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IMRE HERMANN

A PSICANÁLISE COMO MÉTODO

INTRODUÇÃO

1. O consciente e o inconsciente

O universo do homem adulto, que percebe os fenômenos do mundo, é duplo: um


"mundo interior" se opõe a um mundo "exterior" e o primeiro se comunicando
aparentemente com o segundo se distingue muito claramente por conta de suas
propriedades intrínsecas.

Esses dois universos, a ciência os trata diferentemente. Se o universo da


consciência permaneceu um universo imediatamente, ingenuamente perceptível, os
pontos de referência que oferecem à observação científica o mundo exterior se
encontram, precisamente, fora da percepção imediata e ingênua. Partindo de dados
sensoriais imediatos e retornando sobre eles mesmos, o processo que desemboca no
conhecimento dos diversos fatos do mundo exterior ultrapassa a fase do imediato ingênuo
e procura, graças a um sistema conceitual "simbólico", desembarassado de toda
subjetividade, isolar a qualidade e os modos dos fatos e das regularidades do mundo
exterior, de um lado, do processo de conhecimento, ingenuamente subjetivo e
necessitando sempre do mundo interior, por outro lado. A distância é efetivamente
enorme entre o átomo considerado como o constituinte básico do mundo exterior e o que
nos é dado, desse mesmo mundo, por nossa experiência direta e ingênua. É evidente que
para se chegar a formular o conceito de átomo foi preciso confrontar uma multitude de
experiências, forjar numerosas teorias, proceder generalizações e simplificações
inúmeras. Ora, a evolução das ciências naturais mostrou o papel importante da
conceitualização teórica na investigação dos fenômenos físicos e químicos. Assim, o
universo exterior do pensador científico é um mundo teórico mas construído sobre a
percepção ingênua do mundo exterior.

Pode-se perguntar se o que foi assim realizado pela ciência, a ultrapassagem de


um vivido ingênuo graça a uma conceitualização teórica, não pode e não deve ser
aplicado ao universo interior; dizendo de outra maneira, se não é possível de levar o
conhecimento do mundo da consciência ao mesmo nível daquele ao qual se chegou ao
conhecimento do mundo exterior. Caso só se leve em conta que os dados imediatos e
ingênuos, só se poderá concluir pela existência de um só universo: fenômenos internos e
externos se apresentarão neles mesmos e por eles mesmos na consciência; mas, desde que
se introduza os dados mediatos, este mundo "um" se cinde, nós assistimos a aparição do
mundo exterior ao lado do qual nós esperaríamos justamente um mundo interior
constituído de outra coisa que os dados ingênuos da consciência. Supondo que nossa
espera não seja decepcionada, nós encontraremos, face ao mundo exterior elaborado,
construído graças à conceitualização, um mundo novo, aquele da interioridade, do
psiquismo, cuja consciência só seria uma projeção subjetiva (do mesmo modo que os
dados sensoriais ingênuos só serão a projeção do mundo exterior).

Com certeza, nós nada adiantamos de novo até aqui. O conceito de alma, de
psiquismo, tal como encontramos nos velhos tratados de psicologia, só tinha o objetivo
de servir de receptáculo às forças psíquicas agindo atrás da consciência. Mas este
conceito era tão congestionado de toda sorte de pré-julgamentos que a psicologia nova,
aquela que queria ser uma espécie de ciência natural dos fenômenos interiores, preferiu
não retê-lo, e limitou a investigação da consciência, identificando a psicologia ao estudo
dos fenômenos conscientes e reenviando o resto à metafísica.

Ora, certos psicólogos (por exemplo, Fechner, Lipps ou Herbertz), ao mesmo


tempo que se utilizavam das vantagens científicas deste procedimento redutor, colocaram
a existência, atrás da consciência, de um inconsciente revestido de qualidades psíquicas.
Posto que, assim eles arguem, minha percepção (por exemplo, aquela de um rio que saiu
do seu leito) é conservada em mim sob a forma de imagem memorial suscetível de ser
evocada pela consciência (posso me rememorar a imagem do rio que saiu do seu leito),
esta imagem possui uma qualidade psíquica não somente durante a curta duração de sua
evocação mas de maneira permanente, até o momento da decomposição de meu
organismo, e é impossível de dar-se conta disto integralmente recorrendo-se, por
exemplo, às modificações que ocorrem nas células do cérebro no momento da evocação.
Segundo estes psicólogos, uma continuidade subentende a vida psíquica do homem, o
contínuo do inconsciente, este fundo sobre o qual se separam, em certos momentos, os
fenômenos descontínuos que constituem os dados incessantes mutáveis da consciência.

Será sem dúvida instrutivo de lembrar as concepções dos três autores aos quais
Freud se refere durante o período em que elaborava suas próprias idéias sobre o
inconsciente, isto é durante os anos 1895-1898. Trata-se de Jerusalem, de Lipps e de
Taine ( 76 ). Eis aqui alguns excertos de suas obras: "Se nos atermos a essa distinção entre
fenômenos psíquicos e fenômenos físicos, a hipótese da existência de fenômenos
psíquicos inconscientes não se confrontará com nenhuma dificuldade. Com efeito, a
marca distintiva dos fenômenos psíquicos, a saber a ausência de apoio, permanece,
mesmo se a consciência desaparece. Que se queira então considerar o fato que nós não
conhecemos processos sem suporte outro que psíquicos - e nós poderemos assim afirmar
sem risco de nos contradizer que se todas as representações sem suporte são psíquicas,
elas não são todas conscientes." Efetivamente "as ocorrências psíquicas são nas suas
essências, desprovidas de suporte; só, o empirismo as fez aparecer como estando ligadas
aos fenômenos físicos, isto é apoiando-se sobre um suporte." "Caso se designe os
processos inconscientes pelos termos disposições psíquicas ou caso procuremos lhes
caracterizar dizendo que eles se situam abaixo do nível de consciência - isso será um
problema de terminologia que não concerne ao essencial. Contudo, visto a confusão que
uma linguagem metafórica pode criar no domínio da psicologia, prefiro empregar os

76
Freud, S. La naissance de la psychanalyse, lettres à
Wilhelm Fliess; notes et plans. Paris, P.U.F., 1950.
termos "processos inconscientes" ou mesmo "inconsciente, sem pensar ao menos em uma
qualquer que seja metafísica de Hartmann. "O inconsciente, o qual nós não estamos de
nenhuma maneira na medida de demonstrar a existência recorrendo simplesmente a nossa
experiência direta, é, para nós, um instrumento conceitual indispensável para
compreender a vida psíquica. O que se espera de um instrumento conceitual, é que ele
possa se conceber isento de toda contradição, e que ele seja utilizável. Considerando que
o essencial dos processos psíquicos reside no fato que eles são sem suporte e não no fato
que eles são conscientes, estamos na posição de forjar e de aplicar, sem nenhuma
contradição, o conceito de processos psíquicos inconscientes. O inconsciente deve ser
concebido como um fenômeno psíquico sem suporte, contínuo, mas agindo
constantemente sobre a vida psíquica consciente. De fato, sofremos continuamente a
influência de processos inconscientes e estes últimos constituem o elemento essencial de
nossa personalidade psíquica. A vida da linguagem mostra-nos a cada instante o efeito de
processos inconscientes e os fenômenos da hipnose permitem de tirar as mesmas
conclusões. Não podemos simplesmente desconhecer o inconsciente e crermos ter
adquirido o direito de servir-nos deste instrumento conceitual na nossa teoria do
julgamento ( 77 )." Assim fala Jerusalem, sobre o que Freud se exprime da maneira
seguinte: "Um trabalho de Jerusalem, A função do julgamento muito me estimulou;
efetivamente, lá encontrei duas das minhas principais idéias, a saber que o julgamento se
realiza como uma transposição nos fenômenos motores e que a percepção interna só pode
se prevaler da força da evidência."

Quanto a Lipps, ele escreve o seguinte: "Decorre do que precede que nós não
estamos de forma nenhuma bem fundamentados para falar de diferentes graus de
consciência. Tudo o que se pode colocar nestas condições é que os estímulos psíquicos
inconscientes e de natureza ainda desconhecida se emiscuem por entre nossas
representações conscientes as quais se originam e terminam no inconsciente... Vê-se
portanto que colocamos, partindo de fenômenos conscientes, a existência de um processo
psíquico inconsciente. Segue-se que a natureza deste último só nos é conhecida pelo que
nos revelam seus efeitos sobre o consciente. Que o chamemos de fenômeno material ou
imaterial pouco nos importa. Talvez alguma fisiologia ou metafísica qualquer tenham
bases sólidas para se autorizar a identificar de maneira imediata estes processos
inconscientes com processos materiais, mas, na minha opinião, nem a psicologia, nem a
filosofia, ciências da experiência interna, nada têm a ver com este problema. Se portanto
designamos estes fenômenos como sendo processos ou estímulos psíquicos, o fazemos
unicamente por que eles estão em relação imediata com representações e sensações, por
que pertencem à mesma corrente de acontecimentos destes últimos... Por ocasião da
reprodução, a aparição de representações conscientes parece constituir um caso especial,
por que, em geral, a reprodução se passa a um nível totalmente inconsciente e deve ser
pensada como um fenômeno inconsciente... As impressões inconscientes se tornam
pouco a pouco acompanhantes indispensáveis e pontos de partida das ocorrências
psíquicas... A maior parte de nossas reflexões são rematadas de maneira consciente em
palavras, sem que nos representemos ao mesmo tempo o que estas palavras designam...

77
Jerusalem: Die Urteilsfunktion. Braumüller, Viena e
Leipzig. 1895, p. 10-13.
Este fato só pode se aclarar se admitimos que representações inconscientes, enquanto
estímulos inconscientes, acompanham o ato de falar ou de escutar... Com toda evidência,
o efeito reprodutivo de estímulos inconscientes ocorre a cada vez que uma representação
"R" emerge na consciência ao mesmo tempo que outras, condicionadas por "R". O sonho
parece fornecer exemplos particularmente eloqüentes com relação a este tipo de
processo." " Designamos como sendo inconscientemente criadoras as performances
rematadas por um gênio, e estimamos que este só faz arrematar de uma maneira mais
intensa o que cada um produz. Uma outra abordagem nos proíbe igualmente de
considerar as performances criativas inconscientes como sendo totalmente particulares e
situando-se fora da esfera dos processos psíquicos ordinários. Efetivamente, elas não
devem se limitar aos casos onde a representação livre passa do ponto de partida para um
novo estado de consciência sem perder consciência de todas as etapas intermediárias.
Ocorre criatividade em toda percepção, em toda orientação, em toda compreensão, em
toda apercepção ( 78 )."

A propósito de Lipps, Freud escreveu o seguinte: "Fixei-me como tarefa colocar


um ponto entre minha metapsicologia em gestação e o que poderia ler a este propósito
nos livros. Mergulhei portanto na leitura de Lipps, um dos espíritos mais claros, creio,
entre os filósofos atuais."

A propósito de Taine, nosso terceiro autor, Freud escreve: "A psicologia, ou mais
ainda a metapsicologia me preocupa sem cessar e o livro de Taine L'intelligence me
convém de maneira extraordinária." No Prefácio desta obra, entre outras, lê-se: " Nesta
pesquisa, a consciência, que é nosso principal instrumento, não é suficiente, no estado
usual; ela não é mais suficiente nas pesquisas de psicologia do que o olho nú nas
pesquisas em ótica. Isto por que seu aporte não é grande; suas ilusões são numerosas e
invencíveis; é necessário sempre desconfiar-se dela, controlar e corrigir seus
testemunhos, quase por tudo a ajudar, lhe apresentar objetos sob uma luz mais viva, os
aumentar; fabricar para o seu uso uma espécie de microscópio ou de telescópio, ao menos
dispor em torno do objeto, lhe dar pelas oposições o relevo indispensável, ou encontrar
ao lado dele os índices de sua presença, índices mais visíveis que ele e que testemunhem
indiretamente o que ele é. "Sabemos que este microscópio foi mais tarde inventado por
Freud que recorre a mesma comparação de Taine, na Interpretação dos sonhos, por
exemplo.

Mais adiante, lemos em Taine: "No que concerne as imagens, seu apagamento,
seu renascimento, seus redutores antagônicos (eis um outro conceito que poderia ter
ressonância junto a Freud!), o alargamento necessário é encontrado em casos singulares e
extremos observados pelos fisiologistas e pelos médicos, nos sonhos, no sonambulismo e
hipnotismo, nas ilusões e alucinações doentias." A ilusão ela mesma é considerada como
uma ilusão reprimida. "Nas manifestações espíritas trata-se de duas ações distintas: uma a
qual ele (o mesmo indivíduo) tem consciência, outra a qual não tem consciência." Elas
coexistem no mesmo instante. É assim que Taine chega ao conceito de recalcamento, que

78
Lipps: Grundtatsachen des Seelenlebens. Cohen. Bonn. 1883.
p. 125-150, 468.
pressupõe a existência do inconsciente: "É assim que na luta pela existência que se
desenrola a cada instante em todas as nossas imagens, aquela que possuiria a maior
energia no momento do seu nascimento tem, em cada conflito, a capacidade de suprimir
suas rivais.”... "Considerada nela mesma, logo que ela (a alucinação) está completada ou
terminada no seu desenvolvimento... logo ela é reprimida e permanece rudimentar ( 79 )."

Como se vê, estes adeptos do inconsciente fundam, eles também, sua concepção
sobre a continuidade do psíquico, sobre o fato que - segundo a formulação freudiana - os
processos conscientes "só nos livram das séries de manifestações incompletas, cheias de
lacunas ( 75)."

Segundo Birkmann, deve-se distinguir quatro tipos de inconscientes: pode-se


conceber esta noção de maneira espaço-material - é o que encontramos em Descartes - ,
perceptiva, como em Leibniz, aperceptiva, como em Crusius-Kant, e pode-se também
distinguir um "inconsciente vital" como o fazem Herder, Goethe, Johannes Müller e
Hartmann. Birkmann pensa que o conceito freudiano de inconsciente se inspira destas
quatro abordagens ( 80 ).

Convém saudar a aparição do conceito de inconsciente na literatura científica


soviética, precisando-se que nada tem em comum com o inconsciente freudiano ( 81 ).

Mas estes mantenedores do inconsciente só o caracterizaram através de um fato


negativo: este universo psíquico é inconsciente. É aí que a contribuição audaciosa de
Freud permitiu abrir novos horizontes. Suas observações positivas permitiram precisar a
qualidade e o funcionamento do inconsciente. Assim, ele mostrou que do ponto de vista
da tomada de consciência, do acesso à consciência, convém distinguir dois tipos de
inconscientes: aquele que acede à consciência sem entraves e aquele que forças potentes
impedem a ocorrência: pode-se dar ao primeiro o nome de pré-consciente, ao passo que o
segundo, o inconsciente propriamente dito, é inacessível à observação direta, posto que é
incapaz de apoderar-se de seus conteúdos e de suas manifestações.

As pesquisas de Freud esclarecem ao mesmo tempo os dados qualitativos e os


conteúdos deste inconsciente. Eles nos ensinam, por um lado, que este inconsciente é
movido por desejos e instintos, que ele é indiferente ao tempo, que ele admite a
coexistência de conteúdos contraditórios e que seus modos de funcionamento sui generis
(tais como o deslocamento, a condensação, etc.) escapam às leis do pensar consciente;
por outro lado, é desde então possível de conhecer os conteúdos do inconsciente que,
mesmo variando de um indivíduo a um outro, possuem, pelo fato mesmo da filogênese,
pontos em comum, cujo mais importante é o complexo de Édipo.

79
Taine: De l'Intelligence.
75.Fr
eus, S. Abrégé de psychanalyse, Paris, P.U.F., 1950.
80
Birkmann: Probleme des Unbewussten. Rascher. Zürich e
Leipzig, 1943.
81
Bassin: Le freudisme dans le débat scientifiques
contemporains (em russo) Voprosi Psichol. 1958, p. 133-145.
Os conteúdos do inconsciente são em parte adquiridos e em parte inatos,
herdados, como, por exemplo, os núcleos intuitivos da parte inconsciente do Supereu.
Estaria errado afirmar que o inconsciente freudiano só contém o adquirido e o recalcado.
A convicção de Freud, segundo a qual a herança toma igualmente lugar na estrutura do
inconsciente, foi reforçada pela leitura de uma quarta obra, aquela de Baldwin ( 82 ), que
Freud menciona nas suas Cartas (cartas 76 e 74).

Em conformidade com as concepções materialistas de Freud, o universo do


inconsciente é um produto da substância cerebral. Bem entendido, a consciência é, ela
também, uma atividade do cérebro, mas todas as atividades das circunvoluções cerebrais
não são conscientes ( 76 ). (Nota a propósito da 5a. carta, 1888.) Segundo uma formulação
do autor "os fenômenos psíquicos dependem em um alto grau de fenômenos somáticos, e
inversamente, eles agem também muito fortemente sobre eles." - A consciência só é uma
qualidade e uma qualidade inconstante. "O elemento psíquico em si, aliás qualquer que
seja a sua natureza, permanece inconsciente e é provavelmente semelhante a todos os
outros fenômenos naturais que conhecemos (5, p. 19-20)."

Como Freud chegou a estes resultados? Graças a um procedimento que conduz a


uma manifestação completa e verídica dos conteúdos psíquicos, o pré-consciente obtém
direito à palavra, e o analista arranca do inconsciente sinais interpretáveis. A
introspecção, este método da psicologia tradicional, se revela, aqui, incompetente. Para
chegar aos novos resultados, a psicanálise - é este o nome dado por Freud a esta nova
ciência que ele é o fundador - devia empregar métodos novos.

Contudo "não queremos dizer com isso que a qualidade da consciência tenha
perdido valor aos nossos olhos. Ela permanece a única luz que brilha para nós e que nos
guia nas trevas da vida psíquica. Devido a natureza particular das nossas pesquisas, nossa
tarefa científica no domínio da psicologia consistirá de traduzir os processos
inconscientes em processos conscientes para preencher as lacunas de nossa percepção
(75, p.20).

Para dar uma última comparação entre física e psicanálise, mostremos, uma vez
mais, as palavras de Freud: "No nosso domínio científico, como em todos os outros,
trata-se de descobrir, por detrás as propriedades (as qualidades) diretamente percebidas
dos objetos, qualquer coisa de outro que dependa menos da fineza de nossos órgãos
sensoriais e que se aproximam com vantagem do que se supõe ser o estado das coisas
reais. Certamente, não esperamos atingir este último pois somos evidentemente obrigados
de traduzir todas as nossas deduções na linguagem mesma de nossas percepções,
desvantagem a qual nos é para sempre proibido de nos libertar. Mas é justamente aí que
se reconhece a natureza e a limitação de nossa ciência. Tudo se passa como se, falando de
ciências físicas, nós disséssemos: "Supondo que nossa visão seja penetrante,
82
Baldwin: Die Entwicklung des Geistes beim Kinde und bei
der Rasse. Berlin, 1898.
76
Freud, S. La naissance de la psychanalyse, lettres à
Wilhelm Fliess; notes et plans. Paris, P.U.F., 1956.
descobriríamos que um corpo em aparência sólido é constituído de partículas de tal e de
tal forma, de tal ou de tal dimensão, situadas com relação umas às outras, de tal ou de tal
maneira." É assim que procuramos aumentar o mais possível, por meios artificiais, o
rendimento de nossos órgãos sensoriais, contudo, é conveniente dizer que todos estes
esforços não modificam em nada o resultado final. O real permanecerá para sempre
"incognoscível". O que as nossas impressões sensoriais primárias dão ao trabalho
científico, é a descoberta de conexões e de interdependências presentes no mundo
exterior e que podem, de alguma maneira, se reproduzir e se refletir no mundo interior de
nosso pensamento. Este conhecimento nos permite "compreender" certos fenômenos do
mundo exterior, de prevê-los e às vezes modificá-los. É da mesma maneira que
procedemos em psicanálise. Podemos descobrir certos procedimentos técnicos que nos
permitem preencher todas as lacunas que subsistem nos fenômenos de nossa consciência
e utilizamos nossos métodos técnicos como os físicos se servem da experimentação,
deduzindo uma certa quantidade de processos por eles mesmos "incognoscíveis".
Inserimos em seguida estes entre os processos aos quais somos conscientes. Quando, por
exemplo, declaramos: "Aqui está inserida uma lembrança inconsciente", é que se
produziu alguma coisa que não concebemos mas que, se ele tivesse chegado até ao nosso
consciente, só se poderia descrever de tal ou de tal maneira (75, p. 70-71)." Esta é mais
uma maneira de ver, que corresponde a concepção materialista do mundo.

Numerosos especialistas se voltaram sobre o exposto e a classificação dos


resultados da psicanálise, mas nenhum trabalho foi consagrado à análise da sua
metodologia. O presente ensaio, que serviu de base a um curso de aperfeiçoamento
professado na Sociedade húngara de Psicanálise, se propõe de preencher esta lacuna.

2. Princípios de elaboração de uma metodologia da psicanálise

A metodologia de uma ciência depende das suas possibilidades, de seu passado e


procede de suas necessidades. Conforme a sua natureza, a psicologia começou por
utilizar o método da introspecção e, por causa do seu passado, introduziu já muito tarde a
experimentação, ou seja a metodologia das ciências naturais. É a necessidade de se
ocupar intensivamente dos mal estares de ordem psíquica dos indivíduos que fez nascer a
psicologia terapêutica, aquela que, longe de se apoiar sobre princípios ideológicos,
escolheu ater-se aos dados concretos e controle constante de seus próprios resultados
submetendo-os à prova da cura. Uma das particularidades mais notáveis do método da
psicanálise, é de estar em ligação constante com a prática, com o tratamento de doentes
ou de deficientes psíquicos. Da mesma maneira que a física se desenvolve na medida dos
progressos da técnica, chegando até a se confundir com estes, a psicanálise enquanto
método de pesquisa e psicanálise enquanto procedimento terapêutico se apóiam
mutuamente um sobre o outro. Nas suas experiências, a física isola certos fenômenos às
expensas de outros e os assinala para a atenção; a evolução do indivíduo de fato mesmo
com a doença em análise. Assim, o método psicanalítico pode examinar com lupa da
patologia os processos psíquicos cotidianos que ela os leva ao mesmo tempo ao seu nível
de cotidianeidade. Esta conjunção entre conhecimento e terapia reside na particularidade,
já assinalada, do método que consiste em procurar penetrar nas regiões dissimuladas com
relação à consciência, conhecer as forças que aí se acumularam e através do mesmo
mostrar a via que leva à canalização das forças nefastas, a sua utilização judiciosa; abrir
os olhos do doente que até aqui tateava na obscuridade, reeducar o neurótico lhe
ensinando a melhor se servir de suas forças. Para atingir estes objetivos, o psicanalista
recorre aos métodos novos e especificamente psicanalíticos; o presente trabalho se
esforça de expô-los.

Como ocorre freqüentemente no curso da evolução das ciências, longe de o


recalcar, o "novo" eleva o "antigo" a um nível superior. Assim, a psicanálise não rejeita a
introspecção e procura obter descrições detalhadas dos fatos psíquicos; ela não descarta a
experimentação, posto que ela mesma é um método experimental na medida que ela
procura criar uma situação controlável, não banal, afim de submetê-la a uma observação
regular. O que chamamos "situação psicanalítica", é a atitude psíquica otimizada que o
psicanalista deve se esforçar para determinar no doente, e que é a mais propícia para a
observação e a terapia psicanalítica. A tarefa da metodologia psicanalítica consiste em
estudar sistematicamente, de um lado, esta situação e, por outro lado, o tratamento
prático e científico do material obtido graças a esta situação. Também, nosso ensaio
comportará duas partes essenciais: metodologia da colheita de materiais e metodologia
do tratamento dos materiais e procuramos também responder a questão seguinte: "A qual
tipo de material o método psicanalítico é aplicável?" Bem entendido, esta separação é
artificial; seu objetivo é de facilitar a descrição dos fatos; na realidade, os dois tipos de
operação: colheita e tratamento dos materiais são inseparáveis.

Algumas palavras ainda sobre os princípios nos conduziram por ocasião da


elaboração desta metodologia. Quase não me estenderei sobre problemas técnicos, isto é
sobre os procedimentos que permitem a realização prática dos princípios metodológicos
*.
Procuro apresentar em toda a sua pureza os princípios da metodologia na medida que
eles constituem as bases da investigação científica da forma que a prática psicanalítica e
onde seu conhecimento é indispensável para a crítica científica da psicanálise. Procuro
também apresentar a metodologia da psicanálise não procedendo por dedução a partir de
conceitos, frutos de especulação, mas a partir de conceitos elaborados graças a
procedimentos práticos. Segundo a metodologia da nova física, para definir um conceito,
é necessário recorrer não à enumeração de suas qualidades, mas às operações que permite
efetuar na realidade ( 1). Na minha opinião, os principais conceitos da psicanálise (tais
como sentido, resistência, associação, transferência, etc.) só têm sentido no interior da
situação analítica; fora desta, só são utilizáveis na medida que se possa conceber de os
encontrar em situação analítica ou em uma situação análoga. É por isso que estimo que
estas noções essenciais só têm valor epistemológico primário em situações analíticas, nas
outras situações - em virtude da lei da analogia - elas só têm um valor mais ou menos
enfraquecido. As noções psicológicas que se fazem derivar da vida só possuem um valor
epistemológico secundário na medida que não podem ser concebidos em situação

*
Os encontraremos expostos nas obras de Glover e de Menninger (p. 83-84).
1B
ridgman: Der Logik der heutigen Physik, Hueber, 1932, p.
5.
analítica. Do que precede decorre um outro pressuposto: é necessário que o analista
conheça pela sua experiência direta (o que corresponde à introspecção da psicologia) os
processos reais que condensamos em conceitos. Nenhum método analítico não poderá
substituir a experiência direta, subjetiva, liberada pela introspecção.

Da mesma maneira que um processo físico a observar não se separa nunca


inteiramente do instrumento de medida do qual se serve para sua observação ( 2 ), posto
que os dois constituem um conjunto, da mesma maneira o processo psíquico observado
em situação analítica é inseparável do analista, o que coloca para este problemas
específicos aos quais somente uma análise paralela e aprofundada pode trazer uma
solução. Portanto, a primeira de todas as condições prévias é a existência de uma auto-
análise do analista. É a mesma coisa para os futuros psicólogos: eles devem começar por
servir eles mesmos de sujeitos de experiência.

Malgrado sua originalidade, a psicanálise emprega métodos que não são estranhos
a certas outras disciplinas. De início a história: o psicanalista interroga continuamente o
passado para, recorrendo ao mesmo, esclarecer o presente. Atrás dos dados manifestos
ele procura fenômenos primitivos que freqüentemente não pode surpreender senão em
um estado embrionário.

Por outro lado, a psicanálise apresenta certas analogias com a arqueologia que
examina minuciosamente a menor porção de terra trazida à luz por ocasião das
escavações. (Schliemann, Petrie.) "O trabalho de construção, ou, se se prefere, de
reconstituição" apresenta, em análise, "analogias flagrantes com o trabalho do arqueólogo
ocupado em exumar os lugares de habitação e de construções destruídas ou danificadas"
( 85 ).
Como a biologia genética, a psicanálise procura um genótipo (o inconsciente) por
detrás do fenótipo.

Eis aqui uma analogia com os métodos empregados em histologia: quando da


análise de sonhos, o psicanalista procura reconstituir cortes que não apresentam nenhuma
relação fenotípica entre eles, independentes uns dos outros. Não se deve esquecer que
Freud, na origem, era histologista!

Os métodos da patologia igualmente contribuem, já que os desenvolvimentos


patológicos nada mais são que manifestações anormais das funções vitais, que trabalham
igualmente no homem com boa saúde. (Princípio de Virchow.)

Esforcei-me de apresentar um só método com as ramificações indo em diferentes


sentidos. Este método é o resultado de um processo histórico iniciado em diversos
"pontos de fixação" e submetido, só seria assim por esta razão, à apreciação subjetiva de
seu autor.
2
Planck: Wege der physikalischen Erkenntnis. Hirzel, 1933,
p. 278.
85
Freud, S. Konstruktionen in der Analyse, 1937. Ges. Werke.
16, p. 45.
Na situação presente da psicanálise onde numerosos elementos tocam o conteúdo
desta ciência tendendo a se condensar, ao passo que outros são colocados em questão e
outros ainda deixam entrever suas facetas até então deixados na sombra, pode-se afirmar,
modificando um adágio político conhecido: "O método é tudo, o conteúdo não é nada." O
método seria assim o ponto fixo da psicanálise. Mas quem diz método diz movimento.
I

A SITUAÇÃO PSICANALÍTICA

A COLETA DOS MATERIAIS

1. Tudo dizer. O papel da atenção

Decorre do que dissemos acerca da estrutura do psiquismo humano, do fato de


que este comporta uma parte consciente e uma inconsciente, que o homem interrogado
sobre o conteúdo real do seu psiquismo, seja incapaz de dar uma resposta satisfatória.
Tanto quanto dizer que a psicanálise necessitava de métodos que permitissem uma
penetração profunda e suscetível de fazer aparecer o que habita necessariamente oculto à
introspecção, a fez metodologicamente perfeita.

O primeiro passo em direção a este objetivo estava representado por um procedimento


que um médico vienense, Breuer, aplicava no tratamento de uma das doentes histéricas;
esta, mergulhada num estado hipnótico a cada dia renovado, pode contar-lhe sobre
acontecimentos há muito tempo perdidos para sua consciência. Estas evocações
permitiram-no eliminar alguns tipos de sintomas da sua doença. Este método "catártico"
incita Freud a elaborar um procedimento permitindo ir igualmente tão profundo num
estado "normal" e colocar assim em evidência certas camadas inconscientes do
psiquismo. Por uma simplificação abusiva, o procedimento recebeu o nome de associação
livre. Tendo em vista as confusões a que esta simplificação deu lugar, não é inútil fazer
uma revisão das bases do método de associação livre.

Na pré-história da técnica analítica (3) está a idéia de um poeta, idéia que, a meu
conhecimento, não foi jamais retomada pela literatura contemporânea (95). (Minha
atenção se dirige ao ensaio de Börne citado naquele estudo pelo Dr. Hugo Dubrovitz.)
Freud fala de um precursor da psicanálise, do escritor alemão Börne, que, em 1823, num
artigo de título promissor: Die Kunst in drei Tagen ein Originalschrifsteller zu werden (A
arte de tornar-se um escritor original em três dias), dá o seguinte conselho: "Pegue
algumas folhas de papel e anote durante três dias tudo o que passa por sua cabeça, sem
hipocrisia nem falso pudor. Diga o que você pensa de você mesmo, de sua mulher, da
guerra da Turquia, do processo criminal de Fonks, do Julgamento final, de seus
superiores hierárquicos. Terminado seu trabalho, não se espante da novidade, da
originalidade de seus próprios pensamentos." Nós também, de nossa parte nos admiramos
diante de uma tal pré-ciência, este esboço do método da psicanálise no início do Século
XIX. O conselho de Börne merece ser minuciosamente examinado.

Ele se compõe de duas partes: uma geral (anote tudo o que passa por sua cabeça;) e
outra específica; esta última contém - coisa curiosa - mais ou menos tudo o que se revela
de essencial em suas manifestações "sem falsidade e sem hipocrisia": o erótico e o
sádico, a mãe e o pai, o dever e a fé. Negligenciando entretanto esta segunda parte - sem
violentar ao pensamento de Börne - nós nos encarregaremos da primeira.

"Anote tudo o que passa por sua cabeça." Esta tese de Börne é, com efeito, um dos
aspectos, e, pelas tendências simplificatórias de que falamos acima - um aspecto
essencial da regra fundamental do método psicanalítico. Onde nos conduz sua estrita
observância, se eliminamos toda outra consideração?

A uma "forma de pensamento" que nós conhecemos sob a denominação de "fuga de


idéias". Faz parte do diagnóstico da mania e a psiquiatria a caracteriza como sendo uma
seqüência de conceitos ligados entre si por associações puramente exteriores, e,
aparentemente, sem relação entre eles. Citemos, como ilustração, o exemplo que se
tornou clássico de Liepman; para facilitar-lhe a compreensão, nós o reproduzimos no
original. A pergunta do médico: "Wie geht's?" (Como vai?) desencadeia, no maníaco, a
onda de palavras que seguem: " Es geht, wie's steht. In welchem Regiment haben Sie
gestanden? Herr Oberst ist zu Hause. In meinem Hause, in meiner Klause. Haben Sie Dr.
Klaus gesehen? Kennen Sie Koch, Kennen sie Virchow? Sie haben wohl Pest oder
Cholera? Ach die schöne Uhrkette, wie spät ist es?" (Vai indo assim, fique de pé. Em
qual regimento você serviu? M. o chefe está em casa dele - Na minha casa, dentro da
minha cerca. Você viu o Dr. Klaus? Conhece Koch, conhece Virchow? Você tem mesmo
a peste ou a cólera? Ah! As belas correntes de relógio, que horas são?)

Se nós nos interrogamos sobre a coesão destas frases ou sobre os fatos aos quais elas
correspondem, nós não podemos senão dar respostas negativas: não há coesão e as frases
não remetem a nenhum conjunto de fatos. Deste ponto de vista, este discurso é
desprovido de sentido. Mas de um outro ponto de vista?

Tudo o que nós sabemos do doente é que, em sua juventude, ele era ajudante de
campo de um oficial. Este único fato nos basta para compreender certos aspectos de seu
discurso. Adivinhamos que ele identifica o médico, seu atual "superior", ao oficial que
ele outrora serviu, pressentimos seu desejo obscuro e mal definido de aceder à classe
social do médico e do oficial. Deste fato, os propósitos incoerentes do maníaco
esclarecem seu psiquismo melhor do que o faz a resposta "sensata" do neurótico não
maníaco que, citado igualmente por Liepman e que, se queixando de suas insônias, as
atribui ao banho quente que ele tomou à noite ou ao barulho que fazem os outros doentes
da sala. O sentido que nós escutamos na "fuga de idéias" do maníaco não é outro senão
que a possibilidade de integrar seus propósitos na continuidade de sua vida. Este sentido
cuja apreensão é a primeira tarefa do procedimento psicanalítico é precisamente o sentido
psicanalítico.

Mas existem, bem entendido, "fuga de idéias" desprovidos de qualquer sentido


psicanalítico por falta de nos dar a menor informação sobre a pessoa do doente, ou em
razão de uma completa desintegração de seu discurso.
Assim, o preceito borneano (dizer tudo o que passa por nossa cabeça, com exceção de
toda outra consideração) não pode ser seguido em psicanálise senão dentro de certas
condições ótimas, precisamente as que nos permitem apreender relações esclarecedoras
para a continuidade da vida, tomar os sentidos que escapam à introspecção tradicional.
Senão, nós não temos nem referência a um conjunto de fatos, nem sentido psicanalítico.

Assim, a tarefa de uma metodologia analítica consiste, por um lado, de indicar os


mecanismos psíquicos que permitem tirar partido - do ponto de vista psicanalítico - das
instruções börneanas; é, por outro lado, a de traçar os limites de seu campo de aplicação.

Quais são então essas condições psíquicas nas quais o "tudo dizer" permite ir mais
profundo e aceder a conteúdos de uma importância vital? Uma dentre elas é, para nós, um
modo particular ou, mais exatamente, uma suspensão particular da atenção; graças a qual
se pode deslizar de um conteúdo a outro * .

No maníaco, a suspensão mais ou menos importante da energia fixadora da atenção é


inerente à doença. É difícil obter o mesmo efeito nos indivíduos normais, quer dizer, não
maníacos. A atividade fixadora e preensiva da atenção faz parte dos fenômenos primários
por excelência da vida psíquica consciente; ela rege muito cedo ao desenrolar das
imagens conceituais. Pode-se provocar a suspensão dando "en pâture" à atenção um
objeto exterior sobre o qual ela possa se fixar - o encadeamento das idéias e das imagens
se conclui simultaneamente e por assim dizer atrás desta tela. Foi assim que eu pedi a
meus pacientes que fizessem jogos de quebra-cabeça sempre falando ou resolvessem os
testes de Bourdon (trata-se de marcar certas letras num texto desprovido de sentido)
durante a sessão analítica. Estas experiências deram alguns resultados surpreendentes.
Foi assim que ao mesmo tempo em que concluía o teste de Bourdon, um de meus
pacientes rememorou um sonho depois de muito tempo esquecido; um outro, embora
jogando quebra-cabeça, reencontrou o local onde ele havia colocado um documento
importante que procurara em vão há dias.A um dos meus pacientes, em quem a auto-
observação beirava a obsessão, eu dei uma vez o teste de Bourdon e um jogo de labirinto
para obter uma dispersão desejável de sua atenção. Aí também, a experiência foi
conclusiva.

No entanto nós temos visto que a suspensão total da atenção dirigida, o abandono
totalmente passivo aos conteúdos psíquicos, tal como eles se apresentam, não resulta em
todos os casos no surgimento do contínuo psíquico. É por isso que nós pensamos que a
injunção: "Diga tudo que passa pela sua cabeça" se não é combinada a outras
recomendações (sobretudo na fase inicial da análise ou a cada vez que o doente deva
dizer o que pesa sobre o seu coração, quer dizer fatos sensatos) é sempre tão criticável

*É-nos impossível abordar aqui a psicologia da atenção, domínio, por assim dizer, não
decifrado pela psicanálise. O que é certo é que não se trata de uma função isolável
(talvez aliás tais funções nem existam em si mesmas em psicologia) e que uma forte
concentração da atenção se acompanhe de hormônios sexuais. (Freud, Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade, Ges. Schr., tome V, p.79) Uma concentração menos forte da atenção
desembocaria sem dúvida em um relaxamento da correlação sexual. - "A atenção" ela mesma é
desencadeada por fatores quantitativos; ela depende do grau de investimento do psiquismo
pelas energias psíquicas. (Freud: Uber einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht. (A
propósito de certos mecanismos neuróticos do ciúme.) Ges. Schr., tome V, p.39.) Pelo jogo
dos conflitos interiores, energias podem se deslocar e se fixar sobre conteúdos, que, em
si mesmos, não seriam dignos de atrair a atenção.
quanto o é a afirmação, proferida há alguns anos por um analista segundo o qual "em
psicanálise não se encontra senão aquilo que não se procura."

Em Psicopatologia da vida cotidiana, Freud aconselha, para reencontrar uma palavra


esquecida, "participar lealmente e sem crítica tudo o que passe pela sua cabeça, até que
você dirija sua atenção, sem qualquer intenção definida, sobre a palavra esquecida"
(sublinhado por nós) (5). É assim que aparecia ao lado da liberdade e da espontaneidade,
a noção de orientação e de "pesquisa". Parece, com efeito, que para o conhecimento
psicanalítico, a situação a mais vantajosa está a meio-caminho entre liberdade e
obrigação, a tese börneana (dizer tudo o que nos passa pela cabeça) e uma atenção sob
tensão de espera. Poderíamos lembrar aqui que uma onda de palavras incoerentes
absolutamente desprovidas de um fio-condutor, inconsciente, não pode, de todo jeito, se
prolongar por muito tempo. Mas por que dar instruções que podem provocar perturbações
e cuja aplicação ao pé da letra seria contrária ao objetivo do fim analítico? *

Lembremo-nos, a esse propósito, a forma pela qual, de manhã, nós procuramos nos
lembrar de nossos sonhos meio esquecidos. Para fazê-lo, nós precisamos "querer", mas
para chegar a nossos objetivos, nós precisamos não fixar nossa atenção sobre os
conteúdos psíquicos que vão surgindo, mas antes de tudo, desviá-la , deixá-la fluir, ou
fixá-la sobre outras tarefas. É então que "a intenção de procura" pode realizar-se num
momento em que nem esperávamos. Constatamos a mesma coisa quando queremos
recuperar um nome perdido. Este surge na consciência com a rapidez e a brusquidão de
um relâmpago - na condição de que a atenção não seja dirigida sobre ele.

É desconhecer a natureza da associação livre o imaginar que ela possa consistir em


uma seqüência de pensamentos completamente espontâneos (6). Em presença de um
material de pesquisa (sintoma, sonho, ato falho etc.) a atenção deve ser dirigida seja para
o material ele mesmo, seja para um dos objetivos gerais da análise (descoberta do
passado, manifestação do eu profundo). Mas contrariamente ao que se passa na
associação ligada, o Eu abandona este tipo de atenção, a atenção consciente se desvia de
qualquer tipo de objetivo fixado. Analisado e analista devem ambos se submeter a esta
exigência; o analisado para favorecer o surgimento do inconsciente e o analista para se
colocar no diapasão do analisado, para melhor perceber os sinais que emanam de seu
inconsciente. Esta atitude - a fixação da atenção acompanhada de seu desvio - é eficaz,
porque corresponde ao modo de funcionamento do inconsciente: este, com efeito, não
possui sentido direto, retilíneo nem se guia sempre para um objetivo. Se no Eu a atenção
impõe uma direção quase retilínea, e tende sempre para um objetivo, no inconsciente,
uma tal atenção não existe, ela dá lugar a um tipo de "linha curva" correspondente à
função da atenção tal como nós a temos caracterizado (87).

Favorecer o surgimento de processos inconscientes, de conteúdos inconscientes,


encorajar a associação livre que apresenta tantas analogias com a hipomania, não é
brincar com fogo, provocar a psicose muito mais que a cura? Escutemos o que diz

*É conveniente também lembrar que freqüentemente a injunção "tudo dizer" não pode ser
seguida efetivamente, em razão do engavetamento de idéias que se atropelam ao surgirem.
Federn: "O fato de que os procedimentos psicanalícos provocam estados psicóticos leves
e passageiros não entrava em si absolutamente nossa luta com o inconsciente. Eu recorro
sempre a este aparecimento anódino de mecanismos psicóticos para despistar e superar
causas profundas, notadamente sentimentos de culpabilidade. Mas para alcançar tais
objetivos táticos, é preciso praticar uma estratégia que consiste na interrupção imediata
da corrente de associações livres ulteriores. Com meus primeiros pacientes, eu tinha antes
a tendência a me contentar com esta produção abundante de materiais inconscientes, eu
lhe favorecia o aparecimento, sem levar em consideração o fato de que reações afetivas
podem ser taxadas de psicóticas na medida em que, por uma súbita e intempestiva
conversão da libido no caso de reações maníacas e da "mortido" no caso de reações
melancólicas, é o conjunto e não somente uma parte do Eu que se encontra investido.
Com a aplicação de métodos habituais, sem que tomemos em consideração as reações
maníacas ou melancólicas, estas últimas parecem se intensificar e a psicose latente torna-
se manifesta." No caso de psicose manifesta ou latente, convém renunciar à associação
livre (88).

Consideremos agora a concepção da injunção analítica tal como ela aparece segundo
Freud, ou seja da forma que ele descreve a situação psíquica mais favorável para a
obtenção de um material utilizável. Em sua Introdução à psicanálise Freud cita, em
diversos lugares, a regra de base da técnica analítica. "Nós convidamos o doente a se
colocar em estado de auto-observação, sem pensamentos pré-concebidos, e a nos
participar todas as percepções internas que ele assim faça, e na ordem mesma em que ele
as faça: sentimentos, idéias, lembranças. Nós o incitamos expressamente a não ceder a
nenhum motivo que possa lhe ditar uma escolha ou uma exclusão de certas percepções,
seja porque elas são muito desagradáveis ou muito indiscretas, ou muito pouco
importantes ou muito absurdas para que nos fale. Nós lhe dizemos claramente para se
manter à superfície de sua consciência, para descartar toda crítica, qualquer que seja ela,
dirigida contra o que ele bem imaginar , e nós o asseguramos de que o sucesso e,
sobretudo, a duração do tratamento dependem da fidelidade com a qual ele se conformará
a esta regra fundamental da análise (7)." Encontramos em A Interpretação dos sonhos
uma outra passagem sobre o papel da atenção e do estado próximo do sono * (8).

O que acrescenta esta injunção àquela de Börne? Três coisas: 1) a auto-observação


tranqüila; 2) a orientação sobre os afetos, os pensamentos e as lembranças e 3) a luta
contra o que nós designamos globalmente pelo termo de resistência.

Vejamos mais de perto o que estes conceitos querem dizer.

2. Auto-observação tranqüila. A evocação do passado.

*Fenichel chama a atenção para o fato de que nós não seguimos mais a injunção freudiana
de fechar os olhos de medo de convidar o paciente a não olhar a realidade de frente (89).
Com a tese börneana (artificialmente simplificada: dizer tudo o que nos passa pela
cabeça) nós apresentamos um dos pólos extremos da atitude psicanalítica; a auto-
observação tranqüila, exigida por Freud, representa o outro pólo. A primeira demanda
uma tensão quase maníaca, a segunda um relaxamento um pouco depressivo. A primeira
teve como precursor um escritor romântico; será um acaso se o romantismo nos oferece
um outro para representar o segundo? Nós não o cremos: a época da imaginação liberada
e do retorno ao realismo era sem dúvida favorável às tendências que visavam ("visant") o
relaxamento dos mecanismos psíquicos.

