face de uma
suposta proximidade com a Ideia, ao tempo em que recalca a diferença, a
dessemelhança e o outro, pelo suposto distanciamento dela.
Refletindo acerca da razão de ser do centro, mas ciente da
impossibilidade de despir-se da linguagem oriunda desse pensamento
ocidental, Derrida (1991; 1995; 2006) questiona o sistema no seu interior,
buscando modelos e conceitos que não se sujeitem a ele. Como corolário desse
exercício reflexivo, o pensamento derridiano rasura algumas noções caras ao
pensamento metafísico, como as de origem, presença, centro, as oposições
metafísicas e a carga de valores a elas relacionada. Além disso, erige outras
noções, como as de “diferença” – entendida como movimento de significação e
efeito desse mesmo movimento –, differánce – vista como causa produtora de
diferença e seus efeitos –, e as noções de suplemento, temporização e
espaçamento.
No que diz respeito ao pensamento de Deleuze (2006a; 2006b), mereceu
destaque neste trabalho o movimento de reversão do platonismo e a liberação
da “diferença” como potência primeira, que deixa de ser submetida ao conceito
de identidade. Além disso, foram destacadas, ainda, as noções de “diferença”,
“eterno retorno” e “repetição”.
Assim, por meio dessas propostas teóricas, a “diferença” sai do lugar de
inferioridade, ao qual foi relegada por força do pensamento metafísico
ocidental fundado na identidade, e assume sua força afirmativa como potência
primeira, como possibilidade de significação dentro de um determinado
sistema, fora do qual inexiste sentido preestabelecido. Em se tratando de um
jogo que, por precedê-las, torna possível a significação e a determinação de um
conceito, a “diferença” não pode ser aferida em si mesma, pois ela não se deixa

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submeter aos limites do conceito e, via de consequência, às regras do sensível,


da percepção e da representação. A “diferença”, então, tem uma dupla feição,
por corresponder ao jogo diferencial responsável pela significação e
conceituação e, a um só tempo, ao efeito desse mesmo jogo. Assim sendo, a
“diferença” não é passível de percepção enquanto jogo, mas o é apenas
enquanto efeito, acontecimento ou fenômeno.
Desta forma, munidos desse acervo teórico, partimos para o exame do
modo como ele foi acionado no romance Viagem ao México. Nesse sentido, deve-
se, em princípio, considerá-la enquanto força atuante no interior do processo de
escrita. Parte-se, então, do pressuposto de que Silviano Santiago tem ciência e
consciência da atuação da “diferença” no processo de elaboração da escrita
ficcional e da sua potência afirmativa, tanto que algumas das propostas teóricas
referendadas na sua não-ficção aparecem no romance de modo explícito.
Por outro lado, vários de seus efeitos podem ser mapeados no decorrer
do romance, quer no modo como a tradição foi assumida na escrita ficcional,
quer no modo como algumas noções teóricas funcionam de modo mais direto
no processo da escrita. Contudo, diante da impossibilidade de fazer um
apanhado exaustivo das duas estratégias, foram selecionadas algumas delas,
que passam a ser explicitadas.
Viagem ao México constitui uma prosa limite, um misto de romance,
diário, biografia e ensaio, que rompe as já frágeis fronteiras dos gêneros
literários. Ele relata a viagem do dramaturgo francês Antonin Artaud ao México
realizada no ano de 1936, com o objetivo de buscar na cultura ancestral
mexicana elementos de renovação do decadente teatro burguês ocidental e da
sociedade europeia. Apesar de acolher na narrativa diversos dados históricos e
biográficos de Antonin Artaud e do próprio Silviano Santiago, trata-se de uma
escrita ficcional.
Paralelo à narrativa da viagem de Antonin Artaud, Silviano Santiago
reflete sobre o processo de colonização do Novo pelo Velho Mundo, a
dependência cultural e as relações pós-coloniais; sobre a constituição da
identidade e da alteridade na América Latina; e, ainda, sobre o papel do escritor

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

na sociedade moderna, particularmente do escritor latino-americano, associado


ao processo de elaboração da escrita. Todas essas características fazem de
Viagem ao México um texto complexo, que assume a dobra ficcional-ensaística
explicitamente. Para nossa sorte, contudo, o leitor pode contar com a gentileza
do escritor, que desde o início adverte quanto às estratégias ficcionais que serão
usadas ao longo da narrativa, preparando-o para o porvir. Isso se verifica a
partir da própria dedicatória, cujo teor ora transcreve:

A Heitor, Teresinha e Enrique Cortés,


sem eles,
à cidade de Albuquerque (Novo México),
sem ela,
eu não teria sido um outro. (SANTIAGO, 1995a: 5)

Logo, já na dedicatória o escritor aponta para o fato de que a escritura é o


espaço propício para o encontro com o Outro e com a diferença. Também dá a
entender que naquele texto em particular não se furtará a esse enfrentamento.
Prosseguindo na identificação das pistas dadas pelo escritor, deparamo-
nos com o trecho de uma carta de Antonin Artaud endereçada a Jean Paulhan,
“[...] datada de 1º de junho de 1934, em que aquele comenta as reações
violentamente negativas deste à peça de teatro Héliogabale” (SANTIAGO, 1995a:
7), que funciona como epígrafe do romance. O trecho remete para o limite entre
o ficcional/mentira e o real/verdade, tema recorrente na produção de Silviano
Santiago, demonstrando o papel da linguagem como elemento construtor
dessas noções. Portanto, denuncia que as clássicas oposições metafísicas não
terão lugar na narrativa que se apresentará em seguida.
De posse dessas advertências, o leitor adentra ao romance Viagem ao
México, sendo recebido por um exórdio que, como o nome denuncia, faz um
preâmbulo da narrativa, mais uma vez alertando quanto aos elementos de sua
composição. Aqui o narrador – que também é escritor – entra em cena, expondo
a assimilação da tradição etnocêntrica e o diálogo que com ela se estabelecerá,
não se esquivando de esclarecer que a “diferença” será a grande mediadora, daí
decorrendo a necessidade de transmudar-se em monstro.

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Vencendo a análise dos elementos introdutórios da narrativa, partimos


para examinar o modo como se processa a assunção transgressora da
dependência cultural no interior do romance. Ela pode ser verificada, num
primeiro momento, na escolha da “viagem” como motivo narrativo. Contudo,
ao tratar de um motivo canônico da literatura ocidental, o escritor não se limita
a repetir o mesmo e conhecido tema. Ao contrário, trabalha com seus múltiplos
sentidos, como o de deslocamento físico, o de percurso pela subjetividade e
como metáfora do processo de escrita.
Enquanto deslocamento físico, a narrativa trata das mais diversas razões
das viagens empreendidas pelo estrangeiro, desde a confirmação do ideário
exótico até o interesse numa colonização tardia, ponto em que o romance
dialoga diretamente com o ensaio do próprio escritor denominado “Por que e
para que viaja o europeu?” (2002). Mas é a viagem de Artaud que oferece a
melhor oportunidade para transgredir o tema canônico, pois ela tem, em suas
motivações, uma proposta desconstrutora de questionamento dos limites da
tradição etnocêntrica e de resgate de culturas não-ocidentais. Trata-se de uma
viagem em sentido inverso às viagens colonizadoras, já que Artaud quer
“descolonizar” o México e levar para a Europa os valores da ancestralidade
mexicana.
Segundo a avaliação de Artaud, o início do séc. XX enfrenta um
esgotamento da cultura europeia como um todo. Em função disso, ele
empreende a viagem exatamente para coletar elementos que permitam ao
continente retornar aos deuses e ao mito, renovando, assim, seus traços
culturais. Associado a isso, Artaud imbui-se da missão de levar ao México uma
proposta descolonizadora que possibilite o resgate da ancestralidade perdida
no curso do processo de colonização. Por outro lago, Artaud também sai em
viagem para buscar uma solução para os vários problemas de sua vida, num
propósito de renovação pessoal.
A primeira referência à “viagem” é feita no Canto I do romance. Na
posição de escriba do protagonista, o narrador ouve o vocábulo “viagem” e
interrompe a transcrição da fala de Artaud para descrever a postura da

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personagem no momento em que a profere; em seguida, Artaud retoma a fala e


compara a experiência da viagem à penetração na sala de cinema. Em assim
procedendo, o narrador nos direciona para a amplitude do sentido do vocábulo
na narrativa. Na tentativa de elucidar o seu alcance subjetivo, ele utiliza uma
série de imagens (embrulho compactado, prensas gigantes, carros prensados),
denunciando a incapacidade de a narrativa moderna relatar as experiências
vivenciadas, diferentemente do que acontecia com as narrativas clássicas que
contavam as experiências dos antigos marinheiros. O termo adquire no texto
uma dimensão de significado desprovida de referencial absoluto na linguagem,
por mais que esta se esforce para abarcá-la, tornando necessária a utilização de
outras estratégias, como a do conjunto de imagens invocado. Por isso, ao longo
do texto, o narrador/escritor também enfrenta uma difícil viagem pela
construção de uma narrativa moderna, que não pode mais contar com as
certezas verificadas na narrativa clássica.
Logo, ainda que o motivo dessa narrativa seja canônico (a viagem), ela
não repete o “mesmo” da tradição literária etnocêntrica, até porque a sociedade
moderna assim não permite. A “repetição” dá-se, necessariamente, em
“diferença” e o motivo canônico solicita o apoio de outros recursos para obter
significação. Trata-se, segundo leitura proposta por Gilles Deleuze (2006a;
2006b), da seleção das “diferenças” que suportam a prova do eterno retorno,
pois não é tudo que retorna, mas somente as formas extremas, aquelas que
alcançam o extremo da potência e saltam como repetição em direção ao outro.
Simultaneamente à utilização da “viagem” como motivo, Viagem ao
México elege como paradigma a epopeia clássica, tanto assim que estrutura o
texto em exórdio, cantos e epílogo. No entanto, seu modelo específico é Os
Lusíadas de Camões, aqui, mais uma vez, operando de modo desconstrutor, com
a finalidade de rasurar e transgredir o modelo.
A escolha de Os Lusíadas decorre do fato de ambas as viagens terem um
caráter de “conquista”. Entretanto, seus “heróis” trabalham com noções opostas
de “conquista”, uma vez que, enquanto para Vasco da Gama o propósito é
expansionista e colonizador, para Artaud a viagem tem por intuito ajudar o

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

povo colonizado a resgatar a ancestralidade autóctone perdida e,


paralelamente, pedir-lhe emprestado elementos para a renovação cultural da
França. Se no primeiro caso a Europa vai conquistar a América, no segundo, a
Europa sujeita-se a ser conquistada pela América. Desta forma, a aproximação
das duas viagens, por si só, constitui um modo de rasura do modelo.
Como se não bastasse, num jogo de aproximação e distanciamento, o
narrador empreende a reescrita de alguns episódios da epopeia lusitana,
incorporando-os e superando-os. O primeiro deles é a tempestade de Baco (Os
lusíadas, “Canto VI”, estrofes 70-84). Na epopeia lusitana, os navegadores
portugueses levam o novo e o diferente para a Índia, região “dominada” por
Baco, e a chegada deles com todo o aparato colonizador implica em ameaça
para a ordem anteriormente estabelecida. No caso de Viagem ao México, a
narrativa empreendida, por ser uma produção latino-americana, leva para o
seio da tradição literária de origem etnocêntrica o novo e o diferente, motivo
pelo qual enfrenta a resistência criada por toda uma ordem estabelecida por
essa mesma tradição. Assim, na reescrita do episódio o narrador admite a
tradição para questioná-la no ponto em que ela relega as narrativas produzidas
pela margem do mundo etnocêntrico ao segundo lugar, à condição de mero
simulacro. Os textos produzidos à margem, ao contrário de ofenderem a
literatura, consagram-na pela repetição, desde quando esta implica, a um só
tempo, na valorização e na transgressão do elemento repetido.
Reescrito também fora o episódio do Adamastor (Os lusíadas, “Canto V”,
estrofes 37-60). Do mesmo modo que o Adamastor é uma figuração do medo,
individual e coletivo, que alimentava o imaginário dos navegadores
portugueses desde a Idade Média, a reescrita do episódio no exórdio reporta-se
ao medo do narrador/escritor em enfrentar os percalços da escrita, e, para
tanto, inventa-se monstro. O contato com o desconhecido subverte o reino do
mesmo e instala, no espaço, o outro e a diferença, cujo enfrentamento inspira a
noção de perigo. Na escrita, assim como na viagem, também se enfrenta o medo
porque o escritor usa um sistema com leis e vida próprios (a língua), sobre o
qual não detém poder integral, fato que possibilita a produção de instâncias no

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texto que escapam ao seu comando, como esclarece Derrida em Gramatologia


(2006).
Portanto, como um mar nunca antes navegado, o processo de escrita
também comporta um confronto com o desconhecido, já que o escritor não
domina todos os limites da linguagem e não pode controlar tudo o que se
processa em sua escrita. Em função disso, do mesmo modo que os navegantes
portugueses superaram seus temores e enfrentaram o Adamastor, movidos pela
audácia, fá-lo o narrador/escritor no romance.
Selecionados o motivo e o modelo, restava ao escritor um protagonista e,
novamente, ele recorre à tradição etnocêntrica, pois escolhe um intelectual
francês para figurar como personagem principal, explicitando ainda mais a
dependência. Contudo, essa assimilação manifesta-se de modo transgressor,
posto que não se trata de qualquer intelectual, mas de Antonin Artaud, um
intelectual que assumiu a “diferença” no interior da cultura europeia. Ao eleger
como personagem esse artista maldito, o escritor denuncia que o modelo a ser
consagrado pelo intelectual latino-americano não é o modelo do mesmo, mas o
modelo da “diferença”, a mesma que o marca no seio da cultura ocidental.
Portador de uma genialidade ímpar, Artaud foi um crítico contumaz da
modernidade e da sociedade burguesa. Assim, no preciso momento em que
aborda de modo ficcional aspectos da vida desse artista e do próprio Silviano
Santiago, a narrativa aciona questões referentes à modernidade e à sociedade
burguesa, ratificando parte da crítica lançada pelo protagonista ao projeto da
modernidade, e suplementa-as, contextualizando-as na realidade latino-
americana e no final do século XX. Para tanto, estabelece um diálogo direto
entre o protagonista e seu narrador. Essa aproximação, inclusive, só se torna
possível porque este também é artista (escritor brasileiro), crítico das
contradições da modernidade e, por ser intelectual latino-americano, assimila a
“diferença” como traço identitário.
Além de recepcionar a crítica promovida por Artaud, o escritor, pelo seu
narrador, ainda se apropria de aspectos da vida do artista e de alguns
elementos das propostas artaudianas como estratégia narrativa. Dentre essas

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estratégias merecem referência o uso recorrente de dramatização em episódios


envolvendo o protagonista, tendo em vista a relação que ele mesmo estabelece
entre a vida e a arte. Considera o fato de Artaud levar para o interior da
própria vida uma postura de transgressão e de crítica social para dramatizar
várias situações reveladoras de sua personalidade. Como se não bastasse, vale-
se do seu vício e inspira-se no delírio, no sonho e na pintura para elaborar
imagens que possibilitem uma abordagem psicológica da personagem, mas
evitando o discurso excessivamente psicologizante. Em assim procedendo, o
narrador leva para o interior do romance – local de privilégio da palavra escrita
– a crítica ao excesso da palavra e do texto percebida na produção teórica do
protagonista.
Na tentativa, portanto, de evitar os excessos da palavra e possibilitar o
seu uso diferenciado, o narrador recorre às imagens, elaborando “quadros
verbais” que levam o leitor a sentir o texto pelo viés da leitura, e esquiva-se de
empreender uma análise psicológica introspectiva para priorizar uma descrição
psicológica comportamental (SANTIAGO, 1995b). Na mesma busca, toma como
parâmetro o cinema mudo e a defasagem nele existente entre a palavra e a
imagem para propor uma percepção fragmentada do texto, rasurando a
linearidade da narrativa, que não é mais possível no contexto moderno.
Com isso, a narrativa chama a atenção para o fato de que mesmo no
reino das palavras pode-se privilegiar as imagens e permitir-lhes expressar
sensações, cuja apreensão dispensa a interferência da razão. O escritor, em
suma, usa o espaço narrativo para explicitar vários aspectos do pensamento
artaudiano, promovendo, até mesmo, a reescrita de muitos dos textos inseridos
no livro O teatro e seu duplo, de Artaud (2006).
Debruçando-se na análise da teoria artaudiana, podemos observar que
um dos seus pontos reside na crítica ao caráter psicológico do teatro realista,
seu excesso de texto e sua linguagem. No momento em que o escritor reedita a
crítica na narrativa, vale-se da repetição em “diferença” para questionar se o
romance, inicialmente construído como espaço propício para explorar conflitos
individuais, ainda atinge sua finalidade dentro da atual configuração da

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sociedade moderna. No mesmo ato questiona a palavra, suas restrições e


limitações conferidas pelo uso comum, refletindo se ela ainda constitui meio
capaz de revelar a subjetividade do ser humano, suas inquietações, sensações e
sentimentos.
A narrativa recepciona a proposta artaudiana também no que diz
respeito à elaboração de uma linguagem própria para o teatro, partindo do
pressuposto de que o teatro deve ter uma ação violenta e imediata,
circunstância suprimida pelo teatro ocidental. Sua concepção teatral inspira-se
no teatro oriental e no teatro de Bali, com o qual teve contato em 1931. A
experiência desse contato é dramatizada no texto ficcional no momento em que
narra a visita à exposição em 1931 concomitantemente à rememoração de outra
realizada no ano de 1922, permitindo que as sensações sentidas pelo
protagonista sejam potencializadas pela memória. No desenrolar da cena, os
elementos de composição da proposta teatral de Artaud não são simplesmente
apontados na narrativa, de modo objetivo e racional, pois a fala do protagonista
constrói, perante os olhos do leitor, toda a cena teatral, levando-o para um outro
espaço e um outro tempo.
Essas considerações de Artaud em torno da linguagem dão corpo ao
“teatro da crueldade”, que, diante do esgotamento da cultura ocidental,
constitui um espaço de reconstrução e renascimento do homem. A “crueldade”
deve ser entendida não no sentido físico, mas de uma necessidade, como um
sopro de vida. O Teatro da Crueldade deve despertar nervos e coração, liberar
forças que provoquem um conjunto de máquinas desejantes; deve abalar todas
as representações e agir sobre o espectador de modo a não mais esquecer da
experiência. Se no texto ensaístico Artaud associa a crueldade no teatro à
experiência de dor e transformação vivenciadas na peste, a escrita ficcional a
relaciona ao sofrimento extraído do processo de desintoxicação. A compreensão
do efeito ressuscitador do Teatro da Crueldade torna-se possível na narrativa
em face da força, da ação e da crueldade do processo de desintoxicação. Neste
ponto, mais uma vez o narrador segue a orientação do dramaturgo, pois, apesar
de valer-se do texto, não se deixa escravizar por ele, criando quadros verbais na

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moldura da página que podem ser apreendidos pelo leitor tal como se fosse
uma pintura.
Enfim, o exame desses três elementos (motivo literário, modelo narrativo
e personagem) elucida o modo como a assunção da inevitabilidade da
dependência cultural se opera transgressivamente na ficção, seguindo a
proposta do próprio Silviano Santiago. A despeito disso, o escritor também
assume explicitamente a “diferença”, como pode ser constatado quando o
narrador afirma, logo no exórdio, a necessidade em inventar-se monstro em
função do contato com o outro, com o desconhecido e com a diferença que a
narrativa possibilita e, ainda, porque a narrativa terá como protagonista
Antonin Artaud, intelectual que encarnou a “diferença” no interior da tradição
europeia.
O monstro nada mais é do que a diferença. Assim, por ser um escritor
brasileiro, o narrador – representação do intelectual latino-americano e do
próprio Silviano Santiago – assimila a diferença na forma de traço constitutivo
de sua identidade. Ademais, o contato com o desconhecido e com o “outro”,
principalmente um detentor da “diferença”, tal como o protagonista,
potencializa a necessidade de assumir sua “diferença”. Como se não bastasse,
na narrativa, o monstro constitui, ainda, uma metáfora do processo criativo, no
qual o escritor inventa-se em outro(s) ser(es) e cria uma realidade diversa
daquela na qual está submetido.
A escrita é apresentada na narrativa como espaço propício para o jogo de
suplementariedade – um dos elementos associados à “diferença” derridiana.
Esse jogo manifesta-se explicitamente no interior do romance por meio da
interferência que o narrador faz na narrativa, suplementando a fala do
protagonista, bem como quando o narrador delega ao leitor a responsabilidade
de suplementar o texto escrito por meio da leitura. O romance trata da
construção de uma outra narrativa, a partir do relato de experiências que
Artaud faz para o narrador. Este, contudo, recusa-se a funcionar como mero
escriba e passa a inserir no relato situações por ele imaginadas e, até mesmo,
suas próprias experiências. Assim, o livro escrito pelo narrador suplementa o

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relato de Artaud, ao mesmo tempo em que o próprio romance Viagem ao México


suplementa o livro Os Tarahumaras, de Artaud (2000), sua única publicação
sobre a viagem empreendida, que, no entanto, restringe-se a abordar o período
em que ficou no interior do país, em contato com os índios tarahumaras. No
espaço deixado pela inexistência do relato quanto aos demais eventos
relacionados à viagem é que o romance de Silviano Santiago insere-se,
assumindo às escâncaras o caráter suplementar da escrita. Desse modo,
reafirma que não interessa ao escritor (seja ele próprio, o narrador ou qualquer
outro escritor latino-americano) simplesmente repetir o mesmo da tradição
literária; a escrita deve operar-se em suplemento, incorporando o texto fonte e
avançando na esteira dos significados não alcançados por ele.
Outro índice de reconhecimento da “diferença” identificado foi a relação
tempo/espaço constituída pela narrativa, que, inclusive, solicita1 a
sucessividade clássica. A narrativa trata de um diálogo estabelecido entre um
escritor brasileiro, que vive no Rio de Janeiro em 1990, com Antonin Artaud,
que mora em Paris em 1930. Não se trata de uma estória localizada da década
de 1990 com cenas em flashback para a década de 1930, mas de uma que
acontece a partir da relação de duas personagens situadas em tempos e espaços
diversos e, pela lógica racional, incomunicáveis. Estabelece-se, então, um
diálogo que atravessa o tempo, que condensa dois tempos originalmente
distintos num único tempo que é próprio da narrativa. Essa relação
tempo/espaço abala a linearidade da narrativa clássica. O narrador mais uma
vez aproveita a crítica empreendida por Artaud à linearidade verificada
também no teatro para estabelecer, em sua narrativa, uma relação
tempo/espaço que não encontra paralelo no pensamento metafísico ocidental.
Assim procede, também, por estar amparado nas proposições desconstrutoras
segundo as quais a escritura possui um tempo próprio que deve ser
considerado em seus limites, sob os quais são construídos os jogos
significativos.

1
No sentido de “[...] sacudir com um abalo que atinge o todo [...]” (DERRIDA, 1995: 16)

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Portanto, esses foram alguns dos efeitos do funcionamento da


“diferença” e da “repetição” observados no romance. Considerando-se o
caminho percorrido até aqui, podemos sustentar que no romance Viagem ao
México, ao assumir, de modo transgressor, que a dependência cultural é
inevitável e ao associar a essa assunção a valorização positiva da “diferença”
enquanto potência primeira, Silviano Santiago ratifica, numa narrativa de fim
de século, a proposta elaborada em sua produção ensaística em torno do papel
do intelectual latino-americano diante do impasse gerado pela impossibilidade
de negar a dependência e de resgatar a ancestralidade autóctone. Para esse
escritor, a “diferença” parece ser a melhor saída na construção de uma
identidade necessariamente marcada pela hibridação de culturas, pois, segundo
as palavras de Raúl Antelo (2007) lançadas no ensaio “Rua México”, “[...] ‘o
ritual antropófago da literatura latino-americana’ seria a constante construção
de uma diferença, que é ainda uma busca, en si mesma, de um modo sul-
americano e tropical de sermos universais”.

Referências bibliográficas

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Disponível em: <http://www.pacc.ufrj.br/z/ano3/02/raulantelo.htm>. Acesso
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(Org.). Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG;
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2008. p. 143-169. (Col. intelectuais
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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência


cultural. São Paulo: Perspectiva, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do
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______ Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de
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______ Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

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O conceito de devir a partir da filosofia da diferença

Maicon Barbosa∗

RESUMO: Este trabalho tem como foco pensar o conceito de devir presente no pensamento
de Gilles Deleuze e Felix Guattari, e para isso, foi necessário problematizar o conceito em
questão a partir de quatro eixos: no primeiro, há uma distinção entre devir e mimese; no
segundo, opera-se uma aproximação entre o conceito de devir e o conceito de diferença, para
distinguir um processo de devir do movimento de tomar a forma do outro; no terceiro, o
conceito de devir articula-se à noção de corporeidade; e no quarto eixo, ocorre uma
problematização do devir enquanto uma maneira de efetuação de movimentos micropolíticos,
que criam outros modos para a existência.

Palavras-chave: devir, diferença, pensamento.

Introdução

Para pensar o conceito de devir a partir do pensamento de Gilles Deleuze


e Felix Guattari torna-se necessário a construção de quatro eixos de análise. No
primeiro, tentaremos fazer uma distinção entre devir e imitação, pegando o
conceito de mimese em Aristóteles, e situando as proximidades da imitação em
relação às formas e do devir em relação às dimensões pré-formais, que,
inclusive, dão condições para o surgimento das formas. No segundo eixo,
faremos uma articulação entre devir e diferença, para entendermos que esse
movimento não se equivale a transformar-se no outro. A diferença se
presentifica no devir e impossibilita que o processo seja uma pura e simples
repetição invariável de formas, ou seja, a presença da diferença no devir não o
conduz a um ato de transformar-se no outro, mas sim, a um movimento de


mestrando em Psicologia Social e Política, Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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tornar-se outrem, sempre na sua diferença. O terceiro eixo nos coloca o


problema da constituição e do desmanchamento de um corpo. Será necessário
esboçarmos as duas dimensões concebidas por Deleuze e Guattari – a partir do
pensamento de Spinoza – que constituiriam um corpo: uma dimensão cinética
ou longitudinal e outra dinâmica ou latitudinal. Assim, articularemos o conceito
de devir à composição-decomposição de um corpo. O quarto e último eixo
tratará da indissociabilidade de um devir em relação aos modos de vida
minoritários, que escapam à hegemonia das formas imperativas num
determinado registro. Nesse ponto, será preciso muito cuidado para não
concebermos um devir como uma contraposição nem como um processo
dialético de reação às formas estabelecidas. O devir diz respeito a uma
produção de diferença, que estende outros rumos para a vida, e não se reduz às
concepções de reação, de contraposição e de negação.
Quando nos propomos a pensar o problema do devir que atravessa o
pensamento de Deleuze e Guattari, não se trata de buscar um conceito que se
coloque como princípio explicativo. A nossa empreitada é de outra ordem. Para
Heráclito, por exemplo, o problema colocado era o de pensar a arqué, o
princípio organizador do mundo, e para isso, ele concebe o fogo como
fundamento. É com Heráclito que o conceito de devir começa a se formular,
num estilo de escrita que já não se filiava ao arcabouço mitológico do mundo
helênico, e que ainda não havia feito a separação – presente em larga escala na
tradição filosófica ocidental – entre palavras e coisas. Maurice Blanchot (2007)
faz uma interessante pontuação em relação ao pensamento de Heráclito e a
separação entre palavras e coisas, que, em certa medida, aproxima-se também
da noção de separação entre corpo e alma:

Heráclito – eis aí sua obscuridade, eis aí sua clareza – recebe a fala


tanto das coisas quanto das palavras (e para devolvê-la a elas como
que invertida), falando ele próprio com umas e com outras e, mais
ainda, colocando-se entre ambas, falando – escrevendo – por esse entre
ambas e a separação de ambas, que ele não imobiliza mas domina,
porque está orientado para uma diferença mais essencial, para uma
diferença que certamente se manifesta, mas não se esgota na distinção
que nós, ligados que estamos ao dualismo do corpo e da alma,

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estabelecemos de maneira por demais decidida entre palavras e aquilo


que elas designam (BLANCHOT, 2007: 18).

O interesse de Heráclito está nas mudanças constantes que produzem


um mundo móvel, e não nas regularidades e estabilidades que constituiriam
um determinado estado de coisas. O devir é um conceito que cria um plano de
visibilidade para a questão das passagens intempestivas e aleatórias, dos
movimentos cósmicos que constituem a própria vida. O fogo, elemento que
Heráclito concebe como o princípio organizador do cosmo, expressa-se como
transformação infinita. “Este mundo, o mesmo de todos os (seres), nenhum
deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-
se em medidas e apagando-se em medidas” (HERÁCLITO, fr. 30, 1973).
Curiosamente, o elemento que se coloca como princípio de tudo, como arché, é
justamente esse elemento ígneo em eterno devir. Desse modo, Heráclito coloca
como central para o pensamento o problema das transformações que modificam
e constituem o universo. Entretanto, diferentemente do problema que se punha
diante de Heráclito – pensar um princípio organizador do cosmo que era a
própria encarnação do devir –, o nosso problema não nos encaminha para a
construção de um conceito de devir que abarque qualquer forma de expressão da
vida.
Seria muito mais apropriado falarmos sempre em um devir do que em o
devir. Não se trata de construir um conceito que funcione como fundamento
explicativo. O uso do artigo indefinido antes do verbo que nomeia o conceito indica
a necessidade de pensar um devir a partir das singularidades de uma experiência, o
que nos leva para longe de uma construção metafísica do conceito enquanto uma
entidade universal e onipresente. O conceito de devir se constrói a partir de
concretudes do real, ou das realidades engendradas, e não por meio de exercícios de
abstração separados da experimentação da vida. Zourabichville (2004) aponta que
não seria viável pensar um devir como um conceito que serviria para qualquer
realidade.

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Acima de tudo, devir não é uma generalidade, não há devir em geral: não se
poderia reduzir esse conceito, instrumento de uma clínica fina da existência
concreta e sempre singular, à apreensão extática do mundo em seu
universal escoamento - maravilha filosoficamente oca (ZOURABICHVILLE,
2004, p. 48).

Devir e mimese
Um devir nunca é uma imitação. Mas, em que implica a afirmação de
que devir não é imitar? Será que o conceito de devir estaria excluindo a
possibilidade de imitação? Parece-nos que o devir não anula a possibilidade de
emergência das imitações. Porém, é assaz importante marcarmos que a noção
de imitação está próxima da idéia de uma representação do real, ou seja, imitar
seria sempre imitar algo ou alguém, sempre imitação de uma forma, de um
sujeito. Uma diferença fundamental se desenha entre um devir e uma imitação.
Para esta última, o que importa é assemelhar-se à forma pretendida, ao sujeito
intentado. Entretanto, num devir, o que se passa é anterior às formas e sujeitos.
Trata-se, num devir, dos movimentos das linhas que compõem um corpo, das
passagens moleculares que arregimentam partículas numa condensação
temporária para constituir um cruzamento que delineia um outrem, sempre em
vias de nascimento e de morte. O devir não estaria no plano do sujeito, nem
submetido às formas instauradas, já que ele opera de maneira muito
infinitesimal, decompondo silhuetas duras num gradiente de velocidades e
lentidões inapreensível à dimensão formal. Esse movimento de passagem,
levado ao infinito, efetua-se num plano pré-individual, que antecede a
constituição das formas e dos sujeitos.

É que devir não é imitar algo ou alguém, identificar-se com ele.


Tampouco é proporcionar relações formais. Nenhuma dessas duas
figuras de analogia convém ao devir, nem a imitação de um sujeito,
nem a proporcionalidade de uma forma. Devir é, a partir das formas
que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das
funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos
relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais
próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das
quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo
(DELEUZE; GUATTARI, 1997: 64).

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Como pontuamos que o devir não é uma imitação, torna-se necessário a


problematização do conceito de mimese para que a distinção seja mais
precisamente demarcada. Aristóteles, nos primeiros momentos da Poética,
afirma que todas as espécies de poesia produzidas até então no mundo grego
são imitações da natureza. Para ele, a mimese é uma característica da essência
humana que possibilita qualquer tipo de aprendizagem, e que é sempre
carregada de prazer.

Ao homem é natural imitar desde a infância – e nisso difere ele dos


outros seres, por ser capaz de imitação e por aprender, por meio da
imitação, os primeiros conhecimentos –; e todos os homens sentem
prazer em imitar (ARISTÓTELES, 2004: 40).

A arte seria um processo de imitação da natureza; a mimese artística


efetuar-se-ia em detrimento de uma forma natural. A concepção de imitação em
Aristóteles difere muito da perspectiva traçada por Platão, pois este a entendia
como um desvio da essência, implicando uma série de perigos (REALE, 2007).
Mesmo com a inversão conceitual operada por Aristóteles – que coloca a
imitação não mais como desvio, concebendo-a enquanto elemento ontogênico
dos humanos – parece-nos que o conceito de mimese não é suficiente para dar
conta do problema que o devir instala, já que a imitação é sempre em relação a
uma forma constituída, refere-se a um ato de tornar-se semelhante a uma
determinada expressão cristalizada da natureza. Evocamos a voz de Henri
Bergson para que outra visibilidade possa tomar partida, pois ele recoloca,
sobre outros termos, o problema das formas presentes no mundo.

Ora, a vida é uma evolução. Concentramos um período dessa evolução


numa vista estável a que damos o nome de forma e, quando a
mudança se tornou suficientemente considerável para poder vencer a
feliz inércia de nossa percepção, dizemos que o corpo mudou de
forma. Mas, na verdade, o corpo muda de forma a todo instante. Ou
antes não tem forma, uma vez que a forma é algo imóvel e a realidade
é movimento. O que é real é a mudança contínua de forma: a forma não

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é mais que um instantâneo tomado de uma transição (BERGSON, 2005, p.


327).

O que Bergson sinaliza nesse trecho de A evolução criadora é que a forma


seria apenas um momento em que cristalizamos nossa percepção em relação ao
movimento contínuo do real. Quando Deleuze e Guattari (1997) falam em devir,
não se trata de pensar um sujeito prévio que teria em vista um sujeito posterior.
O devir não diz respeito a um par que colocaria de um lado anterior o sujeito
que devém e do lado posterior o sujeito no qual aquele primeiro se tornou, ou
ainda, um devir não se articula dentro da noção de que há um sujeito que imita
e outro que é imitado. Usando um pouco a força do enunciado bergsoniano,
aquele que imita uma forma relaciona-se mais com uma cristalização do
movimento do que com o movimento em si que compõe o real. Essa é uma
marcante distinção entre devir e mimese, pois, esse último conceito implica a
concepção de que há um sujeito que imita e outro sujeito que fornece as
coordenadas para que a imitação se realize. O segundo sujeito, aquele que é
imitado, não se altera pela imitação, e permanece invariável. Quando
Aristóteles escreve que a comédia era a imitação dos homens inferiores, e que a
tragédia, a imitação, em versos, de homens superiores, não se concebe que esses
homens imitados transformam-se pela imitação. Eles servem apenas de modelo
para que as artes possam imitar suas naturezas. Porém, no horizonte conceitual
do devir, os termos são arrastados pelo próprio movimento, e cavalgam linhas
outras de composição.

A relação mobiliza, portanto, quatro termos e não dois, divididos em


séries heterogêneas entrelaçadas: x envolvendo y torna-se x', ao passo
que y tomado nessa relação com x torna-se y'. Deleuze e Guattari
insistem constantemente na recíproca do processo e em sua assimetria:
x não "se torna" y (por exemplo, animal) sem que y, por sua vez, venha
a ser outra coisa (por exemplo, escrita ou música) (ZOURABICHVILI,
2004: 48).

Opera-se num devir um movimento de reciprocidade em que os corpos


envolvidos na relação passam por outras zonas de expressão, ganhando

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diferentes forças e diferentes sensibilidades. Mas, essa reciprocidade não


desencadeia uma simetria. O movimento recíproco funciona por assimetria,
pois não se trata de proporcionalidade dos devires. Os corpos envolvidos num
devir diferem de si mesmos, e por isso o movimento é recíproco, entretanto,
essa passagem para outra modulação existencial não é simétrica, e faz coexistir
infinitesimais diferenças de devires que tomam inúmeras espessuras. Esse
parece ser o principal traço distintivo entre um devir e uma imitação, que serve
para colocar o conceito de devir numa posição na qual não seja necessário
submetê-lo a nenhum horizonte conceitual distante dos problemas que ele
dispara.

Diferir de si mesmo

Se um devir fosse um ato de transformar-se no outro, estaríamos diante


de uma simetria de formas, que rearranjaria as linhas de composição de um
corpo de modo que reproduziria o arranjo das linhas constitutivas de um outro
corpo. Como seria possível essa simetria e essa reprodução formais? Tal questão
nem chega a se constituir como um problema, ou talvez, não é pertinente para a
construção do problema que o conceito de devir estende. Essa confusão entre
devir e transformar-se no outro pode ser dissipada quando atentamos para as
afirmações que Deleuze (1997) faz, pontuando que um devir não se liga ao
plano das formas, ou seja, não se trata de alcançar uma determinada forma, de
chegar a uma forma ideal ou idealizada.
Para alargar essa distinção, um ponto que precisamos fazer reverberar é
a relação entre um devir e a diferença. Num devir há uma produção de
diferença e não uma homogeneização de potências vitais. No movimento de
devir as diferenças não são, de modo algum, igualadas ou reduzidas. Mas, em
que implica essa afirmação? Se o devir se colocasse como um ato de
transformar-se no outro, o movimento seria homogeneizador, levando a uma
aniquilação da diferença. Porém, num devir o que se passa não é esse
movimento de clonagem, não se trata de equiparação de formas, nem de
nivelamento de forças díspares. O que atravessa um devir é uma diferença que

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difere de si mesma, ou seja, o devir é um movimento de diferir de si mesmo, e


opera numa imprevisibilidade que não se pode reduzir à homogeneidade, à
equiparação de formas em relação a um outro.

A diferença não é o diverso. O diverso é dado. Mas a diferença é aquilo


pelo qual o dado é dado. É aquilo pelo qual o dado é dado como
diverso [...] Todo fenômeno remete a uma desigualdade que o
condiciona. Toda diversidade e toda mudança remetem a uma
diferença que é sua razão suficiente. Tudo o que se passa e que aparece
é correlativo de ordens de diferenças: diferença de nível, de
temperatura, de pressão, de tensão, de potencial, diferença de
intensidade (DELEUZE, 2008: 313).

No Diferença e Repetição, Deleuze (2008) propõe uma maneira de pensar a


diferença em si mesma, escapando da armadilha da representação, que acaba
reduzindo exageradamente a potência da diferença, minando suas forças e
fazendo com que ela seja tomada quase sempre como um elemento secundário
do pensamento e da própria vida. O filósofo faz um minucioso trabalho de
descolamento entre a diferença e a quádrupla raiz da representação composta
por identidade, analogia, oposição e semelhança. É liberando a diferença das
amarras que a prende às quatro cabeças da representação que se torna possível
pensar a diferença em si mesma, em sua potência de afirmação e de criação. O
livro apresenta uma multiplicidade de novos conceitos e de problematizações
que tratam de repensar a repetição e seu acoplamento com a diferença, numa
perspectiva que faz rachar o paradigma da representação. Entretanto, coube-nos
pegar apenas um dos blocos dessa máquina de guerra conceitual e
problematizadora, a saber, o bloco que transvalora a diferença, tirando-a da
posição secundária e inferiorizada que a negação a submetera, e, apostando em
suas forças, colocando-a como afirmação.

A negação é diferença, mas a diferença vista do lado menor, vista de


baixo. Ao contrário, endireitada, vista de cima pra baixo, a diferença é
afirmação. Mas essa proposição tem muitos sentidos: que a diferença é
objeto de afirmação; que a própria afirmação é múltipla; que ela é
criação, mas também que deve ser criada, afirmando a diferença,
sendo diferença em si mesma. Não é o negativo que é o motor. Mais
ainda, há elementos diferenciais positivos que determinam, ao mesmo

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tempo, a gênese da afirmação e da diferença afirmada (DELEUZE, 2008:


92-3).

