Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
•
Professor do Departamento de Ciências Geográficas – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE,
Coordenador do Observatório Pernambuco de Políticas Públicas.
nos segmentos populares. Estes, por ignorar de todo a instituição acadêmica, por não ter
nenhuma perspectiva de poder nela ingressar, a idealizam como uma abstração e se
colocam em posição de demanda modesta, aceitando o que poderá vir dela. Claro, há
mudanças: se, entre os mais idosos, o respeito parece ser a regra, entre os mais jovens,
há uma demanda mais tensa, já que internalizaram que da apropriação do conhecimento
e dos diplomas dependem suas possibilidades de escapar das suas tão precárias
condições. Também, cada vez mais, o estranhamento respeitoso pode dar lugar à
impaciência e a uma legítima cobrança para que a universidade fale uma linguagem mais
inteligível e trate de questões mais vividas.
Há, portanto, uma contradição estrutural no âmbito da qual todos se arrumam e procuram
seus espaços. Uma aproximação mais respeitosa da parte dos acadêmicos exige tempo e
experiência, para superar o conforto de um saber instituído e o substituir pelo
reconhecimento dos seus limites e pela necessidade de, na convivência com parcela do
cotidiano popular, reconstruir um saber mais relevante e capaz de atuar na cooperação
com outros, estranhos cidadãos da mesma cidade. Em todos os momentos de
convivência propiciados pelo programa de trabalho do Observatório, o que ocorre de mais
rico é esse alerta permanente sobre os limites do saber acadêmico e a aceitação por
parte de docentes e de estudantes de revisar métodos, mesmo os mais consagrados,
para reinventar algo mais pertinente.
Entretanto, o ambiente universitário atual não parece ser muito favorável à paciência e à
modéstia. É o que Marilena Chauí demonstra quando trata da passagem da Universidade
da condição de instituição social para a de organização social, descrevendo a
“Universidade Operacional”. Constata que, na sua trajetória histórica, a universidade
européia:
Uma organização difere de uma instituição por definir-se por uma prática
social, qual seja, a de sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de
meios particulares para obtenção de um objetivo particular. Não está
referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno,
de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas como
estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e sucesso no emprego de
determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É
regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não
lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu
lugar no interior da luta de classes, pois isso, que para a instituição social
universitária é crucial, é, para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou
julga saber) por que, para que ou onde existe. A instituição social aspira à
universalidade. A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso
2
dependem de sua particularidade. Isso significa que a instituição tem a
sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa,
enquanto a organização tem apenas a si como referência, num processo
de competição com outras que fixaram os mesmos objetivos particulares.
Em outras palavras, a instituição se percebe inserida na divisão social e
política e busca definir uma universalidade (ou imaginária ou desejável) que
lhe permita responder às contradições impostas pela divisão. Ao contrário,
a organização pretende gerir seu espaço e tempo particulares aceitando
como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu alvo
não é responder às contradições, e sim vencer a competição com seus
supostos iguais.
1
CHAUÍ, Marilena. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 de maio de 1999.
2
CHAUÍ, Marilena. Idem
3
movimentos sociais com seus momentos intensos e urgentes e a sua paciência histórica.
Isso tem pouco a ver, portanto, com a cadência da produção acadêmica tal como a
planeja a organização universitária. Será possível manter e desenvolver espaços dentro
da Universidade que iriam de encontro ao adestramento dos acadêmicos, tal como
descrito por Sá?
3
SÁ, José Alcindo de. In: Revista de Geografia. UFPE/DCG-NAPA, Recife, 2002. p. 14-15
4
existem além dos limites dos bairros, dos municípios e dos estados e mesmo, quiçá, das
nações. Estas são, sem dúvida, responsabilidades específicas da Universidade que tem
na sua essência a função de arquivista do patrimônio e alguns resquícios de uma visão
universalista.
Michel de Certeau estabelece, no estudo do cotidiano, uma diferença entre atores, uns
dotados de capacidade estratégica e outros de capacidade tática. “Chamo de estratégia”,
diz este autor,
A definição dada por Claude Raffestin a esse conceito, nos parece bastante operacional,
pois se vincula estreitamente à preocupação de Michel de Certeau no que se refere à
análise do cotidiano. A territorialidade, escreve Raffestin,
4
CERTEAU M., Teoria e Método no Estudo das Práticas Cotidianas. In: Cotidiano, Cultura e Planejamento.
São Paulo: FAUSP, 1985.
5
concentrados serão os definidores de estratégias numa selva lotada de “caçadores
furtivos” limitados a táticas; e menor será a possibilidade de gestão efetiva e democrática
do espaço. “Escalas temporais diferenciadas”, porque o levantamento das práticas se faz
no tempo do cotidiano; e, como investigamos o espaço concreto carregado de objetos
acumulados na escala do tempo histórico, as relações concernem a esses objetos e se
referem aos poderes e aos saberes que acumularam os atores. “Escalas espaciais
diferenciadas”, porque tanto a estratégia quanto as táticas são noções relativas a um
espaço circunscrito; num espaço maior, o estrategista pode se tornar um tático; ademais,
o espaço urbano não é um espaço isolado, mas a expressão particular de ordens de
relações que o traspassam: ordem da propriedade, ordem dos objetos de uso coletivo,
ordem política, e ordem econômica, todas resultando de arranjos históricos e alvos de
rearranjos a depender das relações de força que os atores sócio-geográficos estabelecem
entre si.
A segunda diretriz refere-se, assim, aos instrumentos que se podem construir para que os
próprios movimentos sociais assumam cada vez mais a função de arquivistas da história
e do patrimônio que vêm constituindo. A consolidação das informações é hoje mediada
por tecnologias de grande capacidade de armazenamento e de representação. A
Universidade dispõe de grande parte dessas tecnologias, e muitos acadêmicos transitam
também na esfera estatal, bem como nela transitam muitas representações de
movimentos sociais. Ambos, então, adentram o aparelho burocrático que, segundo Pierre
George,
tem como efeito acumular uma enorme massa de dados que podem ser
introduzidos num processo de pesquisa geográfica, não sendo eles, nem
por destino nem por natureza, dados geográficos. Portanto, neste caso,
trata-se de mobilizá-los enquanto documentos que contribuem para a
construção de uma imagem ou de um processo geográfico, de que são
sintomas, ou melhor, indicadores.
E aconselha:
6
interessantes, mas perigosos quando o documento geográfico deve ou
pode ser utilizado em aplicações pragmáticas.5
Face à desigualdade que marca a sociedade brasileira e, portanto, esse convívio, face
também às imposições e aos ritmos que a pós-modernidade imprimiu nas universidades e
nos movimentos sociais, uma construção cooperativa visando prosseguir no caminho de
uma emancipação e de um mundo mais humano, os desafios parecem de grande porte.
Não são, no entanto, insuperáveis desde que nos afazeres cotidianos, a serem realizados
com modéstia, respeito e paciência, não se percam de vista diretrizes ambiciosas. Com
estas, garante-se a disposição descrita por Milton Santos:
5
GEORGE, Pierre. O Homem na Terra. A Geografia em acção. Lisboa: Edições 70, 1993.
6
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: Hucitec, 1996.