O homem que nós vamos citar não é um diletante em ciências: trata-se de Johannes
Müller, o grande fisiólogo do Século XIX, o inventor da teoria das energias sensoriais
específicas. Um de seus opúsculos, editado em 1826 com o título de über die
phabtatischen Gesichtserscheinungen (Sobre as aparições visuais fantásticas) e que se
inspira em sua teoria fisiológica, contém um certo número de observações interessantes e
particularmente importantes para nós. Trata-se com efeito dos estados psíquicos do autor
nos quais este viu surgirem estranhas formações, as "aparições visuais fantásticas".
"Antes de dormir, logo que eu esteja deitado, os olhos fechados, escreve ele, acontece-me
raramente de não ver, na obscuridade de meu campo visual, uma multidão de imagens
brilhantes. Estas me acompanham desde a tenra idade e eu sempre soube distingui-las das
imagens dos sonhos propriamente ditos, pois elas alimentavam minhas reflexões antes
que o sono me alcançasse. Auto-observações repetidas me permitiram mesmo suscitar e
conservar os fenômenos. Meus passeios entre as criações de meus próprios olhos me
permitiram abreviar muitas noites de insônia. Se eu quero observar estas imagens
brilhantes, é-me preciso imergir meus olhos fechados, e, perfeitamente repousados, na
obscuridade de meu campo de visão, relaxar até a calma absoluta, descartar todo
pensamento, todo julgamento, toda impressão chegada ao organismo do exterior. O que
eu observo então, são reflexos visuais de estados orgânicos cujo centro está em algum
outro lugar que não nos olhos . Estas imagens brilhantes e sensoriais, logo absolutamente
imaginárias e imediatamente afugentadas por toda reflexão "são formações pouco
familiares, figuras humanas e de animais estranhos, jamais vistos anteriormente, claros
locais onde eu jamais estive. Impossível estabelecer a menor relação entre esses
fenômenos e minhas experiências diurnas.” Se bem que os instantes que precedem o
adormecimento sejam particularmente favoráveis ao aparecimento dessas imagens
espontâneas, podemos evocá-las durante o dia. "Eu passei horas na calma, os olhos
fechados, mas sem pensar em dormir, a estudar essas imagens, diz Müller.
Freqüentemente, me bastava sentar-me, fechar os olhos e me abstrair de tudo, para ver
surgirem espontaneamente estas imagens agradáveis, às quais eu me habituei desde
minha juventude. Contanto que a obscuridade reine, contanto que eu tenha o espírito
suficientemente tranqüilo, livre de toda paixão, eu estou certo de ver surgirem estes
fenômenos, até mesmo quando não é uma questão de dormir."

Trata-se de que? Do surgimento e desaparecimento de conteúdos de consciência


livremente flutuantes, que se subtraem a toda influência, estranhos ao Eu consciente,
mensagens que vêm de profundidades desconhecidas. Há aí uma certa coincidência com
os objetivos da psicanálise, da mesma maneira aliás que a atitude de Müller não é sem
parentesco com as instruções freudianas. Tinha ele também, necessidade de uma calma
perfeita para se dar inteiramente à auto-observação. Chegou ele a remontar ã fonte dos
fenômenos observados?

Não, porque sua atitude representa apenas um dos pólos extremos da situação
analítica. Se segundo Börne, a liberdade era não-diretividade, segundo Müller, a "calma"
é um dobrar-se sobre si. Ao se concentrar sobre o campo visual, Müller se fecha aos
julgamentos, aos sentimentos e aos pensamentos. O teatro psíquico destes fenômenos é o
campo visual e nada mais. Ele assiste assim ao surgimento de imagens que ele não
compreende, que lhe parecem incoerentes, desprovidas de referências aos fatos -
enquanto que uma pessoa versada em psicanálise teria talvez podido interpretá-las. O
psiquismo interior profundo não se manifesta mais aqui do que na "fuga de idéias",
resposta à instrução borneana.

Mas, assim como nós pudemos resgatar na "fuga de idéias" um núcleo utilizável a
nossos fins, da mesma forma a atitude de Müller talvez não seja sem proveito para os
objetivos analíticos. Müller mesmo reproduz uma descrição interessante, tirada do
Magazin zur Erfahrungskunde de Moritz e de Pockels. "No estado intermediário entre
sono e vigília, nós percebemos algumas vezes imagens bizarras, ridículas, indecentes até
terrificantes que atravessam nossa alma e cuja origem misteriosa escapa ainda ã
investigação psicológica. Sem descobrir o menor traço de associações de pensamentos,
suscetíveis de explicar evocações memoriais, nós nos lembramos com uma
impressionante precisão de acontecimentos passados, ou acreditamos perceber um objeto
intensamente iluminado, uma figura humana repugnante, um cadáver, um precipício, uma
mulher deslumbrante. Um erro de juventude, cuja evocação diurna não nos afeta quase
nada, nos causa então uma dor intensa e, na calma solitária da noite, nos ruborizamos
com alguns de nossos pensamentos, enquanto que nós jamais aprovaríamos um tal
sentimento durante o dia."

Esta observação de J. Müller seria ela conhecida por Freud? Ouçamos, uma vez mais,
a obra de Taine: "Eu conhecia este estado (aquele descrito pelo Manual de psicologia de
Müller, II, 547) por minha própria experiência, e eu repeti a observação um muito grande
número de vezes, sobretudo durante o dia, estando fatigado, e sentado em minha
poltrona: basta-me então tampar um olho com um lenço, pouco a pouco, a visão do outro
olho torna-se vaga, e este olho se fecha. Aos poucos, todas as sensações exteriores se
apagam, ou pelo menos deixam de ser marcantes; ao contrário, as imagens interiores,
fáceis e rápidas durante a vigília completa, tornam-se intensas, distintas, coloridas,
estáveis e duráveis: é um tipo de êxtase acompanhado de descanso geral e de bem- estar.
Advertido por uma experiência freqüente, eu sei que o sono vai vir e que não é preciso no
momento contrariar a visão nascente; eu me deixo levar , ao cabo de alguns minutos ela
está completa. Arquiteturas, paisagens, figuras enérgicas, desfilam lentamente, e por
vezes persistem." O autor faz igualmente alusão à "alucinação hipnagógica" descrita por
Maury (79, p.78)

O que se passa aqui, é o início de uma abertura em relação à atitude fechada de


Müller. Graças a ela, a "passagem do estado de vigília ao sono" faz surgir conteúdos que
estavam inacessíveis à simples observação visual, assistimos ao aparecimento de
pensamentos, de sentimentos e de lembranças, como o queria Freud; e seu observador -
admirando-se de seus deslocamentos de energia em relação ao estado de vigília - os
compreende, no fundo, muito bem. Nós temos as imagens de Müller, mas estas não são
mais completamente estranhas, pois elas se enraízam no contínuo da alma. Nós
conhecemos bem este estado: é aquele do devaneio.

Um analista belga, cedo desaparecido, Varendonck (9), dá do devaneio, que ele chama
"pensamentos fantasmáticos preconscientes", uma descrição que, guardadas as
proporções, corresponde à precedente. Ele é assaltado por imagens análogas mas sempre
antes do sono, algumas vezes mais cedo, interrompidas por conversações dialogadas e
por lembranças que surgem em sua memória. É este último ponto que nos interessa
sobretudo aqui e a questão, muito importante do ponto de vista do método analítico, é a
de saber se existe uma relação qualquer entre o surgimento de lembranças e a atitude de
Müller?

Digamos desde já que a resposta é afirmativa. Para compreendê-la, examinemos mais


atenciosamente as imagens descritas anteriormente.

A psicologia contemporânea considera os fenômenos visuais fantásticos de Müller


como formações de natureza regressiva, quer dizer, pertencentes a um estágio passado da
evolução, mas capazes de ressuscitar. Excepcionais na vida do adulto, elas são normais
na infância. Müller o sabia: criança, ele passava horas a contemplar o "crépi écaillé"
[reboco de cal descascado] da casa em frente cujos contornos lhe pareciam desenhar
faces muito expressivas. Mais tarde ele não conseguia mais evocar essas faces. Graças a
E.R. Jaensch que deu a esse fenômeno o nome de eidetismo, nós conhecemos sua
natureza e mecanismos. A longa série de experiências efetuadas por Jaensch mostrou que
as imagens eidéticas da infância são realmente percebidas como tais, que não se trata de
construções do espírito, mas de um grau de evolução inferior ao pensamento por
palavras. Elas representam a forma de ver da criança e não se apresentam na idade adulta
senão excepcionalmente, em indivíduos particularmente inclinados a esse gênero de
percepções. A passagem do estado de vigília ao sono que desencadeia essas "ausências
oníricas" (Jaensch) é particularmente favorável ao eidetismo. Compreendemos nessas
condições que o mesmo estado, que favorece a regressão de um mecanismo de
funcionamento, favorece igualmente uma regressão de um outro tipo, o retorno ao
passado, o ressurgimento de estados do Eu desde há muito passados na evolução do Eu
(10). Que lembranças possam emergir é alguma coisa tão normal quanto a forma
imaginada, ou seja conforme a forma de ver das crianças, de que elas se revestem .

Freud pode ler em Taine certas passagens sobre o surgimento de velhas lembranças
sob o efeito do "hachiche, da agonia, de grandes e súbitas emoções". "Não se pode então
assinalar limites a estes renascimentos e somos forçados a outorgar a toda sensação, por
rápida, pouco importante, por apagada que ela seja, uma atitude infinita a renascer (79,
p.134).

Lembremos aqui uma descoberta muito antiga da psicanálise: o sono ele mesmo é de
natureza regressiva. O estado "antigo”, passado, é aqui, segundo Freud, a vida intra-
uterina. Ferenczi elabora a base fisiológica desta teoria ao dirigir notadamente a atenção
sobre o retorno, durante o sono, do reflexo de Babinski (11). Nós sabemos o que significa
este retorno: diminuição do tônus do aparelho superior, inibindo, do sistema nervoso
central e, paralelamente, enfraquecimento das inibições psíquicas, o que funda a teoria
dos sonhos. Mas encontramos seus traços na contemplação de Müller e no devaneio de
Varendonck, estados vizinhos do sono, assim como na atenção flutuante da situação
analítica.

Voltando a esta última, compreendemos facilmente que um estado de introspecção


tranqüila, de relaxamento vizinho ao sono, seja eminentemente favorável ao
engendramento de regressões. A mais forte razão, se nós recordamos a postura tomada
por um recém-nascido normal durante o sono. Esta não lembra a posição intra-uterina,
mas a do pequeno macaco (se agarrando à mãe) (12,13). O desejo de apego - o primeiro
desejo não concluído do `filhote' do homem - pode ressurgir de forma regressiva durante
o sono ou num estado vizinho ao sono; se a análise consegue provocar tais estados, estes,
desencadeando o desejo físico de apego, podem constituir bases importantes para os
fenômenos afetivos nascidos ao curso da análise.

Coisa curiosa, tais regressões não são unicamente provocadas pela calma e o voltar-se
para si. Certos tipos de movimentos, como a marcha regular ou o ritmo regular do
trabalho, podem chegar ao mesmo resultado. Mais um movimento é monótono, mais ele
"adormece" certos setores do psiquismo, e mais ele contribui para o aparecimento de
estados favoráveis à regressão. Eis o que notou a este respeito o engenheiro alemão,
Hultzsch, que se engajou como trabalhador nas fábricas Ford: "Tomado pelo ritmo do
trabalho, eu me separava mais e mais da execução de minha tarefa... eu era invadido por
lembranças, idéias se encadeavam em meu espírito, sem que minha atenção se relaxasse
um só instante..." Compreendemos facilmente o caráter regressivo e primitivo de
operações rítmicas; pensemos no berço de nossa infância! Eu consegui um dia provocar,
em um neurótico compulsivo grave, um estado psicanalítico favorável: para desviar sua
atenção sempre tensa durante a sessão, eu lhe pedi que escrevesse uma palavra várias
vezes. O doente escolheu seu próprio nome para este efeito, e durante a execução rítmica
de sua tarefa, ele viu surgirem lembranças e afetos que teriam um papel muito importante
no prosseguimento da análise. Essas operações rítmicas não contribuem somente para
desviar a atenção, como nós temos visto a propósito da atitude maníaca, mas também
para conduzir o psiquismo a um estado próximo do sono e isto diretamente, utilizando a
força sonolenta do ritmo.

Diz-se há muito tempo que uma perfeita relaxação com eliminação de toda excitação
sensorial vinda do exterior conduz a um estado de sono (Strümpell). Recentemente,
experiências foram feitas em cabine à prova de som: resultou em que para assegurar a
continuidade da consciência, o cérebro necessitou de excitações sensoriais constantes e
variadas. Com efeito, a excitação monótona que "adormece" a consciência é responsável
por diversos acidentes na indústria ou o exército. Ao curso de um longo exercício no
radar, um soldado observador não percebeu certos fenômenos, até que algum
acontecimento exterior viesse desviar sua atenção. Ao curso das experiências em cabine à
prova de som a que nós fizemos menção, as orelhas do sujeito estavam cobertas de
almofadas de borracha, a cabine recebia uma claridade lívida que impedia o
reconhecimento de objetos e o tato obstruído por longas luvas e mangas. Ao curso da
experiência que durou 24 horas, o sujeito, foi tomado pouco a pouco pelo sono, acabando
por dormir. Depois de seu despertar, o estado de sonolência persistia e o sujeito, ávido
por excitações, começou a cantar, a falar consigo mesmo e a explorar a cabine. Incapaz
de se concentrar, ele se torna presa de delírios e fantasmas alucinatórios; um sentimento
de vazio apodera-se dele e ele acaba por se encontrar num estado de instabilidade
emocional extrema. Fantasmas "spatiaux", análogos àqueles que são provocados pela
mescalina, fizeram igualmente sua aparição (97).

A técnica da relaxação para o tratamento de neuróticos foi aplicada desde 1891 por
Annie Payson-Call. Jacobson, Rippon e Fletscher (92, 93,94) engajaram-se pelo mesmo
caminho. A associação livre não tinha ainda lugar nesses métodos.

Para terminar, assinalemos dois outros procedimentos. O primeiro foi aplicado por
J.H. Schultz, autor de um método de terapia fundado sobre uma atitude como a de
Müller, se bem que ele não faça qualquer menção (14). Para ele a correlação
relaxamento-aprofundamento é uma relação ancestral, como o indicam as numerosas
analogias que ela apresenta com o relaxamento ligado ao adormecimento. O treinamento
autógeno se vincula a um mecanismo biológico. O procedimento de Schultz, se bem que
seja capaz de produzir abreações "autocatárticas", visa obter a ausência de ressonâncias a
afetos mais do que a ausência de conflitos favoráveis à análise, o que indica que nós
estamos diante de um método de defesa "fechado" (se bem que a obtenção do estado
autohipnótico figure entre os objetivos do autor).

Entre as inovações de Ferenczi em matéria de técnica de relaxação, o relaxamento da


situação analítica concerne sobretudo às relações afetivas, mas também o treinamento em
vista de um relaxamento físico a serviço do aprofundamento (15).

"Eu compreendi, escreve ele, que era por vezes útil aconselhar exercícios de
descontração e que esse tipo de relaxamento podia permitir superar inibições psíquicas ou
resistências em matéria de associações. Eu não precisaria dizer que esses conselhos estão
exclusivamente a serviço da análise. Tudo o que tem em comum com os exercícios de
relaxamento e de domínio de si da yoga, é que, graças a eles, nós podemos esperar uma
melhor compreensão da psicologia do sujeito (69)." Muitos anos mais tarde, Ferenczi nos
informava que o abandono de si e o relaxamento do paciente, por tão perfeitos que sejam,
tinham limites. Nos estados de relaxamento, numerosas lembranças surgem de forma
inteiramente espontânea. O analista deve então servir de ponte entre o estado de transe e
a realidade favorecendo constantemente a elaboração intelectual dessas lembranças,
graças às questões que ele coloca (96).

O que nós expusemos aqui foi recentemente formulado da seguinte forma com a ajuda
da psicologia do Eu e notadamente da noção de autonomia do Eu (Hartmann,98). "As
condições materiais da psicanálise - o divã, a obrigação de cessar toda ação, a
representação do psicanalista enquanto "mur blanc" etc. - isolam o doente de estímulos
exteriores. A técnica psicanalítica reconhece expressamente que é necessário impedir os
contatos com a realidade exterior a fim de fazer aceder as emanações do Isso ["Ça"] à
consciência. A realização eficaz desta técnica provoca uma modificação do equilíbrio da
autonomia; esta se fortalece face ao ambiente exterior e se enfraquece face ao Isso.
Graças à afluência da teoria da autonomia, a da técnica psicanalítica adquire bases
sólidas; se nossos conhecimentos sobre a técnica psicanalítica, seus problemas e suas
aplicações se enriquecem sem cessar, a teoria desta técnica,e, em particular, sua
metapsicologia fica muito atrás . A concepção da autonomia tem relações diretas com a
psicoterapia dos estados limites. A técnica psicanalítica se encontra modificada: o divã
desaparece, terapeuta e paciente estão face a face, o psicanalista mudo é substituído por
um psicoterapeuta participante e pronto a ajudar, etc. Da mesma forma , as excitações
estão menos propícias a serem descartadas . Entretanto, o momento em que um caso
limite , ou um neurótico grave, deve ser liberado do divã para ocupar a posição sentada
não é evidente. Nós ignoramos ainda em que momento esta privação de excitações
ultrapassará a regressão terapeuticamente necessária, a serviço e sob o controle do Eu,
para oscilar na regressão patológica. Nós ignoramos se a redução relativa e reversível da
autonomia do Eu face ao Isso - objetivos das regras da técnica psicanalítica - escapam a
nosso controle. Como obter um estado psíquico terapeuticamente eficaz, evitando as
limitações ulteriores, regressivas e patológicas, da autonomia do Eu face ao Isso? É um
dos problemas essenciais da psicoterapia dos estados limites e talvez de toda terapia
(99)."

Nós podemos dizer em resumo que o estado de auto-observação tranqüila, tal como
ele é apresentado em sua forma extrema (fechado à interioridade) na descrição de
Johannes Müller, conduz a um estado próximo do sono que favorece o mergulho
regressivo no passado, e - a menos que procuremos eliminá-los intencionalmente - o
surgimento de lembranças-imagens. Ora, a análise tem necessidade de lembranças-
imagens, não seria este o porque de numerosas lembranças de infância serem depositadas
em nós sob uma forma eidética e, para retomar uma fórmula impressionante, o objetivo
da psicanálise ser o mergulho na história da vida (16).

Para completar os dois capítulos precedentes, eis algumas considerações sobre a


psicologia da auto-observação. Esta alimenta diferentes instintos todos nela se nutrindo:
ela mobiliza o narcisismo, o voyerismo, o sado-masoquismo, etc. (Schilder) (100). Isto se
torna manifesto na depressão. A relação entre o Eu e o Supereu está igualmente em jogo.
Estas duas instâncias do psiquismo se observam mutuamente. Segundo Reik (101) toda
auto-observação resulta da introjeção do observador que se encontra diante da pequena
criança e que esta última o observa. A tendência à auto-observação aumenta se hesitamos
entre a execução e o abandono do projeto (Schilder). Neste caso, a auto-observação se
coloca entre pensamento e ato. Em psicanálise, o paciente regride em direção à situação
original "pequena criança face ao observador exterior" e em direção ao estágio do sentido
mágico-animista da realidade com, se possível, exclusão do ato (Ferenczi, 102). Estas
duas atitudes remetem a auto-observação a um estágio primitivo. A posição deitada
exclui o ato e facilita a auto-observação.

Qual é a diferença entre a auto-observação metódica da psicologia e o método


psicanalítico? Lembremos da instrução dada pelo célebre G.E. Müller a seus sujeitos
experimentais: "É preciso que o sujeito assinale no processo-verbal apenas experiências
de que ele se lembre com certeza. É preciso colocar-se em guarda contra o perigo da
psicologia experimental que consiste em acumular opiniões pré-concebidas, vagas
sugestões, idéias vindas ao acaso. O sujeito aí sucumbe se, no processo-verbal, ele
assinala estados que lhe parecem incertos...(103)" Vejamos a diferença: de um lado, nos
guardamos contra a tendência a tudo dizer, de outro, a encorajamos.

3. Abreação verbal de afetos. O segredo

Nós falamos até o presente de duas atitudes que, isoladas no conjunto da situação
psicanalítica, constituem duas manifestações extremas: de uma parte, a estrita
observância da injunção börneana: dizer tudo o que nos passa pela cabeça; de outra parte,
a auto-observação tranqüila, dirigida sobre a visão, tal como a descreve Johannes Müller.

Uma terceira atitude psicanalítica está indicada na denominação mesma do


procedimento psicanalítico "ancestral"; nós queremos falar de sua meta catártica.

No que concerne às duas primeiras atitudes, nós podemos evocar dois paralelos
tomados emprestados ao romantismo do início do Século XIX. Poderíamos reconduzir a
atitude "catártica" à poética clássica de Aristóteles? O ensinamento de Aristóteles sobre a
catarse não nos é disponível, nós conhecemos apenas as diversas interpretações que lhe
foram dadas mais tarde. Os comentários, na medida em que eles são corretamente
desenvolvidos, partem de dois pontos de vista opostos: o ponto de vista moralizador e o
ponto de vista psicologizante. Privilegia na primeira acepção: sua concepção era
dominante por volta de l880; a segunda visão foi ilustrada - depois de uma primeira
contribuição de E. Müller (1837) - por Bernays, em seu tratado publicado em 1857 (17) .
Nesta obra a catarse é apresentada como um tipo de cura médica. Aristóteles teria dito
que os cânticos sagrados têm o dom de acalmar os agitados exatamente como uma cura
médica ou uma catarse. Da mesma forma para os doentes, aterrorizados e todos aqueles
que estão bem dispostos a considerar certo afeto... para todos estes deve haver uma
catarse qualquer, um sentimento de prazer que os alivie." Bernays pensa que o termo
"agitado" recobre em Aristóteles as pessoas que apresentam "sintomas nervosos ou, como
dizemos hoje em dia, de sonambulismo, ou "magnetismos". Num escrito do Século III,
tratando do culto fálico e da linguagem impura dos cultos, lemos, a propósito do efeito do
drama: "As forças que engendram as afecções humanas, geralmente presentes em nós,
agitam-se com violência redobrada se procuramos fortalecê-las inteiramente. Ao
contrário, se deixamo-las se manifestar durante um breve lapso de tempo com
moderação, elas procuram uma satisfação comedida, para apaziguarem-se em seguida,
sem a intervenção de qualquer violência. Eis porque o espetáculo de afetos estranhos na
comédia ou na tragédia apaziguam nossos próprios afetos moderando-os e aliviando-os ,
e da mesma forma, no templo, nós conjuramos, pela visão e audição de certas coisas
sujas, o prejuízo que seu acompanhamento real poderia nos causar. "Esta concepção
corresponde tão bem àquela de Aristóteles. Este não acreditava absolutamente na cura
pela aplicação de qualquer cura "radical" visando a destruir os afetos, é preciso sobretudo
confiança na catarse enquanto derivativo e paliativo.

Entretanto a catarse freudo-breueriana está muito afastada da concepção


psicologizante e não moralizadora de Bernays. Aqui, lembramos, escutamos, ou no
melhor dos casos, agimos por identificação; na análise, ao contrário, é o paciente ele
mesmo que, para se libertar, deve formular enunciados carregados de afetos. É aqui que
convém citar o testemunho de um grande poeta. Goethe, que, em 1826, recusando as
concepções de Lessing e opondo-se às doutrinas estéticas que tomam como ponto de
partida o efeito moral do material artístico, reconhece um tipo de catarse, a de pessoas
que participam ativamente da tragédia * (18).

Retornemos às nossas duas primeiras atitudes, aquelas que nós expusemos até aqui.
Por trás de um sentido manifesto, não tardamos a descobrir o sentido analítico. Se a
primeira destas atitudes - considerando suas formas limites - terminavam num tipo de
"fuga de idéias", a segunda desencadeia séries de imagens eidéticas. Há entretanto um
ponto comum às duas, é - em seus casos limites - sua independência frente às funções
intelectuais. Longe de serem regidas pelas leis da razão, elas obedecem às regularidades
próprias a seus sistemas: a primeira atitude é dominada pelas similitudes sonoras, as
associações de palavras, as repetições, as rimas e as aliterações, a segunda pelas
modificações do material de imagens determinado pela plasticidade do campo visual.
Mas nos dois casos, trata-se de automatismos: o da língua e o do campo visual.

Um terceiro tipo de automatismos vem se juntar aos dois primeiros: o dos afetos.
Darwinianos ou não, nós podemos convir que as manifestações de afetos são
reproduções, atualmente desprovidas de sentido, de processos em outros tempos
carregados de sentido , porque relacionados a fatos concretos . Um exemplo clássico a
este respeito é aquele da manifestação de cólera: os rangidos de dentes e os punhos
cerrados - o sujeito se prepara para morder e para bater - mostram com suficiente clareza
a origem deste afeto. Além disso, a filiação é menos límpida, as derivações propostas por
Darwin não indicam sempre relações evidentes; mas nós assistimos, a cada vez, a uma
série inevitável de fenômenos motores concomitantes, que, por falta de poder ir mais
longe, o sujeito e as testemunhas interpretam como "signos”, mais exatamente como
"índices", eles têm suas próprias leis, aquelas fixadas pela filogênese e também um certo
caráter de turbilhão pois arrastam para o centro do turbilhão tudo o que está em contato
com eles.

*"... se (a tragédia) age por meios que engendram o medo ou a compaixão, ela deveria
concluir este trabalho no teatro mesmo, pela pacificação de tais paixões... "Ele
(Aristóteles) entende por catarse o desfecho apaziguador que se pode demandar a todo
drama, assim como a toda obra poética..." "... pois não existe nenhuma catarse mais
elevada que aquela do Édipo em Colonne onde um semi-culpado, um homem que, por sua
constituição demoníaca, pela impetuosidade de seu ser, enfim, pela grandeza de seu
caráter, por sua pressa excessiva de agir, é precipitado numa violência inexplorável e
inapreensível, precipitando os seus na miséria mais profunda e a mais irremediável e
completa todavia para se apaziguar apaziguando, este homem, dizia eu, é admitido na
família dos deuses, torna-se o chefe protetor de um país..."
A forma com que o afeto entra na situação psicanalítica constitui talvez o capítulo
mais importante da metodologia. O problema aparece relativamente cedo; nós o
encontramos já na obra de Breuer e de Freud sobre a histeria. Nós aí lemos, por exemplo:
"Descobrimos... que cada um dos sintomas histéricos desapareciam imediatamente e sem
retorno quando conseguíamos colocar em plena luz a lembrança do incidente
desencadeador, despertar o afeto ligado a este último e quando, em seguida, o doente
descrevia o que lhe acontecia de forma bem detalhada e dando à sua emoção uma
expressão verbal. Uma lembrança destituída de carga afetiva é quase sempre totalmente
ineficaz. É preciso que o processo psíquico original se repita com a máxima intensidade
possível , que ele seja retomado in statum nascendi, em seguida verbalmente traduzido *
(19)."

O que, nesta descrição, nos importa mais no momento, é a necessidade de criar uma
atitude própria para fazer surgir os afetos originais, mas - atenção! - (nem mais que as
palavras na atitude "à la Börne" e as imagens na atitude "à la Müller") estes não devem
vagabundear ao capricho de seu automatismo. Para que haja conhecimento analítico e
abreação terapêutica, é preciso que os automatismos dos afetos sejam conduzidos em
direção à verbalização; os afetos devem se exprimir pela interpretação da palavra. É o
que Freud chama catharsis: reviver os afetos in statu nascendi e traduzi-los
imediatamente em palavras.

A experiência tem demonstrado a excelência de seu procedimento: quanto melhor


aplicado, mais o resultado era concludente. Mas a metodologia não pode se contentar
com esta verificação empírica: ela deve colocar a questão da causalidade interna. Por que
é necessário que os afetos sejam "convertidos" em palavras?

Abordamos este problema de duas maneiras, nós nos perguntamos, por um lado, se
existe, na natureza da palavra, alguma coisa que favoreça aquela "conversão verbal" e,
por outro lado, se podemos presumir no doente (e de um modo geral, no homem) uma
força interior que o impulsione para a expressão verbal e cuja manifestação seria assim
encorajada pela injunção do analista.

O problema da natureza da linguagem é muito complexo para ser enfocado aqui sob
todos seus aspectos, nós nos limitaremos então a indicar alguns, que nós julgamos
particularmente importantes.

Os materiais da linguagem são os sons, as palavras e os pensamentos. Desses três


tipos de componentes, é o som que está o mais próximo dos afetos: abreação e fonação
parecem estreitamente ligadas. Procurar as causas profundas desta conexão nos levaria
muito longe: podemos aproximá-las de um ponto de vista psicológico, é o que fez Pfeifer
(10); nós podemos recorrer a explicações fisiológicas: os músculos da fonação são
inervados pelo nervo vago que tem importante papel nas explosões afetivas; nós podemos
enfim evocar certas experiências de psicologia animal; certos Primatas reagiam ao afeto
por uma contração de seu aparelho fonador; esta "câimbra glótica" ameaça às vezes de

*Tradução de Anne Bermann.


sufocá-los. O que é certo é que o som, este elemento constitutivo da palavra, é
eminentemente apto a exprimir afetos, e o analista tem interesse de concentrar algumas
vezes sua atenção sobre a fonação do doente, à exclusão de qualquer outra coisa. O som
revela sentimentos e conteúdos não expressos verbalmente; a entonação com a qual o
doente termina uma frase diz muito sobre o não-dito, e, se conhecemos suficientemente a
história de sua vida, podemos quase adivinhar o que ele teve. A afetação, a falta de
sinceridade, a identificação à outrem, a agressividade e muitas outras coisas "escuta-se"
na voz. Da mesma forma, o analisado, que não vê seu analista, observa sua voz para
melhor adivinhar suas reações. ("Ler nos pensamentos" de alguém é muitas vezes
analisar inconscientemente sua voz).

A palavra nos abre outras perspectivas; sua verdadeira importância se revela nas
situações regressivas. Na criança como no ser primitivo, a palavra não é exatamente
experimentada como o é entre nós. Ela faz parte de um mundo mágico e constitui em si
mesma um centro mágico donde emana uma potência mágica, suficientemente forte para
veicular as emoções e executar vontades. Nesse universo, a palavra pronunciada não
serve tanto para exprimir um pensamento quanto para manifestar forças destinadas a
modificar a realidade. É a palavra que exige que a criança obedeça, que transmite as
ordens, que é o suporte da força contida no comando.

Mas o papel decisivo se volta - pelo intermédio da voz e da palavra - ao pensamento,


terceiro elemento da linguagem. Graças a ele, o afeto sofre uma modificação
determinante: ele se objetiva. Que significa esta objetivação? Antes de ser verbalmente
formulado, o afeto é intimamente confundido com a personalidade do indivíduo; para se
libertar, o indivíduo deve nomeá-lo e constituí-lo em uma parte do mundo exterior. A
importância teórica e terapêutica deste passo reside então no fato de que ele opera um
isolamento, um destaque, uma libertação, uma objetivação.

Por outro lado, verbalmente formulado, a idéia ganha uma nova dimensão: a da
temporalidade. Expresso pela linguagem, um afeto, intemporal na origem, vem a situar-
se no tempo, no passado ou no presente, no tempo objetivo, o que lhe permite separar-se
do sujeito. É esta particularidade que explica a melhor aptidão da palavra para a
conversão e abreação.

Chegamos a conclusões análogas, se nós examinamos não mais a estrutura mas a


função da linguagem. Do ponto de vista de sua função, a linguagem é um instrumento de
contato social, e, nesta definição, nós colocamos o acento sobre a palavra "social". Com
efeito, o Eu, enquanto ele é apenas Eu [Moi] não fala; sozinha, a linguagem lhe permite
ultrapassar este estágio. Graças à linguagem, o afeto se socializa, e, nós podemos
acrescentar, ele se sublima (21). A expressão lingüística conduz à sublimação do afeto in
statu nascendi, o que é a característica de toda sublimação bem sucedida.

Nós chegamos à nossa segunda questão: a expressão lingüística do afeto corresponde


a uma necessidade interior? Haverá alguma coisa no psiquismo do homem que o
impulsione à abreaçãao verbal, à revelação de seus segredos? Se assim é, a injunção
analítica vai ao encontro de uma força motriz interior.
Ora, ter em conta uma tese recente em psicanálise nos facilitaria consideravelmente a
resposta. Segundo os termos desta tese, o homem experimentaria um desejo constante de
ser castigado, desejo que o impele a confissões. A força motriz interior que nós
procuramos não seria outra que o desejo de ser punido, o castigo sendo provocado pela
confissão. Em situação analítica, o castigo se apresenta sob a forma da vergonha e da
humilhação (22).

Entretanto, nós temos sérias reservas em relação a esta concepção. Se ela fosse
inteiramente fundada, e se o desejo de ser punido fosse suficientemente forte para arrastar
o neurótico em perpétuas mentiras e o criminoso pelo caminho de confissões, seria
necessário admitir que os órgãos da segurança pública - polícia, polícia militar -
alcançariam dimensões exageradas * . Em psicanálise, a hipótese de uma tendência à
autopunição facilitaria muitas vezes nosso trabalho, mas o aprofundamento desta nos
revela em geral motivações menos superficiais. Eis, a título de informação, mais que a
título de demonstração, o caso de um jovem garoto de 15 anos, incapaz de responder
corretamente em classe, mesmo quando tem bem preparadas suas lições. Depois de um
exame superficial, um analista interpretou esse sintoma neurótico como a manifestação
de uma inclinação à autopunição, consecutiva a um sentimento de culpabilidade. Mas, ao
longo da análise, entraram em questão uns cursos de ginástica durante os quais um amigo
deste garoto tinha algumas vezes ereções; a evocação dessa lembrança permitiu precisar a
natureza dos sintomas do paciente e de identificá-los como sendo o medo da ereção e da
ejaculação, medo de deixar escapar alguma coisa dele mesmo, mesmo quando ele está
preparado, e de se deixar levar no turbilhão do instinto. O sentimento de culpabilidade
não era senão um fenômeno de superfície, se superpondo a esta angústia profunda.

Para avançarmos neste caminho, é preciso que nós nos orientemos em direção a uma
outra pista, a do segredo. Do ponto de vista da culpabilidade, o segredo é um fenômeno
psíquico perfeitamente neutro: ele pode celar o "bem" como o "mal". O que nos importa
aqui, é outra coisa, é sua ambivalência, sua tendência a ocultar alguma coisa e a revelá-la
ao mesmo tempo.
Há alguns anos, o acaso me permitiu consultar os estatutos de várias "sociedades
secretas" de escolares. Eles eram todos conhecidos sobre o mesmo esquema: tratava-se
toda vez de segredos referentes à sexualidade de forma direta ou indireta, que era preciso
se guardar de revelar "ao exterior" mas que os membros da sociedade tinham de
comunicar entre eles (23). O segredo é um fato social onde dissimulação e revelação
estão em relação complementar: dissimulação, de um lado, revelação de outro.

Ora, qual é o elemento do segredo que mantém constantemente em evidência esse


desejo de comunicação? Podemos responder a esta questão em uma única frase: é sua
força isoladora. Enquanto eu guardo o segredo para mim, eu sou um homem solitário;

*O ato criminoso deixa traços atrás de si, talvez em razão da obrigação que o criminoso
experimente de fazer confissões. Mas todo ato humano, na verdade todo evento psíquico
deixa traços também. (V. o capítulo: Campo de dispersão, acaso, causalidade.) A volta do
criminoso ao local do crime é muitas vezes devida ao desatino da pessoa realmente
perseguida.
não é o conteúdo do segredo que me isola do resto da humanidade, mas o fato de guardá-
lo para mim. Ora, o amor, o fato de amar é incompatível com o segredo; por um lado,
porque a comunicação rompe o caráter exclusivo da relação afetuosa e estabelece laços
muito estreitos, embora de uma outra natureza, com o parceiro, mas sobretudo porque o
segredo eleva um anteparo ante o desejo de osmose perfeita. Esta "osmose" é ao mesmo
tempo o primeiro modo de orientação do ser vivo (24), a orientação segundo o calor e o
frio, a orientação que permite o contato entre o corpo da mãe e o do recém-nascido e que,
no filhote do homem, engendra o primeiro desejo insatisfeito, em razão das dificuldades
desse apego. Guardar o segredo, é contradizer este instinto primitivo e arcaico que
reclama por sua vez o abandono de si e a osmose com o exterior.

Em outras palavras, o homem que tem segredos experimenta a necessidade constante


de dele livrar-se. Se ele não o faz, ele se expõe ao aparecimento, em seu psiquismo, de
superestruturas neuróticas. Mas ainda uma vez, não é um julgamento negativo dirigido
para o objeto mesmo do segredo que produz esse fardo insuportável, mas o isolamento, a
falta de afeição, conseqüências da dissimulação.

Eis que chegamos ao ponto de encontrar a expressão verbal do afeto e de um impulso


psíquico interno: fenômeno social, a linguagem põe fim ao isolamento. Ávido de
sentimentos compartilhados, o psiquismo - à falta da osmose térmica, da orientação para
uma fonte de calor - acredita poder escapar à sua solidão recorrendo à linguagem, este
instrumento de comunicação. É semelhante ao que concerne à confissão, esse processo
incoercível, pois não é por causa da punição subseqüente, mas apesar dela, que nós
"passamos às confissões". A abolição do segredo restitui esperança ao desejo de apego * ·.

Acontece que a evacuação verbal se modela sobre uma outra tentativa de cura: a
evacuação do conteúdo do estômago pela boca (vômito). Lembramos freqüentemente que
o surgimento de velhas lembranças enterradas é acompanhado de um sentimento de
enjôo, de ânsia de vômito.

Resta-nos fazer duas observações, que se impõem apesar de sua aparência paradoxal
em relação ao precedente. Tal como as duas atitudes "incompletas" (a de Börne e a de
Müller) descritas mais acima, esta última, que entretanto nos parece improvável, pode
conduzir a absurdos por excesso. A língua não é somente um instrumento de
comunicação; ela pode também servir de instrumento de dissimulação. A técnica que nós
empregamos para combater esse último automatismo, tão incoercível quanto o primeiro,
consiste em obrigar o doente a moderar o ritmo de seu discurso, a lhe solicitar
interromper-se de tempos em tempos, até mesmo a lhe impor pausas.

Uma outra dificuldade vem do fato de que o analisado não é sempre capaz de efetuar a
objetivação esboçada acima, pois algumas de suas lembranças fortemente carregadas de
afetividade não podem surgir novamente senão sob a forma do vivido subjetivo. Este

*No que concerne ao segredo, a participação de outros afetos é igualmente examinada.


Guardar o segredo é muitas vezes um sinal de força; traí-lo é um sinal de fraqueza. Mas
por um outro lado, é preciso uma certa coragem para dizer e uma certa covardia para calar.
problema em estreita relação com os fenômenos de transferência de afetos, que será uma
questão mais adiante, foi tratado em detalhe por Ferenczi. Para atenuar esse
inconveniente, é recomendado algumas vezes encorajar a reprodução do vivido -
colocando em evidência a realização de sua abreação - para chegar ao estado de
rememorização objetivante, acessível à palavra discursiva (l5,25).

Glover (83, p.304) se pergunta até que limites o analista pode tolerar as abreações e as
"catarses" do analisado? Deve ele, por exemplo, lhe permitir quebrar objetos que se
encontram em seu gabinete? Em sua opinião, tais crises eclodem sempre sobre um fundo
de angústia e de sentimentos de culpabilidade enormes. Um dia, uma de suas pacientes,
depressiva e presa desde a sua infância, a violentas explosões de cólera, dirigidas
sobretudo contra sua mãe de um egoísmo excessivo, joga ao chão - após várias
advertências - os livros da biblioteca. Ora, isso não era uma abreação no sentido próprio
do termo, mas a manifestação de uma transferência de conflito com vistas a provocar a
cólera do analista e reações de sua parte. Mais tarde, ela teve vergonha de seu ato.
Anteriormente, esta paciente tinha estado em mãos de um analista selvagem e cada
sessão terminava em longos abraços.

É preciso sublinhar com força o que a catarse não é: em particular, não é uma simples
descarga de energia até então contidas. Longe de fundar-se sobre uma base fisiológica
simples, ela se enraíza no conjunto psíquico complexo. Eu tentei fornecer sua
demonstração numa exposição feita em 1921 na Sociedade húngara de Psicanálise sobre
a dinâmica da expressão de afetos. Freud chega a conclusões análogas com respeito ao
efeito da angústia e sua relação com a libido contida.

Lembremo-nos da questão colocada no início desse capítulo: por que é preciso que a
abreação dos afetos passe pela linguagem? É o método analítico que o exige; com efeito,
a abreação desse tipo pode ser desenvolvida e controlada metodicamente, enquanto que a
explosão direta do afeto, em caso de vingança, por exemplo, pode causar graves prejuízos
ao paciente e às pessoas que ele freqüenta. Entretanto, uma pequena porta fica aberta
nesta última direção. Um tipo de válvula regulável deve ser conduzida entre "catarse
completa" e catarse pela palavra - é necessário e mesmo desejável que uma quantidade de
afetos seja "abreagida" diretamente. O terceiro estado de reação de que falam Breuer e
Freud, o estado de choro toma um lugar não neglicenciável entre as reações afetivas do
paciente. Eu não posso praticamente conceber uma análise correta ao curso da qual o
paciente não procure eliminar suas tensões chorando. O choro pode tocar camadas
afetivas muito profundas e seu aparecimento assinala que feridas muito profundas da
alma estão reabertas. Como a criança, uma vez que parou de chorar, afunda de novo em
lágrimas à visão de sua mãe ou de seu pai, da mesma forma o deprimido pode se aliviar
ao contar seus sofrimentos chorando, igualmente o choro do paciente manifesta sua
confiança. O choro - como o mostram as lágrimas que vertemos em ocasiões
importantes - provam nosso sentimento de ter superado uma situação difícil, e
experimenta a esperança de reencontrar o ser querido que nós tínhamos perdido.

4. A atitude receptiva do analista


A atitude do analista tem sido descrita como um comportamento que favorece ao
máximo a manifestação espontânea do psiquismo profundo. Da mesma forma, podemos
exigir do analista uma atitude que favoreça o aparecimento de sinais que emanam desta
camada da alma. Como o paciente, o analista deve, após o início da sessão, deixar fluir
sua atenção; como o paciente, ele deve deixar surgir tudo o que lhe passe pela cabeça,
como o paciente, ele deve adotar um estado de consciência que não é de todo
completamente o estado de vigília; todavia, o que ele visa, não é o processo catártico e
motor da abreação, mas diríamos nós, uma certa atividade sensorial. Esta elabora por ela
mesma os dados sensoriais de todas as modalidades e procura surpreendê-los frente
mesmo à apercepção habitual propriamente dita. Assim, ele coloca, por assim dizer, o
Eu percebendo a um nível preconsciente. Graças a essa atitude, o analista desfaz de
algum modo o material lingüístico lógico-gramatical que definiu o sentido da situação e
mobiliza ao mesmo tempo sua receptividade orientada para os dados da percepção em
vistas a investigação do não-dito.