No entanto, quais os efeitos que essa concepção da diferença enquanto


afirmação pode desencadear na construção do nosso problema do devir? Quais
as ligações entre a diferença, a afirmação e um devir? Não estaríamos correndo
o perigo de confundir conceitos que em si possuem distinções elementares? Um
devir faz passar uma destruição e uma criação, uma desterritorialização e uma
reterritorialização. Uma determinada forma – tomada aqui como um arranjo
temporário de linhas expressivas – entra em rodopio, desintegra os seus
círculos de regularidade, passa por uma dissolvência, por uma certa destruição,
para que uma diferença germine num solo que sedimenta-se simultaneamente a
esse nascimento diferencial. Parece-nos que é nesse ponto que um devir se
aproxima da afirmação da diferença ou da diferença enquanto afirmação. Se há
uma “destruição” formal, uma desterritorialização, há também a composição de
um outro corpo, uma reterritorilização, há uma criação, opera-se uma afirmação
das forças dobradas e desdobradas no movimento de devir. E essa afirmação
das forças no devir é também uma afirmação da diferença, pois a forma efêmera
que se destrói, o corpo que se desmancha, difere de si mesmo e não permanece
idêntico a si. Desse modo, o devir está atrelado à potência de diferir de si
mesmo, que é a diferença tomada enquanto o processo de dilatação,
desintegração e rearranjo de um corpo envolvido na relação, e não a diferença
como comparação ou negação de diferentes.

O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa
alternativa que nos faz dizer: ou imitamos, ou somos. O que é real é o
próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos
pelos quais passaria aquele que se torna (DELEUZE; GUATTARI, 1997:
18).

O fato de um devir não se referir a uma imitação, ou a um ato de tomar a


forma do outro, não o coloca enquanto um processo distante do real. E é
justamente quando tomamos o próprio devir em sua realidade que a diferença

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se faz presente. O que o devir produz não é uma cópia, ou uma igualdade de
formas. Ele produz a si mesmo, num constante diferir. O devir produz a sua
própria realidade, e é na diferença que essa realidade se passa. Não se trata de
um fechamento sobre si mesmo, pois a diferença do devir é a própria potência
de diferir de si mesmo para constituir sempre um outrem fugidio, temporário e
aberto.
Um outrem se instala enquanto um plano impessoal – que se atualiza em
personagens reais variáveis – e compõe a existência de mundos possíveis, tal
como se exprime na superfície de expressão (DELEUZE, 2009). A relação com
outrem, a radicalidade da interferência das forças de um corpo em relação a um
outro corpo, intensifica uma saída de si, fende o mesmo, e opera passagens que
levam aos incógnitos oceanos que a diferença não cessa de derramar. “Outrem é
sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de
toda percepção, para os outros e para nós. É a condição sob a qual passamos de
um mundo a outro” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 30). Tornar-se outrem é abrir
as linhas condensadas das formas, desmanchá-las e recompô-las num mundo
possível. O tornar-se outrem que perpassa um devir é um movimento que se
coloca nas encruzilhadas de múltiplos mundos possíveis, carregados sempre de
uma potência de imprevisibilidade e de diferença.
Ainda poderíamos rebater o problema do devir à contradição dialética,
como o faz Hegel? François Châtelet (1995) considera que em Hegel o conceito
de devir seria a superação da contraposição entre o Ser e o Não-Ser, indicando
assim que o devir é conceituado na filosofia hegeliana enquanto uma mediação
intrínseca ao processo dialético. Para Hegel (1982) o devir está atrelado à síntese
possível que funciona como mediação na oposição dialética. Ele toma a relação
entre o Ser e o Nada, concebendo que um desaparece no outro através do devir,
e que este seria um movimento cujos dois diferentes encontram uma síntese
resolutiva. O fato de Hegel considerar que os contrários coexistem e que um
dos termos da relação de negação, que estrutura a dialética, desaparece no
outro – desaparecimento recíproco –, conduz o devir a uma função de mediador
ou de sintetizador que produzirá as condições necessárias para a superação da

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

contraposição. Entretanto, parece-nos que o problema do devir não é


assimilável à lógica da contraposição dialética, pelo menos quando deixamos de
pensar a diferença enquanto negação e passamos a concebê-la como afirmação.
Em Hegel (1982) a potência do devir permanece amarrada à superação dialética,
que, de algum modo, acaba por amputar drasticamente a força da diferença,
tendo em vista que a coexistência dos diferentes passa a inexistir no momento
mesmo de mediação e de resolução da contradição. O devir enquanto síntese
dialética acaba se referindo a uma finalidade, que seria a própria superação da
oposição. Quando Deleuze (2008) descola a diferença da negação, ele desloca o
pensamento da diferença para outros desertos, distantes dos lugarejos
habitados pela dialética. O devir enquanto movimento afirmativo que difere de
si mesmo nada tem de finalidade, não se coloca enquanto um mediador que, de
certo modo, suplanta as diferenças opositoras. Quando a diferença é positivada,
o devir não se submete mais a uma função de sintetizador, e passa a “apenas”
afirmar-se enquanto realidade e heterogeneidade.

Devir e corporeidade

Um devir está justamente na passagem de um modo de organização do


corpo para outro modo, opera na recomposição das diferentes linhas que se
ajuntam na individuação corpórea. O ato incontrolável de devir carrega uma
potência de simulação, que dispara um sem número de maneiras performáticas
que se condensam no cruzamento de diversas linhas atravessadas num plano
de imanência1. No entanto, cabe fazer um pergunta rápida e espinhosa: quais
são as dimensões que compõe um corpo? A escrita que se rearranja nos efeitos
dessa questão evoca algumas passagens pelo plano conceitual que Deleuze
(2002) cria para se articular à concepção de corpo na filosofia de Spinoza. Esse
plano para pensar o corpo funciona a partir de duas dimensões: uma cinética ou
longitudinal e outra dinâmica ou latitudinal.

1
Para Deleuze (2002) em Espinosa filosofia prática, um plano de imanência não se refere à projeção de
um planejamento prévio, e está muito mais próximo da noção de plano presente na geometria, ou seja,
plano enquanto seção, intersecção e diagrama.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

A primeira dimensão refere-se às partículas presentes na articulação real


que configura a individuação de um corpo. A cinética ou longitude de um
corpo põe em cena os regimes variáveis de velocidade e de lentidão, de
movimento e de repouso, das partículas que se condensam na individuação
corporal. Independentemente da forma provisória que um corpo possa vir a
tomar, ele expressa um série de relações entre essas partículas, ou linhas, que
convergem na individuação, e que passam a variar os ritmos, alternando-os
entre movimentos e repousos, velocidades e lentidões. Na radicalidade dessa
concepção espinosista, o que define um corpo não é a sua forma ou suas
funções, mas sim, as variações de suas partículas, as articulações e
desarticulações das linhas que costuram a sua concretude.
A segunda dimensão constitutiva de um corpo seria a capacidade de
afetar e de ser afetado nos encontros com outros corpos. Essa condição de
sensibilidade diante de outros corpos é que marca a sua potência de
transmutação, pois as partículas constitutivas variam suas velocidades por meio
dessa inclinação afetiva do corpo. “O corpo humano pode ser afetado de muitas
maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída,
enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem
menor” (SPINOZA, 2008: 163). Afetar e ser afetado são disposições corporais que
modificam o próprio corpo, que o fazem variar, e que podem disparar a
efetuação de algum devir. Essas duas dimensões indicam as composições
alteráveis e os adensamentos possíveis, marcam uma maneira outra de conceber
o corpo, que precisa ser definido não em virtude das formas que assume, mas
sim, pelas suas modulações, tanto de velocidade e de lentidão, de movimento e
de repouso, quanto dos graus da capacidade de afetar e de ser afetado. Assim,
um corpo passa a ser apreendido enquanto um modo, que entra em diversas
variações de grau.

Chama-se longitude de um corpo os conjuntos de partículas que lhe


pertencem sob essa ou aquela relação, sendo tais conjuntos eles
próprios partes uns dos outros segundo a composição da relação que
define o agenciamento individuado desse corpo [...] Chama-se latitude

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

de um corpo os afectos de que ele é capaz segundo tal grau de


potência, ou melhor, segundo os limites desse grau. A latitude é feita de
partes intensivas sob uma capacidade, como a longitude, de partes extensivas
sob uma relação (DELEUZE; GUATTARI, 1997: 42).

Nessa perspectiva espinosista, o corpo não é algo separado do


pensamento, não está submetido a uma hierarquização em relação à Razão, e
isso marca uma diferença crucial que opera uma vigorosa crítica aos postulados
dicotomistas presente no cartesianismo. Quando Spinoza afirma que as
modificações no corpo também produzem modificações na mente2, há a
afirmação da indissociabilidade entre corpo e pensamento. Ele leva essa
indistinção entre corpo e pensamento mais longe, a ponto de inviabilizar
conceitualmente as concepções cartesianas que colocam as faculdades da Razão
como as condutoras dos rumos do corpo.

[...] a mente e o corpo são uma só e mesma coisa, a qual é concebida


ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão. Disso resulta
que a ordem ou a concatenação das coisas é uma só, quer se conceba a
natureza sob uma daqueles atributos, quer sob o outro e,
conseqüentemente, que a ordem das ações e das paixões do nosso
corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da
mente (SPINOZA, 2008: 167).

O corpo e o pensamento seriam modos que variam continuamente, e não


formas estáticas. Um devir se passa justamente nessas variações de velocidade
das partículas de um corpo, entremeia-se nas alternâncias das potências de
afetar e de ser afetado. Desse modo, um devir liga-se inevitavelmente às
peculiaridade afetivas que se passam num corpo, e por ele cruzam processos de
individuação que se apresentam nas novas composições das partículas
corpóreas.

Uma política menor do devir


Uma relação importante que atravessa um devir é a sua aproximação com
os modos de vida minoritários. Um devir tem uma força que passa pelo

2
Quando Spinoza usa o termo “mente”, não se trata da concepção comumente empregada hoje em dia.
Esse termo pode ser apreendido enquanto pensamento, e de modo algum, Spinoza o separava do corpo,
assim como também não o relacionava a um determinado órgão, como o cérebro, por exemplo.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

minoritário, ou seja, passa-se numa zona de indiscernibilidade em que


movimentos micropolíticos são disparados para todos os lados. Um devir é
também uma política, pois, inevitavelmente, outro modo de vida se cria, mesmo
que extremamente temporário e até fragmentário. “Por que há tantos devires do
homem, mas não um devir-homem? É primeiro porque o homem é majoritário por
excelência, enquanto que os devires são minoritários, todo devir é um devir-
minoritário” (DELEUZE; GUATTARI, 1997: 87). Essa colocação nos põe a pensar as
ligações entre os devires e as micropolíticas, que nada tem a ver com a maioria,
com o exercício do poder hegemônico. O que Deleuze e Guattari nomeiam de
“homem” não se refere a gênero ou a uma definição biológica do corpo. Essa noção
apontada pelos autores diz respeito a um modo de organização do poder que se
coloca enquanto pretenso pólo determinante de dominação, enquanto uma
maioria que tende à cristalização das relações para que uma determinada ordem
possa se perpetuar.

Por maioria nós não entendemos uma quantidade relativa maior, mas
a determinação de um estado ou de um padrão em relação ao qual
tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas
minoritárias [...] Maioria supõe um estado de dominação, não o
inverso (DELEUZE; GUATTARI, 1997: 87).

A potência dos devires passa pelos modos de vida minoritários, e assim,


é possível falar em devir-mulher, devir-criança, devir-animal, devir-
imperceptível. Esses devires pensados por Deleuze e Guattari (1997) indicam
que a forma-homem – apesar de se colocar como uma organização hegemônica
do poder – é minada nos instantes em que essas maneiras de se tornar outrem
afirmam um fazer político silencioso, minoritário e potente. Enquanto processo
político, um devir que cria novos modos de vida, nunca é individual, visto que
ele se dá numa relação que interfere na vida de muitos corpos, fazendo-os
diferir de si mesmos. Um devir se coloca num plano coletivo, por meio de uma
relação que produz interferências variáveis em todos os termos que se arrojam
no processo. O devir é sempre duplo, ou, uma dupla captura que arrasta os
mundos envolvidos, diferindo-os de si mesmo.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo,


seja ele de justiça ou de verdade. Não há um termo de onde se parte,
nem um ao qual se chega ou se deve chegar. Tampouco dois termos
que se trocam. A questão "o que você está se tornando?" é
particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que
ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são
fenômenos de imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de
evolução não paralela, núpcias entre dois reinos (DELEUZE; PARNET,
1998: 10).

Dizer que num devir se expressa uma política menor, não indica a
existência de um programa, de um objetivo, de um planejamento para o ato de
afirmação política. Um processo de devir não é previsível, pois o tornar-se outra
coisa não depende de uma intencionalidade racionalizada. E isso incita outras
maneiras de pensar o fazer político, desatrelado da idéia de programa
previamente definido. A afirmação política num devir não tem um objetivo
constituído a priori, e uma de suas mais intensas forças localiza-se justamente
nessa impossibilidade de prever o futuro, nessa precariedade das formas que se
desmancham para dar vez a outros arranjos constitutivos da própria vida. A
emergência de um processo de devir opera-se num horizonte de contingências,
cujo risco é iminente durante todo o tempo. Nunca se sabe onde um devir pode
nos levar, e nunca se sabe quais os efeitos que ele poderá produzir. Um devir
não é bom ou mau por natureza, e assim como possibilidades de
potencialização da vida se colocam, os perigos de encontrarmos linhas de
abolição também se fazem presentes.

Últimas considerações

Devir não é uma imitação, e tampouco é transformar-se no outro. O devir


recusa tanto o movimento de tornar-se definitivamente um outro como o ato de
imitá-lo. Se devir algo não é imitação ou transformação total em relação a esse
algo, é preciso pensar numa espécie de zona de vizinhança, numa saída de si
mesmo que afirma uma diferença. Tanto em relação à equivalência do devir à

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imitação quanto no tocante à justaposição do devir ao ato de transformar-se no


outro, entra em jogo a questão da forma. Na primeira suposição sobre a
natureza do devir, concebe-se que ele é uma imitação das formas, uma cópia
que representa um sujeito. Na segunda suposição, permanece-se no problema
das formas, e ele é levado a uma amplificação muito estranha: tratar-se-ia de
uma reprodução e de uma simetria das formas do outro. Esse duplo mal-
entendido que rebate o devir ora sobre a imitação, ora sobre um movimento
ilusório de transformar-se no outro, lança suas raízes a partir da concepção de
que o real, ou as realidades, concretizam-se unicamente no plano das formas e
das representações. Entretanto, o devir enquanto afirmação da diferença e
potência de diferir de si mesmo leva o problema para outros declives e curvas:
um devir é pré-formal e pré-individual, tendo em vista que ele entra em disparo
justamente no plano das forças e das linhas, que eventualmente podem se
condensar para plasmar os contornos tremulantes de uma forma qualquer, e
que podem convergir partículas heterogêneas na individuação de um corpo.
“Acreditamos num mundo em que as individuações são impessoais e em que as
singularidades são pré-individuais” (DELEUZE, 2008: 17).
Um devir tem uma potência trágica que faz vazar os contornos
enrijecidos de uma existência, o que não o torna, de modo algum, uma
passagem existencial tranqüila, ordeira e indolor. A imprevisibilidade de um
devir nada tem a ver com uma suposta evolução, no sentido de progresso
aperfeiçoável da vida. Não se trata também de superação dialética de contrários
por meio de uma síntese. Não é possível dizer se um devir torna a vida melhor
ou pior, pois ele não tem em si um valor de essência. Os efeitos que um devir
produz para a existência é um problema de outra ordem, que não nos cabe
nesse texto. Mas, dizemos que a casualidade de um devir não deixa subsistir
nenhuma finalidade, ideal, ou função, exteriores à sua própria realidade. Um
devir expressa simplesmente uma afirmação da vida, uma produção de
diferença, um diferir de si mesmo que nos remete ao inesperado, ao
intempestivo, ao inaudito.

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Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado,


por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade do seu
ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será.
Ele não é conseqüência de uma intenção, uma vontade, uma finalidade
próprias, com ele não se faz a tentativa de alcançar um “ideal de ser
humano” ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” – é
absurdo querer empurrar o ser para uma finalidade qualquer. Nós é
que inventamos o conceito de “finalidade” [...] O fato de que ninguém
mais é feito responsável, de que o modo do ser não pode ser
remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade
nem como sensorium nem como “espírito”, apenas isto é a grande
libertação – somente com isso é novamente estabelecida a inocência do
vir-a-ser (NIETZSCHE, 2006: 46-7).

Referências bibliográficas
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Trad. Suely Rolnik. Vol. 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
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REALE, Giovanni. História da filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1 / Giovanni Reale
& Dario Antiseri. Trad. Ivo Storniolo. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007.

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SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2008.
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Trad. André Telles. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2004.

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Um jovem retirante na cidade moderna: uma


aproximação entre Angústia, de graciliano ramos e o
episódio do canto das sereias

Isabela Gonçalves de Menezes∗

Resumo: Com este trabalho, tenta-se fazer uma aproximação – através da releitura de Adorno
e Horkheimer em Dialética do esclarecimento – entre Ulisses, que enfrenta as sereias no
duodécimo canto da Odisséia e Luís da Silva, narrador-protagonista do romance Angústia.
Ulisses é considerado pelos filósofos frankfurtianos como protótipo do homem burguês. Luís da
Silva, por sua vez, decide ir para a cidade moderna logo depois que aprende a ler. Como
Ulisses, que fica rico em saber quando vai ao reino dos mortos, na viagem à cidade entra em
contato com a racionalidade do mundo moderno. Não obstante, o caminho da civilização é o da
obediência e do trabalho e Luís da Silva enfrenta fatos que o desencantam e o remetem
nostalgicamente ao passado. A memória, porém, pode ser um perigo: o canto de monstruosas
criaturas, a sedução impositiva do mito, o chamamento ancestral. Se o astucioso Ulisses
enfrentou o canto das sereias e seguiu para Ítaca tapando os ouvidos dos remadores com cera e
se amarrando ao mastro do navio, põe-se em questão se o artifício do jovem retirante Luís
deveria ser trabalhar, não olhar para os lados e resistir para, quem sabe, um dia também chegar
à corte de algum rei Alcino.
Palavras-chave: Cidade. Esclarecimento. Mito. Modernidade.

Introdução

No conjunto da obra do escritor alagoano Graciliano Ramos são


encontrados personagens de origem rural, tais como Luís da Silva, do romance
Angústia; Alexandre, do livro de contos Histórias de Alexandre, seu Tomás da
Bolandeira e Fabiano, do romance Vidas secas, apenas para mencionar alguns.
Fabiano é um vaqueiro que se torna “retirante” ao sair de uma região
castigada pela seca em direção à cidade. Este é o sentido principal do termo


Mestranda em Educação pelo Núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Sergipe (NPGED/UFS), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Contemporaneidade (EDUCON/UFS).

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retirante, como indicador da pessoa que emigra para uma cidade em busca de
melhor condição de vida e que, no Brasil, está vinculado ao nordestino
sertanejo.
Na elaboração do título deste trabalho, surgiu a dúvida se Luís da Silva,
o narrador-protagonista de Angústia, poderia ser considerado um retirante ou
não, porquanto, em nenhuma parte da obra, afirma que sua saída do rural
tenha sido motivada por questões climáticas, não sendo, também, ligado à
agricultura, embora seus antepassados tivessem sido. No entanto, quando
relata as dificuldades encontradas para se estabelecer na cidade, ao apelar para
a generosidade das pessoas, ou seja, ao pedir esmolas, afirma ser “um filho do
Nordeste, perseguido pela adversidade” (RAMOS, 2009: 32) ou, quando se
apresenta a uma mulher, define-se como bicho do mato, sertanejo, bruto e
selvagem.
Se retirante for considerado não só o sertanejo que se ocupa da criação de
gado ou da agricultura que “foge” da seca, mas também o indivíduo que não
tem terra ou trabalho e decide abandonar seu lugar de origem em busca de uma
“vida melhor na cidade” – saída motivada por fatores como a seca, a “cerca” ou
a falta de trabalho – então Luís da Silva, neto de um fazendeiro arruinado, pode
ser considerado um retirante na Maceió dos anos 1930, mais um entre tantos
jovens de origem rural que migraram em busca de emprego.
Segundo Silviano Santiago (2009: 289), ele é um “desenraizado na grande
cidade [...]. [onde] estão plantadas suas raízes sentimentais [...]. Ele não é um
citadino. Transplantara-se do campo para a capital, transformando-se em
representante típico da juventude tenentista, isto é ‘molambo que a cidade puiu
demais e sujou’”. E esse jovem retirante que deixou o mundo rural acreditando
que conseguiria melhorar de vida na cidade, tornou-se um assassino.
Ressalte-se, porém, que, com este trabalho, não se tem como objetivo
analisar o crime por ele cometido devido a um despeito amoroso, nem a
decorrente angústia que vive, mas tentar uma aproximação sua – através da
releitura de Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento – com Ulisses,
quando este enfrenta as sereias no duodécimo canto da Odisséia.

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Nesta tentativa de aproximação, por certo não acontecerá uma


intersecção total entre Luís da Silva e Ulisses, por exemplo, quando Horkheimer
e Adorno (1985) interpretam o herói homérico como protótipo do burguês
moderno, enquanto, por sua vez, Luís da Silva é um trabalhador, que só recebia
ordens, “um diminuto cidadão que vai para o trabalho maçador, um Luís da
Silva qualquer” (RAMOS, 2009: 26). Não obstante, o exercício da comparação traz
questões que podem ser discutidas e analisadas.

Um Luís da Silva qualquer


Luís da Silva é o narrador-protagonista do romance Angústia que foi
publicado pelo escritor Graciliano Ramos em 19361. Silviano Santiago (2009)
nota que o Brasil, descrito pelas micronarrativas é o da República Velha (1889-
1930), conquanto já a entrar na Era Vargas. Nesse período, o país passou por
transformações, como a decadência das oligarquias rurais do Nordeste
brasileiro e o processo de modernização e industrialização.
Embora o avô de Luís tenha sido escravocrata e dono de terras,
respeitado no sertão até pelos cangaceiros que, quando o viam, “varriam o chão
com o chapéu de couro” (RAMOS, 2009: 124), Luís o alcançou “velhíssimo” e
financeiramente decadente, “pois os negócios na fazenda iam mal” (op. cit.: 11).
“Como sou diferente do meu avô!” (op. cit.: 32) é uma das pistas que
Graciliano Ramos dá sobre a decadência da família. A outra é a redução da
quantidade de sobrenomes2 de uma geração à outra, ou seja, de Trajano Pereira
de Aquino Cavalcante e Silva, o avô, para Camilo Pereira da Silva, o pai, até
chegar a “um Luís da Silva qualquer”, um “percevejo social” (RAMOS, 2009: 26).
Quando Trajano morre, Camilo migra do rural para uma pequena vila,
onde abre uma bodega. É quando Luís tem o primeiro contato com a educação,
para “desasnar”, pois, até então, ainda não havia aprendido a ler nem a

1
RAMOS, Graciliano. Angústia. 64. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2009. As citações são desta
edição.
2
O nome Oudeis – relacionado à Odisséia – “pode ser atribuído tanto ao herói quanto a ninguém”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 65), mas Ulisses rompe esse encanto do nome. Para os filósofos, “é
do formalismo dos nomes e estatutos míticos, que querem reger com a mesma indiferença da natureza os
homens e a história, que surge o nominalismo, o protótipo do pensamento burguês” (op. cit.: 65).

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escrever. Seu pai o apresenta ao mestre como “um cavalo de dez anos que não
conhecia a mão direita” (op. cit.: 15).
Com a morte de seu pai, Luís, então com quatorze anos, fica na mais
profunda miséria e se preocupa: “Que ia ser de mim, solto no mundo?” (op. cit.:
21), “Que iria fazer por aí à toa, miúdo, tão miúdo que ninguém me via?” (op.
cit.: 22). Resolve ir embora, tentar a sorte em outro lugar e conta que rodou por
onde achava que teria uma vida melhor. Triste ilusão, pois, na cidade grande,

no banco do jardim, com os sapatos gastos, as meias reduzidas a canos,


esperava ansiosamente um auxílio qualquer. Estudava as caras, numa
agonia. A fome triturava-me a barriga, uma fome de muitos dias,
enganada com pedaços de pão e cálices de aguardente. – ‘Cidadão, um
nortista perseguido pela adversidade’. Não distinguia bem a cara do
cidadão: a cabeça se inclinava, a vista escurecia e pregava-se nos dedos
dos pés, que saíam pelos buracos dos sapatos. Se pudesse, se não
estivesse policiado e exausto, mataria o cidadão para roubar-lhe um
níquel. Andava sujo, as calças com os fundilhos rotos e as bainhas
esfiapadas, a gravata feita uma corda. Apanhava os jornais esquecidos
nos bancos e procurava os anúncios miúdos para ver se descobria
trabalho, mas as letras dançavam, fugiam. [...] Qualquer serviço que
me dessem seria bom [...]. Humilhações (RAMOS, 2009: 119-20).

Em Maceió, torna-se funcionário público da diretoria da fazenda, mas


também escreve artigos em um jornal, por encomenda. Gosta de passear pela
cidade, olhando as vitrinas, como o flâneur da cidade moderna. Também passa
horas em um café, folheando jornais e conversando sobre política. Devido a
questões amorosas, contrai dívidas e prestações, peculiar a quem deseja se
adequar aos padrões citadinos e se apresentar como a sociedade considera
adequado (RAMOS, 2009).
Até conseguir certa estabilidade financeira através do emprego o que,
inclusive, possibilitou-lhe alugar uma casa, relata que viveu em “numerosos
chiqueiros” (op. cit.: 46), como o quarto de pensão que alugou em Maceió, “um
inferno de calor” (op. cit.: 11).
Diversamente da forma de contato que estava habituado no mundo
rural, sente-se sozinho porque, no trabalho, só lhe dirigem a palavra para dar

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ordens, fora daí, o silêncio e a indiferença3. Faz constantes menções a sua


infância, narrando histórias desse tempo, esforçando-se para se tornar criança e,
em consequência, mistura coisas atuais e coisas antigas (RAMOS, 2009).

A cada momento as intervenções subversivas da memória rural do


personagem fazem a linearidade impulsiva da memória urbana
explodir, redirecionando-a para o passado remoto. Em outras palavras:
a lembrança dos acontecimentos recentes na capital é alicerçada e, ao
mesmo tempo, quebrada e explicada pela lembrança de
acontecimentos e de figuras humanas do antigo mundo sertanejo,
dominado pelos coronéis (SANTIAGO, 2009: 290, grifos do autor).

Admite que, se pudesse, “abandonaria tudo e recomeçaria [suas]


viagens. Esta vida monótona, agarrada à banca das nove horas ao meio-dia e
das duas às cinco, é estúpida” (RAMOS, 2009: 10). Pensa em mestre Domingos,
no velho avô Trajano, em Camilo, seu pai.

Não sei por que mexi com eles, tão remotos, diluídos em tantos anos
de separação. Não têm nenhuma relação com as pessoas e as coisas
que me cercam [...]. Os defuntos antigos me importunam [...]. De toda
aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do
entorpecimento recordações que a imaginação completou (RAMOS,
2009: 16; 19).

Como Ulisses, que fica rico em saber quando vai ao reino dos mortos, na
viagem à cidade, Luís entra em contato com a racionalidade do mundo
moderno. Mas, suas lembranças e nostalgia parecem denotar um quê de
arrependimento pelo conhecimento adquirido, por exemplo, quando se
questiona para que se acostumou a ler papel impresso e a ouvir o rumor de
linotipos, bem como na constatação de como a cidade o afastara de seus avós,
de suas raízes, do mundo rural. Fica a pergunta se Luís começa a desejar não
ser esclarecido e adaptado ao projeto de modernidade, se ele se dá conta de que
“a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor” e de que
o “esclarecimento é totalitário”. (HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 13; 22).

3
Apesar disso, trabalha e se preocupa em não perder seu emprego, uma vez que “o caminho da
civilização era o da obediência e do trabalho” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 45). Para Luís, ter um
emprego é prerrogativa do mundo urbano e cita o exemplo do guarda civil, de origem rural, “que veio
para a cidade, arranjou emprego” (RAMOS, 2009: 196).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Entrelaçamento entre esclarecimento e mito


Embora concluída em maio de 1944 quando os autores, filósofos da
Escola de Frankfurt, por serem de origem judia, estiveram exilados nos EUA
durante a Segunda Guerra Mundial, a Dialética do esclarecimento foi publicada
pela primeira vez em 1947, com o título Dialektik der Aufklärung, pela Editora
Querido de Amsterdam.
Constituída de três capítulos, dois excursos e um conjunto de notas e
esboços, é apresentada por Almeida (1985) como obra de incrível profundidade
e atualidade, além dea fundamentada e séria crítica filosófico-psicológica das
categorias ocidentais da razão e da natureza de Homero a Nietzsche.
De outro lado, o tratar do entrelaçamento entre mito e esclarecimento em
Horkheimer e Adorno, Habermas diz que a Dialética do esclarecimento, embora
singular, é “o seu livro mais negro”, pois, segundo sua análise, “não podiam
esperar mais nada da força libertadora do conceito” do processo de
autodestruição do esclarecimento e nivelam, de modo espantoso, a imagem da
modernidade (HABERMAS, 2000: 153).
Kurz (1997), por sua vez, considera que esta obra introduziu uma
mudança de paradigma rica de consequências para a teoria social, pois, até
então, o pensamento do esclarecimento, da forma como se desenvolvera no
século XVIII, era tomado como o legado positivo comum da modernidade.
A releitura crítica que os filósofos fizeram, ao desenvolverem uma
análise da origem do esclarecimento (aufklarüng) no mundo ocidental – quando
afirmam que este fato se situa no mito, uma vez que este já se configurava como
esclarecimento – é a base para a aproximação entre Luís da Silva e Ulisses na
etapa odisséica do canto das sereias.
Ao invés de se aterem ao final do século XVIII, época do Iluminismo,
como período do lançamento da racionalidade ocidental moderna, das luzes
(lumière), os frankfurtianos buscaram a origem do esclarecimento na
Antiguidade clássica e, no “desencantamento do mundo” (entzauberung der
Welt), sua principal característica (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Nesta discussão sobre aufklarüng, Iluminismo e progresso do


pensamento humano, citam a definição de Kant para esclarecimento como
sendo “a saída do homem de sua menoridade, da qual é o próprio culpado”
(KANT, 2010: 63), enquanto que “a menoridade é a incapacidade de se servir de
seu entendimento sem a direção de outrem” (op. cit.: 63), ressaltando que esta
saída da menoridade se dá através da racionalidade.
O processo de desencantamento do mundo consiste no afastamento da
magia e dos mitos, substituindo-os pela razão e pelo saber. O homem deve
dominar a natureza exterior e, ao se libertar e se opor a ela, formar sua
identidade. “Desencantar o mundo é destruir o animismo” mitológico
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 20), “ao preço da repressão de sua natureza
interior” (HABERMAS, 2000: 157). O caminho é o pensamento, já que, por meio
dele, os homens se distanciam cada vez mais da natureza para torná-la
presente, de modo a ser dominada.
Através do desencantamento do mundo, o objetivo do esclarecimento era
livrar os homens do medo de uma natureza desconhecida – à qual atribuíam
poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela – e investi-los na
condição de senhores, com a dissolução dos mitos e a substituição da
imaginação pelo saber (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).
O esclarecimento é o processo de desencantamento das coisas, a vitória
sobre as superstições, o domínio soberano da razão, não pela mimese, mas pela
abstração, pela separação do sujeito e do objeto, de forma que tanto a mitologia
como o Iluminismo terão raízes na necessidade da sobrevivência. Ao se
considerar livre das amarras que o prendiam à natureza, o homem não encontra
limites para sua potência e esta ausência de limites resulta no que Horkheimer e
Adorno (1985) denominaram de “calamidade triunfal”.
E é na obra Odisséia de Homero que estes autores vão encontrar uma
forte carga simbólica presente na trajetória do astucioso Ulisses, que consegue
se livrar das ameaças impostas, tanto pelos deuses como pela natureza, rumo à
“libertação” promovida pela racionalidade que estabelece o sujeito em oposição
ao objeto por meio da dominação do primeiro sobre o segundo.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Enfatizam que “a Odisséia em seu todo dá testemunho da dialética do


esclarecimento. Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopéia mostra-se
ligada ao mito: as aventuras têm origem na tradição popular” (op. cit.: 52) e,
ainda, que

nenhuma obra presta um testemunho mais eloquente do


entrelaçamento do esclarecimento e do mito do que a obra homérica, o
texto fundamental da civilização européia. Em Homero, epopéia e
mito, forma e conteúdo, não se separam simplesmente, mas se
confrontam e se elucidam mutuamente. O dualismo estético atesta a
tendência histórico-filosófica (HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 55).

Através de exemplos retirados de cantos da Odisséia, buscam demonstrar o


trajeto da razão humana. Justificam a escolha da epopéia homérica porque o mito entre
os gregos, assim como outros povos, também já era esclarecimento e este reverte à
mitologia (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).
É assim que na Dialética do esclarecimento os autores fazem uso da epopéia
homérica na construção do primeiro capítulo que trata sobre o que é o esclarecimento e
no primeiro excurso, quando extraem exemplos e analisam a luta do esclarecimento
contra os mitos, tentando encontrar bases para o surgimento do esclarecimento na
trajetória de Ulisses.

O canto das sereias


Horkheimer e Adorno (1985) percebem um entrelaçamento entre mito,
dominação e trabalho no duodécimo canto da Odisséia, narrativa de Homero sobre o
encontro de Ulisses com as sereias que “sabem tudo o que jamais ocorreu sobre a terra
tão fértil” (op.cit.: 44). Mas o preço que as monstruosas criaturas cobram por esse
acontecimento é o futuro “e a promissão do alegre retorno é o embuste com que o
passado captura o saudoso” (op. cit.: 44), pois quem não resiste à ilusão do seu canto,
condena-se à perdição. O risco do encontro se dá no fato de que, ao conjurar o passado
recente, as sereias ameaçam a ordem patriarcal pela promessa do prazer, que é a
maneira como o seu canto é percebido. Aquele que ouve sua canção sedutora não mais
consegue escapar a ela.
Ulisses, que havia acabado de retornar do Hades, o reino dos mortos, de “uma
viagem iniciática à fronteira dos tempos e da vida” (GAGNEBIN, 2003: 51), foi alertado
por Circe, “a divindade da reconversão ao estado animal, à qual resistira e que, em

107
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

troca disso, fortaleceu-o para resistir a outras potências da dissolução” (HORKHEIMER;


ADORNO, 1985: 44). Por isso, tomou algumas medidas quando seu navio se aproximou
das sereias e esse fato “pressagia alegoricamente a dialética do esclarecimento” (op.
cit.: 45).
Para o herói astucioso, são duas as possibilidades que podem levá-lo a escapar
do canto das sereias: a primeira é tapar os ouvidos de seus companheiros com cera e
obrigá-los a remar com todas as suas forças.

Quem quiser vencer a provação não deve prestar ouvidos ao chamado


sedutor do irrecuperável e só o conseguirá se não ouvi-lo. Disso a
civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores
têm que olhar para a frente e esquecer o que foi posto de lado. A
tendência que impele à distração, eles têm que se encarniçar em
sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 45).

A segunda possibilidade, escolhida por Ulisses, é se permitir escutar o canto,


mas amarrado ao mastro do navio e, quanto maior se torna a sedução, mais se deixar
enlaçar. O canto que ele escuta não lhe traz consequências, não o leva à perdição, não o
faz esquecer. Ele só consegue menear a cabeça para que os remadores o desamarrem;
mas estes, que nada escutam – apenas sabem do perigo da canção, não de sua beleza –
o deixam no mastro, para salvar a ele e a si mesmos (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).
A astúcia ulissiana também pode ser vinculada à observação de Guimarães
Rosa (2006: 19), quando disse que o “sertão é onde manda quem é forte, com as
astúcias”. E o artifício que Ulisses utilizou demonstra que é possível ouvir as sereias e a
elas não sucumbir, com a consciência de que não se deve desafiá-las, pois isso
corresponderia a uma cegueira, a uma entrega ao mito ao qual se expõe. Astúcia e
racionalidade significam poder, pois, como disse Francis Bacon, “a superioridade do
homem está no saber, disso não há dúvida” (apud HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 19).
Através do artifício, Ulisses conseguiu encontrar uma brecha para escapar das normas,
cumprindo-as. Ele não deixou de passar pelas sereias, não deixou de seguir sua
viagem, mas se entregou à natureza ouvindo o canto que encanta, distanciando-se dele.
Esse precedente significa que se pode ouvir as sereias, entregar-se ao mito – que
já era esclarecimento – sem se perder nele. Se Luís fosse um burguês, também poderia
ouvir o canto a salvo, desde que amarrado. Como faz parte da massa trabalhadora, o
artifício é não ouvir, mas trabalhar, sem olhar para os dois lados e para quem está
amarrado ao mastro, pois são duas as opções, a depender da posição que cada um

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

ocupa na sociedade: não ouvir, não olhar e trabalhar ou se amarrar ao mastro do navio
que segue para Ítaca, enquanto os trabalhadores remam.

Para Ítaca
O jovem retirante Luís vive uma contradição: quer e não quer ouvir o canto das
sereias. Não quer, porque isto o aproxima de um passado rural, pobre, antigo e arcaico,
enquanto o deseja com nostalgia, pois faz parte de suas origens. O mundo moderno,
que tanto almejou, é o que imaginava, mas ele não se encaixou na cidade porque,
apesar de ter um trabalho, não consegue consumir sem se endividar a juros altos.
Se não pode ouvir o canto porque seus ouvidos estão com cera, ao menos pode
sonhar e imaginar “fortunas absurdas: dinheiro achado na rua”, um roubo que não
teve coragem de praticar, o aparecimento de um fazendeiro “rico e atilado” que lhe
diria: “Ninguém percebe o seu valor, rapaz. O que lhe falta é roupa. Roupa e trato.
Vamos comer no restaurante” (RAMOS, 2009: 120). Quem sabe, um “rei Alcino” que o
receba depois de tantas viagens.
Deseja se adaptar ao que o projeto de modernidade propõe: trabalho,
dominação, razão e esclarecimento. Como todo o retirante que vai para a cidade
grande, tem consciência de que o trabalho é duro e sem trégua, mas, apesar das
dificuldades, a cidade ainda é considerada melhor que o mundo rural deixado para
trás.
Sente vergonha de sua origem, de seus sapatos sujos e empoeirados. Compara-
se, com despeito, aos tipos burgueses da cidade. Sonha com coisas obtidas através do
dinheiro e do trabalho, com o que uma vida moderna e confortável pode proporcionar:
felicidade com Marina4, sua “Penélope”.

Cem contos de réis, dinheiro bastante para a felicidade de Marina. Se


eu possuísse aquilo, construiria um bangalô [...] com vista para a lagoa.
Sentar-me-ia ali, de volta da repartição, à tarde como Tavares & Cia.,
Dr. Gouveia e os outros, contaria histórias à minha mulher, olhando os
coqueiros, as canoas dos pescadores [...]. Vestido de pijama, fumando,
olharia lá de cima os telhados da cidade, os bondes pequeninos a rodar
quase parados e sem rumor, os focos da iluminação pública, os
coqueiros negros à noite. Uns quadros a óleo enfeitariam minha casa.
Marina dormiria num colchão de paina. E quando saltasse da cama,
pisaria num tapete felpudo que lhe acariciaria os pés descalços [...]. E a

4
Ao contrário de Penélope, na primeira oportunidade que apareceu, Marina trocou Luís por um homem
rico.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

cama teria uma colcha bordada cobrindo o colchão de paina, uma


colcha bordada em seis meses (RAMOS, 2009: 88-89).