Reik foi certamente o primeiro a aplicar ao modo de observação do psicanalista a


regra: nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensibus. "O material psíquico não é
unitário, escreveu ele; ao primeiro plano se situa, evidentemente, esta parte considerável
de que nós somos capazes de apreender pelo ouvido, a visão, o tato e o odor, logo pela
via da percepção sensorial consciente. Um outro setor é constituído pelo que nós
percebemos inconscientemente. Podemos afirmar que esse material é mais extenso que o
primeiro e que convém atribuir-lhe uma maior importância para a compreensão
psicológica do que ao que nós vemos, ouvimos etc., conscientemente. Bem entendido,
nós apreendemos esse setor do material por nossos sentidos, mas ele é, descritivamente
falando, inconsciente ou preconsciente. Nós percebemos as particularidades da mímica
ou dos movimentos corporais de outrem, estes determinam nossa impressão geral, mas
sem que nós os tenhamos detidamente observado, sem ainda que nós a eles tenhamos
prestado a mínima atenção. Nós lembramos detalhes de suas roupas, particularidades de
seus gestos, sem mesmo evocá-los, uma multidão de traços particulares ínfimos, um odor
indefinível, uma sensação tátil quase imperceptível que nós tivemos ao lhe apertar a mão
- o calor, a umidade, a superfície rugosa ou lisa da pele, tomam aqui valor significativo.
Todo processo de pensamento é acompanhado de movimentos ínfimos, de contrações de
músculos da visão ou da mão, os movimentos dos olhos falam ao mesmo tempo que as
palavras da língua. A força expressiva de um olhar, de uma atitude ou de um movimento
do corpo, de uma certa forma de respirar não é de se negligenciar. Sinais de excitações e
de impulsões subterrâneos vêm sem cessar à superfície. Uma série de estímulos nervosos
e dinâmicos emanam de outros, que determinam nossas impressões sem que nós nos
demos conta. Existem meios de expressão que nós compreendemos sem mesmo recorrer
à nossa razão; que os pensamos no vasto domínio da linguagem; cada pessoa tem
modulações de voz que nós não notamos... Esses traços ínfimos, que escapam à nossa
observação consciente, são não obstante muito reveladores... (104)"

Depois de algum tempo, concedeu-se uma grande atenção aos estímulos subliminares
(97). Ao lado da "não atenção seletiva", da não atenção de acordo com uma intenção
inconsciente, existe uma não atenção que concerne aos estímulos subliminares. Esses
estímulos, do mesmo modo que a não atenção seletiva, não são desprovidos de efeitos.
Todos os estados que "degradam" o estado consciente normal (sonolência, isolamento,
lesão cerebral) reforçam os efeitos desses estímulos subliminares. As experiências
confirmam certas pesquisas, já antigas, de Pötzl. Este último demonstra o efeito desses
estímulos sobre a formação dos sonhos. Fisher obtem de seus sujeitos experimentais uma
reprodução perfeita de imagens visuais expostas durante 1/100 ou 1/200 de segundo. O
efeito desses estímulos é revelável em condições experimentais, pelo exame de imagens
oníricas, graças a certos signos que eles deixam. L. Székely estima que o efeito do medo
provocado pelos olhos brilhantes e descrito por mim mesmo (105) se explica igualmente
pela ação de um estímulo subliminar. I. Fónagy fala de experiências com estimulações
sonoras subliminares. É preciso entender por isto que "com a ajuda de fones de ouvido
faz-se chegar aos ouvidos do sujeito uma fonte sonora subliminar. Essas experiências,
repetidas durante dezenas de anos, permitiram chegar à conclusão surpreendente de que,
mesmo se as palavras pronunciadas diante do microfone não atinjam a consciência do
sujeito, as associações deste provam que os estímulos verbais alcançaram seus ouvidos;
em geral, o sujeito responde aos estímulos verbais subliminares por representações
adequadas." Fónagy cita o tratado de Baker publicado em 1937, e o de Lazarus-
McClearly em 1951 (106).

Na concepção de P. Heimann (107), o analista constitui igualmente um Eu


complementar ao Eu do analisado, e este não é somente - como o queria Freud - um
espelho, mas também um aparelho ativo de recepção. Sua primeira tarefa consiste em
permitir ao Eu do paciente perceber seus próprios processos intrapsíquicos e
interpessoais, o que não é possível senão graças às atitudes precedentemente descritas,
reforçadas pelo controle de seus próprios sentimentos e da contra-transferência.

Eis dois exemplos dos quais o primeiro ilustra o que nós chamamos "dissolução pela
linguagem" e o segundo a compreensão analítica.

Uma paciente nos fala de uma carta que ela recebeu do estrangeiro, nos lê certas
passagens, menciona, ao curso da mesma sessão, uma outra carta à qual uma de suas
conhecidas tinha feito alusão e também a lógica rigorosa que caracterizava uma terceira
carta que lhe tinham mostrado. Tudo sem absolutamente notar que a sessão girava em
torno do tema "carta". Eu perguntei a ela se não tinha outra coisa a dizer a propósito de
uma dessas cartas? Ela começa a protestar - todas essas cartas tinham um caráter de
atualidade, mas para ela não era nada. Mas imediatamente, ela acrescenta: “... faz meses
que eu quero lhe falar da sensação que se apodera de mim cada vez que eu vejo um
carteiro na rua. Eu desejo arrancar-lhe as cartas das mãos. Coisa estranha, eu jamais
cheguei a falar nisso ao curso da análise, apesar de que eu não queria absolutamente
dissimular este sentimento." A descoberta do sentido analítico que se manifesta naquele
"desejo" é um dos objetivos ulteriores da análise.

Ao início de uma outra sessão, esta mesma paciente manifesta o desejo de acender um
cigarro, o que não está em seus hábitos. Eu lhe pergunto imediatamente se ela discutiu
com sua sogra, pois, visivelmente, ela quer queimar uma bruxa. Sim, me responde ela,
admirada. Adivinhar seus pensamentos não era porém "bruxaria" . Eu conhecia a tensão
que reinava há algum tempo entre ela e sua sogra, e eu sabia também que, nos fantasmas
de minha paciente, a sogra tomava a figura de uma bruxa. Bastava então interpretar sua
voz e observar seus gestos ao início da sessão. Nesse caso, trata-se, bem entendido, não
do inconsciente, mas do não-dito. A diferença é considerável de vários pontos de vista,
mas não daquela da compreensão analítica. Nós percebemos os dados em nossa
disposição de espírito particular, à espera do não-dito e pouco nos importa que este nos
seja dissimulado, que não tivéssemos tido "a ocasião" de falar nisso, ou que o não-dito
pertença ao domínio do inconsciente.

Existe um guia desta compreensão analítica? Talvez duas regras possam ser
formuladas. Primeiramente, é preciso tudo observar, ou, para melhor dizer, é preciso
permitir a nossos sentidos tudo observar, o que a eles é recusado na vida cotidiana. Eu
diria quase que é preciso vigiar com uma acuidade de paranóico para que nada escape ao
nosso aparelho receptor. Por exemplo, o analista tem interesse em se concentrar de
tempos em tempos sobre a voz do paciente, à exclusão de toda outra coisa. As entonações
revelam conteúdos e sentimentos não-ditos; por exemplo, a forma com que se termina
uma frase pode deixar adivinhar que havia ainda alguma coisa a acrescentar, e, se
conhece suficientemente a história da vida do paciente, pode-se mesmo determinar o que
ele tinha querido calar. A falta de sinceridade, a afetação, a identificação a um outro, a
agressividade face-a-face do universo circundante transpiram igualmente na voz. Bem
entendido, o analisado aplica a mesma técnica de despistagem face ao analista que ele
não vê, do qual ele escuta somente a voz. (Nós estivemos muitas vezes inclinados a
considerar este tipo de "adivinhação" como uma forma de ler nos pensamentos de
outrem, mesmo que na realidade, se trate de uma análise inconsciente da voz.)

Em segundo lugar, convém colocar sempre a questão seguinte: o que eu vejo, o que eu
escuto é adequado ou inadequado à situação e ao relato? A inadequação pode se
manifestar no gesto, no olhar, na voz, na escolha de palavras, pelos risos ou choros
intempestivos, na construção do relato, e por toda irrupção - revelada pela psicanálise -
do não-dito ou do não-consciente, como pelos lapsos de linguagem, esquecimentos,
confusões, pela escolha de exemplos e de símbolos. Certamente, esta "atividade
interpretativa" se adquire, mas quanta ciência ignora a matéria.

Que ela vise o dito ou o não-dito, a atenção do analista a respeito do material que lhe é
oferecido não deve nem se fixar em um domínio determinado, nem vagabundear de uma
forma maníaca. Em resumo, para empregar um termo de Ferenczi, é a elasticidade que
deve caracterizar o comportamento geral do analista. "Como uma liga elástica, nós
devemos ir no sentido das tendências do paciente, mas sem para tanto abandonar nossas
próprios caminhos e objetivos (26)." Reformulada em nossa terminologia, esta
elasticidade significa também que o modo de escuta do analista não é "retilíneo", mas
antes "curvo", "em arco de círculo", tanto ele se separa de seu objeto, quanto ele aí se
prende para dele se afastar de novo. Escutamos o paciente completamente escutando a si
- mesmo, de diversas maneiras, escutando seus próprios fantasmas e percepções
desencadeadas pela escuta do outro.
5. As resistências. Sua origem e seus modos de manifestação

Até aqui, nós pudemos imaginar o desenrolar de uma análise da seguinte forma: o
analisado "abre sua alma" ao analista, faz-lhe "confidências" que aquele escuta e procura
compreender segundo um certo método, que será exposto mais tarde. Ora, não é sempre
assim e as causas e conseqüências desses "desvios" em relação a um desenrolar "normal"
constitui um capítulo importante da metodologia psicanalítica.

Em sua carta de 5 de novembro de 1897, Freud escreveu: "É notável que a literatura
atual se interesse tão vivamente pela psicologia da criança. É o caso do livro que eu
recebi hoje: o de James Mark Baldwin. Continuamos sempre uma criança de sua época
com aquilo que acreditamos possuir de mais íntimo (76, carta n. 74)." Nesse livro, Freud
encontra a seguinte passagem: "O comportamento de uma criança é tão espontâneo que é
uma fonte. Sua influência sobre sua vida espiritual se manifesta por atos puros, não
influenciados pelo cálculo, pela falsidade ou reserva, como entre os adultos. Cada um de
nós se cerca de um tecido de prejulgamentos convencionais; nós levamos em conta
convenções sociais ao nosso redor, perdendo assim a ingenuidade que caracteriza a
infância, e, além do mais, cada um de nós construiu para si um mundo fechado de
formalidades. Cada um tem seus próprios ídolos "privados", além de ídolos "oficiais". A
criança, ela mesma , não conhece nem sua importância, nem sua posição social, nem sua
beleza, nem sua religião, nem suas qualidades e sua deficiências herdadas; não aprendeu
ainda a se contemplar através das numerosas lentes de aumento do tempo, do lugar e das
circunstâncias. Não é deus e o universo não é para ela um templo; nós podemos então
estudá-la nela mesma, sem considerar "du fatras" que sua própria consciência reunirá
mais tarde a sua personalidade (82, p. 6)."

A experiência nos dá um certo número de fatos que é impossível não levar em conta.
Mesmo se todas as condições da situação psicanalítica forem reunidas, mesmo se o
analisado tem todas as razões de "revelar sua alma", a revelação pode não se produzir. Os
pensamentos ou as lembranças surgem sim em sua consciência, mas todas suas tentativas
de as formular verbalmente fracassam . O analisado experimenta o choro ou a vergonha e
se sente, dessa feita, incapaz de se revelar. O analista espera a exposição de um material
utilizável, mas em vão; o analisado tinha a possibilidade de se exprimir, mas, ainda assim
ele não experimenta nem choro, nem vergonha, ele prefere se calar ou falar de coisas
insignificantes para "afogar o peixe". Veio sem dúvida para curar-se, seu comportamento,
ao cabo de um certo número de sessões, não indica em nada esta intenção: em vão o
analista o exorta a "voltar ao passado" , ele considera manifestamente que sua tarefa, a
mais importante, é de se opor a ele. Desprezando métodos e regras analíticas já
aprendidas, ele esquece seus sonhos, chega atrasado às sessões, etc. Não leva em
consideração qualquer dos conselhos de seu analista, na verdade se prende a ele a
propósito de tudo e de nada; contesta os resultados da cura ou os atribui à influência do
tempo que passa, e se derrama em reprovações à menor perturbação. De toda evidência,
de forças opostas freiando os progressos da análise, importa despistá-las. Até o presente,
nós falamos apenas da forma que a atitude favorável à análise facilita, na verdade
provoca as confissões do analisado. Mas em que consiste a resistência que viola o jogo
opondo-se a esta afluência feliz de circunstâncias exteriores e interiores?

Trata-se verdadeiramente de uma força oposta a toda mudança (psíquica ou física),


logo a todas as fases fecundas da análise, de um amor narcisista do Eu tal que existe e
que julga toda intervenção que fere e toda mudança dolorosa, mesmo se se trata de
escapar aos incômodos psíquicos. Convidado a renunciar a um mal "seguro" por um
desconhecido temor, o Eu parece tomado de vertigem e recusa a executar. Está como
"humilhado" à idéia de ter em si alguma coisa de indesejável de que falta se
desembaraçar. Ele quer manter-se fiel a todos seus velhos laços, sejam eles quais forem.
E sobretudo, ele recusa toda modificação de sua estrutura psíquica e cuida por manter no
inconsciente o que está inconsciente. Uma angústia generalizada se arma contra a
libertação, o medo de ver seus instintos soltos, agirem livremente e envolvê-lo em um
turbilhão, talvez mesmo na loucura.

Para explicar esta atitude geral que se opõe a toda intervenção, falta considerar a
história da vida do analisado. A psicanálise não é a primeira intervenção do mundo
exterior no psiquismo do indivíduo. A separação da criança primeiramente do corpo da
mãe, de seus mamilos em seguida; as conseqüências da educação constituem
intervenções difíceis de suportar contra as quais o psiquismo - para atenuar os efeitos
dolorosos - reage de uma forma específica, sufoca os desejos opostos às intervenções, e
teme seu aparecimento. Assim, as modificações não serão senão aparentes, toda
verdadeira modificação tornando-se impossível. É este o modo de reação que se reproduz
ao curso da análise: lá ainda, o psiquismo espera, como resultado de seu abandono e do
trabalho do analista, alguma coisa de dolorosa, de contrária ao Eu e de perigosa para a
vida, e lá ainda, ele reage por aparências de modificação, por reservas e as redobra sobre
si.
Ao lado desta resistência geral, se chocam também resistências específicas. Estas se
enraízam na história de diferentes casos: por exemplo, se o analisado tropeça numa
palavra obscena, em um momento importante de sua vida, há muito tempo talvez, ele já
teve esta reação. Se ele se recusa a falar da vida amorosa de seus pais, à época de sua
infância, sacudido ao capricho das emoções, ele fugiria a este gênero de revelações.

Para conhecer a verdadeira natureza das resistências específicas, conviria enumerar


suas diferentes manifestações. Entretanto, nós cremos poder melhor elucidar o problema
estabelecendo antes de toda enumeração, uma classificação, cujos critérios eles mesmos
podem ser esclarecedores.

Poder-se-ia, para operar um primeiro trabalho de desengrossamento, distinguir muito


simplesmente entre resistências conscientes e resistências inconscientes. Caminho
satisfatório, certamente, mas cuja aplicação se revela difícil. Com efeito, os casos simples
são raros: freqüentemente, as resistências ditas conscientes envolvem elementos
inconscientes. Para falar claro, resta-nos então procurar outros critérios de classificação,
que, de outra forma, possam recortar o primeiro de diferentes formas. Consideremos, por
exemplo, o critério da origem e forma de aparecimento das resistências. O problema da
origem se subdivide de novo naquele da fonte de energia e no do objeto psíquico visado.
O analisado que tropeça em um trabalho de verbalização, que não consegue
pronunciar uma palavra obscena, choca-se talvez com uma resistência consciente cuja
origem ele conhece. Mas este não é sempre o caso. Pode recuar conscientemente diante
da pronunciação de uma palavra sem poder exprimir a razão. Por outro lado, a origem e
forma de aparecimento podem ser, ambas, inconscientes: o analisado não quer falar, sem,
no entanto se dar conta da existência de uma resistência nele e, bem entendido, sem poder
remontar a sua origem. Vemos que neste caso preciso, podemos admitir todas as
hipóteses: forma consciente de aparecimento, origem consciente - forma consciente de
aparecimento, origem inconsciente, etc.

Esse exemplo mostra também até que ponto é legítimo colocar a questão da origem de
uma resistência: enquanto fonte de forças é pouco provável que a pronúncia de uma
palavra obscena baste por si só para mobilizar toda a resistência; esta deve se alimentar
de outras fontes.

Para classificar as resistências, Freud levou em conta sua origem tópica. Assim, a
resistência se enraizaria: no Eu, no Isso, ou no Supereu (27).

Retomemos estas diferentes instâncias da resistência, deixando a primeira - e a mais


complexa - para o fim.

Enquanto sendo do Isso, a resistência lhe deve não sua motivação mas sua força. Com
efeito, o inconsciente sendo orientado para sua automanifestação, não há resistência nele.
Se ao contrário, um instinto reprimido quer se manifestar na superfície, uma força
operante no Isso tende a fazer com que esta manifestação possa sempre tomar a mesma
forma. O que está agindo aqui, é a compulsão à repetição, é ela que impele à reprodução
de velhos modos de solução, e estes se opõe a toda nova forma de manifestações,
preconizadas pela análise. "Se o trabalho analítico abre caminhos novos à excitação do
instinto, nós observamos regularmente que estes não são seguidos sem evidentes
hesitações." Particularmente difícil é o combate contra as resistências que emanam do
Isso, quando estas são a expressão de um instinto de destruição. Estes pacientes resistem
por todos os meios à liquidação das resistências (75).

A resistência do Supereu é muito evidente: é preciso se mostrar bom, justo, moral,


amável, etc. Mas estas formas de manifestação inconscientes são particularmente difíceis
de revelar. Para aí contribuir, Freud propõe um critério importante: se nosso trabalho de
interpretação, longe de melhorar o doente, conduz a agravar seu estado, é que o Supereu
opõe uma resistência inconsciente. Com efeito, o Supereu considera a doença como uma
punição e se levanta contra toda cura, donde sua resistência contra o trabalho de
interpretação, que, de outro modo, alivia, em todo estado de causa, o doente.

Esta resistência provém de um sentimento de culpabilidade que é atribuída a uma


necessidade de ser punido. Contudo, o doente não experimenta nenhum desses
sentimentos e não reconhece ser consciente de sua culpabilidade. Uma tal resistência
deixa o trabalho analítico inoperante, pois o doente continua antes de tudo a ser e
permanecer miserável (75). (Para os modos de reação terapêutica, v. mais adiante.)

Quanto à resistência do Eu, sua origem remonta a diversas causas:


Ela pode vir do setor do Eu que engendra os recalcamentos e cujos velhos temores
combatem toda tendência a uma liberação dos instintos recalcados.

Os mecanismos de defesa do Eu (108) contra antigos perigos retornam durante o


processo analítico sob forma de resistência contra a mudança, contra a cura. "Segue-se
que a cura mesma é tratada pelo Eu como um perigo novo (75, p.84)." Assim, essa recusa
do Eu engendra uma resistência contra o despistar das resistências (75, p.85).

Ela pode ser o efeito de transferências; esse modo de defesa constitui uma parte
considerável de todas as resistências; para compreendê-lo, é preciso reportar-se à
exposição contida no capítulo seguinte da presente obra.

Ela pode fazer parte de uma tendência à conservação da doença, tendência oriunda do
inconsciente, mas que, uma vez manifesta, utiliza forças provenientes do Eu * .

Ela pode beneficiar tendências narcísicas: "Você não poderá me informar nada que eu
já não saiba" "Eu me conheço perfeitamente", etc.
Enfim, como o sublinha Reich, ela pode enraizar-se nos traços de caráter e colocar a
seu serviço as particularidades formais do Eu (lentidão da compreensão, reações de
cólera, etc.) * (28).

Essas resistências de atitude se dirigem:


1 - contra o fluxo livre de pensamentos. O medo experimentado é o de não poder
parar, medo do turbilhão que engoliria tudo, medo da loucura;
2 - contra o estado de sonolência inerente ao descanso. O sono, se não é total, evoca o
sonambulismo, os atos concluídos sob o império da "liberdade do sono". O analisado
teme "deixar-se ir" completamente, como em seus sonhos os mais dementes. Mas a
resistência interdita o estado de sonolência, pois ela interdita ao Eu expor-se sem defesa
aos ataques de que ele pode ser objeto. Ela se revela pela contração de músculos, pelos
bocejos, etc.
3 - contra a tranqüila auto-observação. O medo experimentado é o da confrontação, o
de se desnudar ante o olhar do Outro. Relaxado fecha os olhos, ele não quer ver, ele não
pode suportar o olhar do Outro. O paciente transfere à pessoa do analista o hábito que

*Diz-se que a resistência visando à conservação da doença é alimentada não somente pelo
doente mas também por seu ambiente.
*
Esse ponto de vista de Reich é algo exagerado; não existe senão resistências inerentes ao
caráter. Os estudos de Anna Freud sobre a defesa (108) permitem Reich corrigir sua
concepção (Sterba, 109).
A classificação que nós adotamos segue o esquema freudiano de instâncias tópicas. O
outro ponto de vista (a origem no objeto) se impõe, se queremos adotar uma classificação
puramente psicológica e se consideramos os conteúdos das idéias ou a impossibilidade de
seguir nossos conselhos concernentes ao livre curso dos pensamentos. Se tomamos esse ponto
de partida, podemos distinguir resistências de duas origens diferentes: são, de uma parte,
reações a conteúdos (lembranças, sentimentos) que surgem, mas, de outra parte, elas
procedem da angústia provocada pela situação analítica artificialmente determinada.
tinha sua mãe ( quando ele era ainda criança) de exortá-lo à obediência, de lhe confiar
tarefas cada vez que ela o via ocupado com seus próprios pensamentos; ele transfere para
o analista uma tendência que está em contradição com a situação analítica;
4 - contra a algazarra interior. Essa algazarra evoca sofrimentos: batimentos do
coração, incômodo da respiração. É um sinal - análogo ao reflexo de Moro - produzido
por cada abalo. Mas toda formulação verbal é uma algazarra interior (28 a); tanto que o
paciente pode preferir o silêncio. É quase impossível propor uma classificação exaustiva
das formas de aparecimentos concretas das resistências, mas nós esperamos apreender o
essencial formulando as categorias seguintes:
A resistência pode se dirigir diretamente contra o material que surge; é o caso, por
exemplo, da palavra obscena que o paciente se recusa a pronunciar. Por trás desse caso
simples se projeta um segundo, mais complexo.

A resistência se dirige principalmente contra uma palavra ou contra uma idéia


bruscamente surgida, mas não são senão pára-ventos dissimulando uma outra resistência,
situada em outro lugar. O analisando se encontra em um estado de resistência
profundamente ancorado e procura racionalizar sua reserva colocando em frente um
material superficial, mas que joga, na ocorrência, apenas um papel secundário. (É assim
que uma doente manifesta vivas resistências a proferir juras. De início ela acreditava que
sua resistência provinha da inconveniência dessas "desagradáveis palavras", mas mais
tarde, revelou-se que, durante as cenas de família, o pai, se sentindo tomado pela loucura,
se aliviava fazendo juras .)

Esta fixação secundária da resistência não visa necessariamente esse material


superficial. As possibilidades de transferência lhe dão igualmente apreensão. Se
conteúdos recalcados ou mantidos em segredo surgem ao curso da análise, o analisado
tem tendência a "cobri-los" de pensamentos em relação, certamente, com esses
conteúdos, mas concernentes diretamente à pessoa do analista, pensamentos que ele
recusa, em seguida, formular verbalmente. Neste caso, a resistência consciente visa à
verbalização desses pensamentos que, na opinião do analisado, são de natureza a ferir ou
a embaraçar o analista - mas é contra o segredo, contra o recalcado que se levanta a
resistência inconsciente.

A resistência pode ainda se fixar sobre as atitudes favoráveis à análise


precedentemente descritas e que ela pode levar ao extremo, até ao absurdo, como meio de
proteger os conteúdos a dissimular. É assim que a injunção "tudo dizer" pode conduzir ao
"fuga de idéias", a passagem do estado de vigília ao sono a um adormecimento efetivo e a
abreação verbal a mecanismos linguajeiros em torno da vida.

Assistimos ao mesmo fenômeno no que concerne às explicações do analista. Lá ainda,


o paciente em estado de resistência vê oferecerem-se várias possibilidades de se subtrair
à influência do analista. Ele não compreende ou não admite suas interpretações - ou
mesmo se as compreende e as admite, ele as esquece imediatamente.

A categoria seguinte de formas de aparecimento da resistência indireta é sem dúvida a


mais interessante e a que mais contribui de um ponto de vista terapêutico. Aqui, a
resistência se engata a um mal entendido do inconsciente, mal entendido cuja dissipação
pode terminar em resultados surpreendentes. Eis um exemplo:

Depois de um certo tempo, uma paciente "acompanha mal" a análise. Consciente de


sua falta de vivacidade, ela invoca, para explicá-la, uma muito grande "racionalidade" da
análise que ameaçaria "seu frescor de criança". Com efeito, a análise amadureceu, o que
ela não pode aceitar. Essa curiosa reprovação contra a análise não é compreensível sem o
conhecimento da infância da paciente. Para a criança que ela era, "maduro" era sinônimo
de "velho" - e esta equivalência subsiste ainda no inconsciente de adulto. "A análise
amadureceu" significa para seu inconsciente que "a análise envelheceu" e a resistência se
apóia sobre esse mal entendido do inconsciente.

Um tal mal entendido pode racionalizar a resistência contra a cura. Dispõe, quanto a
isso, de várias possibilidades. O inconsciente pode colocar um sinal de igualdade entre a
cura e a "perda" da doença, qual uma perda de alguma coisa, a perda de si mesmo. Mas o
mal entendido pode também dirigir-se para uma situação presente e substituir à cura
presente uma cura passada; se aquela se associa a lembranças penosas, o inconsciente
pode se levantar contra uma cura em curso.

Podemos, fora as resistências manifestas, diretas, falar de resistências indiretas que se


dissimulam "à l'arriére-plan". "O que é importante, não são as manifestações conhecidas,
evidentes, da resistência, mas as resistências ocultas que o paciente não exprime senão
sob uma forma muito indireta, por um comportamento característico, tal como uma falta
de disposição em cooperar com o analista, um comportamento muito convencional e
hipercorreto, uma atitude desprovida de afetividade ou certos sintomas da
despersonalização. Esta insistência sobre as formas ocultas da resistência é, sem
contestação, de um valor prático enorme. Em seu tratado sobre a técnica da análise,
Glover menciona essas manifestações dissimuladas da resistência sobre as quais
passamos facilmente sem as relevar e em sua obra clássica Abraham descreve a pseudo-
atitude cooperativa demais de um paciente como uma das formas da resistência oculta
(Alexander, 110)."

Não é inútil conhecer o que um de meus doentes chamou resistência negativa, e que é
um abandono em algum tipo "profilático" de certos atos "repreensíveis", quer dizer,
entravados de resistências. Se, ao curso da análise, esses atos não são mencionados - pelo
menos a propósito de um fato atual -, é porque o analisado "se arranja" para evitar de ser
exposto a situações onde tais atos perversos, por exemplo, correriam o risco de serem
cometidos. Ora, se diz, não há lugar para "revelar" o que não existe * .

A resistência negativa pode fazer com que o analisado chegue sempre atrasado, se
apresse em "ratrapper" o retardo, impeça seus pensamentos vergonhosos de acederem à
consciência, mais obsessivos sobre o analista e sua família.

*Podemos mencionar sob esta mesma rubrica os casos que Freud chama "fuga na saúde".
Em um sentido mais amplo, podemos falar também de resistência manifestada sob a
forma de esquecimento. O doente "não pede mais" do que falar de tal ou tal de seus
hábitos, mas, coisa curiosa, estes não lhe vêm jamais ao espírito durante a sessão. "Como
se não existisse" - eis o que parece significar esta forma de resistência.

Mas o analista não se interessa pelas resistências por elas mesmas. Se bem que elas
lhe forneçam numerosas informações, seu objetivo principal consiste em vencê-las. É
preciso ensinar ao analisado a superá-las para poder prosseguir a análise. De que meios o
analista dispõe para isto?

A psicanálise estaria tentada a dizer que é preciso deixar as resistências. Mas nós
vimos que certas dentre elas são conscientes. Trata-se sempre de resistências-telas
("résistances-écrans") atrás das quais é sempre possível descobrir resistências
inconscientes? Mesmo que a análise ponha a nu todo um conjunto de resistências, ela, às
vezes, não se encontrará menos bloqueada.

Uma vez mais, Freud nos ajuda a compreender o fenômeno. Elaborando o conceito de
perlaboração, ele mostrou que a resistência, para ser vencida, deve ser esclarecida de
diferentes lados, a fim de que a interpretação do analista seja adotada inteiramente pelo
analisado, por seu Eu e por seu inconsciente. Além disso, disse Freud, existe uma
economia da vitória sobre a resistência: esta não é jamais superada de uma única vez,
mas pouco a pouco, como por "à-coups".

É preciso ter em conta aqui muito particularmente a "economia do sofrimento"


(Ferenczi). Acontece que se despista a mesma resistência no mesmo analisado por várias
repetições. Mas a "constelação psicológica" não é sempre a mesma ** .

(esquema)

A perlaboração de resistências comporta também a liquidação de sentimentos que se


apresentam isoladamente tais como angústia, vergonha ou consciência moral * .

A análise da angústia concerne a fenômenos originais de situações de perigo, e


sobretudo à perda da mãe e aos derivados deste afeto, o medo de perder ou de ver
destruídos seus órgãos genitais e o medo da dissolução do órgão psíquico. Segundo
Freud, a angústia é um sinal de perigo do Eu para influenciar o Isso. O modelo da
angústia é, na minha opinião, o estado do recém-nascido separado do corpo da mãe ao
qual ele não pode mais se prender ["cramponner"]. A desordem, que pode se manifestar
**
Esta situação pode ser muito bem ilustrada por um caso análogo, um processo de
pensamento analisado por G. Th. Fechner. "Quando eu era estudante, eu tinha um aluno que
não se levantava facilmente do leito. Uma vez eu procedi com ele da forma seguinte: Eu lhe
dizia a cada cinco minutos: Levanta-te. A primeira vez, eu não tive nenhum sucesso, no
segundo chamado ele me respondeu: "Deixa-me em paz!”“, ao terceiro, ele me disse: "Não te
fatigues, tu vês bem que isso não serve de nada", na quarta vez ele "se tut", mas ele se
ardia interiormente, na quinta, ele se pôs a tovejar e a jurar, na sexta vez, ele
exclamava: "Mas é insuportável!”e no sétimo apelo, não se contendo mais, ele salta do
leito para cair sobre mim, mas sua cólera se apazígua imediatamente diante da satisfação
de se encontrar fora do leito e ele não torna a deitar-se mais." (Uber dies Seelenfrage,
1861, S.V.) Esse relato lembra as experiências ao golpe de martelo de Szondi.
*
A propósito da análise da consciência moral, ver capítulo IV.
sozinha, ou enquanto fenômeno parcial do afeto de angústia, pode ser derivada do
fenômeno original do medo dos olhos brilhantes de uma pessoa que se encontra em frente
(28 a, 111). As penosas contrações que continuam o reflexo de Moro, reação a estímulos
traumatizantes, se manifestam freqüentemente por rangimento de dentes (ameaças de
devoração) e indicam o desejo de se prender à mãe. Mais que o efeito de angústia, é a
agitação irreprimível que pode ser remetida ao traumatismo do nascimento.

A vergonha se desenvolve a partir da angústia geradora de desordem; os olhos não


suportam a vista dos olhos brilhantes que lhe fazem face, a visão se inflama. Resulta daí
uma submissão paralisante de escravo com inibição de sua própria vontade. Identifica-se
ao cão, animal cuja submissão está em sua natureza. A vergonha sente sua visão suja,
maculada por excrementos. A vergonha é um fenômeno mais coletivo que a angústia; a
resistência que ela inspira é tanto mais viva quanto o objeto da vergonha se encontre no
ambiente do paciente (em seus pais) e não no paciente ele mesmo. Em conformidade com
a natureza da desordem, o efeito da vergonha oscila entre o Eu e o "esquema coletivo". O
efeito da vergonha é um afeto de encomenda inculcado na criança, e a angústia se
desenvolve espontaneamente sobre seu terreno (90, 91, 112).

Uma espécie particular de resistência é constituída por aqueles pacientes cujo Eu não
está suficientemente desenvolvido, que não têm senão um pseudo-eu. Se o analista se
adapta ao Eu pouco desenvolvido do paciente e, pela via de identificações, o analisado
desenvolve um Eu autêntico, as resistências podem aparecer, se o analista comete faltas,
ou se, de uma forma ou de outra, seu comportamento deixa a desejar; isto até que ele se
torne consciente de suas faltas e se desembarace delas. Contudo, ele não tem que pedir
desculpas, pois estas poderiam prevenir a explosão da cólera do analisado, cólera que
teria aqui uma primeira ocasião de se manifestar (Winnicott, 113).

O exemplo seguinte ilustra por sua vez a intrincação de diferentes resistências e as


dificuldades que decorrem para o trabalho analítico.

A paciente em questão conhecia muito bem suas próprias resistências e também a


forma de superá-las. Um dia, entretanto, ela nos disse ter empregado em sociedade um
termo obsceno que ela não queria reproduzir durante a sessão. Sem procurar forçá-la, eu
espero a seguir: a oposição que se manifesta na resistência não cede diante de um ataque
frontal. No dia seguinte, ela conta um sonho: dois coelhos tentando se acasalar comem
uvas de Corinthe para aumentar suas sensações voluptuosas. Seu relato terminado, eu lhe
participei minhas impressões: o sonho tem, sem dúvida, uma relação qualquer com a
expressão obscena que ela se recusa a reproduzir, mas não conhecendo esta última, eu
não posso igualmente compreender o primeiro. Dois dias mais tarde, ela se disse
"obsecada" pela expressão e termina por reproduzi-la: "Je chie dessus." ["chienner"=
parir: parir por cima] (1) Esta revelação nos permite compreender o sonho ("oeuf de
Pâques") e esclarecer o jogo com os coelhos (a uva de Corinthe) mas de onde a
resistência tira suas forças para se opor a uma expressão de desafio tão inocente? Antes
de tudo, nos fantasmas infantis a respeito do nascimento, fantasmas que vêem na criança
um produto da defecação e ao qual a legenda de "oeufs de Pâques" vem corroborar.
Vamos mais longe ainda! A paciente interpreta o convite do analista para revelar seus
segredos como uma tentativa de sedução que ela pretende combater. Além do que,
revelar seus segredos, é por fim a uma situação de isolamento: ora, uma muito grande
intimidade com o analista evoca à paciente relacionamentos de um outro tipo que, a seu
ver, tiveram um papel memorável. Seria preciso manter precaução, pois os contatos
físicos de que ela se lembra, se relacionam com falecimentos. O abandono do isolamento
- e é um mal entendido característico do inconsciente - poderia provocar uma infelicidade
semelhante. Ela "tient beaucoup" a formas elípticas de pensamento, às omissões nas
exposições (Auslassung em alemão, mas esse termo recobre um outro: Ausgelassenheit
licença, via libertina). Por outro lado, sua vontade de "reparar" o mal, de preferência em
falar, reenvia à história de um de seus irmãos. Vemos por este exemplo que uma
resistência, aparentemente desorganizadora, oculta todo um conjunto de outras
resistências, como vemos que a descoberta de uma única dentre elas não pode bastar para
demolir todo um edifício de resistências.

6. Disposições de base. Transferência de afetos e de conflitos

Nós nos perguntamos no capítulo precedente porque, apesar de uma atitude favorável
à análise e apesar de um desejo sincero de comunicar, o analisado se opõe à revelação de
seu psiquismo. Nós vimos a força das resistências, uma força suscetível de se multiplicar.
Como, nessas condições, a análise é outrossim possível?

A resposta se oferece por si mesma: o doente quer antes de tudo curar-se e aumentar
seus conhecimentos sobre ele mesmo. Certamente, trata-se de forças consideráveis sendo
impensável não tê-las em conta, mas a experiência mostra que existe uma força ainda
mais importante que contribui ao feliz desfecho da análise: nós queremos falar de uma
categoria de afetos que visa o analista e que impele o analisado a entrar, não sem
dificuldades e sem vagar, no jogo temeroso dos turbilhões interiores.

Aqui, convém fazer uma distinção. Primeiramente, é preciso que a situação analítica
dê lugar às disposições afetivas suscetíveis de engendrar, no analisado, a confiança no
analista, em sua boa vontade e sua capacidade de compreensão, de uma parte, sua própria
vontade de compreensão e de aceitação, de outra parte. Mesmo se ele não tiver
inteiramente confiança ao início, o analisado, na condição de não ficar aterrado pela
perspectiva das revelações que ele terá de fazer, na condição de não ver no analista um
juiz ou um moralista que perdoa com condescendência, mas uma pessoa compreensiva e
de visão clara, sem curiosidade indiscreta, verá se instaurar uma atmosfera de confiança
correspondente à situação real. Trata-se de um tipo de sentimento afetuoso: o analisado
sente que ele é bem recebido, ajudado, compreendido, enfim, que se ocupam dele, que ele
se confia a um ser humano e não a um juiz ou a um educador sempre pronto a castigar,
que o analista, enfim, não tem nada de um sedutor. É uma situação a uma só vez ideal e
real, à qual corresponde a atmosfera particular, afetuosa, da análise; nós a chamamos
doravante atmosfera de base.
Ela é, para a análise, o que é o "calor" familiar ideal para a criança que aí se beneficia
de tudo o que se pode oferecer-lhe, calor sempre pronto a acolher, mesmo se ela cometeu
algum malfeito. Mas assim como o calor familiar não é sempre "ideal", igualmente a
atmosfera de base da análise é submetida a constantes flutuações. Esta age em dois
sentidos. Não mais do que o calor, a situação real à qual corresponde a atmosfera de base
não pode ser sempre "ideal". O analista pode não ter compreendido alguma coisa que no
entanto estava a seu cargo, ele pode ter sido desatencioso, não apreender a continuidade
das revelações do analisado; ele pode também ter uma visão mais grave que de hábito ao
momento de acolher o analisado, sua voz pode trair a fadiga ou a irritação, etc.; "autant
de" causas reais de uma modificação da atmosfera de base; convém ao analista
restabelecê-la; a realidade "nefasta" deve ceder o lugar à realidade "benéfica". É uma
questão de tato * ou de técnica em sentido amplo, mas não de metodologia.

A análise é um processo natural onde qualquer "artifício" não pode ter lugar. É preciso
eliminar tudo o que é artificial.

A atmosfera de base pode se modificar mesmo, se um dos traços de caráter habitual


analisado o obriga a um certo modo de comportamento, se, por exemplo, ele se sente
magoado por cada crítica que se formule a seu respeito tanto na sua vida como na análise.
Esse fenômeno, que perturba a atmosfera de base, deve ser atribuído ao complexo de
resistências. Não é raro que esta perturbação da atmosfera de base se desenrole da
seguinte forma: o analisado experimenta a respeito do analista um sentimento de cólera
que o motiva a certas declarações ou a certos silêncios "vexatórios" a seu respeito. Mas,
torna-se claro a seguir que estes ímpetos de cólera aparecem necessariamente ao curso da
associação livre e se exacerbam pela projeção, quer dizer, pela atribuição de causas
desse sentimento à pessoa do analista. O analisado pode tanto não prestar qualquer
atenção a seus próprios sentimentos de cólera e atribuí-los a erro (superficialmente
falando) do analista. Chegamos assim a um tipo de defesa com objetivação ejectiva de
seus próprios afetos apelando para uma outra pessoa. (Num uso pouco rigoroso, falamos
igualmente de projeção nesse caso.)

O outro tipo de flutuações depende, em si, essencialmente da metodologia. Mesmo em


caso de situação real perfeitamente ideal, a atmosfera de base pode se modificar, seja
melhorando (diríamos até que seu "optimum" deve ser buscado numa outra forma de
afeição), seja em se deteriorando, abolindo completamente o desejo inicial de cura.
Assim a atmosfera de base pode decair , sem que a intensidade do trabalho analítico
padeça , seja em direção a um outro `optimum', e mesmo além disso, em direção à
afeição, seja em direção a uma deterioração. O analisado pode mesmo fornecer uma
explicação real de suas mudanças, mas, nesse caso preciso, nós não podemos admiti-la ou
então, voltando ao tipo precedente de flutuação, nós devemos supor uma reação
excessiva à realidade para compreender a situação.

O fenômeno que nós encontramos aqui e que introduz um elemento de irrealidade, em


outro lugar desconhecido pelo analisado, na atmosfera da análise foi designado por Freud

*Ferenczi (26) empresta uma importância particular ao tato na intervenção analítica.


pelo termo de transferência (Ubertragung), para assinalar que se trata essencialmente de
uma transposição de alguma coisa de um lugar a um outro. A transferência pode ser
positiva ou negativa. A primeira conduz em direção ao segundo "optmum" de que nós
fazíamos menção, em direção à afeição, ao reconhecimento, ao amor. Quanto à
transferência negativa, podemos distinguir dois tipos: transferência de afetos ( da cólera,
do ódio, da desconfiança) ou transferência de situações conflituais * : afora a transferência
de afetos positivos e negativos, nós podemos igualmente falar de transferência de
conflitos. Assim, desconhecendo de qualquer modo a situação real, a transferência de
afetos modifica a atmosfera de base e a coloca ("décale") em direção a um outro tipo de
afetos. Mas porque tais malentendidos são necessários? Eles o são, com efeito, pois os
fenômenos que nós descrevemos se produzem necessariamente em todas as análises.
O malentendido se funda antes de tudo sobre a visão regressiva da análise e se
desenvolve graças à propriedade das lembranças, emergindo da continuidade da vida,
para se apresentar não sob uma forma objetivada, mas cercadas de subjetividade. Ou,
melhor dizendo, é sempre com seu halo subjetivo que se apresentam no seio da memória
e, para se objetivar, é preciso que sejam, em um certo grau, revividas. Esta revivescência
se realiza pela fixação sobre a pessoa do analista de afetos mesmo latentes, ou visando
antigos objetos de amor e de ódio, ou mesmo "vagabundos", "erráticos" sem objeto
pessoal preciso.

Assistimos a algo análogo na "vida". Por exemplo, a escolha de um novo objeto de


amor se opera comumente seguindo as vias antigas e o eleito (a) possui certos traços
(estatura, cor dos cabelos, voz, olhar marcado de bondade) do primeiro objeto de amor
(quer dizer, na maior parte das vezes, do pai ou da mãe). Freud deu o nome de apoio a
esse fenômeno. A transferência, esta forma particular que toma o apoio na análise, tendo
possibilidades maiores que as que são oferecidas pela "vida", depende muito menos de
dados reais * . Por exemplo, na "vida" é preciso que a mulher sobre a qual vão se apoiar os
sentimentos experimentados face à mãe, seja jovem, loura e boa. A transferência, em si,
se contenta com sinais menos numerosos e menos manifestos, mas - em razão
precisamente da manifestação de forças inconscientes - em lugar de se limitar a não ser
mais do que uma simples emanação do afeto original - procurará revivê-lo. Na vida,
unicamente, os sintomas neuróticos apresentam estruturas análogas àquela da
transferência de afetos, ou, para exprimir a coisa de forma mais sistemática: a estrutura
da transferência de afetos nos permite acabar aquela dos sintomas.

*Não podemos perder de vista que a situação de base de toda neurose é constituída de
conflitos. Foi em Taine que Freud encontrou a noção de conflito. Lemos, por exemplo, nesse
primeiro autor: "A parada mútua, o arrastar recíproco, a repressão constituem por seu
conjunto um equilíbrio; e o efeito que vemos produzir para a sensação corretiva especial,
para o encadeamento de nossas lembranças, para a ordem de nossos julgamentos gerais, não é
senão um caso de perpétuos re-endireitamentos e de limitações incessantes como de
incompatibilidades e de conflitos inomináveis operando incessantemente em nossas imagens e
em nossas idéias (79, p. 124)." A obra de Baldwins evoca igualmente um "conflito de
impulsões" em uma criança de oito anos de idade (82, p. 120-122).

*
Para contribuir para criar uma situação independente de dados reais, a análise coloca o
analista atrás do analisado, de forma a não ser visto.
Na apresentação de Spitz, a situação analítica ela mesma, a posição deitada sobre o
divã, a passividade do analisado, são um desvio da realidade exterior, são linguagem
isenta de inibições correspondente à situação da primeira infância. Segundo Spitz, o
recém-nascido é totalmente passivo ao longo dos primeiros meses de sua existência, não
tem qualquer comunicação coordenada com sua mãe. Entretanto, Spitz parece esquecer
que se abandona ao recém-nascido o hábito de se agarrar ("cramponner") ativamente à
sua mãe, engate do qual será contudo perfeitamente capaz. Ele dirige então sua atividade
não para um objeto dual, mas para ele mesmo (90). Mas Spitz tem razão em afirmar que a
transferência se completa sempre sob o efeito de um estímulo exterior mínimo, vindo, por
exemplo, do analista. A resposta a este estímulo exterior na transferência comporta uma
tonalidade afetiva estruturada. O efeito de tais estímulos mínimos é comparado por Spitz
àqueles estímulos mínimos de dois olhos, fronte e nariz acompanhados de um movimento
que, para o recém-nascido de 4 a 6 meses de idade, representam a visão do objeto que
significa a segurança (114, p.380-385). Esse último ponto de vista estabelece uma ligação
entre a teoria da transferência e a psicologia animal mais recente.