Da mesma forma que, segundo Horkheimer e Adorno (1985), os mitos já levam


a cabo o esclarecimento, assim como o esclarecimento também fica cada vez mais
entrelaçado, a cada passo que dá, na mitologia, Luís da Silva, embora na cidade
moderna, não se dá conta de que, cada vez mais, também se enreda ao passado do qual
jamais soube escapar.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, Guido Antonio de. “Nota preliminar do tradutor”. In: HORKHEIMER,


Max; ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 7-8.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Resistir às sereias”. Revista Cult, Dossiê “O centenário de
nascimento do filósofo Theodor Adorno: filosofia, ética e catástrofe”, ano VI, n. 72,
2003, p. 51-55.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklarüng). In:
Textos seletos. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 63-71.
KURZ, Robert. “Até a última gota. Como o Esclarecimento tornou-se mito e a promessa
de liberdade converteu-se em ‘total empulhação das massas’”. São Paulo, Caderno
Mais!, Folha de São Paulo, 24 ago 1997.
RAMOS, Graciliano. Angústia. 64. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2009.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: RAMOS, Graciliano. Angústia. 64. ed. Rio de
Janeiro, São Paulo: Record, 2009. p. 287-300.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Bakhtin e o gênero dialógico em Platão

Ana Mércia Barbosa*

Resumo: O gênero dialógico, na perspectiva bakhtiniana, comporta elementos tais como a


carnavalização, como inversão de valores, e a paródia como mecanismo intertextual em que o
humor, a sátira, a ironia e a alegorização das realidades assumem um papel central. Nesse
sentido, faremos uma análise do caráter dialógico do discurso platônico tomando como
referencia a afirmação de M. Bakhtin de que o diálogo platônico na figura de Sócrates se
relaciona ao carnavalesco, em que a cosmovisão possui elementos nos quais a imagem e a palavra
se relaciona com a realidade. Com isto, o objetivo deste trabalho é expor os elementos dialógicos
na obra de Platão a partir das imagens míticas e do diálogo socrático.
Palavras chave: Dialogismo, Eros, Banquete.

A filosofia platônica marcada por elementos literários, tem nas narrativas


míticas a fundação de um caráter dialético, e na perspectiva Bakhtiniana o
gênero dialógico como meio de comunicar a teoria das idéias. Partindo da
afirmação de Bakhtin de que o diálogo socrático, na obra de Platão, constitui
um gênero dialógico que se define pelo sério-cômico, pela ironia, pela
alegorização e pelo carnavalesco, analisaremos estes elementos na obra O
Banquete (Symposium) através das imagens dos discursos sobre o Eros. Diz
Bakhtin:

*
Graduanda em letras e Bolsista Picvol/CNPq-Universidade Federal de Sergipe-UFS

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

O simpósio era o diálogo dos festins, já existentes na época do “diálogo


socrático” (cujos protótipos encontramos em Platão e Xenofonte), mas
que teve um desenvolvimento amplo e bastante diversificado em
épocas posteriores. O discurso dialógico dos festins tinha privilégios
especiais (a princípio de caráter cultural): possuía o direito de
liberdade especial, excentricidade e ambivalência, ou seja, podia
combinar no discurso o elogio e o palavrão, o sério e o cômico. O
simpósio é por natureza um gênero carnavalesco (2008: 137).

Regado a discursos poéticos o Banquete introduz a questão do pensar


filosófico sobre o assunto proposto. Agatão vencera o concurso de tragédias e
para comemorar realiza um banquete em seu recinto, no qual são convidados
Sócrates, Aristodemo, Fedro, representante da tradição literária poética,
Erixímaco, médico e responsável pelo tom “naturalista” do discurso, Pausânias,
representante da aristocracia ateniense, e Aristófanes, comediógrafo.
Os convidados entram em acordo de beberem com cautela, de modo
comedido, Erixímaco propõe que ao invés do jantar ser regado a muito vinho e
música, que seja uma reunião na qual possa haver discursos. Cada personagem
possui um papel central, embora os discursos anteriores ao de Sócrates sejam
apenas um elogio ao amor, serão retomados posteriormente na fala de Diotima
de Mantinéia que introduz o caráter dialético do Eros. O jogo dos discursos será
o nosso guia para o entender os múltiplos sentidos que constituem as definições
do Eros no texto platônico a partir dos seus elementos alegóricos.
Bakhtin se reporta a Antiguidade clássica como originária de inúmeros
gêneros literários, entre eles o sério-cômico; destacando-se o diálogo socrático, a
literatura dos simpósios, os mimos de Sófron, a memoralistica e a sátira
menipéia que se caracterizam pela cosmovisão caranavalesca do mundo, como
um modo de relacionar a imagem e a palavra com a realidade (BAKHTIN, 2008:
121-1). É nesta perspectiva que se insere o Banquete pela imagem mítica e pelos
discursos dos interlocutores de Sócrates. Na tentativa de definir o amor
notamos um encadeamento lógico no diálogo que nos remete ao carnavalesco
pelo papel alegórico dos discursos apresentados a partir da narrativa mítica.
O discurso sobre o amor se inicia com Fedro, segundo o qual Eros é
avaliado a partir dos efeitos que provoca nos homens, este afirma que “o amor é

112
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

admirado por sua origem, pois dentre os deuses é o mais antigo e que dele não
há genitores, por ser o mais antigo é o que causa os maiores bens, amor é o
apreço ao que é belo e inspiração para virtude” (PLATÃO,1979: 178c). O discurso
de Fedro é de natureza retórica, introduz o discurso como convite à reflexão,
mas se afasta da realidade, ou seja, é um discurso simplório que traz uma
subjetividade, uma idéia de verdade aparente. O Eros é avaliado a partir dos
efeitos que provoca nos homens, não há neste discurso uma busca pela
“essência” dos conceitos, estes são postos de maneira superficial com tom
retórico.
O discurso de Pausânias tem por base o caráter sócio-político do Eros, no
qual o amor não depende da natureza, mas das convenções, sendo uma questão
de nomoi (normas): “Este é o Amor da deusa celeste, ele mesmo celeste e de
muito valor para a cidade e os cidadãos, porque muito forçoso ele obriga a fazer
pela virtude tanto ao próprio amante como ao amado; os outros porém são
todos da outra deusa, a popular” (PLATÃO,1979: 185c).
Pela ordem dos discursos após Pausânias, Aristófanes deveria
prosseguir, porém tomado por um acesso de soluço fica impedido de falar,
passando a palavra para Erixímaco (médico). A estrutura do discurso de
Erixímaco está montada em duas realidades sobre o Eros. Ele percebe uma
forma amorosa mórbida e a outra sadia. Assim o Eros é pensado pela
perspectiva da ciência natural como uma força cósmica: “A natureza dos
corpos, com efeito, comporta esse duplo Amor; o sadio e o mórbido são cada
um reconhecidamente um estado diverso e dessemelhante e o dessemelhante
deseja e ama o dessemelhante” (PLATÃO,1979: 186b).
Depois de Erixímaco o discurso retorna a Aristófanes, com a narrativa do
mito do Andrógino, que revela a unidade originária dos homens, no qual
possuíam formato esférico, com duas faces, dois sexos, no entanto, presunçosos
voltaram-se contra os deuses e por isso foram divididos ao meio. Com isso a
natureza humana se mutilou em duas, tornando-se múltipla, uma metade
ansiava pela outra em busca de tornarem-se unas novamente., ou seja, em busca
de plenitude:

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os


flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto
de mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo;
mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era um só, e
quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se
poderia supor ((PLATÃO,1979: 190a).

Em seguida temos o discurso de Agatão, o qual tece uma crítica aos


discursos anteriores, os quais não elogiavam o deus, mas os homens que
felicitavam pelo bem causado pelo Eros (PLATÃO,1979: 195a), estabelecendo com
isso, um novo modo de conduzir sua fala a partir de um novo estilo.
Agatão busca explicar em virtude de que natureza o Eros causa tais
efeitos. Para ele: “Eros é o deus mais belo, mais jovem e delicado, não habita
almas rudes, é de constituição úmida, é justo, nasceu do belo e não do feio”
(PLATÃO,1979: 195ª-b).
Depois de Agatão, Sócrates inicia seu discurso criticando os discursos
precedentes pela preocupação com a aparência em detrimento da verdade, no
qual buscavam apenas elogiar o Eros. No entanto, notamos que essa verdade está
velada na narrativa mítica e que estes elementos embora criticados por Platão
sejam a base que fundamenta a teoria das idéias.
É importante ressaltar que as imagens das narrativas aqui referidas
evocam a imaginação do leitor em que é possível ver uma cena teatral de
caracteres cômicos, tais como a passagem do acesso de soluço de Aristófanes, do
mito do Andrógino e da ironia socrática no diálogo com Agatão em que este o
convida para sentar-se ao seu lado com o intuito de que ele transfira sua
sabedoria já que a havia contemplado momentos antes de entrar no recinto e
Sócrates o responde:

Seria bom, Agatão, se de tal natureza fosse a sabedoria que do mais


cheio escorresse ao mais vazio, quando um ao outro nos tocássemos,
como a água dos copos que pelo fio de lã escorre cheio ao mais vazio
(PLATÃO,1979: 175d).

Segundo Bakhtin: “Em Platão, alguns diálogos foram construídos


segundo o tipo carnavalesco da coroação-destronamento. O ‘diálogo socrático’

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se caracteriza por livres mésalliances de idéias e imagens. A ‘ironia socrática’ é


um riso carnavalesco reduzido” (2008:151).
Esse processo em que Sócrates dialoga com seus interlocutores tem por
base o método maiêutico como afirma Bakhtin ao examinar as manifestações de
gênero do diálogo socrático:

O gênero se baseia na concepção socrática da natureza dialógica da


verdade se opõe ao monologismo oficial que se pretende dono de uma
verdade acabada, opondo-se igualmente à ingênua pretensão daqueles
que pensam saber de alguma coisa. A verdade não nasce nem se
encontra na cabeça de um único homem; ela nasce entre os homens,
que juntos procuram no processo de comunicação dialógica (2008:
125).

Segundo Bakhtin a vida de Sócrates possuía elementos cômicos, sua


relação com Xantipa, sua autodenominação como parteira e alcoviteira remete
ao carnavalesco. Podemos observar outro elemento cômico embutido de
conceito filosófico, portanto de seriedade, a “mania” de Sócrates de ficar muito
tempo parado dialogando com seu Daimon, e que isto inclusive o leva a chegar
atrasado no banquete na casa de Agatão.
A cosmovisão carnavalesca no processo dialógico é representada pelas
imagens míticas para dizer o que é o amor, na fala dos interlocutores há uma
ênfase na caracterização do Eros como um deus e na tentativa de explicar sua
origem, no entanto, Sócrates dialoga e dá voz aos representantes da cultura
grega, da aristocracia, da medicina, da retórica, da tragédia e da comédia, o que
torna o diálogo polifônico posteriormente superado pela dialética na fala de
Diotima.
Sócrates estabelece um discurso em que Diotima, personagem pensada
como portadora da verdade, uma estrangeira, expressa o amor como um
mistério revelado e que pressupõe uma iniciação que requer disciplina. Diotima
explica a origem do Eros através do mito segundo o qual Eros foi gerado na
noite em comemoração ao nascimento de Afrodite, entre os convidados
encontravam-se Recurso e Pobreza, embriagado Recurso adormeceu e Pobreza
engendrou Eros:

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

E por ser filho de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele
ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e
belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar,
sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas de
nos caminhos porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com
a precisão (PLATÃO,1979: 203d).

Final
mente, por comportar dupla natureza Eros não é nem sábio, nem ignorante, mas
está entre ambos sendo, portanto, filósofo. O amor é busca do belo no corpo e
na alma. Com isto percebemos que o mito Eros narrado por Diotima, dotado de
elementos poéticos, é a base do pensamento platônico exposto através do
“diálogo socrático”. Sendo assim o papel alegórico do mito nos remete a
seriedade do discurso para definir o Eros, de modo que há uma superação dos
elementos míticos pela racionalidade do pensamento filosófico.
Bakhtin expõe dois procedimentos centrais do “diálogo socrático”, a
saber, a síncrise e a anácrise. A síncrisi é a confronto de opiniões sobre um
determinado objeto, no Banquete o objeto é o Eros através dos discursos
apresentados, já a anácrise entende-se pelo método de provocar a fala do
interlocutor, fazê-lo externar sua opinião preconcebida a fim de refutá-la, ou
como afirma Bakhtin: “desmascarando-lhes a falsidade ou insuficiência; tinha a
habilidade de trazer à luz as verdades correntes” (2008: 126).
Em suma, notamos que é possível observar claramente no Banquete
elementos dialógicos através do jogo entre o personagem Sócrates e seus
interlocutores em que a ironia e a alegoria dos discursos provocam o riso
carnavalesco e elucida a reflexão filosófica características do sério-cômico. A
polifonia é marcada pelas vozes da cultura ateniense enunciadas pelos
interlocutores que versam seu olhar sobre o Eros a partir de perspectivas
inerentes a sua condição, seja de médico,poeta, aristocrata e filósofo. Eis a
fronteira entre filosofia e literatura na obra o Banquete dotada de tom poético-
filosófico e regada a discursos dialógicos para elucidar questões que perpassam
o âmbito do ser.

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Referências Bibliográficas:
BAKHTIN.Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski.Trad. Paulo Bezerra. Rio
de Janeiro, 2008.
PLATÃO. Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza, São Paulo: Abril
cultural, Os pensadores, 1979.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

A reconstrução do mito de Medéia em O Anticristo,


de Lars Von Trier

Carlos André Araújo Menezes∗

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade principal observar na narrativa fílmica
Anticristo, do dinamarquês Lars Von Trier, a reconstrução do mito de Medéia, bem como a
presença dos aspectos da vegetação, seus símbolos e ritos de renovação na reconstrução do
referido mito, analisados a partir do texto O Sagrado e O Profano, de Mircea Eliade, associados
a outros textos da mitocrítica atual .
Palavras-chave: Mito; Anticristo; Medéia.

Desde os tempos mais remotos o homem tem procurado dar sentido


à sua existência, quando não, encontrar respostas para algumas questões que
nos parecem obscuras. Especialmente nos dias atuais, onde a desordem, a
fragmentação e a insegurança parecem adquirir dimensões maiores. Nesse
caminho em busca de satisfações, a representatividade e a simbologia tem
papéis fundamentais, “O mito é a chave para a reconciliação do homem
moderno consigo mesmo” (CAMPBELL, 1988).
Em relação a mitologia grega e seu imenso legado literário e
filosófico, podemos dizer que continua a superar tempo e espaço, conseguiu
sobreviver ao domínio do logos, surgiu do caos para explicar o caos. Segundo
Balandier , 1997, “o mito é capaz de criar sucessivas gêneses”, exemplo limite
dessa capacidade é o mito de Medéia, cuja fantasia nos permite penetrar na


Universidade Federal de Sergipe – UFS.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

fragilidade e obscuridade da alma humana, seu arquétipo clássico se refez em


Anticristo, narrativa fílmica do dinamarquês Lars Von Trier, e reforça o papel do
mito e do rito nas diversas sociedades, o de permitir ao homem a interpretação
de alguns fatos históricos e a interpretar suas ações, ao mesmo tempo em que
dá abertura à tradição, espaço onde a humanidade acumula os mais diversos
conhecimentos:

Diante do mito original, aparece o mito dos novos começos, que almeja
a ruptura com a história vigente no sentido de provocar a chegada da
história desejada.
[...]
O mito trabalha na esteira da ação, passa por cima dos homens para se
realizar, estabelece sua relação com as potências simbólicas nas quais
eles pensam ter algum apoio, ele alimenta a palavra “quente”, que dá a
certeza que o mundo pode e vai mudar. (BALANDIER, 1997: 26)

Ainda sobre o mito de Medéia podemos afirmar que foi e continua


sendo uma das tragédias gregas de grande impacto, uma vez que traz em seu
texto a figura de uma heroína que transita entre o que é ser humano e
desumano, a mulher que ama e desama em intensidades muito bem acentuadas
por ações que ainda nos dias atuais transgridem os padrões sociais entre elas
podemos citar: filicídio, práticas pagãs de rituais primitivos, vingança,
assassinato, abandono à família, entre outras, todavia para entendermos a
Medéia de Eurípedes, temos que retornar a uma outra lenda grega, O Velocino
de Ouro ou Jasão e os Argonautas , contadas aqui à luz de Bulfinch.
A lenda do Velocino de Ouro começa a partir do medo da rainha
Nefele em deixar que seus filhos, um menino e uma menina, fiquem sob os
cuidados de uma madrasta, ajudada por Mercúrio recebeu um velocino de ouro
no qual pôs suas crianças para que fossem levadas a um lugar seguro, todavia
enquanto transportados a menina cai no mar e o menino chega seguro ao reino
de Cólquida, na costa oriental do Mar Negro. Após isso, o velocino de ouro foi
posto em uma gruta sagrada sob a guarda de um dragão que não dormia.
Muito tempo depois, Jasão, filho de Pélias da Tessália recebe do seu tio Esão a
tarefa aventurosa de recuperar o tal objeto, que se sabia estar no reino de

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Cólquida. Jasão incube Argos de construir um barco que coubesse cinqüenta


homens, após construída a gigantesca embarcação, para os padrões da época,
ela recebeu o nome do seu construtor e sua tripulação recebeu o nome de
argonautas.
Ao desembarcar em Cólquida, Jasão submete-se a uma série de
provas até a posse do objeto. Concordou com o rei em arar a terra com dois
touros de patas de bronze que soltavam fogo pela boca e pelas narinas, e
semear os dentes do dragão que Cadmo matara e dos quais sairia, uma safra de
guerrreiros, que voltariam suas armas contra o semeador. Antes porém de ir ao
campo de provas, Jasão pleiteou sua causa junto a Medéia, filha do rei e
conhecedora da magia, a quem prometeu casamento, invocando, por
juramento, o testemunho de Hécate. Medéia cedeu, e graças a sua ajuda ele
conseguiu um encantamento para se livrar da respiração de fogo dos touros e
das armas de fogo dos guerreiros. Após a vitória, Medéia foge com Jasão de
Cólquida, levando como refém Apsirto, seu irmão e filho do rei Eetes,
esquarteja-o para despistar os que viriam em busca dos dois.
Após abandonar o pai e sua pátria Medéia se entrega ao amor de
Jasão, dá-lhe dois filhos varões e submete-se às condições de expatriação, perda
de identidade cultural, passa da tutela do pai para a do marido (como simples
objeto de posse), vê-se obrigada a abandonar suas práticas pagãs, herança de, a
depender da versão histórica, sua tia, irmã ou filha a feiticeira Circe. Ressalte-
se, ainda, que na epopéia grega, mesmo post homerum, a posição de destaque e
as grandes decisões eram garantia absoluta do macho dominador, que impunha
à mulher sua condição de inferioridade, como podemos observar:

Á mulher era vetada a participação na vida política e social da cidade.


Ficava circunscrita ao gineceu (lugar da casa destinado as mulheres e
as suas escravas) e aparecia raramente em público, em solenidades
como festas religiosas, casamentos e cerimônias fúnebres. O direito à
educação era-lhe negado e suas atividades ficavam restritas aos
trabalhos manuais (Cf. COULANGES, 1987: 43-58).

Além de todos os sacrifícios já mencionados, Jasão e Medéia vêem-se


obrigados a se refugiarem em Corinto, na corte do rei Creonte. Durante certo

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tempo desfrutaram de paz no casamento, até que Creonte resolveu casar sua
filha Creúsa (ou Glauce) com o herói da Tessália. Repudiada pelo marido e
expulsa da cidade, Medéia resolve vingar-se friamente entregando como
presente de casamento à noiva vestimentas e uma coroa envenenada, que a
mataria e juntamente ao rei Creonte, que em tentativa de salvar a filha se
envenenasse também, além de ter incendiado o palácio real. Tudo conseguido
às custas de seus poderes como feiticeira e domínio sobre as ervas e elementos
da natureza. Como se não fosse suficiente, resolve matar seus filhos, na versão
de Trier para a TV dinamarquesa no ano de 1988, há sugestão de um ritual
macabro, onde o próprio filho mais velho diz à mãe saber o que está prestes a
acontecer, inclusive ajuda a mãe na execução do irmão caçula, como se o diretor
em livre adaptação sugerisse a ritualística morte do patriarcado. Para o
estudioso alemão Jaeger (1986) o confronto entre Medéia e Jasão representa a
tragédia matrimonial burguesa observadas por ele desse modo:

São essencialmente burguesas as disputas, os impropérios e os


arrazoados de ambas as partes. Jasão ostenta prudência e
generosidade. Medéia faz reflexões filosóficas sobre a posição social da
mulher (JAEGER, 1986: 276).

Desde sua primeira encenação em 431 a. C., Eurípedes reforçou a sua


tendência em marcar a singularidade da alma feminina. Medéia é o grito
raivoso da esposa que não aceita a traição passivamente, nem o abuso do poder,
representados aqui pelo desejo do rei Creonte. “Aproxima-se o dia em que a
mulher será reverenciada e uma injuriosa reputação já não pesará sobre ela”.
(EURÍPEDES, 1980, p. 178), o grito de Medéia é o de um grupo social
marginalizado, o das mulheres, como podemos observar em suas palavras
dirigidas ao coro:

De todos os seres que respiram e pensam, nós outras, as mulheres,


somos as mais miseráveis. Precisamos primeiro comprar muito caro
um marido, para depois termos nele um senhor absoluto da nossa
pessoa, segundo flagelo ainda pior que o primeiro [...] para uma
mulher abandonar o marido é escandaloso, repudiá-lo impossível... O
homem, dono do lar, sai para distrair-se de seu tédio junto de algum

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amigo ou de pessoas de sua idade; mas nós, é preciso não termos olhos
a não ser para eles (EURÍPEDES, 1980: 171).

A partir do que temos traçado até aqui sobre a Medéia de Eurípedes,


esboçaremos a reconstituída por Lars Von Trier, que ao longo de sua construiu
em seus filmes personagens femininas rodeadas de tragicidade. Revisando sua
filmografia poderemos observar as principais delas: Em Ondas do Destino Emily
Watson é a jovem Bess cujo marido paraplérgico não pode mais prazer sexual e
a submete a aventuras sexuais extraconjugais, das quais ele com voyerismo
extrai o seu prazer; em Dançando no Escuro, Bjork é Selma a mulher que mata em
desefa do seu filho que caminha em direção à cegueira congênita, em Dogville
Nicole Kidman interpreta Grace a fugitiva que seduz e ao mesmo tempo coloca
em perigo a população da isolada cidade de Dogville, em sua versão para
televisão dinamarquesa de Medéia, assinada como Medéia de Lars Von Trier, ele
preserva o tom teatral da original, e a natureza entra nesta adaptação como uma
das personagens principais, coisa que ele viria a fazer mais tarde em Anticristo,
discutido ao longo deste ensaio.
A natureza da feiticeira Medéia e da personagem principal de
Anticristo, nomeada nos créditos finais como ELA, ao longo do filme será
explorada a partir da inserção da personagem em meio a vegetação e analisada
a luz do texto “O Sagrado e o Profano”, capítulo VIII, de Mircea Eliade,
observaremos partes dos aspectos simbólicos do filme ligados à natureza e à
vegetação presente constantemente na obra “Se a natureza é má, então isso
também vale para a natureza de todas as irmãs”. (Ela, personagem de
Anticristo).
A estrutura dessa narrativa fílmica está dividida em capítulos e entre
um prólogo e epílogo, o que nos leva a concluir que é uma tese. E que esta é
tomada no presente ensaio como a de que todas as mulheres pertencem a uma
mesma irmandade, da qual fez parte Medéia.
O prólogo é a cena onde o referido diretor nos convida
elegantemente em preto e branco e ao som de “Lascia ch’io Pianga” da ópera
“Reinaldo” de Hendel a apresentação de sua tragédia. Nela, vemos um casal

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que instintivamente faz amor, e à medida que ambos estão em direção ao ápice
sexual, seu filho, um bebê prestes a cair da janela, se aproxima da morte, motivo
que levará a mãe a dor e ao desespero (visto até então como a dor de uma mãe
pela perda do filho e que ao longo da narrativa outros elementos nos levarão a
concluir que, na verdade, se trata de uma dor histórica, impregnada em uma
mulher com sede de vingança), ELE (o pai) lutará pela cura de sua esposa.
Torna-se necessário dizer que até o final desta cena temos diversas pistas e
elementos simbólicos da mórbida história que será contada, entre eles: três
esculturas de pedintes (inscrito em suas bases luto, dor e desespero), água
sendo derramada, sapatos trocados e elementos que caem arrastados pelo vento
(elementos que indicam um mundo em queda), e a pista sutil da reconstituição
do mito de Medéia, em uma cena rápida percebemos que a babá eletrônica está
em mute, dando-nos a pista de que a mãe sabia dos riscos que corria seu filho
próximo a uma janela em casa de andar, morte que aos olhos da personagem
necessária aos seus desígnios.
Após o prólogo, temos o primeiro capítulo chamado de Grief (o
sofrimento ou luto), ele é iniciado por uma cena praticamente muda é em tom
lúgubre cujo som incidental é de um caixão sendo conduzido em cortejo pelo
cemitério, nas sequências seguintes teremos a presença em cena de um vaso de
flores “enterradas” na água, cuja imagem é em zoom e puxada em plano
fechado e surreal, vemos até as micropartículas do vegetal dissolverem-se,
elemento comparativo com a personagem que se encontra na cama depressiva
por conta da recente perda. O tom depressivo é acentuado pela matiz da cor das
flores, uma variação de tons entre o azul e o acinzentado, segue-se a cena com
demonstrações do interior da personagem comparado a vegetais distorcidos:
galhos, folhas, gramíneos e troncos. Quanto mais entramos em contato com o
luto dela mais elementos vegetativos nos são mostrados. Interessante observar
que em algumas dessas imagens o plano cinematográfico é mostrado de baixo
para cima, como se estivéssemos também submersos as camadas inferiores do
vegetal ou em meio a uma floresta de horrores.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

ELE, cujo nome também não nós é revelado, é psiquiatra e na


tentativa da busca de cura para depressão de sua esposa sugere exercícios de
relaxamento onde a mata e seus desdobramentos (desconhecimento, fertilidade,
selvageirismo...) aparece como representação do feminino na tentativa de
superação do medo. Em contínuo exercício terapêutico, ela adentra a mata,
deita na grama e é envolta pela natureza, temos exatamente nesse ponto a
clareza de que o feminino e a vegetação são parte do mesmo cosmos, a
personagem encontra próxima as raízes de um carvalho o local ideal para
conseguir consolo, e o faz em posição fetal, ela que perdeu o filho torna-se nesse
momento filha da natureza e é por ela acalentada.
Passemos ao capítulo dois, nomeado de Pain – (chaos reigns) / Dor
(o caos reina), nele continuamos a explorar com as personagens toda a
exuberância da vegetação no exercício de vencer limites e enfrentar o medo,
aqui representados por imagens caóticas de galhos, raízes expostas, folhas secas
e névoa. Há também uma grande árvore seca no centro de tudo, um velho
carvalho que assim como ela está seco, infecundo, sem seiva. Esse espaço
vegetal é batizado de Éden, assim como na história de Adão e Eva, é nele que
esse casal provará do fruto proibido da árvore do conhecimento. Nesse ponto,
retornamos mais diretamente ao texto do Mircea Eliade:

Será o homem semelhante a Deus só por conhecer o bem e o mal, ou


porque tornando-se onisciente, poderá “ver” onde se encontra a
Árvore da Vida e saber como se adquire a mortalidade? O texto bíblico
é suficientemente claro: “E o Senhor Deus disse: “Eis que Adão se
tornou semelhante a nós pelo conhecimento do bem e do mal (1992:
232).

Nesse capítulo há diversos elementos figurativos, desde


determinadas tomadas em tom sépia (que lembram a mudança da cor das
folhas na chegada do outono), até bolotas (sementes) de carvalhos que
explodem à noite no telhado como símbolo de agouro. Em diálogos com o
esposo ELA chega a falar em linguagem figurativa da idade dos carvalhos “que
podem chegar a ter até cem anos” e de sua necessidade em reproduzir-se
apenas uma única vez. Até esse momento temos diversos surtos de

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esquizofrenia e compulsão sexual. Estaria a personagem tentando uma outra


reprodução ou nos dando pistas de sua natureza selvagem? Ela que chegou a
afirmar que a natureza é a igreja de Satã, o vento sua respiração. Na sequência de
cenas temos visão agora das coisas a partir das copas das árvores, de cima delas
parece que a personagem trama seu plano de vingança para afastar alguma dor,
pensada pelo telespectador como a dor da perda do filho. A última imagem
desse capítulo é enigmática, em meio a vegetação uma raposa fala em tom
apocalíptico: O caos reina e o vento sopra neste momento entre as folhas.
No terceiro capítulo Despair (gynocide)/feminicídio temos a maior
parte da revelação da tese desenvolvida pelo filme, a vingança de uma mulher
diante do masculino, e sua relação com o culto da vegetação aqui observados. A
presença da chuva na cena anuncia o agouro e é seguida de uma sequência de
descobertas sobre a personagem. Na última vez em que a personagem esteve no
Éden foi para escrever sobre o feminicídio ocorrido no século XVI, não obstante
envenenada por suas pesquisas começa a arquitetar um plano contra o mundo
masculino, ai temos a maior semelhança da personagem com a Medéia. Ainda
neste capítulo temos a continuidade de exercícios terapêuticos em que ELE se
propõe a ser como a natureza e ELA o pensamento racional. Quando ele sugere
sufocá-la e matá-la com a sua Natureza, ELA afirma com plena convicção que a
Natureza não pode matá-la. É assumido nesse ponto da narrativa um tom
misógino e pessimista em relação a natureza das mulheres, uma vez que se a
Natureza (vegetação) é má e selvagem, assim como são também todas as
mulheres, pois uma se completa na outra. as mulheres não controlam o seu próprio
corpo a natureza faz isso..., cabe-nos aqui mais uma verificação do Mircea Eliade
sobre a grande Deusa – Árvore da vida , sexualidade e Vegetação:

As árvores representam o universo em permanente regeneração; mas


no cento do Universo encontra-se sempre uma árvore – a da vida
eterna ou da ciência. A Grande Deusa é a personificação da fonte
inesgotável da criação, deste último fundamento da realidade.
[...]
A vida revela-se como unidade; os níveis de vida cósmica
correspondem uns aos outros (Lua-mulher-Terra; Céu-chuva-homem,
etc.) e interferem mesmo em centros determinados (todos os atributos
cosmológicos da Lua, da moite, das águas, da terra, das sementes, do
nascimento, da regeneração, etc. se acham presentes, mesmo

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virtualmente, na mulher e podem ser atualizados e aumentados por


rituais femininos ou hierogamias). (1992)

Nas últimas cenas deste capítulo instalam-se as representações de


loucura, selvageria e vingança, o casal faz sexo como bichos em meio às raízes
retorcidas de um carvalho negro, a imagem enigmática e negra é contrastada
por suas peles brancas e dezenas de mãos femininas que simbolicamente
começam a brotar de todas as raízes, revelando a existência de um mundo
subterrâneo. Seriam mãos de diversas mulheres queimadas em outras eras?
Seriam mãos de mulheres que praticaram os rituais pagãos nas florestas? As
bacantes? O que se sabe ao certo é que brotaram das raízes de um vegetal e que
nos rituais míticos sob a copa de árvores as mulheres revelavam a sua natureza.

Por que eles se refugiam na natureza? As doutrinas descrevem a


natureza como irracional , algumas vezes até má. Talvez porque ela
possua tudo aquilo que subsiste, seja a fonte inesgotável de vida (bios)
, ou mesmo presente os instintos, a indiferença quase que total à
padronização. A natureza tem como organização própria e não se
sujeita ao transcendente; é primitiva, não cultivada. É neste espaço que
Eles buscam encontrar a força da qual necessitam para resistir à tortura
a que foram submetidos. É na natureza que Eles tentam buscar o
equilíbrio, tentam recuperar – alcançando aquele estágio primitivo
apontado anteriormente – as forças. (IVONILDA, 2010)

No último capítulo The three beggars (Os três pedintes), após o ato
sexual selvagem, ele se encontra como presa, acuado nas entranhas de uma
árvore, ela em acesso de loucura procura-o na tentativa de arrancar o seu sexo,
de vingar-se em nome de todas as irmãs (todas as vítimas de feminicídio). A
floresta agora é toda escura, iluminada pela luz difusa da lua. A morte é
anunciada pela justaposição dos três pedintes (constelação) e representados
pelo aparecimento personificado de um cervo, uma raposa e um corvo (seres
das florestas silvestres). Encerra-se o estranho e misterioso capítulo de vingança
com ELE sufocando-a , assim como o regime do patriarcado fez ao culto da
Grande deusa, matando diversas mulheres ironicamente com o fogo adquirido
de caules vegetais, é assim que morre também uma de nossas protagonistas, a
outra, a natureza vive!

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No epílogo, mais uma vez temos a ausência de cores na cena, vemos


o sobreviente se alimentando de frutos silvestres (ouve-se de novo Hëndel), e
enigmaticamente toda a cena é tomada por centenas de mulheres que saem de
dentro da mata selvagem em direção a um só lugar, mulheres de diferentes
épocas , todas caminhando em uma mesma direção e entre a mesma vegetação.
Para onde vão? Talvez um outro texto responda.

Referências bibliográficas
ANTICRISTO. Produção de Lars Von Trier. California filmes, Suspense, 103
minutos, EUA, 12/2009.
BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Tradução: Suzana
Martins. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
BULFINCH, Thomas. O livro de Ouro da Mitologia: história de deuses e heróis.
Tradução David Jardim Junior. 9 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 23ª ed. Rio
de Janeiro: José Olimpio, 2009.
DOGVILLE. Produção de Lars Von Trier. California filmes, drama, 171
minutos, EUA.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
GREIMAS, A. J. Elementos para uma teoria da Interpretação da Mítica, In:
Análise estrutural da narrativa, pesquisas semiológicas. Petrópolis: Vozes Limitada,
1971.
IVONILDA, Maria. O trágico espetáculo da vida em O Anticristo de Lars Von Trier.
Fortaleza, 2010.
MEDÉIA. Produção de Lars Von Trier. Artesanato Digital (internet), drama, 75
minutos, Dinamarca, 1988.
METZ, Christian. A Grande Sintagmática do filme Narrativo. In: Análise
estrutural da narrativa, pesquisas semiológica. Petrópolis: Vozes Limitada, 1971.
ONDAS do Destino. Produção de Lars Von Trier. Artesanato Digital (internet),
drama, 152 minutos, Dinamarca.
VERNANT, Jean Pierre. O universo, os deuses, os homens: mitos gregos contados
por Jean Pierre Vernat. São Paulo: Ediouro, 2008.

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Huxley com Marcuse: Admirável mundo novo como


paisagem fictícia da emergência do controle político dos
indivíduos a partir do uso de substâncias químicas

Leomir Cardoso Hilário∗

Resumo: A partir da obra literária de Huxley propõe-se, por uma leitura filosófico-política,
uma quebra da imunidade ideológica da qual gozam atualmente os psicotrópicos, isto é, os
medicamentos como os antidepressivos e ansiolíticos, dentre outros. Procura-se refletir, a partir
do pensamento de Marcuse, sobre o como foi possível a entrada da pulsão na ordem política e
sua regulação. Atualmente, algumas modalidades de relações sociais são reguladas por tipos
específicos de substâncias postas no mercado, a partir de um diagrama de poder político.
Palavras-chave: Psicologia, Filosofia, Literatura.

1. Introdução: a dupla dimensão do phármakon


O medicamento adentrou definitivamente nos modos de vida
contemporâneos. É improvável que o cidadão das grandes metrópoles do
mundo ocidental passe um ano inteiro sem ingerir algum tipo de comprimido,
seja para uma dor de cabeça passageira ou para um enjôo estomacal. A suspeita
de que essa entrada progressiva dos medicamentos durante o século XX,
intensificada e consolidada no início deste século XXI, modifique os processos
de subjetivação, ou seja, de que a fabricação e consumo em larga escala produz
novas formas de subjetividade, constitui a espinha dorsal desse trabalho. É a


Psicólogo, formado pela Universidade Tiradentes, UNIT, em julho de 2010, e aluno especial do
mestrado em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe, UFS, entre 2009 e 2010.

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partir dela, isto é, das relações entre medicamento, vida e política, que se
desenvolvem as linhas de problematização dessa escrita.
Refletindo sobre a tradução corrente de phármakon por remédio (droga
benéfica, portanto), Derrida (2005) comenta se tratar de uma manobra explícita
para conjurar uma dimensão específica do phármakon e deixar aparecer apenas a
idéia de substância benévola, cientificamente neutra e transparente. Relendo as
origens filosóficas que envolvem o phármakon, Derrida (2005: 57) argumenta que
este é uma substância com dupla dimensão, no sentido de que tanto pode
agravar o mal quanto remediá-lo: “O phármakon é esse suplemento perigoso que
entra por arrombamento exatamente naquilo que gostaria de não precisar dele e
que, ao mesmo tempo, se deixa romper, violentar, preencher e substituir,
completar pelo próprio rastro que no presente aumenta a si próprio e nisso
desaparece”.
No phármakon se encontra, portanto, o remédio e o veneno como faces da
mesma moeda, como potencialidades da mesma substância. Essa dupla
dimensão do phármakon, apontada por Derrida, constitui o pilar que sustenta a
argumentação desse trabalho. Desta forma, a crítica se volta não tanto às drogas
ditas ilícitas, cuja argumentação de que causam dependência e podem levar à
deterioração da qualidade de vida é socialmente aceita, mas sim às drogas ditas
lícitas, regulamentadas pela ciência moderna, produzidas pela Indústria
Farmacêutica; e de que modo essas drogas lícitas podem fazer parte de um
projeto de dominação política.
Evidentemente, não se fala nesse trabalho de todo e qualquer tipo de
droga lícita. O objetivo é uma modalidade específica de medicamentos, a saber,
os psicotrópicos. Esses podem ser compreendidos como medicamentos do espírito,
os quais, de acordo com a historiadora e psicanalista Roudinesco (2000: 21),
“têm o efeito de normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais
dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar a significação”. Eles podem
ser classificados em três grandes grupos: os psicolépticos, medicamentos
hipnóticos que tratam distúrbios do sono; os ansiolíticos e os tranqüilizantes, que
eliminam os sinais de angústia, ansiedade, fobia e de diversas outras neuroses;

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e os neurolépticos (ou antipsicóticos), medicamentos específicos para a psicose e


demais formas de delírios crônicos ou agudos. Dado o espaço diminuto cedido
a essa escrita, toma-se como alvo de intervenção crítica o segundo grupo dos
psicotrópicos.
Essa modalidade de medicamento foi posta em circulação na metade do
século XX, especificamente em 1952, por dois psiquiatras franceses: Jean Delay e
Pierre Deniker. O inventor desses medicamentos, Henri Laborit, chegou a
afirmar: “Por que ficamos contentes por dispor de psicotrópicos? Porque a
sociedade que vivemos é insuportável. As pessoas não conseguem mais dormir,
ficam angustiadas e necessitam ser tranqüilizadas” (ROUDINESCO, 2000: 23).
Desde sua entrada em cena, os psicotrópicos guardam uma relação estreita e
próxima com a sociedade e a política. E é esta relação que será aqui
problematizada através da obra literária de Huxley (2003) e da filosofia política
de Marcuse (1979).

2. Medicamentos e a ordem da política em Aldous Huxley


Na introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx (2005: 145)
enuncia a famosa frase de que a religião é o ópio do povo, o “suspiro da
criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração”, a “expressão da
miséria real”. Numa reflexão acerca de sua própria obra, Admirável Mundo Novo,
Huxley (2000) versa sobre o fenômeno da dopagem sistemática dos indivíduos
para benefício do Estado como elemento primordial da política na sociedade
retratada ficticiamente. A droga, chamada por Huxley de Soma na obra
supracitada, funcionava por meio de uma dose diária como garantia contra a
desadaptação pessoal, contra a agitação social e a divulgação de idéias
subversivas. Subvertendo e invertendo a afirmação marxiana, em Admirável
Mundo Novo, como a religião, o ópio, ou antes o Soma, era a religião do povo.

Em vários momentos da obra, Huxley menciona o papel de regulador


das relações sociais do Soma, de modo que a substância química fornecida pelo
Estado funciona como instrumento de controle da subjetividade. Um dos temas
mais recorrentes em Admirável Mundo Novo é as novas formas de controle

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político. Há um dos processos os quais Huxley chama de bokanovskização1 que


“consiste essencialmente numa série de interrupções do desenvolvimento”
(HUXLEY, 2003: 13), moldando antecipadamente o indivíduo. Ou seja, é o
princípio da produção em série aplicada à biologia ou, em linguagem
contemporânea, da produção de subjetividade a partir de determinadas
práticas e saberes: “Nós podemos produzir um indivíduo novo com a maior
facilidade, tantos quantos quisermos” (HUXLEY, 2003: 181).