A transferência de conflitos não é incomum na vida. Constatamos comumente que a


mesma pessoa formula o mesmo gênero de queixas nas situações onde ela se encontra
sucessivamente (por exemplo, com respeito a seus superiores hierárquicos, cada vez que
ela muda de emprego), ou que seus amores terminam sempre da mesma forma. Trata-se
de apoios sobre uma primeira situação desfavorável, de repetições de um primeiro mau
êxito. Ainda assim, a transferência de conflitos em análise não se manifesta exatamente
da mesma forma; ela não toma a forma de uma simples repetição, pois é muito inesperada
e muito irreal para isso. Assim, o menor sinal basta para desencorajar o analisado, pois
ele prevê a decepção que o analista vai lhe causar e espera que esta decepção o faça
reviver seus antigos conflitos.

Não é inútil tomar consciência do fato de que o processo analítico oferece vários
pontos críticos: a transferência de conflitos pode se manifestar aí seguindo o modelo
conhecido, ou, em caso de uma disposição favorável ao conflito, pode mesmo provocar
novidades.

Tais situações geradoras de conflitos são: a ruptura que sobrevém a cada fim de sessão,
o "reenviar" o paciente aos seus sofrimentos; a não-satisfação de seus desejos eróticos,
coisa que ele pode julgar ofensivo; o dinheiro que ele consagra à cura e que lhe recorda
que ele não é tratado por amor; a atitude do analista em relação à sua profissão, o
paciente pode ressentir esta atividade como sendo a de uma máquina; o fato de que o
analista tem uma família e cuida de outros pacientes, o que suscita o ciúme; o
reconhecimento que o paciente pode experimentar constatando os sucessos da cura e que
pode impeli-lo a excessos e, por isso mesmo, a reservas. Mas não são unicamente esses
atributos inevitáveis da análise que provocam conflitos; a manifestação de todo instinto,
em razão, precisamente, do caráter de turbilhão da força instintual, esconde
possibilidades de conflitos: trata-se a cada vez, de escolher entre egoísmo e altruísmo,
entre viver para hoje e viver para amanhã, de se fixar os limites "até aos quais se pode ir",
de se perguntar onde termina a eficácia e onde começa o perigo mortal, etc.
Do ponto de vista da metodologia, é importante sublinhar que se essas perturbações da
atmosfera de base seguem uma curva regular, todas as condições estão reunidas para que
a análise se desenrole com sucesso. Com efeito, a transferência de afetos positivos,
dominada pelo sentimento de afeição, deixa o analisado mais compreensivo, facilita a
revelação de seu inconsciente e torna as sessões desejáveis. Por outra, em seu foro
interior, o analisado quer ser agradável ao analista não apenas por seus progressos e por
sua compreensão, mas também por suas qualidades morais, por seu amor à justiça,
apresentando-lhe os membros de sua família sob uma luz favorável; tantos pontos de
ancoragem oferece aos silêncios, às incompreensões, enfim, às resistências. Se,
ultrapassando o segundo "optimum", a transferência de afetos positivos se orienta para o
amor, as resistências se multiplicam. (Também, pensamos nós que o primeiro "optimum"
é estável, mas o segundo é instável.) A regularidade da "curva analítica" exige que todo
comportamento transferencial seja tornado produtivo pela atitude do analista que
considera as transferências como sintomas entre outros. Aí então, o analista deve
compreender e interpretar a tempo, conduzindo as transferências (não certamente, in
statu nascendi, pois ele tem necessidade de ver as lembranças e os afetos se
desenvolverem) à atmosfera de base estável da análise, a um momento onde estejam
ainda em estado de irrealidade.

É o que quis exprimir Freud afirmando que a análise deve se concluir na renúncia.
"Não deve haver qualquer relação sexual real entre os pacientes e o analista, e satisfações
mais delicadas, tais como os testemunhos de amizade, uma certa intimidade, não devem
ser senão muito parcimoniosamente concedidas (75, p. 44)."

Importa insistir sobre esse caráter transitório da transferência. No curso da análise, e


guiado pelo analista, o analisado termina por compreender a irrealidade das
transferências, assim como seu verdadeiro sentido. Segundo minhas experiências, se as
neuroses ditas narcísicas que Freud opõe às neuroses transferenciais (quer dizer,
suscetíveis de serem transferidas) dão tanto "fil à retordre" ao analista, isso não é, como o
pensam alguns, porque elas não dão lugar à transferência, mas porque os doentes não
chegam a se desembaraçar da idéia da realidade de suas transferências.

Seríamos tentados a ver na seqüência cronológica do surgimento de transferências


uma seqüência cronológica de acontecimentos, de experiências vividas. Na realidade, não
é nada disso. "As observações de Roy Grinker e de Margaret Gerard do departamento de
psiquiatria da Universidade de Chicago mostram claramente que a sucessão de
transferências no paciente é tão influenciada por fatores outros que cronológicos, quer
dizer, a ordem na qual o desenvolvimento se conclui, conforme a história anterior da vida
do paciente. Eles fizeram uma experiência interessante com uma paciente acometida de
esquizofrenia, que eles deixaram associar livremente durante vários dias tanto em
presença de um analista do sexo masculino, quanto em presença de um analista do sexo
feminino. Eles constataram que o comportamento da paciente variava de acordo com o
sexo do analista. Em presença do analista do sexo masculino, a paciente era sempre
exigente e agressiva; em presença do colega de sexo feminino, ela era queixosa, confiante
e ávida de consolações. Esta experiência mostra claramente que a ordem cronológica das
formas de transferência não seguem exatamente uma disposição historicamente pré-
determinada de comportamentos infantis e que é influenciada por outros fatores
igualmente (Alexander, 100, p. 87)."

Para compreender as transferências, convém não perder de vista o caráter global,


"nebuloso" do contínuo psíquico, onde os recortes ficam sempre a nível teórico.
Transferências de afetos positivos e negativos, transferência de conflitos, resistências e
emergência de material analítico vão aparecer, mas um ou outro desses fatores pode
aparecer, em certos momentos, com mais ou menos de clareza.

É preciso se guardar, a propósito de nossa concepção, de por um sinal de igualdade


entre a transferência e o deslocamento enquanto que processo primário, como o faz, por
exemplo, a obra de Loewald (114 a). A transferência é um fenômeno complexo que
suscita afetos e engendra situações; o deslocamento, é um mecanismo que toca a
conteúdos e investimentos de energia, mas cujo nódulo central não é constituído pelo
despertar de um afeto, etc.

A concepção que tenho procurado desenvolver aqui e que se inspira muito na


particularidade, sublinhada por Ferenczi, da transferência analítica em relação às
"introjeções" que se manifestam na vida (30) e também na diferença, claramente
elaborada por Freud, entre o amor transferencial e o amor na vida cotidiana * (31) não
tolera que apliquemos o termo de transferência a toda manifestação de afeto dentro da
análise, mas reconhece a existência de um domínio de manifestação de afetos, fora da
transferência, e dentro da atmosfera de base. Ela nos permite - fora do que nós
expusemos mais acima a propósito do desenrolar da transferência - tomar posição
claramente sobre outras questões da metodologia analítica. Freud estima que não há lugar
"para considerar como transferência toda boa relação que se estabelece entre analistas e
analisados durante e depois da análise. Pode tão somente haver simples relações
amigáveis, realmente fundadas e que se averiguam viáveis (115, p. 65-66)."

Como nós o fizemos para as resistências, proporemos uma classificação para os


diferentes tipos de transferências. A transferência pode e deve se fixar sobre a pessoa do
analista, mas é algumas vezes passageiramente desviada para se dirigir a alguém outro; é
uma etapa da transferência. Podemos então falar de transferência fixa e de transferência
transitória. Pode ser introjetiva, retornando sobre a pessoa do analisado, ou paranóide,
quer dizer, projetiva. Pode ser atuante, traduzindo-se por atos, ou, concernente à pessoa
do analisado - idealisante. Pode também provir, por deslocamento, de um membro da
família desaparecido. Neste caso, o analisado, encontrando ou cumprimentando o
analista não o olha nos olhos, como se este não estivesse corporalmente presente.) Nós
conhecemos também transferências divididas (entre fixa e transitória, por exemplo).
Numa transferência regular, vários traços do analista correspondem àqueles da pessoa
"original" (por exemplo, o analista é mais velho que o paciente ou responde tão
dificilmente às questões que se lhe coloca quanto o fazia o irmão mais velho do

*Para compreender verdadeiramente o que é o amor transferencial, é conveniente separar com


clareza - como o faz Freud - os conceitos "realidade do afeto de amor" e "falta de atenção
à realidade". Não o fazemos sempre.
paciente). Uma certa categoria de transferência se exprime por sintomas corporais:
afecções da vesícula biliar, sonolência, ereção, sensações de fome e sede, gorgolejo de
estômago, vertigem, sensações de frio e de calor; trata-se aí de transferências com
sensações corporais. Fenômenos regressivos podem igualmente fazer sua aparição, como
logo ao adormecimento: reflexo do tônus do pescoço, desejo imperioso de apego, revirar
a cabeça (transferência com regressão). De uma forma geral, a transferência constitui um
tipo de sublimação do instinto de apego, como a associação livre sublima o instinto de
busca (116), e esta sublimação pode se exprimir com força (transferência à forte
expressão). Na classificação de Glover, encontramos transferências moderadas e
massiças (de curta duração) e transferências de longa duração (83, p. 124-125). Lagache
distingue entre transferência dinâmica e transferência mecânica ou espontânea. O
primeiro tipo é determinado pelas regras do processo analítico, pela relação interpessoal
insatisfeita, o outro é uma conseqüência da compulsão à repetição (114, p. 380).

Com respeito ao "manejo" da transferência * , isto é, do comportamento do analista nas


situações de transferência, não é preciso esquecer que o analista deve constantemente
cuidar para conter os sentimentos de afeição ou de hostilidade em limites razoáveis.
Freud aconselha advertir em boa hora ao paciente da possibilidade de transferência e de
lhe assinalar os primeiros sintomas. E. Zetzel opõe a concepção de Melanie Klein e de
sua escola às visões daqueles que colocam em relevo o papel do Eu na transferência
(Sterba, Bibring, Hartmann). Enquanto que em Melanie Klein, são as relações objetais da
primeira infância que retém sobretudo a atenção; nos outros, é a neutralização de energias
instituais e os fantasmas inconscientes. Segundo a escola de Melanie Klein, a
interpretação precoce da projeção do Supereu do paciente sobre o analista, assim como
sua retro-introjeção, isto é, o quadro da transferência, permite moderar a angústia.
Segundo os psicanalistas da segunda categoria, toda interpretação precoce da
transferência esconde perigos; convém evitá-la. Entretanto, em casos limites e nas
psicoses, é aconselhável preceder a psicanálise propriamente dita de um processo que
vise a criar uma transferência positiva e possibilitadora de uma satisfação parcial de
desejos infantis e regressivos do paciente (117, p. 369-376).

O comportamento do analista durante a transferência e suas características nos casos


de esquizofrenia representa um problema à parte. Segundo as descrições de Sechehaye,
os doentes desse tipo não desenvolvem transferências espontâneas, aquelas devem ser
construídas pelo analista, passando por uma etapa preliminar, um tipo de pré-
transferência. O analista entra de algum modo no universo autístico do paciente e vive ao
mesmo nível de regressão que aquele ao qual o paciente ficou bloqueado. Ele deve
recolocar simbolicamente a mãe e restabelecer a simbiose, a unidade dual da relação
mãe-filho. Assim se integra pouco a pouco na transferência uma relação sentimental de
uma maior realidade que a que pode significar a realidade exterior para o psicótico
(Federn, 118). A transferência negativa não aparece senão muito mais tarde.

*Eu estou inteiramente de acordo com Menninger (84, p. 81) que se ergue contra o termo
"manejo”. Podemos provocar, esclarecer ou eliminar uma transferência, mas aquela não é um
objeto psíquico!
Vejamos mais de perto as considerações de Federn. Segundo ele, a transferência nos
psicóticos se realizam nas condições totalmente irregulares e não justifica o emprego de
métodos psicanalíticos que se aplicam aos pacientes neuróticos. Devemos "restabelecer"
a transferência positiva, com interrupção do tratamento, se a transferência vira negativa.
É assim que Federn, depois de seis semanas de entrevistas com uma catatônica internada,
obtém, graças a sua atitude amigável, sua transferência: ele lhe contava histórias
animadoras sobre as pessoas de quem ela muito gostava e não mencionava aquelas que
ela não gostava. Ele a provia também de chocolate. Com os psicóticos, "obtemos
facilmente uma boa transferência explorando sua regressão ao estágio oral." Federn
termina por prender o doente junto dele. Não havia mais explosões de cólera, ela não
mais recusa alimentar-se e abandona o hábito de fazer os cem passos no quarto, à noite,
fumando cigarro atrás de cigarro e falando de seus sofrimentos alucinatórios (88, p. 108-
113). Ainda mais eloqüentes são as passagens seguintes do livro: "Os analistas se
enganam afirmando que não há transferência possível com os psicóticos. Estes desejam a
transferência, e esse desejo atinge tanto a parte sã como a parte psicótica de seu Eu; cada
uma delas pode visar seja o mesmo objeto, seja objetos diferentes de transferência. Essa
transferência pode desaparecer pouco depois, mas pode também durar toda a vida.
Aquela da parte psicótica da personalidade é algumas vezes fortemente perigosa; pode
conduzir a agressões até mesmo a homicídios, mas também à idolatria do objeto - pelas
angústias profundamente enraizadas às quais estão ligadas, estes dois extremos da
transferência podem determinar uma cessação de todo contato. Fora certos casos limites
benignos, a transferência não pode ser utilizada como um catalisador seguro no trabalho
de esclarecimento psicanalítico. Cada novo estado pode aniquilar a transferência já
existente. O psicótico não separa facilmente a psicanálise da vida, ante o que a estrutura
do seu Eu não se torna próximo ao normal ... Aquele que queira conservar a
transferência, isto é, psicanalisar um paciente psicótico deve observar uma prudência
muito grande... A transferência psicótica é vulnerável, é preciso tratá-la com cuidado (88,
p. 125, 133, 134)."

Aqui se coloca o problema da "contra-transferência", isto é, de manifestações de


afetos do analista. Em princípio, podemos vislumbrar duas soluções, seguindo duas
concepções diferentes. Segundo alguns, as manifestações de afetos do analista não podem
revestir senão o caráter de um afeto da atmosfera de base; convém evitar toda intrusão de
uma transferência de afetos ou de conflitos. Certamente, a análise não pode se desenrolar
sem uma participação afetiva do analista, mas este não deve transpor os limites da
atmosfera de base. Ferenczi insiste freqüentemente sobre a necessidade, para o analista,
de controlar seus afetos e sua atitude frente ao paciente por uma constante auto-análise. É
em razão desta grande importância do tratamento da contra-transferência que o plano
didático da Sociedade húngara de Psicanálise previa análises de controle, um controle
dos jovens psicanalistas práticos que devia ser um tipo de prolongamento de sua própria
análise.

Segundo os defensores da segunda concepção, a contra-transferência deve ser


considerada como um produto inevitável da análise e ocupar, conseqüentemente, um
papel de primeiro plano na metodologia. Moeny-Kyrle recoloca o ponto de vista de M.
Klein do qual ele adota a teoria da introjeção-projeção. Esses processos de identificação
se misturam às velhas situações conflituais não superadas do analista onde a relação pais-
filho intervém muito particularmente. O analisado se esforça por provocar afetos no
analista. Certos sinais, como o "piétinement" ("piétiner” = pisar, calcar, bater [os pés]) da
interpretação, a estagnação da análise, o crescimento da necessidade de amor ou da
desordem do analisado mostram que este atingiu seus fins: o analista viu nascer em si o
ódio ou a afeição; ele pode então ou reprimir, ou se permitir a experimentá-los. Mais o
Supereu do analista é forte, mais completamente aparece nele, nas condições descritas
mais acima, um sentimento de culpabilidade que ele projetará sobre o analisado ou que
ele interporá aprofundando-o. Se esta fase se prolonga, o analista pode acabar por se
recolocar em questão; ele perde, em seguida à projeção de certos setores importantes de
seu Eu, as qualidades necessárias para o prosseguimento de seu trabalho e seu interesse
em tratar o paciente. A capacidade do analista em distinguir entre suas próprias
faculdades e as que lhe são estranhas, mas introjetadas, constitui a parte essencial do
tratamento adequado da contra-transferência. Segundo esse autor, o paciente adivinha
intuitivamente as transferências de afetos e de conflitos que ele provocou no analista (e
que este pode fazer aceder à sua consciência ou deixar em seu inconsciente). Assim, é
recomendável comunicá-la - ao mesmo tempo que de sua interpretação correta - ao
analisado, em lugar de negar sua existência. Se não se fala dessas contra-transferências,
os velhos sentimentos de culpabilidade do paciente arriscam-se a permanecer no
inconsciente, de não aceder à consciência (119).

Nacht estima igualmente que o tratamento da contra-transferência ocupa a parte


central do processo psicanalítico (119 a). É neste sentido também a proposição de
Fromm-Reeichmann quanto à psicanálise da esquizofrenia: a tarefa essencial do
procedimento psicanalítico consistiria em quebrar o círculo vicioso formado, alhures,
pela angústia do doente, sua agressão e a hostilidade de seu ambiente. Mas o analista não
pode chegar aí a não ser que ele esteja sempre consciente da angústia que o
comportamento do doente provoca nele mesmo (120). Na "análise direta" de Rosen (139,
p. 690), é extremamente importante que o analista aborde o psicótico sem qualquer
angústia, sem qualquer cuidado com sua própria segurança.

Se, ao curso da análise, surgem afetos no analista, se ele se sente em situação


conflitual face ao analisado (por exemplo, se ele vê nele um rival), ele deve não apenas
procurar em seu próprio passado, mas também pensar em um fenômeno de transferência
e em particular no fato de que o afeto e o conflito foram "intencionalmente" (por uma
intenção consciente ou inconsciente) provocados pelo analisado. É preciso absolutamente
tirar a limpo essas motivações que se perfilam por detrás.

É conveniente igualmente abordar o problema do caráter. Em que medida a análise


pode modificar as propriedades caracteriais? Esse problema se reveste de uma
importância particular à luz dos ensinamentos da escola de Jendrassik-kollarits, segundo
o qual as neuroses seriam, no fundo, manifestações parciais de certos tipos de caráter.
Assim, todo sintoma neurótico não pode ser radicalmente eliminado senão por uma
mudança provocada no caráter do neurótico. M. Bálint afirma a este propósito que se
deve passar na análise alguma coisa que ele considera como um "recomeço": o paciente
deve terminar por abandonar suas reações habituais e começar a reagir de uma outra
forma (32). Os fatos experimentais utilizados por Bálint em sua demonstração são
convincentes, mas de minha parte, eu creio que a concepção da transferência, tal como
ela foi exposta mais acima, resulta na descrição seguinte: Tanto quanto o analisado
responda à situação analítica produzindo suas reações habituais, ele está seja num estado
de resistência caracterial, seja tomado por um tipo de manifestação de afetos que não foi
ainda encetada pela análise, mas que influencia a atmosfera de base. Contudo, ele não
conhece ainda a transferência que lhe permitiria reviver tudo o que se encontra enterrado
nele, tudo o que foi começado, outra vez, depois de abandonado mais tarde. Se ele chega
aí, ele se encontrará num estado transferencial autêntico e por essa mesma razão num
estado de recomeço (suposto). Essa transferência autêntica não resulta de propriedades
caracteriais habituais, mas daquelas de que o paciente esteve desabituado.

7. Como assegurar a livre associação

Nós temos examinado a atitude analítica sob variadas óticas: nós vimos os preceitos
de Börne e de Müller, o princípio da abreação de Freud, as resistências, a luta do desejo
de revelação contra o desejo de dissimulação, o papel às vezes estimulante e entravante
das transferências. O despistar e o ultrapassar resistências, a vitória do desejo de cura e
de conhecer sobre as resistências - tal é o caminho do progresso, a atmosfera de base da
análise constituindo a garantia. Nossa tarefa principal, temos dito, consiste em
compreender, em esclarecer e em suscitar a confiança do analisado que nós esperamos,
em retorno, uma compreensão dele mesmo e de seu comportamento em análise.

Resta entretanto assinalar um ponto de vista. Certamente, nós temos indicado que o
que nós pedimos ao analisado, desde o início, não é "associar livremente", é nos dizer o
que lhe "pesa sobre o coração". Nós examinamos em detalhe esta injunção freudiana, nós
entrevimo-lhe a complexidade. Mas nós não tivemos ainda a ocasião de ver a fundo como
nós fazemos compreender ao analisado o que nós esperamos dele. Com efeito, a injunção
de dizer o que lhe pesa sobre o coração, assim como a exposição de indicações freudianas
são difíceis de apreender e fáceis de desconhecer; trata-se de instruções por demais gerais
e - coisa particularmente mal recebida pelo analisado no início da análise - elas contêm
poucos conselhos concretos. Não é preciso lembrar que o analisado não é forçosamente
dotado de sentido psicológico, ele não está habituado a observar seu próprio psiquismo e
mesmo que o fosse, isso não é exatamente o que lhe pede a atitude analítica.

Assim é necessário dar ao analisado conselhos concretos concernentes à atitude a


observar. Aqui, nós não podemos falar senão em termos gerais. Esses conselhos - e sua
ilustração - se elaboram no interior de cada análise: tal doente compreende muito bem a
noção "abandono de si"; para tal outro, é necessário invocar exemplos concretos, de
evocar em quais condições tal ou tal declaração lhe "escapou" ao curso da análise, como,
nas mesmas condições, ele "reviu seu irmão entrando em casa completamente ébrio", etc.

Estes conselhos concretos podem ser divididos em três grupos. Nós podemos
primeiramente, pedir ao analisado uma atitude de expectativa. Que ele esteja sempre
pronto a se observar, a espreitar - para aprisionar - a lembrança, o sentimento ou o
pensamento que surgiu. Trata-se de se "surpreender", Sich-Ertappen, como o diz Müller
(33). Para facilitar esta atitude, nós chamamos a atenção do analisado sobre as
manifestações do contínuo psíquico, por exemplo, sobre a conexão estreita - mas não
intencional e conscientemente não percebida - entre o material de um início de sessão e
aquele da sessão precedente. Por exemplo: ao curso de uma sessão, o doente nos disse
que lhe acontece comumente de estragar seus negócios "no final”; ele comete erros na
parte final de seu exame, não persevera numa dada atitude - e, que em sua adolescência,
ele considerava a ejaculação como repreensível. Mas logo no início da sessão seguinte,
ele emite dúvidas quanto à realização de desejos nos sonhos: precisaria ele rever esta
velha tese psicanalítica? Para fazê-lo compreender o funcionamento do contínuo
psíquico, eu chamei sua atenção sobre o encadeamento de duas idéias: realização de
desejos, de uma parte, a não ejaculação, de outra. No curso da sessão, é preciso encorajar
o analisado mostrando-lhe a importância que pode ter a mínima idéia para a continuação.
Citar exemplos tomados no caso do analisado para ilustrar que o não-dito retorna sem
cessar, que um assunto evitado pode absolutamente abrir um caminho para se exteriorizar
ou (para) se colocar, ao contrário, ao serviço da resistência, se anexa a toda idéia lateral,
reduzindo tudo o que não é ele à insignificância, provocando um verdadeiro vazio na
consciência. É preciso estar sempre pronto a combater as resistências e preparar assim
um tipo de "segundo sopro": o corredor depois de ter superado os primeiros sinais de
esgotamento, chega a um segundo estado de respiração regular; seu curso torna-se um
tipo de automatismo e ele sente menos fadiga. Graças a este "élan", a esta atitude visando
a superar imediatamente toda resistência, o analisado pode ir muito mais longe do que se
ele devesse, à cada vez, decidir se vai, sim ou não, fazer revelações. Podemos mostrar-lhe
que o psiquismo conhece correntes às quais ele pode se abandonar mesmo, se ao início,
ele ignora onde elas o levam; até que, omitindo um elo, por mais insignificante que possa
parecer, no encadeamento de seus pensamentos, ele arma um dique contra a corrente e
bloqueia o processo, já iniciado, da exteriorização psíquica.

Um outro grupo de nossos conselhos concretos, sempre ficando no campo das


generalidades, visa a apreender as formas de atitude psíquica de forma mais concreta,
ligando-se mais aos detalhes do que o fizemos nos precedentes. Ao analisado nós não
pedimos somente que nos diga o que lhe pesa, nós lhe pedimos simplesmente "um
inteirar-se" de seus pensamentos e de seus sentimentos à medida de seu surgimento, nós
o convidamos também a falar "irresponsavelmente”, a não se fiscalizar, a se deixar ir
dentro da expressão verbal, como o fizeram sempre as pequenas crianças. Que ele se
libere da influência da "cultura", que ele não se deixe influenciar pelas convenções, pelo
medo ã sanção social - tudo isto, bem entendido, unicamente dentro do quadro da atitude
analítica. Nós o convidamos muito particularmente a esquecer o tempo; o tempo é o
maior inimigo do inconsciente; que ele se abstenha então - tanto como o analista, bem
entendido - de consultar seu relógio, deixando escoar o conteúdo de seu psiquismo fora
do tempo, como se a análise não estivesse situada no tempo. Que seu psiquismo se
expanda no infinito e que ele evite de se fixar sobre tal ou qual objeto (esta atitude, como
muitas outras se adquirem por assim dizer automaticamente), que ele se permita ao
abandono total. Que ele sonhe de preferência a que pense. Que ele deixe seus
pensamentos vagabundear, "ir dentro de todos os sentidos" e que seu psiquismo assim
relaxado assemelhe-se a uma superfície agitada por doces vagas. Que ele deixe falar seu
interior e que seu Eu se contente de assistir a essas manifestações espontâneas. Assim
liberado, o "élan" pode determinar uma verdadeira revolução no psiquismo. Que o
analisado procure se revelar e revelar as pessoas de seu ambiente sob todos os aspectos.
Que ele procure sobretudo conhecer o que até então seu estado mantinha desconhecido,
que cada sessão lhe traga conhecimentos novos sobre si mesmo. A passagem do estado
de vigília ao sono é, para o analisado igualmente, a atitude a mais favorável ao
aprofundamento. Ele pode igualmente visar a obter uma atitude próxima àquela que lhe
permita reencontrar uma palavra ou um sonho esquecido.

Um terceiro grupo de nossos conselhos concretos não concerne tanto à forma da


atitude a adotar quanto à forma de apreender os conteúdos psíquicos. É preciso - e é o
mais importante - convidar o analisado a concretizar o mais possível, a recolocar o geral
no particular, para o relato dos casos concretos, e, ao interior destes, favorecer o
surgimento de detalhes novos sem cessar. Nosso lema deve ser: é preciso que as
lembranças sejam vívidas. Unicamente uma lembrança vívida, uma cena vívida - e
vivida - é capaz de penetrar até o fundo do psiquismo. Que o analisado se esforce por
traduzir em termos concretos todo novo detalhe que surja, todo pensamento, por tão
fragmentário, tão embrionário que seja ele, que se apresente então a evocação de
acontecimentos correntes; que ele vá até o fim deste trabalho, tirando dele as últimas
conseqüências. Que ele esteja pronto, à cada sessão, a reviver tudo o que foi dito no curso
das sessões anteriores, que ele retome assim o fill_rs do conjunto da análise, e de toda sua
vida, em geral.

O que ele precisa evitar a todo preço, é - se bem que se trata de um método que parece
se impor - o apelo à vontade. De uma forma geral, a analisado não dispõe de sua
vontade, nem para facilitar a emergência de lembranças nem para vencer resistências.
Aliás, o espírito da análise (de que depende também o sucesso) exige que a mudança no
psiquismo seja obtida não pela força ou sedução (tal é, com efeito, em minha opinião, a
base instintual da vontade), mas pela redução de obstáculos, pela apercepção do sentido e
graças ao "élan" da força vital.

Comumente, nós tentamos fazer reviver aos analisados, dominados por um afeto de
vergonha, a cena que teria provocado o afeto. Agindo assim, o analista ocupa a posição
da pessoa, que, de outra vez, suscitou as reações de vergonha.

Em um certo número de ciências, a representação visual constitui um método auxiliar


apreciável. O desenho é uma prática da psicoterapia jungiana. Em minha opinião, ele não
deve substituir a associação, mas, em certas ocasiões, completar a corrente de
associações pelos desenhos pode ser muito favorável à análise. É assim que se pode pedir
ao doente para desenhar o plano dos apartamentos em que ele habitou durante sua
infância, indicando as camas no quarto de dormir, etc., ou para representar os lugares
onde se desenrolam seus sonhos. Graças a estes procedimentos, pudemos esclarecer por
que tal neurótico compulsivo devia executar tal movimento em tal lugar se deslocando
sempre em direção à direita e jamais em direção à esquerda; no apartamento de sua
infância, o quarto da criada se encontrava à esquerda. É igualmente dessa forma que
temos podido, a propósito de um sonho, estabelecer que a cidade com que o sujeito
sonhou, com suas duas ruas e sua única casa, representava um corpo de mulher com as
pernas afastadas e um interior oco e terrificante. A propósito de um outro sonho, o
desenho mostrou que o caminho, com uma "intumescência" na sua extremidade,
representava um cogumelo, um pênis. Um certo modo de representação acústica,
análoga, de um certo ponto de vista, à representação visual, o relato sucessivamente
repetido do conteúdo manifesto do sonho, pode igualmente terminar em uma
manifestação do inconsciente.

8. Nível e estratificação de correntes de associações

Por manifestação do "verdadeiro" psiquismo, podemos entender duas coisas e,


portanto, podemos exigir duas coisas de um método de base: primeiramente, é preciso
que no fluxo associativo o conteúdo do inconsciente se manifeste tão claramente e tão
puramente quanto possível; segundo, além dos conteúdos, as forças que os alimentam
devem se manifestar.

Nós já fizemos alusão à concordância da associação livre e do modo de


funcionamento do inconsciente. Dois conceitos, o do fluxo e o da curvatura permitem
ilustrar metaforicamente esse tipo de correspondência. Existe, com efeito, no analisado,
um fluxo, uma corrente, à qual ele tem apenas que abandonar-se e que, mesmo seguindo
vias indiretas, encurvadas, exige por intermitência, movimentos de desligamento e
movimentos de aderência.

Esses dois conceitos de fluxo e de encurvação nos permitem igualmente esboçar uma
imagem do inconsciente e dos representantes instintuais que o regem dentro do Isso. O
material clínico, por exemplo, o desenvolvimento de estados depressivos, permite
estabelecer que forças em turbilhão estão operando no Isso e que os instintos eles
mesmos são, no fundo, tais forças. A associação livre é constituída, interiormente, de
correntes alimentadas pelas formações em turbilhões, e, conseqüentemente, de
encurvações. Nós vemos assim que a injunção à associação livre desencadeia o
aparecimento dessas correntes, que ela equivale na realidade a promover um modelo do
inconsciente. É assim que nós nos utilizaremos de dois conceitos ilustrativos para
descrever nossos processos. A obrigação que sente comumente o analisado ao
prosseguimento da análise - o que é um índice da boa marcha da análise - provém dessas
correntes em turbilhão. Estas são responsáveis por neuroses (transferenciais) analíticas
que se desenvolvem durante a análise. (Bem entendido, o sentimento de que se é
obrigado a prosseguir a análise provoca resistências.) O analisado é tentado a interromper
bruscamente a análise, quer dizer a obedecer às resistências. Hoffer elaborou
cientificamente esse aspecto da neurose (transferencial) analítica; segundo ele, ela
procederia de tendências sexuais agressivas da infância terminando na ameaça de ter de
se separar, suporte atual da transferência (121). - Um tipo particular de neurose
(transferencial) analítica aparece na obrigação que experimenta o analisado a ventilar o
material analítico, a discutir com tal e tal, a falar sobre um tom sentimental de seu amor
transferencial: segundo minha experiência, esse modo de comportamento dissimula uma
confissão de insinceridade (e eventualmente, de impulsos "desleais" não ditos) do
analisado durante a análise.

Mas tudo isto seria de pouco interesse, se nós não pudéssemos utilizar essas
considerações para melhor responder a questões práticas levantadas no domínio da
associação livre. É significativo que o fluxo do material ótico, que, a meu conhecimento,
Johannes Müller descreveu o melhor, deve seu aparecimento a um estado vizinho do
sono;
que as instruções de Schultz visando à relaxação corporal e as de Ferenczi com vistas à
relaxação afetiva visam igualmente a provocar estados vizinhos do sono. Pareceria
também que existe um estado ótimo situado entre o sono total e a vigília, para favorecer
esse fluxo, estado no qual o fluxo e o grau de encurvação são particularmente "produtivos
do inconsciente". Esta distância ótima com relação a certos pólos, a certos "graus zero" -
que podemos chamar nível do fluxo de associações - está submetido a oscilações não
somente no que concerne a sua posição entre sono total e vigília, mas também no que
concerne a sua distância em relação aos centros ‘em turbilhão' dos instintos. Na análise
de adolescentes, o que é impressionante, é sua constante prontidão à atuação, a rapidez
clara com a qual eles são arrastados por todo novo turbilhão, a serena desenvoltura com a
qual eles se riem do analista, assim como a freqüência de suas ereções. De qualquer
modo, os adultos acusam igualmente tais complexos de sintomas - de caráter quase
instintual - no fluxo de associações.

Segundo a descrição de Glover (83, p. 28) a corrente de associações pode ser


condicionada pelo universo instintual pré-genital e refletir o instinto parcial uretral
(logorrhée), anal (blocage) e oral (prazer evidente em falar). Assim, atrás do silêncio,
encontramos certos instintos pregenitais, mas também os destinos do desenvolvimento do
Eu e do Supereu (K. Lévy, 122). Como os instintos parciais, sensações corporais podem
aparecer em situação analítica. Entre estas últimas, as sensações térmicas merecem uma
atenção especial durante o tratamento analítico. Um trabalho de Bak (123) trata da
necessidade de calor do recém-nascido, com referência ao instinto de apego. E. E. Krapf
reuniu experiências sobre o aparecimento de sensações de calor e de frio durante uma
análise; as primeiras exprimiam o "blottissement" ["blottir (se)": acocorar-se], as
segundas a angústia de separação, mas as duas podem ser acompanhadas de angústia.
Elas são condicionadas pelo instinto e pelos conflitos (124).

Um fenômeno notável a este respeito é o que eu gostaria de nomear pensar paralelo


na associação. Podemos aí observar dois níveis de fluxo. Tudo falando, segundo toda
aparência, observando estritamente a regra fundamental da análise, o analisado realiza na
verdade um certo trabalho, na sua imaginação; por exemplo, ele quer reagrupar os livros
da biblioteca da sala de consulta colocando na mesma fila aqueles que têm a mesma cor.
Ou então ele desenha sem cessar (na imaginação) triângulos sobre o muro.
Esses pensamentos não ditos se situam mais próximo da camada instintual enérgica
que os pensamentos formulados, o analisado pode persegui-los fora da análise * , seu
conteúdo gira comumente em torno da agressão sexual e algumas vezes eles estão no
ponto de se converterem em atos. É assim que uma paciente, particularmente "produtora"
de paralelos durante a sessão, declara ser surpreendida à véspera, na piscina, a querer
apalpar o peito de uma mulher que falava com seu marido.

A análise deve se fixar como tarefa de penetrar nesta zona pára - instintual e de
favorecer sua transformação em fluxo principal. Trata-se lá, com efeito, de uma seqüela
direta do estado de desenvolvimento onde atravessa o instinto. A natureza geométrica de
numerosos paralelos se explica verdadeiramente pelo caráter imperioso de instintos que
atravessam. Nessa camada pára - instintual, o abalo de posições da libido pode ser eficaz.

Mas lá ainda, é preciso observar nosso preceito essencial: é impossível de se


introduzir nesta camada por comando, não é questão de ordenar ao analista a não
observar as correntes superficiais do pensamento. De uma forma geral, as instruções
devem ser positivas, e não conter negações ou interdições. Uma instrução como "faça
isso" encontra mais ressonância no inconsciente do que uma exclamação como "não faça
isso!" Se eu noto que o paciente desenvolve idéias paralelas, o que pode se manifestar
também por uma ausência de ressonância em mim - mesmo, eu lhe pergunto o que o
preocupa enquanto ele continua a falar correntemente e procuro assegurar o livre
escoamento das correntes de pensamentos neste outro fluxo.

*É particularmente importante conhecer os pensamentos paralelos de gagos, por exemplo.


II

UTILIZAÇÃO DO MATERIAL OBTIDO

1 - O SENTIDO PSICANALÍTICO. CONTINUIDADE PSÍQUICA E


DETERMINISMO.

Vimos como a situação analítica conduz analisando a revelar seus segredos. É


preciso que ele mergulhe no que há de mais profundo e vital dentro de si para, em
seguida, tudo venha à tona. Poderíamos crer que, nestas condições, toda análise é uma
seqüência de revelações, de confissões perturbadoras. Em parte, isto é verdadeiro. Na
realidade - como vimos - o analisando aprende a conhecer sua vida interior no decorrer
da análise; suas "confissões" também, no melhor dos casos, não são mais que lutas
interiores em vista de as formular, a despeito de resistências.

Além disto, seria pouco natural que o analisando falasse, durante longas horas,
meses e anos, somente o que há de mais profundo e mais vital nele. Ele fala de tudo e
coloca ao analista tanto revelações, como idéias fugitivas e banais. Entretanto, tudo que
faz, tudo que diz e sente durante a sessão; ver tudo que ele faz em presença do analista ou
sob sua influência; toda sua mímica e seus gestos constituem material analítico.

Isto nos conduz a uma importante descoberta na metodologia analítica. Até o


momento o que esteve em questão foram as atitudes e os estados favoráveis ao
surgimento do material analítico. Agora abordaremos as condições prévias para a
compreensão e a exploração desse material. A condição prévia, talvez a mais importante
de toda a teoria analítica é a possibilidade de interpretação (ou viabilidade) do material
analítico e a obrigação, na qual se encontra o analista, de interpretar. Elas implicam que
todo pensamento, toda manifestação do analisando é dotada de sentido, de um ponto de
vista determinado.

Peguemos um exemplo. Uma paciente começa a sessão contanto um


acontecimento banal: ela perdeu sua luva no ônibus. Este é o tema dominante no começo
da sessão. Sua primeira idéia que se associa a esta perda é a seguinte: "se pelo menos eu
tivesse perdido meu lenço no lugar da luva..." Por que um lenço? Porque isso lembrava
narrativas elegantes, onde há cavalheiros e damas da vida em côrte na Franca. A sessão
continua: a paciente fala então de sua juventude onde ela era cortejada por vários
admiradores. No final da sessão, um ato falho: ela abre sua bolsa, olha o que há dentro e a
fecha novamente. Quando interrogada, ela declara ter tido a sensação de ter perdido o
lenço no meu consultório.
Tentamos mostrar o sentido da primeira idéia, aparentemente insignificante. Não
foi um acaso a idéia da perda do lenço; diremos que esse pensamento estava pré-
determinado pelo tema que ele representa.

Aqui é preciso parar. A determinação dos conteúdos psíquicos Não é uma


novidade introduzida pela psicanálise. O debate entre partidários e adversários do
determinismo acontece há muito tempo em Filosofia, Teologia e Psicologia.
Ultimamente, o ponto de vista determinista estava representado pela Psicologia dita
associativa. Segundo os que seguem esta tendência, tudo o que surge no psiquismo é
determinado por leis formuladas com precisão - de associações de idéias; estas leis,
estando elas mesmas fundadas sobre a contigüidade e sobre a semelhança espaço- tempo.
Tudo que "vem ao espírito" se liga a um conteúdo precedente ou se assemelha a ele. Os
processos psíquicos são determinados pelas leis de contigüidade e semelhança.

Para dar um exemplo, peguemos o livro de Taine: "Numa observação bastante


curiosa feita por Dr. Lazares sobre ele mesmo, vemos claramente como a sensação
excitatória, ora presente, ora ausente, provoca e suprime a ilusão". Numa tarde bem clara,
estava sobre o terraço de Kaltbald em Riji, procurando a olho nu, o Waldbruder, um
rochedo que se lança do meio de um gigantesco muro de montanhas circundantes, no
ápice dos quais percebemos as geleiras do Titlis, d`Uripothstock, etc... olhava ora a olho
nu, ora com o binóculos; os reconhecia muito bem com o binóculos, mas eu Não os podia
distinguir a lho nu. Durante uns dez minutos eu olhava as montanhas cujas cores,
variavam entre o violeta e o verde escuro, e já estava me cansando quando resolvi parar e
ir embora. No mesmo instante, vi (e Não posso me recordar se meus olhos estavam
fechados ou abertos) um de meus amigos ausentes, como um cadáver na minha frente.
Devo ressaltar aqui que, desde muitos anos, tinha hábito anotar todo grupo de
representações que, em sonho ou antes deles, surgissem com uma forca, uma precisão,
uma clareza particulares, e se colocava a mim com uma certa vivacidade que me faz
considerar uma representação, assim como um pressentimento. Devo acrescentar que
nunca tive a felicidade de ver esses pressentimentos se realizarem de fato. Também
adquiri o hábito de, depois desses incidentes, retomar as representações antecedentes a
eles. Freqüentemente, consegui explicar, pelas leis conhecidas de associação de idéias,
como o pressentimento pode se inserir numa série de pensamentos que tinha.

"Na ocasião em questão, me fiz a seguinte pergunta: "Como comecei a pensar em


meu amigo ausente? Passados alguns segundos, retomei a linha de pensamento que foi
interrompida pela procura do Waldbruder, e com facilidade achei a lembrança de meu
amigo, por uma necessidade simples, deveria ter sido introduzida na cadeia de
pensamentos que me passavam. A lembrança que tinha tido dele, estava explicada
naturalmente. Mas ele havia me aparecido como um cadáver. Por quê? Neste momento
para melhor refletir ou porque meus olhos estavam cansados, fechei os olhos e, de
repente, todo o meu campo de visão estava coberto pela mesma cor cadavérica, cinza
amarelo- verde. Logo considerei isto como o princípio da explicação procurada..."
Vemos claramente que aqui, uma lembrança interna surgiu segundo leis de associação,
junto com uma sensação visual. A excitação excessiva da periferia do nervo ótico... tinha
provocado, em contraposição, uma sensação subjetiva e durável (75 II 111-113)".
O ponto de vista de Freud é diferente. O que é determinante, Não são as sensações
exteriores ou interiores, o contato ou a semelhança; é o sentido dos conteúdos psíquicos.
Em nosso exemplo, o que determinou a associação de idéias da paciente, Não foi a
contigüidade espacial da luva ou do lenço, mas um sentido interno, desencadeado pelo
tema do começo da sessão e que foi aprofundado na seqüência. O jogo de associações
livres abriu novos setores nesta mesma ordem de idéias: falou-se do marido que estava
presente quando houve a descoberta da perda da luva, falou-se também sobre as
circunstâncias dessas perdas. Ela queria pegar castanhas oferecidas pelo marido, num
pequeno saco de papel. Daí surge nova associação: a ela sempre é dada a tarefa de "aller
cherer les marrons chauds pour le mari". *

Vejamos o sentido dessa primeira idéia:" Se pelo menos eu fosse cortejada e


adulada como nos meus tempos de moca..." ou ainda: "Se pelo menos me amassem e me
servissem melhor do que o meu marido..." Mas essa segunda formulação, menor que a
primeira, é uma redução deformante, pois a idéia do lenço contém tudo: o desejo de ser
amada, os arrependimentos da juventude, o marido. este "pacote de sentidos" continha o
tema do começo da sessão, e se a primeira idéia surgida na consciência possuía um
sentido, era porque ela se encontrava nesse "pacote".

Se fôssemos mais longe: Não somente o tema mas também a perda da luva,
núcleo factual do tema enquanto "sintoma passageiro" (Ferenczi), que é, segundo nós,
integrado no seguinte sentido: é aquilo que exprime a atitude da paciente no fim da
sessão. O sentido do núcleo factual é análogo àquele do sistema neurótico, cuja
interpretação é um dos objetivos da análise.

No caso de Lazarus, seria preciso procurar o que significava para ele, a morte do
amigo e por que ele tinha pressentimentos de morte.

Da mesma forma que a idéia surgida ou o sintoma, a sessão analítica pode possuir
um sentido. Digamos, por exemplo, que uma paciente, durante a sessão, cogite a idéia de
divórcio. Mas nossa expressão "idéias de divórcio" é o reflexo lingüístico de uma
cumplicidade estabelecida entre analista e analisando; na verdade, "as idéias de divórcio"
Não se relacionam unicamente ao divórcio; elas se ligam a uma longa série de eventos
atuais e longínquos.