Portanto, em Admirável Mundo Novo, o hábito de tomar Soma não era um


vício privado, mas uma instituição pública. Se “não há civilização sem
estabilidade social nem estabilidade social sem estabilidade individual”
(HUXLEY, 2003: 55), o consumo do Soma é uma prática de dominação política da
subjetividade. Diversos slogans políticos se referem ao Soma: “Com um
centímetro cúbico se curam dez sentimentos lúgubres”; “Um grama vale mais
que o mal que se proclama”; “Um médico por dia dá vigor e alegria” (HUXLEY,
2003: 59, 141, 226, respectivamente).

Apesar de escrito e publicado entre 1931-32, Admirável Mundo Novo possui


debates acerca de problemáticas contemporâneas relevantes ao nosso contexto
sócio-político do início do século XXI. É claro que não vivemos hoje numa
sociedade totalmente administrada e controlada, porém alguns elementos de
domínio subjetivo funcionam da mesma lógica que o Soma. É importante
sublinhar o fato de que, segundo dados da IMS Health2, instituto que audita a
indústria farmacêutica, em 2008, no Brasil, o Rivotril chegou ao segundo lugar
de remédios mais vendidos, ficando à frente de outros de popularidade

1
Segundo Wojciekowski (2009), o controle do indivíduo é sempre ressaltado como algo positivo em
Admirável Mundo Novo, e a “bokanovskização” é uma das grandes técnicas de reprodução, a qual
consiste em dividir um único óvulo em vários outros que criam de oito a 96 gêmeos idênticos. Esses
gêmeos idênticos são os membros das castas inferiores que, mais tarde, serão treinados para trabalhos
repetitivos e que não exijam o uso do intelecto. Essa é uma das informações que, segundo este autor, nos
fazem compreender que a “perfeição” dessa sociedade é devida, principalmente, à divisão de seus
cidadãos em castas, divididas segundos critérios de função que exercem na sociedade.
2 Publicado na Revista Época. Disponível em:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI27270-15257,00-
RIVOTRIL+POR+QUE+O+MEDICAMENTO+E+O+SEGUNDO+MAIS+VENDIDO+NO+PAIS.html
também disponível em http://www.imshealth.com/portal/site/imshealth

131
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

consolidada, como Neosaldina e Hipoglós. Quando um remédio cujo objetivo é


funcionar como anticonvulsivante, sedativo e tranquilizante, consta na frente de
outros medicamentos usados comumente para uma dor de cabeça habitual ou
uma assadura repentina, é sinal de que alguma coisa estranha está acontecendo.
Afinal de contas, qualquer pessoa pode livremente ir a uma farmácia próxima e
comprar alguns comprimidos de Tylenol (outro medicamento que ficou atrás
do Rivotril na escala cujo critério foi o número de vendas) para aliviar uma
enxaqueca incômoda; no entanto, nem todo mundo pode, assim que der na
telha, comprar Rivotril, pois se trata de um remédio controlado, cuja venda se
dá apenas mediante apresentação de receita médica.

Essa larga produção e consumo de um medicamento psicotrópico nos


leva à legítima indagação de que não é mais pela promoção de saúde que a
substância está agindo, mas a favor de uma imposição de um padrão de
normalidade psíquica. Parece haver, com efeito, uma semelhança entre a
produção de Soma em larga escala e seu respectivo consumo com o atual
estatuto do Rivotril3, o qual se tornou uma espécie de coringa
psicofarmacológico diante dos abalos psíquicos dolorosos porém inevitáveis de
uma vida.

A partir das reflexões de Foucault (1997, 2006a, 2006b) pode-se falar de


uma passagem da anatomopolítica para a biopolítica: grosso modo, a primeira
consistindo numa tecnologia do corpo, ou seja, em instrumentos ortopédicos
cuja função é a correção e o adestramento do corpo; a segunda designando as
relações entre poder-saber como agentes de transformação da vida humana. Se
a anatomopolítica possui uma face desumana, por causa de seus instrumentos
grosseiros como a algema, o cinto de castidade e a camisa-de-força, e por isso

3
Apesar dos gritantes dados sobre o Rivotril, ele não é o primeiro psicotrópico a se tornar amplamente
consumido. Outros, como o Haldol, há muito são campeões de venda. Um bom exemplo de conexão entre
quantidade de venda desse tipo de medicamento e demandas políticas é dado por Klein (2008, p. 397).
Ela mostra que durante março de 2003, na invasão das tropas americanas ao Iraque, as farmácias de
Bagdá já tinham vendido todo o seu estoque de remédios para dormir e antidepressivos, de maneira que a
cidade não possuía mais nenhum comprimido de Valium, também psicotrópico.

132
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

atua de forma negativa do ponto de vista da analítica do poder, a biopolítica age


positivamente, produzindo sujeitos, condutas, saberes, extraindo verdades.
Os psicotrópicos são, de certo modo, os aparelhos biopolíticos por
excelência, já que não agem, como é o caso de antibióticos, por exemplo, com
fins determinados, o mecanismo de ação deles é regular fisiologicamente um
corpo a fim de incidir sobre a subjetividade de um indivíduo. Dada a atual
hegemonia e consolidação dos psicotrópicos, ocorre então uma exigência para o
pensamento: de que maneira realizar uma crítica política uma vez que esse tipo
de medicamento não atua sobre as representações, mas sim sobre a dimensão
intensiva do psiquismo? Ou seja, o que está em jogo não são discursos
ideológicos que falseiam uma determinada realidade, mas sim uma nova
modalidade de incidência do controle político que prescinde da representação,
dos discursos, das palavras.

3. A possibilidade de um controle das pulsões4 em Herbert Marcuse


É bem verdade: os psicotrópicos não necessitam de discursos
legitimadores para materializarem seus objetivos políticos, produzir um sujeito
pulsionalmente apartado da dimensão política de sua existência e abafar a
dimensão psíquica do sofrimento subjetivo, porém também não podem
simplesmente abandonar a referência à representação. Coser (2010) analisa
muito bem o papel da publicidade, do marketing, no lançamento e consolidação
de “drogas maravilhosas”. Este autor chama de “empurroterapia” o fato de as
propagandas desse tipo de medicamento prometerem um a mais, um aditivo de
viver, uma maneira melhor de passar a vida.

4
O conceito de pulsão, dada sua centralidade para pensamento de Freud, mereceria uma abordagem mais
detalhada e cuidadosa. Contudo, devido ao pouco espaço cedido à essa escrita, não se fez isso. Em
contrapartida, indica-se a leitura dos trabalhos de Birman (2009) e de Giacóia (2008) para uma melhor
compreensão. Parte-se aqui da seguinte definição, dada por Freud (2004, p. 148): “a pulsão nos aparecerá
como um conceito-limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que
provêm do interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida de exigência de trabalho imposta ao
psíquico em conseqüência de sua relação com o corpo”. Ou seja, deve-se ter em mente que nesse trabalho
a pulsão se refere a uma exigência de trabalho psíquico demandada por sua ligação com o corporal. De
maneira precisa, a pulsão entra como ferramenta conceitual para compreender a atuação dos
psicofármacos nos corpos e suas implicações para o psiquismo.

133
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

O que chama a atenção, em que pese esse papel importante da


propaganda no consumo dos psicotrópicos, é o aparecimento desses remédios
como ideologicamente imunes, pois são vistos como meios politicamente
neutros de promoção de saúde. A questão de extirpar rapidamente o
desconforto provoca um processo de obnubilação da dimensão social da
doença. Tudo se resume à fórmula: sentir dor ou desconforto leva
automaticamente à ingestão de remédio curativo ou paliativo.
Antes de iniciar o diálogo com a obra de Marcuse, é preciso dizer que
Admirável Mundo Novo se inscreve numa corrente literária do século XX a que se
pode chamar de distópica, cujos outros expoentes são Orwell (2009), Zamiatine
(2004), Bradbury (2007), Burgess (2004), dentre outros. A distopia tem relação
direta com a utopia. No entanto, não é o seu contrário, não se trata de uma
antiutopia, mas de um complemento lógico à utopia. Formada
etimologicamente por dys (doente, anormal, dificuldade no funcionamento) e
por topos (lugar), a distopia se refere à forma distorcida de um curso normal,
esperado e planejado. Uma das diferenças fundamentais, salientada por Jacoby
(2007: p. 40), é que as utopias buscam a emancipação ao visualizar um mundo
baseado em idéias novas, negligenciadas ou rejeitadas; enquanto as distopias
buscam o assombro, ao acentuar as tendências contemporâneas que ameaçam a
liberdade.
O próprio Huxley (2007) possui sua utopia: A Ilha, uma ficção na qual
está em jogo uma sociedade residida numa ilha distante em que seus habitantes
vivem numa harmonia política e conscientizados politicamente, preocupados
enfim com a expansão dos poderes da mente e das experiências subjetivas, uma
sociedade pacifista, sem guerras, sem exploração, sem trabalho alienado. Essa
distinção didática entre utopia e distopia, junto com o exemplo na obra de
Huxley, facilita o entendimento de como se propõe aqui o diálogo entre Huxley
e Marcuse. Este filósofo, inscrito na tradição que se conhece por Escola de
Frankfurt (ASSOUN, 1991; JAY, 2008; WIGGERSHAUS, 2006), também faz um
percurso filosófico que envolve a questão utópica e a distópica. Optou-se aqui

134
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

por dois trabalhos específicos de Marcuse, Eros e Civilização, como exemplo de


utopia, e O homem unidimensional5, como exemplo de distopia.
Em Eros e Civilização, cujo subtítulo é uma interpretação filosófica do
pensamento de Freud, Marcuse intenta pôr a psicanálise ao lado da teoria crítica
da sociedade. Esse ato implicou em criticar diretamente as tendências
freudianas, sobretudo em voga à época nos Estados Unidos sob o título de
“psicologia do ego”, que entendiam a psicanálise somente enquanto uma
terapêutica individual. O pensamento freudiano se via reduzido, portanto, à
sua dimensão clínica, em sentido estreito, isto é, ao setting analítico, ao
consultório. As questões diziam respeito somente aos mecanismos de defesa do
ego e às possibilidades de adaptação do sujeito. Marcuse entendeu que essa
tendência exclusivamente clínica dos pós-freudianos, por desconsiderar o que
se pode chamar de “textos sociológicos de Freud” (ENRIQUEZ, 1990), é
politicamente reacionária, “revisionista”. Para Marcuse, há em Freud uma
crítica radical da sociedade. Desta forma, em Eros e Civilização, trata-se de
demonstrar como os conceitos fundamentais da psicanálise podem se converter
em uma teoria crítica da sociedade capitalista.
Na opinião de Robinson (1971), Marcuse faz parte da esquerda
freudiana, quer dizer, daqueles cujo objetivo foi aliar o pensamento de Marx
com o de Freud. Um exemplo dessa correlação freudo-marxista está na
subversão do julgamento freudiano de que a civilização é sempre e
inevitavelmente repressiva. Esse juízo aparece em 1908, no texto Moral sexual
civilizada e Doença nervosa moderna, onde Freud (1996a: 173) diz: “Nossa
civilização repousa, falando de modo geral, sobre a supressão dos instintos.
Cada indivíduo renuncia uma parte de seus atributos.”, e continua a aparecer
em 1930, no Mal-estar na civilização: “a civilização se comporta diante da

5
O título original do trabalho de Marcuse é One-Dimensional Man: Studies in the Ideology Of Advanced
Industrial Society. Em português, optou-se por Ideologia da Sociedade Industrial, somente. Embora o
ganho desde título seja a ênfase do estatuto da ideologia nas sociedades avançadas, há uma perda da
questão da unidimensionalidade do pensamento que acaba por levar à derrota da lógica do protesto, uma
espécie de “catástrofe da libertação”, inclusive este é o título do penúltimo capítulo do livro.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

sexualidade6 da mesma forma que um povo, ou uma de suas camadas sociais,


procede diante de outros que estão submetidos à sua exploração” (FREUD,
1996b: 109). A subversão marxista desse juízo freudiano consiste em
historicizar: onde Freud fala “civilização”, deve-se entender “sociedade
capitalista”. Portanto, é a sociedade capitalista que exige uma repressão como
condição fundamental de sua existência.
Para Robinson (1971: 117) há um “criticismo freudiano revolucionário de
Herbert Marcuse”. O procedimento marcuseano consiste em estabelecer
distinções no interior do aparato conceitual freudiano. Por exemplo, um dos
conceitos centrais da metapsicologia freudiana7 é o de repressão. Nas palavras
de Freud (2010a: 148), “repressão é um processo que ocorre entre o sistema Ics e
o Pcs (ou Cs), que resulta em manter algo distante da consciência”. A repressão
é, então, um dos destinos que as pulsões encontram e que consiste em
obstaculizá-las e torná-las inoperantes (FREUD, 2010b). A repressão de uma idéia
ou afeto funciona como maneira de evitar o desprazer o qual poderia ser
ocasionado pelo retorno de uma lembrança ou imagem desconfortável. A
repressão consiste, em suma, em obstaculizar o processo de tornar-se consciente
de um afeto ou idéia desprazerosa. Como, ainda nesta época, Freud acreditava
na soberania incólume do princípio de prazer como regulador do psiquismo, a
repressão atuaria como mantenedora da ordem do prazer pela afastabilidade
do desprazer.
Marcuse mantém essa repressão ontogenética, isto é, constituinte da
evolução psíquica do indivíduo e seus modos de regulação pulsional para
manter o equilíbrio, mas adiciona uma repressão filogenética, ou seja, como

6
Em psicanálise, a sexualidade não é instintiva, não tem objeto definido, não é genital mas sim
heterógena e cuja dinâmica é pulsional. O alvo da pulsão é variável e sua meta é sempre a satisfação. A
sexualidade, para a psicanálise, portanto, está fora do domínio da reprodução e inscrita no terreno da
busca pelo prazer. Esse esclarecimento simples se torna necessário na medida em que se deve entender
sexualidade como o domínio do psiquismo regido pelo princípio de prazer. Na citação é uma supressão
do prazer que está em jogo e não uma repressão unicamente de ordem sexual (genital).
7
Para Freud (2010a: p. 121), metapsicológica é “uma exposição na qual consigamos descrever um
processo psíquico em suas relações dinâmicas, topológicas e econômicas”. A junção de meta (em direção
de, além, transcendência, reflexão crítica sobre) com psicologia (discurso do psiquismo ou saber sobre o
psíquico) marca o ultrapassamento freudiano da psicologia centrada na consciência e seus derivados
como percepção, atenção, memória etc., em direção às formações do inconsciente. A metapsicologia é,
logo, um conjunto de conceitos teóricos que estão na base do sistema psicanalítico.

136
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

componente da evolução da civilização repressiva. Ao contrário da


ontogenética, a repressão filogenética não é necessária, nem a-histórica, nem
natural, nem imutável. Ela é, antes de tudo, uma sobre-repressão, uma mais-
repressão, são “as restrições requeridas pela dominação social. Distingue-se da
repressão (básica)” (MARCUSE, 1978: 51). O conceito refere-se claramente a uma
junção do conceito de mais-valia de Marx com o de repressão de Freud, na qual
há “uma manutenção de uma disciplina apropriada à escassez mesmo quando
se dispõe de abundância” (KANGUSSU, 2008: 94).
Esse procedimento de historicizar as categorias metapsicológicas
freudianas continua com demais conceitos, como os de princípio de realidade,
dobrado em princípio de desempenho, e o de sublimação, duplicado em
dessublimação repressiva. Com esse procedimento, Marcuse tem como objetivo
afirmar a possibilidade de uma revolução radical da ordem estabelecida. Em
uma palavra, ele propõe uma espécie de utopia pulsional, onde, apesar das
restrições ontogenéticas imutáveis, o sujeito pode emancipar-se pulsionalmente
para além do capitalismo. Jacoby (2001: 141) argumenta como a substância da
utopia é a idéia de que o futuro pode transcender o presente: “refiro-me aqui
não só a uma visão de uma sociedade futura, mas a uma visão pura e simples,
uma capacidade, talvez uma disposição para usar conceitos expansivos para
enxergar a realidade e suas possibilidades”. Essa disposição está presente no
procedimento de Marcuse para com a teoria freudiana. É nesta concepção que
se afirma aqui ser Eros e Civilização a utopia pulsional de Marcuse.
Em O homem unidimensional, Marcuse (1978: 17) salienta a perda dessa
substância utópica: “Ao defrontar com o caráter total da sociedade industrial
desenvolvida, a teoria crítica fica desprovida de fundamento lógico para
transcender essa sociedade”. Salienta-se, nessa obra, a potencialidade de
integração da sociedade industrial capaz de fazer as categorias críticas
perderem seu potencial transformador. Em contraposição à idéia de que haveria
uma satisfação pulsional para além das restrições da sociedade capitalista, em O
homem unidimensional há a cogitação de que o capitalismo pode gerir as
satisfações, adminstrando-as. O problema das pulsões se radicaliza na conjetura

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

de que o capitalismo pode pôr fim a esse suposto caráter libertário do id8,
reservatório das pulsões e regido pelo princípio de prazer.
Marcuse cogita a possibilidade de o capitalismo controlar as pulsões,
imprimindo um caráter superegóico ao id. O que significa pensar numa
satisfação pulsional que “passa a ser administrada contra o princípio de prazer,
revelando o caráter repressivo da própria satisfação pulsional e que apenas as
exigências sociais continuam sendo atendidas” (RAMOS, 2004: 93). Significa o
surgimento de uma nova condição que impõe um controle ainda mais eficaz
sobre o indivíduo, uma vez que atua diretamente em sua dinâmica e economia
pulsional a partir de outro registro que não mais o da repressão. Convém
lembrar: Marcuse levanta essa hipótese estando envolvido nas lutas sociais das
décadas de 60 e 70, procurando refletir sobre o caráter passageiro do
radicalismo de determinados movimentos e a conseqüente falta de uma base
social capaz de levar a cabo uma transformação radical da sociedade.
No dizer de Rouanet (1989: 233) é como se o princípio de prazer não
fosse negado, mas mobilizado pelo princípio de realidade, que o coopta
silenciando seu conteúdo negador. Se a civilização, do ponto de vista freudiano,
exige uma renúncia pulsional como sua base de sustentação, Marcuse pensa na
possibilidade inversa, ou seja, de o capitalismo exigir não mais a repressão
pulsional, mas sua liberação, sua satisfação constante. Em uma palavra: a
possibilidade de a ordem social exercer poder sobre os potenciais pulsionais.
Em Marcuse (1967), a sublimação, ou melhor, a dessublimação
(procedimento marcuseano de duplicar as categorias freudianas), coloca-se
como um programa de uma sociedade unidimensional cujo objetivo político é o
aniquilamento de forças transgressoras que coloquem a ordem vigente em risco.

8
A subjetividade, tal qual proposta pela psicanálise, é topologicamente composta por três lugares ou
níveis: id, ego e superego. De maneira grosseira e resumida, o primeiro, o id, não conhece nenhum
julgamento de valor nem moralidade, assemelha-se a um caldeirão energético que impele para a
satisfação imediata regido pelo princípio de prazer; o terceiro é uma espécie de representante das
restrições morais, mantenedor do princípio de realidade; e o ego é uma derivação do id a quem cabe a
regulação do contato com o mundo externo e a defesa da integridade psíquica, corporal e econômica do
indivíduo. O que está em jogo nessa topologia freudiana é entender a dinâmica subjetiva a partir do
embate dessas três instâncias reguladoras do psiquismo. Para uma melhor compreensão, conferir Freud
(1996c).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Ou seja, há um programa de controle pulsional através de uma satisfação


adminstrada9. A regulação das pulsões deixa de ser um problema de forças em
constante luta que poriam em xeque a própria estabilidade da civilização para
ser um campo de intervenção de um poder que anseia a produção de um sujeito
pulsionalmente pacífico, dócil e integrado como elemento fortalecedor da
própria civilização através do consumo irrefreado de “substâncias químicas”.
As pulsões passam a fazer parte da mecânica do poder. Marcuse nos ajuda a
entender como é possível controlar as pulsões supostamente a-sociais,
colocando-as dentro dos objetivos do poder.
Emparelhando a utopia com a distopia em Marcuse, tem-se um
panorama crítico acerca da possibilidade do controle das pulsões através de um
diagrama político de poder, na qual a subjetividade adentra como um campo de
intervenção e de controle. Convém suspeitar que os psicotrópicos atuam nesse
novo campo de intervenção do poder a que se pode chamar de pulsional.

4. Conclusão: a filosofia e a literatura como interfaces da psicologia


A psicologia é algo extremamente sério para ficar entregue apenas nas
mãos dos psicólogos. Essas são as palavras de Japiassu (1983: 11). Como um
defensor ferrenho da pertinência de uma “filosofia da psicologia”, Japiassu
critica também as potencialidades técnicas e meramente reprodutivas da
psicologia, lutando contra a idéia de que os psicólogos sejam “guardiães da
ordem” (COIMBRA, 1995). A contribuição de Japiassu constitui um belo exemplo
de como a psicologia potencializa sua dimensão política através de seu encontro
com as problemáticas filosóficas, tais quais a liberdade e a subjetividade. A
filosofia é o combustível de qualquer psicologia crítica.

9
Safatle (2008: 133) propõe que se pense numa passagem, cuja mutação de base é da sociedade da
produção à sociedade de consumo, de uma satisfação administrada para uma “insatisfação adminstrada,
na qual ninguém realmente acredita nas promessas de gozo veiculadas pelo sistema de mercadorias (já
que são postas para serem descartadas), a começar pelo próprio sistema, que as apresenta de maneira cada
vez mais auto-irônica e crítica”. A reflexão desse trabalho não adota a “insatisfação” e sim a “satisfação
administrada”, na esteira de Marcuse e Freud (2004), porque este último entende que a meta da pulsão é
sempre a satisfação, a qual só pode ser obtida quando o estado de estimulação presente na fonte pulsional
é suspenso. Ou seja, na regulação pulsional são sempre modos de satisfação através de destinos pulsionais
que estão em jogo, portanto falar em insatisfação pode remeter à dimensão representativa e não à
dimensão intensiva, pulsional.

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Do lado da literatura, há pelo menos dois movimentos: um de captura,


de decifração do conteúdo literário sob a forma de um desvelamento
psicologizante, pondo o autor e a obra como estudos de caso10; outro de
compreensão da singularidade da própria obra, sem inscrevê-la totalmente no
suporte conceitual da psicologia. Optou-se aqui por essa segunda, uma vez que
a questão não era entender que novos tipos de psicopatologias emergem no
interior do texto de Huxley, mas sim quais movimentos políticos estão ali
descritos que se assemelham à nossa realidade contemporânea. A literatura
surge então como um discurso acerca da sociedade que não está preso a
nenhum tipo de modelo prescritivo ou normativo, nenhum método ou sintaxe
discursiva. Como diz Cândido (2000: 5), em seu ensaio sobre literatura e
sociedade, “nada mais importante para chamar a atenção sobre uma verdade
do que exagerá-la”. Parece ser isso que Admirável Mundo Novo realiza: uma
visão distópica de uma sociedade completamente controlada e regulada através
de mecanismos de poder, dentre eles as drogas como elementos centrais.

O que Löwy (2005: 32) disse sobre Walter Benjamin talvez sirva também
para Huxley: “sua obra pode ser considerada como uma espécie de aviso de
incêndio dirigido aos seus contemporâneos, um sino que repica e busca chamar
a atenção sobre os perigos iminentes que os ameaçam, sobre as novas
catástrofes que se perfilam no horizonte”. A distopia de Huxley pode ser
entendida como um tipo de aviso de incêndio, um exagero proposital para
chamar a nossa atenção de como estamos nos constituindo, o que estamos
fazendo de nós mesmos.

Filosofia e literatura são interfaces da psicologia, no sentido de que são


campos onde a psicologia necessariamente habita, se os psicólogos quiserem
manter a tensão crítica presente em seu saber. Quiçá o projeto de Foucault de

10
Os estudos de caso possuem um papel extremamente relevante à psicologia e, sobretudo, à psicanálise.
Recentemente elaborei um trabalho sobre essa importância, com o título de Como escrever um estudo de
caso: reflexões sugestivas sobre o que é, para que serve e qual a relevância do estudo de caso na prática
clínica de base psicanalítica. Este estudo pode ser encontrado em: Cadernos de Graduação: ciências
biológicas e da saúde / Universidade Tiradentes. – v. 11, n. 11 (jan/jun., 2010) Aracaju: Guttemberg,
2005. pps .167-180. Todavia, é discutível a relevância do estudo de caso em obras literárias.

140
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uma ontologia crítica de nós mesmos seja uma intensidade comum a todos estes
saberes:

É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente


como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo
permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma
atitude, um êthos, uma via filosófica em que a crítica de que somos é
simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e
prova de sua ultrapassagem possível. (FOUCAULT, 2008: 351).

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do Rio Grande do Sul, UFRGS). Porto Alegre: 2009.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

A mímese nos contos sergipanos

Fabiana Lisboa Ramos Menezes∗

Resumo: O presente trabalho analisará a originalidade dos contos sergipanos na obra de


Vladimir Souza Carvalho a partir da Poética de Aristóteles. A obra Feijão de Cego representa a
sergipanidade e terá como parâmentro os contos “Uma cumbuquinha de café” e “Confissão”.
Estes revelarão a aproximação com a tese de Aristóteles que defende que a literatura é a arte
que melhor representa a realidade.
Palavras-chave: contos, imitação, realidade.

Platão e Aristóteles foram os primeiros a tratar da concepção imitativa


embora as suas considerações não coincidam. Em Platão, a mimese é vista como
um divertimento e não como uma coisa séria em que se reproduz a aparência e
não a verdade profunda da realidade que se tenta representar.
Já Aristóteles define a arte como “uma disposição suscetível de criação
acompanhada de razão verdadeira” (ARISTÓTELES, VI, quatro). Ele refuta a
concepção do mestre e enaltece o valor da arte e dá novo significado à mimese
afastando-se da ideia platônica de que a imitação é uma mera reprodução do já
existente.
À luz do referido filósofo a imitação é a revelação da essência do real. E o
discurso literário é a mímese poética que é muito bem analisada em sua obra
Poética.
Segundo Aristóteles (2010), a tendência para a imitação é instintiva no
homem, desde a infância. Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos,


Graduada em Letras-Português pela Universidade Federal de Sergipe

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

por ela todos experimentam prazer. A afirmação filosófica é associada à


literatura quando a arte poética surge com a improvisação dos homens mais
aptos por natureza para este trabalho e revela-se como as interpretações do real
através de ações, pensamentos e palavras, de experiências existenciais
imaginárias.
É aqui, neste patamar de compreensão da mimese que a arte ganha
autonomia.
A arte literária, em Proença Filho (1997) veicula uma forma específica de
comunicação que evidencia um uso especial do discurso, colocando-se a serviço
da criação artística reveladora. Assim, o uso da linguagem é um pretexto para a
manifestação da arte. Costa (2006), ao analisar a Poética de Aristóteles, assim
explica a distinção dos textos em literários ou não.

Enquanto na lingüística o imitativo é o próprio código, que espelha a


estrutura do mundo externo por meio de uma mensagem voltada para
a comunicação de fins pragmáticos, na literatura, a mensagem é que é
mimética. (COSTA, 2006: 57)

Aguiar e Silva, a partir das considerações aristotélicas, une literatura e


filosofia enxergando a função social dos textos literários, visto que estes não são
apenas para o prazer e a diversão. O autor defende que:

a imitação não é uma literal e passiva representação dos aspectos


sensíveis à realidade, pois a mimese poética apreende o geral presente
nas coisas particulares e por isso mesmo a poesia se aparenta com a
filosofia (AGUIAR E SILVA, 1984: 145).

Há uma estreita relação entre literatura e cultura haja vista que só há literatura
onde existe um povo. Proença Filho (1997), revela que a matéria literária é cultural. E
ainda,

O artista da palavra retira do mundo elementos que,


convenientemente organizados, podem representar totalidades e
constituir uma afirmação cuja força e coesão não se encontram no
alcance dos profanos. (PROENÇA FILHO, 1997, p.33)

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Esta relação entre literatura e filosofia há muito que tem atenção. O


movimento de ideias e suas manifestações nas obras de ficção geraram belas
produções em forma de poesia, romance e ensaio. Coutinho (2004), reitera que:

os próprios ficcionistas procuravam explicar a sua maneira de encarar


a realidade, ou ainda, embora mais raro, eram os possíveis pensadores
que tentavam concretizar numa obra de ficção as suas ideais estéticas.

Alia
do a um movimento literário, há sempre um teórico. Coutinho cita Gonçalves
de Magalhães e José de Alencar como literatos reconhecidos que também
atuaram como filósofos.
O que aproxima a poesia da filosofia é a verossimilhança e a necessidade.
Como a filosofia trata do universal mantém forte relação com a poesia que é o
próprio trabalho da criação, não é confissão de quem escreve; por isso, a
mimese não pode ser considerada cópia mas criação a partir da realidade.
Assim, ao conhecer as obras de Vladimir Souza Carvalho é possível
compreender a afirmação do filósofo. Os contos que compõem suas obras
refletem o simples cotidiano dos povos interioranos.
O escritor Vladimir Souza Carvalho nasceu em Itabaiana, Sergipe, é Juiz
Federal e tem um estilo particular de apresentar suas obras. Quanto ao seu livro
Água de cabaça, publicado em 2003, ele se refere ao título como nascido de uma
frase de seu compadre Luiz Carlos e explica:

Água de cabaça representa um líquido puro, com condições de ser


ingerido, apesar de não se igualar à água mineral, nem à que vem da
torneira. No fundo, água que à míngua de outra dá pra ser utilizada
por determinadas pessoas, em certas e limitadas áreas. Na falta de
outro livro, a leitura desses contos pode ser recomendada. É este o
sentido do título (CARVALHO, 2003: 7).

Já em Feijão de cego, objeto de estudo deste trabalho, é assim explicado:

No meio dessa empreitada, ouvi de uma pessoa [Selma] que trabalhou


na casa de minha mãe, em Itabaiana, um termo que me chamou a
atenção: feijão de cego. Perguntei-lhe o significado. Simples: o cego, na

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

sua labuta diária, ganha aqui e ali uma xícara de feijão. Só que o feijão
varia. Numa casa é de um tipo, noutra de outro, acolá é fava, etc., etc.
[...]
É justamente isto: histórias de vários tipos e modalidades, nenhuma de
qualidade, aglomeradas em um livro. (CARVALHO, 2009: 7)

A forma de apresentar e justificar seus livros e respectivos títulos orienta


o leitor quanto ao nível de leitura que deverá ter: sem grandes pretensões,
histórias de pessoas simples, sem o final feliz que sempre se espera, cenário
brejeiro, costumes regionais e, enquanto conta, mostra termos característicos
dos sergipanos.

“Vá tomar juízo, meu filho, que isso não é assunto para se
tratar”.
(Confissão, p.161.)
“Me fale em gente”.
(Uma cumbuquinha de café, p. 35)

A obra Feijão de cego, a que se propõe este estudo, revela, a cada


narrativa, os costumes e as tradições a partir do linguajar utilizado, de
comportamentos peculiares e enredos inusitados. Sem amarras para prender o
processo literário em regras, ainda que gramaticais, a liberdade é o espaço da
criação literária. A literatura se abre, então, plenamente, à criatividade do
artista. (PROENÇA, 1997: 41).
O autor consegue, a partir do narrador ou pelo discurso indireto livre,
transmitir circunstâncias que certamente, não são exclusividades do interior de
Sergipe; mas são caracteres de identidade destes.
Com a forte identidade da cultura regional e situação social com que a
obra se apresenta, observa-se, nas palavras de Aristóteles, que “a imitação é
produzida por meio do ritmo, da linguagem e da harmonia, empregados
separadamente ou em conjunto (ARISTÓTELES, 2010: 23).
A forma de narrar chama a atenção por iniciar, em sua maioria, com a
fala do personagem.

“Eu odiava aquele velho, a voz mansa, o cigarro de palha bem


fedorento, na boca...”
(Uma cumbuquinha de café, pag.35)

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

A tragédia, tão eloquentemente analisada por Aristóteles, não deve ser


comparada ao estilo de narração da literatura contemporânea, pois não
apresenta todos os caracteres previstos pelos estudiosos do berço da filosofia.
Mas muito se aproxima pela ação dos personagens, a expressão do conteúdo do
assunto. E ainda, a missão da política e da retórica que reconstrói, na obra, o
ponto de vista do autor.
Neste caso, o conto é a questão. Sílvio Romero o cita como uma das
primeiras manifestações do gênero no Brasil, ainda na era colonial, sendo,
então, os contos populares (COUTINHO, 2004).
O autor convida o leitor a viajar nos contos aos quais a cultura popular
dá o tom. Simples gestos, palavras, costumes, o cotidiano que ninguém pensaria
em escrever.
A forma de elaborar a narrativa, os aspectos a que se dá importância e o
ângulo mais trabalhado envolvem o leitor no caráter do escritor. Suas
preocupações que, através da linguagem literária, são artisticamente penetradas
na sociedade.
Os contos em análise mostram alguns dos vários problemas sociais que
as pequenas cidades enfrentam.

Tertino entrou, segurou a menina com força, tapou-lhe a boca, se gritar


lhe mato, fique calada, e fez em Trifina o que homem nenhum faria
com menina naquela idade, ficando mocinha.
(Confissão, pag. 162)

Os problemas sociais que compõem os enredos não foram inventados


para criar situações. Eles existem de fato, estão no dia-a-dia das famílias: a
doença, a miséria, a separação das famílias para buscar melhor condição de
vida, a violência sexual de pessoas próximas da família. Como fala Aristóteles
(2010), a elocução consiste na escolha dos termos, os quais possuem o mesmo
poder de expressão, seja em prosa seja em verso.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

No Cap. IX da Poética, Aristóteles difere as atribuições do historiador e


do poeta. E a diferença consiste em que este escreve o que poderia ter
acontecido e aquele o que já aconteceu. O filósofo considera a poesia de caráter
universal pois tal categoria de homens diz ou faz em tais circunstâncias,
segundo o verossímil ou o necessário. Pode-se recorrer a nomes reais ou
fantasiados, visto que alguns nomes históricos dão mais credibilidade à história
contada.
As narrações de Carvalho parecem trazer nomes reais, embora esta
afirmação não tenha sido vista em nenhum relato do autor. Apenas nas
justificativas dos títulos dos livros já apresentados no início deste texto, indicam
que, assim como citou seu compadre, Sr. Luiz Carlos e Dona Selma, pode tê-lo
feito também nas histórias.
Pode ser que a leitura dos contos feita por um leitor que não conhece as
regiões e o povo sergipano ou das proximidades, considere-os apenas meras
narrações, criações fantasiosas de um escritor criativo. Porém, a identidade com
o narrado, a associação a nomes conhecidos dão, realmente, credibilidade às
histórias garantindo ao leitor identificar-se ou conhecer as situações narradas.
Assim, nas palavras de Aristóteles (2010) é manifesto que a missão do poeta
consiste mais em fabricar fábulas do que versos, visto que ele é poeta pela
imitação e porque imita as ações.
No que concerne ao assunto, Proença Filho (1997) explica que o conto
oferece uma amostra da vida, através de um episódio, um flagrante, um
momento singular e representativo. Condensa-se num ponto principal. O
assunto é o essencial. São curtos, de fácil entendimento, sem complexidade.
Quanto ao pensamento, é importante prestar atenção no que Aristóteles (2010)
assegura: tudo quanto se exprime pela linguagem é do domínio do pensamento.
Como estas narrações não apresentam o aparato cênico, quem fala deve
produzir o movimento das paixões em conformidade com suas palavras.
Afinal, é preciso apresentar-se como comoventes, temíveis, importantes,
verossímeis.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Em escala bem menor, é o que Aristóteles fala sobre a epopéia. Por se


apresentar em forma de narrativa, é possível mostrar conjuntamente vários
acontecimentos simultâneos, os quais se estiverem bem conexos com o assunto
o tornam mais grandioso.
E principalmente, Aristóteles (2010) permite aos ouvintes transportarem-
se a diversos lugares.
Assim,

...sendo o poeta um imitador, como o é o pintor ou qualquer outro


criador de figuras, perante as coisas será induzido a assumir uma das
três maneiras as imitar: como elas são, como os outros dizem que são
ou como parecem serem, ou como deveriam ser. (ARISTÓTELES, 2010)

Carvalho parece assumir o imitador de como as coisas são. De tão


original, dado seu caráter realístico, ele faz o leitor conhecer e reconhecer-se nas
suas personagens e cenários. Ainda quando o desenlace seja fantástico e
verossímil, pois é verossímil que aconteçam coisas que parecem inverossímeis.
O conto “Uma cumbuquinha de café” (Feijão de cego, p. 35-40) mostra
uma guerra travada entre a ciência e a fé. A história narra um acontecimento
típico de pequenas cidades: moradores que alimentam a fé na ciência e na
sabedoria popular. Um farmacêutico, tomado pelo poder científico, consumia-
se pelo ódio e desprezo por um velho senhor que fazia remédios caseiros. Era o
senso comum em concorrência com a alopatia.
Os moradores da cidade aderiam aos dois processos. Não desmereciam
os resultados do velho sábio nem abriam mão das drogas.
O fato é que a raiva que o farmacêutico alimentava do curandeiro
centrava-se na crença dos clientes que recorriam a ambos. Muitas vezes, perdia.
Ele não aceitava que alguém pudesse preferir uma garrafada ao invés de um
remédio cientificamente comprovado.
Havia ainda o fato de que, tradicionalmente, uma festa da cidade levava
mulheres que atraíam a atenção e luxúria dos homens. A orgia era tão grande
que deixava os homens todos doentes, precisando, então, da vacina que o
farmacêutico muito se alegrava em aplicar pelo lucro que produzia.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Vale utilizar o termo pela ironia do destino pois para o desespero do


comerciante, seu filho Heliogabalo foi uma das vítimas das mulheres que se
prostituíam durante os festejos. Sem nada revelar, deixou de tomar a vacina e
desenvolveu uma grave doença que seu pai, com todos os aparatos da
medicina, não conseguiu curar. Não havia mais médico ou remédio que desse
esperança de vida ao menino. O farmacêutico rende-se à sabedoria popular,
engole seu orgulho e procura seu Janjão, o curandeiro que tanto desprezava.
Em poucos dias, Heliogabalo está curado, forte e pronto para voltar às suas
atividades de adolescente.
Tanto a crença como o desprezo pelos remédios artesanais se renovam de
geração em geração a partir dos conhecimentos e dos relatos que os
antecedentes passam aos seus sucessores.
O interior de Sergipe conhece muitos “causos” de verdadeiras curas com
remédios feitos por pessoas simples e ervas que são culturalmente cultuadas
como milagrosas para casos específicos.
Já Confissão traduz a tradicional regra tácita do silêncio. Não é preciso
reunião ou assembleia para definir que não se toca em assunto de honra ou
desonra numa família. Ainda mais se a família conta com integrantes bons de
briga e dispostos a tudo. A família de Camungo Grande compunha-se de
quatro filhos e duas filhas.
A mais moça – Trifina – engravida do marido da irmã enquanto cuida do
seu resguardo. A moça é isolada do convívio social e familiar, o cunhado
consegue se safar colocando a culpa num rapaz da cidade. Mas a criança tem
que nascer e não deixa a mãe levar a culpa. O rosto do menino é a cópia do
rosto do cunhado. O rapaz incriminado, Cleofas, é convidado a casar com
Trifina e cuidar da criança. O cunhado nunca mais é visto na cidade.
Ninguém comenta a assunto. Todos fingem ignorar o ocorrido mas a
curiosidade corrói a todos. Não falam em público mas cochicham pelos cantos
das casas. Na verdade todos sabem, no entanto, ninguém prova nada.
Todos os acontecimentos desencadeados na história são corriqueiros em
pequenas cidades. Quase todos se conhecem, os fatos são rapidamente

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

espalhados, todos comentam até onde podem. A desonra de moças era um


acontecimento que escandalizava qualquer família. Mesmo com a
modernidade, a gravidez de moças solteiras ainda causa estranheza e
comentários maldosos entre a população causando constrangimento à família
em questão.
Os dois contos narram histórias de vida e não cópias. Embora fictícias,
traduzem a realidade, não da família de Trifina ou de Heliogabalo. Mas
circunstâncias corriqueiras de tantas famílias pelo país a fora.
A fim de contar os fatos, o autor não apenas, copia os acontecimentos
como se fizesse uma entrevista. Ao contrário, o artista retira da vida real
situações interessantes para, a partir daí, criar histórias que saem do particular
para o geral, nas quais é possível identificar-se, por isso, verossímeis.
A obra de Vladimir de Souza Carvalho prima pela mimese porque causa
identidade na relação autor-texto-leitor. Porque coloca a linguagem a serviço da
arte. Em seus contos, diz o que muita gente já ouviu mas não pensou em ver
escrito como obra literária, ou seja, diz o indizível para nos fazer refletir sobre
assuntos que de tão triviais perdem a gravidade. De tão simples, parecem sem
importância.