Podemos, dessa maneira, falar do sentido de toda uma parte da vida. Assim,
numerosos sintomas de uma de nossas pacientes se explicam, graças ao fato de que,
durante muito tempo, ela se identificava com sua cunhada, a mulher de seu irmão que ela
amava muito.

Um certo modo de comportamento pode, igualmente, estar dotado de sentido. Um


de nossos pacientes via seu amor se transformar sob o efeito do menor fator de
perturbação, em uma raiva passional que apagava todos os traços de sentimento positivo
*
Alusão a uma locução húngara: "ir procurar pegar castanhas para alguém"= se ocupar das
tarefas mais ingratas, no que interessa a uma comunidade.
precedente. O sentido dessa ambivalência reside na relação do paciente com seu pai, que
ele perdeu com 8 anos de idade e que ele tinha amado profundamente na sua primeira
infância. Este amor era abalado pelo comportamento da mãe que maltratava
constantemente o pai, já doente, Não escondendo seu sentimento de desprezo, é sua vista.
Na identificação com sua mãe, o filho adotava a mesma atitude que ela, quando na
presença do pai, e o amor que ele sentia por este foi substituído por violentos acessos de
raiva.

Este acontecendo foi determinante para seu comportamento futuro; o paciente


está constantemente é procura de um pai e isto explica sua extrema sensibilidade diante
de qualquer fracasso.

O que há em comum nesses exemplos? O que significa a atribuição de um sentido


analítico a uma idéia, a um período da vida, a um modo de se comportar? Isto quer dizer
que, a idéia, o período da vida ou o comportamento em questão se integram na
continuidade psíquico da pessoa. Compreender analiticamente um fato quer dizer:
conhecer o lugar que ele ocupa na continuidade psíquico do analisando.

Parece que uma certa função se constrói desde a pequena infância; função que
tem por objetivo assegurar a continuidade dos acontecimentos vividos. Uma criança de
dois anos repete inúmeras vezes durante o dia: amanhã jora, amanhã comer, amanhã
andar... Observamos nas crianças o que constatamos com freqüência nos adultos: uma
conversação interrompida pode ser retomada no ponto onde foi deixada...

Mas, esse "lugar", Não é um ponto entre dois outros pontos vizinhos (como quer a
Psicologia associacionista) mas antes um nó no tecido psíquico, um nó feito de curvas
que se ramificam, compostas de inúmeros fios.

Os setores do psiquismo tocados pelo recalque são igualmente submetidos é lei da


continuidade, pois o recalcamento só modifica certas direções dos processos psíquicos.

Compreendemos agora, porque interpretamos a primeira idéia surgida como


estando significativamente determinada: ela emergia da continuidade psíquico abalada
pelo "tema", levando com ela tudo que lhe estava contíguo.

Podemos comparar esta situação a de uma esponja que retiramos da água: assim
como ela se embebe do elemento do qual ela acabou de emergir, mas com ela fica em
contato (pois ela está impregnada de água, é a idéia surgida da continuidade psíquico que
também fica impregnada de tudo aquilo que, no psiquismo, a cercava e ainda a cerca. *
Somente a livre associação de idéias mostra todos os fios que conectam as idéias isoladas
na história psíquico d analisando. Nessa visão, estamos diante de fatos experimentais. A
*
Talvez essa comparação permitirá a melhor compreensão da tese, freqüentemente verificada
pela experiência, segundo a qual, é precisamente a primeira idéia surgida que abre a via
mais importante que conduz ao inconsciente; isso se ela não se chocar ao refúgio da
crítica (talvez por causa do perigo de ver o inconsciente deixar de sê-lo) desconfie da
"primeira idéia surgida". Mas atenção! É preciso se precaver de exagerar os fatos, e ao
fazer retornar ao seu contrário, afirmando que uma solução é sempre dada pela primeira
idéia surgida.
livre associação tem uma função que podemos designar como sendo "provocadora de
sentido".

Definir o "sentido" como pertencente é continuidade psíquico, e dar é


metodologia psicanalítica, bases teóricas e experimentais seria muito importante.
Podemos verificar sua validade, a propósito de uma antinomia formulada, há alguns anos
por Schneider (34, 35).

Schneider constatou que se pedimos a alguém para formar associações de idéias


com relação é um número qualquer (que o sujeito não escolheu, ele próprio) ele formará
"complexos", ou seja, suas associações firmaram um conjunto homogêneo exatamente
como se ele tivesse colocado seu número entre seus próprios eventos psíquicos.

Fiz com freqüência a seguinte experiência: depois de ter escolhido


sucessivamente duas palavras no dicionário, aleatoriamente, encontrava entre elas
ligações pelo jogo das associações. Ou para mudar as condições da experiência, escolhia
uma palavra é qual associava; durante o processo de associação, escolhia uma outra
palavra no mesmo dicionário e a achava inserida na série de minhas associações. Assim,
o método de associações pode Não somente desencadear, provocar, mas também
engendrar o sentido.

Para nós, nos casos "normais" (quer dizer, os casos onde o analisando associa
idéias a seus próprios temas), o sentido determinado de suas idéias é a prova da
determinação mútua dos temas e idéias uns pelos outros. Ora, a constatação de Schneider
poderia s`inscrire in faux contra esta tese. Com efeito, se as idéias se associando a temas
"estranhos" é pessoa, podem ser determinadas de maneira significativa, o fato de que as
idéias se associando ao tema, sejam dotadas de sentido, Não podem constituir prova do
caráter determinado do tema ou de seu núcleo factual.

Mas, se, por "sentido" psicanalítico, entendemos ser a possibilidade de integração


na continuidade psíquico do indivíduo e por determinismo, o fato de ser determinado
pelo continuum vital do indivíduo, então cai a objeção de Schneider. Segundo as
preliminares do método psicanalítico, estas se fundamentam sobre o continuum psíquico
do indivíduo; a análise de um tema estranho é simplesmente inadmissível, mesmo se,
graça a raciocínios analógicos ou se admitimos uma "continuidade filo-genética"
manifestada, entre outros, nos símbolos típicos (Ferenczi), esta análise pode permitir
entrever soluções juras - estas conclusões são, por princípio, falsas. Operar cm ela seria
um erro metodológico, comparável à divisão por zero em matemática.

Sabemos, portanto, devido a Schneider, que deduzir (a partir de material


analítico) os fatores determinando o tema seria fazer uma operação probabilística.

Bleuler submete o célebre exemplo d`<aliquis> da Psicopatologia da vida


cotidiana (134) a um controle do cálculo de probabilidades. Ele estima que a separação
da palavra esquecida em "a" e "liquis" têm uma probabilidade de 1/l00000 e o
esquecimento de uma palavra tão simples quanto esta, uma probabilidade aproximada de
1/100. Em outro, nove sobre dez palavras associadas a este (na obra N.d.T.) se situam no
campo semântico do sangue. Assim, o acaso no que se refere ao pertencimento da palavra
esquecida a um conjunto dado, Não pode ter mais que um valor dividido por 10 é
potência 20; a probabilidade de uma resposta certa é de 1 dividido por 10 elevado é
potência 20; ou seja, uma probabilidade alta. O matemático Potya confirma os cálculos
de Bleuler, acrescentando que não é fácil expressar em números probabilidades de ordem
psicológica ou médica. No seu ponto de vista, ele Não está de acordo com este tipo de
cálculo e estima ser mais justificado partir do fato de que a palavra <aliquis> é
condicionada por qualquer um. Eu me pronunciei a esse respeito há alguns anos: na
minha opinião Bleuler dá uma grande importância ao fato de que oito associações
conduziram a um mesmo campo semântico. Apesar disso, é evidente que esse campo
fique inconsciente durante a realização das associações (se tivesse se tornado consciente,
a alusão acima às oito associações Não teriam nenhum interesse). Mas, sobretudo,
deveríamos, se falamos de uma demonstração como um fato experimental, associar a
outras palavras da frase (como era o caso de <exoriare>, palavra que conduz ao mesmo
campo). É somente nos casos onde as outras associações conduziram a um resultado
contrário, que a prova matemática da determinação teria tido valor. Se várias palavras da
mesma frase conduzem a um mesmo campo, ou de maneira geral, a campos semânticos, a
determinação do esquecimento (fora do ponto de vista matemática) cai por terra, pois as
outras palavras deveriam, igualmente, cair no esquecimento (ou, ao contrário, fugirem do
esquecimento). Uma prova numérica, como exige Bleuler, só vale se a confrontarmos
com um outra contra-prova... Somente a possibilidade de inserir as associações na
continuidade da pessoa, permite afirmar, com certeza, que encontramos a forca
determinante (135).

O determinismo, nos limites da continuidade psíquico, é a premissa mais


importante da Psicanálise. Segue-se que, no interior dessa continuidade, os eventos se
determinem mutuamente, Não em linha reta, mas em linhas curvas e ramificadas.
Decifrar o sentido total desses eventos, equivaleria a fazer um levantamento de todos os
fatores determinantes.

Compreendemos assim, que o "sentido" analítico é, em geral, difícil de se definir


e que só podemos iniciá-lo de uma maneira aproximada. O sentido analítico de um fato
deve conter todos os seus antecedentes. Toda omissão, nesse ponto de vista, é
reducionista e deformadora. *

Freud sublinha que é impossível chegar é resposta do porquê Untel Não tomou
esta ou aquela via ao longo de sua existência; de outro modo, diz que o método
psicanalítico é incapaz de esclarecer os lados negativos de uma história de vida. Na
minha opinião, ele também postula o princípio metodológico da continuidade.

*
É por esta razão, ser inútil se perguntar qual dos dois fatores, relacionados à
determinação mútua, é anterior ao outro. Por exemplo, a agressão que se externaliza ou se
internaliza; a diminuição do fluxo libidinal que se externaliza ou a intensificação da
agressão.
A descrição que Freud faz das funções do Eu, mostra a que ponto o problema do
"sentido" (na acepção desenvolvida acima) o preocupava. Ele Não se continha
simplesmente em enumerar as funções do Eu, mas de definir, cm cuidado, ao mesmo
tempo seu sentido, sua "origem e objetivo": "Ele (o Eu) assegura a auto-conservação e no
que concerne o exterior ele completa sua tarefa aprendendo a conhecer les excitations,
acumulando, na memória, as experiências que elas lhe fornecem, evitando les excitations
muito fortes, pela fuga, se acomodando em excitations moderadas, pela adaptação, enfim
chegando a modificar de maneira apropriada e a seu favor, o mundo exterior (atividade).
Interiormente, ele conduz uma ação contra o ID (ca) adquirindo o domínio das exigências
pulsionais e decidindo se estas podem ser satisfeitas ou se convém resistir a elas Até um
momento mais favorável u ainda se é preciso sufocá-las completamente. Em sua
atividade, o Eu é guiado, levando em consideração as tensões provocadas pelas
excitations de dentro e de fora. (75, p.4)".

É preciso distinguir vários tipos de sentido. Além de sentido manifesto e de


sentido (caché) (analítico), podemos falar de sentido alegórico, de sentido moral, de
sentido analógico (por exemplo, a expulsão dos judeus equivale é purificação da alma). O
sentido Não é algo absoluto; sua significação depende de toda a situação.

Em Psicanálise, o tratamento dos sintomas, pela interpretação de seu sentido


(caché), revela uma grande importância. Podemos recorrer a isto desde os primeiros
contatos ou desde a primeira sessão. Colocando no bolso sua caixa de fósforo colocada é
sua disposição, na sua saída, o paciente acaba por revelar alguns segredos.

Segundo Freud (8, Apêndice c), a interpretação que toma sentido é a tradução do
conteúdo latente, no modo de expressão do estado de vigília, ou seja, na língua. A
interpretação é a mesma coisa que a compreensão (75, p. 28), ou seja, a tomada de
sentido. Assim, a interpretação se realiza pela tradução do conteúdo latente
compreendido - do sentido - em expressões lingüísticas. O inconsciente tem acesso,
então, ao pré-consciente. Consideremos a injunção dirigida ao paciente: "dizer tudo", e
veremos que a língua está no centro do método psicanalítico. Não é por acaso que Freud
se interessa, tão intensamente, por problemas de afasia (l89l) aos quais ele
se refere nas suas "cartas" (1896). *

2 - SOBRE CARACTERÍSTICAS DA CONTINUIDADE ESPECÍFICA DE


(DEROULE MENTS) PSÍQUICOS.

Precisamos a noção de continuidade específica do desenrolar psíquico. Logo é


preciso distingui-la do princípio de continuidade de Leibniz * . (Este princípio, do qual

*
Num tratado publicado somente em húngaro, procurei mostrar que a concepção de Freud sobre
a afasia servia-lhe de modelo para a sua teoria sexual. Na afasia (pag 90, texto apagado)
há um campo lingüístico unitário com certos "pontos" a se observar. Na teoria sobre a
sexualidade, temos a libido unitária com, como pontos a se observar, as zonas erógenas
(126). No momento, estamos em condições de apoiar esta afirmação pelas cartas de Freud
(76).
*
Eu tinha sido informado da concepção de Leibniz pela obra (publicada em húngaro) de G.
Révész La psychologie de Leibniz- A observação de Freud em O Eu e o Isso, onde a hipótese
fala Leibniz, é a continuidade de fatos independentes do conteúdo tais como a
consciência, a intensidade). A experiência mostra que a continuidade psíquico se realiza
por processos conflituosos. De outro modo, diz, influências exteriores, representações,
tendências e contra-tendências estão em contato permanente, e mesmo se o desenrolar de
um desses processos é interrompido, sua continuidade é assegurada pelo próprio
revezamento da atividade interruptora. Podemos também falar de uma continuidade de
primeiro e segundo grau. A Psicanálise se esforça para substituir a continuidade de
segundo grau (por contato) por uma continuidade de primeiro grau (processo
ininterrupto).

A teoria de Ferenczi sobre o sonho levanta outros problemas sobre a continuidade


psíquico. Segundo este autor, um traumático psíquico desintegra, atomisa
obrigatoriamente, o próprio psiquismo. Podemos nos perguntar, Até onde pode ir essa
ruptura da continuidade, se uma renúncia perfeita é possível e se os resíduos Não contém
uma continuidade psíquico ainda mais primitiva; talvez uma continuidade
exclusivamente dinâmica que permite aos setores assim elevados do psiquismo, de ajudar
o traumatismo a se reproduzir, na noite sob forma de sonhos sem imagens.

Poderíamos nos perguntar: qual a relação entre a maneira de se orientar no


domínio da continuidade psíquico e os princípios lógicos bem conhecidos? Como
deixamos entender mais acima, o inconsciente pode ser concebido como um conjunto e
enquanto tal, Não é forçosamente construído seguindo os princípios da lógica aristotélica.
O que é preciso entender de uma afirmação tão absurda, aparentemente?

Aqui, seria particularmente indicado se deter aos raciocínios de um matemática.


Querendo conscientizar da existência extralingüística da matemática pura, Browwer se
pergunta em que medida os princípios lógicos "podem funcionar na matemática
infinitesimal enquanto meios de transição práticos e seguros entre construções de
matemática pura. Esta pesquisa leva a um resultado positivo no que concerne ao princípio
de identidade, aquele da contradição e dos silogismos, mas a um resultado negativo no
que concerne ao princípio do terceiro excluído. Dito de outra forma, nenhuma realidade
matemática corresponde aos enunciados e conclusões derivadas desse último princípio.
(36)"

Ocorre quase o mesmo, no que concerne ao inconsciente, pelo qual escolhemos


igualmente, como ponto de partida, a existência extralingüística de um domínio
construído. Mas a tomada de consciência da existência de universos matemáticos
pressupõe o fenômeno original da cisão de um momento vital em duas coisas
qualitativamente diferentes, o que permite concluir, a partir daí, na "visão temporal"
(visões temporelle) (36), que Não podemos perceber o inconsciente conforme a
concepção da continuidade, Não colocando nenhuma chuvagem e Não pressupondo
nenhuma visão temporal. Chegamos é conclusão de que, n domínio do inconsciente,
nenhuma lógica fundada essencialmente sobre o isolamento, a separação (de conceitos)

de uma série contínua de fatos conscientes e de fatos inconscientes (em contradição com a
existência de um inconsciente qualitativamente específico) é refutada, é dirigida contra o
princípio de Leibniz, enquanto argumento convincente.
pode ser operatória; dito de outra forma, nenhum princípio lógico está em condições de
servir de instrumento de transição de um fato inconsciente a outro. Para o inconsciente, a
existência de cada fato deve ser reconhecida e tornar-se reconhecível, independentemente
de outros fatos.

Poderíamos esperar que princípios lógicos de tipo Não aristotélico poderiam


introduzir uma certa ordem na continuidade do inconsciente. Talvez os princípios da
dualidade e da inversão - princípios de uma lógica de transição (37) - poderiam estar
afinados e desenvolvidos a fim de que eles se adaptem à continuidade. Mas se Não
dispomos de uma tal lógica, a continuidade enquanto princípio, substitui o princípio
lógico, exigência da não- contradição. O critério que permite decidir se tal fato surge do
inconsciente individual ou Não, é o de saber se ele foi tirado ou Não antes.

Várias observações reforçam a constatação de que as operações baseadas sobre a


continuidade dinâmica, de um lado sobre a lógica Não aristotélica, de outro se
condicionam mutuamente. Por exemplo, G. Th Fechner, falando dos "dinamistas", ou
seja, dos adversários dos atomistas, se exprime textualmente assim: "Aqui, com os
dinamistas, fala- se de direções, de coesão, de polaridades, de particularidades, de
potências, de diferenciação, de indiferenciação, de generalidades, de individualidade, de
centralidade, de pontualidade, de suprimir as noções, umas pelas outras de redução de
oposições ...(38)"

Para apoiar a afirmação, segundo a qual, continuidade e lógica Não aristotélicas


se condicionam mutuamente, podemos citar a "nova lógica" de Ouspensky. O "tertium
organum" Não conhece grandezas definitivamente constantes no mundo, nem conceitos
delimitáveis; ele Não desintegra o mundo, e deixa subsistir a unidade original. Assim,
aparece uma "nova lógica do infinito, da êxtase" cuja característica principal reside no
conhecimento, do todo pela parte, no abandono da eterna dualização do mundo em A e
Não, pois A tão A quanto Não. O mundo é aquele da unidade dos contraditórios (39).

Não queremos dizer, que Ouspensky construiu uma lógica correta e aplicável;
queremos apenas chamar a atenção para as relações de sua teoria com a que foi
apresentada mais acima.

É instrutivo confrontar a ciência do inconsciente, de um lado cm a ciência da


lógica e, de outro, cm os princípios da teoria matemática dos conjuntos.

Toda lógica formal é, segundo seus próprios princípios, atemporal; suas leis são
válidas, independentemente do tempo e elas Não conhecem manifestações temporais.
Ora, afirmamos, seguindo isto em Freud, que umas das principais características do
sistema inconsciente é precisamente a atemporalidade. Em segundo lugar, é conveniente
considerar os dois modos de manifestação do inconsciente, a saber: a condensação e o
deslocamento. Refletindo sobre isso, constatamos que as condutas da lógica formal são
essencialmente condensações, no que concerne é formação de conceitos e de
deslocamentos; trata-se de "deslocar", de transferir a evidência, o valor de verdade das
premissas em direção é conclusão. A lógica formal Não mais que restringe a aplicação
dessas condutas, mas Não chega a suprimi-las. Sua validade está ligada a certas
condições precisas, então, para o que é do inconsciente, estas condições são inoperantes;
deslocamentos e condensação agem sem restrição. Estes mecanismos do inconsciente
dominam igualmente o pré-consciente, mas com certas restrições inerentes é adaptação, é
realidade e ao material verbal. A unidade d dualismo está presente na primeira lógica
"booléenne": a.a = a. A nova lógica simbólica anuncia uma lógica fora da língua, da
mesma forma que são processos do inconscientes. Estranha ao inconsciente, a negação
Não pode ser abolida na lógica formal ou na lógica simbólica, onde o problema do
verdadeiro e falso é essencial. Mas este papel dominante se enfraquece nas lógicas Não
aristotélicas, como a de Reichenbach, por exemplo, onde trata-se de decidir entre positivo
(verdadeiro), falso e indeterminado. A coexistência de contrários, ver exigência mútua de
A e de Não A, é característica da lógica dialética: o inconsciente Não conhece fatores
inibidores surgidos de contrários. Em breve, o confrontamento da ciência do inconsciente
nada acrescentará é credibilidade desta última.

No que diz respeito ao paralelismo entre as leis do inconsciente e as da teoria


matemática dos conjuntos, permitam-me citar certos desenvolvimentos de um dos meus
próprios artigos: A teoria dos conjuntos contém informações relativas aos conjuntos,
semelhantes àquelas, bem conhecidas de Freud sobre processos inconscientes. Na teoria
dos conjuntos, a parte pode se tornar equivalente ao todo (o que, do ponto de vista da
lógica formal, já está repleto de contradições). Esta equivalência já aparece no simbólico,
no pensamento mágico, onde a parte, tema lugar do todo; na técnica do sonho onde o que
é grande é representado pelo que é pequeno. Grupos rivais se colocaram com predileção
tanto para o teórico dos conjuntos quanto para todos aqueles que estão no nível do
inconsciente (por exemplo, as crianças). Propus ver na "preferência periférica" (em
Psicologia) um dos processos primários características do modo de trabalho do
inconsciente. Na teoria dos conjuntos, o caráter ordenado de um conjunto é assegurado,
dando-se um valor a um termo marginal. O inconsciente gosta de acumulações; ele está
submetido é coação de repetição. A teoria dos conjuntos trabalha com acumulações,
séries que podem ser contínuas, Até o infinito. A importância da ordem dos termos, tal
como aparece nos jogos ou nas contas onde as crianças exigem que se respeite a ordem,
aparece igualmente na teoria dos conjuntos: 2 vezes ômega, Não é igual a ômega dois; 1
mais ômega Não é ômega mais 1 ( nas antinomias da teoria dos conjuntos, existe um
paralelo da exigência da lógica formal que leva é liberdade de contradição no interior da
proposição, como encontramos no inconsciente).

Como um tal paralelo é possível? Duas respostas aparecem: 1) Os conjuntos


existem é medida que somos nós que os constituímos e reunimos seus elementos. Este ato
psíquico indica que largos setores da teoria dos conjuntos, cm seus enraizamentos no
mundo psíquico se parecem com modelo de pensar, estranho das idéias. Este processo
representa um modo de pensamento inconsciente liberado da coação do consciente e do
super-Eu. 2) O inconsciente contém conjuntos que Não são afetados pelo estreitamento
do consciente; ele toca conjuntos infinitos, com tendência é continuidade, é confusão.
Podemos dizer assim que, o verdadeiro domínio dos teóricos dos conjuntos Não é
consciente e sim o inconsciente. No inconsciente, o psicólogo trabalha com conjuntos
quase infinitos. Como a teoria dos conjuntos, o inconsciente trabalha na medida do
possível, independentemente do mundo exterior "objetivo"; os dois são, em certa medida,
fechados ao exterior. Para eles, o mundo exterior Não se apresenta como forca coativa,
enquanto "necessidade de se adaptar é realidade". É assim que antes Cantor, Grassmann
(1843), depois Hamiltn, demonstraram a Não validade da lei da comutação, num domínio
de especulação, aquele dos números complexos superiores.

Assim, a teoria dos conjuntos reflete as leis do inconsciente, Não somente porque
ela é influenciada por estas leis, ou porque o inconsciente contém conjuntos quase
infinitos, mas porque os dois domínios se encontram extremamente afastados da
realidade exterior ou devem ser considerados como tais (128).

Mas Não são somente estas analogias que permitem falar no domínio do
inconsciente. As regularidades inconscientes são passíveis de se exprimir de forma
aproximativa e parcial, na linguagem da lógica simbólica, como mostrou recentemente
Matte Blanco (130). Segundo ele, as forcas determinantes dos processos do inconsciente
podem se reconduzir a dois princípios. O primeiro se enunciaria da seguinte forma: todo
objeto individual do inconsciente deve ser concebido como membro de uma classe, ela
mesma pertencendo a uma classe superior, etc... De acordo com o segundo princípio, no
inconsciente toda relação é simétrica, ou seja, retornável. Com este princípio, a relação
temporal, por exemplo, seria impossível. E o mesmo ocorreria com a negação.

Precisamos esclarecer algo aparentemente enganador: nossa utilização da lógica


Não visa objetivos idealistas. No momento atual, na época das máquinas lógicas, deveria
estar claro para todo mundo, que os processos que, na lógica, aparecem como
idealizados, são na realidade ligados é substância do cérebro ou aos processos materiais
das máquinas. A concepção pavloviana que vê nos processos lógicos reflexos
condicionads, estereotipads, levam às mesmas conclusões.

Mosonyi propõe analogias, Não entre os processos do inconsciente e a lógica,


mas entre os primeiros e um outro modo de experiência: as leis da música (131). A
condensação aparece aqui como a compreensão de motivos diferentes, na simultaneidade
de várias melodias. No fundo, encontramos aqui transposições, ou seja, deslocamentos.
Conhecemos também o deslocamento de experiências afetivas na linguagem musical.
Wagner vivenciou a morte de Beethoven na forma de um acorde em quintas.

Em resumo: o que acabamos de expor, esclarece a maneira pela qual a Psicanálise


procura tomar os fatos psíquicos. Para ela Não se trata de uma sucessão de elementos,
mas de um continuum, essencialmente homogêneo, onde a parte contém o todo, onde o
começo e o fim Não são dados, onde a continuidade leva ao infinito. O princípio da
continuidade chega a mostrar, por via dedutiva, certas particularidades dos processos
inconscientes. Sentido, continuidade, inconsciente e suas particularidades são elementos,
em relação mútua, do conhecimento analítico.

3- O "CAMPO DE DISPERSÃO". O ACASO. A CAUSALIDADE-


A concepção determinista dos acontecimentos psíquicos está no centro do método
analítico. Apesar de sua característica abstrata, o problema merece ser estudado
minuciosamente.

Existe uma obra de Radé consagrada é evolução do conceito de determinismo no


curso da história da cultura (40), o autor afirma, entre outras coisas, que a tese de um
estrito determinismo logo será ultrapassada em Física (41), mas no que concerne é
Psicologia, ciência relativamente jovem, ela pode se manter por um longo tempo, ainda.
Porém, no meu ponto de vista, o exame rigoroso dos fatos conduz a uma reformulação
desta afirmação. O que significa, efetivamente, o determinismo psíquico? Essencialmente
a previsão do futuro (42), mas em Psicanálise, seria nula a idéia de pretender predizer os
sonhos de um paciente, por exemplo * . Algo parecido se dá com a Física estatística, onde
a previsão, os cálculos, Não mostram nada sobre os acontecimentos microcósmicos
isolados, mas sobre as resultantes de seu conjunto. Assim, os resultados Não obedecem a
leis que permitam sua previsão: eles se movem no interior de um "campo de dispersão",
de um círculo de possibilidades (Spielraum; Kries, 43). Examinando vem os fatos, o
determinismo em Psicanálise está bem mais próximo desta concepção de campo de
dispersão do que daquela postulante de leis rigorosas, constrangedoras e unívocas. Mas o
campo de dispersão da Psicanálise é algo especifico, que Não pode coexistir com outros
campos de dispersão; nós o denominamos de "sentido". Todo acontecimento psíquico se
desenrola dentro do campo de dispersão do "significativo" e sua discrição deste último é
diretamente percebida ou revelada graças ao método analítico (isto implica uma nova
definição do "sentido psicanalítico"). Assim, a continuidade psíquico atravessa um
conjunto de campos de dispersão.

Vemos igualmente numa outra ciência, que faz do "significativo" o seu objeto,
que esta dispersão é uma particularidade essencial do "significativo"; essa ciência é a
Lógica. A Lógica moderna abandonou a velha ambição de ter acesso é realidade. Ela
pode apenas propor as possibilidades, sem poder escolher entre elas.

Tínhamos dito que o sentido psicanalítico de um fato, era sua possibilidade de se


integrar na continuidade psíquico do indivíduo. Três necessidades surgem dessa
afirmação: 1) a da delimitação do domínio do "psicanaliticamente significativo"; 2) a da
delimitação teórica do conceito de "psicanaliticamente significativo" e 3) da definição
das condições necessárias para entender este sentido. Esta última necessidade, será
sujeito de todo um capítulo da presente obra.

Havíamos dito que "tudo" aquilo que fosse produzido em situação analítica seria
material analítico, ou seja, interpretável. Paralelamente, é difícil resolver o problema do
sentido em função de um grupo de fenômenos situados nos limites do psíquico e do
físico, ou seja, dos instintos. De acordo com um ponto de vista prudente e de modo algum

*
Bohr (citado depois de Frank) insiste sobre o fato, que os acontecimentos psíquicos
resistem ao princípio da predizibilidade. Ao contrário, é possível predizer com uma grande
probabilidade os fenômenos que dependem do domínio da compulsão à repetição; é isso que
explica a "regulação" do caráter ao mesmo tempo que as séries de atos infratores do homem
"sem caráter".
teórico, o instinto pode explicar uma intenção, estando, ele mesmo, fora do domínio do
significativo * , salvo no que concerne a desejo. Mas o ponto de vista teórico é menos
restritivo. Considerando o instinto, como uma tendência do organismo vivo que retorna a
um estado anterior, Freud postula uma continuidade Não interrompida da pessoa, com
possibilidade de considerar o instinto entre os processos dotados de sentido. Aumentando
assim as premissas analíticas, atribui-se ao instinto, u antes ao seu representante dentro
do Id, uma tendência compulsiva a salvaguardar a continuidade da pessoa. Por isso, esta
intenção é dotada de "sentido" interpretável.

Invocamos, brevemente, um outro tipo de formação psíquico, que é primeira vista


parece causar problemas: os símbolos. Havíamos dito também que seria a continuidade
genética que facilitaria sua compreensão. Assim, alargando a noção de continuidade,
dispomos de premissas necessárias é compreensão dos símbolos. O trabalho de
interpretação dos símbolos é, segundo Freud, um outro método (auxiliar) de
interpretação.

No difícil problema de "analisabilidade", ou seja, a possibilidade de atribuir um


sentido às doenças orgânicas, podemos também nos apoiar no princípio da continuidade
psíquico. Os germes patogênicos que invadem o organismo e causam um certo número de
processos fisiológicos, podem sofrer a reação do psiquismo, de maneira "significativa".
Mas tudo isto Não constitui uma prova da determinação intra-individual da doença e sim
que as idéias que se ligam a um tema estranho tocando complexos vitais Não dizem nada
sobre a origem do tema. Não são também provas contra a determinação. Por outro lado,
no meu ponto de vista, o que é necessário admitir como determinado, no caso de doenças
orgânicas, Não é sua origem, mas sua permanência favorecida por certos
comportamentos, assim como a omissão das medidas apropriadas para combatê-las, ou,
ao contrário, a pressa de tomar estas medidas. *

Na origem, a personalidade psicossomática, a afetação psicossomática pode,


enquanto membros de uma série causal, funcionar como desencadeadores de uma doença
psicossomática.

Mas Até onde se estende a continuidade do psiquismo? Em que medida pode ser
ela limitada pelos acontecimentos externos?

Com a introdução destes últimos, nós nos confrontamos com o problema do


"acaso", de seus limites e de suas possibilidades. Falamos do acaso, ou seja, da ausência
de determinismo e de influência externa ao psiquismo, na medida em nós ultrapassamos
os limites da continuidade psíquico. Passados os limites do próprio sistema, as leis do
determinismo interno deixam de ser válidas, e o acaso, o "não-significativo analítico"
pode atuar. Somente o sistema de idéias errôneas dos paranóicos rejeita esses limites Até
Não deixar mais lugar - falando subjetivamente, bem entendido - para o acaso, o não-

*
Não confundir com o sentido propriamente biológico do termo "instinto".
*
A integração das doenças orgânicas na continuidade psíquica pode surgir tanto do
narcisismo do analista como do paciente. A auto-acusação "É minha culpa" pode revelar a
crença em uma causa psíquica.
significativo. Se alguém está em um trem de onde um louco salta e se, em seguida a este
atentado, ele se machuca, trata-se manifestamente de um acaso e Não de uma tentativa
inconsciente de suicídio. Somente o paranóico diria que o louco pulou do trem por causa
dele e que o acidente, longe de ser um acaso, é um fato intencional e, por conseqüência
dotado de sentido.

O analista deve levar em conta o acaso? O que acontece na interseção de dois


campos de dispersão, de duas áreas de possibilidades quaisquer? De acordo com nossas
premissas, o psiquismo constitui um conjunto de campos de dispersão; ele está em
contato com o mundo exterior e com suas inúmeras áreas de possibilidades. Um
acontecimento do mundo exterior dotado de sentido factual, fisicamente determinado,
tem igualmente um sentido para a área das possibilidades psíquicos? As pessoas que
encontro no curso de meu passeio entram todas dentro da área de possibilidades de meu
psiquismo. Se um desses encontros é a conseqüência de um encontro marcado
anteriormente, ele se integra certamente nas cadeias significativas de meu psiquismo; se
eu encontro alguém com quem eu Não havia combinado um encontro, mas que eu sei que
o seu itinerário cruza o meu, o encontro "pode" - na medida em que a aplicação do
método analítico pode mostrá-lo constitui um dos elos dotados de sentido da corrente
psíquico; mas se a pessoa encontrada é alguém que eu Não sabia nem mesmo que morava
na mesma cidade que eu, seria absurdo procurar um sentido no encontro (mesmo se a
aparição de cada um de nós dois, tomada separadamente, seja um fato sensato). Nenhuma
investigação poderá provar que este encontro fazia parte de minha área de possibilidades
internas - ao menos, evidentemente, que invocasse analogias ocultas.

Percebe-se que a incerteza é inevitável. Em caso de interseção de duas áreas de


possibilidades, o acontecimento visado ou é determinado, significativo, do ponto de vista
do psiquismo, ou Não determinado - ao menos no momento em que se produz a
interseção -; o problema de fazer parte deste ou daquele conjunto pode igualmente restar
irresoluto. Mas, perguntemo-nos ainda uma vez se a existência de acontecimentos devido
ao acaso é concebível pelo psiquismo; penso nesses acontecimentos desprovidos de
vínculos com o interior de uma área de possibilidades psíquicos e Não físicas
conveniente tentar uma aproximação experimental do problema: Uma conferência de
Hollés me incitou a coletar, durante um certo tempo, casos de encontros "fortuitos"; em
todos os casos, fora de uma explicação profundamente ocultista, poder-se-ia concluir por
uma independência total dos dois sistema postos em contato; se perguntar, colocando-se
no interior de um ou de outro dos dois sistemas, se o encontro teve sentido, seria,
precisamente uma pergunta desprovida de sentido. Mas isto Não quer dizer, ainda uma
vez, que o método analítico Não pode ser aplicado convenientemente onde Não estamos
em presença de acontecimentos que se desenrolam no interior de uma só e mesma área de
possibilidades.

Vejamos três exemplos extraídos do material recolhido. Um dia, na rua, penso em


um medido que teve um certo comportamento a respeito de alguém; eu compreendi uma
hora mais cedo, que Não era a primeira vez... me pergunto como este X.Y. pode exercer a
profissão de médico. Neste momento, surge na calcada um carro de transporte,
avançando na direção oposta. Ele tem no flanco a inscrição X.Y... comerciante. Em um
sonho, o sentido deste encontro seria patente X.Y. Não é um médico, é um comerciante.
Mas isto Não era um sonho, era a realidade, meus pensamentos estavam perfeitamente
independentes do carro, eles visava, por razões que a continuidade me apresentava
claramente, que a pessoa de X.Y. e o carro de transportes, a seu turno, seguiam seu
caminho sem ter nada a ver comigo.

O outro exemplo tomado de uma análise: um paciente me disse que seu relógio,
todavia irrepreensível, parou no momento em que ele partia de sua casa para se encontrar
comigo. Em vão ele o desmontou e remontou de todas as maneiras possíveis, ele se
recusava a funcionar. Mas na véspera, o paciente vivenciou um acontecimento próprio a
suscitar um certo sentimento de culpa nele ou, talvez, no relógio. Escutando Moscou pelo
rádio, ele ouviu sinos do Kremlim no exato momento em que seu relógio marcava dez
horas. Ele ficou então muito orgulhoso de seu relógio, em tão perfeita sincronia com
Moscou. No dia seguinte, ele me diz que a Psicanálise do relógio teve sem dúvida bons
resultados, postos que, voltando, reparou que o relógio trabalhava novamente. Mas o
relógio está fora da continuidade psíquico - e certamente Não foi sua psicanálise que o
recolocou em funcionamento. Aparentemente se trata de um fato do acaso.

O terceiro exemplo vem de uma pequena série de observações. Um dia eu viajava


de trem com minha filha, com idade de sete anos; para acabar com seu tédio, ela
perambulava com dois bastões que ela colocava sob os braços e percorria assim o
compartimento, como se suas pernas tivessem sido amputadas. Na véspera, minha filha
havia ouvido falar sobre um de nossos conhecidos que, sofrendo de uma úlcera na perna,
deveria amputá-la no dia seguinte. Alguns minutos depois, na estação seguinte, um
homem, com a perna direita amputada e procedendo da mesma forma de minha filha
durante sua brincadeira, entrou no compartimento.

É conveniente separar os casos que se desenrolam em dois campos de dispersão


diferentes e são, assim, atribuídos ao acaso, nos casos seguintes nós Não vamos fazer
dois campos de dispersão isolados entrarem em contato. Trata-se primeiramente dos
casos que, sobre a base do "isomorfismo dos acontecimentos psíquicos" (Marbe) (45), e
partindo de um ponto inicial comum, mostram uma coincidência nos dois campos de
dispersão psíquicos isolados, pois o processo psíquico escolheu uma via regular,
conforme as normas. Pode-se aqui distinguir-se entre uma uniformidade geral - colocadas
nas mesmas condições de vida, tendo as pessoas, o mesmo nível de inteligência e a
mesma "mentalidade" - e uma uniformidade "especial" - vidas estreitamente unidas (a
dos casais, por exemplo) acabam por se parecer em gerar mentalidades semelhantes. Em
segundo lugar, existem casos onde um ponto de partida comum - eventualmente
esquecido - (e Não um pensamento pretensamente "adivinhado") fornece um modelo
como mostra o exemplo a seguir: Durante uma sessão de psicanálise eu penso vagamente
no fato de que 505 divididos por 101 dá 5. Pouco depois, a paciente me descreve um
sonho onde a questão é pagar 5 "pengos" e 50 "fill_rs". Embaraçado, eu me recordo que a
mesma paciente havia declarado no começo da sessão: "Eu cheguei com 5 minutos de
atraso." Esta frase é uma ligação de continuidade com o sonho - e meus pensamentos são
ligados é frase da minha paciente e Não a seu sonho.
Para julgar corretamente os casos concretos, convém igualmente considerar os
casos em que se manifeste uma coincidência "aparente". Assim, me aconteceu de pensar
em um senhor ABCDE e de perceber, pouco tempo depois, a insígnia de uma loja que
tinha o mesmo nome. Foram necessárias algumas semanas para que eu me desse conta de
que o nome que figurava na insígnia Não era ABCDE, mas FBCDE. Aqui se trata, bem
entendido, de uma coincidência imperfeita, baseada no acaso. Algumas coincidências
aparentes podem ser explicadas por um erro subjetivo na repartição temporal dos
acontecimentos, erro que pode Até chegar a reverter a cronologia e apresentar um
"depois" como se fosse "antes". Um terceiro caso consiste em "revelar" por uma alusão o
que deve ser dito mais tarde.
Na literatura recente, Servadio defensor da existência de relações ocultas; ele
considera a transmissão dos pensamentos como um fato sabido e reconhecido e como um
exemplo de uma sede geral de transmissão (132). Sz_kely, em revanche demonstra, a
propósito de um fenômeno oculto, os fatos materiais aos quais ele pode ter reconduzido
(133).

Assim, fora da continuidade psíquico, é necessário introduzir, ao lado do


princípio fundamental da continuidade, um princípio oposto, este da descontinuidade dos
acontecimentos - Não psíquicos - do mundo exterior. Este princípio ignora o método
fundado sobre o surgimento livre das idéias, reconhece o caráter fortuito, independente,
de alguns acontecimentos e deve dar lugar a outros métodos de investigação, que são
precisamente aqueles das ciências naturais. Não é inútil ter em vista este princípio
durante a análise em particular, desde que a questão seja o encontro de dois campos de
dispersão. Por exemplo, conhecendo o medo de um paciente de ser contaminado pela
tuberculose, teria interesse a Não considerar - como ele mesmo fazia - a tosse de seu
amigo como uma manifestação nervosa, mas bem como a de uma arrebatadora
tuberculose aguda, onde se mostrará mais tarde as causas exógenas. É fácil confundir-se
na interpretação de indícios.

É fácil perceber que estes dois princípios Não coincidem durante a evolução
psíquico individual. No começo, nós assistimos é predominância de um amor objetal-
narcísico transbordante (orientação de temperatura) * , com o sentimento real do
todo-poderoso (Ferenzi); somente mais tarde é que este amor se cinde em amor "objetal"
e amor narcísico, enquanto que o sentido da realidade se divide em percepção do Eu e em
percepção dos objetos independentes.

Tendo em vista o que conhecemos do acaso e nos lembrando do que dissemos


sobre o princípio da descontinuidade, a propósito da objeção de Schneider e da
problemática das doenças somáticas, a questão metodológica que se põe é a seguinte:
sobre o que a análise pode apoiar? Em que a análise prometedor resultados
metodologicamente satisfatório? De imediata a resposta a esta pergunta poderia ser
formulada - aproximadamente - da seguinte forma: O método analítico - a livre
associação de idéias - repousa sobre a hipótese da continuidade psíquico. Mas esta, em
sua totalidade, nos é dada Não pelo consciente, mas pelo inconsciente. Então, só se supõe

*
Para este termo, C.F. Psicanálise e lógica de I. Hermann (p.151-152).
analisável o que implica de uma certa forma um contato qualquer com o inconsciente. A
experiência mostra que se trata sobretudo de sonhos, de sintomas neuróticos, etc... De
certo, uma doença psicossomática pode, por sua vez, enviar às pseudo- determinantes,
quer dizer a um (pseudo-) sentido, ou ainda a um sentido "aprés coup" ** ; mas do ponto
de vista metodológico, sua análise só será autorizada se por um de seus aspetos, ela
revele a participação do inconsciente. ***

Nossa resposta, como método logicamente correto, só fornece um critério de


aplicação aproximativo; efetivamente, é medida que nossos conhecimentos se
enriquecem, obtemos cada vez mais indícios relativos é participação do inconsciente.
Vejamos alguns:

1) As circunstâncias da gênese do sintoma. (Da mesma forma que) o sonho ou os


fenômenos oníricos indicam pelas circunstâncias de sua aparição (sono) que eles
nasceram no império do inconsciente; do mesmo modo, alguns traumas podem ser
anteriores é aparição de seus sintomas, ainda que seja impossível estabelecer os elos
lógicos entre trauma e sintomas. SÓ assim que nas crianças o surgimento da angústia
pode coincidir com o nascimento de um irmãozinho, ou, no adulto, uma decepção
amorosa pode desencadear sintomas de agorafobia. É o inconsciente que se encarrega de
estabelecer a ligação entre estes fenômenos.

2) O doente apresenta alterações psíquicos e, ao mesmo tempo, apresenta


sintomas neurose compulsiva pode estar acompanhado de atitudes irrefletidas, nocivas é
pessoa do doente.

3) A extensão particular dos sintomas. Uma agorafóbica vê pouco a pouco todos


os horizontes se fecharem e sua própria liberdade de movimentos entravada; ela acaba
por Não poder mais continuar descendo a rua, se Não está acompanhado e só se sente
seguro em sua casa na presença de seus parentes. ╔ que desde o começo, suas
preocupações inconscientes eram concernentes a estes últimos. Um neurótico compulsivo
começa por procurar agulhas nos sapatos, por prestar atenção na pia dos banheiros e
acaba por vigiar as bocas de esgoto a procura de alguma criança que teria desaparecido.
Enfim, sem poder igualmente constatar o desaparecimentos dos sintomas precedentes -
ele deve estar absolutamente seguro de que jamais fez amor com sua mãe. Esta última
idéia, verdadeiro elemento motor de todo complexo compulsivo, estava presente desde o
começo; a criança jogada nos esgotos era o próprio doente; de fato, no momento de seu
nascimento, seu pai queria jogar sobre a cama, a criança prematura (nascida com sete
meses) que ele era. Esta continuidade e esta extensão de sintomas em vista de um
objetivo cada vez mais preciso, indicam a intervenção do inconsciente que acaba por
romper com a aparição do contido recalcado. (<o retorno do recalcado>, dizia Freud).