Referências bibliográficas

AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da Literatura, Coimbra: Livraria


Almerinda, 1984.
ARISTÓTELES. Arte Poética. Martin Claret, 2010.
CARVALHO, Vladimir Souza, Feijão de cego. Juruá, 2009.
______ . Água de Cabaça. Juruá, 2006.
COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles. 2ª Ed. São Paulo: Ática, 2006.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 7ª Ed. – São Paulo: Global, 2004.
PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. 6ª Ed. São Paulo: Ativa, 1997.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Os estudos literário-filosóficos e suas possibilidades

Leinimar Alves Pires∗

Resumo: Os estudiosos e pesquisadores que se dediquem a analisar a antiga relação entre


filosofia e literatura se deparam, em algum momento, com uma importante questão: tal estudo
oferece diversificadas possibilidades. A eleição por esse vasto campo de investigação nos coloca
frente a um problema mais amplo, que é eleger sob qual(is) perspectiva(s) se realizará o estudo
dessa recorrente relação e comunicação entre saberes.
Dedicando-me a tal problemática atualmente em minha pesquisa, buscarei observar
neste ensaio momentos e maneiras distintas em que o diálogo literário-filosófico acontece na
literatura de João Guimarães Rosa e, também, perspectivas em que o mesmo apareça na
preocupação e produção de alguns filósofos, como Platão, Aristóteles e Friedrich Nietzsche.
Palavras-chave: Literatura, filosofia, diálogo.

Literatura e filosofia são saberes que se constituem em diálogo e que, em


diversos momentos, dialogam entre si. Alguns dados me chamam atenção, no
entanto, como, por exemplo, a insistência com que a relação filosofia e literatura
acontece, seja temporal ou espacialmente, sua relevância, tanto para a filosofia
quanto para os estudos literários e as diversas possibilidades que a referida
relação comporta. Desde os “primórdios” da filosofia, por exemplo, a literatura
está presente, com acentuada importância e sob perspectivas distintas.
O próprio “surgimento” da filosofia a que fomos apresentados na cultura
ocidental, ocorrido na Grécia antiga, pode ser compreendido como um embate
com a poesia, uma tomada de lugar no que diz respeito às tentativas de
explicação para os mistérios do ser e do existir, que passou a privilegiar a
realidade física ou a physis como ambiente propício para buscar sua


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-Rio.

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fundamentação, abandonando a incerteza ou “irracionalidade” que sustem a


poesia. Tal eleição passa, portanto, a enaltecer o logos em detrimento ao mito.
Com Tales de Mileto, “inaugurador” de tal maneira de pensar, a água é
compreendida como origem de tudo; com Anaximandro, seu discípulo e
sucessor, o princípio é considerado o que chama de apeíron ou ilimitado; já com
Heráclito, o fogo ou devir. O também pré-socrático Parmênides de Eléia expõe,
curiosamente, sua teoria em um poema-filosófico intitulado “Sobre a
Natureza”, nos incitando a pensar que, já desde os primórdios, a separação
entre literatura e filosofia não foi absolutamente radical ou mesmo definitiva,
deixando brechas que incitariam essa arcaica relação e familiaridade entre
saberes.
Em seguida, a presença de problemáticas literárias no pensamento
filosófico surge novamente como questão de suma relevância. Como sabemos,
Platão, ao elaborar sua República Ideal, dedica-se a refletir sobre o papel e o
lugar do poeta com especial atenção. Pela boca de seu personagem literário-
filosófico Sócrates, protagonista de seus diálogos, expressa desconfiança quanto
à relevância do poeta em um Estado Ideal. Observemos, ainda pensando na
importância de artifícios literários para sua filosofia, que os diálogos platônicos
foram elaborados seguindo uma estética absolutamente teatral; neles estão
presentes personagens dialogando e mitos criados pelo pensador para melhor
ilustrar suas teorias. Sua preocupação com os poetas e a poesia é tamanha que,
na abertura do livro X, último de A república, Sócrates esclarece seu interlocutor,
Glauco, de que a cidade ideal fora fundada da maneira mais correta devido ao
regulamento estabelecido em relação à poesia.
Segundo Platão, somente charlatões e imitadores poderiam ter a
pretensão de conhecer todos os ofícios e deles dar conta com sua arte.
Enganavam aos ingênuos, não àqueles que já tinham reconhecido que o
aparente é o falso, por representar, apenas, uma imitação da instância ideal ou
plano das idéias.
Sócrates direciona uma crítica específica aos poetas trágicos. A tragédia,
assim como a epopéia, era considerada instrumento para a educação do povo

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grego. É importante notarmos que a literatura ocupava um lugar importante


dentro da pólis e, por isso, lhe é dada tanta atenção quando se estabelecem os
regulamentos para a constituição de um estado ideal. Ela servia como
instrumento de educação e formação de valores.
A separação entre o que o poeta canta ou conta e aquilo que de fato
conhece é a mais forte crítica a ele conferida por Sócrates. O poeta seria, no
máximo, imitador das imagens de seus personagens, desconhecendo o que estes
foram de fato e a virtude que cada um deles possui: “os poetas criam fantasmas,
e não seres reais” (PLATÃO, 2000: 326), denuncia Sócrates. Por isso, seus escritos
não poderiam servir de referência para a vida de um Estado. Ao invés de
criarem e conhecerem eles imitam; portanto, não atingem a verdade e são
enganadores do povo:

Sendo assim não peçamos conta a Homero nem a nenhum outro poeta
sobre vários assuntos. Não lhes perguntemos se um deles foi médico,
e não apenas imitador da linguagem destes, que curas se atribuem a
um poeta qualquer, antigo ou moderno, como a [Asclépio], ou que
discípulos eruditos em medicina deixou atrás de si, como [Asclépio]
deixou os seus descendentes. De igual modo, no que concerne às
outras artes, não os interroguemos, vamos deixá-los em paz. Mas
sobre os assuntos mais importantes e mais belos que Homero decide
tratar: as guerras, o comando dos exércitos, a administração das
cidades, a educação do homem, talvez seja justo interrogá-lo e dizer-
lhe “Caro Homero, se é verdade que, no que respeita à virtude, não
estás afastado no terceiro grau da verdade, artífice da imagem, como
definimos o imitador, se te encontras no segundo grau e nunca foste
capaz de saber que práticas tornam os homens melhores ou piores, na
vida particular e na vida pública, diz-nos qual, entre as cidades, graças
a ti, se governou melhor, como, graças a Licurgo, o Lacedemônio, e
graças a muitos outros, muitas cidades, grandes e pequenas? Que
Estado reconhece que foste para ele um bom legislador e um
benfeitor? A Itália e a Sicília tiveram Carondas, e nós Sólon, mas a ti
que Estado pode citar?” Poderia indicar um só que fosse? (PLATÃO,
2000: 326-7)

Não bastava que a poesia fosse agradável: Sócrates buscava também


reconhecer sua utilidade tanto para o governo dos Estados quanto para a vida
humana, e então afirma que estaria disposto a aceitá-la. E, pelo que considera
ser uma “obrigação da razão”, conclui que ela deve ser banida de sua República
Ideal, por mais sedutora que seja.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Observemos agora que Aristóteles também se dedicou com especial


atenção ao fazer literário. Sua Arte poética é outro representativo exemplo da
antiga familiaridade entre filosofia e literatura. Ela é a referência-mor das
poéticas clássicas posteriores, tendo perdurado fortemente até o século XVIII.
O filósofo, contemporâneo de Platão na Academia em Atenas, tem um estudo
dedicado à arte poética, aos gêneros literários. Nele, discorre sobre a epopéia, a
tragédia e a comédia, delimitando as técnicas para o fazer poético e os meios
para alcançar suas finalidades.
Na realidade, o texto não se trata de uma obra, mas é composto por notas
de aulas que proferia a seus alunos e que foram, posteriormente, organizadas
na forma de livro:

[A] Poética como a conhecemos, do último período da vida do filósofo,


além de possivelmente ser uma obra incompleta, é um instrumento
didático, um caderno de notas esquemático, elíptico, cheio de
acréscimos, escrito por ele como preparação para uma série de cursos
aos estudantes do Liceu, que tinham conhecimento de sua filosofia, e
não para ser publicado (MACHADO, 2006: 28).

Podemos perceber, portanto, que questões e problemas literários também


eram do interesse do filósofo estagirita, que se ocupou dele possivelmente sem
ter ideia da dimensão temporal e espacial que alcançaria o curso preparado
para seus alunos.
Na Arte poética a tragédia é considerada a arte superior, por isso lhe é
atribuída uma explanação mais detalhada na parte da obra a que temos hoje
acesso — como sabemos, haveria ainda um “livro”, ou um momento do estudo,
dedicado à comédia, que foi perdido.
A análise aristotélica não visa ir além da forma da tragédia, efetuando
uma análise poética ou poetológica da mesma. A Arte poética:

orienta as teorias normativas segundo as quais cada obra de arte deve


preencher os requisitos formais de seu gênero e se restringir ao tipo de
objeto a ser imitado, para assim alcançar o efeito a que a criação
artística visa. (SÜSSEKIND, 2004: 16)

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

São os filósofos alemães modernos que posteriormente, a partir do século


XVIII, vão reconhecer na tragédia a expressão de uma sabedoria; ou seja,
encontram uma visão de mundo em seu enredo, a qual chamarão de trágica.
Segundo o teórico Peter Szondi:

Desde Aristóteles há uma poética da tragédia; apenas desde Schelling,


uma filosofia do trágico. Sendo um ensinamento acerca da criação
poética, o escrito de Aristóteles pretende determinar os elementos da
arte trágica: seu objetivo é a tragédia, não a idéia de tragédia (SZONDI,
2004: 23).

Szondi divide dois momentos significativos e distintos dos estudos sobre


a tragédia. São conhecidos como “Poética da tragédia” os escritos aristotélicos e
os das escolas posteriores, baseados na obra do filósofo grego. A tragédia nesse
contexto é vista como uma entre as formas de poesia, que tem seus meios de
produção e sua finalidade. Observemos a definição do próprio Aristóteles:

É pois a tragédia imitação de ações de caráter elevado, completa em si mesma, de


certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de
ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efetua,
não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem
por efeito a purificação (κάθαρσις) desses sentimentos. Digo ornamentada a
linguagem que tem ritmo, harmonia e canto, e o servir-se separadamente de cada
uma das espécies de ornamentos, significa que algumas partes da tragédia optam
só o verso, outras também o canto (ARISTÓTELES; s.d.: 76).

A suma importância do texto, até o presente, não restrita ao campo da


filosofia mas, inclusive, abarcando significativamente os estudos literários
desde um passado longínquo e o notório interesse do filósofo em lecionar
acerca de do tema, fortalecem a hipótese de que o diálogo entre filósofos e
literatos é arcaico, recorrente e muito relevante para ambos saberes.
Outro entre os casos mais expressivos das possibilidades e/ou
problemáticas literárias sendo tratadas ou apropriadas por filósofos se deu com
o pensamento de Friedrich Nietzsche. Seu livro de estréia, O nascimento da
tragédia, já exibe a intimidade do autor com a escrita e a leitura literária. A obra
recebeu críticas positivas e negativas na época de seu lançamento. Nietzsche
dedica seus estudos acadêmicos à filologia e aos 24 anos conquista uma Cátedra

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

de Filologia Clássica na Universidade de Basiléia. O também filólogo clássico


Ulrich von Willamowitz, por exemplo, direcionou veementes críticas a sua obra
pioneira e, mais do que isso, à maneira como a mesma foi apresentada por
Nietzsche: a filologia é vista por ele como uma ciência, e, a seu ver, na ciência
não há lugar para a apresentação de “devaneios literário-filosóficos”, como teria
feito Nietzsche, segundo sua interpretação. O também filólogo clássico Erwin
Rohde e o músico Richard Wagner completam os textos lançados em revistas
literárias, que tinham por objetivo analisar e criticar o primeiro livro de
Nietzsche, tendo ambos louvado sua coragem e seu escrito, considerado por
eles uma inovação no campo da filologia e da arte alemã de seu tempo.1
Sua autobiografia, Ecce homo, está escrita de forma bem próxima a um
diário. Nela, o pensador esclarece sobre o estilo que propositalmente assumiu:
“Meu velho mestre Ritschl chegou a afirmar que eu concebia mesmo meus
trabalhos filológicos como um romancier parisiense — de modo absolutamente
excitante” (NIETZSCHE, 2001: 55). Nietzsche revela que buscava instaurar um
novo momento da relação dos escritores com as palavras, gerando, assim, uma
inovação tanto na língua quanto na poesia:

Antes de mim não se sabia o que pode ser feito com a língua alemã —
o que pode ser feito com a língua. A arte do grande ritmo, o grande
estilo dos períodos, para expressar um imenso fluir e refluir de paixão
sublime, sobre-humana, foi descoberto somente por mim; com um
ditirambo como o último do terceiro Zaratustra , intitulado “Os sete
selos”, voei milhares de milhas acima e além do que até então se
chamava poesia (NIETZSCHE, 2001: 57).

Seu herói trágico Zaratustra é o ápice do projeto filosófico de estética


literária que criara para si. Na obra, Nietzsche expressa de forma mais radical
sua proposta filosófica, apresentada antes mormente através de aforismos.
Assim sendo, o pensador, muitas vezes, é chamado pejorativamente de poeta,
com o intuito de desvalorizar seu filosofar, “rebaixando-o” a poesia.

1
Conferir: Roberto Machado (org.), Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da tragédia, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, Ed. 2005, tradução de Pedro Süssekind.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Curiosamente, encontra-se no prefácio de uma tradução em língua


portuguesa de seu livro O viandante e sua sombra as seguintes críticas a seu
estilo:

A Nietzsche filósofo

Essencialmente poeta, nunca foi, no entanto, em todo o rigor do termo,


o que se pode entender por “filósofo”; o que há de soberbo na sua obra
é a forma, não o conteúdo. [...]
Nietzsche não teve nunca essa tranqüilidade simples mas descuidada
sem a qual não se elabora um sistema de filosofia [...]
[...] lançava mão do aforismo que não custa o sacrifício da paciência e
da paz que não tinha e procura justificar-se declarando que o aforismo
condensa mais sabedoria com menos palavras.
[...] como filósofo puro e na totalidade das suas teorias, Nietzsche não
é apenas refutável como também absurdo; longe estava ele dessa
precisão matemática e concisa com que por exemplo Kant, Fichte e
Schopenhauer souberam expor suas teorias, corrigindo-se ou
ampliando-se mutuamente.
[...] Schopenhauer [...] não abandonou a lógica pelo calor da poesia,
nem a razão pelas “orgias de Dioniso (Heraldo Barbuy, s.d.: s.p.).

Parece que estamos presenciando, mais uma vez, a valorização da razão


e da lógica em detrimento à poesia, e o pensamento — neste caso filosófico —
elaborado poeticamente sendo considerado “ilógico” (apenas no sentido
pejorativo do termo2) e, assim sendo, menos relevante.
No entanto, Nietzsche em Ecce homo evidenciou motivos que o levaram a
assumir tal estilo, o qual o colocava na contramão daquilo que se vinha fazendo
em filosofia e do que se reconhecia como a única “maneira correta” de expor
ideias filosóficas. Tais critérios, como podemos observar ainda hoje, vêm sendo

2
A filosofia de Nietzsche é marcada por um questionamento acerca do valor ocidental atribuído à lógica e
à depreciação do ilógico, o que fica bastante bem explicitado num dos aforismos em que se dedica ao
tema: A necessidade do ilógico – entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o
conhecimento de que o ilógico é necessário aos homens e que do ilógico nasce muita coisa boa. Ele se
acha tão firmemente alojado nas paixões, na linguagem, na arte, na religião, em tudo o que empresta valor
à vida, que não podemos extraí-lo sem danificar irremediavelmente essas belas coisas. Apenas os homens
muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana pode ser transformada numa natureza puramente
lógica; mas se houvesse graus de aproximação a essa meta, o que não se haveria de perder nesse caminho!
Mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica
relação fundamental com todas as coisas. Friedrich Nietzsche, Humano, demasiado humano: um livro
para espíritos livres, São Paulo: Companhia das letras, 2000, tradução, notas e posfácio de Paulo César de
Souza, p. 38.
Guimarães Rosa, por sua vez, também faz considerações acerca do insistente louvor ao lógico e à
depreciação do “ilógico”, as quais encontraremos mais adiante.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

ditados por escolas e pensadores de perfis menos dialógicos, os quais são


supervalorizados pelo pensamento ocidental e, em diversos contextos, ainda,
considerados superiores.
Esclarece Nietzsche:

Meus escritos dão trabalho — espero que isso não seja uma objeção
contra eles!... Para se compreender a linguagem mais concisa jamais
falada por um filósofo — e além disso a mais pobre em clichês, a mais
viva, a mais artística — é preciso seguir o procedimento oposto ao que
normalmente pede a literatura filosófica. Esta é preciso condensar, de
outro modo estraga-se o estômago; — a mim é preciso diluir, tornar
líquido, acrescentar água: de outro modo estraga-se o estômago. — O
silêncio é em mim tão instintivo como nos senhores filósofos a
garrulice. Eu sou breve: meus leitores mesmos devem fazer-se
extensos, volumosos, para trazer à tona e juntar tudo o que foi por
mim pensado, e pensado até o fundo (NIETZSCHE, 2001: 125).

Observei alguns casos em que a literatura esteve presente na


preocupação de filósofos, segundo possibilidades distintas: seja pela pretensão
inicial dos pré-socráticos em separar poesia e pensamento; ou pela reflexão
atenta e a recusa do poeta em um Estado Ideal, e, ao mesmo tempo, a utilização
de instrumentos da estética literária para apresentação da obra, com Platão;
pela dedicação a elaborar aulas sobre o fazer poético as quais, posteriormente,
transformaram-se numa espécie de manual a respeito do tema, como fizera
Aristóteles; ou pelo uso proposital de uma estética e de artifícios literários para
a confecção de sua obra filosófica e a criação de um personagem para expressar
o cerne de seu pensamento, como é o caso de Nietzsche.

Passarei, a partir de agora, a analisar o que chamo de “a presença da


filosofia na literatura”, outro momento da arcaica relação filosofia e literatura,
me dedicando a observar declarações de João Guimarães Rosa em entrevistas
concedidas ao crítico de literatura alemão Günter Lorenz e ao filósofo brasileiro
Benedito Nunes.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Rosa é considerado, por seus leitores e pela crítica, como um “escritor


filosófico”. No entanto, quais seriam as características presentes em sua obra e
em sua personalidade artística que justificariam tal denominação? Analisarei,
brevemente, algumas possibilidades, seguindo pistas deixadas por suas palavras
nas entrevistas, continuando a refletir, assim, acerca da arcaica relação filosofia
e literatura.
O crítico alemão Günter Lorenz realizou a façanha de entrevistar
Guimarães Rosa em janeiro de 1965, no “Congresso dos Escritores latino-
americanos”, em Gênova. As declarações espontâneas de Rosa nessa longa e
interessante entrevista salientam sua proximidade com questões caras à
filosofia. Sabemos, por exemplo, qual é o modelo de universo do qual comunga:
“este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de contrastes, é
para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo.” (LORENZ, 1983:
66) Assim sendo, o estilo de personagem que, majoritariamente, expõe tal
modelo de universo em suas obras é o “homem do sertão”, entre os quais se
inclui: “sou antes de mais nada esse ‘homem do sertão’; e isso não é apenas uma
afirmação biográfica, mas também [...] ele, esse ‘homem do sertão’, está
presente como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa” (LORENZ,
1983: 65).
Lorenz pergunta diretamente se Rosa considera-se um pensador, e
recebe a seguinte resposta:

Que [eu...] seja um pensador noto-o constantemente durante meu


trabalho e não sei se devo lamentar ou me alegrar com o fato. Posso
permanecer imóvel durante longo tempo, pensando em algum
problema e esperar. Nós sertanejos somos muito diferentes da gente
temperamental do Rio ou da Bahia, que não pode ficar quieta nem um
minuto. Somos tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar
causa prazer. Gostaríamos de tornar a explicar diariamente todos os
segredos do mundo. [...Choco meus livros. Uma palavra, uma única
palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias.
Para isso não preciso forçosamente de um escritório. Gosto de pensar
cavalgando, na fazenda, no sertão; e quando algo não me fica claro,
não vou conversar com algum douto professor, e sim com algum dos
velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens atilados. [...]

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um


pensamento; daí seriam escritos livros melhores. Os livros nascem
quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do
jogo com as palavras. (LORENZ, 1983: 79-80)

Atentemos, ainda, para o que afirma esperar da literatura: “espero uma


literatura tão ilógica como a minha, que transforme o cosmo num sertão no qual
a única realidade seja o inacreditável. A lógica, prezado amigo, é a força com a
qual o homem algum dia haverá de se matar. Apenas superando a lógica é que
se pode pensar com justiça.” (LORENZ, 1983: 93)
Modelo de universo e de homem; busca de uma literatura mais ilógica
que lógica, e o enaltecimento daquela maneira de pensar em detrimento à
supervalorização ocidental atribuída exclusivamente à lógica, na maioria dos
casos. Observemos, ainda, que aquilo que Rosa chama de “ilógico” — a meu
ver, como meio de chamar atenção para características presentes e valorizadas
por sua obra — refere-se ao apreciamento do autor a outros critérios e
personagens cognitivos. Suas palavras nos mostram que ele não estima ou
reconhece apenas o que o ocidente denominou “lógico” e que, portanto, passou
a ser considerado superior; o autor amplia fronteiras e propõe alternativas ao
colocar no papel de produtores de conhecimento e sabedoria crianças,
vaqueiros, bobos, cegos, ciganos, jagunços, animais etc.
Rosa responde a tais questões, caras aos pensadores, afirmando também
se considerar um deles: que, concernente ao ambiente eleito para constituição
de sua obra, valoriza lado-a-lado à cultura erudita dos “doutos professores” a
lógica dos vaqueiros atilados de Minas Gerais, entre outros personagens
daquele ambiente.
Apresenta-se aqui mais uma entre tantas possibilidades de analisar o viés
filosófico da literatura de Guimarães Rosa: como tracei brevemente na primeira
parte deste texto, ao analisar a presença da literatura na filosofia, parece que
desde os primórdios da separação pensamento X poesia, literatura X filosofia,
há um enaltecimento da razão e uma associação dos “bons pensadores” a ela: o
próprio surgimento da filosofia como busca de fundamentos racionais para a

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explicação sobre o que é o ser; a “obrigação da razão”, que exigiu de Sócrates


expulsar a poesia de sua República; a crítica a Nietzsche por ter “[abandonado]
a lógica pelo calor da poesia”. Rosa confirma considerar-se um pensador, mas
suas palavras nos mostram que o grupo de pensadores do qual faz parte não é o
daqueles que somente privilegiam e louvam a razão e a lógica em detrimento
da palavra poética, das experiências empíricas e do conhecimento não-
acadêmico, que o autor adquire através do contato e de conversas com
personagens que dispõem de outras sabedorias.
Em entrevista ao filósofo brasileiro Benedido Nunes, Rosa revela outra
entrada ou possibilidade para percebermos a presença da filosofia no enredo de
suas estórias. Além de reconhecermos inquietações filosóficas movendo
personagens, e temas filosóficos como ética, moral, liberdade, verdade etc.
sendo tratados meio a situações por eles vivenciadas, nos deparamos, também,
com referências diretas de ilustres filósofos da história da filosofia. Tal postura
confirma tanto a leitura atenta quanto o conhecimento prévio do autor, e ratifica
seu interesse pela filosofia e sua intimidade com ela. Nunes lhe perguntou de
qual diálogo platônico tinham sido tiradas as palavras “prazeres fáceis e
ligeiros”, transcritos em grego nas notas da novela “Cara-de-Bronze”, em Corpo
de baile. Na ocasião, recebeu como resposta:

Não seria capaz de lhe dizer agora. Vou lendo os filósofos e


transcrevendo nos meus cadernos o que deles me interessa, e que
poderá fazer parte de uma história, como a que recolho da boca de
pessoas. Nada tenho de um erudito. Não cito, mas absorvo. Aquelas
palavras que você referiu – continuou Rosa – são mesmo do filósofo
grego, tal como registro em minha novela. No entanto, posso
contrafazer um texto ou trecho de Platão. Nem os especialistas em
história da filosofia poderiam distingui-los sem hesitação dos
verdadeiros (Cadernos de Literatura Brasileira – João Guimarães Rosa,
2006: 241).

Finalizando este ensaio, vem me chamando atenção o fato de haver


diversas possibilidades para trabalhar a relação filosofia e literatura, e a
presença da filosofia na literatura, mais especificamente. No caso de Guimarães
Rosa, por exemplo, há diversas entradas possíveis: buscar perceber quais são os

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

filósofos que o autor mais valoriza; quais pensadores são consonantes aos
enredos de seus textos, à postura de seus personagens ou de um personagem
especificamente; perceber qual corrente filosófica se adequa melhor à sua
postura e/ou personalidade artística; tentar reconhecer a visão de mundo de
algum de seus personagens em particular ou, ainda, através de suas
declarações, tentar compreender a sua filosofia própria. São diversas as
possibilidades, assim como a relação filosofia e literatura, depois que nos
envolvemos mais profundamente com ela, deixa de ser um tema para
transformar-se em um problema literário e filosófico, repleto de caminhos,
entradas e possibilidades interpretativas.

Referências bibliográficas

ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Guimarães & C. ªEditores. Tradução direta do


grego por Eudoro de Sousa. [s/d]
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1997. Consultoria da edição brasileira: Danilo Marcondes.
LORENZ, Günter. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: Guimarães Rosa. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira; Brasília INL, 1983.
MACHADO, Roberto (org.). Nietzsche e a polêmica sobre O nascimento da
tragédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 2005. Tradução de Pedro Süssekind.
MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Os pensadores – Obras incompletas. 1. ed. São Paulo:
Abril cultural, 1974. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho.
______ . Ecce Homo: Como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. Tradução de Paulo César de Souza.
______ . O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. Tradução, notas e posfácio por J. Guinsburg.
______ . Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de
Souza.
PIRES, Leinimar de Jesus Alves. “Conversas filosóficas com Jorge Luis Borges e
João Guimarães Rosa”. In: MATA, Ariadne Costa da; PIRES, Leinimar Alves;
GUTIÉRREZ, Rafael; MAGDALENO, Renata (org.). NósOtros: diálogos
literários entre o Brasil e a América Hispânica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.
PLATÃO. A república. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
PRÉ SOCRÁTICOS. Os pensadores – Fragmentos, doxografia e comentários.
Edição especial. São Paulo: Editora Abril, 1978.
SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2004.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Cadernos de Literatura Brasileira – João Guimarães Rosa, Instituto Moreira Sales,


2006, números 20 e 21.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Impessoalidade e transgressão da intimidade: a condição


do homem moderno na obra O processo de Franz Kafka

João Claudio da Conceição∗


Elvoclébio de Araujo Lima*∗
Sueny Silva Lima**∗

Resumo: O presente texto tem como objetivo refletir a partir da personagem de “Josef K”
sobre as implicações da modernidade sobre a subjetividade humana, vendo nesta o nível
conflitivo presente na condição do homem. A intimidade, pensada como referência à tudo
aquilo que pertence ao campo privativo da subjetividade (o domínio dos desejos, pensamentos
e afetos) é submetida a um sistema repressivo e de controle (dos costumes, dos afetos e das
condutas) fundados sobre o princípio do “panoptismo”, ou seja, de pressão cotidiana, regular e
disforme. O problema kafkiano da condição do homem moderno será tratado sob a ótica da
filosofia social, permitindo analisar as implicações da modernidade na construção da
subjetividade humana, mapeando, assim, os esquemas de poder que estão embutidos na rede
de relações sociais.
Palavras-chave: impessoalidade, intimidade, homem moderno.

Introdução
Qual a relação entre filosofia e literatura? Que tipo de saberes
transita no âmbito da literatura que a torna um importante elemento de reflexão
imaginativa do mundo e das coisas? É possível pensar filosoficamente e tratar
determinadas questões a partir da obra literária? Estas são algumas poucas
questões que nos permitiram apresentar um pequeno texto em que fosse


Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade São Tomas de Aquino, cidade de Roma, Itália.
*∗ Mestre em Sociologia pelo Núcleo de Pós Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Sergipe.
**∗ Aluna do 6º Período do Curso de Letras Português da Universidade Tiradentes.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

possível traçar um paralelo entre o problema filosófico do homem moderno


colocado de maneira literária pelo ilustre escritor Franz Kafka. Por meio da
trama nos deixaremos conduzir por uma reflexão sobre o “estar no mundo”
como condição existencial e política que define o homem moderno, fazendo
uma justaposição de realidade, contexto e pensamento.
Talvez para entendermos melhor essa idéia de entrelaçamento entre
o “mundo imaginativo literário” e o mundo vivido, concreto, devêssemos nos
perguntar acerca de quantos agenciamentos tornam uma obra literária um
contributo para o pensamento humanístico e filosófico, fazendo da mesma uma
ponte onde transitam as reflexões acerca do significado das coisas? A esta
resposta temos a observação de Deleuze:

Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio


livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta
máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma
máquina de amor, uma máquina revolucionária etc. — e com uma
máquina abstrata que as arrasta (1995: 13).

Essa máquina literária – atividade pensante que perpassa e sustenta a


atividade de escrita especulativa, pensamento em palavras e imagens – mantém
uma série de relações que se localizam “no mundo das coisas”, das “coisa
vividas”, das “coisas pensadas” e das “coisas pressentidas”. Queremos com isso
dizer que ao se deparar com uma obra literária o leitor exerce uma atitude
criativa, ou melhor, inventiva, pois as experiências vividas, as idéias
incorporadas em sua matriz moral e valorativa, seus temores passados e futuros
associados à trajetória intelectiva do sujeito o habilitam a uma posição de
intérprete da obra.
Enquanto tal esse intérprete que é afetado e também é capaz de
afetar – num nível determinado da ressignificação contextual dos eventos
imaginativos – é inserido na trama como uma consciência superior (e
simultaneamente inferior) que analisa e reflete sobre si próprio e sobre o “corpo
da obra”, seus temas e problemas. Nestes termos, a imagem literária ou poética
somente é possível devido à agenciamentos que tornam a obra um objeto

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

inteiramente original, pois é fruto do intelecto pensante de um indivíduo que se


faz subjetivado na obra, e também um objeto coletivo devido à sua capacidade
de ser integrada às diversas realidade subjetivas daqueles interpretes (portanto,
do leitor).
A idéia de agenciamento seria o meio mais adequado de entender
como a literatura é pensada a partir de “fora”; e enquanto tal a linguagem
literária ultrapassa o limiar da dialética entre o dito, o falado, o simbolizado e o
comunicado para aglutinar outras realidades, idéias, pensamentos e percepções.
As relações mantidas e estabelecidas no plano da imaginação, da
reflexão e do pensamento estabelecem diversos percursos, pois tais percursos
são ao mesmo tempo formas de vivência de valores, idéias e realidades
pensadas e experimentadas, ou, ainda, presumidas e projetadas.
A partir da idéia de agenciamento de Deleuze, entendido como
propriedade das relações com o “de fora” da literatura, apresentamos uma obra
que antecipa e atualiza o temor do homem moderno que se depara com a
radical transgressão de sua individualidade ou intimidade; a referida obra
trata-se de O Processo. Além de partirmos da concepção de obra literária de
Deleuze teremos a importante referência do pensamento de Michel Foucault o
qual nos permitiu refletir sobre como os esquemas de poder não se reduzem
simplesmente a grandes esquemas de disposição de forças materiais a partir da
existência de um núcleo antagônico e ambivalente que move os corpos e os
posicionam ao longo de daqueles esquemas. Pensaremos, portanto, como o
saber e o poder estão profundamente imbricados, formando uma rede
multiforme e informe de relações que se infiltram nas mais diversas facetas da
vida social.

Josef K e os desdobramento do poder do tribunal


Nesta obra a personagem Josef K1 é objeto de uma incógnita
existencial caracterizadora de uma a angústia que se deriva da imposição de

1
Podemos dizer que a obra de Kafka retrata o problema moderno da liberdade. Esta concebida enquanto
possibilidade do homem se mover no plano das relações sociais e políticas sem que para isso sofra,

167
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pressões disformes vindas do “mundo de fora” que invadem e transgridem a


individualidade e a intimidade do sujeito, maculando simbólica e efetivamente
os espaços destinados à vivência autêntica de sua singularidade.
Com o intuito de fornecer ao leitor os elementos de uma carga moral
negativista acerca da penetração violenta de pressões e forças vindas de “não
sei onde” num universo restrito de vivência da intimidade simbolizado pela
“casa” (ou domicílio) Franz Kafka nos apresenta como “imagem poética”
(termo utilizado por Gaston Bachelard)2, e na forma de um temor ressonante, a
invasão domiciliar, a abrupta entrada de figuras austeras.
A suspeita de Josef K acerca da legitimidade de uma autoridade
como a do “Tribunal”, cujos servidores são os primeiros a enunciarem por meio
de seus procedimentos (no sentido de ação condicionada a requisitos técnicos,
de modus operandi ) o conteúdo violento e arbitrário de suas práticas judiciárias,
é um fator latente que percorre toda a obra dando a motivação à atitude crítica
da personagem em relação à tudo quanto diz respeito ao Tribunal e seus
agentes.
A ausência de meios formais e simbólicos que integrem a retórica do
poder legítimo e institucional fundamentado é subtraída por seu oposto, ou
seja, ao invés de serem apresentados os elementos simbólicos e conceituais da
autoridade, no caso o Tribunal, estes elementos estão em suspenso, existindo
apenas a “informação velada”. A acusação é apresentada ao transgressor e junto
com essa “representação” da autoridade inquiridora acompanha uma série de
procedimentos policialescos e repressivos associados geralmente à agentes
vinculados à instituições repressivas3.
Na figura dos servidores do Tribunal visualizamos a execução de
procedimentos baseados na “absoluta” inquestionabilidade da autoridade,

segundo Bauman, pressões vindas das instituições e dos mecanismos de controle social. Sobre o assunto
ver a obra de Bauman intitulada “A Liberdade”.
2
Gaston Bachelard. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
3
Nesses procedimentos policialescos podemos aplicar a categoria de Foucault sobre as virtualidade que
condicionaram a concepção de criminologia num dado momento da história. Nesse sentido, Foucault
afirmará que tais práticas podem ser vinculadas aquilo que ele denomina de “ortopedia social” (2009:
86).

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responsável pela invasão, detenção e acusação de Josef K. A acusação do


Tribunal, cujas razões os próprios agentes não “estão autorizados a dizer” (2007:
16) ao acusado que o saberá oportunamente, é mantida sob um segredo
inexorável que subverte e radicaliza as relações entre cliente e advogado, entre
acusado e acusador, entre lei e justiça. O controle da informação e a
impossibilidade de ver aquele que observa podem na obra de Kafka sugerir a
existência de um mecanismo de penalização baseada em princípios do
panoptismo. Este, segundo Foulcalt (2009b) seria a diretriz de um plano de
“policiamento” que recai sobre os sujeito submetendo-o a um regime de
contínua avaliação onde há propositalmente o estabelecimento de posições
diametralmente opostos entre aquele que observa e aquele que é observado.
O próprio Bauman (1989: 22) ressalta que a sociedade moderna
acredita num tipo de estabilidade baseada em ações contínuas de repressão e
vigilância para garantir a regularidade dos seus processos de produção e de
reprodução da vida econômica e social. A existência de instituições que
exerçam o papel de articuladoras entre a dimensão coercitiva da vida em
sociedade e a regularidade dos processos sociais é a comprovação do
direcionamento das atividades de controle social que não se restringem ao
âmbito penal, mas se ligam também aos diversos âmbitos e formas de
sociabilidade.
Sendo assim, na obra de Kafka a desconfiança de Josef K acerca da
legalidade e da legitimidade dos procedimentos não o direciona a uma tomada
de posicionamento efetivo sobre aquilo que ele considera “injustiça”; a nulidade
da personagem, que apesar de questionar o Tribunal e duvidar de seus agentes,
não o impede de se sujeitar às determinações daquela instituição. Antes de
falarmos na relação entre legalidade e exercício legítimo de poder, nós
precisamos nos lembrar do estudo de Anthony Giddens o qual nos apresenta a
categoria de “confiança” segundo a qual o homem moderno exerce
continuamente ações no mundo social que são em grande medida norteadas
pelo nível de confiança que ele tem em relação aos “sistemas abstratos”,

169
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

monopolizadores de saberes especializados, e às pessoas que detêm


determinado saber específico de aplicações no plano profissional. Para Giddens,

Relações de confiança são básicas para o distanciamento tempo-espaço


dilatado em associação com a modernidade. A confiança em sistemas
assume a forma de compromissos sem rosto, nos quais é mantida a fé no
funcionamento do conhecimento em relação ao qual a pessoa leiga é
amplamente ignorante. A confiança em pessoas envolve compromissos com
rosto, nos quais são solicitados indicadores da integridade de outros
(no interior de arenas de ação dadas). O reencaixe se refere a processos
por meio dos quais compromissos sem rosto são mantidos ou
transformados por presença de rosto (1991: 80).

A descrença e a desconfiança encarnadas na personagem de Josef K é o


testemunho enfático de sua condição. Isto porque a profunda descrença de K
em relação ao Tribunal demonstra a precarização das condições legítima de
exercício de poder institucional representado pela entidade judiciária. A
confiança como requisito básico para funcionamento da relação entre indivíduo
e entidade não se observa no caso de K que percorre os diversos planos (da
formalidade jurídica e da informalidade como atalho para se chegar aos espaços
decisórios do poder) em busca de alternativas ao seu problema jurídico,
existencial e moral.
De outro modo, podemos ainda pensar que a legalidade e a legitimidade
tidas como pré-requisitos do exercício autêntico da autoridade, estabelecidos
sob limites racionais e instrumentais bastante específicos segundo nos ressaltou
Max Weber4 não são reconhecidas ao longo do texto de Kafka o que permite
entendermos como a relação entre indivíduo e instituição, ou mais
especificamente, entre Josef K e Tribunal é condicionada por mecanismos de
cerceamento da liberdade não postos sob uma devida publicização dos seus
atos e motivos. A falta de visibilidade dos mecanismos de defesa do acusado, a
não publicização dos motivos de acusação ou etapas do processo, e a

4
Em sua obra Ensaios de Sociologia Max Weber afirma que a racionalidade burocrática, fundamento e
essência das instituições modernas, podem ser reconhecidos a partir de três itens ou eixos estruturadores,
a saber: 1) regularidade na distribuição de competências definidas em lei, 2) o exercício da autoridade se
dá nos limites estabelecidos normativamente, 3) os agentes são selecionados conforme as especificações
definidas pelo interesse público, segundo critérios impessoais e legais. (1982:229)

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

indescritível ramificação das especialidades que integram a hierarquia


funcional e jurisdicional do Tribunal longe de constituírem falhas do sistema
judiciário são a própria expressão de uma lógica de funcionamento explicada de
tempos em tempos por seus agentes que enunciam a seguinte expressão: “Isso é
a Lei” (2007: 20).
Isso é a Lei! Essa expressão proferida por um dos vigias de Josef K mas
que se articulada com diversos momentos de contato entre o acusado e os
agentes do Tribunal afirma a dimensão de impessoalidade presente na atitude
das diversas personagens que de um modo ou de outro estão obrigadas
segundo os deveres do ofício. A impessoalidade seria a referência à obediência
dos funcionários à ética profissional; um elemento tipicamente associado a
processos de racionalização e modernização das relações profissionais na
sociedade contemporânea. Todavia, o tom impessoalista das relações entre Josef
K e o Tribunal deriva em grande medida da incapacidade daquele visualizar
sua trajetória no interior dos esquemas de poder que se lhe apresentam de
maneira quase misteriosa e enigmática. A dimensão impessoalista, que pode ser
conceituada como uma forma de localizar fora dos interesses privados ou
particulares dos indivíduos todas as decisões ou interesses que se referem ao
Tribunal, é colocada freqüentemente em questão pelo próprio Josef K, cuja
insistência é verificada nas diversas oportunidades barganha com os agentes do
Tribunal em seus mais diversos escalões – desde a barganha afetiva e erótica
com a “faxineira” do Tribunal até as conversações com o sacerdote.
Em face do exposto podemos dizer que transgressão da intimidade de
Josef K e de sua individualidade autônoma se deu numa ordem diretamente
proporcional ao aguçamento da enunciação dos atos do Tribunal, enunciação
esta promovida de maneira sutil nas ocasiões de contato social entre Josef K e os
servidores do Tribunal em que se afirmava a impossibilidade de se questionar
os atos da autoridade judiciária. Deleuze afirmará que Kafka nos apresenta a
idéia de uma instituição “burocrática inaudita” (1995: 10), cuja linguagem falada
e até mesmo escrita é subtraída por uma presença quase onipresente que se faz
enunciada na figura de seus representantes e nas interpretações da lei e das

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

funções do Tribunal; interpretações estas que são levadas à Josef K por diversos
funcionários de estratos diversos e que marcam o nível de sujeição do
“acusado” aos mecanismos judiciários daquela instituição.
Desde os vigias, passando pela “mulher” – esposa do oficial de justiça –
pelo inspetor, pelo aluno, pelo advogado, juiz e capelão o domínio de um saber
relativo aos procedimentos e finalidade do Tribunal e do processo é
manifestado sob a forma de opiniões, interpretações e afirmações vagas que
pouco serve a Josef K em sua empreitada pela compreensão. A distância que o
divide em relação aos mais simples dos funcionários é fator decisivo que define
o seu posicionamento no conjunto dos diálogos e no próprio drama.
A capacidade da instituição em acompanhar e vigiar o sujeito
submetendo-o freqüentemente a um tipo de assédio do poder onde os “rostos”
não são efetivamente mostrados, onde as finalidades e motivações são
ocultadas ficando restrita aos agentes do Tribunal demonstra um caráter
panóptico das relações de sujeição a que é posto Josef K. A máquina inaudita –
nesse caso o Tribunal pensado por Kafka – é na mesma medida uma máquina de
saber, pois seus procedimentos se fundam num conhecimento que articula
especialidade técnica (saber especializado a ser instrumentalizado por
determinados sujeitos) e uma concepção de sujeito. Sendo assim, a máquina
inaudita funciona sob a forma de um aparelho de saber e poder que cerca o
indivíduo.
Podemos afirmar que o Tribunal exerce um tipo de prática que Michel
Foucault denominará de “práticas divisoras” (FOUCAULT, 2009), sendo que nestas
o indivíduo é objetivado (tomado como ponto de convergência das
interferências do poder) e fragmentado (esse termo seria melhor ilustrado pelo
conceito quadriculamento individualizante). Como dirá Foucault “o sujeito é
dividido em seu interior e em relação aos outros” (RABINOW; DREYFUS;1995: 231),
sendo deslocado para determinados espaços de segmentação social.
As práticas divisoras são referência à uma categoria de análise que permite
entender os percursos tomados pela sociedade moderna explicando como a
emergência de determinadas instituições possibilitaram o surgimento de

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

processos de objetivação do sujeito. Instituições como a prisão, a fábrica, a


escola e o hospital são exemplos efetivos de meios onde se desenvolveu aquelas
práticas, demarcando também a localização de saberes especializados.
O acusado, o criminoso ou o sujeito cuja reputação é posta publicamente
em dúvida são apropriados por um campo específico da prática social, nesse
caso o campo penal e judiciário. Estes se constituem em domínio no qual se
desenvolvem os processos de “quadriculamento individualizante” utilizado por
Foucault (2009) para explicitar a lógica de segmentação e de objetivação de
processos sociais. Para Bauman (1989: 24) a sujeição do indivíduo à intervenção
coercitiva de determinadas instituições de segmentação social se
fundamentaram na noção de “correção” dos defeitos do criminoso não do
ponto de vista efetivo de uma possível reintegração daquela ao convívio social,
mas da ótica de um isolamento que seja em si o princípio dessa restauração, ou
seja, retirando o “mau elemento” do conjunto de elementos sãos se estará
procedendo a trabalho de prevenção que insiste em retirar do meio tudo aquilo
que representa para este um perigo potencial ou virtual.
Josef K. representa o extremo de um indivíduo perigo virtualmente
falando. A virtualidade ou a dimensão simbólica e potencial de seu perigo são
tratados pelo Tribunal como objeto de prioridade bastante elevada de modo
que até mesmo a informação deve se enclausurada no círculo de agentes e
funcionários do Tribunal. O sistema abstrato de Giddens cujo funcionamento se
dá somente devido ao nível de reconhecimento social que paira sobre
determinada instituição deve funcionar também no nível dos contatos
interpessoais. A autoridade que não “mostra seu rosto”, como no caso do
Tribunal, espalhado na imensidade de agentes seus, ora se revela nas
conversações e diálogos marcados por intensa sensura. A heterogeneidade das
formas de controle praticadas pelo Tribunal, que tem como característica
fundamental a não observância aos padrões pré-estabelecidos para a prática
judiciária na ótica da modernização racional, é bem lembrada por Foucault
(2005: 34) quando o mesmo diz que “não devemos tomar o poder como um
fenômeno maciço e homogêneo”, ou seja, o poder assume formas diversas, não

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

se limitando a uma concepção que o pré-determine, pois ele pode se infiltrar na


rede de sociabilidades consegue gerar seus efeitos e amplificar suas
conseqüências.

Conclusão
A objetivação da personagem Josef K foi demonstrada na obra pelo
incrível nível de opacidade que o impedia de ver e conhecer os procedimentos e
as práticas do Tribunal. Essa relação fora descrita e imaginada por Kafka como
a maior representação de uma violência cometida contra a humanidade de Josef
K. Todavia, em O Processo essa humana enquanto categoria universal – que diz
respeito àquilo que é próprio do homem em termos de valores, afetos e
cognição – é aqui pensada por uma outra categoria que denominamos
“intimidade”.
A intimidade retratada na obra pode ser pensada como aquele espaço da
vivência particular do sujeito tanto no âmbito das relações afetivas (cuja carga
emotiva impregna os contatos sociais de um significado que ultrapassa o mero
uso de códigos de conduta) quanto no âmbito de sua consciência, de sua
“intimidade interior” (para designa a esfera psíquica que faz do homem um ser
autônomo em termos de singularidade cognoscente). Iniciada no espaço
privativo do domicílio – simbolicamente empregado por Kafka para informar
ao leitor a gravidade da transgressão cometida pelo Tribunal – a trajetória de
Josef K é deslocada do universo de suas convivências afetivas e sociais para
outro círculo de relações sociais e afetivas, caminho que a personagem percorre
induzida ou motivada pelas pressões que são impostas pelo Tribunal.
Aqui chamamos a particular atenção para a dimensão da
impessoalidade. Nesta dimensão a impessoalidade pode ser pensada de duas
formas: 1) como propriedade daquilo que não é pessoal, que ultrapassa o
campo das valorações afetivas e particularistas responsáveis pelas “trocas”
sociais que relacionam as pessoas, 2) a impessoalidade é um princípio que rege
o comportamento de todos os indivíduos ligados ao Tribunal fazendo-os

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

portarem-se como sujeitos vinculados a uma ética profissional, induzindo-os a


um distanciamento afetivo em relação à condição angustiante de Josef K.
A intimidade transgredida é o termo utilizado aqui para representar a
invasão arbitrária de um poder inaudito que penetra em um domínio
particularizado no qual se encontra e é encontrada a personagem de Josef K.
Este domínio é ao mesmo tempo domínio moral, afetivo e simbólico definindo
as diversas percepções que cercam e condicionam a imagem e a pessoa de Josef
K; percebido simultaneamente como um “bom funcionário do banco”, um
inquilino respeitoso e um homem com ambições profissionais e anseios
afetivos.
Essa transgressão da intimidade deve ser percebido a partir do tom
impessoal e obscuro que perpassa as relações interpessoais estabelecidas por
Josef K na busca por soluções à demanda do processo. A impessoalidade e a
opacidade de um poder que não se expõe ao olhar dos outros são os elementos
de composição de uma retórica de sujeição e objetivação de Josef K. AS
angústias e os conflitos experienciados por Josef K são ilustrativos de uma
angústia que condiciona a percepção do homem moderno. O cerceamento da
liberdade e da intimidada são duas preocupações que não podem ser vistas
como objeto isolado de imaginação de Kafka, mas devem servir como um aviso
sutil e loquaz aos perigos representados pelo agigantamento das formas de
organização social e seus correspondentes mecanismos de controle e
fragmentação social.

Referências bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. A liberdade. Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio


de Janeiro: Editora 34, 1995.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. São Paulo: Editora NAU,
2009a.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Editora
Vozes, 2009b.

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FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no College de France. São


Paulo: Martins Fontes, 2005.
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora
UNESP, 1991.
KAFKA, Franz. O processo. Tradução Marcelo Backes. Porto Alegre: L&M
Pocket, 2007.
WEBER, Max. Ensaio de Sociologia. São Paulo: Editora LTC, 1982.
RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert L. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica,
para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Cruz e Sousa à luz de Schopenhauer

José Rafael Santana Valadão∗

Todo QUERER nasce de uma necessidade,


portanto de uma carência, logo, de um
sofrimento.
(Arthur Schopenhauer)

Tendo como ponto de partida a visão filosófica de Arthur


Schopenhauer, filósofo alemão do século XIX, cujo foco é direcionado para a
visão do mundo como Vontade e como Representação, será analisada neste
artigo a relação que essa filosofia tem com a obra e com a vida do escritor Cruz
e Sousa. A intenção é desvendar os mistérios que permeiam algumas de suas
poesias, tentando com isso interpretar e analisá-las de acordo com o
pensamento de Schopenhauer. Também associaremos a visão que o filósofo tem
sobre a Arte como sendo obra do Gênio.
A filosofia de Schopenhauer, se considerarmos o seu livro magno O
mundo como Vontade e como Representação, consiste em observar o mundo de um
lado como Vontade e de outro como Representação. Segundo o filósofo, o
mundo se constitui da seguinte forma: de um lado o temos como
Representação, ou seja, a parte exterior do mundo, independente ou não do
princípio de razão, do outro a Vontade como a essência íntima do mundo. A
representação submetida ao princípio de razão “aborda os fenômenos da
realidade dados no espaço, no tempo e na causalidade, tendo-se aí o ‘objeto da


Graduando do 4º período de Letras Português da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

experiência e da ciência” (BARBOZA, 2005: 13). Em primeiro plano o objeto se


constitui a partir do espaço, do tempo e da causalidade, e que nada é se não
houver a presença do sujeito, e vice-versa. Ou seja, o objeto (o mundo) é
representação do sujeito. Sujeito este movido por completo pela Vontade – que
é o seu substrato único de toda a realidade. Então todo indivíduo é um sujeito
do querer. Em Schopenhauer, o que define o homem é o querer, e não a razão.
Neste caso: “a vida em geral é uma constante procura por passageiros objetos
de prazer, que antes de serem alcançados provocam variados graus de
sofrimento” (BARBOZA, 2007: VIII).
Conforme Jair Barboza, tradutor de Schopenhauer, a filosofia deste é
caracterizada por pensamentos pessimistas, pois segundo ele: “Schopenhauer
teria sido o doutrinador de uma negação da Vontade de vida, pois, segundo
afirma sua metafísica, exposta em O Mundo, todo viver é sofrer.” (BARBOZA,
2006: XII). Muito embora seja possível encontrar uma leve sensação de
otimismo em sua filosofia. Para o próprio Barboza (2006) seria um pessimismo,
mas nem tanto. Então, para o filósofo alemão, o homem só encontraria a
felicidade plena com a anulação completa da Vontade. Assim, uma das vias
possíveis para tentar livrar-se da força negativa da Vontade é através da Arte.
De acordo com Barboza (2005), a contemplação estética é um bálsamo em meio
às durezas da vida, espécie de hora de recreio que nos dá um descanso da
seriedade da existência.
Para Schopenhauer, a primeira via para o afastamento da Vontade,
seria a via artística, que está livre de qualquer relação com o princípio de razão;
princípio este constituído por relações conhecíveis através de definições
atribuídas a todas as coisas concretas ou abstratas que se opõe à intuição, que é
o conhecimento destituído dessas conexões do princípio racional.
Conseguintemente, é justo na Arte que a intuição será objetivada, por que a arte
se detém nesse particular, as relações desaparecem, pois a Vontade não mais
existe, somente a contemplação do objeto por parte do sujeito (não o comum,
mas o gênio). Portanto, a arte é a representação não submetida aos princípios
racionais, enquanto o princípio de razão é a Vontade encarnada. Tendo esses

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

fundamentos como base deste artigo, veremos a relação deles com a arte de
Cruz e Sousa: a Arte Poética.
Cruz e Sousa nasceu a 24 de novembro de 1861, em Desterro (atual
Florianópolis). Era negro filho de escravos, mesmo assim fora educado pelos
antigos senhores de seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa e sua
esposa. Além disso, foi aluno do sábio alemão Fritz Müller1. Mesmo sendo um
homem de ótima formação cultural e educacional, Cruz e Sousa não era
reconhecido pelos seus bons trabalhos devido à sua cor, segundo Luft (1967).
Sendo por essa razão que ele utilizaria a arte poética para isolar-se na pura
contemplação dos objetos, penetrando, assim, no mundo da intuição,
esquecendo deste modo ele mesmo e as suas próprias vontades, logo o mundo
para o poeta não mais seria como Vontade, e sim como Representação
independente do princípio de razão (essa explanação teórica será exposta mais
adiante). Sua carreira profissional se inicia com o jornalismo, partindo
posteriormente para a carreira literária, além de ter sido também professor.
Fora, entretanto, alvo do preconceito de cor, recusado como promotor público
em Laguna, e barrado em suas tentativas de aspirações de ascensão social.
Como poeta, Cruz e Sousa é considerado o principal do Simbolismo no
Brasil, no entanto fora bastante influenciado pelos parnasianos quanto a
estrutura das poesias, diferenciando-se dos temas abordados. Enquanto os
parnasianos eram essencialmente objetivistas ou racionalistas em suas
descrições poéticas, a poesia simbolista de Cruz e Sousa se caracterizava pelo
subjetivismo2 de uma alma atormentada pelas vontades que o eu - lírico
alimentava. Em seus primeiros livros, como Broquéis (1893), nota-se essa
influência parnasiana. Sendo somente nos seguintes livros que seguiria as
tendências verdadeiramente simbolistas. O crítico literário Afrânio Coutinho
(2004) dissera que Cruz e Sousa fora um parnasiano tão apaixonado da beleza
formal das palavras, tão cuidadoso das regras intransigentes da prosódia, tão

1
Johann Friedrich Müller (1821 – 1897), naturalista, professor de matemática e ciências naturais.
2
Lembrar que o subjetivismo é característica fundamental do Simbolismo.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

desejoso de encher seus poemas do saber carnal das coisas sensíveis como
qualquer parnasiano.
Seu grande mérito, na verdade, foi enriquecer a rigidez parnasiana com
as temáticas que ele aborda, com uma linguagem de força sugestiva e de uma
musicalidade característica da poesia simbolista. Deste modo, se tomarmos por
consideração o pensamento de Schopenhauer em relação à arte poética,
perceberemos o quanto ele tem em comum com a ideia de Cruz e Sousa ser tão
apaixonado pela beleza formal das palavras. Pois para o filósofo, o meio de
ajuda todo especial da poesia são o ritmo e a rima, logo, é através da perfeita
combinação das palavras que se obterá uma boa musicalidade. Celso Luft
(1967) diz que os simbolistas eram entusiastas do Romantismo, da música de
Wagner, da filosofia de Schopenhauer, tentando com isso exprimir mediante
símbolos a vida interior. Para Schopenhauer, a música se encontraria por inteiro
separada das demais artes, sendo a superior entre todas. E os simbolistas, tendo
Paul Verlaine3 como porta-voz, diziam que antes de qualquer coisa (pintura,
poesia, etc.) a música.
Apesar da incontestável qualidade poética, Cruz e Sousa morreu sem
apreciar seu sucesso que mais tarde floresceria. Vivera apenas com esse desejo
escravizante em seu espírito. Já que neste trabalho o interesse é relacionar suas
poesias com a filosofia de Schopenhauer, agora será exposto como o filósofo
alemão explica esse sentimento denominado Vontade, e até onde ela influi na
criação artística.
Como foi dito anteriormente, para Schopenhauer todo indivíduo é um
sujeito de vontades. Portanto, vivemos nossas vidas na busca pela satisfação de
diversos desejos. Muito embora, mesmo um desejo sendo realizado, sempre
virá outro que atormentará uma possível tranquilidade. É por essa razão que o
filósofo diz que todo viver é sofrer. Para Jair Barboza (2006), todo desejo é de
natureza negativa, pois o prazer consiste na supressão momentânea da dor. De
fato, a mente humana é habitada por esse sentimento volitivo, apesar de existir

3
Paul Marie Verlaine (1844 – 1896) foi poeta da estética simbolista francesa.

180
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

caminhos para nos livrarmos dele. Por exemplo, segundo Schopenhauer, o


conhecimento geral ao qual a humanidade usufrui é aquele que está a serviço
do princípio de Razão, cujo fim último é o de se relacionar com a própria
Vontade, assim, quando nos repousamos e nos absorvemos na pura
contemplação, sem considerar o Onde, o Quando, o Porquê e o Para Quê das
coisas, e sim n’O Quê (a essência), o espírito é devotado à intuição, e é afundado
por completo nesta. A consciência inteira sendo preenchida pela calma da
contemplação do objeto natural, seja uma paisagem, seja as estrelas, seja um
penhasco, ela se perde por inteiro nesse objeto, esquecendo o próprio indivíduo
e o próprio querer. Ou seja, o objeto e o sujeito tornam-se unos. Em outras
palavras, o sujeito quando livre de sua relação com a Vontade conhece o objeto
que está separado de toda relação com algo exterior, ou seja, as relações do
princípio de razão, vai ser denominado, segundo Schopenhauer, o “puro sujeito
do conhecimento destituído de vontade” e sofrimento. O gênio artístico
encaixa-se perfeitamente nessa denominação. A partir do momento em que
conhecemos ou analisamos as coisas por pura intuição, livre de qualquer
princípio de razão, é que seríamos o puro sujeito do conhecimento destituído de
vontade. Para Schopenhauer, a arte se detém nesse particular; as relações do
princípio de razão desaparecem, apenas o essencial, a Ideia4, é objeto da arte.
Eis a sua definição da arte: “como modo de consideração das coisas
independente do princípio de razão”.
Por isso que muitos artistas preferiam isolar-se em ambientes bucólicos,
ou transcender-se para um mundo espiritual, e também voltar o pensamento
para acontecimentos pretéritos. Deste modo, sua criação não se afetaria pelo
poder da Vontade. Assim, a arte, para o filósofo alemão, é a primeira via para
nos libertarmos do serviço escravo da Vontade. Obviamente que esse
pensamento é difícil de ser concretizado, voltando o desejo a atormentar o
espírito do homem. Neste último caso, Schopenhauer acreditava que a

4
Tem-se em vista aqui o conceito das Ideias platônicas. Pois para Platão, existem dois mundos: o
material e o das ideias, sendo que este contém a verdade, a imutabilidade, a perfeição e a originalidade
das coisas. Diferenciando-se do material, que seria uma cópia imperfeita do mundo das ideias.

181
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

felicidade do homem seria encontrada a partir do momento em que a Vontade


fosse anulada por completo, portanto, que fosse aniquilado o desejo de viver.
Por isso alguns indivíduos tenham interesse tão extraordinário pelo passado,
pela distância, pelo transcendental, pela natureza, e por fim, a morte. Esses
casos mais específicos serão vistos em algumas das poesias de Cruz e Sousa.
É importante notar que a obra de arte, segundo Schopenhauer, é obra
do Gênio. Portanto, o homem genial furta-se por instantes ao serviço da
Vontade quando está produzindo sua obra. Ao contrário do homem comum
que é completamente incapaz de deter-se numa consideração plenamente
desinteressada, a qual caracteriza a contemplação propriamente dita. Conclui o
filósofo:

Daí se explica a vivacidade, que beira a inquietude, em indivíduos


geniais, na medida em que o presente quase nunca lhes basta, já que
não preenche a sua consciência. Daí resulta aquela tendência ao
desassossego, aquela procura incansável por novos objetos dignos de
consideração (SCHOPENHAUER, 2005: 255).

O interesse de expor esse pensamento reside no fato de que Cruz e


Sousa representaria de forma categórica essa explanação de Schopenhauer, pois
o poeta brasileiro encontraria em suas intuições destituídas de razão – portanto
de Vontade – a inspiração para compor os mais belos poemas.
Em algumas das poesias de Cruz e Sousa encontram-se manifestações
duma alma geniosa, bem ao estilo descrito por Schopenhauer. Lembremos o
quanto a vida do poeta fora marcada por diversos problemas sociais, por
motivos, em especial, etnológicos. Cruz e Sousa, desta forma, imerso num
mundo em que ele necessitava satisfazer suas vontades pessoais, as quais não
eram alcançadas, devido ao preconceito racial que existia na sociedade
brasileira do seu tempo, tinha a capacidade inerente do gênio schopenhauriano,
que consistia na força interna de contemplar objetos isolados diante de si,
penetrando assim num mundo puramente contemplativo, esquecendo-se dos
próprios desejos que possivelmente o fizeram sofrer.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Nas poesias que serão expostas aqui, notaremos a possível presença de


eu–líricos afetados pelo sentimento angustiante da Vontade. E veremos como o
espírito genial de Cruz e Sousa é capaz de se deter em profundas intuições,
buscando na essência do mundo o caminho para a libertação do serviço escravo
da Vontade.
Analisaremos as seguintes poesias: “Luar de Lágrimas”, “Livre!”, “Dias
Tristes”, “Eternidade Retrospectiva”, “Único Remédio”, e “O Assinalado”. Em
todas elas perceberemos o quanto o sentimento volitivo possivelmente influirá
na criação poética de Cruz e Sousa.
Vejamos dois quartetos do poema “Luar de Lágrimas” que está
presente no livro Faróis (1900):

Nos estrelados, límpidos caminhos


Dos Céus, que um luar criva de prata e de ouro,
Abrem-se róseos e cheirosos ninhos,
E muitas messes do bom trigo louro.

Lá não existe a convulsão da Vida


Nem os tremendos, trágicos abrolhos.
Há por tudo a doçura indefinida
Dos azuis melancólicos de uns olhos.

Percebe-se, pois, que num determinado momento o gênio de Cruz e


Sousa deteve-se na contemplação do céu estrelado, no qual para os homens
comuns passam despercebidos, para o gênio é motivo de desgarrar-se por
instantes da convulsão da vida, que está relacionada com a própria Vontade.
Deste modo Schopenhauer diz:

Em conformidade com tudo isso, a “expressão genial” de uma cabeça


consiste numa visível e decisiva preponderância do conhecer sobre a
Vontade; por conseguinte, também um conhecer destituído de toda
relação com o querer, noutros termos, um conhecer puro se expressa ali
(2005: 257).

Assim, quando o poeta direciona seu pensamento às intuições do seu


espírito, este não é mais servidor da Vontade. Muito embora não seja em todos
os momentos de sua vida que ele seja capaz de devotar seu espírito para este
estado de conhecimento puro. Por que tanto no que diz respeito aos méritos

183
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

quanto às carências, em muito se aproxima do indivíduo comum. Isso é visto no


poema em prosa “Dias Tristes”, no qual perceberemos o quanto o eu–lírico está
afetado por não conseguir se livrar dos desejos que habitam o seu ser.
Vejamos a poema que está incluso no livro Missal (1893):

Dias tristes, muita vez, os dias de sol.


Mergulhado o espírito na onda profunda de desejos irresistíveis, como
numa intensa e luxuriosa paixão, os aspectos que se lhe manifestam na
Natureza são amargos, atravessados dessa pungência aflitiva, dessa
magoante desolação e atormentadora ironia que há na essência de
todas as cousas e ideias. (CRUZ E SOUZA, 1893: 428)

Percebe-se o quanto o eu-lírico sofre quando a alma está mergulhada na


onda profunda de desejos, ao passo que até a própria natureza manifesta
aspectos amargos nesta ocasião espiritual.
Analisemos outra poesia, intitulada “Livre!”, que está presente no livro
Últimos Sonetos organizado nas obras completas de Cruz e Sousa por Andrade
Muricy. Nesta fica mais evidente a relação do tema com o pensamento de
Schopenhauer. Quando livre da matéria escrava e arrancado dos grilhões que
nos flagelam – a Vontade – tornamo-nos perfeitamente capaz de penetrar nos
dons que selam a alma, as Ideias5, e não o princípio de razão. Princípio este que
nos deixa presos às relações que o movem, ou seja, a serviço inteiramente da
Vontade. Livre destas relações, o sujeito conseguirá sentir a natureza para
gozar, na universal grandeza, fecundas e arcangélicas preguiças.
Observemos a poesia “Livre!”:

Livre! Ser livre da matéria escrava,


arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.

Livre da humana, da terrestre bava


dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava

Livre! Bem livre para andar mais puro,

5
Rever a nota de rodapé número 5.

184
II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

mais junto à Natureza e mais seguro


do seu Amor, de todas as justiças.

Livre! Para sentir a Natureza,


para gozar, na universal Grandeza,
Fecundas e arcangélicas preguiças.

Encontra-se nesta poesia uma gradação de livramento espiritual do eu–


lírico. Na primeira estrofe se fala em ser livre da matéria escrava; na segunda,
em ser livre da condição humana, “dos corações daninhos que regelam”; na
terceira, livre para andar mais puro, junto à natureza; e por fim, na quarta
estrofe, livre pra sentir a natureza e gozar uma arcangélica preguiça, que
remeteria a uma total anulação de vontades, já que não tendo nada para
perseguir, ou seja, um desejo a ser alcançado, resultaria na plena calma
espiritual do eu–lírico. Vê-se, portanto, a forte tendência transcendentalista da
poesia simbolista.
No decorrer da explanação de seus pensamentos sobre o Gênio,
Schopenhauer equipara-o com o louco. Este conhece corretamente o presente
individual, bem como muitas coisas particulares já acontecidas, contudo
desconhece a concatenação e as relações, assim, erram e falam absurdos,
aparentemente do mesmo modo do gênio. Conforme o filósofo alemão:

Ora, é exatamente este o seu ponto de contato com o indivíduo genial.


Pois este perde de vista o conhecimento das coisas ao negligenciar o
conhecimento das relações conforme o princípio de razão, para ver e
procurar nas coisas apenas suas Ideias e captar a sua essência que se
expressa para a intuição. (2005: 263-264).

Esta equiparação entre o louco e o gênio é descrita de forma genial por


Cruz e Sousa na poesia “O Assinalado”, presente também no livro Últimos
Sonetos. Nela veremos como o escritor descreve o gênio poético como o
possuidor da loucura mais suprema, onde povoa o mundo não povoado. Isso é
o mesmo que afirmar que o homem genial é um louco, no entanto, não uma
loucura comum, e sim como um homem capaz de sentir a essência das coisas de
forma completamente única. E pelo fato de o homem genial ser raro numa
sociedade, os homens comuns o acharão um louco por ser diferente.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Eis a poesia “O Assinalado”:

Tu és o louco da imortal loucura,


o louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,


mas essa mesma Desventura extrema
faz que tu’alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.

Tu és o poeta, o grande Assinalado


que povoas o mundo despovoado,
de belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica


toda a audácia dos nervos justifica
os teus espasmos imortais de louco!

Inevitavelmente muitos analisam a obra de Cruz e Sousa como


caracterizada por tons pessimistas. Muitas vezes equiparando-a com a filosofia
de Schopenhauer. O crítico Andrade Muricy, um dos principais da obra de
Cruz e Sousa, fala dessa relação. Diz ele: “O espírito de revolta, e a influência
crescente de Schopenhauer, conduziram-no a um pessimismo cósmico e
apocalíptico.” (MURICY, 1961: 31).
Percebemos, pois, como Cruz e Sousa representou o pensamento de
Schopenhauer, no qual explica que um dos modos de nos livrarmos do serviço
escravo da Vontade é voltarmos nossos pensamentos para a natureza, e
conseguintemente intuirmos de acordo com nossas próprias ideias, livres de
qualquer princípio de razão. No entanto, para o filósofo alemão, existe também
uma outra maneira de nos libertarmos da Vontade: voltar nossos pensamentos
para o passado. Deste modo ele explica:

Essa bem-aventurança do intuir destituído de vontade é, por fim //


também o que espalha um encanto tão extraordinário sobre o passado
e a distância, expondo-os em luz exuberante por meio de uma auto-
ilusão, pois, na medida em tornamos presentes os perdidos dias
pretéritos, longuinquamente situados, na verdade a fantasia chama de
volta apenas os objetos, não o sujeito do querer, que outrora carregava
consigo seus sofrimentos incuráveis. (2005: 269).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Esse fundamento filosófico se encontra em uma poesia de Cruz e Sousa,


cujo nome é Eternidade Retrospectiva, presente também no livro Últimos Sonetos.
Nesta poesia o pensamento do eu – lírico está totalmente voltado para um
passado distante, só que um passado transcendental, não o histórico explicado
por Schopenhauer. Percebe-se que todos os verbos estão no tempo pretérito, o
único que não está, tem uma carga semântica que remete ao passado, que é o
verbo recordar.
Analisemos a própria poesia:

Eu me recordo de já ter vivido,


mudo e só por olímpicas Esferas,
onde era tudo velhas primaveras
e tudo um vago aroma indefinido.

Fundas regiões do Pranto e do Gemido,


onde as almas mais graves, mais austeras
erravam como trêmulas quimeras
num sentimento estranho e comovido.

As estrelas longínquas e veladas


recordavam violáceas madrugadas,
um clarão muito leve de saudade.

Eu me recordo d’imaginativos
luares liriais, contemplativos
por onde eu já vivi na Eternidade!

Vimos que nas poesias citadas o fundamento ideológico delas tem


relação com a filosofia de Schopenhauer. Analisamos então a ideia central do
pensamento schopenhauriano, a qual constitui o mundo como representação
tanto racional, como irracional. Sendo que a representação submetida ao
princípio de razão está a serviço da Vontade. Vontade esta que, segundo o
filósofo, leva o homem ao sofrimento. Assim, vimos que muitos dos meios que
o filósofo destaca para que o sujeito não seja afetado pela força negativa da
Vontade são encontrados na poesia de Cruz e Sousa. Destacando
principalmente a representação do Gênio no espírito do poeta brasileiro. As
ideias poéticas de Cruz e Sousa seriam apreendidas por meio da pura
contemplação dos objetos, sendo nesse estado de espírito que o poeta se

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

colocaria na posição do “puro sujeito do conhecer destituído de vontade”, logo,


de sofrimento.
A produção artística seria, então, sua válvula de escape. No momento
em que o espírito de Cruz e Sousa mergulhava-se inteiramente na pura
intuição, o poeta conseguiria sentir mais profundamente a essência dos objetos
que ele contemplava, encontrando neles a tranquilidade espiritual tão desejada,
impossível de ser encontrada na vida real.
Cruz e Sousa, desta maneira, não conseguia transcender seu espírito
para o mundo das Ideias a todo instante. Na poesia Único Remédio,
perceberemos que o caminho para a felicidade da alma seria apenas pela via
natural da morte. Com a morte, a Vontade desaparece por completo, portanto,
os venenos, os desesperos da vida seriam anulados com a chegada risonha da
morte.
Vejamos a poesia “Único Remédio”, de Cruz e Sousa, presente no livro
Últimos Sonetos:

Como a chama que sobe e que se apaga,


sobem as vidas a espiral do Inferno.
O desespero é como o fogo eterno
que o campo quieto em convulsões alaga...

Tudo é veneno, tudo cardo e praga!


E as almas que têm sede de falerno
bebem apenas o licor moderno
do tédio pessimista que as esmaga.

Mas a Caveira vem se aproximando,


vem exótica e nua, vem dançando,
no estrambotismo lúgubre vem vindo.

E tudo acaba então no horror insano –


- desespero do Inferno e tédio humano –
quando, d’esguelha, a Morte surge rindo...

Observadas estas poesias, percebemos que as ideias de Cruz e Sousa


são aparentemente semelhantes às da filosofia de Schopenhauer. Se para este,
todo indivíduo é um sujeito do querer, portanto, movido pela Vontade, logo o
poeta brasileiro se encaixa nessa definição. Como a proposta central do presente
artigo consiste na tentativa de interpretar a poesia de Cruz e Sousa através da

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

filosofia do alemão, atribuímos que um pensamento de um filósofo contribui


para tal intento. Cruz e Sousa encontraria em sua habilidade de escrever belas
poesias o caminho para a transcendência do espírito, ou à pura contemplação
das ideias. Mergulhando-se, desta forma, num mundo em que não existiriam
desejos materiais, ou seja, a Vontade segundo Schopenhauer. Quando lemos as
poesias cruz e sousianas, percebemos o quanto o eu – lírico, ou o espírito, se
tomarmos em consideração a linguagem filosófica de Schopenhauer, é afetado
negativamente pela presença constante da Vontade. A sua vida foi inteiramente
marcada pela luta constante de sua própria valorização ou realização pessoal,
fazendo com que tivesse uma obra poética excessivamente lírica, subjetiva e
transcendental. As experiências da vida de Cruz e Sousa, que não foram nada
agradáveis, influenciaram de forma contundente na sua criação artística. Suas
poesias são marcadas por uma explosão lírica capaz de ele “esquecer” seus
desejos e de se ver livre do mundo como Vontade, e penetrar num mundo no
qual seria a representação única de suas ideias.

Referências bibliográficas:
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. São Paulo: Global, 2004.
LUFT, Celso Pedro. Dicionário de literatura portuguesa e brasileira. Porto Alegre:
Globo, 1967.
MURICY, Andrade. Cruz e Sousa: obras completas. Rio de Janeiro: José Aguilar,
1961.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Trad.
Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005.
______ . Aforismos para a sabedoria de vida. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
______ . Fragmentos sobre a história da filosofia. Trad. Karina Jannini. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

O cômico na literatura brasileira

Profa. Dra. Jacqueline Ramos∗

Como aponta a historiografia, o cômico, que chegou a ser vinculado ao


divino na Antiguidade Clássica, sofrerá todo um longo processo de
desqualificação a partir da Idade Média. Nesse processo, a concepção judaico-
cristã do mundo promove uma associação do cômico ao prosaico, ao mundano,
ao demoníaco; que resulta na contraposição, que se verifica até hoje, do cômico
ao sério. Talvez esse seja um dos motivos pelos quais o gênero cômico não
tenha recebido tanta atenção da crítica quanto outras formas literárias.
Na virada do século XIX para o XX, como aponta Verena Alberti (2002) e
George Minois (2003), o cômico será valorizado por sua capacidade de ampliar
as possibilidades do pensamento (já assim entrevisto por Schopenhauer), por
dar acesso ao indizível, por circunscrever tudo aquilo que não pode ser
considerado pelo pensamento sério. Em Kant, o cômico é desvalorizado por
vincular-se ao sensível: o corpo, através do riso, responderia ao que não pode
ser pensado. Ao invés de expulsar o cômico do âmbito do pensamento,
Schopenhauer o considera “excedente de conhecimento”, por isso capaz de
alargar o pensamento.
Ainda, na esteira de Freud, podemos pensar o cômico como meio de
acesso aos conteúdos reprimidos socialmente. Nessa visada, o cômico daria a


Professora Adjunto do Departamento de Letras de Itabaiana da Universidade Federal de Sergipe.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

ver aspectos da cultura que seriam escamoteados pelo pensamento sério. Isso
talvez justifique sua presença em autores e obras consagrados de nossa
literatura, pensemos no elemento satírico em Memórias Póstumas de Brás Cubas
de Machado de Assis; em nosso herói sem nenhum caráter, Macunaíma, de
Mário de Andrade; ou ainda no uso constante do chiste em suas mais variadas
funções na obra de Guimarães Rosa.
Foram essas as motivações para o projeto, em andamento, “O cômico na
literatura brasileira”, que venho desenvolvendo na Universidade Federal de
Sergipe.1 O projeto, cujos resultados parciais ora apresentamos, objetiva o
estudo dos modos e formas da comicidade na literatura brasileira.
Nossa investigação concentrou-se inicialmente no inventário das obras
cômicas da literatura brasileira, produzidas pelos autores já consagrados pela
historiografia (COUTINHO, 1959; CANDIDO, 1964; BOSI, 1985). Foram vistoriadas
obras de 69 autores entre a literatura informativa e a primeira geração
modernista. Passamos em revista a obra de cada um deles para rastrear a
presença do cômico. A partir dessa prospecção, elencamos 150 obras literárias
cômicas. Demos inicio também à composição de um acervo de obras cômicas e
nossas letras assim como de teorias sobre o cômico, que conta atualmente com
46 obras impressas e 46 digitalizadas.
Essas atividades já puderam contar com os discentes vinculados ao
projeto através do Programa de Iniciação Científica. Concomitantemente ao
inventário das obras cômicas, organizamos um grupo de estudos das teorias
sobre o cômico, em que foram lidos e discutidos os dois textos de maior
penetração nos estudos críticos sobre o cômico: O riso: ensaio sobre a significação
da comicidade, de H. Bergon (1987) e O chiste e suas relações com o inconsciente, de
S. Freud (1977). O grupo estudou também a interpretação de Jolles (1976) sobre
os mecanismos e funções do chiste, baseada no funcionamento da linguagem.

1
Para a implementação do projeto contamos com o apoio do PAIRD (Programa de Auxílio à Integração de
Docentes e Técnicos Administrativos Recém-Doutores às Atividades de Pesquisa, edital POSGRAP
03/2008) e do PIBIC (Programa Institucional de Iniciação Científica) que nos concedeu três quotas, sendo
uma contemplada com bolsa do CNPq.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

RESULTADOS PARCIAIS

O mapeamento preliminar que efetuamos permite já vislumbrar o


contorno do movimento das formas cômicas em nossas letras, graças a
determinadas “balizas” históricas que se descortinam. É relevante, por
exemplo, perceber que enquanto fomos colônia de Portugal, sujeitos ao controle
e censura da metrópole, não produzimos praticamente obras cômicas. Para a
tradição cristã, que então vigorava, o cômico é condenado, associado ao
pecaminoso e ao demoníaco, só era permitido como arma de agressão ao
inimigo (ALBERTI, 2002; MINOIS, 2003). Apesar dessa atmosfera avessa ao
cômico, é curioso o que nos revela o recente estudo de Enrique Rodrigues-
Moura (2009), ao demonstrar que a primeira obra de escritor brasileiro
publicada não teria sido a “Propopopéia” (1601) de Bento Teixeira, que era
português de nascimento, mas “Hay amigo para amigo” e “Amor, engaños y
celos” (1663) de Botelho de Oliveira: o texto cômico, portanto, seria inaugural
em nossa literatura nacional.
Relevante também é a grande profusão de obras cômicas que se percebe
durante o romantismo, período que coincide com nossa independência política,
principalmente de peças teatrais. Essa forte presença do cômico poderia ser
entendida, na esteira de Freud (1977), em sua função de dar vazão a conteúdos
reprimidos, considerando a ausência da censura de Portugal. A comédia de
costumes inaugurada pelos românticos em nossas letras será também gênero
satírico, guardadas as devidas distinções estéticas, amplamente explorado
durante o realismo. Nosso modernismo da primeira geração é outro marco
histórico no que tange à utilização do cômico que surge incorporado às obras e
cumprindo as mais diversas funções.