**
Um caso particularmente enganoso é aquele onde a obtenção de um sentido aparentemente e
a atenuação do sintoma orgânico coincidem. Com efeito, a atenuação do sintoma orgânico
pode desencadear uma verdadeira perturbação na economia libidinal, perturbação que, por
sua vez, integra o sintoma orgânico nas conexões dotadas de sentido; é o que faz por
exemplo, a dinâmica dos sonhos com as dores físicas.
***
Como veremos, a participação do instinto pode indicar a utilização da análise enquanto
método auxiliar, mas não enquanto análise de sentido.
4) O caráter ilógico - do ponto de vista da consciência - do próprio sintoma. Para
se assegurar é suficiente para quem sofre de neurose compulsiva, citada anteriormente, de
prevenir o faxineiro de serviço que ele perdeu uma chave na calcada e que voltará para
procurá-la. Ele Não faz nada, pois o simples fato de falar foi suficiente para acalmar sua
inquietude. O inverso infelizmente Não é verdade; Não se pode sempre dizer que a
característica "lógica" de um sintoma excluir ("ipso facto") a ação do inconsciente. Uma
idéia "lógica" (por exemplo, nós vamos falir) pode, pela cronologia de sua gênese,
revelar o jogo do inconsciente. Além disso, lógica e ilógica Não se distinguem sempre
claramente, estando os princípios básicos da lógica comandados inconsciente (37) e a
lógica moderna só atribui é "lógica" genericamente admitida, um lugar restrito no
universo geral da lógica (46). Nós somos sempre expostos é aparições surpreendentes do
inconsciente.

A questão de saber a partir de que a análise pode ser empreendida já foi discutida
do ponto de vista metodológico. ╔ analisável aquilo que é integrável é continuidade
psíquico. Uma outra maneira de tratar a questão consiste em se perguntar em que a
análise promete a cura. As duas respostas Não coincidem forçosamente, ainda que nós já
houvéssemos tido ocasião para mostrar a convergência entre aquilo que pode ser
interpretado e aquilo que pode ser curado. Levando-se em conta que no curso da análise
se produzem perturbações nos instintos e também transferências, quer dizer, excitações
libidinosas Não narcisistas, fica-se tentado a responder que a possibilidade de cura
depende antes de tudo da natureza da doença. A resposta a esta pergunta depende, então,
dos indícios fornecidos pela psicanálise; ela Não deve nos reter demais aqui.

Abordaremos agora nossa segunda tarefa: a delimitação do conceito do sentido


psicanalítico. Esta deve se operar de acordo cm dois conceitos vizinhos: o da finalidade e
o da causalidade.

Não se tem dúvida de que o "analiticamente significativo" Não significa a mesma


coisa que "conforme a uma finalidade". Recordemos o exemplo da perda da luva que
veremos o sentido brevemente resumido (e ligeiramente adaptado): Suposto que chegue
um cavaleiro que me respeita e me serve. Seria contudo absurdo pretender que a perda da
luva fosse "como a um objetivo". Examinemos uma manifestação de afeto: nós a
compreendemos perfeitamente; se ela brota da continuidade psíquico de uma pessoa -
mas isso Não a impede de ser desprovida de qualquer finalidade - que se vê sujeita a
diferentes formas de aparição do medo. De certo, uma finalidade, fantasiada u real, pode
contribuir nos fazendo entender um fenômeno, quer dizer, nos ajudar a integrá-lo na
continuidade psíquico, mas Não é este sempre o caso e ela Não deve aliás fazê-lo sempre.

É mais difícil delimitar o sentido em relação à causalidade. Como nós nos


apoiamos constantemente sobre o determinismo dos acontecimentos psíquicos, seria
natural identificar "sentido" e determinismo em um sentido único.

Mas procuremos primeiramente delimitar a noção de causalidade. Segundo uma


interpretação ingênua e antropomórfica, o efeito é "gerado", "fabricado" pela causa. Mas,
segundo um conceito mais recente, livre da gangue antropomórfica, a causalidade é uma
relação expressa pela lei "se A então B". Mas uma formulação como esta exige a
generalização.

O sentido analítico é assimilável a uma causalidade em sentido único?

Retemo-nos nos dados factuais e voltemos a nosso exemplo precedente. Se uma


mulher, muito cortejada na juventude, coloca a mão, no ônibus, num saco de papel para
dele tirar castanhas que seu marido lhe deu, ela deve, obedecendo é lei da causalidade,
perder uma de suas luvas?

A formulação é absurda, mas voltemos a questão. Se uma mulher perde uma luva
num ônibus enquanto está sentada ao lado de seu marido - uma mulher com um certo
passado, um marido com um dado caráter, e uma certa atitude em relação é sua vida atual
-então, é na constelação fantasiosa que compreende todos esses elementos, que convém
procurar a causa da perda da luva.

Como explicar esta assimetria do significativo analítico? A explicação que se


oferece primeiro é a ignorância em que nos encontramos no que concerne a todos os
fatores determinantes, de onde surge a impossibilidade de definir uma relação de
causalidade em sentido único. Se, Além dos dados enumerados, tivéssemos
conhecimento de outros, relativos ao problema da perda da luva, a necessidade desta
poderia ser deduzida e predita. Se a relação de causalidade "se A então B" Não pode ser
desencadeada senão depois de um golpe no significativo psíquico, ao invés de poder ser
predito, é porque nós Não conhecemos nunca inteiramente o "a" desta relação.

Então, uma tal explicação conduz a um caos metodológico, e, Além disso, ela
Não penetra tão profundamente na essência do significativo analítico. De certo, a infinita
complexidade dos fatos psíquicos torna difícil, se Não impossível, a obtenção de uma
visão sintética que as mostre na sua integralidade. Mas Não podemos esquecer osso
princípio metodológico segundo o qual nós só podemos admitir conceitos verificáveis.
Recorrer a determinantes desconhecidas para deduzir uma causalidade rigorosa, é falar
no vazio, e tal procedimento Não pode, em nenhum caso, constituir a base de uma
metodologia. Além disso, esta explicação fundada na causalidade determinista deixa de
levar em consideração duas particularidades do psiquismo: seu caráter concreto e
individual, válido para todo fato psíquico e que, por isso mesmo, se erige contra toda
generalização do tipo "se A então B" e, de outra parte, seu campo de dispersão, o jogo
que ele permite em sua volta. toda constelação de fatos psíquicos abre caminho para um
número limitado de possibilidades; qualquer que seja a possibilidade realizada está em
jogo a causalidade determinante da constelação. Conclusão: possibilidade de determinar
a causa, impossibilidade de determinar o efeito.

Necessário enquanto isso se precaver de uma conclusão errônea: nem todo efeito
é resultado de uma intenção ou de algo desejado - sejam elas inconscientes ou não. Por
exemplo, uma mulher grávida cai e decide ter a criança, apesar da opinião de alguns
membros do seu grupo, mas conforme o conselho de seu ginecologista - e expondo assim
a se submeter a uma cesariana; a criança nasce efetivamente com uma cesariana e a pobre
mulher sucumbe alguns dias mais tarde a uma trombose. Temos o direito de declarar que
esta mulher queria intencionalmente sua morte, pois o que se manifesta é que ela queria
uma criança. Uma coisa é cera: os efeitos só podem ser considerados como intencionais
na medida em que escapam do acaso. Ainda, é possível existirem situações onde
acontecimentos atribuídos ao acaso são intencionais - (por exemplo, no nosso exemplo, o
parto difícil). A única solução para o analista é ir no sentido do demonstrável e submeter
a decisão a uma análise possível (aquilo que, evidentemente, Não é encarado num caso
mortal). Enquanto isso, penso poder distinguir, com a ajuda destes casos, aqueles que
pensam verdadeiramente de forma analítica e aqueles que Não fazem. Aqueles que
pensam em esquemas acharão solução imediata. Os amantes de estereótipos Não terão
acesso jamais ao inconsciente.

De uma forma geral, deve-se ressaltar que uma implicação lógica Não conduz
necessariamente a uma relação psicológica. O que é "lógico" em um enunciado Não está
forçosamente em conformidade com a Psicologia, nem mesmo sob o prisma do
inconsciente.

Mas não tínhamos, do mesmo modo, procurado a estrita causalidade do império


da Psicanálise. A causalidade reina no domínio particular da Psicanálise, o da
"metapsicologia". Aqui, o "significativo psíquico" é banido e reina a causalidade
propriamente dita. O princípio essencial Não é o "significativo" mas os pontos de vista
típico, dinâmico e econômico de conceitos tomados é visão física do mundo. A tese de
uma dinâmica de instintos é particularmente enfatizada observável a este respeito; ela é
tão causal quanto nas outras ciências exatas, Não psicológicas. Esta tese se fundamenta
sobre uma hipótese: o instinto seria uma forca exterior ao domínio psíquico onde ele Não
penetra senão pelo intérprete de seus representantes. Assim, as neuroses atuais Não
passam de realizações de certos instintos, mas Não possuem um sentido analítico
propriamente dito.

Insistindo no propósito da estratificação de fluxo associativo sobre a necessidade


de deixar falar a "camada vizinha" do instinto queríamos promover o funcionamento de
um certo aspecto da associação livre, o que acaba por estabelecer causalidade que, ou
uma forma geral, intervém no ponto de vista da causalidade. Naturalmente, Não se pode
perder de vista que no uso comum, pouco preciso, a expressão "estabelecer
causalidades", quer dizer duas coisas: de um lado a percepção de relações de causa e
efeito e, de outro, o reconhecimento, a compreensão do jogo das forcas dinâmicas.
Graças ao fluxo livre das idéias, a livre associação faz surgir da continuidade psíquico
relações de causa e efeito, mesmo se se criam associações com um material estranho ao
psiquismo. Mas, tais como as conhecemos, estas relações ainda Não são verdadeiras
explicações causais. Somente a consideração da dinâmica do instinto pode nos fornecer
explicações autenticamente causais. Nos situando num fluxo vizinho do instinto, temos
mais chances de obter esclarecimentos sobre as causas, mas este Não é o único resultado
do método do livre surgimento; ele é devido também a séries ulteriores de observações.
Se pesquisas de um outro tipo permitem, por exemplo, constatar que os instintos
são responsáveis por doenças orgânicas (por exemplo, em seguida a profundas
regressões), poder-se-á que a subida no curso da livre associação das camadas vizinhas
do instinto provoca um remanejamento da dinâmica instintiva. Se teríamos acesso a um
material que, do ponto de vista causal, liga-se Não com o inconsciente, com o superEu,
mas com uma camada biologicamente ainda mais profunda e diretamente inacessível. O
método da livre associação Não será então um método essencial para a compreensão, a
pesquisa e a terapia, mas um método auxiliar que explora a dinâmica instintiva. Por ora,
ela é os dois ao mesmo tempo.

4 - A INTERPRETAÇÃO NA PRÁTICA. O FUNCIONAMENTO DO "ORGÃO


INTERPRETATIVO" -

O "sentido" ele próprio Não existe; Não se pode falar dele senão na medida em
que se acha alguém para concebê-lo.

Até aqui, e para simplificar as coisas, tínhamos falado do sentido como de um


dado que se "integra" na continuidade psíquico; se mostra necessário agora, analisar este
dado, considerar o sentido como o resultado da integrabilidade e procurar quais são as
condições que permitem ou facilitam o reconhecimento de um material que promete ser
dotado de sentido.

Para respondermos a esta questão, Não temos nenhuma intenção de formular uma
série de regras. Preferimos tomá-la por um outro aspecto, imaginando um "érgéo" ou um
"aparelho" apropriado é percepção do sentido ou do virtualmente significativo como o
olho está para a luz e do virtualmente colorido. E do mesmo modo que de sua "energia
sensorial específica" o olho responde por sensações épticas a estímulos Não épticos, tais
como golpes, pressões, etc... do mesmo modo, nosso aparelho hipotético perceberá o
"significativo", mesmo se o material que lhe é apresentado Não o for. Do mesmo modo
que a luz é o estímulo apropriado, adequado ao olho, do mesmo modo a continuidade
psíquico o é para este érgéo interpretativo.

Não nos perguntemos demais qual é a parte de realidade dentro deste postulado
do érgéo interpretativo; qualquer que ela seja, ela contribui, em nosso entendimento, de
um forma importante para o conhecimento do homem e para a compreensão do que se
passa com o outro. As condições necessárias para interpretar um sentido Não são para
nós exigências de caráter mecânico, mas funções do érgéo interpretativo. Estimamos que
uma tal apresentação permita melhor perceber o lado organicamente necessário destas
condições. Vejamos algumas:

1) limitar-se ao nível do vivenciado, pois qualquer outro tipo de investigação tem


tendência a ultrapassar o material concreto para tirar leis-gerais; nosso érgéo
interpretativo Não funciona segundo este modelo. No lugar de "ultrapassar" os
acontecimentos concretos para ter acesso a um nível concreto, ele procura outros
acontecimentos concretos, dissimulados entre os primeiros. Para descobrir o sentido, é
necessário ficar a nível do que é vivenciado: a continuidade psíquico ignora o abstrato.

É sabido há muito tempo, que a (abréaction), tal como é descrita por Breuer e
Freud, implica: a pessoa insistir cem vezes no mesmo obstáculo, para depois contá-lo a
alguém. No curso da (abréaction) catártica, ela Não se sentiria aliviada, enquanto contar
estes cem casos concretos, um após o outro. A continuidade psíquico ignora a
generalização e cada acontecimento patogênico deve ser revivido. A omissão, no
decorrer da análise, dos sentimentos que acompanharam o acontecimento, pode se
explicar pelo fato de que sozinhos surgiram lembranças de pouco valor afetivo e do
mesmo conteúdo.

O analista deve combater incessantemente a tendência do analisando é


generalização; é necessário buscar sempre a continuidade psíquico que o analisando
procura evitar generalizando * e colocá-lo atento ao perigo de deixar o nível do vivido. a
única cena onde a integração de um material virtualmente dotado de sentido possa ter
lugar.

2) primar a objetividade. O modo de funcionamento do nosso "érgéo


interpretativo" garante o rigor do trabalho do analista. Rigor indispensável, se ele
realmente quer compreender o sentido; o analista, para julgar os conteúdos tais como eles
se apresentam no curso da análise, deve se abster de toda referência és suas próprias
experiências relativas ao paciente, mas sobretudo a outros, e ignorar deliberadamente
tudo aquilo que Não é dado "hic et nunc". ╔ neste sentido que Ferenczi falou da
elasticidade . Esta mesma objetividade exige por outro lado a consideração de várias
possibilidades. Havíamos visto que uma tal abertura faz parte da essência do "sentido" e
o analista Não deve se precipitar por esta u aquela solução.

Vejamos um exemplo para ilustrar o que dissemos: acontece és vezes com um de


nossos pacientes de Não dizer nada durante os primeiros minutos da sessão. Até um certo
momento, seu silêncio tinha um sentido preciso: ele estava atormentado pelas
interpretações propostas no curso da sessão precedentes; silêncio traduzia seus
sentimentos negativos. Mas um dia, este mesmo silêncio pode ter um sentido diferente e
se o analista Não percebe isto, ele Não descobrirá jamais a causa, o sentido concreto, a
saber, a repetição de uma pequena cena que teve lugar de manhã mesmo entre a paciente
e seu marido.

Os símbolos oferecem um material ilustrativo de caráter mais geral: cada símbolo


produzido pelo analisando é uma peca para o analista, sempre tentado a utilizar o sentido
geral dos símbolos para interpretar um caso concreto. É necessário quase sempre que ele

*
Algumas vezes, para reforçar o sentimento do vivido, fazemos o analisado fazer desenhos
suscetíveis de representar certos detalhes que ele nos expõe. Para favorecer o surgimento
de lembranças, de acontecimentos concretos, é recomendável fazer executar a planta da casa
onde o paciente passou sua infância (disposição dos leitos, etc.) Ao curso da análise, a
generalização traduz a resistência ao concreto, sobretudo às manifestações instintuais e
aparece como a reprodução de resultados da educação visando a fazer do indivíduo uma
criança "ajuizada", reprimindo suas tendências pessoais.
renuncie a isto: se o símbolo produzido tem um sentido genérico, tem também um sentido
particular, individual, que o reporta geralmente ao primeiro.

Neste domínio, onde as faculdades de distinção e de empatia do analista são


particularmente usadas em contribuição, seria bom talvez colocar uma questão (que o
leitor, sem dúvida, já formulou): nosso "érgéo interpretativo" meio simbólico, meio real
Não é equivalente é intuição? Para responder a esta pergunta é necessário lembrar o que
Freud disse a propósito do trabalho científico: ele Não acredita na intuição; segundo ele,
se esta se revela operante, o resultado é devido, na realidade, é
objetividade.

Nós invertemos esta proposição freudiana, e dizemos que a objetividade nos torna
intuitivos no sentido etimológico da palavra (in-tuere, olhar (para) dentro); se nossa visão
Não é dificultada por um meio opaco, somos capazes de perceber o sentido no estado
puro, de imediato.

3) percepção de convergências. Na livre associação, nos sonhos, etc., o material


significativo, em busca de formulação verbal, toma várias vias de acesso ao nosso érgéo
interpretativo; a função deste consiste em perceber que seus diferentes estímulos se
encaminham para um mesmo sentido (nas duas acepções do termo).

No fim de uma sessão, doente se aprontando para sair, chamo sua atenção sobre o
fato de que sua carteira está quase caindo d bolso de sua calca. (A sessão havia sido
consagrada sobretudo é análise de seu medo de ejacular). Na sessão seguinte, o mesmo
doente falou sobre sua excitação anal e passou logo a contar um sonho tido alguns dias
antes e que terminava pela perda de sua carteira, posto que a pessoa que sonhava estava
na posição d cito. Ao acordar, ele anotou seu sonho, colocou o papel na sua carteira;
estava quase caindo do bolso da sua calca. Depois de contado o sonho e evocada a sessão
da véspera, ele contou um outro sonho, mais recente: um homem que o acompanha, o
compara a Rafael. Ele acha neste sonho um homossexual e percebe ele mesmo que a
excitação anal sentida no começo da sessão estava relacionada a este sonho. (Ele conta ao
mesmo tempo o desaparecimento desta sensação). Pude fazê-lo notar que por duas vezes,
o conteúdo do sonho se manifesta na realidade, como se o doente houvesse contado uma
parte de seu sonho sem traduzi-la em palavras. Mas, da mesma maneira, pode-se
considerar um dos sintomas essenciais do doente como a citação de fantasmas latentes de
coito e de ejaculação. Efetivamente, a origem deste sintoma remonta a uma época na qual
uma moça havia levado nosso doente ao banheiro para se oferecer a ele. Ele teve então,
sem sombra de dúvidas, uma ereção.

4) uma maneira de ver oscilante. Oscilante como o é o número absoluto na


matemática que Não leva em conta o sinal mais ou menos. O érgéo interpretativo
considera o material "no contexto absoluto", fazendo a abstração da negação que se
manifesta no material negativo e da afirmação que se manifesta no material positivo. Na
relação interpessoal de sentido determinado, ele se vê ainda oscilante; oscilação entre
raiva e amor antes da fixação pela intervenção de uma decisão.
5) a transposição. Um caso contado com desgosto por um dos conhecidos do
paciente, pode ser transposto para um outro conhecido, ou para o próprio paciente. O
mesmo acontece com uma intenção, que o paciente admita como sendo um de seus
objetivos, se revele como intenção escondida visando um outro objetivo. De forma geral,
o princípio da transposição é um dos auxiliares mais importantes da realização do
princípio da continuidade (28). Uma forma particular de transposição é aquela que
representa as propriedades formais dos conteúdos (fenômeno funcional, segundo
Silberer).

6) a interpolação. Dois exemplos para ilustrar o funcionamento do nosso érgéo de


interpretação, assim como seu domínio de aplicação.

Uma de nossas pacientes, que citamos anteriormente, vê seus sintomas


aparecerem no momento em que o estado de sua cunhada, gravemente doente, piora. Ela
experimenta, na companhia desta pessoa, esposa de um irmão a quem ela é muito ligada,
a angústia da morte. Tal é o material produzido pela paciente; que para compreendê-la,
temos a necessidade de dar um passo a frente supondo que nossa paciente se identifica
com sua cunhada, e que, depois da morte desta, ela ocupará seu lugar. Se nós admitirmos
esta hipótese, o sentido da situação se esclarece imediatamente.

Uma outra paciente nos mostra explosões de cólera completamente sem motivos.
Talvez ela esteja esgotada; após um longo período de repouso (pela primeira vez em sua
vida), ela só teve dois acessos de cólera, dos quais ela ainda é capaz de lembrar as causas;
no primeiro caso, alguém queria entrar no quarto onde ela se trocava e no segundo, uma
outra pessoa lhe perguntou coisas indiscretas demais. Juntemos a esta narração uma
importante recordação de infância: para lhe fazer abandonar suas práticas masturbatórias,
sua mãe a havia ameaçado de introduzir uma sonda na uretra; lembremos que a paciente
considera suas próprias explosões de cólera como forca exterior - e Não nos será difícil
fazer a interpolação necessária para a compreensão da situação: a paciente está tomada
pelo medo de uma penetração estranha, nutrindo um fantasma concernente a uma
penetração análoga.

7) a extrapolação. Para compreender este modo de funcionamento, semelhante ao


precedente, lembremos o exemplo freudiano da "Psicopatologia da vida cotidiana": uma
pessoa é incapaz de citar o verso de Virgílio: "escoriare aliquis ex nostris ossibus ultor",
porque ele Não compreende a palavra "aliquis". Freud poderia lhe pedir para proceder é
uma livre associação e esperar que o encadeamento das idéias formuladas culminasse na
descoberta da palavra procurada. Mas foi um método inverso que ele escolheu: ele lhe
diz a palavra procurada e lhe pergunta, em seguida, a quais foram as associações feitas.

Freud tinha a escolha de dizer ou Não a palavra procurada. és vezes, trabalhamos


com associações "produtivas" que contribuem, elas mesmas, para edificar a situação
procurada, aquela que esclarece o sentido; mas existem também associações Não
produtivas que Não fazem senão revelar pela metade a situação. Neste último caso,
devemos intervir, nós mesmos, para acabar a construção, extrapolando a situação
suscetível de esclarecer o sentido do material produzido - pronto a submeter nossa
proposição ao paciente para lhe pedir sua opinião e suas observações.

Nosso procedimento se distingue deste que Freud empregou no exemplo citado


pelo fato de que, ao invés de nos inspirarmos em um saber procedente de fonte estranha
para construir nossa hipótese, nos apoiamos sobre o material produzido pelo analisando.
Tais extrapolações são freqüentes na análise: elas permitem que se faca progressos.

O que é comum na interpolação e na extrapolação, é a descoberta (erraten) de


uma ligação importante entre a experiência vivida e o sentido da primeira e uma vivência
desencadeadora de afetos na segunda.

Chamamos de construção as inter e extrapolações que atribuem um conteúdo a


uma parte importante em uma história de vida desconhecida, que determina em qual
período de sua vida o doente vivenciou, aprendeu ou viu alguma coisa. ╔ necessário que
a construção seja integrada no desenrolar da vida, que ela complete, segundo a expressão
de Freud, o mosaico da vida.

Freud faz distinção entre interpretação e construção. Ele escreve: o analista


elabora uma parte da construção e traz ao conhecimento do analisando para que ela tenha
alguma ação sobre ele, em seguida a partir do material que flui, ele coloca uma outra
parte de sua construção e a usa da mesma forma; esta alternância dura Até o fim. Se, na
apresentação da técnica analítica, pouca ênfase é dada na "construção" é porque falamos
muito mais de "interpretação" e seus efeitos. Entretanto, penso que o termo construção
seja mais apropriado. A interpretação tem relação com o trabalho sobre um elemento
particular do material: uma idéia, um ato falho, etc.

Mas, falamos de construção quando apresentamos ao analisando uma parte de sua


pré-história esquecida. "Até a idade de 10 anos, nos consideramos o único possuidor
absoluto de nossa mãe. Mas, no nascimento do segundo filho, tem-se uma grande
desilusão: nossa mãe nos abandona por um certo tempo e Não se dedica inteiramente a
nós. Nossos sentimentos tornam-se ambivalentes e o pai adquire uma nova significação
(85, p. 87).

Outro exemplo: o paciente descobre na sua infância, numa época em que seu
superEu está em desenvolvimento que seu pai (ou sua mãe), que ele ama profundamente,
cometeu um ato criminoso ( aí entra em jogo a construção que convém pertencer-lhe).
Ele também, identificando-se com a pessoa amada, desenvolve um superEu, que se
apoiando em exigências morais comanda também os atos amorosos. Isto permite tocar o
núcleo da neurose compulsiva. Freud estabelece uma relação entre interpretação e
construção, análoga é que existe entre tática e estratégia.

8) Convém submeter o funcionamento do érgéo interpretativo a certas


considerações críticas. Estas Não enfatizam mais, manifestações elementares, primárias,
todo e qualquer paralelismo com nossos érgéos sensoriais nos levaria a um
impasse.(Ainda que - como sabemos - alguns desses érgéos, por exemplo, a vista, sejam
dotados de uma capacidade de seleção e de correção que esperamos ter no nosso "érgéo
interpretativo").

Em que consiste esta função crítica? O que exigimos de uma interpretação já


realizada? Estas exigências são as seguintes:

a) O sentido proposto deve corresponder ao nosso sentimento intuitivo, a


integração na continuidade psíquico deve ser confirmada pelo nosso sentimento. *

b) ╔ preciso, na medida do possível, dispor de casos "puros", análogos aos


nossos, nos quais o sentido construído por nós se manifesta no estado puro, sem
complicações, como é o caso, algumas vezes, em observações feitas por crianças.

c) Este sentido deve comportar o especificamente individual. Não é útil evocar o


Complexo de Édipo: ele Não contribui é compreensão de um caso que chegamos a
analisar as variantes individuais ( por exemplo, no caso de um jovem que evoca o tempo
em que dormia perto de sua mãe; é preciso lhe perguntar Até onde ia seu contato com o
corpo materno.

d) Em caso de interpolação ou extrapolação, as considerações críticas devem ser


particularmente rigorosas. Existem dois critérios para julgar a validade da hipótese
construída: é preciso, de um lado, que esta esclareça numerosos aspectos do material
produzido, e de outro lado, que ela seja corroboradora por novas lembranças surgidas e,
eventualmente, por uma melhora geral do estado do paciente.

Nas análises, a possibilidade de verificar ou inferir as intra e extrapolações


causais é substituída pelo princípio da determinação múltipla. Por outro lado, isso Não
significa grande coisa no caso de análises de dados formais (desvios do pensamento, ou
sintomas como a gagueira) pois o que é formal deve se envolver em numerosos
acontecimentos e conteúdos vividos.

Freud estima que Não é sempre possível formar construções corretas. "A questão
que se coloca imediatamente, escreve ele, se refere é garantia que possuímos com relação
à validade de nossas construções. Não estamos expostos a erros e Não estamos arriscados
a comprometer o sucesso da cura pela aplicação de uma construção errônea?... A
experiência analítica nos ensina... que o engano, ao apresentar ao paciente uma
construção incorreta, como uma verdade histérica provocável, Não representa um estrago
irreparável, ou seja, perdemos tempo com esses erros e como conseqüência Não
contribuímos para o avanço da cura. Mas, um só erro na construção Não significa algo
grave. O que acontece num caso semelhante é a indiferença do paciente, que Não
responde nem por sim, nem por Não. Esta é uma maneira de diferenciar sua reação e,
*
Dizemos freqüentemente que só compreendemos realmente aquilo que já vivenciamos. Isso é
parcialmente correto. Certamente a vivência facilita a compreensão - mas, por outro lado,
esta mesma vivência nos dá um sentimento de que interpretamos cedo demais; antes mesmo de
qualquer confirmação dada pela objetividade. Temos a tendência de perdoar os outros de
acordo com o que nós mesmos já vivenciamos - ou, ao contrário, combater essas mesmas
coisas. Seja o que for, o fato subjetivo pode entravar nosso trabalho. Para evitar essa
confusão pela subjetividade, convém proceder à auto-análise.
mesmo se isto acontece, podemos chegar é conclusão de que nos enganamos, e podemos
reconhecê-lo ao paciente, sem por em risco nosso prestígio. A ocasião se apresenta no
momento em que surge novo material... Certamente exageramos no que se refere ao
perigo que há em "persuadir" o paciente, em lhe sugerir coisas nas quais o analista crê,
mas que o paciente Não quer admitir". (85, p. 48)

Como ressalta Lolwald, o analista interpreta a diferentes níveis de compreensão.


Ele interpreta o inconsciente, a transferência, o material consciente; ele unifica, estrutura
e articula constantemente, ou pelo menos fornece interpretações em vista destes
objetivos. Esta é a tarefa do analista, que se situa a um nível mais elevado de organização
de seu EU que seu paciente. A interpretação se relaciona, de um lado, à regressão,
agravada pela neurose, mas de outro lado, ela age sobre a organização superior do EU
neurótico (114a)

Seria razoável se perguntar se aquilo que é tomado por "órgãos interpretativos"


está sempre a um mesmo nível; e se existe, nesse campo, diferenças de estratificação. Ou,
de outra forma, não seria convincente isolar um "nível individual" * relativo a toda
interpretação que deve se situar a um certo nível. Nossa experiência nos permite falar de
um nível individual, na medida em que encontramos os conteúdos estratificados,
ordenados em camadas, segundo seu afastamento de fatores disposicionais que
determinam também as reações a um trauma, e de outra parte, de traumas que, por sua
vez, reorganizam estas disposições. Estas duas qualidades, a nível individual (disposições
e traumas), entre as quais não existe, aparentemente, mais que uma fraca ligação, estão
numa região intermediária do nível individual, onde certos traumas, enquanto
experiências inevitáveis do homem por vier (em devenir) adquirem um papel
preponderante. Trata-se do trauma primitivo devido à observação do coito parental ("a
cena primitiva"), ameaças de castração (o trauma do nascimento, na interpretação
rankiana) e, segundo Ferenczi, traumas irritativos, grosseiramente sexuais, da criança
sedenta de ternura.

Talvez seja útil chamar a atenção para o fato de que, numa série de experiências
análogas (pode tratar-se de experiências relativas ao trauma primitivo), não há sempre a
nível individual, a série completa, mas somente os primeiros ou últimos termos. É o que
visa a preferência periférica (48) da vida psíquica infantil e inconsciente. 1

É conveniente repousar o problema do nível individual sobre lembranças de


traumas. Com efeito, o analisando evoca lembranças de infância sempre conscientes, ou
latentes por intermitência; lembranças cujo conteúdo se enraíza em eventos realmente
traumatizantes. Podemos então nos perguntar se estes eventos pretensamente "reais"
provêm do nível individual ou se deles assumem simplesmente o papel de lembranças -

*
Expressão retirada da obra de Burkamp: Begrift und Beziehung (Conceito e Relação), p.67 e
seguintes. Em lógica, falamos do estado "objetos" que é oposto ao estado "conceitos".
Poderíamos chamar "conteúdos de base", os conteúdos do nível individual, por oposição aos
conteúdos derivados.
1
Como diz W Kohler a propósito de eletro-fisiologia : "Contours attract attention more
than homogoenous, field do" (In: Cerbral mechanisms in Behavior. Ed. by Loyd A. Jeffers.
Niley, Chapman and Hall. New-York-London, 1951 p. 44)
tela para outros traumas do nível individual. Sabemos, graças a Freud, que as lembranças
da infância são, elas mesmas interpretáveis; ou seja, que elas servem de tela a
experiências recalcadas no inconsciente. Seja uma menina que jogou um frasco de
perfume no cestinho de seu pequeno irmão, logo após seu nascimento - esta lembrança
irá se integrar numa experiência dolorosa; a menina que queria "acabar" com a diferença
sexual que ela acabara de observar. Entretanto, estas lembranças se revelam como sendo
lembranças - telas de um outro tipo, como produtos fantasmas; trata-se então de fazer a
distinção entre lembranças "autênticas" e lembranças "fantasmas"; estas últimas podendo
contradizer as primeiras. É importante fazer esta distinção, porque, depois do
reconhecimento de uma realidade psíquica, o trabalho analítico deve ainda superar um
obstáculo suplementar, se um conteúdo de experiência reclama, abusivamente, o lugar de
nível individual. A perspicácia psicológica do analista é igualmente colocada em prova
pela apresentação de lembranças (fantasmas) cujo caráter irreal é conhecido do paciente.
Sobre quais critérios decidir? Pode ser que os eventos traumatizantes trazidos no início
da análise sejam de tipo fantasmés e não mereçam ocupar um lugar a nível individual. A
fraqueza da instância moral pode igualmente favorecer a sustentação das lembranças
fantasmés. É com grande dificuldade e (como enfatiza Ferenczi), etapa por etapa que a
análise tem acesso à lembranças recalcadas e verdadeiramente reais do nível individual.

As lembranças - telas propriamente ditas, ou seja, as lembranças reais, mas


portanto afastadas do nível individual, oferecem, freqüentemente dificuldades à análise,
na medida em que elas representam um deslocamento temporário. Acontece que eventos
traumatizantes se encontram dissimulados em lembranças relativas a uma época
anterior. Esta (ruptura temporária) pode afetar a própria lembrança traumatizante, que
(décalé dans une antériorité) aparece como incapaz de ter exercido um efeito psíquico
potente (por exemplo, o analisando remonta, à idade de um ano, à lembrança da morte
de sua avó, porém o evento aconteceu quando ele tinha dois anos).

As lembranças - telas são, freqüentemente, de natureza lingüística, porque a


polissemia verbal pode evocar o evento traumatizante [por exemplo, o verbo alemão
ang'steckt - com contração significando uma doença, fetichismo sobre a palavra com dois
sentidos : glanz - glance) 49].

Já mostramos, e de maneira multilateral, como atingimos, no trabalho analítico,


um dos principais objetivos do método, a passagem do manifesto ao latente, ou seja, a
passagem da descontinuidade do evento consciente, vivido no sentido, sinais do
inconsciente à continuidade do inconsciente. Entretanto é preciso se precaver para não
tirar desta tentativa uma conclusão errônea e negligenciar o reconhecimento do manifesto
em benefício do reconhecimento do latente. Não é em vão que esperamos muito do relato
de sonhos: estes, com efeito, são tidos, por via da análise, como facilitadores para se ter
acesso ao latente, e constituem também pontos de partida e de apoio indispensáveis.
Podemos dizer o mesmo para as lembranças e experiências atuais (29) durante a análise.
Não somente porque "todo nosso saber está sempre ligado à consciência", mas porque "a
propriedade (consciente) ou (inconsciente) constitui o único ponto de luz suscetível de
nos guiar através das tenebrosa profundezas psíquicas" (50, 186, 185); mas
particularmente porque a interpretação não oferece mais do que um sentido para o
"interpretável concreto" e quanto mais o interpretável é multiforme, mais a interpretação
pode parecer convincente e profunda. A mais bela manifestação de progresso na análise é
o afluxo crescente sem cessar do material, quando o que era latente passa, ele mesmo a
manifesto.

Entre manifesto e latente existem duas relações particulares. A primeira é análoga


à relação de causalidade tal como vimos à propósito da continuidade psíquica. Uma vez
tirado o véu daquilo que é latente, o caminho tendo conduzido deste ao manifesto, pode
ser reconstituído graças aos relatos explorados por Freud: condensação, deslocamento,
simbolismo, elipse, substituição de outras relações de pensamento ou estabelecimento de
ligações com elas, e também a periferização (representação pelo primeiro, o último, o
menos, etc...). Mas é impossível construir o latente a partir do manifesto pela simples
aplicação destes relatos; menos talvez no caso da "retradução" de símbolos, ou seja, pela
aplicação do método auxiliar.

A segunda relação entre manifesto e latente concerne à capacidade de se estar


consciente. (De par) seu conteúdo, (de par) sua estrutura latente é sempre menos capaz de
aceder à consciência, mas estranha ao EU e mais perturbadora para ele que o manifesto.
Na construção do manifesto a partir do latente, o princípio do prazer é sempre operante.
Durante o trabalho de interpretação, estas duas relações indicam uma vaga direção da
interpretação; uma vez terminada a interpretação, elas permitem o controle do resultado
obtido.

Um outro ponto da pesquisa pode ser o do lugar de um evento psíquico na cadeia


de processos. Um evento psíquico pode derivar de instintos, mas também é defesa do EU
ou da intervenção de instâncias morais. Pode ser um derivado direto ou indireto do
conflito, pela presença de um processo de cura, suscetível de provocar certos fenômenos
como a substituição léxica nos esquizofrênicos. O processo de cura pode se introduzir até
mesmo no trabalho de defesa do EU, notadamente nos casos onde não se trata de
conservar o mal, mas de se curar um mal vivido.

Resta-nos esclarecer a relação de transferência e interpretação (ou seja, delimitar


o sentido da transferência). Como diz Alexandre, toda interpretação correta está a serviço
de dois objetivos: "ela dá impulso ao material inconsciente e religa ao sistema da
consciência. A sincronização destas duas tarefas em um só ato durante o qual
(abreaction) e reconhecimento se realizam ao mesmo tempo, deve ser considerada como
um princípio técnico fundamental que gostaria de nomear..." princípio de integração da
interpretação. Quanto às interpretações que religam a situação vital atual a experiências
passadas e à situação transferencial, proponho às designar pelo termo interpretação total".
(110, p. 92)

Como ressalta Strachey, a interpretação da transferência possui um lado negativo


e um lado positivo; "dito de outra forma, a interpretação da transferência é a defesa mais
importante contra os perigos suscetíveis de conduzir a uma interpretação de análise, mas
é também a verdadeira força dinâmica que permite a uma boa condução da análise." A
interpretação da transferência "é um processo que torna o paciente capaz de utilizar, sob
controle e de maneira limitada, seu sentido de realidade em vista de uma comparação
entre seus objetos arcaicos e imaginários de um lado, atuais e reais do outro. Dessas
premissas, Stachey conclui que a correção gradual que o paciente é assim levado a fazer
em sua atitude diante do mundo exterior, representam primeiro passo em direção a um
restabelecimento interior, o que é, em última análise, nosso objetivo."

O analista se oferece ao paciente como objeto e "espera ser introjetado por este
último enquanto superEu. Mas, desde o início, sua única ambição é de se diferenciar dos
objetos arcaicos do paciente e, na medida do possível, conseguir que o paciente não o
como um (imago) arcaico, introjetando-o a seu superEu primitivo, mas como núcleo de
um superEu novo e separado (127, p. 73). "É que precisamente este objetivo esperado
graças ao comportamento e às interpretações do analista.

P. Heimann Prefere a interpretação transferencial, a única capaz de influenciar a


maneira dinâmica do Eu do analisando. Com efeito, o analisando experimenta claramente
as emoções elevando-as ao nível da consciência, e isto, no momento mesmo onde elas
entram em relação direta com seus objetos. Ela insiste particularmente sobre os fantasmas
inconscientes que ocupam l'arrière fond na transferência (107, p. 303-306).

A "análise direta" (direct analysis) de Rosen aplicada aos psicóticos representa


uma espécie particular de interpretação e de relação destas à transferência. Nos
psicóticos o inconsciente não está escondido, mas se manifesta abertamente; é sua vida
psíquica norma que é recalcada na latência. Por esta razão, as interpretações não devem
tomar o caminho da livre associação, mas derivarem-se pela interpretação de gestos e
hábitos, da linguagem dos sonhos, no sentido dos desejos e de crenças primitivas. É por
esta via que se realiza a aceitação do terapeuta pelo doente, e o analista pode assumir o
papel dos pais (que pensamos à procedência de Ferenczi) sem por isso abandonar os
sentimentos da mãe benevolente.

A compreensão do material oferecido inaugura a última etapa do material


analítico a comunicação do que foi decifrado. Ela coloca o tato do analista a uma dura
prova. Certamente, é uma questão de técnica, mas uma vez mais queremos nos limitar ao
nível dos princípios e métodos, afirmando que a formulação verbal do decifrado constitui
o problema geral da comunicação. Com o efeito, o analista é, desde já, livre da expressão
verbal e quer assimilar o não dito e presenciar toda a evolução do analisando. Mas isto
não é possível se, ao invés de se limitar à simples formulação de lembranças relatadas ou
a imagens de cenas evocada, o analista souber se colocar diante de um meio passível de
mudanças constantes ou variáveis do analisando. É a partir desse meio, dessas
disposições de espírito, que ele deve encontrar a interpretação e as palavras para se
comunicar. Já vimos porque a catarse freudiana se realiza pelo intérprete das palavras.
No momento, nos propomos a mostrar porque a comunicação verbal vinda do analista
constitui uma parte tão importante de seu trabalho. Ainda aí, é preciso naturalmente
considerar a dificuldade que possui a língua, de suprimir o isolamento. A palavra é
indispensável à (abréaction); a escuta da palavra favorece o ancoramento no consciente; a
psiquê interior só se torna real, ou seja, equivalente à realidade exterior, na medida em
que seu conteúdo é entendido do exterior. Pronunciar em voz alta, é realizar um grande
passo em direção à realidade, em relação ao caráter esquivo daquilo que é somente
pensado. Convém acrescentar que a comunicação de si mesmo pela língua permite
(palavra apagada) do inconsciente tomar uma forma mais evidente e, eventualmente,
como afirma Freud a propósito das neuroses compulsivas, permite que o analisando
conheça o conteúdo real de suas idéias. O tato e a necessidade de se armar contra
objeções críticas exigem constantemente que a comunicação do analista seja retardada (?)
até o momento em que o próprio intervém após provas que o apóiam. Freud ensina a esse
respeito: "Evitemos adivinhar... Esperemos o momento propício, que não é sempre fácil
de determinar. Como regra geral, esperamos, para comunicar nossa reconstituição e
nossas explicações ao paciente quando notamos que este está bastante próximo de
realizar sua própria síntese e que bastaria pouco para que isso ocorresse. (p. 75. p: 46)"

Como se estrutura a reação (a "reação terapêutica") do analisando após esta


comunicação? Ela pode ser positiva, neutra ou e negativa. A adesão (ou seja, a reação
positiva) ou a negação podem se produzir imediatamente, ou após um período de
incubação. A reação positiva pode estar repleta de resistências; ela pode ser enganosa e
pode também não resistir aos ataques ulteriores do inconsciente. Já falamos sobre a
reação neutra. Fora a cura dos sistemas da doença, vimos algumas vezes, mudanças de
atitude afetiva, por exemplo, o doente pode abandonar sua busca de ideais. As reações
típicas às interpretações propostas são: "Não. É possível. Nunca tinha pensado nisso"
(Freud, 135). As duas últimas reações constituem confirmações. Durante a reação
terapêutica, é preciso considerar igualmente, a tendência à cura. É um mecanismo que
coopera parcialmente com os mecanismos de defesa mas trabalha também com eles. O
amor é um potente fator de tendência à cura; a abstinência com a crença de obter o amor
no futuro opera no mesmo sentido. Para curar (para conhecer uma reação terapêutica
positiva), o paciente deve estar a par da economia do sofrimento e de um certo grau de
adesão ao desprazer. (Ferenczi, 138).

Acrescentamos que a reação do analisando a uma construção pode ser direta ou


indireta. A reação direta é um sim ou um não. Mas é preciso se precaver de não
concordar plenamente nem com uma nem com outra dessas respostas. O "sim" direto
pode significar várias coisas. "Ele pode indicar que o paciente realmente reconhece a
construção como justa, mas ele pode esta também desprovido de qualquer significação e
mesmo ressaltar aquilo que chamamos "hipocrisia", pois a resistência se acomoda muito
bem em tal adesão afim de continuar a dissimular uma verdade ainda não descoberta.
Um sim como este, só tem valor se vier seguido de confirmações indiretas; se o paciente
produzir logo depois de novas lembranças que completam ou sufocam a construção. O
"não" do analisando é também passível de equívoco; ele é menos utilizado que seu "sim".
Com efeito, o "não" é freqüentemente expressão de resistência. A única interpretação
segura do "não" é a de que insiste sobre o caráter incompleto da construção, esta não
engloba todos os pontos a esclarecer. (Freud, 85, p. 49-50)."

A reação do analisando é indireta: 1) se ele começa por manifestar uma reação


terapêutica negativa mas que rapidamente passe a positiva. Tal é, por exemplo, o caso de
um homem parcialmente impotente, a que se fez uma alusão ao registro agudo de sua
voz, adquirido por identificação e o convite a fazer um registro mais grave foi seguido de
uma impotência relativa; após a análise dos fatos o paciente demonstrou uma impotência
incomum; 2) se ele utiliza maneiras de falar que já foram questionadas; 3) se ele vive as
lembranças - imagens com uma intensidade exagerada (85, p. 50, 53). Esta intensidade
lembra sonhos caracterizados por um sentimento particularmente claro, da realidade, e
que, acreditando na minha experiência, são acompanhados de uma excitação sexual real,
de fato uma ereção. A realidade da excitação sexual é deslocada sobre a propriedade de
imagens de sonhos, e estes últimos são vividos como realmente existentes.

Fenichel acha que verifica-se se uma interpretação é justa, não pelo primeiro
"sim" ou "não" do analisando, mas pelo conjunto de reações do paciente. Segundo ele,
uma interpretação justa determina uma mudança dinâmica, que se manifesta nas
associações do analisando e em todo seu comportamento. (89, p. 32)

5 - ESTRUTURA DAS OBSERVAÇÕES CIENTÍFICAS

Até o momento, procuramos aplicar o método analítico ao conhecimento prático


do homem concreto, do indivíduo. Nos perguntamos qual era a "situação última" para
que o psiquismo humano se revele na sua totalidade e "fale sinceramente", no sentido
psicanalítico do termo; 2 ou seja, de maneira a poder ser captado por um instrumento
psíquico e ser compreendido pelo analista competente. A questão se ressalta nos
capítulos seguintes, se enuncia da seguinte forma: Em que vale o método analítico
enquanto procedimento de tratamento do material bruto, em vista de obter observações
científicas?

Considerando de um ponto de vista suficientemente geral, todo método científico


apresenta os mesmos traços; mas se considerarmos suas bases profundas, não tardaremos
a perceber que cada um deles se conforma às exigências específicas do material que ele
trata. No que concerne à psicanálise, onde se trata antes de mais nada, de restabelecer a
continuidade psíquica, de visar o concreto particular e de descartar o "geral", enquanto
anti-psíquico, é possível que o princípio de Bacon se aplique particularmente bem: situar
a ciência, não como abstrações, mas nas camadas intermediários entre o abstrato e
concreto.

É interessante observar a orientação dos resultados científicos. Já dissemos que as


"leis" de toda ciência fundada sobre o princípio de causalidade, são, na realidade,
indicações visando o futuro. A Psicanálise, a partir do determinismo particular, reina no
seu domínio, fornece indicações suscetíveis de revelar o passado; seus resultados, os mais
gerais, se esforçam a desfazer o nó do passado individual.

2
Tudo aquilo que aparenta ser sincero a eles mesmos, não o são forçosamente, se
consideramos o conjunto de sua vida psíquica. Aqueles que esquecem momentaneamente o
caráter mentiroso de suas declarações podem também ter o sentimento de serem sinceros. é
por isso que falamos da "sinceridade no sentido psicanalítico".
Nos perguntamos, no que segue, como Freud chegou a suas conclusões e
examinaremos à luz de alguns exemplos concretos, a estrutura lógica de seus resultados
científicos.

A) Como Freud chegou às suas conclusões?


Ele juntava seu material, segundo seu método, comparava o que ele havia
encontrado num doente com o que ele havia encontrado em outros: anotava as diferenças,
procurava raízes comuns; esboçava um esquema de processos; aplicava em seguida estes,
a novos casos; esperava confirmações ou não, e o surgimento de novos problemas,
decorrentes dos antigos. Ele distinguia cuidadosamente intuições e processos
verificáveis. Com muita freqüência, recolocava em questão suas próprias descobertas.
Traçava, a ele mesmo, programas para a coleta de casos e para o tratamento estatístico
destes. Introduzia conceitos novos (libido, realização do desejo, defesa, (abréaction)).
Para a verificação da reconstrução psicanalítica, experimentava a satisfação de ver o
paciente procurar a confirmação de seus dizeres e lembranças.

Ele conheceu também o desespero: "Acontece às vezes que a solução me escapa


no momento mesmo em que posso possuí-la. Sou então obrigado a recompor tudo, e
renunciar a tudo que acreditava ser verdadeiro. Suporto com dificuldade a depressão que
se segue. Compreendi rápido que era impossível continuar um trabalho tão penoso numa
atmosfera de desencorajamento e dúvidas latentes. Se não estou sereno e seguro de mim
mesmo, cada paciente se torna para mim um instrumento de tortura. Constantemente,
tenho o pressentimento de uma derrota imediata. Então, renuncia a todo pensamento
consciente para me orientar, por assim dizer às vezes, unicamente para tocar no "labirinto
dos enigmas". Sigo então o trabalho, talvez com mais habilidade que antes, mas não sei o
que faço." "Nenhum dos que me criticam conhecem tão bem quanto eu, o abismo que
separa o problema e a solução." "Só posso esperar progredir em meu trabalho graças à
repetição das mesmas impressões, estou pronto a me subtrair da nominação." (uma nota
de Kris nos ensina que Freud modificou ulteriormente seu método de trabalho baseado
sobre a junção do pré-consciente. Numa carta à Abraham, ele escreve : "Antigamente,
minha maneira de trabalhar era diferente: esperava que a inspiração me viesse. Agora,
vou a seu encontro."

Nesta visão, convém mencionar rapidamente a auto-análise de Freud, que data de


anos criadores da análise de neurose e da interpretação dos sonhos. Ele ressaltava: "Nas
profundezas de minha própria neurose, há algo que se opõe à compreensão das neuroses
dos outros". Ele decide então empreender sua auto-análise. "O paciente que me preocupa,
antes de tudo sou eu mesmo... Esta análise é mais difícil que todas as outras... Mas
considero-a indispensável, é um interlúdio necessário em meus próprios trabalhos". Ele
acaba por interromper sua auto-análise: "Compreendi agora, a razão. É porque não podia
me auto-analisar a não ser me servindo de conhecimentos objetivamente adquiridos.
(Como para um estranho). Uma verdadeira auto - análise é realmente impossível, sem a
qual não haveria mais doença. (Passagem de cartas extraídas de (76))."
A propósito disto, Kris ressalta que mais tarde consideraria a auto-análise
somente como um complemento à análise empreendida junto a um analista. Ele admitia,
no entanto, algumas exceções.

Pensemos também no fato de que Freud jamais interrompeu seus trabalhos de


psicopatologia e de psicologia. Ainda aí, segue a via traçada por Taine: "Todo historiador
perspicaz e filósofo trabalha a história de um indivíduo, de um grupo, de um século, de
um novo povo ou de uma raça; as pesquisas de lingüistas, ou mitólogos, de etnólogos não
têm outro objetivo; tratas-se sempre de descrever uma alma humana ou os traços comuns
a um grupo natural de almas humanas." "Em breve, aquele que estuda o homem e os
homens, o psicólogo e o historiador, separados por pontos de vista diferentes, entretanto,
o mesmo objeto; por isso cada nova descoberta deve ser considerada à experiência do
outro (75, p. 20 e 21)".

Em Balbwin, Freud podia ler o seguinte: "as relações entre a evolução individual
e a evolução da raça são tão estreitas (de fato, as duas evoluções são freqüentemente
idênticas) que é impossível de tratar claramente um de seus sujeitos sem considerar o
outro, os resultados obtidos no outro domínio(82, prefácio, p. X)".

B) Alguns dos exemplos concretos com tendência a mostrar a estrutura lógica dos
resultados científicos de Freud.

I - O primeiro exemplo trata de uma observação clínica breve, mas com um


desenrolar bem claro, no qual Freud demonstra a relação entre o erotismo anal e certos
traços de caráter.(51)

O encaminhamento lógico pode ser decomposto como segue:

1. Certas impressões, difíceis de reconstruir, chamaram a atenção do pesquisador


sobre a correlação entre certos traços de caráter, tal como o (l'amour d'ordre), a
economia, a obstinação (entêtement) e um tratamento particular das fezes na infância
(incontimentia alvi prolongada, retenção de fezes, apesar da ordem de evacuá-las;
manifestações diversas das fezes), ou seja, um erotismo anal constitucionalmente forte.

Trata-se de uma simples correlação sem causalidade imediatamente perceptível.


Com efeito, desde que percebemos os fatores constituintes, podemos também estendê-los
aos traços de caráter: estes são, então, completamente independentes da constituição
sexual, ou se manifestam no comportamento diante das fezes (por exemplo, a obstinação
(entêtement) ou em outras situações; poderíamos também supor que é uma
particularidade psíquica geral (a busca de um prazer diferenciado) que se manifesta tanto
na avareza quanto na retenção das fezes. Notemos que em sua exposição, Freud nem
mesmo considera estas possibilidades. * Dez anos mais tarde, em um outro ensaio, ele dá

*
Encontramos freqüentemente, nas demonstrações de Freud, uma ausência total do "geral"
como princípio de explicação. Tomamos sua afirmação segundo a qual o pensamento é um
ensaio do ato com um mínimo de investimento de forças. Reconduzindo o pensamento a um
ensaio do ato, Freud elimina a possibilidade de ver no ato e no pensamento verbalizado as
manifestações de uma função "pensante" geral e comum aos dois.
um passo nessa direção, enfatizando que, se quisermos ser mais prudentes e exatos,
deveríamos nos limitar a dizer que os traços de caráter em questão são alimentados
somente pela fonte do instinto anal(52). Mas mesmo nesta formulação encontramos uma
atitude bastante clara diante da relação de causa e efeito. Como se explica essa atitude?

2. A segunda fase desta conduta, oferece uma indicação mais clara. Estamos
sempre no interior do sensível e do verificável e os fatos observados corroboram a
correlação. Com efeito, Freud diz que nos mesmos sujeitos, anomalias que se referem à
defecação, desaparecem após a infância, portanto, com o crescimento, a zona anal perde
sua importância erógena.

3. Aqui chegamos à terceira etapa, que não é mais um fato experimental, mas uma
"suposição" (vermutung) segundo a qual a constante da tríade característica se relaciona
ao enfraquecimento e ao desaparecimento progressivo do erotismo anal. Vemos que essa
suposição demanda uma sustentação, tanto quanto a proposição inversa: o
enfraquecimento do erotismo anal deve-se a um reforçamento (digamos constitucional)
de qualidades de ordem, etc... talvez bem aceitos.

4. A sustentação da proposição deve ser multilateral. Podemos considerar que


estamos diante de um fato particular de um fenômeno geral, o que chamamos de
"sublimação de instinto". A suposição inicial foi corroborada, mas não há, em cada caso
particular escondido por uma generalização oposta à de uma relação de causalidade?

5. Sentimos que Freud procura salientar, com argumentos de outra ordem, a


justeza de sua exposição. Não poderíamos recorrer a uma necessidade interna para
explicar a correlação obtida pela via indutiva? Certamente, esta necessidade interna não é
evidente e Freud a reconhece como tal; mas ele indica ao mesmo tempo, que, limpeza
(amour d'ordre), honestidade, etc... parecem formações de reações contra a impureza, o
elemento perturbador, o não corporal. Mas, outra vez, as relações assim indicadas,
mostram uma correlação sem orientação de causalidade; estas aparecem de forma vaga,
incerta, sem orientação.

6. Passemos então às expressões de língua e aos paralelismos mitológicos. Estas


são bastante convincentes, mas sempre são possíveis os contra exemplos. Por outro lado,
tal material somente pode corroborar fatos da experiência, sem jamais alcançar seu valor.
Trata-se de fenômenos que tentaremos em vão aplicar à situação analítica; se as
observações feitas durante a análise só podem ser aplicadas à vida com certas precauções,
(" com um analisando tal, fenômeno se apresentaria de tal forma") acontece o mesmo
com os fenômenos, cuja observação não substitui a análise. Aliás, tudo aquilo que prova
as expressões lingüísticas e os paralelismos mitológicos, é o surgimento de certas idéias
relativas às correlações entre vários fatos. Mas a justeza destas idéias não é sempre
demonstrada desta forma; é possível que nenhum pensamento justo tenha sido formulado
neste domínio.

7. Para completar esta exposição tomemos o seguinte esboço de pensamento: a


reviravolta decisiva neste processo é representada pelo desaparecimento progressivo do
erotismo anal. O que acontece nos casos onde o erotismo anal da infância se mantém com
uma certa intensidade? Segundo o esboço do pensamento, não precisaria esperar, nestes
casos, traços evidentes de caráter anal. "Se não estou enganado, diz Freud, a experiência
está de acordo com esta dedução." Esperávamos expor aqui, fatos da experiência. Mas
isto não diminui em nada a hipótese de uma relação de causalidade inversa. (Ver pontos 1
e 2).

Vimos a estrutura lógica da correlação estabelecida entre o erotismo anal e caráter


anal. Ressentimos, ao longo da demonstração, um tipo de falta, uma espécie de reserva
diante de uma outra maneira de ver. No entanto a última frase do ensaio nos traz um
elemento que procuramos avidamente nas diferentes fases: "Se não estou completamente
enganado, a experiência está em harmonia com esta conclusão."

Se destacamos esta frase na demonstração, vemos imediatamente que o sistema


constituído por Freud com base em suas experiências com neuróticos, está de acordo
necessariamente com esta concepção do (primat) dos instintos. (Le primat) do instinto é
uma pressuposição que, experimentalmente demonstrada numa parte dos fenômenos,
constitui em outra parte, um dos termos do encadeamento dedutivo.

Atrás da acepção da prioridade dos instintos se delineia a ambição de "não mais


recorrer a explicações psicológicas e começar a apoiar na fisiologia da agonia, as
modificações químicas, etc..." (Freud 76, 1986. Carta no 48)

II - Nosso segundo exemplo ilustrando os métodos científicos de Freud são


relativos à generalização de observações clínicas. Freud descreve um fantasma
descoberto em seis doentes. *

1. Os fatos vividos. O fantasma assim se resume: castiga-se uma criança. Não


poderia citar melhor exemplo de concretização e de integração na continuidade psíquica
que as observações de Freud, nas quais o esquema do fantasma se torna vivo, povoado de
personagens. Para melhorar a qualidade de suas generalizações, Freud trata, à parte, o
material obtido das quatro mulheres, e os separa do material produzido pelos dois
homens. Aprofundando-se na história de suas vidas, chega-se a distinguir nas mulheres
três fases suscetíveis do fantasma. Na primeira fase, a criança está na idade da pré-escola,
numa experiência precisa: punição corporal realizada pelo pai, à um irmão ou irmão mais
novo. Na terceira fase, é alguma outra pessoa, com freqüência um professor da escola,
que castiga uma criança.

2. A etapa seguinte da construção repousa sobre a interpolação: a segunda fase,


compreendida entre as duas precedentes, é um fantasma nunca citado pelo doente, mas
reconstituído, "interpelado" graças à continuidade. O conteúdo do fantasma é o seguinte:
é o próprio doente que é castigado por seu pai. Fase inconsciente nas mulheres. A
atmosfera objetiva que envolve a primeira fase é a inveja do irmão ou da irmã e a alegria

*
Freud: Ein Kind wird geschlagen, Ges. Schriften, V. 344-373; "Bate-se numa criança",
R.F.P. 1933, 3, 3-4, 274-297.
de ver o pai castigar seu favorito; na segunda fase, trata-se de um prazer evidentemente
masoquista ; e na terceira fase, trata-se de um sentimento sádico - onanista.

3. A reconstrução é indispensável; somente ela permite compreender a totalidade


da evolução. Efetivamente, se nos esforçamos a melhor integrar estas diferentes fases na
continuidade psíquica e no lugar que as convém, constatamos, diz Freud, que a primeira
fase se localiza antes do desenvolvimento do Complexo de Édipo; a segunda e a terceira
depois de seu desenrolar. O papel e a transmutação do instinto sexual são esclarecedores.
Com efeito, o fantasma reconstituído não é sempre o fantasma original; ele somente dá
continuação ao fantasma que contém uma atração genital com relação ao pai. O
sentimento de culpa que acompanha tal desejo transforma o desejo genital em
masoquismo, criando assim um tipo de compromisso entre desejo e castigo.

4. Mas o sentimento de culpa seria insuficiente à realização desta transformação


se não existe uma força para puxá-lo para trás, ou seja, se as manifestações instintivas
sadomasoquistas são uma regressão. Nestes doentes, o componente sádico pode se
manifestar de uma maneira precoce, por razões de constituição. Para justificar esta
hipótese, Freud lembra que entre os seis doentes que têm o componente constitucional
sádico nestas doenças, mais forte que na média. 3 Assim o fantasma da fase intermediária
é, ao mesmo tempo, um compromisso entre o erotismo e o sentimento de culpa. Este
princípio de Freud tem relação estreita com as particularidades esboçadas acima, do
"sentido" e da "causalidade" analíticos.

5. As observações feitas com os dois homens doentes completam o quadro obtido.


Um dos homens pode se lembrar da "segunda fase", ou seja, ter sido castigado por sua
mão; fase que nas mulheres doentes, estava inconsciente. Mas o fantasma que se escondia
atrás destas lembranças (nos dois homens doentes) mostrava os pacientes castigados (ou
seja, sadicamente amados) pelos seus pais. A tese geral que surge é a do amor incestuoso
com o pai, encoberto por um fantasma de castigo corporal, ao qual devemos o efeito
formador do caráter.

A lógica desta demonstração lembra a do exemplo precedente. Nele vimos o


princípio do (primat) dos instintos (cujo modelo completo está presente neste caso,
graças à hipótese de um forte sadomasoquismo) aqui é o (primat) do Complexo de Édipo
que aparece. Este não se manifesta somente no fato de que, apesar da presença do
(primat) do instinto, Freud deriva a deformação instintiva infantil a partir do Complexo
de Édipo (então, escapando da coação do sistema, ele poderia admitir que a força
desviante do instinto agiria por intermédio do Complexo de Édipo). Ele se expressa,
principalmente, no fato de que Freud reconhece como um verdadeiro programa, talvez
determinado filogeneticamente ao fantasma edipiano, e que ele o recusa a outro. Mas,
ainda uma vez, trata-se de uma exigência do sistema que não atribui o mesmo valores a

3
Podemos acrescentar a esta argumentação, a ignorância em que nos encontramos relativa à
proporção de neuróticos compulsivos no conjunto dos doentes tratados. Poderíamos mostrar o
interesse metodológico de elementos negativos da demonstração. (O fato de que os três
outros doentes não são neuróticos compulsivos é desprovido de interesse? Com efeito,
constatações negativas permitem algumas vezes que a pesquisa científica realize um
verdadeiro passo adiante.
todos os fantasmas; estes, quanto mais próximos do núcleo, mais importantes são. Ora, a
semente que dá lugar às germinações é o Complexo de Édipo. Toda uma série de
observações clínicas mostram que convém se deter a esta hierarquia de valores, no
interior do sistema.

III - Nosso terceiro exemplo dá uma demonstração de uma lei geral do psiquismo.
Numerosas teorias psicológicas, anteriores às de Freud se ocupavam do princípio do
prazer e nele viam um dos pilares da vida psíquica.

Freud pensou, durante muito tempo, que esta era uma lei fundamental, a mais
geral de todas cuja adaptação ao princípio da realidade constitui somente uma
modificação devido à maturação. Mas, mais tarde em "Além do Princípio do Prazer", ele
postula uma função fundamental, ainda mais geral " a de eliminar as excitações do
aparelho psíquico e o princípio do prazer não seria mais que uma forma derivada desta
função ; numa outra tendência que não visa diretamente o princípio do prazer, a retenção
da repetição. Esta interrogação é tão mais importante que a nova teoria freudiana dos
instintos, que distingue entre instintos de vida e de morte, se baseia sobre o mesmo corpo
conceitual.

1. Freud começa a se perguntar sobre a natureza dos fenômenos psíquicos afim de


encontrar uma explicação às inumeráveis dores e desgostos que, apesar do pretenso
(primat) do princípio do prazer, são comuns nos destinos humanos. Tal explicação reside
no princípio da realidade já citado acima, mas também sobre um tipo de estratificação do
psiquismo que faz com que o que é agradável a uma camada pode ser penoso à outra. É o
caso, particularmente, dos desejos recalcados inconscientemente; denominamos
precisamente assim, porque, apesar de sua tendência a se satisfazer, eles se submetem ao
Eu adulto e consciente da vergonha, de sentimentos dolorosos como a culpa e a
infelicidade. O psiquismo se vê também diante de experiências dolorosas vindas do
mundo exterior "alheio" às intenções do psiquismo.

2. Certas observações parecem indicar que a aplicação do princípio do prazer a


certos fenômenos é um tipo de preconceito teórico. Do ponto de vista formal, estes
fenômenos pertencem a um mesmo grupo, caracterizado pela repetição dos eventos
penosos. O mesmo acontece com sonhos nas neuroses traumáticas e também no jogo de
uma criança de um ano e meio que repete a separação cotidiana, dolorosa para ela,
quando sua mãe a coloca longe de certos objetos. Pode-se encontrar em cada um desses
casos uma explicação compatível com o princípio do prazer; no que diz respeito ao jogo
da criança, poder-se-ia dizer, por exemplo, que se tornando ativo e assumindo o papel de
adulto, a criança expressa livremente seus sentimentos de agressividade. Assim o
princípio do prazer se vê resguardado (certamente de maneira menos primitiva que nos
sonhos ou nos jogos de criança) e não podemos nos decidir entre a validade geral do
princípio do prazer e a compulsão (contrainte) de repetição.

3. Uma vez mais o segmento decisivo foi dado por um conjunto de observações
feitas durante a análise. Se pedimos ao analisando que faça esforços para evocar suas
lembranças, pode ser que por um certo tempo ele se ocupe dessa tarefa, mas mais tarde
ele não evocará mais suas lembranças, no sentido psicológico do termo, mas a repetição
de situações de conflito e sentimentos ocorridos há muito tempo. Essas repetições surgem
do inconsciente recalcado e se relacionam, com freqüência a cenas penosas. O analisando
se dá conta de que elas não têm nenhuma relação com o prazer e que se trata de algo mais
elementar, mais primitivo e mais instintivo que o princípio do prazer; algo demoníaco
que lembra o destino singular de personagens submetidos a várias reprises do mesmo tipo
de infelicidade. Assim, se livrando de preconceitos, a observação clínica postula uma
compulsão arcaica de repetição.

4. O novo conceito assim delimitado não pode ficar fora do sistema, é preciso
integrá-lo no sistema conceitual da psicanálise. Para isto, é necessário elaborar conceitos
teóricos. Uma dessas concepções tomada como ponto de partida, o trauma; os sonhos dos
neuróticos traumáticos, onde se repete o evento traumatizante são bastante eloqüentes,
nesse ponto de vista. Sintetizando várias hipóteses, pode-se conceber que o psiquismo
desenvolve a angústia necessária para mobilizar forças contrárias àquelas que procuram
agir sobre ele, com a condição de que essas forças não sejam muito vigorosas. Do
contrário, o psiquismo se desarma e fica inerte contra a invasão súbita de grandes
energias. Após o trauma, o traumatizado reapresenta a si mesmo, a situação
traumatizante, a fim de "retomar" a angústia que não experimentou. Assim se esclarece a
relação entre compulsão de repetição da cena traumatizante e o princípio do prazer: a
primeira prepara o terreno para o triunfo ulterior do segundo.

5. Uma especulação de outra natureza surge a propósito da semelhança entre


compulsão de repetição e instinto. Que relação existe entre compulsão de repetição e
instinto? Freud negligencia algumas respostas, teoricamente possíveis, a compulsão de
repetição toma a energia instintiva: a semelhança é somente aparente na realidade; não é
a força instintiva que se manifesta na compulsão de repetição, (sendo esta um caso limite
entre manifestação do instinto e fontes do prazer) para atribuir diretamente um caráter
instintivo à compulsão de repetição. Em seguida apresentamos as principais etapas de seu
raciocínio:

O evento traumatizante tem que se reproduzir repetidamente:


- se a energia instintiva não lutasse contra as defesas, invadiria o psiquismo e
provocaria uma experiência traumatizante, logo

- a energia instintiva é restrita a se reproduzir nas repetições.

Considerando o tempo que leva a energia instintiva a aparecer, pode-se afirmar


que o próprio instinto é a compulsão de repetição de um trauma, uma compulsão que visa
restabelecer o antigo estado traumatizante.

Pode-se constatar que há objeções quanto a este raciocínio. Os eventos


traumáticos não são os únicos a se submeterem à compulsão de repetição; esta é uma
reação primária a todos os eventos. Poderíamos conceber, por outro lado, que o próprio
prazer pode tomar o papel de defesa contra a energia instintiva, o que dispensaria o
pesquisador de postular uma função especialmente destinada a conter um instinto
acompanhado do prazer (absorvendo sua energia, o prazer impediria o instinto de
continuar a agir sobre o EU). Enfim, do fato de que a energia instintiva é obrigada a se
reproduzir repetidamente, não se constata que ela própria seja causada por tal força
opressora; de forma geral não sabemos se podemos falar de sua gênese.

Estamos diante do ponto crucial de toda esta demonstração: por que, apesar de
todas as objeções possíveis, Freud optou por sua tese? Não nos parece difícil declarar
aqui, um "a priori" do gênero que precede, obrigatoriamente, toda conclusão:
o da coesão unívoca e inteligível do psiquismo. Se o instinto não tende a repetir antigos
traumas, fora do sistema analítico, fora da continuidade, ele passa a ser parte integrante
do sistema, pelo intermédio de seus representantes.

Os três exemplos analisados possuem um senso de observação admirável, uma


grande perspicácia na percepção das analogias, uma louvável imparcialidade na
determinação de relações entre diferentes casos, uma concepção especulativa quanto à
natureza dessas relações e uma forma generalizada, um grande esforço para resguardar e
considerar um sistema que já passou por provas. Se (falando subjetivamente) tudo isso dá
uma impressão de audácia científica, podemos somente constatar com objetividade, que
toda tentativa científica procede dessa maneira. O esforço de teóricos da física, por
exemplo, visa constantemente, integrar toda nova observação nos quadros de seu sistema
pré-existente, e se essas observações parecem ameaçar o sistema, logo vemos surgir outro
sistema, aparentando ser diametralmente oposto ao antigo. Mas na realidade, é somente
uma forma revisada, corrigida e generalizada do antigo sistema. Essa ligação ao antigo
sistema e o cuidado em afastar seus limites caracterizam a fase atual da metodologia
psicanalítica.

Para levantar as hipóteses que pesam sobre as constatações precedentes, citemos


dois testemunhos, dados por Freud e pelo físico Reichenbach.

Freud escreve: “A idéia que tentamos apresentar aqui, só se desenvolve


introduzindo hipóteses sobre os traços e descartando assim, com mais freqüência do que
esperávamos, a observação propriamente dita. Sabemos que os resultados que obtivemos
da sorte são tão menos prováveis que com maior freqüência recorremos a este
procedimento, sem que possamos indicar com precisão, o grau de incerteza... Devemos
rejeitar impiedosamente, as teorias que se encontram em contradição com a mais
elementar análise da observação; sabendo que a teoria que propomos não pode pretender
mais que uma exatidão provisória". Convém ser paciente e “esperar que tenhamos posse
de novos meios de pesquisa, e de novas ocasiões de estudo. Mas é preciso estar pronto a
abandonar uma via que seguimos há algum tempo, desde que percebamos que ela não
pode conduzir a nada de bom". Reichenbach constata: "a maneira como fundamos o
modelo planetário de Rutherford, parecia sem dúvida, um pouco rápida a certos não
iniciantes: imagina-se talvez que a física proceda com mais prudência, que ela colete um
material experimental mais seguro antes de tirar conclusões de tão grande porte.
Respondemos que há uma tendência um pouco exagerada de comparar o físico a certos
professores de escola que atribuem às ciências da natureza um rigor dedutivo que elas
não têm. O físico de hoje é um audacioso; ele testa incessantemente suas hipóteses. Bem
entendido, não há espaço ainda para crer que a física vem se tornando uma ciência
puramente especulativa. Mas quanto à verificação de hipóteses do físico, esta só poderá
se realizar após suas formulações. O físico tem a chance de poder especular, pois ele deve
visar o que está por trás do fato experimental e se perguntar se suas hipóteses estão de
acordo com suas implicações... Assim sendo, sua razão deve estar pronta a se render à
evidência de novos fatos e à esperar o veredicto "verdadeiro ou falso" da observação da
natureza."

6. AS LINHAS DIRETRIZES DO MODO DE INTERPRETAÇÃO EM PSICANÁLISE

Sobre a base do que foi exposto no capítulo precedente iremos tentar definir, na
medida do possível, as linhas diretrizes do sistema psicanalítico.

1. Convém precisar então, que as prioridades do sistema interpretativo freudiano -


prioridade do instinto, prioridade do conflito edipiano enquanto caso particular da
prioridade do instinto, conservação mecânica da continuidade da pessoa - constituem os
princípios de uma cadeia causal. Não há nada de assustador nisso, se considerarmos tudo
o que foi dito de essencial sobre o sentido em psicanálise. O que é evidente no método
analítico é que ele procede pela interpretação do sentido e pela causalidade; e partindo de
termos que satisfazem as exigências da causalidade, ele chega a decifrar o sentido.

2. O instinto cego, as repetições mecânicas convém perfeitamente a uma certa


concepção de ciência, à uma concepção mecanicista; mas que se encontra em posição
diametralmente oposta à concepção vitalista. Nenhuma das duas concepções polarizadas
são específicas para a análise; cada uma tem pressupostos extra-analíticos. Entretanto,
Freud era partidário da primeira, e Ferenczi, da segunda. Em Freud, a análise acaba nos
instintos, em Ferenczi a interpretação começa com os instintos e conduz à bio-análise.
Ferenczi se recusa a admitir a compulsão de repetição. Para ele, as forças psíquicas estão
em constante luta em vista de obter prazer.

3. A prioridade do instinto, nos faz retornar ao problema do nível do inconsciente.


Enquanto instância psíquica o inconsciente deve se situar a um nível mais "elevado" que
o primeiro degrau do nível biológico. Considerar o nível representa uma diferença
considerável em relação às outras concepções do inconsciente. Por exemplo, o
inconsciente de Hartmann se situa a um nível puramente biológico. E é precisamente por
esta razão, que o inconsciente hartmanniano é onisciente e profético, principalmente no
que concerne à sua própria pessoa (O que não é o caso do inconsciente freudiano).

4. A prioridade do instinto, a prioridade do conflito edipiano, a teoria da


sublimação, correspondem a uma concepção epigenética da evolução, que se opõem às
concepções da pré-formação que criticamos no último capítulo. *

*
E. Laqueur coloca da seguinte maneira este problema de princípio da biologia: "A
extraordinária complexidade que encontramos no corpo de um indivíduo adulto é ela pré-
existente, embora, em parte, invisível, no gérmen (pré-formação), ou melhor o gérmen é
Por sua estrutura interna, a Psicanálise é, em parte, orientada para a epigênese.
Numerosos críticos da Psicanálise se enganam sobre sua essência, abordando certas
conclusões parciais a partir de uma outra concepção de evolução, e mesmo a partir da
negação de qualquer idéia evolucionária ( de um ponto de vista idealista,
fenomenológico, absoluto) sem ter claramente definida, a diferença entre seus pontos de
vista. Isto é particularmente verdadeiro para as críticas de cunho moral e religioso.

5. A acepção de uma evolução gradual contradiz, em certa medida o papel


originalmente atribuído ao traumatismo, mas ela pode se apoiar sobre o conceito de
"nível individual de conteúdos psíquicos". Os sintomas histéricos se ligam, quanto à sua
origem, a experiências traumatizantes. A formação do superEu encontra seu motor
evolutivo na desagregação traumatizante do complexo edipiano e os instintos
reproduzem, como vemos, influências traumatizantes. O trauma pode explicar qualquer
modificação não constante que não toma lugar no plano evolutivo; este é seu papel na
construção. Conforme a experiência de cura das neuroses, a Psicanálise não considera as
modificações que tomam lugar no plano evolutivo. Somente esta posição permite
considerar as mudanças como reversíveis, ou se empreender o trabalho de cura.
Compreende-se assim, a convergência da teoria da catarse e da etiologia traumática.
Fixando novas teorias à terapia (principalmente a modificação de "disposições" a
parentes, Ferenczi não pôde chegar a uma neo-catarse e ao remanejamento da teoria dos
traumas. De uma maneira geral, não se pode perder de vista que o tratamento das
neuroses só pode ser razoavelmente empreendido, se a considerarmos como mudanças
reversíveis, e não como evoluções, imbatíveis reações disposicionais inevitáveis. A
concepção de origens traumáticas contradiz absolutamente a teoria das disposições,
mesmo se a reação a traumas, pode, e num certo sentido deve, admitir tantos membros
pré-formados quanto disposicionais, epigenéticamente formados; isto, no sentido da
concepção freudiana de "séries complementares". A aplicação conseqüente da doutrina
dos traumas tem a vantagem de conhecer somente "soluções que não são, em absoluto,
estados evolutivos imbatíveis". Bem entendido, ela somente pode completar a teoria da
evolução psíquica, sem pretender recusá-la completamente : os fenômenos normais são
produtos da evolução, os fenômenos anormais são produtos de traumas. Entre os dois se
encontra uma zona de causalidade devido a traumas típicos. 4

Se se admite que cada etapa de uma evolução (se ela não é pré-formada)
representa uma mudança, uma reação a um trauma, coloca-se uma ponte entre a
concepção epigenética da evolução e o fato, a ser explicado do aparecimento de novas
formas. Não é somente na Psicanálise que podemos justapor a concepção de catarse
(imagem espelho do trauma) e a concepção epigenética. Aristóteles, a quem devemos a
teoria médica da catarse, era um claro adversário da doutrina platônica da pré-existência
de idéias. Ele pensava que a vida era uma evolução perpétua a partir de uma
potencialidade, deixando em sua concepção algum lugar à uma "geratio equivoca"

simples e a evolução consiste em uma criação nova de complexidades não dadas


antecipadamente? (epigênese)?" (Entwicklungsmechanik Tierischer Organismen. In: Allgemeine
Biologie. Kultur der Gergenwart, III. Teil, IV. Abteilung, 1915, p.321.)
4
A cadeia traumática - a aparição de novas formas é integrada à teoria anti-evolucionista
de Cuvier sob a denominação de "catástrofes".
inconstante. Quanto à Goethe que já foi citado a propósito da interpretação da doutrina
aristotélica da catarse, sabe-se que era claramente favorável à doutrina da epigênese,
recente em sua época. Ele notou o frio acolhimento quase inimaginável de sua
"Metamorfose dos planetas" (1790). "Mas essa aversão era natural, escreve ele, à teoria
das (étiquetages), o conceito da pré-formação, de evolução por etapas, desde Adam, até
nossos dias, dominavam todos os espíritos, inclusive os melhores". É importante
reconhecer que, quanto mais a atitude do analista é centrada sobre o individual, mais ele
é capaz de descobrir traumas a nível individual; e de outro lado, quanto mais estiver
empenhado em descobrir regularidades gerais, ele procurará relegar os traumas a um
segundo plano.

6. Em Freud, a metapsicologia, ou seja, a introdução aos conceitos que se


transformam nos princípios de base das ciências naturais, tais como energia
quantificável, espaço e causalidade, constituem um sistema de explicação visivelmente
operante, como indicam as relações de sentido interpretável. Freud traduziu os resultados
da Psicanálise, de qualquer tipo, na linguagem da Física, e pensa ter construído assim, um
edifício sólido. Nosso ponto de vista metodológico, tomado precisamente da Física, e
segundo o qual só se deve utilizar conceitos controláveis, é submetido aqui, à dura prova.
Apesar dos esforços de Bernefeld e Feitelberg (57), ninguém conseguiu ter sucesso até
agora, para conceber de maneira controlável os conceitos da metapsicologia. O controle
só é possível após a retradução no analítico psíquico. Qual é, nestas condições, a
utilidade da metapsicologia?

Uma aplicação ainda mais audaciosa desse novo ponto de vista nos leva ainda
mais longe. Ferenczi recomendou o ponto de vista do utraquismo como um método
particular. Ele escreve: "Pouco a pouco, a minha convicção se reafirmava de que uma
introdução de conceitos de ciências naturais na psicologia e de conceitos psicológicos nas
ciências naturais era inevitável e talvez extraordinariamente estimulante... Em meus
trabalhos anteriores não exitava em recomendar esta fórmula de trabalhar que havia
denominado utraquismo, e expressar esperança de que ela permitiria à ciência responder
a questões que ela se mostrava incapaz de fazê-lo até então. Mas se nos permitirmos fazer
uma utilização mais ampla de analogias, até então pouco admitidas, é natural que
entremos em domínios longínquos. Com efeito, analogias surgidas de domínios vizinhos
passam facilmente por tautologias e não têm nenhum valor de prova. Nas proposições
científicas que querem formular julgamentos sintéticos e não analíticos, o sujeito do
enunciado não deve jamais se repetir. A formulação mais suscinta desta tese é a seguinte:
todo fato teórico - fisiológico pede uma explicação "metafísica" (psicológica) e toda
Psicologia pede uma explicação meta-psicológica (física).

Ferenczi poderia citar o exemplo de Fechner e o qualificar de "utraquista" e na


realidade este sábio fala deste ponto de vista a respeito da psicofísica. Onde poderíamos
descobrir restos de um método que utiliza conceitos controláveis? Tomemos uma idéia da
Física, a idéia de Heisenberg sobre a relação de indeterminação se, por exemplo, "nos
processos atômicos, não podemos medir com exatidão o lugar e a velocidade". Não se
pode, como veremos, aplicar por sua vez o método analítico e o método de medida do
tipo físico; o método analítico só pode ser aplicado com algum sucesso se temos
continuidade psíquica do inconsciente e o método físico, onde se trata de descontinuidade
do material. Ou seja, a metapsicologia se torna incontrolável onde a Psicologia trabalha
com certezas e o inverso também acontece. Na metapsicologia, não se pode aplicar
simultaneamente dois tipos de medidas, na Psicologia não se pode aplicar dois tipos de
método. Mas é permitido expressar qualquer resultado obtido, graças a um método, como
se ele tivesse sido obtido por outro, afim de aplicar o método adequado no lugar
desejado.

Num estudo recente de Rapaporti - Gill os pontos sobre a metapsicologia são


definidos com exatidão. Segundo este autor, além dos pontos de vista dinâmico,
econômico e tópico, convém distinguir o ponto de vista genético e adaptativo. O estudo
dá definição; assim como os pressupostos e as características desses conceitos. A
definição do ponto de vista genético, assim se anuncia: "O ponto de vista genético exige
que a explicação psicanalítica de todo fenômeno psíquico comporte esclarecimentos
sobre sua origem psicológica e sua evolução. Propondo esta definição os autores se
referem à Hartmann e Kris. Os pressupostos e as características se enunciam a seguir:
"Todos os dados psicológicos têm uma origem e uma evolução psicológicas. Todos os
fenômenos psicológicos vêm de dados interiores que amadurecem segundo um plano
epigenético fundamental." (Aqui se faz referência à teoria de Hartmann sobre o
desenvolvimento autônomo do Eu e à teoria de Ericson sobre a epigênese psicossocial).
O autor prossegue: "As formas anteriores de um fenômeno psíquico, bem como
recobertas pelas formas posteriores, ficam potencialmente ativas. A cada estado da
história psíquica, toda forma ulterior é determinada pela totalidade de formas anteriores,
potencialmente ativas." Tratando-se do conceito de adaptação, o autor ressalta que o
homem se adapta ao meio físico e humano que são seus produtos. Esta adaptação é
bilateral : o homem e o meio se adaptam mutuamente. O autor se refere então a Schilder e
Spitz. Vemos que com a introdução da genética e da adaptação na metapsicologia,
deixamos o modelo de mundo físico em favor de um modelo biológico. Estes conceitos
biológicos são bem escolhidos, mas podemos nos perguntar se eles devem ser
compreendidos como sendo efetivamente, conceitos metapsicológicos e não enquanto
conceitos biológicos abrangendo o psíquico. Nossa crítica não visa estes conceitos;
visamos a metapsicologia, na medida onde ela utiliza, por analogia, conceitos da física.

7. A Psicanálise se consagra a fenômenos psíquicos, mais ou menos anormais; ela


se ocupa da psicopatologia da vida quotidiana, de sonhos, de sintomas neuróticos e
psicóticos, de formações anormais de caráter, de maneiras de falar e gesticular. Mas o
que significam estes fenômenos para uma visão psíquica "sã"? Podemos relembrar a
concepção universal admitida pelo patologista moderno. Existe neste domínio, como no
domínio da consciência, degraus e transições. Realmente, do ponto de vista do estado de
vigília, o sonho é um fenômeno "anormal"; ele existe portanto no limiar da consciência
de todo ser normal. Existem até mesmo, seres normais que podem pensar oniricamente,
no estado de vigília. Fechner, previu: "Em vez de comparar o sonho com o cérebro de um
louco, é preferível compará-lo com o cérebro de uma criança ou de um selvagem... O
sonhador é um poeta que se liberta às suas fantasias, que vive perdido, tão dentro de seu
mundo interior que qualquer aparição fantasmática, tem para ele um valor de verdade".
Essa analogia é aproximativa. Podemos refutar um certo número de opiniões negativas,
por exemplo, a negação da existência do inconsciente num homem normal, com boa
saúde, ou a opinião segundo a qual os sonhos não teriam sentido, opinião defendida
principalmente, por pessoas que não se permitem analisar pelos sonhos.

Com relação a isto, Freud se exprime da seguinte maneira: "Reconhecemos que


era impossível estabelecer cientificamente, uma linha de demarcação entre os estados
normais e anormais. Assim, qualquer discussão a respeito de sua importância prática, só
pode ter um valor negativo. Fomos levados a uma idéia de psiquismo normal pelo estudo
de seus problemas, o que não seria possível, se estes estados mórbidos - neuróticos ou
psicóticos - não tivessem tido causas específicas agindo como corpos estranhos).

Lembremos outra vez o "L'intelligence" de Taine que Freud lia com atenção em
1896. Achamos esta passagem: "Em geral, todo estado singular de inteligência deve ser o
assunto de uma monografia, pois é preciso ver o relógio desordenado para distinguir os
contrapesos que observamos num relógio que trabalha bem... A história natural do sonho
e do erro nos dá a chave para a história natural do estado de vigília e da inteligência.
(79,i.p.15 e II p. 51)."
III
O CONTROLE

1 - A propósito do controle dos conceitos

[durante] nossa pesquisa, nós encontramos, várias vezes, o problema do controle;

o momento é chegado de examiná-lo mais sistematicamente.

A exigência, segundo a qual nossas afirmações devem poder ser controladas por

ações realizáveis, impõe limites à aplicação dos conceitos. Para que uma afirmação à

aplicação seja controlável, é necessário que os conceitos que ela utiliza o sejam

igualmente. Mas o que significa tal exigência em psicanálise? Os conceitos como

transferência, resistência, continuidade, determinação, sentido foram, durante a exposição

de nossa metodologia, definidos levando-se em conta este princípio. Mas faltaria fazer o

mesmo no domínio dos conteúdos. Que a aplicação de princípios psicanalíticos reclamam

tal controle, sendo que a história dos conceitos de atividade e passividade na

determinação do caráter sexual prova amplamente.

Na literatura analítica, [atividade e masculinidade] são freqüentemente

justapostos e colocados em correlação. Nós lemos, por exemplo: "nós nomeamos ativo o

indivíduo [que agride] seu objeto sexual, o conquista, e passivo o que se abandona a seu

parceiro. É universalmente conhecido que, na vida amorosa, os primeiros atos são

geralmente efetuados pelo macho enquanto que nas fêmeas observa-se, em geral, um

comportamento passivo (59)".

Neste propósito, convém considerar isto:

O sinal de igualdade posto entre ativo e masculino pode muito bem ser explicado

por certas idéias preconcebidas: é assim que em certas épocas a moral sexual deseja que

o macho seja ativo e a fêmea passiva. Mas é sempre a um certo tipo de atividade que se

pema e a qual não diz respeito à atividade sexual específica da fêmea, a que se manifesta,

por exemplo, na coqueteria ou na sedução. Por outro lado, muitos homens querem, por

uma angústia neurótica, que a mulher tenha um papel puramente passivo no ato sexual.
Ora, uma vez livre (débarassé) de sua idéia preconceituosas, determinadas pela história

cultural ou individual, somos obrigados a admitir que a atividade da fêmea tem um

fundamento biológico (V. por exemplo, a "apresentação" da macaca 67); que a tendência

inegavelmente ativa da mulher à sedução se faz presente exatamente na situação analítica

e que, enfim, a pretensa passividade da mulher no ato sexual repousa sobre uma confusão

conceitual: identificamos atividade e penetração, passividade e recepção. Na realidade, o

que se opõe aqui é uma vontade ativa de penetração a uma vontade também ativa de

recepção.

Comparando-se a atividade do homem à da mulher, "il faudait" entender os

critérios que permitem medir a atividade. Dirigir-nos-emos à atividade muscular? (à sua

intensidade, ao seu desenvolvimento, à sua duração?) Ao resultado obtido? À reflexão

intelectual investida no ato? À submissão de um vontade estranha à sua? Ao grau de

iniciativa? Omitir um ou outro destes pontos de vista, já é dar prova de preconceito.