A par desse panorama geral, o levantamento preliminar das obras


cômicas já suscita uma série de questões que procuramos elencar brevemente.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

O cômico na literatura colonial

O caráter documental e oficial dos primeiros escritos em terras brasileiras


– cartas, diários de bordo, relatórios, relatos de viagem, tratados descritivos etc.
– afasta essa primeira “literatura”, no sentido lato, do cômico. Caráter oficial
que pressupõe a seriedade, justamente a característica que, na concepção desse
período, faltaria ao cômico. Além disso, com objetivo específico de relatar a
Portugal as informações acerca do Novo Mundo, esses textos não são stricto
sensu literários, afastando-se do ficcional. O mesmo ocorre com a literatura
jesuítica de caráter doutrinário e pedagógico, produzida com uma função
pragmática: educar e propagar a fé católica.

As obras desse primeiro momento da colonização brasileira são


consideradas textos fundadores, pois fornecem temas e formas que serão
revisitados ao longo de nossa história literária (BOSI, 1985). Apesar desse seu
caráter documental, que o distancia do ficcional e conseqüentemente do cômico,
muitas passagens podem parecer cômicas para o leitor atual. É o caso do célebre
trecho em que Gandavo estabelece uma relação causal entre a ausência dos
fonemas “R”, “L” e “F” da língua tupi e a ausência de “Rei”, “Lei” e “Fé” entre
os indígenas. Também a leitura da Carta de Pero Vaz Caminha possui sua
“graça”: veja-se o espanto diante da nudez dos índios que não tinham vergonha
de mostrar suas “vergonhas”; ou ainda o caso do degredado que prefere pular
do navio e ficar em terras totalmente desconhecidas a voltar para Portugal.
Enfim, nesse primeiro século, não há textos cômicos propriamente ditos, muito
embora possamos encontrar algumas passagens risíveis ao leitor moderno.

A sermonística resplandece no Barroco, marcado no Brasil pela produção


jesuítica que orientava a educação na colônia. O caráter sério dos textos,
produzidos segundo uma ideologia que reduz o cômico ao âmbito do
demoníaco, é refratário ao cômico: o discurso laudatório de Bento Teixeira em
sua “Prosopopéia”; os sermões edificantes do Pe. Antonio Vieira ou do Pe.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Bernardes; a poesia de Botelho de Oliveira. Pródiga na literatura dita “séria”,


austera, a produção barroca, em grande parte financiada pelo clero, possui um
caráter doutrinário marcado. Embora alinhado a essa ideologia dominante, a
primeira obra publicada por Botelho de Oliveira, e também a primeira obra
publicada por autor brasileiro, inclui duas peças cômicas a que já nos referimos:
“Hay amigo para amigo” e “Amor, engaños y celos” (1663).

Nessa recém colônia, a expressão cômica encontrará lugar privilegiado


na poesia de Gregório de Matos. Não surpreende ser o gênero satírico o que
consegue encontrar lugar nessa ambientação barroca tão avessa ao riso. A sátira
em Gregório de Matos cumpre a função de reprimir as excentricidades, é
moralizante na medida em que ridiculariza atitudes ou ações reprovadas pela
moral vigente, daí seu caráter conservador.2 A sátira do período revela muito
de nossa herança colonial barroca: individualismo, religiosidade, displicência
moral, culto das aparências, sacralização dos títulos, educação bacharelesca das
elites. Aspectos que, aliados com as estruturas sociais, “presidiram à formação
de nossas elites e têm reaparecido sempre que o processo de modernização se
interrompe ou cede à força da inércia” (BOSI, 1985: 58).

Marcada pelo contraste, a produção de Gregório de Matos conta com a


irreverência satírica e com a devoção ascética; com obscenidades e idealismos.
Contradições que parra Bosi revelam a ambigüidade da vida moral de então:

O desejo de gozo e de riqueza são mascarados formalmente por


uma retórica nobre e moralizante, mas afloram com toda a brutalidade
nas relações com as classes servis que delas saem mais aviltadas. Daí o
populismo chulo que irrompe às vezes e, longe de significar uma atitude
antiaristocrática, nada mais é que válvula de escape para velhas
obsessões sexuais ou arma para ferir os poderosos invejados (1985: 42).

Essa sátira mordaz do “Boca do Inferno” é voz isolada no Brasil colônia. O


período árcade que se sucede ao barroco ao retomar a estética clássica e renascentista

2
Função do cômico amplamente explorada por Bergson em seu já clássico O riso: ensaio sobre a
significação do cômico.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

acaba por afastar-se das formas cômicas. As Cartas chilenas de Tomás Antonio
Gonzaga, que satirizam a política de então, foram os únicos textos cômicos encontrados
nesse período. Devido às dificuldades de acesso aos materiais, não foi ainda possível
passar em revista as obras que circularam nas academias literárias que se fundaram
nesse período, que, provavelmente, também produziu seus poemas jocosos.

O cômico no período nacional

Já assinalamos que a independência política e econômica do Brasil


coincide com o movimento romântico das artes no caso brasileiro. Sem mais a
tutela de Portugal, o Brasil passa a criar suas editoras, jornais, revistas, teatro
etc. A ausência de censura é também propícia ao cômico, como deixa entrever
nosso levantamento de corpora. Das tímidas manifestações cômicas do período
colonial, o período romântico possui larga produção: algumas poesias,
romances e muitas comédias de costumes (elencamos 35).

Essa forte presença do cômico nesse contexto pode ser entendida naquela
função de dar vazão a conteúdos reprimidos (Freud, 1977), seria elemento de
desrecalque social considerando a ausência do censor Portugal. Por outro lado,
a numerosa produção cômica desse período restringe-se basicamente a
comédias de costumes, gênero que se caracteriza por seu aspecto moralizador.
Percebe-se, assim, a ambivalência do cômico na própria história literária:
representa a liberdade para compor textos antes condenados, mas tal produção
opta pelo cômico repressor (Bérgson, 1987): menos que prática de liberdade
parece indicar o processo de transferência e de incorporação do repressor pela
própria cultura.3
O autor de destaque na produção dessas comédias de costume é Martins
Pena, que conta já com importantes estudos críticos; esse gênero cômico
também foi explorado por Machado de Assis em sua produção romântica, com
a qual pretendemos nos ocupar na fase de descrição e análise das obras, já que

3
Ver, a seguir, “O cômico moralizante em O juiz de paz da roça de Martins Pena” de Ana Paula Rocha.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

vislumbramos a possibilidade da ironia machadiana, tão própria de sua fase


realista, radicar-se nessa sua experiência romântica com a sátira.

Esse teatro de costumes que floresce no romantismo, guardadas as


diferenças estéticas, perdura e será também gênero amplamente explorado
durante o realismo, que conheceu uma produção expressiva: contamos 48 peças
(e quase que a totalidade delas foi encenada). No realismo, afinado ao
pensamento liberal e republicano, não teríamos o cômico mais mordaz, cruel, a
serviço da desqualificação da aristocracia? Não seria esse cômico agressivo o
ingrediente da ironia machadiana que tantas vezes se assemelha ao chiste?
Contemporânea de nossa prosa realista, a poesia simbolista também
forneceu terreno ao cômico pela voz de seu maior representante, Cruz e Souza,
que escreveu seus Poemas humorísticos e irônicos. Já no pré-modernismo, um
novo modo de lidar com o cômico, ao conjugá-lo ao trágico,4 parece inaugurar a
dissolução dos gêneros que se verificará na produção modernista.
Nosso modernismo da primeira geração é outro marco histórico no que
tange à utilização do cômico, já que é incorporado não como gênero literário,
mas enquanto processos de representação: os “poemas-piada” de Oswald de
Andrade ou, ainda, sua leitura em chave de paródia de nossa literatura colonial;
as construções neológicas de Mário de Andrade da Paulicéia desvairada
(“Burguês-náusea”, “burguês-níquel”); igualmente, sua saída cômica para a
representação do caráter nacional em Macunaíma; a ridicularização dos
parnasianos no antológico poema “Os sapos” de Bandeira,5 para ficarmos nos
textos já consagrados.
De um modo geral, nesse modernismo, o cômico parece se emancipar:
deixa de cumprir aquela função social descrita por Bergson de corrigir os
desvios comportamentais, para assumir aquela função já preconizada por
Schopenhauer, ao considerar o cômico um “excedente de pensamento”, de

4
Como ilustra o trabalho de Cintia S. Pimentel, “A representação tragicômica na obra Recordações do
escrivão Isaias Caminha”, também editado nestes Anais (p. 210)
5
Mais conhecido por sua face trágica, a extensa presença do cômico na obra de Manuel Bandeira é
discutida por Alberon Machado Menezes (ver adiante, p. 222).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

alargar os horizontes do pensamento sério; abrir espaço para as possibilidades


excluídas pela razão, atuando a favor do desrecalque.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. 2. ed. Rio de Janeiro:


Zahar, 2002.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Ed.
Guanabara, 1987.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3ª. ed. São Paulo: Cultrix,
1985.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1964.
[2 vols.]
COUTINHO, Afrânio (org.). A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: editorial Sul-
Americano, 1959. [3 vols.]
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro:
Imago, 1977.
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
MINOIS, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo: Ed. Unesp, 2003.
PROPP, V. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
RODRIGUES-MOURA, E. “Manuel Botelho de Oliveira em Coimbra”,
Navegações, v.2, n.1, p.31-8, jan/jun 2009.
SCHOPENHAUER, The World as Will and Representation. www. Archive.org.
Acesso em 09/06/07.

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O CÔMICO MORALIZANTE EM “O JUIZ DE PAZ DA ROÇA” DE


MARTINS PENA

Ana Paula Rocha V. Pereira∗

Resumo: Escritor do século XIX, Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) insere-se no cânone
literário brasileiro como um dos principais representantes do Teatro Romântico, sendo
considerado o fundador da comédia de costumes. Em suas peças percebe-se um olhar atento
sobre as contradições de sua época, sobre os vícios e as virtudes dos homens de seu tempo que
são retratados de forma deformantes através da acentuação de aspectos bons, pitorescos e
engraçados ou de atitudes reprováveis, negativas a serem refutadas por meio da
ridicularização. No trabalho que será apresentado refletiremos, então, sobre o gênero cômico
em uma das obras de Martins Pena, “O Juiz de Paz da Roça” (1833), a partir dos estudos
teóricos do filósofo francês Henri Bergson.
Palavras-chave: Martins Pena, gênero cômico, Bergson.

A investigação a respeito do riso é desenvolvida por muitos teóricos a


partir daquilo que provoca tal ato, isto é, a partir da produção do cômico,
produção esta que se manifesta nas mais diversas expressões artísticas. Neste
trabalho, direcionaremos nossos estudos para a análise do gênero cômico
presente na obra teatral “O Juiz de Paz da Roça” (1833), do comediógrafo
brasileiro Luís Carlos Martins Pena fundamentando tal análise nas teorias
desenvolvidas por Bergson (2007) a respeito do cômico. Vale ressaltar que este
trabalho, “O cômico moralizante em O Juiz de Paz da Roça”, resulta dos estudos
que vem sendo realizados no projeto de iniciação científica “O Cômico na
literatura brasileira” orientado pela professora Drª. Jacqueline Ramos. Dentro
desse projeto pesquisamos, investigamos, levantamos dados sobre os autores e
obras cômicas do período Romântico. Em nossa pesquisa identificamos que
quatorze escritores do período produziram obras cômicas, autores como:


Graduanda do curso de letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS), bolsista CNPq do Programa de
Iniciação Científica.

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Gonçalves Dias, Gonçalves de Magalhães, Araujo Porto Alegre, Bernardo


Guimarães, com seus poemas erótico-cômicos como o “elixir do Pajé”,
Machado de Assis, Martins Pena, dentre outros. Dado significativo da pesquisa
é que grande parte das obras cômicas produzidas no período romântico são
peças de teatro. Só Martins Pena, que conta com vinte e oito produções teatrais,
produziu vinte e duas peças cômicas, fato que, aliado a importância desse autor
no que concerne a implementação do teatro nacional, nos motivou a selecionar
três peças suas para analisarmos a função e os procedimentos cômicos
nelas presentes.
Assim, as obras selecionadas para uma análise mais profunda do aspecto
cômico foram “O Juiz de Paz da Roça” de 1833, “O Judas em Sábado de
Aleluia” de 1844 e “O Noviço” de 1845. Na analise dessas peças percebemos
que elas apresentam um cunho moralizante, aspecto que vai ao encontro dos
estudos realizados pelo filosofo francês Henri Bergson.
Bergson (1859-1941), em O riso: ensaio sobre a significação da comicidade
(2007), reúne três artigos que expõem minuciosamente os mecanismos de
produção da comicidade, mecanismos estes que servem ao aperfeiçoamento do
homem como ser social devidamente integrado a seu meio. Para este autor, o
riso tem uma significação social que cumpre o papel conservador de corrigir as
falhas de caráter dos indivíduos que estejam prejudicando o equilíbrio da
sociedade. Desse modo, a teoria de Bergson sobre o riso apóia-se na máxima
latina: Ridendo castigat mores (rindo corrigem-se os costumes).
Em O Riso, Bergson enfatiza que o cômico é um fenômeno
exclusivamente humano e que se dirige à inteligência pura. Essa teoria
intelectualista pressupõe que um aspecto fundamental do efeito cômico reside
no fato de que as emoções são um obstáculo à produção da comicidade. Dessa
forma, o riso só é possível a partir de “uma anestesia momentânea do coração”
(1987: 4). A partir dessa observação e da função social que o riso apresenta
Bergson, desenvolvendo e demonstrando suas idéias, esboça os procedimentos
de obtenção do cômico, procedimentos estes que têm como princípio essencial a
interferência do mecânico no vivo. Bergson então categoriza os tipos de cômico

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da seguinte maneira: cômico das formas, cômico dos movimentos, cômico de situação,
cômico de palavras e cômico de caráter.
O cômico das formas consiste em um mecanismo de obtenção do riso a
partir da rigidez fisionômica, isto é, a partir da idéia que se tem de algo preso a
uma forma. Nesse sentido, toda a vida moral de um indivíduo parece restringir-
se a certa imobilidade de caracteres do corpo. Assim é que a caricatura, a
exageração de traços distintivos das pessoas, representa um efeito cômico. O
automatismo, a rigidez, um hábito contraído e mantido torna uma fisionomia
engraçada. Mas esse efeito cômico, segundo Bergson, “ganha intensidade
quando podemos vincular tais características a uma causa profunda, a certa
distração fundamental da pessoa, como se a alma se tivesse deixado fascinar,
hipnotizar, pela materialidade de uma ação simples” (1987: 19). Essa distração
do sujeito para consigo produz uma imagem de alguém absorvido na
materialidade de uma ocupação mecânica, como algo sempre igual, imutável,
que não se renova diante da vida. E o riso funciona como um castigo para essa
imobilidade, pois o que se pretende é que as pessoas estejam em constante
vigilância para com as suas condutas, evitando a ridicularização e o
enrijecimento para a vida social.
No cômico dos movimentos o risível é extraído das atitudes, dos gestos, dos
movimentos reproduzidos de forma repetitiva, como uma simples mecânica. A
esse tipo de cômico associa-se um artifício comum da comédia, o qüiproquó. Já
no cômico de situação evidencia-se a repetição insistente de determinados
acontecimentos; a inversão dos papéis de certos personagens motivada por uma
dada situação ou, ainda, a interferência das séries em que uma situação torna-se
cômica quando pertence simultaneamente a dois acontecimentos independentes
entre si levando-se a diferentes interpretações, isto é, uma mesma situação
apresenta ao mesmo tempo dois sentidos diferentes, um que seria o sentido real
e o outro que seria ocasionado pelo mal-entendido.
Quanto à linguagem, Bergson enfatiza que a maioria dos efeitos cômicos
são produzidos por meio dessa particularidade da espécie humana. Em
essência, o cômico de palavras é obtido a partir dos processos de inversão –

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

verificado com freqüência nos chistes, em que se joga com o sentido da frase a
partir da inversão de certa idéia, como no exemplo: “por que o senhor joga a
sujeira do seu cachimbo no meu terraço? (...) Por que o senhor põe o seu terraço
debaixo do meu cachimbo?” (BERGSON, 1987: 89) –; de interferência, cujo um dos
meios é o trocadilho, e de transposição inseridos à linguagem. A transposição
apresenta caráter mais profundo que os outros dois processos. Ela é obtida,
segundo Bergson, transpondo-se “para outro tom a expressão natural de uma
idéia” (1987: 92).
O último mecanismo apresentado por Henri Bergson é a comicidade de
caráter considerada pelo autor como a parte mais importante de suas análises. A
essência desse procedimento cômico está na não integração da personagem à
sociedade, no seu desvio comportamental, na sua inflexibilidade diante da vida
cabendo à comédia papel fundamental no reajuste social dos indivíduos. Para
Bergson, o riso não é um prazer desinteressado. A ele subjaz a intenção de
humilhar, de corrigir comportamentos desviados. O riso, assim, tem uma
função moralizadora que age sobre os comportamentos viciosos da sociedade.
Logo, para este teórico, o riso funciona como um mecanismo de
repressão que cumpre a tarefa de reajustar os indivíduos à sociedade. O cômico,
então, é definido como uma manifestação negativa que o riso tem por tarefa
corrigir e essa função coercitiva atribuída ao riso será perquirida, neste trabalho,
a partir da análise da primeira peça do teatrólogo Martins Pena, O Juiz de Paz da
Roça.
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) insere-se no cânone literário
brasileiro como um dos principais representantes do Teatro Romântico. Ao lado
de nomes como João Caetano – grande ator dramático e empresário teatral – e
Gonçalves de Magalhães, Martins Pena esforça-se, segundo Afrânio Coutinho,
“pela criação de fato do teatro brasileiro” (2004: 59) a partir da elaboração de
novos textos caracterizados por temas locais, uma vez que as peças teatrais
criadas nesse período no Brasil calcavam-se em traduções ou adaptações de
composições estrangeiras.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

No que concerne ao desenvolvimento do teatro no Brasil, vale ressaltar


que esse gênero nasceu, de acordo com Décio de Almeida Prado, “à sombra da
religião católica” (1999: 19), com o empenho dos jesuítas, no século XVI, em
catequizar os índios. O teatro nesse período tinha, portanto, um caráter
pedagógico sendo o padre José de Anchieta o nome de maior destaque dessa
época. No século XVII verifica-se o declínio do teatro empreendido pelos
jesuítas e sua realização passa a depender de ocasiões festivas – religiosas ou
cívicas – para serem realizadas. Mas, no século seguinte, a situação do teatro
começa a melhorar. Em 1705 são impressos os primeiros textos teatrais – duas
peças redigidas em espanhol por Manuel Botelho de Oliveira –, e na segunda
metade do século dezoito as peças de teatro passam a ser representadas com
maior freqüência. A Ópera italiana surge como novo gênero, novidade que
vinha de Portugal. Entre 1760 e 1795 na Bahia, no Rio de Janeiro, em Recife, São
Paulo e Porto Alegre são construídos teatros que serão conhecidos como Casa
da Ópera. Com a vinda da família real para o Brasil, no início do século
dezenove, a cultura do teatro se fortalece. Surgem companhias teatrais, sendo a
primeira, realmente brasileira, dirigida por João Caetano que “levou aos palcos
a primeira tragédia e a primeira comédia nacional: Antonio José ou o Poeta e a
Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, e O Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena”
(PRADO, 1999: 40). Integradas ao Romantismo, as comédias de costumes de
Martins Pena eram bem recebidas pelo público, fato que contribui para a
consolidação do teatro.
O Romantismo, que cronologicamente inicia-se em 1836, é marcado pela
liberdade criadora e individual do artista. Ligado ao movimento político da
época, a Independência do Brasil, esse gênero literário se revestiu de
características próprias numa necessidade de construir uma literatura
plenamente nacional, uma literatura que expressasse os anseios de liberdade e
identidade da nova nação. Esse período, segundo Roncari, representa “o
período mais importante de tomada de consciência da nossa particularidade, ou
seja, de que não podíamos mais continuar considerando-nos europeus ou
portugueses, tal qual faziam os colonos no tempo do domínio português” (1995:

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

278). Nessa perspectiva, as comédias de Martins Pena inserem-se no desejo de


renovação dos temas reproduzidos nos palcos.
Assim, o empenho de Pena em renovar o teatro brasileiro vai além da
mera reprodução de uma imagem nacional com contornos ufanistas que se
vinha desenvolvendo na literatura. De acordo com Bosi, os assuntos tratados
por Pena em suas peças “nos dá um quadro mais vivo e corrente do que todos
os romances de Macedo” (1994: 149), autor ficcional romântico de “A
Moreninha” (1844). O que Bosi nos diz é que as obras de Martins Pena são
marcadas por uma realidade objetiva embasada em fatos sociais vigentes sem
os exageros das idealizações românticas da época. E essa realidade objetiva será
apresentada por Martins Pena pelo viés da comicidade. De acordo com Décio
de Almeida Prado, o teatro de Pena “revela um pendor quase jornalístico pelos
fatos do dia, assinalando em chave cômica o que ia sucedendo de novo na
atividade brasileira cotidiana” (1999: 57).
Destarte, por meio do cômico, Martins Pena expõe aspectos da realidade
carioca e suas peças adquirem uma perspectiva crítica e generalizante levando à
reflexão certas condutas humanas. Em Pena, o riso, na medida em que mostra
as falhas comportamentais e as ridiculariza, não só desvela um caráter negativo
como também cobra a reabilitação desse caráter corrompido, ou seja, o reajuste
do indivíduo à sociedade. Observemos como isso se dá na peça “O Juiz de Paz
da Roça”.
“O Juiz de Paz da Roça” é uma comédia em um ato cujo enredo é
construído a partir de um dos mecanismos mais simples utilizados no teatro, o
qüiproquó, situação cômica proveniente de equívocos, confusões. Dividindo-se
essa peça em dois núcleos, temos o núcleo integrado pela família de Manuel
João e o núcleo composto, principalmente, pelo Juiz de Paz e, a interrelação
desses dois centros, produzirá um expediente típico da dramaturgia popular, a
surpresa, provocado por uma conjuntura de acontecimentos desencontrados,
ou seja, os qüiproquós. E é através desse caminho, do qüiproquó à surpresa,
que o enredo dessa peça se estruturará.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Vejamos como isso acontece analisando o enredo da peça: José da


Fonseca, noivo de Aninha, vai à roça fugido da convocação militar, ele não
queria exercer suas funções de cidadão na Revolução Farroupilha.
Coincidentemente é Manuel João, pai de Aninha, o encarregado, pelo Juiz de
Paz, de conduzir o recruta ao serviço militar. Manuel João não sabia do namoro
da filha, mas, devido a coincidência ocorrida logo tomara conhecimento do fato.
Na trajetória desse enredo, Martins Pena abordará com humor, e de forma
simples, as peculiaridades da gente da roça e os desmandos de um Juiz de Paz.
E, por meio da representação da linguagem cotidiana dos indivíduos
representados na peça, do comportamento dos personagens, seus modos de
sentir e agir, Pena revelará certos aspectos da realidade da sociedade de meados
do século XIX, problematizando assuntos reais vigentes como a aplicação da
justiça nas províncias remotas do Segundo Império por meio dos abusos de
autoridade; a escravidão; o recrutamento obrigatório para atuar na Revolução
Farroupilha; o casamento arranjado; a idealização da capital que pretendia se
equiparar à Europa, enfim, toda uma série de aspectos sociais sérios abordados
pelo viés da comicidade.
Em suma “O Juiz de Paz da Roça” é uma peça cômica cujas cenas giram
em torno de uma família interiorana – a família de Manuel João – e seu universo
de valores e, do cotidiano da figura do Juiz de Paz, pelo qual poderemos
verificar o rebaixamento que se quer imprimir a este homem, pois o “nobre”
papel do juiz é reduzido à resolução de picuinhas cotidianas e esdrúxulos
protestos que lhes são apresentados pelos sitiantes.
Para a obtenção do efeito cômico desejado, Martins Pena utiliza-se de
recursos que são abordados por Bergson em seu estudo sobre a comicidade. Um
desses recursos é a comicidade de palavras, um procedimento cômico que
proporciona boas gargalhadas a partir do jogo ambíguo de alguns vocábulos,
como podemos verificar na cena XI em que um sitiante apresenta sua demanda
ao juiz argumentando da seguinte forma:

Ora, acontecendo ter a égua de minha mulher um filho, o meu


vizinho José da Silva diz que é dele, só porque o dito filho da égua

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

de minha mulher saiu malhado como o seu cavalo. Ora, como os


filhos pertencem às mães, e a prova disto é que a minha escrava
Maria tem um filho que é meu, peço a vossa senhoria mande o dito
meu vizinho entregar-me o filho da égua que é de minha mulher
(PENA, 2010: 12).

Além do trocadilho, jogo de palavras apoiado no duplo sentido, outro


mecanismo de obtenção do riso presente em “O Juiz de Paz da Roça” é a
comicidade das formas, que em essência resulta da imobilidade fisionômica. O
riso, então, é obtido a partir da idéia que se tem de algo rígido, congelado, preso
a uma forma, como o rosto do palhaço preso a traços inconfundíveis que o
caricaturizam. Assim, a caricatura participa desse tipo de comicidade que
resulta da reprodução deformada de algo ou da acentuação de aspectos típicos
de determinada pessoa ou coisa. E, os tipos humanos criados por Martins Pena
são geralmente caricaturizados, são personagens que na sua particularidade
representam um tipo generalizado. Na peça teatral em questão, podemos
verificar tais personagens. O personagem Manuel João representa o típico
homem da roça e é facilmente identificado como esse tipo, na cena IV, a partir
da descrição acentuada de suas vestimentas – “com uma enxada no ombro,
vestido de calça de ganga azul, com uma das pernas arregaçadas, japona de
baeta azul e descalço”.
Outro traço marcante que representa certa caricaturização é a não
identificação do Juiz de Paz por um nome próprio, como se a partir dessa
supressão o autor enfocasse o desvio de comportamento dos juízes, e não de um
juiz especificamente, que atuam de forma arbitrária. Essa idéia é reforçada com
a rubrica que detalha os trajes do Juiz de Paz – “Entra o Juiz de Paz vestido de
calça branca, rodaque de riscado, chinelas verdes e sem gravata”. Aqui parece
que, descrevendo-se os trajes, procura-se colocar em relevo a moral. Assim,
podemos dizer que tal descrição revela a caricaturização do magistrado que faz
pouco caso da sua profissão – essa asserção será corroborada com o transcorrer
da peça em que o juiz revelará suas atitudes ilícitas – e conseqüentemente dos
requerentes que necessitam da sua intervenção jurídica. O juiz, então, parece
preencher uma moldura pronta, desvelando um caráter contrastivo entre a

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

forma que se apresenta e o comportamento que deveria apresentar. Quanto a


isso, Bergson nos diz que “é cômico todo incidente que chame nossa atenção
para o físico de uma pessoa quando o que está em questão é o moral” (2007: 38).
Na rubrica acima não temos uma descrição do físico, porém, em se tratando de
um Juiz de Paz percebemos que as vestimentas estão intrinsecamente
associadas à moral de um representante de uma instituição pública, donde
pressupõe, como já foi dito, a intenção do autor da peça em revelar o descaso do
Juiz para com a sua profissão. Não temos então um ridículo do físico, mas um
ridículo do traje atrelado ao caráter profissional.
No decorrer do enredo a imagem intolerante e corrupta do Juiz será
corroborada, como na cena em que um requerente questiona a postura do juiz
dizendo assim: “Vossa senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não
manda. E o juiz retruca: “A Constituição!... Está bem!... Eu, o juiz de Paz, hei por
bem derrogar a Constituição! Senhor Escrivão, tome termo que a Constituição
está derrogada, e mande-me prender este homem”. Em outra cena temos o juiz
com três galinhas nas mãos dizendo ao escrivão que ao menos com a visita de
dona Josefa Joaquina, uma de suas requerentes, lucrou donde verificamos certa
postura corrupta do juiz que aceita presentinhos de seus requerentes, o que
provavelmente deve influenciá-lo em suas decisões judiciais. E assim, por meio
da caricaturização e da acentuação de atitudes ilícitas, Martins Pena lança uma
crítica a esse desvio comportamental, moralmente inadmissível, para a
construção de uma sociedade justa, sendo sua ridicularização, como diria
Bergson, o meio pelo qual se pode castigar tal desvio.
Esses desvios comportamentais, que o filósofo francês Henri Bergson
coloca como vícios, representam um automatismo fácil dos hábitos adquiridos
levando o corpo, o espírito e o caráter a uma rigidez social, rigidez que
direciona os indivíduos a atuarem de forma mecanizada, como coisas fadadas a
executarem funções, ações sempre repetidas estagnando, assim, o
aperfeiçoamento dos indivíduos e, conseqüentemente, da sociedade. Mas,
através do riso, que tem como função desvelar os vícios para corrigi-los, os
indivíduos colocam-se vigilantes quanto a sua postura na vida e na sociedade,

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

postura que deve sempre estar voltada para uma tensão e uma elasticidade
constantes, premissa que também é colocada em relevo por Bergson na sua
análise da comicidade dos movimentos.
Na comicidade dos movimentos, o risível é extraído dos movimentos
mecânicos com caráter repetitivo a partir de artifícios usuais da comédia como
“a repetição periódica de uma palavra ou de uma cena, a inversão simétrica dos
papéis, o desenvolvimento geométrico dos qüiproquós” (2007: 26-7). Em “O
Juiz de Paz da Roça” nas cenas mais cômicas, as quais giram em torno do
personagem que dá nome ao título da peça, podemos observar o artifício da
repetição de cena. A partir da cena IX, dá-se início a uma seqüência de
movimentos que parecem repetitivos. Em casa do Juiz de Paz pessoas entram e
saem com o intuito de resolverem seus problemas. Na cena, XI Martins Pena
também explora esse mecanismo fonte fácil de riso – Senhor Tomás e senhor
Sampaio, em audiência com o Juiz, disputando a guarda de um leitão agarram
ambos no animal puxando-o cada um para o seu lado em movimentos
mecânicos de vai-e-vem remetendo-nos à imagem de um boneco de mola que
se distende e se contrai em repetições contínuas como uma coisa mecanizada,
mecanização que, representando um desvio de comportamento, – que cena
mais ridícula a disputa por um porco na peça em questão – deve ser combatida.
Todos esses mecanismos utilizados por Martins Pena dão o tom da
comédia a sua primeira peça teatral. Contudo, esses procedimentos atrelados a
outro tipo de comicidade, a comicidade de caráter, veicula uma comédia satírica
na qual se explicita certos desvios comportamentais a que Pena quer chamar a
atenção. Em “O Juiz de Paz da Roça” nos é apresentado um Juiz mal trajado, e
que não entende certos vocábulos – “circunlóquios... Que nome em breve! O
que quererá ele dizer?” (cena IX) –, um Juiz completamente despreparado para
o exercício de sua profissão, pois nem se quer sabe despachar – “Quero-me
aconselhar-me com um letrado para saber como hei de despachar alguns
requerimentos que cá tenho” (cena XXI). Também podemos depreender dessa
peça uma crítica às superficialidades orientadas para o universo europeu a que
a população brasileira se sujeitava, inclusive Aninha, menina do interior, que

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

pede ao pai sapatos franceses, revelando a abrangência da influência européia


na vida da sociedade do século XIX. Na cena V, Manuel João e sua esposa
cogitam em providenciar o casamento da filha, fazendo-se menção ao
casamento arranjado, ao casamento como negócio. Na cena II, a partir da
rubrica que descreve os trajes de José, namorado de Aninha, “com calça e
jaqueta branca”, e do rumo que tal personagem dá ao dinheiro da venda do
bananal herdado do pai – gastou todo o dinheiro na corte –, depreende-se a
imagem do bon vivant. A composição desses personagens e os mecanismos
cômicos utilizados por Pena atribuem a sua obra uma função social – restaurar
a moralidade da sociedade carioca. Assim, o que se pretende é que um Juiz, no
uso de suas atribuições, não atue de forma arbitrária; que se combata o apego às
ostentações das superficialidades do universo europeu; que o casamento não
seja uma transação comercial; que o cidadão seja um indivíduo honesto e
trabalhador. Enfim, que se cultivem a ética, a moral, os bons costumes da
sociedade.
E é dessa forma que, desvelando-se os comportamentos desviados, o
cômico, presente em “O Juiz de Paz da Roça”, vai ao encontro dos pressupostos
teóricos de Bergson, autor, segundo o qual, a função do riso é corrigir desvios
de condutas, é anular a rigidez diante da vida cabendo, pois, à comédia, papel
fundamental no reajuste social dos indivíduos. Portanto, explorando os vícios e
as irregularidades comportamentais do ser humano, Martins Pena atribui à
peça aqui analisada uma dimensão social que visa, por meio do cômico, a
correção dos costumes.
Assim, a partir da análise da obra “O Juiz de Paz da Roça”, pudemos
constatar que os aspectos sociais nelas presentes são retratados de uma forma
crítica, como se Martins Pena propusesse a reestruturação de uma sociedade
corrompida, o que atribui a essa peça um cunho moralista, uma função
coercitiva aplicada aos comportamentos humanos que prejudicam a
manutenção de uma sociedade equilibrada e essa moralização social, que
Martins Pena procura resgatar por meio de suas obras cômicas, se encaixa na

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idéia central do teórico Henri Bergson a respeito do cômico: corrigir os desvios


sociais.

Referências Bibliográficas:
BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução Ivone
Castilho Benedetti. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção Tópicos).
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 42ª. Ed. São Paulo: Cultrix,
1994.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil: Era Romântica. 7ª. Ed. São Paulo:
Global, 2004.
PENA, Martins. O Juiz de Paz da Roça. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/dowload/texto/bn000103.pdf>. Acesso
em: 27 de julho de 2010, 08:24:59.
PENA, Martins. O Judas em Sábado de Aleluia. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/dowload/texto/bn000142.pdf>. Acesso
em: 27 de julho de 2010, 08:45:02.
PENA, Martins. O Noviço. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/dowload/texto/bn000032.pdf>. Acesso
em: 27 de julho de 2010, 08:44:46.
PRADO, Décio de Almeida. História Concisa do Teatro Brasileiro. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: dos Primeiros Cronistas aos Últimos
Românticos. 2. ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

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A representação tragicômica na obra Recordações do


escrivão Isaías Caminha

Cíntia Santana Pimentel (Graduanda/UFS)∗

Resumo: O presente trabalho teve como finalidade estudar os modos e as formas do cômico
na obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, na qual se buscou identificar a
função e os procedimentos cômicos utilizados pelo escritor. Durante a análise foi averiguado
que Lima Barreto utiliza o cômico a serviço do trágico a partir dos elementos básicos da teoria
da comicidade, defendidos pelos teóricos Bergson (2007), Freud (1977) e Jolles (1976). Para
exemplificar tal afirmação foi escolhido para ser apresentado neste trabalho o personagem
Frederico Lourenço do Couto, o Floc, crítico literário da obra.
Palavras-chave: Pré-modernismo, Cômico, Crítico literário, Lima Barreto

1. Introdução
O objetivo do trabalho aqui apresentado era estudar os modos e as
formas do cômico no período pré-modernista da Literatura Brasileira. Para
tanto, foi realizado um levantamento do corpus de autores canonizados e suas
respectivas obras, com o intuito de identificar aquelas que se enquadram no
gênero cômico. Esse levantamento preliminar buscou suas informações nas já
consagradas historiografias da literatura brasileira, principalmente, a partir dos
críticos literários Afrânio Coutinho (2004) e Alfredo Bosi (2006). De um modo
geral, esse levantamento permitiu observar que as obras cômicas desse período
tendem para o gênero tragicômico e neste gênero se destacam, principalmente,
os escritores Lima Barreto e Monteiro Lobato, com ênfase principal para as


Graduanda do curso de Letras-Português. Atuou no Projeto de Iniciação Científica (PICVol/UFS 2009,
desenvolveu o plano “A representação nacional tragicômica na literatura do Pré-modernismo”, que faz
parte do Projeto “O Cômico na Literatura Brasileira” da Profª Drª Jacqueline Ramos.

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obras Triste Fim de Policarpo Quaresma, Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Os


Bruzundangas, de Lima Barreto; e Urupês, Cidades Mortas e O Presidente Negro, de
Monteiro Lobato. Definiu-se, a partir desse levantamento, o corpus deste plano
de trabalho: a obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha, por esta ser uma obra
representativa da época e por fornecer subsídios para tal análise, cujo propósito
foi identificar a função e os procedimentos cômicos utilizados pelo escritor. A
revisão teórica trouxe subsídios para a análise dos procedimentos cômicos
presentes no corpus selecionado. E para ser apresentado neste trabalho foi
selecionado o personagem Frederico Lourenço do Couto, Floc, o crítico literário
da obra.
O Pré-modernismo é um período que vai do início do século XX à
Semana de Arte Moderna. Segundo Bosi, os gêneros literários desse período
indicam o prosseguimento e a estilização dos já cultivados pelos escritores
realistas, naturalistas e parnasianos. E acrescenta ainda que “ao elemento
conservador importa acrescentar o renovador” (BOSI, 1966: 12), uma vez que os
escritores do período dão ao mesmo elemento um sentido forte de precedência
temática e formal em relação à literatura modernista. O crítico observa ainda
que os pré-modernistas debruçaram-se sobre os problemas sociais e morais do
país, refletindo situações históricas novas sob o ponto de vista do conteúdo e da
problemática externa ainda dentro do plano da consciência social e política.