Em lugar de procurar medir o grau de atividade, poderíamos tentar recorrer a uma
definição precisa do conceito. Assim é que Freud propõe atribuir ao homem um instinto
que visa um alvo ativo e à mulher um instinto que visa um alvo passivo, quer dizer, ao
primeiro a tendência a amar e ao segundo a tendência a ser amado. Mas me parece que o
desejo de amar e o de ser amado se apresentam sempre sob a forma de amálgama e que
toda tentativa de isolar um do outro vai ao encontro dos fatos. Por Bergler e Eidelberg
"ser ativo" significa "dar" e "ser passivo" significa "receber" (61); o que leva a uma nova
confusão, pois se o homem "dá" seu pênis à mulher, esta por sua vez "dá" suas partes
genitais ao homem, ou "se dá" a ele. Por outro lado, o homem "recebe" a mulher
tomando-a em seus braços . Ainda que esta última definição se fundamente sobre uma
aparência puramente material da qual convém desconfiar em psicologia].
Bem entendido, pode-se, por uma espécie de vontade de definição, igualar
masculino e ativo, mas condena-se a complicações inúteis (v. por exemplo, [ o papel
passivo da bocaque mama (62), na maternidade, é a masculinidade da mulher que se faz
valer (59)) . No entanto, as considerações aqui expostas não dizem respeito somente à
definição. Não penso que a análise de uma mulher terá sucesso, afirmando-lhe que ela é
"masculina", quando ela é ativa.
Igualmente, propomo-nos a não aplicar as noções gerais de atividade e
passividade na definição do caráter sexual, mas recorreremos, antes, a conceitos
descritivos mais concretos que variam de um fenômeno a outro. No entanto, esta
proposição é puramente negativa.
Avançaremos no que há de verdade positivo nas nossas proposições:
1 - vigiar para que não haja ambigüidade nos conceitos utilizados. Num sentido
amplo (dans une usage laxist) - e Freud já atraiu nossa atenção sobre isto - entende-se,
freqüentemente, por complexo de castração os fenômenos de separação de ordem não
genital. Propus designar estes últimos pela expressão "modelo de complexo de castração"
(63).
Por projeção, entende-se, por um lado, o fato que as causas de um acontecimento
devem ser procuradas não no Eu próprio mas fora dele. (Por exemplo: eu o odeio porque
que ele me persegue, ao invés de: eu o odeio porque eu o amo e não devo amá-lo). Por
outro lado, fala-se de projeção quando alguém reconhece um estado interior no mundo
exterior (por exemplo, estou triste e tudo está cinza ao meu redor). Ter-se-ia interesse de
dar o nome de objetivação projetiva [éjective] a esta segunda forma de pensar.
O termo Supereu, ele mesmo, dá lugar a interpretações diferentes. Algumas vezes,
atribui-se somente ao sexo masculino a origem do Supereu. Entretanto, a teoria geral das
neuroses (tanto a dos homens como a das mulheres) opera igualmente, com o conceito do
Supereu.
De acordo com a definição de Freud, o Supereu aparece no período de declínio do
conflito do Édipo. Fala-se, entretanto, de um Supereu pré-edipiano. Freud contesta a
existência geral de um Supereu; segundo ele, a maior parte das pessoas segue a moral
como "medo social" (64). Contudo, o Supereu figura sempre nos esquemas do psiquismo.
Eu proponho falar-se em um pseudo-Supereu (65), cada vez que a instância moral

não faça parte integrante da alma e que as exigências morais não apareçam que pela

integração do Ego próprio no Ego coletivo.

Por identificação, entende-se três coisas diferentes: uma representação tópica, a

atribuição de um lugar ao lado de outros lugares e uma união (débordante) [invasiva,

transbordante] (24).

Certos autores, dos quais eu mesmo, têm sempre insistido sobre a distinção entre

as diferentes acepções de instinto nas denominações instinto de conservação, instinto

sexual, instinto de nutrição, de um lado, instinto de vida e instinto de morte, de outro.

Deve-se evitar tal confusão.

Parece-me útil voltar à biologia e à psicologia animal. Whitman (1898) exprime-

se assim sobre este assunto: "deve-se considerar instintos e órgãos de um ponto de vista

filogenético. Este é o ponto de partida das pesquisas modernas sobre o comportamento e

a concepção de instinto que lhe é própria, (para um resumo da situação, V. Tinbergen,

1952). Tem-se a certeza de númerosos aspectos controversos da noção de instinto se

explicavam pelo fato de que ela continha elementos diversos. Craig, aliás, decompôs a

noção de instinto e isolou os seguintes elementos: aparecimento de energia específica

quanto à sua reação, comportamento de desejo instintivo [apetência], [situation d'issue],

ab-reação. Este último elemento foi designado por Lorenz sob o nome de movimento de

instinto, mas ele pode, por sua vez, comportar elementos diversos tais como reflexos,

taxas, etc. Ele é independente da experiência; é um "ato consumatório", uma fase

estereotipada... Sua primeira realização revela uma ação condicionada pelo instinto

naquilo que o autor chama o comportamento de apetência. Este comportamento visa

deixar se desenrolar a ação final considerada (movimento de instinto), que deve

apaziguar o instinto... Como não se pode reconhecer o instinto a não ser pela sua

manifestação, seus efeitos sobre o comportamento do animal, nós não dispomos ainda de

uma definição satisfatória de sua essência (142). "Esta descrição parece justificar levar-se
em conta a noção de libido enquanto energia instintual da pulsão sexual, e mostra, ao

mesmo tempo, a audácia que há em se trabalhar com as noções de pulsão de vida e pulsão

de morte (que dever-se-ia chamar "mortido" segundo Federn, 88). A palavra pulsão

deveria designar um comportamento e a palavra instinto a força, exterior à pulsão, que a

alimenta.

Sublinhemos a este propósito que a existência de um instinto de segurar no

homem (90) é, hoje em dia, universalmente aceito. "Se admitimos que os macacos

antropóides são nossos parentes mais próximos no reino animal, somos levados a

considerar a capacidade da criança a se dependurar com a ajuda de seus braços como uma

sobrevivência da época em que nossos ancestrais seguravam seus filhotes sobre si como

fazem hoje os macacos antropóides. Assim, o fato de se agarrar é manifestamente uma

reação inata... Da mesma forma, a capacidade do recém-nascido de se agarrar com suas

mãos, não é mais que uma propriedade familiar a de uma criança que, com seus braços,

se agarra à sua mãe (Burton, 143)".

Não convém, em psicologia humana, interpretar os termos instinto e pulsão de

uma forma mecânica como se faz na psicologia dos animais inferiores. "Para a

construção de seus ninhos ou de suas casas, os pequenos animais [possuem tanto um

modo de comportamento fixo como uma habilidade que emerge pouco a pouco, que

segue uma evolução mais ou menos estável], que difere de um animal para outro, que só

aparece gradualmente e se aperfeiçoa com a experiência (143, p.75 - 76)".

O que vale para os pequenos animais vale igualmente para o pequeno homem [le

petit de l'homme], onde não se pode perder de vista a longa evolução, nem sua

dependência diante das estruturas sociais.

No que concerne à pertinência da agressão ao domínio dos instintos, o afeto da

agressão na qualidade de instinto, derivado do instinto de agarrar, deve ser distinguido do

instinto de agressão propriamente dito, desencadeado pela presença de um rival.


2. Mas a aplicação não ambígua de conceitos é um dos trabalhos fundamentais do

trabalho de controle. É necessário, além disso, exigir: a) que o conceito seja provido ao

menos de uma marca específica controlável; b) que seja conhecida a constelação

psíquica, as circunstâncias psíquicas anexas que acompanham constantemente a

presença do conteúdo conceitual em questão.

Desta forma, no caso de projeção e da [objetivação projetiva], uma tal marca

específica, verificável é, para a primeira, o trabalho sobre as causas do acontecimento e

para a segunda a profusão dos fenômenos internos sobre os externos. As circunstâncias

anexas são, para a projeção, uma orientação olfativa e térmica complexa e para a

objetivação projetiva, uma orientação térmica simples. No caso da projeção paranóica,

pode e deve-se sempre [ter sucesso na produção de prova de uma orientação olfativa e

térmica dominante]. (O que é bem demonstrado no caso Schreber), (24).

[Para o que há de verdadeiro no conceito do Supereu], as possibilidades de

controle são muito mais complexas em razão da estrutura desta noção. Freud encontra no

verdadeiro Supereu uma instância moral interior, semelhante ao Eu, interior no sentido de

que esta instância não é equivalente ao medo do castigo exterior. O verdadeiro Supereu

deve possuir as propriedades de um sistema psíquico. Esta caracterização já contém uma

indicação de direção que tomará a verificação. Será indispensável, sempre, poder provar

que a ação, a influência das ordens em questão é independente da presença de uma

pessoa exterior que inspire o medo e o que age não é um conteúdo psíquico, mas um

sistema.

O primeiro critério toca no complexo problema psicológico do levar-se em

consideração o não-presente. Seja um sinal o qual a emissão indique a presença ou o

acesso a um alimento; se este permanece escondido durante algum tempo, o animal não

se colocará necessariamente à sua procura (66). Os macacos que contraíram todos os

tipos de hábitos comportam-se como estes, na presença do macaco-chefe que os domina

ou do basta que o indivíduo dominante esteja ausente para que os hábitos adquiridos
sejam prontamente abandonados. Os macacos, que não querem se separar do cadáver de

seu parceiro amoroso ou de seu filho, não mostra nenhum sinal de apego a estes seres

desaparecidos, uma vez que a separação aconteceu violentamente. As criancinhas não

choram durante a ausência da mãe, mas no momento da separação e do reencontro. Todos

estes fenômenos se confrontam com o fato de que o inconsciente não conhece a negação.

Por conhecer a fidelidade ao não - presente, falta dar mais um passo na evolução. De

acordo com Freud, esta direção de evolução está relacionada com o destino da angústia

de castração; o que é compreensível, quando se pensa que a castração tem estreito

relacionamento com a negação e que o evitamento de uma situação, suscetível de

conduzir à castração o sentido da angústia, vai de par com uma atitude que tende a

valorizar a falta. Porém, considerar esta direção da evolução como ligada à perda do

objeto ele mesmo e não à angústia de castração, quer dizer ao desapego especial do

objeto, facilitaria consideravelmente o exame de todo o problema do Supereu (67). Esta

evolução, que conduz ao Supereu em respeito ao não-presente, se realiza paralelamente

com o desenvolvimento do medo e do respeito aos mortos. A experiência mostra, com

efeito, que a presença constante da pessoa a ser respeitada (do pai) entrava a formação do

verdadeiro Supereu, se bem que a freqüente ausência deste a favoreça. ( 5 )


O segundo critério, mas que não é independente do primeiro, concerne à

influência exercida por um sistema próprio. A existência de um sistema é legitimamente

demonstrada pela especificidade de sua evolução histórica, por aquela do material a ser

trabalhado e por aquela de seu modo de trabalho. O Isso é o sistema psíquico original, o

inconsciente é um sistema: procedente do precedente pelo recalcamento, o pré-

consciente, um sistema criado pela evolução dos conceitos de linguagem e de tempo e o

Eu, um sistema constituído a partir das percepções.

(
5) Acontece que, secundariamente, a ausência seja utilizada para retroativar imagens
internas através das formações do tipo alucinatória (Representação de Deus).
O Isso trabalha com o turbilhão dos instintos, o inconsciente com - entre outros -

as direções encurvadas, o pré-consciente com o material verbal e o Eu com as

representações das percepções.

O Isso e o inconsciente trabalham de um modo atemporal nos processos

primários, o pré-consciente nos processos secundários e temporariamente ordenados,

enquanto que no Eu as sensações de prazer e de desprazer são decisivas. Qual é o lugar

do verdadeiro Supereu nas definições deste tipo? Freud nos indica - e de um modo

verificável - o caminho histórico de sua evolução. O material que se trabalha comporta os

valores ideais da moral e da lógica. Seu modo de trabalho específico - e aqui, nos

juntamos o critério precedente - é a valorização do não-presente, quer dizer, do ponto de

vista do Isso - do nada. A exigência lógica da não - contradição consiste, na realidade, na

valorização de todos os enunciados [Y], aí compreendidos os que são ausentes. Do seu

lado, a moral comporta a valorização dos atos realizados depois de muito tempo. Os atos

repreensíveis são também os atos que não querem se apagar, que não podem ser

esquecidos.
Ao lado destes critérios específicos e controláveis do verdadeiro Supereu, pode-se
indicar circunstâncias que se anesas manifestam com um vigor particular durante a
análise. Trata-se de um critério do caráter moral no qual parece se encarnar uma idéia de
Bálint que concebe as qualidades do caráter como as qualidades do modo de amar (32).
Aquele que desenvolveu apenas um pseudo-Supereu no seu psiquismo pode [manifestar-
se] facilmente uma pessoa imoral, mas o que é dirigido para um verdadeiro Supereu
experimentará a repugnância ao se relacionar com pessoas moralmente repreensíveis.
Na verdade, em razão do caráter inconstante do sistema, os fatos reais são mais
complexos que a breve descrição que acabamos de dar possa deixar supor. Por exemplo,
o sentimento de culpabilidade pode pertencer tanto ao pseudo-Supereu quanto ao
verdadeiro Supereu. Dois tipos de distinções importantes devem ser feitas na estrutura
destes sentimentos de culpabilidade. O Eu coletivo não conhece ainda o pecado absoluto,
porém o verdadeiro Supereu define as normas absolutas; ele se exterioriza por símbolos
auditivos e símbolos de dor, enquanto o pseudo-Supereu é, antes, submisso a uma
orientação olfativa e térmica. O pseudo-Supereu não conhece a redenção do desenrolar
temporal, enquanto que a verdadeira consciência moral é sensível ao tempo,
especialmente nas noções de contrição e punição
2. Sobre o controle da pesquisa em psicanálise.
O controle da pesquisa em psicanálise pode se efetuar de duas formas [approches]
diferentes: de um lado, pelo trabalho de interpretação prático-terapêutico, e de outro, pela
estrutura científica.
Na interpretação prático-terapêutica, a precisão do procedimento empregado

poderia ser verificado pelas seguintes provas:

1. A confirmação dos eventos reconstituídos. A precisão de uma interpretação

pode ser confirmada pelo fato de que o analisando admite que as idéias "descobertas"

pela análise realmente aconteceram ou ter realmente estado na situação reconstituída.

(Por exemplo, na interpretação de um sonho, o analista reencontra uma idéia dissimulada

pelo paciente, a saber que qualquer coisa foi "divinamente boa" e o paciente se recorda,

então de ter realmente escutado esta expressão, na véspera, em sociedade.) Pode também

ter confirmações exteriores, por exemplo, por membros da família. No entanto, não é

somente a família do analisado que pode confirmar tardiamente o evento reconstituído.

(Contudo, mesmo se qualquer coisa é negada por todos que o cercam [par l'entrourage],

pode se tratar de um recalcamento coletivo de todos os membros da família!) O acaso

pode conduzir a que a precisão de uma hipótese interpretativa seja reconhecida de um

outro lado. Evoquemos, também, a inversão de um conjunto de fatos, por exemplo, no

momento em que o analista toma conhecimento [par l'entourage] do analisando um fato

de sua infância o qual o analisando afirma jamais ter tido conhecimento. É assim que eu

tive em análise um menino apresentando sintomas compulsivos, do qual a madrasta me

contou, em grande segredo, que ele a tomava por sua mãe e que ele não sabia nada de sua
verdadeira mãe, morta quando ele era ainda bebê. Ela me pediu guardar segredo. Porém,

os sonhos, as transferências e os fantasmas da criança mostraram, com nitidez, que ele

conhecia - [não seria isto apenas inconscientemente] - a verdade e o piedoso mentem. Eu

formulei desde o início, e com muita precaução, as interpretações que caminhavam neste

sentido, até o dia que a criança revelou, ele mesmo, sua dúvida concernente a uma

certidão de nascimento que esconderam dele. As lembranças que datavam de pequena

infância indicavam, igualmente, que a criança considerava sua madrasta como uma

estranha. Além disso, este caso fornece uma excelente ilustração de minha concepção,

exposta em outra parte - da gênese das neuroses compulsivas (65).

2. O surgimento continuado de categorias psíquicas até a dissimulação. -

Trata-se de uma parte da reação psicanalítica positiva mas nós sabemos, graças a Freud,

que existe também uma reação terapêutica negativa, quando uma de nossas descobertas

de interpretação encontra uma série de resistências. Com efeitos, a exatidão de uma

interpretação não é controlável imediatamente, mas somente muito tarde, ao fim de um

tempo mais ou menos longe. Só então ter-se-à uma idéia do todo do desenvolvimento da

análise.

Não se deve perde de vista o fato de que - mesmo no caso de uma interpretação

destinada a controlar o desenvolvimento do trabalho analítico - este controle pode não

abarcar a totalidade, mas somente uma parte do conteúdo da interpretação. Seja dada a

seguinte interpretação: na representação da criança, a mãe possuía um pênis. Esta

hipótese permite, talvez, obter bons resultados, porém a força que prova o controle

concerne somente à representação - ela mesma - e não sua natureza original, visto que a

continuação mostra claramente que os órgãos genitais da mãe eram muito claramente

distinguidos dos do pai, principalmente, graças às sensações olfativas. A representação da

"mãe fálica" não era, pois, que uma medida de defesa (144).
3. A cura. - mas este critério deve ser manuseado com prudência; eu já indiquei, a

propósito da analisibilidade das doenças orgânicas, que a conexão entre cura e

analisabilidade está longe de ser simples.

Não se deve, com efeito, perder de vista a possibilidade de uma cura espontânea -

com melhora ou, ao contrário, agravação das circunstâncias exteriores (Freud)-, ou de

causas devidas às intervenções estranhas à análise ( 6 ) e, enfim, o desaparecimento de

sintomas pode ser senão um engodo produzido ao acaso pela resistência (cf. o capítulo

consagrado às resistência que evitam uma verdadeira e profunda intervenção). Analista e

doente podem ser vítimas desta aparência se, ao fim de dois ou três meses, o doente se

sente livre de seus sintomas. Porém, se o analista não se deixa enganar e se o trabalho

continua, eles não tardarão a perceber, um e outro, que eles iriam construir sobre a areia.

Todos que tenham compreendido a verdadeira natureza da psicanálise sabem que alguns

meses de trabalho são, em geral, insuficientes para uma revelação integral da alma.

Para saber exatamente o que é a cura psicanalítica, a que pode confirmar a

exatidão de nossas interpretações, convém expor, mesmo que brevemente, as outras

intervenções que, durante a duração da análise, são suscetíveis de afetar o doente:

a) A primeira, a mais evidente, é a sugestão. Por seus estímulos, suas

interpretações submetidas a várias reprises, por seu cuidado em conservar a atmosfera de

base e sobretudo no momento da transferência dos afetos positivos, a analista pode,

evidentemente, favorecer o aparecimento da sugestão. Porém, ele quer, ao mesmo tempo,

limitá-la ao lugar e extensão; a força sugestiva deve servir unicamente para contribuir no

domínio das resistências, e não deve, em nenhum caso, permitir ao analista reivindicar

um prestígio de hipnotizador ou de pai (ou de mãe); se a despeito de suas precauções,

este faz sua aparição, a analista o considerará como uma transferência e se esforçará para

neutralizá-la. Além disso, o analista se guardará de prometer, ao fim do tratamento, a


6
( ) o que, apesar das aparências, não pode ser indiferente ao doente (o essencial, é que
eu seja curado, poderia ele dizer). De fato, as intervenções estranhas à análise podem
chegar a curar as neuroses, mas a análise, que investe contra causas profundas, é o
tratamento mais radical que pode ser concebido.
certeza da cura - ele não pode fazê-lo, se é sincero consigo mesmo - ou impetuoso, visto

que, se ela pode efetivamente sobrevir em qualquer mês, nada garante sua eficácia.

b) O efeito educador. Só o fato de melhor se ver, de melhor conhecer seus

desejos recalcados e de analisar as "esquisitices" de seu próprio comportamento permite

melhorar o controle sobre si mesmo, e com o tempo, melhor compreender [o entorno], de

tornar-se mais indulgente para com tudo que é humano. Tudo isto toca em uma

diminuição do número e da intensidade dos conflitos; o conhecimento do domínio

recalcado permite ao indivíduo retificar seu comportamento, suas concepções, toda sua

orientação. (Assim, o jovem que, quando entrou em análise cria - em razão de seus

recalcamentos - que o coito era anal, verá se modificar toda sua atitude para com a vida

sexual, se ele chega a substituir suas idéias errôneas pelas corretas). Ver alguém que se

ocupa de você, escuta-o sem procurar sancioná-lo, mas tentando compreendê-lo, melhora

a estima que o analisado tem por si mesmo - e, por outro lado, o doente, o qual o amor

próprio está hipertrofiado, aprende a modéstia afrontando objetivamente suas próprias

misérias e imperfeições de ordem psíquica.

O analisado será tentado a submeter seus ideais a um exame crítico, ele será,

assim, levado a entrever o elemento humano no que ele havia divinizado. Ele descobrirá,

talvez, que uma dolorosa falta de sinceridade penetra sua vida, visto que seu irmão

primogênito, que ele amava calorosamente, e que lhe servia de modelo, freqüentemente

faltou de franqueza, o que o paciente não queria jamais confessar a si mesmo. Porém,

procedendo assim, ele poderá fabricar novos ideais, mais próximos da vida.

A situação analítica dada pela transferência e que termina na construção de um

novo Supereu, graças à imagem do analista, conduz" ... a uma pós-educação do neurótico

e pode retificar certos erros, os quais os pais foram responsáveis na educação dada. É, por

outro lado, sobre este ponto que convém não medir a influência que se teve. Por mais

tentado que possa estar o analista de tornar-se o educador, o modelo e o ideal de seus

pacientes, qualquer desejo que ele tenha de os moldar à sua imagem, deve se lembrar que
este não é o objetivo que ele procura alcançar na análise mesmo que falhe na sua tarefa,

deixando-se conduzir nesta inclinação. Agindo com sorte, ele somente repetirá o erro dos

pais, onde a influência sufocou a independência da criança e substituirá a antiga sujeição

por uma nova. O analista, desde que ele se esforce por melhorar, por educar seu paciente,

deve sempre respeitar a personalidade deste. O grau de influência do qual ele poderá

legitimamente se servir deve ser determinado pelo grau de inibição no desenvolvimento

atual do paciente. Certos neuróticos permanecem a tal ponto infantis que convém, mesmo

na análise, tratá-los como crianças (75, p.43)".

4. Emcorajamentos que visam as atividades - Nós separamos esta intervenção da

que nomeamos "sugestão", pois ela revela uma importância particular na marcha da

análise. Sua teoria e sua prática foram elaboradas por Ferenczi; este tomou como ponto

de partida uma experiência freudiana de analista: ele chega, durante a análise, a suscitar

uma rápida produção do material analítico, [il faille] em provocar diretamente os

sintomas (40). Por "atividades" Ferenczi entende os comportamentos contrários ao

princípio do prazer e que vão para além da luta contra as resistências; por exemplo, a

suspensão - provisória - de um hábito que, na vida, causa o prazer. (Para evitar o

emprego polissêmico do termo "atividades", temos que sublinhar que a atividade no

senso ferencziano não diz respeito à intervenção precoce e artificial do analista nas

interpretações e não demanda a este nenhuma distorção da sinceridade.)

O encorajamento que visa as atividades, trabalhando com a dinâmica da libido,

constitui uma transição na direção das influências especificamente psicanalíticas,

donde o essencial pode se resumir como se segue:

1. Mudanças obtidas na estrutura psíquica: as resistências tendo sido

suprimidas, o inconsciente e o consciente não representam força antagônicas. Este

processo já foi estudado no capítulo consagrado à ab-reação dos afetos. Graças à análise,

o Eu cessa de emitir sinais constantes de perigo (tais como a angústia ou a vergonha).


Não se pode, igualmente, agir sobre a oposição de um Supereu muito fraco ou muito forte

aos outros setores do Eu e regular, assim, a intervenção do sentimento de culpabilidade.

O que é específico à psicanálise, é que estas mudanças se realizam lutando-se

contra as resistências, trabalhando contra o princípio do prazer, em outros termos,

tolerando as experiências desagradáveis e dolorosas. Eu tentei definir os pontos de vista

que, a partir de lá, conduzem à gênese das formações psíquicas mais elevadas (70).

Nunberg que, na cura, atribui um papel importante à colaboração sintética dos três

sistemas, crê também que a cura deve muito à capacidade, adquirida pelo Eu no curso da

análise, de suportar o desprazer (71). Na minha opinião, estes dois aspectos da cura são

estritamente ligados. É com a capacidade de suportar o desprazer que a síntese (que

significa aqui também a continuidade jamais interrompida da alma) será reestabelecida.

2. Mudanças obtidas na economia libidinal: a análise faz o narcísico ter acesso

à normalidade do amor objetal e canaliza em direção ao reservatório da libido genital os

instintos parciais mantidos fortemente em razão da regressão (por exemplo, o sadismo na

neurose compulsiva ou o masoquismo no moralista mórbido). Os instintos parciais aos

quais é impossível satisfazer podem, assim, ser sublimados - por exemplo, uma atitude

sádica pode dar lugar à firmeza do caráter e a uma atenção acurada afinada às exigências

morais. O neurótico cessa, assim, de ser insuportável, sem consideração por seu próximo,

vê suas ambivalências se atenuarem e ele mesmo tornar-se mais apto ao amor, mais digno

de ser amado. Uma condição importante desta evolução é a renúncia que deve

caracterizar suas declarações afetivas ao analista. Mesmo as identificações em relação ao

analista dão lugar a uma relação mais independente. O analista deve tornar-se alguém

independente em relação ao seu grupo.

A propósito das duas mudanças das quais acabamos de falar, convém levar em

conta a constituição inata do paciente. Uma modificação do Eu ou dos instintos pode

intervir mais rapidamente se o elemento patológico repousa sobre uma influência

traumatizante e menos rapidamente se é devida a um dado constitucional (115, P. 64-66).


Falta, igualmente, levar em conta a força do instinto que alimenta o conflito: "se, por

doença, esgotamento, etc, a força do Eu diminui, os instintos até então dominados com

sucesso podem reivindicar o direito à fala (115, P, 69-70". Segundo Freud, a ação própria

à terapêutica psicanalítica consiste em uma correção ulterior dos processo primitivos de

recalcamento, o que coloca fim à predominância do fator quantitativo do instinto. É

indiferente saber se o sucesso terapêutico é devido à iluminação da influência da força do

instinto ou à elevação da força de resistência das inibições, de modo que o analisado

disponha de meios, depois da análise, "de responder às exigências superiores às quais ele

estava apto a satisfazer antes da análise, ou em ausência desta (115, P. 71-72)".

As unidades primitivas do inconsciente devem ser "integradas de novo no sistema

superior: uma nova adaptação deve se realizar entre as necessidades do instinto e a

realidade exterior e, neste processo, o Eu tem um papel de mediador. Entretanto, o

estabelecimento destas novas relações levam à destruição dos elementos antigos - ou, em

outros termos, os sintomas ou esquemas de comportamento fixos e que correspondem às

fases anteriores da evolução do Eu. (Alexander, 110, p. 91)".

3 - Mudanças no Supereu. O analisado renuncia a seus desejos irrealizáveis e se

desliga dos objetos de libido e de ódio que perderam todo senso real e não constituem

mais que pontos de fixação inconscientes. O Supereu torna-se mais tolerante e este efeito

não é passageiro, é durável. A análise das resistências está a serviço deste objetivo da

terapêutica (Strachev, 127, p. 69-70).

Para resumir, digamos que passando pela vitória sobre as resistências e as

transferências, o trabalho analítico obtém seu melhor resultado se, ao fim da análise, o

analisado declara ter "sempre sabido" o que aprendeu (no que ele tem razão, já que nada

aprendeu que o seu inconsciente não soubesse) e se, à sua vista e na vista do seu grupo, a

análise fez dele "um outro homem". Apenas, este outro homem não difere em nada do

qual ele era antes da análise, ele ama a mesma pessoa que antes, à condição que ela lhe

convenha, mas ele sabe também se separar daquela à qual estava ligado apenas pela força
da inércia; ele sabe, também, reconciliar-se consigo mesmo e com seus adversários,

estando entendido que era ele mesmo a fonte de sua diferença, ele não deve renunciar a

seus ideais nobres, na medida que eles não sejam irreais e saberá com mais força e

eficácia lutar por sua própria felicidade e pela dos seus.

De todo modo, a psicanálise só pode dar o que ela tem.

"A conversão, quer dizer, a substituição dos recalques moderados por uma mestra
segura aprovada pelo Eu, só pode ter sucesso parcialmente; certas partes do antigo
mecanismo não podem ter sido demolidas pelo trabalho analítico... O que não é sempre
possível assegurar suficientemente as bases da dominação dos instintos. Deve-se levar
em conta a viscosidade da libido, uma libido muito móvel pode rapidamente aniquilar
todo sucesso terapêutico (115, p 73-74, 87) (15, p. 73-74, 87)."
E Meng coloca a questão: O que é eficaz? A que se deve dar prioridade? Nós
pensamos que são eficazes, antes de tudo:
1 - As relações inter-humanas conscientes e inconscientes da situação analítica.
2 - O efeito-choque das descobertas no "Aha-Erlebnis" no processo de
conhecimento de si.
3 - As experiências produtivas de contato, de distância e de tato.
4 - A tolerância relativa às faltas e às realizações.
5 - O comportamento exemplar do terapeuta.
6 - Uma nova atitude com relação à vida e a morte.
7 - A possibilidade dada à supremacia do espírito.
8 - A capacidade de aceitar esta palavra de Nietzsche: "Deve-se ter a coragem de
admitir o que se sabe". Nietzsche estima: "mesmo os mais corajosos dentre nós raramente
têm a coragem de admitir o que eles sabem". "Lá, onde havia o Isso, deve haver o Eu
(Freud)".
9 - Compreender a verdade desta palavra de Freud: (O Eu é o Isso) "Para o Eu,
viver é ser amado pelo Supereu que, aqui, é também representante do Isso".
10 - Remanejamento das relações inter-humanas. Na transferência realizam-se

processos de transformação condizentes a um novo Supereu.

11 - "Nós (analista e paciente) aprendemos a sofrer e a amar ativamente, ao

mesmo tempo, lá onde, em outro tempo, nós só formulávamos julgamentos. (Meng, 145,

p. 31-32)."

Nós designamos como segunda direção do controle a verificação da estrutura

científica. O que, no largo senso do termo, equivaleria a uma crítica científica da

psicanálise. De quais pontos de apoio dispõe uma tal crítica, sendo entendido que o

controle prático, que está fora de sua competência, não conta ou deve ser considerado

como regrado?

Uma das visões desta crítica consiste na exposição da metodologia com a tarefa

especial de revelar as lacunas e contradições na construção dos métodos e no inventário

dos conceitos. Em que medida o método analítico, é ele suscetível de ser exposto

sistematicamente, sem lacunas enormes e sem contradições agudas na sua construção? A

presente obra, ela mesma, poderia constituir um elemento de resposta a esta questão. Em

todo estado de causa, a crítica não deve perder de vista que um método sem lacunas e

sem nenhuma contradição só pode ser de uma ciência morta. A ciência deve progredir

antes mesmo que sejam resolvidos todos os problemas práticos e teóricos - ora, estes

progressos não se realizam segundo as regras dos selogismos sempre.

Outro ponto de crítica consiste em procurar os objetos de controle. Tem-se tais

objetos se considera os resultados obtidos por simples observação (a) ou graças a um

método de investigação não analítico, mas pertencente as ciências

naturais (b).

(Ad a): a psicologia animal parece dispor de tais resultados. Entretanto, para que

eles sejam próximos dos resultados analíticos, é necessário que esta psicologia animal se

ocupe dos animais superiores, quer dizer da psicologia dos macacos. Em muitos dos

meus estudos, estabeleci paralelos e também algumas diferenças entre os resultados da


análise e certos resultados da psicologia dos macacos. Estas confrontações mostram

como as conclusões da psicanálise concernentes à teoria da sexualidade, a psicologia do

Eu e das massas, os fatos do complexo de Édipo e do complexo de castração, os passos

primitivos do inconsciente se manifestam abertamente no psiquismo simiesco e nas

comunidades dos macacos. A psicologia da criança, quer dizer, uma observação

minuciosa e sistemática do psiquismo infantil e de suas manifestações, pode oferecer uma

possibilidade de controle ainda mais importante se, de um lado, ela é isenta da influência

das interpretações analíticas, o que raramente é o caso nos dados da literatura e, de outro

lado, se as manifestações do psiquismo infantil não estão submissas a uma influência

anterior do grupo impregnado de pensamentos analíticos. Porém, mesmo se no que

concerne ao tratamento do material, a psicologia da criança, isenta de todo preconceito, é

indispensável á psicanálise, ela representa, do ponto de vista do método, um terreno de

observação menos favorável que a psicologia dos macacos. A etnologia representa um

material complementar e comparativo indispensável, mas não pode oferecer um controle

de base, sobretudo se, como no caso de Róheim, ela trabalha utilizando o método

analítico.

As b) Com seu princípio fundamental da prioridade dos instintos, a fisiologia do

ser humano impõe tarefas cuja crítica poderia beneficiar. Nós não pensamos somente na

pesquisa no domínio da secreção química interna, naquela Freud via uma das bases

futuras da teoria analítica. Uma pesquisa orientada em direção à anatomia cujo plano

teria podido ser traçado por Johannes Müller ( 7 ) e uma pesquisa em fisiologia nervosa

cujas bases teriam sido efetivamente lançadas pelo mesmo Müller ( 8 ) são chamadas a

7
( ) Müller encontrou - mas talvez estaria ele enganado? - um substrato anatômico
específico da credibilidade nas artérias periféricas. Em todo estado de causa, a crítica
dirigida contra ele não levou em conta a existência das zonas erógenas.
8
( ) Cada um pôde experimentar o incômodo que se verifica de não se compreender o libido a
não ser em plano conceitual, já que nós não dispomos de nenhum método capaz de provar a
existência objetiva desta mesma libido. No seu manual consagrado à fisiologia do homem,
Tomo II. 1838, P. 497 - 498, Johannes Müller escreveu: "Se a sensação das vibrações
aumenta e tem por sede as partes excitáveis do corpo como, por exemplo, os lábios, ela
pode tomar a forma do estímulo que produz a sensação de cócegas, como se aproximássemos
dos lábios um diapasão vibrante. Obtém-se facilmente uma sensação análoga sobre a língua,
sempre por vibrações. Seria, então, possível formular a hipótese segundo a qual as
sensações de cócegas obtidas por outras vias, por contato, balanço, etc. e a volúpia,
clarear muitas coisas. "O futuro nos ensinará, esperamo-lo, a agir diretamente, com o

auxilio de certas substâncias químicas, sobre as quantidades de energia e sua repartição

no aparelho psíquico. Talvez nós descobriremos outras possibilidades terapêuticas ainda

insuspeitadas. No momento, contudo, nós só dispomos da técnica psicanalítica, isto

porque, a despeito de todas as limitações, convém não desprezá-la de maneira nenhuma.

(75, P 51)".

A psicologia experimental, trabalhando com os métodos das ciências naturais já

forneceu numerosas confirmações. (Schilder, Pötzl, Lewin, Ch. Fisher).

Mencionemos, rapidamente, que os Estudos de associação diagnósticas de Jung

(1906 - 1908) e os Diagnósticos psicológicos dos fatos (146) do mesmo autor, assim

como os Meus diagnósticos psicológicos dos fatos de Wertheimer - Klein (147)

mostraram que o processo de representação indo da palavra-estímulo à reação está

estreitamente determinado (149). Crosland demonstrou a mesma tese com mais método

(148). Symonds dava aos sujeitos de sua experiência a instrução de responder tão rápido

quanto possível. Ele sublinha que, na interpretação da resposta, os esclarecimentos

individuais são indispensáveis (149). Luria recorreu à hipnose para demonstrar que as

respostas são condicionadas de modo complexo (150). Desta forma, a psicologia

experimental pôde confirmar a exatidão do principal aspecto da psicanálise.

Para certas constatações, as estatísticas podem igualmente servir de instrumento

de verificação. Freud, ele mesmo, como foi indicado acima (III. 5. point 4.) recorreu a

isto à propósito de On bat un enfant. A hipótese, segundo a qual a componente sexual

despertada de boa hora era a componente sádica, devia ser confirmada pelo fato que os

estreitamente aparentadas da cócega, não devidas às oscilações de uma velocidade


determinada, de certos nervos do sistema nervoso. As sensações de cócega e de volúpia
podem se produzir em todas as partes sensíveis do corpo e, mais freqüentemente, nos órgãos
genitais, em menor quantidade nos seios femininos, sobre os lábios, sobre a pele e nos
músculos". Com efeito, pude observar nos recém-nascidos mamando que seus movimentos
compulsivos seguem um ritmo determinado, rápido, semelhantes às convulsões fibrilares. (Do
ponto de vista filogenético, este movimento dos lábios e da língua parecem corresponder
[au chattering] dos macacos, movimento que "faz parte integrante de toda atividade
amigável ou sexual (Zuchermann, Functional affinities, P. 69-70)". "Observa-se também nos
recém-nascidos, durante a mamada, uma certa separação dos dedos e dos dedões do pé,
atitude que aparece com uma certa regularidade e permite entrever o que pode ser o
movimento da libido (12)".
doentes que se entregam a este fantasma estavam próximos de neurose compulsiva, ainda

que um recalque tardio do sadismo desencadeou uma disposição a esta mesma neurose.

"Não parece que o resultado fornecido pelo exame clínico contradiz esta hipótese. Entre

as seis observações sobre o estudo aprofundado nas quais este curto estudo está baseado,

havia dois casos de neurose obsessiva: o primeiro muito grave, desorganizando toda a

vida do doente, o segundo menos grave, facilmente acessível à intervenção. Um terceiro

caso apresentava, pelo menos, alguns traços claros de neurose obsessiva. Certamente, o

quarto caso era uma simples histeria com dores e inibições e, no quinto caso, havia-se

recorrido à psicanálise somente por indecisões... Que esta estatística não nos [deçoive].

Toda predisposição não evolui, necessariamente, em direção a uma doença definida e,

além disso, nós devemos nos estimar contentes em explicar os fatos positivos, sem nos

crermos obrigados a precisar porque tal ou tal coisa não aconteceu (53, p. 348. Tradução

francesa de H. Hoesti)".

Existe, entretanto, um ponto fraco nestes cálculos estatísticos; nós ignoramos a

porcentagem de neuróticos compulsivos em relação ao conjunto das doenças de Freud.

Vê-se, assim, a que ponto é difícil estabelecer estatísticas prováveis, sobretudo se só se

dispõe de um pequeno número de casos. Eu estabeleci, eu mesmo, estatísticas mostrando

uma forte correlação entre dons musicais e inclinações à perversão (152).

Chassan se refere a estatísticas relativas ao sucesso terapêutico, que parecem

acentuar particularmente o processo de modificação durante o tratamento, sobre o passo

da intuição e sobre os sintomas que acompanham o fim da cura.

Pode-se, igualmente, submeter a um tratamento estatístico variáveis tais como a idade, o

sexo ou experiências do analista, e relacioná-los com o sucesso da cura (151, p. 25). Na

minha opinião, comparando-se estatisticamente os diferente procedimentos

psicoterápicos, faltaria distinguir entre os diferentes casos e só guardar como decisivos os

mais graves dentre eles (por exemplo, as neuroses compulsivas graves),


independentemente do fato que elas tinham sido, sim ou não, influenciados pelo

tratamento.

Não é por acaso se, falando do problema do sucesso terapêutico, Meng evoca

precisamente a neurose compulsiva. "O prognóstico depende em parte, escreve ele, da

ascendência do paciente (há numerosos psicóticos na família, a que tipo de constituição

pertence o paciente? etc. Cf. as (séries complementares de Freud) e também a questão

de saber se o analista é suficientemente perseverante. Durante uma conversação, Freud

declarou que, para ele, os neuróticos compulsivos eram os seres os mais cansativos. A

metade dos neuróticos compulsivos que já tratei se integraram na sociedade, sararam ou

viam seu estado melhorar". No que concerne os perversos, de acesso tão difícil, Meng

sublima: "Segundo minhas estimativas, a porcentagem de sucesso é mais alta que para as

outras terapias (145, p. 28-29)".

A propósito da crítica, convém não publicar que não se trata de uma crítica

objetiva a questão aqui. Porém cada um sabe a que ponto é difícil guardar objetividade

nesta matéria. Como sublinhou Freud muitas vezes, a crítica é influenciada pelos mesmos

fenômenos que os que impressionaram o analisado durante a análise. O Eu nascísico é

ferido não somente pelas agressões inerentes à análise, mas também por cada novidade.

A transferência positiva, como a transferência negativa das críticas aparecem como

julgamentos sejam "benevolentes e cegos", sejam rancorosos, os dois representantes dos

desvios em relação á atmosfera amigável de base que, só, é capaz de garantir o objetivo,

que é a vontade objetiva de compreender. Pode-se dizer igualmente da crítica rancorosa

que se manifesta pelas maledicências, os insultos, os ataques pessoais, mas também os

contra-sensos" ( 9 ) - e numerosas são as críticas que compreenderam mal a psicanálise!


Em psicanálise, nós somos habituados a considerar toda manifestação psíquica de
um ponto de vista histórico. Os seguintes extratos nos dão uma idéia da natureza da
crítica; antigamente: "Certos médicos loucos dizem que a semente deve elevar-se nos

9
( ) O mais propalado destes contra-sensos é o da "pansexualidade".
receptáculos adequados... Esta é uma das mais graves mensagens que os médicos jamais
proferiram..." "Os loucos são numerosos e difíceis de reconhecer..." (72). "A obra de
Harvey (excitatio de motu cordis et sanguinis in animalibus, 1628) desencadeou uma
verdadeira tempestade... Ataques e objeções chuveram de todos os lados, nos debates no
tom compassado como nas polêmicas as mais vulgares e a arma dos invejosos,
adversários de toda descoberta nova, não tardava a vir à recusa, afirmando que não havia
nada de novo sob o sol, que Salomão e Platão já sabiam tudo sobre a circulação do
sangue... apresentava-se de modo irônico como um dissecador de insetos, de sapos e de
outros répteis; seus colegas invejosos elevavam os ombros e declararam que ele estava
louco... (73)". Esta sorte de "crítica" não poupou a psicanálise tão pouco.
Donde vem este insulto, tão freqüentemente repetido, da loucura? É qualquer
coisa de novo em relação aos insultos habituais nos quais se gratifica a análise, ainda que
ela não seja totalmente desconhecida. Bem entendido, todos os que levantam idéias novas
são loucos... (v. o caso de J.R.Mayer) mas não é lá o que se pode chamar crítica
"objetiva".
Não é por acaso se este epíteto é tão freqüentemente empregado pela crítica
científica; para se descobrir as razões, basta volver os olhos sobre a evolução histórico-
cultural da crítica. Nos tempos antigos, uma instituição, aquela do "Bobo do rei" velou
para que se pudesse sempre dizer a verdade aos poderosos. ( 10 ) É esta atitude que é
sempre atribuída aos que dizem a verdade, são apresentados sempre como "bobos".
Enunciar a verdade, indicar logo após um gesto que em realidade "é o louco que fala
assim", que não há lugar para escandalizar-se, mas que convém dar livre carso (catártico)
ao afeto resplandecente de rir, a fim de não expor um lugar no inconsciente a esta recente

10
( ) O Arlequim de M. Möser escreve: Contanto que eu não deixe atravessar nenhuma maldade,
eu possa, com a candura de meu estado, revelar atrevidamente as faltas mais graves e as
mais leves, sem ferir de nenhum modo a suscetibilidade da pessoa visada. Esta terá
vergonha de se ofender a propósito de um louco, o que não o impedirá de aprender a lição."
- De um modo geral, toda arte do bobo do rei consiste em fazer rir. Ele dispõe em todo
tempo, do privilégio de dizer a verdade nas situações onde teria sido perigoso para outros
fazer revelações tão comprometedoras. - Segundo Schuppius, não existem loucos mais
burlescos que os loucos sábios, os que não querem admitir que são loucos, mas defendem sua
loucura com as armas da gramática e da lógica; (Cf. K. Fr. Flügel, Geschichte der
Hofnarren (História dos bobos do rei) 1789, P. 22-24). Nas suas vestes folclóricos, o
louco aparece "como um demônio vegetativo [thériomorphiquement] caracterizado. O chapéu e
o [fouet] são os símbolos penianos (74)". Veja aqui uma das origens da "pansexualidade",
atribuída à psicanálise.
descoberta - esta é a visão que a verdade deve, obrigatoriamente, tomar emprestado em
presença dos poderosos.

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