2. Revisão da literatura
Para proceder a análise da comicidade na obra selecionada foram
desenvolvidos estudos do gênero cômico a partir da leitura dos textos de Henri
Bergson (2007), que defende a tese de que a função do cômico é reprimir;
Sigmund Freud (1977), que afirma ser a desrepressão a função do cômico; e
André Jolles (1976) que assegura ser o cômico a disposição mental de
dissolução, seja da linguagem, da ética, da lógica e das próprias formas.
No livro intitulado O Riso: ensaio sobre a significação da comicidade, Bergson
(2007) revela as implicações da comicidade, os procedimentos de fabricação do
risível e qual a intenção da sociedade quando ri. Segundo o teórico, o riso é um

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

efeito cômico provocado por certa rigidez com uma significação social, em que
a rigidez é a comicidade e o riso é seu castigo. Nesse sentido é possível inferir
que o cômico é conservador, uma vez que ele diz que o riso tem a função de
coerção social. Assim, é possível afirmar que a teoria de Bergson está de acordo
com a ideologia cristã, uma vez que ambos visam o cômico como algo
repressor.
Para explicar as questões da comicidade, Bergson parte da premissa de
que o cômico seria o mecânico sobreposto ao vivo. Segundo ele, essa
mecanização é uma espécie de vício que pode ser encontrado nas situações, nas
palavras, nas atitudes e no caráter com certa rigidez para que assim se possa
obter o riso, que é provocado quando o automatismo é percebido.
O riso está associado tanto ao prazer quanto à prática de poder, o que
não deixa de ser uma forma de obter o controle do outro. O prazer e o controle
se misturam com a intenção inconfessa de humilhar. Por isso Bergson diz que a
personagem cômica é uma personagem desviada, que não está em dia com a
sociedade e o riso terá a função de corrigir o seu desvio e enquadrá-la à
sociedade. Dessa maneira, a comicidade é relativa aos costumes, às idéias e aos
preconceitos de uma sociedade e o riso serve para reprimir certo desvio especial
dos homens e dos acontecimentos, com o objetivo de sempre obter a mais alta
sociabilidade possível.
Bergson relata ainda que as condições essenciais para fazer rir são a
insociabilidade da personagem, insensibilidade do espectador e o automatismo.
Diz também que só é essencialmente risível aquilo que é automaticamente
realizado e que a comicidade de caráter é feita de rigidez, automatismo, desvio
e insociabilidade. Em relação aos personagens, ele diz ainda que os
personagens cômicos são tipos. De acordo com Angélica Soares (2002), os
personagens denominados tipos são aqueles caracterizados por um traço básico
e que não mudam o comportamento durante a narrativa. Eles recebem o nome
de personagens planas ou desenhadas porque tendem a caricatura
Dessa forma, pode-se concluir que o filósofo define o cômico como o
mecânico sobreposto ao vivo, cuja função é a correção social e que os

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procedimentos cômicos podem aparecer nos gestos, nas ações, nas palavras, nas
situações, nas formas, nos movimentos e no caráter. Assim, é possível inferir
que o riso gostaria de corrigir o estereótipo, o mecânico, o desvio e o
automatismo. Também é bom ressaltar que, para ele, é a própria sociedade que
busca através do cômico a manutenção dos valores sociais.
Já Freud (1977) apresenta uma visão diversa de Bergson e na obra, Os
chistes e sua relação com o inconsciente, aborda os chistes, com o intuito de
descobrir algo mais sobre a formação do inconsciente. Freud aborda os chistes,
seu mecanismo e suas funções sempre os associando aos sonhos e ao
inconsciente.
Freud, assim como Bergson, também relaciona o chiste à prática de
poder, uma vez que, para ele, um chiste nos permite explorar algo ridículo em
um inimigo e observa que torná-lo cômico é uma maneira de obter o prazer de
vencê-lo, ou seja, é a idéia de rebaixamento.
Apesar de revelar na obra que a impressão deixada pela literatura é que é
impraticável tratar os chistes, a não ser em conexão com o cômico, Freud ainda
continuou na tentativa de diferenciar os chistes do cômico. Ele relaciona os
chistes com as espécies do cômico e afirma que, socialmente, eles se comportam
diferentemente. Para ele, o chiste se faz. Enquanto que o cômico se constata nos
movimentos, nas formas, nas atitudes e nos traços de caráter das pessoas. E
ressalta ainda que no cômico a terceira pessoa nada acrescenta, apenas
intensifica o prazer. Já no caso dos chistes, a terceira pessoa é essencial para
completar o processo de produção do prazer. Freud afirma que o disfarce, o
desmascaramento, a caricatura são métodos que servem para colocar a pessoa
em uma situação cômica. Na relação entre os chistes e o cômico Freud afirma
que a principal diferença entre eles está na fonte do prazer, a qual ele afirma
que o prazer do chiste está no inconsciente, enquanto que as análises indicam
que o prazer cômico está no pré-consciente.
Freud ressalta que o que causa o efeito do cômico não é o conteúdo, e sim
o modo como algo é dito. Mas ele também revela que o cômico está na cultura.
Para ele, os mecanismos dos chistes, que coincidem com os mecanismos dos

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

sonhos descritos em A interpretação dos sonhos, servem para acessar o


inconsciente. O cômico dá acesso a conteúdos reprimidos, tendo, assim, a
função de libertá-los. Ainda dentro da função do cômico, para Freud, os chistes
têm a função de desreprimir conteúdos inconscientes, enquanto que o cômico
desreprime conteúdos independentemente de serem inconscientes.
O terceiro e último teórico estudado foi André Jolles, que no capítulo, Os
chistes, do livro Formas simples, ressalta que o cômico é a disposição mental que
gera o chiste e que uma das funções do chiste é desenlaçar algo que seja
repreensível. Mas ele ressalta que o chiste não sabe desenlaçar tudo que é
repreensível. E afirma ainda que no desenlace cômico a insuficiência é uma
condição necessária para desfazer, pelo cômico, algo repreensível.
Jolles também caracteriza a zombaria como uma forma de chiste e a
distingue entre duas formas: a sátira e a ironia. A primeira é uma zombaria
apontada para o objeto que repreende e o zombador não se identifica com o
zombado, pois quem satiriza se sente superior e inferioriza o zombado. Já na
ironia, o zombador se identifica e há certa solidariedade entre esse e o
zombado. Dessa forma, pode-se afirmar que a zombaria está ligada a um caso
particular e ao aspecto repressor. Porém, quando o chiste está ligado ao estado
geral trata-se de um gracejo. Neste, há a liberação da tensão provocada pelo
relaxamento.
Assim, observa-se que Jolles não coloca o chiste apenas como um
derivado de outras formas. E ressalta ainda que no chiste há uma dupla função,
como já citado acima: a de zombaria e a de gracejo, em que a primeira pode ser
associada a teoria de Henri Bergson, que caracteriza o cômico com a função de
reprimir. Já a segunda pode ser comparada a teoria de Freud, que define o
cômico como algo que tem a função de desreprimir.
Jolles observa ainda que a função geral do chiste é libertar o espírito pela
descarga de uma tensão e que em função da sua dupla função, já apontada
acima, não se trata de uma forma de repetição, e sim de uma forma que cria. Ele
ressalta ainda que os chistes partem do negativo para desfazer o que é

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

repreensível e no desenlace da tensão criam um universo positivo e próprio.


Esse universo é entendido na dualidade da zombaria e do gracejo.

3. Análise textual: resultados e discussões


Para que análise realizada seja melhor entendida apresentarei um breve
resumo da obra: Recordações do Escrivão Isaías Caminha é narrada em primeira
pessoa, seu protagonista é o próprio Isaías, rapaz pobre, mulato, interiorano,
que gostava de estudar e resolveu ir para o Rio de Janeiro em busca de realizar
o sonho de tornar-se doutor. Ele viajou para o Rio com pouco dinheiro e
levando uma carta de recomendação enviada pelo Coronel da cidade para o
Deputado Castro, na qual pedia que este conseguisse um emprego para Isaías,
mas o deputado não atendeu ao pedido do coronel. Como não conseguia
emprego e não conhecia ninguém quando chegou ao Rio, Caminha sofreu
preconceitos e muitas vezes foi humilhado. Acabou conhecendo várias pessoas
ligadas ao jornal através do personagem Gregoróvitch Rostóloff que era um
jornalista do Jornal O Globo, considerado um homem importante e, por isso, era
respeitado e foi quem arranjou o emprego de Isaías no jornal.
No primeiro momento de leitura, o enredo parece narrar uma situação
trágica, já que o protagonista Isaías Caminha narra a própria história, revelando
os problemas enfrentados ao tentar melhorar de vida no Rio de Janeiro. No
segundo momento do enredo, percebe-se que a caricatura cresce com a função
de denunciar e criticar os jornais, a política, os literários e o jogo de interesses.
Ele também ironiza e satiriza a sociedade em geral.
Assim, a obra se enquadra no gênero tragicômico, não só pela forte ironia
usada pelo escritor, mas também pela presença marcante de personagens
caricatos. O cômico presente na obra é ambivalente porque está a serviço do
trágico, já que Lima Barreto faz uso dele para amenizar a situação trágica vivida
pelo personagem Isaías. E por outro lado condena as atitudes, no sentido
proposto por Bergon, através da caricatura.
As críticas são acentuadas quando ele descreve o mundo do Jornal e ao
criticar os jornais, ele buscava despertar reflexões no leitor sobre o papel do

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

jornal, da imprensa, dos jornalistas e dos críticos literários da época. Para tanto,
ele fez uso de personagens caricatos. Para averiguar a função do cômico e seus
procedimentos na obra selecionada, foram escolhidos alguns personagens da
obra que eram funcionários do Jornal em que Isaías trabalhou, uma vez que é a
partir da descrição do local e dos personagens que percebemos o quanto ele
utiliza a caricatura.
Isaías revela o que pensa sobre os jornais quando diz que: “No jornal, o
diretor é uma espécie de senhor feudal a quem todos prestam vassalagem e
juramento de inteira dependência: são seus homens. As suas festas são festas do
feudo a quem todos têm a obrigação de se associar; os seus ódios são ódios de
suserano, que devem ser compartilhados por todos os vassalos, vilões ou não”
(LIMA BARRETO, 2009: 129).
Revela também que os jornais do Rio são “guiados pelas mesmas leis,
obedecendo quase sempre a um único critério, todos eles se parecem; e, lido
um, estão lidos todos” (LIMA BARRETO, 2009: 101).
Isso acontece porque é também na segunda parte da obra que aumenta o
seu conhecimento sobre o jornal e sobre as pessoas envolvidas nele, porque ele
passa a ser um funcionário do meio, o que o leva a diminuir o deslumbramento
e aumentar as suas críticas. É a partir de então que a narrativa vai revelando
mais críticas ao meio e que a caricatura fica mais acentuada, ganhando forças
através dos personagens diretamente ligados ao Jornal, como o crítico literário,
Floc, personagem escolhido para ser apresentado neste trabalho.
Frederico Lourenço do Couto, Floc, era o crítico literário do jornal em
que Isaías trabalhava. A sua função era fazer “a crônica literária, as crônicas
teatrais dos espetáculos de todas as celebridades, as informações sobre
literatura e pintura, além do plantão semanal em que ajeitava frases lindamente
literárias” (LIMA BARRETO, 2009: 95).
Lima Barreto não economizou críticas ao descrever as atitudes de tal
personagem, que tinha como regras estéticas as suas relações com o autor, as
recomendações que recebia, os títulos universitários e a condição social. Através
desse personagem, Lima Barreto critica as atitudes dos críticos literários, como

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

Floc, na tentativa, de acordo com Bergson, de corrigir os costumes dos críticos,


isso porque quando ele mostra os desvios de comportamento, a falta de moral e
de princípios justos, ele busca não só criticar, como também tentar corrigir tais
falhas. Como podemos ver na passagem em que um jovem escritor deixa seu
livro na redação para ser avaliado por Floc e Isáias diz:

De antemão, sabia que Floc não se deteria na sua leitura. Os livros


nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são
recomendados ou apadrinhados convenientemente. Ao receber-se
um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e
da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases
vagas, muito bordadas, aqueles elogios em clichê que nada dizem
da obra e dos seus intuitos; se é de outro consagrado mas com
antipatias na redação, o clichê é outro, elogioso sempre mas não
afetuoso nem entusiástico (LIMA BARRETO, 2009: 136-7).

Essa passagem mostra como Floc não era imparcial em relação ao


material que recebia para realizar críticas, uma vez que utilizava métodos que
não justificavam as críticas realizadas. Tais métodos utilizados pelo crítico se
confirmam na seguinte passagem:

N’O Globo, as coisas corriam assim. O secretário recebia o volume e


dava-o a Floc. Quimera, romance, Abílio Gonçalves, lia Floc alto, e
logo perguntava:

- Quem é este Abílio Gonçalves?

- Não conheceste? É filho do senador Gonçalves, de São Paulo.

Floc olhava outra vez o livro e voltava:

- É formado?

- É, retorquia Leporace; é engenheiro de minas.

- Hum! Fazia Floc com segurança, mudando a primitiva antipatia


que se lia na contração dos lábios, para um breve sorrir de
benevolência. No dia consagrado, o folhetim aparecia cheio de
blandícias, de elogios, fosse o livro bom ou mau (LIMA BARRETO,
2009: 137-8).

O crítico literário construído por Lima Barreto apresenta vários


problemas não só em relação à conduta adotada, como também em relação ao
conhecimento intelectual para exercer tal função, isso é visto quando Isaías
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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

narra o momento em que Floc iria escrever sobre um livro que acabara de
receber e para o protagonista ele “não possuía talento especial de presteza de
pensamento e revela ainda que quase sempre as crônicas literárias, as fantasias
e as notícias de teatro eram trazidas escritas de casa.” (LIMA BARRETO, 2009,
p. 138). As críticas se asseveram quando Lima Barreto, através de Isaías, afirma
ainda que o crítico tinha consciência da sua falta de habilidade, como podemos
observar nessa passagem:

Floc unicamente, com certeza devido aos seus grandes desejos


literários e artísticos, sentia bem essa inferioridade e sofria com ela.
Não procurava corrigir-se, adquirir a plasticidade necessária; o
ofício não permitia e fora dele não tentava nada, com medo do
desastre e do insucesso, embora na tentativa muito pudesse
ganhar a sua vontade e o escritor que houvesse nele. Sofria... (LIMA
BARRETO, 2009: 139).

As dificuldades do crítico literário em escrever era tamanha que chegou a


cometer o suicídio no dia em que fora pressionado por outro funcionário do
jornal para entregar-lhe logo um artigo, como vamos ver no seguinte trecho:

O operário saiu. Floc esteve um instante com a cabeça entre as


mãos, parado, tragicamente silencioso; depois levantou-se
firmemente, dirigiu-se muito hirto e muito alto para um
compartimento próximo. Houve um estampido e o ruído de um
corpo que cai. Quando penetramos no quarto, eu, o paginador e
dois operários, ele ainda arquejava. Em breve morreu...
estupidamente indiferente aos destinos e às ambições (LIMA
BARRETO, 2009: 153-4).

Isaías não demonstra sentir piedade de Floc. A afirmação se confirma


com a descrição da seguinte passagem:

Quando se suicidou (oh! Como isto é triste recordar!), quando se


suicidou fui-lhe ver os livros (...) nenhum estudo de crítica
literária, mas dez de anedotas literárias (...) a sua crítica não
obedecia a nenhum sistema; não seguia escola alguma (LIMA
BARRETO, 2009: 103-4).

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

E mesmo quando Isaías disse sentir piedade do crítico percebe-se na


maneira como ele narra que não há piedade e que ele está ironizando a situação
vivida pelo crítico, que na verdade era uma farsa, uma vez que não possuía
conhecimentos suficientes para atuar no cargo, como podemos nos certificar no
seguinte trecho:

Vim a conhecê-lo melhor e a minha antipatia não diminuiu;


entretanto, hoje, ao recordar-me com que sombria energia pôs fim
ao seu desespero, ao ver diante dos meus olhos a imagem do seu
cadáver com aquela fraca cabecinha estourada por uma bala, tenho
uma grande e imensa pena e lastimo que a minha total ignorância
das coisas da Igreja não me permita rezar uma oração em favor de
sua alma (LIMA BARRETO, 2009: 91).

Por fim, Isaías revela, com muita ironia, que passou a ser respeitado
depois que foi promovido à repórter da redação, comprovando o privilégio
dado àqueles que fazem parte do jornalismo, como podemos verificar no trecho
que segue abaixo:

Nos meus primeiros meses de reportagem foi quando amei mais


ativamente a vida. Não porque me visse adulado pelos almirantes
e capitães-de-mar-e-guerra, mas porque senti bem a variedade
onímoda da existência, a fraqueza dos grandes, a instabilidade das
coisas e o seu fácil deslizar para os extremos mais opostos. Dois
meses antes era simples contínuo, limpava mesas, ia a recados de
todos; agora, poderosas autoridades queriam as minhas relações e
a minha boa vontade. E toda essa modificação tão imprevista do
meu viver viera do suicídio de Floc (LIMA BARRETO, 2009: 157).

Assim, Lima Barreto constrói um desfecho ao mesmo tempo cômico e


irônico, já que o crítico se suicida por não conseguir escrever um artigo e por
ironia do “destino” Isaías só consegue o cargo de repórter na redação por conta
deste suicídio.
Nas passagens analisadas percebe-se que o cômico prevalece. Isso
porque estar sendo narrada uma situação trágica, em que um escritor comete
um suicídio por não conseguir escrever um artigo, portanto, a situação passa a
ser cômica ao invés de trágica, já que quando se trata de um escritor é natural

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

que ele tenha facilidade em escrever, o que não era o caso de Floc. Dessa forma,
Floc pode ser caracterizado como um personagem cômico.

4. Conclusão
O trabalho realizado tinha como proposta identificar os autores e as
obras que apresentavam o cômico no período Pré-modernista da Literatura
Brasileira. No decorrer da pesquisa foi observado que as obras cômicas desse
período tendem para o gênero tragicômico e foi averiguado que Lima Barreto
utiliza o cômico a serviço do trágico a partir dos elementos básicos da teoria da
comicidade, defendidos pelos teóricos: Henri Bergson, Sigmund Freud e André
Jolles. E a partir de então é possível afirmar que a obra Recordações do Escrivão
Isaías Caminha apresenta uma ambivalência cômica, já que segundo Bergson, o
escritor critica as excentricidades e através da caricatura Lima Barreto condena
as atitudes. E, por outro lado, apresenta também o fator de desconcerto e
esclarecimento, causando uma desrepressão, já que ele utiliza o espaço para obter
o prazer e o chiste, que de acordo com Freud, nos permite explorar algo ridículo
em um inimigo e torná-lo cômico é uma maneira de vencê-lo. E isso é visto na
construção de alguns personagens caricatos, como o crítico literário, Floc. Outro
ponto explorado pelo autor é a utilização do espaço para dizer tudo aquilo que
não podia ser dito, a não ser através do cômico.

Referências Bibliográficas
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. 10ªed. São Paulo:
Editora Ática, 2009.
BERGSON, Henri. O Riso: Ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução
Ivone Castilho Benedetti. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. - (Coleção
Tópicos).
BOSI, Alfredo. A Literatura Brasileira: O Pré-Modernismo. Vol. V. São Paulo:
Cultrix.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43ªed. São Paulo: Cultrix,
2006.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil: Era Realista, Era de Transição. 7ªed.
São Paulo: Global, 2004.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente; tradução Margarida


Salomão. Volume VIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
JOLLES, André. O Chiste. In. Formas Simples. Tradução de Álvaro Cabral. São
Paulo: Editora Cultrix, 1976.
SOARES, Angélica. Gêneros Literários. 6ªed. Série Princípios. Ed. Ática, 2002.
OLIVEIRA, Irenísia Torres de. Uma palha na cidade. Curitiba: Revista Letras.
Editora UFPR, 2004. Disponível em <http://www.letras. ufpr.br/documentos/
pdf_revistas/ oliveira.pdf> Acesso em: 21 mar. 2010.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

“Perdi o jeito de sofrer. quero alegria! me dá alegria”


– o cômico na poesia de Manuel Bandeira

Alberon Machado Menezes∗

Resumo: O gênero literário cômico está intrinsecamente associado ao riso. Este, na mitologia,
estabelecia um provável elo entre o homem e os deuses. Por causa da religião, sofreu discriminação e foi
considerado um gênero “menor”. Porém, no século XX, começa a ser reabilitado e adquire importância
filosófica e lingüística. O objetivo desse trabalho está inserido nessa nova perspectiva, pois esse gênero
propicia a ampliação do sistema lingüístico e acesso às possibilidades não abarcadas pelo pensamento
dito “sério”. A pesquisa se concentrou na escolha de autores brasileiros canonizados da primeira geração
Modernista que apresentam características cômicas. Utilizamos como suporte para o levantamento do
corpus os estudos de Bosi (1985). Na etapa seguinte, escolhemos Manuel Bandeira cuja obra,
normalmente, é associada a temas tais como morte, ausência, paixão, humildade, mas estudamos sua
poesia pela ótica irônica. Serviram de base teórica: Freud (1974), Jolles (1976) e Bergson (2007).
Palavras-chave: Cômico, Ironia, Manuel Bandeira.

O riso tanto pode ser uma clara e espontânea demonstração de alegria,


satisfação, contentamento, quanto pode ser uma atitude de escárnio, zombaria
contra alguém ou alguma coisa. Essa natureza ambígua sempre despertou
interesse sobre as consequências desse procedimento. Desde os tempos mais
remotos, o riso estimulou a curiosidade dos homens tanto sobre aquilo que o
provoca, quanto a sua finalidade. Na antiguidade clássica, havia a oposição
entre o trágico e o cômico - considerava-se o riso como um liame entre os
homens e os deuses; com a tradição judaico-cristã, o antagonismo passou a ser
entre o cômico e o sério, aspecto que ainda perdura em nossa sociedade em
virtude dos arraigados valores religiosos.


Graduando do curso de Letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS), trabalho vinculado ao
Programa de Iniciação Científica da UFS, sob orientação da Profa. Dra. Jacqueline Ramos.

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

A presença dos elementos cômicos como a ironia, o sarcasmo, a


irreverência é uma característica bastante marcante do Modernismo no Brasil.
Para ilustrar esse momento, escolhemos a poesia de Manuel Bandeira cuja
produção poética normalmente é mais associada aos elementos mais dramáticos
ou melancólicos da sua existência como a morte, doença, entre outros. A
proposta estética de Bandeira é bem mais ampla, pois para ele “a poesia está em
tudo, tanto nas coisas lógicas, como nas disparatadas” (2006: 19). Para análise
da comicidade em Bandeira, procuramos apoio nos, já clássicos, estudos de
Bergson (2007), Freud (1977), acrescidos, ainda, da consideração de Jolles (1976)
sobre chiste em seu Formas Simples.
O recifense Manuel Bandeira nasceu em 19 de abril de 1886. Quando ele
faleceu no Rio de Janeiro em 13 de outubro de 1968 já haviam passado sessenta
e quatro anos desde que fora diagnosticado como portador de tuberculose.
Naquele momento, início do século XX, ter a doença era quase uma verdadeira
sentença de morte. Acrescido a esse fato, Bandeira, entre 1916 e 1922, perdeu os
pais e dois irmãos, curiosamente sempre nos anos pares. Estes acontecimentos
foram de crucial importância na produção do poeta, mas não significa dizer que
tenham sido os únicos elementos com os quais tenha trabalhado. Pelo contrário,
afinal de acordo com Murilo Moura, ele “foi lido por Machado de Assis e
sobreviveu a Guimarães Rosa” e “quando publicou seu primeiro livro (A Cinza
das Horas, 1917) Olavo Bilac e Alphonsus de Guimaraens ainda estavam vivos.
Já em 1966, por ocasião dos seus 80 anos, quando surgiu a primeira edição de
Estrela da vida inteira, ocorria a estréia de Cacaso (A palavra cerzida) e Paulo
Leminski já tinha publicado seus primeiros versos” (2001: 08). Assim, uma
existência tão longeva proporcionou contatos com as diversas correntes e
tendências literárias que foram trabalhadas, experimentadas, incorporadas em
sua obra. Ele demonstra, desse modo, o quanto estava aberto às possibilidades
estéticas que se apresentavam e, também, ao cômico. Sobre a gênese da obra de
Bandeira, Bosi argumenta que

a presença do biográfico é ainda poderosa mesmo nos livros de


inspiração absolutamente moderna, como Libertinagem, núcleo

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

daquele seu não-me-importisto irônico, e no fundo, melancólico, que


lhe deu uma fisionomia tão cara aos leitores jovens desde os anos
30. O adolescente mal curado da tuberculose persiste no adulto
solitário que olha de longe o carnaval da vida e tudo faz matéria
para os ritmos livres do seu obrigado distanciamento (2006: 362).

Conforme escrito anteriormente, entre os teóricos que embasaram esse


estudo destacaremos o primeiro deles, Freud (1856-1939). Depois de abandonar
o uso de hipnose no tratamento de seus pacientes, ele procurou entender a
questão relacionada ao impulso sexual reprimido por outros métodos de acesso
aos conteúdos inconscientes. Um dos caminhos adotados por ele foi estudar o
chiste, cujas reflexões resultaram em seu Os chistes e sua relação com o
inconsciente, obra em procura estabelecer de que forma os chistes acionariam os
mecanismos no processo pela busca de prazer.
Os chistes, para Freud, estão conectados à inteligibilidade e, ao mesmo
tempo, são a mais social de todas as funções mentais cuja finalidade é a
produção de prazer. Algumas características apontadas por ele quanto ao
cômico são: brevidade, desconcerto, esclarecimento e ineditismo. Esta
propriedade do cômico, a brevidade, está relacionada à possibilidade de uma
expressão ou palavra causar no ouvinte um desconcerto e, logo após, um
esclarecimento. Freud faz uma analogia entre sonho e chiste ao indicar que
ambos possibilitam a transformação de pensamentos represados em atos
concretos, no processo de liberação de conteúdos reprimidos.
Para Freud, os principais princípios do chiste, que coincidem com o dos
sonhos, são a condensação e o deslocamento. A primeira é um processo pelo
qual surge uma nova palavra a partir de vocábulos anteriores. Os processos
mais importantes de condensação são mudanças de fonema, aglutinação, duplo
sentido e trocadilho. Dessa forma a Linguística, mesmo antes de Saussure ter
estabelecido o seu objeto de estudo, já estaria, de forma incipiente, assomando
nos estudos freudianos. Ele escreve que “as palavras são um material plástico,
que se presta a todo tipo de coisas” (1977: 49). Freud argumenta, ainda, que “o
deslocamento habitualmente ocorre entre um comentário e uma réplica que
prossegue o curso do pensamento em direção distinta da iniciada no

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

comentário original” (1977: 71). Desse modo, o deslocamento está associado à


possibilidade de transferência da representação de uma determinada idéia para
outra. Como exemplo de deslocamento, temos o poema “Tragédia Brasileira”:

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.


Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite
nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de
miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no
Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela
queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um
namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma
facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de
casa. Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General
Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de
Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio,
Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos
e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la
caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

O poeta conseguiu o efeito cômico substituindo, isto é, deslocando a lista


de amantes pela de bairros em que eles moraram. Além da ironia da ingratidão
de Maria Elvira, o cômico, nesse caso, parece amenizar uma situação que é
trágica, conforme o próprio título anuncia.
Freud também faz a distinção do chiste em tendencioso e inocente. O
primeiro tipo está subdividido em hostil e obsceno. O primeiro tem como
propósito agredir, rebaixar e o segundo está relacionado à revelação,
desnudamento, com forte apelo erótico-sexual. Já o chiste classificado como
inocente está diretamente vinculado ao universo infantil.
Outro teórico que trabalhamos foi o holandês André Jolles (1874-1946)
que produziu uma obra de fundamental importância no terreno da Teoria da
Literatura – Formas simples. Para ele, as formas simples indicariam, como uma
espécie de sintoma, de que maneira determinadas disposições ou tendências

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

mentais seriam atualizadas nos diferentes modos, conforme estilos, povos e


épocas. São elas: legenda, saga, mito, adivinha, ditado, caso, memorável, conto
e chiste.
Jolles faz um resgate etimológico do chiste (Witz em alemão). Sendo
prestigiado em determinados momentos e desvalorizado em outros. Mesmo
assim, ele destaca que o chiste “sempre que [...] é popular, a sua espécie e a sua
maneira caracterizam a raça, o povo, o grupo e o tempo” (1976: 205). Ao mesmo
tempo, salienta que este fato dificulta uma sistematização do chiste.
Jolles é bastante incisivo com relação à finalidade do chiste que é: desatar
os laços, desfazer os nós. Esses nós estariam presentes na lógica, na ética, na
linguagem, portanto o chiste é um elemento de dissolução. Para ele, o chiste é
uma espécie de gatilho que aciona o cômico. Chega, então, a uma dúvida com
relação ao uso dele. “o cômico constituirá [...] um universo que lhes é próprio
ou [...] o avesso de outro universo?” (1976: 210). Ele faz referência a uma
simples inversão de sinal, um mundo seria o oposto do outro, como se o
universo do cômico fosse uma espécie de espelho do ambiente dito “real”. Um
espelho que inverte e dá a ver o avesso das coisas, como estão constituídas. O
próprio autor argumenta que o cômico se estabelece como forma, indo além da
mera troca de sinal.
Ao juntar a idéia de “desatar coisas, desfazer laços” com a de
insuficiência, o autor escreve que o “chiste recebe o nome de zombaria” (1976:
211). Ele, ainda, dicotomiza a zombaria em sátira e ironia. A intencionalidade é
o principal fator diferenciador entre um e outro termo, além da distância entre o
objeto de derrisão e o zombador: “A sátira destrói, a ironia ensina” (1976: 211).
Enquanto nesta há a presença da solidariedade entre o debochador e o alvo da
zombaria, naquela não existe nenhum querer, por parte do zombador, em se
aproximar do objeto-alvo do riso, pelo contrário existe uma busca pelo
rebaixamento.
De acordo com Jolles, “é possível, na ironia, ligar ao cômico todos as
matizes que vão da melancolia ao sofrimento e à dor” (1976: 211). O autor, mais
de uma vez, delimita o seu foco de trabalho tanto quando escreve que “nossa

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II Colóquio Filosofia e Literatura: fronteiras de 18 a 21 de outubro de 2010

tarefa é e continuará a ser morfológica [...] distanciado da Estética” quanto faz


referência ao fato de não ter a intenção de trabalhar com as formas artísticas e,
sim, com as formas simples da literatura. Este fato, sem dúvida, ajuda na
compreensão do texto enquanto materialidade linguística diferentemente de
Freud que estudou o cômico para chegar aos mecanismos do inconsciente.
Assim, para Jolles, o cômico não é um derivado de outras formas. Para
ele “o universo do cômico é um universo em que todas as coisas se atam, ao
desfazerem-se ou ao desatarem-se” (1976: 215). Ele conseguiu unir os laços –
termo recorrente em todo o texto – entre as idéias de Bergson e as de Freud,
além de demonstrar que o cômico apresenta tanto uma natureza nova, quanto
uma nova função. Tudo isso dentro da Teoria Literária.
Manuel Bandeira começa a escrever dentro da tradição Simbolista, mas
foi o “poeta ponte na passagem da poesia brasileira para a modernidade, foi
quem primeiro assimilou organicamente a inovação técnica a sua linguagem
pessoal” (ARRIGUCCI, 2009: 59). Existe uma leitura recorrente sobre a
simplicidade como um traço marcante na obra de Bandeira. Apesar do próprio
poeta ter declarado que “intenso é o meu desejo de participação, mas sei, de
ciência certa, que sou um poeta menor” (1984: 102) vale ressaltar que não se
deve confundir simplicidade com forma simplória. Aquele adjetivo “menor”
definitivamente não pode estar associado à produção de Bandeira. Sobre a
simplicidade, Arrigucci Jr. atenta para o seu funcionamento na poesia
bandeiriana “na forma paradoxal do simples onde se depura o complexo se cala
o mistério. Por ai quem sabe, se possa ter acesso à fonte escondida da arte de
Manuel Bandeira” (2009: 48).
Associado a essa noção de simplicidade, temos o poema “Prece” que foi
publicado originalmente no livro Mafuá do Malungo, em 1948, que tem como
subtítulo versos de circunstâncias. Esse subtítulo leva a entender que aqueles
poemas estão relacionados a acontecimentos factuais, também há homenagens
de cunho pessoal, dedicatórias rimadas, liras e sátiras políticas. Por conter
versos do “momento”, ele corre o risco de ser datado, exigindo uma devida

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contextualização de algumas informações para que se consiga ter uma visão


mais completa sobre aquilo que o poeta está a se referir.
O poema “Prece” é bem característico do modernismo. Ele não segue um
modelo estabelecido, isto é, formas fixas e/ou convencionais, apesar de
parodiar a estrutura textual da prece (como já anuncia o próprio título). Ele está
dividido em três estrofes: a primeira contém quatro versos e as demais, seis
versos e todos são livres.

Senhor Bom Jesus do Calvário e da Via-Sacra


O prefeito Henriquinho
Vai derrubar o teu templo da Rua Uruguaiana
Para abrir uma avenida!

Senhor Bom Jesus do Calvário e da Via-Sacra


O prefeito Henriquinho
Para abrir uma avenida
Vai demolir o templo do santo
Pedra da fé
Sobre a qual edificaste a tua Igreja!

Senhor Bom Jesus do Calvário e da Via-Sacra


Quando o prefeito morrer
Não o mandes para o Inferno:
Ele não sabe o que faz.
Mas um seculozinho a mais de Purgatório
Não seria mau. Amém.

De acordo com Cândido “a linguagem da poesia é mais convencional e


impõe uma atenção maior, sobretudo porque ela se manifesta geralmente [...]
em peças mais curtas e mais concentradas, que por isso mesmo são menos
acessíveis ao primeiro contato” (1996: 11). O uso do diminutivo no segundo
verso “o prefeito Henriquinho” não parece marcar aqui uma afetividade ou
afinidade entre o eu lírico e o prefeito, no caso em questão, está relacionada à
ironia com o intuito de rebaixar, já que o sufixo “inho” muitas vezes tende a ser
associado a uma coisa menor, com menos importância e valor. Nesse verso “o
prefeito Henriquinho” possui a assonância do /i/ em posição tônica, associada
aos sons guturais do arquifonema /R/ e da velar /k/ que transmitem uma
sonoridade áspera e, assim, enfatiza a desvalorização da figura do prefeito.
Também, conforme Cândido “com o Modernismo houve de um lado uma

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dessonorização da poesia, que se aproximou sob este aspecto da sonoridade


normal e mais discreta da prosa. De outro, um aproveitamento imitativo
intenso, na esteira do Simbolismo” (1996: 26).
A respeito da teoria de Grammont, Cândido escreve sobre a preocupação
do estudioso francês que “é bastante prudente para observar, e em seguida
insistir repetidas vezes, que o som por si só não produz efeitos se não estiver
ligado ao sentido” (1996: 32). Por isso, a necessidade de entender o uso da
sonoridade atrelada ao contexto ao qual ela pode estar vinculada.
Não encontramos rima no poema, porém Cândido assevera que “no
Modernismo, a rima nunca foi abandonada. Mas os poetas adquiriram grande
liberdade no seu tratamento. O uso do verso livre, com ritmos muito mais
pessoais, [...] permitiu deixá-la de lado” (1996: 40). O eu lírico reforça a
denúncia sobre a futura ação do chefe do poder executivo com o uso do
infinitivo dos verbos derrubar, demolir, abrir, morrer, todos eles associados à
idéia de transformação, mudança, alteração, mas não necessariamente do ponto
de vista positivo. Cândido escreve que “mesmo quando usa a linguagem direta,
o poeta acaba por lhes dar uma força poética especial, devida à transfiguração
operada pelo sentido geral do poema” (1996: 77).
Bandeira ao usar os mesmos versos no início das três estrofes faz uma
releitura da ladainha. Esta, na liturgia cristã, é uma forma de oração que
consiste em uma série de invocações. De acordo com Brayner “a quebra da
emoção pela antífrase, a mescla dos estilos com o intuito de criar o contraste
propício à desmitificação lírica” (1987: 46) é um recurso utilizado por Bandeira,
além disso, a “quebra das convenções poéticas serve como proposta explícita
para a interação dinâmica [...] acentuando de maneira jocosa uma operatividade
renovadora sempre no bojo das reivindicações modernas” (1987: 46). O eu lírico
pode, assim, expressar o propósito de vingança que estava, até então, recalcado.
Seria a satisfação de um desejo inconsciente. Mesmo sabendo que o prefeito
“não sabe o que faz”, ele não se compadece e defende a punição. Do ponto de
vista freudiano seria um chiste agressivo quando, novamente, ele usa o
diminutivo de forma irônica, no caso específico do termo “seculozinho”.

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Diminuto castigo para crime tão grande; por outro lado, considerável pena se
levarmos em consideração a extensão da vida humana. Enfim, o poema embora
esteja cheio de ironia, ao satirizar a figura do prefeito usa a comicidade para
reprimir e condenar, elementos relacionados à teoria de Bergson ou chiste
agressivo conforme Freud.
De acordo com Sant’Anna, é possível fazer um paralelo onde aparece a
“paráfrase como efeito de condensação, enquanto a paródia é um efeito de
deslocamento. Numa há o reforço, na outra a deformação” (2006: 28). Na
condensação, dois elementos obtêm equivalência a um único elemento,
enquanto o deslocamento trabalha com a memória de ambos os elementos.
Para ilustrar a informação anterior, temos o poema “Sonho de uma Noite de
Coca”:

O suplicante – Padre Nosso que estás no céu, santificado seu o teu nome.
[Venha a nós o teu reino. Seja feita a tua
[vontade, assim na terra como no céu.
[o pó nosso de cada dia nos dá hoje...
O Senhor (interrompendo enternecidíssimo) – Toma lá, meu filho. Afinal tu

[és pó e em pó te converterás!

A relação Bandeira com a religião tem um alto grau de ironia e ceticismo


como atesta os versos do poema “Pneumotórax”:

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.


A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
......................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão


direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”

Em momento algum ele pede ajuda aos deuses o que seria algo esperado
em uma situação como a descrita. Caso o doutor proferisse “que a única coisa a

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fazer é rezar” seria a resposta estereotipada para a situação. Ele


desloca/substitui o “rezar” por “tocar um tango argentino”; negando a
esperança e marcando a fatalidade.
Aqui, mais uma vez, existe uma mistura de elementos sacros e profanos
que fazem parte do espírito modernista presente em Manuel Bandeira. De
acordo com Cândido

é preciso não esquecer ainda a atração que sempre exerceram


sobre o seu temperamento seco e racional, primeiro os nonsenses
com que seu pai procurava amenizar-lhe a prostração de
tuberculoso, mais tarde a exploração e valorização artística dos
aspectos ilógicos do pensamento, que aprendeu provavelmente ao
contato das teorias surrealistas de André Breton (2004: 8).

Ao defrontarmos as teorias que serviram de sustentáculo para o nosso


estudo, em especial a dos chistes de Freud (1977), é possível comprovar o
quanto a poesia de Manuel Bandeira está impregnada de elementos do cômico
e, como este elemento está disseminado por todo o período Modernista
brasileiro. Não existe um autor que seja “o especialista” com o uso do cômico,
mas é possível detectar sua presença tanto na produção poética, quanto na
prosa dos autores que estão relacionados ao período.
Sem sombra de dúvida, a doença foi decisiva para o rumo artístico de
Bandeira, até mesmo pessoal, uma vez que ele teve que morar em diversos
locais a procura de um clima condizente com a sua condição física. Isso se
refletiu na sua solidão pessoal. Não significa que a sua produção literária tenha
sido feita apenas com temas lúgubres, soturnos, melancólicos. Não possuir uma
excelente saúde, provavelmente, fez com que Bandeira desenvolvesse uma
urgência de vida, por isso, a presença de poemas que celebram encontros
amorosos, baile de carnaval, viagens, entre outros variados motivos. (Há uma
extensa bibliografia que trata de maneira mais profunda sobre a poesia de
Bandeira, em especial, com relação a temas como a humildade, evocação da
infância). Era o viver agora porque o amanhã era bastante indefinível. Mesmo
sendo clichê, no caso de Manuel Bandeira era uma realidade.

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Dentro do momento modernista onde as idéias vanguardistas estavam


disseminadas, Bandeira as absorveu, mas sem negar uma tradição poético-
literária que conhecia e respeitava. Esse domínio da técnica se reflete com a
realização de baladas, cantigas, rondós, canções, entre outros. Também, quanto
à forma, esse conhecimento é perceptível, indo do uso de soneto até a feitura de
poesia concreta.
Manuel Bandeira possuía a necessidade de vida, por causa da doença,
conforme dito anteriormente e será o próprio autor quem confirmará a presença
do cômico, e suas diferentes matizes, na produção literária. O poema, abaixo, é
um ótimo exemplo de toda a obra de Bandeira por mostrar tanto a
profundidade do tema, como o esmero na sua confecção, um exemplo do
quanto é extenuante o trabalho com poesia. Eis:

Gesso

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova


- O gesso muito branco, as linhas muito puras –
Mal sugeria imagem de vida
(Embora a figura chorasse).

Há muitos anos tenho-a comigo.


O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.

Um dia mão estúpida


Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
[recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo mordente da pátina...

Hoje este gessozinho comercial


É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Mais
um exemplo da capacidade de Bandeira em transformar um acontecimento
cotidiano em poesia profunda. Em Itinerário de Pasárgada ao escrever sobre
metrificação, ele afirma “que os primeiros versos do poema Gesso, que é em
versos-livres, me deram água pela barba durante anos” (1984: 45). Explicitando
o quanto de trabalho é necessário para a produção de um grande poema.

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Também, esse poema traz um verso que pode ser a síntese de todo o trabalho
que é “Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.” Aqui o poeta
explicita que, apesar do espectro da doença, a ironia é um traço indelével da sua
existência, assim como as cicatrizes são no corpo e na vida.

Referências bibliográficas:
ARRIGUCCI JR, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São
Paulo: Cia das Letras, 1990.
BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
______ . Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. 2. ed. São
Paulo: Martins fontes, 2007.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix,
2006.
BRAYNER, Sônia. O “humour” bandeiriano ou as histórias de um sabonete. In:
LOPEZ, Telê P. A. (Org.). Manuel Bandeira: verso e reverso. São Paulo: T. A.
Queiroz, 1987, p. 42-48.
CÂNDIDO, Antônio. O estudo analítico do poema. 3. ed. São Paulo: Humanitas
Publicações – FFLCH/USP, 1996.
FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. São Paulo: Imago,
1977.
JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976.
MOURA, Murilo M. de. Manuel Bandeira. São Paulo: Publifolha, 2001.
MUECKE, D. C. Ironia e o irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995.
MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Edições Loyola, 2001
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo: Ática,
2006.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo:
Cortez Editora, 2008.
FGV. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br>. Acesso em: 17 abr. 2010.

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